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FILOSOFIA DO ESPIRITISMO
Quem olha a figura da nossa capa, tratar-se de uma espiral. Vai conferir e
descobre: são rculos concêntricos. Com “O Livro dos Espíritos”, igualmente, em
lugar de uma exaustiva e infinita espiral evolutiva, temos a finitude da Evolução
representada nos rculos criacionais.
Editora Sociedade Filosófica Luiz Caramaschi
Praça Arruda, 54 - Caixa Postal 44 - 18800-000 - Piraju - SP
Fone (14) 3351.1900
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PRECIO
Filosofia do Espiritismo é um livro que deveria ter vindo à luz em 1965,
época em que o autor escrevia na "Revista Internacional do Espiritismo", onde
estava publicando os "Serões Bíblicos". As publicações já iam bem adiantadas,
quando o autor, em seqüência de suas idéias, começou questionar "O Livro dos
Espíritos", encontrando a mais viva oposição por parte dos responsáveis pela
Revista, os quais por isso, as suspenderam. Nem por isso o autor parou de
escrever, e todo o material não publicado forma o conteúdo desta obra.
Este livro "Filosofia do Espiritismo" que ora editamos, com 20 anos de atraso,
trata de assunto de real importância para nossos dias. Nele o autor faz luz sobre
o problema mais intrincado de nossa época, que consiste no conflito existente entre
o Criacionismo e o Evolucionismo.
Ocorre que dois pensadores que são Santo Agostinho e Platão, os quais
apresentam suas mensagens em "O Livro dos Espíritos". Como as
doutrinas desses pensadores são antagônicas entre si, essa contradição quebrou
a unidade da filosofia espírita. Urgia que alguém, espírito ou encarnado, fizesse
a síntese, demonstrando que Santo Agostinho e Platão, estão com meia verdade
cada um, mas que elas se completam, como a tese e a antítese na unidade. Ora, faz
mais de cem anos que "O Livro dos Espíritos" veio à luz, sem que ninguém
se abalançasse a fazer esse trabalho que ora apresentamos.
Quem for estudioso da filosofia espírita encontrará, neste livro, o mais
completo esclarecimento dos pontos obscuros que existem no "O Livro dos
Espíritos". Essa crítica enriquece e reforça as bases da Doutrina, e, pela
amplitude de seu tratado, se recomenda não só aos espíritas, como a todos os
que anseiam por saber, e, consequentemente, por um mundo melhor.
A velha guarda por certo vai opor resistência às idéias novas. É o
misoneísmo que existe desde sempre. Contudo, pesar da resistência, o trabalho foi
executado com grande dedicação e amor, tendo em vista os vindouros que se
beneficiarão desta obra.
Quanto ao livro em si é escrito em forma de diálogo, tornando a leitura leve e
agradável, exibindo mais uma qualidade do autor, a de tornar simples e acessível
assuntos complexos.
OS EDITORES
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APRESENTAÇÃO
A obra Filosofia do Espiritismo é um desafio diante do desafio, porque nela
os atos do filósofo são as suas próprias palavras que fluem com clareza e
lógica no que tange às explicações da nese do mundo e do Criador. Estabelece
o mais profundo elo de ligação com as épocas mais mundanas, percorrendo os
caminhos da doutrina da Evolução.
A inovação da obra consiste em concatenar os elementos primordiais que
possibilitam a explicação do mundo, até eno tumultuado, austeros, pondo-os em
harmonia.
A obra cumpre-se talentosamente, pois abre novos horizontes no campo da
filosofia e torna acessível o mundo das idéias estimulando a percepção do nexo que
a tudo liga e dá sentido.
Esse raciocínio é perseguido implacavelmente com altivez olímpica, indo ao
encontro da mais nobre e mais sublime concepção mental do Cosmos, e
conseentemente da essência humana. A maestria do autor consiste exatamente
neste ponto, em desvendar a profundeza do estranho, das trevas e trazê-la à luz.
"A inspiração, disse Puchkin, é o estado de alma disposto a receber, da
maneira mais viva as impressões e as idéias e, portanto, a penetrar-lhes o
sentido".
Os antigos nos ensinaram que do Caos nasceu o Cosmos, e que o Caos é a
desordem e o Cosmos a ordem, a paz; todavia, o caminho que o intelecto
percorre para compreender a ligação entre a desordem e a ordem é árdua. E o
autor nos poupa, com esta obra, deste esfoo.
Odair Riberto Fallaci
Sociólogo
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CAPÍTULOS
I - Colocão do problema
II - As duas hipóteses
III - Discussão da Filosofia dos Espíritos
IV - Do quê são feitos os Espíritos ?
V - A substância dos Espíritos
VI - Os dois caminhos
VII - Incoencias da Filosofia Espírita
VIII - Espírito e Matéria surgiram de um elemento comum
IX - Universalidade da Teoria da Queda
X - Solão do mais antigo problema
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FILOSOFIA DO ESPIRITISMO
I -
COLOCAÇÃO DO PROBLEMA
Árago Pandagis reside na cidade de Cananéia, desde que se aposentou no
serviço público, como professor. Ali vive ele na sua contemplação metasica,
na sua visão totalitária, buscando o nexo que a tudo integra e a tudo dá sentido.
Estava ele, certo dia, a retecer sua rede sentado no terreiro de um barraco
que possui na foz do rio Mandira, quando lhe surgiu Chilon Aquilano que o
tirou para a discussão, para o confronto. Desde esse dia começaram as reuniões
em sua casa de Cananéia, que fica próxima ao mar de Cubatão.
Gosta o professor de recitar, de cor, o soneto de Mário Pederneira, e, ao
tempo em que o faz, vai mostrando, nas vizinhanças da casa, suas realizações.
Parece que o mestre tomou o canto poético por esquema do que executou:
"Vem conhecer amigo esta locanda,
Toda aromada de jardins e horta.
Um jasmineiro em flor sobre a varanda
E cantigas de mar chorando à porta".
"O mar fica fronteiro,
À nossa honesta e plácida vivenda.
Um mar de lenda
Apertado em eterna calmaria,
Na mais linda baia,
Na mais linda, talvez, do mundo inteiro".
* * *
Tanto que cai a noite, dona Cornélia, esposa de Árago, abre de par em par as
janelas da biblioteca para refrescar. Os estudiosos que pouco a pouco se vão
ajuntando, ao chegarem à casa, entram, familiarmente, para a sala da biblioteca, e
aguardam a entrada de Árago, se é que ele já não os espera, para os serões
costumeiros. Essas tertúlias principiaram a ter mais freqüentadores do que no
tempo dos "Serões Bíblicos". Chilon Aquilano foi o primeiro a procurar o
mestre; depois acercou-se dele o materialista Benedito Bruco ; pouco mais, e
veio Hierão Orsoni, espírita convicto e pescador de profissão. Finalmente,
passaram a ser freqüentadores Basílio Desiró, Bernardo Jasão, Alcino Licas,
Bento Caturi, Frederico Hening, além de outros visitantes fortuitos tais como
Antonio Varrão, Arlindo Helisiano, Virgílio Hurão, Romão Sileno, João
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Iguano, Maurício Scherba e outros.
Muitos destes estavam presentes na sala da biblioteca, conversando sobre temas
variados, quando, à entrada de Árago, ficaram silentes. Depois dos cumpri-
mentos habituais, dirigiu-se Árago a Chilon interrogando-o:
- Hoje terão inicio os nossos "Serões Teológicos"?
- Sim. Foi o que o Sr. nos prometeu, a exemplo de quando tratou dos "Serões
Bíblicos", em parte publicados na "Revista Internacional do Espiritismo".
- Todavia, esse assunto não me parece muito agradável, observou Benedito
Bruco.
- Por que? - tornou o mestre.
- Porque pressinto que iremos arrazoar sobre os dados da fé... tomando-os
como premissas dos raciocínios. Os mistérios revelados são o ponto de partida
para a teologia. Ora, se me põem o cabresto logo de início, vou dar onde
me levam. Diz Garcia Morente, repetindo São Tomás: "visto que entre a fé
do teólogo e a razão do filósofo não pode haver discrepância, a filosofia
deverá ter por axioma certo que toda suposta demonstração racional da
falsidade de um artigo de fé, há de ser necessariamente falsa e sofistica".
Eis,
aí está, uma canoa furada em que não entro! "A verdade racional e a verdade
da fé não podem contradizer-se", diz Morente; e prossegue ele: "ambos os sa-
beres são verdades e não podem contradizer-se, porque os princípios do
raciocínio foram postos em nós por Deus, que é o mesmo autor da revelação
recebida pela fé"
- Ora, essa! Se o autor dos princípios do raciocínio é o mesmo autor da
revelação, e, por isto, ambos não podem contradizer-se, se a razão se opõe à fé,
tanto pode estar errada a razão, como pode estar errada a fé. E de tantas fés
antigas e modernas, qual será a verdadeira? Não é certo que todos os povos
de todos os tempos e de todos os lugares dizem ter recebido suas revelações de
Deus?
- Am disto, prosseguiu Bruco, isso de que Deus pôs no homem a razão, ou
fê-lo racional desde sempre, é próprio da teoria blico-criacionista que dominou
a filosofia até há bem pouco tempo. Por esta razão põe-nos em alerta Ortega
ao escrever: "urge que nos oponhamos radicalmente a toda tradição filosófica
e nos resolvamos a negar que o pensamento, em qualquer sentido suficiente do
vocábulo, tenha sido dado ao homem de uma vez para sempre, de forma que este o
encontre, sem mais, à sua disposição, como uma faculdade ou potência perfeita,
pronta a ser usada e posta em exercício, como ao pássaro foi dado o vôo e ao
peixe, a natação".
Mais:
- "Longe de ter sido presenteado o pensamento ao homem, a verdade é que,
uma verdade que agora não possa arrazoar suficientemente, mas somente enunciar,
a verdade é que o pensamento se vem fazendo, fabricando pouco a pouco graças a
uma disciplina, a um cultivo ou cultura, a um esfoo milenário, de muitos
milênios, sem que se tenha ainda conseguido, nem muito menos, terminar essa
elaborão".
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- Muito bem, prezado Bruco, tornou Árago; essa teologia que São Tomás
chamava de theologia fidei, e que parte dos pontos de fé, dessa não trataremos;
iremos cuidar do que São Tomás chama de teologia natural, e que é o mesmo
que filosofia. O nosso estudo versará sobre a teologia natural, alcançável pelas
vias da razão, à qual Leibniz denominava teodicéia, e que, etimologicamente,
significa justiça de Deus.
E depois de meditar um pouco, exclamou o mestre:
- Coerente com o que acabo de dizer, analisemos a frase: "Primum vivere,
deinde philosophari! Que quer dizer isto, Chilon?
- Quer dizer que primeiro precisamos ganhar a vida, para depois entregar-
nos a especulações filosóficas.
- É e não é, acudiu o professor. É esse o sentido que sempre se deu a essa
frase latina. Mas essa é a filosofia dos não filósofos. Quem passou a vida
cuidando de arranjar-se, de amontoar bens, para filosofar depois, fica a
amontoar também haveres depois. E o filósofo que o é, por natureza, não
liga a ganhar dinheiro, a amontoar bens, para filosofar depois. Uns buscam ri-
quezas, outros, o poder, outros, a sabedoria; no fim da vida, cada um fica com o
que procurou adquirir. Mas não é esse o sentido que quero dar à frase: quero
dizer que primeiro precisamos viver boa parte da nossa vida, para ter
experiência, para só depois poder filosofar. É por isso que o fisofo,
necessariamente, terá de ser um homem maduro, não tanto, no sentido
cronológico, mas no psíquico e mental. É preciso madureza intelectual e
espiritual. Vocês todos já ouviram sobre gênios precoces das matemáticas,
como Gauss, e da música, como Mozart. Ninguém, todavia, ouviu falar de
filósofos precoces. Conquanto Leibniz fosse chamado "o velho" pelos seus
colegas de estudos, produziu coisas grandes na maturidade de seus anos e na
velhice. Por que? Porque, "primum vivere, deinde philosophari! É preciso
"vivência", como diz Garcia Morente. Ninguém fará filosofia sem primeiro
ter vivido em profundidade e extensão. Esta experiência vital enriquece a
mente de intuições e de conceitos sem os quais impossível será o pensar
filosófico.
A estas últimas palavras de Árago, interveio, de novo, Benedito Bruco:
- Acho que as lidas, tribulações, vicissitudes e experiências da vida
endurecem o homem dando-lhe constância e firmeza. Logo, o homem vivido,
enrijado pela experiência, deixa de ser plástico e moldável. "Ninguém gosta
de reformar suas idéias depois dos quarenta", diz Fritz Kahn. Sua visão da
verdade, portanto, fica deformada pelas vivências que teve. Schopenhauer,
porque tinha mãe inteligente, que até era escritora, acabou cuidando que
herdamos da mãe a inteligência, e do pai, a força e o caráter. Como foi des-
prezado desde a infância, ficou pessimista, e pôde achar consolo no budismo
niilista. Eis no que foram dar as suas vivências.
- Está certo, atalhou o mestre. E com isso você me força a declarar outra
qualidade principal do homem filósofo. É preciso vivência, e, juntamente,
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puerilidade.
- Absurdo! acudiu Bruco; como se pode ser infantil e experiente, ao mesmo
tempo?
- Pois a criança é curiosa, interessa-se por tudo, e, conservando sempre a alma
aberta, não se ancilosa na opinião irredutível. É vivaz, perscrutadora, admira-se
de tudo, não se fanatiza, embora seja sugestionável. Este estado de
plasticidade mental, esta capacidade de problematizar tudo, esta admiração ou
surpresa que o homem feito, enrijado, encanecido não possui mais, é próprio da
criança. Cristo chama aos homens definidos, aos que têm opinião formada sobre
tudo, de odres velhos nos quais não se pode pôr vinho novo. "Quem não se tornar
como meninos, sentencia Cristo, não entrará no reino dos céus". Igualmente,
aquele que não puder manter-se pueril, não será filósofo. Como diz Morente,
"aquele para quem tudo resulta muito natural, para quem tudo resulta muito
cil de entender, para quem tudo resulta muito óbvio, nunca poderá ser
filósofo". Esta é a causa por que "Platão preferia tratar com jovens a tratar
com velhos. Sócrates, o mestre de Platão, andava entre a mocidade de Atenas,
entre as crianças e as mulheres".
E voltando-se o professor para Benedito Bruco, interrogou:
- Está satisfeita sua crítica, com estas considerações?
- Não! Não está. Porque os jovens e as mulheres são sugestionáveis,
guiando-se pelo princípio da autoridade ou da fé, enquanto acho que os
filósofos devem ser persuasíveis. E aí está uma qualidade de velhos que não se
rendem a não ser às persuasões. A idade confere ao homem o senso crítico, a
exigência de rigor. Ninguém, jamais, viu, nos palcos, os hipnotizadores
operarem com velhos, visto que, de ordinário, são resistentes à hipnose, por causa
da auto-análise.
- Você discorreu com acerto, meu caro Bruco, tornou Árago. Afora uma
certa maturidade obtida pelas experiências da vida, vem, depois, a novidade, o
assombro, o interesse, o entusiasmo, próprio das criaas, por uma parte, e, por
outra, a penetração lógica, o espírito crítico e o rigorismo, próprio dos
velhos, de um modo geral. Persuasíveis, e não sugestionáveis, como os velhos;
entusiastas e admirados com tudo, como as crianças. À toa não é que a coruja de
Minerva, a deusa que personificava o poder do pensamento, é o símbolo da
filosofia: essa ave tem o olhar deslumbrado.
- Agora estou contente, replicou Benedito Bruco.
- É assim que, prosseguiu Árago, todo pensador deve ter presente a distinção
entre opinião e conhecimento. Platão chamava doxa à opinião, donde vem que
para doxa, ou paradoxo é o que se opõe à opinião. Esta oposição à opinião é o
que Platão chamava de episme que quer dizer ciência. E a dialética é a arte
de jogar com as epistémes que são conceitos e juízos. Por isto, todos os
filósofos da segunda jornada filosófica, que são os da pós-Renascença, a
começar por Descartes, iniciam seus estudos pela epistemologia que é a teoria do
conhecimento.
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- Não seria bom também começarmos por aqui? - acudiu Chilon Aquilano.
- Poderia ser, se não houvesse coisa mais importante, mais premente, a ser
estudada antes da epistemologia.
- E qual é? - inquiriu Chilon.
- A historicidade da filosofia. Todo o filósofo tem de refazer o caminho
da filosofia desde o início, visto que nenhum saber é tão necessariamente
histórico como a filosofia. Filosofia é problematização no tempo; história da
filosofia, pois, é a história dessa problematização. Ontologia e metafísica
através dos tempos, eis o que é a filosofia. Por causa disso, a filosofia é
diálogo, polêmica, pois tem necessidade, todo filósofo, de discutir suas
proposições para que seu pensamento se complete pela participação. O repto que
recebe dos a quem fala é o estímulo indispensável a fazer sua mente
trabalhar. A análise, a dialética e o diálogo são necessários ao desenvolvimento
da filosofia. Assim foi na escola de Socrates, assim na de Platão, assim na de
Aristóteles. A filosofia de Platão foi dada nesta forma de diálogo. A história da
filosofia é a de uma grande polêmica no tempo que vai já para vinte e cinco
séculos, em que os homens- inteligentes da Terra das várias épocas vieram expor
seus pontos de vistas. E nós também iremos ver, de modo rápido, perfunctório, o
que já se fez neste sentido, ao tempo em que iremos expor as nossas conclues.
E após meditar um pouco, tocou por diante, o mestre:
- A filosofia nasceu na Grécia lá pelos VI e V séculos a. C., em virtude
de os gregos haverem perdido sua nos deuses. Decadente a religião, os gregos
entraram numa época de liberdade, visto que esta existe no começo das ações.
Desencadeadas estas, livremente, o homem se vê preso à cadeia de conseqüências que
aquelas ações geram, criando destarte, um determinismo do qual impossível
será fugir. Ora bem: os gregos viveram condicionados pelos princípios
religiosos, que eram a sua verdade. Posta em dúvida, pelos sofistas e pelos
pticos, a verdade que os guiara, os gregos entraram numa época caótica em que
cada um se pós a formular a sua "verdade". É a isto que chamo época da
liberdade. Exatamente como aconteceu na Grécia, ocorreu no fim da Idade
Média, na época do Renascimento. Aqui também se duvidou do estabelecido,
entrando o homem em liberdade, e, com esta, principiou uma nova era na história da
filosofia. O chamado Realismo grego cedeu lugar à nova forma mental
inaugurada por Descartes a que se deu o nome de Idealismo ou Filosofia
Moderna.
E encarando o professor os presentes, como a lhes chamar a ateão,
prosseguiu:
- E a hora presente é a de nova liberdade, impondo-se, como tem de ser,
uma nova jornada filosófica igual a primeira, a grega, nascida da polêmica entre
Heráclito e Parmênides, e igual a segunda, nascida de Descartes, e continuada,
até sua exaustão, pelos filósofos pós-kantianos Fichte, Schelling e Hegel. Com
Augusto Comte a filosofia deixou de o ser, por certo tempo, e com Herbert
Spencer, esbarrou ela, pela primeira vez, com os fatos da Evolução,
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colocando-se aqui o problema ainda não solucionado do nosso tempo. Mas
Spencer, o sendo metafísico, não relacionou a Evolução ao problema do
Ser. E a chave da abóbada de seu edifício, em vez de buscá-la na Doutrina
da Evolução, foi achá-la nos "primeiros principios" que não tinham nada a
ver com a matéria que desenvolvia. Quem fez o trabalho de conclusão moral
foi Nietzsche, dando como resultado a moral da força, pelo que "ser justo é
ser forte".
E após pequena pausa, continuou:
- Com a publicação de "A Origem das Espécies", em 1859, Darwin
aplicou o maior e mais formidável repto filosófico de todos os tempos,
obrigando uma reformulação total da filosofia. Por causa disto, o mundo
ficou dividido em místicos, de uma parte, e materialistas, de outra. A idéia
da Evolução, por isto, em descendo da generalidade, mostra-se presente nas con-
versações corriqueiras, em que os participantes, às vezes, nem de leve suspeitam
que se estão referindo à Doutrina da Evolução. O certo é que cada dia mais os
templos de todas as seitas cristãs-criacionistas se esvaziam.
E fazendo uma pausa para esticar as pernas, procurando melhor cômodo na
cadeira, continuou o professor:
- Pouco há, em Registro, um médico ortopedista fez uma palestra sobre
"lombalgia". Principiando ele a falar, disse que a lombalgia é um problema de
sobrecarga da coluna lombar, e que se traduz por "dores nas costas". E tudo
começou quando o homem se pôs na posição ereta. Depois que o médico
discorreu com proficiência sobre o mais importante da matéria, habilmente
adaptada a leigos, chegou o momento em que ele permitiu aos presentes fazerem
perguntas. Da minha parte coloquei o seguinte:
- O senhor falou, em começando sua dissertação sobre lombalgia, que ela teve
causa no fato de o homem ancestral ter-se posto sobre as patas traseiras. Isto nos
leva à conclusão de que o senhor se está referindo à Doutrina da Evolução? Um
aceno de cabeça, afirmativo, foi a resposta do médico. Então, prossegui:
- Ora, se a posição quadrúpede é a ideal para se não sofrer de lombalgia, por
causa do apoio da coluna, em quatro pontos (os pés), e de ela ficar na horizontal, e
não em dois, e na vertical, como é que os criacionistas explicam o fato de o
Senhor Bom Deus haver feito o homem cheio dos sofrimentos próprios da
posição ereta?
- O médico não soube responder, porque o assunto fugia à sua especialidade,
continuou Árago. Contudo, a pergunta fica de pé: todas as complicações que a
posição ereta produz, e são muitas, não se explicam pelo pecado de Adão;
explicam-se pelo fato de o esquema do quadpede, ótimo para os quadrúpedes,
o servir para o bípede homem. E se Deus fez o homem como uma criação
especial, e à parte, como foi empregar o mesmo esquema da vaca, do cão e do
porco? Por que não seguiu, por exemplo, o esquema dos insetos, o qual diz Fritz
Kahn, é superior ao dos vertebrados? Imaginemos, diz ele, se o homem
fosse parecido com uma armadura medieval, e os músculos atuassem por dentro
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desse esqueleto externo? Para que, neste caso, se precisaria de coluna cervical e
lombar, com suas respectivas complicões dolorosas? Por que usou Deus para o
homem, ser especial, segundo o Criacionismo, o mesmo esquema dos
quadrúpedes? Depois de meditar um pouco, concluiu o pensador:
- Não se trata de pretender ensinar a Deus como agir, nem de ditar-lhe
normas, como se desabafou irracional e agressivamente, outro dia, Hierão
Orsoni! Trata-se, isso sim, de que o homem não é obra especial de Deus de
maneira nenhuma, e tanto sua posição ereta, como sua razão, são conquistas suas, do
homem. E puxada essa ponta da meada, as coisas não param aí, para os
filósofos... aos quais cumpre resolver os problemas que a Doutrina da
Evolução colocou; por exemplo: se a evolução veio do caos, Deus criou o caos; e
como o caos é a negação do Ser, ou Deus criou a sua negação, ou afirmou-se no que
é: como negação também. Mas isto iremos ver a seu tempo.
Depois de Darwin, ou de "A Origem das Espécies", não houve mais
filosofia, continuou Árago. Refiro-me a filosofia sistemática, isto é, que nos
mostrasse tudo em globo unitário. Houve a de Spencer, mas sem conclusão no
plano moral; e as conclusões dela, tiradas por Nietzsche, foram desastrosas para
o mundo. Como o refere Ortega, "desde 1880 acontece que o homem
ocidental não tem uma filosofia vigente. A última foi o positivismo. Desde
então este ou aquele homem, este ou aquele mínimo grupo social tem
filosofia. O certo é que desde 1800 a filosofia vai deixando progressivamente de
ser um componente da cultura geral e portanto, um fator histórico presente. Ora,
isto jamais aconteceu desde que a Europa existe".
