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ERROS EM TRADUÇÃO DO FRANCÊS PARA O PORTUGUÊS:
DO PLANO LINGÜÍSTICO AO PLANO DISCURSIVO
por
ANGELA MARIA DA SILVA CORRÊA
Tese de Doutorado apresentada
à Coordenação dos Cursos de
Pós-Graduação da Faculdade de
Letras da UFRJ. Sub-área:
Lingüística. Orientadora: Pro-
fessora Doutora Miriam Lemle
vol. 1
Rio de Janeiro, 1º semestre de 1991
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DEFESA DE TESE
CORRÊA, Angela Maria da Silva. Erros em tradução do francês para o português: do plano
lingüístico ao plano discursivo. Rio de Janeiro, UFRJ, Fac. de Letras, 1991. 319 + CXXII fl.
mimeo. Tese de Doutorado em Lingüística.
BANCA EXAMINADORA
Professora Doutora Miriam Lemle - Orientadora
Professor Doutor Carlos Eduardo Falcão Uchôa
Professora Doutora Celina Maria Moreira de Mello
Professora Doutora Maria Ângela Botelho Pereira
Professora Doutora Maria de Lourdes Cavalcanti Martini
Professor Doutor Edson Rosa da Silva (suplente)
Professora Doutora Bruna Franchetto (suplente)
Defendida a Tese:
Conceito: A
Em: /05/ 1991
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SINOPSE
Crítica da tradução brasileira do romance
Kamouraska de Anne Hébert. Conceituação,
análise e classificação dos erros no plano
lingüístico e no plano discursivo, a partir da
definição de ato tradutório como
desdobramento de ato de linguagem. Tipos de
conhecimento envolvidos no ato tradutório.
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SINOPSE.................................................................................................................................. 3
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 6
2. TRADUÇÃO E ATO DE LINGUAGEM ....................................................................... 9
2.1- O ato de linguagem segundo Patrick Charaudeau ................................................. 9
2. 2 – O lugar do leitor-tradutor no ato de linguagem................................................. 18
2. 3 - O lugar do escrevente-tradutor no ato de linguagem......................................... 24
3. ERROS DE TRADUÇÃO................................................................................................ 30
3.1 – Por falhas na competência lingüística.................................................................. 30
3.1.1- Erros atribuiveis à displicência do tradutor .................................................. 31
3.1.1.1- Os estrangeirismos do texto na língua de tradução..................................... 31
3.1.1.2- As falsas inferências................................................................................. 37
3.1.2- As armadilhas da semelhança fônica entre unidades lexicais................... 43
3.1.3 — As armadilhas da idiomatização .................................................................. 46
3.1.4 — Erros na estruturação de sintagmas e enunciados da LT........................ 55
3.2- Erros de tradução por falhas na articulação das competências lingüística e
discursiva............................................................................................................................ 59
3.2.1 – As armadilhas da polissemia.......................................................................... 59
3.2.1.1- Traduções errôneas que ferem o princípio da fidelidade .................. 61
3.2.1.2- Traduções errôneas que desobedecem ao princípio da coerência.... 67
3.2.1.3- Traduções inadequadas ao uso da língua de tradução ...................... 72
3.2.2 – Erros por desconhecimento da gramática..................................................... 77
3.2.2.1- Erros de interpretação no limite da sintaxe com a semântica ........... 77
3.2.2.2- Erros na interpretação de categorias gramaticais................................ 80
4. TRADUÇÃO DE COMPONENTES ENUNCIATIVOS........................................... 87
4.1- Componentes do enunciativo alocutivo................................................................. 89
4.1.1 – Tradução dos pronomes “tu” e “vous” ......................................................... 90
4.1.2 – Tradução das formas de tratamento ............................................................ 103
4.2 - Componentes do enunciativo elocutivo .............................................................. 107
4.2.1 – Crítica à tradução dos dêicticos e dos anafóricos...................................... 108
4.2.1.1- Tradução dos dêicticos adverbiais....................................................... 109
4.2.1.2- Tradução de demonstrativos................................................................ 111
4.2.2 - Crítica à tradução de tempos e modos verbais........................................... 117
4.2.2.1 - Tempos verbais — algumas considerações....................................... 117
5
4.2.2.2 - Modos verbais ....................................................................................... 119
4.2.3- Crítica à Tradução de componentes retóricos ............................................. 125
4.2.3.1- O plano fônico ........................................................................................ 125
4.2.3.2- As comparações...................................................................................... 128
4.2.3.3- As metáforas ........................................................................................... 130
4.3 - Componentes do enunciativo delocutivo........................................................... 137
4.3.1 - Tradução do pronome ʺonʺ ............................................................................ 137
4.3.1.2. O pronome "on" de terceira pessoa............................................................. 143
4.3.1.3. O pronome "on" não-delocutivo .......................................................... 147
4.3.2. Tradução do ʺdiscurso citadoʺ e das alusões ............................................... 149
4.3.2.1. O discurso citado.................................................................................... 150
4.3.2.2. As alusões................................................................................................ 155
5. CONCLUSÃO................................................................................................................. 162
6- BIBLIOGRAFIA............................................................................................................. 167
ANEXO................................................................................................................................. 178
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1. INTRODUÇÃO
A presente tese tem como ponto de partida a crítica à tradução brasileira do
romance Kamouraska de Anne Hébert. Anne Hébert é uma escritora quebequense que, já em
1958, com a publicação do romance Les chambres de bois, recebeu o prêmio literário “France-
Canada”. Kamouraska, publicado pelas Éditions du Seuil em 1970, valeu-lhe o “prix des
Libraires” de 1971. A tradução brasileira desse romance teve o título mudado para A máscara
da inocência, constando como tradutor Leônidas Gontijo de Carvalho, numa publicação da
Editora Civilização Brasileira de 1972.
Interessamo-nos inicialmente por esse romance por motivos diferentes ligados à
nossa prática didática: com o intuito de adotá-lo como obra de leitura obrigatória em uma
das turmas de Português-Francês do Curso de Graduação da Faculdade de Letras, para ser
objeto de debates e redações nas aulas de língua francesa.
Durante a leitura, verificamos que a trama de Kamouraska tem uma função
importante dentro do romance, sendo inspirada em acontecimentos que datam de meados
do século XIX, aproximando-o dos romances tradicionais que agradam ao grande público.
Por outro lado, o desenrolar da trama se faz através das reminiscências da personagem
principal, Elisabeth d'Aulnières, viúva de Antoine Tassy, e casada em segundas núpcias com
Jérôme Rolland. Com a proximidade da morte de seu segundo marido, Elisabeth vê desfilar
em sua memória os principais acontecimentos de sua vida. Com idas e vindas entre presente
e passado, revive, entre o sonho e a alucinação, também as sensações e sentimentos a eles
associados, num jogo de fusão e separação dos vários planos temporais.
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Essas características fazem com que a narrativa de Anne Hébert se afine com a
sensibilidade do leitor moderno, já habituado a romances onde predomina o monólogo
interior. Para o leitor brasileiro de Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, Elisa Lispector,
Helena Parente Cunha e tantas outras escritoras, o romance de Anne Hébert revela novas
facetas do que se convencionou chamar de “literatura feminina”, isto é, a literatura onde a
problemática humana é abordada do ponto de vista da mulher. Em Kamouraska a ótica – à
exceção de breves passagens do monólogo interior de Jérôme Rolland – é a da mulher, com a
vivência de preocupações e realidades que só a sensibilidade feminina pode ter e viver. Até
mesmo a voz do “narrador" enquanto entidade distinta da personagem Elisabeth, é sentida
pelo leitor como uma voz feminina, tal a facilidade com que se passa do discurso “dele” para
o da personagem.
1 Nota da presente edição: a numeração que se acha à esquerda em alguns parágrafos – como o número 10 que precede a
antepenúltima linha deste remete à numeração das páginas no original.
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E assim, na mente do leitor, constrói-se a imagem de uma narradora – imagem da
mulher do século XX debruçando-se sobre a realidade de outra mulher, distante no tempo.
Desejando adotar esse livro não apenas nas aulas de leitura orientada, mas também
naquelas em que se inicia a prática mais sistemática da tradução, interessamo-nos em
confrontar a tradução brasileira existente (doravante designada por TLT-1) com o texto
original (doravante TLO).
Num primeiro confronto superficial, com o intuito de verificar se se tratava de uma
tradução “bem feita”, identificamos uma série de inadequações e erros, que à primeira vista
demonstram um domínio insuficiente dos conhecimentos lingüísticos necessários ao
tradutor. Tais inadequações e erros, mais ou menos graves, diluem e comprometem o
sentido do texto original.
A partir dessa constatação, pareceu-nos que o levantamento desses erros e sua
conseqüente classificação refletiriam o teor das dificuldades com as quais se defrontam os
tradutores, e poderiam ser úteis a quantos pretendessem aprofundar-se na problemática da
tradução, e mais especificamente da tradução do francês para o português.
Objetivamos, portanto, com a presente tese, proceder, através da crítica a TLT-l, a
uma conceituação do que seja erro de tradução, a uma proposta de classificação desses erros e
a uma reflexão a respeito dos tipos de conhecimento envolvidos no processo tradutório.
Empreendemos, para isso, um confronto sistemático do TLT-l com o TLO, fichando
os vários tipos de erros e inadequações encontrados, a serem utilizados como material para
nossa análise.
E para respaldarmos nossa crítica numa experiência pessoal e refletirmos sobre as
operações interpretativas e produtivas envolvidas no ato tradutório, traduzimos cerca de 1/3
do romance Kamouraska (texto fornecido em anexo e designado pela abreviação TLT-2),
anotando nossas dúvidas, nossas dificuldades e nossas justificativas.
Por questões operacionais, numeramos os 65 capítulos de TLO e de TLT-1, adotando
numeração correspondente em TLT-2.
Assim, ao longo de nossa análise, a cada observação crítica, apresentaremos uma
outra proposta de tradução, justificando-a. Não apresentamos a retradução integral do
romance porque nossa principal meta é a crítica à interpretação já existente e a classificação
dos erros de tradução, e não a demonstração de nossa capacidade pessoal em produzir uma
tradução integral.
Na nossa busca de subsídios teóricos, deparamo-nos com um grande número de
autores que, seguindo Jakobson, (1963, publicado inicialmente em 1959), vêem na tradução
um ato comunicativo onde o tradutor tem a dupla função de receptor de uma mensagem
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produzida numa língua de partida (por nós chamada de língua original, a LO) e emissor de
uma mensagem equivalente na língua de chegada (por nós chamada de língua de tradução, a
LT) .O esquema abaixo, transcrito de Barbosa (1989, p.40) ilustra,em linhas gerais, essa
posição do tradutor:
FONTE ´ MENSAGEM-1 ´ RECEPTOR-1 ´MENSAGEM-2 ´RECEPTOR-2
FONTE: autor do texto na língua de partida
MENSAGEM-1: o texto na língua de partida
RECEPTOR-1: o tradutor
MENSAGEM-2: o texto na língua de chegada
RECEPTOR-2: o leitor do texto na língua de chegada
O trabalho do tradutor é visto como o de um mediador que decodifica e recodifica
mensagens para torná-las acessíveis aos que não dominam a LO.
Procuraremos então discutir as implicações dessa função de mediador, à luz de
concepções mais recentes do que seja o ato comunicativo, notadamente a concepção do ato
de linguagem segundo Patrick Charaudeau, discussão à qual nos dedicaremos no próximo
capítulo.
E subordinaremos nossa análise dos erros aos desdobramentos teóricos desta
concepção, que, como veremos, se apóia nas diferentes competências postas em cena pelos
parceiros do ato de linguagem – tanto do ato de linguagem que resulta na produção e
interpretação de TLO, quanto do ato de linguagem que resulta na produção e interpretação
do TLT.
Partindo dos erros mais evidentes, atribuíveis simplesmente à displicência do
tradutor, chegaremos àqueles que envolvem a construção de um texto literário enquanto tal.
Examinaremos as particularidades dos erros atribuíveis a falhas na competência lingüística,
dos erros atribuíveis a falhas na articulação das competências lingüística e discursiva, dos
erros causados por falhas na competência discursiva e dos erros causados por uma formação
cultural e literária deficientes.
A brevidade desta introdução deve-se ao fato de que apenas pretendemos, aqui,
anunciar as linhas gerais do estudo que vamos empreender.
Procuraremos, no próximo capítulo, e no início de cada um dos capítulos
subseqüentes, esclarecer os fundamentos teóricos de nossa análise.
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2. TRADUÇÃO E ATO DE LINGUAGEM
2.1- O ato de linguagem segundo Patrick Charaudeau
A concepção da tradução como resultante de um duplo ato comunicativo, onde o
tradutor é, num primeiro momento, um receptor, e em seguida o emissor de uma mensagem,
efetuando um trabalho de decodificação em LO e recodificação em LT, nos leva à busca de
uma definição melhor do que seja a produção e a interpretação de uma mensagem
lingüística.
Nesta busca, a conceituação de ato de linguagem tal como é desenvolvido por
Charaudeau (1982-1983-1984) nos parece mais completa e abrangente do que as propostas
anteriores, por demais atreladas à teoria da informação onde emissor e receptor são
“idealmente iguais em sua competência lingüística” (Charaudeau, doravante Ch., 1982, p. 2).
Para Charaudeau, o ato de linguagem combina o Dizer e o Fazer. “O Fazer é o lugar
da instância situacional definida pela posição que ocupam os responsáveis por este ato”
(Ch.,1984, p. 41). Tais responsáveis atuam como parceiros: “pessoas associadas numa relação
de fazer-valer recíproca; consideram-se, por isso mesmo, dignas uma da outra” (Ch., 1984, p.
43). E estabelece que na interação linguagística
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os parceiros são o sujeito comunicante (o EUc)
e o sujeito interpretante (o TUi), ligados por uma relação contratual. E justifica a designação de
sujeito definindo-o: “[...] um lugar de produção da significação linguagística ao qual retorna
tal significação para constituí-lo” (Ch., 1984, p. 43) .
O sujeito comunicante é quem toma a iniciativa do processo de produção do ato de
linguagem. O sujeito interpretante é o parceiro que toma a iniciativa do processo de
interpretação. Ambos são “sujeitos de ação”.
A relação contratual que os liga depende de três componentes: um componente
comunicacional, ou seja, as contingências físicas que influem no processo de produção -
interpretação (a natureza do canal físico, a presença ou ausência de parceiros, o número de
parceiros envolvidos, etc.); um componente psico-social – o status social que cada parceiro
detém diante do outro e que é reconhecido pelo outro na especificidade de cada ato de
linguagem; um componente intencional – “o conhecimento a priori que cada um dos
parceiros possui (ou constrói) sobre o outro de maneira imaginária, apelando para saberes
que supõe compartilhados” (Ch., 1984, p. 44).
2 Tradução de “langagière”: o que é próprio da linguagem. O linguagístico (traduzido por outros autores como “linguageiro”)
engloba tudo o que, no contexto situacional produz significação, como os gestos, as expressões fisionômicas, a situação
psico-socio-histórico-físico-cultural dos parceiros, etc.
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O Dizer é “o lugar da instância discursiva que se define como uma mise-en-scene
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da qual
participam ‘sujeitos de fala’” (Ch., 1984, p. 42) diferentemente do Fazer, do qual participam
sujeitos de ação. É, pois, o circuito do discurso configurado, isto é, do resultado do processo de
produção dirigido ao interpretante.
Ao produzir sua mensagem, o EUc fabrica um sujeito-destinatário (um TUd) que
pode coincidir parcialmente com o TUi, mas não obrigatoriamente. Isto é, TUd é uma
imagem construída pelo comunicante a partir das circunstâncias do discurso e da relação
contratual que mantém, ou procura manter, com o TUi. Analogamente, ao interpretar a
mensagem, o TUi fabrica uma imagem do sujeito comunicante que pode ser diferente
daquela que este pensa ter: é o sujeito-enunciador (o EUe) .
Numa situação de comunicação face a face o TUi pode manifestar seu desacordo
com a imagem TUd que EUc fabrica em seu discurso. Um dos exemplos citados por
Charaudeau (1983, p. 40) é o do enunciado “Sortez! (“Saia!”). Ao dizer “Saia! o comunicante
instituiu um TUd identificado a um sujeito disposto a submeter-se a uma ordem. TUi pode
rejeitar essa imagem fazendo de conta que não ouviu a ordem, questionando a razão da
ordem (“Sair? Por que?”) ou questionando o próprio status do comunicante (“Quem é você para me
mandar sair daqui?”). Este exemplo também ilustra o fato de que tanto o EUc quanto o TUi
constroem, com seu discurso, imagens de si próprios enquanto EUe e TUd. Ao dizer “Saia!” o
comunicante institui um EUe identificado a uma “autoridade-que-dá-uma-ordem”. Ao
contestar ou ignorar a ordem, TUi. está impondo ao comunicante uma outra imagem de TUd
(ao mesmo tempo, é claro, que assume, ao falar, um papel de EUe).
Para Charaudeau, os circuitos do Fazer e do Dizer são interdependentes, apesar de
reconhecer que possuem uma certa autonomia. Efetivamente, um enunciado como “Saia!”
parece não depender de nenhuma circunstância situacional para ser interpretado como uma
ordem. Por outro lado, o status psico-social dos parceiros, o local de enunciação e as demais
circunstâncias (temporais e contextuais) podem fazer com que tal ordem signifique, por
exemplo, tanto um rompimento de uma relação amorosa, quanto a demissão de um
emprego, ou apenas um sinal de impaciência (entre amantes, entre patrão e empregado,
entre mãe e filho pequeno respectivamente) .
Em comparação com o ato de comunicação onde se tinha um emissor e um receptor,
pode-se dizer que esta concepção do ato de linguagem efetua um desdobramento, uma
duplicação de cada um dos sujeitos implicados no processo de produção-interpretação das
mensagens lingüísticas. O ato de linguagem, com seu duplo circuito do Fazer e do Dizer,
3 Nota da presente edição: A expressão “mise-en-scene”, sem o acento grave do francês, consta como francesismo no
dicionário Aurélio (Cf. Ferreira, 1975). Atualmente preferiríamos utilizar a tradução para o português “encenação”.
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engloba não apenas o explícito da configuração lingüística mas também o implícito da
relação contratual que sustenta e complementa tal explícito.
Para facilitar a seqüência de nosso trabalho, transcrevemos a seguir o esquema
do
ato
de linguagem apresentado por Charaudeau (1984, p. 42):
Esquema 1: O ato de linguagem, seus parceiros e seus protagonistas
A relação contratual que une os parceiros do ato de linguagem deve ser interpretada
como um conjunto
de contratos.
O contrato é uma relação intersubjetiva que se fundamenta no status psico-socio-
histórico-físico-cultural que cada um dos sujeitos assume para com o outro e reconhece no
outro. Tal status depende estreitamente do que está em jogo no ato de linguagem. Assim,
num ato de linguagem em que um pai se dirige ao filho para dizer-lhe que está na hora de
dormir, o que está em jogo é o contrato de autoridade do primeiro sobre o segundo, é o status
que cada um detém nessa relação, ficando de fora, por exemplo, o status profissional do pai.
Dentre todos os contratos que estão em jogo no ato de linguagem, Charaudeau
distingue um contrato de fala (Ch., 1983, p. 50-55) “que sobredetermina em parte os protagonistas da
linguagem em seu duplo papel de sujeitos de ação e sujeitos de discurso”. Ressalta que “é com relação a tal
contrato englobante e sobredeterminante que se deve julgar os outros contratos e estratégias discursivos postos
em cena pelos protagonistas”. (Ch., 1983, p. 55).
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Mas qual é a especificidade do contrato de fala? É um contrato com características
de ritual socio-linguagístico
, que repousa na codificação de um implícito. Damos a seguir
alguns exemplos. Imaginemos que, numa aula de Geografia um professor pergunte a seus
alunos: qual é a capital dos Estados-Unidos? O contrato de fala que os une de imediato faz
com que a pergunta seja interpretada não como partindo de um enunciador em posição de
não-saber
, de querer saber, e que esteja atribuindo a seu destinatário a competência do saber
que ele demonstra não possuir. Ao contrário: o papel do professor enquanto enunciador é
daquele que sabe
, e que faz a pergunta não para obter uma informação que não possui, mas
para verificar a competência de saber do aluno interrogado.
Do mesmo modo, é o contrato de fala implícito que praticamente obriga os
anfitriões de um almoço a interpretarem os enunciados constativos “Meu copo está vazio”, “A
janela está fechada”, “Não tenho garfo”, como pedidos para encher o copo, abrir a janela e fornecer
um garfo (Cf. Ch., 1983, p. 24). Isso porque assumem, por força do contrato de fala, o papel
de provedores das necessidades alimentares e de promotores de um ambiente agradável a
seus convidados. Seu papel no contrato é que sobredetermina a interpretação dos
enunciados de seus convidados.
Lembramo-nos que na campanha eleitoral de 1960 à presidência da República o
slogan de um dos candidatos era “Desta vez vamos!”. O contrato de fala que liga o político em
campanha a seus possíveis eleitores sobredeterminava a interpretação desse enunciado como
sendo uma exortação ao voto pela promessa de que o país alcançaria uma posição política e
social mais favorável. “Vamos, no contexto desse contrato de fala, só podia significar avanço
em direção ao progresso e ao bem-estar.
Podemos imaginar o que, num ano de copa do mundo de futebol, este mesmo
slogan, impresso sobre a foto de uma bola de futebol publicada num jornal, pode significar.
O contrato de fala que estará sobredeterminando tal ato de linguagem passa a ser o contrato
publicitário. A leitura desse slogan, o destinatário depreende imediatamente que um
determinado produto está sendo oferecido como o instrumento de que precisa para alcançar
a satisfação de uma falta. O instrumento que permitirá a conquista do objeto de uma busca.
Assim, está implícito que, se o leitor–torcedor acompanhar a copa do mundo, poderá
alcançar um estado de alegria e de satisfação que há anos ele não conhece. E está
dissimulado, no entanto, o fato de que alguém está interessado em que o leitor acompanhe a
copa pelos lucros que isso vai lhe trazer.
4
4 Sabemos que o publicitário procura dissimular este segundo implícito. E sabemos também que o contrato de fala político é
muitas vezes assimilado pelo interpretante a um discurso publicitário que tem uma dimensão implícita a dissimular. Isso não
impede que ambos sejam sobredeterminantes no processo de interpretação do ato de linguagem em questão.
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Não há possibilidade de o leitor interpretar tal ato de linguagem como uma simples
informação jornalística ou como a manifestação de uma opinião. Ele se vê obrigatoriamente
implicado como um consumidor em potencial.
Por outro lado, mesmo considerando o ato de linguagem como o resultado de uma
confrontação entre um ato de produção e um ato de interpretação em parte
sobredeterminados pelo contrato de fala, não se deve ignorar que todo texto tem, em sua
origem, “um sujeito particular com uma intenção, um desejo, [...] um Projeto de Dizer.” (Ch.,
1983, p. 93-94). É esse Projeto de Dizer, ou Projeto de fala que leva o EUc a se lançar na busca
de meios estratégicos, de relações contratuais, de efeitos de fala com a finalidade de “criar
um universo de conivência ou de agressão segundo a intenção de EUc de seduzir, persuadir
ou provocar seu interlocutor.” (Ch., 1983, p. 95). Charaudeau identifica o Projeto de fala a
uma aventura, porque o EUc faz uma espécie de aposta
de que o TUi se identificará o mais
possível ao TUd. Essa aposta não está livre de riscos: a imagem que produz de si e do
interpretante pode ser recusada e então EUc não conseguirá criar o universo significativo
pretendido.
A noção de Projeto de fala aparentemente valoriza a intencionalidade do
comunicante em detrimento do processo interpretativo. Mas só aparentemente. O sujeito
comunicante não deve ser assimilado a “uma pessoa particular ou civil produzindo um
texto”, mas a “uma figura de sujeito que produziu um texto”, ligado a outros sujeitos por um
contrato socio-linguagístico que de certa forma o restringe. (Ch., 1983, p. 95).
Cabe então a pergunta a respeito da posição ideal do analista do ato de linguagem.
Charaudeau (1983, p. 82-92) defende o ponto de vista de que, na análise do discurso, o
“sujeito analisante” não busca descrever a competência do sujeito comunicante
isoladamente, posto que as intenções do comunicante não são transparentes ao interpretante,
e o ato de linguagem não pode ser estudado sem levar em conta o processo de interpretação.
Por outro lado, não procura apreender apenas o processo de interpretação. O que entra em
jogo na competência do sujeito analisante é a integração das atividades do comunicante e do
interpretante. Em sua atividade de interrogar o texto, ele constrói hipóteses sobre as
intenções do EUc e, ao mesmo tempo, procura dar conta dos possíveis
interpretativos.
A atividade do sujeito analisante depende da integração de três componentes
presentes numa mesma instância linguagística: um componente lingüístico que tem origem
numa competência lingüística; um componente situacional que é a base de uma competência
situacional; e um componente discursivo que é a base de uma competência discursiva.
Poder-se-ia, de início, pensar que Charaudeau negasse a pertinência da organização
estrutural paradigmática e sintagmática da língua para fins de análise discursiva.
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14
O que propõe, no entanto, é uma organização do material lingüístico em diferentes
aparelhos conceituais. O material lingüístico é, então, analisado enquanto meio
para a
realização de um determinado fim: a mise-en-scene discursiva. O quadro que apresentamos a
seguir e que já foi parcialmente elucidado por nós, traduz espacialmente a relação entre as
competências implicadas pelo ato de linguagem:
Esquema 2: Componentes do ato de linguagem
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Já expusemos resumidamente em que consistem as circunstâncias de discurso, o
contrato de fala e o desdobramento dos sujeitos da linguagem. Restam-nos outros
componentes a explicar.
5 Este esquema é a tradução daquele que se encontra no livro Langage et discours. (Ch., 1983, p. 91).
23
15
Quando definimos o lugar do Dizer no ato de linguagem, referimo-nos à mise-en-
scene dos sujeitos da linguagem através da construção dos sujeitos de fala – o EUe e o TUd.
Assinalamos que pode sempre haver uma opacidade de EUe com relação ao comunicante e
uma opacidade de TUd com relação ao interpretante. E que a mise-en-scene discursiva
consiste justamente na construção das imagens de EUe e TUd através de contratos e
estratégias.
Os exemplos que demos à página 13 servirão para esclarecer de alguma forma o que
vem a ser estratégia discursiva. Ao dizer “Meu copo está vazio”, “A janela está fechada”, “Não tenho
garfo”, o EUc constrói uma imagem de um EUe que não precisa fazer uma injunção a TUi
para ver atendidos os seus desejos. Utilizando a modalidade constativa ao invés de fazer
diretamente uma solicitação, EUe põe em cena um contrato de cumplicidade. Constrói, ao
mesmo tempo, a imagem de um TUd suficientemente perspicaz e perfeitamente integrado
no contrato de fala para interpretar constatações como solicitações.
No exemplo do slogan eleitoral a estratégia discursiva inclui o uso da l
a
pessoa do
plural, que reúne como agentes de um mesmo processo o EUe e o TUd. Constrói-se então a
imagem de um EUe conivente com um TUd, propondo a TUd um contrato de confiança.
Explicitando: “Desta vez vamos porque eu estou do seu lado e com o seu voto lutarei pelo
progresso e pelo bem-estar do povo”. E a localização temporal “desta vez opõe a situação presente a
situações anteriores, invalidando contratos de confiança anteriores em benefício do que é
proposto então.
O mesmo slogan no contrato de fala publicitário: o uso da l
a
pessoa é uma estratégia
que procura implicar de tal modo o TUd que o faz identificar-se a um dos possíveis
enunciadores do slogan. Não se propõe um contrato de confiança entre EU e TU: firma-se
um contrato de confiança entre EU, TU, de um lado e ELE, o futebol, o objeto de discurso, do
outro. Procura-se apagar, assim, a imagem de um enunciador distinto do destinatário. Nesta
situação discursiva, “Desta vez” também opõe a presente a outras passadas, quando a disputa
da copa do mundo não trouxe a alegria da vitória, mas a derrota. Explicitando: “Desta vez
vamos porque a seleção brasileira de futebol deste ano merece nossa confiança e será capaz de nos
proporcionar a alegria da vitória”.
As associações discursivas implícitas (que procuramos explicitar com as possíveis
seqüências discursivas de “Desta vez vamos”) constituem o que Charaudeau denomina de
atividade serial. Em determinadas situações o texto configura-se como uma alusão ou uma
citação de parte de um outro texto, e a relação que se estabelece entre os respectivos
implícitos é determinante da significação do texto explícito. O slogan publicitário “desta vez
vamos” está em relação de intertextualidade com o discurso ufanista produzido a respeito da
24
16
seleção brasileira, com as marchinhas de exortação à torcida, com as manifestações públicas
de euforia quando a seleção é vitoriosa, entre outros.
No quadro apresentado à p. 15 estão incluídos, ainda, os quatro “aparelhos
lingüísticos” que integram o que Charaudeau chama de “ordens de organização da matéria
linguagística” (Ch., 1983, p. 58-81). Não nos alongaremos no exame desses aparelhos,
limitando-nos a uma breve explanação de cada um deles.
O aparelho enunciativo é voltado para os protagonistas
do ato de linguagem. As
formas lingüísticas que o integram são definidas como traços de comportamentos
linguagísticos.
Assim, há um comportamento alocutivo onde predominam os traços explícitos do
sujeito destinatário: as marcas de 2
a
pessoa e as diversas modalidades que especificam ações
do EUe sobre o TUd. Há um comportamento elocutivo onde predominam os traços explícitos
do sujeito enunciador: as marcas de 1
a
pessoa, as modalidades que especificam atitudes e
posições do EUe. E, por fim, um comportamento delocutivo onde o discurso se apresenta como
“neutro”, como se o que estivesse sendo dito fosse independente das posições dos sujeitos
enunciador e destinatário. Distinguem-se um comportamento delocutivo textual (em que as
marcas lingüísticas especificam a asserção independentemente dos sujeitos do discurso) e
um comportamento delocutivo intertextual, que põe em relação o texto produzido com outros
textos que pertencem a um universo de discurso diferente do que está em jogo (através das
citações, dos diálogos e das alusões, por exemplo).
O aparelho argumentativo é voltado para o assunto do ato de linguagem (o ELE no
esquema comunicativo apresentado à p. 16). Seus componentes devem ser definidos em
termos logico-lingüísticos e descrevem relações abstratas (Ch., 1983, p. 65).
Neste caso, as operações logico-lingüísticas de conjunção, disjunção, restrição, oposição
e causalidade, entre outras, são estruturadas no discurso de modo a provar ou a refutar uma
afirmação à qual se atribui um valor de verdade. Fazem parte ainda do aparelho
argumentativo as marcas lingüísticas de organização do próprio discurso: tanto as que
explicitam uma cronologia, quanto as que explicitam um movimento anafórico retrospectivo
(as marcas que explicitam uma retomada do passado) ou prospectivo (as marcas que
explicitam anúncios, antecipações).
O aparelho narrativo é também voltado para o ELE do ato de linguagem. Seus
componentes definem tipos de FAZERES e tipos de SERES. Distinguem-se o Narrativo-
qualificação, que se caracteriza por uma relação atributiva; o Narrativo-ação, que se caracteriza
por uma relação ativa e o Narrativo-factitivo que se caracteriza por uma dupla ação ativa.
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25
17
O aparelho retórico está voltado para o próprio Fazer linguagístico “quanto ao
estabelecimento de uma relação entre o plano da forma e o plano da substância semântica”
(Ch., 1983, p. 77). Seus componentes englobam operações morfo-semânticas que objetivam a
produção de efeitos significativos tais como a metaforização, a comparação, a distanciação
(pelo processo da ironia) e outros.
As escolhas do comunicante no processo de produção do ato de linguagem efetuam-
se no âmbito dos quatro aparelhos lingüísticos. Assim, apesar de achar-se sobre-determinado
por um contrato de fala, sobra-lhe uma “margem de manobra” considerável para a
realização de seu Projeto de fala através da “manipulação” do material lingüístico disponível,
visando à produção de “efeitos de fala”.
A conceituação de Ato de linguagem segundo Patrick Charaudeau levou-nos a uma
revisão dos princípios de análise semiolingüística por ele preconizados, que pretendemos
reabordar proximamente em relação mais estreita com a problemática da tradução. Interessa
reiterar, por ora, que a atividade de tradução comporta uma primeira fase interpretativa em
que o tradutor assume o papel de sujeito interpretante na mise-en-scene do ato de linguagem,
estando, portanto, submetido às relações contratuais e convocado a entrar no jogo de
relações explícito-implícito. Em seu fazer interpretativo, estará colocando em ação suas
competências lingüística, discursiva e situacional para construir as significações do que está
sendo lido.
Passaremos a examinar, na próxima seção, as peculiaridades do ato de linguagem
escrito do ponto de vista do leitor-tradutor, para, em seguida, examinar as peculiaridades do
gênero romanesco exemplificando com o romance Kamouraka de Anne Hébert.
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2. 2 – O lugar do leitor-tradutor no ato de linguagem
Até aqui referimo-nos apenas a “ato de linguagem” e a “discurso” nas relações entre
EU-comunicante e TU-interpretante. Cabe-nos introduzir, para estudarmos o lugar do leitor-
tradutor no ato de linguagem, a noção de texto
. Para Charaudeau, o texto é a materialização
de um ato de linguagem. O texto pode, pois, ter a dimensão de um único enunciado (em
situações típicas, como em avisos, em placas informativas penduradas em locais públicos, em
cartazes, em tabuletas) como de n
enunciados – entendendo-se por enunciado a frase
efetivamente dita ou escrita por um EUc ao produzir o ato de linguagem.
A noção de texto não implica escrita: as manifestações discursivas orais detêm
propriedades que são comuns ao texto escrito e podem ser analisadas enquanto texto.
O texto longo é, evidentemente, um ato de linguagem complexo decomponível em
atos de linguagem menores que mantêm entre si toda uma rede de relações significativas. É
esta rede de relações (que abordaremos oportunamente) que constitui a especificidade do
texto enquanto tal, e o diferencia de uma seqüência aleatória de enunciados.
Com relação a um romance, pode-se considerar que resulta de um
ato de linguagem
– pois é estruturalmente organizado como uma narrativa, e portanto, tem uma unidade
comunicativa. Mas sabemos que as narrativas romanescas são atos de linguagem complexos,
e que se compõem do encadeamento de uma série de atos de linguagem menores que
contribuem para a construção do universo ficcional.
O Ato de linguagem escrito tem como principal componente comunicacional (Cf. p. 15
precedente) a distância espacial e temporal entre os sujeitos de linguagem.
O EU-comunicante (o escrevente) produz seu discurso “in absentia” do TU-
interpretante (o leitor). O texto que chega ao leitor é produzido sem que este interfira
diretamente em seu processo de produção – diferentemente da comunicação oral onde o
comunicante efetua ajustes em seu discurso em função das reações diretamente observadas
ou manifestas do interpretante.
Por outro lado, o texto escrito permite uma liberdade maior do leitor quanto a
determinadas contingências da tarefa interpretativa: o leitor pode repetir o processo tanto
quanto julgar necessário, pode fazê-lo na ordem em que quiser, e atendendo a seus objetivos
particulares, imediatos ou não.
Há a considerar também, como integrante do componente comunicacional, o tempo
que deve ser consagrado à leitura. O romance pressupõe uma disponibilidade maior por
parte do leitor, em comparação com outras narrativas.
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19
O leitor-tradutor deve saber e poder tirar proveito, em sua tarefa interpretativa, das
peculiaridades do componente comunicacional do romance. Assim, ao dedicar-se à leitura
(etapa necessariamente anterior ao processo produtivo), o faz de início para ter uma visão
global do texto, num primeiro processo interpretativo. Leituras repetidas se fazem para
“afinar” a interpretação, isto é, para que, na construção das significações do texto, cada
unidade possa estar relacionada com as outras e com o todo coerentemente.
Os componentes psico-social e intencional do ato de linguagem devem ser
examinados a partir do Contrato de fala. No ato de linguagem que constitui o romance, os
sujeitos de linguagem estão sobredeterminados por um Contrato literário. As relações entre
escritor e leitor já codificadas orientam tanto o Fazer produtivo quanto o Fazer
interpretativo. Assim, ao ler um romance, o leitor espera encontrar as características do
gênero romanesco e a obediência aos princípios estéticos vigentes na época em que foi
escrito. Pondo em ação sua competência situacional e sua competência discursiva, interpreta
o texto romanesco em confronto com o conhecimento de que dispõe a respeito de outros
textos pertencentes ao mesmo gênero, construindo então relações intertextuais. Ao produzir
o texto, o escritor o faz a partir de características e princípios vigentes, e que são esperados
pelo leitor.
Esse enquadramento dos sujeitos da linguagem em relações e princípios pré-
estabelecidos por convenções e pressões sociais, essa distribuição antecipada de papéis que
constitui o componente psico-social do Fazer linguagístico, estão em interação, como já
dissemos, com o componente intencional: isto porque todo ato de linguagem tem origem num
sujeito particular movido por uma intenção, um desejo, ou seja, um Projeto de Dizer (Cf.
Charaudeau, 1983, p. 94). No ato de linguagem escrito, trata-se de um Projeto de Escritura.
Um determinado projeto de escritura poderá implicar a aceitação ou a transgressão do
Contrato literário nos moldes vigentes. Ao ser rompido, o contrato é forçosamente
reconstruído em novos moldes, onde o escritor cria a imagem de um destinatário capaz de
participar de sua proposta transgressora.
O leitor-tradutor deverá ser capaz de identificar-se à imagem de destinatário mais
abrangente, devendo mesmo entregar-se à tarefa de analisar
os efeitos discursivos
produzidos, num esforço de reconstruir hipoteticamente a intencionalidade do texto. As
decisões que o tradutor tiver de tomar ao produzir o texto na língua de tradução (em LT)
terão obrigatoriamente como ponto de referência o resultado dessa atividade analisante. Em
Kamouraska, por exemplo, a advertência da escritora no verso da folha de rosto do romance,
de que se trata de “une oeuvre d'imagination, e de que os personagens tornaram-se “mes créatures
imaginaires” já convida o leitor ao papel de destinatário de um Contrato de ficção, onde
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experimentará a visão total de uma trajetória humana, só possível no universo ficcional. (Cf.
Ch., 1983, p. 97).
Dentro desse contrato, é imprescindível ao leitor-tradutor distinguir, por um lado,
sua posição de destinatário de um narrador onisciente (no começo do romance e em outras
passagens dos oito primeiros capítulos), e, por outro lado, a posição de destinatário no
espaço narrativo criado pelo monólogo interior da personagem Elisabeth. O destinatário
desse monólogo é levado a assumir o papel de protagonista ora de um contrato de
cumplicidade
, ora de um contrato de autoridade. Cúmplice, porque é levado a compartilhar
pensamentos e ações da personagem, revivendo com ela suas experiências, em lances de
tensão, angústia, paixão e desespero. Em outras passagens, o destinatário é requisitado a
identificar-se à autoridade, ao juiz que deve decidir se a personagem é ou não inocente. É
como se toda a rememoração tivesse como objetivo a defesa de Elisabeth diante de um
tribunal imaginário que pudesse conceder-lhe a libertação após julgamento.
Tais contratos a que acabamos de aludir integram o conjunto de estratégias
discursivas
que o leitor-tradutor, em sua atividade analisante, deve ser capaz de identificar e
interpretar. Reconhecemos que muitos bons tradutores não efetuam tal análise a nível
consciente nem nos termos aqui expostos. Mas seriam certamente capazes de distinguir, em
Kamouraska, as passagens em que a personagem é construída através da fluência
espontânea de suas experiências passadas e presentes, daquelas em que a personagem, ao
rememorar antigas acusações, defende-se delas.
Entre outras estratégias discursivas a serem buscadas e interpretadas pelo leitor-
tradutor estão a intertextualidade
e a interdiscursividade. A noção de intertextualidade,
segundo a qual todo texto é um ponto de convergência de um sem-número de outros textos,
não é nova, tendo sido introduzida nos estudos literários e semiológicos por Bakhtine (Cf.
Greimas & Courtes, 1979, p. 194). A interdiscursividade, por seu turno, diz respeito à
presença, no texto, de fragmentos de “discursos sociais”, construídos de maneira
inconsciente pelos indivíduos de um grupo social (Cf. Ch., 1984, p. 40). Tanto a
intertextualidade quanto a interdiscursividade se apóiam nos saberes que o interpretante
compartilha com o comunicante. Em Kamouraska entrelaçam-se, ao discurso da personagem
Elisabeth e aos de outros personagens aí introduzidos, o discurso moralista, o discurso da
tradição religiosa, o discurso das crenças populares, o do conhecedor da geografia
quebequense, o da magistratura, o do quotidiano feminino, bem como ecos de romances
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biográficos do século XIX, de “thrilers” sangrentos, de relatos oníricos, e a superposição de
planos narrativos que evocam técnicas cinematográficas.
6
No processo interpretativo do leitor-tradutor entram em jogo, pois, a competência
situacional e discursiva, que vão interagir com a competência lingüística.
A competência discursiva e a competência lingüística integram o circuito do DIZER
do ato de linguagem. Convém ressaltar então que tanto o Contrato literário sobre-
determinante quanto o Projeto de escritura pressupõem entre Escritor e Leitor o compar-
tilhamento de um saber lingüístico, o que implica a atividade de leitura em seus aspectos
cognitivos, ou seja, em termos do processamento inconsciente dos elementos formais do
texto, que permita a construção de sua significação global. Observamos que os estudos sobre
a leitura do ponto de vista cognitivo detectam processos mentais que são levados em conta
na abordagem semiolingüística do texto. A atividade de formulação de hipóteses, empre-
endida à medida que o texto vai sendo lido (Cf. Kleiman, 1989b, p. 35) relaciona-se com as
expectativas do leitor a respeito do texto, advindas de seu conhecimento intertextual e
interdiscursivo. A questão do conhecimento prévio (ibidem, p. 21) sobre o assunto, que é
também ativado no momento da leitura, relaciona-se ao Contrato de fala sobredeterminante
que impõe modelos codificados de ordem psico-social e mesmo textual, e servem de ponto
de partida à atividade interpretativa. Entretanto, há outros aspectos da abordagem cognitiva
da leitura que nos interessa relacionar especificamente aqui.
Ao iniciar sua atividade de leitura, o leitor já terá ativado seu conhecimento prévio
sobre o assunto que pensa estar presente no texto, em interação com as hipóteses que
formulou sobre o que o texto lhe trará de informação nova sobre esse mesmo assunto, e em
função de um objetivo
que o levou a iniciar a leitura de tal texto. Sem deixar de lado o
aspecto visual e gráfico do mesmo, o leitor vai iniciar o processamento
do texto em termos de
agrupamento de palavras em constituintes frasais e depois em frases, ao mesmo tempo em
que sua mente constrói significados.
Para além da dimensão de uma frase, os elementos que relacionam as diversas
partes do texto contribuirão para a construção de um sentido global. O conjunto destes
elementos é chamado de coesão. Citam-se como elementos coesivos (Cf. Kleiman, 1989b, p. 48):
repetições, substituições, pronominalizações, uso de dêicticos, uso de artigos definidos e
mesmo o uso da elipse. A coesão contribui para a construção de um cenário com poucos
elementos: os mesmos objetos, eventos ou fatos são “referidos várias vezes mediante léxico
diversificado” (ibidem, p. 149). Depende, pois, da organização dos elementos formais em
6 Como, por exemplo, no capítulo em que os objetos de Leontine Melançon transformam-se nos objetos das irmãs
Lanouette tais como eram vinte anos antes. (K., p. 41, último parágrafo).
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torno de uma mesma temática, ou em torno de temáticas claramente relacionadas umas às
outras. Como a coesão, para o leitor, resulta de “um processo inferencial de natureza
inconsciente” (ibidem, p. 50), ela integra uma estratégia cognitiva de leitura. E “quanto mais
complexo o texto, mais se faz o controle ativo desse processo” (ibidem). Os materiais formais
que marcam a organização de seqüências maiores também estabelecem relações coesivas
entre elementos descontínuos do texto.
Por outro lado, o leitor procurará, em seu processamento do texto, a coerência entre
os diversos elementos significativos que o constituem. A noção de coerência depende não
apenas do Dizer, isto é, da relação temática identificável entre os enunciados do texto, mas do
Fazer linguagístico, onde se reconhece a existência de uma relação integradora entre os atos de
linguagem que constróem o texto, independentemente ou não de elementos coesivos.
A busca da coerência faz parte da atividade de leitura, e muitas vezes depende do
conhecimento prévio do leitor. Assim, é muitas vezes graças aos esquemas de conhecimento
prévio que podemos identificar se um determinado texto é ou não coerente.
A noção de esquema
7
da psicologia cognitiva refere-se ao conhecimento estruturado
que possuímos na memória sobre assuntos, situações, eventos típicos de nossa cultura
adquiridos informalmente através de nossas experiências e do convívio numa sociedade
(Kleiman, 1989b, p. 23).
Há diferentes definições para esquema segundo a concepção de conhecimento a que
está atrelada tal noção. Segundo Kintsch & Van Dijk (apud Cavalcanti, 1989, p. 27), o esquema
é a espécie de informação que deve ser considerada relevante para uma situação específica;
segundo Tannen & Wallat (ibidem) são estruturas de conhecimento nas mentes dos
participantes na interação, isto é, um conjunto de expectativas baseadas em experiência
prévia sobre objetos, acontecimentos e cenários. Um determinado texto poderá ser
reconhecido como coerente se todos os seus elementos discursivos estiverem previstos no
esquema cognitivo ativado no processo da leitura. A esse propósito examinemos o seguinte
fragmento de texto:
8
Todos cantaram parabéns com alegria. Mamãe então começou a cortar o campo de futebol em
vários pedaços e todos os convidados disseram que estava gostoso. Logo depois não vi mais nada:
adormeci na poltrona e só acordei no dia seguinte, no meu quarto.
Na busca da coerência do texto, o fato de queo campo de futebol foi cortado em
pedaços não causa estranheza a quem tiver em mente o esquema das festinhas de aniversário
infantis em que o bolo a ser servido pode representar diferentes objetos, e que não raro, na
cultura urbana brasileira, reproduz um campo de futebol em miniatura. Para alguém que
7 Utilizaremos os caracteres em itálico cada vez que nos referirmos especificamente à esta noção de esquema cognitivo.
8
Texto construído por nós, para exemplificar a questão da importância do esquema na compreensão do texto.
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não tiver internalizado tal esquema o enunciado certamente representará um obstáculo à sua
interpretação e poderá ser julgado “absurdo”, “sem pé nem cabeça”, segundo o que
usualmente dizem os falantes a respeito de discursos incoerentes.
Essa noção de esquema está, sem dúvida, próxima do conceito de Contrato de fala da
proposta de análise que já apresentamos aqui. Cremos importante introduzi-la, no entanto,
porque o esquema ultrapassa as situações fortemente codificadas socialmente. Pode atuar em
situações menos solidamente codificadas ou em textos menos previsíveis por um Contrato de
fala estrito. O Contrato literário-romanesco que sobredetermina a leitura de um romance, por
exemplo, não exclui a ativação de uma série de esquemas segundo as situações que o narrador
constrói ao longo de sua narrativa. É possivel que outros Contratos de fala sejam incluídos
dentro do romance, como parte integrante da narrativa, e que haja esquemas diretamente
ligados a tais contratos. Por outro lado, um esquema como aquele que é ativado pela noção de
“assassinato”, e que ocorre várias vezes durante a leitura de Kamouraska, independe de um
Contrato de fala específico. O Contrato de fala parece coincidir com a definição de moldura de
Goffman (apud Cavalcanti, 1989, p. 27): princípios de organização que governam
acontecimentos — pelo menos os acontecimentos sociais — e nosso envolvimento com eles.
Assim, a interpretação do leitor-tradutor dependerá de sua familiaridade com os
assuntos tratados no Texto na língua Original (TLO), além, é claro, de suas competências
lingüística, discursiva e situacional. O desconhecimento de determinados esquemas, de
determinadas relações intertextuais e interdiscursivas impedirá, certamente, a interpretação
do texto como um todo coerente. Falhas na competência lingüístico-discursiva impedirão o
mecanismo de co-referencialidade de elementos textuais que integram a rede coesiva. Tais
falhas interpretativas certamente constituirão obstáculos à produção de um Texto na Língua
de Tradução (TLT) coerente e coeso.
Cremos, então, ser possível examinar o papel do escrevente-tradutor sob o ponto de
vista que temos utilizado até agora.
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24
2. 3 - O lugar do escrevente-tradutor no ato de linguagem
Uma vez concluída a fase de leitura prévia, o tradutor não abandona sua posição de
leitor ao começar a produção do texto na língua de tradução (o TLT) e ao assumir o papel de
um “escrevente” que se dirige a um determinado conjunto de leitores.
A especificidade da tarefa do escrevente-tradutor reside no fato de que, apesar de
produtor de um texto, seu status psico-social é o de decodificador e recodificador de um texto
pré-existente. Isto é, a tradução é vista como
se o texto na língua original (o TLO) fosse
simplesmente decodificável e recodificável em um TLT.
Entretanto, pelo que expusemos anteriormente, o texto não é acessível em
si, mas
como o resultado da tarefa de um sujeito interpretante, que constrói seus significados a partir
de seu status psico-social, dos saberes que compartilha com o escrevente ou o escritor, e de
um esforço analítico no sentido de hipotetizar as intenções de comunicação deste mesmo
escrevente ou escritor do TLO.
Assim sendo, o status do tradutor enquanto escrevente encontra-se falseado em sua
base, pois está preso a uma concepção do ato tradutório que anula as possibilidades
interpretativas do TLO.
Outra noção que faz parte do status psico-social do tradutor é a do Contrato de
fidelidade. Os leitores de uma tradução esperam que o TLT seja fiel
ao texto original. Taber &
Nida (1971, Chap. 1, p. 1-9) discutem a questão da fidelidade a respeito da tradução da
Bíblia. Segundo o que reportam, o ponto de vista tradicional era o de reproduzir a forma do
original: “os tradutores se vangloriavam de terem conseguido transmitir detalhes estilísticos:
os ritmos, as rimas, os jogos de palavras, os quiasmos e os paralelismos.” O ponto de vista
defendido por tais autores, no entanto, é o de que o receptor (leitor ou ouvinte) de nossa
tradução reaja tanto quanto possível da mesma maneira que os primeiros receptores no
momento em que tomaram conhecimento do texto original” (ibidem). A fidelidade ao texto
estaria não na reprodução da forma, mas na adaptação do conteúdo, de modo a produzir um
efeito
que se pretende idêntico ao produzido inicialmente.
Vemos, nessas considerações, duas posições extremas: uma que privilegiaria a
forma em detrimento da interpretabilidade, a outra que privilegiaria a interpretabilidade do
texto pelos leitores, em detrimento até de uma fidelidade ao contexto socio-historico-cultural
implícito no TLO.
Vinay & Darbelnet (1977) não definem explicitamente a noção de fidelidade. Mas
fazendo a distinção entre tradução literal aceitável e tradução literal inaceitável referem-se
implicitamente ao fato de que a fidelidade à forma, na maioria das vezes, implica uma
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tradução que: (a) tem um outro sentido; (b) não tem sentido; (c) é impossível por razões
estruturais; (d) não corresponde a uma realidade cultural da língua de tradução (LT); (e)
corresponde a uma realidade cultural, mas num outro “registro de língua”. (ibidem, p. 49).
Daí deduz-se que uma tradução, quaisquer que sejam os processos formais
utilizados, será aceitável:
— quando a mensagem tiver um sentido em LT (correspondente à objeção b);
— quando além de ter sentido em LT, tiver o mesmo sentido que a mensagem
correspondente na língua original (LO) (cf. objeção a);
— quando for estruturalmente aceitável em LT (cf. objeção c);
— quando corresponder a uma realidade cultural de LT (cf. objeção d);
— e quando estiver no mesmo “registro de língua” (cf. objeção e).
Segundo estes princípios, o que o tradutor deve buscar é, de um lado, a fidelidade
ao sentido e às diferenciações sociais do uso das formas lingüísticas existentes no TLO, e por
outro lado, que seu texto seja estrutural, significativa e culturalmente aceitável pelo leitor da
LT. Assim, esse contrato de fidelidade pressuposto por Vinay & Darbelnet também se
fundamenta na existência de um
sentido imanente ao TLO a ser transposto em LT.
A visão semiolingüística do ato de linguagem tal como foi proposta no presente
trabalho não considera que o sentido (que em Ch., 1983, p.18, é a significação) esteja presente
no texto em imanência, independentemente do esforço interpretativo de um leitor. Como
então situar o tradutor dentro do Contrato de fidelidade? O tradutor será fiel a quê? À sua
leitura? Se a resposta a esta última pergunta fosse afirmativa, então qualquer tradução seria
fiel, pois toda tradução é fiel à leitura de quem traduz. Postulemos provisoriamente, nesse
caso, que a tradução deverá ser fiel
à melhor leitura possível. E a melhor leitura possível será
aquela que der conta das interpretações possíveis num determinado momento histórico e
num determinado contexto socio-cultural. Será a leitura que procurar não apenas o nível de
significação mais evidente, mas que, num Contrato literário, por exemplo, interpretar o texto
como resultante de um fazer linguagístico voltado para a própria linguagem, isto é, como um
lugar onde a linguagem é interrogada enquanto possibilidade de processo criador de novos
sentidos.
Na produção do TLT, o tradutor, para ser “fiel” (isto é, para produzir um texto
análogo ao TLO), deverá buscar intencionalmente os efeitos de sentido que permitam
também ao futuro leitor a melhor leitura possível.
Assim, apesar de o contrato de fidelidade mascarar a tarefa interpretativa do
tradutor, tal contrato se realizará na medida em que o tradutor produzir um texto que
permita um percurso de leitura análogo ao do leitor moderno do TLO. E a diferença
41
40
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fundamental entre esta postulação e a de Taber & Nida (1971), é a de que acreditamos ser
impossível saber como reagiram os primeiros receptores do texto original. É claro que, a
partir de uma pesquisa histórica e filológica pode-se reconstituir o que os primeiros leitores
ou ouvintes da Bíblia entendiam de seus textos. Ao nosso ver isso não é o mais relevante
para se fazer uma moderna tradução da Bíblia, porque o leitor moderno desenvolverá seu
trabalho interpretativo num momento socio-historico-cultural diferente. E mesmo que se
deseje reconstituir o sentido que um determinado texto pudesse ter na época em que foi
apresentado ao público, forçosamente a leitura do público atual estaria atrelada a novas
variáveis e os sentidos aí interpretados difeririam, certamente, do pretendido.
Para encerrar a questão do Contrato de fidelidade, propomo-nos redefini-lo como a
obrigação assumida pelo Tradutor, face ao seu leitor, de que o TLT permita um percurso de
leitura análogo ao do leitor mais avisado do TLO, sem deixar de levar em consideração as
contingências socio-historico-culturais tanto do ato produtivo do escritor (ou do escrevente)
do TLO, quanto as do ato interpretativo do leitor do TLT.
Do que acabamos de postular, explica-se a necessidade periódica de retradução de
obras que se acreditava estarem traduzidas uma vez por todas, reajustando-se o TLT ao novo
momento historico-cultural.
9
Retornando ao esquema do ato de linguagem da página 12, o tradutor estaria
inicialmente no lugar do TUi, enquanto leitor, para posteriormente estar na posição de EUc
num outro circuito, estando o circuito anterior ainda atuante através do contrato de
fidelidade:
9 Nossa afirmação retoma a de Rónai (1956) às p. 51.-52.
Esquema 3:
43
A relação Contratual do Escritor com o Leitor 1 continua existindo durante o
processo de escritura do TLT. O Contrato de fidelidade é visto como a garantia (no nosso
entender impossível) da coincidência significativa do Ato de Linguagem do Escritor com o
Ato de Linguagem do Tradutor. O papel do tradutor, enquanto escrevente, continua, por
isso mesmo, ligado ao circuito do Fazer interpretativo, que continua atuando como matriz na
busca do “como dizer”. O escrevente-tradutor é então o mediador de um Contrato entre o
Escritor e o Leitor 2, tanto que este último comentará sua leitura dizendo: “Acabei de ler um
livro de Anne Hébert”, ou “já li No caminho de Swann de Proust” e só muito
excepcionalmente “li a tradução de um livro de Anne Hébert” ou “li a tradução do livro Du
côté de chez Swann”. Do que acabamos de dizer, conclui-se que o Leitor 2 considera que o
Contrato literário se mantém entre ele e o Escritor, apesar das diferenças inevitáveis e
obrigatórias entre o TLO e o TLT.
E o Projeto de Escritura? Teria o tradutor o seu projeto de Escritura? Se dissermos
que sim, que tal projeto tem obrigatoriamente de existir, deveremos também ressalvar que
não será reconhecido como tal, mas como uma “reprodução” do projeto de um outro, o
escritor (ou o escrevente, nos textos não literários). O Dizer 2 é visto como uma cópia, em
outro código, do Dizer 1. No entanto, a especificidade
da participação interpretativa do
Leitor l no Ato de linguagem, pela não-acessibilidade às intenções do escritor em sua
totalidade, e pelo próprio fato de que ao escrever, o Escrevente-tradutor está instaurando um
novo circuito de Fazer e de Dizer ligados a um momento socio-historico-cultural diverso do
Fazer 1, nos impede de aceitar a tradução como sendo uma “cópia”.
A escritura do tradutor se faz objetivando a recriação de sentidos interpretáveis não
apenas ao nível do enunciado, mas também ao nível situacional, e, no caso, ao nível do texto
como um todo. A concepção de que o Fazer do escrevente-tradutor se reduziria a um
trabalho de “colocação em palavras” de um sentido pré-depreendido preferimos a de que a
interpretação prévia apenas direciona o processo de escritura do tradutor. É no próprio
processo de escritura que o tradutor, relendo e interpretando o que escreveu, decide se o seu
TLT está adequado ou não ao seu propósito significativo, isto é, ao seu propósito de
fidelidade à interpretação que faz do TLO e de interpretabilidade do texto pelo Leitor2. Há
mesmo, nesse processo produtivo, todo um trabalho de reinterpretação, tendo em vista que
em seqüência à interpretação mais ou menos global das primeiras leituras, cada enunciado,
cada parágrafo será objeto da atenção do tradutor.
Nos capítulos subseqüentes procuraremos demonstrar como é possível ter uma
visão crítica a respeito das escolhas efetuadas por um determinado tradutor, recorrendo-se
aos conhecimentos que integram as competências lingüística, discursiva e situacional.
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29
Verificaremos como o processo de escritura procura atender aos princípios de coesão e de
coerência, sendo o escrevente-tradutor guiado, mais uma vez, por sua capacidade analisante.
O texto em LO pode conter elementos que, traduzidos literalmente na LT, produzirão um
resultado estruturalmente e significativamente possível em LT, mas que constituirão uma
quebra na coerência discursiva. Só a análise da situação “encenada” pelo discurso, nos
aspectos significativos que levarem em conta justamente esta “mise-en-scene”, fornecerá ao
tradutor as pistas para o seu Fazer produtivo voltado para o Leitor 2.
Utilizaremos em nossa tarefa crítica as classificações propostas por Charaudeau
(1983, p. 59-77). Como já tivemos ocasião de expor (Cf. seção 2.1), Charaudeau considera que
o EU comunicante detém um saber “linguagístico” que se organiza em contratos e estratégias
de fala. Em suas classificações da matéria semântico-formal de uma língua dada propõe uma
organização voltada para a “mise-en-scene” da linguagem. Assim, o material morfo-
semântico a que se tem acesso num determinado texto será confrontado com o que o TU-
interpretante tem armazenado em sua memória tanto através da “atividade estrutural”, que
é uma atividade de simbolização referencial, quanto através da “atividade serial”, que tem a
ver com as associações de um determinado enunciado com uma série de seqüências
possíveis, tanto do ponto de vista interdiscursivo a que já aludimos (Cf. p. 32) quanto do
ponto de vista do encadeamento lógico que cada enunciado suscita. O explícito do texto nos
fornece pistas interpretativas cuja análise nos permitirá a visão crítica da tradução existente
no mercado e a apresentação de uma proposta alternativa que atenda melhor às implicações
do ato tradutório.
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30
3. ERROS DE TRADUÇÃO
3.1 – Por falhas na competência lingüística
Como já foi dito na apresentação deste estudo, a tradução de Kamouraska existente
no mercado sob o título A máscara da inocência (TLT-1) apresenta uma série de erros e
inadequações se a compararmos com o texto na língua original (TLO). Para se ter uma visão
crítica desses erros, classificáveis por qualquer conhecedor das duas línguas em confronto
como sendo “crassos”, cumpre-nos definir o que seja erro
de tradução.
O erro
de tradução ocorre quando o tradutor desobedece às correspondências de
significado existentes entre unidades lexicais significantes das duas línguas sem
que haja
melhor
adequação de seu texto a uma das seguintes condições: à proposta estética do escritor
(incluindo suas estratégias discursivas), à realidade cultural do leitor, à coerência textual, às
regras de uso da língua de tradução (LT), ou às regras de estruturação sintática ou semântica
da LT. Esta definição se baseia no conceito de tradução literal inaceitável presente em Vinay
& Darbelnet (1977) e reproduzida à p. 25 do presente estudo.
Propomo-nos, nesta seção, tecer comentários sobre os tipos de erros que denotam
uma falha na competência lingüística do tradutor e que, em sua maioria, seriam erros mesmo
em outro contexto.
Ao apresentarmos nossa proposta de tradução, no entanto, procuraremos adequá-la
à seqüência textual onde se encontra, e justificar possíveis afastamentos da tradução literal.
Ao abordarmos o erro de tradução de unidades lexicais utilizaremos os seguintes
conceitos: formas livres (unidades lexicais significantes que podem constituir por si só uma
frase); formas dependentes (as que sempre ocorrem ligadas a outras, mas admitem
intercalações ou mudança de posição com relação à forma a que se prendem). Assim, em
francês, o possessivo com função adjetiva não é forma livre, e é classificável como
dependente porque se pode separá-lo, na seqüência fônica, do substantivo por ele
determinado: “Ton beau livre”.
As formas livres e as formas dependentes, quando indecomponíveis em formas
livres e dependentes menores, serão por nós chamadas de palavras ou vocábulos. Há também
unidades significantes resultantes da reunião de outras, e codificadas na língua como tais.
Serão por nós chamadas de lexias, e podem ser livres ou dependentes, segundo o mesmo
critério que distingue os vocábulos.
Ao mencionarmos erros de tradução de complementos verbais, nos serviremos da
noção de subcategorização. A subcategorização é um princípio que integra a teoria padrão da
gramática gerativa {Chomsky, 1965) segundo o qual “... a cada verbo estão associadas, no
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49
31
léxico, as categorias sintagmáticas (SN, SP etc.) com ele compatíveis” (cf. Lobato, 1986, p.
128).
Assim, há também verbos marcados quanto à possibilidade de serem seguidos de
sentenças (orações) como: “Pensar: [+ ____ S]”. O que está descrito entre aspas representa
formalmente a subcategorização do verbo pensar
, onde o travessão indica a posição ocupada
pelo verbo, o sinal + indica que se trata de “[...] marcação positiva, isto é, que se trata de
características contextuais com as quais o item em questão pode
se combinar”. (Lobato, 1986,
p. 129).
Diz-se, ao se falar de um determinado verbo, que ele subcategoriza tal ou qual
categoria sintagmática. Assim, ao nos referirmos a acreditar
, podemos dizer que este verbo
subcategoriza uma oração completiva, do mesmo modo que o verbo pensar
que consta da
exemplificação acima.
No decorrer de nosso estudo, por força das implicações gramaticais de
determinados erros de tradução, mencionaremos com freqüência este princípio.
3.1.1- Erros atribuiveis à displicência do tradutor
3.1.1.1- Os estrangeirismos do texto na língua de tradução
Em sua proposta de recategorização dos procedimentos técnicos da tradução,
Barbosa (1989, p. 89) propõe que se utilize a designação estrangeirismo para referir-se ao
procedimento que consiste em transferir para o TLT os vocábulos ou lexias da LO que se
refiram a um conceito, uma técnica ou um objeto mencionado no TLO que sejam
desconhecidos para os falantes da LT. Vinay & Darbelnet (1977) classificam este mesmo
procedimento como empréstimo, acrescentando que, muitas vezes, o tradutor mantém no TLT
termos estrangeiros para introduzir uma “côr local”.
Adotamos a designação de Barbosa (1989) porque o termo empréstimo já tem seu uso
definido na ciência lingüística. Segundo Pottier (1973), empréstimo é “[...] o procedimento
pelo qual uma língua incorpora um elemento de uma outra língua” (p. 119). No empréstimo,
os elementos estrangeiros são adaptados à morfologia, à fonologia e à ortografia da língua
que os incorpora. Nesta sub-seção comentaremos como os estrangeirismos são usados pelo
tradutor de TLT-l, propondo soluções diferentes segundo as circunstâncias.
Segundo a tradição, o tratamento dos topônimos numa tradução depende do uso da
LT: se já existe um topônimo correspondente na LT, este deverá ser utilizado na tradução. O
tradutor de TLT-l seguiu essa praxe, e traduziu para Quebec, Canadá, Estados-Unidos,
Montreal e Nova Iorque os seus correspondentes em francês.
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32
Quanto ao nome dos logradouros, o tradutor de TLT-l preferiu mantê-los como os
do TLO, conservando em francês o próprio substantivo comum que designa o tipo de
logradouro. Assim, a tradução do enunciado da p. 7, linhas 1 e 2, é a seguinte em TLT-l:
“A Sra. Rolland, contra seus hábitos, não saíra da casa da Rue du Parloir” (p. 3).
E no cap. 2, p. 8 do TLT-l : “O carro aproxima-se. Rue Saint-Louis, Rue des Jardins, Rue
Donacona”. No cap. 9, p. 46 do TLT-l: “Square Royal. Rue Charlotte. Rue Georges. Esquina das Rues
Augusta e Philippe.” No cap. 10, p. 53, do TLT-l: “Nada tenho a ver com os mistérios defuntos e pouco
edificantes desta casa de tijolos na esquina das Rues Augusta e Philippe, em Sorel”. Consulte-se ainda o
cap. 49, p. 181 e 182, e cap. 65, p. 244.
A manutenção do substantivo “square” na tradução talvez se deva à intenção de
manter a côr local, para criar um ambiente típico da cultura da língua original. “Square” já é
um empréstimo do inglês e designa um tipo de praça ocupada por um jardim cercado de
grades.
O substantivo “rue” presente no TLT-l, entretanto, além de constituir-se num
obstáculo à leitura coerente do texto, nada acrescenta à côr local. Acreditamos que a razão da
manutenção de tal substantivo tenha sido a dificuldade de seguir a regra de não traduzir
nomes próprios nas designações “rue du Parloir” e “rue des Jardins”. Com efeito, tanto Rua du
Parloir como Rua do Parloir resultam numa espécie de hibridismo lingüístico pouco
compreensível numa tradução.
Nossa proposta é a da tradução, além do substantivo “rue”, também do nome da
rua nestes dois casos. Rua do Parlatório, Rua dos Jardins não apresentam obstáculo à leitura
e não constituem incoerências ao lado de Rua Augusta, Rua Philippe, Rua Charlotte, Rua
Georges, Rua Saint-Louis, Rua Donacona. Estas últimas podem ser interpretadas como ruas
que receberam nomes em homenagem a figuras ilustres, enquanto as duas primeiras
receberam tais nomes por abrigarem locais de importância social.
Com relação aos antropônimos, apenas os nomes Flórida e Vitória foram traduzidos
para o português. Em TLT-2, além de também traduzirmos estes dois nomes, propusemos
uma espécie de aclimatação (cf. Barbosa, 1989, p. 92), isto é, uma transferência do nome do
TLO para o TLT com uma pequena modificação.
Não se trata da tradução para o português, mas de uma adaptação da grafia
francesa às regras de acentuação do português. Na prática, isto se limitou à eliminação dos
acentos agudo e grave sobre a vogal e
, do acento circunflexo sobre o o e do trema sobre o i,
passando os nomes Jérôme, Aurélie, Adélaïde, Angélique, Éléonore, Églantine, Léontine, Mélançon
e d'Aulnières a serem escritos, no TLT-2, como Jerome, Aurelie, Adelaide, Angelique, Eleonore,
Eglantine, Leontine, Melançon e d'Aulnieres. Com estas mudanças tais nomes continuam a ser
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interpretados como de língua francesa e apresentam-se mais acessíveis à leitura num texto
em língua portuguesa onde os acentos gráficos têm a função de indicar, além do timbre, a
intensidade, o que não ocorre com os do francês. Levamos em conta, nessa “aclimatação”, o
fato de que são nomes de personagens ficcionais e que o texto será consumido enquanto
ficção. Os nomes de pessoas reais em textos oficiais, tendo em vista sua importância
documental, não são suscetíveis de sofrer esse mesmo tipo de modificação.
Além dos estrangeirismos rue e square já apontados aqui, há alguns outros que
foram mantidos em TLT-l. Dois deles nos parecem admissíveis ou mesmo preferíveis à
tradução: “perdido dentro de seu imenso robe de chambre (TLT-l, c. 5, p. 23); “Seu lorgnon agita-se
violentamente sobre seu peito estreito.” (TLT-l, c. 7, p. 35). Estão dicionarizados os substantivos
chambre e robe como correspondentes a “robe de chambre” (Ferreira, 1975). Entretanto, a lexia
robe de chambre não causa estranheza ao leitor brasileiro, e julgamos que o tradutor poderia
mesmo ter dispensado os caracteres itálicos ao mantê-la no TLT-l. O substantivo lorgnon, por
seu turno, tem como correspondente o aclimatado lornhão (cf. Ferreira, 1975) .Mas será que os
leitores brasileiros o identificariam como a designação do objeto conhecido por lorgnon?
Neste ponto, julgamos que o tradutor de TLT-l agiu adequadamente, pois lorgnon é mais
aceitável do que o rebarbativo e estranho lornhão.
Outros estrangeirismos, entretanto, não nos parecem necessários nem oportunos.
Nos exemplos seguintes: “Consigo com dificuldade tirar o manto de pele e desembaraçar-me das écharpes
de lã” (c. 32, p. 133); “a renda de suas calças de nansouk (c. 3, p. 16); “as mãos imóveis sobre a saia de
crinoline (c. 2, p. 8). Os substantivos grifados já foram incorporados e aclimatados ao
português: echarpe, nanzuque e crinolina são verbetes de Ferreira (1975). Não há razão para
mantê-los no TLT-l como estrangeirismos.
Há ainda outros exemplos: “Entrar numa boutique; “Tribunal do Banc du Roi(ambos do c. 1,
p. 4); “Minhas três chaperons transidas de frio, na casa do guarda-caça” (c. 12, p. 63); “Os pares que
dançavam e os chaperons ficam como que imobilizados, a respiração presa”; “Envolta no xale imenso de tia
Adélaïde, vejo-me sentada bem no meio do clã de chaperons (ambos do c. 32, p. 133 e 134).
O substantivo boutique, como estrangeirismo: de uso corrente, designa a loja
sofisticada, de pequeno porte. Boutique em francês (e na acepção que está atualizada em
TLO) é definido comoparte de um prédio onde um comerciante, um artesão expõe, vende
sua mercadoria” (cf. Robert, 1970).
10
A tradução conveniente a tal substantivo é loja, e não há
por que manter o estrangeirismo no TLT.
10 Optamos por traduzir no corpo do texto os verbetes do dicionário Robert (1970) cada vez que recorrermos a essa fonte
de referência. Assim, todas as referências ao Robert, quando em português, são traduções de nossa responsabilidade.
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55
Para traduzir-se “Cour du Banc du Roi” é fato que não existe um correspondente
exato em português, visto que os sistemas judiciários do Canadá do século XIX e do Brasil
não coincidem. Para um leitor brasileiro, entretanto, o texto será convenientemente fiel à
interpretação do original se simplesmente traduzirmos tal designação por “Tribunal do Rei”,
dispensando o estrangeirismo. Neste caso, o estrangeirismo é inconveniente porque desfaz a
associação semântica com a menção à Rainha Viria que aparece logo depois no texto, bem
como em outras passagens do romance.
A manutenção do estrangeirismo chaperons no TLT-l parece despropositada porque
não faz parte do elenco daqueles que são familiares aos falantes do português. Nos trechos
em que foi mantido, designa as velhas senhoras acompanhantes das moças solteiras aos
acontecimentos sociais. Propomos a tradução acompanhantes na passagem do cap. 12, pois é
este o papel das três tias de Elisabeth na cabana de caça. Apresentamos abaixo os dois
trechos do cap. 32 do TLO, seguidos de nossa proposta:
Danseurs, danseuses et chaperons se figent et retiennent leur souffle. (TLO, p. 138, l.8).
Enveloppée dans le châle immense de tante Adélaïde, je me retrouve assise au beau milieu du clan
des chaperons. Livrée aux regards sévères des vieilles filles et des veuves. (ibidem, l.21-24).
Dançarinos, dançarinas e demais convidados ficam imóveis e prendem a respiração. (TLT-2
p.LXXIV).
Envolta no xale imenso de tia Adelaide, vejo-me sentada bem no meio do clã de acompanhantes.
Entregue aos olhares severos das solteironas e das viúvas (ibidem).
A designação mais genérica que usamos (“demais convidados”), para traduzir
chaperons no primeiro trecho, inclui o grupo das velhas senhoras, mantendo-se TLT-2
adequada à situação das personagens descritas em TLO. Em comparação com TLT-l, tem a
vantagem de não oferecer obstáculos à interpretação. No segundo trecho a designação
acompanhantes
traduz mais especificamente a função de chaperon. E associa-se
semanticamente ao enunciado subseqüente onde são mencionadas as solteironas e as viúvas.
No trecho correspondente em TLT-l, é bastante difícil, para o leitor brasileiro, deduzir o
significado do estrangeirismo a partir das seqüências vizinhas. Talvez por comodidade, o
tradutor de TLT-l não investigou o significado de chaperons para depois decidir que
designação melhor traduziria seu significado.
Algumas unidades lexicais particulares ao francês do Quebec apresentam
dificuldades para o tradutor. Duas delas foram mantidas no TLT-l: “Bebe caribou” (c. 3, p. 68);
“Ouve-se o coaxar das rãs ao longe. Cerca a cidadezinha uma espécie de muralha cristalina em que surge, às
vezes, o brilho surdo dos wawarons. (c. 37, p. 148) .
Nos dicionários franceses (mesmo nos dicionários enciclopédicos que relacionamos
em nossa bibliografia) não consta wawaron. E caribou é definido como a “rena do Canadá”
(Robert, 1970 e Dubois, 1977). O leitor brasileiro é capaz de inferir que caribou é uma bebida
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forte, ajudado pela interpretação da seqüência em que este substantivo está inserido. Foi esta
a nossa interpretação antes de contactarmos, através de carta, o Professor Jean-Guy
Deschamps, da Universidade Laval. Este, gentilmente nos comunicou, após consulta ao
dicionário de Poirier et alii (1988), que se trata efetivamente de uma bebida, definida como
“vinho ao qual se adiciona álcool, consumido principalmente durante a estação fria”.
Acrescentou que “não é destinado àqueles que têm as papilas gustativas delicadas”. Como se
trata de uma bebida típica, e cujo significado pode ser facilmente inferível pelo leitor, somos
favoráveis à manutenção deste estrangeirismo no TLT.
Quanto a wawaron, foi igualmente o Professor Deschamps que nos transcreveu o
seguinte trecho do dicionário de Dagenais (1967): “Esta palavra de origem iroquesa designa
no Canadá a rã de grande porte que só é encontrada na América do Norte. É conhecida pelos
demais francófonos pelo nome de grenouille mugissante e grenouille-taureau.”
Reconhecemos que nem sempre o tradutor tem a seu dispor todas as obras de
consulta necessárias a seu trabalho. Mas deveria esforçar-se para achar uma solução, pois o
leitor tem ainda menos meios para descobrir o que seja wawaron. Ao lermos o TLO pela
primeira vez, interpretamos “wawarons” como um fenômeno da natureza: ventos, relâmpagos
e, quem sabe, trovões? Depois, imaginamos que se tratasse do nome de um batráquio que
fizesse companhia às rãs citadas, porque já tivemos a experiência de assistir a uma
verdadeira sinfonia de rãs e sapos no campo, à beira de um lago, onde certas “vozes”
destacavam-se de outras. Na verdade, somente com o esclarecimento do Professor
Deschamps é que tivemos certeza do que se trata.
Transcrevemos a seguir o trecho de TLO em que ocorre tal substantivo, bem como
nossa proposta de tradução:
Le chant des grenouilles se déploie au loin. Entoure la petite ville d'une sorte d'enceinte cristalline
parfois surgit l'éclat sourd des wawarons. (TLO, c. 37, p. 152).
Um coaxar se desdobra ao longe. Envolve a cidadezinha com uma espécie de muralha cristalina,
onde, por vezes, destacam-se os mugidos surdos dos wawarons, as rãs gigantes da região.
Para podermos explicar, no texto, o significado de “wawarons”, utilizamos o
substantivo rãs no último dos enunciados acima. Com isso, para evitar a repetição,
suprimimos a menção direta a rãs
no primeiro enunciado, ficando subentendida apenas pelo
verbo coaxar
.
Em capítulo posterior abordaremos a questão dos pronomes de tratamento Monsieur,
Madame e Mademoiselle que foram transferidos como estrangeirismos para o TLT-l.
Há um certo número de citações em inglês no TLO que devem ser mantidas, em
princípio, no TLT. Isso acontece em TLT-1 com relação à transcrição, nos capitulos 1 e 6, de
trechos do auto de acusação de Elisabeth escritos em inglês. Nestes dois capitulos, o tradutor
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de TLT-1, além de reproduzir o texto em inglês, forneceu uma tradução em pé de página.