- Discordo disso! - exclamou Benedito Bruco. Como pode Ortega sem mais
nem menos subestimar o esforço de todos os que estão elaborando a chamada fi-
losofia contemporânea? Acaso o próprio Ortega não é filósofo? e, pois, como
assim, sem mais aquela, ele a desconsidera?
Voltando-se para Bruco, retrucou-lhe o mestre:
- Ora, prezado Bruco!, Ortega se refere a filosofias sistemáticas. É certo que
o pensamento novo, em filosofia, é muito agudo, muito claro, muito convincente
mas não forma sistema nenhum sobre o qual apóie a moral e o social. "Sobre isso
devia meditar incansavelmente Dilthey quando baralhava sem descanso as
filosofias e concluía, melancolicamente, que não pode haver outras senão as que
foram".
Ora, como diz Ortega, "imobilizar-se no passado é o mesmo que mor-
rer".
- Logo, estamos morrendo? - interveio Bruco.
- Estamos. Nossa civilização está morrendo. Esta morte pouco a pouco vai
invadindo todos os setores do corpo do social.
- Como o senhor prova isso? - tornou Bruco.
- Provo-o com os fatos do nosso contorno social. O esvaziamento dos
templos; os velhos tabus que se desmantelam, com tornar-se a sociedade cada vez
mais transigente. dezenas de grupos terroristas espalhados pelo mundo,
defendendo os mais variados princípios. O índice de criminalidade cresce cada dia
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mais, ao lado da corrupção de que nos dão conta os jornais diários. Os moços
rebelam-se e cantam na televisão e no rádio suas músicas de protesto. Sob a
rubrica de realismo, o que se nas revistas e nos livros é obscenidade crua. A
censura cinematogfica e televisionada afrouxou-se, permitindo a exploração
do que outrora era considerado pornografia. Os costumes e a moda tornaram-se
livres, ousados, possibilitando todas as extravancias próprias duma sociedade
do vale-tudo. "Estamos vivendo numa sociedade babilônica", diz o historiador
e jornalista Max Lerner. "Dá-se ênfase aos sentidos e à liberão da
sensualidade. Os velhos códigos foram todos revogados"
)
. Os moços de hoje,
contumazes em sua rebeldia, tacham os da velha geração de quadrados; afirmam
que essa velha geração fracassou, visto que legaram a eles um mundo antes pior que
melhor. No entanto, eles não se preocupam em criar padrões novos nem morais
nem sociais. A missão vandálica dos modernos é pôr abaixo todos os valores. A
mediocridade e a extravagância de puros homens massas é ovacionada nos
palcos de televisão, onde os valores nulos, menos que nulos, negativos, fazem às
vezes de gênios da música e do teatro, acontecendo o mesmo com a literatura
e a pintura. Estamos vivendo o Apocalipse.
Dito isto, passou o pensador a remexer, numa pasta, uns recortes de jornais
velhos, depois do que continuou
- Para vocês terem uma idéia de para onde caminha o mundo, leiam o
jornal "Folha de S. Paulo", de 9 de maio de 1968. Aqui está o recorte: trata-se
do relato do casamento do pintor Waldomiro de Deus que se casou de mini-
saia, comendo banana, com Miamaria - Maria Aparecida -, ao som da música de
Caetano Veloso. O casamento foi celebrado por um outro pintor - Piero Luisi.
E concluiu o filósofo:
- Mas tudo está certo: para que se possa construir o novo, alguém deve impor-se
o ingrato trabalho de destruir o velho. O terreno tem que ser alimpado e prepa-
rado para novo plantio: eis a função social da mocidade moderna. Pensando neste
sentido, poder-se-ia dizer: quanto pior, melhor... Por enquanto, ainda, todos se
mostram muito acomodados. Chegará, porém, o momento do desespero em que
todos quererão saber como solucionar o problema. Problema que é o mesmo que o
repto de Toynbee ou desafio cuja resposta ou réplica consiste em a filosofia
digerir e incorporar numa síntese a Doutrina da Evolução. Nenhuma filosofia
pôde haver-se com o evolucionismo até hoje, exceto a de Spencer que não chega
a ser filosofia ou metafísica, não passando ela de aplicação do
evolucionismo à sociologia. Assim mesmo, não concluiu no plano moral,
deixando este trabalho para Nietzsche, o que resultou na moral anticris do forte e
do astuto.
A estas asseverações de Árago, obtemperou Hierão Orsoni:
- O senhor disse que nenhuma filosofia pôde haver-se com o evolucionismo.
No entanto, no frontiscio de "O Livro dos Espíritos" de Allan Kardec, onde
está escrito: "Filosofia Espiritualista", está tratado o problema da Evolução.
O que o senhor nos diz a isso?
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Árago pôs-se a meditar, tendo o olhar perdido na distância, dando visos de
grande elucubração em que concatenava todo um corpo de idéias. Depois, pegando
da estante "O Principiante Espírita" de Allan Kardec, para tê-lo à mão, da Editora e
Encadernadora Lumen Ltda., que traz uma biografia do Codificador do Espi-
ritismo, rompeu o silêncio reinante na sala com estas palavras:
- Denizard Hippolyte Léon Rivail, nascido, em Lião, em 3 de outubro de 1804,
embora se tivesse diplomado em medicina., ocupou-se, sob este nome de Denizard
Rivail, de educação, tendo sido discípulo ardoroso de Pestalozzi. Nesta fase de
sua vida exerceu o ofício de contador para três firmas, e ainda escreveu
gramática, aritmética e também sobre estudos pedagógicos, além de traduzir obras
inglesas e alemãs. Ainda nesse tempo organizou cursos de física, de química e de
anatomia comparada, tudo, como se pode ler nesta obra "O Principiante
Espírita". Em lugar nenhum, porém, está escrito que Denizard Rivail se tivesse
ocupado de filosofia. Embora seu biógrafo, Henri Sausse, considere Kardec como
aquele "que fundou a filosofia espírita e o chame mais adiante de sábio
filósofo clarividente e profundo, a filosofia de "O Livro dos Espíritos
vem dos Espíritos, e, não de Kardec. Pelo que se lê em sua biografia, ele é
mais cientista e educador que filósofo.
- Na segunda fase de sua vida, continuou Árago, Denizard Rivail adotou o
nome de Allan Kardec, porque, como lhe relatara seu Esrito protetor, ele
tivera esse nome no tempo em que um e outro viveram nas Gálias, como druidas.
"O Livro dos Espíritos" veio à luz em 18 de abril de 1857, dois anos, portanto,
antes de Darwin publicar sua obra "A Origem das Escies". Embora, no tempo
de Kardec a Teoria da Evolução fosse uma idéia que pairava no ar, estava ainda
muito crua, para que o Espiritismo pudesse fazer a síntese entre ela e o
Criacionismo, como, de fato, o o fez.
- Afora este dado, prosseguiu o mestre, outro no “Prolemenos” de “O
Livro dos Espíritos onde estão assinalados os Espíritos que deram os ensinamentos
a Kardec. Ora, considerando que a morte não significa renovação radical para
ninguém, menos ainda a entrada do desencarnado para o reino da sabedoria e da
virtude, podemos tirar disto duas conclusões: a primeira é que os Espíritos, mesmo
os da mais alta hierarquia, vivem em mundos contingentes e cercados de relativi-
dade, não se lhes fechando, jamais, nunca, seus campos de perquirições. A
segunda é que o desenvolvimento, seja no que for, é muito lento: o que
costumamos chamar talento e gênio não são dons nem dádivas indébitas, gratuitas,
mas conquistas anteriores, doutras existências, duramente merecidas. O corolário
final de tudo isto é que, pelo conhecimento da doutrina que o Espírito esposava
quando estivera encarnado, podemos identificar-lhe a pessoa, quando ele,
agora, desencarnado, respostas a Kardec. Assim Kardec pergunta, e o
Espírito responde. Só que, ora esse Espírito é São João Evangelista, ora é
Santo Agostinho, ora é Platão. Sócrates, por exemplo, é filósofo sem
doutrina, e sua pregação era moralista semelhante a de Confúcio. Os demais
relacionados, exceto "O Espírito da Verdade" que não é conhecido, não foram
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filósofos. São Vicente de Paulo era stico; São Luiz ou Luiz IX, rei de
Franca, no século XIII, era político, embora muito piedoso; Fénelon,
prelado e literato francês, viveu entre 1651 a 1715; Franklin, foi cientista,
descobridor do pára-raios e potico; Swedenborg, embora havido como filósofo e
stico, o deixou doutrina conhecida; seus escritos referem-se a visões que
tinha do mundo espiritual com o qual, segundo dizia, mantinha relações.
Quanto a São João Evangelista, embora místico, embora não filósofo, tratou
da tomada de ser inicial, cuja intuição funciona como postulado. E dessa tomada
de ser inicial, como se fora uma espécie de "cogito" cartesiano, podemos
deduzir toda uma filosofia. Ora, nem São João Evangelista, nem Platão
afirmou, como o fez Santo Agostinho, que o mundo foi feito, em primeira
instância, a partir do nada ou do caos. Suas doutrinas, por isto, são contraditórias,
e essa contradição está dentro de "O Livro dos Espíritos". De maneira que,
como esse livro colocou as duas doutrinas antanicas, mas não resolveu o
antagonismo pela síntese entre Criacionismo e Evolucionismo, o problema que a
Doutrina da Evolução suscitou no mundo ficou em pé. Isso é o que havemos de
ver, querendo Deus, só queo pode ser hoje.
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II - AS DUAS HIPÓTESES
O ambiente de Cananéia e arredores é propício aos pensadores. O burburinho
humano das grandes cidades fica distante e sem significação para quem tem
pela frente o oceano que nos dá a imagem do infinito. Chilon passava o seu
tempo junto de Árago, exceto quando este ficava dias e dias a escrever em sua
biblioteca da casa de Cananéia, ou no telheiro da foz do rio Mandira. Esgotada a
verve literária, voltava o mestre ao ramerrão de ler e pescar, repartindo o
tempo entre esses dois quefazeres: geralmente, lia pela man, e, à tarde, pescava.
Chilon, sempre que podia, acompanhava Árago nas suas pescarias, e enquanto
esperava viesse o peixe à isca, contemplando o mar, ao longe, perdia-se em con-
templações metafísicas. Ficava ouvindo o bramido das águas cujas vagas se
quebravam nas praias, ou nalgum rochedo próximo. Alguns pássaros faziam a
melodia para essa harmonia de fundo. Os olhos viam o panorama aberto, onde
oceano e u se uniam à disncia, como se o céu representasse a imagem do Deus
transcendente, diáfano, azul e luminoso, a dar-se naquela grande esfera líquida,
cuja curvatura só se via com os olhos da imaginação...
E dentro do mar a vida pululava, sendo a luta ali desapiedada. neste
ponto o quadro se mudava, comando Chilon a enxergar a fealdade dentro da
Beleza, a desarmonia dentro da Harmonia, a desordem dentro da Ordem, o mal e a
dor, dentro da Alegria de viver e do Bem. Duas visões da realidade, Chilon
tinha, ali, ambas portentosas, ambas certas, e, contudo, polarmente opostas. Se
olhava o geral, o todo, o distante, via a Ordem, a Harmonia, o Bem, o Belo;
se, contudo, concentrava a atenção no rumo do particular, do pormenor, já
enxergava a luta sem compaixão, desordem, desarmonia, fealdade, mal. Bem
certo andara Schopenhauer para perguntar: "Então o mundo é uma lanterna
mágica? Certamente que o espetáculo é esplendido à vista, mas representar aí um
papel, é outra coisa".
Relembrando a doutrina da queda das almas do topos uranos planico,
semelhante à da subvero dos espíritos segundo a Bíblia, grandes religiões e
mitos, esposada por Árago, sentia que ali mesmo estava a sua comprovação. A
luta e a dor são para apurar a inteligência que domina o caos, criando a ordem,
a harmonia, a integrão, primeiro pela foa disciplinadora, depois pela
compreensão dos fins, e, finalmente, pelo amor, por esse cimento único deveras
poderoso, que espontaneamente integra sem fazer violência as partes.
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Via, então, que Deus criara as almas amorosas, e, por isto, integradas,bias
e felizes, no topos uranos ou mundo celeste, para que tais filhas saíssem ao Pai.
Mas algumas, em perdendo o amor..., este por sua própria natureza livre, se
quiseram livremente partir no rumo do desconhecido o qual, positivamente, se
evidenciou ser o caos ou o nada formal. Quiseram autonomia, e autônomo (autos,
próprio; e nomos, lei) quer dizer que o ser se fez a si mesmo lei. Este, o livre-
artrio no qual se fragmentou a liberdade. A liberdade é estar conforme com
a lei e dela gozar; o livre-arbítrio é fazer-se a si mesmo a lei, contra quaisquer
outras leis; o resultado desta não anuência à lei é sofrer o peso desta, correndo
o risco de até ser esmagado por ela. Foi o que aconteceu aos espíritos rebeldes. E
dizia o filho ao Pai, na imaginação de Chilon:
- Já não quero viver mais em tua casa, obediente à ordem tua, à tua Lei. Quero-
me dono de mim mesmo, para correr mundo, e amar à minha maneira. Dá-me,
pois, a parte da fazenda que me toca a mim, por direito de filho. Não mo
poderás impedir que me vá, porque me fizeste livre para estar conforme com
teu atributo do amor. Visto que não se pode forçadamente amar, e não te
quero mais, dá-me o que é meu, que me vou em busca doutros amores. Por esta
causa não quero a união do comum e nosso, mas, a divisão de que saia o particular e
meu, do qual posso dispor a meu talante, livre da sujeição que todo o co-
letivo impõe.
E o Pai repartiu com os filhos a fazenda (Luc 15, 12).
Chilon estava absorto nestes cismares, quando o chamou à realidade presente
o grito de Árago que o convidava a ir embora... por já ser tarde.
* * *
Reunidos todos na biblioteca esperavam, numa gostosa expectativa, pela
entrada de Árago que se demorava, dentro, ocupado em fazer algumas
recomendações à dona Cornélia. Pouco mais, e eis Árago junto dos presentes,
cumprimentando-os, prazerosamente. Após sentar-se em sua cadeira, voltou-se
para Benedito Bruco, dizendo-lhe:
- Embora Hierão gostasse que entrássemos logo no estudo de "O Livro dos
Espíritos", eu apreciaria discutir as proposições que você me fez muito antes dele
e hoje mesmo mas relembrou. Vejamos como você as expõe.
- A primeira dificuldade é aquela dos que dizem: por que Deus não criou o
mundo perfeito e sem males? Mas não me venha o senhor dizer, como o fez
Huberto Rohden, ao afirmar "que o objeto dum ato criador de Deus é sempre
algo, e o o nada, nem Tudo. Ora, qualquer espécie de algo, por maior que
seja, é finito, limitado, imperfeito".
-
Você está certo, caro Bruco. Essa doutrina de Huberto Rohden foi,
primeiro, proposta por Leibniz. Se Deus só pode criar coisas limitadas,
finitas, imperfeitas, segue-se que perfeito só pode ser o infinito, o ilimitado.
Ora, Deus não pode ter-se criado a si mesmo, porque qualquer criação tem
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começo e fim, e de Deus se postula que não teve começo nem terá fim;
portanto, como o pode criar o Tudo que é si mesmo, nem o nada, que isso não é
criar, sobram-lhe a ele as coisas como únicas possíveis de serem criadas. Assim é
que perfeito é o Tudo, o infinito. Por este modo de definir (perfeito é o
infinito), salta, inexoravelmente, a conseqüência de que Deus não pode
fazer obra nenhuma perfeita, visto como só pode criar um "algo", no dizer de
Leibniz e Rohden, e por maior que seja esse "algo", é imperfeito, porque
limitado. Pois então, se Deus é incapaz de executar obra perfeita, em que
reside sua perfeição? E se nem o Todo-poderoso Deus pode executar obra
perfeita, quem a executaria? Se é impossível uma obra perfeita, até mesmo
para Deus, que veio fazer esse termo em nossos vocaburios?
- Mas, perfeito, atalhou Romão Sileno, já ficou explícito no enunciado de
Huberto Rohden, é o infinito. Deus, logo, não é perfeito pelo que fez, senão pelo
que é. É infinito, e, só por isto, perfeito.
- Por conseguinte, concluiu Árago, as palavras perfeito e infinito se
equivalem, donde vem que seres mais perfeitos que outros, sendo mais
perfeitos os que acercam do infinito, como o universo, e menos perfeitos aqueles
que estão mais próximos do nada, como os elétrons, ou as partículas nucleares dos
átomos. É assim, Sileno?
- Essa conclusão se impõe, necessariamente, do que afirma Rohden.
- Quer dizer, então, que a pedra-de-toque com que se de avaliar a perfeição
é a infinitude, a grandeza espacial, o volume, o tamanho, visto como infinito se
refere ao espaço do mesmo modo que eternidade, ao tempo?
- Impossível será fugir a essa conseqüência, tornou Sileno.
Logo, inferiu o mestre, a Terra é mais perfeita que um homem, o sistema
planetário solar o é mais que a Terra, e galáxias, mais perfeitas que os sistemas
estelares. Ocorre, porém, que o homem, com sua inteligência, compreende a Terra,
o Sol e as estrelas, e não, vice-versa.
Fazendo ar de hesitação ante o inesperado da conseqüência, Romão Sileno
tentou outro caminho, dizendo:
Então, de certo, não de ser em sentido espacial que se deve entender o
infinito. Tem que ser em sentido conceptual, donde se segue, por exemplo, que
um gênio, compreendendo o universo, é maior que este. Compreender é abarcar, é
conter, concepcionalmente. O mesmo Deus, se dermos que é imaterial, não pode
ser espacial, e o ser infinito dele não se refere a espaço, e sim, a concepção. Deste
modo, o grande, porém, inconsciente, é pequeno. Perfeita seria, então, a mente
capaz de compreender tudo; seria a sabedoria infinita, e essa pode ser achada
em Deus. Só esta é a perfeição absoluta, e todas as demais, por maiores que
sejam, relativas, isto é, imperfeitas.
- Este modo de conceber a perfeição, Sileno, não me desagradaria, se ele não
implicasse com a idéia de todo-poderoso. Neste caso, o mal e a dor que derivam da
ignorância, seriam o resultado final da impossibilidade ou impotência divina em
fazer o grande, o "Tudo". Não podendo (então como é todo-poderoso?); não po-
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dendo fazer Deus o grande, o sábio, fez o miserável, o anão, o ignorante,
decorrendo disto, o sofrimento, a dor. Com isto, retornamos ao argumento
anterior, com outras palavras: se Deus não tem como criar o sábio, em que reside,
eno, a sua sabedoria?, se não pode criar o perfeito, em que se cifra a sua
perfeição?
Neste ponto da discussão interveio Chilon Aquilano, propondo outra
solução.
Todavia, se concebermos perfeição em termos de funcionalidade,
qualquer crião divina é perfeita, porque possui, em si, infusa, tanta sabedoria
quanto o exige a função que exerce no seio do sistema. As células do fígado, do
ncreas, as neurônicas o sábias, uma vez que desempenham suas tarefas
complicadíssimas sem errar. Nisto reside suas perfeições; e saber mais seria saber
demais, visto como seria serem sábias para nada, isto é, fora do que têm a fazer.
- É como penso, concordou Árago; perfeito é o funcional, o executivo, e
desde que um algo qualquer atingiu a sua plenitude de função, ou seja, tornou
atualidade toda a sua potência (em sentido aristotélico), já ficou perfeito, não
podendo ir além. Assim, o elétron, o átomo, a molécula, a célula viva, o
diamante, a flor, o colibri, o gênio, tudo são perfeições, conquanto não sejam
iguais, nem estejam no mesmo vel hierquico. Cada um representa obra prima
no seu grau específico.
E pondo-se o mestre a meditar um tanto, prosseguiu:
- Deus teria criado almas como ato completo, e, por isto, perfeitas e máximas
no sistema divino. Fazia parte desta perfeição o serem livres. Uma parte delas,
trocando a liberdade necessária à perfeição do amor, no arbítrio coexistente
com o egoísmo, caiu até o caos, de onde ressurge, agora, o universo evolutivo,
como uma volta para Deus. Se religião vem de "religio", derivado de
"religare ", e tem a função de religar o indivíduo humano finito com a
Realidade suprema, segue-se, logo, que esse indivíduo esteve ligado com ela
antes, pois re-ligar quer dizer tornar a ligar. Portanto, quem o desligou? Se
foi o mesmo Deus, então que o religue ele mesmo, agora, que para tanto tem
poder, e não imponha essa injustíssima subida dolorosa, feita, toda, de sangue,
suor e lágrimas, a seus filhos fracos e ignorantes. No entanto, como a ascensão
evolutiva ou religativa (religiosa, então, neste sentido), corre por conta do
criado, segue-se, e não pode ser de outro jeito, que o desligamento -lo a
criatura, e não, Deus.
- De fato, reargumentou Sileno, Deus não pode ser injusto; por
conseguinte, é justa a evolução. Contudo, a evolução faz o criado, subindo-se,
integrando-se, religando-se, e não, Deus, pelo menos diretamente. E se Deus não
pode ser senão justo, segue-se que a ascensão dolorosa, feita pelo filho,
necessariamente, é justa, não tendo sido provocada por Deus, porque, se tivesse, e
obrigasse, agora, a volta dolorosa, seria mais que injusto; seria injustíssimo!
Fez ponto Sileno; e Árago que o acompanhava, maneando a cabeça, continuou
-- Eis, meus caros, que observando COMO se processa a evolução, podemos
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inferir o PORQUÊ dela. É o filho que, rico e pródigo antes, retorna, agora,
mendigo, à casa paterna? Então foi ele que se foi embora dela antes, por sua
livre ou autônoma vontade. Abandonou o filho perdulário o lar paterno,
livremente, como se lê nos Evangelhos? Então, é de justiça que retorne agora,
por seu próprio esforço, andando com suas próprias pernas, arrastando-se com
seus próprios braços, sangrando as os e os pés nas escabrosidades do ingrime
caminho! No entanto, se foi o Pai que o pôs da porta para fora de um
arremessão (e por que o faria?), então, o errado é o próprio Pai; e se
estiver arrependido, que corrija, depressa, o erro seu, indo buscar o filho
que poderia ser feliz no seu regaço, mas o não é, visto achar-se perdido
nalgum chiqueiro do universo, disputando com os porcos alfarrobas ou bolotas.
E as ponderar um tanto, prosseguiu o mestre:
- Diz-se que precisamos nos esforçar por evoluir; por que? Porque a
evolução é o supremo anseio da vida que, toda, se resume num afanar-se em
demanda da felicidade. A plenitude do gozo está em Deus, como a infelicidade
extrema está no caos, na desintegração e morte total do "eu" - o não-ser.
Todavia, por que somos uns desgraçados em busca da felicidade reinante na
periferia? Sim, porque sendo Deus infinito, tem que ser periférico, que o
central, dado que a idéia de centro, de foco irradiante, implica, imediatamente, na
idéia de limitação e aprisionamento, com intensidade decrescente a partir do
centro. Ora, Deus não pode ser mais intenso e pleno num lugar que noutro. Por
isto, o caos, primeiro, e depois, o universo nosso, é que o centrais, fechados
pelo topos uranos ou mundo celeste que, por todos os lados da esfera os rodeia.
Por esta causa, nosso universo, que tem por centro o caos, é esférico, e, rodeando-
o, está a mais ampla ainda esfera do topos uranos, e tudo, no seio da incriada
Substância Luz Amor que é o infinito Deus na sua transcendência. E se outros
encurvamentos houver, outros universos, fora da esfera topos uraniana, isso o
nos é dado conhecer. Porém, isto é apenas uma digressão.
E depois de gravemente meditar, prosseguiu Árago:
- Nós fomos criados em estado de felicidade, ou de desgraça? Nós fomos
criados por Deus, da sua Substância divina, por um ato de amor. Os filhos são o
objeto do amor do Pai que, todo, é Amor (I Jo 4, 8 e 16 - II Cor 13, 11).
Ora, se de tal modo fomos criados, nosso primitivo estado, necessariamente,
havia de ser o de felicidade, de graça, e nunca, o acósmico, caótico e infernal. Só se
Deus fosse o oposto do que é, e nos houvesse dado à luz num assomo de egoísmo, de
ira, de ódio e de loucura, é que poderíamos ter saído ignorantes, isto é,
desamorosos e, conseguintemente, infelizes, desgraçados. se Deus fosse
sadomasoquista, como o disse, aí, o Bruco, outro dia, para gozar-sofrendo
com o criado, e na pessoa deste que somente sofre, e não goza, com que fica
sendo Deus, por esta parte, masoquista ; por outro lado, ele sente gozo dico ao
ver que o seu criado sofre, cada vez que pega na isca-de-alegria com que a natureza
astuta adoça os seus bocados amargosos. Uma vez que a vida, sobretudo a humana,
se acha fundada sobre a angústia, a aflão, o trabalho, a doea, a miria, a dor,
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muito o é cuide, aí, o Bruco, seja o Autor dela sadomasoquista.
E após uma pausa para meditão continuou o professor:
- Buda, o grande pessimista, o Schopenhauer da China, tentou solucionar o
problema da dor pela anulão dos desejos que ocasionam os atos os quais dão causa
aos hábitos de que se originam os destinos; por isso, o nirvana que Buda chamava
de o Nada Além, é uma forma de não-ser, onde não se sofre nem se goza, porque
o desejo está morto. Ora, o desejo de viver é o galho-mor de que nascem os
galhos menores dos outros desejos; como a doutrina de Buda é a da aniquilação de
todos os desejos, claro está que o último golpe será assentado contra o desejo de
viver; e com o corte deste galho-mor, sobra apenas o tronco do desejo de ser o qual,
repodado de contínuo, não brota mais, e seca, e morre, e tomba, e se desfaz para
sempre. Assim é que o budismo mais ortodoxo se reduz a um esforço de chegar-
se ao não-ser. Realizar a doutrina budista na sua pureza original, é como sorver
das águas do rio Letes:
"O Letes, rio do torpente olvido
Quem dele bebe, logo esquece tudo,
Tudo, té mesmo a si; nem mais lhe lembram
Dores, prazeres, alegrias,goas".
( . . . )
"Do Letes sonolento as tardas ondas,
Com ânsia ardente trabalhando os tristes
A ver se obtêm, tão perto de tocá-la,
Da tentadora veia uma só gota
Que no suave olvido lhe consuma
Todas as dores, as desgraças todas,
Todas de uma só vez... mas obsta o fado: Medusa, armada de
terror Gorgónio
O rio guarda, e faz que as doces águas
Dos bios desses míseros recuem
Como já dos de Tântalo fugiram".
- Eis, prosseguiu o mestre, que o ideal budista mais auntico se resume no
beber das torpentes águas do rio Letes! Ou de outro modo: todos os que se en-
contram no inferno pintado por Milton ou por Dante, estão, como os
budistas, desejosos de se findar, para sempre, no não-ser. Seu único desejo
consiste no não desejar nada, ficando, assim, para além do bem e do mal. Nenhum
desprendimento filosófico poderá ser maior do que o pregado por Buda! E
notamos nele uma ponta de revolta contra o Criador, e o seu nirvana, longe de ser
um u, o passa de o último estado a que nos pode levar a desgraçada
fatalidade de havermos sido criados. Por tudo isto, todo o mal está em ser, e
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todo o bem, em não-ser; a morte eterna é o nirvana, o sumo bem, porque leva ao
o-ser, e a vida eterna, o extremo mal, porque conduz ao ser. Todavia, se não
devemos nos mergulhar, com Buda, no nirvana do não-ser, que, logo, havemos nós
de fazer, meu caro Hierão? Sendo, você, espírita, há, por certo, de nos dar alguma
resposta!
Hierão Orsoni, tomado de surpresa, mexeu-se na cadeira, tossiu para
limpar o pigarro da garganta, e respondeu:
- Devemos evoluir.
- Por que devemos evoluir?
- É porque nos achamos afastados de Deus, e evoluir é ir para Deus.
- E por que estamos afastados de Deus? Deus nos criou as pegados com ele,
de onde nos apartamos livremente, ou nos criou já apartados e distantes? Por
que estamos separados de Deus e da felicidade?, de quem, a culpa, Hieo?
Em face do silêncio de Hierão, prosseguiu o mestre:
- Se a culpa for nossa, então, fomos nós os que nos afastamos de Deus;
entretanto, se fomos criados apartados, Deus é o culpado de sermos todos
infelizes.
- Mas Deus não pode ser culpado por coisa nenhuma, Árago, interveio
Alcino Licas!
- Logo, foi a criatura a que caiu, e por seu esforço próprio deve levantar-se
agora! Nós voltamos para Deus, evoluindo, Hieo?
Isso é o que ensina minha Doutrina Espírita!
- Então, saímos de Deus?
- Tem que ser, tornou Hierão, para estarmos voltando, preciso é termos saído,
que só pode retornar quem saiu.
Neste ponto, interveio Bruco:
- Achei, aqui, nas minhas anotações da leitura de Huberto Rohden, o ponto
em que ele diz: "Só um ser que não tivesse brotado da Fonte Divina poderia,
para sempre, ficar longe dessa Fonte; mas, como tal ser não existe, nem pode
existir, segue-se que nenhum ser, por mais consciente e livre, pode, para sempre,
ficar longe da sua origem".
- Isso está certo, disse Árago; mas não é o nosso problema, o que queremos
saber é como foi possível o ser ficar longe da sua origem? Afastou-se
livremente, ou a tal foi compelido? Se, livremente, afastou-se, então era
consciente antes, e é justa sua volta dolorosa agora; no entanto, se foi
arremessado da periferia rumo ao centro, para esses longes de Deus, para as
prisões que se arredondam nos encurvamentos cada vez maiores, para o caos,
reduzindo-se ao estado de inconsciência, por que obriga Deus, agora, ao filho, à
volta sacrificial, com que tudo o que vive e sente no universo está submetido ao
sofrimento? Que estamos voltando para Deus é um fato inconteste apresentado
pela evolução. Portanto, que de lá saímos é outro fato que nos impõe a
necessidade metafísica. Voltamos para Deus? Logo, saímos de Deus. Agora, o
que resta saber, é se saímos do regaço paterno, por nossa vontade, ou fomos
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jogados do empíreo, no rumo das trevas, do caos, do não-ser e do nada como
entidade constituída. Se foi Deus o que nos enxotou de casa, quem nos garante
que não o fará outra vez?, com que tudo de começar de novo, sem remédio,
nem fim, em eterno ciclo vicioso? Seria que o universo todo se reduz a um
fabuloso..., tão portentoso quão itil, trabalho de Sísifo? Estaria, então, com a
verdade, Nietzsche que pregava o eterno retorno? Se nos expulsou Deus uma
vez, é certo que nos po fora outras; neste caso, a nós nos convém anular todos os
desejos, como pregara Buda, e, deste modo, ficarmos onde estamos, até que nossa
insensibilidade completa à dor, num estoicismo supremo, nos fa, seo
felizes, ao menos indiferentes. E quem sabe até, com o correr dos tempos, nossa
dor se converta em gozo, de modo a nos tornarmos masoquistas; então, seremos
nós felizes para sempre, e tanto mais, quanto mais formos moídos nas
engrenagens e dentes do Colosso. Que gozo inaudito o se o nosso, ao sermos
esmigalhados duma vez, no momento derradeiro de entrarmos no nirvana do o-
ser ! ...
- Este foi o parecer de Belial, continuou o mestre, quando, pela pena de
Milton, se discutia, no conluio de demônios, no orco profundo, que mais
convinha fazer: acometer o empíreo com guerra aberta, ou trama oculta? Fala,
então, Belial, e assela com argumentos, os mais seguros, que melhor seria não fazer
nem uma nem outra coisa. Porque, com o correr dos tempos, e à situação
acomodados, as duras penas que ora curtiam, haviam-se de minorar. Ainda, se
adotada esta solução, o Tirano que reina nos altos céus, farto de azucrinar os
decaídos, guardaria seus ígneos raios. Moloch, porém, é pela guerra aberta, visto
como esta forçaria o Senhor do empíreo a os destruir de vez e para sempre, encon-
trando eles, então, na morte eterna, a felicidade que lhes negara a vida.
E depois de uma pausa, em que o mestre se engolfara em ponderosos
pensamentos, continuou:
- Neste caso, meus caros, felicidade é sinônimo de acomodação, de
cristalização na dor. Tem razão, logo, Sêneca, ao dizer: “A perpétua infelicidade
tem isto de bom: que endurece por fim os que incansavelmente perseguem”. Se
temos de sofrer eternamente, se tal decreta o fado, melhor é estejamos calejados
que sensíveis. Voltar para Deus seria loucura, visto como ele nos quer apartados do
seu regaço, e a prova está que nos enxotou de aí, para o nada essencial, nas trevas
centrais, de onde, em vão, tentamos subir, porque, quando estivermos no topo da
escada, eis que onipotente e invisível destra nos porá de novo abaixo, de um
arremessão, fazendo girar a escada sobre sua base. Invertida esta, ficaremos em
situação mais baixa ainda, do que quando estávamos próximos do ponto de
rotação. Deste modo ficaremos tanto mais abaixo, quanto mais tínhamos subido. É-
nos melhor ficar então parados, no ponto em cujo redor todo o sistema roda,
porque, aí, não havendo movimento, estaremos tranqüilos. Quem estiver mais
próximos de Deus, com a queda compulsória, ir-se-á para o extremo oposto, em
posição inferior a de quem esteja a meio da jornada, como nós. Isso talvez
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aconteceu com Luzbel que, estando no mais alto, quis subir-se mais (Is 14, 13
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consiste, neste caso, na ancilose, na acomodação estóica ao sofrimento, à dor,
porque subir significa desajustar-se em relação aos níveis inferiores, nos quais
seremos arrojados, tão logo hajamos chegado ao topo. Para nós, destarte,
recomeçaria o ciclo nitzscheano destrutivo-criativo, ou seja, ordem-caos...
E após grave pausa, continuou o pensador:
- Assim seria, meus caros, se Deus, um dia, nos enxotou do seu regaço padrastal.
Se isto ocorreu, não tornemos lá, porque expulsos de novo seremos, pois sendo
Deus imutável, uma decio sua, uma vez tomada, em lei se torna pela eternidade.
Deus seria então, um macrocircuito duastico destrutivo-criativo que, pela sua
força perífuga, repele o criado da periferia para o centro, onde ele se desintegra
nas masmorras do caos, voltando, de aí, depois, reconstrutivamente, rumo ao in-
finito peririco. Deus seria como o circuito centrípetocentrífugo solar, que
repele a substância eletrônica pelo equador, e a assimila pelos pólos. Seria que o
sistema divino se reduz a um fabuloso cosmo-circuito criativo-destrutivo, cujo
esquema se repete em todos os sistemas vorticosos menores? Seria que os seres
criados no seio de Deus são precipitados, perifugamente, para o atro abismo ou
caos central, onde se desfazem, para, de aí, voltarem, subirem, reconstrutiva e
dolorosamente, em virtude da impulsão centrífuga irresistível que impele as
criaturas para a periferia, onde, novamente, são arrojadas para o centro do
moinho infernal? Seria que esta circulação universal da incriada Substância
constitua a vida mesma de Deus, ou a sua respiração paramacrocósmica?
- Não!, não pode ser! vociferou Hierão Orsoni; contra esse arrazoado
interna voz me brada!
- Árago, voltando-se para Orsoni, falou-lhe com serenidade:
- Essa voz que lhe fala no íntimo, é a do preconceito. Ou você nos apresenta
raes, ou que se cale essa interna voz... que somos filósofos, que não, sticos!
estou ficando assustado, tornou Hierão, ao pensar que talvez fossem essas
raes a causa de se desintegrar o cérebro de Nietzsche, e não, a sífilis, como se
costuma dizer. Nietzsche teria, então, chegado a essa conclusão, começando,
para ele, o fim representado pela derrocada e falência, primeiro da razão, e
depois, do próprio cérebro! estou ficando temeroso dessa história; sinto que
me cresce a cabeça como balaio. De repente, ocorre comigo, o que sucedeu a
Nietzsche!
- Deixe que lhe cresça a cabeça, prezado Orsoni, tornou o mestre, que isso é
comum acontecer aos que se engolfam em pensamentos grandes. Como o
afirma Fritz Kahn, "o crânio humano pode, de acordo com a lei do exercício,
aumentar de circunferência nos últimos decênios da vida. Tanto o crânio de
Goethe como o de Gladstone cresceram mesmo depois dos 50 anos. No crânio de
Kant na idade de 82 anos as suturas ainda eram móveis enquanto num microcéfalo
elas se fundem já na adolescência". Você, meu caro, já não ouviu falar do estalo
de Vieira?
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- Como não! Todo mundo sabe desse estalo que Vieira sentiu na cabeça,
quando rezava aos s da Virgem, solicitando da santa, lhe descortinasse a
inteligência, até então tardonha.
- Isso é o que conta a história, replicou Árago; mas a verdade é que o
"milagre" ocorreu em virtude de as suturas cranianas de Vieira, semi-
soldadas, se abrirem ao impulso do cérebro que forcejava por ganhar espaço.
Embora o número de neurônios cerebrais sejam constantes, e os mesmos já na cabeça
da criaa como na do velho, as fibras associativas que esses neurônios emitem,
aumentam e se reforçam pelo exercício, no decurso da vida, fazendo preso na
caixa óssea de dentro para fora; quer dizer: a massa branca aumenta. Vieira
esfoava-se por aprender, e diz que tinha tarda a inteligência; foi então orar
aos pés da Virgem, e teve o estalo. Não foi a santa que lhe produziu na cabeça o
estalo; foi o esforço expedido em aprender, isto é, em formar fibras associativas
que requeriam espaço.
Dito isto, tornou o mestre ao assunto interrompido por esta digressão:
De uma coisa todos temos certeza: s viemos do caos, e nos encaminhamos para
Deus. Isto é uma indiscutível verdade de fato atestada pela evolão. Desta certeza
emrica generalizamos, por indução, esta outra que tem sido ressaltada por todas as
religiões e mitos da Terra: Saímos de Deus, e fomos parar no caos, de onde agora
retornamos. Estes dois pilares eso assentados em nossa experiência humana,
hisrica, sem as quais imposvel seria edificar quaisquer civilizões. Resta-nos
saber, agora, se nossa vontade livre e consciente teve parte ativa na decio inicial de
que resultaram todos esses eventos, ou se estes, nos foram impostos por forças
estranhas à nossa vontade. Se dissermos, com Nietzsche, que fomos obrigados a
percorrer este circuito, então, tudo para s estará perdido, e seremos eternamente
triturados pelos dentes do supercolosso Moloch sadomasoquista. É o eterno retorno,
eterna recorrência de Nietzsche, o importando se o ciclo tem início no caos ou em
Deus. Se, todavia, cmos por nossa livre e esponnea vontade; se caímos porque
quisemos aquilo que implicaria na queda, que é fundar uma ordem o no amor, mas
no egsmo, justíssima é nossa volta dolorosa. Tudo, deste modo, se nos torna lógico,
justo, necessariamente conseqüente. Ou se admite a falência das almas do topos uranus
ou lugar celeste, ou tudo se reduzi a estas conclues blasfemas que aos místicos
fazem tremer.
E concluiu, após silenciosa consideração:
- Temos, portanto, estas duas hipóteses: a da queda das almas de Platão, e
não só dele, senão, de todas as grandes religiões e mitos da Terra, como já
vimos e a hipótese de Buda-Schopenhauer-Nietzsche conducente ao não-ser. O
universalismo da hipótese da queda prova ser ela a única saída que os mais inteli-
gentes da Terra encontraram para resolver o problema da existência do mal e
da dor no universo. Por qualquer outro caminho não há solução possível.
Verificamos, outrossim, que a segunda hipótese, a do eterno retorno, proposta
por Nietzsche, produziu em nós todos a mais funda angústia, diante da qual
nossa vida se rebela. Todavia, a ser verdade mesmo o que propõe Nietzsche, a
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começar por ele próprio, tolo é todo aquele que se esforça por sair do que é.
Ora, como o próprio Nietzsche punha o seu super-homem como objetivo a ser
alcançado, segue-se que todo o seu sistema se torna incoerente. Zaratustra hesitava
em proferir sua última palavra, porque ela seria o seu fim, até que lhe brada
interna voz: "Que é isso, Zaratustra? Fala tua palavra e rompe-te em pedaços!"
Se este é o fim, por que proferir quaisquer palavras?, por que pregar quaisquer
doutrinas?, por que fazer quaisquer esforços por melhorar?, por que mover
quaisquer palhas do lugar?, por que não mandar ao diabo o super-homem? Quem,
como Sísifo, tem de trabalhar para nada, melhor fará se der um tiro nos
miolos! ...
- Como vêem, concluiu Árago, contra a doutrina de Nietzsche, a própria vida
se rebela, visto como, sobre essa idéia, não se pode edificar absolutamente
nada, e quem o tenta, é arrematado louco... como o próprio Nietzsche. E se, por
desgraça nossa, o maluco do Nietzsche estiver com a verdade, a vida, para
prosseguir, terá de embalar-se em falazes ilusões, visto como o conhecimento da
verdade significa parada, suicídio, extinção, morte! E faz parelha a Nietzsche, o
rebelde Buda que prega a anulação de todos os desejos, único meio de safar-se da
roda das reencarnações e entrar no nirvana do não-ser, pois, segundo se infere
dele, todo o mal vem do ser, do desejo de ser; ser é o mal; não-ser, o bem.
Hesitante, tímido, contrargumentou Hierão Orsoni:
- Não obstante, o nirvana não é o não-ser, prezado Árago. É a dissolução
da mente individual na Mente Cósmica!
- Responda-me, então, Orsoni: Buda não prega a anulação progressiva de
todos os desejos?
- Sim, prega.
- E qual é o desejo fundamental, do qual todos os outros nascem, como se
foram galhos de um tronco?
- Acho que é o desejo de viver.
- Não é, meu nego. O desejo de viver, conquanto seja galho-mor, é galho,
e não, tronco. O desejo principal é o de ser. Desejamos ser, e este desejo impele
a vida, uma vez que, por ela, aquele se realiza. Queremos viver, porque
queremos ser. E quando alguém não pode ou não quer mais ser, acaba com a
própria vida na esperança de que, com ela, também se acabe o ser. Nós vivemos do
porvir, almejando sempre que esse futuro se atualize. O passado não nos
interessa, porque é morto, ou, pelo menos, desejaríamos que o fosse, quando
nos estorva a ser o que desejamos. O presente é um futuro passando, um futuro
sido, e é por isso que só o futuro nos interessa, de modo que o passado, às vezes, até
nos tolhe os passos, visto que nos condiciona, nos amarra pela cristalização nos
hábitos, nas instituições avoengas, na inércia misoneística que resiste ao nosso
impulso para ser. Cristo e Sócrates queriam ser o que ainda não havia no mundo, e
o misoneísmo das instituições os resistiram e os mataram. E na hora da morte um
e outro sabia que, perderia a vida, porém, o, o ser. Por desejar fosse o que
ainda não era foram mortos. Se, com a perda de suas vidas perdessem juntamente o
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ser, ficaria sem sentido a luta que enfrentaram, e o ideal que defenderam, que era
justamente morrer para ser; daí o ter sentenciado Cristo: "quem perder a sua
vida por amor de mim (mim Doutrina), ac-la-á", e a terá ainda mais abun-
dante; ora, abundância de vida é abundância de ser, e é para ser que se vive.
Logo, o desejo de ser é anterior ao de viver. Está bem deduzido, Hierão?
- Está.
- E você não concordou em que o budismo busca a anulação de todos os desejos?
- Concordei.
- Então, a aspiração de todo budista é não desejar ser, porque, com isto, todos
os desejos estarão mortos, não é?
- Perfeitamente.
- Ora,o desejar ser é idêntico a desejar o não ser; está certo?
- Exato.
- E desejar o não-ser, não é ainda desejar?
- É.
- Quer dizer que a última coisa que faz o budista mais radical, ainda é desejar,
que este último desejo, acabando com o sujeito do próprio desejo, anula-se
também a si; está correto meu pensamento?
- Sem dúvida !
- E esta anulação total do ser individual, não é vida, senão morte eterna; não é
ser, mas, o-ser. Não está claro?
- Agora es.
- Então, que história é essa a sua, de que a doutrina budista o conduz ao o-
ser, e sim, apenas leva a mente individual a dissolver-se na Mente smica? Acaso,
com essa dissolução, não se acaba a individualidade? O que era heterogêneo e vário,
não se torna no homogêneo e comum? O indivíduo, Hierão, após dissolvido,
continua como tal?
- Claro está que não, pois essa não é a idéia de dissolução ou dissolvência; um
corpo que se dissolve em outro, ocupa todo o espaço desse outro; e como esse outro é
a Mente Cósmica, o indivíduo cessa de o ser, para ocupar toda a Mente Cósmica.
De fato, não posso negar que, com a dissolução da mente individual na
Cósmica, tem fim o ser individual.
- Buda, reforçou o mestre, supôs ocorra com a alma, o mesmo que com o
corpo; também este continua existindo, após a morte, dissolvido na natureza, e os
gases, os quidos e os sais minerais que resultam de sua decomposão, circulam na
natureza. Todavia, o corpo, como tal, deixa de existir com a decomposição total.
Assim como ocorre com o corpo, pensou Buda sucedesse com a alma, quando
despojada de todos os desejos, donde vem que seu nirvana moral equivale a um
como que nirvana físico, pelo qual o corpo, com a morte, retorna ao
reservatório natural. No entanto, como os desejos têm sede na alma, para que esta
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tenha fim, como individualidade, necessário se faz acabar com os desejos; como
isto é impossível numa existência corporal, as reencarnações, e, por elas, os
desejos todos vão sendo eliminados, até que o golpe final é vibrado contra o
desejo de ser. Se Buda tivesse encontrado algum modo de erradicar, de vez, a
árvore, não perderia tempo (reencarnações) em cortar-lhes os galhos. Por
conseguinte, com a extinção do indiduo, acaba-se o ser como tal, não lhe
importando a ele que continue existindo sob outros aspectos, pois, em si mesmo,
é morto, é não-ser. Está certo Hierão?
- É... está..., mas com desagrado o digo, porque, como espírita que sou,
sempre andei lendo e pensava que Buda é um luminoso esrito, um como que
discípulo do Cristo Cósmico, que deste recebeu a missão ou a delegação de
representá-lo na China e Oriente. Ora, esta doutrina do niilismo nirvânico, do
não-ser, se opõe a tudo o quanto Cristo ensina, pelo que concluo que Buda não
passava de um revoltado, e a suposta bondade e desprendimento budistas decorrem
do absurdo que consistiria em se lutar seja lá pelo que for. Se, logo, um
budista ortodoxo, radical, for agredido, não revidará a ofensa, como
aconteceria também com um verdadeiro seguidor de Cristo, mas isso, por
motivos opostos. No caso do budista, reagir para que?, para reafirmar-se
como ser que sente, em si, o amor-próprio ofendido? E não é, este amor-próprio,
uma forma de afirmação do ser? (quem não possui amor-próprio, nem mesmo a
si se ama; e quem não se ama, e a mesmo se despreza ou se odeia, procura logo um
meio de ver-se livre de si, e este meio, conforme o ensina Buda, consiste na
anulação progressiva dos desejos, que leva ao não-ser. E, pois, quem nem mesmo a
si se ama, como pode amar aos outros? Que sentido terá a filantropia para quem
é egófobo? Como soaria para tal sujeito a sentea evangélica que manda amar ao
próximo como a si mesmo, se ele a si mesmo se aborrece? Por isso, o budista não
reagirá, às ofensas porque cuida, como é certo, que os golpes desferidos contra
si, servem para matar o amor-próprio com que se afirma como ser; revidar os
golpes, ou reagir de qualquer modo, é reafirmar-se. Não é, portanto, o amor
cristão que move o budista a não reagir; não se trata de reação positiva pelo
perdão, mas, ao contrario, trata-se da não-reação nascida do egsmo de quem, por
este meio, se sente mais próximo da extinção que busca. Para o budista agredido, a
agressão é-lhe um bem, e não, mal. Seu suposto pero, longe de ser um bem, é
um mal, uma vez que, com isto, se elimina a si mesmo, em parte. Antes
reagisse, e pagasse com a mesma moeda, pois, com isto, afirmar-se-ia como
ser. Se bato num cão, e ele me morde, sei que ele se sente existir; porém, se ele não
reage, ou rosnando, ou gritando e fugindo, fico na dúvida sobre se es ou não
vivo. Cristo propõe que se reaja ao mal com o bem, e o perdão de Cristo é afir-
mativo no sentido de ser... bom. o pretenso perdão budista não objetiva ser...
bom, e tem que ser entendido como uma forma de anular-se, em parte, pela ins-
trumentação do agressor. O cristão, quando reage perdoando a ofensa, faz uma
coisa inaudita, desconhecida pela vida inferior, pela natureza externa, que é negar-
se na animalidade. Todavia, o budista, quando cuidamos que perdoa, nega-se, em
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parte, a si mesmo, como ser. O budista não quer afirmar-se nem como espírito
que é, nem como animalidade que não-é; não se afirma nem numa nem noutra coisa,
visto que busca o aniquilamento no o-ser. Como animalidade ele se nega; como
espírito ele se omite, porque sendo o espírito individualidade, centro motor
dos desejos, deve deixar de ser ou existir, único meio de entrada no nirvana.