Entretanto, no cap. 8, após novas referências ao auto, o comentário: “The queen! Toujours the
Queen!” do TLO (p. 44) é traduzido no corpo do TLT-1. A interferência do inglês no discurso
de Elisabeth significa a própria interferência da acusação de que é culpada, na busca de sua
inocência. Assim, a manutenção de tal trecho em inglês, não adotada em TLT-1, contribuiria
para a construção do conflito em que se debate a personagem — entre o desejo de liberdade
e o complexo de culpa.
Além destas há uma citação em latim no TLO: “In pace” (cap. 4, p. 23) que foi
traduzida em TLT-1: “Em paz” (p. 19). No entanto, deveria ter sido mantida, pois constitui uma
reminiscência das palavras do sacerdote ao ministrar a comunhão aos fiéis, ditas em latim
porque esta era a língua oficial da Igreja Católica na época dos acontecimentos narrados.
Do que acabamos de expor, pode-se dizer que embora o estrangerismo seja um
procedimento técnico válido, deve-se levar em conta, em sua utilização, as competências
lingüística e discursiva do leitor. Se já for integrante do elenco de empréstimos já
dicionarizados pela LT, a forma da língua original só se justifica se a aclimatação for
artificial, como no caso de lornhão
. Nos demais casos, manter o termo da LO nos parece
plausível quando se tratar de um elemento típico da cultura da LO e quando o contexto
permitir a inferência do significado do mesmo. O tradutor pode, ainda, fornecer uma
definição no próprio texto. Com relação ao TLT-1, vimos que, muitas vezes, o tradutor não
atentou para a conveniência de seus estrangeirismos, que nos pareceram, na maioria das
vezes, uma forma de escapar à dificuldade de traduzir.
37
3.1.1.2- As falsas inferências
Os erros que apresentaremos a seguir revelam um menosprezo para com o TLO por
parte do tradutor responsável pelo TLT-l.
Uma simples consulta ao dicionário, ou um cuidado maior com o texto impresso os
teria evitado, posto que não se prendem a nenhuma dificuldade de se encontrar um termo
correspondente na LT, nem a nenhuma contingência contextual. Vejamos os exemplos:
TLC, c. 10, p. 57: “domestiques, aubergistes, bateliers, paysans...”. Aqui, “bateliers” foi
traduzido por banqueiros (TLT-l p. 53) em vez de barqueiros, o que parece ser um erro
tipográfico.
TLO, c. 56, p. 209: “Je me défends de donner droit d'asile et permis d'identité à cet étranger...”. A
lexia sublinhada foi traduzida por célula de identidade (TLT-l, p. 206) no que também parece
um erro tipográfico.
TLO, c. 8, p. 48: “Il s'applique férocement en soignant surtout les majuscules.” O substantivo
sublinhado foi traduzido por letras minúsculas (TLT-l, p. 44) no que pode ser interpretado
como um erro de revisão.
TLO, c. II, p. 62: “Deux longs mois de prison pour moi aussi, Aurélie.” Em TLT-l, p. 58, mois
foi traduzido por anos
, o que parece também ser um erro de revisão, pois no cap. l de TLT-l,
onde se relata o mesmo acontecimento, a tradução de “mois” se faz corretamente por meses
.
TLO, c. II, p. 62: “Une sorte de poids enfoui sous terre. Une ancre rouillée.” A tradução de
ancre por câmara
em TLT-l é mais um exemplo de inobservância imotivada à
correspondência significativa entre unidades lexicais da LO e da LT.
Os erros listados a seguir resultam igualmente em inobservância imotivada às
correspondências significativas entre unidades lexicais. Atribuímos tais erros não apenas à
falha na competência lingüística do tradutor, mas igualmente ao desconhecimento quanto ao
seu papel de mediador fiel do escritor do TLO. Uma concepção errônea do que seja
“tradução não literal” pode levar a uma atitude em que, ao deparar-se com palavras e lexias
desconhecidas, o tradutor “mal informado” resolva simplesmente inferir um significado
plausível a partir do contexto, divergindo daquele do TLO.
É claro que mesmo o tradutor mais experiente e competente pode deparar-se com
palavras desconhecidas. Mas neste caso, o que se espera é que, à falta do conhecimento
prévio necessário à compreensão do texto, ele se valha de fontes de consulta que o levarão a
tal compreensão. É fato sabido que os dicionários unilíngües e bilíngües são as ferramentas
mais usadas pelo bom tradutor, e permitem resolver, senão todas, grande parte das dúvidas
de natureza lexical encontradas durante o processo de tradução.
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Dos erros que assinalamos a seguir a maioria poderia ter sido resolvida com a
consulta a dicionários facilmente manuseáveis, como os de Ferreira (1975) para a língua
portuguesa, Dubois (1977) e Robert (1970) para a língua francesa, e Azevedo (1952), para o
confronto entre as duas línguas, sem necessidade de maiores reflexões por parte do tradutor.
Muitas vezes, no caso dos substantivos, os erros resultam numa designação
pertencente à mesma classe semântica da que seria conveniente, ou numa designação mais
genérica: como na tradução de sourcils por pestanas
ou na tradução de charrette por carro.
Assinalamos a seguir exemplos em que as designações, por se referirem a objetos integrantes
tanto da cultura franco-canadense quanto da cultura brasileira, não oferecem nenhuma
dificuldade de tradução, e que, no entanto, foram traduzidas erradamente em TLT-1:
TLO, c. 1, p. 8: “fiacre” (s.m.) se traduz por uma palavra idêntica em português:
fiacre
, tendo no entanto sido traduzido por tílburi (TLT-1, p. 4).
TLO, c. 6, p. 31: “sourcils” (s.m.pl.) corresponde a sobrancelhas e não a pestanas (p.
27).
TLO, c. 8, p. 49: “ficelle” (s.f.) em português é barbante
e não laço (p. 45).
TLO, c. 14, p. 74: “prairies” (s.f.pl.) são pradarias e não planícies (p. 70).
TLO, c. 41, p. 162: “phlox” (s.m.) se traduz por flox. Por desconhecer a palavra em
português, o tradutor preferiu o termo genérico flores
(p. 158).
TLO, c. 45, p. 171: “fichu” (s.m.) designa, em francês, o lenço
ou o xale, e não a gola
(p. 168).
TLO, c. 45, p. 171: “envoûtement” (s.m.) corresponde a fascinação
, sortilégio. Nada
tem a ver com dedicação
(p. 169).
TLO, c. 49, p. 184: “toit” (s.m.) foi erradamente traduzido por teto
(p. 182), quando o
correspondente em português seria telhado
.
TLO, c. 3, p. 18: “office” (s.m.) é designação correspondente a copa
ou a cozinha, e
não a sala
(p. 15).
TLO, c. 3, p. 20: “bonne(s)” (s.f.) designa as criadas
, do sexo feminino, e não os
criados
(p. 16).
TLO, c. 49, p. 185: “lucarne” (s.f.) é a lucarna, traduzido erradamente por trepadeira
(p. 182).
TLO, c. 59, p. 219: “bouilloire” (s.f.) traduzido erradamente por caldeirão
(p. 216)
quando o termo correspondente seria chaleira
.
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39
TLO, p. 61, p. 228: “étoffe” (s.f.) corresponde a tecido, fazenda e não a fazenda fina
(p. 225).
Em várias passagens do cap. 2 e do cap. 4, a personagem Elisabeth menciona “une
charrette”: por três vezes à p. 12, seis vezes à p. 13. Todas estas ocorrências foram traduzidas
em TLT-1 como carro
. Entretanto, para o leitor brasileiro, carro designa o veículo automotor
do século XX, e não aquele a que se refere o substantivo “charrette”: veículo de carga de tração
animal, de duas rodas. A designação correspondente em português é carroça
. No cap. 4
reaparece a designação “charrette” repetida cinco vezes ao longo das páginas 23 e 24. As
traduções respectivas em TLT-1 são: carro, carro, viatura, veículo e carro (p. 19 e 20). A variação da
designação neste capítulo fere o contrato de fidelidade porque a reiteração no TLO tem o
efeito de acentuar o estado obsessivo que domina a personagem, o que se perde no TLT-1.
TLO, c. 8, p. 44: “pièce” (s.f.), no contexto em que se encontra, corresponde a cômodo
ou peça
da casa. A tradução por “sala” (p. 40) restringe a referência a um tipo de cômodo, o
que não corresponde à intenção narrativa do escritor. Como se trata de uma referência às
visitas do Dr. Nelson a Elisabeth, segundo uma testemunha que afirma que a mãe da
personagem estava sempre junto deles (“Madame sa mère les suivait toujours dans la pièce où ils se
trouvaient” – p. 44), a própria profissão de médico implicaria a possibilidade de permanência
por algum tempo no quarto da paciente — o que fica excluído pela tradução “sala”.
TLO, c. 10, p. 59: “robe” (s.f.) foi erradamente traduzido, por duas vezes, por “manto
(p. 55). Nas duas ocorrências a tradução conveniente seria vestido: o vestido da primeira
comunhão de Elisabeth e o “vestidinho” de índia de Aurélie Caron. Como se trata da roupa
de duas personagens femininas, o contexto não deixa dúvidas. Em outras passagens do
texto, como no cap. 55 (p. 201), “robe” tem outro significado: designa a manta de pele usada
para proteger os viajantes do frio intenso.
TLO, c. 11, p. 64: “taille” (s.f.), que em outro contexto pode significar estatura, altura,
no enunciado “Ma taille, la musique” é uma referência à cintura da personagem quando esta
descreve a cena em que dança a polca com o Governador do Condado. Nesta dança, como é
sabido, os cavalheiros enlaçam as damas pela cintura. A tradução decote (TLT-l, p. 60) é um
abuso da parte do tradutor.
TLO, c. 14, p. 74: “grèves” no sintagma “les prairies de grèves” corresponde a praias em
português. A tradução por “As planícies de saibros, além de ser uma desobediência ao princípio
de fidelidade, soa estranha ao uso da língua portuguesa pela pluralização de saibro,
substantivo normalmente utilizado apenas no singular. Propomos a tradução “As pradarias do
litoral” para evitar a aliteração parasita que se verificaria na tradução “pradarias de praias.”
64
65
40
TLO, c. 18, p. 90 e c. 21, p. 101: “galette de sarrasin” designa um tipo de alimento feito
de massa preparada à base de farinha de trigo-sarraceno (espécie diversa do trigo
propriamente dito), e não é familiar culturalmente ao leitor brasileiro. Mas, por sua forma
achatada, e pelo fato de ser à base de um cereal, pode ser designado por bolacha de trigo-
sarraceno. Mesmo que o leitor brasileiro não tenha conhecimento prévio do que seja o trigo-
sarraceno, interpretará tal especificação como referente a um cereal típico da cultura
quebequense. As traduções bolos de farinha de trigo (p. 85) e bolos de massa não nos parecem
convenientes por não especificarem nem o ingrediente principal (presente no TLO) nem o
formato de tal alimento.
TLO, c. 34, p. 143: “Vêtements lourds brusquement ouverts sur la tendresse
du ventre.” A
tradução de “tendresse” por flacidez em TLT-1 (p. 138) é inadequada. Apesar de “tendresse”
aparecer nos dicionários como derivado do adjetivo tendre com o sentido de terno, afetuoso,
neste trecho há uma nítida relação com o sentido de tenro, macio, pois descreve a
característica do ventre de uma mulher jovem. Flacidez, enquanto conceito, é culturalmente
depreciativo, associando-se a velhice e a feiúra. Daí propormos como tradução para este
trecho: “Roupas pesadas abertas bruscamente, expondo a maciez
do ventre”.
TLO, c. 59, p. 220: “plat” (s.m.) corresponde a travessa, recipiente onde se servem
alimentos, em português. A tradução por camada (p. 218) é um erro que suprime do texto a
referência a um objeto que serve para compor a caracterização da personagem Victoire
Dufour enquanto estalajadeira. Ao preferirmos a designação bandeja para traduzir “plat”, o
fizemos porque, apesar de não corresponder ao mesmo objeto, mantém a mesma função
discursiva, que é a de ativar o esquema de “serviço de restaurante”, associado a Victoire
Dufour.
Além de “caribou e “wawaron estudados na sub-seção anterior, encontramos, ao longo
do romance, mais três substantivos que, no francês do Quebec, têm uma significação diversa
do francês da França. São eles:
TLO, c. 59, p. 219: “bombe”, traduzido erradamente por “bomba” (TLT-1, p. 216) e que
corresponde ao português chaleira —significado facilmente inferível da seqüência onde se
encontra “bombe” no TLO, e que confirmamos em Poirier (1985).
TLO, c. 16, p. 81: “nuage et crémone” traduzidos erradamente por nuvens e cremona
(TLT-l, p. 77). Estes dois substantivos designam tipos de echarpe ou cachecol de lã (cf.
Poirier, 1985, p. 66 e 107) e figuram num enunciado que descreve as roupas de Aurélie: “Col,
collerette, nuage et crémone” (TLO, p. 81). Tradução que propomos: “Colarinho, gola, echarpe e
cachecol” (TLT-2, p. XLVI).
66
67
41
Há também inúmeros erros de tradução de adjetivos, verbos e advérbios atribuíveis
à displicência em não investigar a significação das unidades lexicais. Só nos ocuparemos em
comentar os casos que demandariam uma reflexão maior do tradutor, além da simples
consulta ao dicionário.
TLO, c. 1, p. 10: “Il me semble que ce nom sonne dans ma tête, comme une cloche grêle
. O
adjetivo “grêle” foi traduzido como estridente
em TLT-1, p. 6. No dicionário Robert (1977, p.
805) grêle é definido como “o que se diz de um som agudo e pouco intenso”. Por não
encontrarmos um adjetivo que correspondesse a esta definição em português, em TLT-2
optamos por repartir esta significação entre duas unidades lexicais, e o enunciado corres-
pondente é: “Este nome parece ressoar em minha cabeça como o tilintar de um sino distante(TLT-2, p.
VI). O verbo tilintar substantivado descreve o timbre agudo do sino, e distante, especificando
um som, implica em pouca intensidade.
TLO, c. 13, p. 70: “J'appelle mon orgueil à mon secours, comme mon Dieu. Tandis que l'image
carotte
de Mary Fletcher me brûle de curiosité, de jalousie et de désir.” O adjetivo “carotte” (derivação
imprópria do substantivo “carotte” que corresponde a cenoura em português) é usado como
especificador de cabelos. Em passagem anterior (suprimida indevidamente em TLT-1)
menciona-se: “Mary Fletcher, une prostituée. Seigneur! Son manteau rouge. Ses cheveux carotte.” (TLO, c.
13, p. 69). Assim, a tradução de "carotte" por esguia em TLT-1, p. 66, é de provocar riso, e
mostra mais uma vez a incompetência lingüística do tradutor.
Começando pelo trecho da p. 69, a tradução poderia ser a seguinte: “Mary Fletcher, uma
prostituta. Meu Deus! De casaco vermelho. Os cabelos cor
de cenoura.”
E o trecho da p. 70: “Apelo para meu orgulho. Como se ele fosse Deus. Enquanto isso a imagem
cor
de cenoura de Mary Fletcher me enche de curiosidade, de ciúme e de desejo.
TLO, c. 9, p. 50: “Je soupire profondément. Est-ce l'innocence première qui m'est
rendue d'un coup,
dans un paysage d'enfance?” Como este enunciado apresenta, em seu conjunto, dificuldades
para a tradução, transcrevemos toda a passagem correspondente de TLT-1, p. 46: “Foi
justamente a inocência que me lançou
, de um só golpe, numa paisagem da infância?”
Tal tradução é inadequada porque inverte a relação entre inocência e paisagem da
infância. No enunciado do TLO, está claro que a paisagem da infância é o local em que a
personagem imagina receber de volta a infância (“est rendue”: voz passiva de “rendre”, traduzível
literalmente por é devolvida).
Na tradução de TLT-1, inversamente, a infância precede e provoca a paisagem.
Fizemos várias tentativas de tradução deste trecho, como: “Minha inocência original estaria
repentinamente de volta numa paisagem da infância? Mas a seqüência de advérbios em -mente que se
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42
estabeleceria (o enunciado anterior é: “Suspiro profundamente”) provocaria um efeito de eco,
indesejável porque em desacordo com os efeitos sonoros do TLO.
Rejeitamos também a tradução “Minha inocência original estaria sendo devolvida de súbito
numa paisagem da infância?” porque julgamos que as três formas verbais neste enunciado são
sonoramente pesadas e pouco significativas para um trecho que serve de conclusão a toda
uma descrição bucólica da cidade de Sorel. Nossa proposta mais aceitável (que acreditamos
possa ser aperfeiçoada) retira simplesmente o advérbio deste enunciado: “Suspiro
profundamente. Minha inocência original estaria de volta numa paisagem da infância? Assim, a paisagem
foi conservada como o cenário
da desejada recuperação da inocência pela personagem.
TLO, c. 24, p. 111: “II n'y a que le premier mari de madame qui soye pas là.” A tradução em
TLT-1, p. 106, suprimiu a negação, resultando em infidelidade ao TLO (qualificável de
contra-senso, porque diz o contrário do texto original): “Somente o primeiro marido de Madame é
que está lá.” Este trecho reproduz uma fala de Aurélie, onde a narradora procurou reproduzir
formas do francês popular
11
, como “soye em vez de “soit, e a supressão do advérbio “ne”.
Entretanto, como se sabe, o advérbio “pas” é suficiente para tornar o enunciado negativo.
TLO, c. 9, p. 53: “Il me semble que j'ai payé assez cher l'honneur d'être Madame pour ne pas y
renoncer facilement”. O tradutor de TLT-1, ao traduzir erradamente o advérbio “assez” por
muito
torna o enunciado incoerente: “Parece ter sido muito caro o preço dessa honra de ser Madame
para não se renunciar assim tão facilmente a isso.” A incoerência vem do fato de que este enunciado
estabelece uma relação de implicação entre “honra a preço muito caro” e “renúncia à honra” após
haver pago tal preço —o que está em desacordo com a atitude da personagem que insiste em
usufruir dos direitos que a “honra de ser uma mulher casada” lhe confere. Nossa proposta:
“Acho que paguei caro pela honra de ser casada, o bastante para não desistir tão facilmente.” Esta tradução
mantém, em português, relação de finalidade entre “paguei caro o bastante” e “para não
desistir tão facilmente”, tal como nas orações correspondentes em francês. Com isso, fica
clara a persistência da personagem em não desistir.
11 Cf. GUIRAUD, Pierre. 1986, p. 24.
70
43
3.1.2- As armadilhas da semelhança fônica entre unidades lexicais
Em seu Guia prático da tradução francesa (1983), Paulo Rónai arrola várias das
“armadilhas” da tradução do francês para o português, sendo que destaca, dentre elas, os
chamados “falsos amigos”:
[...] palavras de línguas diferentes que, por causa da etimologia comum, se assemelham na forma,
mas têm sentido diferente, como, por exemplo, attendre
em francês e “atender” em português, ou
ainda armée
e “armada”. Semelhanças enganadoras como estas são naturalmente freqüentes entre
línguas do mesmo tronco, tais como o francês e o português, cujo vocabulário deriva em grande
parte da mesma fonte latina, mas passou por evolução semântica diferente. (Rónai, 1983, p. XII)
Ao lado dos falsos amigos, há os falsos cognatos —”palavras cuja semelhança não
resulta de étimo comum, apenas de mera coincidência da evolução fonética: assim “bourrée”
e 'burrada', “casse” e 'caça', “chute” e 'chute'.” (Rónai, 1983, p. XII).
O que há de comum entre esses dois tipos de erros
de tradução, além do
desconhecimento do léxico da língua original, é o falso pressuposto, por parte de quem
traduz, de que a toda semelhança fônica deva corresponder uma semelhança de significado.
Na resenha ao livro de Millôr Fernandes, The cow went to the swamp. A vaca foi pro brejo,
Miriam Lemle refere-se a este tipo de erro como resultante da “ignorância da autonomia
entre o plano da estrutura semântica e o plano da estrutura fonológica” (Lemle, Miriam,
1990, p. 118). O tradutor avisado é consciente desta autonomia e, diante de uma palavra ou
de uma lexia que desconheça, procura investigar seu significado, em vez de simplesmente
seguir o falso princípio enunciado acima.
O tradutor de Kamouraska apresenta em seu texto inúmeros exemplos de erros de
tradução atribuíveis a este falso pressuposto. Apresentaremos a relação de alguns deles, que
acreditamos ser de interesse para os que se dedicam à tradução do francês para o português.
Além da semelhança fônica entre as duas línguas, também a semelhança fônica
intralingual pode levar o tradutor de parcos conhecimentos lexicais a traduzir erradamente
— ao confundir parônimos e ao estabelecer falsas relações entre palavras parecidas do
francês. Alguns dos exemplos que estudaremos prendem-se portanto à semelhança fônica
intralingual, e ao mesmo falso pressuposto a que nos referimos acima.
Substantivos traduzidos erradamente por apresentarem semelhança fônica com
outros do português ou do francês: “lame” (s.f.) (TLO, c. 5, p. 25) integra a lista de falsos
amigos de Paulo Rónai (1983, p. 96). No contexto do cap. 5, pode traduzir-se por onda, vaga e
nada tem a ver com lama (TLT-l, p. 21).
TLO, c. 8, p. 42: “romance” (s.f.) traduz-se por romança (s.f.), “composição musical, em
geral curta, para canto e piano, de cunho sentimental ou patético, típica do século XIX” (cf.
71
72
44
Ferreira, 1975, p. 1256). Foi traduzido erradamente por romance (s.m.) (TLT-1, p. 38) — típico
exemplo de falso amigo.
TLO, c. 10, p. 50: “fourrure” (s.f.) traduz-se por pele (s.f.) usada para proteger do frio ou
para ornamentar roupas. Foi traduzido erradamente por forro (TLT-1, p. 55). O mesmo erro
aparece em TLT-1, c. 8, p. 44.
TLO, c. 10, p. 59: “cachemire” (s.m.) corresponde, em português, ao estrangeirismo
cashmere (s.m.) (cf. Ferreira, 1975, p. 293) que designa “lã muito fina e macia, do pêlo de cabra
do Himalaia” e não a casimira (s.f.) (TLT-1, p. 55), que designa “tecido encorpado de lã, usado
em geral para vestuário masculino” (cf. Ferreira, 1975, p. 293).
TLO, c. 12, p. 66: “rame” (s.f.) é outro dos substantivos que integram a lista dos “falsos
amigos” de Paulo Rónai (1983, p. 143) .Traduz-se por remo (s.m.) e não por ramo. (TLT-1, p.
62).
TLO, c. 13, p. 72: violon” também integra a lista de falsos amigos de Paulo Rónaí e se
traduz por violino (s.m.) e não por violão (TLT-l, p. 68).
TLO, c. 13, p. 72: "violoneux" (s.m.) , em conseqüência do que está dito acima, designa
o “tocador de violino” e não de violão (TLT-l, p. 68).
TLO, c. 46, p. 177: "bulle" (s.f.) seguido da especificação "d'air" significa bolha de ar e não
bola de ar (TLT-`1, p. 174).
TLO, c. 54, p. 197: "enfer" (s.m.) corresponde a inferno e não a inverno (TLT-l, p. 195).
Parece-nos mais um erro de revisão.
TLO, c. 55, p. 201: "robe" (s.f.) no plural e seguido da especificação “de bison” designa
as mantas usadas para proteger do frio, e não roupas, como em TLT-l, p. 198. Mesmo erro no
c. 59, p. 218, de TLT-1.
TLO, c. 6, p. 33: "flaque" (s.f.) traduz-se por poça em português, no contexto do cap. 6,
onde é mencionado que há leite derramado no chão. Foi traduzido erradamente por garrafa
(TLT-1, p. 30), naturalmente pela semelhança com frasco.
TLO, c. 54, p. 197: "poupée de son", lexia traduzida convenientemente por boneca de
pano à p. 176, c. 47, TLT-1, inexplicavelmente foi traduzida como boneca de som, no c. 54, p.
194, do mesmo TLT-1. No primeiro exemplo o tradutor teria identificado "son" como sendo o
farelo que serve de enchimento à boneca de pano, e, no segundo, acometido de esquecimento,
não logrou tal identificação? Não sabemos. Só nos resta registrar nossa estranheza.
Verbos traduzidos erradamente presumivelmente por apresentarem uma certa
semelhança fônica com outros, do português e mesmo da própria língua francesa:
TLO, c. 6, p. 30: o particípio passado “bordées”, do trecho "Elle s'y prend à deux reprises
pour défaire les couvertures bordées serré, sans un pli"; foi traduzido erradamente por bordadas (TLT-
73
74
45
1, p. 27). Diz-se "border une couverture" quando se introduz a coberta sob o colchão, deixando-se
livre apenas o lado da cabeceira. Efetivamente não há correspondente exato a "border" em
português, com esta significação. A tradução de "défaire les couvertures" é desfazer a cama, lexia
que exclui a referência direta às cobertas. Para que "bordées serré, sans un pli" seja traduzido, é
necessário reintroduzir a designação correspondente a "couvertures" eliminada em desfazer a
cama, e utilizar-se um número maior de unidades lexicais do que no TLO.
Examinemos a nossa tradução: “Tenta por duas vezes desfazer a cama, retirar as cobertas que
foram presas sob o colchão sem uma prega sequer.” (TLT-2, p.XXII). Introduzimos “retirar as cobertas”
retomando “desfazer a cama para podermos referir-nos a cobertas. E para justificar a
dificuldade da personagem em “desfazer a cama, procuramos traduzir “bordées, o que nos
pareceu viável com uma oração relativa, equivalente sintaticamente ao particípio passado. Se
eliminássemos a relativa utilizando um particípio passado como em francês, o resultado
seria: “...retirar as cobertas presas sob o colchão sem uma prega sequer”. Parece-nos, entretanto, que
esta última tradução poderia prestar-se a interpretações ambíguas, imaginando-se, por
exemplo, que as cobertas estariam guardadas inteiramente sob o colchão.
Nosso empenho em encontrar uma tradução fiel para este trecho se justifica porque
aí estão contidas informações importantes para a caracterização da personagem de Leontine
Melançon, meticulosa como convém ao estereótipo da professora solteirona.
TLO, c. 17, p. 85: “Pour me maudire” foi traduzido erradamente por “para maldizer-me”
(TLT-1, p. 81) em vez de “para amaldiçoar-me. A semelhança fônica entre os componentes
morfológicos “mau-” e “mal” deve ter levado a tal erro.
TLO, c. 39, p. 159: “Atteindra bientôt...” O verbo "atteindre", que corresponde a atingir, foi
confundido com seu parônimo "attendre" e traduzido erradamente em TLT-1 por esperará (p.
154).
Apresentamos a seguir alguns dos adjetivos traduzidos erradamente por terem sido
presumivelmente mal interpretados devido à semelhança fônica com formas do português e
mesmo do francês que não guardam, estas, nenhuma correspondência significativa:
TLO, c. 5, p. 27: “incrédule foi erradamente traduzido por incrível (TLT-1, p. 23). O
incrível é que o inverso também ocorreu: “incroyable” (TLO, c. 24, p. 109) foi erradamente
traduzido por incrédulo (TLT-1, p. 104).
TLO, c. 7, p. 38: “dans une eau sale...” O adjetivo "sale", confundido com "salée" foi
erradamente traduzido por salgada em TLT-1, p. 34. Como se sabe, "sale" corresponde a sujo
(aqui, ao feminino “suja”) do português.
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46
TLO, c. 36, p. 150: “... ombres gigantesques et flasques ...” O adjetivo "flasque", que
corresponde ao português flácido, mole, foi erradamente interpretado como um substantivo e
traduzido, certamente pela semelhança fônica, por frascos, em TLT-1, p. 145.
Há também advérbios e preposições traduzidos erradamente por semelhança fônica
com unidades lexicais do português que, no entanto, não guardam correspondência
significativa com o francês:
TLO, c. 51, p. 190 e TLO, c. 54, p. 199: “très vieilles femmes”: Em TLT-1, o advérbio "très"
foi traduzido por três às p. 187 e 196, certamente pela semelhança fônica — sem levar em
conta as conseqüências que tais mudanças acarretariam para a narrativa. A tradução de “très
vieilles femmes” poderia ser simplesmente velhinhas.
TLO, c. 54, p. 198: L'homme là-bas”. Como se sabe, o advérbio "là-bas" pode traduzir-se
por “lá longe” ou simplesmente “lá”, e não por “lá em baixo” como ocorre em TLT-1, p. 195.
TLO, c. 37, p. 153: “roulez bien votre veste sous votre tête”. Erro de preposição: "sous"
corresponde a “em baixo de” e não a “sobre”. Qualificamos tal erro como de semelhança
fônica, mas talvez seja simplesmente devido à displicência do tradutor, pois “sob” também é
semelhante fonicamente a “sous” e não ocorreu ao tradutor neste trecho.
TLO, c. 53, p. 195: “Depuis combien de jours et de nuits...” A preposição “depuis” foi
traduzida por “depois de”, certamente pela influência da semelhança fônica entre tais formas.
Como se sabe, "depuis" não marca posterioridade como “depois de”, mas sim o período de
tempo decorrido a partir de um determinado momento até um momento posterior. Tradução
possível para o trecho acima: “há quantos dias e noites...”
3.1.3 — As armadilhas da idiomatização
Os processos morfológicos de derivação de uma dada língua fazem parte da
competência lingüística dos falantes desta língua. Assim, o prefixo "re-" do francês – tanto
quanto o seu correspondente “re-” do português – serve para formar verbos derivados de
outros verbos, e acrescenta a significação de repetição
do processo expresso pelo verbo ao
qual se aplica. Como exemplo, podemos citar "relire", derivado de "lire" que corresponde a reler
em português, derivado de ler. Assim como "refaire", derivado de "faire" corresponde a refazer,
derivado de fazer.
No entanto há inúmeras outras formas derivadas com o prefixo “-re” (em ambas as
línguas) que adquiriram sentidos que não correspondem a uma simples repetição do
processo expresso pela forma primitiva. Tal fato é o resultado de uma evolução semântica,
que pode atingir não apenas os derivados por prefixação, mas todos os demais processos de
77
78
47
formação de palavras. Diz-se então que tais formas sofreram um processo de idiomatização,
isto é, quando podem ser interpretadas como um todo
cujas partes perderam sua
significação isolada em detrimento deste todo
.
Alguns erros de tradução de Kamouraska prendem-se ao desconhecimento da
idiomatização de processos de derivação e composição, como verificaremos nos exemplos a
seguir.
TLO, c. 64, p. 245: “est renvoyé”... O verbo "renvoyer" foi traduzido erradamente em
TLT-1 por “é enviado novamente” (p. 242) e tal erro se prende à tradução isolada do prefixo “re-”
como equivalente a novamente. No texto, tal erro resulta numa incoerência, pois faz
pressupor um “enviar” anterior que não ocorreu. Neste trecho, "renvoyer" deve ser traduzido
por adiar: “O caso de Elisabeth é adiado
para as sessões de setembro”.
TLO, c. 21, p. 100: "raréfié" foi traduzido erradamente por “rarificado” (TLT-l, p. 95),
forma não dicionarizada. É um exemplo típico de interpretação isolada de unidades
morfológicas induzindo ao erro. Seguindo a regularidade das correspondências “mortifier” –
mortificar, “rectifier” – retificar, “exemplifier” – exemplificar, o tradutor “criou” rarificar a partir
de “raréfier”.
TLO, c. 13, p. 69: “Mary Fletcher, une prostituée”. O substantivo "prostituée" foi traduzido
pelo particípio passado do verbo prostituir: “... uma prostituída” (TLT-4, p. 65). O tradutor parece
ter-se deixado influenciar pelos componentes morfológicos de tal vocábulo, interpretando,
de um lado, o radical “prostitu-" e de outro a desinência "-ée", correspondentes respectivamente
a “prostitu-” e “-ida” em português. Não foi capaz de perceber que se trata da designação
correspondente a prostituta, a única possível em tal contexto.
TLO, c. 64: “Le gouverneur de la prison la salue bien bas, comme s'il s'agissait d'une méprise
”. Tal
substantivo foi traduzido por “alguém desprezível, numa interpretação errônea de méprise
como
derivado de “mépriser”. A interpretação baseada numa semelhança não apenas morfológica
mas também fônica, aliada à ignorância do léxico francês, induziu ao erro.
O substantivo “méprise” é derivado do particípio passado do verbo “méprende”.
Tradução conveniente do trecho: “O administrador da prisão a cumprimenta em voz baixa, como se
tivesse havido um erro judiciário”.
Os exemplos acima dizem respeito ao erro de tradução de vocábulos. Nos trechos
que examinaremos a seguir, um tipo de erro semelhante ocorre na tradução de lexias
substantivas, adjetivas, adverbiais e prepositivas: cada um de seus componentes (isto é, cada
uma das formas livres ou dependentes que entraram em sua composição) foi traduzido
erradamente como se fosse semanticamente independente do sentido global.
79
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TLO, c. 6, p. 30: “vieille fille”. E ainda, em outras passagens do c. 8 (p. 41 e 48 do TLO).
Traduções respectivas em TLT-1: “mulher velha” (p. 26), “velhas criaturas” (p. 37), “velhas” (p. 38),
“velhas criaturas” (p. 44).
Não é preciso ter-se um conhecimento profundo do léxico do francês para saber-se
que "vieille fille" corresponde a solteirona do português. Apenas uma vez — talvez por acaso —
o tradutor de TLT-1 traduziu adequadamente esta designação, assim mesmo acrescentando
desnecessariamente o adjetivo velhas: “Entregue aos olhares severos de velhas solteironas e viúvas”
(TLT-1, p. 134). Tal erro, como todos os que arrolamos até aqui, resultou em infidelidade ao
TLO, prejudicando inclusive a definição do status dos personagens na narrativa.
TLO, c. 13, p. 69, e c. 64, p. 243: “jeune fille à marier”. A lexia "jeune fille" entra na
composição de outra: "jeune fille à marier", que corresponde a “moça casadouraem português. As
traduções “jovem que precisa casar-se” (TLT-1, p. 66) e “uma jovem para casar” (TLT-1, p. 240)
resultam em infidelidade ao texto original. Ao recordar-se do tempo em que era “une jeune fille
à marier” a personagem refere-se tão-somente à sua condição de jovem em idade de casar.
TLO, p. 172, c. 45: “mauvais garçon”. Em TLT-1 foi traduzido como “jovem mau”. Tal como
os erros anteriores, trata-se da tradução isolada de cada um dos componentes de uma lexia.
Em francês, “mauvais garçon designa o rufião ou o desordeiro, que vive na marginalidade.
TLO, c. 46, p. 175: “chapeau haut de forme”. A tradução em português desta lexia é
cartola e não o risível “chapéu alto de forma” de TLT-1, p. 172 — completamente estranho ao uso
da língua portuguesa.
TLO, c. 49, p. 186 e c. 64, p. 243: "jeune mariée" e "mariée". O substantivo "mariée" e a lexia
"jeune mariée" foram traduzidos por “jovem casada” em TLT-1. No entanto, o substantivo assim
como a .lexia correspondem a recém-casada ou jovem recém-casada em português. A
idiomatização da forma "mariée" em seu uso como substantivo foi ignorada pelo tradutor de
TLT-1.
TLO, c. 49 e c. 60: "emploi du temps". A tradução de cada um dos componentes de per si
redundou numa seqüência que, apesar de não ser incompreensível em português, não
corresponde ao uso da língua: “emprego do tempo” (TLT-1, p. 183 e p. 221) .
Tradução que propomos:
TLO, c. 49, p. 186: “Essayer de reconstituer l'emploi du temps de cette fille en voyage, dans le bas
du fleuve”.
TLT-2: Tentar reconstituir a seqüência de ações dessa mulher que viaja para o estuário.” ( p.
XCVIII)
TLO, c. 60, p. 224: “Il y a pourtant un trou dans l'emploi du temps de celui que je cherche”.
Nossa proposta: “Há no entanto uma falha no encadeamento
das ações daquele que procuro.”
80
81
49
A lexia "emploi du temps" pode ser traduzida globalmente em outros contextos: em
contexto escolar corresponde a grade horária ou simplesmente a horário. Na vida cotidiana
atual, falar do "emploi du temps" de alguém equivale, em português, a falar da agenda desta
pessoa – designando agenda não mais o artefato no qual se escreve o que está programado
para se fazer, mas a própria programação.
No romance, "emploi du temps" designa, em ambos os trechos, as ações dos
personagens na ordem em que elas efetivamente ocorreram (no plano ficcional, é claro).
TLO, c. 54, p. 199: “Je souhaite le secours des bonnes femmes de Sorel.”
"Bonnes femmes" neste trecho é uma lexia e não um sintagma do qual se deva traduzir
os componentes separadamente. Ao dizer "bonnes femmes" a personagem não está qualificando
as mulheres de Sorel como sendo boas. É uma maneira de referir-se eufemicamente e com um
leve tom pejorativo a um grupo de mulheres, da parte de alguém que se julga superior. No
singular, "bonne femme" também é uma referência pejorativa, que revela, da parte do falante,
uma certa reprovação ao comportamento do referente. Nesta passagem do romance, como as
mulheres a que se refere a personagem estão ocupadas em tagarelar no salão da casa, uma
boa tradução seria a que levasse em conta este sentido: “Desejo ser socorrida pelas comadres de
Sorel” (TLT-2, c. 54, p. CII)
TLO, c. 11, p. 61: “...à la suite d'Aurélie.” O tradutor não identificou a lexia preposicional
"à la suite de", traduzindo "suite" como “séquito” (p. 57), significado possível de tal vocábulo
quando não integrante da lexia. Como se sabe, "à la suite de" corresponde a atrás de ou depois de
em português. Tradução proposta: “Só tenho o tempo de correr atrás de Aurelie ao longo do rio.” (TLT-
2, p. XXXVII).
TLO, c. 11, p. 62: “gros comme le bras”. Trata-se de uma lexia adverbial que, segundo
Robert (l970), “diz-se para acompanhar uma apelação lisonjeira”. Em Dubois (1977) é definida como
pertencendo à variante familiar, significando “largamente, sem restrição”, e, no exemplo
fornecido por este dicionário, é usada a respeito de uma apelação. Não tem pois nada a ver
com o aspecto físico da personagem, como foi traduzida em TLT-1, p. 57: “era magra”. Como
uma das traduções possíveis, propomos em TLT-2: “Naquele tempo, lhe chamavam de 'senhorita',
com
toda a pompa.” (p. XXXIX)
TLO, c. 35, p. 146: “Retiré du monde en
quelque sorte.” A tradução desta lexia por “de uma
maneira qualquer” (TLT-1, p. 141) é equivocada, inclusive porque o indefinido “quelque” não
corresponde a qualquer em português. “En quelque sorte” é uma lexia adverbial que, quando
especifica uma atribuição ou um processo, corresponde à tradução “de certa forma” ou “de
certa maneira”. Pode também estar especificando o próprio ato de linguagem, significando
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50
“por assim dizer”. O trecho em questão se presta a ambas interpretações. Nossa proposta:
“Retirado do mundo, por assim dizer.
TLO, c. 19, p. 93 e c. 24, p. 111: “en bataille”. As traduções desta lexia são de provocar
riso em quem as lê, pois seu sentido metafórico já está cristalizado e integrado ao idioma
francês. Fica portanto sem sentido o esforço de criação de comparações ou de metáforas
originais para traduzi-la, tal como ocorre em TLT-l, cap. 19: “A Sra. Rolland mostra uma cabeça de
medusa emergindo do roupão, pronta para lutar.” Em TLO c. 19, “en bataille” está especificando “robe
de chambre”, e pode ser traduzido por “em desordem”, “em desalinho” em português.
No cap. 24, a tradução desta lexia está igualmente errada: “... logo desaparecem em meio
a muita confusão como numa batalha. (p. 106). O trecho em TLO é o seguinte: “Aurélie Caron, Sophie
Langlade, Justine Latour disparaissent aussitôt, dans un fouillis de tabliers blancs en bataille.” (p. 111). Tanto
“fouillis” como “en bataille” referem-se ao movimento desordenado dos aventais das criadas. Em
nossa tradução optamos por suprimir uma destas referências: “... logo desaparecem, numa
confusão de aventais brancos.
TLO, c. 1, c. 24 e c. 28: “au bout de...” A cada ocorrência de "au bout de" o tradutor de
TLT-1 repetiu a mesma construção: “na extremidade de”. No dicionário Robert (1970, p. 188)
“bout” é definido como “parte de um objeto que o termina no sentido do comprimento”,
definição esta que realmente corresponde a extremidade
em português. Mas não é sempre
que o contexto permite tal tradução, havendo, mesmo no dicionário, vários significados
possíveis para a lexia “au bout de”.
Passamos a examinar alguns exemplos retirados de Kamouraska para verificarmos
como podemos adaptar a tradução da lexia ao contexto em que se encontra.
TLO, c. 1, p. 9: “La pitance parfaite au bout d'une branche.”
TLT-2: “A ração perfeita na ponta de um galho.”
TLO, c. 1, p. 7: “Cette disponibilité sereine qui l'envahissait jusqu'au bout des ongles.
TLT-2: “A disponibilidade serena que lhe escorria até a ponta dos dedos.”
Preferimos efetuar uma modulação
12
ao traduzir “jusqu'au bout des ongles” porque
o usual em português é referir-se à extremidade das mãos como as “pontas dos dedos”. A
escolha do substantivo “ponta” também obedeceu ao critério de procurar seguir o uso
da
língua.
TLO, c. I, p. 9: “Rejoindre mon amour, à
l'autre bout du monde.”
TLT-2: “Reencontrar meu amor, no outro lado do mundo.”
12 A modulação é um procedimento que consiste em substituir, na tradução, um termo (que corresponderia literalmente ao
original) por outro que mantém com o substituído uma relação semântica semelhante às que são encontradas entre o
“próprio” e o “figurado” nas figuras de palavras. Entre unhas e dedos há uma relação da parte com o todo, como na
metonímia. Cf. VINAY & DARBELNET, 1977, P. 88.
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51
A tradução de “bout” por extremidade seria inadequada porque em português não é
usual dizer-se “na extremidade do mundo”. Em francês, “à l'autre bout du monde” é um emprego
figurado da lexia “au bout de”.
TLO, c. 28, p. 127: “Là-bas, tout au bout de Sorel.
TLT-2: “Lá longe, no outro lado de Sorel.” (p. LXVII)
Além da tradução errada de “là-bas” por lá
embaixo (já anteriormente comentada
como um “falso amigo”) a tradução de TLT-1 “na outra extremidade de Sorel” é inadequada pela
mesma razão que observamos nos exemplos anteriores: é contrária ao uso da língua
portuguesa.
TLO, c. 24, p. 110: “Me voici assise au bord du lit, les pieds battant l'air, au
bout de ma longue
chemise, comme pour tâter Ia fraîcheur d'une eau imaginaire.”
O tradutor de TLT-1 procurou evitar a dificuldade deste trecho, traduzindo
"chemise" por cama (p. 105). Propomos a tradução seguinte: “Sentada na beira da cama, fico
balançando os pés que
saem da camisola, como se procurasse sentir o frescor de uma água
imaginária.” Neste trecho, tal como “au bout de”, a oração relativa “que saem” localiza os pés
com relação à camisola: “bout” é o limite da camisola; “sair” é o deslocamento de um corpo a
partir de um limite — daí a possibilidade desta tradução.
Apresentaremos a seguir comentários sobre erros verificados na tradução de lexias
verbais
:
TLO, c. 13, p. 70: “On dit qu'il boit et qu'il court
les filles.”
TLT-1, p. 66: “Dizem que bebe e corre
as moças.”
Tal tradução é flagrantemente contrária ao uso da língua portuguesa. Tradução que
propomos: “Dizem que ele bebe e faz farra com as mulheres.”
TLO, c. 11, p. 61: “Nous avons l'air
de répéter une pièce.
TLO, c. 11, p. 62: “Sans avoir l'air
d'y croire.”
TLO, c. 28, p. 127: “J'ai l'air
d'évoquer des esprits.“
Em português, a seqüência “ter o ar de”
não é uma lexia. A tradução destes trechos em
TLT-1 soam aberrantes porque “ter o ar de
”, em português, não admite uma oração completiva
como em francês. O erro do tradutor de TLT-1, redundou, então, em uma construção
agramatical em português. As traduções que propomos para os exemplos acima variam de
acordo com o contexto, procurando manter a significação da lexia do TLO, ao aplicar a
modalidade do parecer
aos predicados que a complementam. Assim: C. 11: “Parece que
estamos ensaiando uma peça” (TLT-2, p. XXXVII). “Aparentemente sem acreditar” (TLT-2, p. XXXVIII).
C. 28: “Parece que evoco espíritos(p. LXVII).
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TLO, c. 36, p. 148: “George et moi [...]. Jouons le jeu.” O tradutor de TLT-1 interpretou
isoladamente o verbo “jouer” como representar
e “jeu” como jogo, formando uma seqüência
incoerente no texto. A lexia “jouer le jeu” pode ser traduzida ou por “fazer o jogo” ou entrar no
jogo”.
TLO, c. 27, p. 126: “les jeux sont pourtant faits d'avance. O tradutor interpretou “jeux” como
partidas
e “sont faits” como são preparadas (TLT-1, p. 120), isoladamente. Trata-se, entretanto,
da lexia “les jeux sont faits” – que pode ser traduzida por “a sorte está lançada” em português. Neste
trecho do TLO, como a lexia oracional vem modificada pela lexia adverbial “d'avance”, tal
tradução global não nos parece adequada para descrever o que Elisabeth está imaginando
neste ponto da narrativa — com referência às partidas de xadrez que George e Antoine
disputavam no seminário, das quais George era sempre o vencedor.
Elisabeth interpreta este fato como uma fatalidade e um prenúncio do assassinato
de Antoine por George. A tradução de “les jeux sont faits d'avance” poderia ser então “a partida está
decidida antes de começar, ou “o jogo está decidido antes de começar”. Optamos por esta última para
evitar o eco “partida
– decidida”.
TLO, c. 1, p. 9: “Il faut se
faire une raison.”
TLT-1, p. 5: “É preciso arranjar
uma razão.”
A lexia “se faire une raison” corresponde a resignar-se
, conformar-se em português. Este
é mais um exemplo típico de como a incapacidade do tradutor em identificar lexias é
flagrante.
TLO, c. 19, p. 94: Mon mari s'appelle Jérôme Rolland et je vais de ce pas lui
faire un bout de
conduite
. Jusqu'à Ia mort.”
Mais uma vez interpretando isoladamente os componentes de uma lexia, o tradutor
de TLT-1 traduziu “conduite” como modo
de agir, divergindo totalmente do TLO: “... e eu vou
manter esse modo de agir até o fim, até a morte.” (p. 89) A tradução conveniente pode ser encontrada
consultando-se Robert (1970, p. 188): “acompanhar alguém em uma parte de seu caminho”, dentro do
verbete “bout”. Tradução que propomos para o trecho acima: “Meu marido se chama Jerome Rolland
e vou agora mesmo acompanhá-lo em seu caminho. Até a morte.
TLO, c. 38, p. 156: “L'homme qui fait
un tel cauchemar se lève.” Tradução em TLT-1: “O
homem causador deste pesadelo ergue-se.” (p. 151). A lexia “faire un cauchemar” traduz-se corre-
tamente por “ter um pesadelo”, em português. A tradução errada redundou em incoerência,
porque o que está sendo narrado é justamente o pesadelo de George — o “homem”
mencionado no enunciado e a quem, por isso, só pode ser atribuído o papel de vítima e não o
de “causador”.
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TLO, c. 49, p. 186: “Il ne me sera fait grâce d'aucun détail.” Tradução em TLT-1, p. 183: “Não
me será concedida a graça de qualquer detalhe”. O enunciado faz parte da seqüência seguinte em
TLT-1: “Toda a minha vida terá que desenrolar-se novamente sem que eu possa intervir, sem que possa
modificar o que quer que seja. Não me será concedida
a graça de qualquer detalhe.” Como o exemplo
anterior, este também constitui uma incoerência dentro do TLT-1 e um contra-senso com
relação ao TLO. O leitor fica sem compreender porque “os detalhes”, durante a reconstituição,
seriam identificados como uma graça concedida, posto que a personagem está insatisfeita
por ter de presenciar novamente todos os acontecimentos que a fizeram cúmplice de um
crime.
Com relação ao TLO, o enunciado em questão significa o contrário do que está em
TLT-1, e deveria ser traduzido por algo semelhante à seguinte proposta: “Não me será poupado
nenhum detalhe.”
TLO, c. 1, p. 10: “...et l'amour qui m'a laissé pour compte un soir de février.”
TLT-1, p. 6: “... e o amor que me deixou possessa numa noite de fevereiro.” O tradutor
certamente interpretou “laisser pour compte” como “deixar por conta”. E no português do Brasil “por
conta” é uma lexia definida como “em estado de indignação” (Ferreira, 1975). Ocorre que tal
equivalência é equivocada, pois "laisser pour compte" nada tem a ver com a lexia do português,
e significa “deixar para trás”, “abandonar à própria sorte”. Tradução que propomos: “... e o amor
que me abandonou à própria sorte numa noite de fevereiro.” (TLT-2, p. VI )
TLO, c. 64, p. 243: “Tous les invités se pâment d'aise”.
TLT-1, p. 240: “Todos os convidados pasmam-se à vontade.
Além de errar por traduzir isoladamente os componentes da lexia, há inclusive erro
na tradução isolada de “aise”, que só corresponde a “à vontade” na lexia “à l'aise”, ou “à son
aise”. O enunciado produzido em TLT-1 é sem sentido em português, atentando contra a
coerência discursiva. Como se pode facilmente verificar no dicionário, "se pâmer d'aise" pode
traduzir-se por “ficar encantado”, “ficar maravilhado”. (Robert, 1970, verbete “aise”).
TLO, p. 243, 64: “Quel joli mariage! On
n'en revient pas.”
TLT-1, p. 240: “Que belo casamento! Dele
não se escapará.”
Tal como a tradução do enunciado anterior, esta também constitui uma incoerência
dentro do texto. O enunciado “Dele não se escapará”, onde “dele” seria uma referência a
casamento, interrompe a continuidade temática da descrição de um casamento imaginário, e
não se justifica por nenhum outro elemento narrativo posterior. É claro que o erro desta
tradução não se resume à incoerência: a lexia “n'en pas revenir” é definida no dicionário como
“être très étonné”. Em TLT-2, foi por nós traduzida, no enunciado do c. 64, como: “Todos ficam
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maravilhados. O adjetivo “maravilhado” corresponde ao estado de espanto, surpresa,
interpretável em “On n'en revient pas.”
No cap. 29, esta mesma lexia também foi traduzida erradamente. O trecho é o
seguinte: “Les voisins réveillés n'en
reviennent pas d'une course aussi extravagante dans la nuit”. (TLO, p.
131). Traduzido por: “Os vizinhos despertados não
se espantam de uma corrida assim tão extravagante à
noite.” (TLT-1, p. 126). Do que já dissemos acima, "n'en pas revenir" refere-se à permanência
do espanto. Assim, a tradução de TLT-1, além de estar errada, por não corresponder à
significação da lexia em francês, constitui-se numa incoerência, pois o que se espera como
reação dos vizinhos de Elisabeth à “corrida extravagante durante a noite” é a surpresa e não a
indiferença. Tradução que propomos: “Os vizinhos, despertados, ficam surpresos com uma corrida tão
extravagante no meio da noite.”
TLO, c. 5, p. 28: “Pourquoi ne pas en
prendre son parti? Se décharger de cet homme à la fin?”
A desconsideração do pronome en
neste enunciado deve ter sido o motivo da
tradução inadequada em TLT-1, p. 24: Por que não toma sua decisão?”. As lexias “prendre son
parti” e “prendre son parti de quelque chose” não são equivalentes semanticamente. Esta última
traduz-se por resignar-se
a, aceitar a situação. (Cf. Robert, 1970, vb. “parti”).
TLO, c. 15, p. 78: ... c'est aussi un homme de théâtre, livré aux gestes et aux vociférations de ses
passions. Bien
mal lui prend, d'ailleurs, car...”
O tradutor de TLT-1 confundiu a lexia “mal prendre à quelqu'un de... que significa “ter
conseqüências desagradáveis” (Robert, 1970, p. 1378) com outra lexia construída com "prendre":
“s'en prendre à quelqu'un” que significa atacar
, responsabilizar. Daí a tradução errada: “Pior se o
recriminam disso...” (p. 74).
Tradução que propomos: “Pior
para ele, aliás, pois...”
TLO, c. 58, p. 213: “Ce qui me gêne le plus ce n'est pas tant d'avoir à me passer de tout le côté
solennel des salles d'audience”.
A lexia “se passer de quelque chose” foi interpretada erradamente em TLT-1 como
“passar por”, resultando em contra-senso em TLT-1, p. 210: “O que me incomoda mais não é
tanto ter de passar por todo o lado solene das salas de audiência.” Ao contrário, "se passer
de" significa “privar-se de”, “dispensar”.
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3.1.4 — Erros na estruturação de sintagmas e enunciados da LT
Influenciado pela gramática do francês, o tradutor de TLT-1 produziu uma série de
enunciados que infringem as regras gramaticais do português. Outros enunciados, apesar de
serem aceitáveis, são verdadeiros decalques de uma determinada estrutura característica do
francês. O exagero na freqüência desta estruturação acaba por torná-la um cacoete do
tradutor, pois não corresponde à baixíssima freqüência com que nos parece ocorrer em textos
escritos em português.
Nos casos examinados, verificamos que os erros não se prendem a uma falha na
interpretação do TLO, mas a uma falha na produção do texto na LT — e seriam, ao nosso ver,
identificáveis a uma simples releitura.
Os erros que- levantamos são os seguintes:
TLT-1, c. 38, p. 150: “[...] Melanie Hus, de quem você tratou e a quem velou com tanta dedicação
se
acorda de repente da morte [...]”
O verbo acordar
não se constrói com pronome reflexivo em português. Este erro
resulta de um decalque de “se réveiller” do francês.
TLT-1, c. 41, p. 159: “Estendidos, todos
os dois...”
Diante do numeral dois
especificado por todos não se admite artigo em português.
Isto é um decalque de “tous les deux” do francês.
TLT-1, c. 20, p. 90: “Não se vê uma criança correndo nem rindo. Não se ouve uma voz de mulher.
Em português, a negação aplicada ao verbo se estende ao complemento quando este
é determinado por um indefinido. O correspondente ao enunciado acima seria: “Não se vê
nenhuma criança correndo nem rindo. Não se ouve nenhuma voz de mulher.”
O trecho correspondente em TLO, entretanto, não contém verbo: TLO, p. 95: Pas un
enfant ne court ni ne rit. Pas une voix de femme.” Nossa proposta: “Nenhuma criança correndo nem rindo.
Nenhuma voz de mulher.” (Cap. 20).
TLT-1, c. 19, p. 89: “Segui-lo passo a passo o
mais tempo possível.”
O superlativo aplicado ao substantivo tempo
constitui uma agramaticalidade em
português. Trata-se da tradução equivocada de “le plus longtemps possible.” Nossa proposta:
“Segui-lo passo a passo, o mais que puder.” (Cap. 19). Assim, o superlativo é interpretado como
uma intensificação do processo de “seguir”, o que implica um prolongamento ou uma
repetição no tempo – traduzindo sob uma outra visão a duração
interpretável em “le plus
longtemps possible.”
TLT-1, c. 9, p. 46: “Desde
um breve momento há qualquer coisa que se passa do lado da
claridade.
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A preposição desde em português não constrói uma especificação de duração como
o faz a preposição “depuis” em francês. A tradução impensada de “depuis” por desde
resultou
num enunciado agramatical em português.
A tradução do trecho “Depuis un instant il y a quelque chose qui se passe du côté de la lumière.”
(TLO, p. 50) tem de levar em conta o uso do vocábulo instante
em português. Na referência a
um instante, diz-se, de preferência “neste
instante” ou “neste mesmo instante”, sem a
especificação de duração. Assim, propomos: “Neste instante algo está acontecendo do lado da luz.”
(Cap. 9 )
TLT-1, c. 54, p. 196: “Sinto até
ao limite de minha razão o entorpecimento do frio.”
Influenciado naturalmente por “jusqu'à”, o tradutor criou a lexia até
a quando em
português até
é uma preposição simples que se complementa diretamente com um sintagma
nominal.
TLT-1, c. 26, p. 114: “Aceita, resmungando, em
servir-me de cocheiro.”
O verbo aceitar
subcategorizando uma oração completiva infinitiva não se constrói
com a preposição em
em português.
Todos os exemplos da lista abaixo apresentam erro porque o tradutor conservou,
em português, a preposição “de” do francês cuja função é introduzir orações objetivas diretas
infinitivas. Em português a preposição de
não precede as orações infinitivas com função de
objeto direto.
São estas algumas das más traduções que se enquadram no caso:
C. 13: “Jurei de
ser feliz”.
C. 25: “Ameaço de
jogar-me da janela.”
C. 31: “Evitamos de
olhar-nos.”
C. 32: “[...] receio de
ver surgir [...]”
C. 33: “Fingir de
esperar.”
C. 51: “Suplico-lhe de
não partir.”
C. 59: “[...] ordena a Louis Clermont de
pôr o cavalo na estrebaria.”
A supressão da preposição de
tornaria a maior parte destes enunciados correta em
português. Os enunciados dos cap. 51 e 59 demandariam, porém, uma construção diferente:
“Suplico-lhe para ficar.
“[...] ordena a Louis Clermont que ponha o cavalo na estrebaria.”
Em português, a preposição para
funciona como complementador nas orações
completivas infinitivas ligadas a verbos como dizer,
pedir, suplicar, rogar.
Apresentamos a seguir uma amostra dos “erros” a que nos referimos ao começo da
presente seção, classificáveis como “francesismos” por constituírem um verdadeiro cacoete
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do tradutor. Este, com grande desenvoltura, a todo instante suprime as preposições que
introduzem especificações de modo. É possível encontrar dezenas de outros exemplos deste
mesmo tipo ao longo do TLT-1.
C. 2, p. 11: “Flórida[...] magra e eficaz, um sorriso beato estampado em seu rosto desagradável.”
C. 2, p. 10: “[...] vê-se desperta a figura de Jérôme Rolland, o rosto muito lívido.”
C. 3, p. 20: “[...] e vive sonhando, a boca cheia de pedrinhas [...]”
C. 8, p. 41: “O escrivão, a cabeça abaixada, escreve.”
C. 8, p. 44: “Uma mulher, de peito descoberto, apóia as costas numa prancha, as mãos amarradas
atrás.”
C. 21, p. 97: Minha mãe respira com dificuldade, o rosto oculto em seu lenço de renda.”
C. 26, p. 115: “Volta para onde estou, o rosto escorrendo água.”
C. 45, p. 169: Sonha, os olhos semicerrados.”
Os trechos dos capítulos 2 e 8 constituem uma adaptação com relação ao TLO, o
qual não apresenta, nestas passagens, o adjunto construído sem preposição.
Em português, seria muito mais aceitável e usual o emprego de preposições ou
mesmo de verbos na tradução de tais sintagmas, pois não se aplica a regra segundo a qual o
especificador de modo que tem como núcleo a referência a uma parte do corpo ou a algo que
esteja em contato com ele dispense obrigatoriamente a preposição. Daí propormos as
seguintes traduções:
C. 2: “...para que Flórida apareça à porta, magra e eficiente, com um sorriso tranqüilo em seu rosto
inexpressivo.”
C. 2: “Apoiado numa pilha de travesseiros, Jerome Rolland, lívido, com a fisionomia abatida, está
sem dormir.”
C. 3: “...E vive sonhando, com a boca cheia de pedrinhas ...”
C. 8: “O escrivão abaixa a cabeça e escreve.”
C. 8: “Uma mulher, de peito descoberto, apóia as costas numa tábua. Suas mãos são amarradas
atrás.”
C. 21: “minha mãe respira com dificuldade, ocultando o rosto em seu lenço de renda.”
C. 26: “Volta-se para onde estou, com o rosto escorrendo água.”
C. 45: “Sonha, de olhos semicerrados.”
Vimos, pois, nesta seção 3.1, como os erros
de tradução por falha na competência
lingüística
prendem-se a fatores diversos.
Os erros apresentados em 3.1.1 servem para exemplificar o que seja a categoria dos
“maus” tradutores, definidos por Paulo Rónai, em seu livro Escola de tradutores (1956, p. 41-
42) como se segue:
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Os da primeira categoria [os maus] são aqueles que julgam saber traduzir só por entenderem (Deus
sabe como) um romance escrito em francês ou inglês. Trabalham sem dicionários e sem escrúpulos,
ditando a tradução a uma datilógrafa sem sequer revê-la depois (a tradução, não a datilógrafa), e
entregam o trabalho em tempo recorde.
Dos exemplos examinados em 3.1.2, apenas a tradução de “bordées” apresentou
alguma dificuldade, o que poderia justificar, em parte, o erro. Os outros exemplos mostram
como a falta de um conhecimento mais aprofundado tanto da língua original quanto da
língua de tradução não chega a ser compensada por uma habilidade de compreensão “geral”
do texto ou mesmo por uma certa prática, levando o tradutor a cair nas armadilhas da
semelhança fônica tão comuns entre línguas de mesmo tronco histórico.
Vimos igualmente como os erros na tradução de formas idiomatizadas da língua
francesa (3.1.3) tanto podem advir da tradução isolada de formas significantes presas
(sufixos, prefixos e determinados radicais nos vocábulos) como de formas significantes livres
e dependentes nos vocábulos que compõem as lexias.
Acreditamos que, a este respeito, para que se possa fazer uma boa tradução, o mais
importante não é saber de cor todas as formas resultantes de idiomatização. Trata-se de,
diante de determinadas seqüências, ser capaz de identificar propriedades comuns às lexias:
nas seqüências de núcleo verbal, estar atento para as que se constroem com verbos de alta
freqüência, como “faire”, “avoir”, “prendre” e “jouer”, que entram na composição de um grande
número de lexias; neste mesmo tipo de seqüência, verificar se os pronomes “en” e “y” têm ou
não referência clara no contexto imediato, pois o fato de não a terem indica um emprego
idiomatizado; não esquecer de que as preposições entram na composição de um sem-
número de lexias preposicionais e adverbiais. E, naturalmente, distinguir as seqüências
incoerentes ao traduzir isoladamente cada um de seus componentes.
Por fim, em 3.1.4, procuramos abordar os principais erros atribuíveis a falhas no
conhecimento da gramática da língua de tradução, identificáveis a nível de estruturação
sintagmática (os erros de preposições ou de pronomes) ou a nível de estruturação do
enunciado — que também dependem, essencialmente, da competência lingüística do
tradutor.
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3.2- Erros de tradução por falhas na articulação das competências
lingüística e discursiva
Os erros que examinaremos a seguir prendem-se, como os da seção anterior, a
falhas na competência lingüística do tradutor. Consideramos, entretanto, que a maioria deles
poderia ter sido evitada se o tradutor de TLT-1 tivesse tido consciência de que deveria
produzir um texto
, e de que, para isso, deveria ter o cuidado de manter, no TLT, o mesmo
tipo de coerência
existente entre os componentes do TLO — não só ao nível de estruturação
semântica dos enunciados, como ao nível da própria estruturação discursiva.
O desconhecimento ou o esquecimento da polissemia
certamente explica a tradução
errônea de “entendre” por compreender
(em vez de ouvir) num exemplo que comentaremos numa
das próximas sub-seções. Mas a interpretação adequada da seqüência discursiva onde se
encontra tal verbo evitaria o erro, ou melhor, levaria à boa escolha de um dos sentidos
possíveis do verbo em questão.
O tradutor que não procura ajustar a tradução de cada sintagma à do enunciado
como um todo, a tradução de cada enunciado à da seqüência discursiva em que está inserido
e a da seqüência à situação discursiva construída pelo texto, certamente cometerá constantes
erros. Constata-se que, dentre os inúmeros sentidos possíveis para um vocábulo ou lexia, a
melhor interpretação é aquela que leva em conta sua inserção em unidades significativas
maiores.
Do mesmo modo comportam-se a maioria dos erros por desconhecimento da
gramática da LO: seriam evitados se o tradutor buscasse interpretar coerentemente o TLO e
tivesse a meta de produzir um texto coerente.
3.2.1 – As armadilhas da polissemia
Joaquim Mattoso Câmara Jr, no verbete polissemia de seu Dicionário de filologia e
gramática (1968), assim define tal conceito: “Propriedade da significação lingüística de abarcar toda uma
gama de significações, que se definem e precisam dentro de um contexto. E conclui o verbete com a
seguinte observação:
“As correspondências de formas, de uma língua para outra, nunca se mantêm em todo o campo
polissêmico que cada forma abrange na sua língua, o que complica a técnica da feitura do dicionário
bilíngüe e a tradução de língua a língua.” (Câmara Jr., 1968, p. 285).
Como exemplo, podemos citar: "grand" em francês se aplica ao ser ou objeto cuja
altura ultrapassa a média, em uma de suas possibilidades significativas. Uma outra
possibilidade é de significar a característica daquilo ou daquele que ultrapassa a média pelo
volume ou pelo conjunto de dimensões.
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Atento ao contexto, o tradutor distinguirá se poderá ou não traduzir “grand” por
grande
em português, já que grande especifica de preferência o conjunto de dimensões. Em
Kamouraska, descrevendo a si mesma no cap. 1, diz a personagem: “Et grande avec ça”. Levando-
se em conta a imagem que a personagem Elisabeth está construindo de si própria, pondo em
relevo seus dotes físicos apesar da idade e das onze maternidades, a tradução grande
em
português é inadequada, pois interpreta-se como uma especificação do conjunto de suas
dimensões físicas — o que, em nossa cultura, não se associa à imagem da beleza. A
interpretação mais adequada de “grande” do TLO é a de que se refere à altura, devendo
preferir-se o adjetivo alta
do português.
Na apresentação de nossa análise e de nossa proposta de tradução, faremos uso,
quando necessário, de representação esquemática do semantismo de certos verbos. Baseamo-
nos no “esquema analítico” utilizado por Pottier (1987, p.107), que vem a ser a representação
esquemática da “conceitualização” de acontecimentos e comportamentos expressos pelos
verbos.
Introduzimos, entretanto, modificações na proposta de representação de Pottier:
— Representamos com palavras escritas e em letras capitais os traços semânticos
irredutíveis, em vez de utilizarmos flechas e sinais. Exemplo: PASSAR A
— Utilizamos colchetes para separar conjuntos de traços que funcionam como um
todo.
— Utilizamos os símbolos x e y para representar as variáveis às quais se aplicam os
traços semânticos que funcionam como predicados. Exemplo: [x FAZER].
— Utilizamos a maiúscula E e a fórmula não-E para representar respectivamente
um estado
e a negação de um estado. Exemplo: [x E].
Assim, para representar “tornar-se” utilizamos o seguinte esquema analítico:
x FAZER [[ x não-E ] PASSAR A [ x E]].
O que está dentro dos colchetes está sob o escopo do que está à esquerda dos
mesmos. Assim, como tornar-se
implica uma ação e uma mudança de estado, a dependência
da mudança com relação à ação aparece ao colocarmos os traços da “mudança”: [[ x não-E]
PASSAR A [ x E ]] sob o escopo da “ação” ( x FAZER).
Examinaremos exemplos em que o tradutor não logrou selecionar, para o TLT, o
vocábulo ou a lexia que correspondessem ao sentido manifesto no TLO e fossem adequados
ao contexto na LT. À medida que comentarmos os erros vamos nos referir às suas diversas
implicações.
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3.2.1.1- Traduções errôneas que ferem o princípio da fidelidade
Desconhecendo a polissemia dos vocábulos, o tradutor muitas vezes efetua escolhas
que afastam o texto na LT da intenção significativa do escritor do TLO — o que representa
um desrespeito ao princípio de fidelidade no qual o tradutor deveria pautar seu trabalho.
Examinemos os exemplos abaixo:
TLO, c. 5, p. 29: “C'est jour de marché
.”
TLT-1, p. 25: “Hoje é dia de ir ao mercado.
Apesar de uma das significações possíveis deste substantivo ser a de mercado
, em
TLO designa nitidamente a feira
, que, como está dito no texto, tem um dia especial de
realização. Além disso, como tal enunciado faz parte da seqüência: “C'est jour de marché. II y a
déjà des charrettes qui passent dans Ia rue” confirma-se a nossa interpretação. A presença das
carroças, caso se tratasse de um mercado, nada teria a ver com um dia especifico de compras.
TLO, c. 24, p. 112: “Une sorte de décision forte, de hardiesse rapide logée dans une encolure fine.”
TLT-l, p. 107: “Uma espécie de decisão firme, de temeridade rápida cravada num pescoço fino.”
Em português, temeridade
é assimilada não apenas a ousadia, mas também a
imprudência, a ação impensada
. Tais qualificações não fazem parte da significação de
hardiesse” no contexto em que se encontra no TLO: “hardiesse” é a qualidade daquele que
enfrenta dificuldades e obstáculos com coragem, e é atribuída a George Nelson como uma
das facetas positivas de seu caráter — o que “temeridade” não traduz, por seu significado
predominantemente depreciativo. Tradução que propomos: “Uma espécie de decisão forte, de
arrojo rápido no pescoço fino.” Como “logée” pode ser interpretado como um verbo que estabelece
uma simples relação de localização, optamos por suprimi-lo porque a preposição já tem este
papel relacional.
TLO, c. 45, p. 173: “Un pan de monde connu cède et s'écroule. (Vous ne vous connaissiez pas
cette lâcheté, docteur Nelson?) Vous voici directement concerné, lié au sort de cette terre. A l'effondrement de
cette terre.”
TLT-1, p. 170: “[...] (Você não conhecia essa covardia, Dr. Nelson?) [...] “
Embora a designação “lâcheté” possa ser traduzida por covardia
em português, nesta
passagem do TLO “lâcheté” não corresponde a falta
de coragem, a medo, significados que a
noção de covardia
implica. No texto, há uma comparação implícita entre o terreno
percorrido pelo Dr. Nelson, que cede à força das águas, e o caráter do médico, que cede à
idéia do crime (veja-se a seqüência que vem logo depois: “vous céderez aux adjurations
d'Elisabeth).
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Nesse trecho, entendemos que a melhor tradução de “lâcheté” é fraqueza, que
corresponde a uma das acepções do vocábulo “lâcheté” em francês, em associação
significativa com a fragilidade do terreno que desmorona.
TLO, c. 2, p. 12: “Mme Rolland [...] jette un regard vert
entre les lattes [...].”
TLT-1, p. 8: “A Sra. Rolland [...] lança um olhar inquiridor por entre as frestas [...]”
A confrontar com:
TLO, c. 8, p. 47: “Soutenez donc son regard vert
, couleur d'herbe et de raisin, si vous le pouvez?”
TLT-l, p. 43: “Sustentem, pois, seu olhar firme, cor-de-herva e de uva, se podem.”
O adjetivo “vert” pode aplicar-se a designações de pessoas, significando então
vigoroso
. Aplicado a asseverações, opiniões, qualificando atos de linguagem, corresponde a
áspero
, rude. (Cf. Dubois, 1977). Influenciado talvez por estas possibilidades significativas, o
tradutor de TLT-1 não interpretou “vert” como sendo a especificação da cor dos olhos de
Elisabeth. Essa interpretação, entretanto, não nos parece adequada, pois “regard” não
apresenta as condições significativas que a possibilitem.
Principalmente no trecho do cap. 8, “vert” é seguido de outras referências indiretas à
cor verde. E como em nenhum momento do romance é sugerida outra cor de olhos para
Elisabeth, deduzimos que “vert” é efetivamente uma especificação da cor. Nossas propostas:
“A Sra. Rolland [...] lança um olhar verde por entre as frestas.” (cap. 2). “Sustentem pois, se puderem, seu olhar
verde cor de relva e de uva.” (cap. 8)
TLO, c. 6, p. 31: “Cette odeur aigre de vierge mal lavée [...]”
Na definição do dicionário de Robert (1970), “aigre” é a qualidade do “que produz
urna sensação picante, desagradável, ao gosto e ao odor”. O adjetivo desagradável
,
entretanto, não especifica o cheiro do mesmo modo que “aigre”, que corresponde ao português
azedo
, acre. O tradutor do TLT-1 desconsiderou tal correspondência.
TLO, c. 11, p. 61: “Sa jupe mince
lui colle aux jambes.”
TLT-1, p. 57: “Sua saia delicada lhe cola às pernas.”
O adjetivo “mince” talvez possa ser traduzido por delicado
em alguns contextos,
como ao se falar de “taille mince”, “étoffe mince”, especificando um corpo ou objeto que tem pouca
espessura. Na passagem acima, onde “mince” especifica “jupe”, e da qual está dito que “lui colle
aux jambes, tal adjetivo corresponde à definição: “que tem formas relativamente estreitas em
relação ao comprimento” (C.f. Robert, 1970). Nossa proposta: “A saia estreita cola em suas pernas.”
(c. 11). Ou então: “A saia de pouca roda colando em suas pernas”.
TLO, c. 41, p. 163: “J'habite ailleurs. Un lieu précis. Un temps révolu.”
TLT-1, p.159: “[...] Num lugar preciso. Um tempo completo.”
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O adjetivo “révolu” pode corresponder a completo quando especifica o transcurso de
um astro. Apesar de “révolu” corresponder à noção aspectual de concluído
, transcorrido, no
trecho em questão a personagem se refere ao seu distanciamento da realidade à sua volta
(“ailleurs” significa em
outro lugar), para reviver uma outra realidade. Traduzir “Un temps révolu”
por “Um tempo passado” nos parece mais conveniente porque passado
inclui o traço aspectual
conclusivo de “révolu” além do traço temporal de anterioridade ao momento da narração,
também interpretável neste adjetivo.
TLO, c. 3, p. 20: “Votre père, M. Rolland, ne vous aime jamais autant que lorsque vous dormez tout
là-haut, au troisième étage, sous les toits.”
TLT-1, p. 16: “[...] depois que dormem lá em cima, no terceiro andar, sob
o telhado.”
A localização “sous les toits” equivale semanticamente à especificação de que o terceiro
andar é o último da casa. Dentro do discurso de Elisabeth, serve para reiterar a distância que
separa o quarto das crianças do quarto dos pais.
Traduzir “sous les toits” como em TLT-1 produz uma significação diversa do TLO,
suscitando a interpretação de que acima das crianças que dormem há apenas o telhado
,
excluindo outros elementos, como a laje, o forro ou o teto do quarto.
Propomos a supressão desta localização ao traduzir este trecho para o português
porque, ao dizer-se “lá em cima” já se está situando o quarto das crianças como distante das
outras partes da casa, reconstituindo-se convenientemente o cenário a que alude Elisabeth:
Cap. 3: “Seu pai, o Sr. Rolland, tem muito amor por vocês, principalmente quando todos estão
dormindo lá em cima, no terceiro andar.”
TLO, c. 6, p. 35: “C'est trop injuste à la fin.”
Tradução em TLT-1, p. 32: “Está sendo muito injusto no
fim.”
A seqüência “à la fin” tanto pode ser um sintagma preposicional quanto uma lexia.
Neste exemplo, a interpretação de “à la fin” como se fosse um sintagma redundou em erro:
subentende-se que o sujeito de “Está sendo muito injusto” é co-referente a “Jérôme”, o que não
ocorre no TLO. O enunciado “C'est trop injuste”, tendo “ce” como pronome sujeito, é claramente
um comentário sobre a situação anteriormente descrita. E a situação — o fato de que Jerome
prefere ser tratado pela criada e não por Elisabeth, sua mulher — é descrita anteriormente
como um processo em curso, e não “no fim”.
“À la fin”, interpretada como uma lexia, corresponde a afinal
, definitivamente, e
especifica o próprio ato de linguagem como o que se pode dizer por último a respeito de um
determinado assunto. Tradução que propomos: “É muito injusto, afinal.”
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TLO, c. 1, p. 10: “Et grande avec ça.” Tradução de TLT-1: “E grande com isso” (p. 6). Esta
tradução mostra que o tradutor interpretou a lexia “avec ça” como se fosse um sintagma,
redundando em erro. Traduções possíveis: “E alta, além do mais.” “E alta, ainda por cima.”
Arrolamos este exemplo entre os de polissemia porque efetivamente “avec ça” corresponde a
“com issoem outros contextos.
TLO, c. 5, p. 26: “La convaincre du péché, la prendre en flagrant délit d'absence.
TLT-1, p. 22: “Convencê-la do pecado, [...] “
TLO, c. 6, p. 30: “Qui me convaincra de péché?”
TLT-1, p. 34: “Quem me convencerá de ter eu pecado?”
O verbo “convaincre”, em contextos como os destes dois exemplos, distingue-se do
significado em que é mais ou menos sinônimo de “persuader”. O semantismo do objeto
indireto, “péché”, permite a interpretação de “convaincre” como correspondente a acusar
,
indiciar
(“péché” inclui-se na classe nocional de “atos reprováveis”, mencionada no dicionário
francês Robert, 1970. O tradutor de TLT-1 parece desconhecer tal particularidade polissêmica
de “convaincre”). Traduções que propomos: “Dar-lhe provas de seu pecado; pilhá-la em flagrante delito de
ausência.(cap. 5). “Quem me acusará de ter pecado?” (cap. 6).
TLO, c. 5, p. 27: “Moi non plus je n'ai pas dormi la nuit. Je suis
folle et lucide.”
TLT-1, p. 23: [...] Sou
louca e lúcida.
TLO, c. 49, p. 184: “Les traces de traîneaux luisent sur Ia neige. Les ombres sont
très bleues.”
TLT-1, p. 181: “[...] As sombras são
muito azuis.
Os dois exemplos acima ilustram a tradução errônea do verbo “être”, levando-se em
conta o contexto. No primeiro trecho, Elisabeth refere-se ao estado em que se encontra no
momento da narração, e não a uma propriedade permanente de sua pessoa. Tal sentido
equivale ao do verbo estar
do português: “Estou louca e lúcida.” (Cap. 5).