Bolas! que lanzudo que eu fui, por não considerar que motivos diferentes, e até
opostos, podem mover ações e condutas idênticas!... Ontem mesmo ganhei a
causa numa discussão, quando afirmava, então, que o homem é o que faz, e não o
que pensa, ou diz, ou escreve. Provei minha tese com as discrepâncias existentes
entre as vidas e as obras de Bernard Shaw e de Schopenhauer. Pois, eis, agora, que
eu mesmo me dei uma rasteira, com me demonstrar que não se podem
divorciar as ações das iias, para julgamento das condutas, visto que o budista
e o cristão apresentam as mesmas condutas, em concordância com motivos polarmente
opostos: o cristão perdoa porque busca realizar-se no mais-ser, no passo que o
budista como que perdoa para alcançar menos-ser, para desfazer-se de ser, porque
objetiva o o-ser. O primeiro perdoa por amor construtivo que visa o bem
próprio e o do outro; o segundo parece que perdoa, porque visa o que supõe seja
o seu próprio bem que é o desfazimento de si, para poder entrar no nirvana.
Assim é que o perdão evangélico é motivado pelo amor, e o do budista, pelo
egoísmo. Ara! E eu que pensei que sabia!...
Depois deste desabafo de Hierão, ocasionado pela descoberta do seu engano,
replicou-lhe Árago.
- Bem, meu amigo, fique ai, você, com sua retratação, que ela nada tem a ver
com o assunto que ora estudamos. Responda-me, Hierão: em que se difere a
doutrina de Buda da de Nietzsche?
- A diferença está em que Nietzsche declara que o fim é o não-ser; não
obstante, manda realizar o ser cuja plenitude está no super-homem; e realizar
para nada é loucura. Isso me faz supor que o desequilíbrio mental de Nietzsche
esteve presente sempre em sua vida, que não no seu fim. A doutrina de Buda,
contrariamente à de Nietzsche, é coerente, visto recomendar ao budista ficar
parado, quieto, sem desejar ou realizar coisa nenhuma, até a extinção total do
ser no o-ser. E qualquer budista que mova uma palha do lugar, a o ser para
alcançar esse objetivo, estará acometido da loucura de desejar ser.
- Como vêem, concluiu Árago, essas duas doutrinas m o não-ser como meta
final, sendo nisto iguais; no método para alcançar esse objetivo, é que está a di-
ferença. Por isso que, em Buda, ele consiste em não fazer nada, porquanto,
é pacífico que, quem nada deseja, nada faz; no passo que, em Nietzsche, o
método se resume em fazer para nada. Eis que o budista, em perfeita coerência
com o seu objetivo de não desejar nada, ou de desejar o nada, cruza os braços
ante todas as misérias e todos os sofrimentos, pois os que sofrem estão pagando
pelo erro de andar desejando, e que se não houvessem desejado, não teriam
lançado as impulsões cujas conseqüências redundam, agora, em sofrimento e dor.
Cruzam os braços, porque cada um deve, por si mesmo, pelo sofrimento, chegar à
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conclusão de que sofre por ter desejado algo, e, pela dor, há de aprender a
não o desejar mais. Que sofra, pois, quem desejou, e, em sofrendo, aprenda a não
desejar. Não tem sentido qualquer ajuda caridosa ao infeliz, uma vez que a
infelicidade dele é proveitosa lição que fará o ignorante cheio de desejos, num
sábio sem desejos nenhuns; assim, a sabedoria se cifra em não desejar nada. Com
tal filosofia, o mundo budista cheio de bonzos de cabeças raspadas e de vestes
amarelas, se nos afigura um mundo monocromático, parado, monótono, homogê-
neo, moluscóide.
- No entanto, prosseguiu o mestre, o mundo nietzscheano, buscando o
mesmo objetivo do o-ser, se nos mostraria rio, facetado, colorido, vel,
vertil, visto que tudo se movimenta num afã para realizar o super-homem o
qual, como dizia Nietzsche, estaria para além do bem e do mal, sem as
sobrecargas das morais. Não tem ele que prestar contas a ninguém de seus atos, por
isso que ele é o super-homem cuja moral é a da desassombrada força. Uma feliz ou
infeliz conjunção desta doutrina de Nietzsche com a de Hegel, produziu o
Estado alemão, o III Reich, e, nele, Hitler fez o papel do super-homem que não
precisava prestar contas a ninguém de seus atos, e acima de si estava o Estado como
intermediário entre si e Deus. E o Estado foi como ele quis que fosse, e a
"divina providência" providenciou tudo conforme os seus desejos, e sua moral
era a de Trasímaco de que "ser justo é ser forte", ou a de Nietzsche que
pregava ser a bondade o desassombro do forte. Se Hierão, pouco há, demonstrou
que objetivos polarmente opostos podem produzir ações e condutas iguais, eu, por
minha vez, demonstro, agora, com o III Reich alemão e com o budismo
chinês, que um mesmo objetivo que é o não-ser, pode causar ações e condutas
diametralmente contrárias. 0 chinês budista não mata uma mosca, e o bonzo
carrega, consigo, uma peneirinha para coar a água que bebe, para evitar que vá
nela um mosquitinho. Os alemães do III Reich não fizeram uma questão de
consciência matar, sem nenhuma comiseração, e até com gozo sádico, seis milhões
de judeus totalmente indefesos, afora o resto que morreu por causa da Guerra, a
Segunda, mundial. O caminho palmilhado então foi o de Hegel-Nietzsche ou
seja: construir o super-Estado de mil anos, que durou apenas doze, criar a
super-raça e o super-homem. No entanto, o budista, coerente com sua doutrina, não
faz nada, no passo que o alemão nietzscheano, contraditório, esquizóide, faz para
nada. Eis, aí está, que a lógica não governa a vida nem a hisria, porque uma e
outra, como é livre, não possui determinismo ou lei, e, por esta razão, toma
por caminhos impreviveis. Para ser lógico, o comportamento do budista
ortodoxo deveria existir, e, não, o nietzscheano. No entanto, absurdamente, este
comportamento escreveu uma das páginas mais horripilantes da história.
E após uma pausa para um cafezinho que dona Cornélia trouxe, e terminada as
conversações que se travaram em todos os sentidos, sem unidade de idéias, fez
Árago menção de que ia continuar, bastando isto para que todos ficassem
silentes e atentos. Partiu, então, o mestre, para as conclusões finais, dizendo:
- Damos por vistas as duas hipóteses: a universalista de Platão, das grandes
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religiões e mitos, e a niilista de Buda e de Nietzsche. Todavia, o budismo, na
forma ortodoxa como Buda a colocou não teve nenhum adepto. Do mesmo modo
como os cristãos torceram o sentido radical do Evangelho de Cristo, para não
terem de modificar-se a si mesmos radicalmente, os budistas também fizeram
acomodações às prédicas de Buda para que sua doutrina não fosse tão antivital.
Surgiram, assim, formas de budismo que puderam alimentar as civilizações
orientais. Buda não fala de Deus, e vem Huberto Rohden, e diz que é "por
respeito". Buda demorou-se para entrar no nirvana: dizem que foi para estar
mais tempo com os discípulos aos quais amava. Convenhamos nisto: se Buda
buscava a anulação, que sentido teve o desejo de pregar sua doutrina? Por que a
pregou? Por amor? Mas o amor é afirmação do ser, e não, caminho daquele que
busca anular-se. Uma vez descoberta a sua verdade, para ser coerente com ela,
Buda havia de seguir o seu caminho para a anulação sozinho, sem ensiná-lo a
outros, para ajudar a esses outros, porque essa ajuda é generosidade própria
de quem se preocupa com os outros, e quem se preocupa com os outros não se nega,
antes, se afirma como ser. Essa preocupação com os outros, essa generosidade de
Buda, motivou a caridade afirmativa e vital do budismo nas formas modernas.
Daí que os neobudistas da atualidade chegam a dizer, como o afirma Huberto
Rohden, que "Buda era uma alma ébria de Deus". Buda não quis o nirvana
para si sozinho; esforçou-se, caridosamente, para que outros também o
obtivessem, ensinando-lhes o caminho da libertação dos desejos. Afora esta
forma de "caridade", de "ajuda" para se ir ao não-ser do Nada Além, as
outras, que também existem, continuam sem sentido, e são praticadas porque os
homens são contraditórios, esquizóides.
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III - DISCUSSÃO DA FILOSOFIA DOS
ESPÍRITOS
No outro dia, quando os estudiosos começaram a reunir-se, Árago se achava
na sala, ouvindo música, reclinado em sua cadeira. Possuía ele um gravador
estereofônico de alta fidelidade, e uma coleção de gravações de músicas
eruditas e clássicas. Mas gostava, também, o professor, de ouvir, ao dormir
à sesta, a gravação do "Paraíso Perdido" de Milton, a fim de, como dizia,
suavizar o pprio estilo, am de nutrir-se, ali, de altivos pensamentos. Vendo
que todos quase se achavam presentes, parou o gravador, retomando o seu
lugar à mesa. Terminados os cumprimentos habituais, e os assuntos corriqueiros que
nessas ocasiões ocorrem, principiou o pensador a falar:
- Hemos visto que a doutrina da queda das almas do topos uranos, ou a dos
Espíritos do mundo celeste é universalista, jazendo explícita ou implicitamente
na estrutura de todas as religiões e mitos, sem nenhuma exceção, tendo sido esta a
maneira de os inteligentes de todos os tempos resolverem o problema da
existência da aflição, da miséria, da dor e da morte em nosso mundo.
- Não é bem assim, exclamou Orsoni; oponho a isso a objeção de que o
Espiritismo é religião, e, contudo,o partilha dessa idéia da queda das almas.
Depois de ponderar um tanto, levantou-se Árago, foi até a estante,
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trazendo de lá "O Livro dos Espíritos" de Allan Kardec, traduzido do
francês pelo clássico da língua Guillon Ribeiro; e tendo-o aberto nas primeiras
páginas, disse :
- Quando este livro me veio às mãos, pela primeira vez, li, aqui nos
"Prolegômenos", que as mensagens doutrinárias vinham da parte de vários
Espíritos, dentre os quais São João Evangelista, Santo Agostinho e Platão.
Ora, eu sabia que São João Evangelista e Platão fazem parelha, e que Santo
Agostinho apresenta filosofia contrária, em relação aos dois primeiros. Com
esta prevenção, comecei a leitura, procurando o que era de São João e de
Platão, e o que vinha do Espírito de Santo Agostinho. E logo achei isto de
Platão... do Espírito de Platão, já se vê. Kardec pergunta se os Espíritos
constituem um mundo à parte, fora deste nosso em que vivemos, e a resposta é
"sim, o mundo dos Espíritos, ou das inteligências incorpóreas" (R. 84).
"85. Qual dos dois, o mundo espírita ou o mundo corpóreo, é o principal, na
ordem das coisas?
"O mundo espírita, que preexiste e sobrevive a tudo.
"86. O mundo corporal poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem
que isso alterasse a esncia do mundo espírita?
"De certo. Eles são independentes ; contudo, é incessante a correlação entre
ambos, porquanto um sobre o outro incessantemente reagem".
- Esta é a doutrina, prosseguiu Árago, que Kardec considerou ao elaborar a
"Introdução" a "O Livro dos Espíritos", parte VI, página 22. Aqui está: "O
mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e
sobrevivente a tudo. O mundo corporal é secundário; poderia deixar de
existir, ou o ter jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do
mundo espírita”.
Fechando o mestre o livro, argumentou, olhando para Hierão:
- Se no começo era o mundo espírita, ou seja, o das inteligências incorpóreas,
não só que preexiste, senão que sobrevive a tudo, podendo o mundo corporal e o
universo material nunca terem existido, ou desaparecerem agora, sem que isso
afetasse a essência do mundo espírita, temos esta concluo: o mundo espírita é o
necessário, e o corporal, acesrio, "secundário" como disse Kardec. Sendo
acessório, secundário, derivado, pode ter surgido do primário e normal pelo
acidente da queda, o sendo este nosso mundo corpóreo, secundário, acidental,
derivado, egresso do caos, obra direta de Deus, e sim, obra indireta que se está,
paulatinamente, realizando por Evolução. Ou de outro modo: o mundo espírita
preexiste a tudo; logo, preexiste ao mundo corporal e ao caos; ora, não pode haver
mundo espírita sem espíritos; por conseguinte, esses espíritos, habitantes do
mundo espírita, preexistem a tudo. Se preexistem a tudo, são anteriores ao
mundo corpóreo e ao caos, não procedendo deste por Evolução. Conse-
qüentemente, estes espíritos perfeitos (perfeito é o funcional, já o vimos)
habitantes do mundo espírita (topos uranos, lugar celeste), preexistem ao
mundo corpóreo e ao caos que surgiram depois. Por isso que Kardec diz,
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entre outras coisas que esse mundo "espírita é eterno" (Introdução, VI - pág.
22). Se o mundo espírita é eterno, então ele coexiste com o Criador. Ora, se "os
Espíritos são individuações do princípio inteligente, como os corpos são
individuações do princípio material" (R. 79), segue-se que esse prinpio
inteligente, ou seja, a substância de que se formaram os Espíritos, também
coexiste com o Criador. Deste Modo, Deus, com ser a suma perfeição, cria
Espíritos perfeitos; e só são submetidos à Evolução, os Espíritos que,
posteriormente, o recriados a partir dos níveis a que desceram ou involuíram.
Se o mundo espírita preexiste a tudo, o caos de que surgiu nosso universo, só pode
ter aparecido depois, e por causa da queda de parte do mundo espírita que é o
topos uranos ou mundo celeste. Por esta causa é que Platão afirma no "mito
da caverna" ser sombra e ilusão a realidade deste nosso mundo, se comparado à
Realidade do topos uranos. Conseqüentemente, no começo era a Substância espiri-
tual, coexistente com Deus, da qual Deus criou os Esritos habitadores do
mundo espírita, já porque o próprio Deus é Espírito (Jo 4, 24 e II Cor 3,
17), já porque o Espírito que é Deus, também é o Verbo que era no
princípio (Jo 1, 1).
E após uma pausa, prosseguiu Árago:
- Espírito é organização, e não, caos; é "o princípio inteligente do
universo" (R. 23). E conquanto o espírito sempre esteja jungido à matéria
(perispírito), que é o seu veículo de manifestação, anterior e posterior ao corpo
carnal, espírito e matéria são distintos um do outro" (R. 25). "Pode dizer-
se que os Espíritos são os seres inteligentes da crião. Povoam o universo
fora do mundo material" (R. 76). E tiveram princípio (R. 78); e formam
um mundo à parte que é o "das inteligências incorpóreas" (R. 85) têm
forma indefinida, como a de "uma chama, um clarão, ou uma centelha
etérea" (R. 88). De maneira, meus caros, que a filosofia de Platão da queda das
almas do topos uranos nos vários planetas dentre os quais o nosso mundo
correo de sombras e irrealidades, está no "O Livro dos Espíritos" expressa na
seguinte pergunta de Kardec e resposta do Espírito: "Qual dos dois, o mundo
esrita ou o mundo corpóreo, é o principal na ordem das coisas?" (P. 85). "O
mundo espírita, que preexiste e sobrevive a tudo" (R. 85).
Deixando de lado seus cadernos de anotações, tomando um fôlego, e
procurando melhor cômodo na cadeira, concluiu o filósofo:
- está, prezado Hierão! É esse o mundo que Deus criou ao princípio, visto
como o mesmo "Deus é espírito" (Jo 4, 24 e II Cor 3, 17), havendo de criar
segundo sua natureza, e não em oposição a ela. Se, pois, o mundo espírita preexiste
e pós-existe a tudo, ele é o primacial primário, necessário, o condizente com a na-
tureza de Deus.
A estas palavras de Árago, Hierão, alarmado e contrafeito, retrucou:
- Mas, eu faz vinte anos que rodeio mesas de sessões práticas de Espiritismo, e
participo das sessões de estudos, e até agora não ouvi que isso fosse dado por
doutrina. Sempre ouvi que "no começo era o caos"; que "os elementos estavam em
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confusão"; que "pouco a pouco cada coisa tomou o seu lugar, e apareceram os
seres vivos apropriados ao estado do globo" (R. 43); que "a espécie humana
encontrava-se entre os elementos orgânicos contidos no globo terrestre" (R. 47);
que "Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem saber" (R. 115
e 121); que "se Deus houvesse criado os Espíritos perfeitos, nenhum mérito teriam
para gozar os benefícios dessa perfeição" (R. 119); que "sendo eterno, Deus de
ter sempre criado ininterruptamente" (R. 78), e a criação dos Espíritos
permanente" (R. 80), donde se tira que Deus cria, ininterruptamente, Espíritos
simples e ignorantes; que, em razão disto, "por mais distante que logreis figurar o
início de sua ação, podereis concebê-lo ocioso, um momento que seja?" (R. 21).
E após pequena pausa, continuou Hierão Orsoni:
- Isto foi o que sempre ouvi dizer, e eu próprio li no "O Livro dos
Espíritos". Porém, agora, me vem o senhor dizer que tudo é ao contrário?
Sempre tenho ouvido dizer e lido que os Espíritos "todos são criados simples e
ignorantes e se instruem nas lutas e tribulões da vida corporal" (R. 133); que
"Deus lhes impõe a reencarnação com o fim de fazê-los chegar à perfeição"
(R. 132). Estou saturado de ouvir que a salvação se faz pela caridade, donde a
sentença repisadíssima de que "fora da caridade não há salvação". Esta, a
doutrina que sempre ouvi, repetida por todos os espíritas; como é que o senhor me
vem com esse ensinamento diferente, e me diz: isso é Espiritismo?
Após concatenar suas idéias, respondeu Árago:
- Essa teoria de que Deus, a suma perfeição, criou sua obra-mor
imperfeita, para impor a ela a obrigação de auto-aperfeiçoar-se, e isto, para
que ela fosse digna de usufruir os benefícios dessa perfeição que, portanto,
fica sendo só dela, e não, do Criador, essa filosofia é a mais esdrúxula de
quantas ouvi. Diga-me Hierão: voconcorda com a doutrina de que "se Deus
houvesse criado os Espíritos perfeitos, nenhum rito teriam para gozar os
benefícios dessa perfeição"? (R. 119).
- Eu concordo em que os Espíritos são obras imperfeitas, embora admita que só
nisto a obra divina é inacabada; no mais, a obra de Deus mostra-se de suma
perfeição. A presença do universo nô-lo atesta. Tem razão o salmista: "Os
us proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras de suas
mãos" (Sl 19, 1). que entre essas obras não se inclui o homem, o Espírito,
por ser criatura imperfeita.
- Então vo concorda mesmo que a suprema obra da Criação, o homem é obra
imperfeita, não por causa da queda dos Esritos, mas, porque Deus o fez tal
como é, para dar a ele, isto é, ao Espírito, a oportunidade de aperfeiçoar-se?
- Isso mesmo.
- Quer dizer, eno, que o Esrito, tornou Árago, em se aperfeiçoando, faz,
em si, aquilo que o próprio Criador ou não pôde ou não quis fazer? Deus não
quis ou não pôde?
- Dado que é todo-poderoso, respondeu Orsoni, então, não quis.
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E podendo ter criado os Espíritos perfeitos, e, em vez disso, criando-os
"simples e ignorantes" para "se instruírem nas lutas e tribulações da vida
corporal" (R. 133), que isto é impor-lhes, inexoravelmente, "a reencarnação
com o fim de fazê-los chegar à perfeição" (R. 132), nisto Deus deixa de ser
todo amor e bondade, como se apregoa. Não obstante, você afirmou, com sua
Doutrina Espírita, que "fora da caridade não há salvação". Face ao exposto,
pergunto: o que é a salvação?
- Bem..., o que se entende por salvão, segundo várias agremiações
religiosas, é não ir para o inferno; no Espiritismo, significa estar liberto das
dores e aflões.
- E pouco você me disse que Deus cria, de contínuo, Espíritos simples e
ignorantes, e os submete às reencarnões tribulativas para se aperfeiçoarem?
- Disse; e daí?
- Daí, que, como todos os Espíritos são submetidos às tribulações da vida
corporal, sendo a dor tanto mais atroz quanto mais embaixo eles estiverem, tiro a
conseqüência de que no Espiritismo não há salvação. Provo: se fora da
caridade não há salvação, uma de duas: ou o Espírito redimido ou salvo
sofre, por compaixão, a dor dos que são trucidados embaixo, ou fica indiferente.
Se fica indiferente, e por isso não sofre com a dor alheia, então, é necesrio
concluir: dentro da salvação não há caridade. Basta, por conseguinte, subir,
para se ficar insensível, indiferente. Todavia, se dissermos que os Espíritos
redimidos, salvos, sim, sofrem; que se confrangem com a dor alheia, eno, a dor
é eterna, não só para os que se acham embaixo, subindo do caos, como para os que
se encontram em cima, para os redimidos ou salvos, visto que sofrem por empatia
ou compaixão, a dor dos debaixo. Ora, prezado Orsoni, se a ascensão implica no
desenvolvimento do amor ou caridade, segue-se que quem ama sofre, ao ver sofrer
os outros; e como a dor é eterna, porque Deus cria, de contínuo, Espíritos simples e
ignorantes, temos de concluir, necessariamente, que a dor é eterna para todos,
porque os salvos das dores pprias continuam a sofrer com as dores alheias. O
que vem eno a ser a salvão no Espiritismo?
Vendo-se apertado, e sem saída, esbravejou Hierão:
- A dor é eterna, o negar, porque Deus cria, ininterruptamente,
Espíritos simples e ignorantes, o havendo modo de fazê-los instruir-se senão
através das lutas e tribulações da vida corporal o que lhes é imposta pelo próprio
Deus, não em uma, mas em inumeráveis reencarnões. Porém a dor não é eterna
para um mesmo Espírito, porque ela cessa quando ele se torna perfeito na
sabedoria e na virtude. A dor é própria dos seres atrasados, que não dos
evoluídos; estes sabedores do que ela é, por que ela existe, e qual é o seu termo, o
passam pelos nossos transes dolorosos. Se passassem, Cristo estaria sofrendo ainda
com as dores nossas. Ê certo que os médicos têm corações tanto como nós; todavia,
sabendo que o doente vai sarar, não fica sofrendo com as dores dele,
- Diga-me Hierão: quando ainda não havia anestesia, os médicos não
operavam?
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- Claro que operavam.
- Amputavam eles uma perna ou um braço, por exemplo?
- Perfeitamente.
- E encabeçavam as veias e arrias com ferro em brasa, ou, então,
cozinhavam a boca do coto em azeite fervendo?
- Era assim que se usava fazer.
- E extraíam um olho canceroso, ou trepanavam crânios com facas de
cristal, para mexer no cérebro?
- Também isso se fazia.
- E o dico, em aplicando tais tratamentos, não sabia que o enfermo ia
sarar?
- Sabia, pois claro!