No segundo trecho, trata-se também de um período de tempo delimitado. E como a
personagem se refere ao efeito das sombras sobre a neve, pode-se mesmo interpretar que a
cor azul das sombras é o resultado de uma mudança, podendo o verbo “être” ser traduzido
por ficar
: “As marcas dos trenós brilham na neve endurecida. As sombras ficam muito azuis.” (Cap. 49)
TLO, c. 6, p. 31: “Il n'aurait
pas fallu lui abandonner mon mari malade.
TLT-1, p. 27: “Não
havia necessidade de abandonar meu marido doente a seus cuidados.”
O verbo “falloir”, subcategorizando uma oração, tem uma significação modal, e,
segundo o contexto, corresponde ou a precisar
, ter necessidade de, ou a dever, ter de
(equivalente a ter
a obrigação de). A diferença entre necessidade e obrigação pode ser assim
definida: a necessidade
é um estado de incompletude, de carência, intrínseco a um
determinado ser; a obrigação
é um estado de incompletude em que se encontra um
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determinado ser com relação a um projeto de ação imposto por regras morais ou sociais, o
qual, se não concluído, implica em punição para este ser. Assim, o enunciado “tenho de
beber água” é mais facilmente interpretável como a necessidade
que eu tenho de beber água,
pelo fato de que a sede é um fenômeno físico, intrínseco, comparativamente a “tenho de
pagar a conta de luz”, onde “pagar a conta de luz” é um projeto de ação que, uma vez
concluído, livra o pagador da punição de ter sua luz cortada pela companhia fornecedora,
sendo pois a expressão de uma obrigação
.
No exemplo do TLO, convém atentarmos para o seguinte fato gramatical: a negação
que aparentemente se aplica a “falloir”, tem por escopo o verbo da oração seguinte (o verbo
que é semanticamente modalizado por “falloir”). Neste caso, o que se nega não é a necessidade
ou a obrigação, mas o processo que está modalizado. Verifica-se então o primeiro erro de
TLT-1 quanto a este trecho: a negação aplicada à lexia “haver necessidade de” tem como escopo a
própria modalidade e não o processo modalizado — o que não ocorre no TLO.
Interpretando-se com mais cuidado o TLO, além disso, verifica-se que “não abandonar meu
marido doente a seus cuidados” expressa uma obrigação de Elisabeth — seu dever
de esposa.
Traduzindo o verbo “falloir” por dever
, o escopo da negação é o mesmo que o do
francês: “Não devia ter abandonado meu marido doente a seus cuidados” é uma afirmação da obrigação
de não
abandonar – tal como em TLO. Como proposta final de tradução deste trecho,
apresentamos: “Não devia ter deixado meu marido doente a seus cuidados. (c. 6) Isto é possível
porque deixar
e abandonar possuem traços semânticos em comum. O esquema analítico de
ambos pode ser representado pela seguinte seqüência (onde x e y representam os
argumentos de uma predicação, e onde os vocábulos em maiúsculas representam os traços
semânticos indecomponíveis que integram a significação destes verbos):
x FAZER [[x ESTAR COM y] PASSAR A [x não-ESTAR COM y]]
TLO, c. 11, p. 61: “Elle va vieillir sous mes yeux, s'alourdir. Se
charger de toute sa vie.”
TLT-1, p. 57: “[...] Cuidar de toda a sua vida.”
Efetivamente um dos sentidos possíveis de “se charger” corresponde a cuidar
,
encarregar-se
de, em português. Neste trecho, entretanto, a personagem Elisabeth se refere à
aparição de Aurélie em sua lembrança, transformando-se diante de seus olhos (“Elle va vieillir
sous mes yeux”), tornando-se cada vez mais nítida (“s'alourdir”), o que faz com que o enunciado
“Se charger de toute sa vie” seja interpretado como uma transformação a mais de Aurélie. Assim,
o verbo “charger” construído com um objeto direto reflexivo e um indireto introduzido por
de”, é definido no dicionário ora como “mettre sous le poids de” (colocar sob o peso de) ora como
“faire porter à” (colocar carga em, carregar – cf. Robert, 1970).
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Como a tradução calcada nas definições do dicionário resulta numa construção que
fere o uso da língua em português – “Fica carregada de toda a sua vida” – procuramos melhor
adequá-la.
Identificamos em “se charger de, entre outros, os seguintes traços semânticos:
x FAZER [x TER y]
Propomos então a tradução por um outro verbo que também inclui tais traços em
sua significação: “Vai envelhecer diante de meus olhos, ganhar peso. Retomar toda a sua vida.” (TLT-2)
Examinemos os trechos seguintes e suas respectivas traduções:
TLO, c. 13, p. 70: “Dieu, je
me damne”: Je suis mariée à un homme que je n'aime pas.”
TLT-1, p. 66: “Deus, que
tormento! [...]”
TLO, c. 59, p. 218: “Prier, avec un coeur qui se
damne, pour que Ia nuit dure.” .
TLT-1, p. 215: “Rezar com um coração que está
sofrendo, para que a noite dure.”
TLO, c. 64, p. 244: “Seigneur, je me damne
!
TLT-l, p. 241: “Senhor, isso
é um tormento.”
O tradutor de TLT-1 confundiu “se damner” com “faire damner”, traduzindo erradamente
os trechos acima e vários outros em que ocorre tal verbo. No dicionário encontramos como
definição de “se damner”: “faire en sorte d'être damné”; e como definição de “damner”: “condamner aux
peines de l'enfer”. (Robert, 1970) .
O verbo danar-se
em português do Brasil pode significar perverter-se, corromper-se,
sentidos próximos ao de “se damner” em francês. No entanto, danar-se
popularizou-se com o
sentido de enfurecer-se
, encolerizar-se, desesperar-se. A tradução mais conveniente dos
trechos acima não deve ser feita por danar-se
, que suscitaria interpretações errôneas.
Procurando em português traduções que impliquem a “condenação às penas eternas”,
propomos:
C. 13: Deus, estou
pecando! Casei com um homem que eu não amo.
C. 49: Rezar, com um coração que se
perdeu para Deus, pedindo que a noite dure.
No cap. 64 o contexto não permite uma explicitação maior do significado de “je me
damne” em português:
TLT-2, p. CXIV, c. 64: “Senhor meu Deus, estou perdida!”
Apresentamos a seguir mais um caso de erro que resulta na produção de um
sentido totalmente diverso do TLO:
TLO, c. 36, p. 149: “Tu parles, sans me voir ni m'entendre.”
TLO, c. 49, p. 184: “[...] pour que je voie tout, que j'entende tout.”
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Em TLT-1, “entendre” foi traduzido por entender no cap. 36 p. 144 e por compreender
no c. 49, p. 181. Não arrolamos tais erros entre os atribuíveis à semelhança fônica porque em
determinados contextos “entendre” corresponde efetivamente a entender
.
Nos dois exemplos acima, o verbo “entendre” ocorre em orações coordenadas a outras
de mesma estruturação sintática, e construídas com o verbo “voir”. O par “voir” – “entendre” leva à
interpretação deste último como correspondente a ouvir
em português.
Cap. 36: “Você fala, sem me ver nem me ouvir.”
Cap. 49: “[...] para que eu veja tudo, ouça tudo.”
O curioso é que no mesmo c. 36, p. 144, ao traduzir o trecho “Je lis sur tes lèvres, plutôt
que je ne l'entends” o tradutor interpretou convenientemente o verbo “entendre”: “Leio mais em
seus lábios do que ouço” (TLT-1).
3.2.1.2- Traduções errôneas que desobedecem ao princípio da coerência
Os erros que comentaremos a seguir também se prendem à incapacidade do
tradutor em distinguir a significação de vocábulos em função do contexto onde se
encontram, implicando não apenas desobediência ao princípio de fidelidade, mas também à
coerência discursiva.
No decorrer do presente estudo, consideramos que a coerência
é uma propriedade
do texto cujos enunciados podem ser interpretados como integrantes de um mesmo conjunto
temático, e também do texto cujos enunciados constituem atos de linguagem que mantêm
entre si relações ao nível situacional que os integre numa unidade discursiva.
Examinemos os exemplos seguintes:
TLO, c. 4, p. 23: “Inutile de se leurrer, un jour il y aura coïncidence entre Ia réalité et son double
imaginaire.”
TLT-1, p. 19: “Inútil iludir-se, um dia haverá coincidência entre a realidade e seu outro “eu”
imaginário.”
É flagrante a inadequação desta tradução, pois “seu outro eu” só pode ser atribuído a
seres humanos. A incoerência se verifica, aqui, no âmbito de um enunciado.
Neste trecho da narrativa, “son double imaginaire” é uma referência ao sonho
ao qual a
personagem aludiu pouco antes. Tradução que propomos: “Inútil enganar-se. Um dia haverá
coincidência entre a realidade e o sonho.” (c. 4)
TLO, c. 10, p. 58: “L'odeur fade
et puissante des maisons fermées [...]”
TLT-1, p. 54: “O odor aborrecido e forte das casas fechadas [...]”
0 adjetivo “fade” pode traduzir-se por aborrecido
quando em sentido figurado.
Aplicado a substantivos que designam cheiros e gostos, “fade” é uma caracterização específica
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destas impressões sensoriais, não correspondendo pois à tradução proposta em TLT-1, que
constitui uma inobservância à continuidade semântica do próprio enunciado, atentando
contra a coerência do texto.
A tradução que propomos baseia-se na interpretação do enunciado como um todo,
levando-se em conta a situação a que se refere. O que se pode dizer do cheiro
de casas
fechadas que não esteja em contradição com forte
? Um prato sem sabor (“fade”, em francês)
pode ser qualificado de enjoativo. E o cheiro de mofo das casas fechadas também. Nossa
proposta:
TLT-2, p. XXXIII: “O cheiro enjoativo e forte das casas fechadas me invade por completo, [...]”
TLO, c. 25, p. 117: “La parfaite soumission des enfants sages.”
TLT-1, p. 112: “A perfeita submissão das crianças sensatas.”
0 adjetivo “sensatas é inadequado porque representa uma especificação não aplicável
a crianças
. Seu uso em TLT-1 constitui uma infração à coerência ao nível do enunciado, tal
como os dois anteriores. A tradução para tal adjetivo, levando-se em conta o uso da LT é:
“crianças bem
comportadas.”
TLO, c. 18, p. 90: “[...] le mal [...] Prend
le visage congestionné, les mains tremblantes de l'homme
qui est mon mari.
TLT-1, p. 86: “ [...] o mal [...] Segura
o rosto congestionado e as mãos trêmulas do homem que é
meu marido.
O verbo “prendre, tendo como sujeito um substantivo abstrato, corresponde a tomar
em português. O verbo segurar
, do TLT-1, produz um enunciado incoerente, pois só em
sentido figurado (quando é interpretado como equivalente a manter
) é que admite um
sujeito da classe dos abstratos. É o que ocorre no enunciado “O resfriado me segurou em casa”, por
exemplo, onde “segurar” é perfeitamente interpretável.
O tradutor não levou em conta, pois, nem a polissemia de “prendre” nem o sentido
global do enunciado que produziu.
TLO, c. 19, p. 94: “Devenir veuve à nouveau.”
TLT-l, p. 89: “Tornar-se
novamente viúva.”
O verbo “tornar-se”, em português tem um semantismo diferente do verbo “devenir” do
francês. Em português, tornar-se
seguido de um substantivo pode ser representado
esquematicamente por:
x FAZER [[x não-E] PASSAR A [x E] — onde E representa uma nova identidade
para x e PASSAR uma transformação gradual. Em conseqüência, ao construir o enunciado
“tornar-se novamente viúva” o tradutor de TLT-1 reuniu um verbo que se interpreta como um
processo voluntário e gradual
aplicado a um estado que se interpreta como involuntário e
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69
como resultante de uma mudança brusca – produzindo assim um enunciado incoerente.
Tradução que propomos: “Enviuvar novamente”.
TLO, c. 25, p. 115: “Le docteur n'est plus revenu depuis que j'ai
mis mes bras autour de son cou.
Mes larmes dans son cou.”
TLT-l, p. 110: “Ele não voltou depois que coloquei os braços em volta de seu pescoço. Minhas
lágrimas em seu pescoço.”
A tradução do verbo “mettre” por colocar
não leva em conta a unidade semântica do
enunciado, causando estranheza ao leitor. Isto porque o verbo colocar
, que pode ser definido
esquematicamente por: — x FAZER [[y EM não L] PASSAR A [y EM L] — implica uma
permanência na localização final.
O enunciado do TLT-1 acima se presta à interpretação bizarra de que os braços de
Elisabeth continuam em volta do pescoço do médico, como se fossem objetos separados dela.
Propomos a seguinte tradução, mais adequada à interpretação do TLO: “O doutor não voltou
desde que passei meus braços ao redor de seu pescoço.” (cap. 25)
TLO, c. 45, p. 173: “Une seule chose est nécessaire maintenant: se débarrasser le plus rapidement
possible de la mort de Catherine des Anges et de toute mort consommée ou à venir.
TLT-1, p. 17: “ [...] e de toda morte consumida
ou por vir.”
A incoerência produzida pelo desconhecimento da polissemia do verbo “consornrner”
é flagrante: é difícil imaginar um contexto plausível onde se possa descrever a morte como
“consumida”. O verbo “consommer”, aplicado a “mort”, significa cometer
, perpetrar, em
português, traduzível por consumar
.
Proposta de tradução: “Apenas uma coisa é necessária agora: livrar-se o mais rapidamente
possível da morte de Catherine des Anges e de qualquer outra morte já consumada ou por vir.” (Cap. 45)
TLO, c. 36, p. 150: “ [...] voici que, peu à peu, à mesure que tu parles, une clochette tinte, de plus
en plus fort, ricoche dans mon oreille. Devient comme une lame
.”
TLT-1, p. 145: “ [...] Transforma-se numa chapa metálica.”
Neste trecho, Elisabeth se imagina presenciando a rotina diária dos internos do
colégio freqüentado por George Nelson e Antoine Tassy. No cenário do dormitório é difícil
conceber que a sineta (“clochette”) que desperta os internos possa ser assimilada a uma chapa
metálica
. A significação de “lame”, neste trecho do TLO, serve de termo de comparação ao
efeito sonoro da sineta, já mencionado anteriormente em “ricoche dans mon oreille”.
Como o substantivo lâmina
para os leitores brasileiros atuais pode ser mal
interpretado como a designação de um objeto achatado (como a lâmina de barbear),
preferimos traduzir “lame” por punhal
, pela forma ponteaguda de sua lâmina, suscetível de
ser comparada sinestesicamente ao timbre agudo da sineta. Assim: TLT-2, c. 36, p. LXXX:
118
119
70
[...] eis que, pouco a pouco, à medida que falas, soa uma campainha, cada vez mais forte,
repercutindo em meu ouvido. Aguda como um punhal.
13
TLO, c. 45, p. 171: “Aurélie se dresse, telle une apparition, sur ton chemin de boue. Sa figure trop
blanche. Son fichu de laine noire, tordu sur ses épaules étroites.”
TLT-1, p. 168: “[...] Sua figura muito branca. [...]”
Influenciado talvez pela semelhança fônica entre figura
e “figure”, o tradutor não
levou em conta o contexto. Em diferentes momentos do romance, Aurélie é descrita como
sendo pálida
:
“Son visage, son cou, ses bras nus sont d'une blancheur
livide de champignons frais.
— Comme tu es pâle
, Aurélie.” (TLO, c. 11, p. 61)
E por isto, no trecho do c. 45 acima, interpreta-se “figure” como correspondente a
rosto
, semblante, significação que o substantivo figura não tem em português. No TLT-1,
interpreta-se figura
como uma referência à aparência geral de Aurélie, e que, caracterizada
como “muito branca”, entra em contradição com a cor preta do lenço que lhe envolve os
ombros. Tradução proposta em TLT-2, p. XCI: “Com o rosto pálido demais.”
TLO, c. 13, p. 72: “Les jeunes hommes ont des gants blancs et des mines confites
.”
TLT-1, p. 68: “Os rapazes têm luvas brancas e rostos curtidos.”
O tradutor não atentou para o contexto e errou ao traduzir o adjetivo “confites”.
Confit” pode ser traduzido desta forma quando qualifica alimentos em conserva. Aplicados a
pessoas, significa amaneirado
, afetado. Assim, configura-se, aqui também, uma
desconsideração à polissemia.
Por outro lado, segundo o conhecimento de mundo que temos e que atualizamos ao
ler um texto, atribuir um rosto curtido
a alguém implica atribuir-lhe experiência de
sofrimento, de dor, de envelhecimento — o que está em desacordo com a descrição anterior
dos rapazes do baile do Governador, comparados no cap. 11 a “leitõezinhos endomingados”.
Constitui, por isto, mais um exemplo de incoerência textual.
TLO, c. 38, p. 156: “En chair et en os j'entre de plain-pied dans le cauchemar de George Nelson”.
TLT-1, p. 151: “Entro, de carne e osso, no mesmo nível do pesadelo de George Nelson.”
O sintagma “no mesmo nível do pesadelo de George Nelson” pressupõe a localização do
pesadelo num determinado nível e a existência de outros níveis — o que não é identificável
no texto. Atentando-se para o contexto de TLO e para a polissemia da lexia em questão,
verifica-se que “de plain pied” corresponde a sem
dificuldade, com facilidade, sendo a proposta
13 Anteriormente havíamos apresentado a tradução “Parece um punhal”, que descartamos agora para privilegiar a
comparação mais explícita com o som.
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71
de TLT-1 um erro. Nossa proposta: “Em carne e osso, entro com desenvoltura no pesadelo de George
Nelson.” (c. 38).
TLO, c. 36, p. 148: “Nous nous rencontrons parfois près de Ia petite église. Marchons à pas
comptés. Jouons à Monsieur-Madame-en-promenade.”
TLT-1, c. 36, p. 143: “[...] Representamos o senhor e a senhora dando um passeio.”
O enunciado de TLT-1 é incoerente dentro da seqüência narrativa, pois representar
pode ser interpretado como “estar em lugar de” ou “substituir” – o que pode levar o leitor a
procurar quais os referentes de “senhor” e “senhora” diferentes do casal que os representa. Como
“jouer” construído com a preposição “à” pode significar “imitar de brincadeira” (Robert, 1970) e
mesmo “tomar ares de”, “tomar a aparência de”, preferimos traduzir “jouons” por brincamos
.
Além disso, o uso dos hífens em “Monsieur-Madame-en-promenade” é um recurso gráfico para
transformar componentes de um sintagma numa designação única – no caso, a de uma
brincadeira. Nossa proposta: “Às vezes nos encontramos perto da igrejinha. Andamos pausadamente.
Brincamos de marido-e- mulher-passeando.
Apresentaremos a seguir uma série de exemplos em que o verbo “retrouver” foi
erroneamente traduzido por “tornar a encontrar”, “encontrar novamente”, “encontrar outra vez”. O
tradutor deixou-se influenciar pela estrutura morfológica do verbo, interpretando
separadamente o prefixo e o radical sem levar em conta o sentido do enunciado. Entretanto,
como “retrouver” pode corresponder a “encontrar novamente” em outros contextos, podemos
considerar também que houve uma desconsideração à polissemia do verbo em questão.
O dicionário Robert (1970) apresenta para “retrouver”, além da definição “encontrar
novamente”, as de “achar (o que se perdeu), “ter novamente (uma qualidade, um estado perdido)” (p. 1152).
Os exemplos são os seguintes:
TLO, c. 6, p. 30: “Prends.-moi une fois, une fois encore que je retrouve
mon salut.”
TLT-1, c. 6, p. 27: “[...] mais uma vez que tornarei
a encontrar minha salvação.”
TLO, c. 11, p. 61: “Ma vie pour retrouver
intact le temps où nous étions innocentes, l'une et l'autre.”
TLT-1, c. 11, p. 57: “Minha vida para que torne
a encontrar intato o tempo em que éramos
inocentes, tanto uma quanto a outra.
TLO, c. 21, p. 99: “Notre petite Elisabeth a
retrouvé sa chambre d'enfant.”
TLT-1, c. 21, p. 95: “Nossa pequena Elisabeth tornou
a encontrar sua cama de criança.”
TLO, c. 26, p. 123: “Me libérer. Retrouver
l'enfance libre et forte en moi.”
TLT-1, c. 26, p. 118: “Tenho de libertar-me, encontrar
outra vez a infância livre e forte que havia em
mim.
TLO, c. 25, p. 115: “Le temps retrouvé
s'ouvre les veines.”
TLT-1, c. 25, p. 110: “O tempo novamente
encontrado abre passagem nas veias.”
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Verificamos, em todos os exemplos, que as traduções errôneas redundaram em
incoerência, pois pressupõem um encontro anterior que não ocorreu — perturbando a
interpretação do texto.
Traduções que propomos, com base na definição fornecida por Robert (1970) :
c. 6: “Me abraça outra vez para que eu possa alcançar
a salvação.”
c. 11: “Minha vida, para encontrar
intacto o tempo em que éramos inocentes, eu e ela.”
c. 21: “Nossa menina Elisabeth voltou
ao seu quarto de criança.”
A tradução de “retrouver” por alcançar
é possível porque alcançar algo pressupõe a
passagem de um estado de não-proximidade, de não-posse, para um estado de proximidade,
de posse — tal como achar
, tradução literal de “retrouver”.
A tradução por voltar
a no exemplo do cap. 21 é possível porque quarto é a
designação de um local, e “retrouver sa charnbre” pressupõe, no texto, um movimento de
Elisabeth em direção ao quarto onde já esteve antes — o que é expresso por voltar
. Para a
narrativa, o que é importante justamente é marcar a volta simbólica à infância: dormir ali
implica, para as tias, a separação entre Elisabeth e Antoine, a volta à castidade da infância.
Verificamos que a tradução do trecho do cap. 21 por “Nossa menina Elisabeth reencontrou
seu quarto de criança” também seria aceitável. Isto porque, contrariamente ao que está dito no
dicionário (Ferreira, 1975), reencontrar
pode significar não apenas “encontrar novamente”:
significa também encontrar
o que se perdeu. No enunciado acima, reencontrar não
pressupõe um encontro anterior, mas tão-somente uma localização anterior.
Por fim, o trecho do cap. 25 interpreta-se como uma alusão da escritora ao romance
de Proust, Le temps retrouvé. A tradução que propomos evoca o título com o qual o romance é
conhecido do público de língua portuguesa: TLT-2, p. LVI “O tempo redescoberto abre suas veias.”
3.2.1.3- Traduções inadequadas ao uso da língua de tradução
Os exemplos que examinaremos a seguir não constituem propriamente erros de
tradução, posto que o vocábulo utilizado em TLT-1 corresponde, em uma de suas acepções, à
significação interpretável em TLO. O tradutor não observou, no entanto, que o uso da língua
de tradução consagrou um dos sentidos em detrimento de outros, e, muitas vezes, o
vocábulo escolhido se associa a um esquema cognitivo que interfere na continuidade temática,
como teremos oportunidade de verificar.
Examinemos algumas das várias ocorrências de “voyou” no TLO, com a respectiva
tradução de TLT-1:
TLO, c. 1, p. 7: “Comme ces deux voyous
m'examinaient ce matin, en revenant du marché.”
TLT-1,p. 4: “Como aqueles dois malandros
que [...]”
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TLO, c. 6, p. 31: “Voyou! Sale voyou!”
TLT-1, p.. 27: “Malandro
! Malandro sujo!”
TLO, c. 12, p. 67: “Mais c'est un voyou
, j'en suis sûre. De bonne famille, mais c'est un voyou quand
même.”
TLT-1, p. 63: [. ..] malandro
[. ..]
TLO, c. 13, p. 69: “Voyou
. Beau seigneur. Sale voyou.
TLT-1, p. 65: “Malandro
. [...] Malandro sujo.”
Em francês, “voyou” designa ou o moleque de rua, o vadio, como no exemplo do cap.
1, ou o indivíduo que se pode qualificar de “mau elemento (cf. Robert, 1970, que define “voyou”
como “mauvais sujet” ), nos demais exemplos .
A tradução malandro
não parece adequada nem para o primeiro nem para os três
últimos exemplos acima. Embora tal substantivo seja dicionarizado como equivalente a
vadio
, a desocupado, e também como designação do indivíduo gatuno, sem escrúpulos, nos
grandes centros urbanos brasileiros designa aquele que é “esperto, astuto, matreiro”
(Ferreira, 1975). O substantivo malandro
atualiza, então, significações que não estão
presentes no TLO, o que nos leva a não aceitá-lo como a melhor tradução para “voyou”.
Para o trecho do cap. 1, propomos:
TLT-2, p. III: “Como aqueles dois vadios
me encaravam hoje de manhã, quando voltava das
compras.”
Os demais trechos são manifestações da indignação de Elisabeth diante do
comportamento de Antoine Tassy:
C. 6: “Bandido
! Bandido sujo!”
C. 13: “Bandido
. Belo senhor. Bandido sujo.”
Nestes dois trechos, Elisabeth manifesta sua indignação por se sentir traída por
Antoine. Refere-se,principalmente a seu mau caráter com a designação “voyou” – sentido que
bandido
também pode ter em português. No trecho seguinte, “voyou” é mais uma referência
ao despudor de Antoine, daí nossa proposta:
C. 12: “Mas é um descarado
, tenho certeza. De boa família, mas não deixa de ser um descarado.”
Passemos a outros exemplos:
TLO, c. 1, p. 9: “[...] sans voile ni couronne
d'oranger.”
TLT-1, p. 5: “Sem véu e sem coroa
de flores de laranjeira.”
TLO, c. 64, p. 243: “Quelqu'un, que je ne vois pas, ajuste mon voile de tulle qui pend jusqu'à terre.
Me cloue à même le front une couronne
de fleurs d'oranger, à l'odeur musquée.”
TLT-1, p. 240: “ [...] uma coroa
de flores de laranjeira.”
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A tradução de “couronne (de fleurs)” por coroa de flores é inadequada porque, para o
leitor brasileiro, a significação desta lexia está associada ao esquema da cerimônia fúnebre. Em
ambos os trechos, trata-se da referência a uma cerimônia de casamento e um dos
componentes do esquema que se associa a tal cerimônia é a grinalda
de botões de laranjeira.
Por isso, propomos em TLT-2:
C. 1: “Sem véu nem botões
de laranjeira.” (representando metonimicamente grinalda) .
C. 64: “Alguém, que não vejo, ajeita meu véu de tule que vai até o chão. Prega em minha testa uma
grinalda
de botões de laranjeira, de odor almiscarado.”
Veja-se ainda :
TLO, c. 45, p. 174: “Me traînera par les cheveux, me roulera avec lui dans les fondrières
énormes,
pour me noyer.”
TLT-1, p. 171: “ [...] e rolar com ele nas caldeiras
enormes, para me afogar.”
Segundo o dicionário Robert (1970), “fondrière” se define como “un trou plein d'eau ou de
boue dans un chemin défoncé”. Se procurarmos o sentido de caldeira
em Ferreira (1975), encon-
traremos como uma das definições a seguinte: depressão de terreno no fundo de lagoa, cisterna,
tanque.” Apesar da semelhança significativa entre os dois substantivos, a tradução caldeira
nos parece inadequada porque tal substantivo é mais familiar ao leitor brasileiro como a
designação de recipiente para aquecer
água, e está associada a calor e mesmo ao esquema
associado aos suplícios infernais.
No trecho em questão, temos a descrição de um delírio de Elisabeth que se vê
arrebatada pelo rei
do pântano (“le roi de Ia vase”). Apesar de ser possível assimilarmos esta
entidade fantástica à malignidade do próprio demônio, está dito na seqüência que o rei do
pântano estaria tentando afogar
a personagem (“me noyer”), ação que se associa
semanticamente a charcos
(designação de uma quantidade de água suja, enlameada) mas
não a caldeiras
.
A escolha lexical do tradutor de TLT-1 suscita um esquema em discordância com a
cena construída pela narradora —chegando mesmo a implicar a quebra da coerência textual.
TLO, c. 52, p.. 192: “Mon oreille à l'affût, plus fine que celle d'un trappeur
”.
TLT-1, p. 189: “Meu ouvido de atalaia, mais agudo que o de um negociante
de peles.”
Ao nos depararmos com este trecho de TLT-1, num primeiro momento em que não
o estávamos cotejando com o TLO, sentimos uma certa estranheza e nos perguntamos para
que o negociante de peles precisaria de um ouvido agudo. Ao verificarmos que se tratava da
tradução de “trappeur”, que na definição do dicionário Robert (1970) é o caçador que faz
comércio de peles, percebemos que o tradutor havia escolhido a parte inadequada da
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definição. Isto porque o esquema que se associa a negociante de peles é diferente daquele que
se associa a caçador
: o esquema da caça inclui os atos de olhar e de escutar com atenção para
detectar a presa e capturá-la, enquanto o esquema da negociação (embora seja possível dizer-
se que inclui os mesmos atos acima) não implica a agudeza dos sentidos dos caçadores.
Como a própria Elisabeth havia protagonizado uma cena de caça, achamos
conveniente utilizar a designação caçador
para “trappeur”: “Meu ouvido à espreita, mais agudo do
que o de um caçador
.” (cap. 52).
TLO, c. 59, p. 220: “Quand j'ai vu tout cet équipage
et ce sang, j' ai dit à mon mari [. ..]”
TLT-l, p. 217: “Quando vi toda aquela equipagem
e aquele sangue [...]
Neste trecho, “équipage” interpreta-se ou como “bagagem” ou como “conjunto do que
é necessário para viajar” (Robert, 1970) — o contexto permite as duas possibilidades. Em
português, o substantivo equipagem
pode também ter este significado.
Entretanto, achamos preferível uma outra tradução porque equipagem
, para o leitor
brasileiro, designa mais freqüentemente a tripulação de um navio ou de um avião, o que
atualiza um esquema que perturba a coerência do texto — neste ponto, referindo-se às peles
ensangüentadas do trenó do Dr. Nelson. Nossa proposta: “Quando vi toda aquela bagagem
e aquele
sangue [...]” (cap. 60).
Os dois exemplos a seguir nos parecem constituir igualmente uma infração ao uso:
TLO, c. 33, p. 141: “La bouleversante
nudité de son corps d'homme.”
TLT-1, p. 136: “A desnorteante
nudez de seu corpo de homem.
TLO, c. 34, p. 142: “Dans un autre monde, une autre vie existe, mouvante et bouleversante
.”
TLT-1, p. 137 : “Outra vida existe em outro mundo, uma vida que se movimenta e desnorteia
. “
O adjetivo “bouleversant” é definido no dicionário Robert (1970) como “qui bouleverse,
tres émouvant”. O que nos obriga a procurar a definição de “bouleverser”: “causer une émotion violente
et pénible, un grand trouble”. “Bouleversant” é pois a qualidade do que causa uma emoção violenta e
penosa, uma grande perturbação.
Apesar de “desnorteante” poder significar perturbador
, o uso mais freqüente deste
adjetivo ocorre para descrever situações de perda
de rumo, perda de direção, seja
espacialmente seja moralmente. Consideramos que o discurso de Elisabeth, nestes dois
momentos, está centralizado nela própria enquanto EU-enunciador, construindo para si a
imagem do ser dominado pela paixão e pelo desejo. Em português, o adjetivo desnorteante
não nos parece adequado para traduzir tais sentimentos e sensações.
Propomos as traduções seguintes:
C.33: “A perturbadora
nudez de seu corpo de homem.”
C.34: “Num outro mundo, existe uma outra vida, cambiante e perturbadora
.”
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Outro exemplo:
TLO, c.25, p.115: “Comme si mon sort était réglé
à jamais.”
TLT-1, p. 110: “Como se a minha sorte estivesse regularizada
para sempre.”
Ainda que se possa admitir a “regularização” da sorte de alguém, o enunciado
acima não é aceitável pelos falantes da língua portuguesa porque constitui uma infração ao
uso
da língua. Tal inadequação deve-se igualmente ao desconhecimento de que “régler le sort
de quelqu'un” corresponde a “decidir o destino de alguém.” Não se trata, no entanto, de uma lexia,
visto que “régler” significa decidir
em vários outros contextos, do mesmo modo quesort
equivale a destino
também em outras vizinhanças discursivas. Nossa proposta: “Como se o
meu destino estivesse decidido de uma vez por todas.” (cap. 25, TLT--2, p. LV)
TLO, c. 52, p. 193: “Crois-tu qu'il fait encore beau temps? Crois-tu que Ia route...”
TLT-1, p. 190: “Você crê que faz ainda bom tempo? Crê que a estrada...”
Do ponto de vista discursivo, as perguntas de Elisabeth neste trecho são solicitações
a Aurélie para que construa uma hipótese sobre as condições de tempo e sobre a estrada
enfrentadas por George Nelson em seu trajeto de Sorel a Kamouraska. Não se trata pois, como
poderia parecer à leitura descontextualizada dos enunciados acima, de uma solicitação para
que a interlocutora confirme ou desminta uma atitude de crença a ela atribuída.
O verbo crer
seguido de completiva, em português, também pode integrar um ato
de linguagem em que se constrói uma hipótese: “Creio que o tempo vai melhorar ainda hoje.” No
entanto, se dissermos: “Você crê que o tempo vai melhorar?” a interpretação mais plausível é a de
que se trata de pergunta sobre uma crença ou de um pedido de confirmação de uma crença
(entendendo-se crença como a aceitação de um fato como verdadeiro). Por isso preferimos
traduzir o verbo “croire” por outro que não se preste a uma interpretação diferente daquela do
TLO: “Você acha que o tempo ainda está bom? Acha que a estrada...(cap. 52)
Os erros que examinaremos a seguir prendem-se a um outro tipo de conhecimento
lingüístico — com conseqüências semelhantes, do ponto de vista textual, àquelas que
examinamos até agora.
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3.2.2 – Erros por desconhecimento da gramática
Na seção anterior examinamos uma série de erros que se prendem principalmente a
falhas no conhecimento do léxico da língua original e à desconsideração da interpretação
global dos enunciados e das seqüências narrativas ao traduzirem-se unidades significativas.
Na presente seção, examinamos os erros que denotam uma interpretação
equivocada da estruturação sintática de enunciados do TLO, devidos não só a uma falha no
conhecimento da gramática, como também à incapacidade de relacionar o sentido de cada
enunciado ao do texto como um todo.
3.2.2.1- Erros de interpretação no limite da sintaxe com a semântica
As preposições, como já dissemos, são formas dependentes em português – o que
significa que não podem constituir por si só um enuncíado, e nem mesmo um sintagma.
Semanticamente, são marcadores de caso
, isto é, marcadores de determinadas relações que
os constituintes frasais detêm entre si. Sintaticamente, necessitam sempre de uma
complementação nominal, e segundo a concepção gerativa da sintaxe, são o núcleo do
sintagma preposicional.
Os sintagmas preposicionais funcionam tanto como complementos (quando são
subcategorizados por um verbo, por um substantivo ou por um adjetivo) quanto como
adjuntos (quando se aplicam livremente ao sintagma verbal, ao sintagma nominal, ao
sintagma adjetival, ou à oração), sendo neste último caso equivalentes semanticamente ora a
advérbios ora a adjetivos.
Muitos dos erros que examinaremos a seguir se prendem a uma interpretação
equivocada ou da função sintática dos sintagmas preposicionais ou do tipo de especificação
semântica introduzida por estes sintagmas. Outros ainda devem-se à interpretação
equivocada de artigos indefinidos como sendo contrações de preposição com artigo definido.
TLO, c. 11, p. 64: “Sans parvenir à faire un pas de
moi-même d'ailleurs.”
TLT-l, p. 60: “Sem conseguir, no entanto, afastar-me de
mim mesma.”
O tradutor de TLT-l interpretou erradamente “de moi-même” como uma localização.
No caso, a especificação do ponto de partida de um movimento.
Entretanto, “de moi-même”, no TLO, é um especificador de modo
aplicado ao verbo,
correspondente a por
mim mesmo em português. Preferimos construir um enunciado no
modo subjuntivo com sujeito expresso, sendo possível suprimir o adjunto (que em TLO é co-
referente ao sujeito do infinitivo) e utilizar o determinante mesma
, traduzindo então no
sujeito a determinação presente no adjunto do TLO:
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TLT-2, c. 11, p. XL: “Sem que eu mesma chegue a dar um passo, aliás.”
Estas mudanças não representam infidelidade ao texto original porque a
significação global do enunciado do TLO mantém-se em nossa proposta: a negação da
expectativa de que a personagem teria agido por si própria ao afastar-se.
Nossa interpretação é confirmada nos dois enunciados subseqüentes, onde a
personagem diz: “C'est comme si je filais sur Ia rivière. Une sorte de radeau plat sous mes pieds.” (p. 64).
Elisabeth sente-se deslizar (“filer”), como se flutuasse numa jangada (“radeau”).
TLO, c. 13, p. 71: “Le marié saisit les rênes, soupire après
ce long voyage jusqu'à Kamouraska.”
TLT-l, p. 67: “O noivo segura as rédeas, suspira após a longa viagem até Kamouraska.”
A tradução de “après” por após
constitui uma incoerência textual, pois trata-se da
descrição dos momentos que precederam a viagem do casal Tassy a Kamouraska, a qual vai
ser rememorada em ordem cronológica.
Assim sendo, “après” não corresponde a após
no trecho acima. O sintagma
introduzido por “après” é uma especificação da proximidade
temporal e não da
posterioridade
expressa por após. Em português, parece-nos difícil manter esta mesma
especificação de proximidade temporal, e como a interpretamos como sendo a causa dos
suspiros, propomos a tradução seguinte:
Cap. 13: “O noivo segura as rédeas, suspirando por causa da longa viagem até Kamouraska.”
TLO, c. 25, p. 117: “Je dors à présent chez tante Luce-Gertrude.”
TLT-l, p. 112: “Durmo agora em casa de tia Luce-Gertrude.”
A preposição “chez” introduz um sintagma que se interpreta como uma localização
no “habitat” de alguém. A tradução por “em casa de” é inadequada porque, segundo o texto,
neste momento Elisabeth já estava morando na casa de suas tias, sendo uma delas a que se
chamava Luce-Gertrude. Com base neste dado que integra a narrativa, a localização
introduzida por “chez” só pode ser uma referência aos aposentos
de Luce-Gertrude.
TLO, c. 49, p. 185: “La cheminée de pierre fume sur le ciel d'un bleu dur.”
TLT-l, p. 182: “A chaminé de pedra fumega para
um céu de azul carregado.
TLT-2, c. 49, p. XCVII: “A chaminé de pedra solta fumaça no
céu de intenso azul.”
Em TLO, o enunciado acima descreve a impressão de Elisabeth ao visua1izar
imaginariamente a casa do Dr. George Nelson. A preposição “sur”, em francês, não serve
apenas para indicar a localização correspondente a em
cima de. Indica uma relação de
localização que especifica o contato com uma superfície, seja no plano horizontal, no plano
vertical ou em qualquer outro plano. Visualizando a paisagem como se fosse uma pintura, a
fumaça se superpõe
ao céu — daí o emprego da preposição “sur” neste enunciado.
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Em português a preposição sobre exclui a superposição a uma superfície no plano
vertical, sendo a preposição em
utilizada neste caso: em francês diz-se “écrire sur le mur”, “il y a
des tableaux sur le mur e em português diz-se “escrever na parede”, “há quadros na parede”. Por isso,
preferimos a preposição em
para introduzir o sintagma preposicional correspondente a “sur le
ciel” em nossa tradução. Na tradução de TLT-l, o sintagma preposicional introduzido pela
preposição para
indica direção, desfazendo o efeito de superposição interpretável em TLO.
TLO, c. 54, p. 197: “Le silence s'étend en plaques neigeuses.”
TLT-l, p. 193: “O silêncio estende-se sobre placas nevadas.”
TLT-2, c. 54, p. C: “O silêncio se estende em placas de neve.
O que dissemos a respeito do exemplo anterior esclarece, em parte, o erro de
tradução deste trecho: para introduzir a localização por superposição em francês emprega-se
a preposição “sur”. A tradução de “en” por sobre
constitui um erro, pois a preposição “en” não
introduz uma relação de superposição espacial em TLO.
O enunciado do TLO constrói uma assimilação entre “le silence” e “plaques neigeuses”:
estas últimas interpretadas metaforicamente como o modo de manifestação do silêncio.
Assim sendo, “en plaques neigeuses” é uma especificação de modo aplicada ao processo
expresso pelo verbo.
A tradução que propusemos nos parece ambígua, porque o sintagma “em placas de
neve” tanto pode ser interpretado como um especificador de modo como um especificador de
localização. Mantemos esta tradução por permitir a interpretação que corresponde à
significação do TLO, o que não é possivel com a proposta de TLT-l.
TLO, c. 38, p. l54: “Vous demandez: ‘Avez-vous des malades, des estropiés, des affligés, des
persécutés?’ Vous réclamez des
maladies guérissables, des chagrins avouables, pous vous
rassurer.”
TLT-l, p. 149: “[...] Reclama das
doenças curáveis, dos males confessáveis [...]”
O tradutor confundiu “des”, artigo indefinido plural, com “des”, contração da
preposição “de” com o artido definido “les”. Não levou em conta o fato de que o verbo
réclamer” não subcategoriza um objeto indireto introduzido pela preposição “de” , e que,
portanto, a única interpretação possivel para “des” seria a de artigo indefinido.
Certamente vários fatores concorreram para este erro, além da homonímia entre
artigo e contração: a semelhança fônica de “réclamer” com reclamar
do português, a
subcategorização do verbo reclamar
que, em uma de suas acepções constrói-se com um
objeto indireto introduzido por de,
e a própria polissemia do verbo “réclamer”, que pode
significar protestar
em outros contextos.
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No trecho em questão, entretanto, “réclamer” corresponde a pedir, exigir em
português, ou mesmo a reclamar
subcategorizando um objeto direto.
Tradução que propomos: “E pergunta: “Vocês têm pessoas doentes, estropiados, aflitos,
perseguidos?” Pede doenças curáveis, mágoas confessáveis, para tranqüilizar-se.(Cap. 38)
A seqüência narrativa em que se inserem os enunciados acima permitiu-nos omitir o
pronome sujeito a cada oração. Veja-se a tradução completa deste trecho em TLT-2, p.
LXXXIV, onde o sujeito destes verbos é facilmente interpretável.
TLO, c. 46, p. 176: “[...] est-ce que tu entends aussi des
paroles et des cris? Ce cri de ma soeur
Catherine des Anges, l'entends-tu bien, mêlé à toute cette cendre?”
TLT-l, p. 173: “[...] entende
também de palavras e gritos ? [...]”
Como no exemplo anterior, o artigo indefinido plural foi erradamente interpretado
como uma contração de preposição “de” com o artigo definido “les” (ao menos é o que
supomos do fato de que “des” foi traduzido por de
em português).
Esta interpretação está certamente ligada à desconsideração da significação do
verbo “entendre”, que, neste trecho do TLO, corresponde a ouvir
e não a entender. O curioso é
que na seqüência deste trecho “entendre” foi traduzido como ouvir
— sem que o tradutor, no
entanto, tenha sido capaz de interpretá-lo como uma reiteração da primeira ocorrência deste
verbo. É claro que, a exemplo do que já verificamos anteriormente, a semelhança fônica entre
“entendre” e entender
e a polissemia do verbo “entendre” também devem ter contribuído para o
erro do tradutor.
Interpretamos “entendre” como ouvir
não apenas porque os sintagmas em função de
objeto direto contêm designações de “manifestações sonoras” (“paroles”, “cris”) , mas também
pelo fato de que, no plano narrativo, a reputação de feiticeira da personagem Aurélie suscita
a possibilidade de atribuir-lhe a faculdade de “ouvir vozes e gritos” que mais ninguém ouve.
O tradutor não levou em conta, pois, nenhuma das pistas que ajudariam na
interpretação conveniente: nem a coerência semântica (o que é audível combina-se
semanticamente com ouvir
) nem a construção da personagem ao longo do romance.
3.2.2.2- Erros na interpretação de categorias gramaticais
Na interpretação dos enunciados que examinaremos a seguir, o tradutor de TLT-l
não logrou identificar diferenças entre as diversas categorias gramaticais, confundindo
advérbios com indefinidos e com adjetivos, indefinidos com substantivos, quantificadores
com advérbios, verbos com adjetivos, adjetivos com verbos, e mesmo um substantivo com
um advérbio, produzindo muitas vezes enunciados agramaticais na LT.
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Tais erros se prendem a uma incompetência em “processar” o enunciado de modo a
depreender corretamente seus constituintes imediatos — o que leva à interpretação de
relações de especificação e determinação, por exemplo, onde elas não ocorrem, deixando de
interpretá-las no ponto da seqüência frasal em que efetivamente se encontrem.
É claro que presumimos os erros de interpretação a partir daquilo que o tradutor
produziu em TLT-l. De um outro ponto de vista, o tradutor foi incompetente por não ter
logrado produzir enunciados que mantivessem entre seus componentes as mesmas relações
de especificação e determinação dos componentes que lhes correspondem em TLO, sem
nenhuma justificativa de melhor adequação de seu texto às condições que mencionarnos na
introdução deste capítulo. Os erros que levantamos são os seguintes:
TLO, c. 27, p. 126: “Antoine repousse d'un revers de main les pièces d'échecs qui tombent à terre.
Perdant et pervers, ce garçon [...]”
TLT-l, p. 120.: “[...] Perdendo e perverso, esse jovem [...]”
Em TLO, “perdant” é nitidamente o adjetivo correspondente a perdedor
em português
— pois está coordenado a um adjetivo, o que não seria possível se se tratasse do verbo “perdre”
no particípio presente francês.
TLO, c. 15, p. 78: “Frugale en tout, vivant
comrne une paysanne, Mme. mère Tassy se permet de
faire ses chaussures à New York.”
TLT-l, p. 74: “Frugal em tudo, viva
como uma aldeã, a Sra. Tassy, a mãe, dá-se ao luxo de mandar
vir seus calçados de Nova Iorque.”
“Vivant” como qualificação de um substantivo feminino estaria obrigatoriamente
flexionado no feminino: “vivante”. O tradutor produziu um enunciado que prejudica a
coerência discursiva, uma vez que a comparação “viva como uma aldeã” não condiz com o efeito
de oposição que existe entre a qualificação “frugal em tudo” (à qual está coordenada) e o
comportamento habitual de mandar vir seus calçados de Nova York, ficando sem sentido
dentro do enunciado e dentro do texto. Nossa proposta: “Frugal em tudo, vivendo como uma
camponesa, a mãe Tassy dá-se ao luxo de mandar fazer seus calçados em Nova York.” (cap. 15)
TLO, c. 22, p. 104: “La table de chevet au dessus de marbre.
TLT-l, p. 99: “A mesa de cabeceira em cima do mármore.”
O vocábulo “dessus” só seria interpretável como um advérbio integrante da lexia
“au-dessus de” se, ao invés da preposição simples “de”, fosse seguido da contração “du”. Neste
caso, a presença do artigo definido indicaria que “marbre” seria a designação de um objeto do
mundo referencial de Elisabeth. Com a preposição “de” precedendo “marbre”, trata-se de uma
especificação da matéria de que é feito o objeto designado pelo núcleo do sintagma nominal.
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Assim, o vocábulo “dessus” designa, em TLO, uma parte da mesa: o tampo. Tradução
conveniente do trecho acima: “A mesa de cabeceira com tampo de mármore. (Cap. 22).
TLO, c. 11, p. 64: “Son profil précis couleur d'ivoire.”
TLT-l, p. 60: “Seu perfil exatamente de cor de marfim.
Neste trecho, o tradutor de TLT-l interpretou “précis” como um advérbio que
estaria aplicado ao sintagma adjetivo “couleur d'ivoire”. Isto denota o desconhecimento das
diferenças morfológicas entre os adjetivos e os advérbios em francês, pois “précis” serve como
base de derivação do advérbio “précisément”, sendo que, em seu emprego, uma forma não se
confunde com a outra. Denota também, portanto, a falsa predição de que qualquer adjetivo
pode ser usado em função adverbial, o que, na realidade só acontece com alguns — como
“bas”, “haut”, “fort”, para citar os mais freqüentes.
Com isso, em sua tradução, o tradutor mudou o escopo de “précis”, sem que seu
texto tenha ficado mais adequado à melhor interpretação do TLO. No TLO, a narradora
qualifica “profil” como “précis” e não a cor. Dentro da cena imaginária que Elisabeth
descreve, o perfil bem delineado contrasta com a nuvem de fumaça na qual desaparecerá em
seguida. Assim, deslocando o adjetivo, o tradutor desfaz o efeito de contraste entre a nitidez
inicial e o apagamento pela fumaça. Nossa proposta em TLT-2: “Seu perfil preciso cor de marfim”
(TLT-2, cap. 11, p. XLI) .
TLO, c. 10, p. 60: “La Petite est bel et bien devenue une vraie femme.”
TLT-l, p. 56: “A Pequena é linda e transformou-se em uma verdadeíra mulher.”
A lexia “bel et bien” não foi interpretada como tal: o tradutor mais uma vez
desconheceu as características flexionais do francês e confundiu “bel” com “belle” para
interpretá-lo como um adjetivo qualificando “La Petite”. Entretanto, o resultado não tem
conseqüências desastrosas, sendo um caso menor de inadequação ao TLO.
TLO, c. 1, p. 8: “Je l'ai bien vue s'engouffrer là-dedans, vive et agile comme personne
au monde,
sauf... C'est cela qui me pince le coeur à mourir, vive et agile comme personne
...
TLT-l, p. 4: “Vi-a perfeitamente meter-se lá dentro, viva e ágil como uma
pessoa no mundo, salvo...
É isso que me atormenta o coração, viva e ágil como uma
pessoa...”
Ao confundir o pronome indefinido “personne” com o substantivo homônimo
“personne”, o tradutor não levou em conta que, na gramática do francês, o artigo é obrigatório
(salvo em lexias ou em enumerações). Para o falante do francês, a ausência do artigo diante
de “personne” é suficiente para que seja interpretado como pronome indefinido.
A respeito de “personne” como indefinido, cumpre observar que se trata de um
amálgama com o quantificador existencial negativo, isto é, ao mesmo tempo que se refere
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indistintamente a todos os indivíduos da classe dos humanos, é a negação de que exista
algum deles ao qual um determinado predicado se aplique.
No enunciado em questão, a mulher de que fala Elisabeth a faz lembrar de uma
outra pessoa que poderia ser comparada a ela — lembrança sugerida pelo restritivo “sauf”
e que depois de termos lido o romance todo, identificamos como sendo o Dr. George Nelson.
A tradução de “personne” por uma
pessoa produz uma seqüência incoerente: mesmo
que interpretássemos “viva e ágil como uma pessoa no mundo como sendo uma comparação com
uma determinada pessoa que a narradora não quisesse mencionar, o restritivo salvo
permaneceria sem sentido, pois não está expressa a classe da qual se poderia extrair uma
exceção. Tradução que propomos em TLT-2: “Vi quando se precipitou lá dentro, viva e ágil como
ninguém, exceto...” (Cap. 1, p. IV)
TLO, c. 3, p. 20: “Vous n
'aurez qu'à retourner dormir lorsqu'on vous aura entendus.”
TLT-1, p. 16: “E só
têm de voltar a dormir depois que os ouvirem.”
A tradução de “ne...que” por só
torna-se ambígua no TLT- 1. Neste enunciado, a
partícula “só” é interpretável como uma restrição a “depois que os ouvirem”, equivalente a: “E têm
de voltar a dormir só
depois que os ouvirem.”
As chamadas partículas “ne...que” constituem ora um determinante nominal ora um
advérbio. Normalmente, o escopo deste restritivo é marcado, em francês, pela posição do
“que”: a restrição se aplica ao sintagma que lhe é posterior.
Entretanto, com a lexia modal “avoir à”, o escopo de “ne...que” não é o verbo
modalizado que acompanha o “que”, mas a própria modalidade. “Vous n'aurez qu'à retourner
dormir” pode ser parafraseado em português por: “Sua única obrigação será voltar a dormir”, onde o
adjetivo “única” especifica obrigação
, que equivale semanticamente a “avoir à”.
Nossa proposta de tradução: “Depois que os ouvirem, vocês só têm de voltar a dormir.” (Cap.
3). Com a mudança de posição da especificação temporal, o escopo de “só” deixa de ser
ambíguo, e a interpretação deste enunciado passa a corresponder à do TLO.
TLO, c. 36, p. 151: “Je ne puis qu'embrasser tes deux mains, tour à tour. Je les promène sur mon
visage, abandonnées et chaudes.”
TLT-l, p. 146: “Só posso abraçar suas duas mãos alternadamente. [...]”
A respeito do exemplo acima, o que temos a dizer é análogo ao que dissemos do
exemplo anterior. Interpretamos o trecho de TLT-l como se a restrição estivesse aplicada a
alternadamente
e não ao sintagma verbal {mais especificamente ao verbo modal).
Para traduzirmos este tipo de restrição que se aplica ao verbo “pouvoir”, temos de
efetuar mudanças no enunciado da LT. Uma das possibilidades é isolar o verbo modal,
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introduzindo uma forma verbal expletiva, como se segue: “Só posso é beijar tuas mãos, uma após a
outra.” (Cap. 36)
TLO, c. 55, p. 205: “Ce n'est que la peur qui brouille mon regard. Abîme l’image de mon amour.
TLT-l, p. 202: “Não é medo que me confunde o olhar e deturpa a imagem de meu amor.”
O tradutor confundiu a restrição com a negação, produzindo um enunciado em
contra-senso com o TLO, e introduzindo uma negação que fica sem sentido dentro do TLT-l.
Nossa proposta: “É apenas o medo que confunde meu olhar e deturpa a imagem de meu amor.” (cap. 55).
TLO, c. 10, p. 57: “Mon mari se meurt, en ce moment même
.”
TLT-l, p. 53: “Meu marido está morrendo, mesmo
neste momento.”
O escopo de “même” em TLO é o sintagma nominal e não o sintagma preposicional,
como ocorre no TLT-l. “Même” é, pois, um determinante nominal. Posposto a “en ce moment”,
integra um sintagma que corresponde à lexia neste exato momento”, preferível à tradução
literal “neste momento mesmo”, pouco utilizada no português atual.
TLO, c. 6, p. 30: “L'enfant qui crie ainsi le fait sans rage ni douleur, juste
pour le plaisir de donner
toute sa voix [...]”
TLT-l, p. 29-30: “A criança que grita assim o faz sem raiva e sem dor, justamente
pelo prazer de
soltar toda a voz.”
TLO, c. 19, p. 92: “Vous n'avez que juste
le temps de dire adieu à Kamouraska.”
TLT-l, p. 87: “Você tem justamente
o tempo de despedir-se de Kamouraska.”
Nestas duas passagens houve equívoco do tradutor em traduzir “juste” por
justamente, apesar de “juste” ter uma função adverbial. Nos exemplos de TLO, “juste” é ora um
especificador do sintagma preposicional (c. 6) ora um especificador do sintagma verbal (c.
19) — em ambos os casos sendo interpretado como uma restrição
aplicada à noção por ele
determinada ou especificada.
Traduções convenientes em português:
C. 6: “A criança que faz isto não grita de raiva nem de dor, é só
pelo prazer de soltar toda a sua voz
C. 19: “Você só
tem o tempo exato de dizer adeus a Kamouraska.”
No exemplo do c. 19, como “juste” em TLO reitera a restrição “ne...que”, acrescentamos
o adjetivo “exato” ao sintagma correspondente com este mesmo efeito de sentido.
Observa-se, a respeito do uso de justamente
no TLT-l, que este advérbio de frase
reforça uma relação de coincidência, de concordância, entre o que está sendo dito e o que foi
dito anteriormente. E em TLT-l o leitor fica incapacitado de interpretar com que tais
enunciados coincidem, ou o que tais enunciados confirmam, criando-se mais uma vez uma
incoerência.
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TLO, c. 5, p. 26: “M. Rolland ferme les yeux. Refuser carrément de boire.”
TLT-l, p. 22: “O Sr. Rolland fecha os olhos. Recusa francamente
em beber.”
O enunciado do TLT-l, em sua estruturação sintática, é agramatical, posto que o
verbo recusar
não subcategoriza objeto introduzido pela preposição em. Além disso, o
tradutor mudou o significado modal do enunciado ao conjugar o verbo no presente do
indicativo em vez de mantê-lo no infinitivo.
Quanto a “carrément”, só corresponde ao advérbio francamente
do português quando
especifica verbos “dicendi” que se constroem com orações completivas, como em “Je lui ai dit
carrément que je ne voulais plus le voir”, onde “carrément” qualifica o ato de dizer como direto, sem
rodeios.
Como o verbo “refuser” não pertence à classe de verbos “dicendi”, “carrément” tem um
outro sentido ao especificá-lo: corresponde a terminantemente, decididamente. Nossa proposta
de tradução: “O Sr. Rolland fecha os olhos. Recusar-se terminantemente
a beber”. (TLT-2, c. 5, p.
XVIII).
TLO, c. 5, p. 27: “[...] lorsque tu t'es rapproché de mon lit, tout
rond et gras [...].”
TLT-l, p. 23: “[...] quando você se aproximou de minha cama, todo
gorducho [...].”
TLO, c. 15, p. 77: “Les ruines calcinées du manoir. Toutes
noires sur un ciel de pierre.”
TLT-l, p. 73: “As ruínas calcinadas da mansão, todas
elas enegrecidas sobre um céu de pedra.
Nestes dois trechos “tout” é um intensificador do adjetivo. Em português, todo (e suas
variações morfológicas), seguido de adjetivo, também é um intensificador que significa:
inteiramente, em sua totalidade. Assim sendo, não se aplica às qualificações que sejam inerentes
à totalidade do referente. Assim, no exemplo do c. 5, o intensificador aplicado a “gorducho
em TLT-l não nos parece conveniente porque interpreta-se “gorducho” como uma
caracterização inerente ao personagem Jérôme. Por isso, em nossa proposta de tradução,
suprimimos o intensificador:
TLT-2, p.XVIII, C.5: “[...] quando você se aproximou de meu leito, gorducho e balofo...”
Sobre o exemplo do c. 15, não concordamos com a tradução de TLT-l porque desfez-
se a intensificação do adjetivo. Sem nos determos no abuso em que se constitui a
transformação da pontuação original, recordamos o que dissemos precedentemente sobre o
emprego da preposição “sur” em francês, diferente da preposição sobre em português. Neste
trecho, trata-se, como no exemplo mencionado na sub-seção anterior, de uma superposição
no plano vertical, o que a preposição sobre do português não traduz. Tradução que
propomos: C. 15: “As ruínas calcinadas do solar. Muito negras, projetadas num céu de pedra.”
TLO, c. 10, p. 58: “Le rire fou d'Aurélie éclate. Tout
contre moi. Vibre un instant.”
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TLT-l, p. 54: “Estruge a risada louca de Aurélie. Toda contra mim. Vibra um instante.”
Neste exemplo, também se trata do emprego adverbial de tout, especificador de um
sintagma preposicional. A tradução de TLT-l é inadequada ao nível do enunciado, pois
constrói uma relação de oposição não presente no enunciado do TLO. A tradução
correspondente seria: “Bem junto de mim.” (Cap. 10, TLT-2, p. XXXIII)
TLO, c. 51, p. 190: “Tu laisses tinter joyeusement les grelots au col de ton cheval. Tout
comme si
tu les avais toi-même autour du cou, ces clochettes exubérantes.”
TLT-l, p. 187: “Vou deixar tilintar alegremente os guizos no pescoço do cavalo. Tudo
como se os
tivesse você mesmo, em volta do pescoço.
Esta é uma dentre as diversas passagens em que “Tout comme si” foi traduzido, em
TLT-l, por “Tudo como se”. Em francês, “tout” especifica a oração comparativa introduzida por
“comme si”, não sendo correspondente ao indefinido tudo
, neste caso. Em português, não há
equivalente exato para este emprego de “tout”, que simplesmente pode deixar de ser
traduzido.
Consideramos a tradução de TLT-l como inconveniente porque “tudo” é interpretado
como uma retomada de uma série de acontecimentos narrados precedentemente. No
entanto, nestes trechos há apenas a introdução de um acontecimento, tomado como termo de
uma comparação, o que torna o uso de “tudo” inadequado.
Tradução que propomos: Cap. 51: “Deixas que os guizos tilintem alegremente no pescoço do
cavalo. Como se tu mesmo trouxesses ao pescoço estes sininhos exuberantes.
Cremos ter demonstrado como a obediência ao princípio de fidelidade ao TLO e a
aplicação do princípio de coerência tanto à interpretação quanto à produção norteiam o
trabalho do tradutor. Disto, concluímos que a falha do conhecimento lingüístico é
cumulativa não só com a displicência do tradutor que não procura cumprir o Contrato
de
fidelidade
ao TLO, como também com a incapacidade de perceber que um texto resulta da
construção de uma série intrincada de relações coerentes entre os seus mais diversos
elementos e seus mais diversos níveis. O tradutor de TLT-l ignora que os sentidos do TLO
devem ser mantidos, na medida do possível, para que o Contrato
ficcional e o Contrato
literário
que o Escritor propõe ao Leitor-l também sejam interpretados, com o mínimo de
perda possivel, pelo Leitor-2. O tradutor, com seus erros, descaracteriza TLT-l enquanto
tradução válida de TLO.
No próximo capítulo abordaremos a problemática da tradução de alguns dos
componentes enunciativos e retóricos, sem, contudo, pretendermos esgotar as possiveis
criticas e propostas à tradução de Kamouraska.
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4. TRADUÇÃO DE COMPONENTES ENUNCIATIVOS
Benveniste (1974, p. 80) considera o discurso como o produto de um ato
enunciativo, isto é, como produto de um processo em que o locutor (para nós, o EU-
comunicante) “mobiliza a língua em seu proveito”. Este processo é a enunciação
.
A língua inclui todo um conjunto de formas cuja função, específica ou acessória, é a
de servir à construção da “mise-en-scène” discursiva. Diz o mesmo Benveniste no artigo “Le
langage et l'expérience humaine”:
Todas as línguas têm em comum certas categorias de expressão que parecem corresponder a um
modelo constante. As formas que tais categorias revestem são registradas e inventoriadas nas
descrições, mas suas funções só aparecem claramente se estudadas no exercício da linguagem e
na produção do d1scurso. Sao categor1as elementares, 1ndependentes de qualquer determ1nação
cultural e onde se vê a experiência subjetiva dos sujeitos que se colocam e se situam na e pela
linguagem.. (Benveniste, 1974, p. 67)
Charaudeau (1983, p. 59), seguindo as propostas de Benveniste, considera que tais
formas integram o aparelho
enunciativo, e funcionam como marcas de comportamentos
linguagísticos
. Os comportamentos que põem em funcionamento o aparelho enunciativo, a
que já nos referimos no cap. 2, são: o comportamento
alocutivo, onde predominam os traços
explícitos do sujeito destinatário; o comportamento
elocutivo, onde predominam os traços
explícitos do sujeito enunciador; e o comportamento
delocutivo, onde o discurso se
apresenta como “neutro”, como independente das posições de sujeito enunciador e
destinatário.
Para facilitar o entendimento da análise que faremos nesta seção, traçamos, na
próxima página, um desdobramento do esquema
do ato de linguagem apresentado à página
12, para dar conta, pelo menos em parte, da complexidade enunciativa do romance
Kamouraska.
Vê-se, no Esquema 4 (p. 92), como os parceiros EUc e TUi integram o circuito
externo
do ato de linguagem, e são, respectivamente, o escritor e o leitor do romance, como já
comentamos a respeito da secção esquerda do Esquema 3 (p. 28). No circuito
interno, há a
construção de uma primeira imagem de um Sujeito enunciador: um narrador, o EUe1 que
pressupõe um destinatário, o TUd1. Entretanto, em nenhum momento o narrador tem um
comportamento alocutivo nesta instância, e as marcas de comportamento elocutivo
confundem-se com as do aparelho retórico.
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ESQUEMA 4:
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Ainda no primeiro capítulo, o EUe1 se retrai enquanto tal, construindo, para
determinados componentes do ELEx ficcional (da história contada) o status de enunciador.
Assim, por várias vezes, nos capítulos de 1 a 8, EUe1 dá lugar ao discurso de vários outros
enunciadores (representados por EUe2 em nosso esquema, assumido por diferentes
personagens).
A partir do cap. 9, até o último, é a personagem Elisabeth que assume
exclusivamente o papel de EUe2, construindo-se uma outra instância discursiva: o ELEx2.
Nesta instância, o TUd2 é um destinatário não-nomeado (embora explicitamente convocado
em algumas passagens), com o qual o leitor (o TUi) é levado a identificar-se.
Dentro desta nova instância discursiva, a narradora Elisabeth põe a si mesma em
cena enquanto personagem — seja reproduzindo situações dialogais que integram a história
narrada, seja produzindo um discurso “monologal” onde, entretanto, ela se dirige
imaginariamente a personagens ausentes. Em nosso esquema, EUe3 e TUd3 representam os
personagens que se movem no plano onírico (o ELEX2) da narradora Elisabeth.
Selecionaremos, em Kamouraska, as principais seqüências em que a interpretação das
relações entre os protagonistas da “mise-en-scène” discursiva é imprescindível para a
tradução adequada das marcas do comportamento enunciativo.
4.1- Componentes do enunciativo alocutivo
O comportamento alocutivo traz a marca explícita do sujeito destinatário, o TUd.
Como já dissemos, o discurso do EUel (o narrador) não apresenta exemplos de enunciativo
alocutivo, posto que não se dirige diretamente ao leitor.
Mas na instância discursiva em que EUe passa a ser a personagem Elisabeth — o
que ocorre praticamente ao longo de todo o romance, pois EUel se ausenta a partir do
capítulo 9, para só reaparecer no capítulo 65, o último — diferentes destinatários são
construídos imaginariamente por tal personagem. Além de rememorar diálogos de que
participou, de imaginar depoimentos de outros personagens, em seu monólogo dirige-se
imaginariamente a suas tias, sua mãe, seu filho Nicolas, Antoine Tassy, George Nelson, a ela
mesma e a outros.
A tradução deverá refletir as relações existentes entre as personagens e entre a
narradora e os demais personagens. Além de criticar TLT-l, apresentaremos nossas propostas
e os critérios que as nortearam.
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4.1.1 – Tradução dos pronomes “tu” e “vous
À exceção de Nicolas e George Nelson, de quem nos ocuparemos mais longamente
adiante, optamos pela correspondência: "vous" – o
senhor, a senhora; "tu" – você; "vous" - vocês
para o plural do tratamento em segunda pessoa, quer formal quer informal. Procuramos não
acumular formas de 3
a
pessoa para referir-nos à 2
a
, para evitar ambigüidades.
Nesse aspecto, comparemos inicialmente as propostas de TLT-l e TLT-2 para a
tradução de um trecho do capítulo 13, p. 70, linhas 41-47:
TLO, c. 13, p. 70:
Il faut répondre “oui”, bien fort. Ton voile de mariée. Ta couronne de fleurs d'oranger. Ta robe à
traîne. Le gâteau de noces, à trois êtages, nappé de sucre et de crême fouettée. Les invités se
mouchent derrière toi. Tout le bourg de Sorel attend pour te voir passer, au bras de ton jeune époux.
Mon Dieu, je me damne! Je suis mariée à un homme que je n'aime pas.
TLT-l, p. 66:
Tem- se de responder '“sim” bem alto. O véu de noiva. A coroa de flores de laranjeira. O vestido de
cauda. O bolo de núpcias, de três camadas, recoberto de açúcar e creme batido. Convidados, atrás,
assoam o nariz. Todo o burgo de Sorel espera vê-la passar de braço com o jovem esposo. Meu
Deus, que tormento! Casei-me com um homem que não amo.
TLT-2, p. XLIV:
É preciso dizer “sim”, bem alto. O véu de noiva. A grinalda de botões de laranjeira. O vestido de
cauda. O bolo de noiva, de três andares, coberto de açúcar e de creme batido. Os convidados
assoando o nariz atrás de você. Todo o burgo de Sorel espera para vê-la passar, de braço dado com
o jovem noivo. Meu Deus! Estou pecando! Estou casada com um homem que não amo.
Em TLT-2, a exemplo do que ocorre em TLT-1, não traduzimos os possessivos
porque a acumulação “seu”, “sua, “seu”, além de sonoramente pesada, acentuaria a
ambigüidade do tratamento, neste trecho, com o de 3
a
pessoa. E por esta mesma razão, isto
é, para evitar a ambigüidade e assim adequar-se à formulação de TLO, introduzimos o
pronome “você” quando isto foi possível.
Apresentamos a seguir, trechos de TLO, TLT-l e TLT-2 de parte do capítulo 36,
sobre o qual temos comentários a fazer:
TLO, c. 36, p. 148-149:
Justice est faite. Voici l'epouse en larmes. Courant à perdre haleine dans l'herbe mouillée. Ses
souliers sont trempés. Elle relève ses jupes pour mieux courir. Crie avec l'accent inimitable des
veuves: “Mais c'est mon mari! Vous avez tué mon mari!” Pauvre Antoine, c'est fait. Ta poitrine
robuste ouverte d'une balle. Ton coeur déraciné comme une dent de lait. Ton sang répandu. Ton
aisselle blonde où la sueur fige. On a beau dire que la main de l'ivrogne n'est pas sûre et tremble. Si
par malheur, le coeur déchiré d'une balle, c'etait le tien, amour? J'en mourrais.
TLT-l, p. 144:
Fez-se justiça. Eis a esposa com os olhos cheios de lágrimas correndo ofegante na herva molhada.
Seus sapatos estão molhados. Ela arrepanha as saias para correr melhor. Grita com a entonação
inimitável das viúvas: “Mas é meu marido! Você matou meu marido!” Pobre Antoine, está tudo
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acabado. Uma bala abriu-lhe o peito robusto. Arrancou-lhe o coração como a um dente de leite.
Derramou-lhe o sangue. Sua axila loura onde o suor congela. Dizem que a mão do bêbado não é
firme e treme. Se, por desgraça, o coração estraçalhado fosse o seu, meu amor? Eu morreria.
TLT-2, p. LXXIX-LXXX:
A justiça está feita. Surge a esposa toda em lágrimas. Correndo ofegante na relva molhada. Seus
sapatos estão encharcados. Suspende as saias para correr melhor. Grita com a entonação inimitável
das viúvas: “Mas é o meu marido! O senhor matou o meu marido!” Pobre Antoine, você está
acabado. O peito robusto aberto pela bala. O coração arrancado como um dente de leite. O sangue
derramado. A axila loura empastada de suor. De nada adianta dizer que a mão do bêbado ê trêmula
e insegura. Se, por desgraça, o coração dilacerado pela bala fosse o teu, amor? Eu morreria.
Quanto ao tratamento “tu”, utilizado por Elisabeth para dirigir-se a Antoine,
procuramos solução melhor do que a do tradutor de TLT-1, no sentido de não
descaracterizar a segunda pessoa usada no TLO. Optamos, portanto, por não traduzir os
possessivos, ficando a segunda pessoa explícita apenas após o vocativo.
Já os tratamentos “vous” em “Vous
avez tué mon mari” e “tu” em “Si par malheur, le coeur
déchiré d'une balle c'était le
tien, amour?”, ambos referentes ao personagem George Nelson, foram
traduzidos, em TLT-1, por formas de 2
a
pessoa informal, respectivamente “você” e “seu”. Em
TLT-2, procuramos marcar a diferença de tratamento pelo uso de o
senhor (tratamento formal)
e teu
(tratamento de 2
a
pessoa) — retomando o jogo de diferenças de tratamento, que se
repete em outras passagens do romance.
Dentre todos os personagens aos quais Elisabeth se dirige imaginariamente, o
principal é o Doutor George Nelson, o amante que a havia abandonado. Examinaremos
então as diversas formas usadas por Elisabeth para dirigir-se ou referir-se a tal personagem e
confrontaremos a tradução de tais formas em TLT-1 com as que propomos em TLT-2,
justificando nossas propostas. Já no capítulo 1, Elisabeth passa de um discurso em que
George é mencionado em terceira pessoa para um discurso em que se torna o destinatário,
designado pelo pronome “tu”:
TLO, c. 1, p. 9, l. 82 a 88:
Pauvre cher amour, comme il
a souffert! Comme il a eu froid jusqu'à Kamouraska, tout seul en hiver..
400 milles environ, aller et retour. Amour, amour, comme tu
m'as fait mal. Pourquoi te plaindrais-je?
Tu
as fui comme un Iâche, me Iaissant derrière toi, toute seule pour faire face à Ia meute des
justiciers. Amour, amour, je te
mords, je te bats, je te tue. Ton cher visage jamais plus. Et I'âge qui
vient sur moi.
O tradutor do TLT-1 optou pelo pronome você
para traduzir qualquer ocorrência
do pronome “tu”, e mesmo, como vimos no exemplo do capítulo 36, quase todas as
ocorrências do pronome “vous”, não só para referir-se a este como aos demais personagens,
exceção feita ao tratamento dispensado por Elisabeth a suas tias. Na tradução do trecho
acima, ao traduzir “tu” por você
não obedeceu à mudança de pessoa verbal do TLO:
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TLT-l, c. 1, p. 5:
Pobre e querido amor, como sofreu. Como sentiu frio em sua viagem a Kamouraska, completamente
só no inverno. Cerca de 640 quilômetros para ir e voltar. Amor, amor, não sabe o mal que me fez! Por
que devo lamentar-me por sua causa? Você fugiu de mim como um covarde, deixando-me para trás,
completamente só para enfrentar a matilha da justiça. Amor, amor, eu o mordo e aniquilo. Jamais
verei seu querido rosto.
O leitor interpreta “pobre e querido amor, como sofreu” e “Amor, amor, não sabe o mal que me
fez” como seqüências de sujeito idêntico — onde está implícito o tratamento por você
, que
leva o verbo para a 3
a
pessoa. No texto em francês, a mudança de pessoa verbal é a marca da
passagem de um discurso em que o destinatário não está explícito, para um discurso onde se
atribui tal papel, imaginariamente, ao personagem George.
No TLT-l passa-se, pois, diretamente do trecho que reproduz parte de uma carta de
George Nelson (nas linhas anteriores às transcritas aqui) a uma resposta possível a esta carta
por parte de Elisabeth. Anula-se, em TLT-l a passagem brusca do enunciativo
elocutivo,
onde o personagem George é descrito em 3
a
pessoa, para o enunciativo alocutivo, onde tal
personagem passa praticamente a ser interpelado.
É somente a partir do capítulo 26 que o discurso de Elisabeth terá novamente como
destinatário o Dr. Nelson. Neste ponto da narrativa, Elisabeth rememora sua primeira visita
à casa do doutor, num período em que ela era apenas sua cliente. O pronome usado para
dirigir-se imaginariamente a ele é “vous”, que, em francês, ao ser usado para dirigir-se a
apenas uma pessoa, marca uma certa distância social entre os interlocutores. Na cena em
questão, o pronome “vous” marca a distância social obrigatória, no século XIX, entre um
homem e uma mulher que se conhecem mas não têm qualquer relação de intimidade, e que,
além disso, se devem o tratamento respeitoso de médico-paciente e vice-versa. Tal forma de
tratamento é ainda hoje utilizada pelos falantes nativos do francês em circunstâncias
semelhantes, isto é, o que se espera entre um médico e uma cliente quanto à forma de
tratamento é o uso do pronome “vous” . Examinemos os dois trechos seguintes e a respectiva
tradução apresentada em TLT-l:
TLO, c. 26, p. 121:
J'attends que le sens secret de toute cette indignation me soit révélé. Se retourne sur moi, à jamais.
Me comble de sainte colère partagée. Comme vous
me regardez, docteur Nelson. Non pas Ia paix,
mais le glaive. Cette pâleur soudaine. Cette fièvre dans vos
yeux. La lampe sans doute. Cette ombre
noire sur vos
joues.
TLT-l, c. 26, p. 116:
Espero que me revele o sentido secreto de toda aquela indignação, que volte para mim, para sempre.
Faz-me partilhar daquela santa cólera. Como se
olha, Dr. Nelson. Não é uma paz, mas uma guerra.
Aquela palidez repentina. Aquela febre que se
lhe vê nos olhos. Sem dúvida é por causa do lampião.
Aquela sombra negra sobre suas
faces...
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TLO, c. 26, p. 122:
Docteur Nelson, je vous
aime farouchement jusqu'à désirer franchir avec vous les sources de votre
enfance. Pour mon malheur je les trouve, ces sources, inextricablement mêlées à l'enfance d'Antoine
Tassy.
TLT-l, c. 26, p. 117:
Doutor Nelson, amo-o loucamente a ponto de desejar transpor com você
o limiar de sua infância.
Para infelicidade minha encontro esse limiar inextricavelmente ligado à infância de Antoine Tassy.
Sem nos determos nos inúmeros equívocos que podem ser levantados nestes dois
pequenos trechos traduzidos, justificaremos antes de mais nada por que os possessivos
encontram-se também sublinhados. Apesar de serem tradicionalmente classificados em
classe à parte dos pronomes pessoais, o possessivo é semanticamente equivalente a um “caso
genitivo” do pronome pessoal. Em português é aceitável dizer-se: “a casa dele”, mas no
entanto não é aceitável dizer-se “a casa de mim” ou “a casa de nós”. As formas aceitáveis
gramaticalmente e equivalentes a essas são os sintagmas construídos com possessivos:
“minha casa”, “nossa casa”.
Em francês ocorre o mesmo tipo de inaceitabilidade, extensivo à 3
a
pessoa: diz-se “la
maison de Pierre” mas “*la maison de lui” não é gramaticalmente aceitável em francês. Mesmo na
construção francesa onde se exprime a posse através de um adjunto introduzido pela
preposição “à” há restrições: a construção onde o substantivo é precedido do artigo definido
não é compatível com tal tipo de adjunto. Assim, tem-se “Cette maison à lui est très belle” mas não
“*La maison à lui est tres belle”. Sendo assim, é o possessivo
que será usado, como equivalente ao
adjunto que exprime a posse.