- Então, porque o sabia, conquanto tivesse coração comos, não se confrangia
ao ver escabujar de dor o infeliz, ao tempo em que soltava gemidos, urros e
berros medonhos?
- Penso que os médicos cirurgiões, comentou Alcino Licas, de tanto tomar
parte ativa em tais espetáculos dantescos, acabam por ficar insensíveis às dores
alheias. Assim como a extrema brutalidade dos campos de batalha bestializa os
homens, a constante visão do sofrimento insensibiliza os dicos cirurgiões.
Depois de o mestre ponderar, em silêncio, o argumento de Alcino Licas,
voltando-se para Hierão, concluiu:
- Logo, dos médicos, dado que se tornam insensíveis, não se pode afirmar
que têm coração como nós. E nós temos coração? Lembra-se daquele moço que
se afogou na barra do Ribeira? Seu filho integrava o grupo dos que ali
mergulhavam para a caça submarina. O moço desmaiou no fundo d'água,
morrendo por hidrocussão. Quando se espalhou a noticia, você, Hierão, perguntou
sobressaltado: quem é o rapaz? Mas sua angustiosa expreso de expectativa e
sofrimento, presto, cedeu lugar a um suspiro de alívio, quando lhe asseguraram
que seu filho estava bem... Se fora seu filho o afogado, acaso não cresceria ao
paroxismo sua dor? Contudo, porque o morto era um estranho, para você, o que
devia ser dor, o passou, quando muito, de momentâneo pesar. E agora me vem
você dizer, assim, de um modo geral, que temos coração?
E tendo assim o mestre posto a Hierão contra a parede, prosseguiu, após
ligeira pausa:
- Como vê, meu nego, a dor alheia não nos dói, como não dói no dico,
porque ambos, nós e ele, não amamos. Mas quando amamos, a dor alheia nos
dói. Se a dor de um não doesse em outro, que sentido teria a fala de Simeão que
profetizou dizendo que uma espada transpassaria a alma da mãe de Jesus? (Luc 2,
35). Já leu você de Resfa, que teve num só dia seus dois filhos crucificados?
Querendo o rei Davi desagravar a ofensa praticada por Saul contra os
gibeonitas, perguntou-lhes o que exigiam para tornarem à amizade antiga. Os
gibeonitas impuseram que sete da descendência de Saul fossem crucificados num
dia, o que se fez. Cinco filhos de Micol e dois de Resfa foram entregues
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aos gibeonitas para o sacrifício, no primeiro dia da ceifa, quando se começavam
segar as cevadas. Porém, Resfa guardou seus filhos nas cruzes, cuidando que as
aves de rapina o os dilacerassem de dia, nem as bestas ferozes, de noite (II Sam 21,
1 a 10). E durante toda a ceifa, e enquanto não vieram as chuvas, Resfa não
abandonou seu posto, velando pelos cadáveres; e seu sobressaltado e
interrompido repouso fazia-se sobre uma pedra em que estendera um pano de
cilicio. Isso, Hierão, é sofrer com a dor alheia, e mesmo quando os amados
são cadáveres, e já neles não há dor, sofre ainda quem ama, como sofrera Resfa.
E fitando ainda Hierão, continuou o pensador:
- Agora pegue a Bíblia, abra no II Livro de Macabeus, cap. 7, e verá, ali,
o que teria sofrido a mãe de sete filhos Macabeus, ao assistir os tormentos inenar-
ráveis dos filhos os quais, porque se recusaram a comer carne de porco, por
ordem de Antíoco, um por um, tiveram o couro cabeludo arrancado, as
extremidades das mãos e dos pés decepados, e, finalmente, foram assados até a
morte numa enorme frigideira levada ao rubro posta sobre grande fogão. A
extraordinária mulher, sem fraquejar em um só instante na obediência à lei do seu
Deus, foi o constante arrimo moral dos filhos, sempre os concitando a
permanecerem fiéis, vencendo, na morte, a suprema e estulta brutalidade subanimal
do rei. E depois que, em sua alma, a mãe fora sete vezes martirizada com
seus amados, ao presenciar a honorífica morte de cada um deles, por fim,
também, ela, igualmente, foi sacrificada.
E sofreando a emoção que o pegara desprevinido, mais calmo, prosseguiu o
filósofo:
- Vosabe por que, Hieo, osdicos cirurgiões não praticam cirurgia grave
em seus próprios filhos e esposas?... Pois é porque eles moralmente vão para
as mesas de tortura cirúrgica juntamente com seus entes queridos. E neste caso
particular, se pode dizer que os médicos têm coração... como nós; e ainda que
saibam que seus amados vão sarar, sofrem, sim senhor, com as dores deles. Aquele
que ama ao próximo como aos próprios filhos, médico ou o, sofre com as
dores dele. Se, pois, os salvos, no céu, forem insensíveis, como os médicos da
Terra, às dores alheias, então, se pode, com acerto, dizer que dentro da salvação
não caridade. Todavia, se a caridade é o caminho único pelo qual se sobe à
condição de redimido, e, neste, ela se aguça, então, dentro da salvação também
dor, ou, simplesmente, não há salvação, como venho demonstrando.
Irritado por esta conclusão iniludível, esbravejou Hierão:
- Mas que tem a ver a Doutrina Espírita com isso? Que os Espíritos
salvos, nos planos superiores sejam indiferentes à dor alheia, ou vivam
penando; porque ela existe, acaso a Doutrina tem alguma coisa a ver com isso?
Que o sofrimento existe é um fato; mas não foi a Doutrina Espírita que o
inventou. E a ser verdade que os Espíritos puros, porque amorosos, sofrem com
a dor alheia, isso também não foi o Espiritismo que inventou. Deus é o único
responsável por tudo isso; havenha-se ele, logo com essas discrepâncias, desde
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que ele é que teria colocado, a par, sofrimentos em uns, e sensibilidade em outros.
- De onde é Hierão, que vem essa gica obstrusa que afirma que, na
oposição entre a Doutrina Espírita e Deus, o errado pode ser Deus? Ora, os
atributos da divindade são a pedra de toque com que se hão de provar quaisquer
doutrinas. Porém, segundo essa inovação sua, qualquer doutrina estará certa,
porque, quando ela for discorde com os atributos de Deus, poder-se-á dizer: que
tem a ver com isso a doutrina? Se ela o bate com o que sempre se pensou de
Deus, pior para Deus! Sendo ele o errado, havenha-se ele, então, com a alhada!
Que se mude, portanto, a iia de Deus, visto estar certa a doutrina! E por que o
está? Está porque sim, ora... ora...
E depois de ponderar um pouco em silêncio, continuou com ar faceto:
- Não sofrem os espíritas se façam criticas ao “O Livro dos Espíritos”, mas
muitos deles gostam de criticar a Bíblia que protestantes e católicos têm por regra
de fé e de verdade? Cuidando ser granítico seu pedestal filosófico-doutrinário,
põem-se a fazer criticas, nem sempre muito sérias, da Bíblia, como se não
houvesse coisa melhor com que se ocupar.
E encarando a Hierão, prosseguiu:
- Como dizer que a Doutrina Espírita nada tem a ver com isso, se foi ela,
justamente, que suscitou a colocação do problema? É certo, como diz você Orsoni,
que o sofrimento existe, e não foi a doutrina Espírita que o inventou; e que o fato
de sofrermos com as dores alheias, também não foi inventado pelo
Espiritismo; porém, que a dor seja eterna também para os bons, também para os
salvos, também para os que se redimiram, isso é conseqüência necessária implícita
nos enunciados, nos postulados espíritas, pois, jamais, nunca, foi isto afirmado
por religião ou filosofia nenhuma! Terá, por conseguinte, o Espiritismo de
responder por este ponto uma vez que é exclusivamente dele a doutrina de que
Deus cria, ininterruptamente, Espíritos simples e ignorantes do nada, para,
depois, forçá-los, pela dor, a subir a escala evolutiva. E para realizarem isto,
terão os Espíritos de desenvolver a sensibilidade caridosa ou amor, com que vêm a
sofrer com as dores alheias. Baseado nisto, houve até quem recomendasse que
devemos reprimir e sufocar as nossas dores e aflições, porque elas são como
dardos que arremessamos contra os mundos ou níveis superiores, lancinando
os corações amantíssimos dos nossos Irmãos maiores que lá habitam. A ser verdade
isto, aquela infeliz e Macabeu ficou dardejando os níveis superiores com suas
preces, gritos, suspiros e ais, durante todo o tempo do suplício de cada um de seus
sete filhos, e, finalmente, do seu próprio. Que dizer: o demonázio do Antíoco foi
capaz, quem o diria!,
de produzir um dantesco sofrimento o só aqui na Terra
como também no Céu. Se é possível que soframos assim na Terra como no
Céu; se a criação é ininterrupta de Espíritos simples e ignorantes; se, fi-
nalmente, salvar-se é ficar livre das dores, então não fugir a esta conclusão:
no Espiritismo não há salvação.
E ponderando um tanto, prosseguiu o filósofo:
- Esta é a versão espírita do inferno eterno, que ninguém declara, e até nega,
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mas se subentende, inferno, não para culpados, e sim para inocentes, o que é pior,
dado que o simples e ignorante sofre porque é ignorante, e não por culpa; já o
que se sublima por evolão sofre também, agora, por compaixão, por empatia,
as dores dos debaixo. Se a dor está presente, ao mesmo tempo, tanto embaixo como
em cima, a dor é eterna. Para escapar disto há dois caminhos: ou a Criação dos
Espíritos foi só uma, e já se deu, tendo havido a queda... por deixarem de amar,
por trocarem o amor pelo egoísmo, queda que foi de parte dos Espíritos os
quais, agora, retornam ao lugar celeste por evolução, e, neste caso, a dor no
universo terá fim, ou a salvação não será pelo amor e sim pela inteligência,
donde se tira que os eleitos, na glória, vivem da contemplação da Verdade, vivem
da visão de Deus... que é a Verdade, vivem de pensar, de lucubrar, como o su
-
punha Aristóteles para quem o próprio Deus vive de pensar sobre o pensar, e
como o entendiam Santo Agostinho, quando na carne, e Santo Tomás de Aquino.
Como a salvação não estava, para eles, fundada no amor, os eleitos, na glória, eram
ou são indiferentes aos sofrimentos dos que se acham no inferno.
Não tinha Árago encerrado ainda este último pensamento, e dona
Cornélia esperava para entrar na sala com o café. Durante esse intervalo, as
conversações se cruzaram, cada um falando de suas impressões relativas ao tema.
Dona Cornélia também falava, mas seu interesse era saber dos familiares dos
presentes conhecidos. Terminada essa pausa em que o cafezinho propiciou breve
descanso, voltou o pensador ao assunto, dizendo:
- Como vêem todos, a crião ininterrupta e eterna de Espíritos simples e
ignorantes e a salvação pela caridade são incompatíveis; porque, se Deus cria,
de contínuo, Espíritos simples e ignorantes, a dor será eterna; e se para se
salvarem, hão os Espíritos de agar a sensibilidade, a salvação se torna
imposvel. Por conseguinte, a salvação espírita, ou não existe, ou existe, porém,
não pode estar fundada no amor; se existe e está no amor, então Deus não cria,
ininterruptamente, Espíritos simples e ignorantes. As duas proposições são
inconciliáveis entre si. Por isto, se a dor for eterna, só o não será para os que
chegarem à insensibilidade duma espécie de indiferentismo pelo qual o salvo se
mergulha numa contemplação metasica, abstrata e distante. Sem ser mau,
desumano, perverso, cruel, pode-se, perfeitamente, ser neutro, omisso, indiferente,
acomodado num estado de quietude emocional pelo que não se deseja nem o bem
nem o mal. Estando, assim, para além do bem e do mal, poder-se-á ser
perfeitamente indiferente à dor alheia, gozando duma felicidade puramente
intelectual, vivendo numa contemplação metafísica, como é a beatitude dos eleitos
segundo o entender de Aristóteles, de Santo Tomás, de Santo Agostinho, este
último, não de quando encarnado e bispo de Hipona, senão, também, de quando
desencarnado, a julgar pelo ensinamento que ditou a Kardec no "O Livro dos
Espíritos". É dele, portanto, e não de Platão, nem de São João Evangelista, a
doutrina que dá a inteligência, em vez de o amor, como atributo supremo de
Deus.
E após pequena pausa para concatenar suas idéias, prosseguiu o professor:
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- Aristóteles diz que Deus é a Rao pura, e estar no céu consiste em
contemplar a Verdade que é racional. Segundo Aristóteles, "Deus cria o mundo
da mesma forma que um artífice faz sua obra; mas como Deus não esno
tempo, cria sua obra somente pensando-a. Sua atividade é pensar (pensar
pensamentos), é esse "pensamento dos pensamentos". Assim Deus é a esncia
exemplar das coisas realizadas neste mundo".
"Portanto, a finalidade do homem no
mundo é clara: é realizar sua natureza; e o que constitui sua natureza, aquilo que
distingue o homem de qualquer outro ser, é o pensamento. Por conseguinte, o
homem deve pensar".
Por este motivo, "Santo Tomás, quando tenta imaginar ou
ver ou intuir em que deva consistir a bem-aventurança dos santos, o encontra
outra atividade senão a mesma de Aristóteles: os santos são bem-aventurados
porque contemplam a verdade, porque contemplam a Deus. Como Deus é
pensamento puro, contemplam o pensamento puro e vivem eternamente nas
zonas do puro pensar". E sendo Santo Agostinho aristotélico, também é desta
opinião. Ou, como se expressa o Pe. Orlando Vilela: "a) Agostinho, embora
não tenha sido propriamente um filósofo platônico, serviu-se, em sua teologia, da
instrumentalidade conceitual platônica. b) Tomás de Aquino, cuja teologia era
substancialmente a mesma de Agostinho, ao sistematizá-la cientificamente, serviu-se
da instrumentalidade conceitual aristotélica.
E após fechar os cadernos dos quais lera as citações, prosseguiu Árago:
- E a teologia de Santo Agostinho vivo o difere, substancialmente, da de
quando desencarnado, e tanto que dá a inteligência, em vez de o amor, como sendo o
atributo primacial de Deus; eis por que declara "Deus é a inteligência suprema
causa priria de todas as coisas" (O Livro dos Espíritos, R. 1). O que
noto, de pronto, aqui, é que a filosofia de Santo Agostinho Espírito piorou em
relação a de quando encarnado: porque, na vida corporal, seguindo
Aristóteles, afirmava que Deus pensava sobre o pensar. Quer dizer: o
pensava sobre coisas, sendo sua atividade semelhante a de um matemático puro
perdido em meio a suas fórmulas que não dizem respeito a nada, até enquanto tais
fórmulas não venham a ser aplicadas. Este é o pensamento puro ou razão pura.
Deus, como inteligência, vejam no que dá: inteligência vem de inter que quer
dizer entre, e legere que significa ler; inteligência é ler, ou apanhar, ou apreender,
ou captar nas coisas ou entre elas o nexo que as interliga e lhes sentido. A
inteligência, logo, é própria do ignorante que perquire sobre as coisas para
compreendê-las. Deus, também, procura entre as coisas o nexo, a fim de entendê-
Ias? Seria que ele fez todas as coisas sem saber, como uma criança que age ao acaso,
para depois procurar entendê-las como suprema inteligência que é? escrevera
Rousseau: "Deus é inteligente. Como? O homem é inteligente porque raciocina,
e a suprema Inteligência não tem necessidade de raciocinar; para ela o
premissas nem conseqüências, nem mesmo proposição".
-
Todavia, prosseguiu o mestre, demos de barato que inteligência é o mesmo
que razão pura. Sendo a inteligência ou a razão o atributo por excelência de
Deus, por isso mesmo, é a mais excelsa virtude ou qualidade humana. Por
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conseguinte, tanto mais se esta acercado de Deus, quanto mais inteligente e
racional se for, donde a implícita conseqüência de que fora da inteligência não
salvação. Desenvolver a inteligência pelo exercício constante do pensamento, é a
única ascese que nos garante a posse do céu. Ai dos ignorantes, ai dos faltos de
inteligência, ai dos crendeiros irracionais que seguem de fé, sem nunca perguntar
por que?, ai dos "pobres de espíritos" que, quanto à razão, são achados em falta,
porque não poderão participar da glória de Deus!
E concluiu o filósofo:
- Se por este caminho aristotélico-tomista-agostiniano se pode fugir à dor
eterna, não será ele a única via de salvação? A dor coexiste, portanto, com a igno-
rância, e cessa com a sabedoria. Os carneiros e os pombos, logo, são feitos para as
garras dos tigres e dos gaviões; e sobre todos os carniceiros aquinhoados por Deus
com todos os bens da vida, está o homem que chega a fazer a indústria do carneiro,
do porco e do boi, criando-os com ciência e técnica, para depois os abater por
atacado, a fim de abastecer os grandes frigoríficos dos centros populosos. O
homem se tornou o vencedor da vida em seu planeta, não por ser bom, mas por ser
astuto e inteligente! Os que, no entanto, desenvolverem a caridade, estarão para
sempre infernados na dor. Ora, os que se doem pelos animais, e por isso formam
sociedades protetoras deles, começam a sofrer por outrem desde já, quando ainda
não se libertaram das dores próprias. Então, se para o Espiritismo a salvação
consiste em eximir-se da dor, sendo a dor eterna, segundo o mesmo Espiritismo,
segue-se que no Espiritismo não salvação. Que é do norte filosófico, Hierão,
que o Espiritismo prometia para o mundo?
Interrogado, assim, de surpresa, Hierão respondeu, acomodando-se na cadeira:
- Nenhum Espírito há, nenhum sequer, que nos fale em dor eterna, seja a do
inferno, seja a do egoísmo eterno do céu. Qualquer que seja o sofrimento do
próximo, sempre a esperança de um termo, pois o progresso para a felicidade
é um fato. Esta consciência alivia os marrios próprios, e nos faz resignados
quanto aos alheios. É por isto que nós, espíritas, não choramos tanto a morte dos
que nos o caros.
- Toda premissa, Hierão, implica conseqüências; basta ter dito a premissa.
Todas as escolas do mundo não fazem mais do que desenvolver o implícito
nas premissas de seus mestres. Os corolários nascem dos enunciados como os
galhos, dos troncos. Assim, nas matemáticas; assim, nas ciências; no pensamento;
na filosofia. Qualquer premissa, sem exceção, é como o pé de um leque ou eixo em
que se fixam as hastes cobertas pelo pano. As escolas, assim como os leques, o
formações que se apóiam num centro que unidade ao sistema. Este centro é o
enunciado basilar. Quem admite a premissa, fica obrigado às conclusões, como
quem emite a ação, fica exposto à reação, como quem provoca um fenômeno está
sujeito ao seu transcorrer, até que se esgote seu impulso. É deste modo que toda a
geometria euclidiana se apóia no postulado quinto das paralelas. Euclides não disse
todas essas coisas que hoje aprendemos nas escolas; jamais sonhou ele fosse
possível reduzir a geometria à álgebra, como o fez Descartes, criando a
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geometria analítica que possibilitou, pela extensão da análise algébrica, chegar a
uma geometria a quatro ou cinco dimenes; nunca imaginou fosse possível, algum
dia, ser criado o lculo diferencial e integral que permite a resolução e a
simplificação dos processos matemáticos, tornando possível ao homem comum
resolver problemas que nem os gênios matemáticos do passado ousaram tentar.
Depois que Cuvier descobriu a lei de correlação, tornou-se possível aos paleon-
tologistas reconstrrem qualquer animal fóssil, partindo, por exemplo, de um
dente. Por que assim? Por que a natureza é compelida a seguir a gica! Os
ilogismos, as teratologias, os absurdos, em qualquer plano que seja, não
conseguem sobreviver. Por isto, Hierão, estranho muito que você me diga que
nenhum Espírito jamais disse as conseqüências que tirei. Mostre-me a falha no
raciocínio, e não me venha dizer que é preciso virem os Espíritos revelar e
explicitar o que posso muito bem deduzir de seus próprios enunciados basi-
lares. O que eu disse, meu nego, fica assentado, e sem resposta lógica; de nada
valerão os ornejos dos espíritas fanáticos, como esse que você emitiu há pouco.
Se que sua inteligência não alcança, nem mesmo depois de eu esmiuçar, como
venho fazendo, que a criação ininterrupta e eterna de Esritos simples e
ignorantes e a salvão pela caridade o coisas que se excluem? Que são duas
premissas pertencentes a sistemas diferentes que levam a duas soluções: a salvação
com fundamento no amor, leva à teoria de uma Criação única da qual uma parte se
derrocou, e agora essa parte emborcada endireita-se, e retorna ao lugar celeste
por Evolução. A outra teoria, a da dor eterna, seja pela criação ininterrupta de
Espíritos simples e ignorantes, conforme o Espiritismo, seja porque há a
perdição eterna para muitos, conforme o crêm católicos e protestantes, levamos a
uma salvação pela inteligência, pelo que os eleitos se comprazem numa
contemplação metafísica, e o caminho do filósofo é, neste caso, o único que nos
levará à felicidade eterna do céu. Não nego que o progresso para a
felicidade seja um fato, mas, em que está a felicidade? Na inteligência fria,
inexorável, insensível, ou no amor cálido, exuberante, apaixonado pelo próximo?
Estará a felicidade no orgulhoso isolamento metafísico teórico e distante, ou
na prática do amor que a todos enlaça como células de um organismo, de sorte
que o sofrimento de uma única célula o é de todas? Se nisto se resumir a
felicidade, a dor terá fim no universo, e Deus não cria, não senhor, Esritos
simples e ignorantes sem cessar por toda a eternidade, porque, enquanto houver
um que seja gemido de dor no universo, não poderá haver um que seja
Espírito caridoso completamente feliz... Não há, pois, fugir, meu caro
Hierão: se a dor for eterna, por causa da eternidade dos planos ou níveis
inferiores, a salvação só poderá estar na inteligência, e o céu terá de ser um
estado de puro gozo intelectual, de pura contemplação metafísica que nós,
filósofos, conhecemos muito bem. Porém, se a dor for um acidente da Criação,
que está sendo corrigido pela Evolução, neste caso, ela terá fim, e a felicidade
pode estar no amor, que não só na inteligência. Esta consciência, a de que a
dor é uma doença, e a Evolução, o remédio, esta compreensão, sim, alivia os
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martírios próprios, e nos faz resignados e pacientes quando sofrem nossos entes
queridos.
- E os espíritas, como diz você, prosseguiu o mestre, não choram tanto a morte
dos que lhes são caros. Mas os protestantes também não choram os seus de-
funtos, e até passam a noite do velório cantando aleluias e hinos da sua fé. Se
este nosso mundo é uma masmorra de dores, e pela morte se sai dessa prisão a fim
de ir-se à pátria verdadeira, os espíritas deveriam fazer como alguns povos
orientais que choram o nascimento e festejam a morte. "Como a moksa, ou
libertação de sua larga cadeia de reencarnões é a meta perseguida por todo
hindú, para ele não há ventura maior na vida do que morrer. Quando, pois,
sente que a morte se avizinha, procura transladar-se, sem perda de tempo, para a
cidade santa de Benares, a fim de lavar-se dos pecados nas águas sagradas
do Ganges. Isto fez Benares transformar-se numa vasta e buliciosa metrópole
funerária. Anciãos, enfermos e viúvas pululam por suas ruas; e nos ghats,
escadarias na ribeira daquele rio, as piras crematórias ardem dia e noite in-
cinerando uma procissão interminável de cadáveres. O espetáculo não podia
ser mais triste para um viajante ocidental. Para o hindú, pelo contrário, que
vê a Benares como o termo definitivo de uma jornada de agruras e aflições,
as mesmas cenas resultam quase festivas" (Life em Espanhol de 28-3-
1955). Agora, mais isto: "Questão foi mui duvidosa (diz Vieira) entre os
antigos qual dia desta vida era mais feliz, se o primeiro, se o último; se o do
nascimento, se o da morte. Daqui veio que, seguindo várias gentes várias opiniões,
umas se alegravam, nos nascimentos, outras os celebravam com grimas; umas
se entristeciam nas mortes, outras as solenizavam com festas. Chegou finalmente
a vida ao tribunal do el-rei Salomão, o qual, inclinando-se à parte que parecia
menos provável, resolveu que melhor é o dia da morte que o dia do nascimento: -
Ecl 7, 2 ". Se, quanto à resignação na morte, o Espiritismo nasceu superado,
como é que você mo vem propor por modelo de perfeição? A mais perfeita re-
signação na morte é a que se transforma em festividade! E o nascimento,
como representa a entrada na masmorra do mundo, havia de ser recebido com preo-
cupação e pesar. Isto, sim, é ser lógico, e andar conforme com a Doutrina!