Retornemos à tradução da página 121, no que diz respeito aos pronomes “vous” e
“vos”: em TLT-l tem-se a supressão, possível em português, do pronome sujeito; quanto ao
possessivo, opta pela construção com o pronome lhe
, resultando numa combinação de
pronomes oblíquos (se lhe) pouco usual na língua portuguesa falada e escrita atualmente no
Brasil. Observamos então que, exceto pelo vocativo “Dr. Nelson”, que faz com que se interprete
a forma verbal “olha” como referente à 2
a
pessoa do discurso, fica difícil interpretar “Aquela febre
que se lhe vê nos olhos” e “Aquela sombra negra sobre suas faces” como dirigidas imaginariamente por
Elisabeth ao Dr. Nelson, pela ausência de marcas que permitam identificar o destinatário.
Além disso, a tradução de “cette” por “aquela” reforça a interpretação de que se trata de um
comentário de Elisabeth sobre
o Dr. Nelson. TLT-1 afasta-se, assim, da interpretação do TLO
onde, claramente, Elisabeth institui o doutor como destinatário de suas observações.
Como, em português, o uso do pronome “vós” desapareceu no uso corrente da
língua (cf. Cunha, 1970, p. 207), não há uma correspondência exata para o “vous” do francês,
quando se refere a uma única pessoa nem quando se refere a mais de uma pessoa. Mas, no
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94
tipo de relacionamento que envolve os personagens George Nelson e Elisabeth logo que se
conhecem, as formas correspondentes a “vous” seriam “o
senhor” e “a senhora”, que marcam
usualmente uma relação de respeito, cortesia ou distância social em português. Propomos
então como tradução para o trecho da página 121, cap. 26:
TLT-2, c. 26, p. LXIII:
Aguardo que o sentido secreto desta indignação toda me seja revelado. Que se volte para mim, para
sempre. Me inunde da ira sagrada que compartilho. Como o
senhor me olha, Dr. Nelson. Não trago a
paz, mas a espada. Essa palidez súbita. Essa febre em seus
olhos. É o lampião, certamente. Essa
sombra negra em seu
rosto.
Nesse trecho, além do uso de “o senhor” como correspondente a “vous”, o uso de “seus
e de “seu”, e paralelamente, o uso de uma forma de demonstrativo que implica proximidade
com uma 2
a
pessoa (“essa”) permitem a interpretação do discurso como dirigido a George
Nelson, tal como em francês. Certamente a ambigüidade não está, aí, completamente
resolvida, pois as formas dos possessivos também se usam para referir à 3
a
pessoa. De
qualquer modo, acreditamos que, se não está tão explícito como no francês, pelo menos
permite a interpretação pretendida.
Na tradução do trecho do c.26, p. 122, já transcrito (p. 92), o TLT-l apresenta o
pronome “você
como correspondente a “vous”. Ocorre aí uma inadequação que contraria a
intenção manifesta do escritor do TLO, que marca a formalidade que Elisabeth ainda
conserva nesta primeira visita ao Dr. Nelson ao usar o tratamento “vous”. O uso de “você
é, ao
contrário, marca de informalidade em português. Com isso, o tradutor de TLT-l desfaz as
diferenças de atitude da personagem Elisabeth com relação ao doutor, pois tanto o “tu” do
primeiro capítulo quanto o “vous” deste capítulo 26 foram aí traduzidos por “você
”.
Em capítulos posteriores ao 26, Elisabeth voltará ao tratamento “tu” e em alguns
momentos ao tratamento “vous” para com o personagem George Nelson. A igualização desses
dois pronomes pela tradução traz um prejuízo para a organização enunciativa do discurso e
para a construção do relacionamento complexo entre esses dois personagens. A respeito
ainda desse trecho da página 122, temos a dizer que o uso de “você
correspondendo a “vous”
se apresenta inadequado ainda mais pelo fato de se achar no mesmo enunciado começado
pelo vocativo “Doutor Nelson”, onde o sobrenome do personagem vem precedido de seu título
profissional, tratamento que, em português, se combina mal com a informalidade do
pronome “você”.
Em nossa proposta de tradução, não explicitamos o adjunto no trecho
correspondente ao da p. 122, permitindo então a interpretação em que se observa um
relacionamento formal:
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95
TLT-2, c 26, p. LXV:
Doutor Nelson, eu o amo loucamente a ponto de querer penetrar nas fontes de sua infânica. Para
infelicidade minha descubro que suas lembranças estão inextricavelmente ligadas a Antoine Tassy.
Este capítulo 26 se situa num tempo anterior ao que foi abordado pela personagem
no 1
o
capítulo, marcado ainda por um tratamento cerimonioso entre Elisabeth e George
Nelson. Para o trecho do cap. 1, p. 9, apresentamos a seguinte tradução:
TLT-2, c. 1, p. VI:
Pobre e querido amor, como sofreu! Como sentiu frio até Kamouraska, sozinho em pleno inverno.
[...] Amor, amor, como me fizeste mal. Por que ter pena de ti? Fugiste como um covarde, deixando-
me para trás, sozinha para enfrentar a matilha de justiceiros. Amor, amor, vou te morder, te bater, te
matar. Teu querido semblante, nunca mais.
Consideramos, para o uso do pronome “tu” em português, que o discurso de
Elisabeth comporta vários planos enunciativos, segundo as diversas imagens de destinatário
construídas com sua narrativa. Assim como há momentos em que Elisabeth se assume como
narradora quase objetiva de sua história, colocando em cena os diálogos de que participou
ou que presenciou no passado, há momentos em que ela se detém, na descrição do que
concerne à sua relação com George Nelson, naquilo que os fatos representavam e
representam para ela subjetivamente. Nesses momentos, a estruturação dialogal é simulada:
não se trata de reproduzir um diálogo efetivamente havido, trata-se de eleger um
destinatário privilegiado à descrição dos fatos que afetaram a um dos dois ou a ambos. A
passagem da p. 9, cap. 1, é predominantemente descritiva dos sentimentos da personagem
para com George Nelson. Em outros trechos onde prevalece um discurso de rememoração há
uma estruturação semelhante. Usamos, nestes casos, a correspondência “tu”=“tu” ao
empreendermos a tradução para o português.
Além de apresentar vantagens para a tradução, pois o uso de “tu” desfaz as
ambigüidades com a 3
a
pessoa e com a 2
a
pessoa formal, tal pronome, por não ser de uso
corrente na maioria dos grandes centros urbanos brasileiros, contribui para a criação de um
espaço discursivo em intertextualidade com a poesia lírica tradicional, em que o ente amado
é alvo da evocação do poeta.
14
Usamos a mesma correspondência “tu”=“tu” para traduzir a passagem do 1
o
capítulo
em que Elisabeth se dirige imaginariamente a Nicolas, seu filho com George: “Meu pequeno
Nicolas, com quem te pareces? Teus olhos? São os olhos do amor perdido. Tenho certeza. É com o amor que
ele se parece, meu terceiro filho, moreno e esguio. (TLT-2, p. VII).
14 Mesmo em época mais recente, como em vários poemas de “Vaga Música” de Cecília Meireles (1
a
edição: 1942), a 2
a
pessoa é expressa pelo pronome tu
e pelas formas que lhe correspondem. (Cf. Meireles, 1958, p. 142 e seguintes).
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Limitamos o uso da correspondência “tu”=“tu apenas ao tratamento usado com estes
dois personagens. Comentaremos mais longamente tal correspondência depois de
abordarmos o tratamento de George Nelson para com Elisabeth.
Examinemos o seguinte trecho do cap. 28:
“— Vous ne connaissez pas ma famille, Elisabeth? Vous avez tort. Vous verrez comme nous nous
ressemblons, tous les trois, depuis qu'on nous a convertis au catholicisme, ma soeur, mon frère et
moi.” (TLO, c. 28, p. 128).
Neste trecho, estamos diante de um tratamento ambíguo do Dr. Nelson para com
Elisabeth, em estreita relação com passagens anteriores, pois no cap. 26 o tratamento “vous”
por parte de George, já aparece combinado com o nome “Elisabeth” e não com o sobrenome
precedido da forma de tratamento “Madame”. Na trama do romance, tal particularidade
talvez se interprete como uma influência da origem americana do Dr. Nelson, já que em
inglês a forma “you” é usada sem distinção de relações formais ou informais. Por isso mesmo a
diferença de uso entre “tu” e “vous”, para um americano, deve causar problemas de expressão.
Entretanto, a mudança de tratamento de “Madame Tassy “ para “Elisabeth” ganha outro sentido.
No cap. 26, diz George Nelson: “Est-ce que vous trouvez que j'ai l'air drôle, madame Tassy?” (p. 121, l.
75); e depois, neste mesmo capítulo: “De vos nouvelles, ma petite enfant...” (p. 122, l. 127); Je ne peux
rien pour vous, Elisabeth” (p. 123, l. 134); e finalmente: “Vous n'auriez pas dû dire cela, Elisabeth. Vous
n'auriez pas dû” (p. 124, l. 163).
A combinação do tratamento “vous” com “ma petite enfant” já introduz um tipo de
relação indefinida, pois se, por um lado, “vous” marca o respeito, e portanto, a distância social
e a formalidade, “ma petite enfant” anula a distância e a formalidade. E nas duas outras
passagens citadas misturam-se novamente marcas de formalidade e informalidade, pelo uso
de “vous” combinado com o uso do nome “Elisabeth”.
Tal mistura de tratamentos será comentada pela própria personagem Elisabeth no
cap. 27. Como primeira palavra deste capítulo, temos: “Elisabeth
. E em seguida: “Il m'a appelée
par mon nom. Pour la première fois. Je baisse ma tête pour cacher ma joie” (p. 125). E já no cap. 28, em
dois momentos: “un instant, il m'attire vers lui, il m'appelle “Elisabeth
”. Puis il me rejette aussitôt” (p. 127, l.
2-4). E nas linhas 24 a 27:
“Celui qui dit “le” table, au Iieu de “la” table, se trahit. Celui qui dit “la Bible” au lieu des “saints
Évangiles” se trahit. Celui qui dit “Elisabeth”, au lieu de “Mme Tassy” se compromet et compromet
cette femme avec lui. (p. 127-128, l. 24-27).
Ao dizer logo a seguir “un jour tu me diras “tu”, mon amour” (c. 28, p. 128, l. 53) a
personagem Elisabeth alude indiretamente ao tratamento vous, mas o tratamento pelo nome
de batismo faz prever uma aproximação maior, sem formalidades, entre os personagens.
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97
No TLT-l, o tradutor teve o cuidado de suprimir o nome próprio ao traduzir “Je ne
peux rien pour vous, Elisabeth” (TLO, c. 26, p. 123) por “Nada posso fazer pela senhora” (TLT-l, p. 118, c.
26). Conservou-o apenas na tradução do trecho da página 124: “Não devia ter dito isso, Elisabeth,
não devia”. (TLT-l, c. 26, p. 119). Entendemos que na opção do TLT-l o leitor interpretará o uso
de “a senhora” como uma volta à formalidade por parte do Dr. Nelson, uma vez que já havia
chamado Elisabeth de “pequena criança”. E verá no vocativo “Elisabeth” da p. 119 uma nova
intromissão da informalidade.
Nossa opção foi a de manter, a cada vez, o nome Elisabeth. A tradução do trecho da
pág. 123 que propomos é a seguinte: “Nada posso fazer, Elisabeth”.
15
Com isso, permitimos a
interpretação desse trecho como sendo a confirmação de um tratamento menos formal do
que aquele em que, anteriormente, George Nelson usa o vocativo “Mme Tassy”. Fazemos
assim, prever a informalidade dos capítulos seguintes.
A tradução do enunciado “Un jour tu me diras “tu”, mon amour” (c. 28, l. 53) — “Um dia me
tratará por “você”, meu amor” (TLT-l, p. 122) — torna-se incoerente tendo em vista a interpretação
possível de “Não devia ter dito isso, Elisabeth, não devia” (TLT-l, p. 118) como já contendo um uso do
tratamento informal. E também no parágrafo anterior, que foi traduzido assim em TLT-l: “Não
conhece minha família, Elisabeth? É pena. Veria como nós nos parecemos um com o outro, todos os três,
depois que nos converteram ao catolicismo, a mim, a minha irmã e a meu irmão. (TLT-l, p. 122). Para
evitar tal incoerência, em TLT-2 optamos por adaptar a tradução do enunciado da linha 53,
evitando a tradução direta do enunciado. Como o tratamento “tu” é a expressão da ausência
de barreiras sociais e de distâncias formais, no romance este tratamento será também o
símbolo da transgressão, pois segundo as regras sociais vigentes, as barreiras e distâncias
não poderiam ser abolidas. Transcrevemos abaixo o trecho correspondente em TLT-2:
Um dia estarás bem junto a mim, meu amor. Contarás que tua irmã Cathy ingressou no convento das
Ursulinas aos quinze anos. Falarás também de teu irmão Henry, jesuíta, pregador de retiros
espirituais persuasivos. (TLT-2, c. 28, p. LXVIII- LXIX)
Estamos conscientes de que tal tradução não é, provavelmente, a melhor possível.
Mas estaríamos cometendo um erro maior se traduzíssemos literalmente o enunciado inicial
desse parágrafo, misturando o tratamento do plano dialogal, (o pronome você
), com o
tratamento tu
do plano enunciativo no qual Elisabeth se dirige imaginariamente a George
Nelson. Como em nenhum outro momento da tradução do romance foi necessário fazer
adaptações maiores em virtude do uso do pronome tu
nas circunstâncias já expostas, cremos
15
A supressão pura e simples do pronome nos foi sugerida pela leitura de romances de José de Alencar,
principalmente O Tronco do Ipê. Neste romance, há uma passagem em que o narrador faz referência à não-
definição do tratamento através da terceira pessoa sem sujeito explícito como um comportamento voluntário de
seus personagens. (Cf. Alencar, 1958, v. III, p. 735).
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que nossa proposta permite uma interpretação mais próxima das intenções significativas do
narrador do TLO.
Mencionamos anteriormente passagens da narrativa de Elisabeth em que é usado o
pronome “vous” para referir-se a George Nelson, mesmo durante o período em que os dois
eram amantes. Isto ocorre já no capítulo 37, nas linhas 42 a 49, na maior parte do capítulo 39,
e ainda nos capítulos 45, p. 172-173, cap. 62, p. 233 e finalmente no 65, linha 71, e depois nas
linhas 91 a 98. Seria possível pensar que se trata, nos três primeiros desses capítulos, de um
monólogo interior do Dr. Nelson. Interpretamos tais passagens, no entanto, como sendo
produzidas pela visão de Elisabeth a respeito das preocupações do amante nos momentos
em que não estão juntos. E para significar a distância entre os dois e a dominância do
profissionalismo do doutor sobre os interesses amorosos faz uso, em tais momentos, do
pronome “vous”.
Em TLT-l essas passagens são traduzidas obedecendo à correspondência “vous” –
“você, igualando-as portanto às seqüências onde fez a correspondência “tu” – “você. De nossa
parte, empreendemos a tradução dos capítulos 38, 45 e 65, e de trechos do capítulo 37 para
verificar a possibilidade da correspondência “vous” – “o senhor”. Verificamos que, na tradução
do trecho do cap. 37, foi possível manter o verbo na 3
a
pessoa sem explicitar o pronome de
tratamento. A marca da distância entre os personagens foi introduzida apenas pelo vocativo:
“É preciso dormir, Dr.
Nelson (correspondente à linha 42, p. 153). No cap. 38 (TLT.-2, p. LXXXII)
tivemos de explicitar diversas vezes o pronome através do tratamento “o senhor”. Nesse
capítulo, Elisabeth se faz de intérprete do pesadelo que acomete o doutor, confundindo
algumas vezes em seu discurso sua própria visão sobre George enquanto médico, com a
visão que outros personagens manifestam sobre o mesmo. Ao dizer: “Ce merveilleux cheval noir
que vous avez, docteur Nelson” (linha 1) e “Voyez les parents pleurent d’émotion et de reconnaissance. On
vous aime infiniment”, Elisabeth se faz de porta-voz dos habitantes do condado sem que isso
deixe de ser a expressão de seu próprio discurso sobre o pesadelo.
No cap. 45, por outro lado, verifica-se que a narradora passa do vocativo em que se
encontra o tratamento formal na linha 64, “Dr. Nelson”, ao vocativo sem o título profissional,
“George Nelson”. Tal como anteriormente, trata-se da visão de Elisabeth sobre o que George
estaria pensando em sua ausência. A supressão do título profissional do segundo vocativo
acarreta, segundo nossa interpretação, uma diferença no grau de formalidade em português.
Por isso, a proposta do TLT-2 é a seguinte (TLO, p. 173, linhas 63-65, depois linhas 72-75) :
Um pedaço de mundo conhecido cede e desaba. (O senhor não tinha conhecimento desta sua
fraqueza, Dr. Nelson?) Ei-lo diretamente implicado, ligado ao destino desta terra [...] Nessa mesma
noite, George Nelson, você cederá às súplicas de Elisabeth. Conversará com Aurelie e a enviará a
Kamouraska em seu lugar. Um cansaço tão grande. (cf. TLT-2, p. XCIII).
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Do uso do tratamento “o senhor” passamos ao uso do pronome “você”, observando a
diferença de formalidade entre os dois vocativos. Na nossa tradução, procuramos manter as
diferenças de relação entre os diversos sujeitos destinatários construídos pela personagem
Elisabeth em seu discurso, divergindo da igualização operada pelo tradutor do TLT-l.
Como último exemplo de nossa proposta de tradução diferenciada para o
tratamento “tu” endereçado ao Dr. Nelson, segundo esteja incluído numa estruturação
efetivamente dialogal ou num discurso de rememoração monologal, transcrevemos o
seguinte trecho de TLO com a respectiva tradução de TLT-2:
TLO, cap. 34, p. 143-144, l. 51-63 :
— Elisabeth! Ce n'est qu'un cauchemar. Calme-toi, je t'en prie. Je ne veux pas que tu pleures sans
moi, que tu aies peur sans moi. Raconte-moi tout. Dis-moi tout. A quoi rêves-tu donc?
— À rien. Je t'assure. Ce sont tes malades qui me font peur. Un jour... C'est la peur qui nous perdra.
Nous arrachera l'un à l'autre...
— Qu'allons-nous devenir, George?
Cet air hagard sur ton visage, en guise de réponse. Ce tressaillement sur ta joue.
Nossa proposta:
— Elisabeth! É só um pesadelo. Acalme-se, por favor. Não quero que você chore em minha
ausência, que você tenha medo longe de mim. Conte-me tudo. Diga tudo. Com que estava
sonhando?
— Com nada. Sossegue. São os seus doentes que me metem medo. Um dia... O medo é que nos
arruinará, nos arrancará um do outro...
— O que será de nós, George?
A expressão desvairada em teu rosto à guisa de resposta. O tremor em tua face.
Resta-nos ainda examinar algumas passagens do monólogo interior do personagem
Jérôme e outras da personagem Elisabeth. No cap. 5, há três parágrafos que apresentam
dificuldades de tradução por causa dos pronomes que aí se encontram.
Nos 2
o
e 3
o
parágrafos do cap. 5 (p. 25) o narrador se coloca como intérprete das
sensações e do monólogo interior. Aí, a crise de falta de ar do final do cap. 2, juntamente com
a crise de desconfiança de Jérôme Rolland para com Elisabeth, é retomada e metaforizada
através da narração de um afogamento e suas conseqüências.
Neste cap. 5, o narrador refere-se ao personagem Rolland na 2
a
pessoa, utilizando o
pronome “vous” e o vocativo “Monsieur Rolland” como se estivesse dialogando com ele. Tal
procedimento é o mesmo que foi utilizado ao final do cap. 2 — e também dá margem à
interpretação em que Jérôme Rolland seria o enunciador dessas duas passagens, num jogo de
desdobramento do “eu”, em que se vê sob a ótica dos outros. Entretanto, também podemos
interpretar, nessas passagens, a intromissão do narrador que verbaliza as imagens que
praticamente invadem a mente do personagem.
175
100
Repetir “o senhor para traduzir cada pronome “vous” sujeito interferiria na elaboração
retórica do texto, voltado para a construção de uma cena imaginária que conjuga sensações e
sentimentos que integram a realidade do personagem. “O senhor” em português é uma marca
de formalidade mais saliente fonicamente que o “vous” do francês, tanto pela extensão quanto
pela intensidade, e por isso, optamos pela sua supressão, para ficarmos mais próximos do
encadeamento rítmico do texto francês. Assim, introduzimos modificações para que isto
fosse possível, como a tradução da voz ativa do enunciado “là où vous filez votre dernier coton,
monsieur Rolland” por uma voz passiva construída com o pronome se
.
Transcrevemos a seguir os dois parágrafos do TLO e a sua respectiva tradução:
TLO, c. 5, p. 25:
Monsieur Rolland, ce n'est pas encore Ia mort. Et voyez pourtant quelle noyade. La fatigue vous
recouvre d'une Iongue lame, épaisse, lourde, roule sur vous son large, lourd mouvement. Vous
couche sur le sable, sans force, épuisé, goûtant le sel et la vase, quasi sonore de douleurs. De par
tout le corps une telle exaspération. La douleur reconnaissable, sonnant juste sous l'ongle, à fleur de
peau. À votre chevet votre femme a repris sa solitude.
Il faudrait la rappeler, cette femme, sans tarder. La ramener sur l'étroite margelle de ce monde, là ou
vous filez votre dernier coton, monsieur Rolland. Vous ne pouvez rester seul ainsi, c'est intolérable,
cette angoisse, cette mince passerelle. Vous n’avez que juste l’espace d’y hisser de force une
personne vivante qui vous accompagnera encore un petit bout de chemin. Il faut l'appeler. Vite.
TLT-2, c. 5, p. XVI:
Senhor Rolland, ainda não é a morte. Veja, no entanto, que mergulho. O cansaço o recobre como
uma enorme vaga, espessa, pesada, que se desdobra em largo e pesado movimento. Deixa-o
deitado sobre a areia, sem forças, esgotado, sentindo o gosto do sal e do lodo, num frêmito de
dores. Imensa exasperação por todo o corpo. A dor reconhecível, latejando sob as unhas, à flor da
pele. À cabeceira da cama, sua mulher retoma sua solidão.
É preciso chamar logo essa mulher. Trazê-la para a borda do poço deste mundo, onde se tece o seu
último fio, Senhor Rolland. Não pode ficar sozinho assim, é intolerável essa angústia, essa estreita
passarela. Resta-lhe o espaço para içar à força apenas uma pessoa viva, que vá acompanhá-lo no
caminho que ainda lhe resta. É preciso chamá-la. Depressa.
No 1
o
parágrafo da p. 26, ainda no cap. 5, onde o discurso já deixou de ser
metafórico, o pronome que se refere ao personagem de Jérôme Rolland passa a ser “nous”, que
ganha assim um status de enunciador de seu monólogo interior. O pronome “nous” nos
parece uma característica do discurso de Jérôme, acostumado, pelas suas funções de tabelião,
a utilizar o plural de majestade para referir-se a si próprio. Em oposição aos dois parágrafos
acima citados, este parágrafo da p. 26 acentua os pronomes, em posição tônica nos
enunciados onde ocorrem. Transcrevemos abaixo o trecho em questão, com a respectiva
tradução, onde mantemos o pronome “nós” e demais formas da 1
a
pessoa do plural com o
intuito de sermos fiéis a nossa leitura do TLO:
TLO, c. 5, p. 26:
Il faudrait avoir la santé de violer cette femme. La ramener de force avec nous, sur le lit conjugal.
L'étendre avec nous, sur notre lit de mort. L'obliger à penser à nous, à souffrir avec nous, à partager
176
177
178
101
notre agonie, à mourir avec nous. L'insaisissable qui est notre femme, notre beauté corrompue. La
convaincre du péché, la prendre en flagrant délit d'absence.
TLT-2, c. 5, p. XVI-XVII:
Seria necessário ter saúde para violar essa mulher. Trazê-la à força para o leito conjugal. Estendê-la
conosco, em nosso leito de morte. Obrigá-la a pensar em nós, a compartilhar nossa agonia, a morrer
conosco. Inatingível como ela é, essa mulher, nossa beleza corrompida. Dar-lhe provas de seu
pecado, pilhá-la em flagrante delito de ausência.
Embora este último exemplo esteja fora do enunciativo alocutivo, introduzimo-lo
aqui para contrastá-lo com os exemplos anteriores, mostrando como levamos em
consideração, em nossa tradução, os diferentes enunciadores e a organização discursiva
predominante.
O discurso da personagem Elisabeth, como vimos, dirige-se em vários momentos
da narrativa a outros personagens do romance. Nos trechos onde isso não acontece, com o
uso do pronome “vous”, o discurso de Elisabeth constrói, por vezes, destinatários não
imediatamente identificáveis. Entretanto, sua narrativa se apresenta, em determinados
momentos, como um depoimento prestado diante de um júri imaginário, sendo através do
pronome “vous” que o leitor é chamado a compartilhar deste papel. No 1
o
catulo os trechos
são os seguintes:
TLO, p. 9-10, l. 93-95 e l. 116:
Saine et sauve, puisque je vous
dis que je suis saine et sauve. Après un tel enfer. L'épreuve de
l'horreur sur une chair incorruptible. Voyez
vous-même? La salamandre. [...]
Cherchez
bien le père du troisième fils.
TLT-2, c. 1, p. VI- VII:
Sã e salva, estou dizendo que estou sã e salva. Depois daquele inferno. A prova do horror para uma
carne incorruptível. Vocês estão vendo? A salamandra. [...]
Procurem bem o pai de meu terceiro filho.
Enquanto TLT-l traduziu “vous” por “você”, preferimos a tradução “vocês” para marcar
a referência do pronome como distinta do pronome "tu" através do qual Elisabeth se dirige
imaginariamente a George Nelson. Além disso, neste primeiro capítulo, é possível identificar
outros destinatários que as formas de 2
a
pessoa do plural estariam representando, como os
membros da sociedade que Elisabeth desejaria desafiar.
No cap. 19, quando ocorre uma interrupção na rememoração de Elisabeth, que
reassume provisoriamente a identidade de Sra. Rolland, esta se dirige novamente a uma 2
a
pessoa expressa por “vous” que designaria aqueles que a julgam, tanto na realidade
quotidiana (os habitantes de Quebec), quanto na realidade onírica (o júri imaginário),
incluindo ainda o próprio leitor: “Devenir veuve à nouveau. Vous chercheriez en vain. Contre celui-ci je
n'ai jamais péché. Je suis innocente”. (TLO, p. 94) .
179
180
102
Para conservar o pronome “vocês” neste trecho foi necessário descobrir os implícitos
do enunciado “vous chercheriez en vain”, que, traduzido literalmente por “Vocês procurariam em vão”,
não corresponde ao que usualmente se diria para advertir alguém sobre a inutilidade de uma
ação. Com efeito, em francês está implícita a hípótese que se combina com o enunciado no
modo condicional: “Vous chercheriez en vain” pressupõe algo como “si vous vouliez trouver”. A
tradução por “Não adianta procurar excluiria a referência clara a uma 2
a
pessoa. Por isso
propomos traduzir a seqüência citada assim: “Ficar viúva outra vez. Vocês podem procurar. Contra
este eu nunca pequei.
Em “vocês podem procurar está implícita não apenas a dependência de uma condição
como em francês (aqui, seria algo como “se quiserem achar alguma coisa”) mas também a negação
da expectativa que o destinatário normalmente teria ao procurar — expressa em francês pela
locução adverbial “en vain”.
Em outras passagens em que Elisabeth utiliza a fórmula de insistência “Puisque je
vous dis que...” (cap. 19, p. 92, cap. 58, p. 214) não traduzimos o pronome, dispensável em
português. Esta fórmula corresponde a “Estou dizendo que...” e implica a existência de um
interlocutor, isto é, de uma 2
a
pessoa.
No cap. 65, o último, há uma forma de imperativo que também se dirige a um
interlocutor não identificado: “Voyez comme George Nelson me charge?” (p. 248) traduzido por
“Vejam como George Nelson me acusa” (TLT-2, p. CVIII), onde mantivemos o plural, seguindo o
que já havíamos feito anteriormente.
De tudo o que já examinamos a respeito da tradução das marcas do comportamento
alocutivo, temos a dizer que a igualização operada em TLT-l, que se poderia qualificar num
primeiro momento de “má” tradução de pronomes, afeta a estruturação enunciativa do
romance, pois em certos momentos faz confundir a 2
a
com a 3
a
pessoas (como no exemplo
da página 5 de TLO). Em outros momentos, anulando as diferenças de relacionamento
construídas entre dois personagens, afeta também a estruturação narrativa, onde se
desenvolvem tais relações. A má tradução, como já verificamos, produz incoerências: TLT-l
combina títulos profissionais, como Dr. Nelson, com o tratamento você (como em outros
momentos combina Sra. Rolland com você — cap. 6, p. 31, l. 35).
Comparativamente, buscamos, em TLT-2, ser coerentes. Apesar de TLO apresentar
uma diferenciação bipartida para a 2
a
. pessoa (“tu” - “vous” ), os diversos momentos do discurso
de Elisabeth comportam uma diferenciação tripartida, segundo nossa interpretação, o que
permitiu a tradução de “tu” ora por tu ora por você; e a de "vous" por o senhor e raramente por
você ; e quando se dirigia a destinatários não claramente identificáveis, optamos por traduzir
"vous" por vocês.
181
103
Para a coesão textual de TLT-2 importa que, por um lado, o leitor possa identificar
facilmente o referente de tu, você, o senhor. Por outro lado, a cada surgimento de tu, que o
leitor possa recriar relações diferentes, entre enunciador e destinatário, daquelas que são
possíveis com os demais tratamentos presentes no texto.
Procuramos demonstrar como as correspondências entre os pronomes do francês
com os do português dependem não só da relação entre os personagens, mas também das
relações que se estabelecem entre as diversas partes do texto e das relações intertextuais.
4.1.2 – Tradução das formas de tratamento
Além dos pronomes pessoais propriamente ditos, cumpre-nos examinar as formas
de tratamento, quer sejam usadas isoladamente, quer sejam usadas acompanhando o
sobrenome.
Verificamos que em TLT-l houve uma diferenciação na tradução dessas formas,
segundo ocorram isoladas ou não. Quando precedem o sobrenome, o tradutor
convenientemente obedeceu à correspondência “Monsieur - Senhor, “Madame” - Senhora,
“Mademoiselle” - Senhorita. Quando ocorrem isoladamente, o tradutor preferiu manter em
francês as formas “Madame” e “Mademoiselle”, traduzindo apenas as ocorrências de “Monsieur”.
Verificamos que o uso isolado dessas formas é uma das características do discurso
dos serviçais dirigindo-se ou referindo-se aos patrões. E isso, mesmo quando tais
personagens aparecem no plano ficcional criado pelo delírio de Elisabeth, como no cap. 6,.
quando Florida conclama a população de Sorel:
Oyez! Braves gens, oyez! Monsíeur se meurt. C'est Madame qui l'assassíne. Venez. Venez tous.
Nous passerons Madame en jugement. Nous passerons Madame à Ia casserole comme un lapín
qu'on fend au couteau dans toute sa longueur. (p. 32, l. 69-71)
No TLT-l a tradução é a seguinte:
Escute, boa gente. O patrão está morrendo. É Madame que o está assassinando. Venham. Venham
todos. Submeteremos Madame a julgamento como a um coelho que se corte ao meio com uma faca.
(p. 28).
Propomos no TLT-2:
“Atenção! Boa gente, atenção! Meu patrão está morrendo. É a patroa que está matando ele.
Venham. Venham todos. Vamos levar miriha patroa a julgamento. Vamos levar minha patroa pra
panela como se fosse um coelho aberto a faca. (TLT-2 , c.6, p. XXIV)
Embora em português se use o tratamento a madame para referir-se à dona de casa,
à patroa, não optamos por esta forma aqui. A proximidade “Monsieur” -”Madame” no TLO forma
o par masculino-feminino do mesmo tratamento, mantido na tradução em patrão - patroa.
O tratamento Madame, em TLT-l, constitui um estrangeirismo pois o
aportuguesamento desta forma a faz vir precedida do artigo: a madame. É justamente esta a
182
183
104
tradução que consideramos conveniente para "Madame" quando Aurélie se dirige a Elisabeth.
Exemplificando: “— Par ici, si Madame veut bien se donner la peine de me suivre...” (TLO, cap. 16, p.
81); "-Por aqui, se Madame quer fazer o favor de seguir-me..." (TLT-l, cap. 16, p. 77); "-Por aqui, a madame
faça o favor de me seguir..." (TLT-2, cap. 16, p. XLVI).
E também no cap. 30:
II faut que Madame se regarde bien en face. [...] Je vais coiffer Madame pour le bal. Madame doit se
rendre compte par elle-même. (TLO, p. 133-134, I. 25-28).
É preciso que Madame possa contemplar-se bem de frente. [...] Vou penteá-la para o baile. Madame
poderá julgar por si mesma. (TLT-1, p. 129).
É pra madame se olhar bem de frente. [...] Vou pentear a madame para o baile. A madame vai ver
só. (TLT-2, Anexo, p. LXXI).
Conservar "Madame" como em TLT-l faz com que o discurso de Aurélie seja
incoerente com o que é dito acerca desta personagem. A linguagem de Aurélie é assim
descrita por Elisabeth no cap. 22: “Tout un langage incohérent, haletant, impudent et cru” (p. 103, l. 20).
E, no final deste capítulo, um exemplo dessa linguagem: “C'est pas la peine d'avoir tant honte pour si
peu. Mieux vaut être pincée que de pas avoir d'homme du tout.” (p. 105).
Determinadas particularidades do discurso de Aurélie, como a supressão da
negação “ne e a supressão da preposição “de” ligando “tant” a “honte” e introduzindo o infinitivo
depois de “mieux vaut” são marcas de uma variante lingüística considerada “popular”.
16
Para
que a tradução seja fiel ao sentido que “Madame” adquire no discurso de Aurélie é preciso,
paradoxalmente, preferir a forma aportuguesada.
Nos grandes centros urbanos brasileiros só os empregados domésticos que querem
afetar conhecimento do francês utilizam o tratamento “Madame”. Isto implica um grau de
sofisticação cultural incompatível com as qualificações ligadas a Aurélie Caron em
Kamouraska, sendo preferível portanto o tratamento a madame para marcar seu
relacionamento com Elisabeth.
Em nossa proposta acentuamos a variante popular usada por Aurélie através da
contração “pra” correspondente a para a, e através do uso da próclise e da repetição de “a
madame” (evitada em TLT-l). A respeito disso, o trecho correspondente em TLT-l, além de ser
incoerente pelo uso de “Madame”, também o é pelas escolhas lexicais para traduzir “se
regarder” e “se rendre compte”: “contemplar-se” e “julgar”, bem como a ênclise pronominal, fazem
com que o texto em português seja interpretado como pertencente a uma variante lingüística
mais culta do que a do texto em francês.
No cap. 30 temos ainda o seguinte exemplo:
16
Cf. Guiraud, Pierre (1986) p. 63 e 70.
184
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Madame a reçu le coup de poing de Monsieur dans le côtê. Je l'ai vue toute pliée en deux de
douleur. Monsieur est tout de suíte sorti de Ia maison [...] Monsieur répétait: “Je t’interdis d'aller à ce
bal. Je t'interdis...” (TLO, p. 135, I. 69-73).
Madame recebeu um murro do patrão na costela. Eu a vi dobrar-se de dor. O patrão saiu logo de
casa [...].O patrão dizia: “Proíbo você de ir a esse baile. Proíbo...” (TLT-1, p. 130).
A madame levou um soco do patrão nas costelas. Eu vi quando ela ficou toda encolhida de dor. O
patrão saiu logo de casa pra não ser pego. Quando ele passou pela porta estava praguejando e
repetindo: “Eu te proíbo de ir a esse baile. Eu te proíbo.” (TLT-2, c. 30, p. LXXII )
Preferimos mudar, em TLT-2, o pronome de tratamento correspondente a “Monsieur.
Usamos em seu lugar, entretanto, um substantivo que implica a relação do personagem
Antoine com Aurélie. Como a repetição de “Monsieur contribui para caracterizar a variante
oral, repetimos a designação “o patrão” com este mesmo objetivo.
Ainda sobre esse exemplo, há uma observação a fazer a respeito do tratamento de
Elisabeth por parte de Antoine. Como já dissemos anteriormente, obedecemos à
correspondência entre “tu e você na tradução dos diálogos. Entretanto aqui, seguir a solução
de TLT-l equivaleria a adotar uma maneira artificial de expressar o ato de proibição no
português dos centros urbanos brasileiros. Os falantes brasileiros que usualmente se servem
do tratamento você muitas vezes preferem as formas oblíquas correspondentes ao tu. O usual
é que o comunicante diga justamente “Eu te proíbo” quando deseja reforçar o contrato de
autoridade com o interpretante, projetando-se como um enunciador autoritário e criando a
imagem de um destinatário suscetível de intimidar-se e submeter-se.
Ainda a respeito da tradução de “Madame e “Monsieur”, no cap. 35 encontra-se o
seguinte trecho:
— Ignace, me voici propre, comme si je sortais de confesse. Préviens Madame.
Ignace regarde Antoine d'un air hébété. Il récite sa leçon bien apprise, en tremblant de tout son corps
transi de peur.
— Madame est partie, toutes les dames de la maison aussi et les enfants avec... (TLO, p. 145, 146, l.
22-27).
Em TLT-l temos:
— Ignace, estou limpo [...]. Avisa minha mulher. [...].
— Madame partiu, todas as senhoras da casa também e as crianças com...[sic] (p. 141)
Nossa proposta em TLT-2:
— Ignace, estou limpo [...]. Mande chamar a madame. [...]
— A madame partiu, todas as outras senhoras foram junto e levaram as crianças...(TLT-2, p. LXXV)
O discurso de Antoine, neste momento, antecipa a forma de tratamento usada pelo
criado, melhor do que “minha mulher” do TLT-l.
O tratamento “Mademoiselle” foi, em algumas passagens, mantido em francês pelo
tradutor de TLT-l. Examinemos os exemplos:
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Me voici seule dans le petit lit ridicule de Léontine Mélançon, institutrice des enfants. Mademoiselle,
depuis hier, dort sur un sofa dans la chambre d'Anne-Marie. […] Expédions les enfants pour la
journée. Anne-Marie et Eugène chez la tante Églantine qui les a invités, Mademoiselle les
accompagnera. (Cap. 6, p. 30 e p. 35, l. 4-6 e l. 167-169).
Em TLT-l temos as seguintes traduções:
Eis-me sozinha na pequena e ridícula cama de Léontine Mélançon, instrutora das crianças.
Mademoiselle, desde ontem, está dormindo num sofá, no quarto de Anne-Marie. (C. 6, p. 31).
O leitor brasileiro dificilmente identificará de imediato “Léontine Mélançon” e
“Mademoiselle” como co-referentes. Ainda mais porque “Mademoiselle” não corresponde, em
português, à mesma realidade cultural a que se refere em TLO. Em portugs, o francesismo
“Mademoiselle” é apenas identificado como sendo o tratamento à mulher solteira em francês.
No TLO, “Mademoiselle, na passagem do cap. 6, é uma espécie de fórmula de tratamento
dispensada à professora enquanto tal. Propomos então as seguintes traduções para estes dois
trechos do cap. 6 em que evitamos os francesismos:
Aqui estou, sozinha na caminha ridícula de Leontine Melançon, a professora das crianças. A
senhorita Leontine dorme, desde ontem, num sofá do quarto de Anne-Marie. [...]
Determino como as crianças passarão o dia. Anne-Marie e Eugene estão convidados para ir à casa
da tia Eglantine. A professora os acompanhará. (TLT-2, p. XXII e XXVIII )
A designação “professora do início do capítulo foi retomada ao final para designar a
mesma personagem, traduzindo “Mademoiselle, que, se conservada em francês ou se traduzida
simplesmente por "a senhorita", não seria interpretável pelo leitor brasileiro.
No cap. 11 o tradutor de TLT-1 manteve o francesismo ao traduzir “En ce temps-là on
vous appelait “Mademoiselle” gros comme le bras” (p. 62). Contraditoriamente, ao traduzir uma
passagem no cap. 12 optou pela tradução “a senhorita”, demonstrando sua falta de critério
habitual em manter a coerência discursiva.
Com estas observações encerramos nossa crítica à tradução dos pronomes e formas
de tratamento que marcam o comportamento a1ocutivo ao longo do romance, e que,
acreditamos, constituem dificuldades para o tradutor. Procuramos explicitar nossos critérios
segundo o papel dos personagens que “contracenam” nos dialogos e segundo os contratos
que os unem. Não esgotamos,. com isso, as marcas do comportamento alocutivo, pois as
formas do imperativo também caracterizam tal comportamento, e determinados verbos
também aí se incluem. Ativemo-nos, no entanto, às formas pronominais porque
demandaram maior esforço decisório de nossa parte ao traduzirmos o texto.
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107
4.2 - Componentes do enunciativo elocutivo
As concepções de Benveniste sobre a enunciação estão expostas não apenas no
artigo citado no início deste capítulo, mas também no artigo “L'appareil formeI de l'énonciation”
publicado pela primeira vez em 1970, e incluído posteriormente em seu livro de 1974. Os
trechos abaixo nortearão nossa crítica à tradução de formas lingüísticas que marcam o
comportamento elocutivo:
Assim, em cada língua e a cada momento aquele que fala apropria-se do eu que, no inventário das
formas da língua, é apenas um dado lexical como qualquer outro, mas que, posto em ação no
discurso, aí introduz a presença da pessoa sem a qual não há possibilidade de linguagem. [...]
A presença do locutor em sua enunciação faz com que a instância de discurso constitua um centro de
referência interna. Esta situação vai manifestar-se por um jogo de formas específicas cuja função é
colocar o locutor em relação constante e necessária com sua enunciação. (Benveniste, 1974, p. 81-
82).
A este jogo já nos referimos ao abordar a tradução do enunciativo alocutivo, no que
diz respeito aos pronomes pessoais. Mas ao lado dos pronomes, Benveniste cita os
numerosos índices de ostensão (índices do ato de mostrar), quais sejam os demonstrativos e
os advérbios de lugar tipo aqui, ali etc.
As formas
temporais da língua também se determinam com relação ao enunciador,
segundo Benveniste, para quem a forma axial é o presente
, que coincide com o momento de
enunciação: “O presente formal não faz mais do que explicitar o presente inerente à enunciação.” (Benveniste,
1974, p. 83).
Após mencionar como o enunciador se serve da língua para influenciar seu
“alocutário” (o que não nos interessa especificamente neste ponto de nosso estudo),
menciona a asserção como a manifestação mais comum da presença do locutor na enunciação”
(Benveniste, 1974, p. 84). À asserção, que visa comunicar uma certeza, opõe as modalidades
que indicam incerteza, possibilidade, indecisão etc. Refere-se também às modalidades que
marcam atitudes do enunciador sobre o que está enunciando.
Na presente seção, comentaremos justamente alguns equívocos de TLT-l na
tradução de formas lingüísticas que dependem da interpretação das relações espaciais,
temporais e modais entre o enunciador e aquilo a que está se referindo em sua enunciação —
que, portanto, caracterizam o comportamento lingüístico elocutivo.
Comentaremos igualmente componentes do aparelho
retórico que podem ser
interpretados como estando a serviço do comportamento elocutivo
: assonâncias, comparações
e metáforas que manifestam uma visão subjetiva do EU-enunciador a respeito do ELEx (o
assunto, objeto de seu discurso).
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4.2.1 – Crítica à tradução dos dêicticos e dos anafóricos
Os pronomes demonstrativos, tanto em português quanto em francês, podem ser
dêicticos ou anafóricos. Os dêicticos são usados para marcar o ato de mostrar um objeto do
mundo referencial em relação de proximidade maior ou menor com o EU-comunicante. Os
anafóricos são usados para marcar a retomada, num ato discursivo, de uma referência que se
encontra em relação de proximidade com este ato.
Em português, os pronomes demonstrativos formam um sistema ternário, onde
"este" indica um objeto próximo do EUc, "esse" um objeto próximo do TUi, e "aquele" um
objeto distante de EUc e TUi. Em francês, os demonstrativos podem vir combinados com as
partículas “-ci” e “-là”, e neste caso, formam um sistema binário: por exemplo, “celui-ci” indica o
objeto próximo ao EUc (ou, se anáfora, o componente discursivo mais próximo), e “celui-lào
objeto afastado do EUc, que pode ou não estar próximo do TUi (ou, na anáfora, o
componente discursivo mais distante numa série de dois). Mas esta distinção só ocorre
quando se constrói, no discurso, um contraste entre dois componentes discursivos. É mais
freqüente o demonstrativo empregado sem as partículas adverbiais, indicando
indiferentemente a proximidade ou o afastamento de um objeto do mundo referencial ou de
um componente discursivo.
Assim, a função discursiva do demonstrativo, em francês, é a de marcar o ato de
apontar sem especificar o grau de proximidade. Só passa a localizar mais especificamente
quando acompanhado de “-ci” e “-là.
É claro que, para traduzir-se um texto trancês em português, será necessário
interpretar a localização do objeto apontado através de outros componentes do texto, já que
em português o demonstrativo implica a especificação de uma localização próxima ou
afastada.
Os advérbios de lugar nas séries "aqui, ali, aí" e "cá, lá, acolá" são dêicticos: "aqui" e
"cá" apontam o lugar onde se encontra o EUc ao produzir seu discurso (no texto ficcional,
aponta o lugar onde se encontra ficcionalmente o personagem ao produzir seu discurso);
"ali" indica o lugar que se encontra a uma certa distância do EUc (ou do personagem), mas se
interpreta como estando dentro de seu campo de visão; "lá" e "acolá", o lugar que se encontra
a uma certa distância e fora do campo de visão do EUc (ou do personagem); e finalmente,
"aí", o lugar que se encontra junto ao TUi (ou junto ao personagem que contracena com o
enunciador).
Em francês, “ici” corresponde a aqui ou . Mas o advérbio “là”, do francês, tanto pode
corresponder a "aí" quanto a ali ou . A distinção “ici-là” baseia-se na oposição binária perto-
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longe com relação ao EUc, mas “là” também pode indicar uma proximidade ao TUi. Há ainda
o advérbio “là-bas” que segundo o contexto, ora corresponde a ora a ali.
Tal como assinalamos a respeito dos demonstrativos, a tradução mais conveniente
depende da interpretação apropriada da rede coesiva construída pelo TLO. Examinaremos a
seguir trechos do TLO onde a má interpretação das relações de localização aí presentes pode
acarretar uma tradução inadequada.
4.2.1.1- Tradução dos dêicticos adverbiais
A tradução do advérbio “ici” não deveria causar problema, já que corresponde às
formas do português aqui ou . No entanto, encontramos um exemplo em TLT-l onde o
tradutor alterou a correspondência que deveria ser mantida:
Le cabinet de toilette de ma mère. On étouffe ici. Cette odeur de renfermé. J'ai Ia nausée. L'étoffe
verte de Ia coiffeuse s'effiloche. La vraie vie est ailleurs, rue du Parloir, au chevet de mon mari. (TLO,
c. 30, p. 133).
O quarto de toilete de minha mãe. A gente sente-se abafada ali
. Esse cheiro de quarto fechado. [...]
(TLT-1, p. 128).
Com o emprego do advérbio “ici”, a narradora marca o seu desdobramento:
enquanto personagem, está no quarto de vestir de sua mãe, em Sorel; enquanto narradora,
tem consciência de que “la vraie vie est ailleurs”. O efeito de sentido do advérbio “ici” neste trecho
só poderia ser traduzido convenientemente pelo advérbio aqui. (cf. TLT-2, c. 30, p. LXXI )
Não encontramos nenhum outro exemplo em que “ici” não tenha sido traduzido de
maneira adequada.
A tradução de “là”, como já dissemos, varia de acordo com a relação espacial
construída pelo discurso, entre o EUc e o que está sendo localizado. No cap. 26, encontramos
uma ocorrência da tradução de “là” por em TLT-l: “Hors de ce monde, si vous le désirez. C'est là
que je vous donne rendez-vous.” (TLO, c. 26, p. 123); Irei para fora deste mundo se quiser. É lá que me
encontrarei com o senhor.” (TLT-l, p. 118); “Fora deste mundo, se assim o desejar. É lá que o espero.” (TLT-
2, p. LXVI). Tanto para a personagem Elisabeth quanto para o personagem a quem se dirige,
o local “fora deste mundo” é distante e fora do campo visual. A tradução pelo advérbio é
portanto adequada.
No cap. 6:
Dévorée, déchiquetée par les cauchemars. L'épouvante se lève comme un orage! Un homme plein de
sang git à jamais dans la neige. Je le vois là! Son bras dur, levé, tendu vers le ciel! Ah, Jérôme, mon
mari. J'ai si peur! (TLO, c. 6, p. 30).
Devorada, dilacerada pelos pesadelos. O terror surge como uma tempestade! Um homem cheio de
sangue jaz para sempre na neve. Vejo-o lá! O braço gelado, duro, levantado, estendido para o céu.
(TLT-1, p. 26).
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110
Devorada, despedaçada pelos pesadelos. O terror se ergue como uma tempestade! Um homem
ensangüentado jaz para sempre na neve. Ele está ali
! Seu braço gelado, endurecido, levantado,
estendido para o céu. Ah, Jerome, meu marido, tenho tanto medo! (TLT-2, p. XXII).
A tradução de “là” por afasta a personagem da cena descrita. Entretanto, segundo
o que se pode interpretar deste trecho, Elisabeth é tomada, em sonho, pela visão de Antoine
assassinado — a personagem está portanto assistindo
à cena. Neste caso, consideramos que o
advérbio ali aproxima a cena da personagem, justificando o terror que passa a dominá-la.
Exemplos em que “là” foi traduzido por ali:
“Mme. Rolland est à cent lieues de là
, perdue dans la contemplation de son poignet de dentelle droit.
(TLO, c. 5, p. 25); “A Sra. Rolland está a cem léguas dali
, perdida na contemplação de seu punho de renda
direito.” (TLT-l, p. 22).
Neste enunciado, o enunciador é o narrador onisciente, que está contando o
desenrolar de uma cena entre o Sr. e a Sra. Rolland. Supõe-se pois que o narrador esteja
numa posição de observador próximo, pois é até capaz de deixar aflorar em sua narrativa o
monólogo interior dos personagens. E o advérbio ali traduz convenientemente a localização
da cena, construindo-a como ficcionalmente distante do narrador e do leitor, mas no campo
de visão de ambos.
No cap. 32:
“Je parviens avec peine à enlever mon manteau de fourrure, à me dégager des écharpes de laine.
Puis, je reste là
, n'osant pas bouger. (TLO, c. 32, p. 138); “Consigo com dificuldade tirar o manto de pele e
desembaraçar-me das écharpes de lã. Fico ali
não ousando mexer-me.” (TLT-l, c. 32, p. 133).
Neste capítulo, trata-se da chegada de Elisabeth ao local da festa de Saint-Ours. Ela
e o Dr. Nelson chegam molhados, depois de todos os demais convidados. O advérbio ali
traduzindo “là marca o desdobramento narradora - personagem. Apesar de narrar os
acontecimentos no presente, a narradora se
revivendo a cena de Saint-Ours. Não a
descreve do ponto de vista da personagem que está em cena, mas do ponto de vista de
alguém que estivesse assistindo a uma certa distância.
No cap. 49:
La neige. Ce n'est pas encore Ia fin du monde. Ce n'est que Ia neige. La neige à perte de vue,
comme un naufrage. Me voici à mon poste, derrière le voilage de Ia fenêtre de ma chambre. La rue
Augusta est là
, toute blanche, à mes pieds. [...] Extralucide, on m'a placée pour que je voie tout,
que j'entende tout. M'arrachant à Ia rue du Parloir, à Québec, au moment où mon mari... Comme si
mon devoir le plus urgent, ma vie Ia plus pressante, était de me tenir là, derrière une vitre, à Sorel, le
temps que s'assourdisse tout à fait le souffle rauque de Jérôme Rolland. (TLO, c. 49, p. 184)
[...] Eis-me em meu posto detrás da janela do quarto. Ali
está, a meus pés, toda branca, a Rue
Augusta. [...] Translúcida [sic], colocaram-me ali
para que eu veja e compreenda tudo. Arrancando-
me da Rue du Parloir, em Quebec, justamente no momento em que meu marido... Como se meu
dever mais premente na vida fosse permanecer ali, por detrás de uma vidraça, em Sorel, para deixar
de ouvir a respiração rouca de Jérôme Rolland. (TLT-1, p. 181).
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A tradução da primeira ocorrência de “là” por ali, no trecho acima leva em conta a
situação convenientemente: da janela do quarto Elisabeth vê a Rua Augusta, distante alguns
metros. Em seguida, é a própria narradora que se situa em Sorel: “Extralucide, on m'a placée là
pour que je voie tout, que j'entende tout. M'arrachant à Ia rue du Parloir, à Québec [...]” Entretanto, o agente
da ação de “placer” é o mesmo de “arracher”: tendo sido arrancada da Rua do Parlatório, foi
colocada na casa da Rua Augusta.
É, portanto, enquanto Sra. Rolland, enquanto narradora, que o deslocamento
ocorreu, e seu ponto de observação passa a ser o mesmo de vinte anos antes, de onde ela
imaginou, na época, tudo o que estaria acontecendo com Aurélie, e, posteriormente, com
George, nas viagens que uma e outro fizeram a Kamouraska. Assim sendo, a tradução
adequada de “là” seria aqui, nas duas últimas ocorrências no trecho acima. (cf. TLT-2, c. 49).
Exemplo de tradução adequada de “là” por aqui: “Docteur Nelson, je suis là
. Vous ne me
demandez pas de mes nouvelles?” (TLO, c. 26, p. 122); “Dr. Nelson, estou aqui
. O senhor não pede notícias
minhas?” (TLT-l, p. 117). Enquanto em francês o enunciador usa o advérbio “là” para exprimir
sua posição de proximidade ao destinatário, em português não é possível o uso do advérbio
com este fim (salvo no dito popular “Estamos aí”, usado para indicar adesão do
enunciador com o destinatário). Assim, a tradução de “là” neste trecho de discurso direto da
personagem Elisabeth só poderia ser aqui.
4.2.1.2- Tradução de demonstrativos
Antes de abordar a questão da tradução, a confissão de um problema: enquanto
falante do português, a responsável por este estudo tomou consciência de que, para ela, é
indiferente usar este
ou esse e suas respectivas flexões. Isto significa que, enquanto tradutor
de TLT-2, teve de adotar um critério baseado numa competência que já não é a sua. Para
tanto, consultou compêndios que pudessem nortear o seu trabalho.
Assim, de maneira geral, foi utilizada a forma este (e flexões) para indicar aquilo que
está perto da pessoa que fala ou para retomar um componente discursivo próximo. Mas
quando é possível interpretar-se, da parte do enunciador, “uma atitude de desinteresse ou de
desagrado” (cf. Cunha, 1984, p. 324), utilizamos a forma esse (e flexões) nestas mesmas
circunstâncias. Há ainda, na tradução do francês para o português, casos em que
simplesmente é possível substituir o demonstrativo pelo artigo definido.
Examinaremos várias passagens do TLT-1, inadequadas às relações espaciais
construídas ao longo do TLO. Começando por um trecho do cap. 1:
“Mais ni Mme. Rolland, ni les enfants n'allèrent à la campagne, cet été-là.” (TLO, c. 1, p. 7);
“Mas nem ela nem os filhos foram para os campos nessa ocasião”. (TLT-1, p. 3).
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O tempo verbal pelo qual se inicia a narração é o chamado passé simple, que
estabelece uma distância temporal e um corte entre o que está sendo narrado e o ato de
narrar. A tradução mais conveniente para “cet été-là” é a que se baseia na interpretação do
demonstrativo em seu emprego dêictico: o narrador se refere a um verão passado, a respeito
do qual ele escreve no passé simple, logo, “cet été-là” deveria ser traduzido por “naquele verão” (cf.
TLT-2, c. 1, p. III).
Ainda no cap. l:
“Son mari allait mourir et elle éprouvait une grande paix. Cet
homme s'en allait tout doucement, sans
trop souffrir, avec une discrétion louable. “ (c. 1, p. 7);
“Seu marido ia morrer, e ela sentia uma grande paz. A vida dele se esvaía lentamente, sem muito
sofrimento, com uma discrição louvável. “ (TLT-1, p. 3).
O tradutor não foi fiel ao TLO, preferindo modificar o conteúdo do texto. Em nossa
tradução, procuramos adequar o texto ao TLO na medida do possível:
“O homem partia devagar, sem muito sofrimento, numa discrição louvável.“ (TLT-2, c. 1, p. III).
A supressão do demonstrativo foi possível por tratar-se de uma anáfora que, em
português, dispensa o demonstrativo. A designação “homem” se interpreta como uma
retomada de “marido” sem necessidade de marcar esta retomada pelo demonstrativo.
Continuando no cap. l:
“Si son coeur se serrait, par moments, c'est que cet
état d'attende lui paraissait devoir prendre des
proportions inquiétantes.” (TLO, c. 1, p. 7);
“Se se lhe apertava, por momentos, o coração, era porque aquele
estado de expectativa lhe parecia
assumir proporções inquietadoras.” (TLT-1, c. 1, p. 3).
O uso do demonstrativo aquele não nos parece adequado porque interpretamos “cet
état d'attente” como anafórico ao enunciado anterior. E como Celso Cunha (1984, p. 325)
registra que o demonstrativo esse também é usado para “aludirmos ao que foi antes
mencionado”, nossa proposta é a seguinte:
“Se o coração apertava em certos momentos, é que essa espera parecia ganhar proporções
inquietantes.” (TLT-2, c. 1, p. III) .
Ainda na seqüência do cap. l:
“Cette disponibilité sereine qui l'envahissait jusqu'au bout des ongles ne laissait présager rien de bon.
(TLO p. 7);
“Aquela disponibilidade serena que a invadia até a extremidade das unhas não pressagiava nada de
bom.” (TLT-l, c. 1, p. 3).
O enunciado do TLO é uma interpretação pelo narrador dos pensamentos da
personagem. O estado de “disponibilité sereine qui l'envahissait não pode ser percebido por um
observador exterior. Assim sendo, qualificamos de inadequado o uso de aquela para traduzir
o demonstrativo do francês, pois situa o narrador numa posição afastada da personagem,
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quando o último enunciado deste mesmo parágrafo já pode ser interpretado como o discurso
da própria personagem. Experimentamos traduzir o demonstrativo pelo artigo e o resultado
foi satisfatório. O leitor do TLO interpreta “cette disponibilité” como o que a personagem estaria
sentindo, sem intermediação do narrador. O mesmo acontece em TLT-2, com a
disponibilidade: não se estabelece nenhuma distância entre a personagem e tal sensação (cf.
TLT-2, c. 1, p. III).
Prosseguindo:
“Tout plutôt que cette paix mauvaise.” (TLO, c. 1, p. 7);
“Preferível tudo àquela paz cruel.” (TLT-1, c. 1, p. 10);
“Tudo, menos essa paz malsã.” (TLT-2, c. 1, p. II).
Interpretamos este enunciado de TLO como ambíguo: ao começar a leitura do
parágrafo seguinte, o leitor estará em contato direto com o monólogo interior da personagem
Elisabeth. E este enunciado pode ser interpretado como o primeiro a delinear-se como
próprio da personagem, e não mais do narrador. Assim, o demonstrativo “cette” pode ser
interpretado de várias maneiras. Como pertencente ao discurso do narrador, é um anafórico,
e não deveria ser traduzido por aquela, posto que seria a retomada de um elemento que não
está distante no texto. Interpretado como pertencente ao discurso da personagem, é um
dêictico, e também não deve ser traduzido por aquela: a paz é uma sensação presente, e a
tradução por “essa” marca o desejo da personagem em considerar a paz como uma sensação
já passada. O uso de aquela é inadequado para marcar esta ambigüidade.
Já no trecho do monólogo interior:
“Si je sors, on me regarde comme une bête curieuse. Comme ces
deux voyous m'examinaient ce
matin,” (TLO, c. 1, p. 7) ;
[...] Como aqueles
dois malandros que me contemplavam nessa manhã” (TLT-l, c. 1, p. 4);
[...] Como aqueles dois vadios me encaravam hoje de manhã” (TLT-2, c.1, p. III).
A tradução do primeiro demonstrativo deste trecho por “aqueles” levou em conta a
situação dos dois personagens, porque os dois vadios a que se refere Elisabeth estão
distantes no tempo e no espaço. Já a tradução do demonstrativo de “ce matin” não levou em
conta o sintagma onde se encontra: “ce matin” traduz-se globalmente por “hoje de manhã”, “na
manhã de hoje”, preferivelmente a “nesta manhã” ou a “nessa manhã” como figura em TLT-l.
Prosseguindo:
“J'aurais fort bien pu la semer, cette
créature.” (TLO, c. 1, p. 8);
“Bem que eu poderia despistar essa
criatura.” (TLT-l, c. 1, p. 4);
“Bem que eu poderia ter evitado tal
criatura.” (. TLT-2, c. 1, p. IV).
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114
A tradução de “cette” por “essa” nesta passagem em TLT-l é um equívoco. A primeira
referência à personagem retomada por “cette créature” foi traduzida adequadamente em TLT-l
por “aquela mulher” (p. 4). Como Elisabeth está manifestando o desejo de evitá-la, de fugir, a
tradução deve marcar este afastamento. O demonstrativo “tal” do português pode ser usado
com este sentido.
Último trecho que comentaremos do cap. l:
On se retourne sur mon passage. C'est cela
ma vraie vie. Sentir le monde se diviser en deux haies
pour me voir passer. La mer Rouge qui se fend en deux pour que l'armée sainte traverse. C'est ça
la
terre, la vie de la terre, ma vie à moi. Un jour, c'est entre deux policiers que j'ai dû affronter cette terre
maudite. (TLO, c. 1, p. 8)
Observam-me quando passo. É esta
a minha verdadeira vida. Sentir o mundo dividir-se em duas alas
para me ver passar. O mar Vermelho [...] É isso
a terra, a vida na terra, minha vida. Um dia, foi entre
dois policiais que tive de enfrentar esta
terra maldita. (TLT-1, c. 1, p. 4)
[...] Essa
é a minha verdadeira vida. [...] Isso é a terra, a vida da terra, a minha vida. Houve um dia
em que, escoltada por dois policiais, tive de enfrentar essa
terra maldita. (TLT-2, c. 1, p. lV)
As três ocorrências acima podem ser interpretadas como anafóricas, e já por este
fato se justificaria o emprego de “essa” (se bem que esta também possa ser usado como
anafórico). Mas o que contou mais para nossa preferência é o fato de que os demonstrativos
“essa”, “isso” e “essa”, no trecho acima, contribuem para marcar a distância que Elisabeth deseja
manter entre ela, “a vida” e “a terra” a que se refere.
Vimos pois como discordamos de quase todas as traduções dos demonstrativos do
primeiro capítulo efetuadas pelo tradutor de TLT-l, com base inicialmente na distinção
dêictico-anafórico. Na tradução dos dêicticos, aquele marca um objeto como distante no
tempo e no espaço; este marca um objeto como próximo no tempo e no espaço, mas é
substituído por esse quando o enunciador procura afastar-se do objeto subjetivamente. Para
os anafóricos preferimos esse.
Os exemplos que examinaremos a seguir também ilustram discordâncias entre a
tradução dos demonstrativos em TLT-l e a nossa interpretação:
Surprendre la main de Dieu saisissant sa proie, rassurer cette pauvre proie humaine. [...] être vigilante
jusqu'à l'extrême limite de l'attention. Accéder à l'ombre du moindre désir de cet homme. (TLO, c. 6,
p. 35)
Surpreender a mão de Deus agarrando sua presa, animar essa
pobre presa humana [...] Aceder ao
mais leve desejo daquele
homem. (TLT-l, c. 6, p. 32)
Surpreender a mão de Deus agarrando sua presa, confortar esta
pobre presa humana. [...] Aceder à
sombra do menor desejo deste
homem. (TLT-2, c. 6, p. XXlX )
Este trecho é introduzido pela informação do narrador de que “a Sra. Rolland retoma
seu posto junto à cabeceira do marido”. Está portanto próxima de Jérôme Rolland. O sentimento da
Sra. Rolland neste ponto da narrativa é o de solicitude, interpretável nos verbos “rassurer”,
“accéder” e no adjetivo “vigilante”. Assim sendo, ambas as ocorrências do demonstrativo são
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dêicticas. A primeira, apesar de determinar um substantivo que pode ser interpretado como
uma anáfora, é claramente a marca lingüística do ato de apontar um referente presente no
mundo extra-lingüístico da personagem. E como o referente está próximo do enunciador,
tanto espacialmente quanto subjetivamente, utilizamos a forma “este” na nossa tradução. A
segunda ocorrência, erroneamente traduzida em TLT-l, corresponde a “este” porque é uma
continuidade da situação anterior: a Sra. Rolland, diante do marido, pensando a respeito de
sua atitude para com ele (que, como já dissemos, é de solicitude).
No cap. 16:
“Me font escorte jusqu'à l'escalier. Me laissent monter seule dans le noir. Cet
escalier est rongé par
les flammes. [...] Et cet
homme qui m'attend là-haut”. (TLO, p. 81);
“[...] A
escada está roida pelas chamas [...] E esse homem que me espera lá em cima!” (TLT-l, p.
77-78);
“[...] Essa
escada está roída pelas chamas [...] E aquele homem que me espera lá em cima!” (TLT-2,
c. 16, p. XLVI)
Como em exemplos anteriores, utilizamos o demonstrativo “essa” para marcar não a
distância espacial, mas a atitude de rejeição da personagem com relação ao que é designado -
a escada que a conduz ao reencontro de Antoine Tassy. O uso de “esse” no segundo
enunciado em TLT-l é um equivoco: o personagem Antoine está nitidamente localizado
como espacialmente distante de Elisabeth (“lá em cima”), não se justificando o emprego do
demonstrativo “esse”. Mesmo com a interpretação anafórica, a última referência a Antoine no
texto está distante 22 linhas ou 5 parágrafos, o que exigiria igualmente o emprego de
“aquele”, tal como o fizemos em TLT-2.
No cap. 26:
Il tient la lampe à la hauteur de son visage [...] Je regarde, j'épie chaque éclat de vie, sur le visage
basané. J'êcoute chaque parole véhémente.
Comme si cela me concernait personnellement. J'attends que le sens secret de toute cette indignation
me soit révélé. Se retourne sur moi, à jamais. [...] Comme vous me regardez, docteur Nelson. Non pas
la paix, mais le glaive. Cette
pâleur soudaine. Cette fièvre dans vos yeux. La lampe sans doute. Cette
ombre noire sur vos joues. (TLO, c. 26, p. 121)
[...] Espero que me revele o sentido secreto de toda aquela
indignação, que volte para mim, para
sempre. [...] Aquela
palidez repentina. Aquela febre que se lhe vê nos olhos. Sem dúvida é por causa
do lampião. Aquela sombra negra sobre suas faces. (TLT-l, p. 116).
[...] Aguardo que o sentido secreto desta indignação toda me seja revelado. Que se volte para mim,
para sempre. [...] Como o senhor me olha, doutor Nelson. Não trago a paz, mas a espada. Essa
palidez súbita. Essa
febre em seus olhos. É o lampião, certamente. Essa sombra negra em seu rosto.
(TLT-2, c. 26, p. LXII).
Neste capitulo, o discurso da narradora Elisabeth se confunde com a da personagem
Elisabeth, não se estabelecendo distância entre o ato de narrar e o fato narrado. A
personagem está diante de George Nelson, num primeiro encontro em casa deste último, e
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refere-se às palavras de indignação que o médico acabara de proferir. Assim, qualificamos
de equivocada a tradução de TLT-l ao empregar o demonstrativo “aquela” precedendo
“indignação”: o demonstrativo adequado é “esta”, que marca a proximidade da personagem
com a reação que acabou de presenciar. Em seguida, a personagem dirige-se ima-
ginariamente a George Nelson, o que está marcado pelo emprego do possessivo “vos” diante
de “yeux” e de “joues”. Como se trata de apontar um referente junto à segunda pessoa, a
tradução conveniente do demonstrativo é aquela que propomos: “essa”, diante de “palidez”,
“febre” e “sombra”. O emprego de “aquela” em TLT-l é totalmente equivocado, pois as marcas
de 2ª pessoa não deixam margem a dúvidas.
No cap. 49:
“Je voudrais encourager cette
fille chargée d'une si redoutable mission.” (TLO, p. 185);
“Eu desejaria encorajar aquela
mulher encarregada de tão terrível mis. são” (TLT-l, p. 183);
“Gostaria de encorajar esta
mulher encarregada de missão tão terrível.” (TLT-2, p. XCVII).
Neste capítulo, como já comentamos anteriormente, a narradora transfere o lugar de
seu ato narrativo para um quarto na Rua Augusta, na casa das tias, em Sorel. É o capítulo em
que ela se diz clarividente: “Extralucide, on m'a placée là pour que je voie tout, que j'entende tout” (TLO,
p. 184). Começa por presenciar o encontro entre George Nelson e Aurélie, embora não esteja
“visível” para eles. Na “mise-en-scene” discursiva passa a narrar os fatos enquanto
testemunha dos mesmos. Assim sendo, ao referir-se a Aurélie, é como se estivesse junto dela
naquele momento. O emprego do demonstrativo esta
marca a proximidade da narradora que
se imagina presenciando os fatos. O uso de aquela
desfaz este jogo de aproximação
imaginária, e por isso o consideramos como inadequado.
No cap. 59:
Moi, Elisabeth d'Aulnieres, enfermée dans l'auberge de Louis Clermont. Poussée dans l'escalier.
Pressée de franchir la porte de la chambre du voyageur. La franchissant, cette porte, à mon corps
défendant. Laissée là toute seule dans l'obscurité. Percevant les terribles frissons de cet
homme.
Éprouvant à même mes nerfs tendus, l'incomparable insomnie de cet
homme. (TLO, p. 217)
[...] Percebendo os estremecimentos de frio daquele
homem. [...] a insônia incomparável daquele
homem. (TLT-l, p. 214)
[...] Transpondo essa porta contra a minha vontade. Sozinha ali na obscuridade. Percebendo os
terríveis arrepios desse
homem. Sentindo diretamente em meus nervos tensos, a incomparável
insônia desse
homem. (TLT-2, p. CV)
Nesta seqüência, o desdobramento entre a narradora e a personagem está marcado
pelo advérbio ali
: o aqui é o local de onde Elisabeth se imagina presente na hospedaria.
Entretanto, a distância entre a própria narradora e os personagens não justifica o emprego do
demonstrativo aquele
. A narradora está presenciando, em sonho, a chegada de George, e se
vê no mesmo local que ele. É uma presença palpável, próxima, embora temida. Para marcar a
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proximidade não desejada, empregamos o demonstrativo “esse”, mais adequado do que
aquele”, que cria um afastamento não existente em TLO.
Ainda no cap. 59:
“Je le vois de dos, comme il entre dans la salle. Cette
détermination, et pourtant cette vulnérabilité
nouvelle, perceptible dans sa nuque, encore bien droite, mais agitée.” (TLO, p. 218).
Na tradução deste trecho substituímos os demonstrativos por artigos. Comparando
este exemplo com o do 1
o
capítulo, onde traduzimos “cette disponibilité” por “a disponibilidade”,
verificamos que em ambos os casos trata-se de designação de qualidades abstratas. É um
ponto a ser investigado, não temos meios suficientes para afirmar se esta particularidade é
pertinente para a tradução do demonstrativo do francês por outro tipo de determinante em
português. Nossa proposta de tradução:
“Vejo-o de costas, assim que entra na sala. Com determinação, e no entanto com uma vulnerabilidade
nova, perceptível em sua nuca, ainda bem reta, mas agitada.” (TLT-2, p. CVII).
A tradução que suprimiu o artigo ou que empregou o artigo indefinido não anula a
relação de proximidade entre a narradora e o personagem. Apenas deixa de apontar mais
especificamente para as qualidades descritas — o que nos parece mais usual em português.
Procuramos demonstrar nesta sub-seção (4.2.1.2) como a tradução dos
demonstrativos em TLT-2 seguiu princípios que visaram a proporcionar ao leitor a
reconstrução do mesmo tipo de relação espacial e mesmo afetiva interpretável no TLO.
Mostramos igualmente como em TLT-l o tradutor não se preocupou em manter as mesmas
relações do TLO, desvirtuando, na maioria das vezes, a posição do narrador face aos demais
personagens, e desobedecendo à organização enunciativa do TLO.
Demonstramos, assim, como a tradução adequada dos dêicticos e dos anafóricos
depende, por um lado, de uma competência interpretativa do discurso em LO, e, por outro,
de uma competência lingüística a serviço de um projeto de escritura, ou seja, o projeto de
produção de um texto que esteja de acordo com o Contrato literário que presidiu a
elaboração do TLO.
4.2.2 - Crítica à tradução de tempos e modos verbais
4.2.2.1 - Tempos verbais — algumas considerações
Como mencionamos acima, o ponto de referência para a articulação temporal do
discurso é o presente
do enunciador, o momento em que se dá a enunciação.
Em francês e em português, as formas verbais do presente do indicativo se prestam
a assinalar a coincidência temporal entre o processo de enunciação e o processo a que se
refere o enunciado. As formas verbais do pretérito assinalam a anterioridade do processo
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enunciado com relação ao momento da enunciação. E as do futuro uma posterioridade do
processo enunciado com relação ao processo de enunciação.
As correspondências entre as formas verbais do francês e do português não
oferecem maiores dificuldades sob este ponto de vista e não nos deteremos aqui em
enumerá-las isoladamente. Apresentaremos apenas uma breve crítica a algumas fa.has
verificadas em TLT-l a este respeito.
Começaremos com os três trechos abaixo, que ilustram o mesmo tipo de tradução
inadequada de tempo verbal:
C'est l'hiver [...] On espère me rattraper à la course. [...] Je crois que je crie
, blottie contre l'épaule de
ma tante Adélaide. (TLO, c. 2, p. 12).
É inverno [...] Esperam alcançar-me na corrida. [...] Creio que gritei apoiada no ombro de tia Adélaide.
(TLT-l, p. . 9).
Je crois que le Gouverneur (danser à en perdre le souffle) me renverse sur son bras. Comme une
fleur qui se pâme. Peut-être me suis-je imaginé cela? Ma mère dit
qu'il faut me marier. Le quadrille
reprend. (TLO, c. 11, p. 64)
Creio que o Governador (dança a ponto de fazer-me perder o fôlego) me faz cair sobre seu braço
como uma flor que tombasse. Talvez tivesse imaginado isso? Minha mãe disse-me
que era preciso
casar-me. Recomeça a quadrilha. (TLT-l, p. 60).
Aurélie baisse la tête. Se tourne vers moi. Semble attendre du secours. Je détourne les yeux. Au
point où nous en sommes
, il est indispensable que les choses suivent leurs cours le plus
irrémédiablement possible. (TLO, c. 46, p. 175-176).
[...] Desvio os olhos. No ponto em que estávamos
era indispensável que as coisas seguissem [...]
(TLT-1, p. 173).
No trecho do cap. 2, a Sra. Rolland se lembra de um fato passado, transferindo-se
imaginariamente, enquanto enunciadora, para o momento em que ocorreu a cena lembrada.
Este deslocamento, que anula a distância entre o tempo da narração e o tempo do narrado,
deveria ter sido mantido em português, o que não foi feito, pois o tradutor, ao traduzir “je
crie” por “gritei”, recoloca o enunciador num tempo posterior ao processo enunciado.
No trecho do cap. 11, Elisabeth rememora o seu primeiro baile. O TLO oscila entre a
coincidência da enunciação com o que é enunciado (pelo emprego das formas verbais no
presente) e um distanciamento marcado pela interrogação “Peut-être me suis-je imaginé cela?”.
Mas logo em seguida recomeça a seqüência das cenas do baile, revividas no presente pela
personagem — o que não foi mantido em TLT-1. A forma verbal “dit” é claramente do
presente, opondo-se ao passé composé do enunciado anterior.
No terceiro trecho acima, o tradutor desconsidera mais uma vez o procedimento
narrativo segundo o qual a narradora-personagem torna presente o processo narrado. O
emprego do imperfeito não se justifica para traduzir o presente narrativo utilizado no TLO.
212
211
119
Em muitas outras passagens do romance este mesmo tipo de abuso é cometido pelo
tradutor. Transcrevemos abaixo exemplos do emprego indevido do mais-que-perfeito para
traduzir o passé composé:
Une flaque de silence s'affale brusquement. La pluie a
cesser. La charrette s'est sûrement arrêtée
devant la porte. Mme. Rolland cherche des yeux un refuge dans la pièce. (TLO, c. 2, p. 13)
Paira bruscamente um silêncio frio. Sem dúvida cessara
a chuva. Seguramente o carro parara diante
da porta. A Sra. Rolland procura com os olhos um refúgio no quarto. (TLT-l, p. 10)
Ma tante Luce-Gertrude ne pleure pas. Sa voix est sèche et mesurée. Elle a
enlevé ses gants. Ses
mains sont moites et glacées. (TLO, c. 8, p. 46).
Minha tia Luce-Gertrude não chora. Sua voz é seca e medida. Tirara
as luvas. As mãos estão úmidas
e geladas. (TLT-l, p. 42)
O mais-que-perfeito localiza temporalmente um processo como anterior a um outro
processo passado. Nos trechos acima constitui um erro, porque não se relaciona com
nenhum outro processo marcado como passado no discurso.
Outros erros há de mesma natureza dos que assinalamos aqui. Neste breve
comentário sobre marcas verbais temporais, intentamos esclarecer como o emprego dos
tempos, em Kamouraska, obedece mais ao propósito enunciativo de atualizar todos os
acontecimentos narrados do que propriamente ordená-los em relação ao momento da
narração. O processo enunciativo, já no 1
o
capítulo, caracteriza-se pela anulação da distância
temporal entre narração e narrado, marcada, a partir do 3
o
parágrafo, pela utilização
constante das formas verbais do presente. Como vimos nos exemplos examinados, a
narradora-personagem se desloca para cada fase de sua vida que é rememorada.
As voltas ao tempo, construído ficcionalmente como o tempo “real”, são marcadas
como apelos à retomada da identidade de “Mme. Rolland” ou apelos à volta ao espaço da casa
da “Rue du Parloir, à Québec”. Assim, na tradução, procuramos manter o mesmo procedimento
de anulação de distâncias temporais utilizado pelo narrador do TLO.
4.2.2.2 - Modos verbais
A tradução das formas verbais do francês não deveria apresentar dificuldades
quanto ao modo verbal, visto que as diferenças entre as duas línguas quanto aos respectivos
sistemas modais são poucas: emprego do indicativo em francês nas orações introduzidas
pelas conjunções “si” e “quand” quando em português se empregam formas do subjuntivo;
emprego do condicional em correspondência com formas de imperfeito do subjuntivo do
português; emprego do futuro do indicativo nas completivas de certos verbos cujas
correspondentes em português se constroem com o subjuntivo. Além disso, estas diferenças
costumam ser objeto de inúmeros exercícios nos cursos de francês, sendo portanto bastante
familiares aos que estudaram francês como língua estrangeira no Brasil.
213
214
120
Encontramos, entretanto, vários equívocos em TLT-l, dos quais fizemos uma seleção
para comentários.
Comecemos por um exemplo do c. 8:
“Soutenez donc son regard vert, couleur d'herbe et de raisin, si vous le pouvez?” (TLO, p. 47).
Traduzido por:
“Sustentem pois, seu olhar firme, cor-de-herva e de uva, se podem
.” ( TLT-1. p. 43).
Este exemplo ilustra um dos casos de não-coincidência modal mencionados acima.
A tradução de “si vous le pouvez” seria “se puderem”, forma de subjuntivo usada neste tipo de
construção em que o enunciador lança um desafio ao destinatário, completando-o com a
condição de possibilidade que todo desafio implica. A tradução apresentada em TLT-l
mostra uma falha na identificação do ato de linguagem posto em cena pelo enunciado do
TLO.
Outro tipo de equívoco se verifica na tradução de:
“Ah, mes soeurs, nous nous damnons avec la Petite: Ah! [...] La Petite se damne! Et nous nous
damnons avec elle!” (TLO, c. 8, p. 48).
“Ah, minhas irmãs: Nós nos condenamos, com a Pequena, às penas eternas! Ah! [...] A Pequena que
se
dane! Não nos queremos condenar com ela às penas eternas!” (TLT-l, p. 44).
O tradutor não se deu conta de que a seqüência iniciada por “La Petite se damne!” é
uma reiteração, com pequenas mudanças, da que havia finalizado o parágrafo anterior. Na
primeira, traduziu “damnons” por uma forma verbal no presente do indicativo, que marca
um comportamento assertivo — que se torna objeto de uma apreciação subjetiva expressa
pela exclamação. Na segunda, interpretou erradamente “La Petite se damne!”, pois põe em cena
um comportamento volitivo e não o comportamento apreciativo que caracteriza a
personagem Luce-Gertrude naquele momento da narração. (O comportamento volitivo é
aquele em que o EU-enunciador manifesta seu desejo ou sua vontade de FAZER algo, e o
apreciativo a manifestação de uma apreciação, ou de um julgamento a respeito de um saber
que se supõe já existente – cf. Charaudeau, 1983, p. 62).
Ao dizer “La Petite se damne” Luce-Gertrude emite um julgamento a respeito do
comportamento de Elisabeth, já conhecido. A tradução do enunciado “Et nous nous damnons
avec elle!” também constitui um erro, pois, como o precedente, foi traduzido por um
enunciado em que se manifesta um comportamento volitivo: o desejo de não ser
“arrebatada” pelo demônio. Em TLO, no entanto, trata-se de uma apreciação sobre o que está
ocorrendo, e nele a enunciadora constrói de si a imagem de porta-voz de outras pessoas (no
caso, as duas irmãs) pelo uso do pronome “nous”. Assim, o uso do subjuntivo e a introdução
do verbo modal querer para traduzir tal trecho mudou completamente a “mise-en-scene”
discursiva. Em TLO, em momento algum as três tias desistem de identificar-se com
215
216
121
Elisabeth, de protegê-la e defendê-la. Em TLT-l alterou-se um dado importante para a
construção destas três personagens como a própria imagem do devotamento. Tradução que
propomos: “A Menina caiu nas garras do demônio: E nós caímos com ela!”
Os dois exemplos que examinaremos a seguir apresentam erros crassos de
tradução:
“Je suis prisonnière. Examinons
à la dérobée les quatre coins du salon. Attendons l'arrivée d'Antoine.
Imaginons
ses injures et ses coups. (TLO, cap. 32, p. 139).
“Sou prisioneira. Examinamos
furtivamente os quatro cantos do salão. Aguardamos a chegada de
Antoine. Imaginamos
suas imprecações e seus golpes.” (TLT-l. , p. 134).
As formas do imperativo, em TLO, marcam uma espécie de comportamento volitivo
da parte do EUe: é um programa de ações para se precaver contra Antoine. A tradução,
utilizando o indicativo, muda o tipo de comportamento, que passa a ser constativo
(nos dois
primeiros enunciados) e supositivo
(no terceiro). A mudança de modo acarreta pois uma
mudança da própria atitude da personagem no plano narrativo: em TLO Elisabeth faz
planos; em TLT-l, descreve ações.
O segundo exemplo a que nos referimos acima é o seguinte:
“Depuis
le temps que vous tentez d'instaurer la charité pour votre compte personnel, docteur Nelson,
allez-vous enfin réaliser votre rêve?” (TLO, c. 42, p. 164).
Traduzido por:
“Depois
que você tentar instaurar a caridade por sua conta pessoal, Dr. Nelson, irá finalmente realizar
seu sonho? (TLT-l, p. 161).
O erro na tradução da lexia “depuis le temps que” levou ao erro do modo verbal.
Tradução proposta:
“Já faz tempo que o senhor tenta instaurar a caridade por sua conta, Dr. Nelson, será que vai enfim
realizar seu sonho?”.
Em TLO, Elisabeth se refere a um comportamento habitual do Dr. Nelson, segundo
o que se pode interpretar do verbo “tenter no presente do indicativo. Com o erro de tradução,
interpreta-se TLT-l como referindo-se a uma intenção.
Uma outra grande dificuldade para o tradutor de TLT-l diz respeito à distinção
entre o futuro (que se classifica como sendo do modo indicativo) e o condicional. Usamos
propositadamente essa denominação (traduzindo a denominação “conditionnel” do francês)
porque os exemplos que vamos analisar em seguida não são de ocorrências de futuro do
pretérito, isto é, não dizem respeito à relação de duas ações já passadas, das quais uma, no
passado, foi marcada como futura. São, diversamente, ocorrências em que a forma verbal é
interpretada como a expressão de uma ação condicionada a uma outra, sendo esta última
uma hipótese a respeito da qual não se prevê o momento de realização.
217
122
O trecho abaixo servirá para esclarecer e ilustrar o que acabamos de afirmar:
— J'ai besoin de toi, Aurélie. Tu sais comme j'ai un méchant mari? Il faut que tu ailles à Kamouraska
empoisonner mon mari.
— C'est un bien grand crime, Madame...
— Personne n'en saura jamais rien. Et puis, je te garderai
avec moi, comme une soeur, toute ta vie
durant, si tu le veux.
— J'aurais
bien trop peur d'aller en enfer après ma mort! (TLO, c. 45, p. 172).
[...] — Ninguém ficará sabendo. E depois eu a conservaria
comigo, como uma irmã, durante toda a
sua vida, se quiser.
— Eu terei
muito medo de ir para o inferno depois de minha morte. (TLT-1, p. 172).
O tradutor, confundindo as formas de condicional e futuro, anulou uma diferença
modal importante entre as falas de Elisabeth e Aurélie. Em TLO, a forma do futuro “garderai”
marca o ato de linguagem de Elisabeth como a afirmação de um compromisso, ligado a uma
condição explícita, “si tu le veux” e a uma condição implícita: que Aurélie envenene Antoine
(condição presente na fala anterior de Elisabeth). O compromisso manifesto em “je te garderai”
é marcado como plenamente assumido pelo EUe, pelo emprego da forma verbal do futuro, e,
implicitamente, qualifica como certa a realização das condições. A tradução por “eu a
conservaria”, diversamente, não pode ser interpretada como a afirmação de um compromisso,
porque o emprego do condicional implica a existência de uma condição qualificada como
uma hipótese improvável. Interpreta-se, com o emprego do futuro, que a personagem
Elisabeth tem a intenção de convencer Aurélie mostrando sua própria convicção a respeito
do crime. O emprego do condicional enfraquece, na tradução, a manifestação da convicção
de Elisabeth.
Com o emprego do condicional, Aurélie, enquanto enunciadora, atribui à proposta
do envenenamento o “status” de uma hipótese improvável, e à conseqüência da mesma —
“J'aurais bien trop peur...” — o “status” de uma mera suposição. O emprego do futuro em TLT-l
descaracteriza a atitude da personagem, pois o futuro é interpretado como a marca de uma
certeza.
A tradução do condicional pelo futuro e do futuro pelo condicional, em TLT-l,
destruiu o jogo enunciativo que se constrói no diálogo entre estas duas personagens, em que
a mesma hipótese é vista segundo o interesse de uma e o temor da outra.
Na tradução de formas verbais no chamado “futuro do pretérito composto”, ou, em
francês, “conditionnel passé”, o tradutor de TLT-l foi incapaz, na maioria das vezes, de fazê-
lo de forma adequada. Transcrevemos a seguir alguns exemplos: “Il aurait
certainement mieux valu
fermer les jalousies.” (TLO, c. 8, p. 41); “Seria
certamente melhor fechar as persianas. (TLT-l, p. 37) .
Nesta passagem, a apreciação expressa no “conditionnel passé” marca indiretamente a ação
de “fermer les jalousies” como uma hipótese realizável num momento anterior ao da enunciação.
218
219
123
A tradução pelo futuro do pretérito simples muda a hipótese, que passa a ser marcada como
realizável no presente.
Outros exemplos:
TLO, c. 1, p. 7; “Il aurait
fallu quitter Québec.”
TLT-l, p. 3: “Teria
de deixar Quebec.”
TLT-2, p. III: “Deveria ter
saído de Quebec.”
TLO, c. 13, p. 71: “Nous aurions
prendre le bateau à vapeur jusqu'à Québec.”
TLT-l, p. , 67: “Deveríamos
tomar o vapor até Quebec.
Tradução mais conveniente deste último exemplo: “Deveríamos
ter tomado o vapor até
Quebec.” Em francês, são os verbos modais que são empregados no “conditionnel passé”,
enquanto em português são os verbos principais que tomam a forma do infinitivo passado.
O tradutor, desconhecendo este particular, descaracteriza o tipo de hipótese do TLO, que, de
irrealizável no presente, passa a realizável. Outro tipo de dificuldade é a da tradução de
verbos modais no “conditionnel présent”:
“Il faudrait
avoir la santé de violer cette femme.” (TLO, c. 5, p. 26);
“É
preciso ter saúde para violar essa mulher.” (TLT-l).
Este tipo de erro é freqüente em TLT-l. A modalidade do necessário no condicional é
implicitamente dependente de uma condição improvável e é utilizada pelo enunciador para
manifestar um comportamento volitivo de realização improvável. Traduzindo “il faudrait” por “é
preciso”, a realização do processo modalizado passa a ser interpretada como provável,
mudando-se a atitude do enunciador para com o que é enunciado. No seguinte exemplo
estamos diante de um emprego particular do condicional do verbo “vouloir”:
“Je voudrais
l'apaiser, m'excuser [...]" (TLO, c. 31, p. 132);
“Quis
acalmá-lo, desculpar-me [...]" (TLT-l p. 136).
O condicional, neste enunciado de TLO, é utilizado para atenuar a afirmação de um
desejo, de uma vontade, usado freqüentemente para marcar uma atitude de polidez do
enunciador. Corresponde, em português, às fórmulas "eu queria", "eu gostaria de...", utilizadas
com este mesmo valor enunciativo. A tradução pelo pretérito perfeito faz com que se
interprete o enunciado como a manifestação de um desejo passado, e não presente como em
TLO.
Em inúmeras passagens da narrativa de Kamouraska, principalmente quando a
personagem Elisabeth faz planos para o futuro, os enunciados são construídos com verbos
no infinitivo, sem ligação sintática com enunciados anteriores ou posteriores. Não deveriam
oferecer nenhuma dificuldade de tradução, posto que, em português, enunciados com verbos
no infinitivo produzem o mesmo efeito de sentido que em francês.
220
221
124
Em TLT-l, no entanto, o tradutor parece ter discordado da escritora. Esta optou pela
estratégia de não definir explicitamente, em muitas seqüências, o tipo de comportamento
elocutivo da personagem. O tradutor de TLT-l acrescentou os verbos modais que julgou
necessários – como se pode constatar ao mais superficial confronto com o TLO.
Transcrevemos a seguir algumas passagens que ilustram este procedimento abusivo
do tradutor:
TLO, C. 2, p. 12: “Vite la frontière américaine et je serai sauvée. Gagner ma petite tante à cette
idée. Ma complice effrayée.”
TLT-l, c. 2, p. 9: [...] “Tinha de convencer minha tia de aceitar essa idéia. “
TLO, c. 5, p. 28: “J'abandonne mon mari sans retour à Florida. Me reposer enfin.”
TLT-l, c. 5, p. 24: “Deixá-lo-ei aos cuidados de Flórida. Poderei assim repousar-me.”
TLO, c. 6, p. 35: Votre mari peut partir d'un moment à l'autre.”
Ne plus quitter Jérôme de l'oeil, le veiller comme le mystère même de la vie et de la mort.”
TLT-l, p. 32: “ [...] Não devo despregar os olhos de Jérôme Rolland, tenho de velá-lo como ao
próprio mistério da vida e da morte.”
TLO, c. 25, p. 117: “Ne pas chercher à revoir le docteur Nelson, avant un certain temps. Bien
m'assurer d'abord que je ne suis pas enceinte. M'établir dans une chasteté parfaite. Me défendre
farouchement contre toute approche de mon mari. Me laver d'Antoine à jamais.”
TLT-l, c. 25, p. 112: “Não devo procurar rever o Dr. Nelson antes de certo tempo. É preciso
assegurar-me primeiro que não estou grávida. Tenho que manter-me em perfeita castidade. Tenho
que defender-me ferozmente contra toda aproximação de meu marido, livrar-me dele para sempre
[...]”.
Nos trechos de TLO transcritos acima, as formas do infinitivo marcam um
comportamento prospectivo que não se define: tanto podem referir-se a possibilidades,
quanto a intenções ou mesmo a obrigações. As explicitações modais do TLT-l anulam a
indefinição modal que caracteriza o ato enunciativo da personagem.
Procuramos mostrar, nesta sub-seção (4.2.2), como a inadequação da tradução de
tempos e modos verbais extrapola o nível da estruturação lingüística para interferir na
organização enunciativa do discurso. Sendo o enunciador o ponto de referência principal, o
momento da enunciação é identificado com o presente. Qualquer mudança de tempo
acarreta uma mudança na situação do enunciador e no processo de enunciação, como
tivemos oportunidade de demonstrar. Os modos e as modalidades especificam as atitudes
do EU-enunciador a respeito do que é enunciado e sua alteração indevida acarreta uma
alteração do próprio ato de linguagem posto em cena no texto.
222
223
125
4.2.3- Crítica à Tradução de componentes retóricos
Segundo a definição de Charaudeau (1983, p. 77) , a organização retórica do
discurso "é voltada para o próprio fazer linguagístico quanto à relação que se constrói entre o plano da forma e
o plano da substância semântica." Não nos ocuparemos, aqui, em discutir as implicações teóricas
desta afirmação, posto que nosso principal interesse é a tradução. Num texto romanesco,
sobredeterminado por um Contrato literário como o é Kamouraska, cada um de seus aparelhos
formais é motivado, isto é, não valem como signos transparentes veiculadores de significados
pré-existentes apenas, mas enquanto elementos de um sistema significativo construído pelo
próprio texto.
É partindo deste princípio que abordaremos a questão da tradução das comparações
e das metáforas, além de fazermos algumas observações sobre o plano fônico – em sua
relação com o comportamento enunciativo elocutivo.
4.2.3.1- O plano fônico
Como o romance moderno é o resultado de uma escritura concebida para ser lida
em silêncio e solitariamente, o plano fônico, em princípio, não deveria ser alvo de maiores
elaborações por parte do escritor. Isto é, as combinações sonoras, no romance moderno, não
teriam o mesmo papel se houvesse o hábito da leitura em voz alta, feita para um grupo de
pessoas.
Entretanto, apesar do primado do plano visual sobre o plano fônico, e apesar dos
hábitos de leitura que levam a uma interpretação que muitas vezes prescinde da
subvocalização (processo segundo o qual o leitor reproduz mentalmente os sons do que lê), o
tradutor não pode deixar de estar atento ao plano sonoro do texto que produz. Evitam-se,
assim, efeitos de eco, enunciados metricamente desproporcionados com os que lhes
correspondem no TLO (embora muitas vezes isto não seja possível), redundâncias que não
tenham uma função discursiva, excesso de palavras com semantismo puramente gramatical
e efeitos cacofônicos. Observações deste tipo acompanharam muitas vezes as justificativas
que fizemos ao longo do presente estudo para as propostas de tradução que apresentamos.
Um dos aspectos que ainda não comentamos diz respeito à pontuação em
Kamouraska. Como se sabe, a pontuação gráfica é a tentativa, na escrita, de marcar pausas e
entonações do discurso oral, atinentes à própria estruturação dos enunciados. (Cf. Cunha,
1984, p. 591-619).
No TLT-l é freqüente a inobservância à pontuação do TLO. Esta inobservância é
mais aguda nos trechos em que a personagem Elisabeth elabora planos de ação: o farto uso
224
225
126
de pontos corresponde a seqüências fônicas entrecortadas de pausas e de entonações
descendentes que, numa interpretação mais ousada, se assemelham a pausas provocadas
por uma respiração ofegante e angustiada. Experimente-se a leitura em voz alta dos
seguintes trechos para que se comprove o que acabamos de afirmar:
II faut faire vite. Me protéger de Ia fureur d'Aurélie. Nous sauver toutes les deux. Nous réconcilier à
jamais. Abolir toute une époque de notre vie. Retrouver notre adolescence. Bien avant que... (TLO,
c. 11 p. 62)
É preciso apressar-me, proteger-me contra o furor de Aurélie, salvar-nos a ambas, reconciliar-nos
para sempre, abolir toda uma época de nossa vida, encontrar nossa adolescência. Bem antes que...
(TLT-1, c. 11, p. 58)
Tenho de ser rápida. Me proteger do furor de Aurelie. Salvar nós duas. Nos reconciliarmos para
sempre. Abolir toda uma época de nossas vidas. Reencontrar nossa adolescência. Bem antes que...
(TLT-2, p. XXXVIII ).
À leitura do trecho de TLT-1, este se interpreta como o discurso sobre planos já
traçados e sobre os quais já se havia refletido anteriormente: a coordenação marcada pelas
vírgulas pressupõe uma seqüência ordenada de pensamentos. Já a leitura do TLT-2, como a
do TLO, é interpretada como a verbalização de pensamentos tal como estariam surgindo na
mente da personagem no momento em que se encontrou com Aurélie: como idéias que se
sucedem sem ordenação lógica.
Transcrevemos mais um trecho em que se verifica o mesmo tipo de pontuação em
TLO e o mesmo tipo de inobservância em TLT-1:
[...] Que m’importe. Pourvu que je retrouve mon amour. Bien portant. Éclatant de vie. Appuyant tout
doucement sa tête sur ma poitrine. Attentif à un si grand malheur en moi. Se récriant avec indignation:
“Mais vous êtes blessée!” (TLO, c. 25, p. 115).
[...] Que me importa. Contanto que torne a encontrar meu amor com saúde, palpitante de vida,
apoiando docemente a cabeça sobre meu peito, atento a essa grande infelicidade que caiu sobre
mim. Exclamando indignado: “Mas a senhora está ferida!” (TLT-l, p. 110).
[...] Que me importa. Contanto que reencontre o meu amor. Bem disposto. Irradiando vida. Apoiando
bem docemente sua cabeça sobre meu peito. Atento à minha desgraça. Exclamando com
indignação: “Mas a senhora está ferida!”(TLT-2, c. 25, p. LV).
As inobservâncias deste tipo, como já dissemos, são bastante freqüentes, a maior
parte delas no sentido de encompridar períodos, transformando pontos em vírgulas, desfigu-
rando o monólogo interior não só da personagem Elisabeth como de outros. Em alguns
trechos descritivos encontram-se repetições de sons ao longo da cadeia fônica que
contribuem para a composição da cena. Como no início do 1º e do 2º parágrafos do cap. 9:
D'ou vient ce calme, cette lumière douce promenée sur une petite ville déserte? Sorel. Ses rues de
quelques maisons à peine. Maisons de bois. Maisons de briques. [...] Le fleuve tout près coule entre
des rives plates. Les longues îles vertes, propriété de Ia commune, là où paissent Ies vaches, Ies
chevaux, Ies moutons et Ies chèvres.
La vie est paisible et lumineuse. Pas une âme qui vive. Je sens que je vais être heureuse dans cette
lumière. Le fleuve lisse, la lisière des pâturages sur l’eau. Cette frise des bêtes placides broutant à
226
227
127
l’infini. Je m’étire. Je soupire profondément. Est-ce l’innocence première, qui m’est rendue d’un coup,
dans un paysage d’enfance? (TLO, c. 9, p. 50).
Do 1º parágrafo, a repetição do som [-l ] em "calme", "lumière", "ville", "Sorel", "quelques",
"fleuve", "coule", "plates", "longues", "îles", continua no segundo, em "paisible", "lumineuse", "lumière",
"fleuve", "lisse", "lisière", "placides", sem contar com os artigos. No 1º parágrafo, a vogal [- ]
17
aberta em posição final de sintagma, que, em francês, recebe o acento principal
(caracterizado pelo alongamento da vogal: "dése
rte", "Sorel", "peine", "vertes", "chèvres") se repete
em alternância com outras vogais, retomando as sonoridades finais do nome "Sorel",
localidade que está sendo descrita pela narradora. A repetição de sons vocálicos e da
consoante lateral produzem um efeito de antecipação e ressonância em torno do nome "Sorel".
No 2º parágrafo, tem-se a retomada do som [-l ] e a repetição do som [-i-],
retomando, este último, a vogal da palavra-chave deste parágrafo: "vie". Para o tradutor, é
difícil manter as assonâncias da LO na LT, mas isso não quer dizer que não deva esforçar-se
no sentido de procurar aproximar-se dos efeitos sonoros doTLO em sua tradução. Nossa
tentativa:
De onde vêm esta cal
ma, esta luminosidade doce projetando-se num vilarejo deserto? Sorel. Suas
ruas com poucas casas. Casas de madeira. Casas de tijolos. [...] O rio corre próximo por entre
ma
rgens planas. Nas longas ilhas verdes, pertencentes à comuna, pastam as vacas, os cavalos, as
ovelhas e as ca
bras.
A vi
da é tranqüila e luminosa. Ninguém nas cercanias. Sinto que serei feliz sob esta luz. O rio liso, a
fím
bria das pastagens sobre a água. A imagem dos plácidos animais ruminando ao infinito. Estiro-me.
Suspi
ro profundamente. Minha inocência original estaria de volta numa paisagem da infância?
Em "calma" e "luminosidade" repetem-se os sons [-l] e [-a], este último não presente no
TLO. A assonância "deserto"- "Sorel" se mantém, mas as outras repetições de [- ] aberto se
perderam. Em compensação, o [-a-] tônico que se repete em "pastam", "vacas", "cavalos" e
"cabras" funciona como a retomada das vogais tônicas do início do 1º parágrafo, con-
tribuindo para criar a impressão de unidade da cena descrita.
No 2º parágrafo esforçamo-nos por repetir a vogal [-i-] presente no TLO. Manter o
som [-l-] foi mais difícil, visto que os artigos do português nao o contêm. Por outro lado,
aproveitando a imagem dos animais que pastam, buscamos o verbo "ruminar" cujos sons
nasais passam a harmonizar-se com os de "fímbria", "pastagens", "imagem", "animais", "infinito" e
depois com "profundamente", "minha inocência", "paisagem" e "infância" unindo sonoramente
componentes lingüísticos que integram a unidade da cena bucólica.
Outros trechos podem exemplificar as intenções do escritor em fazer do plano
fônico um elemento descritivo a mais para as sensações e sentimentos das personagens,
como na seguinte passagem do cap. 3 (p. 20, TLO):
17
Utilizamos nesta sub-seção os símbolos do Alfabeto Fonético Internacional. Cf. Dubois, 1977, p. XVI.
229
228
128
"Le timbre de la sonette déchire le silence de la nuit, se répercute en ondes sonores, aux quatre coins
de la maison endormie."
A seqüência das sílabas acentuadas é a seguinte: [tRbY]/[ nDt]/[GiY]/[lSs]/[nPi]/
[kyt]/[nTd]/[nCr]/[katY]/[kwR]/[ zT]/ [mi]. Nesta seqüência predominam, entre as
consoantes, as oclusivas sendo 9 consoantes oclusivas pré-vocálicas, contra 3 não-oclusivas;
e 5 consoantes oclusivas pós-vocálicas contra 3 não- oclusivas. Há igualmente uma
quantidade expressiva de consoantes e vogais nasais. O contraste oclusiva/não-oclusiva
parece acentuar o contraste entre o silêncio e o ruído da sineta e se repete em todo o
enunciado retomando o contraste entre as seqüências fônicas dos vocábulos "silence"
(onde não há oclusivas) e "sonnette" (onde há duas oclusivas).
A tradução em português muda um pouco este quadro porque as consoantes pós-
vocálicas do francês passam a pertencer a uma outra sílaba: "o timbre da sineta rasga o silêncio da
noite, repercute em ondas sonoras, nos quatro cantos da casa adormecida." Assim mesmo, levando em
conta apenas as consoantes pré-vocálicas, há 24 oclusivas e 10 não-oclusivas
predominando, como em TLO, as oclusivas. O contraste se faz mais especificamente entre as
sonoridades do vocábulo "silêncio" e as sonoridades dos demais vocábulos.
Não nos deteremos mais longamente nestas considerações sobre o plano fônico nos
trechos descritivos do romance. Apenas assinalamos como, ao traduzir um texto
sobredeterminado por um Contrato literário, o tradutor atento procura compensar as
impossibilidades de correspondência fônica entre a LO e a LT com a escolha de unidades
lexicais que possam harmonizar-se sonoramente o que, pelo que temos visto, não ocorre
em TLT-l.
4.2.3.2- As comparações
A comparação é o processo através do qual se explicita o grau maior ou menor de
identificação, ou o grau maior ou menor de semelhança que o EU-comunicante atribui a dois
ou mais seres, a duas ou mais qualidades, a duas ou mais ações, baseando-se em critérios
mais ou menos subjetivos. Não nos compete, aqui, fazer a exegese de todos os tipos possíveis
de comparação. Interessa-nos examinar as comparações do TLO do ponto de vista do
tradutor e das dificuldades que possam representar para a tradução.
Em Kamouraska a comparação é um procedimento retórico freqüente no discurso
da narradora-personagem Elisabeth, no discurso do narrador e também está presente no
discurso de outros personagens. Ao empreendermos nosso trabalho de tradução do
romance, encontramos dificuldades para traduzir certas comparações. Isto porque algumas
das designações que servem de termo de comparação têm um "sentido figurado" próprio da
língua francesa: como "dinde" (c. I, p. 9) à qual Elisabeth se compara:
230
231
129
"Et moi qui emboîte le pas derrière, comme une dinde. C'est cela une honnête femme: une dinde qui
marche, fascinée par l'idée qu'elle se fait de son honneur."
Segundo Robert (1970) , "dinde" designa a "mulher idiota". Assim, sob este ponto de
vista, a tradução de TLT-1 mantém o significado não-figurado do termo do TLO:
"E eu que o sigo atrás como uma idiota
. Assim procede uma mulher honesta: uma tola que caminha
fascinada pela idéia que faz de sua honra." (TLT-1, p. 5).
Consideramos, porém, a narrativa como um todo, e principalmente, levamos em
conta um trecho do cap. 45, do monólogo de Elisabeth:
"Mon pauvre amour, je ne saurai sans doute jamais comment t'expliquer qu'au-delà de toute sainteté
règne l'innocence astucieuse des bêtes
et des fous." (TLO, p. 174).
Elisabeth se inclui, para justificar seus atos, entre "os animais e os loucos", não
submissos à ordem moral vigente. Ao referir-se aos outros personagens, freqüentemente
interpreta seus comportamentos através de comparações com animais, como por exemplo,
no cap. 25:
"Mes tantes prennent l'air rampant et affligé des bêtes domestiques pressentant le drame dans la
maison" (TLO, p. 115).
E no cap. 55, referindo-se a George:
"Je n'avais jamais remarqué comme les canines de chaque côté sont fortes et longues. Lui donnent un
air de bête sauvage. Ce n'est que la peur qui brouille mon regard. Abîme l'image de mon amour".
(TLO, p. 205).
No cap. 13, ao descrever os freqüentadores de uma estalagem:
"Ils se démènent en dansant et crient comme des bêtes qu'on égorge." (TLO, p. 72).
Ou no cap. 63, referindo-se a si própria e a George:
"Nous nous flairons cornme des bêtes étrangères." (TLO, p. 241).
Como traduzir então o trecho do cap. 1, onde Elisabeth se vê como "une dinde"?
Eliminar a referência ao animal empobreceria a rede de comparações que se estabelece na
narrativa. E a tradução "perua" tem, em português, um sentido figurado totalmente diverso
de "dinde" em francês. Procuramos então a designação de um outro animal que pudesse ser
utilizada na comparação e chegamos a "pata", pensando na associação que se estabelece com
pata-choca (designação da "mulher gorda de andar pesado", segundo Ferreira, 1975) e com
pato, que popularmente significa tolo. Além disso, "pata", como "dinde", designa uma ave
doméstica.
No 11º capítulo, uma outra comparação também apresentou dificuldade:
"Et les filles donc? Pimbêches et pincées, avec des rires d'oies chatouillées." (TLO, p.. 64).
O tradutor de TLT-l eliminou a referência a gansas:
"[...] presas de risos tolos e afetados" (TLT-l, p. 60).
O substantivo "oie" tem o sentido figurado de "pessoa tola, idiota" (Dubois, 1977), tal
como "dinde". Mas neste trecho, especificado pelo particípio "chatouillées", prevalece o sentido
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próprio: o leitor imagina principalmente o barulho que devem fazer as gansas ao sentirem
cócegas. Por esta razão, em TLT-2 conservamos a comparação na qual efetuamos uma
modulação, substituindo a causa pelo efeito ao traduzir "chatouillées":
"Pretensiosas e afetadas, rindo como se fossem gansas grasnando." (TLT-2, c. 11, p. XLI).
Com esta tradução constroi-se um paralelismo com a comparação posterior, feita, no
mesmo parágrafo, entre os rapazes e "des petits cochons":
"Les garçons s'essoufflent, renâclent, pareils à de petits cochons, patauds et maladroits." (TLO, c.
11, p. 64).
"Os rapazes ficam ofegantes, bufando, como se fossem leitõezinhos pesados e desajeitados." (TLT-
2, c. 11, p. XLI).
As demais comparações presentes na narrativa não apresentam dificuldades
enquanto tais, tanto no plano lexical quanto no plano sintático. As que examinamos aqui
estão estreitamente ligadas ao processo lingüístico de metaforização idiomatizado que
examinaremos mais atentamente na próxima sub-seção.
4.2.3.3- As metáforas
Define-se metáfora como o resultado de um processo de substituição, no discurso, de
uma unidade lexical por outra, motivada por conexões significativas mais ou menos subjeti-
vas. (Ch., 1983, p. 77). Preferimos pensar a metáfora como resultante do ato de referir-se a
um ser ou a uma ação (A) , através de signos que não são convencionalmente utilizados
para referir-se a tal ser ou a tal ação, mas sim a um ser ou a uma ação (B). A motivação
desta referência através de signos não convencionalizados reside, efetivamente, numa re-
lação de semelhança entre (A) e (B), relação essa que pode ser puramente subjetiva. (Cf.
Genette, 1966, p. 45). É num momento posterior a este ato de "referenciação" que se
interpreta a metáfora como equivalente a tal ou qual signo convencionalmente utilizado para
referir-se a (A). A metáfora, em princípio, não constitui uma dificuldade maior para a
tradução. O que é importante, no entanto, é procurar saber se aquilo que parece uma
metáfora original criada pelo EUc, já não integra o elenco de "expressões figuradas" de
domínio comum na LO tal como o que verificamos na tradução de comparações.
No caso das metáforas originais, o tradutor deveria procurar mantê-las no TLT, uma
vez que resultam de processos interpretativos da realidade, próprios do escritor ou
atribuídos por este a seus personagens. Um exemplo de metáfora original não traduzida em
TLT-l encontra-se no cap. 13:
"Est-ce bien l'amour qui me tourmente? Je crois que je vais me noyer." (TLO, p. 69)
"Será o amor que me atormenta? Creio que vou desaparecer." (TLT-l, p. 65).
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Por que não traduzir "noyer" por seu correspondente em português, afogar, se a
personagem interpreta seu estado de espírito como semelhante à sensação de quem vai mor-
rer sufocado pela água?
No cap. 5 encontramos um outro exemplo de metáfora escamoteada em TLT-l:
"Ah! Mon Dieu, j'étouffe avec toute cette saleté de mémoire dans les veines." (TLO, p. 28)
"[...] abafa-me a respiração a lembrança de toda essa sujeira". (TLT-l, p. 24).
Neste ponto, Jérôme se sente invadido por lembranças que o fazem sofrer, e sente
fisicamente esta invasão. Em nossa proposta de tradução conservamos a localização "nas
veias": "Ah: meu Deus, estou sufocando com toda esta sujeira de memória nas veias." (TLT-2, p. XIX).
No final do cap. 2 encontra-se uma descrição metafórica da crise de falta de ar de
Jérôme:
A quoi bon réclamer Florida? Un mot de pIus et la provision d'air sera épuisée dans la cage de votre
coeur. Cet amas de broussailles dans votre poitrine, ce petit arbre échevelé où l'air circule avec tant de
peine. Il ne faut pas puiser l'air dans ce buisson qui devient sec. Ne pas appeler Florida. Supplier des
yeux seulement. Les gouttes, les gouttes... (TLO, p. 17).
De que adianta chamar Flôrida? Uma palavra a mais e a reserva de ar se esgotará na câmara de seu
coração. Esse amontoado de espinhos em seu peito. A pequena árvore emaranhada onde o ar circula
tão penosamente. Não consumir o ar desse espinheiro ressequido. Não chamar Flórida. Suplicar-lhe
com os olhos apenas. O remédio, o remédio... (TLT-2, p. XV).
Em TLT-l a tradução inadequada de "échevelé" por "desnudada", "buisson" por "mata" é
de mesma natureza de outros erros já mencionados anteriormente: "desnudada" é um erro por
falsa inferência e "mata" um erro causado pelo desconhecimento da polissemia de "buisson".
O capítulo 5, segundo o que pudemos constatar, é o mais rico em metáforas. Neste,
a crise de Jérôme Rolland e seu comportamento são descritos através de cenas imaginadas
em pleno mar ou à beira da praia. A este respeito, o 2º e o 3º parágrafos estão estreitamente
relacionados. (Cf. a sub-seção 4.1.1).
Em TLT-l o enunciado "Et voyez pourtant quelle noyade" foi traduzido por "E veja, no
entanto, que ela está destruindo" (TLT-l, p. 21), eliminando um componente importante da cena
metafórica. E é neste trecho que ocorre a tradução equivocada de "lame" por "lama", como já
mencionamos anteriormente (seção 3.2), desfigurando mais ainda a intenção significativa
manifesta no TLO. Remetemos para TLT-2, em anexo, (e aqui, na p. 177) para que se
verifique como procuramos manter os vários elementos que compõem a cena descrita: o
"mergulho" ("la noyade") , a "vaga" ("lame") , a "areia" ("le sable"), o "sal" ("le sel") , o "lodo" ("la vase").
Os erros do 3º parágrafo já foram comentados: "rappeler" traduzido por "tornar a
chamar" é análogo à tradução errônea de "retrouver" por "tornar a encontrar" (sub-seção 4.1.2). A
tradução indevida de "vous" por "você" já foi criticada na seção sobre o comportamento
alocutivo. Quanto às metáforas propriamente ditas, foram mantidas em TLT-1, o que, de
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certa forma, comprova nossa afirmação de que as metáforas originais oferecem o mesmo tipo
de dificuldade que os enunciados não-metafóricos.
No trecho seguinte, o mecanismo de falsa inferência do tradutor aliado a uma
insuficiência cultural produziu uma tradução equivocada:
"Le recevoir dans mes bras. Son corps de crucifié trop gras. Et moi une pietà sauvage, défigurée par
les larmes. Nous sauver tous les deux". (TLO, c. 7, p. 38).
"Recebê-lo em meus braços. Seu corpo de crucificado, inchado. E eu uma piedade selvagem,
desfigurada pelas lágrimas. Salvar-nos a nós dois." (TLT-1, p. 34)
Não é necessário conhecer a lingua francesa para se saber que "pietà" é uma refe-
rência à Nossa Senhora da Piedade, também chamada de "Mater Dolorosa", que evoca
imediatamente a imagem da célebre estátua de mármore esculpida por Miguel-Angelo, e que
se encontra num altar da Basílica de São Pedro, no Vaticano. Nossa proposta:
"Recebê-lo em meus braços. Seu corpo de crucificado gordo demais. E eu, "Mater Dolorosa" arredia,
desfigurada pelas lágrimas. Salvar a nós dois." (c. 7)
Em vez de "Mater Dolorosa", poderíamos simplesmente ter repetido "pietà",
estrangeirismo de origem italiana.
Há uma metáfora que não podemos deixar de comentar, por ter sido utilizada como
título do romance na edição brasileira: "a máscara da inocência". Quando fizemos a primeira
leitura de Kamouraska já tínhamos conhecimento do título que fora escolhido para a
tradução em português. E, efetivamente, comprovamos que "a máscara da inocência" se
interpreta como urna síntese do comportamento da personagem Elisabeth, para quem a
identidade de Sra. Rolland é uma "máscara" que encobre seus verdadeiros sentimentos,
voltados para o amor perdido de George Nelson. Por duas vezes esta metáfora aparece no
texto:
L'appareil des vieilles familles se met en marche. Médite et discute. Mon sort est décidé, arrêté, avant
même qu'aucune parole ne soit prononcée. Apaiser tout scandale. Condamner Elisabeth d'Aulnières
au masque
froid de l'innocence. Pour le reste de ses jours. La sauver et nous sauver avec elle.
Mesurer sa véritable vertu, à sa façon hautaine de nier l'évidence. (TLO, c. 63, p. 237).
Neste trecho, Elisabeth interpreta a atitude da família Tassy, em desistir dos
processos que a incriminam, como uma condenação. A "fria máscara da inocência" lhe é pratica-
mente imposta. No último capítulo:
Je n'ai plus qu'à devenir si sage qu'on me prenne au mot. Fixer le
masque de l'innocence sur Ies os de
ma face. Accepter I'innocence en guise de revanche ou de punition. Jouer Ie jeu cruel, Ia comédie
épuisante, jour après jour. Jusqu'à ce que Ia ressemblance parfaite me colle à Ia peau." (TLO, c. 65,
p. 249).
Este trecho marca praticamente o final do relato de Elisabeth, e permite que se
interprete globalmente todo o relato como o que está oculto sob a máscara. Por isso,
consideramos que a substituição do título do TLO por esta metáfora é um procedimento
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válido, uma vez que o topônimo "Kamouraska" não pertence ao universo cultural do leitor
brasileiro, não se prestando, pois, a evocações geográficas e culturais tal como ocorre para o
leitor canadense. Não ousamos sugerir ou pensar em outro título: A máscara da inocência nos
parece perfeitamente aceitável.
Neste ponto, gostaríamos de comentar ainda uma metáfora que se dissimula
enquanto tal no texto de Kamouraska: trata-se do topônimo "Rue du Parloir" que,
diferentemente do que ocorre em TLT-l, foi por nós traduzido como "Rua do Parlatório". Esta
tradução mantém a significação original do romance: o parlatório é justamente o local onde
as pessoas enclausuradas falam, isoladas por uma grade, com as eventuais visitas. E a Rua do
Parlatório, em Kamouraska, é o local onde, enclausurada na identidade de Sra. Rolland,
Elisabeth produz seu discurso de rememoração, de reconstituição do seu passado, buscando
sua inocência. O parlatório pode ser interpretado como a metáfora da própria linguagem
que, no ato de comunicação, tem de ser filtrada através das "grades" de um determinado
código pré-estabelecido e ao qual comunicante e interpretante são obrigados a submeter-se,
embora procurem quase sempre escapar a suas limitações. Assim, não traduzir "rue du Parloir"
elimina a possibilidade, para o leitor, de interpretar "Parlatório" enquanto metáfora. Da parte
do leitor-tradutor, a interpretação do papel metafórico do topônimo "rue du Parloir" depende
de um saber que ultrapassa a competência lingüística e a competência discursiva: é um saber
cultural, mais propriamente literário, adquirido pela prática da leitura que visa buscar, no
texto, uma dimensão simbólica para além do que nele está dito.
As metáforas que comentaremos a seguir poderiam, a rigor, ter sido arroladas
juntamente com as lexias, junto à tradução de "en bataille", por exemplo. Ou então na seção em
que discutimos os erros por desconhecimento da polissemia isto porque muitas delas
fazem parte do elenco das metáforas já idiomatizadas.
No entanto, este processo de idiomatização é freqüentemente quebrado pela
escritora, o que justifica, como poderemos verificar, o comentário de algumas delas nesta
sub-seção. Examinemos o seguinte trecho do cap. 8:
"Votre spécialité, si vous y consentiez, serait d'exterminer parmi les vivants ceux qui portent une tête
de mort" (TLO, p. 154).
"[...] seria exterminar, entre os vivos, aqueles que trazem uma cabeça de morte." (TLT-1, p. 149).
"Tête de mort" é uma 1exia que se traduz por caveira em português. No TLO, a narra-
dora faz um jogo antitético entre "vivants" e "mort", praticamente desconstruindo a lexia,
aproximando "tête de mort" de sintagmas cujo núcleo é o substantivo "tête" usado para desig-
nar a fisionomia. A tradução direta da lexia em português destruiria o jogo de palavras
presentes em TLO: "Sua especialidade, se a aceitasse, seria a de exterminar do mundo dos vivos aqueles
que já têm a aparência de uma caveira".
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Entendemos que a tradução mais conveniente para esta passagem deva reintroduzir
a referência direta à morte, tal como: "Sua especialidade, se a aceitasse, seria a de exterminar do mundo
dos vivos aqueles que já estão à beira da morte."
Ou então: "... seria a de exterminar do mundo dos vivos aqueles que estão marcados para morrer ".
Outras metáforas cristalizadas são igualmente "revigoradas" pela narrativa de
Kamouraska:
Un petit retard de rien du tout dans votre respiration et votre coeur suffoquera. Fera
des sauts de
carpe,
hors de l’eau. Votre sang tout entier n'arrivera pas au coeur. Une carpe, demande de l'air. La
vie ! Vous allez étouffer, monsieur Rolland. Du sucre, du sucre! Vos gouttes ! (TLO, c. 2, p. 16) .
"Saut de carpe" é um tipo de salto, segundo Robert (1970), através do qual alguém
deitado se põe rapidamente de pé. "Faire des sauts de carpe dans son lit" significa "dar pulos na
cama". Vê-se, pois, que a tradução isolada de "Fera des sauts de carpe" do trecho acima
eliminaria a referência ao peixe. Entretanto, introduzindo a especificação "hors de l'eau" e
retomando "une carpe" isoladamente num outro enunciado, a referência ao animal, na
tradução, torna-se obrigatória. Em TLT-1 houve a supressão indevida de um enunciado:
"Uma pequenina demora em sua respiração e o coração se sufocará. Saltará como uma carpa fora
d'água. Uma carpa exige ar. [...]" (TLT-1, p. 12)
Em TLT-2 procuramos evitar a seqüência fônica "se-su" presente em TLT-1, e não
suprimir nenhum enunciado:
Um atraso de nada em sua respiração e o coração ficará sufocado. Dará saltos de carpa, fora d'água.
O sangue não poderá prosseguir. Uma carpa precisa de ar. A vida! Está sufocando, Senhor Rolland.
Açúcar, açúcar! Suas gotas! (TLT-2, c. 2, p. XIV)
Há metáforas que se interpretam como comparações abreviadas. Examinaremos
algumas que estão semanticamente relacionadas às comparações que comentamos na sub-
seção anterior. No exemplo abaixo, o verbo "flairer" pode ser interpretado apenas como
equivalente a pressentir (tal como ocorre em TLT-1, p. 24):
"Quel crime est-ce là quand on a surpris une seule fois le regard de Florida flairant Ia mort?" (TLO, c.
5, p. 28).
Entretanto, levando-se em consideração as várias comparações de personagens com
animais ao longo do texto, e, especificamente, as comparações da personagem Florida a
"cheval de corbillard" (p. 29 e p. 239) e a "un âne" (c. 7, p. 37), preferimos traduzir "flairer" por
farejar, que, aliás, também pode significar pressentir em português. No cap. 12, em seqüência
a uma comparação entre Antoine e "un bon chien de chasse", diz Elisabeth: "Et moi aussi je te flaire et
je te découvre" (TLO, p. 67). Como, implicitamente, Elisabeth está se comparando a um cão de
caça, a tradução deste trecho deve conservar o sentido de farejar, cheirar: "Eu também o farejo e o
descubro." Encontramos um outro trecho metafórico em que a referência a "une chienne" parece
constituir uma dificuldade para a tradução:
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L'odorat part en flèche, trouve sa proie. La découvre et la reconnait. Lui fait fête. Accueille l'odeur de
l'assassin. La sueur et l'angoisse, le gout fade du sang. Ton odeur, mon amour, ce relent f.auve. Une
chienne en moi se couche. Gémit doucement. Longtemps hurle. (TLO, c. 58, p. 215)
O olfato parte como uma flecha, encontra sua presa. Descobre-a e a reconhece. Faz-lhe festas.
Acolhe o odor do assassino. O suor e a angústia, o gosto desenxabido do sangue. Seu odor, meu
amor, esse acre cheiro de animal. Uma cadela em mim deita-se. Geme docemente. Uiva para a morte
durante muito tempo. (TLT-l, p. 212)
Nossa proposta:
O olfato rápido como uma flecha. Encontra sua presa. Reconhece-a. Faz festas para ela. Acolhe o
cheiro do assassino. O suor e a angústia, o gosto enjoativo do sangue. Teu cheiro, meu amor, fétido
como o dos animais. Há em mim uma cadela gemendo baixinho. Deitada. Uivando, lúgubre, por um
longo tempo. (C. 58 )
A lexia "en flèche" é uma metáfora já cristalizada, e corresponde à comparação do
português "como uma flecha", também já cristalizada. A tradução de "odeur" por "odor" não nos
parece conveniente, uma vez que "odor" é interpretado como o cheiro agradável, o que está
em contradição com a seqüência do texto. Evitamos o uso de substantivos como fedor (de uso
vulgar) ou fetidez (pouco usado), utilizando o adjetivo "fétido" especificado pela comparação
"como o dos animais" em correspondência com "fauve" do francês.
Optamos por traduzir o enunciado "Une chienne en moi se couche" introduzindo o
verbo haver, visto que a tradução literal (como no TLT-1) não nos parece interpretável em
português. A personagem se sente dominada pelo olfato, identificando-se imaginariamente
com uma cadela. Não vemos, neste enunciado, possibilidade de interpretação do substantivo
"cadela" em sentido figurado, visto que a associação com o sentido do olfato é dominante.
Quanto a "hurler à la mort", trata-se de uma lexia que não deve ser traduzida como uma
metáfora original. Não é usual dizer-se, em português, uivar para morte. Especificamos o ato
de uivar como lúgubre, traduzindo o significado de "hurler à la mort".
Continuando a tecer comentários sobre as metáforas, examinemos o seguinte
exemplo do cap. 8:
"Mes tantes extravagantes. Fourrures noires, voilettes noires, colliers de jais, emmêlés autour de leurs
cous de poulet." (TLO, p. 48).
Pelas razões já expostas ao abordarmos a questão das comparações com os animais,
não concordamos com o tradutor de TLT-1, que elimina a metáfora do TLO: "[...] em volta do
pescoço fino e comprido." (TLT-1, p. 42). Em português, pescoço de frango não é uma lexia e não se
usa como referência metafórica a um pescoço fino e comprido. Mas pescoço de ganso tem esta
significação, e, portanto, pode ser utilizado para traduzir tal trecho, mantendo-se a
comparação implícita com um animal.
No cap. 6 não logramos encontrar uma tradução que mantivesse a comparação
implícita no seguinte trecho: "Florida avec ses mollets de coq." (TLO, p. 32). Diz-se "mollets de coq"
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para referir-se metaforicamente a pernas finas. Mas em português não se usa pernas de galo
com esta significação. Pensamos em "pernas de saracura", mas tal ave é natural da América do
Sul, e não é verossímil que se insira tal referência no discurso de Elisabeth. Optamos então
por uma tradução que eliminou a comparação com uma ave, mas na qual se mantém um
sentido figurado": "Flórida com suas pernas de caniço" (TLT-2, c. 6, p. XXIV ).
Com os comentários que tecemos nesta sub-seção, não tivemos a pretensão de
esgotar todas as metáforas de Kamouraska. Efetuamos tão somente uma seleção com base ou
no critério da importância da metáfora para a interpretação do romance em sua dimensão
propriamente literária (como produto de um Contrato literário) ou no critério da dificuldade
da tradução. Em ambos os critérios, buscamos unidades lexicais do português que, no texto,
contribuíssem para a construção de redes de significados num processo análogo ao que se
verifica em TLO.
Constatamos que a metáfora original não representa uma dificuldade à parte para o
tradutor. Importa, sobretudo, que este saiba distinguir a significação de cada uma delas, pois
é através das metáforas que o narrador manifesta sua visão subjetiva a respeito das cenas
que integram a seqüência narrativa.
Constatamos que, para a tradução das metáforas idiomatizadas ( já dicionarizadas e
catalogadas), não é suficiente identificá-las: dependendo da importãncia de que se revestem
no TLO, o tradutor deve buscar na LT metáforas idiomatizadas que permitam uma
interpretação análoga, de modo a manter a intenção significativa interpretável em TLO.
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4.3 - Componentes do enunciativo delocutivo
Charaudeau (1983, p. 63) caracteriza o comportamento delocutivo como aquele que
"diz alguma coisa sobre o ELEx", dentro de um universo de discurso próprio a ELEx (a
terceira pessoa do discurso ou o próprio discurso) "independentemente do sujeito
enunciador".
Esse tipo de comportamento dá lugar a um enunciativo delocutivo textual e a um
enunciativo delocutivo intertextual. O enunciativo textual é o processo de enunciação pelo qual
ELEx se define em si, sem marcas de intervenção do sujeito enunciador. É marcado como o
processo de enunciação objetivo. O enunciativo intertextual é o que "põe em relação o texto
produzido com um outro texto que ultrapassa a instância enunciativa do ato de linguagem"
em que se insere. Isto é, "as marcas do texto [...] convocam mais ou menos explicitamente um
universo de discurso que não pertence propriamente ao enunciador." (Charaudeau, 1983,
p.64).
Na primeira parte desta seção comentaremos os erros e as possibilidades de
tradução do pronome "on" enquanto marca de um comportamento delocutivo textual e
suas imbricações com outros tipos de comportamento enunciativo.
Na segunda parte desta seção comentaremos os procedimentos de tradução de
componentes do delocutivo intertextual.
4.3.1 - Tradução do pronome ʺonʺ
Comentaremos, nesta sub-seção, as possibilidades de tradução do pronome "on" em
português e os erros de TLT-1 neste particular, fazendo um levantamento de exemplos que
ilustram os vários empregos deste pronome em Kamouraska.
Grevisse (1975, p.555) classifica "on" como um pronome indefinido, fazendo notar,
no entanto, que é usado como substituto de qualquer um dos pronomes pessoais do francês,
e que, por isso, também poderia ser incluído entre estes.
Isto significa que, do ponto de vista dos tipos de comportamento enunciativos, a
interpretação do pronome "on" depende estreitamente da rede de relações construída entre o
EU-enunciador e os demais protagonistas de sua instância discursiva, sejam eles os
destinatários ou o assunto do ato de linguagem em que estão implicados. Assim, para fins de
análise, agruparemos os exemplos a serem comentados segundo o comportamento
enunciativo dominante.
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4.3.1.1. O pronome "on" genérico
Examinemos o seguinte exemplo:
TLO, c.2, p.14: Mme Rolland se redresse, refait les plis de sa jupe, ajuste ses bandeaux. Va vers la
glace, à la rencontre de sa propre image, comme on va vers le secours le plus sûr.
A oração comparativa em que se insere o pronome "on" tem um significado genérico
(enuncia uma verdade atemporal) e a referência deste pronome é também genérica, isto é,
refere-se
a todo e qualquer indivíduo da classe dos humanos, independentemente de seu
papel no discurso.
Neste tipo de comparação, o EU-enunciador apresenta seu ato de linguagem como
objetivo
, como uma reafirmação de um saber compartilhado por todos os demais envolvidos
em seu ato discursivo. É esta relação de objetividade construída entre EUe e o que é dito (o
ELEx) que caracteriza o comportamento delocutivo.
Os enunciados a seguir também constituem afirmações genéricas onde "on" tem
interpretação análoga à do exemplo anterior:
TLO, c.25, p.115 : Le temps retrouvé s'ouvre les veines. Ma folle jeunesse s'ajuste sur mes os. Mes
pas dans les siens. Comme on pose ses pieds dans ses propres pistes sur la grève mouillée.
TLO, c.34, p.143 : [...] vêtements lourds brusquement ouverts sur la tendresse du ventre. Comme
une bête que l'on écorche.
TLO, c.54, p.199 : Faire taire ces femmes. Comme lorsque l'on rabat la couverture sur la cage des
perruches pour la nuit.
Apresentamos a seguir os comentários da tradução destes quatro últimos trechos:
TLT-l, c.2, p.l0: A Sra. Rolland endireita o corpo, alisa as dobras da saia e ajusta os bandós.
Dirige-se para o espelho, ao encontro de sua própria imagem, como se se encaminhasse para um
ponto de socorro mais próximo.
Nesta tradução, o sujeito da oração comparativa deixa de ter uma referência
arbitrária (isto é, deixa de referir-se indiferentemente a todo e qualquer indivíduo da classe
dos humanos). Interpreta-se o pronome "on" como um reflexivo referindo-se à Sra. Rolland.
O que para nós parece mais criticável, no entanto, é a seqüência sonora "se se", que poderia
ter sido evitada.
Nossa proposta em TLT-2 é a seguinte:
TLT-2, c.2, p.XI : “A Sra. Rolland se recompõe, ajeita as pregas da saia, ajusta os bandós. Vai até
o espelho, ao encontro da própria imagem, como quem procurasse o socorro mais seguro.”
O pronome quem, do enunciado acima, tem referência arbitrária tal como o pronome
"on" do francês.
TLT-l, c.25, p.110: "[...] Meus passos nos seus. Como se colocassem
os pés nas próprias pegadas,
na areia molhada."
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A tradução do verbo com sujeito "on" por um verbo na 3ª pessoa do plural é
inadequada para este trecho (tal como o seria para o exemplo anterior). Nesta tradução,
interpreta-se a terceira pessoa do plural como referente a "passos", o que constitui uma
incoerência, pois "pegadas" são atribuíveis a pessoas e não a "passos".
Nossa proposta:
O tempo redescoberto abre suas veias. Minha louca juventude ajusta-se sobre meus ossos. Refaço
meus passos. Como quem põe os pés sobre as próprias pegadas na praia molhada. (TLT-2, c.25,
p. LV).
Neste trecho, diferentemente do que fizemos no exemplo anterior, preferimos
manter o modo indicativo na oração comparativa para significar que se trata da descrição de
uma sensação efetivamente vivida pela personagem-narradora embora esta a atribua
genericamente a qualquer indivíduo. Não se trata, como no exemplo anterior, de uma
interpretação do narrador ao observar a personagem, o que teria então permitido a
formulação da comparação na forma de uma atribuição hipotética.
TLT-l, c.34, p.138: "Roupagem pesada aberta bruscamente sobre a flacidez do ventre. Como um
animal que a gente esfolasse."
A tradução de "on" por "a gente" não é conveniente para este trecho. O discurso de
Elisabeth enquanto narradora não cria uma relação de informalidade com o destinatário que
permita o uso de a gente na tradução. Talvez isso seja possível nos momentos em que a
narração cede lugar à expansão dos sentimentos da personagem, quando é construída a
imagem de um outro destinatário diferente do leitor o que pode ocorrer nos diálogos.
Para a tradução deste exemplo do cap. 34, fizemos várias tentativas. Em tese, o uso
da partícula apassivadora seria possível: "Como um animal que se esfola". Mas, neste caso, o "se"
poderia ser interpretado como um reflexivo, o que estaria em desacordo com o TLO.
Experimentamos a voz passiva: "Roupas pesadas abertas bruscanente expondo a maciez do ventre.
Como um animal que é esfolado."
Também não aprovamos: dá margem à interpretação de que se comparam roupas
com animal, o que não corresponde à interpretação do TLO. Verificamos então que a
comparação se dá entre dois processos e para que isso fique claro, mudamos a formulação do
enunciado, fazendo com que a ação passasse a ser o termo de comparação: "Roupas pesadas
abertas bruscamente expondo a maciez do ventre. Como ao se esfolar um animal." A voz passiva com "se",
neste caso, é interpretada como remetendo a um agente de referência arbitrária, conveniente
à tradução do enunciado do TLO.
A seqüência do cap. 54 contém uma comparação semelhante à dos exemplos
anteriores. Tradução em TLT-1:
251
140
“Fazer aquelas mulheres calarem-se. Como quando se desce a coberta por cima da gaiola dos
papagaios, à noite." (p.196).
Neste trecho, a tradução de "on" corresponde à mesma referência presente no TLO,
mas a seqüência de conjunções "como quando" é sonoramente pesada em português, e poderia
ter sido evitada. Propomos então:
"Fazer calar essas mulheres. Como ao cobrir a gaiola dos periquitos, à noite." (TLT-2, c. 54, p. CI)
Com essa tradução, interpreta-se que o agente subentendido tem referência
arbitrária, e evita-se o artificialismo de TLT-1.
Os trechos seguintes dão seqüência ao mesmo tipo de emprego do pronome "on":
TLO,c.25,p.118: "Horse Marie est si maigre que 1orsqu'elle lève les bras, on peut lui compter les
côtes."
TLT-1, c.25, p.113: "Horse Marine é tão magra que, quando ela levanta os braços, se lhe pode
contar as costelas."
TLO, c.45,p. 172: "La terre et le coeur se ravinent, d'un seul et même ravage. On ne saura jamais
au juste où cela a comrnencé."
TLT-1, c.45, p. 170: "[...] Jamais se saberá onde isso começou."
A correspondência entre o enunciado em francês construído com "on" e o enunciado
em português com sujeito indeterminado está correta. O que julgamos inconveniente em
TLT-1 é a seqüência "se lhe", em desuso no português falado e escrito atualmente no Brasil.
O agente implícito do verbo no infinitivo é interpretado como de referência
arbitrária em nossa proposta para tradução do cap. 25:
TLT-2, p .LIX: "Horse Marine é tão magra que dá para contar suas costelas quando levanta os
braços".
Não temos reparo a fazer à tradução do trecho do cap. 45: o "se" apassivador
permite a interpretação do enunciado genérico em que se subentende um agente com
referência arbitrária. Mas também seria possível o uso do indefinido ninguém: "Ninguém jamais
saberá ao certo onde isso começou."
Os exemplos que analisaremos a seguir são ligeiramente diferentes da série que
acabamos de examinar. São eles:
TLO, c.45,p.172: "On pourrait croire que ma propre existence tumultueuse suffit désormais à
Aurélie."
TLT-l, p.169: "Podia-se crer que doravante basta para Aurélie minha própria existência
tumultuosa."
TLO,c.26,p.120: "Un adolescent, le bras en écharpe, s'avance si lentement qu'on dirait qu'il va
tomber, à chaque pas."
TLT-l, c. 26, p.115: "Um adolescente, com o braço enfaixado, adianta-se tão lentamente que se
diria iria cair a cada passo."
TLO, c.35, p.174: "Ses yeux rougis ne clignent pas. On dirait qu'il se soumet lui-même, sans
aucune espèce de défense, au supplice de la lumière."
252
253
141
TLT-l, c.35,p.142: "Seus olhos congestionados não pestanejam. Dir-se-ia que se submete, sem
qualquer espécie de defesa, ao suplício da claridade."
Os verbos "pourrait croire" e "dirait" introduzem orações modalizadas como crenças ou
previsões atribuídas a todo e qualquer indivíduo (representado pelo pronome "on") a respeito
do acontecimento relatado no enunciado anterior. Entretanto, como os verbos modalizadores
estão no modo condicional, os enunciados em que se encontram tornam-se suposições
a
respeito da crença e da opinião de todos os indivíduos. E a suposição faz parte de um
comportamento elocutivo e não delocutivo. Assim, embora o Eu-enunciador atribua a crença e
a previsão a todos os humanos (através do emprego do pronome "on"), como se trata de uma
suposição, o EU-enunciador passa a ser o elemento dominante na classe dos humanos.
Sob um outro ponto de vista, pode-se dizer que o EU-enunciador estende sua
própria crença e sua própria opinião a respeito de um acontecimento a todos os outros
indivíduos, mas como se trata de uma crença e de uma opinião sobre um acontecimento
específico, a atribuição a toda a classe é marcada como uma suposição. Assim, o com-
portamento delocutivo marcado por "on" dissimula um comportamento elocutivo.
As traduções do pronome em TLT-l são aceitáveis: pode-se traduzir construções
com o pronome "on" por construções com o "se" apassivador ou indeterminador. Outros
motivos nos levaram a rejeitá-las, no entanto.
No trecho do cap. 45, a combinação de tempos passado - presente num mesmo
enunciado tal como ocorre em TLT-l não é aceitável em português. Além disso, o imperfeito
não traduz convenientemente, aí, o valor modal da forma "pourrait" do francês. Em TLT-2,
interpretando a referência do pronome "on" ao EU-enunciador como sendo a mais pertinente
ao contexto do que a referência arbitrária, optamos pela tradução seguinte, em que a crença ê
atribuída apenas ao EUe:
TLT-2, c.45,p. XCI: "Acredito que minha existência tumultuada baste a Aurelie atualmente."
No trecho do cap. 26, a seqüência "diria iria" produz um efeito de eco a ser evitado
numa prosa romanesca. Traduzimos este trecho como se segue: "Um adolescente, com o braço na
tipóia, move-se tão lentamente que parece a ponto de cair, a cada passo." (TLT-2, c.26, p. LXI)
Com esta tradução, mantivemos a ambigüidade entre os comportamentos
delocutivo e elocutivo. Isto porque apesar do verbo "parecer" introduzir um processo
independente da posição do sujeito enunciador, neste enunciado introduz uma previsão
que depende de uma atitude prospectiva do enunciador.
Em vários outros trechos do romance em que a seqüência "On dirait que..." se repete,
quase sempre preferimos traduzi-la por "parece que", melhor do que a fórmula "dir-se-ia que..."
cujo pronome mesoclítico soa rebarbativo por estar em desuso no português do Brasil. É o
254
255
142
que propomos, em TLT-2, na tradução do trecho do cap. 35: "parece submeter-se
propositadamente, sem nenhuma defesa, ao suplício da luz." (p.LXXVII)
Nos exemplos seguintes temos ocorrências do pronome "on" com interpretações
semelhantes às que acabamos de comentar:
TLO, c.4, p.23: "Oui, oui, je suis folle. C'est cela la folie [...] Rêver au risque de se détruire, à tout
instant, cornme si on mimait sa mort."
TLT-1, p. 19: "[...] Sonhar e correr o risco de se destruir a todo instante como se se imitasse a
morte."
TLO, c.25,p.114: "Tante Adélaïde affirme qu'on voit le docteur Nelson à la messe le dimanche."
TLT-1, p.109: "Tia AdélaIde afirma que o Dr. Nelson foi visto domingo na missa."
TLO, c.30, p.133: "Le cabinet de toilette de ma mère. On étouffe ici. Cette odeur de renfermé. J'ai la
nausée."
TLT-1, p. 128: "[...] A gente sente-se abafada aqui."
O pronome "on" no exemplo do cap. 4 interpreta-se como uma extensão a todo um
subconjunto da classe dos humanos (composto pelos indivíduos que se encontram na mesma
situação de "loucura" da personagem) da experiência subjetiva narrada pelo eu-enunciador.
A tradução em TLT-1 resulta, mais uma vez, na seqüência "se se", a ser evitada num texto
literário. Tradução que propomos, utilizando o pronome "quem" de referência arbitrária:
"Sonhar correndo o risco de destruir-se, a cada instante, como quem fingisse a própria morte." (cap. 4)
O trecho do cap. 25 acima foi totalmente desvirtuado em TLT-1 pela má tradução da
forma verbal "voit". Em TLO, trata-se da afirmação de um acontecimento que se repete
regularmente — o que difere totalmente do valor aspectual resultativo da forma passiva "foi
visto". Uma tradução possível seria: "Tia Adelaide afirma que o doutor Nelson é sempre visto na missa
aos domingos."
Em TLT-2 optamos por uma mudança de ponto de vista: se o Dr. Nelson "é visto" na
missa é porque ele está
presente: "Tia Adelaide afirma que o doutor Nelson está sempre presente na
missa de domingo." (TLT-2, c.25, p. LIV) Mantém-se, em nossa tradução, o comportamento
delocutivo do enunciado do TLO.
No exemplo do cap. 30, o pronome "on" interpreta-se como tendo referência
arbitrária, marcando um comportamento delocutivo que dissimula um comportamento
elocutivo: o EU-enunciador não se assume enquanto ponto de referência principal de seu
próprio discurso, atribuindo suas impressões sensoriais a todo o conjunto de indivíduos
suscetíveis de se encontrarem nas mesmas circunstâncias. A respeito de TLT-l, julgamos
inconveniente usar a forma "a gente" no discurso de Elisabeth enquanto narradora, como já
dissemos.
256
257
143
Efetivamente, a tradução de "on étouffe" é problemática. A partícula "se" enclítica aos
verbos "sufocar" ou "abafar", nos enunciados "Sufoca-se aqui" ou "Abafa-se aqui", que não têm
objeto direto explícito, é interpretada como pronome apassivador. A interpretação como
reflexivo fica prejudicada porque a referência à 3ª pessoa implícita não é identificável nas
seqüências anteriores. Experimentando a tradução pela voz passiva analítica, o resultado
também não foi satistatório: "Fica-se sufocado aqui", pois o gênero masculino está em
desacordo com a referência dissimulada à 1ª pessoa, que remete à personagem Elisabeth, do
sexo feminino. Através de procedimentos tradutórios em que se muda o ponto de vista (a
"modulação" segundo Vinay & Darbelnet, 1977, p.88) e a categoria gramatical de palavras do
trecho a ser traduzido (a "transposição" segundo os mesmos autores, 1977, p. 50)
encontramos a seguinte formulação, que julgamos melhor: "Isto aqui é sufocante." (TLT-2, c. 30,
p. LXXI). O verbo do TLO foi traduzido por um adjetivo que implica um paciente,
traduzindo-se pois implicitamente a referência arbitrária de "on" extensiva ao "je".
As ocorrências do pronome "on" examinadas até aqui, de referência arbitrária,
admitiram traduções variadas. Entretanto, verificou-se como absolutamente inadequada a
tradução de "on" por uma terceira pessoa do plural expressa na desinência verbal, por
excluir tanto a 1ª quanto a 2ª pessoas. A título recapitulativo, listamos os vários recursos
lingüísticos utilizados ao traduzirmos os enunciados construídos com pronome "on"
genérico:
— Construção frasal que suprima qualquer referência ao agente.
— Uso do indefinido "ninguém" em enunciado negativo.
— Uso do pronome "quem" indefinido.
— Uso do infinitivo com sujeito arbitrário implícito.
— Uso do verbo parecer impessoal.
— Uso da voz passiva analítica com agente omitido.
— Uso da voz passiva pronominal (com o "se" apassivador) .
Ainda como possibilidades de tradução não utilizadas, listamos: uso do indefinido
"alguém" e uso do pronome "se" indeterminador do sujeito.
4.3.1.2. O pronome "on" de terceira pessoa
No cap. 65, o seguinte trecho ilustra o emprego do pronome "on" delocutivo
excluindo a 1ª e a 2ª pessoas:
Dans un champ aride, sous les pierres, on
a déterré une fernme noire, vivante, datant d'une époque
reculée et sauvage. Etrangement conservée. On
l'a lâchée dans la petite ville. Puis on s'est barricadé,
chacun chez soi. Tant la peur qu'on
a de cette fernme est grande et profonde. [...] On n'en a sans
doute jamais connu de semblable. (TLO, c. 65, p.250)
259
144
As duas primeiras ocorrências do pronome "on" sâo interpretadas como uma
referência a um ou mais elementos não
especificados do conjunto "habitantes da cidadezinha".
As três últimas ocorrências assinaladas podem ser interpretadas como genéricas
se
considerarmos que se referem à totalidade de um conjunto, onde "on" pode ser glosado por:
"Para todo indivíduo que é habitante da cidadezinha, é verdadeiro que ..."
O trecho correspondente em TLT-1 é o seguinte:
Desenterrou-se
, num campo árido, debaixo das pedras, uma mulher preta, viva, datando de uma
época longínqua e selvagem. [...] Deixaram
-na na cidadezinha. Todos levantaram, depois, em suas
casas, uma barricada, tal o grande e profundo pavor que sentiam
. [...] Sem dúvida, jamais se vira
coisa igual. (TLT-1, c.65, p. 247)
Tanto a tradução pelo apassivador "se" quanto pela 3ª pessoa do plural e mesmo
pelo indefinido "todos" (traduzindo este, ao mesmo tempo, "on" e "chacun") são adequadas
porque permitem a interpretação da referência a um sujeito não-específico (as duas primeiras
ocorrências) e a um sujeito genérico (as duas últimas).
Preferimos, em TLT-2, não utilizar o pronome apassivador no primeiro enunciado,
para evitar ambigüidade com a referência genérica que inclui a 1ª pessoa. A personagem
narradora, neste trecho, identifica-se com a mulher que foi desenterrada e não com as demais
pessoas:
Num campo árido, de baixo das pedras, desenterraram
uma mulher negra, viva, originária de uma
época remota e selvagem. Estranhamente conservada. Largaram
-na na cidadezinha. Depois fizeram
barricadas cada um em sua casa. Tão grande e profundo é o medo que têm
dessa mulher. [...] Nunca
se
viu, provavelmente, nada parecido. (TLT-2, c. 65, p. CXXI)
No enunciado "Nunca se viu..." acima, interpreta-se o agente subentendido como
referente ao que já foi interpretado nos enunciados anteriores, não havendo ambigüidade.
Arrolamos a seguir uma série de trechos em que se encontram exemplos do
pronome "on" de referência genérica
à totalidade de um conjunto (que exclui a 1ª e a 2ª
pessoas), confrontando as formulações de TLT-1 com as de TLT-2:
TLO, c.35,p.145: "Il y a un homme blond et gros dans Sorel qui est las d'être chez les filles. / — On
me soigne, on
me bichonne! On me vole et on me viole! On me ruine aussi."
TLT-1, p. 140: "[...] Elas
cuidam de mim, acariciam-me! Roubam-me e constrangem-me! Arruínam-
me também."
TLO, c.35, p.146: "Mais voici celle qu'on
n'attendait pas. L'épouse en colère."
TLT-1, p.141: "Mas eis uma pessoa cuja vinda não se
esperava. A esposa, presa de cólera."
Estes dois trechos fazem parte do capítulo em que é narrada a volta de Antoine
Tassy à casa da Rua Augusta, após alguns meses em que viveu entre mulheres vadias,
separado de Elisabeth. Ao chegar à casa, Antoine só encontra os criados, situação que muda
quando Elisabeth resolve "reconciliar-se" com ele.
260
261
145
No exemplo da pág. 145, a referência do pronome "on" se estende à totalidade dos
elementos do conjunto de mulheres com que o personagem se envolveu. A tradução por
"elas" é adequada, pois "on" é interpretado como co-referente a "filles" do enunciado anterior.
Em TLT-2 preferimos não explicitar o sujeito: "— Me fazem
agrados, me paparicam! Me
roubam
e me violentam! Me arruínam também." (TLT-2, c.35, p. LXXV).
No exemplo da p. 146, a referência do pronome "on" é à totalidade do conjunto das
pessoas presentes. A tradução em TLT-1, com o pronome apassivador, é adequada, pois
permite esta interpretação. Em TLT-2 utilizamos o indefinido ninguém: "Eis entretanto aquela que
ninguém
esperava." (c.35, p. LXXVII). Aqui, a referência a um agente genérico é interpretada
como extensiva apenas ao conjunto das pessoas presentes à chegada.
Uma outra ocorrência de pronome "on" análoga a estas duas últimas é a seguinte:
TLO, c.60,p.224: "Déjà on
s'étonne, au manoir, de l'absence prolongée du jeune seigneur."
TLT-1, p.221: "Já causa estranheza, na mansão, a prolongada ausência do jovem senhor."
No enunciado de TLT-1 interpreta-se que a "estranheza" afeta todos os elementos do
conjunto de moradores da mansão — tal como a interpretação do pronome "on" do TLO.
Os exemplos seguintes são análogos aos dois primeiros do trecho do cap. 65 citado
no inicio desta sub-seção, isto é, são não-específicos:
TLO, c.35, p.145: "Ordonne qu'on
lui taille cette barbe irnmédiatement."
TLT-1, p.140: "Ordena que lhe façam
imediatamente a barba."
TLO, c. 35, p.147: "Il demande à voir ses fils. On
les lui amène."
TLT-1, p.42: "Pede para ver os filhos. Trazem
-nos para ele."
As traduções em TLT-1 são adequadas, pois nos dois trechos do TLO a referência do
pronome "on" é a um ou mais indivíduos não-especificados, com exclusão da 1ª e a 2ª
pessoas. Nossa proposta em TLT-2, para o exemplo da p. 42, é diferente: "Alguém
os traz à sua
presença" (TLT-2, p. LXXVII) .A tradução pelo indefinido alguém também teria sido possível
para o trecho da p. 145. Tal como a forma verbal na 3ª pessoa do plural, o indefinido alguém
refere-se a uma parte não especificada de um conjunto que também exclui, neste contexto, as
1ª e 2ª pessoas.
Apresentamos ainda dois outros exemplos, cuja tradução em TLT-1 é criticável:
TLO,c.2,p.12: "Depuis quelque temps on
rôde dans la ville."
Tradução em TLT-1: "Já faz tempo que gente
anda rondando pela cidade." (p. 8).
TLO, c.26, p.120: "On
bouge et on respire bruyamment, derrière la cloison."
Em TLT-1: "Mexe-se
e respira-se ruidosamente por trás da divisão de madeira." (p. 115).
No exemplo do cap. 2, o substantivo "gente" não está corretamente empregado em
função de sujeito. Tal substantivo não precedido de determinante aparece preferentemente
262
263
146
em função de objeto direto. Assim, a seguinte tradução seria mais adequada: "Já faz tempo que
há gente
rondando pela cidade." Nossa proposta em TLT-2 faz uso da 3ª pessoa do plural:
TLT-2, c.2, p. IX: "Já faz algum tempo que andam
rondando pela cidade."
A tradução do trecho do cap. 26 tem o inconveniente da ambigüidade: o pronome
de "mexe-se" pode ser interpretado como reflexivo, como co-referente do sujeito da oração
anterior ("Espero que o médico tenha terminado a consulta" TLT-1, p.115). Propomos em TLT-2 a
tradução pelo indefinido alguém, que, como nos exemplos anteriores, refere-se a uma parte
não-específica de um conjunto: "Alguém se mexe e respira ruidosamente, por trás da parede de madeira."
(TLT-2, p. LXII).
Vimos então que os enunciados construídos com o pronome "on" referindo-se à
totalidade de um conjunto que exclui
a 1ª e a 2ª pessoas admitiram as seguintes possi-
bilidades de tradução coincidentes com as utilizadas para traduzir este mesmo pronome
extensivo a toda a classe dos humanos:
— Uso do indefinido "ninguém".
— Construção passiva com o pronome "se".
— Construção em que se desloca o complemento para a posição de sujeito, dei-
xando subentendida a referência a um agente genérico.
Certamente, em outros exemplos, teria sido possível traduzir-se os enunciados com
pronome "on" genérico de 3ª pessoa por outras construções que dispensam a explicitação do
agente, por construções com o indeterminador "se" e por construções na voz passiva analítica
com agente subentendido.
Verificamos então que a principal construção, em português, característica da
referência à 3ª pessoa genérica
é a construção com o verbo na 3ª pessoa do plural sem sujeito
expresso, tendo sido freqüentemente utilizada por nós em TLT-2.