Estas últimas palavras foram proferidas pelo pensador, enquanto ele
observava Hierão, a fim de ver se ia ele contraditar. Porém, vendo-o quieto, e
após meditar algum tempo, retornou ao tema de que se desviara um pouco, por
força das interpelações de Hierão, continuando:
- A primeira jornada filosófica, a realista, nascida da polêmica entre
Heráclito e Parmênides, teve seu termo no fim da Idade Média com Santo
Agostinho e Santo Tomás de Aquino, falando grosso modo. A segunda
jornada, a renascentista, a idealista, encetada por Descartes, terminou com os
filósofos absolutistas pós-kantianos Fichte, Schelling e Hegel, que armaram
seus sistemas como leques cujos cabos eram Egos, Vontades e Idéias totais. Vem
depois a reação positivista com Augusto Comte, levando a filosofia ao
ridículo. Ser metafísico, daí em diante, passou a ser motivo de zombaria. No
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entanto, a que levou a primeira grande sistematização do conhecimento,
havido como filosofia evolucionista de Herbert Spencer? Levou ao caos pri-
meiro de onde surgiu o universo com tudo o que nele há. E as conseqüências ou
corolários morais de tal doutrina, que promove a seleção pela força e pela
astúcia, onde o forte e o astuto sobrevivem à custa da ruína do fraco ou do bom,
só podem ser aqueles assinalados por Trasímaco, Machiavel e Nietzsche. E
Hitler soube muito bem aplicar esta moral natural da força e da astúcia, não
lhe ficando ats o bolchevismo. Por outro lado, o positivismo comteano que
se remonta ao Iluminismo do século XVIII, a John Lock e a Francis
Bacon, nos legou esse cientismo e tecnologia que aí estão, capazes, sem dúvida, de
tornar o homem mais apto em tudo, porém, o, melhor. O mundo filosófico
está, assim, sem norte, sem bússola. Por isso diz Ortega que "o mundo está
sem filosofia desde Kant". E o Espiritismo, em vez de dar norte ao mundo,
meteu-o na confusão, como o fizeram Darwin e Spencer, a considerar essa meia
verdade que Hierão, aí, defende, como sendo tudo o que o Espiritismo ensina.
Vendo-se citado, retrucou Hierão, exacerbado:
Como é que o senhor me vem dizer que o Espiritismo não deu norte
filosófico para o mundo? Até então, tudo o que sabíamos da nossa vinda ao
mundo, e por que viemos, e por que sofremos, e por que existimos, e por que
morremos, tudo era puro e simples arbítrio divino, tudo para a glória de Deus. As
grandes religes da Ásia avançaram um pouco mais, apresentando a doutrina da
reencarnão. Vem, agora, o Espiritismo e nos traz cabalmente a explicação da
dor, do problema do conhecimento, do da evolução, do da vida além da morte,
expõe sobre a vida noutras esferas, o que lá se passa, o que lá se faz, demonstrando
tudo isso, como jamais se fez, e agora me vem o senhor com esse estapafúrdio de
dizer que o Espiritismo não deu norte filosófico para o mundo? Sua bússola,
sim, é que não está funcionando bem, e por isso o acusa o norte!
- Para a maioria, tornou o pensador, é certo, norteando-se por pura crea,
essas luzes próximas bastam, luzes que você apontou, quais sejam: a explicação da
dor presente; e também lançou luzes sobre o problema do nascimento, sobre o da
evolução, sobre o da vida em outros planos, explicando o que se passa, como nunca
se fez. Para os que se acham aquém dessas luzes, elas são, de fato, norte. Todavia
os filósofos estão para além delas, e precisam saber se a dor é eterna ou não...,
para poderem tirar suas conclusões teleológicas primeiro, e morais e práticas,
depois. Se houver dor eterna para os "salvos" no Espiritismo, prefiramos o
céu católico aristotélico-tomista-agostiniano, em que a inteligência contemplativa
ou razão é tudo, e a caridade, nada! Os protestantes também são agostinianos,
quanto à teologia, não lhes servindo, igualmente, de nada o amor para a salvação.
Pois claro: havendo inferno eterno para calicos e protestantes, seus eleitos hão
de ser insenveis para não ter compaio dos precitos, alguns dos quais, parentes
e amigos. A ser verdade mesmo que o mundo veio do caos em primeira instância
- "no começo tudo era caos (R. 43); que Deus cria, ininterruptamente,
Espíritos simples e ignorantes, e, ato contínuo, submete-os à evolução; que,
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unicamente, pelo desenvolvimento do amor, ascendem aos planos superiores, esta
conseqüência necessária se impõe de modo inexorável; a dor é eterna para
todos; para os que sobem, por sofrê-la nas próprias entranhas; para os
evoluídos, por sofrê-la sob a forma de compaixão pela dor alheia. Esse salvar-
se equivale, no mínimo, a eximir-se da dor; como para o Espiritismo esta
isenção é impossível, segue-se que para o Espiritismo a salvação é impossível. É
minha bússola que não está funcionando, Hierão, ou é que no Espiritismo não há
norte para os filósofos? Como vê, meu nego, não tem jeito de deixar o
Espiritismo posto de uma parte, incólume, e os problemas que ele pprio
suscitou, colocados, e sem solão, de outra.
- Pouco , comentou Hierão, o senhor disse que o Espiritismo não deu
norte filosófico para o mundo; agora, depois de argumentar, declara, de modo
diferente, que o Espiritismo não deu norte para o mundo filofico. Ora, norte
filosófico para o mundo e norte para o mundo filosófico não são a mesma coisa;
são?
- Digo que são; porque é o mundo filosófico, particularmente
filosófico, que guia e governa o resto do mundo em geral. Rastreie cada
instituição vigente no mundo, e verá como ela nasceu duma idéia geral, duma
filosofia. Ora bem: faltando norte para o mundo filosófico, como há ele de
nortear o resto do mundo? Logo, porque faltou norte para o mundo filosófi-
co, por isso mesmo, faltou norte filofico para o mundo. Um exemplo: no fim
da Idade Média... que teve duração variável de nação para nação, mas que se
convencionou marcar com a queda de Constantinopla em poder dos turcos, em 1453,
por esse tempo já o mundo estava enfarado de Escolástica, e não havia jeito de
romper a rígida cercadura ideológica. Vem Descartes com seu cogito, e abriu
um campo completamente novo e fecundo. Descartes deu um norte para o mundo
filosófico, e este mundo filosófico discutindo Descartes, criticando-o, ampliando-
o, contraditando-o, referindo-o, produziu toda a revolução chamada filosofia
moderna que se acha hoje nas instituições vigentes. Está satisfeito agora, Hierão?
- Sim, estou. Porém faz tempo já que tenho engatilhado outra objeção, e
a não propus ainda, para não quebrar a unidade da cadeia de idéias que o senhor
vinha desenvolvendo.
- Bom. Se vocês concordarem, deixaremos essa outra objeção de Orsoni para
qualquer outro dia.
A anncia foi unânime, e combinou-se que a nova reunião seria no mesmo
dia, porém, da semana seguinte.
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IV - DO QUÊ SÃO FEITOS OS ESPÍRITOS ?
A noite caíra já, de todo, sobre Cananéia. O mar rumorejava ao longe,
batido pelo vento fresco vindo em direção à terra. A casa de Árago estava
toda iluminada, e na sala da biblioteca os estudiosos, quase todos presentes,
esperavam terminasse a música que o pensador estava ouvindo, e estava no final.
É que, na semana passada, ao terminar a última tertúlia, poucos dos que
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compunham o grupo tiveram sossego após ter o filósofo tirado as conseqüências
que levam à impossibilidade de salvação no Espiritismo, se forem verdadeiras
as duas asserções: a da criação ininterrupta de Espíritos simples e ignorantes,
e a da salvação pelo amor ou caridade. Árago, sentado em sua cadeira, com a
caba apoiada sobre a o direita, deleitava-se em ouvir a "Nona Sinfonia"
de Beethoven. Terminado os últimos acordes do coral, disse ele, após
cumprimentar os presentes:
- Sinto que esta sinfonia me descreve a fundação do universo. Aqueles sons
vagos, fracos, imprecisos do começo, dão-me a idéia do caos primeiro, em que,
confusamente, se movia a substância informe. Depois começa a delinear-se o tema,
e o espírito, e a lei, vão-se manifestando através dos embates de forças antagôni-
cas. Tudo cresce, avoluma-se, domina, expande-se. Surge a Vida da energia
degradada, e esta Vida povoa primeiro o mar, depois a terra firme.
Paralelamente aos vegetais, os animais muito primários principiam a povoar
as águas, e logo ganham a terra como anfíbios que se tornam répteis, e por aí
vai a escala da Vida, como vocês já conhecem, e não preciso explicar, até a vitória
final do Homem, na "Ode à Alegria" de Schiller.
Terminada esta pequena exposição, todos principiaram a prosear, cada um
falando do que lhe interessava no momento. 0 próprio Árago, esquecido do
motivo da reunião, estava interessado em falar e ouvir sobre todas as novidades
da semana. De repente, caindo em si, disse para os presentes:
- Vamos aos estudos. Hierão Orsoni tem uma objeção a fazer, e por ela
iniciaremos. Fale ele, então, agora, se quiser.
- O senhor disse que, pela doutrina agostiniana, inserta no "O Livro dos
Espíritos", o homem veio do nada. Não vejo por que infira que veio do
nada, quando é Doutrina expressa que o homem se achava em estado de fluido, no
espaço, no meio dos Espíritos, ou em outros planetas, à espera da criação da Terra
para começar existência nova... Portanto, é este o ensino "achava-se no
espaço, em estado de fluido".
- A doutrina de Santo Agostinho, tornou o mestre, enquanto homem e bispo
de Hipona, é a de que Deus criou o mundo do nada. Mas, que nada é esse?, nada
substancial?, nada essencial? 0 caos é um nada essencial, porque, ali, nada é.
Essência é aquilo que a coisa é. Não havendo coisa nenhuma formada, tudo é pura
potencialidade e nada ato. Todavia, o caos não é um nada substancial, porque
ele consiste em algo. 0 caos não é, mas consiste. No entanto, o nada de Santo
Agostinho é nada como substância e como essência. Então, ele coloca Deus de
uma parte como transcendência, e o nada como absoluta vacuidade. Deus é o
Tudo; e o oposto do Tudo é o nada. E é desse nada inconsistente e
inessencial que Deus criou todas as coisas, segundo ele. Por isso elas são apartadas
de Deus, não partícipes da sua Substância. Eis no que se cifra o chamado
dualismo agostiniano. Ora, no "O Livro dos Espíritos" está escrito que "não
podendo fazer-se Deus, o homem quer ao menos ser uma parte de Deus" (R.
15), o que, evidentemente, é impossível, dado que o homem não é partícipe da
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Substância divina. Por este mesmo motivo os Esritos são distintos da
divindade, "são obras de Deus, exatamente como uma máquina o é do homem
que a fabrica" (R. 77). Disse o mesmo Aristóteles por outras palavras: Deus
cria suas obras como o escultor faz suas estátuas. que, para Aristóteles, havia
uma inexplicável e confusa matéria incriada da qual Deus lançava mão para
criar. Pois no lugar dessa matéria aristolica, que coexiste com Deus de toda a
eternidade, sem ser Deus, Santo Agostinho põe, simplesmente, o nada.
E após meditar, numa pausa, por onde encaminhar o assunto, continuou o
pensador:
- Eno, se os Espíritos não participam da Substância divina, só podem ter
provindo do nada absoluto, visto que coisa alguma pode existir além de Deus; e
se alguma coisa houvesse além de Deus, quem a criou? de que a criou?; do nada,
outra vez, que, do contrário, essa coisa seria partícipe da Subsncia de Deus. Se
fizermos o homem partícipe da Substância divina, como ele procedeu do caos por
evolão, segue-se que o caos também se partícipe da Substância divina; neste
caso a substância de tudo quanto possa constituir o caos, é de origem divina.
Porém, negado isto, como o homem veio do caos, e não sendo este participante
da Subsncia divina, o homem também não o é. Logo, a substância do homem é
o nada. Mais isto: se alguma coisa existisse além e fora de Deus, teríamos de
admitir que Deus possui além e fora. E como pode Deus, que é infinito, possuir
limite, de modo a que se pudesse falar em fora e além dele?
- O caos, diz aí, Hierão, continuou o mestre, é algo, e não, o nada. Diz que o
caos é a confusão dos elementos, a desordem, a mistura. Todavia, estes elementos
que se acham em confusão no caos, foram criados por Deus; isto é pacífico, pois
não podem ter-se criado a si mesmos. Agora: foram criados da Substância di-
vina, ou do nada? Se os elementos foram criados da Substância divina, ipso
facto, tudo o que proveio deles também é partícipe de Deus. Porém, para Santo
Agostinho Espírito não há esta participação, pelo que o homem quer ser parte
de Deus, mas o não é (R. 15). O homem não é parte de Deus; os elementos que o
formam, também o o são. Não sendo, os elementos, coparticipantes da Substância
divina,o nada, a menos que se diga, como o fez Aristóteles, que há alguma coisa
além de Deus, estranha a ele, o procedente dele (!), o que é absurdo. Ou os
Espíritos vieram do nada, conforme Santo Agostinho na carne e fora dela, ou de
Deus. E dizer, meu caro Hierão, que vieram dos fluidos, o é responder, visto
que a queso, conquanto se recue, se mantém: os fluidos, ou vieram do nada, ou
vieram de Deus. Santo Agostinho diz que do nada, e por isso que não há
participação da Substância; Platão diz que de Deus, e por isso a participação
existe. Que me diz a isto, Hierão?
- Digo-lhe que no "O Livro dos Espíritos" está escrito: "Ficai sabendo:
coisa nenhuma é o nada e o nada não existe" (R. 23). E mais isto: "Não há o
vácuo. O que te parece vazio está ocupado por uma matéria que te escapa aos
sentidos e aos instrumentos" (R. 36).
- Aí está, de novo, a idéia da matéria incriada de Aristóteles. Se coisa
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nenhuma é o nada, e o vácuo não existe, então o que existe é algo enchendo todo
o espaço. E como o espaço é infinito (R. 35), esse algo ou fluido é infinito.
Esse fluido infinito é procedente da divina Substância, conforme o entendem as
grandes religiões, mas não o é, segundo Santo Agostinho que tem a Deus como um
Ser distinto da criação, uma vez que, segundo ele, "se fosse assim, Deus não
existiria, porquanto seria efeito e não causa. Ele não pode ser ao mesmo tempo
uma e outra coisa" (R. 14). Então temos isto: Deus é infinito (R. 3), e o fluido
universal que enche o espo infinito, também o é. Porém, esse fluido
universal não é substancialmente procedente de Deus, nem com este se confunde;
ambos coexistem no mesmo lugar, no seio do infinito, mas o distintos um do
outro, como causa e efeito, no dizer dele. Deus infinito é a causa, e o fluido, o
efeito. E como, segundo Santo Agostinho, Deus "não pode ser ao mesmo
tempo uma e outra coisa" (R. 14), segue-se que o independentes entre si. A
questão se coloca de novo: a substância desse fluido ou algo é a mesma da de Deus, ou
não é. Se é, Deus es no algo; se não é, Deus o está no algo. Se Deus não esno
algo, este algo é puro nada. E se apesar de o algo ser nada, assim mesmo existe,
então tudo não passa de pura ilusão fósmea, possuindo realidade aparente, como a
que nos dá o cinematógrafo, e não realidade substancial. O universo, então, é uma tela
infinita sobre a qual Deus projeta as figuras criadas do nada, e para isto usa a
poderosa lanterna mágica da sua Mente. Ou melhor: Deus fez surgir o universo do
mesmo modo como o mágico tira um coelho da cartola, com a diferença que, na
verdadeira mágica de Deus, o universo é falso ou pura ilusão fósmea vinda do nada,
no passo que na falsa mágica do prestidigitador, o coelho é real, pois existia
antes, e continua a existir depois.
E após curta pausa, concluiu Árago:
- O que acabo de dizer tem apoio no princípio cientifico segundo o qual
tudo o que existe é o seu aspecto anterior modificado. O aspecto anterior é o
antecedente do fenômeno, e o aspecto posterior é o conseqüente. Causa é o
antecedente, e efeito, o conseqüente. A lei do fenômeno é o modo de os agentes
se interatuarem, modo este apreendido pela inteligência, e enunciado sob a
forma de lei. Não é a lei de um fenômeno, portanto, que causa o fenômeno.
Ninguém pode prever, porque não lei para isso, qual será a trajetória duma
partícula em movimento browniano; isso não significa que esse movimento se dê
sem causa.o há quem possa prever quando se dará um salto eletrônico, salto
quântico; nem por isso esse salto acontece sem motivo ou causa. Não nenhuma
lei pela qual se possa prever o resultado de uma partida de futebol; mas causas
para tudo o que sucede dentro do campo, isso as . O que causa uma reação
química, por exemplo, são os elementos materiais que são reunidos no começo dela.
Ora, os reagentes são achados sob novo aspecto, no produto final da reação.
Isto que é para a química, para a física... na transformação das energias,
também é para toda a Criação, que tem de partir de uma Substância
primordial. Se quisermos dar ouvidos a Santo Agostinho para quem Deus criou
o mundo do nada, o resultado final da operação, seja qual for, é o nada, e Deus
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se torna Grande Mágico.
E voltando-se para Hierão, interrogou-o:
- Você me disse também, de acordo com sua Doutrina Espírita, que o
homem "se achava em estado de fluido, no espaço, no meio dos Espíritos, ou em
outros planetas, à espera da criação da Terra para começar existência nova
em novo globo". E estes Esritos, Hierão, em cujo meio estava o fluido pré-
humano, donde vieram?
- Estes Espíritos, segundo penso, resultaram da evolução de outra humanidade
que estivera também, por sua vez, sob a forma fluídica, no meio de outros
Espíritos mais antigos ainda, tendo em vista a "criação ininterrupta dos
Espíritos simples e ignorantes".
- E esses outros mais antigos?... Considerando que a criação teve começo
(R. 37), houve um tempo em que o homem era fluido enchendo o espaço sem
Espírito algum. "Portanto, é este o ensino", como você o declarou: "achava-
se no espo, em estado de fluido". Então concluo: este fluido espacial era o
caos ou não-ser; era a pura Substância informada, pura potência ainda, em nada
ato; não era ainda nem a confusão dos elementos, visto que estes são já um modo de
ser, porém, era a substância dos elementos, antes ainda de estes elementos se
formarem. Ter-se-á, então, de admitir uma fase pré-caótica ou fluídica, existente
antes do caos do "começo" (!). E tudo isto se resume na frase de Santo
Agostinho Espírito que declara: "No começo tudo era caos" (R. 43). Neste
"tudo" está também o pré-caos. A exegese do texto se faz assim: "No começo
tudo era caos"; depois, formaram-se os "elementos" que, entre si, "estavam em
confusão". É assim, porque houve e muitos caos sobrepostos. tantos caos,
quantas são as fases ou etapas da escala evolutiva. Os elementos o já organização
ou essências, porém, entre eles, rodeando-os, ainda reina o caos. Os elementos,
depois, arranjam-se em formações atômicas, contudo, os átomos continuam, entre
si, em caos. Passados mais alguns bilhões de anos, os átomos combinam-se enter si
formando moléculas ou compostos. Entretanto, as Moléculas, entre si, continuam
em caos, isto é, rodeadas pelo caos. Arranjam-se as moléculas em combinações
mais altas, quando foi possível a presença da água. Todavia, os compostos
complexos resultantes, ainda permanecem, entre si, em estado de caos. Surge a
micela, as moléculas gigantes, o vírus, os protozoários e fitozoários, as
colônias celulares, os metazoários, etc., como organizões insuladas no meio do
seu caos. Cada unidade, do mais baixo até o mais alto nível, é uma organização
em si, uma ordem e harmonia em si; no entanto, como ainda não se associou à
sua contrária, entre elas continua reinando o caos. Em nosso nível humano, como
indivíduo isolado, representamos ordem, cosmo ornico, universo biogico;
o obstante, entre os homens reinar ainda o caos social, visto que os organismos
sociais estáveis ainda não se formaram, por faltar o elemento de integração - o
amor. Enquanto vigorarem o egoísmo e a força, ninguém estará seguro, e as guer-
ras, de quando em quando, assolarão nosso planeta. Por conseguinte, o caos
sempre existe na escala evolutiva, donde se poder definir a evolução como sendo:
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anulação progressiva do caos pela integração. Disto decorre, ime-
diatamente, esta conseqüência: a evolução é finita; porque, se a fizermos
infinita, teremos de admitir a presença eterna do caos que sempre coexiste com
ela.
E prosseguiu o pensador, após ligeiro descanso:
- Por tudo quanto hei dito, "no começo tudo era caos"; esta é, digamos, a
primeira fase. Depois, "os elementos (já formados) estavam em confusão";
esta, a segunda fase. "Pouco a pouco cada coisa foi tomando o seu lugar"; eis a
terceira fase. "E apareceram os seres vivos, apropriados ao estado do globo";
esta é a quarta fase. Os seres evoluíram até o homem simples e ignorante, que,
suponhamos, é a quinta fase. Os homens primitivos organizaram-se em tribos, e
estas, em cidades independentes, as quais, por isto, se guerreavam mutuamente, até
que uma casa venceu sobre as demais, unificando-as, pela força. E foi assim
que surgiram as nações, os Estados, os quais, ainda, se manteo em guerras, isto é,
em caos, até que o mundo todo seja unificado sob uma só bandeira. As nações
vivem sob constante ameaça de guerras, ou seja, vivem sempre sob o signo do caos.
E após pequena pausa para concluir, continuou o filósofo:
- É assim que Deus teria criado o homem simples e ignorante, partindo do
caos mais inteiro, que é o estado fldico, conforme a fala de Santo Agostinho
Espírito. Para este Santo Agostinho, tudo começou pelo caos extremo, o
primeiro na ordem das coisas, no passo que, para Platão Espírito, é o contrário
disto, ou seja, no como era o mundo espírita, e tanto que este preexiste a tudo,
quer dizer: existe antes de tudo, até mesmo do caos primevo. E mais: este mundo
espírita, primordial por excelência, visto que não podia existir sem Espíritos,
estava povoado por Espíritos que não podiam ter procedido do caos, por uma
razão muito simples: porque o caos surgiu depois. Diz ainda que este mundo
espírita, além de preexistir, sobrevive a tudo, portanto, também, ao caos. Se o
mundo espírita sobrevive ao caos, este terá fim, e, com ele, a evolução, visto que,
como o demonstrei há pouco, esta coexiste sempre com o caos. Somente o
mundo espírita o te fim, estando nele o início e o termo final do caos. Con-
seqüentemente, o mundo espírita é o necessário, no passo que o mundo corpóreo e o
caos o acessórios, acidentais, podendo nunca ter existido, como, de fato, não
existiram antes, e podem deixar de existir, sem que isto afete a essência do
mundo espírita. E na Introdução ao "O Livro dos Espíritos", parágrafo VI,
página 22, Kardec põe de lado a doutrina agostiniana de que no "começo era
o caos", e põe a doutrina de São João Evangelista-Platão ao escrever:
"O mundo espírita é o mundo normal, primitivo, eterno, preexistente e
sobrevivente a tudo.
"O mundo corporal é secundário; poderia deixar de existir, ou não ter
jamais existido, sem que por isso se alterasse a essência do mundo espírita".
- Que mais quer você, Hierão?, prosseguiu o pensador. Pode haver
repisamento maior, para evitar laconismos e confues?
- Não... não pode haver, concordou Hierão.
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Depois de uma pausa longa para o descanso e meditação, e verificando que
ningm se dispunha a falar, partiu Árago para as conclusões:
- De maneira, meus caros, que as doutrinas destes dois Espíritos são antitéticas
uma em relação à outra; são tese e antítese. Santo Agostinho diz que no começo
era o caos dos elementos, ou o pré-caos fluídico, em nada espiritual, visto
que Espírito é sinônimo de organização, de ordem, de inteligência. Vem
Platão, e afirma que o mundo espírita, isto é, o dos Espíritos, ou ainda, o das
inteligências incorpóreas, é o que preexiste e sobrevive a tudo, portanto, também,
ao caos. No começo eram os Espíritos habitantes do mundo espírita, já porque
Deus é Espírito (Jo 4, 24 e II Cor 3, 17), já porque o Espírito é o Verbo que
era no princípio (Jo 1, 1)... Então o Espírito é organização e não caos; é
o "princípio inteligente do universo" (R. 23). E é absurdo dizer caos
espiritual, pela mesma razão que o seria se disséssemos estupidez inteligente, ou
inteligência estúpida! E conquanto o Espírito sempre esteja jungido à matéria,
ao perispírito que é seu veículo primeiro de manifestação, antes e depois do
corpo físico, Espírito e matéria "são distintos uma do outro" (R. 25). "Pode
dizer-se que os Espíritos são os seres inteligentes da criação. Povoam o
universo fora do mundo material" (R. 76). E tiveram princípio (R. 78); e
formam um mundo à parte, que é o "das inteligências incorpóreas" (R. 84); e
têm forma indefinida, como a de "uma chama, um clarão, ou uma centelha
etérea" (R. 88).
E fechando o caderno das anotações, prosseguiu o mestre:
- Se, pois, o mundo espírita é o que preexiste e sobrevive a tudo, sendo o
principal na ordem das coisas, existia antes do mundo corpóreo e do caos.
Disto vem a conseqüência necesria de que "o mundo corporal poderia deixar de
existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a essência do mundo
espírita" (P. 86). O mundo espírita é, por conseguinte, o necessário, o primitivo,
o condizente com a natureza de Deus, como já ficou dito. Pela mesma razão o
caos é secundário, acidental, acessório, contrário à natureza de Deus. Sendo o
caos desnecessário e acidental, a dor não é eterna, e dura enquanto durar o
corretivo da evolução. Vale, então, desenvolver a caridade, o amor; vale
preocupar-se a gente com a dor alheia, lutando por achar-lhe o lenitivo; vale
preocupar-se com a humanidade, com o Estado, com o mundo, como o fez Platão,
como o fez Jesus, em vez de isolar-se na torre-de-cristal do indiferentismo
metasico, num abandono intelectual que busca conhecer o mecanismo das leis só
para escapar-lhes às reações, evitando, assim, as dores próprias, só as próprias,
visto que as alheias doem nos outros. Preocupando-se Platão com o
problema político, não lhe achou outra solução que não a de os filósofos se
tornarem reis, ou os reis, filósofos. A isto comenta Arnold J. Toynbee: "Platão
apresentou a sua proposta como um paradoxo propício a provocar a ironia
das mentalidades o-filosóficas. o obstante, se a prescrição de Platão
constituiu uma afirmação violenta para leigos - quer se tratasse de reis, quer se
tratasse de plebeus - foi uma afirmação mais dura ainda para filósofos. Não é
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no desprendimento da vida que consiste o verdadeiro alvo da filosofia? E não
são os esforços em prol do desprendimento individual e a salvação social
reciprocamente incompaveis, ao ponto de se excluírem mutuamente? Como
pode alguém propor-se salvar a Cidade da Destruição, quando está justamente
lutando para ser livre? Sob o ponto de vista do filósofo, a encarnação do auto-
sacricio - o Cristo Crucificado - é uma personificação da Loucura. Apesar
disso, poucos filósofos tiveram a coragem de confessar esta convicção e menos
ainda a de agir baseados nela".
E fechando o mestre o livro de que fizera a citão, continuou:
- Pois Platão não só expressou esta convicção, como ainda agiu baseado
nela, e por isso propôs que o filósofo fosse político e se pusesse na luta em prol
da coletividade, em vez de isolar-se de todo, pela renúncia ao mundo. Tentou,
eno, converter o siciliano Dionísio às suas teorias políticas, de modo que este rei
se tornasse, também, filósofo. Mas o asneirão do Dionísio, em vez de fazer de
Platão um valido da sua corte, escravisou-o, até que os próprios discípulos de
Platão o resgatassem. Eis, pois, que Platão é o filósofo do amor, que não da
razão; e agia, assim, por acreditar na vitória final do Bem, na extinção total da dor,
pela volta das almas ao topos uranos, ao lugar celeste, de onde se despenharam
um dia. Bastava cresse ele numa dor eterna, irremediável, fosse como a que
deixa entrever o Espiritismo, pela fala de Santo Agostinho, fosse como a do
inferno eterno protestante e católico, e jamais, nunca, proporia que devesse
o filósofo preocupar-se com o Estado, com o mundo, tornando-se politicamente
rei. Se, pois, para a maioria dos filósofos Platão e Cristo são loucos, em
contrapartida, no conceito de Platão e no de Cristo, loucos hão de ser todos
esses filósofos do egoísmo que somente visam o bem próprio no
desprendimento da vida, deixando que se dane o mundo. Esta sabedoria, a dos
filósofos do desprendimento, deve ser considerada, e com razão, estultícia
diante de Deus (1 Cor 3, 19). Aí está por que Platão, conquanto filósofo, e
não místico, se emparelha com Cristo que é stico, e não fisofo, na nobre
missão de guiar o mundo. Esta é, meus caros, a causa por que devemos estar com
Platão, para quem o mundo espírita, que é o seu topos uranos, preexiste e
sobrevive a tudo; que este é o mundo normal e primitivo, principal na ordem
das coisas, existente no princípio, antes do caos, e que sobreviverá no fim,
depois da evolução; que o mundo corporal podia nunca ter existido e pode
deixar de existir, sem que isso afete a essência do mundo espírita; que,
finalmente, o topos uranos é o lugar celeste em que as perfeições se fixam na
imutabilidade, sendo esse o mundo necessário, no passo que nosso mundo corpóreo é
secundário, derivado, referto de aparências, de ilusão, de maldade. Este é o
"Credo" de Platão, implícito o na sua obra de encarnado, senão também na
do de Espírito, quando dita a Kardec parte da doutrina inserta no "O Livro
dos Espíritos".
E após um fôlego, rematou o mestre:
- Como vêem, desloco o pensamento ao longo do eixo agostiniano-platônico
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do "O Livro dos Espíritos", de Santo Agostinho para Platão. Com isto fica
aberto um ciclo novo para o pensamento espírita, pois não vejo por que a
autoridade de Santo Agostinho deva ser maior, de mais valia, do que a de
Platão.
E enquanto esperava por outra objeção, recostou-se no espaldar da cadeira,
estirando as pernas para se desentorpecerem. De novo se fez ouvir então a voz
de Orsoni, tentando ainda salvar sua Doutrina Espírita, do modo como foi ela
até agora entendida e ensinada.
- O senhor pretende que duas bases espíritas antitéticas uma em relação à
outra, e que, enquanto não se fizer a síntese delas, ambas se excluem. A
primeira, platônico-cristã diz que "fora da caridade não há salvação"; a
segunda, aristotélico-tomista-agostiniana, afirma, mas de modo impcito, que
"fora da inteligência não salvação”.
.
Mas, o que sei, prezado Árago, é
que "os Espíritos são individualização do princípio inteligente, como os
corpos são individuações do princípio material (L. dos E. R. 79); que os
Espíritos todos, sem excão alguma, "são criados simples e ignorantes e se
instruem nas lutas e tribulações da vida corporal" (R. 115 e 133); que "o livre
arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire a consciência de si
mesmo” (R. 122).
Árago, recostado ainda no espaldar da cadeira, e tendo as mãos apoiadas nos
braços dela, acompanhou todo o arrazoado de Hierão, depois do que falou:
- Diga-me Hierão: os Espíritos são individuações do princípio inteligente?
- Exato!
- E ao mesmo tempo, na sua origem, são simples e ignorantes?
- Perfeitamente.
- Quer dizer: são individuações do princípio inteligente, porém, ignorantes e
simples; são inteligências que nada absolutamente sabem. Ora, a palavra inteli-
gência vem de inter = entre, e legere = ler; ler entre, ou seja, descobrir o nexo
que interliga as coisas e as faz compreenveis. Se os Espíritos, na sua origem,
o inteligências que nada sabem, que nada apreendem, equivale a dizer que são
inteligências queo são inteligências. Está certo?
- Como certo! Os Espíritos, ao serem criados, são inteligências potenciais.
O princípio inteligente que eles individuam, então, ainda não se acha manifesto.
- Você quer dizer, caro Hierão, que os Espíritos são individuações do
princípio inteligente, mas princípio ainda não manifesto. O princípio
inteligente se acha individuado, porém, não manifesto. Então, que vem a ser
aquela individuação do princípio inteligente que ainda não é inteligente? Você
me disse que o prinpio material se individua nos corpos, assim como o
princípio inteligente se individua nos Espíritos; mas, se o princípio material não
se acha manifestado, o corpos; pela mesma razão, se o prinpio inteligente
não estiver manifesto, não há Espíritos!... Como é, então, esse misterioso
Espírito (princípio inteligente) simples e ignorante, isto é, sem inteligência?
- Não esquecer que tudo começa num germe, prezado Árago! Que entre o dia
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e a noite, ou entre a noite e o dia, o crepúsculo da luz, que nem é dia, nem é
noite. Assim, com o princípio inteligente em via de individualizar-se. Assim,
quando o Espírito se acha na fase de simplicidade e ignorância, está vivendo o
crepúsculo da inteligência. Tudo é gradativo, pois natura non facit saltos!
- O Espiritismo, como você sabe, tem de pautar-se pela ciência, não é?
- Sim, quando ele se mantém adstrito às descobertas que a ciência promoveu.
- E a ciência paleantropológica descobriu séries inteiras do "elo que
faltava" ligador do homem aos antropóides. São os hominídeos descobertos
no chamado "berço da humanidade" que fica na África do Sul, no Quênia,
nas margens do lago Vitória. Os resultados dessas pesquisas paleantropológicas
podem ser vistos no livro de Richard E. Leaky e Roger Lewin, "Origens" e
no livro só de Richard E. Leaky, "A Evolução da Humanidade". Isto posto,
pergunto: o tal Espirito simples e ignorante seria o representado pela série de
hominídeos?, seria os antropóides antigos de que saíram os hominídeos, seria o
tarsus, de que proveio o macaco antigo?, seria o lêmur, de que saiu o tarsus? Se as
formas mais altas da vida saem das mais baixas, podemos rastrear a evolução indo
até às origens, abaixo mesmo do ponto de passagem entre a matéria bruta e a
matéria viva. E descendo a escala da matéria bruta, chegaremos à pré-matéria,
à energia, que se agitava no caos do princípio. Quando, então, e onde, o tal
princípio inteligente começou a se manifestar nas individuações chamadas
Espíritos?
- Entendo que a escala da vida é escala do Espírito, e que não todos os
animais possuem espírito, senão que a mesma vida se mostra inteligente. A escala
da vida, pode dizer-se, é a escala da intelincia. Logo, o princípio inteligente
manifesta-se e se explicita em toda a escala da vida, sendo ínfimo nos seres
rudimentares, e pleno no gênio; eis, aí, a meia noite e o meio dia da inteligência.
- E Deus, Hierão, deu o livre arbítrio a todas essas inteligências, visto
como elas constituem aquilo que, mais tarde, e no alto, i chamar-se homem?
- Isso mesmo. É por isso que está escrito: "o livre arbítrio se desenvolve à
medida que o Espírito adquire a consciência de si mesmo" (R. 122). Esta to-
mada de consciência é gradativa, progressiva, avançando sempre pela escala da
vida acima, como a noite que caminha para o dia.
- E para tomar consciência de si, é preciso sobreviver, não é?
- Sim, pois claro!
- E sobreviver significa viver sobre, ou seja, vencer na luta contra o
adversário que, derrotado, se torna pasto do vencedor, não é assim?
- Evidentemente.
- E o que dá a vitória e faz sobreviver, ou é a força, ou é a astúcia.
Então, o Espírito que vem sendo criado através da vida, que vem subindo a
escala zoológica, usa o livre arbítrio nascente e crescente procurando desenvolver
a agilidade, a astúcia e a força, pelas quais sobrevive, chegando, deste modo, até
o nível do homem, o é certo?
- Isso mesmo.
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- Então, quando chega ao nível do homem, está condicionado a usar o livre
artrio como sempre o empregou; por isso o homem que crê na força e na
astúcia, vence sobre os demais neste mundo. Não é assim?
- Evidentemente, é.
- Ora, se o livre arbítrio está condicionado, atras de um passado
imemorial, a eleger a força e a astúcia, visto que estas sempre propiciaram
vitória ao animal e ao homem, segue-se que a força e a astúcia são bem, e a bondade
e a mansuetude, mal. Eno, o passado condiciona o presente, e o agir certo no
passado determina o agir correto no presente. No passado, a força e a astúcia
eram bem, porque garantiram a sobrevivência, condição sine qua non para o
desenvolvimento da inteligência. Por conseguinte, como fica demonstrado,
por correto raciocínio, que o livre arbítrio é condicionado, segue-se que o
arbítrio não é livre. 0 ser escolhe, então, "livremente", de acordo com suas
experiências passadas; as experiências passadas condicionam a "livre" escolha
presente. Sabendo-se como foi um Esrito no prerito, poder-se-á prever qual se
sua provável "livre" escolha no futuro. Está certo isto?
- Está.
- Então, o Espírito simples e ignorante possui um passado, e usando do seu
"livre arbítrio", estará condicionado a fazer o que sempre fez, que é matar
e devorar o seu semelhante..., exatamente como o comprovam as descobertas
paleantropológicas. O comportamento antropofágico surgiu depois da fase
hominídea. O homem se tornou mau quando pode empregar a força, e teve à o
o varapau e o machado de pedra. Concorda você, Hierão, em que este homem das
cavernas, descobridor do fogo e inventor dos instrumentos de pedra, seja o
Espírito simples e ignorante de que nos fala "O Livro dos Espíritos"?
- Sem dúvida !
- E a antropofagia, vigente ainda, agora, na Nova Gui, é um bem, ou um
mal ?
- É um mal, pois claro!
- Então, como é que afirma Santo Agostinho a Kardec que Deus não
criou os Espíritos maus, e sim, somente, "simples e ignorantes, isto é, tendo
tanta aptidão para o bem quanto para o mal"? (R. 121). Acha que estando
os primitivos condicionados por um passado que é o de toda a história da vida, a
empregar a astúcia, a força e a crueldade, tinham alguma aptidão para o bem, em
vez de toda esta para o mal? Acha que tantos milhões de anos gastos em formar
e reforçar o condicionamento, deixou ainda livre o arbítrio de sorte a que o
primitivo possa escolher e decidir-se pelo caminho do bem? Que será o bem, no
conceito de um caçador de cabeças" da Nova Guiné, que gosta de carne de
"porco comprido", que é como ele chama a presa humana ?
- Agora empaco ! - disse Hierão.
- Que sentido pode ter, tocou por diante o mestre, esta pergunta de Kardec?
Ei-la: "Por que é que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros,
o do mal?" (R. 121). E quando Kardec interroga: "P. 120 - Todos os
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Espíritos passam pela fieira do mal para chegar ao bem? Resposta: "Pela
fieira do mal não; pela da ignorância". Não é sem sentido a primeira pergunta
de Kardec, e esta última resposta do Espírito? Se, de acordo com o mesmo
Espiritismo, na sabedoria está o bem, ipso facto, na ignorância estará o mal; fa-
zer, pois, Deus, o filho ignorante acaso não é criá-lo mau e para a dor? Que me
diz a isto, Hierão?
- Não digo nada. Fico quieto.
- Se você fica quieto, acho que devemos encerrar nossos estudos de hoje,
parando por aqui. Na semana que vem, iremos verificar se a ignorância é ou não a
raiz de todas as maldades. E também iremos ver como seriam os tais dois caminhos
de Kardec, o do bem e o do mal.
V - A SUBSTÂNCIA DOS ESPIRITOS
No mesmo dia, mas, da outra semana, tanto que caiu de todo a noite, todos se
foram chegando à casa do pensador de Cananéia, e, familiarmente, entrando
para a sala da biblioteca. Dona Cornélia mantinha conversação com os
conhecidos, querendo saber dos familiares de cada um, e notícias de alguns que
sabia não passarem bem de saúde. Árago o se demorou, e, estando todos
reunidos, principiou a falar:
- Quando Cristo estava para expirar na Cruz, disse ao Pai que perdoasse aos
seus algozes, quando declarou, "porque eles não sabem o que fazem". Quer
dizer: porque eram ignorantes. Logo, foi a ignorância que pregou Cristo na
Cruz, fez a Sócrates beber cicuta e produz todos os males do mundo. Daí que
Platão propõe como virtude suprema a sabedoria. E Deus podia ter criado seus
filhos, os Espíritos,bios, se bem que o cientistas que são os esmiadores de
pormenores, ocupados em minudências, em porcnculas que chegam a ser menos
que , mas sábios, como são sábias, por exemplo, as células do fígado, do
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pâncreas, e os neurônios nas suas variadíssimas funções. Bastava que os Espíritos
fossem amorosos para não errarem, porque o amor é bio. Em contrapartida,
como o oposto do amor é o egoísmo, este coexiste com a ignorância, sendo que o
egsmo, o interesse, desempenha todos os papéis, às vezes, até o de
desinteressado. Por conseguinte, o Espírito simples e ignorante, no mínimo, é
um egoísta. Agora, leio aqui no "O Livro dos Espíritos" que as influências
exercidas sobre o Espírito simples e ignorante, vêm de fora, que não dele
próprio. Ora, que ele se acha condicionado pelas experiências pregressas sem
conta, ocorridas durante o transcurso de milhões de anos, o demonstrei. Que é
egoísta, isso condiz com a sua ignorância. Agora vem Santo Agostinho e nos
diz que ele sofre a pressão dos Espíritos perversos, eis o texto: "Donde vêm as
influências que sobre ele se exercem?" "Dos Espíritos imperfeitos que
procuram apoderar-se dele, dominá-lo e que rejubilam com fazê-lo sucumbir. Foi
isto que se intentou simbolizar na figura de Satanás" (R. 122).
- Condicionado por dentro, prosseguiu o pensador, por um passado atávico que
lhe ensinou, através de infinitas experiências dolorosas, que, como diz
Nietzsche, "se a vida é luta na qual os mais aptos sobrevivem, então a força é a
virtude suprema e a fraqueza é o defeito único. Bom é o que sobrevive, o que
vence; mau, o que falha". Com esta consciência profundamente enraizada em sua
vida, e pressionado de fora, pela inspiração de Espíritos satânicos que também
acreditam na foa e na astúcia, como dizer que o arbítrio é livre? Como
escolher outro caminho que não este assinalado pela experncia própria sem
conta; e reforçada ainda pelas sugestões de Espíritos ainda piores, porque
pervertidos, que o cercam? Como falar, como o fez Kardec, de Espíritos que
seguiram, desde o começo, só o caminho do bem? (R. 124). Como pode saber
o que venha a ser o bem para pré-homem sul-africano, se isto é ainda um problema
não solucionado para os filósofos? Porque se Machiavel e Nietzsche tiverem
razão, o bem reside na força e na astúcia; se tiverem razão Platão e Sócrates, o
bem reside na sabedoria; se tiver razão Cristo, o bem reside no amor que se
opõe ao egoísmo.
Santo Agostinho esclarece que o Espírito simples e ignorante tem tanta
aptidão para o bem quanto para o mal. Esta declaração deixa entrever que, para
Santo Agostinho, o Espírito simples e ignorante é uma tábua rasa de valores,
uma como cera virgem, passiva, sobre a qual iriam gravar-se as primeiras im-
pressões. Hoje sabemos, através da ciência paleantropológica, que, mesmo o
hominídeo pré-humano que se podia qualificar como "Espírito simples e
ignorante", nem é simples, nem é ignorante; possui o aprendizado que lhe
conferiu a vida através de milhões de anos de provas aspérrimas, e é tão
complexo como a mesma vida. Agora, se é bom ou mau o pré-homem das
cavernas que viveu há três milhões de anos, isso vai depender, primeiro, de se saber
o que venha a ser o bem e o mal!
A estas últimas palavras de Árago, um tumulto se levantou na pequena
assembléia. Também, neste ponto, entrou na sala dona Cornélia com a bandeja de
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xícaras e a garrafa térmica de café. Ao tempo em que saboreavam o café, iam,
todos, emitindo suas opiniões, alguns meio escandalizados por causa de o mestre
manifestar dúvida sobre o que fosse o bem e o mal; ao que parece, todos se
davam conta de saber muito bem o que eles fossem. Serenado o tumulto,
Benedito Bruco resolveu-se a interrogar o filósofo.
- Por que as almas caíram ou foram despenhadas do mundo celeste?
- Caíram por deixar de amar. E o deixaram, porque eram livres; e o eram,
porque o pode haver amor forçado! Põe, Milton, na boca de Deus, este
verso que sei de cor, a respeito dos Espíritos celestes:
"Se a vontade e a razão, que têm na escolha
Dos atributos seus o mais sublime,
Fossem privadas de tão nobre prenda,
Ambas sem liberdade, ambas passivas,
Sendo a necessidade que as movesse
E não o livre amor que me votassem,
Que prazer neste caso eu tiraria
De obediência tão cega e tão forçada?
Logo, segundo as leis da sã justiça,
Livres foram por Deus assim criados,
Tendo em si perfeição a mais excelsa,
A mais que em criaturas é possível.
Nem seus desastres imputar-me podem,
Nem sua construção, nem seu destino;
Mesmo eles, e não eu, determinaram
Todo o furor da rebeldia sua".
- Tais palavras, continua o pensador, que Milton põe na boca de Deus,
expressam a substância do fenômeno. Cessado de amar ao próximo, à
Totalidade, a Deus, passaram as almas ao natural amor de si mesmas, pretendendo
transformar a ordem teocêntrica na ordem egocêntrica primeiro, e egoísta,
depois.
- Poder-nos-ia o senhor explicar a diferença que vai entre egocentrismo e
egoísmo? - solicitou Romão Sileno.
- Egocentrismo significa que o centro é o eu; mas este eu, como ocorre com
um pai de família, opera em favor do sistema do qual o eu é apenas o centro.
Com o egoísmo não é assim, pois ele é o ismo do ego, isto é, o sistema do eu, ou
ainda, o sistema é o próprio eu, e por isso, tudo é feito em favor exclusivo
deste eu. O eu, aqui, não se sente o centro do sistema apenas; ele é todo o
sistema. Um pai que cria, educa e ajuda os filhos por todos os modos, é
egocêntrico; aquele que sacrifica a família em seu único proveito, é egoísta.
Entendido, Romão?
- Entendido.
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Foi por isso que eu disse que a ordem primeiro caiu do teocentrismo para
o egocentrismo, e, finalmente, para o egoísmo. Primeiro tudo girava em torno
de Deus; depois, em torno de algumas almas chefes que Cristo chama "o Diabo e
os seus anjos". Finalmente, estes Demonázios mores ficaram sem corte, visto
ser impossível união e colaboração entre egoístas. Todas as almas destas cortes se
fizeram a si mesmas outros tantos centros. O general foi repudiado pelo
exército, a ordem dele se desfez na anarquia geral, e cada soldado saiu em busca
de seus próprios interesses. Foi assim que se deu a dissociação da Ordem Moral,
pelo que cada alma se viu sozinha com o seu egoísmo individual. Porém, como
cada alma também é um coletivo, porque o perispírito, tal como o corpo
físico, é um estado celular; como a lei que se ims era a do egsmo, o processo
dissociativo entranhou-se nela, alma, fazendo-a, por fim, desintegrar-se nas partes
que a compõem, e estas partes se fragmentaram nos seus elementos, e estes, na
substância última que os constituem. Eis, aí está, como a Ordem Moral caiu de
nível em nível até o caos mais inteiro de que surgiu o universo evolutivo, em
sua atual volta para Deus. Todavia, nem todas as almas se dissociaram no atro
abismo; o dano foi proporcional à hierarquia e responsabilidade. Grande parte
delas ficou nos níveis do universo consistindo naquilo que São Paulo chamou,
depois, de "potestades do ar". Tais "potestades do ar" são as que tomaram
corpo na Terra, quando a evolão biológica ultrapassou a etapa dos
homideos. Portanto, todos s somos "potestades do ar" encarnadas, já com
avançado grau de evolução intelectual e moral. Falta-nos, contudo, ainda, desen-
volver o amor humanirio em escala universal.