Construções próprias ao "on" não-específico
: uso do indefinido "alguém" e da
construção "há gente que". Possibilidade não utilizada: "há pessoas que".
As construções seguintes são comuns
ao "on" não-específico e ao "on" genérico (que
inclui a 1ª e a 2ª pessoas):
— Construção passiva pronominal (com o pronome "se") .
— Construção com o pronome indeterminador "se".
Construção comum ao "on" genérico de 3ª pessoa: a que utiliza o verbo na 3ª pessoa
do plural, além das duas acima.
Temos a observar que o uso das construções com os pronomes "se" apassivador e
indeterminador por vezes tornam-se ambíguas, sendo preferíveis outros tipos de construção.
264
147
4.3.1.3. O pronome "on" não-delocutivo
Encontramos em Kamouraska alguns exemplos de emprego do pronome "on" típicos
da variante oral coloquial do francês. São ocorrências do pronome que marcam um
comportamento elocutivo
, onde freqüentemente a 1ª pessoa do discurso se associa a outras,
em combinações variadas. Encontramos igualmente um exemplo de pronome "on" alocutivo
.
Os exemplos são os seguintes:
TLO, c. 4, p. 23: "On verra bien si cette charrette de malheur existe."
TLT-1, p. 20: "Ver-se-á se existe realmente aquele carro de desgraça."
Esta tradução, péssima pelos mais diversos motivos, não está errada quanto à
tradução do pronome "on". É possível usar-se o apassivador neste caso, ficando implícito o
agente, facilmente interpretável graças às circunstâncias do discurso. Entretanto, propomos
uma outra tradução: "Vamos ver se essa carroça infame existe mesmo."
Nesta parte do monólogo interior da Sra. Rolland, ela está distante do marido. O
pronome "on" refere-se tão somente à 1ª pessoa. Como em português a 1ª pessoa do plural
também pode ser utilizada para referir-se apenas a uma pessoa, principalmente com o verbo
"ir" seguido de infinitivo, foi esta a solução que achamos mais conveniente.
TLO, c.5, p.27: "Ces grands filets marins que l’on
entraîne, ensemble."
TLT-1, p. 23: "Essas redes marinhas que se puxa, juntos."
Totalmente contrário à norma propugnada pelas gramáticas normativas da língua
portuguesa, pela não-concordância do verbo com o sujeito, este enunciado de TLT-1 nos
parece estranho e inadequado também porque "juntos" não é interpretável como um aposto
ao agente subentendido, mas como ao paciente — o que torna o enunciado sem sentido. No
enunciado do TLO, interpreta-se "on" como referente a uma 1ª pessoa do plural que inclui a
2ª pessoa, e por isso propomos a seguinte tradução em TLT-2:
"As grandes redes de pesca que puxamos juntos." (c. 5, p. XVIII).
TLO, c. 58, p.214: "Clermont s'est assis dans le lit avec moi. On
a écouté, tous les deux, cogner à
la porte."
TLT-1, p. 211: "Clermont sentou-se no leito comigo. Pusemo-nos a escutar, todos os dois."
A tradução pela 1ª pessoa do plural está correta. Trata-se da referência a uma 1ª
pessoa que inclui uma 3ª pessoa. Entretanto, como se trata do depoimento de uma
personagem marcada como "não-culta", é conveniente modificarem-se os dois enunciados de
modo a melhor adequá-los a esta característica da personagem. Nossa proposta:
"Clermont sentou na cama comigo. Ficamos os dois escutando bater na porta." (c.58).
Eliminamos a ênclise do pronome reflexivo "nos", pouco usada na variante oral, e o
reflexivo do verbo "sentar-se", além de preferirmos o vocábulo "cama" a "
leito".
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266
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TLO, c.35, p. 146- "Réconcilions-nous avec mon mari, une bonne fois, et qu'on n'en parle plus."
TLT-1, p. 141: "Reconciliemo-nos com meu marido de uma vez por todas, e não se fale mais
nisso."
O pronome "on" refere-se às três pessoas do discurso, neste exemplo: Elisabeth
refere-se a si mesma e às tias, à mãe e aos criados que a escutam, e a quaisquer outras
pessoas que mesmo não estando presentes poderiam comentar mais tarde o assunto. Nossa
proposta em TLT-2 difere em outros aspectos:
"Vamos nos reconciliar com meu marido de uma vez por todas, e não se fala mais nisso." (c. 35, p.
LXXVII).
Evitamos mais uma vez a ênclise do pronome "nos" reflexivo. Além disso,
traduzimos o imperativo pela fórmula consagrada no português coloquial dos centros
urbanos brasileiros: "não se fala mais nisso", onde não utilizamos a forma do imperativo
negativo da gramática normativa, mas a que normalmente se diz em circunstãncias de
discurso semelhantes.
TLO, c. 30, p. 133: "Je parle pour qu'on m'entende, Madame."
Em TLT-1: "Falo para que me escutem, madame."
Este é o único exemplo caracteristicamente alocutivo do pronome "on" que
encontramos no TLO. Refere-se, ao mesmo tempo, à 2ª pessoa a quem se dirige Aurélie e às
demais pessoas da casa. A tradução de TLT-1 é adequada, pois a 3ª pessoa do plural, em
português, graças ao uso das formas de tratamento, permite a referência que inclui a 2ª
pessoa.
Embora o pronome "on", chamado por Grevisse (1975, p.555) de pronome
"camaleão", também possa referir-se exclusivamente à 2ª pessoa, não encontramos exemplos
desse tipo em Kamouraska.
As possibilidades de tradução do pronome "on" elocutivo não se limitam às que
enumeramos aqui. Além do pronome apassivador, do pronome indeterminador e da 1ª
pessoa do plural, também seria possível a tradução pelo indefinido "a gente".
Para o pronome "on" alocutivo, a 3ª pessoa do plural, o pronome apassivador e o
pronome indeterminador são as possibilidades mais freqüentes.
Verificamos, nesta sub-seção 4.3.1, como a tradução do pronome "on" depende
estreitamente da interpretação de seu papel enunciativo e da vizinhança discursiva.
Apesar do fato de as construções com pronome apassivador e pronome
indeterminador poderem ser utilizadas para a tradução de todas as ocorrências de "on", a
conveniência em utilizá-las vai depender do enunciado e da vizinhança discursiva, pois se
prestam a ambigüidades com o pronome "se" reflexivo. E por vezes, se prestam a
267
268
149
ambigüidades interpretativas, por só excluírem a 1ª pessoa quando a vizinhança discursiva é
suficientemente clara quanto à referência ao agente.
É necessário saber distinguir que tipo de comportamento enunciativo está sendo
marcado pelo pronome "on", porque certas distinções são pertinentes: o delocutivo que
exclui a 1ª e 2ª pessoas admite a tradução pela construção com o verbo na 3ª pessoa do
plural, enquanto os outros tipos não admitem tal construção. Na maioria dos casos, só se
distingue que tipo de comportamento está em jogo se for levada em consideração a rede de
co-referências construída de enunciado para enunciado dentro do texto. E sempre tomando
como principal ponto de referência o EU-enunciador e suas relações com os demais
protagonistas da "mise-en-scene" discursiva.
4.3.2. Tradução do ʺdiscurso citadoʺ e das alusões
Ao "convocar um universo de discurso que não pertence propriamente ao
enunciador" (Charaudeau, 1983, p.64) o EU-enunciador se ausenta enquanto tal para dar
lugar à voz de um outro enunciador.
Em Kamouraska, ao construir sua narrativa, o EUe1 (o narrador onisciente) entra no
universo de discurso de um de seus personagens, a saber, Elisabeth. Os discursos dos outros
personagens, já nesta instância, funcionam como reprodução do discurso do outro, posto que
ficam fora do circuito EUe1 - TUd1.
Quando um dos ELEx1 se torna um narrador — isto é, quando a personagem
Elisabeth ganha status de narradora, passando a integrar o circuito enunciativo EUe2 -TUd2
— alguns personagens construidos nesta instância ganham o "status" de enunciadores. E,
mais uma vez, tem-se a reprodução de discursos outros
, dentro da narrativa de Elisabeth.
Tais discursos, em forma de diálogos ou de depoimentos, são construções intertextuais
ficcionais, pois são produzidos "como se" não pertencessem ao narrador, o qual procura
diferenciá-los do seu de alguma forma.
Para efeitos da análise das questões ligadas à tradução desses discursos, a eles nos
referiremos como discursos citados dentro da narrativa.
Uma outra ordem de citações pontua o discurso de Elisabeth: são as citações de
"fragmentos de discurso que pertencem a um saber que se supõe compartilhado pelos
membros de uma mesma comunidade sociolingüística." (Charaudeau, 1983, p.65). São
citações cuja identificação depende, pois, precipuamente, de um fundo cultural comum entre
o escritor e o leitor.
Embora tais citações sejam bastante claras ao longo do romance, a elas nos
referiremos sob a designação de alusões.
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270
150
4.3.2.1. O discurso citado
O discurso citado é construído como se fosse a reprodução da fala espontãnea dos
personagens. É, portanto, marcado como a realização de uma variante sociolingüística
diferente daquela utilizada pelos narradores.
Essas marcas tanto podem identificar-se na escolha do léxico, no tipo de
estruturação frasal e mesmo no uso de formas consideradas "erradas" segundo a língua
padrão.
Na maioria das vezes não é possível utilizar-se o mesmo tipo de marca da LO, e por
isso o tradutor deve procurar outras marcas, na LT, que produzam o mesmo efeito de
diferenciação de variante sociolingüística.
Mostraremos em seguida como procedemos, em várias passagens de nossa
tradução, para marcar o discurso citado como pertencente a uma variante diferente do
discurso do narrador, confrontando-as com TLT-l.
Dos diálogos entre o Sr. e a Sra. Rolland, destacamos os seguintes trechos do cap. 5:
TLO, c. 5, p. 26:
— Elisabeth! Elle s'appelait comment cette fille?
— Quelle fille? Que veux-tu dire?
[...]
—Tu sais bien, celle qui fumait la pipe? Elle s'appelait Aurélie Caron. Je me souviens maintenant...
[...]
—Pourquoi parles-tu de cela? Qu'est-ce qui te prend?
Tradução em TLT-1, p.22:
—Elisabeth! Como se chamava mesmo a mulher?
—Que mulher? Que quer você dizer?
[...]
—Você sabe bem, aquela que fumava cachimbo. Ela chamava-se Aurélie Caron. Lembro-me agora...
[...]
—Por que está falando nisso? Que se passa com você?
Verificamos, em TLO, que apesar de a intriga do romance ser situada em meados do
século XIX, não há da parte do escritor a tentativa de reproduzir o tipo de linguagem da
época. Os diálogos construídos não diferem dos que poderiam ser atribuídos a personagens
do nosso século, a não ser talvez por um uso mais freqüente da interrogação com inversão do
sujeito. Entretanto, no exemplo acima, no enunciado "Elle s'appelait comment cette fille?" o
interrogativo permanece em posição pós-verbal e o sujeito pronominal é co-referente a um
sintagma deslocado para a direita. Tal estruturação é característica do francês coloquial atual.
Diferentemente do que fez o tradutor de TLT-1, preferimos marcar tal diálogo como
uma manifestação do discurso oral espontâneo dos dois personagens:
TLT-2, c.5, p. XVII:
—Elisabeth! Como é que se chamava aquela mulher?
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—Que mulher? Do que é que você está falando?
[...]
—Você sabe, aquela que fumava cachimbo? Ela se chamava Aurelie Caron. Agora me lembro...
[...]
—Por que está falando disso? O que deu em você?
As formas interrogativas compostas "como é que" e "do que é que" sâo mais iden-
tificáveis como características do discurso oral do que as formas simples utilizadas em TLT-l.
Os pronomes pessoais átonos proclíticos também. E a pergunta "O que deu em você?" é também
mais característica do que "Que se passa com vo?" — não apenas pelo uso idiomático do
verbo "dar" como pelo uso da forma interrogativa "o que" em vez de simplesmente "que".
No cap. 6, o seguinte enunciado de Anne-Marie:
TLO, p. 34: " — O maman laisse-moi te coiffer."
Traduzido por:
TLT-l, p.31: "— Oh, mamãe, deixe-me penteá-la!"
E que preferimos traduzir por:
TLT-2, p. XXVIII "—Mamãe, pode deixar que eu penteio você!"
Em nossa tradução, evitamos as duas ênclises que tornariam artificial a fala de
Anne-Marie, filha de Elisabeth com o Sr. Rolland. Examine-se igualmente o seguinte
enunciado de Elisabeth no cap. 11:
TLO, p.63: "— Et les garçons, Aurélie? Parle-moi des garçons?"
Traduzido em TLT-l por: "— E os rapazes, Aurélie? Fale-me dos rapazes." (p. 60)
E que nós traduzimos por:
TLT-2, p. XL: — E os rapazes, Aurelie? Me fala dos rapazes."
O imperativo na 2ª pessoa e a próclise do pronome pessoal caracterizam melhor o
tom de súplica de Elisabeth adolescente ao falar pela primeira vez com Aurélie, preferível ao
enunciado que usa a terceira pessoa e a ênclise no TLT-1.
Outro fragmento de diálogo entre Elisabeth e Anne- Marie, no cap. 65:
TLO, p.247: "— Anne-Marie, ma petite fille, je descends tout de suite. Passe-moi un mouchoir, là,
dans le tiroir."
TLT-1, p.245: " — Anne-Marie, minha filhinha, já vou descer. Tire um lenço ali da gaveta.
TLT-2, p. CXIX: " — Anne-Marie, minha filhinha, já vou descer. Me traz um lenço, ali, da gaveta."
Neste trecho, preferimos mais uma vez a forma da 2ª pessoa do imperativo,
combinada com a próclise, marcando a súplica de Elisabeth dirigida à filha. A forma de 3ª
pessoa do imperativo é usada preferentemente, na variante coloquial, ao se dar uma ordem.
No cap. 16, a fala de Aurélie é marcada como a realização de uma variante oral
geralmente qualificada como "popular" (já nos referimos a isso em outros pontos do presente
estudo). Destacamos o trecho seguinte:
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TLO, p. 81: "— Je peux pas aller plus loin. Vous savez bien. J'ai jamais été en service au manoir de
Kamouraska, moi. Je suis venue seulement une fois dans ces parages... Mais sans jamais entrer au
manoir... Rapport à une certaine commission que..."
Em TLT-1: — Não posso ir mais longe. Sabe muito bem. Nunca trabalhei na mansão de
Kamouraska. Vim somente uma vez a essas paragens... Mas sem jamais entrar na mansão... Foi com
relação a certa incumbência que... (p.77)
A comparar com TLT-2, p.XLVI:
Não posso continuar não. A madame sabe disso. Pois se eu nunca trabalhei no solar de
Kamouraska. Só vim aqui uma vez, nestas paragens. Mas sem entrar no solar... Pra fazer um trabalho
que...
No trecho de TLT-1, destacamos como inconveniente o uso do vocábulo
"incumbência", que soa erudito demais para ser usado por Aurélie — ainda mais para
traduzir "commission", de uso freqüente em francês.
Examinando o trecho de TLO, observa-se: supressão da partícula de negação "ne" no
primeiro e terceiro enunciados; a retomada do sujeito pelo pronome tônico; o uso de
"seulement" em vez das formas "ne...que"; o uso da lexia "rapport à". Tais particularidades
lingüísticas caracterizam a fala de Aurélie como representante da variante popular.
Procuramos utilizar algumas construções que marcassem uma variante oral
identificada como "não-culta" pelos leitores brasileiros: a repetição do advérbio de negação, o
uso da combinação de conjunções "pois se", a preposição "em" introduzindo um com-
plemento do verbo "vir", a contração da preposição "para". Além disso explicitamos os sujeitos
mais do que em TLT-1.
No cap. 30, destacamos outra fala de Aurélie:
TLO, p.135: "— Madame a reçu le coup de poing de Monsieur dans le côté. Je l'ai vue toute pliée en
deux de douleur. Monsieur est tout de suite sorti de la maison, avant que personne ait pu l'arrêter. En
passant la porte il jurait beaucoup. Monsieur répétait: "Je t'interdis d'aller à ce bal. Je t'interdis..."
Em TLT-1, p. 130: "— Madame recebeu um murro do patrão na costela. Eu a vi dobrar-se de dor.
O patrão saiu logo de casa antes que alguém pudesse detê-Io. Praguejava muito quando saiu. O
patrão dizia: "Proíbo você de ir a esse baile. proíbo..."
A marca da variante popular, neste trecho, é a supressão da negação "ne" em "avant
que personne ait pu..." Além disso, o discurso de Aurélie está cheio de repetições da forma
"Monsieur", o que contribui para caracterizar a sua fala como a de uma serviçal.
A tradução de TLT-1 introduz inadequações que descaracterizam o discurso de
Aurélie: "receber um murro", "dobrar-se de dor", "detê-lo" são escolhas lexicais que pertencem de
preferência à variante culta. Do mesmo modo que a construção em que o sujeito do infinitivo
é expresso pelo pronome oblíquo: "eu a vi dobrar-se...". O mesmo se pode dizer das ênclises.
A comparar com a nossa proposta:
TLT-2, p. LXXIII: "— A madame levou um soco do patrão nas costelas. Eu vi quando ela ficou
toda encolhida de dor. O patrão saiu logo de casa, pra não ser pego. Quando ele passou pela porta
estava praguejando e repetindo: ‘Eu te proíbo de ir a esse baile. Eu te proíbo...’"
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Em vez de "receber um murro", "levou um soco"; em lugar da construção com o infinitivo,
a construção com a conjunção "quando". E mais: "pra não ser pego" traduzindo "avant que personne
ait pu l'arrêter", com a contração da preposição e a forma "pego", mais freqüente do que a do
verbo "deter" acompanhado de pronome enclítico. Todas essas particularidades nos parecem
mais convenientes para caracterizar o discurso de Aurélie.
Há ainda duas falas de Aurélie a comentar, no cap.45:
TLO, p.172: " Votre histoire d'amour avec Monsieur le docteur me fait mourir, Madame!"
TLT-1, p. 169: "— Madame seu caso de amor com o doutor me faz morrer."
TLT-2, p. XCII: " Sua história de amor com o doutor me mata, Madame!"
No trecho acima, a inadequação está na tradução literal de "me fait mourir", que soa
artificial. A outra fala:
TLO, p. 172: "— Votre petit docteur nous a jeté un sort, c'est certain."
TLT-1, p. 169: "—Seu jovem doutor nos lançou um sortilégio, não há dúvida sobre isso."
TLT-2, p. XCII: "— O seu doutorzinho nos enfeitiçou, isso é que é."
Em TLT-1, "jovem doutor" e "Não há dúvida sobre isso" são construções inadequadas para
caracterizar o discurso de Aurélie. Com o diminutivo, traduzimos o tom pejorativo de "petit
docteur"; e com "isso é que é" a afirmativa "c'est certain" numa forma mais breve e coloquial.
No cap. 59 alguns diálogos são marcados como pertencentes a uma variante oral
popular:
TLO, p.216: " C’est pas dans ces chemins-ci, avec toute cette neige blanche, que vous avez pu
attraper grand’saleté, ou saloperie?"
TLT-1, p. 213: "Não é nesses caminhos daqui, com toda essa neve branca, que o senhor teria
apanhado uma grande sujeira ou porcaria."
Nesta tradução, a inadequação está na forma verbal "teria apanhado", inverossímil
como parte do discurso do hospedeiro. Nossa proposta:
TLT-2, p. CV: " Não foi nos caminhos daqui de perto, com toda essa neve branca, que ficou tudo
emporcalhado assim, não é mesmo?".
No depoimento que se segue, nesse mesmo capítulo, destacamos os seguintes
trechos:
J’ai pris la cuvette et un picot, sous le siège du traîneau, comme le voyageur m’avait dit de le faire.
[...] Il y avait des larmes de sang pendantes qui étaient glacées sur le traîneau. [...] J’étais effrayé,
mais pas autant que je l’ai été, après le départ du voyageur, après réflexion. Il m’a accompagné dans
la remise pour laver son traîneau. [...] Comme il faisait froid, ça gelait à mesure. [...] Et surtout de ne
pas oublier de le réveiller à cinq heures, le lendemain matin. [...] Il s’est mis à laver ses peaux, dans
une cuve que je lui ai donnée, avec de l’eau chaude que j’avais mis chauffer dans la bombe, et qu’il
mêlait avec l’eau froide. Il m’a demandé un verre de vin chaud. [...] Quinze minutes plus tard, il m’a
demandé une des peaux de son traîneau pour la mettre sur son Iit, qu’il avait si froid qu’il n’arrivait pas
à se réchauffer. (C. 59)
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Confrontando com o TLT-1, p. 214:
Tirei a bacia e um martelo de debaixo do assento do trenó conforme o viajante me havia dito para
fazer. [...] Havia gotas de sangue pendentes que tinham ficado congeladas no trenó. [...] Fiquei
assustado, mas não tanto quanto depois que o viajante partiu, após refletir sobre aqullo. Ele me
acompanhara até o galpão para lavar o trenó. [...] Como fazia frio, a água logo gelava. [...] E pediu-me
que não me esquecesse de acordá-lo de manhã às cinco horas. [...] Pôs-se a lavar as peles numa
bacia que lhe dei com a água que eu esquentara e que ele misturara com água fria. Pediu-me um
copo de vinho quente. [...] Um quarto de-hora mais tarde pediu-me uma das peles de seu trenó, para
colocá-la sobre a cama, dizendo que fazia tanto frio que não conseguia esquentar-se.
Neste trecho, o uso do auxiliar haver em vez de ter, do verbo haver impessoal em vez
de ter, do mais-que-perfeito simples, das repetidas ênclises e de um léxico que se identifica
como da variante culta constituem inadequações na tradução do depoimento do hospedeiro.
Remetemos às páginas CV e CVI de TLT-2, onde se pode verificar: o uso do mais-que-
perfeito composto com auxiliar ter, o uso do verbo ter em lugar de haver impessoal, uso
freqüente de próclises, uso do pronome ele como objeto direto, uso do objeto indireto com a
preposição para ( "para ele") em vez de lhe, cuidado em escolher unidades lexicais que não
sejam identificadas como da variante culta. Todas essas características, em TLT-2,
contribuem para marcar o discurso do hospedeiro como um discurso citado, diverso do
discurso do narrador.
Estas mesmas características — tanto as inadequações do TLT-1 quanto as propostas
de marcar o discurso citado em TLT-2 — são as que encontramos no depoimento de Victoire
Dufour, na seqüência deste cap. 59, e que transcrevemos a seguir, limitando-nos a sublinhar,
em TLT-1, as inadequações e em TLT-2, as marcas da variante oral:
Je lui ai dit, par deux fois, que cet homme-là avait dû tuer quelqu'un. Je suis rentrée dans la
chambre du voyageur pour chercher le vaisseau d'eau dans lequel il s'était lavé. [...] Je l'ai vu gratter et
frotter ses bas, avec ses mains, le matin, avant son départ. [...] Quand j'ai été dans la chambre pour
faire le lit, j'ai trouvé la courtepointe pleine de sang et des gouttes de sang sur le plancher, autour du
lit, près du poêle, là où il avait mis son sac. Il paraissait fuir notre regard, tant qu'il a été dans la
maison. J'ai vu les peaux, rouges de sang sur le cuir travaillé en rasades. (TLO, c. 59, p.220).
Falei-lhe
duas vezes que aquele homem sem dúvida matara alguém. Entrei no quarto do viajante
para procurar a vasilha d'água na qual ele se lavara
. [...] Vi-o raspar e esfregar as meias com as
mãos, de manhã, antes de sua
partida. [...] Quando fui fazer a cama, no quarto, encontrei a colcha
cheia de sangue e gotas de sangue também no soalho, em redor do leito, perto do fogão, no lugar em
que ele colocara
o saco. Ele parecia evitar meu olhar quando esteve em nossa estalagem. Vi as peles
manchadas de sangue sobre o couro que raspara
. (TLT-l, p.217)
Eu falei para ele
, duas vezes, que na certa, aquele homem tinha matado alguém. Entrei no quarto
do viajante para procurar a vasilha d'água onde ele tinha se lavado
. [...] Eu vi quando ele raspou e
esfregou as meias com as mãos, de manhã, antes de ir embora.
[...] Quando estive no quarto para
fazer a cama, achei a coberta cheia de sangue e vi gotas de sangue no chão, em volta da cama, perto
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do fogão, onde ele tinha posto a sacola. Ele parecia fugir do olhar da gente, enquanto esteve na casa.
Eu vi as peles, que estavam com o couro tinto de sangue. (TLT-2, p.CX )
Não pretendemos, com estes exemplos, dar conta de todas as passagens de discurso
citado. Arrolamos apenas alguns dos principais procedimentos que, em português, podem
ser utilizados para diferenciar, numa tradução, um trecho que é intencionalmente marcado
como a reprodução do discurso de uma variante oral "não-culta", seja ela coloquial ou
popular, do que é escrito na variante considerada padrão.
Isso não quer dizer que o discurso da narradora-personagem Elisabeth esteja todo
ele construído segundo as normas da "língua padrão" que está codificada nos compêndios
gramaticais. Na tradução, no que diz respeito à próclise, por exemplo, nós a utilizamos toda
vez que a narração cedia lugar a manifestações de sentimentos e sensações da personagem
com relação ao narrado. E mesmo durante a narração, não utilizamos a ênclise em
construções que, em nosso julgamento, pareceriam artificiais. Socorremo-nos, muitas vezes,
da leitura de textos e jornais atuais e de romances e contos de escritores modernos, para nos
convencermos de que o uso da próclise, em enunciados como "o sol se pôs por trás da casa"
(TLT-2, c.10, p.XXXI) é preferível a "O sol pôs-se por trás da casa", que a nós soa artificial. E, em
outro enunciado no mesmo capítulo: "Aurelie me segura pelo braço" (TLT-2, p.XXXII). Tal
enunciado nos parece preferível a "Aurelie segura-me pelo braço", que obedece à regra estrita da
gramática normativa.
Não nos estenderemos mais a respeito desta questão, pois o uso da próclise
alternando com o da ênclise na língua portuguesa falada e escrita no Brasil é certamente
objeto de estudos entre as diferentes correntes da lingüística.
4.3.2.2. As alusões
Distinguimos em Kamouraska os seguintes tipos de alusões: aquelas que constituem
citações postas em destaque no texto e aquelas que integram o discurso de um personagem e
só são identificadas como tais se o TU-interpretante tiver as mesmas referências culturais do
EU-comunicante.
Se procurarmos distinguir as alusões segundo a sua origem, verificamos que trechos
da Bíblia, por exemplo, ora são apresentados como citações, ora são inseridos no discurso
dos personagens. Segundo a origem, há ainda os seguintes tipos de citações: trechos de
cerimônias religiosas católicas, trechos de hinos religiosos, trechos de preces e trechos de
canções folclóricas de roda.
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156
Examinaremos vários exemplos de alusões, procurando principalmente comentar o
procedimento adotado em TLT-1 ao traduzi-las, em confronto com a nossa concepção de
tradução.
São os seguintes, os trechos de cerimônias religiosas que encontramos (acom-
panhados das traduções de TLT-1) :
TLO, c.7, p.38: "[...] Mme. Jérôme Rolland pour le meilleur et pour le pire. Ah! le pire est arrivé!"
TLT-1, p.34: "[...] Sra. Jérôme Rolland, para o melhor e o pior. Ah! chegou o pior!"
TLO, c.8, p.40: "Dieu seul déliera ce qu'il a lié."
TLT-1, p.37: "Somente Deus desunirá aqueles que ele uniu."
TLO, c.10, p.58: "Je renonce à Satan, à ses pompes et à ses oeuvres, et m'attache à Jésus Christ
pour toujours."
TLT-1, p. 54: "Renuncio a Satanás, a suas pompas e suas obras, e me uno a Jesus Cristo para
sempre."
TLO, c.34, p. 142: "Docteur, je suis malade, sauvez-moi. Docteur Nelson, docteur Nelson, ayez
pitié de moi!"
TLT-1, p.138: "Dr. Nelson, estou doente, ajude-me. Dr. Nelson, Dr. Nelson, tenha piedade de mim!"
Dos trechos acima, somente o do capítulo 10 está identificado como uma citação em
TLO: trata-se da renovação, na Primeira Comunhão, dos juramentos do batismo. Nossa
tradução, em TLT-2, pouco difere do TLT-1 (cf. TLT-2, p.XXXIV).
Os exemplos dos capítulos 7 e 8 são alusões livres a trechos da cerimônia de
casamento. O trecho do cap. 8 alude livremente à passagem de São Mateus, 19:6, e São
Marcos, 10:9: "Eh bien! ce que Dieu a conjoint, que l'homme ne le sépare pas!" (cf. La Sainte Bible,
1983), que encerra a cerimônia. A tradução de TLT-1 permite ao leitor identificar a alusão, e a
consideramos, por isso, aceitável.
O trecho do cap. 7 é uma alusão ao juramento de fidelidade dos noivos. Preferimos
uma tradução em que possa ser mais facilmente identificada pelo leitor: "[...] Sra. Jerome
Rolland, na alegria e na tristeza. Ah! chegou a hora da tristeza!"
O trecho do cap. 34 contém um fragmento alusivo à primeira parte do Intróito da
Missa: "ayez pitié de moi". Para marcar esta alusão em português, propomos o uso da 2ª. pessoa
do plural: "Dr. Nelson, estou doente, ajudai-me. Dr. Nelson, Dr. Nelson, tende piedade de mim!" Como se
trata de uma cena que faz parte do pesadelo de Elisabeth, não é incoerente que a súplica da
criança doente seja confundida com as palavras dos fiéis durante a missa.
No cap. 3, identifica-se a citação de um hino em louvor a Nossa Senhora: "Au ciel, au
ciel, j'irai la voir un jour." (Entre aspas no original; TLO, p.20). Para nós, uma tradução
conveniente seria "No céu, no céu, com minha mãe estarei", parte de um hino bastante conhecido
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157
dos que professam a fé católica em nosso país. No TLO, o destaque das aspas dá a este verso
o status de citação, referência de Elisabeth à educação religiosa de seus filhos.
Achamos preferível a tradução por um hino equivalente, em vez da tradução
apresentada em TLT-1: "Ao céu, ao céu, onde a irei ver um dia" (p.16).
Dois trechos de preces citados são facilmente identificados: "Délivrez-nous du mal" (c.18,
p.90, TLO) é um trecho da prece Pai Nosso, e foi convenientemente traduzido em TLT-1 por
"Livrai-nos do mal" (p.85-86), conservando a 2ª. pessoa do plural, tal como a prece era rezada em
português ao tempo em que se desenrola o romance.
A outra citação é "Je vous salue Marie" (c.21, p.99), não identificada pelo tradutor de
TLT-1, que pensou tratar-se de outra: "Salve-Rainhas" (TLT-1, p.94). Na verdade, é uma
referência à prece Ave Maria, e a tradução do enunciado em que se encontra poderia ser:
"Milhares de ‘Ave-Marias’ dissimuladas, verdadeiras agulhas envenenadas, ricocheteiam no coração resistente
de Antoine Tassy." (C. 21)
A citação do sinal da cruz "In nomine Patris", do cap. 36, p. 150, foi mantida
convenientemente em latim, no TLT-1, p.145.
Uma última citação de prece é identificada como tal em TLO, cap. 63, p.238 e 239.
Por se tatar de prece pouco familiar aos leitores brasileiros, e por ter sido identificada como
tal, não temos reparo a fazer à tradução fornecida em TLT-l, p.235 e 236.
Com relação a passagens bíblicas, as citações apresentadas como tais são as
seguintes:
TLO, c.28, p.129: "A celui qui n'a rien, il sera encore enlevé quelque chose."
TLT-l, p.123: "Àquele que nada tem, ainda assim alguma coisa lhe será tirada."
TLO, c. 45, p.173: "Mon père pourquoi m'avez-vous abandonné?"
TLT-1, p. 170"Meu pai, por que me abandonastes?".
Confrontando estes trechos com as citações que lhes correspondem numa tradução
atual da Bíblia, encontramos diferenças de formulação. O trecho correspondente ao do cap.
28 repete-se nos Evangelhos de São Mateus (13:10-14) e São Marcos (14:24-25) : " à celui qui ne
possède rien, on ôtera même ce qu'il croit avoir." (La Sainte Bible, 1983).
Como se pode verificar, a formulação da citação, no romance, é mais simples do que
esta, o que descarta a hipótese de que a autora tenha tido a intenção de citar literalmente o
trecho bíblico ao qual os canadenses tinham acesso no século XIX. Isto porque a edição que
consultamos pretende atender à diretriz de "pôr nas mãos dos cristãos de língua francesa um texto
simples, claro, acessível e próprio à leitura pública." (La Sainte Bible, 1983, p.V, nossa tradução).
Assim, o que parece uma citação, é na realidade uma alusão à passagem bíblica.
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Com relação à citação do cap. 45, verificamos que se trata de uma alusão a uma
passagem do Evangelho de São Marcos, 15:34: "Mon Dieu, mon Dieu, pourquoi m'as-tu
abandonné ?" Vê-se que, no romance, a apóstrofe "Mon Dieu" foi substituída por "Mon père",
talvez com a intenção significativa de referir-se não apenas ao "Pai celestial", mas também ao
pai terrestre. Isto porque se trata de um monólogo atribuído a George Nelson, que fora
enviado ainda criança para o Canadá para ser educado como um fiel servidor da coroa
britânica, longe de seus pais.
Assim, as traduções destas alusões não precisam ser fiéis à letra do texto bíblico.
Deveriam, entretanto, permitir que o leitor do TLT as identificasse enquanto tais. Não temos
nenhum reparo a fazer à citação do cap. 45 em TLT-1. Quanto à do cap. 28, propomos: "Àquele
que nada tem, ainda lhe será tirado." (TLT-2, p.LXIX).
As demais passagens em intertextualidade com os Evangelhos não aparecem
destacadas no texto. são alusões a serem identificadas graças ao saber compartilhado entre
leitor e escritor. Duas delas aludem a trechos dos Evangelhos de São Lucas e São Mateus a
respeito dos "escândalos":
TLO, c.24, p.112: "Il faut que je coure à ma perte. Il faut que le scandale arrive."
TLT-1, p.107: "Tenho que correr para a minha desgraça. É preciso que aconteça o escândalo."
TLO c.29, p.131: "Bénis sommes nous par qui le scandale arrive."
TLT-1, p. 126: "Benditos somos nós que estamos trazendo o escândalo."
Na alusão "Il faut que le scandale arrive" Elisabeth antecipa aquilo que os fatos que ela
vai reviver deste ponto em diante da narrativa significam para a moral vigente. Sua
afirmação difere da formulação bíblica atual: "Il est impossible qu'il n'arrive pas de scandale" (S. Luc,
17:1).
A alusão construída com "il faut que" permite a interpretação de que se trata de uma
necessidade da personagem em reviver o escândalo — e não apenas a necessidade objetiva
do escândalo. Levando, pois, em consideração a seqüência discursiva em que está inserida
esta alusão, propomos a tradução seguinte (que diverge da de TLT-1 para que seja mantida a
mesma estrutura no enunciado da alusão e no precedente) : "É necessário que eu precipite minha
perdição. É necessário que venha o escândalo." (C.24) .
Na alusão do cap. 29, inverte-se o sentido de condenação da mensagem bíblica.
Repetindo a passagem acima com sua seqüência: "Il est impossible qu'il n'arrive pas de scandale;
mais hélas pour l'homme qui les cause!" (S. Luc, 17:1). Propomos uma tradução mais sintética
do que a do TLT-1: "Benditos sejamos nós que causamos o escândalo" (c. 29) .
Ao fazermos a leitura do texto bíblico a respeito dos escândalos, encontramos a
passagem bíblica à qual alude a seguinte a seguinte seqüência do romance:
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"L'amère charité tourmente le docteur Nelson, bientôt le désespère plus qu'une meule pendue à son
cou." (TLO, c.34, p.142).
"Amarga piedade atormenta o Dr. Nelson; não demorará muito ver-se-á presa do desespero." (TLT-
1, p.137).
As seqüências dos Evangelhos de São Mateus e São Lucas relacionadas com este
trecho são as seguintes: "...mais hélas pour l'homme qui les cause! II vaudrait mieux pour lui qu'on
lui mit autour du cou une meule de moulin et qu'on le précipitât dans la mer, que de porter au mal un
seul de ces petits! (La Sainte Bible, 1983; S.Luc, 17:2).
E ainda: Mais si quelqu'un fait tomber dans le péché l'un de ces petits qui croient en moi, il
vaudrait mieux pour lui qu'on lui suspendit au cou la meule d'un moulin, et qu'on le précipitât au
fond de la mer. (Ibidem, S. Mat., 18:6).
E em português: " [...] melhor seria que se lhe atasse ao pescoço uma pedra de moinho [...]"
( Bíblia Sagrada, 1976; S.Luc.,17:2) "; [...] melhor fôra que lhe atassem ao pescoço a mó de um
moinho [...]" (ibidem, S. Mat., 18:6).
Tratando-se pois de uma alusão, o TLT deveria mantê-la em LT. Propomos:
"A amarga caridade atormenta o doutor Nelson, e logo o desespera mais do que uma pedra de
moinho atada a seu pescoço." (C. 34)
No cap. 26, encontramos a alusão seguinte: "Non pas la paix, mais le glaive " (TLO, p.121).
Traduzida em TLT-1 por: "Não é uma paz, mas uma guerra." (p. 116).
A passagem bíblica correspondente é: "Ne croyez pas que je suis venu apporter la paix,
mais le glaive." ( La Sainte Bible, 1983; S.Mat., 10:34). Em português: "Não julgueis que vim trazer
a paz à terra. Vim trazer não a paz, mas a espada." (Bíblia Sagrada, 1976; S. Mat.,10:34).
Para a passagem do romance, a tradução que propomos é: "Não trago a paz, mas a
espada" (TLT-2, p.LXIII), onde se identifica a alusão à passagem bíblica, diferentemente do
que ocorre em TLT-1. No cap. 65, encontra-se a seguinte alusão à passagem bíblica sobre os
escândalos: "Si ton amour te scandalise, arrache-le de ton coeur" (TLO, p.248). Traduzida
inadequadamente por: "Se meu amor o escandaliza, arranque-o de seu coração." (TLT-1, p.245).
A passagem bíblica em que se calcou o trecho acima é a seguinte: "Si ton oeil est pour toi
une occasion de chute, arrache-le" (S. Marc,9:47), e também "Si ton oeil te fait tomber en péché, arrache-le
et jette-le loin de toi." (S. Mat., 18:9 ; In: La Sainte Bible, 1983).
Em TLT-2, utilizamos o tratamento tu, pelas razões já explicadas na seção sobre o
enunciativo alocutivo. E mantivemos o possessivo de 2ª. pessoa, deixando mais clara a
alusão: "Se teu amor te escandaliza, arranca-o de teu coração." (TLT-2, p. CXIX).
Examinemos, como últimos exemplos de alusões bíblicas, os seguintes trechos: "Si on
m'interroge, remuer la tête sur l'oreiller. Dire: non, non, je ne connais pas cet homme." (TLO, c.55, p.204, l.
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120); "Vous parlez en langue étrangère, docteur Nelson. Non, je ne connais pas cet homme!" (c.65, p.248, l.
71). "Non, je ne connais pas cet homme!" (c.65, p.249, l. 95)
Interpretamos estas três negações de Elisabeth como alusões às três negações do
apóstolo Pedro após a prisão de Jesus Cristo. (cf. S. Mat.,26:69-75). As traduçôes "Não, não
conheço esse homem" de TLT-1 nos parecem adequadas, visto que não se trata de uma citação,
mas apenas de uma alusão aos fatos narrados na Bíblia. Para Elisabeth, a negação de sua
relação com George equivale a uma alta traição, comparável, numa visão destorcida do texto
bíblico, à traição do apóstolo.
Resta-nos examinar as citações e as alusões às canções folclóricas. Adotamos, em
TLT-2, o procedimento de manter a citação da canção em francês e acrescentar uma nota com
a tradução em português. Procedemos assim no cap. 5, à pág. XVIII, onde reproduzimos os
versos da canção de roda: "Mon père m'a donné un mari. Mon Dieu, qu'il est petit". Fornecemos a
tradução literal em nota, ao final do capítulo, à p. XXI: "Canção folclórica de roda de origem
francesa. Tradução: 'Meu pai me deu um marido. Meu Deus, como ele é pequenino."
No cap. 13, traduzimos as alusões que precedem a citação da canção "A la claire
fontaine, jamais je ne t'oublierai" conservando esta última em francês. (TLT-2, p. XLIII).
Explicamos em nota a origem canadense desta canção (cf. Davenson, s.d.) e fornecemos
também a tradução literal: "Na clara fonte jamais me esquecerei de você."
O mesmo procedimento é recomendável para as citações presentes no cap.3: "Nous
n'irons plus au bois"- canção de roda de origem francesa; e no cap. 50: "Ma femme et mon enfant en
une seule gerbe lourde" canção de ninar. As traduções dessas canções em TLT-1 muitas vezes
as desfiguram enquanto tais, como no cap. 3: "Ursulinas e pequeno seminário. Não iremos mais ao
bosque. Sonatinas de Clementi." (TLT-1, p.116). Igualmente, no cap. 5, a tradução da canção não
permite ao leitor identificar o cantarolar de Elisabeth como uma reminiscência das
brincadeiras da infância: "Meu pai me deu um marido. Meu Deus, como ele é baixotinho!" (TLT-1, p.23)
Resta a comentar uma alusão: à canção Alouette, do folclore canadense (cf.
Davenson, s.d., p.180), e que está presente no seguinte trecho do cap. 47, p.178: "Tais-toi, Aurélie.
Ferme-toi le bec. Et les yeux. Alouette. Nous te ferons rêver, Aurélie."
Em TLT-1 a alusão foi suprimida: "Cala a boca, Aurélie! Fecha essa boca! E os olhos. Vamos
fazê-la sonhar, Aurélie [...]" ( p. 176).
A alusão a "Alouette", feita aparentemente por causa da seqüência "le bec" -"les yeux",
faz lembrar a canção em sua totalidade, da qual apresentamos o seguinte trecho:
"Alouette, gentille alouette,/ Alouette, je te plumerai! / Je te plumerai le bec, [...]"
Este último verso se repete para cada uma das partes do corpo do pássaro que será
"plumé" (depenado) : "les yeux", "les ailes", "la tête", "le dos", "la queue", "le cou" e "les pattes".
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No romance, logo em seguida, Elisabeth e George começam a despir Aurélie. Assim, a alusão
tem um papel metafórico: Aurélie será depenada como um pássaro, não só naquele
momento em que lhe tiram as roupas, como ao ser usada como instrumento na tentativa de
envenenar Antoine.
Assim, mantém-se a menção a Alouette e fornece-se, em nota, uma explicação sobre a
canção, para esclarecer os leitores que porventura não a conheçam. Propomos como tradução
do trecho da p. 178:
"Fica quieta, Aurelie! Fecha o bico! E os olhos! "Alouette"! (c.47)
Sugestão de nota:
Alouette é o título de uma canção de roda do folclore canadense, cujos primeiros
versos são: "Alouette, gentille alouette,/ Alouette, je te plumerai./ Je te plumerai le bec, je te
plumerai le bec." Tradução: "Cotovia, gentil cotovia,/ Cotovia vou te depenar./ Vou depenar
o teu bico, vou depenar o teu bico." A seqüência da canção é uma repetição destes
versos, substituindo, a cada vez, a parte do corpo que vai ser depenada por outras:
os olhos, as asas, a cabeça, as costas, a cauda, o pescoço e as patas.
Se o editor permitir uma nota tão longa, o leitor poderá estabelecer as relações entre
a canção e a seqüência do texto, identificando Aurélie à cotovia.
Verificamos, através do comentário das diversas alusões presentes no texto, como o
tradutor deve possibilitar ao leitor do TLT identificá-las enquanto tais, para permitir-lhe a
reconstrução das relações intertextuais presentes no TLO.
O diferente tratamento dado às alusões religiosas e às citações de canções folclóricas
justifica-se porque as primeiras já fazem parte, em português, do patrimõnio cultural do
leitor brasileiro. As citações de canções folcricas constituem textos conhecidos de um país
para outro na língua original, e, por isso, acreditamos que devem ser mantidos como tais
dentro da narrativa.
Encerramos, com essa sub-seção, a análise dos componentes enunciativos e o nosso
estudo sobre a tradução de Kamouraska. No próximo capítulo apresentaremos as conclusões
finais.
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5. CONCLUSÃO
Como primeiro passo para criticar a tradução brasileira do romance Kamouraska de
Anne Hébert, conceituamos o ato tradutório a partir da concepção de ato de linguagem de
Patrick Charaudeau, exposta em seu livro Langage et discours (1983). Nesta ótica, postulamos
que a tradução implica, num primeiro momento, um trabalho interpretativo que depende
das competências lingüística, discursiva e situacional do leitor-tradutor no âmbito da língua
original (a LO).
E, num segundo momento, com base em sua atividade interpretativa, o tradutor
passa a ser o escrevente de um texto na língua de tradução (o TLT). Em seu processo de
escritura, escolhe, no elenco das formas lingüísticas, das estratégias discursivas e na
bagagem cultural de que dispõe, os componentes que convêm à produção de um texto que
permita ao leitor do TLT uma interpretação análoga à do leitor do TLO.
Assim, o princípio de fidelidade ao texto na língua original deve ser entendido como a
fidelidade a uma interpretação ótima deste texto num determinado contexto socio-historico-
cultural.
À luz destes princípios, procuramos uma definição de erro de tradução. Há erro
quando o tradutor desobedece às correspondências semânticas entre unidades lexicais
significantes das duas línguas sem que tal desobediência resulte numa adequação melhor do
TLT : à realidade cultural do leitor, à proposta estética do escritor, à estratégia discursiva da
seqüência do texto, à coerência textual, às regras de uso da LT, às regras de estruturação
sintática ou semântica da LT.
Ao examinarmos o TLT-l, partimos da hipótese de que os erros de tradução se
prendem, em sua maior parte, a falhas no processo interpretativo.
E a cada crítica que fizemos, propusemos uma tradução que julgamos mais
adequada, justificando a nossa escolha procurando desvendar os caminhos interpretativos
que percorremos para chegarmos à produção de nosso próprio TLT (o TLT-2 apresentado em
anexo).
Grupamos os erros em três grandes classes:
— erros por falhas na competência lingüística
— erros por falhas na articulação das competências lingüística e discursiva
— erros por falhas na competência discursiva.
E levantamos ainda alguns:
— erros por insuficiência da bagagem cultural do tradutor.
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163
Dentre os erros que denotam falhas na competência lingüística, analisamos
inicialmente aqueles que mostram a displicência do tradutor em não investigar o sentido das
unidades lexicais que desconhece. Consistiram em:
a) Inserção indevida de estrangeirismos, tanto daqueles que já estão incorporados
como empréstimos na LT, quanto dos que são totalmente desconhecidos para o leitor do TLT
e localizados em contextos onde não é possível deduzir-lhes o significado.
b) Falsas inferências do significado de unidades lexicais do TLO, resultando na
inobservância pura e simples da correspondência semântica entre as unidades lexicais das
línguas em confronto (como na tradução de "ficelle" por "laço", por exemplo).
Continuando a investigar as falhas na competência lingüística, detectamos erros
atribuíveis a:
c) Suposição de que a semelhança fõnica entre unidades lexicais de LO e LT deve
corresponder a uma semelhança significativa ( o que equivale a ignorar a autonomia dos
vários planos de estruturação da língua) — sendo que o tradutor de TLT-l confundiu-se não
apenas com os "falsos amigos" como também com os parõnimos da LO.
d) Interpretação das formas idiomatizadas da língua (tanto a dos vocábulos
compostos quanto a das lexias) como se o seu significado resultasse da soma do significado
isolado de cada uma de suas partes. Tal como no caso das falsas inferências, esses erros
foram detectados por ter havido uma inobservância de correspondência semântica entre as
unidades lexicais das duas línguas em confronto.
e) Decalques, no processo de produção do TLT-l, de empregos de pronomes, de
preposições e de construções frasais da LO, resultando em enunciados pouco aceitáveis na
LT.
Os erros que denotam uma falha na articulação das competências lingüística e
discursiva foram assim classificados porque revelam, por parte do tradutor, uma
incapacidade em produzir um TLT que, ao mesmo tempo, seja fiel ao TLO e mantenha, entre
seus componentes, o mesmo tipo de coerência existente entre os componentes do TLO.
Os erros assim classificados são os atribuíveis a:
a) Armadilhas da polissemia: a tradução adequada dos vocábulos e das lexias
polissêmicos depende da capacidade do tradutor em subordinar a interpretação de seu
significado isolado à interpretação global do enunciado em que se encontram e da seqüência
narrativa onde se insere tal enunciado. Quando o tradutor não leva em conta essa
necessidade, produz enunciados de sentido diverso do que lhes corresponde em TLO, e
enunciados e seqüências incoerentes em ambos os casos, afetando a estruturação narrativa
do texto.
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164
b) Desconhecimento da gramática: a tradução adequada depende da interpretação
correta da função sintática e da categoria gramatical das unidades lexicais (tanto das formas
livres como das formas presas). Os erros estudados denotam uma falha na interpretação das
funções e categorias de diversos componentes, envolvendo igualmente uma interpretação
errônea dos enunciados em que se encontram e da seqüência discursiva de que fazem parte.
Neste ponto, temos de fazer uma primeira
revisão da definição inicial de erro de
tradução
: o erro não reside apenas na desobediência às correspondências semânticas entre
unidades lexicais. Há erro quando o tradutor produz enunciados ou seqüências de
enunciados incoerentes, seja por escolha errada de componentes lexicais da LT (isto é,
quando não correspondem ao sentido que está atualizado no TLO), seja por estabelecer
relações erradas entre componentes lexicais ( isto é, relações que não correspondam
semantica ou discursivamente àquelas construídas no TLO). Entendemos por incoerentes
enunciados e seqüências que perturbam a interpretação da continuidade temática ou da
continuidade lógica do texto, ou que não sejam interpretáveis como integrantes do esquema
cognitivo posto em cena em determinada seqüência narrativa.
Passando a examinar o plano discursivo da tradução de Kamouraska, ativemo-nos aos
componentes do aparelho
enunciativo, e, episodicamente, ao aparelho retórico, não nos
ocupando dos componentes do aparelho narrativo nem do aparelho argumentativo porque
estes foram comentados indiretamente quando estudamos os problemas de tradução em seu
aspecto lingüístico.
No plano discursivo, a correspondência significativa entre unidades lexicais
depende das relações contratuais que se estabelecem entre escritor e leitor, e das relações
contratuais ficcionais entre os vários enunciadores e destinatários.
Assim sendo, criticamos a tradução dos pronomes pessoais "tu" e "vous" e das
formas de tratamento, enquanto componentes do enunciativo alocutivo. Mostramos que a
forma adequada de tradução desses pronomes depende da relação que se estabelece, no
discurso, entre os protagonistas que estão em cena no ato de linguagem. Nas formas de
tratamento, criticamos a manutenção em TLO dos francesismos "Madame" e "Mademoiselle",
propondo traduções que levaram em conta o uso da LT correspondente ao uso da LO.
Na crítica à tradução dos componentes do enunciativo elocutivo comentamos
brevemente como a tradução de certos tempos e modos depende estreitamente da atitude
manifesta pelo Eu-enunciador a respeito do que está enunciando. Criticamos mais
longamente as traduções inadequadas dos dêicticos e dos anafóricos em TLT-l, mostrando
como a escolha da forma adequada em LT depende de um cálculo da situação espacial (ou
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298
165
da situação discursiva) do objeto designado com relação ao sujeito enunciador ou com
relação ao destinatário.
Ainda no âmbito do enunciativo elocutivo, inserimos a crítica à tradução de
componentes retóricos, por entendermos que tais componentes integram uma visão
subjetiva, por parte do enunciador, a respeito do que está sendo narrado. Assim, mostramos
como a tradução dos efeitos sonoros, das comparações e das metáforas dependem não
apenas da interpretação do enunciado ou da seqüência narrativa em que se inserem, mas da
interpretação do texto como um todo, como o produto de um ato de linguagem
sobredeterminado por um Contrato literário.
Por fim, na crítica à tradução dos componentes do enunciativo delocutivo,
examinamos a problemática da tradução do pronome "on", mostrando como a tradução
deste pronome depende, mais ainda do que a dos pronomes pessoais de 2ª. pessoa, da rede
de relações construídas entre o enunciador e os demais protagonistas de sua instãncia
discursiva, pois não há pronome nem construção sintática em português que possa ser
utilizada indiscriminadamente para traduzir as várias possibilidades significativas do
pronome "on".
Na crítica aos componentes intertextuais do enunciativo delocutivo, distinguimos por um
lado o "discurso citado" e por outro as alusões.
Examinamos, no "discurso citado", as falas de certos personagens que são marcadas
como pertencentes a um tipo socialmente diferente do discurso do narrador, seja com a
introdução de traços lingüísticos característicos da variante oral coloquial, seja introduzindo
traços lingüísticos que caracterizem o personagem como sendo de uma classe social menos
culta. Mostramos como a tradução, aí, deve procurar as marcas lingüísticas da LT que sejam
identificáveis pelo leitor como características da variante oral ou de uma variante "não-culta".
Para as alusões, verificamos como sua tradução depende estreitamente da bagagem
cultural do tradutor, que deve ser capaz de identificá-las dentro do texto e procurar mantê-
las em TLT de modo a serem identificadas como tais pelo leitor. Nossas críticas, neste ponto,
consistiram em assinalar supressões de alusões em TLT-l e propor alternativas a construções
frasais que nos pareceram fônica ou sintaticamente pesadas. Além disso, propusemos a
manutenção, no TLT, dos trechos de canções de roda em LO, traduzidas apenas em nota de
pé de página. E isto para identificá-las como tais dentro do romance.
E fazemos neste ponto uma segunda revisão da definição de erro de tradução: há erro
de tradução quando o tradutor, injustificadamente, modifica as relações temporais, modais,
espaciais e interlocutivas interpretáveis entre os componentes enunciativos do TLO e que
devem ser mantidas, sempre que possível, no TLT, para produzir efeitos de sentido análogos
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àqueles que são interpretáveis no TLO. Neste plano, não é mais lícito falar-se de
correspondências semânticas entre unidades lexicais, mas de correspondências discursivas
entre enunciados, a serem buscadas pelo tradutor ao produzir o TLT.
Procuramos, pois, analisar e comentar as implicações lingüísticas e discursivas dos
principais tipos de erros que, encontrados na tradução para o português de um determinado
romance escrito em francês, são reveladores das principais dificuldades de tradução de um
texto romanesco do francês para o português. Através do levantamento desses erros
pudemos distinguir os diversos tipos de conhecimento que entram em jogo na atividade
tradutória em seu duplo aspecto interpretativo e produtivo.
No mais, a certeza de que toda tradução é criticável, pelo fato de representar o
resultado de um trabalho estreitamente dependente das contingências pessoais e do
conhecimento de quem traduz. E a certeza de que toda tradução é provisória — pois o
tradutor, a cada releitura de seu texto em confronto com o texto original, descobre
significações e relações que antes não havia vislumbrado. Apenas o prazo "fatal" de entrega
de seu trabalho o obriga a encerrá-lo. Mas não seria assim de todo processo de escritura?
167
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CORRÊA, Angela Maria da Silva. Erros em
tradução do francês para o português: do plano
lingüístico ao plano discursivo. Rio de Janeiro:
UFRJ, Fac. de Letras, 1991. 319+ CXXII fl.
Mimeo. Tese de Doutorado em Lingüística.
RESUMO
Na presente tese faz-se uma análise dos
erros da tradução brasileira do romance francês
Kamouraska de Anne Hébert. Esta análise
baseia-se na abordagem semiolingüística do
discurso, definindo ato tradutório a partir da
definição de ato de linguagem em seu duplo
aspecto interpretativo e produtivo. Apresenta-se
uma tipologia de erros de tradução nos planos
lingüístico e discursivo e traduz-se uma parte do
romance para estabelecer um confronto com o
texto de tradução objeto da crítica. Procura-se
determinar os tipos de conhecimento requeridos
pelo ato tradutório e, finalmente, propõem-se três
definições complementares de erro de tradução.
176
CORRÊA, Angela Maria da Silva. Erros em
tradução do francês para o português: do plano
lingüístico ao plano discursivo. Rio de Janeiro:
UFRJ, Fac. de Letras, 1991. 319+ CXXII fl.
Mimeo. Tese de Doutorado em Lingüística.
ABSTRACT
The present thesis contains na analysis of
the errors in the Brazilian translation of Anne
Hébert’s novel Kamouraska. This analysis is
based on the semiolinguistic approach of
discourse and defines the translation act in its
double aspect: interpretative and productive. It
presents a typology of errors in translation in the
linguistic and in the discursive plans and tries to
determine the types of knowledge required by
the translation act. Parts of the novel are
translatede in order to establish a contrast with
the translated text examined. Finally, three
complementary definitions for translation errors
are suggested.
177
CORRÊA, Angela Maria da Silva. Erros em
tradução do francês para o português: do plano
lingüístico ao plano discursivo. Rio de Janeiro:
UFRJ, Fac. de Letras, 1991. 319+ CXXII fl. Mimeo.
Tese de Doutorado em Lingüística.
RÉSUMÉ
Cette thése contient une analyse des erreurs
de la traduction brésilienne du roman
Kamouraska de Anne Hébert. Cette analyse est
fondée sur l’approche sémiolinguistique du
discours, définissant l’acte de traduire par
rapport à la définition de l’acte de langage, qui
implique une activité interprétative et une
activité productive. La thèse présente une
typologie des erreurs de traduction sur le plan
linguistique et sur le plan discursif et cherche à
déterminer quelles connaissances sont en œuvre
dans l’acte de traduire. En outre, plusieurs
extraits du roman on été traduits, pour établir un
contraste avec le texte de traduction qui est
critiqué. Finalement, trois définitions com-
plémentaires d’erreur de traduction sont
proposées.
178
ANEXO: TLT-2 – Tradução (extratos) de Kamouraska
Por Angela Maria da Silva Corrêa
[Cap.1]
O verão acabara. A Sra. Rolland, contrariando seus
hábitos, permanecera na casa da Rua do Parlatório. Os dias
foram límpidos e quentes. Mas nem a Sra. Rolland nem as
crianças foram para o campo naquele verão.
Seu marido ia morrer e ela sentia uma grande paz. O
5
homem partia docemente, sem muito sofrimento, numa
discrição louvável. A Sra. Rolland esperava, resignada e
irrepreensível. Se o coração apertava em certos momentos, é
que essa espera parecia ganhar proporções inquietantes. A
disponibilidade serena que lhe escorria até a ponta dos
10
dedos não prometia nada de bom. Parecia que tudo ia
acontecendo como se o sentido real da espera ainda
estivesse para ser revelado. Para além da morte daquele
homem, seu marido havia quase dezoito anos. Mas já então
a angústia exercia suas defesas protetoras. Atirou-se a ela
15
como a uma tábua de salvação. Tudo, menos essa paz malsã.
Deveria ter saído de Quebec. Não ficar ali. Sozinha no
deserto do mês de julho. Não há ninguém que eu conheça
na cidade. Quando saio, me olham como se eu fosse um
animal raro. Como aqueles dois vadios me encaravam hoje
20
de manhã quando eu voltava das compras. Ficaram me
olhando por muito tempo. Não devia sair sozinha.
A cidade não é segura neste momento. Não há mais
dúvidas agora. As pessoas me observam. Me acompanham
de perto. Vêm andando atrás de mim. Aquela mulher,
25
ontem, colada à minha sombra. O passo igual, o andar
obstinado, firme nos meus calcanhares. Quando me virei
para olhá-la, escondeu-se atrás de um portão. Vi quando se
IV
precipitou lá dentro, viva e ágil como ninguém, exceto... É
isso que me dói no coração; viva e ágil como ninguém...
30
Bem que eu podia ter despistado tal criatura. Tomar
um fiacre. Ou mudar de calçada. Entrar numa loja. Mandar
dizer a meu cocheiro para atrelar os cavalos e vir buscar-me.
Continuei a andar sem olhar para trás. Sabia que arrastava,
a dez passos de distância, aquela perseguidora teimosa.
35
Andar, andar, sem fim. As pessoas voltam-se para me olhar,
quando eu passo. Essa é a minha verdadeira vida. Sentir a
multidão dividir-se em duas alas para me ver passar. O mar
Vermelho que se abre em dois para que o santo exército
atravesse. Isso é a terra, a vida da terra, a minha vida.
40
Houve um dia em que, escoltada por dois policiais, tive de
enfrentar essa terra maldita. Eu, Elisabeth d'Aulnieres,
viúva de Antoine Tassy, esposa em segundas núpcias de
Jerome Rolland. E que vontade de rir diante de todo mundo.
Ah, que belo passeio de trenó! De Lavaltrie a Montreal. A
45
ordem de prisão contra mim, os dois policiais cheirando a
cerveja, a cidade de Montreal, que atravessei tão bem
escoltada. O diretor da prisão se desculpa e faz mesuras
exageradas. A porta escura se fecha atrás de mim. As quatro
paredes bolorentas. O mau cheiro das latrinas. O frio. O
50
auto de acusação. Tribunal do Rei. Termo de setembro de
1840. The Queen against Elisabeth d'Aulnieres. Minha louca
juventude. Os interrogatórios.
As testemunhas. Tinha de
refazer minha inocência a cada sessão, como se fosse um
V
penteado entre dois bailes, uma virgindade entre dois 55
homens. Volto para casa após dois meses de reclusão.
Motivos de saúde, motivos de família. Adeus prisão e adeus
senhor diretor da prisão. Pobre homem confuso, console-se
com minha criada. Ela ficará à inteira disposição da justiça.
Prisioneira. Dois anos. Pobrezinha da Aurelie Caron. O
60
tempo apaga tudo. Você está livre, como sua patroa. A vida
a refazer. A extradição de meu amante jamais acontecerá.
Houve desistência. Dois anos. Preciso me conformar. Casar
novamente, sem véu nem botões de laranjeira. Jerome
Rolland, meu segundo marido, a honra restabelecida. A
65
honra, que ideal para se ter, quando se perdeu o amor. A
honra. Bela idéia fixa a acenar diante do nariz. A cenoura do
burrico. A ração perfeita na ponta de um galho. E o burrico
faminto avança, avança o dia inteiro. A vida inteira. Para
além de suas forças. Que cruel engano! Mas é o que faz ir
70
em frente, pela vida afora. Adoro andar pelas ruas pondo
dois passos adiante a idéia de minha virtude. Sem deixar de
olhá-la um só instante. Uma vigilância de carcereiro. A
idéia, sempre a idéia. O ostensório na procissão. E eu
seguindo atrás, qual uma pata. É isto uma mulher honesta:
75
uma pata que vai em frente, fascinada pela idéia de sua
própria honra. Sonhar, fugir, perder de vista a idéia fixa.
Afastar o véu do luto. Olhar para todos os homens na rua.
Para todos. Um por um. Ser olhada por eles. Fugir da Rua
do Parlatório.
Reencontrar meu amor, no outro lado do 80
mundo. Em Burlington. Em Burlington. Nos Estados
Unidos: Com o passar do tempo deixará o Canadá, não é? Diga-
VI
me apenas isso. Diga-me como deverei escrever-lhe.
Pobre e querido amor, como sofreu! Como sentiu frio
até Kamouraska, sozinho em pleno inverno. Cerca de 400
85
milhas, ida e volta. Amor, amor, como me fizeste mal. Por
que ter pena de ti? Fugiste como um covarde, deixando-me
para trás, sozinha para enfrentar a matilha dos justiceiros.
Amor, amor, vou te morder, te bater, te matar. Teu rosto
amado, nunca mais. E a idade que vem chegando. Ainda
90
estou indene, ou quase. Apenas uma linha fina do nariz ao
canto da boca. O esforço quotidiano da virtude, certamente.
Meus melhores dias, entretanto, estão contados. O belo
massacre ainda por vir. Em volta dos olhos, pés-de-galinha
em profusão. A cintura que engrossa. Sã e salva, estou
95
dizendo que estou sã e salva. Depois daquele inferno. A
prova do horror para uma carne incorruptível. Vocês estão
vendo? A salamandra. Minha alma ainda não afetou meu
corpo. Todos os
dentes, seios e quadris firmes. Uma
potranca de dois anos. E alta, além do mais. A imponência
100
das virgens indomadas. Um marido, dois maridos, e o amor
que me abandonou à própria sorte numa noite de fevereiro.
Foi em Sorel. Depois da desgraça de Kamouraska. Assim
que meu amor chegou de Kamouraska. Nunca tinha estado
tão perto da felicidade. E ele, o homem único, fugiu com as
105
mãos tintas de sangue. Burlington, Burlington. Este nome
parece ressoar em minha cabeça como o tilintar de um sino
distante. Para me desafiar. Me torturar. Ding, dong, ding.
Inútil fazer-se de mártir. Inocente, eu tenho sido, sem
muito
esforço, nos últimos dezoito anos. Esposa perfeita de
110
VII
Jerome Rolland, um homenzinho pacato que exige o que é
seu quase todas as noites, antes de dormir, a ponto de
tornar-se cardíaco. Meu dever conjugal indefectível. Mens-
truada ou não. Grávida ou não. Amamentando ou não. Às
vezes até o prazer amargo. A humilhação desse prazer
115
roubado ao amor. Para que tanta encenação? Um ventre fiel,
eis o que tenho sido, uma matriz de fazer crianças. Oito
filhos deste. E três do anterior, do tempo em que era esposa
de Antoine Tassy, senhor de Kamouraska. Procurem bem o
pai de meu terceiro filho, as fontes de meu reino de mulher,
120
dois rios que se confundem entre minhas coxas. Meu
pequeno Nicolas, com quem te pareces? Teus olhos? São os
olhos do amor perdido. Tenho certeza. É com o amor que
ele se parece, meu terceiro filho, moreno e esguio. Este
homenzinho. Este danadinho que estuda no colégio.
125
Logo ficarei livre novamente. Voltar a ser viúva.
Gostaria de já estar coberta de crepe fino e de véus de boa
qualidade. O preto barato desbota logo. Enxugar meus
olhos secos, andar sem rumo numa cidade desconhecida,
imensa, sem fim, cheia de homens. Com os véus batendo
130
como velas. Em alto mar. A cidade grande é como o mar
alto e revolto. Partir, em busca da única ventura de meu
coração. Amor perdido. Toda essa filharada para carregar e
pôr no mundo, criar no peito, desmamar. Ocupação de
meus dias e de minhas noites. Isso me mata e me faz viver
135
ao mesmo tempo. Estou sempre ocupada. Onze mater-
nidades em vinte e dois anos. Terra fértil, tanto sangue, leite
e placenta em migalhas de biscoitos. Pobre Elisabeth,
VIII
pródiga Elisabeth. Meu pequeno Nicolas, filho único do
amor. O sacrifício celebrado na neve. Na enseada de
140
Kamouraska gelada como um campo seco e poeirento. O
amor assassino. O amor infame. O amor funesto. Amor.
Amor. Única vida deste mundo. A loucura do amor. Por
favor, diga-me como vai sua saúde e a da pobre criança. Sua
última carta interceptada pelos juízes.
145
Cap. 2
A Sra. Rolland, empertigada, sem mover o busto, com as
mãos imóveis sobre a saia de crinolina, aproxima o rosto da
persiana, lança o olhar verde pelas frestas, põe-se à escuta, sob
os bandós de cabelos lisos. Um bafo quente e úmido sobe da
rua. A goteira transborda e faz um barulho ensurdecedor. No
5
quarto forrado de veludo, de mobiliário inglês, uma voz de
homem murmura, roufenha, incompreensível, a respeito da
goteira.
Escuta-se, ao longe, o passo pesado de um cavalo que
arrasta uma carroça. São duas horas da manhã. O que está
10
fazendo aquela carroça no meio da noite deserta? Já faz algum
tempo que andam rondando pela cidade. A carroça se
aproxima. Rua Saint Louis, Rua dos Jardins, Rua Dona-cona.
Silêncio. Ah, meu Deus! As rodas com aros de ferro viram a
esquina, os cascos pesados e cansados se aproximam.
15
Cavalo e viatura vão desembocar, de um momento para
outro, sob minhas janelas. Vêm buscar-me! Tenho certeza de
que vêm buscar-me. Um dia, uma viatura, não, foi um trenó. É
inverno. Atrás de mim o barulho dos patins na neve
endurecida. Perseguem a mim e à minha tia Ade-laide. O
20
pesado galope da parelha de cavalos atrelados. Esperam
alcançar-me na perseguição. Ai! Os cavalos enor-mes, o trenó
em disparada atrás de mim. Acho que solto um grito,
encolhida junto ao ombro de minha tia Adelaide.
Se alcançar logo a fronteira americana estarei salva.
25
Convencer minha tia a fazê-lo. Minha cúmplice amedrontada.
Depressa. É preciso ir depressa. O amor além daquela linha
imaginária. A fronteira em plena floresta, a liberdade. A
X
viagem a Montreal foi inútil. Consultar um advogado sobre a
desgraça de Kamouraska? É muito tarde agora, não tenho
30
mais escolha. Reencontrar meu amor. Depressa. O tempo é
curto. Depressa. Minha tia chora: "Faço o que você quiser. Vou
para o inferno com você, minha filhinha. Meu Deus, que
desgraça sobre nós. Eu bem que avisei para ser prudente.
Louca, louca Elisabeth. É culpa daquele monstro do Antoine
35
Tassy também. Tudo o que está acontecendo é por culpa dele.
Deus tenha piedade de sua alma, e de nós também. Pobres de
nós. É um pecado muito grande, Elisabeth. É um pecado muito
grande..." É tarde para viver, agora. Na altura de Lavaltrie... A
polícia. Me prendem. Minha tia enxuga os olhos. Ah! Eu quis
40
morrer? Eu quis isso em meu âmago? Quero viver. Vou viver
a qualquer preço.
A Sra. Rolland fecha a janela. Volta-se para seu marido.
De costas para a vidraça, segurando a maçaneta, calcula o
espaço reduzido entre a rua coberta de água, uma velha
45
carroça que range, e o homem, pequenino, gorducho, fragi-
lizado, que não pára de pensar na morte que está próxima.
Você ainda não mandou consertar a calha? Como é que
você quer que eu adormeça, por um instante que seja, com
todo esse barulho?
50
A Sra. Rolland só consegue ouvir uma carroça no meio
da noite.
Está ouvindo a carroça?
Que carroça?
Na rua. A carroça que range, o cavalo...
55
XI
O Sr. Rolland procura ouvir, como um confessor
aborrecido. A chuva, o vento, cataratas de água transbordando
da calha. Nada mais a escutar
Está sonhando, minha pobre Elisabeth. É só a chuva
que...
60
Uma poça de silêncio cai bruscamente. A chuva deve ter
cessado. A carroça parou com certeza em frente à porta. A Sra.
Rolland passa os olhos pelo quarto à procura de um refúgio. O
grande espelho reflete a mesinha de cabeceira cheia de coisas:
copos, frascos, remédios, jornais, livros piedosos amontoam-se
65
desordenadamente. Apoiado sobre uma pilha de travesseiros,
lívido, Jerome Rolland, com a fisionomia abatida, está sem
dormir.
A Sra. Rolland se recompõe, ajeita as pregas da saia,
ajusta os bandós. Vai até o espelho, ao encontro da própria
70
imagem, como quem procurasse o socorro mais seguro.
Minha alma enfadada está ausente. Ainda sou bela. Todo o
resto pode desmoronar ao meu redor. Uma certeza me
sustenta em meio aos pressentimentos do medo e do horror
dos dias. Um homem. Um único homem no mundo, perdido.
75
Ser sempre bela para ele. O amor me purifica pouco a pouco.
Afasta toda falta, todo medo, toda vergonha.
O Sr. Rolland vê avançar no espelho uma imagem
triunfante. Sua mulher lhe aparece tal como a morte que se
ergue dentro dele, transfigurada, nas noites de pesadelos. O
80
homem se encolhe mais ainda. Esconde a cabeça entre os
ombros. Apresenta-se liso e vulnerável, desossado todo o seu
ser, sem defesa. Uma ostra fora da
concha. Apenas os
XII
olhos estão atentos, pontiagudos, com algo que se assemelha
ao ódio.
85
Ele pede açúcar para tomar seu remédio. Ela lhe
assegura que ainda não está na hora. O Sr. Rolland reclama a
presença de Flórida. Fica amuado, seu lábio inferior treme
como o de uma criança que vai chorar. Tem medo. Suplica que
chamem Flórida. A voz calma da Sra. Rolland informa que são
90
duas horas e meia da manhã. Flórida dorme a esta hora. As
palavras da Sra. Rolland, nítidas, irrefutáveis, soam na noite.
Como uma sentença de morte. Flórida dorme, as crianças
dormem, o mundo inteiro fora de alcance. Só existe essa
mulher. O Sr. Rolland está só, entregue ao poder maléfico da
95
mulher que, em outros tempos, teve... Ele suplica que acordem
Flórida.
Você está doido. A pobre mulher volta a trabalhar às
seis horas. Ela precisa dormir. Não se incomode, eu mesma
vou buscar o açúcar. Ainda não está na hora do seu remédio.
100
O Sr. Rolland olha para o relógio sobre a chaminé.
Faltam ainda quatro horas para que Flórida apareça à porta,
magra e eficiente, com um sorriso tranqüilo em seu rosto
inexpressivo.
"O senhor dormiu bem? Vou já tratar do seu asseio.
105
Além do mais não podemos esquecer de suas necessidades".
Com Flórida você pode ser você mesmo, doente e
repugnante, apavorado e resignado, queixoso e injusto.
Enquanto que diante de Elisabeth...
Não quer tomar nada? Precisa de alguma coisa?
110
XIII
Não devo tomar um só gole enquanto ela estiver aqui.
Não. Nada enquanto ela estiver aqui. Ela me matará.
Sobretudo que não seja ela a preparar minhas gotas! Ver o
açúcar embeber-se, tingir-se pouco a pouco, enquanto essa
mulher aperta o conta-gotas. Não, não, não suportarei. Antes
115
morrer já.
Que mulher admirável a sua, Sr. Rolland. Oito filhos e
uma casa tão bem cuidada. E, além disso, desde que o
senhor ficou doente, a pobre Elisabeth não sai mais. Ela não
deixa a cabeceira de sua cama. Que criatura devotada e
120
atenciosa, uma verdadeira santa, Senhor Rolland. E bonita,
além do mais, uma princesa. A idade, a desgraça e o crime
passaram sobre ela como a água sobre um pato. Que mulher
admirável.
Por favor. Vai procurar Flórida.
125
A Sra. Rolland sabe que não deve contrariar os
doentes. O melhor é tentar que se interessem por outra coisa,
como se fossem crianças.
Quer que eu leia para você?
A Sra. Rolland procura entre os livros empilhados na
130
mesa de cabeceira. O Sr. Rolland mostra um deles.
Está vendo ali, as Poesias litúrgicas? A página
marcada com o fitilho?
Jerome observa o semblante de sua mulher. Esta abriu
o livro na página marcada. "Dia de cólera, o dia de hoje".
135
Uma passagem está sublinhada a lápis. "O fundo dos
corações aparecerá – Nada que não seja vingado restará".
Fingir não compreender as manobras do homenzinho,
XIV
apoiado nos cinco travesseiros de penas. "O fundo dos
corações aparecerá". Fale por você, pelo fundo de seu coração,
140
entregue, virado do avesso como uma luva velha e furada.
Quer dizer que nunca acreditou em minha ino-cência? Sempre
me temeu como à morte? Descobrir isso depois de dezoito
anos. Ameaçar-me de vingança eterna. Refugiar-se nas
palavras do Livro Santo. Jerome me olha de soslaio,
145
observando o efeito de suas provocações. Sou uma mulher fiel!
Há dezoito anos. Inocente! Sou inocente! Suspeita de mim.
Você, tão bom. O chão me foge aos pés. Mas você não saberá
de nada. Não tem nenhum poder sobre mim. Nada a dar de si.
Nada receber. Que os esposos permaneçam secretos um ao
150
outro. Para sempre. Amém.
Por que está sorrindo assim?
Por nada. É nervosismo. O cansaço, certamente...
Senhor Rolland, sua mulher está cansada. São três horas
da manhã. Não pode exigir que a pobre criatura fique ainda
155
acordada, partilhe de sua insônia, até o raiar do dia.
Já pedi para chamar Flórida. Assim você poderia ir
dormir em paz.
Açúcar, açúcar, é preciso açúcar. Está na hora de seu
remédio, Sr. Rolland. Não pode passar da hora prescrita. É
160
grave esta agitação que toma o seu peito. É preciso conjurá-la
a tempo, senão está perdido, Senhor Rolland. O desastre se
prepara. Um atraso de nada em
sua respiração e o coração
ficará sufocado. Dará saltos de carpa, fora d’água. O
sangue não poderá prosseguir. Uma carpa precisa de ar. 165
Está sufocando, Senhor Rolland. Açúcar! Açúcar! Suas
XV
gotas!
Estou descendo para pegar o açúcar.
Com voz tranqüila. O Senhor Rolland arranca os botões
da gola da camisa. Seu rosto goteja, a Sra. Rolland debruça-se
170
sobre ele, os seios quase saltando sob o corpete estreito.
Enxuga o rosto rorejante do marido. Diz com uma voz
inalterável:
Isto não é nada. Não se preocupe. Vou correndo pegar
o açúcar.
175
De que adianta chamar Flórida? Uma palavra amais e a
reserva de ar se esgotará na câmara de seu coração. Esse
amontoado de espinhos em seu peito, a pequena árvore
emaranhada onde o ar circula tão penosamente. Não consumir
o ar desse espinheiro ressequido. Não chamar Flórida.
180
Suplicar com os olhos apenas. O remédio, o remédio...
Elisabeth saiu do quarto correndo.
[Cap.5]
Elisabeth fecha a persiana e a janela. Mais um pouco e
puxaria as cortinas. Para se proteger, colocar barreiras
contra qualquer ataque do exterior. O dia já começa a
despontar. Que hora sinistra, a da aurora, esse momento
vago entre o dia e a noite, quando o corpo e a mente
5
enfraquecem de súbito e nos abandonam ao poder oculto
dos nervos. A noite toda sem dormir. A insônia nos exauriu.
Senhor Rolland, ainda não é a morte. Veja, no entanto,
que mergulho. O cansaço o recobre com uma enorme vaga,
espessa, pesada, que se desdobra em largo e pesado
10
movimento. Deixa-o deitado sobre a areia, sem forças,
esgotado, sentindo o gosto do sal e do lodo, num frêmito de
dores. Imensa exasperação por todo o corpo. A dor
reconhecível, latejando sob as unhas, à flor da pele. À
cabeceira da cama, sua mulher retoma sua solidão.
15
É preciso chamar logo essa mulher. Trazê-la para a
borda do poço deste mundo, onde se tece o seu último fio,
senhor Rolland. Não pode ficar sozinho assim, é intolerável
essa angústia, essa estreita passarela. Só dá espaço para içar
à força uma pessoa viva que vá acompanhá-lo no caminho
20
que ainda lhe resta. É preciso chamá-la. Depressa.
Elisabeth!
A Sra. Rolland está a cem léguas dali, perdida na
contemplação do punho de renda de seu braço direito.
Absorta, atenta e minuciosa. Míope e obstinada.
25
Seria necessário ter saúde para violar essa mulher.
Trazê-la à força para o leito conjugal. Estendê-
la conosco,
XVII
em nosso leito de morte. Obrigá-la a pensar em nós, a
compartilhar nossa agonia, a morrer conosco. Inatingível
como ela é, essa mulher, nossa beleza corrompida. Dar-lhe
30
provas de seu pecado, pilhá-la em flagrante delito de
ausência. Romper o pacto do silêncio. Agitar o passado
debaixo de seu bonito narizinho, aparentar desinteresse.
Elisabeth! Como é que se chamava aquela mulher?
Que mulher? Do que é que você está falando?
35
A voz de Elisabeth está apagada, distraída. Agora ela
parece apaixonadamente interessada pela renda de seu
punho esquerdo, idêntica à do punho direito. Compara com
gravidade os dois punhos sob a luz.
Você sabe, aquela que fumava cachimbo? Ela se
40
chamava Aurelie Caron. Agora me lembro...
Jerome Rolland articulou cada sílaba com nitidez.
Terrificado, espera a reação de Elisabeth. Como se ela
pudesse vingar-se a pedradas.
Elisabeth empalidece e treme da cabeça aos pés.
45
Por que está falando disso? O que deu em você?
O silêncio. Depois, uma cicatriz recente marcando o
silêncio. Com a pergunta insidiosa de Jerome Rolland
deslizando no fundo. O silêncio que se fecha. Cosido a
grandes agulhadas.
50
A Senhora Rolland pega o jarro d’água. Procura
desviar o assunto, finge esquecer a pergunta, exibe um
semblante compadecido de irmã de caridade. Despeja a
água no copo. Aproxima-se de seu marido.
Quer beber um pouco de água?
55
XVIII
O Sr. Rolland fecha os olhos. Recusar-se termi-
nantemente a beber. Esperar por Flórida. O tempo não conta
mais. Por que poupar Elisabeth? Por que não lhe demonstrar
enfim nossa profunda desconfiança? Confessar-lhe que nunca
nos deixamos enganar por sua inocência.
60
Não, eu não quero beber nada agora. Prefiro esperar
por Flórida.
A Sra. Rolland pousa o jarro e o copo. O despudor dos
moribundos. Jerome Rolland não tem mais nada a perder.
Como me despreza, ele, o jovem noivo de outrora, cheio de
65
reconhecimento: "Elisabeth, você, minha mulher! Nunca ousei
esperar um presente tão belo!"
Elisabeth senta-se bem longe do leito. Repousa a cabeça
nas costas da poltrona, algumas mechas soltam-se de seu
coque, está de olheiras fundas, e sua boca firme se enche de
70
sangue. Eu também não dormi esta noite. Estou louca e lúcida.
A febre da insônia, meu marido, se você soubesse como eu a
compartilho. Os dois juntos num mesmo delírio, atrelados
juntos numa mesma tarefa. As grandes redes de pesca que
puxamos juntos. O fundo do oceano raspado de seus pobres
75
tesouros. A memória exata dos loucos traz à tona os fatos
como se fossem conchas. Na primeira vez, Jerome, quando
você se aproximou de meu leito, gorducho e balofo, perdido
em seu imenso robe engalanado e qua-driculado, eu tinha
vontade de rir e cantarolava men-talmente: "Mon père m’a
80
donné un mari. Mon Dieu, qu’il est petit".* Você notou o meu
olhar. Aquela tristeza incrédula em seus olhos cinzentos, a
muda censura. O fracasso da primeira noite. Meu Deus, será
XIX
possível que nada pode se apagar? Vivemos como se nada
tivesse acontecido e subitamente o veneno do fundo do
85
coração vem à tona, Jerome certamente nunca me perdoou. O
nome de Aurelie Caron que ele retira do fundo da água turva
como se fosse uma arma enferrujada, para me matar.
O Sr. Rolland murmura claramente por duas vezes:
90
"Aurelie Caron, Aurelie Caron". Elisabeth não se move.
Sente a testa coberta de suor. Ele está delirando, com
certeza, do contrário não teria coragem para tanto.
O Sr. Rolland respira com dificuldade. Gostaria de
lançar às trevas esse nome de mulher pouco recomendável.
95
É uma espada de dois gumes que cai sobre mim. Dilacera
meu peito. Aurelie Caron está ligada por todas as fibras de
seu ser ao coração criminoso de Elisabeth d'Aulnieres,
minha mulher diante de Deus e diante dos homens. Não
quero saber de nada, jurei não saber de nada, viver com os
100
olhos fechados. Ah! Meu Deus, estou sufocando com toda
esta sujeira de memória nas veias.
Elisabeth retorna para junto do leito. Contempla o
semblante alterado de seu marido.
Acalme-se. Tente dormir um pouco. Flórida não
105
deve demorar.
O Sr. Rolland fecha os olhos. Que mulher boa a sua,
senhor Rolland, atende ao menor movimento da morte em
seu rosto pálido.
Elisabeth se tranqüiliza. Ajeita o coque, envolve os
110
ombros com um xale bem amplo. Por que não aceitar a
XX
situação? Desembaraçar-se desse homem, afinal? Pior para
ele. Foi ele quem quis. Que tudo se arranje pois entre Flórida
e ele, entre a morte e ele. Não exigiu a presença de Flórida
por várias vezes? Pois bem, que ela cuide dele agora, lavo
115
minhas mãos. Deixo meu marido entregue de vez a Flórida.
Me repousar, enfim. Estirar-me na cama de casal, ao
comprido ou atravessada. Viver. Que crime poderia ser esse,
quando já se surpreendeu o olhar ávido de Flórida farejando
a morte? Essa criatura desengonçada que de repente
120
reanimou-se. A súbita mudança da criada pressentindo o
fim de seu patrão. Uma tonta que sai de sua patetice. Uma
cataléptica que volta à vida. Uma perdida que encontra sua
direção e seu caminho. Meu Deus, será possível? A criada
incompetente que vive no mundo da lua, deixa entornar o
125
leite no fogo, quebra os copos e os pratos, calça as crianças
errado. A botina direita no pé esquerdo e vice-versa. O que
faremos com essa mulher! Não presta para nada. Não seria
melhor mandá-la de volta para a aldeia? Bastou que Jerome
tivesse sua última crise na frente da criada para que ela
130
surgisse do fundo da noite. Se transfigurasse. Descobrisse
sua vocação fúnebre. A transformação é completa. Olhar
vivo e gestos precisos, eis Flórida, à segunda maneira.
Estranha, leve criatura que se apronta para celebrar,
segundo os ritos, os últimos momentos de Jerome Rolland.
135
Sanguessugas e cataplasmas, mingau e gemada, compressas
e extrema-unção, lágrimas e mortalha. Nada falta e nada
faltará. Pode confiar em Flórida. A senhora poderá chorar
em paz. Eu cuidarei de tudo.
XXI
Ela já está ali, na soleira da porta. Nunca se ouve quando 140
ela chega, com suas pantufas. O passo pesado, abafado, os
pés largos afastados um do outro. O longo pescoço
recurvado que ela tem, a cabeça de cabelos trançados
balançando. Uma aparência de cavalo de coche fúnebre
agitando suas trancinhas cinzentas, amarradas de preto.
145
Flórida sorri com todos os seus dentes brancos e longos.
É dia de feira. Já vi carroças passando pela rua. A
senhora pode ir dormir. Não precisa preocupar-se com o
patrão. Estou aqui.
Flórida ergue Jerome Rolland em seus braços
150
robustos, vira-o como se fosse um embrulho ligeiro. Tira-lhe
o camisolão molhado de suor, lava-o e veste-o com outro
limpo. Elisabeth se sente de mais, apaga-se. Debruça-se à
janela. Percebe, às suas costas, dentro do quarto entregue a
Flórida, toda uma atividade matutina de hospital.
155
A Sra. Rolland deixa seu marido nas mãos experientes
que o acalmam e o dominam. Abandona o quarto
furtivamente, enquanto o Sr. Rolland, aliviado, lavado e
barbeado, dorme de cansaço nos lençóis limpos. Flórida fica
de vigília, imóvel em sua cadeira, apoiada na cama. O Sr.
160
Rolland sonha que descansa para sempre no regaço de
Flórida.
* [N. T.] Linhas 80 e 81: Canção folclórica de roda de origem
francesa. Tradução: "Meu pai me deu um marido. Meu Deus, como ele é
165
pequenino".
[Cap.6]
Expulsa! Fui expulsa do aposento conjugal. Expulsa
de minha cama. Por dezoito anos aquele homem doce ao
meu lado num grande leito de madeira esculpida, o colchão
de penas, os lençóis de linho. Aqui estou, sozinha na
caminha ridícula de Leontine Melançon, a professora das
5
crianças. A senhorita Leontine dorme, desde ontem, num
sofá do quarto de Anne-Marie. Meu marido está tão doente.
Isso aqui cheira a tinta e a solteirona. Preciso dormir.
Dormir. Depressa antes que as crianças acordem lá em cima.
Me acostumar a dormir sozinha. Suportar o horror dos
10
sonhos. Sozinha, sem a ajuda do homem, sem o socorro do
homem. Presença de um corpo debaixo das cobertas. Calor
irradiante. O abraço que tranqüiliza. Absolvição de todo
mal, breve eternidade, reconciliação com o mundo inteiro.
Jerome, meu benzinho, agora posso confessar isto, sem você
15
eu já estaria morta de pavor. Devorada, despedaçada pelos
pesadelos. O terror se ergue como uma tempestade! Um
homem ensangüentado jaz para sempre na neve. Ele está ali!
Seu braço gelado, endurecido, levantado, estendido para o
céu! Ah, Jerome, meu marido, tenho tanto medo! Me abraça
20
outra vez para que eu possa alcançar a salvação. Um pouco
de paz. O sono enfim!
A Sra. Rolland ergue-se da cama de Leontine
Melançon, espanta-se ao ver-se ali toda vestida, deitada.
Devo ter cochilado.
25
Tenta por duas vezes desfazer a cama, retirar as cobertas
que foram presas sob o colchão sem uma prega
XXIII
sequer. Desabotoa o corpete, o cinto. Pensa vagamente em
chamar alguém para tirar-lhe as longas botinas, mas não ousa
fazê-lo com receio de acordar as crianças. Segurando nos
30
lábios os grampos de cabelo, inclina-se para desabotoar as
botinas, engasga-se com um grampo, quase o engole. Chora de
soluçar, com as mechas ruivas entrando nos olhos. Um seio
salta do corpete.
Deita-se enfim. Por cima das cobertas. Esse odor azedo
35
de virgem mal lavada, não, não posso suportar! Elisabeth
fecha os olhos.
Culpada! Culpada! A Sra. Rolland é culpada! Elisabeth
ergue-se de um salto. Escuta com atenção. No andar de
baixo o passo solene de Flórida, prestimosa ao redor do leito
40
de Jerome. Meu marido teria piorado? Não, pois Flórida
viria me avisar. Preciso dormir. A culpa é dessa mulher
lúgubre, também. Não devia ter deixado meu marido doente
em suas mãos. Que cerimônia demoníaca estariam
tramando, ela e ele? Meu pobre marido em conivência com
45
Flórida, para se perder para sempre. Meu marido está
morrendo novamente. Calmamente em seu leito. A primeira
vez foi pela violência, no sangue e na neve. Não são dois
maridos substituindo-se um ao outro, seguindo um ao outro,
nos registros de casamento, mas um único homem
50
renascendo continuamente de suas cinzas. Uma única e
longa serpente refazendo-se indefinidamente em seus anéis.
O homem eterno que ora me toma, ora me abandona. Sua
primeira face cruel. Eu tinha dezesseis anos e queria ser feliz.
Bandido! Bandido sujo! Antoine
Tassy, senhor de 55
XXIV
Kamouraska. Depois vem o clarão sombrio do amor. Olhos,
barba, cílios, sobrancelhas, negros. Doutor Nelson, estou
doente e não mais o verei. Que belo tríptico! A terceira face é
tão suave e insossa, Jerome. Jerome, Flórida está cuidando
de você. Quanto a mim, quero dormir! Dormir!
60
Flórida estaria arrastando os móveis? Que será que ela
está fazendo? A casa toda lhe pertence agora. Ela dá ordens,
organiza, prepara os móveis e os quartos para a cerimônia.
Abre as das folhas do portão da entrada. Ouço o barulho
dos dois batentes. Tenho certeza de que Flórida abriu o
65
portão. O que é que ela tem? O sonho! É um sonho? Flórida
com suas pernas de caniço. Eu sei que ela está de guarda na
calçada. Vejo-a bem agora, ouço-a e vejo-a. Traz uma albarda
no ombro direito, como um suíço de igreja. Com aquele
avental engomado que vestiu de manhã, todo esvoejante
70
sobre seu corpo seco. Proclama horrores dirigidos aos que
voltam da missa das sete horas: Atenção! Boa gente, atenção!
Meu patrão está morrendo. É a patroa que está matando ele.
Venham. Venham todos. Vamos levar minha patroa a
julgamento. Vamos levar minha patroa para a panela como
75
se fosse um coelho aberto a faca. Pronto, eis as tripas sujas de
seu ventre sujo. Atenção! Boa gente,
atenção! O auto de
acusação está escrito em inglês. Pelos senhores deste país:
At her majesty’s court of kings’ bench the iurors for our Lady the 80
Queen upon their oath present that Elisabeth Eleonore d'Aulnieres late of
the Parish of Kamouraska, in the county of Kamouraska in the district of
Quebec, wife of Antoine Tassy, on the fourth day of january in the second
XXV
year of the reign of our sovereing Lady Victoria, by the Grace of God of
the united kingdom of Great Britain and Ireland, Queen, defender of the
85
faith, with force and arms at the parish aforesaid, in the county aforesaid,
wilfully, maliciously and unlawfully, did mix deadly poison towit on
ounce of white arsenic with brandy and the same poison mixed with
brandy as aforesaid towit on the same day and year above mentioned
with force and arms at the parish aforesaid int the county aforesaid,
90
feloniously, wilfully, maliciously, and unlawfully did administer, to and
cause the same to be taken by the said Antoine Tassy then and there being
a subject of our said Lady the Queen, with the intent in so doing
feloniously, wilfully, maliciously, and for her malice aforethought to
poison, kill and murder the said Antoine Tassy against the peace of our
95
said Lady the Queen her crown and dignity.
*
*
Atenção! Está aberta a sessão!
*
N. T.de TLT-1: em inglês no original. (Abaixo, cópia da tradução do inglês
presente em TLT-1).
“No tribunal de Justiça Superior os jurados de nossa Rainha, em seu julgamento, acusam
Elisabeth Eleonore d'Aulnieres, recentemente na paróquia de Kamouraska, condado de
Kamouraska, distrito de Quebec, esposa de certo Antoine Tassy, no quarto dia de janeiro
do segundo ano do reinado de nossa sobeana Rainha Vitória, pela graça de Deus, do
reino unido da Grã-Bretanha e Irlanda, defensora da fé, com força e armas na paróquia
acima citada, no condado também acima citado, premeditada, malévola e ilegalmente,
misturou veneno mortal, a saber uma onça de arsênico branco com uísque, conforme
dito, no mesmo dia e ano acima mencionado, no condado citado, criminosa premeditada,
malévola e ilegalmente ministrou-o e fez que o mesmo fosse tomado pelo dito Antoine
Tassy nesse tempo súdito de nossa soberana, a Rainha, com o propósito de, ao proceder
assim criminosa, deliberada e premeditadamente, envenenar e assassinar o referido
Antoine Tassy contra a paz de nossa soberana, a Rainha, em sua coroa e dignidade.
XXVI
Que grito agudo e gutural, estou com os miolos em
frangalhos! Flórida é o diabo. Pus o diabo a meu serviço. É
a segunda vez, Sra. Rolland. É a segunda mulher do inferno
100
que a senhora emprega em sua casa. A primeira chamava-
se Aurelie Caron, lembra-se? Não, issoo é verdade.o
sei de quem estão falando.
Elisabeth leva as mãos à cabeça. Cada grito é uma
pancada; vou morrer. Senta-se na cama. O quartinho de
105
Leontine Melançon está agora cheio de luz. É plena manhã.
Lá em cima as crianças fazem um grande alarido, cada uma
querendo sapatear e algazarrar mais do que a outra. De
repente dois gritos penetrantes novamente cortam o ar,
dominando o tumulto. A criança que faz isso não grita nem
110
de raiva nem de dor, é só pelo prazer de soltar toda a sua
vez acima do barulho de seus irmãos e irmãs.
A Sra. Rolland veste o roupão e precipita-se escada
acima. Ei-la enfurecida e ofegante no quarto das crianças.
Dá uma boa palmada no pequeno Eugene que, surpreso,
115
esquece de chorar.
Seu pai está doente. Você não é louco, para gritar
desse jeito!
A desordem do quarto é indescritível. Restos de pão
no tapete, uma xícara de leite derramada. Um grande cavalo
120
de madeira caído de lado parece esticar o pescoço para a
poça de leite. Lençóis sujos amontoados. A pequena Eleo-
nore está seminua, com a bundinha assada. A Sra. Rolland
sacode a ama-seca pelos ombros. Uma chuva de grampos
cai em volta da jovem assim sacudida com mão firme.
125
XXVII
Pobre Agathe, você não passa de uma palerma!
Flórida prometeu me ajudar. Não posso fazer tudo
sozinha.
Agilmente a Sra. Rolland passa talco nas nádegas da
pequena Eleonore e veste-a com bonitas calças bordadas. O
130
cavalo de madeira é colocado de pé. Agathe recolhe a roupa
suja, enxuga o leite derramado no chão, varre as migalhas
de pão. Tudo fica em paz. As crianças vestidas, penteadas,
sossegadas, fazem poses encantadoras ao redor da mãe.
Agathe junta as mãos diante de tão comovente quadro.
135
Parece a rainha com os principezinhos em volta!
A verdade sai da boca dos inocentes. A rainha contra
Elisabeth d'Aulnieres, que absurdo. Como ousam acusar-me
de ter ofendido a rainha? Pois que está provado que pareço
com ela, como uma irmã, com todos os meus filhos em volta
140
de mim. Pareço com a rainha da Inglaterra. Imito a rainha
da Inglaterra. Estou fascinada pela imagem de Vitória e seus
filhos. Mimetismo profundo. Quem poderá acusar-me de ter
pecado?
A voz esganiçada da pequena Anne-Marie eleva-se de
145
repente:
Mas mamãe está de roupão! Ainda nem se penteou.
Além do mais seu rosto está todo vermelho!
Que peste esta menina sabida e lúcida demais. Num
piscar de olhos quebrou-se o encanto, desmascarou-se a
150
representação. O desalinho da Sra. Rolland soa como uma
nota desafinada. Um quadro tão bonito de crianças bem tra-
tadas e vestidas com esmero. Agathe parece envergonhada
XXVIII
por ter-se deixado enganar por aparências tão frágeis.
Mamãe, pode deixar que eu penteio você!
155
Anne-Marie suplica com os olhos brilhantes. Por
algum tempo Elisabeth deixa a filha mexer em seus cabelos.
Movimentos de pente e de escova se sucedem sem êxito
numa cabeleira basta e embaraçada.
Bom, que lhes seja mostrado sem pudor o reverso da
160
imagem de Vitória. Que estas crianças fiquem bastante des-
concertadas e perplexas. Isto as tornará menos bobas.
Cabelos e roupas em desalinho, eis a mãe de vocês,
emergindo de um sono de algumas horas, visitado por
demônios. Anne-Marie, minha filha, acha que meu rosto
165
está vermelho? Você nem imagina como esta observação
me atinge e atormenta. Sua vozinha de criança traz à tona
uma outra voz oculta na noite dos tempos. Uma longa raiz
sonora se desprende e surge com a própria terra de minha
memória. O tom rude e assustador de Justine Latour que
170
testemunha diante do juiz de paz.
Durante a viagem do doutor Nelson a Kamouraska,
a senhora estava mais vermelha e agitada que de costume.
Determino como as crianças passarão o dia. Anne-
Marie e Eugene estão convidados para ir à casa de tia
175
Eglantine. A professora os acompanhará. Quanto aos outros,
Agathe vai levá-los até o jardim do forte. Que fiquem
passeando até o anoitecer. Amém. Só tenho que me vestir e
esperar o médico que não deve tardar.
Vestida, arrumada, alerta, a Sra. Rolland retoma seu
180
posto junto à cabeceira do marido. O doutor é categórico:
XXIX
Seu marido pode partir a qualquer momento.
Não despregar os olhos de Jerome Rolland, velá-lo
como ao próprio mistério da vida e da morte. Surpreender a
mão de Deus agarrando sua presa, confortar esta pobre
185
presa humana. Ser vigilante até o extremo limite da atenção.
Aceder à sombra do menor desejo deste homem. Ficar ali.
Dar-lhe de beber, dizer-lhe bom dia, dizer-lhe adeus. Dizer-
lhe que é verão. Assegurá-lo da misericórdia de Deus.
Mostrar um semblante de paz, a própria evidência da paz
190
num semblante reconciliado com Deus. A inocência exposta
como a pele sobre os ossos. Jerome, está acordado? Agita-se
durante o sono. Murmura o nome de Flórida. Por duas
vezes chama por Flórida. Parece não me ver. Me ignora para
chamar essa mulher que é cúmplice da morte.
195
Flórida foi às compras. Não vai demorar.
A Sra. Rolland está em pé, sentindo o sangue fugir de
seu rosto. Com frio no corpo todo. Não, não, isso não vai
ficar assim. Ele está exagerando. Me insultando. É muito
injusto, afinal. Sou sua mulher. Só eu é que velarei Jerome
200
Rolland, meu marido. Quando Flórida voltar, mando-a para
a cozinha.
A voz baixa e lenta de Jerome.
Elisabeth, você teve muita sorte em casar comigo,
não foi?
205
A voz neutra, sem vibração, de Elisabeth:
Jerome, sem você eu estaria livre para refazer minha
vida, como se trocasse uma roupa velha por outra nova.
Menos do que um duelo, foram dois golpes
perfeitos,
XXX
diretos e justos. Atingida a ponta do coração, num sussurro 210
de alcova. Diante da morte que se aproxima.
[Cap.10]
O sol se pôs por trás da casa. Como uma chama que
foi soprada. Bruscamente tudo fica muito escuro, negro.
Minhas três tias agitam-se, correm de um lado para outro.
Sobem e descem a escada da galeria. Pegam três vasos de
gerânios. Desaparecem no interior da casa. Cada uma
5
segurando contra o peito, seu vaso de flores vermelhas ou
cor de rosa. A porta de entrada bate. O eco por trás desta
porta fechada é extraordinário. O barulho da porta que
bateu persiste por longo tempo, como num lugar deserto,
sem móveis nem cortinas. Um lugar imenso. Desmedido.
10
Uma espécie de estação de trem. Uma adega alta e nua.
Logo em seguida uma voz aguda se eleva, retomada ao
infinito pelo eco.
Tenho certeza de que vai gear esta noite. Seria uma
pena deixar os gerânios na galeria. Ge- râ- ni- os... Ga- le- ri-
15
a... ri- a... i- a...
As palavras se inflam. Rolam e desmoronam. A voz
vizinha do salão. Tia Luce-Gertrude? Tenho certeza de que
era ela. A noite caiu por completo, agora. A silhueta sombria
de minha casa fechada enche toda a Rua Augusta. Pode-se
20
mesmo dizer que a casa se ergue no meio da rua. Maciça,
imutável, provocante. Uma espécie de barricada.
Gostaria de fugir. Não entrar dentro da casa. Seria
arriscar-me, por certo, a reencontrar ali minha vida passada
se reanimando, sacudindo as cinzas, em migalhas
25
empoeiradas. Cada tição extinto, reacendido. Cada rosa do
fogão que crepita, fulminante. Não, não! Não quero. Não
XXXII
atravessarei nunca mais a soleira da casa. Vocês estão
enganados, não sou quem estão pensando. Tenho um álibi
irrefutável, um salvo-conduto em perfeita ordem. Deixem-
30
me ir embora, sou a Sra. Rolland, esposa de Jerome Rolland,
tabelião em exercício na cidade de Quebec. Nada tenho a
ver com os mistérios defuntos e pouco edificantes dessa casa
de tijolos na esquina das Ruas Augusta e Philippe, na cidade
de Sorel. Há erro de pessoa. Deixem-me. Tenho afazeres em
35
outro lugar. Meu dever me chama na Rua do Parlatório, em
Quebec. Meu marido está morrendo neste exato momento.
Meu lugar é à sua cabeceira. Nada tenho a fazer na Rua
Augusta, em Sorel. Eu juro. Sou a Sra. Rolland, a Sra.
Rolland!
40
Não ouso desviar a cabeça. Fixo o olhar diante de
mim. No entanto, à direita e à esquerda de minha pessoa
acontece algo que não vejo. Aproxima-se de mim, dos dois
lados ao mesmo tempos. Me toca. Me pressiona. Em minha
cintura. Amarrota minha saia. Toca meu joelho. Sinto-me
45
erguida do chão. Presa sob os braços por outros braços
vigorosos. Vou sofrer mais uma vez esta afronta? Cercada
por dois policiais serei obrigada a transpor a porta, ali,
diante de mim? As testemunhas! Estão todas ali, reunidas
no salão, abrigadas por detrás das persianas fechadas.
50
Ouço-as cochichar. Não aceito o confronto com tais pessoas:
empregados, estalajadeiros, barqueiros, camponeses.
Testemunhas sem importância. Quanto a Aurelie Caron...
É ela, eu a chamei, a convoquei, com o meu próprio
medo. Aurelie me segura pelo braço. Dou uma olhada de
55
XXXIII
soslaio. Seu perfil prognata destaca-se em silhueta. Seu peito
arfante pela dificuldade em respirar. Ela parece tomada de
extraordinária indignação. Penosamente viro a cabeça para
o outro lado, como um doente exaurido em seu travesseiro.
A imagem aturdida de Justine Latour me olha agora, rindo e
60
chorando ao mesmo tempo.
Meu Deus! Meu Deus, madame! A senhora nos
meteu em maus lençóis!
Irrompe o riso louco de Aurelie. Bem junto de mim.
Vibra por um instante. Quebra-se. Esfola-me o rosto. Meus
65
dois guarda-costas seguram-me com firmeza. Fazem-me
subir a escada, de quatro em quatro. Alguém que não vejo
abre a porta pelo lado de dentro. Acho-me no vestíbulo. A
porta do salão está fechada. Atrás da porta as testemunhas
se calam. Ouço-as respirar, tossir, fungar, amarfanhar tecido
70
ou papel, em surdina. O salão se enche de um pisotear
confuso e nervoso.
O silêncio que se segue é tão repentino e total que me
aperta a garganta. Não há mais ninguém no salão. A porta
se abre docemente sobre o vazio. Também não há mais
75
ninguém ao meu lado para me forçar a ir em frente. Aurelie
Caron e Justine Latour desapareceram. Estou sozinha no
vestíbulo. O cheiro enjoativo e forte das casas fechadas me
invade por completo, penetra pelas narinas, arde nos olhos.
Cola em minha pele.
80
O revestimento das paredes despregou-se, em largas
placas. O entulho foi varrido e amontoado junto ao rodapé.
Cai uma poeira fina, incansável como a neve. Será que vou
XXXIV
morrer aqui, neste vazio absoluto? Uma redoma de vidro
onde persiste uma poeira seca, para me sufocar.
85
Nesse espaço reduzido, nesse ar cinzento que se
rarefaz, surge uma comungante. Toda vestida de branco, da
cabeça aos pés. Seu longo véu vai até o chão. Em sua cabeça
uma guirlanda de rosas brancas. Não posso fazer nenhum
movimento. Em sua mão pesada, em meu braço petrificado,
90
morre docemente o esboço vão de um sinal da cruz. Uma
criança que sou eu me olha bem de frente e me sorri
gravemente. Me obriga a escutar a voz ligeira e solene que
eu julgava perdida.
Renuncio a Satanás, a suas pompas e obras, e me
95
uno a Jesus Cristo para sempre.
Assim, os votos do batismo são renovados solene-
mente. O resto pode seguir sua ordem. A porta está aberta.
Respira-se a plenos pulmões um ar fresco e puro. Retomo o
uso de meus movimentos, enquanto a comungante se despe
100
diante de mim, no vestíbulo. Minhas queridas tias estão em
volta dessa criança. Tiram-lhe o véu e a guirlanda. A criança
se desfaz com alegria do vestido branco, que, ao cair no
chão forma um anel nevado à sua volta, que é transposto
risonhamente num pé só.
105
Não nos demoremos mais. A infância já passou. Toda
uma educação de moça rica se desenrola como convém. A
seda, a cambraia fina, a musselina, o veludo, o cetim, as
peles e o cashmere sucedem-se rapidamente ao tule da
primeira comunhão. Os figurinos, os pacotes de tecidos,
110
rescendendo agradavelmente às longas viagens, em fundo
XXXV
de navio, através de oceanos longínquos, vêm aportar no
vestíbulo em ruínas. Local da reconstituição.
A menina está crescendo a olhos vistos!
Elisabeth, mantenha as costas eretas, o busto apru-
115
mado. E, sobretudo, não encoste no espaldar da poltrona.
É preciso mudar de costureira. Esta não tem um
bom corte.
Não esqueça a santa comunhão. Não levante os
olhos de seu trabalho de tapeçaria. Sua beleza e boas
120
maneiras farão o resto.
Adelaide, Luce-Gertrude, Angelique agitam-se me
volta da Menina. Vigiam seu peso e sua altura.
Aurelie aos quinze anos. Vai e volta na calçada em
frente de minha casa. Balançando-se dentro de seu
125
vestidinho de índia. Me faz sinais com a mão. Todo um
bando de vadios seguindo-a e empurrando-a. Esta garota
me provoca e me faz morrer de inveja. Aos quinze anos,
sabe tanto sobre a vida quanto os próprios mortos.
Minha tia Luce-Gertrude fecha a porta.
130
Essa moça já está perdida. Em sua idade, é
abominável.
Eu bem que queria sair também. Ir pescar como
quando eu era pequena! Com os rapazes!
Tia Luce-Gertrude não diz mais nada. Tia Luce-Ger-
135
trude perde a respiração. Tia Adelaide também. E tia Ange-
lique. A Menina transformou-se numa verdadeira mulher.
Ei-la em seu primeiro vestido de baile, todo de frufrus
furta-cor, com os ombros à mostra, flores nos cabelos. Ainda
XXXVI
bem que nesta região selvagem, há o baile do governador! 140
As três pequenas Lanouette entregam-se a um sonho
louco, misturado à angústia. Como se elas próprias deves-
sem lançar-se numa mutação carnal incessante,
extravagante e libertina.
Minha mãe aproxima-se lentamente no vestíbulo. Me
145
olha com consternação. Sua melancolia aumenta. Decide
falar.
Temos que casar esta Menina.
[Cap.11]
Só tenho o tempo de correr atrás de Aurelie ao longo do
rio. É melhor nos encontrarmos logo, no ácido frescor de
nossos quinze anos.
Observamo-nos mutuamente. À distância. Desconfia-
das como duas gatas.
5
A saia estreita cola em suas pernas. Os pés descalços
estão sujos de barro seco. Duas tranças compridas de cabelos
crespos descem por suas costas, parecendo duas correias
negras, aureoladas de espinhos avermelhados pelo sol. O
rosto, o pescoço, os braços nus têm a brancura lívida dos
10
cogumelos frescos.
Como você está pálida, Aurelie.
Estou sempre com essa cor de prisioneira, a madame
sabe muito bem disso. Um verdadeiro pressentimento...
Tudo vai mal. Desde o início o fundo da história
15
transparece. Aurelie me fala de prisão. Me chama de
"madame". Ela vai envelhecer diante de meus olhos, vai
ganhar peso. Retomar toda a sua vida. Vai pedir-me
explicações, provavelmente? Minha alma, para que isso não
se repita! Minha vida, para encontrar intacto o tempo em que
20
éramos inocentes, eu e ela.
Nunca fui inocente. Nem a madame.
Parece que estamos ensaiando uma peça. Procurando
palavras e gestos já vividos e amadurecidos longamente, mas
que hesitam em mostrar-se sob a luz.
25
A voz é cada vez mais penetrante, adulta e cruel.
Foram dois anos e meio que fiquei na prisão, não
XXXVIII
sabe? Por sua causa. À disposição da justiça, como eles
dizem. Enquanto que a madame ficou livre sob fiança...
Dois longos meses de prisão para mim também,
30
Aurelie, está esquecendo?
A voz cortante. A jovem salta de lado. Com os ombros
projetados para frente. Prestes a me atacar.
Não me esqueci de nada. Nada mesmo.
Tenho de ser rápida. Me proteger do furor de Aurelie.
35
Salvar nós duas. Nos reconciliarmos para sempre. Abolir
toda uma época de nossas vidas. Reencontrar nossa adoles-
cência. Bem antes que... É como se eu arrancasse da escuri-
dão, com muito esforço, uma palavra, uma só, pesada, lon-
gínqua. Indispensável. Uma espécie de peso oculto embaixo
40
da terra. Uma âncora enferrujada. Na ponta de uma longa
corda subterrânea. Uma espécie de raiz profunda, perdida.
Desistência! Desistência! Aurelie, você bem sabe que
houve desistência!
Aurelie repete com aplicação "desistência". Aparen-
45
temente sem acreditar. Indecisa. Como alguém que aprende
uma língua. "Desistência". Depois esta palavra a ilumina por
inteiro. Faz com que ria às gargalhadas.
"Desistência". Confundiram os juízes! Dispensaram as
testemunhas. Taparam a boca dos jornalistas! A madame está
50
salva e eu junto! Livres! Livres! Estamos livres!
Aurelie, sem fôlego de tanto rir, deixa-se cair no chão.
Seus ombros estremecem como se chorasse. Ajoelho-me a
seu lado, no capim amassado do caminho.
Aurelie. Lembra. E seus quinze anos?
55
XXXIX
Ela ergue em minha direção seu rostinho calmuco,
rindo com os olhos apertados. Me examina atentamente com
precaução. Procurando manter um olhar ardente e virulento.
Naquele tempo lhe chamavam de "Senhorita", com
toda a pompa.
60
De novo a gargalhada. Ela toca em minhas roupas,
como se tocasse em fogo ou neve.
Como está bem vestida! Parece uma festa. Mas a
senhorita não entende nada de rapazes.
Aparento desdém. Desvio o rosto e aliso as pregas de
65
minha saia com altivez.
Isto não é nada. Se você visse meu vestido de baile.
Decotado, todo de seda, para dançar na casa do Governador.
Encorajada pela palavra “Governador”, Aurelie segura
70
minha saia com as duas mãos.
Como é macio e bonito! Grande traste, o Governador!
Por mim, vivo com o meu tio!
Ouvi dizer que não é seu tio.
De novo Aurelie aperta os olhos. Uma pequena víbora,
75
rapidamente, surge entre os cílios e desaparece.
Não interessa se é ou não é. Com ele eu vivo bem.
Quase não trabalho. Tenho uma gola de renda, para ir à
missa aos domingos.
Aurelie, é verdade que você é uma feiticeira?
80
Aurelie, subitamente muito calma e digna, sacode os
ombros. Pega o cachimbo preso ao cinto por uma fita. Esva-
zia-o batendo no calcanhar descalço. Tira um saquinho de
XL
tabaco do bolso.
Aurelie enche o cachimbo. Acende um fósforo. Faz
85
puf... puf... com sua boca de lábios grossos. Como se fosse
uma criança mamando. O seu rosto pálido exprime um
contentamento infinito. Fala em meio a uma nuvem de
fumaça. Com a voz ausente. Num tom distante.
Eu sei quando os bebês que acabam de nascer vão ou
90
não viver. É até fácil. Logo depois que nascem, depois de bem
lavados pela parteira, eu chego e lambo os bebês da cabeça
aos pés. E aí, quando o gosto é muito salgado, quer dizer que
eles vão morrer. Não me enganei nem uma vez. As mães
mandam me chamar logo, para saber.
95
E os rapazes, Aurelie, me fala dos rapazes.
Parece que eu grito, pondo as mãos em porta-voz.
Aurelie me escapa. Passo bruscamente do sol ofuscante a
uma espécie de penumbra úmida, avassaladora. Uma única
idéia verrumando na cabeça: tenho de voltar para casa, ou
100
não me permitirão ir ao baile do Governador. Se minhas tias
descobrirem que me encontrei com Aurelie, serei castigada.
À medida que esta idéia percorre minha cabeça e se instala,
clara e nítida, afasto-me vertiginosamente de Aurelie. Sem
que eu mesma chegue a dar um passo, aliás. É como se
105
deslizasse sobre o rio. Uma espécie de jangada sob os pés. O
rio silencioso. Nenhuma resistência da água. Nenhum
barulho de onda ou de remos. Vou ao baile do Governador.
Tenho de ir ao baile do Governador. Adeus Aurelie. Se
algum dia encontrar você de novo, vou fazer como se não a
110
conhecesse, má companhia, mau encontro. Minha mãe me
XLI
prometeu um colar de pérolas, para eu ir ao baile do
Governador. Minha alma por um colar de pérolas. E os
rapazes, Aurelie? E os...
Seu perfil preciso cor de marfim. Seus lábios grosseiros.
115
Seu cachimbo. Uma nuvem de fumaça. Depois mais nada.
Aurelie desapareceu.
O baile é uma maravilha. Danço com o Governador em
pessoa, sentindo sua respiração em meu pescoço. Tia
Adelaide bate com o leque em meu braço. Os lustres são
120
extraordinários. Luzes róseas se balançam no teto. Quero
dançar a noite inteira. Os rapazes endomingados não são
nada divertidos. E as moças então? Pretensiosas e afetadas,
rindo como se fossem gansas grasnando. Só mesmo o próprio
Governador... Todo corado. De suíças ruivas. Acho que ele
125
olha enviesado para... Aumentei o meu decote. A música,
minhas pernas. Minha cintura. A música. A música me sobe à
cabeça. Um, dois. A polca. Adoro a polca. Dócil como uma
vela se derretendo, viva como uma chama. Acho que o
Governador (dançando até perder o fôlego) me inclina sobre
130
seu braço. Como uma flor que desfalece. Quem sabe eu
imaginei isso? Minha mãe diz que precisam me casar. A
quadrilha recomeça. Os rapazes ficam ofegantes, bufando,
como se fossem leitõezinhos pesados e desajeitados. Me
olham de soslaio. Minha mãe repete que precisam me casar.
135
O Governador já tem bem uns quarenta anos, idade inte-
ressante. Os outros, leitõezinhos endomingados, nada mais.
Aurelie, apesar de tudo eu precisava lhe falar. Como fazer?
XLII
Eu queria saber... Os rapazes... Os rapazes... 140
[Cap.13]
Vou me casar. Minha mãe disse sim. E eu também disse
sim, na noite de minha carne. Ajudem-me! Diga-me, você,
minha mãe? Aconselhem-me! E vocês, minhas tias? Será o
amor? Será o amor que me atormenta? Acho que vou me
afogar.
5
Com que então é assim que as moças vivem? Te encho
de mimos, te penteio. Te levo à missa e ao catecismo. Te
escondo a vida e a morte por trás de grandes biombos,
bordados com rosas e flores exóticas. São os selvagens que
deixam cair os recém-nascidos nas camas das mães. Você
10
sabe, os pequeninos, com o rosto enrugado, que a gente
encontra de manhã, embrulhados em cueiros e em lã branca?
Junto à mamãe cansada que sorri? As fábulas. As fábulas de
Deus e dos homens. As bodas de Caná, A noiva de Lamermour, A
la claire fontaine, jamais je ne t’oublierai.
*
* O amor, o belo amor 15
das canções e dos romances.
Bandido. Belo senhor. Bandido sujo. Bem que eu o vi
na rua. Mary Fletcher, uma prostituta. Meu Deus! De casaco
vermelho. Os cabelos cor de cenoura. E você, triste senhor
que a seguia na calçada, como um carneirinho sujo. Para sua
20
cama larga, de lençóis manchados. Ah! Como eu adivinhei, e
com que dor no ventre, a festa despudorada entre vocês dois.
Eu, eu, inocente. Elisabeth d'Aulnieres, moça em idade de
casar.
O baile dos Cazeau. É estranho como um homem tão
25
forte dá voltas e meias-voltas com tanta facilidade. Mantenho
meus olhos obstinadamente abaixados. Ele aperta o meu
braço. Sua voz baixa e molhada.
*
N. T.:Canção de roda do folclore canadense. Tradução: “Na clara fonte
jamais me esquecerei de você”.
XLIV
Elisabeth, olhe para mim, eu lhe peço!
O senhor me insultou. Eu o vi com aquela mulher.
30
Ontem na rua.
Eu não sabia. Enfim. Eu peço perdão.
Seu lábio treme como se ele fosse chorar.
Meu orgulho! Apelo para meu orgulho. Como se ele
fosse Deus. Enquanto isso a imagem cor de cenoura de Mary
35
Fletcher me enche de curiosidade, de ciúme e de desejo.
Ficamos nos olhando por um longo momento. Em
silêncio. Sua confissão. Sua fraqueza. A minha. E meu
orgulho que se rende pouco a pouco. Desviamos os olhos, um
40
do outro, esgotados, como dois lutadores.
Eleonore-Elisabeth d'Aulnieres, aceita como esposo
Jacques-Antoine Tassy?
É preciso dizer "sim", bem alto. O véu da noiva. A
grinalda de botões de laranjeira. O vestido de cauda. O bolo
45
de noiva, de três andares, coberto de açúcar e de creme
batido. Os convidados assoando o nariz atrás de você. Todo o
burgo de Sorel espera para vê-la passar, de braço dado com o
jovem noivo. Meu Deus! Estou pecando! Estou casada com
um homem que não amo!
50
[...]
[Cap.16]
De novo o quartinho de Leontine Melançon. Não
tenho mais forças para mexer a cabeça no travesseiro.
Deitada de costas, esticada da cabeça aos pés, com os olhos
pregados ao teto. As saliências decorativas das sancas. Esse
branco ofuscante. É sempre esse sol que... As saliências
5
vistas e revistas, examinadas, feitas e desfeitas. À saciedade.
Impossível fazer um movimento. Mexer o dedinho. Meu
corpo todo está lastreado de centenas de pedacinhos de
chumbo, como os que se colocam nas bainhas das casacas e
das saias, para que caiam bem. Aparelhada como alguém
10
que se afogou e que vai ser sepultado no mar. Imersa no
sonho salobro. A memória exata, como um relógio. Tic tac,
tic tac... Quem me tomará em seus braços. Docemente... Me
tirará do quarto de flores ridículas. Quem me arrastará até a
escada. Me fará descer os degraus. Um por um, como uma
15
criança. Me posará sã e salva à cabeceira de Jerome Rolland?
Duas balas na cabeça. O cérebro saindo pelas orelhas.
Enfaixam seu horrível ferimento. Puseram-no deitado na
igreja sob o banco senhorial. Escuto-o gemer brandamente
20
nas noites de tempestade. Essa terra é devastada pelo
vento. Antoine se levanta em segredo. Segue por corredores
escavados sob a terra. Caminhos escuros onde passam
águas subterrâneas. Chega às ruínas do solar. Senta-se em
sua poltrona, frágil como carvão de madeira, quebradiça.
25
Veludo seco. Perto da chaminé intacta, de goela negra.
Queixa-se do frio da terra. Missas que ele tem de suportar,
todas as manhãs. Os ganidos dos cantores lhe chegam às
XLVI
rajadas. Atingem-no em sua cova, sob o piso da igreja. Com
baforadas de incenso. Ei-lo que comanda em sonho. Chama
30
por todos os empregados. Pede que lhe sirvam de beber e de
comer. Diz que não tem pressa para viver. Que espera sua
mulher. Geme novamente. Diz que seu mau caráter está
morto, junto com seu sangue. Suplica que lhe tragam sua
mulher, imediatamente. Pensa ter bradado uma ordem
35
indiscutível. Entretanto apenas murmura, por detrás da mão
enluvada de negro. Proclama que tudo está pronto para a
reconstituição.
Por aqui, a madame faça o favor de me seguir...
Essa voz super-aguda. É Aurelie Caron. Como
40
naquele mês de dezembro de 1839. Com roupas novas da
cabeça aos pés. Pronta para enfrentar a longa e dura viagem
até Kamouraska. Pronta para cumprir sua terrível missão.
As pequenas vírgulas de cabelos frisados em sua testa. Os
dentes manchados de fumo. Ela se envolve em seu mantô de
45
lã rústica. Colarinho, gola, echarpe e cachecol.
Subo a alameda do solar logo atrás dessa rapariga que
vai gingando ao andar. Não consigo deixar de segui-la. Algo
me impele a fazê-lo. Aurelie se detém no patamar inferior.
Não posso continuar não. A madame sabe disso.
50
Pois se eu nunca trabalhei no solar de Kamouraska. Só vim
aqui uma vez, nestas paragens. Mas sem entrar no solar...
Pra fazer um trabalho que...
Aparecem então Rose Morin e o Robertinho, Marie
Voisine, Alma Ouelette, Charles Deguire, Desjardins,
55
Dione... Dispostos em duas fileiras. Todos trazendo
XLVII
lanternas levantadas acima de suas cabeças. Em sinal de
saudação. Me acompanham até a escada. Me deixam subir
sozinha no escuro. Essa escada está roída pelas chamas. Um
degrau sim outro não está destruído. Reconheço o ranger do
60
sexto degrau. A vida está presente. E aquele homem que me
espera lá em cima! Meu Deus, faça com que ele esteja vivo!
Por que sua cabeça está enfaixada? Não faz apenas alguns
meses que estamos casados? Não é verdade que ninguém
tentou ainda, em meu nome, assassinar meu marido? Hesito
65
em entrar no quarto. Fico parada no corredor. Não há mais
porta em nosso quarto. Não consigo tirar os olhos da cabeça
enfaixada com panos brancos. O quarto está numa
indescritível desordem.
Entre de uma vez! O que está esperando? Feche a
70
porta!
Não reconheço esta voz quase inaudível. Com uma
espécie de explosão surda a cada palavra. Levanta-se.
Avança em minha direção. Retoma súbito a voz tonitruante
do passado. Seus olhos estão embaçados, fora de órbita,
75
procuram o meu olhar. Escondo meu rosto com as mãos.
Maldita! Mulher maldita! Olha o que você fez!
Meu Deus! Ele vai tirar a faixa! Mostrar o ferimento!
Antoine arranca minhas mãos do meu rosto. Segura com
vigor meus dois punhos, com uma só de suas mãos enor-
80
mes. Me obriga a olhá-lo de frente. Reconheço a maciez das
mãos gordas por sobre a força dos ossos. Arregalo os olhos e
reconheço os traços jovens, um pouco inchados. As boche-
XLVIII
chas de criança. Nenhuma faixa esconde agora os finos 85
cabelos louros. Eu queria agradecer a Antoine por sua
imagem incólume. Beijá-lo por isto. Sobretudo para que não
se lem-bre de nenhum atentado a sua vida. Na enseada de
Kamou-raska. Meu jovem marido aos seis meses de
casamento. Deus seja louvado. Nada aconteceu ainda. Ele ri
90
ao me olhar.
Faz gestos largos. Me mostra a cama coberta de roupas,
de objetos de toucador, em desordem. Indica o grande
armário de pinho, com os dois lados abertos, de prateleiras
vazias.
95
Suas camisas, onde estão? Você quer as suas camisas?
Descubra, se puder. Procure, procure bem. E suas calças
bordadas? Com certeza gostaria de usá-las. Para ficar bo-
nita? E tentar não só o demônio como o seu pobre marido?
Recolho, dobro e arrumo tudo no armário. Tenho
100
mesmo de render-me às evidências. Quase toda a roupa de
meu enxoval de casamento desapareceu.
Acabaram. Sumiram. Desapareceram. As camisas e as
calças de minha mulher. Só lhe resta andar nua por baixo
dos vestidos de seda e de cashmere. Não, mas que
105
engraçado! Sou um cômico e tanto!
Antoine Tassy perde o fôlego de tanto rir. Engole de
uma só vez um bocado de conhaque. Abaixa a cabeça e fica
tristonho como um menino de castigo. De novo sua voz
estranha, imperceptível e seca.
110
Não me olhe assim. Sai daqui, estou pedindo. Vai. Eu
sou um sem-vergonha...
XLIX
Um sem-vergonha! Vejam como fala o meu jovem
marido. Um sem-vergonha, na verdade, é o que ele é. E
confessa. É ele o culpado. Não tenho nada a ver com isso.
115
Inocente. Sou inocente. Humilhada e ofendida. Grávida de
seis meses. Ele me insulta. Me sinto grotesca, achincalhada.
Meu ventre se avoluma. Na missa de domingo me desloco
pesadamente, com meu casaco mal transpassado, de braço
dado a meu marido. Ai, meu vestido de musselina azul
120
desaparecido. Vejo-o com a porcalhona da Aglaé Dionne! A
última conquista de meu marido. A Aglaé faz micagens por
trás de suas mãos em prece. Quando me vê passar. Ri de
mim. Bem que queria despi-la ali mesmo. Achar minha
roupa de baixo também. Mandar chicotear essa mulher em
125
praça pública.
Ele ronca e fede a álcool. Tenho de tirar suas roupas.
Tirar suas botas.
Hoje ele me pediu perdão. Tomou-me docemente em
seus braços. Abraçou-me o ventre e a criança que está lá
130
dentro. Diverte-se em chorar sobre meu umbigo, que fica
cheio de lágrimas. Diz que é uma pia de água benta. Diz
também que sou bonita e boa e que um dia me matará.
Minha sogra repete sempre:
É preciso não se deixar envolver. O que entra por um
135
ouvido deve logo sair pelo outro.
[Cap.21]
Ficaremos com a menina aqui. Bem protegida com
seus filhos. Quanto a seu marido...
Que volte para casa da mãe em Kamouraska.
De tanto comer e beber ele não chega a velho.
À imagem de um homem que não chega a velho (o que
5
seria a solução), minhas tias queridas soltam as rédeas da
imaginação. Pensam claramente: "Meu Deus, fazei com que
ele morra!" Depois, assustam-se por ousarem incluir Deus
em seus maus pensamentos. Corrigem-se logo. Fazem uma
prece conveniente. De joelhos, à noite, ao pé de suas camas
10
de convento. "Meu Deus, fazei com que ele se con-ver-ta."
Rosários, novenas, vias-sacras acumulam-se. Dia após dia.
Todo um vaivém de tias. Toucas de babadinhos e longas
fitas. Rosários em volta do punho. Da casa da Rua Augusta
à igreja de Sorel. Uma espécie de sortilégio piedoso.
15
Milhares de ave-marias astuciosas, agulhas envenenadas,
ricocheteiam sobre o coração resistente de Antoine Tassy.
Nossa menina Elisabeth soltou ao seu quarto de
criança. O senhor dormirá no quarto de hóspedes.
Pobres santas mulheres da Rua Augusta. Não sabem de
20
nada. De dia, bem que eu quero chorar no seu ombro. Ser a
favor da morte do culpado. Limitar-me ao papel de
chamariz dolente de olhos fundos, posta na linha de frente,
a fim de confundir o marido monstruoso.
Sua mulher é tão frágil, bela e doce, veja... O senhor
25
deveria envergonhar-se...
Mas à noite, sou novamente cúmplice de Antoine. Até
o
LI
mais profundo nojo. O terror mais louco.
Meu leito de criança. Estreito e preparado como se fosse
para eu receber a comunhão dos enfermos. Edredom de
30
plumas brancas. A porta nunca fechada a chave. Apesar da
recomendação de minhas tias. Um homem desajeitado
transpõe a barreira. Cada três noites. Quando não está
bêbado demais. As santas mulheres empilham cadeiras no
corredor, contra a minha porta, para que Antoine esbarre
35
nelas. Seu passo de marinheiro beberrão o faz desabar por
vezes. Um bordão de imprecações, cheias de furor. Não
contenho o riso, apesar do medo. Tenho certeza de que
minhas tias não dormem e fazem tremendo o sinal da cruz.
Aprendem durante a noite: a embriaguez, a blasfêmia, a
40
violência, o amor e a derrisão.
À noite, a Menina geme, às vezes. De dor ou de prazer.
O crime é o mesmo. Esse homem é culpado por nos ter
tirado a criança radiosa que amamos. Os dias, os meses
passam. Antoine gasta seu dinheiro com as prostitutas de
45
Sorel. Na bebida e no jogo. Toda a cidade de Sorel nos
aponta.
Elisabeth está enfeitiçada por seu marido. Precisava ser
exorcizada.
O tempo. Aquele tempo. Um certo tempo de minha
50
vida, reintegrado, como uma concha vazia. Fechou-se
novamente sobre mim. Um pequeno estalo seco da ostra.
Ponho-me a viver neste espaço reduzido. Enraizo-me na
casa da Rua Augusta. Respiro um ar rarefeito, já viciado.
Meus passos vão sobre os meus passos. A Sra. Rolland não
55
LII
existe mais. Sou Elisabeth d'Aulnieres, esposa de Antoine
Tassy. Estou morrendo de desânimo e tristeza. Espero que
venhas libertar-me. Tenho dezenove anos.
A voz pérfida de minha mãe afeta amabilidades para
com seu genro.
60
O senhor ficará bem, aí junto ao pé da mesa, com suas
pernas compridas...
Antoine sorri beatamente. Acaba de ver sobre a mesa,
fumegante, o ensopado de coelho.
Certamente foi feito com vinho branco!
65
Minha voz suave ricocheteia contra o namoro absorto
entre Antoine Tassy e seu ensopado.
É para variar um pouco da enguia e do pão de trigo
sarraceno de Kamouraska.
Parece que o ouço mastigar. Não se dá ao trabalho de
70
limpar o molho que lhe escorre pelo queixo.
Tenho certeza de que minha mãe modula a voz que
parece desfalecer.
Encomendei três vestidos para Elisabeth, à Angeline
Hus. Sapatos e camisas. A Menina não tem mais nada com
75
que se vestir, senhor… E além disso Elisabeth tem tido uma
tosse, senhor… Seria melhor consultar um médico...
Antoine pede mais ensopado. Esvazia seu prato de uma
só vez. Depois tenta tirar as pernas de baixo da mesa. Fala
aos berros.
80
Elisabeth, quero que faça as malas. Arrume as criança.
Não ficarei nem mais um minuto nessa casa onde me
insultam!
LIII
Tia Adelaide tosse para dar um tom firme à sua voz
fraca.
85
O senhor partirá sozinho para Kamouraska. Elisabeth
e as crianças permanecerão aqui, sob nossa proteção.
Sou o senhor de Kamouraska. Tenho o direito de ser
respeitado como tal. Voltarei para minhas terras, junto ao
estuário. As pessoas vão me cumprimentar em voz baixa.
90
Depois eu vou me matar. Está ouvindo, Elisabeth? Vou me
matar. Na praia de Kamouraska...
Antoine põe bebida no copo. Chora de soluçar. Minha
mãe respira com esforço. Com o rosto oculto por seu lenço
de renda que exala um forte odor de cânfora.
95
Falsa partida de Antoine para Kamouraska. Sua valise
de couro avermelhado fechada às pressas. Um pedaço de
camisa sobrando para fora. As iniciais A. T. brilham. Sai
batendo a porta. Ei-lo de volta de manhãzinha, com sua
valise. No exato momento em que minhas tias partem para a
100
missa de cinco horas. Antoine contempla a fileira das
senhorinhas minúsculas, encapuzadas de preto, enfeitadas
de rendinhas brancas. Segura uma delas ao acaso. Levanta-a
em seus braços. Beija-a nos dois lados do rosto. Por um
quarto de segundo seus pezinhos sacodem-se no ar.
105
Bom dia, irmã Adelaide. Tenha uma boa manhã. Boa
missa. Reze por mim. Eu sou louco, irmã Adelaide.
Desconcertada por ter sido confundida com sua irmã
mais velha, Angelique, uma vez no chão, protesta com
firmeza:
110
Angelique, é Angelique o meu nome... Eu me chamo
LIV
Angelique Lanouette.
Antoine senta-se sobre a valise, desculpa-se com uma
voz contrita e razoável.
Perdão, irmã Angelique. Peço perdão. Me enganei de
115
freirinha!
[Cap.25]
A ama-de-leite de meu segundo filho secou bruscamente.
Ela chora e se lamenta. Jura que é por culpa do doutor que lhe
botou mau-olhado.
Os olhos dele são tão pretos. Olha tão fixamente.
Quando ele se aproximou de mim para examinar o menino,
5
em meus braços... Levei um choque...
Aurelie apressa-se em espalhar por toda Sorel que o
doutor Nelson é um diabo americano que amaldiçoa as ma-
mas das mulheres. Tal como alguns outros envenenam as
fontes.
10
Tia Adelaide afirma que o doutor Nelson sempre está
presente na missa de domingo. Mas que todo mundo sabe
muito bem que ele já foi protestante.
Tia Luce-Gertrude murmura que o mais estranho desta
história toda é que o doutor Nelson mora numa casinha
15
rústica, no campo, vivendo como um colono, que está em Sorel
há dois anos, e apesar de ser jovem, recusa-se decidida-mente
a misturar-se à sociedade de Sorel...
Meu marido, de sua parte, usa, para falar de George
Nelson, de uma voz distante, quase infantil, que me era
20
desconhecida.
No colégio, se fosse para ter um amigo, seria ele o
escolhido.
Olhos azuis embaçados pelas lembranças da infância.
Afasto o meu olhar. Digo que estou doente. Reclamo a
25
presença do médico que não voltou mais desde que... Meu
marido afirma que não estou doente.
Minha mãe retoma suas enxaquecas e encerra-se em sua
LVI
viuvez. Como se meu destino estivesse decidido uma vez
por todas. Minhas tias têm a aparência servil e aflita dos ani-
30
mais domésticos que pressentem o drama a abater-se sobre a
casa.
Eu ainda poderia escapar. Não provocar a seqüência.
Retomar pé na Rua do Parlatório. Abrir os olhos, enfim.
Bradar, com as mãos em porta-voz: eu sou a Sra. Rolland!
35
Tarde demais. É tarde demais. O tempo redescoberto
abre suas veias. Minha louca juventude ajusta-se sobre meus
ossos. Refaço os meus passos. Como quem põe os pés sobre
as próprias pegadas na praia molhada. O assassinato e a
morte revisitados. Até o fundo do desespero. Que me im-
40
porta. Contanto que eu reencontre o meu amor. Bem dis-
posto. Irradiando vida. Apoiando bem docemente sua cabe-
ça sobre o meu peito. Atento à minha desgraça. Exclamando
com indignação: "Mas a senhora está ferida!" Brinco com a
corrente de relógio que atravessa o peito de George Nelson.
45
Respiro o odor de seu colete. Mais do que a piedade, procuro
a cólera em seu coração.
"Tudo isto é encenação", declara a voz de desprezo de
minha sogra.
Como se eu só estivesse esperando por este sinal, entro
50
em cena. Digo "eu" e sou uma outra. Posto ao chão o disfarce
de Sra. Rolland. Às urtigas o corpete da Sra. Rolland. No
museu a máscara de gesso da Sra. Rolland. Rio e choro, sem
pudor. Estou usando meias rendadas cor de rosa, um largo
cinto sob os seios. Me descontrolo. A febre e a demência são
55
meu habitat, como meu país natal. Amo um outro homem e
LVII
não o meu marido. Este homem que eu chamo de dia e de
noite: doutor Nelson, doutor Nelson... A ausência
intolerável. Vou morrer. O doutor não voltou desde que
passei meus braços ao redor de seu pescoço. Minhas
60
lágrimas em seu pescoço. Doutor Nelson, eu sou tão infeliz.
Doutor Nelson, doutor Nelson...
Madame, o doutor não se encontra em casa! Seu
empregado não sabe quando ele voltará.
Ele está fazendo de propósito! Tenho certeza de que
65
está fazendo de propósito! Volte a procurá-lo, Aurelie. Diga-
lhe que estou doente. Traga-o de volta. É preciso. Está
ouvindo? É preciso.
Aurelie se afasta contra a vontade. Não contenho as
lágrimas. Sinto-me sufocada. Rolo em minha cama. Ameaço
70
jogar-me pela janela. Quando, esgotada, caio num sono
pesado, sonho que alguém me chama com uma voz
suplicante, dilacerante.
Sinto uma atração estranha que me ergue em meu leito.
Desperto em sobressalto. Precipito-me à janela. Com os olhos
75
arregalados. O coração batendo. Escuto o passo de um
cavalo que se afasta da cidade. Olho para trás e me deparo
com a desordem de meu quarto. A cama revolta. Impressão
de queda no vazio. Vertigem. Volto para a cama com
dificuldade.
80
Deveríamos chamar um outro médico. A Menina está
muito doente. – A primeira medida a tomar seria afastá-la do
marido... – É ele a causa de tudo... – Fazê-lo voltar a
Kamouraska... – ou pelo menos proibi-lo absolutamente de
LVIII
entrar no quarto da Menina... – Pôr empregados de guarda 85
na porta. – Velar a noite toda, se necessário... – Enquanto for
viva ele não passará por esta porta. – Só por cima de meu
cadáver... – Pedir conselho ao advogado, Dr. Lafontaine. – Só
uma separação de corpos e de bens...
Meu marido repete a quem quiser ouvir que minhas tias
90
são três velhas fadas que deveriam ser suprimidas.
Todas as noites ele passa embaixo de minhas janelas.
Com seu cavalo negro e seu trenó negro. Tenho certeza de
que é ele. Por longo tempo, no silêncio da noite, espreito o
passo do cavalo, o deslizar do trenó sobre a neve. Antes
95
mesmo que seja perceptível a qualquer outro ouvido
humano. Farejo-o desde a partida da casinha de madeira. No
outro lado de Sorel. (Os guizos são cuidadosamente postos
sob o assento, então). Não ouso mais levantar-me e correr à
janela. Fico enroscada em meu leito. Espero que passe.
100
Escuto com desespero (tanto tempo quanto me é possível) o
som do veículo que se perde na noite.
Não posso viver assim. Um dia, irei encontrá-lo. Vou
dizer-lhe com altivez: Doutor, é assim que o senhor deixa
desfalecer seus pacientes, sem tentar socorrê-los? Doutor
105
Nelson, doutor Nelson, estou louca.
Elisabeth! Por que não responde? Já lhe fiz a mesma
pergunta duas vezes.
A senhora não devia insistir, tia Adelaide. Estou
profundamente ocupada, de dia e de noite, em seguir dentro
110
de mim o avanço de uma grande planta vivaz, avassaladora,
que me devora e me dilacera com seus
dentes. Estou
LIX
possuída.
Tenho uma idéia fixa. Como os verdadeiros loucos nos
asilos. Os verdadeiros loucos que parecem ter perdido a
115
razão. Trancafiados, presos, eles conservam em segredo o
delirante gênio de sua idéia fixa. Não saio mais da cama.
Prostrada ou agitada, invento as leis estritas de minha
felicidade futura. Não procurar rever o doutor Nelson antes
de um certo tempo. Assegurar-me bem, antes, de que não
120
estou grávida. Estabelecer-me numa castidade perfeita.
Defender-me selvagemente contra qualquer aproximação de
meu marido. Lavar-me de Antoine para sempre. Apagar de
meu corpo qualquer sinal de carícia ou de violência. Até
mesmo a lembrança... Renascer para a vida, intocada,
125
intocável, exceto para o único homem deste mundo, que está
vindo para mim. Violenta, pura, inocente! Sou inocente!
Espero que meu amor me tome e me proteja. Este homem é a
felicidade. Ele é a justiça.
Durmo agora no quarto de tia Luce-Gertrude. Finjo ser
130
criança. A perfeita submissão das crianças bem comportadas.
Espero com paciência a próxima menstruação. Detesto
Antoine quando ele está bêbado. Detesto-o quando está
sóbrio. Rio e choro sem razão. Sinto-me leve como uma
bolha de sabão.
135
Minha mulher é uma sem-vergonha.
Antoine não pode suportar que eu passe a noite no
quarto de tia Luce-Gertrude. Uma noite ele tentou
aproximar-se de meu leito. Depois de atacar o empregado
que estava de guarda na porta. Gritei tanto. Uma espécie de 140
LX
matraca estridente na garganta. Uma engrenagem terrível
acionada. Incontrolável. Isso nada mais tem de humano, me
sufoca e me assusta. Uma lâmina de navalha brilha por um
instante, perto de minha garganta. Tia Luce-Gertrude afirma
que Antoine a tirou do bolso. Quanto a mim, não estou certa
145
de nada. A navalha poderia muito bem estar lá no quarto.
Suspensa por um fio, acima de minha cama, por toda a
eternidade...
Desarmado, escoltado, expulso, Antoine deixa a casa da
Rua Augusta. Vi chorar no regaço mal-cheiroso e irlandês de
150
Horse Marine. Jura que vai viver ali a partir de então e
esquecer sua mulher. Horse Marine é tão magra que dá para
contar suas costelas quando levanta os braços. Como uma
carcaça de navio.
Um dia, pela manhã, ao acordar, o filete de sangue
155
liberador, entre minhas coxas. O sinal irrefutável. Nenhum
filho de Antoine se desenvolverá de novo em meu ventre.
Não se enraizará. Não escolherá um sexo e um rosto na
noite. Me vejo livre e estéril. Como se nenhum homem
jamais me tivesse tocado. Mais alguns dias e estarei
160
purificada. Livre.
[Cap.26]
Preciso ir ver o doutor. Nada nem ninguém poderá me
impedir. Aurelie, a quem falei de minha intenção, se ilumina
numa alegria sombria. Finge obedecer-me contra a vontade.
Aceita a contragosto servir-me de cocheiro. Me penteia e me
veste silenciosamente. Tomada por uma espécie de discrição
5
estranha, quase religiosa. Me traz o mantô de pele, meus
xales e as luvas forradas de Antoine. Veste as crianças.
Tremo apesar das peles. Jogo fora na neve as mitenes de
Antoine. Aliviada com esse gesto, enfio alegremente as mãos
nuas sob meu regalo de pelo. Sonho em perder para sempre
10
no campo todas as coisas de Antoine. Cachimbos, garrafas,
fuzis, casacos, camisas, cintos e suspensórios. As crianças
pesam em meus braços. Os olhos azuis de Antoine repetidos
nos dois. Meu corpo faz um movimento brusco e desperta o
pequeno Louis adormecido em meus joelhos. Ele começa a
15
chorar.
Bom dia, Sra. Tassy! Saudações, Sra. Tassy! Saudações
daqui e dacolá.
Os moradores de Sorel e do campo aí estão para vê-la
passar, Sra. Tassy. Pálida e trêmula, com o olhar esgazeado.
20
Em companhia de seus dois filhos louros corados como
maçãs maduras. Álibi perfeito. Pode ficar tranqüila.
As sombras azuis sobre a neve perdem-se na noite que
cai. Eis a casa do doutor. Docemente as crianças passam de
meus braços para os de Aurelie. Adormecem de novo.
25
Desço sozinha.
LXII
Uma voz clara e sonora manda-me entrar. Vejo-me na
sala de espera. Um velho sofá de crina. Paredes de madeira
crua, cheia de nós. Um pequeno fogão de ferro fundido,
preto arredondado, de pés recurvados, enormes. Espero o
30
doutor terminar a consulta.
Alguém se mexe e respira ruidosamente, por trás da
parede de madeira. Um arrastar de pés, uma respiração
ofegante e surda. Como se dois homens estivessem lutando.
Tento concentrar minha atenção no fogão, no meio da sala.
35
Me distraio em distinguir, por entre as guirlandas e, relevo,
as letras bastardas de "Warm Morning", marca registrada.
De repente um grito, seguido de um longo gemido, sai
de trás da parede de madeira. Um silêncio glacial, intermi-
nável. Depois, um ruído em surdina de pano que se enrola e
40
se dobra cuidadosamente. A porta se abre enfim. Um
adolescente, com o braço na tipóia, move-se tão lentamente
que parece a ponto de cair, a cada passo. Vira-se para mim e
vejo um rosto lívido, cheio de lágrimas. Ele me observa
longamente, com uma espécie de curiosidade dolorosa. Um
45
espanto sem fim. Suas pernas cambaleiam. O doutor tem de
segurá-lo pelos ombros e conduzi-lo até a porta.
George Nelson está sem paletó, com as mangas arre-
gaçadas. Cabelos revoltos, como se acabasse de sair da cama.
Seus gestos são vivos, rápidos, enérgicos. Me lança um olhar
50
de suspeita. Depois afasta-se para a cozinha. A passos largos.
Levando o lampião. Fico sozinha na escuridão. O doutor
lava as mãos e o rosto. Agita-se ruidosamente sob o jato
d’água da bomba. Volta-se para mim com o rosto gotejando.
Esticando as mangas da camisa. Enxuga a fronte com o
55
LXIII
lenço. Me olha bem de frente. Numa espécie de insistência
estranha, pouco delicada.
Tive de quebrar novamente o braço daquele rapaz
para repô-lo no lugar. Um curandeiro tinha feito tudo torto.
O país está infestado de charlatães. A ignorância, a su-
60
perstição e a sujeira estão em toda parte. Uma vergonha! Os
curandeiros deveriam ser impedidos de matar as pessoas.
Seria preciso tratar de todo mundo à força! Impedir sua
criada Aurelie de brincar de feiticeira com os recém-
nascidos...
65
O clarão de sua camisa branca. Segura o lampião na
altura do rosto que se franze em rugas fundas. Uma
mobilidade extrema. Um fervilhar selvagem. Eu olho,
espreito cada lampejo de vida, no rosto moreno. Escuto cada
palavra veemente. Como se isto me interessasse de perto.
70
Aguardo que o sentido secreto desta indignação toda me seja
revelado. Que se volte para mim, para sempre. Me inunde
da ira sagrada que compartilho. Como o senhor me olha,
doutor Nelson. Não trago a paz, mas a espada. Essa palidez
súbita. Essa febre em seus olhos. É o lampião, certamente.
75
Essa sombra negra em seu rosto.
A senhora me acha esquisito? Por que me olha assim,
Sra. Tassy? Pensa mesmo que eu seja capaz de sortilégios?
Acredita que eu seja capaz de amaldiçoar amas-de-leite?
Seu riso curto e seco me incomoda.
80
A que devo a honra de sua visita? Vem da parte de
LXIV
Antoine, talvez?
Respondo "não". Diria "sim" se fosse verdade. Nenhuma
palavra me parece breve e nítida o suficiente para dissipar
qualquer conversa inútil entre nós.
85
Com que então não vem da parte de ninguém? Vem
por iniciativa própria?
Digo "sim". Desta vez, porém, gostaria de continuar a fa-
lar. De me explicar. Me defender. Um não sei quê de irônico
e de estranho no sorriso de George Nelson (em seus dentes
90
muito brancos sobretudo) me desconcerta até o âmago de
meu ser. Me impede de articular uma só palavra a mais.
Ergue o lampião acima da cabeça. Pede-me para segui-
lo. Faz as honras da casa.
Agora que me olhou, examine bem a casa. Vê como
95
tudo é normal? Uma boa casa típica do lugar. Exceto pelos
livros talvez? Mas não vai acreditar que os livros...?
Uma enfiada de pequenos cômodos, quadrados, semi-
mobiliados. Uma semelhança angustiante com caixas de ma-
deira clara, rugosa, cheia de espinhos. Livros sobre as prate-
100
leiras, livros na mesa da cozinha, livros empilhados no chão,
livros servindo de pés a um grande armário.
Antoine lhe falou a meu respeito? Disse-lhe que nós
dois jogávamos xadrez no colégio? Ele gostava de perder, eu
acho. De mim não ganhou nenhuma vez, nenhuma vez, está
105
ouvindo?
Eleva de novo a voz. Parece lançar-me um desafio. De-
pois cala-se bruscamente. Torna-se muito sombrio. Retira-se
com uma facilidade, um despudor total. Fica talvez absorto
110
LXV
numa sábia e muda partida de xadrez, contra um rapazinho
louro, derrotado antecipadamente. É preciso trazer este ho-
mem de volta para mim. Interromper imediatamente uma
partida de xadrez entre fantasmas. Doutor Nelson, eu o amo
loucamente a ponto de querer penetrar nas fontes de sua
115
infância... Para infelicidade minha descubro que suas lem-
branças estão inextricavelmente ligadas a Antoine Tassy.
Sinto minhas pernas tremerem. Um grande arrepio me
agita da cabeça aos pés. Agarro-me às costas do sofá para
não cair.
120
Doutor Nelson, estou aqui. Não quer saber como
tenho passado?
Aproxima-se de um salto. Me faz sentar no sofá. Vai até
a cozinha. Me traz um copo d’água. Se agita. Procura meu
pulso. Aterrado. Perturbado.
125
Como tem passado? Pobre criatura de Deus, ferida e
torturada, como se eu pensasse em outra coisa, desde que a
vi... Como tem passado, minha pobre criança... Por que se
casou com Antoine Tassy? Por que? Parece-me de melhor
aspecto hoje, apesar de... Meu tratamento não foi bom? Não
130
sou um bom médico?
O senhor sabe muito bem que sou uma infeliz...
Todo o seu semblante estremece. Fala em voz baixa, sem
me olhar. Suas palavras me rejeitam, uma após outra. Como
pedras.
135
Nada posso fazer, Elisabeth. Não passo de um
estranho.
As sombras enormes sobre a parede, distantes uma da
outra. Uma espécie de deserto se ampliando entre nós. O
LXVI
silêncio. O vazio. George se afasta de mim novamente. Como 140
fazer para me aproximar dele? Sinto-me pesada. Sobrecarre-
gada. Atada. Presa à Rua augusta e à cidade de Sorel. Me
libertar. Reencontrar em mim a infância livre e forte. A
menina de cabelos cortados rente escapulindo de casa pela
janela. Para juntar-se aos moleques de Sorel. O que devo
145
fazer? Diga somente uma palavra e obedecerei. Devo de
novo sacrificar meus cabelos? Deixar para trás as crianças e a
casa? Fora deste mundo, se assim o desejar. É lá que o
espero. Tal como sou, absoluta e livre. Estranha a tudo o que
não lhe pertence.
150
E eu, acredita que não me sinta uma estranha?
Ele desvia o olhar.
Não sabe o que está dizendo...
Mais do que possa acreditar...
155
O silêncio. De novo uma barreira entre nós, bem fria e
dura. O refúgio inseguro do colégio, apressadamente
exumado.
Nunca tive amigos. Nem no colégio, nem mais tarde.
Mas eu bem que gostava de jogar xadrez com Antoine
160
Tassy...
É talvez por isso que o senhor ande passeando diante
de minha janela à noite?
Desta vez ele me olha de frente. Furioso. Envergonhado,
como uma criança surpreendida numa travessura.
165
Não devia ter dito isto, Elisabeth. Não devia. Saiba
que o que mais temo é ser descoberto...
[Cap.28]
Procuro em vão ouvir o passo de um cavalo, a passagem
de um trenó. Será que ele não virá mais rondar a minha
casa? Num momento aproxima-se de mim, me chama de
"Elisabeth". Logo em seguida me abandona. Foge. Não devia
ter-lhe confessado que, à noite, debruçada em minha janela...
5
Como ele me olhou. Com seu olhar penetrante. Sua
perturbação.
Ele se tranca em casa. Se isola como um criminoso. Me
aproximo de sua solidão, tão perto quanto possível. Eu o
incomodo, o atormento. Do mesmo modo que ele me
10
incomoda e me atormenta.
Esse homem é um estrangeiro. É para desconfiar dele,
como ele desconfia de nós.
Cale-se, Aurelie. Saia daqui, Aurelie. Estou ocupa-
díssima.
15
Me concentro. Fecho os olhos. Parece que evoco
espíritos, e no entanto é a vida que eu procuro... Lá longe, no
outro lado de Sorel. Um homem só, com os cotovelos
apoiados na mesa da cozinha. Com um livro aberto sob os
olhos, as páginas imóveis. Ler por cima de seu ombro.
20
Insinuar-me no âmago de seu devaneio.
Não o perdem de vista, aluno Nelson. Seguem-no onde
estiver. Todos os protestantes são infiéis. O velho boné de
couro de foca mal curtido. Aquele que diz "o" mesa em vez
de "a" mesa, se trai. O que diz "a Bíblia" em vez dos "Santos
25
Evangelhos", se trai. Aquele que diz "Elisabeth" em vez de
"Sra. Tassy" se compromete e compromete esta mulher
com ele.
LXVIII
A maravilhosa caridade. A medicina escolhida como
uma vocação. A piedade aberta como um ferimento. O
30
senhor combate o mal, a doença e as bruxas com a mesma
paixão. Como se explica então, que a despeito de sua
bondade, as pessoas não gostem muito do senhor na região?
Elas o temem, doutor Nelson. Como se, no fundo de sua
caridade visível demais, se escondesse uma identidade
35
assustadora... Além do protestantismo, além da língua
inglesa, o pecado original... Procure bem... Não é um pecado,
doutor Nelson, é uma grande mágoa.
Expulso, seu pai o expulsou da casa paterna (com
colunas brancas e frontão colonial) juntamente com seu
40
irmão e sua irmã, como se expulsasse ladrões. Três crianças
inocentes, tratadas como ladrões. A mãe chorando contra a
vidraça. Em Montpellier, Vermont, nos Estados Unidos da
América.
A independência americana é inaceitável para os
45
verdadeiros legalistas. Não é preferível enviar as crianças
para o Canadá, antes que sejam contaminadas pelas novas
idéias? Que se convertam à religião católica romana. Que
aprendam a língua francesa, se for preciso. Tudo, desde que
sejam fiéis à coroa britânica.
50
Não conhece minha família, Elisabeth? Pois devia co-
nhecer. Veria como nós três somos parecidos, desde que nos
converteram ao catolicismo, minha irmã, meu irmão e eu...
Um dia estarás bem junto de mim, meu amor. Contarás
que tua irmã Cathy ingressou no convento das Ursulinas aos
55
LXIX
quinze anos. Falarás também de teu irmão Henry, jesuíta,
pregador de retiros espirituais persuasivos.
Procuras meu corpo na obscuridade. Tuas palavras são
estranhas. O tempo não existe. Ninguém além de mim deve
ouvi-las. Estamos nus, deitados juntos, por toda a eter-
60
nidade. Murmuras ao meu lado.
E eu, Elisabeth, jurei ser um santo. Eu jurei! E acho que
em toda a minha vida nunca senti uma ira assim.
De novo o jovem estudioso, debruçado sobre os livros,
numa casa de madeira. Uma arenga derrisória se repete em
65
sua cabeça. "Não ser pilhado em erro! Não ser pilhado em
erro de maneira alguma!" Tu te levantas precipitadamente,
arrumas teus livros. Vestes teu casaco, teu gorro, tuas
mitenes. Numa precisão de gestos, e no entanto, numa
grande precipitação. Aparentemente o médico foi chamado
70
para cuidar de seus doentes. Ele bem sabe que, ainda desta
vez, vai atrelar o cavalo e errar pelas ruas de Sorel,
arriscando-se a... Passar dez vezes, talvez, diante das janelas
da Sra. Tassy... No medo e na esperança, indissoluvelmente
ligados, de ver o marido mau expulso da casa de sua mulher,
75
surgindo na esquina. Fazer mira para atirar. Abatê-lo como
a uma perdiz. Antoine Tassy nasceu para perder. "Àquele
que nada tem, ainda lhe será tirado". Tomarei sua torre.
Tomarei sua rainha. Tomarei sua mulher, é preciso. Não
posso suportar a idéia de que... Uma mulher, tão bela e
80
atraente, torturada e humilhada. Na cama de Antoine,
acariciada por Antoine, aberta e fechada por Antoine,
violada por Antoine, arrebatada por Antoine. Restabelecerei
LXX
a justiça inicial do vencedor e do vencido. Entrever, num
relâmpago, a reconciliação consigo mesmo, procurada em
85
vão desde o começo de suas lembranças. Descobrir-se
até o osso, sem sombra de impostura. Confessar enfim seu
mal profundo. A procura desesperada da possessão do
mundo.
Possuir esta mulher. Possuir a terra.
90
Eu sou aquela que chama George Nelson na noite. A voz
do desejo nos atinge, nos comanda e nos devasta. Uma única
coisa é necessária. Nos perdermos para sempre, os dois. Um
com o outro. Um pelo outro. Eu mesma estranha e maligna.
[Cap.30]
Nunca se ouve quando ela vem chegando. De repente
ela aparece. Como se atravessasse as paredes. Leve e
transparente. Ei-la que estende meu vestido de baile novo
em cima da cama. Alisa o belo veludo cor de cereja num
misto de gula e temor.
5
Deus do céu, que vestido bonito! Dou minha alma
para ter um assim!
Aurelie suspira. Acende a lareira. Arruma o quarto.
Cada um de seus movimentos me parece estranho,
inquietante. Sua voz em tom agudo me persegue até o limite
10
de minhas forças.
Cale-se, Aurelie. Por favor.
Eu falo para que me escutem, madame.
O quarto de vestir de minha mãe. Isto aqui é sufocante.
Esse odor de ar viciado. Sinto-me enjoada. O tecido verde da
15
penteadeira está desfiando. A verdadeira vida está em outro
lugar; na Rua do Parlatório, à cabeceira de meu marido.
Entretanto sento-me, dócil, no tamborete. Diante do espelho
manchado.
Aurelie sacode o pente e a escova de marfim amarelado.
20
Sopra a poeira.
Vou limpar o espelho!
Faço um movimento de recuo.
Não, não me toque no espelho!
Uma espécie de rachadura súbita na voz de Aurelie.
25
Vidro filiforme que se despedaça na ponta da respiração. Ela
fala tão baixo que é difícil ouvi-la.
LXXII
Uma passada de esfregão. Aqui. Está bom. É pra
madame se olhar bem de frente. Veja que estampa bonita.
Que ombros. Vou pentear a madame para o baile. A ma-
30
dame vai ver só.
O espelho reanimado como uma fonte. Minha juventude
sem nenhuma ruga. O arranjo dos cachos me parece um
tanto ridículo Um porte de rainha. Uma alma de víbora. Um
coração louco de amor. Uma idéia fixa entre os dois olhos.
35
Uma flor nos cabelos. O olho esquerdo que fica louco. Am-
bas as pálpebras se abaixam. O roçar dos cílios sobre a face.
Um homem se aproxima precipitadamente. Toma lugar
ao lado da mulher enfeitada demais. Sua respiração rude
sobre o ombro nu da mulher.
40
Não tenho tempo de me espantar. Como foi possível a
Antoine Tassy chegar até aqui? E eu achava que a casa
estava bem vigiada? Minhas tias? Os empregados?
Um homem e uma mulher lado a lado. Marido e mulher.
Odeiam-se. Provocam-se mutuamente. No clarão pálido das
45
velas acesas de cada lado do espelho.
Você não vai a esse baile.
Prometi ir. E vou.
Uma mulher casada, mãe de família... Isso é muito
inconveniente.
50
O que você tem a ver com isso? Nada do que me diz
respeito lhe interessa agora. Não sou mais sua mulher e você
não é mais meu marido. Vá embora, ou chamo alguém!
O rosto redondo de Antoine mostra uma expressão
desconcertada. Nem furor, nem espanto. É mais uma espécie
55
LXXIII
de aniquilamento brando, crescente, que se espalha em todos
os seus traços. Olho resolutamente essa imagem de homem
que se desfaz, no espelho. O tom firme de minha própria voz
me surpreende, enquanto o medo me aperta a garganta.
Todos os convidados de Sorel partirão juntos. Uma
60
longa procissão de trenós até Saint-Ours.
Leio nos lábios de Antoine, sem ouvi-lo, a frase sem
réplica.
Virei buscá-la. Você vai comigo, no meu trenó.
Vou com o doutor Nelson. Ele me convidou. Está
65
decidido.
O espelho fica embaçado. Alguém apaga as velas. Essa é
uma cena intolerável. Não suportarei mais... A voz de
Aurelie aumenta, torna-se aguda, como um grito de criança.
Enche todo o espaço. Ocupa a obscuridade. Despenca num
70
sussurro assustado de confessionário.
A madame levou um soco do patrão nas costelas. Eu
vi quando ela ficou toda encolhida de dor. O patrão saiu
logo de casa, pra não ser pego. Quando ele passou pela porta
estava praguejando e repetindo "Eu te proíbo de ir a esse
75
baile. Eu te proíbo..."
Mas, naquela noite, no passeio de trenó até Saint-Ours, a
madame foi com o doutor Nelson...
[Cap.32]
Com muito custo consigo tirar meu manto de pele e
desembaraçar-me das echarpes de lã. Depois fico ali sem
ousar mexer-me. Exposta em praça pública. O veludo de
meu vestido está molhado de neve derretida, em vários
lugares. Grampos de cabelo caídos sobre meus seios. Meus
5
cachos desfeitos caídos em meu pescoço! Um homem está a
meu lado. Acho que ele me segura pelo braço. Me diz para
não ter medo. Cerrando os punhos.
Dançarinos, dançarinas e demais convidados ficam
imóveis e prendem a respiração. Que aparição na moldura
10
da porta! A Sra. Tassy e o doutor Nelson, tiritando, com o
rosto avermelhado pelo frio. Sem baixar os olhos. Insolentes,
apesar de acuados. Que felicidade estranha, que vitória
amarga. A alegria dos loucos, à beira do desespero.
Seria preciso atravessar o salão. Encarar Antoine,
15
certamente. Para morrermos, os dois?
Nós nos perdemos no caminho... Caímos na neve...
Alguém joga uma rede negra sobre minha cabeça e
meus ombros. Sou presa, arrastada, empurrada, puxada.
Capturada. Minhas três queridas tias, tremendo, levam-me
20
para junto do fogo. Me protegem e tomam conta de mim.
Envolta no xale imenso de tia Adelaide, vejo-me sentada
bem no meio do clã de acompanhantes. Entregue aos olhares
severos das solteironas e das viúvas.
25
Não curvar a espinha. Não piscar os olhos. Olhar por
cima das cabeças imóveis, de bandós esticados. Todas essas
LXXV
toucas com babadinhos de renda, essas fitas de cetim caindo
sobre os ombros. Fingir olhar fixamente para um ponto na
parede. O vazio. Prisioneira. Sou prisioneira. Examinemos
30
discretamente os quatro cantos do salão. Esperemos a
chegada de Antoine. Imaginemos suas injúrias e seus golpes.
Uma faca, talvez, escondida em seu colete? Ou o candelabro
pesado que... Vou cair. Olhar para a parede. Prender-me a
ela em sonho. Deslizo. O chão foge de meus pés. Minha vida
35
naufraga. Alguém diz que Antoine, embora convidado para
o baile, evitou comparecer. Não fechar os olhos ao escutar
esta boa notícia. Retomar minha vigilância. Esquadrinhar
metodicamente o salão. Temendo ver surgir meu marido. Me
fazem tomar uma bebida quente que cheira à canela. Tia
40
Angelique murmura em meu ouvido.
Minha filhinha, que inconsciência! Passear assim
sozinha com o doutor Nelson! Pense em sua reputação.
Pense em seu marido. Não se deve provocar demais aquele
homem...
45
Pouco a pouco os convidados do solar de Saint-Ours
recomeçam a dançar. Ao som do piano desafinado. Soltam
um suspiro de alívio e se vêem milagrosamente inteiros.
Cheios de emoção e vida nova.
[Cap.35]
Aurelie, eu te imploro, vai correndo procurar o doutor.
É urgente. Estou grávida, Aurelie.
Há um homem louro e gordo em Sorel que está cansado
de andar com as mulheres vadias.
Me fazem agrados, me paparicam! Me roubam e me
5
violentam! Me arruínam também. Estou cheio de dívidas.
Vou voltar para a casa de minha mãe. Eu sou o senhor de
Kamouraska. Vou vender um pedaço de terra com madeira
em pé. Mas antes quero me reconciliar com minha mulher.
Confundindo toda a vigilância, Antoine se tranca num
10
quarto da Rua Augusta. Enquanto isso saem, a toda pressa,
por uma porta lateral, a esposa e os filhos.
Antoine dorme durante três dias. Acorda ao final do
terceiro dia e pede o jantar, com estrondo, sem sair da cama.
Janta sozinho em seu quarto, como um prisioneiro. Parece
15
comprazer-se nesta quarentena. Olha com espanto, no
espelho, seu rosto invadido por uma barba muscosa. Dá
ordem para que lhe aparem a barba imediatamente. Manda
trazer água quente e sabonete. Deixa-se banhar por cerca de
uma hora. Declara a seu empregado que todos os restos de
20
Horse Marine estão apagados para sempre.
Ignace, estou limpo, como se saísse da confissão.
Avise a madame.
Ignace olha para Antoine com um ar abobalhado. Recita
a lição bem aprendida, todo trêmulo, transido de medo.
25
A madame partiu, todas as outras senhoras foram
junto e levaram as crianças... Não tem ninguém em casa
exceto o senhor Lafontaine e o filho que partem para Ka-
LXXVII
mouraska e que esperam pelo senhor lá em baixo, no salão...
Eis entretanto aquela que ninguém esperava. A esposa
30
enraivecida, brilhante como uma arma, entra em casa, num
passo rápido e decidido. Seguida de todo um cortejo de
mulheres chorosas.
Vamos nos reconciliar com meu marido, de uma vez
por todas, e não se fala mais nisso.
35
Quando se sabe o que "reconciliar-se" significa para
Antoine, trata-se de satisfazer seu desejo o mais rapida-
mente possível. O mais brutalmente possível. A verdadeira
vida está em ordem. A honra está salva. A esposa irre-
preensível poderá anunciar que está novamente grávida de
40
seu marido.
A reconciliação acontece no grande quarto de hóspedes
onde Antoine se refugiou. A cama de cortinas indianas. Os
lençóis um pouco ásperos. Há uma tulipa vermelha num
vaso perto da janela. Nas minhas entranhas meu filho sofre
45
as agressões furiosas do sangue estranho. Meu filho é agre-
dido e conspurcado.
Mas Antoine quer me beijar. Isso eu não suportarei.
Solto urros. Coberta pelo lençol até o queixo, diante de todas
as pessoas da casa, declaro que meu marido quis me
50
estrangular.
São três horas da tarde. O salão repleto de bibelôs da
Rua Augusta. Minha mãe teve a idéia extravagante de
oferecer chá a Antoine, antes de sua partida. Tremo tanto
que não consigo segurar minha xícara. A cadeira de balanço
55
LXXVIII
do Dr. Lafontaine range no silêncio.
Antoine parece não ver mais nada, não ouvir mais
nada. Indiferente ao ridículo de sua situação. Retirado do
mundo por assim dizer. Ocupado consigo mesmo, procu-
rando em vão a coisa intolerável que o avilta na própria raiz
60
de sua vida.
Há sol demais nessa casa também. Antoine não faz
gesto algum para retirar-se da janela, permanecendo em pé,
exposto em plena luz. Seus olhos avermelhados não piscam.
Parece submeter-se propositalmente, sem nenhuma defesa,
65
ao suplício da luz.
Um longo raio atravessa o cômodo, me atinge em cheio.
Caio também na armadilha da luz. Desvio a cabeça.
Alguém diz que é preciso apressar-se, que o navio a
vapor deve deixar Sorel às quatro horas.
70
Antoine subitamente põe-se de pé diante de mim, me
olhando. O torpor sem limites. Seu último olhar. Luz
demais. Tenho pudor de meu ódio e abaixo os olhos
novamente. Ele fala baixinho, através de meu rosto cego.
Sua voz apagada, lenta e no entanto ameaçadora parece vir
75
de um ponto afastado no espaço. Sopra longamente em meu
ouvido.
Elisabeth, minha mulher, você não me escapa tão
facilmente. Eu voltarei, prometo.
Pede para ver seus filhos. Alguém os traz à sua
80
presença. Beija-os ruidosamente nas duas faces.
[Cap.36]
Um tempo doce e tranqüilo sucede à partida de
Antoine. George e eu fingimos acreditar na doçura e
tranqüilidade do mundo. Entramos no jogo. Discretamente.
Fazemos projetos para o futuro. Falamos amavelmente em
nos casar. Em eliminar Antoine da face da terra. Da maneira
5
mais simples e mais conveniente possível.
Às vezes nos encontramos perto da igrejinha. Andamos
pausadamente. Brincamos de Senhor-e-Senhora-Passeando.
Cumprimentamos distraidamente com a cabeça os raros
passantes. Dirigimo-nos insensivelmente para o campo.
10
Embora seja pouco provável que meu marido desafie
meu amante para um duelo, escolhemos cuidadosamente
um campo, à beira da floresta. Imaginamos livremente o
nascer do dia. A luz trêmula sobre o orvalho. As camisas
brancas. As testemunhas de aparência patibular. A caixa
15
preta do cirurgião. A escolha das armas. Pesadas pistolas
brilhantes. Os quinze passos regulamentares. A detonação
brutal no ar sonoro. A breve celebração da morte. Dissipada
a fumaça, descobre-se o vencedor, com a cabeça descoberta.
De pé em pleno campo. Empunhando a arma fumegante.
20
Contemplando com um olhar assustado o seu adversário,
estendido no campo. A justiça está feita. Surge a esposa toda
em lágrimas. Correndo ofegante sobre a relva molhada.
Seus sapatos estão encharcados. Suspende as saias para
correr melhor. Grita com a entonação inimitável das viúvas:
25
"Mas é meu marido! O senhor matou o meu marido!" Pobre
Antoine, você está acabado. O peito robusto aberto pela
LXXX
bala. O coração arrancado como um dente de leite. O sangue
derramado. A axila loura empastada de suor. De nada
adianta dizer que a mão do bêbado é trêmula e insegura. Se,
30
por desgraça, o coração dilacerado pela bala fosse o teu,
amor? Eu morreria.
Um dia entretanto, teremos que tomar uma decisão e
abolir o acaso. Parar de sonhar. Se quisermos viver. Como
demoras, como te arrastas no caminho! Em que estás pen-
35
sando, aí, ao meu lado? Sentado no chão sob os pinheiros.
Com o dorso pregado a uma árvore. Como um crucificado.
Apenas um dentre nós deve morrer.
[...]
Esta palavra "colégio" me faz submergir de cólera, me
40
dilacera de ciúmes. Eu gostaria de apagar de ti, para
sempre, aquele tempo em que eu não existo, aquele mundo
fechado de rapazes, de missas e de latim. Mas é inútil eu me
isolar selvagemente em mim mesma e recusar tuas
lembranças da infância, eis que, pouco a pouco, à medida
45
que falas, soa uma campainha, repercutindo em meu
ouvido. Aguda como um punhal. Me força a prestar
atenção. Toca o despertar num dormitório adormecido. Em
pleno inverno. Brada que são cinco horas da manhã. Deus
seja louvado, está tão escuro que não distingo ninguém. O
50
odor de covil me prende a garganta. Os meninos são
arrancados do sono. Alguém acende uma vela. Formas
vagas saem do escuro. Passam diante do clarão da vela.
Fazem sombras gigantescas e flácidas contra a parede.
LXXXI
Estremecem. Mergulham de novo no escuro. Confundem-se 55
com as sombras da parede. Uma sombra de mão esboça o
sinal da cruz no vazio. A parede imensa, deserta, impreg-
nada de salitre, logo absorve esta sombra de mão piedosa.
"In nomine Patris” começado com uma voz cavernosa e
terminado num tom superagudo. Uma outra voz que é a
60
tua, um pouco mais surda e abafada, um pouco mais jovem,
diz com um forte sotaque americano:
O que é duro é ter de mergulhar o rosto adormecido
na água congelada.
Ouço alguém quebrar gelo numa vasilha. Um outro
65
chora e pede um espeto para quebrar o gelo. Toma empres-
tada a voz de meu filho mais velho ao chorar. (Antoine em
criança devia ter essa voz). Eu gostaria que isso acabasse
logo.
Olho lá em cima o céu claro através da folhagem negra.
70
Meu olhar sobe para além de ti (ao longo da árvore à qual
estás encostado) até a explosão azul do céu. No chão, os
carumas ásperos, avermelhados, perfumados, caídos dos
pinheiros. Repetes que a piedade apodreceu. Depois o
silêncio te invade novamente. Encostado em tua árvore. É
75
como se te encerrasses no centro desta árvore com teu
estranho mistério. Uma crosta enrugada cresce em tuas
mãos, vai recobrir teu rosto, ganhar teu coração, trans-
formar-te em árvore. Grito...
Viras a cabeça para mim. É para suplicar que me cale.
80
Teu rosto emerge da ausência e se destaca da sombra.
LXXXII
Parece nascer uma segunda vez, mais nítido e preciso. O
ângulo do nariz mais agudo, o brilho dos olhos mais
sombrio e encravado sob a arcada das sobrancelhas. Tua
palidez acentuada.
85
O verão roreja de luz. Olhas tuas mãos emagrecidas.
Examinas com atenção. Estendes as duas, abertas e
desarmadas.
E no entanto eu não tenho mãos de assassino!
Esperas que eu te tranqüilize, meu amor? Só posso é
90
beijar tuas mãos, uma após outra. Tuas queridas mãos de
assassino.
[...]
[Cap.37]
[...]
Há um odor de óleo e de fumaça na cozinha do doutor.
A mecha curta demais queima no lampião. Ele corta a
mecha. Limpa a cúpula escurecida. Suas mãos ágeis procla-
mam sua segurança absoluta. O perfeito domínio do corpo,
5
enquanto o coração se agita, se perde na noite de verão.
É preciso dormir, doutor Nelson. Estenda-se neste
banco, sem se despir. Basta tirar o casaco e os sapatos.
Enrole bem o casaco sob a cabeça. Como um soldado,
pronto para se pôr de pé de um salto, ao menor sinal de
10
alerta. O fusil ao alcance da mão. O senhor é médico, não
esqueça. Podem chamá-lo a qualquer hora do dia ou da
noite. Seja por causa de uma criança que vai nascer, seja por
causa de um condenado à morte, seja...
Estou acordada, ligada a esse homem que dorme sob a
15
chuva. Por mais longe que eu esteja no espaço e no tempo,
continuo unida a George Nelson, no momento em que os
arredores de Sorel submergem na chuva. Enquanto em
Quebec, a respiração opressa de meu marido enche a casa
da Rua do Parlatório com o próprio sopro da morte.
20
[Cap.38]
Que maravilhoso cavalo preto o senhor tem, doutor
Nelson. De longas pernas tão finas. De longe parecem
palitos de fósforo sustentando uma estranha quimera, com a
crina flutuante. Lançada no campo, sob a chuva. Há sulcos
por toda parte. O senhor não pode suportar nenhuma dor
5
nem miséria humana. (Nem a criança chorona no colégio,
nem a jovem esposa maltratada por seu marido, na Rua
Augusta, nem, sobretudo, o menino protestante estig-
matizado, isolado à esquerda na capela do Monsenhor de
Laval). Ei-lo, montado em seu cavalo, percorrendo todos os
10
terrenos e as mais modestas estradas, escavadas como leitos
de torrentes. Nenhuma casa sem visitar. Pela cozinha, de
preferência. E pergunta: "Vocês têm pessoas doentes,
estropiados, aflitos, perseguidos?" Pede doenças curáveis,
mágoas confessáveis, para tranqüilizar-se. Quanto aos
15
desesperos infames, não seria melhor destruir de um só
golpe todos os incuráveis e, com eles, a raiz do mal? Sua
especialidade, se a aceitasse, seria a de exterminar do
mundo dos vivos aqueles que já estão marcados para
morrer. O senhor desconfia de si próprio, doutor Nelson.
20
Finge acreditar na piedade como um sinal de salvação. O
senhor sempre pode tentar. Cuidar, curar, de dia como de
noite. Até o extremo de suas forças. Alguns cansaços
internos se assemelham de tal modo à paz que levam ao
engano. Dormir como um selvagem sem ter sequer o tempo
25
de tirar os sapatos. Levantar-se pela força de vontade.
Arrancar uma criança da morte. Triunfar da morte, com os
LXXXV
olhos cheios de lágrimas. Pus e sangue sobre as mãos. Veja,
os pais choram de emoção e reconhecimento. Amam-no
infinitamente. O senhor faz realmente o necessário para ser
30
amado, aliás. Todo o vale de Richelieu visitado e salvo pelo
senhor. A alegria o faz soluçar, doutor Nelson. A própria
paz vem a seu encontro. A passos de veludo. Num sub-
terrâneo profundo. Mais um instante e o édito será procla-
mado em pleno dia. Em francês e em inglês: "Escutai, boa
35
gente de Sorel (William Henry para os ingleses) o doutor
George Nelson da referida paróquia está definitivamente
aceito, aprovado, reconhecido, integrado pela referida
paróquia de Sorel, no condado de Richelieu. Não somente
um paroquiano íntegro, um cidadão exemplar, mas um
40
membro de honra da referida sociedade..." Todo o condado
está reunido na praça da igreja, em pleno sol. Um triunfo
sem par. Uma revanche e tanto. Um reconhecimento total.
Doutor Nelson, veja como o senhor deixa explodir rui-
dosamente sua alegria. Tão ruidosamente que Melanie Hus
45
de quem o senhor tratou e cuidou com tanto devotamento
levanta-se subitamente da morte em que está sepultada
desde ontem. Solta um grito de horror. Aponta-o num gesto
de todo o seu braço descarnado, interminável e rígido.
Descoberto! Aluno Nelson, você foi descoberto! É inútil
50
fazer-se de médico dos pobres, de consolador dos aflitos.
Você foi descoberto. Impostor. Não passa de um impostor.
A multidão se volta contra o senhor. Grita, ameaçadora.
Todos os protestantes são endemoninhados. Uma
LXXXVI
testemunha avança, uma segunda, uma terceira, depois uma 55
quarta... Declaram todas, sob juramento "que há um
comércio criminoso entre o doutor Nelson e a Sra. Tassy".
Alguém chega mesmo a dizer "que a infância é insuportável,
com seu rosto cheio de lágrimas". A Sra. Tassy declara "que
é só manter sob a água a cabeça loura desse menino muito
60
gordo, debruçado sobre uma bacia congelada. Apertar os
dedos e esperar que a morte faça efeito". O doutor Nelson
explica às pessoas de Sorel que "essa criança não
deveria ter nascido". A Sra. Tassy retruca "que um gesto
teria sido suficiente para afogar esse filhote recém-nascido,
65
enquanto que, agora que ele cresceu e engordou tanto, isso
ficou muito difícil". A multidão retoma suas ameaças e
acusações. "Todos os estrangeiros são endemoninhados". A
Sra. Tassy afeta estar ofendida. Brada, com as mãos em
porta-voz, "que ela é filha desta terra e mulher deste
70
mundo."
O homem que tem esse pesadelo se levanta. Com o peso
de toda a sua vida sobre os ombros. O torniquete do sonho
no estômago. O ranger enferrujado da bomba d’água. O
ruído do copo de metal. George Nelson bebe. Borrifa água
75
gelada no rosto. Volta-se para meus próprios sonhos seus
traços exauridos, seus olhos assustados. E eu (a quem minha
vida inteira não seria suficiente para enxugar seu rosto,
lavar o mal e a morte, apaziguar a angústia) atormento este
homem e me torno uma obsessão para ele. Tal como ele me
80
atormenta e é uma obsessão para mim.
LXXXVII
Escolho exatamente este instante. Em plena noite (pela
primeira vez). Sob a chuva. Escapo da casa da Rua Augusta
depois de ter pegado a chave na sacola de tia Adelaide. Em
carne e osso entro com desenvoltura no pesadelo de George
85
Nelson. Bato à porta. Molhada pela chuva suja de lama, com
arrepios de febre. Bato à sua porta e chamo baixinho com a
boca encostada à madeira cheia de espinhos.
Doutor Nelson! Doutor Nelson! Sou eu, Elisabeth!
[Cap.40]
Recolher minhas saias e meus corpetes amassados.
Desprender-me dos braços de George. Voltar para a Rua
Augusta. Depressa, antes que a cozinheira acenda o fogo.
Amanhece. O deserto do mundo. O pior que poderia
acontecer-me ainda, seria a condenação ao deserto do
5
mundo. Onde estás, meu amor? Em que país estrangeiro?
Uma ausência tão longa. Moro na Rua do Parlatório, em
Quebec. Afirmam mesmo que eu sou a Sra. Rolland, esposa
de Jerome Rolland, tabelião desta cidade...
Tia Adelaide me implora para pensar na honra da
10
família. No futuro das crianças. Beijo-a e reponho a chave da
Rua Augusta na bolsa à sua cintura, de onde a havia tirado
na noite anterior. Rio ao falar.
A senhora bem sabe, tia Adelaide, que prezo minha
honra mais do que minha vida. Como a senhora pode lançar
15
sobre mim uma suspeita tão injuriosa?
Tia Adelaide baixa os olhos. Humilhada por minha
mentira, como se a surpreendessem em flagrante delito.
Filhinha, devia ter cuidado. A última carta de Antoine
está cheia de ameaças. Ele diz que vem buscar a você e às
20
crianças...
Uma carta de Antoine? Endereçada a mim, tia
Adelaide? E a senhora não me entregou? E leu a carta? A
senhora não tinha esse direito. Dê-me logo essa carta.
Não está mais comigo, Elisabeth. Eu a queimei. Há
25
cartas que é preciso queimar. E certas coisas que devem ser
evitadas, sob pena de se condenar a arder em chamas no
outro mundo.
LXXXIX
Está querendo se referir ao inferno, tia Adelaide? A
senhora não tem esse direito, a senhora, tão boa...
30
Parece, às vezes, que você esquece de sua alma, filhi-
nha.
Suspiro deliciosamente, como se, levada em uma
carruagem por cavalos fogosos, jogasse lastro pela janela.
É tão fácil esquecer a própria alma, tia Adelaide, se a
35
senhora soubesse como é fácil.
Minha mãe sai de seu retiro. Lança um olhar apagado
para a filha. Queixa-se do calor. Continua seu monólogo
interior, mostrando-se entediada.
Que homem bonito o doutor Nelson, tão bem edu-
40
cado e de antiga família legalista americana. Pena que a
Menina não o tenha encontrado primeiro.
Mas é o primeiro, minha mãe! O primeiro, tia
Adelaide! Nunca houve outro e jamais haverá outro, estão
ouvindo?
45
É um pecado muito grande, filhinha.
Bem maior do que a senhora possa pensar, querida
tia, se a senhora soubesse...
Minha alma deve reencontrar-me por caminhos des-
conhecidos. Me sinto tão cansada, de repente. Essa
50
obrigação que eu tenho de livrar-me de meu marido. Fazê-lo
cair no vazio. Sobretudo que ele não volte mais a Sorel.
Apagá-lo para sempre de minha vida. Como um desenho
em que se passa a borracha.
Minha mãe se entedia. Ajeita o xale sobre os ombros e
55
sai do quarto.
[Cap.45]
Quando és tu o objeto de meus pensamentos, me
aproximo tanto de ti que tenho vertigens. Como ao meditar
contigo sobre as histórias de tua família (e sobre outras
histórias, além dessas). Por todo o caminho de volta, de
Quebec a Sorel. No lamaçal de outono. Com a deterioração
5
do outono, seu odor penetrante, a chuva que vergasta, o
vento que ruge em rajadas.
Minha pobre Cathy, tão infantil e severa ao mesmo
tempo. "Minha vocação", dizia ela, com extraordinário
misticismo em seu semblante. Que ironia...
10
Aurelie se ergue, qual uma aparição, em teu caminho de
lama. Com o rosto pálido demais. Com o lenço de lã preta
enrolado em seus ombros estreitos. A pequena cabeça crespa
se balança em graças de atriz e de negra. Não podes saber
até que ponto, por causa de Aurelie, o desprezo e a
15
ignomínia colarão à nossa história de amor, numa
persistente máscara contorcida.
Respiras a putrefação do outono até a náusea. A morte
de Catherine des Anges te sobe à garganta. Vê, não te
abandono. Sem levar em conta teu luto, dirijo teu pen-
20
samento, infatigavelmente, à tua verdadeira vocação, a ti,
meu amor. (A cada um sua vocação, a família é um álibi para
ti). Assassino! És um assassino! Sou tua cúmplice e tua
mulher, e te espero em Sorel. Aurelie está a meu lado se
debatendo, presa na armadilha.
25
Mando Aurelie sentar no chão, ao meu lado. Diante do
fogo. Depois de ter apagado todas as velas. Uma a uma,
cerimoniosamente. O clarão do fogo ilumina o quarto. Nos-
XCII
sas sombras na parede. Estendemos as mãos para o fogo. As
de Aurelie, pequeninas, de dedos separados, parecendo
30
raios. Aurelie pede permissão para fumar. Fica rodeada de
fumaça. Com os olhos semicerrados, ela sonha. Um sonho
transparente de felicidade, em ondas sensuais, no seu rosto
rosado pelo fogo.
Sua história de amor com o doutor me mata, madame!
35
Aurelie não está mais envolvida com nenhum desor-
deiro. Não faz mais nenhuma profecia sobre a vida dos re-
cém-nascidos. Não sai mais. Prende-se a meus passos. Parece
viver apenas quando lhe confio algum recado para George.
Expande-se, vibra e estremece quando lhe conto meu sofri-
40
mento ou minha ventura. Leio em seu rosto uma admiração
sem limites. Um espanto sem medida. Uma espécie de fas-
cinação. Acredito que minha existência tumultuada baste a
Aurelie atualmente. Dispensa-a de viver por ela mesma. Às
vezes ela se perturba. Retoma sua hostilidade inicial pelo
45
doutor.
O seu doutorzinho nos enfeitiçou, isso é que é.
Dou um beijo em Aurelie. Acaricio seus cabelos. Não é,
pois mais importante do que qualquer outra coisa que
Aurelie se aclame e fique em paz? Que atinja, desarmada,
50
aquele estado de docilidade extrema, de passividade infinita,
em que toda submissão e complacência tornam-se naturais,
como que involuntárias? Ofereço vinho do Porto a Aurelie,
que bebe em pequenos goles.
Preciso de você, Aurelie. Não sabe o quanto o meu
55
marido é cruel? Você tem de ir a Kamouraska para
XCIII
envenenar o meu marido...
É um crime muito grande, madame.
Ninguém nunca saberá de nada. E depois eu ficarei
com você como uma irmã, por toda a vida, se você quiser.
60
Eu ficaria com muito medo de ir para o inferno
depois da minha morte!
Entre Montreal e Sorel. Os sulcos são profundos. A
terra e o coração se corroem, numa única e mesma devas-
tação. Jamais se saberá ao certo onde começou. Na terra,
65
provavelmente. O campo está roído por dentro. Na origem,
um deslizamento ínfimo de terreno, em algum lugar da pai-
sagem inundada pela chuva, carreando desmoronamentos,
inundações, torrentes que se precipitam. Um pedaço do
mundo conhecido cede e desaba. (O senhor não tinha conhe-
70
cimento desta sua fraqueza, Dr. Nelson?) Ei-lo diretamente
implicado, ligado ao destino desta terra. Ao desabamento
desta terra. (Antes de voltar ali para apodrecer em carne e
osso). Todo solo arável arrancado (orgulho, altivez, com-
paixão, caridade, coragem...). O coração escorchado. Sua in-
75
sustentável nudez. (Fadiga, nojo, desespero...) "Meu pai, por
que me abandonastes?" Apenas uma coisa é necessária ago-
ra: livrar-se o mais rapidamente possível da morte de Ca-
therine des Anges e de qualquer outra morte consumada ou
por vir. Nesta mesma noite, George Nelson, você cederá às
80
súplicas de Elisabeth. Conversará com Aurelie e a enviará a
Kamouraska, em seu lugar. Um cansaço tão grande.
Meu pobre amor, certamente jamais saberei como ex-
plicar-te que para além de toda santidade reina a inocência
XCIV
astuciosa e cruel dos animais e dos loucos. 85
Ainda algumas léguas para chegar a Sorel. Não
adianta de nada forçar o cavalo. E depois, temos tanto a nos
dizer, Aurelie e eu. No calor agradável do fogo. Tenho dese-
jos de mulher grávida: mandar Aurelie a Kamouraska. Pro-
videnciar a morte de Antoine fora de nosso alcance, teu e
90
meu. Conservar entre a morte de Antoine e nós a distância
necessária à reconstituição de nossa inocência. Uma paz tão
dura de conquistar. Expulsar a angústia. O coração retirado
do peito. O impulso enorme do crime mantido a uma certa
distância. Procurar loucamente a zona calma que existe no
95
interior dos tufões. E depois, verás, tudo isso se desenrolará
num outro mundo. Aurelie se encarregará de tudo. Sabe-
remos da morte de Antoine como de uma notícia estranha.
Por uma carta da Mãe Tassy, provavelmente. Ninguém
poderá dizer ao certo de que doença o meu marido morreu.
100
Mais dia menos dia isto tinha de acontecer. Uma festinha a
mais, e acabou-se o senhor de Kamouraska. Ninguém ficará
realmente surpreso.
Numa noite tão horrível alguém me sussurra que o rei
do pântano virá até mim. Me arrastará pelos cabelos, me
105
mergulhará em charcos enormes para me afogar. Consigo
manter o fogo na chaminé à custa de esforços incríveis. A
madeira não quer mais arder e enche o quarto de fumaça.
Acho que bebi Porto demais.
Ofereço biscoitos a Aurelie, fitas vermelhas e verdes.
110
Seu rosto acabrunhado ilumina-se bruscamente como o de
uma criança que passa das lágrimas ao riso.
XCV
Falo com ela docemente para não tirá-la de sua alegria
súbita.
Aurelie, qual é o seu sonho?
115
Aurelie suspira, procura seu sonho no fogo. Mexe nas
brasas que desabam. Cata minúsculos restos de fogo, com a
tenaz. Subitamente solta um grito. Ergue-se. Deixa cair a
tenaz no chão da chaminé. Num barulho infernal.
Alguém entrou no quarto. Alguém que não era
120
esperado tão cedo e que está subitamente entre nós.
Ofegante. Depois de uma longa corrida.
[Cap.49]
A neve. Ainda não é o fim do mundo. É só a neve. A
neve a perder de vista, como um naufrágio.
Estou em meu posto, atrás da cortina da janela do meu
quarto. A Rua Augusta ali está, toda branca, aos meus pés.
Os traços dos trenós reluzem na neve endurecida. As sobras
5
ficam azuis. A Rua Philippe, bem perto, sobe para o campo.
As árvores secas rangem ao vento. Vidente. Sou vidente.
Imóvel e pesada. (Devo dar à luz em breve). Extra-lúcida,
puseram-me aqui para que eu visse tudo e ouvisse tudo.
Arrancando-me da Rua do Parlatório, em Quebec, no mo-
10
mento em que meu marido... Como se meu dever mais
urgente, minha vida mais premente fosse a de ficar aqui,
atrás de uma vidraça, em Sorel, enquanto ensurdece por
completo a respiração rouca de Jerome Rolland.
Digam o que disserem, façam o que fizerem, continuo
15
a ser a testemunha principal dessa história de neve e de
fúria. As testemunhas secundárias virão, na ordem certa,
refrescar-me a memória. Os próprios locais (de Sorel a
Kamouraska e de Kamouraska a Sorel) permanecerão
largamente abertos para mim, a fim de que eu entre e saia, ao
20
sabor dos acontecimentos. Não desfaleço em momento
algum, em momento algum me faltam forças. O frescor de
minha história é espantoso.
Fico à espreita. Levanto uma ponta da cortina, raspo
porções de geada com as unhas. Percorro com o olhar a Rua
25
Philippe que segue em direção ao campo. Quase imediata-
mente a casinha de madeira do doutor me aparece. No
telhado de ângulo quase agudo a neve se acumula sobre a
XCVII
lucarna. A chaminé de pedra solta fumaça no céu de intenso
azul.
30
Aurelie Caron troteia sobre a neve, trazendo uma
sombra ligeira e dançante diante de si. Um homem vestindo
um casaco de gato selvagem vem ao seu encontro na estrada,
sob o frio intenso do inverno. Faz sinais com o braço acima
da cabeça. Chamando Aurelie. Estão agora lado a lado.
35
Aurelie e o homem cuja silhueta, aumentada pelo casaco de
pele, faz bater surdamente o meu coração. Vejo-os muito
bem, todos dois. O vapor da respiração desprende-se de suas
bocas em nuvens apressadas. Aurelie abaixa a cabeça.
Pois bem, Aurelie, estamos no inverno. Você partirá
40
amanhã.
Ela tenta resistir, a pequena Aurelie Caron? Sua voz
treme quando faz alegações, já submissa e aborrecida, meio
sarcástica?
Servindo assim, à Sra. Tassy e ao senhor, estou
45
desonrando a mim e a toda a minha família...
Atrás da vidraça, só posso imaginar a conversa precisa
de George Nelson e Aurelie Caron. Reconstituir o som das
vozes que não consigo refazer com justeza e que destoam
desagradavelmente. Na manhã clara do inverno.
50
Você não tem nada a temer. Jamais a coisa será
descoberta. Pense na sua pobre patroa que é tão infeliz.
Pense no seu futuro, Aurelie...
O rosto de Aurelie, avermelhado pelo frio, de
sobrancelhas franzidas e os olhos apertados por causa da
55
claridade do sol. No espaço de um instante, o encaminha-
XCVIII
mento difícil de uma idéia monstruosa em sua cabeça.
Depois o abandono rápido de qualquer resistência, sob o
olhar penetrante e negro que a retém.
E depois, seu doutor, é uma viagem bem longa...
60
Gostaria de encorajar esta mulher encarregada de
missão tão terrível. Sorrir-lhe por trás de minha vidraça.
Prometer-lhe todas as maravilhas que podem transformar a
sua vida.
Você nunca mais precisará trabalhar, Aurelie. Terá os
65
mais lindos vestidos do mundo. Você é minha amiga, minha
única amiga, mais que minha amiga, minha irmã, Aurelie...
É inútil esgoelar-me, ela não me ouve mais. Nem ela
nem ninguém, aliás. Minha vida inteira deve desenrolar-se
novamente, sem que eu possa intervir. Nem mudar o que
70
quer que seja. Não me pouparão nenhum detalhe. É melhor
eu economizar as minhas forças. Não chamar em vão,
abrindo e fechando a boca em minha gaiola de vidro, como
os peixes vermelhos no aquário.
Resta contar as horas e os dias. Esperar o retorno de
75
Aurelie Caron. Fazer a conta exata do tempo que passa.
Tentar reconstituir a seqüência de ações dessa mulher que
viaja para o estuário.
Segunda-feira à noite, George confia a Aurelie dois
pequenos frascos. Um contém pouco mais de um copo de
80
conhaque. O outro um pouco menos, de um líquido de cor
branca. No dia seguinte, de manhã bem cedo, Aurelie sobe
na viatura da mala postal. Usando roupas novas da cabeça
aos pés, como uma noiva que sai em viagem de núpcias. Um
XCIX
manto de tecido rústico, um vestido de sarja verde, um par 85
de sapatos indianos, meias longas tricotadas e o xale de lã
vermelha de pompons.
Aurelie não larga a sua valise de tapeçaria. Vai guardá-
la obstinadamente sob os pés, durante toda a viagem. Em
Trois-Rivières a jovem dama toma a diligência até Quebec.
90
Aí chegando, ela atravessa o rio em Pointe-Levis. Um
homem de Kamouraska, visto no cais, oferece-se então para
levar Aurelie até lá por dez xelins.
[Cap.54]
Lauzon, Beaumont, Saint-Michel, Berthier... O tempo!
O tempo! Acumula-se sobre mim. Me cobre como uma
armadura de gelo. O silêncio se estende em placas de neve.
Já faz muito tempo que George, levado em seu trenó,
transpôs todas as fronteiras humanas. Penetra numa deso-
5
lação infinita. Como um navegador solitário que se dirige
para o alto mar. Em vão interrogo o estado da neve e do frio.
Não dependemos mais das mesmas leis de neve e de gelo,
das mesmas condições de fadiga e de pavor. Distância dema-
siada. Por que temer uma tempestade com lufadas de neve
10
fresca que apague as pistas? Meu amor se debate num
turbilhão de neve, pérfido como a água das torrentes? Meu
amor respira o ar gelado? Meu amor cospe a neve num
vapor de gelo? Seus pulmões queimam? Todo o seu sangue
pára? Para além de um certo horror, este homem transforma-
15
se em outro. Escapa-me para sempre.
Agarrada à cortina de meu quarto. Colada à vidraça,
como uma sanguessuga. Sorel. A Rua Augusta. Este lugar de
asilo não é seguro. O refúgio de minha juventude está
aberto, desventrado como uma boneca de pano. Todas as
20
ramificações, as astúcias, as voltas e reviravoltas da memória
só levam à ausência. Que faz o doutor Nelson no estuário?
Terá conseguido...? Nada mais sei sobre ele. Encontro-me no
vazio absoluto. Um deserto de neve, casto, assexuado como
o inferno. Em vão examino a vasta extensão branca,
25
despojada de seus vilarejos e de seus habitantes. As grandes
florestas. Os campos. O rio gelado. Nenhum cavalo negro no
horizonte.
CI
George Nelson estaria desorientado, perdido, morto,
congelado na neve?
30
Cuidado com a aparente suavidade da neve. Os flocos
em fileiras cerradas, sobre nós, em volta de nós. Como avisar
George? Dizer-lhe para não se deixar levar pelo devaneio
que vem da neve. Uma embriaguez calma, uma fascinação
insidiosa (apenas uma ligeira pontada no coração, e
35
deslizamos, pouco a pouco, de abandono em abandono, de
fantasia em fantasia, até o sono mais profundo). Não se
deixar desarmar. Conservar vivos todo amor e todo ódio. A
neve que se acalma, a perder de vista, nivelando paisagem,
cidade e vila, homem e animal. Toda alegria ou sofrimento
40
anulados. Todo projeto sufocado em sua origem. Enquanto o
frio cúmplice se insinua e propõe sua paz mortal. Que ao
menos o homem que está lá longe, entre todos, na estrada de
Kamouraska, não deixe cair as rédeas por um só instante.
Não é que sua mão já esteja dormente, mas simplesmente
45
invadida pela inutilidade de todo e qualquer gesto. Uma
fadiga imensa também. Uma imensa vontade de dormir. Um
imenso bem-estar estranho e surdo, sentido em toda a mão
que não segura mais (não pode mais segurar) as rédeas. As
duas mãos caídas sobre os joelhos, abandonadas, ditosas,
50
pesadas, tão pesadas, numa paz incomensurável, pérfida. As
duas mãos, lado a lado. Um pouco mais adormecidas,
parece, um pouco mais pesadas que de costume, talvez.
Menos nítidas e menos desenhadas sob as mitenes. Os dedos
refeitos um a um, de forma mais espessa, tornando-se
55
extremamente importantes e, no entanto inertes. Cada vez
CII
menos sensíveis. Morrendo, simplesmente, um após o outro.
Experimento até o limite de minha razão o
amortecimento do frio, junto ao estuário. A queimadura viva
do sangue que volta a circular. (O homem esfrega suas mãos
60
com neve). Seria possível sonhar a paixão de outra pessoa,
com esta acuidade insustentável? Sinto nas costas a força
irresistível que impele George Nelson na estrada de
Kamouraska. A força que o leva a procurar abrigo na
próxima hospedaria.
65
Desejo ser socorrida pelas comadres de Sorel. Melhor
sofrer com sua tagarelice do que suportar...
Montmagny, Cap-Saint-Ignace, Bonsecours, Saint-Jean-
Port-Joli, Saint-Roch-des-Aulnaies... Acho que mexo os
lábios como as velhinhas na igreja.
70
A Menina está muito agitada. Está com febre e
resmunga preces sem fim. Ela precisava se distrair um
pouco, não acham?
Há muito tempo que não faz um frio assim.
Fazer calar essas mulheres. Como ao cobrir a gaiola
75
dos periquitos, à noite. Reencontrar um silêncio inseguro.
Alguma coisa viva se mexe, se desdobra do fundo do
silêncio. Remonta à superfície. Espoca em bolhas surdas nos
meus ouvidos. Uma voz de homem, lenta, sem inflexão,
procurando suas palavras pouco a pouco, dirige-se a mim.
80
Me informa, como a contragosto (baixinho em confidência), a
passagem de um estrangeiro na hospedaria de Saint-Vallier.
(Havia esquecido Sint-Vallier, entre Saint-Michel e Berthier).
CIII
Michel-Eustache Letellier. Numa terça-feira, 29 de
janeiro, por volta das nove horas da noite, chegou à
85
hospedagem um rapaz estrangeiro, de boa aparência, de
cabelos pretos e suíças pretas. Passou a noite na hospedaria e
partiu no dia seguinte bem cedo.
Tento tomar pé na hospedaria de Saint-Vallier. Avistar
o jovem estrangeiro. Mas já então a voz do hospedeiro
90
recomeça tão rapidamente que me vejo precipitada no
tempo. À velocidade da própria palavra. Sem poder agarrar-
me a nenhuma imagem. Nem reconhecer nenhum rosto.
Michel-Eustache Letellier fala novamente do jovem
estrangeiro que retorna à hospedaria na sexta-feira 3 de
95
fevereiro, à noite.
Notei que suas suíças pretas estavam muito mais
longas na volta do que na ida e cobriam quase todo o seu
rosto. Estava também muito agitado e inquieto. Jogou o seu
cinto de lã no fogo para desfazer-se dele. Cheirava a
100
queimado em toda a sala.
Eu queria respirar o cheiro de lã chamuscada. Na sala
da hospedaria de Saint-Vallier. Aproximar-me do homem
inclinado sobre o fogo. Surpreendê-lo de costas. Examinar à
vontade a nuca de meu amante. Sempre tive a convicção de
105
que o centro da vontade e da energia do homem achava-se
em sua nuca. Uma determinação ferrenha na nuca igual-
mente esguia e robusta de George Nelson. É o próprio
segredo de sua força que aí está oculto, provavelmente. Isto
me encanta e me desespera. Eu queria possuir o meu amor
110
como à minha própria mão. Segui-lo em todos os seus movi-
CIV
mentos de vitalidade extraordinária. Que nenhum de seus
pensamentos me escape. Que nenhum de seus sofrimentos
me seja poupado. Somar-me a ele. Ser duplamente feroz com
ele. Erguer o braço com ele, quando for preciso. Matar meu
115
marido com ele.
[Cap.59]
O viajante repete que quer água quente.
Louis Clermont, com gestos lentos, cheio de sono, acen-
de o fogão (resta um pouco de brasa no fundo). Põe a água
para esquentar na cafeteira. O estrangeiro se impacienta e diz
que não é para beber que quer água quente, mas para lavar o
5
trenó e as peles e que precisa de muito mais. Louis Clermont
põe água para esquentar na chaleira.
Não foi nos caminhos daqui de perto, com toda essa
neve branca, que ficou tudo emporcalhado assim, não é
mesmo?
10
Puseram o meu trenó num abrigo onde mataram
animais. Então o sangue...
Mas que pessoal mais porco, pra sujar desse jeito suas
peles e seu trenó, lá na hospedaria onde o senhor esteve. Eles
podiam ao menos ter lavado...
15
Eu estava com pressa...
A voz do viajante, cortante, embora abafada, quase
apagada, oprimida, manda Louis Clermont pôr o cavalo na
estrebaria, trazer água morna e um galão de aveia.
Peguei a bacia e uma picareta, embaixo do banco do
20
trenó, como o viajante tinha pedido. Vi um colar de guizos,
escondido embaixo do trenó. Tinha gotas de sangue derramado
congeladas no trenó. Raspei com a unha. Eu estava assustado,
mas fiquei ainda mais depois da partida do viajante, depois de
pensar. Ele me acompanhou ao abrigo para lavar o trenó. Vi
25
bem, com minha lanterna, que tinha muito sangue no fundo. E
também por todo lado nos assentos. Ele jogou água quente nos
lados e na frente do trenó. Eu esfregava com uma saia velha de
CVI
minha mulher, e ele com um saco de pano cinza que parecia
um saco de pistola. Como estava frio, ficava tudo gelado logo
30
em se-guida. Ele me disse para esperar até o dia seguinte para
lavar o trenó. E não esquecer de jeito nenhum de acordar ele às
cinco horas, de manhã cedo. Ele fez um pacote com as peles e
levou para dentro, com seu saco de viagem. Quando estava
dentro de casa, tirou a capa cinza e arregaçou as mangas. Ficou
35
lavando as peles, numa bacia que eu dei para ele, com água
quente de chaleira, e que ele misturava com água fria. Ele me
pediu um copo de vinho quente. Bebeu mais ou menos a
metade. Depois entrou em seu quarto para descansar. Já na
cama, me mandou levar mais cobertas. Quinze minutos depois,
40
me pediu uma das peles de seu trenó, para eu colocar em cima
da cama, que ele estava com tanto frio que não conseguia se
esquentar.
O homem estremece da cabeça aos pés. Bate queixo. A
cama se agita, se sacode, como se o chão tremesse.
45
Eu, Elisabeth d'Aulnieres, encerrada na hospedaria de
Louis Clermont. Empurrada para a escada. Levada a trans-por
a porta do quarto do viajante. Transpondo essa porta contra a
minha vontade. Sozinha ali na obscuridade. Perce-bendo os
terríveis arrepios desse homem. Sentindo dire-tamente em
50
meus nervos tensos, a incomparável insônia des-se homem.
Adivinhando a pesada jornada, recapitulada nas trevas. As
imagens precisas, passando diante das pupilas exorbitantes do
viajante, deitado ali na cama. Sentindo voltejar imagens diante
de meu rosto, parecendo morcegos.
55
Ouço a respiração, em estertores, no seu peito. A noite
CVII
espessa entre nós. Imaginar o semblante desfeito, ali, a dois
passos de mim. O corpo exausto tiritando sob o peso das
cobertas. A manta de pele estendida sobre ele, com as man-
chas de sangue, o odor de sangue. Rezar, com um coração que
60
se perdeu para Deus, para que a noite dure. Para que nunca
mais brilhe a luz para o homem deitado ali, na noite profunda.
Rezar, com um coração que morre, para que nunca mais
apareça, diante de mim, nunca mais se levante diante de mim,
ou volte para mim, ou me estenda os braços, ou me tome em
65
seus braços, o homem que acaba de matar um outro homem.
Na enseada de Kamouraska. Sua inimaginável solidão. Chamar
a noite para cobrir seu semblante. Como quem estende a
mortalha sobre o rosto dos mortos.
A compaixão em mim gira em falso, esgota-se. Procura
70
perdidamente uma saída, um gesto, uma palavra que a expri-
ma e a extraia da pedra em que estou sufocada. Transformada
em estátua, Verônica fascinada na soleira da porta, no pri-
meiro andar da hospedaria de Louis Clermont, peço em vão
um pano macio para enxugar o rosto do homem que amo. Fico
75
emparedada em minha própria solidão. Paralisada pelo meu
próprio terror. Incapaz de qualquer movimento, de qualquer
gesto. Como se a própria fonte de minha energia (estando
abalada) se pusesse subitamente a produzir silêncio e
imobilidade. Não posso sequer dar um passo em tua direção...
80
Burlington, Burlington, meu amor me chama do outro
lado da fronteira, do outro lado do mundo...
Victoire Dufour desdobra um avental, cada vez mais
vasto e azul. Como se tivesse acabado de esticá-lo e de tingi-lo
CVIII
de novo de azul. Amarra-o em volta da cintura, cada vez mais 85
volumosa. Enche o quarto como sua presença gordurosa e azul.
Torna-se gigante. Finge ter-se levantado bem cedo para
testemunhar diante do juiz de paz. Na verdade, dirige-se a
mim, Elisabeth d'Aulnieres. Procura reter-me o máximo de
tempo na hospedaria de Louis Clermont.
90
O viajante sai do quarto precipitadamente. Vejo-o de
costas, assim que entra na sala. Com determinação, e no
entanto, com uma vulnerabilidade nova, perceptível em sua
nuca ainda bem reta, mas agitada. Voltando-se da esquerda
para a direita, da direita para a esquerda, com mais freqüência
95
do que o necessário, desconfiada. Adivinhar seu perfil sombrio
que foge.
Ouve-se, do outro lado da parede, Victoire Dufour que
acorda seu marido.
Depressa, Clermont, os cavalos se agitam na estrebaria!
100
Cale essa boca, mulher. Ele me disse para acordá-lo às
cinco horas e o dia já vai alto.
O viajante diz que ouviu soar todas as horas da noite. Vai
direto ao fogão. Abre o forno e apodera-se da chaleira. Manda
Louis Clermont segui-lo até o abrigo.
105
Ele despejava água quente e eu esfregava. Tiramos a
sujeira mais grossa. Tinha muito sangue seco, misturado com
palha e com neve. Um homem tinha dormido perto do fogão
naquela noite, um tal de Blanchet, que vinha lá da foz do rio, e
parecia incomodar demais o viajante. Assim que acordou,
110
apareceu no abrigo.
Diacho! Como é que o senhor deixou isso tudo ficar
CIX
assim! Só gente muito porca, pra deixar essas peles desse jeito!
O estrangeiro me falou para atrelar o cavalo logo logo.
Enquanto isso ele entrou para pegar as peles, a sacola e o
115
chicote. Ele subiu no trenó antes de eu sair do abrigo. Arrumou
as peles em volta dele, colocando o pelo para o lado de dentro.
Tirei o cavalo do abrigo, dei as rédeas para o viajante. Ele não
comeu nada. Tomou um copo de gim e foi embora.
Victoire Dufour, com o rosto rosado e lavado de sabão.
120
Os traços imprecisos. Os olhos, cada vez mais pálidos, imensos,
esparramados como poças, postos em mim.
Quando me levantei, já estava bem claro o dia. Vi
sangue por todo lado, no chão, falei para a empregada: "Minha
filha, não é possível, aquele homem matou alguém!" Ela falou a
125
mesma coisa: "Não é possível. Isso não pode ser outra coisa. Vá
lá ver, na parte de baixo da varanda, lá fora, onde eles jogaram
o sangue". Eu fui lá. Tinha muito sangue sobre a neve. Tremi
de horror e estava muito assustada. Ele se levantou antes de
mim. Chegou a olhar a porta de meu quarto enquanto eu me
130
vestia. Parecia que procurava alguma coisa. Achei que ele era
grosseiro demais. Olhava e parecia agitado. O tempo todo que
ficou na minha casa ele me evitava e me virava as costas. Eu
mesma não gostava de olhar para ele. Mas eu vi o bastante e
posso reconhecer ele em qualquer lugar. Quando vi toda
135
aquela bagagem e aquele sangue, eu falei com meu marido:
Pelo jeito, Clermont, aquele homem matou...
Fique sossegada, mulher, não fale tanto, quem sabe ele
não é um oficial inglês, ele podia nos mandar prender; como a
gente está num reinado ruim, pode ter havido uma batalha
140
CX
qualquer no lugar de onde ele veio.
Eu falei para ele, duas vezes, que, na certa, aquele
homem tinha matado alguém. Entrei no quarto do viajante
para procurar a vasilha d’água onde ele tinha se lavado. Estava
cheia de sangue. Eu vi quando ele raspou e esfregou as meias
145
com as mãos, de manhã, antes de ir embora. Os olhos dele
eram muito suspeitos, muito negros. Eu estava assustada,
pasmada mesmo. A gente é pobre, temos uma pequena
hospedaria e prestamos atenção nas pessoas que parecem
diferentes das outras. Quando estive no quarto para fazer a
150
cama, achei a coberta cheia de sangue e vi gotas de sangue no
chão, em volta da cama, perto do fogão, onde ele tinha posto a
sacola. Ele parecia fugir do olhar da gente, enquanto esteve na
casa. Eu vi as peles, que estavam com o couro tinto de sangue.
Victoire Dufour inclina-se sobre minha cama. Sua figura
155
torna-se cada vez mais rosada, brilhante de suor, gotejante.
Pode-se ver agora, através da pele transparente do rosto e do
nariz, um grande fogo aceso no interior, nos ossos da face que
se funde rapidamente. Em grossas gotas. À medida que seu
rosto se liquefaz, Victoire Dufour chama a minha atenção para
160
a grande bandeja de neve que lhe cobre os braços. Ela me diz,
num sopro quase imperceptível, para olhar bem, com ela, uma
última vez, o sangue espalhado e congelado sobre a neve muito
branca.
[Cap.64]
Tarde demais! James Wood e Robert Dunham, enviados de
Kamouraska, já encontraram as autoridades do burgo de Sorel.
No dia seguinte, pela manhã, 7 de fevereiro, dois oficiais da
polícia apresentam-se na casa do doutor Nelson, munidos de um
mandado de prisão.
5
Tarde demais! É tarde demais! Anne-Marie, minha filha,
me obriga a voltar a mim. Me puxa com toda força pelo pulso.
Leontine Melançon me faz respirar amoníaco. Seu "lorgnon" sai
da órbita de seus olhos pálidos. Cai sobre seu peito chato.
Balança-se na ponta de um longo fio dourado.
10
Impeço que a vida e a morte da Rua do Parlatório che-
guem até mim. Construo barreiras de obstinação e má vontade.
Persisto em ficar do lado das trevas. Tateio qual uma cega. Com
os dois braços esticados na sombra. Sob meus dedos surge uma
certa parede de madeira. Depois uma outra parede de madeira.
15
Num ângulo perfeitamente reto. Poderia contar as tábuas de
pinho. Encontrar a sala de espera do doutor. O fogão da marca
"Warm Morning". A cama desfeita, a coberta vermelha e azul, os
lençóis caídos no chão. Um armário com os dois batentes
abertos. Vazio. O suporte das cortinas meio arrancado. Uma
20
cortina de cretone pendurada como um trapo esmaecido pelo
sol. É tarde demais. O que é que eu estou fazendo aqui? O
doutor Nelson escapou. Fugiu. Dizem que ele foi visto em Saint-
Ours. Foi só o tempo de vender seu trenó americano e seu cavalo
negro. Rapidamente a fronteira americana, num trenó novo,
25
puxado por um cavalo descansado. Com a polícia em seu
encalço.
Uma voz perversa, através de mim, afirma que o café não
CXIII
é forte o bastante para me despertar. Uma estranha vontade, que
não é deste mundo, me leva a esconder a boca, os olhos, os
30
ouvidos com o travesseiro. Recuso ostensiva-mente a Rua do
Parlatório e Jerome Rolland, meu marido.
Em devaneio, volto a ser branca e tola qual uma jovem
casadoira. Alguém, que não vejo, ajeita meu véu de tule que vai
até o chão. Prega em minha testa uma grinalda de botões de
35
laranjeira, de odor almiscarado. Tenho de passar sob um arco de
pedra, de braço dado com o diabo. Com um buquê de abelhas
adormecidas entre os dedos. Todos os meus filhos em cortejo
atrás de mim. O mais moreno de todos, que também é o menor,
dorme no ângulo de meu braço direito. Abre meu corpete
40
imaculado de jovem noiva. Um seio salta, cheio de leite. Todos
os convidados ficam encantados e me louvam em voz alta. Que
belo casamento! Todos estão maravilhados. Aurelie Caron, é ela,
com certeza, ri a mais não poder. Alguém diz que já é hora de eu
olhar para o rosto de meu amor. Levanto a cabeça. Seu rosto
45
vem tão rapidamente ao meu encontro que fecho os olhos de
felicidade. Vertigem. Tarde demais. Devia ter corrido... À
velocidade do vento... Meu amor já se foi...
Suplico à tia Adelaide que me acompanhe além da
fronteira. Depois da visita ao Dr. Lafontaine em Montreal, voltar
50
para trás. Fugir. Mas onde procurá-lo? Na imensidão das terras
e das florestas? Esse homem está perdido. Estou perdida.
Alguém nos segue, a mim e à tia Adelaide. A polícia!
Na segunda-feira, 11 de fevereiro, a viúva de Antoine
Tassy é presa e conduzida à prisão de Montreal.
55
Aurelie, você não é mais minha amiga. Bem que eu lhe
CXIV
dissera que era preferível jurar em falso a nos trair. Adiantou
muito o que você fez. Agora você está na prisão, como a sua
pobre patroa. Fico com tanto medo de me sujar num lugar tão
ruim. Aurelie, você sabe como eu detesto qualquer
60
promiscuidade, qualquer humilhação (mesmo no inferno eu
recusaria a humilhação). Sua pequena silhueta de prisioneira,
opaca e descorada, me horroriza. Como se pode lançar sobre
mim uma suspeita tão injuriosa? Esta rapariga, senhor juiz, é
uma mentirosa e uma desavergonhada. As famílias tradicionais
65
deste lugar respondem por mim.
Você deixará o Canadá, não? Você virá, Elisabeth, diga-me
apenas isso. Você virá? Você virá? Diga...
Esta carta eu não recebi. Pior do que a prisão, o abandono.
Teu silêncio para sempre. Tua escrita apreendida. O som de tua
70
voz interceptado. Teu apelo perdido na papelada da
magistratura. Senhor meu Deus, estou perdida. Minha tia
Adelaide redige uma carta para o juiz. Assinada com uma
rubrica mal feita.
"A mencionada Elisabeth d'Aulnieres foi toda bondades
75
para o mencionado Antoine Tassy seu falecido esposo. Ela soube
de sua morte do mesmo modo que nós, sua mãe, suas tias e eu
mesma. Isto é, primeiro pelos rumores, e de-pois pelas cartas
recebidas de Kamouraska. A mencionada Elisabeth, minha
sobrinha, tem três filhos de pouca idade, nascidos de seu
80
casamento com o mencionado Antoine Tassy, um dos quais tem
apenas três ou quatro meses. A mencionada Elisabeth tem
apenas vinte anos. A saúde dela é muito frágil. Desde que foi
presa, prisão essa compartilhada por mim, Adelaide Lanouette,
CXV
sua tia, a mencionada Elisa-beth se enfraquece 85
consideravelmente dia a dia. Ela vem sofrendo muito de um
escarro de sangue. Uma detenção mais longa poria sua vida no
maior perigo. Conheço muito bem Aurelie Caron de Sorel e não
acreditaria nela de maneira alguma, mesmo que ela falasse sob
juramento.
90
Feito na prisão comum de Montreal
Em 22 de fevereiro de 1839"
Chegando a Burlington, em 8 de fevereiro, o doutor
George Nelson foi preso, por sua vez, alguns dias depois. A
95
mando das autoridades canadenses. Longos procedimentos
tormentosos começam entre Montpellier e Washington. Em 23
de março o grande júri da corte de Quebec faz uma acusação de
assassinato contra o doutor Nelson. O caso de Elisabeth
d'Aulnieres é adiado para as sessões de setembro.
100
Quantas vezes olhei derreterem-se os pedaços de neve na
janelinha de minha prisão. Quantas vezes rolei na cama estreita.
Quantas vezes chorei. Tia Adelaide põe compressas em minha
testa. Chora comigo. Um gosto de ferro me sobe até a boca.
Cuspo sangue. Que velha bruxa me sopra ao ouvido que isso
105
tudo é uma farsa?
Tia Adelaide me suplica para melhorar minha aparência,
banhar o rosto com água fresca e apresentar-me em público, ao
lado de minha sogra, vinda de Kamouraska com esse propósito.
Liberada sob fiança, uma jovem senhora muito pálida
110
(com longos véus de luto) transpõe a porta da prisão. Com seu
andar de sonâmbula. O diretor da prisão a cumprimenta em voz
CXVI
baixa, como se tivesse havido um engano. Envolta em xales e
crepes, olhava furtivamente a rua. Precipita-se na viatura parada
junto à calçada. Uma mulher mais idosa, baixa, igualmente
115
perdida em véus negros, levanta uma coberta de lã e a ajeita
sobre os joelhos da jovem senhora.
Uma segunda viatura segue a primeira, levando a mãe e a
tia da jovem senhora.
Na primeira viatura, duas mulheres, lado a lado, evitam
120
cuidadosamente de se olharem. É o primeiro en-contro desde...
Sacudidas pelo movimento rápido da via-tura, Elisabeth
d'Aulnieres e sua sogra, Senhora Tassy, ficam tão protegidas,
apoiadas uma na outra, quanto nozes que se entrechocam num
saco.
125
O estranho cortejo atravessa Montreal em pleno meio-dia.
[Cap.65]
Deveria ter arrumado outro vestido para mim. Este está
todo amassado. Um pouco de água de colônia, por favor. O
café está tão grosso que parece um xarope, deixa um gosto
amargo na boca. A mulher no espelho está de olhos fundos.
Um rosto muito redondo. Olheiras sob os olhos. Um pescoço
5
largo demais para a gola de seda amarrotada.
Minha filha Anne-Marie, sempre ela, insiste em me tirar
de vez da escuridão.
O senhor padre queria cumprimentá-la antes de ir
embora. Papai está dormindo agora...
10
Minha imagem embaçada no espelho. Depois de uma
noite tão longa. Limpar o espelho com a manga. Reencontrar
a juventude.
Em Sorel minhas tias cuidam de mim, trazem-me flores
e balas. Derramam torrentes de lágrimas.
15
Espero uma carta que jamais chegará.
A Menina es doente. Vejam, ela mal se agüenta
em pé.
Economizo minhas forças para esperar uma carta. Evito
mexer-me. Finjo viver. Aprendo pouco a pouco a morrer.
20
Espero uma carta. Meus gestos todos, a aparência, as
roupas, o penteado e os sapatos são de uma criatura viva. Mas
estou morta. Apenas a espera de uma certa carta me
bate nas veias.
Espero uma carta que será interceptada, não chegará
25
jamais, ou melhor, sim, mas muito mais tarde, anos depois,
tendo passado um longo tempo entre a papelada dos juízes,
tarde demais, tarde demais...
CXVIII
O tempo, o tempo, dura, se alonga, me envolve, me
arrasta com ele. O silêncio duplica o tempo, dá-lhe sua
30
medida impiedosa. Aprendo a ausência, dia após dia, noite
após noite. No quarto da Rua Augusta, vivo novamente como
uma prisioneira. Ninguém se arrisca à minha cabeceira, exceto
meu advogado, minha mãe e as três pequenas criaturas que
juraram me salvar ou perder-se comigo.
35
O Dr. Lafontaine debruça-se sobre o meu leito. Sua
cabeça e sua barbicha flutuam por sobre mim. Ele insiste
numa troca de cartas muito complicada entre os magistrados
do Canadá e dos Estados Unidos. A extradição do assassino
de meu marido ainda está pendente e meu processo adiado,
40
de sessão em sessão.
Tenho confiança nos poderes tutelares que me protegem
na sombra. Ajeito meus trajes de luto e peço que tragam meus
filhos. Passear com eles tranqüilamente em Sorel me traz o
prazer perverso de dar o troco ao mundo inteiro.
45
Enternecedora e pálida, aprendo meu papel de viúva.
Dois anos passam. Você está livre novamente, Aurelie.
A extradição do doutor Nelson nunca acontecerá.
Que devo esperar de um homem que me trata como a
uma morta? Ele mesmo morto e desaparecido há muito
50
tempo. Morrer uma vez, duas vezes, ao infinito até que
chegue a última vez. A vida não é outra coisa, finalmente.
Jerome Rolland insiste em ter sua mulher a seu lado.
Anne-Marie diz que o pai está perfeitamente curado desde
que o padre lhe deu a extrema-unção.
55
O estudante de medicina tem uma cabeleira ruiva, hir-
CXIX
suta, frisada, que se agita como uma flâmula. Olho entre meus
dedos juntos e vejo passar manchas de sol ameaçadoras.
Anne-Marie, minha filhinha, já vou descer. Me traz
um lenço dali, da gaveta.
60
Anne-Marie afasta-se um instante. A cabeleira do
estudante de medicina é uma labareda acima de minha cama.
O jovem fala em voz baixa.
Há quatro meses que estudo medicina com o doutor
Nelson. No dia 6 de fevereiro, no meio da noite, ele veio
65
acordar-me na casa da Sra. Leocadie Leprohon, onde moro.
Chamou-me ao seu consultório. Contou-me que se via
obrigado a abandonar a província para nunca mais voltar.
Encostou-se à parede. Com a cabeça entre as mãos. Pôs-se a
chorar, numa grande agitação de todos os membros, de todo o
70
corpo. Nunca vi, em minha vida, um homem num tal
desespero. Ele acrescentou: "It is that damned woman that has
ruined me".
O senhor está falando numa língua estrangeira, doutor
Nelson. Não, não conheço este homem! Sou Elisabeth
75
d'Aulnieres esposa em primeiras núpcias de Antoine Tassy, o
senhor assassinado de Kamouraska, esposa em segundas
núpcias de Jerome Rolland, tabelião em Quebec, de pai para
filho há X gerações. Sou inocente! Vejam como George Nelson
me acusa. Maldita. Me chamou de maldita. Se teu amor te
80
escandaliza, arranca-o de teu coração. Quem de nós traiu o
outro primeiro? Sou inocente. Que ele retorne ao seu país, de
onde jamais deveria ter saído. Meu amor fugiu, me
abandonando ao bel prazer da justiça. Que ele retorne então,
CXX
anátema, a seu país natal. Depois de treze anos de ausência. 85
De agora em diante banido em seu próprio país. Estranho em
toda parte para sempre.
Eu mesma estranha e possuída, fingindo pertencer ao
mundo dos vivos. Pérfida Elisabeth, você está rejeitando o seu
mais profundo consolo. Tarde demais, diz você, para viver na
90
paixão e na demência. O fogo está apagado. De nada adianta
revolver as brasas. Deveria ter-me decidido mais cedo. Partir
com George. Ser deportada com ele. Em plena maldição da
terra. Mais do que um país estranho. A terra inteira estranha.
O exílio perfeito. A solidão dos loucos. Veja como nos
95
apontam com o dedo. Fui eu que o empurrei para o outro
lado do mundo. (Retirei-me para a beira da estrada, enquanto
você... na enseada de Kamouraska...) O crime e a morte a
atravessar. Como uma fronteira. Ao retornar, o seu olhar
pousado em mim, irreconhecível para sempre. Aterrador.
100
Não, não conheço este homem! Descoberto, doutor Nelson. O
senhor foi descoberto. Estrangeiro. Assassino.
E se ele estivesse esperando uma carta minha, na prisão
de Burlington? Se eu tivesse certeza disso, morreria de
alegria! Ah, meu Deus, poder fugir para ele. Suplicar que
105
atrelem os cavalos e que me conduzam até a fronteira. Descer
da viatura. Encontrá-lo vivo. Atirar-me em seus braços. Dizer:
olha, sou eu, Elisabeth. Ouvi-lo responder: olha, sou eu,
George. Nós dois juntos por toda a vida. Este grito na
garganta.
110
Será que ele ainda está vivo? E se estivesse casado?
Não, não, eu não suportaria! Prefiro vê-lo morto
CXXI
estendido aos meus pés do que... Que nenhuma outra mulher
possa jamais...
Só me resta tornar-me tão ajuizada quanto eu fiz crer.
115
Fixar a máscara da inocência sobre os ossos de meu rosto.
Aceitar a inocência à guisa de revanche ou de punição. Fazer
o jogo cruel, representar a comédia extenuante, dia após dia.
Até que a semelhança perfeita cole em minha pele. O orgulho
é minha única alegria, passo a passo, ao longo de um caminho
120
amargo.
Jerome Rolland pediu a Menina em casamento. Que
rapaz gentil! Ele diz que saberá fazê-la feliz e levá-la a
esquecer...
Adelaide, Angelique, Luce-Gertrude e minha mãe não
125
cabem em si de contentamento.
Jerome Rolland, calmo e terno, faz pose, encostado a
uma pilha de travesseiros de fronhas limpas. No quarto, com
as janelas semicerradas, sente-se um odor de círios. Flórida
dobra uma toalha branca, com ares de sacristã. A Sra. Rolland
130
está de pálpebras inchadas.
Onde estava, Elisabeth? Mandei chamá-la várias
vezes.
Aquele pó que o doutor me deu me fez dormir
demais...
135
Jerome Rolland sorri vagamente. A Sra. Rolland
aproxima-se do leito do marido. Continuando a sorrir, o Sr.
Rolland confessa, em voz baixa, sua alegria e sua paz.
Recebi o sacramento da extrema-unção, Elisabeth. O
bom Deus perdoou-me de todos os pecados.
140
CXXII
A Sra. Rolland baixa os olhos. Enxuga uma lágrima
sobre a face.
Bruscamente o pesadelo a invade outra vez, sacode
Elisabeth d'Aulnieres numa tempestade. Sem que nada trans-
pareça no exterior. A esposa modelo segura a mão do marido
145
pousada sobre o lençol. E, no entanto... Num campo árido, de
baixo das pedras, desenterram uma mulher negra, viva,
originária de uma época remota e selvagem. Estranhamente
conservada. Largaram-na no vilarejo. Depois fizeram
barricadas, cada um em sua casa. Tão grande e profundo é o
150
medo que têm dessa mulher. Cada um diz para si mesmo
como a fome de viver dessa mulher, enterrada viva há tanto
tempo, deve ser feroz e intensa, acumulando-se sob a terra há
séculos! Nunca se viu, provavelmente, nada parecido. Quan-
do a mulher se apresenta na cidade, correndo e implorando, o
155
sino começa a tocar. Ela só encontra portas fechadas e o
deserto de terra batida com que se fazem as ruas. Não lhe
resta mais nada senão morrer de fome e de solidão.
Maldita Elisabeth! Mulher malévola!
Se você soubesse, Jerome, como estou com medo.
160
Acalme-se, Elisabeth, estou aqui.
A Sra. Rolland se agarra à mão lívida do marido, como a
um frágil fio que ainda a une à vida e ameaça romper-se a
qualquer momento. Seus olhos estão cheios de lágrimas.
Leontine Melançon (ou será Agathe, ou Flórida?)
165
murmura docemente.
Vejam como a madame ama o marido! Vejam como
ela chora!
<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by/3.0/"><img alt="Licença
Creative Commons" style="border-width:0"
src="http://i.creativecommons.org/l/by/3.0/88x31.png" /></a><br /><span
xmlns:dc="http://purl.org/dc/elements/1.1/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text"
property="dc:title" rel="dc:type">Erros em tradução do francês para o português: do
plano lingüístico ao plano discursivo</span> by <a
xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#" href="www.letras.ufrj.br/pgneolatinas"
property="cc:attributionName" rel="cc:attributionURL">Corrêa, Angela Maria da
Silva</a> is licensed under a <a rel="license"
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