- Contudo, os Espíritos rebeldes, tornou Bruco, não sabiam que iam destruir-
se, como individualidade, isto é, que seria desintegrado, finalmente, o coletivo
de que cada alma se constituía?
- Não. Esta experiência eles ainda não a tinham. Entretanto, sendo o amor o
princípio de integração por excelência, torna-se absolutamente impossível a
desintegração de qualquer todo fundado nele. Pela recíproca, nenhum todo
poderá manter-se, fundado no egoísmo. Isto os Espíritos celestes deveriam
saber, pelo menos por intuição e em teoria, pois ainda o se tinha, então,
verificado esta experiência. Esta sabedoria durou enquanto durou o amor;
tanto, porém, que deixaram de amar, cessaram de saber. Tanto que não
cultivaram a idéia e sentimento da totalidade, para irem cuidar de si pprios,
deixaram de amar, caindo na primeira ignorância em que, por exemplo, apesar da
ciência, os Draes ainda crêm que o mal vencerá, finalmente. Gregório diz,
em se referindo à sua mãe da qual se achava apartado "há alguns séculos": "Ela
serve ao Cordeiro, e eu sirvo aos Dragões" (André Luiz Libertação - Pág.
103).
Que Dragões são estes? Em nota ao da página o autor espiritual
esclarece-nos que os Dragões são "Espíritos caídos no mal, desde eras primevas
da Criação Planetária, e que operam em zonas inferiores da vida,
personificando líderes de rebelião, ódio, vaidade e egoísmo; não são, todavia,
demônios eternos, porque individualmente se transformam para o bem, no curso
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dos séculos, qual acontece aos próprios homens". Destaco duas coisas deste
texto: a primeira é que eles caíram no mal, e pode cair quem es em cima; a
segunda, que o tempo é "desde as eras primevas da Criação Planetária".
Basta, agora, verificar quando foi isto pelo método de datação do urânio, e a
resposta será três bilhões de anos. "A data da criação da Terra, portanto, é de
3.000.000.000 de anos" (Fritz Kahn “O livro da natureza” I, pág. 202).
Empedernidos por um passado tão longo, dizer que tais Espíritos "se
transformam para o bem, no curso dos séculos, qual acontece aos próprios
homens", é simples opinião do autor espiritual que não se pode ir, assim,
aceitando sob palavra, na base do magister dixit. O próprio Gregório,
"Espírito poderoso nos raciocínios", que "ainda não chora sob o guante do
arrependimento benéfico" (...), "entretanto, já duvida da vitória do mal e
abriga interrogações na mente envilecida". Como podem verificar, destaquei
com grifo, aqui no livro, a parte que diz : "já duvida da vitória do mal".
- Mas isso é um absurdo, vociferou Hierão Orsoni, como poderá alguém
crer na vitória do mal?
- Primeiro que tudo, tornou o mestre, os Dragões não sabem, ao certo, o que
venha a ser o bem e o mal, pois, quanto a isto, como vimos, nem mesmo os filó-
sofos andam em paz. Olhando a natureza ao perto, onde os entes vivos se
interatuam, nunca verificamos que a bondade ou o bem vençam e sobrevivam. O
bom, o manso, emparelha-se com o fraco, com o débil, e, como estes, é eliminado.
Se há, logo, um Deus que fez a natureza, este pode ser Deus dos fortes e dos
astutos, pois que sempre premia a força e a astúcia. Porém, suponhamos que a
natureza, como egressa do caos, esteja invertida e mostre-se no seu avesso: então o
direito dela é o seu contrário, e o Evangelho de Cristo está com a verdade.
Só que a natureza nos apresenta a experiência dos fatos, e Cristo nos
assegura que tudo é ao contrário da natureza, mas fica tudo sob palavra..., na
qual se tem de crer de fé. Por este motivo os Dragões crêm na vitória daquilo
que nós chamamos mal. Sem esta convicção profunda, sem esta certeza de fé, sem
esta crença, ninguém teria forças e valor para manter-se na reação negativa.
E o é difícil descobrir a premissa em que se fundamenta a lógica deste
procedimento.
Ei-la: se o sistema divino fosse o avesso do que é, esse inverso seria o certo, e o
que se considera errado fica direito. Sendo Deus único, incomparável, singular,
do jeito que ele for, na sua totalidade, esse jeito será o verdadeiro. E como Deus se
deu a si mesmo na sua Criação, segue-se que, se toda ela se inverter, Deus ficará
invertido e certo, como se assim o fora desde sempre. E aquele que vier a ser
o chefe supremo nesse sistema hierárquico invertido, negativo, esse será o deus dos
deuses. Não poderia ser de outro modo; esta é a lógica de reforço da crença
para os Dragões resistirem na oposição, sem nenhum esmorecimento, e até com
entusiasmo. Ninguém, nem mesmo Satã, poderá lutar sem uma convicção ou
crença; e a respeito de Deus diz S. Tiago que o Diabo crê e estremesse
(Tiago 2, 19).
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- E onde é que está o vício desse raciocínio?, inquiriu Bruco.
- Está em que o se considerou o aspecto Transcendente da divindade, pelo
qual Deus é infinito, todopoderoso. Considerou-se somente o aspecto Imanente,
pelo qual, sendo Deus a Substância última da criatura, ficou, no particular, e
aqui, à mercê dela. É assim que a criatura pode ir contra a vontade cósmica que se
acha impressa nas suas profundezas. Nem que todos os Espíritos se rebelassem,
ainda assim Deus estaria inabalável na sua Transcendência todo-poderosa, caus-
ticante e enceguecente, na sua majestade infinita, e, sobretudo, indefinível,
porque um Deus definido (definir é traçar fins, limites), já, por isso mesmo,
não é mais Deus. O Demônio é panteísta, por cuidar que tudo é Deus, ou
Deus é tudo. Esta tese luciferina forçou a antese agostiniana que considerou
o aspecto Transcendente da divindade, fazendo Deus exterior à sua
Criação; o mundo, então, assim como o homem, foi criado do nada; o caos é apenas
um estágio acima do nada. O primeiro sistema é materialismo grosseiro, porque o
panteísmo é o politeísmo na sua forma extremada. O segundo, de Santo Agostinho,
no dualismo Deus-Satã, Ordem-Caos, Tudo-Nada. A verdade, porém, como
sempre, está na síntese da tese e da antítese; está no MONISMO que considera
Deus, não só no seu aspecto transcendental e agostiniano, senão também no aspecto
imanentista e espinoziano, pelo qual toda a Criação é consubstancialmente
Deus. Mas a Criação, como a onda encapelada do oceano, não representa senão
parcela de Deus, que é nada, se comparado com o esplendor total dele na sua
Transcendência e Majestade. E ainda uma diferença: a Imanência não é
panteísmo (tudo é Deus), senão panenteísmo, ou seja, tudo-em-Deus ou Deus-
em-tudo. Não o as coisas, os seres, que são deuses, mas a Substância última
delas que é uma só para todo o criado.
Depois de meditar por algum tempo, prosseguiu o filósofo:
- Se Deus criou o universo do nada como queria Santo Agostinho Espírito, e
tudo começou pelo caos, abaixo da matéria, então, antes de existir o Espírito,
existiu a matéria, e aquele saiu desta, por evolução. Neste caso o Espírito é
um produto da matéria, e vale a tese materialista. Admitida a queda das almas de
Platão, do Velho e do Novo Testamento, dos mitos e das grandes religiões, a
matéria passa a ser mero produto do espírito, e por isso mesmo, ela por
evolução, se desencurva ao máximo para ser possível dar corpo aos seres e coisas
do mundo celeste. Como eso vendo, o enunciado do "O Livro dos Espíritos"
que declara serem os Espíritos exteriores ao Criador, isto é, apartados dele,
não partícipes da sua Substância (R. 77), é dualismo agostiniano, útil, em seu
tempo, para os devidos fins, mas que, se for mantido, é, também, absurdo,
acientífico e conducente a conclusões blasfemas. A comparação que fez de Deus e
a sua Criação, com a de um homem que constrói a sua máquina (R. 77) é
pueril. Aristóteles disse o mesmo ao afirmar que "Deus cria o mundo da
mesma forma que um artífice faz sua obra; mas como Deus não es no tempo,
cria sua obra somente pensando-a".
Se Deus não sai da esfera do pensamento
puro, a matéria de que as obras o feitas, visto que não é pensamento, donde
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surgiu? Se, de acordo com Aristóteles, as coisas são constituídas de forma e
matéria, sendo a forma pensamento, essência, a matéria, que é? Deus é infinito,
e por isso não pode criar fora de si mesmo, nem tem outra Substância com
que operar que não a sua própria, visto que, cientificamente, para não falar em
lógica, do nada não sai nada.
- Esta iia de crião exterior à divindade, prosseguiu Árago, decorre
do "CREATIO EX NIHILO" de Santo Agostinho, pelo qual, tendo Deus
criado o mundo do nada absoluto, fê-lo a esse não exterior a si; senão que
também o criado não participa da Substância divina. Isto foi de utilidade em seu
tempo, como já disse, porque serviu para a Igreja de Roma estabelecer sua
hierarquia eclesiástica de padres, bispos, cardeais e papas, que seriam os únicos
representantes de Cristo que se diz ser o único intermediário entre Deus e os
homens. Pois claro: sendo Deus exterior à sua Criação, não está nela, nem é a
substância de coisa alguma, nem que essa coisa seja o homem, pelo que não pode
ser aí procurado, só podendo ser buscado através dos seus representantes legítimos
de batina. Isto foi de utilidade, em seu tempo, porque permitiu à Igreja
organizar-se como força disciplinadora num mundo barbárico e hostil, o qual
teria, na certa, tirado conseqüências desastrosas do conceito imanentista.
poderá buscar Deus dentro de si mesmo, quem entrou aí, e passou a duvidar
que ele possa ser achado fora.
- E há mais isto, continuou Árago. A comparação que Santo Agostinho
Espírito, copiando Aristóteles, fez de Deus e sua Crião, como a de um homem
que constrói a sua máquina (R. 77), esbarra nesta dificuldade: quando o
homem cria seja lá o que for, ele lança mão dum material existente, exterior a
ele, e o transforma. Criar é transformar algo em algo. Deus, para operar sua
Criação, lançou o de que matéria?, e como esta matéria poderia ser exterior a
si?, como se o Infinito pudesse ter exteriores? A matéria com que Deus
operou, inclusive a substância para criar os Espíritos, tomou Deus do nada, diz
Santo Agostinho. Ora, seja o que for que se nos apresente, é o seu aspecto
anterior modificado; portanto, se era nada no princípio, -lo em qualquer
fase, ainda que a obra apresentada seja um Serafim. E como é voz corrente entre
os espíritas que Cristo fez a evolução como qualquer outro Espírito, tendo
ele também saído da fase de simples e ignorante; e sendo ele exterior à
Divindade e produzido a partir do nada, segue-se que ele, Cristo, também, é
nada.
- Pelo imanentismo, continuou o filósofo, Deus é a Substância mesma de
todas as coisas, e, por isso, também, a do homem, não precisando ninguém de in-
termediário para o buscar. E quando diz Cristo ser o caminho, a verdade e a
vida, única via para o Pai, refere-se à sua Doutrina do amor, que não a si mesmo
como pessoa. Não é a pessoa de Cristo que salva, mas a vivência da sua Doutrina.
Esta distinção entre Doutrina e pessoa fê-la Vieira ao dizer que cremos em
Cristo, isto é, cremos nele, mas não cremos a Cristo, por não pormos em prática
aquilo que ele nos manda. "De maneira, senhores calicos, que somos cristãos de
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meias: temos uma parte da fé, e falta-nos outra; cremos em Cristo, mas não
cremos a Cristo"
.
E ponderando em silencio, que mais dizer, continuou:
- Bem perto da verdade andou Kardec quando perguntou: Os Espíritos
tiveram prinpio ou existem como Deus, de toda a eternidade?" (P. 78). To-
davia, como é certo que a morte não significa renovação, o filósofo desencarnado,
ex-bispo de Hipona, respondeu com a sua "verdade" pessoal, com seu ponto de
vista particular. "Se não tivessem tido princípio, seriam iguais a Deus, etc." (R.
78). Isso mesmo: como Substância, as almas não tiveram princípio, coexistindo
com Deus. Teve princípio a essência delas que é aquilo que são, porém, não teve
princípio a Substância de que são formadas. Contudo, argutamente,
contraditou Kardec:
- "É dicil de conceber que uma coisa que teve começo possa não ter fim" (P.
83). A resposta a isto foram umas evasivas, pelas quais o ex-bispo de Hipona
declarou ser limitada a inteligência de Kardec, deixando crer que a sua própria
não o era, visto que não se inclui no que afirmara. Mais adiante, pergunta
Kardec se "todos os Esritos passaram pela fieira do mal para chegar ao bem"
(P. 120), ao que o Espírito instrutor responde com este desarrazoado: "Pela
fieira do mal, não; pela da ignorância". Ora, se todo o mal provém da
ignorância, e nenhum, da sabedoria, como passar pela fieira da ignorância, e
não, pela do mal? O que este ilogismo quis contornar é que Deus, tendo feito os
Espíritos ignorantes, por isto mesmo os criou maus e para a dor.
- Agora, continuou o pensador, o desarrazoado vem do próprio Kardec que
interroga: "Por que é que alguns Espíritos seguiram o caminho do bem e outros o
do mal? (P.121). Isso é um ilogismo, tal qual o é, também a resposta do Espírito
que diz: “Não têm eles o livre arbítrio? Deus não os criou maus; criou simples e
ignorantes, isto é, tendo tanto aptidão para o bem quanto para o mal. Os que são
maus, tais se tornam por vontade própria" (R. 121). Pois bem: não há duas estradas
a percorrer, senão apenas uma, na qual se pode avançar ou retroceder. É a estrada
que leva do caos a Deus. Quando se avança, então, se vai para Deus; quando se
retrocede, desanda-se para o caos. De maneira que toda a criatura vem do caos, do
mal, da treva, para a luz, para o bem, para a ordem, para a felicidade. Deste modo,
qualquer posição é bem e mal ao mesmo tempo; se comparada com as posições
superiores é mal; se comparada às inferiores, bem. Em relação à besta, o homem
comum é bom; em relação ao super-homem, santo e gênio, mau. Portanto, se a pri-
meira Criação divina teve início no caos, sendo o caos mal, Deus criou o homem
no mal, para que ele se torne bom, a custa de seu próprio esforço doloroso. Quer
dizer: o homem se torna bom por sua auto-realização, devendo a si próprio, e a
mais ninguém, a glória desta conquista que contrasta, pela oposição total, ao ato de
Deus, porque tendo Deus feito o homem mau, isto é, ignorante, eis que o homem
se negou no mal, tornando-se bom, ou seja, sábio.
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- Nada disso! - exclamou Orsoni: - o Espírito não se degrada! "Pode
permanecer estacionário, mas não retrograda" (R. 118). E quanto às duas estradas,
Cristo falou delas!
- Se for do agrado de todos, obtemperou o mestre, poderíamos deixar a
questão levantada por Orsoni para outra ocasião. Podemos continuar reunidos,
mas tratando de outros assuntos que não destes estudos.
A anuência foi geral, e a pequena assembléia, não dispersa, transformou-se
num vozerio sem unidade de idéias, em que cada par ou grupo falava de coisa di-
ferente.
VI - OS DOIS CAMINHOS
No mesmo dia da semana seguinte, Árago já esperava pelos freqüentadores
das tertúlias, em sua casa, estando ele no pequeno jardim em que se demorara em
fazer umas podas num grupo de hortênsias, a pedido de dona Cornélia. Ali
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mesmo ia cumprimentando, um a um, aos que chegavam, até que, por fim,
meio atrasado, aproximou-se Hierão Orsoni. Ao cumprimentá-lo, disse-lhe
Árago, em tom de amável companheirismo
- Então, hoje é o dia de estudarmos, juntos, o tal "caminho" que eu digo
ser um, e Kardec dá como sendo dois?
- Isso mesmo.
Depois de todos acomodados em seus lugares, dirigindo-se a Hierão,
perguntou-lhe o pensador:
- Essas duas estradas, uma do bem e outra do mal, o paralelas, ou o
continuativas? Quero dizer: elas estão lado a lado, uma estreita e dificultosa,
levando ao cimo, e outra larga e fácil, conduzindo ao caos? Ou são
continuativas, isto é, a que vem do caos se continua com a que leva a Deus?
- o de ser paralelas e lado a lado, que se forem continuativas, como o
senhor diz, não seriam duas, mas, uma.
- E se são paralelas, separadas, como se passa de uma à outra? Ora, se há
duas estradas paralelas, os que se acham numa não se passam à outra, donde veio a
idéia a São Paulo da existência dos predestinados para a salvação (Rom 8, 29
e Ef 1, 11 e 15), e dos precitos, feitos para a perdição. Este ponto deu o que
fazer à agudeza de Vieira que escreve: "Todos os homens quantos , e houve,
e há de haver no mundo, ou são predestinados que se hão de salvar, ou são
precitos que se o de perder. Que Cristo morresse pelas almas dos
predestinados, bem está: são almas que se hão de salvar, e que hão de ver, e
gozar, e amar a Deus por toda a eternidade; mas morrer Cristo, e dar o preço
infinito de seu sangue também pelas almas dos precitos? Sim. Morreu pelas almas
dos predestinados, porque são almas que se hão de salvar; e morreu também
pelas almas dos precitos, porque, ainda que se não hão de salvar, são almas. Nos
predestinados, morreu Cristo pela salvação das almas; nos precitos, morreu
pelas almas sem salvação, porque é tão grande o valor das almas por si mesmas,
ainda sem o respeito de se haverem de salvar, que deu Deus por bem
empregado ou por bem perdido nelas o preço infinito de seu sangue".
E voltando-se o mestre para Orsoni, após fechar o livro, ponderou:
- Viu, Hierão, como é que se constrói uma ponte sobre o ar? Ouça mais
isto: "Todos os homens neste mundo vivemos com duas ignorâncias: a primeira
da morte, a segunda da predestinação. Todos sabemos que havemos de morrer, mas
ninguém sabe o quando. Todos sabemos que nos havemos de salvar ou condenar,
mas ninguém sabe qual destas há de ser. E por que ordenou Deus que a morte fosse
incerta e a predestinação duvidosa? Não pudera Deus fazer que soubéssemos
todos quando havíamos de morrer, e se éramos ou não predestinados? Claro está
que sim; mas ordenou com suma provincia que estivéssemos sempre incertos e
duvidosos da predestinação, para que a morte nos suspendesse sempre o temor com
a incerteza, e a predestinação nos sustentasse a perseverança com a dúvida. Se os
homens souberam quanto haviam de viver e quando haviam de morrer, que seria
dos homens? Se eu, sabendo que posso morrer hoje, me atrevo a ofender a Deus
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hoje, quem soubesse que havia de viver quarenta anos, como não ofenderia
confiadamente a Deus ao menos os trinta e nove? Por esta causa ordenou Deus que
a morte fosse incerta, e pela mesma que a predestinação fosse duvidosa. Se os
homens soubessem que eram precitos, como desesperados haviam-se de precipitar
mais nas maldades; se soubessem que eram predestinados, como seguros
haviam-se de descuidar na virtude; pois, para que os maus sejam menos maus, e os
bons perseverem em ser bons, nem os maus saibam que são precitos, nem os bons
saibam que são predestinados. Não saibam os maus que são precitos, para que não
se despenhem como desesperados, nem saibam os bons que o predestinados, para
que se não descuidem como seguros".
E fechando o livro, concluiu:
- está no que vem a dar a idéia das tais duas estradas separadas, nada
valendo ser bom, se é precito, nem importa praticar o mal, se é predestinado.
Não viu o padre, ou, se o viu, calou a verdade... de que o sangue de Cristo
se torna perfeitamente inútil neste caso, seja para salvar os que não se podem, de
modo algum perder, seja para salvar os que de modo algum se salvam. Se sou
predestinado, e assim fui havido na presciência de Deus, o necessito de
nenhuma gota do sangue de Cristo, que estou salvo; se sou precito, nem todo o
sangue de Cristo me de salvar. Também, acaso, é desse parecer sua Doutrina
Espírita?
- Não. Minha Doutrina diz que "os Espíritos que enveredaram pela senda
do mal poderão chegar ao mesmo grau de superioridade que os outros"...;
"mas, as eternidades lhes serão mais longas" (R. e P. 125).
- E como é que se de passar de uma estrada à outra, se ambas são paralelas,
separadas portanto, uma levando a um destino, e outra, a outro? E se esses
destinos são opostos polarmente, como podem ser paralelas as estradas?
- Bem!... A coisa é que não são paralelas, propriamente, mas em forma de
um V. Estando o Espírito simples e ignorante no vértice do ângulo, pode
tomar por qualquer dos seus ramos, seja para a da direita ou bem, seja para o da
esquerda ou mal.
- E existe a possibilidade de passagem de um ramo para outro? Ou, de outro
modo: quem estiver na estrada do bem pode praticar o mal, e quem, na do mal, o
bem?
- Segundo minha Doutrina Espírita, quem estiver na estrada do mal pode
tornar atrás, e o fará na certa, pois todos os Espíritos hão de salvar-se; porém,
aquele que segue já pela estrada do bem não pode voltar ats, porque, como já
disse, o Espírito não se retrograda (R. 118).
- Bom. Vo me afirma, com fundamento em sua Doutrina, que todos os
Espíritos se hão de salvar; logo, o que toma pelo caminho do mal, terá de voltar
sobre seus passos um dia, não é?
- Isso mesmo.
- E quando um Espírito que ia longe já no caminho do mal, como, por
exemplo, os Dragões dos quais nos fala André Luiz, Espíritos que vêm
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trilhando essa via desde a fundação planetária, e a Terra existe desde há três
bilhões de anos, então, quando um Espírito desses cai em si, arrepende-se, e se
dispõe a emendar-se, desandando o caminho que o levaria para o caos, desde esse
momento não estará ele evoluindo para Deus?
- Claro está que sim!
- Então, é possível evoluir, mesmo estando ainda no ramo esquerdo do “V”,
correspondente ao do mal?
- Sem dúvida; e daí?
- Daí vem que, se tornar atrás na estrada do mal, é já evoluir, tocar por
diante nela é involuir que é o mesmo que retrogradar. Ora, quem se acha no
vértice do V, está em posição superior à de quem já vai longe na estrada do
mal; e este, que vai longe no caminho do mal, para seguir a estrada do bem, precisa
retornar ao rtice; eno, se essa retornada ao rtice é evolução, segue-se que
o avançar pela senda do mal, é involução ou retrocesso. E se quem se acha no ramo
esquerdo do “V”, pode, ou avançar para Deus, ou retroceder para o caos, por que
razão o que segue pelo ramo direito ou do bem, fica impedido disso? A que fica
reduzido, neste caso, o tão decantado livre arbítrio, se o Espírito só é livre para
evoluir, e nunca, para retroceder? Ou me vai você dizer que pontes e
passagens entre os ramos do V”, como querem as religiões católica e pro-
testante, de sorte que prosseguir no ramo do mal, é idêntico a seguir pela senda do
bem, desde que, lá numas tantas, haja o arrependimento pelo qual o sujeito passa
de uma estrada à outra, por qualquer das pontes que as interligam? Acaso pensa
assim sua Doutrina Espírita?
- Não. Para passar da estrada do mal à do bem, é preciso retornar ao
vértice do V, desfazendo todo o mal feito, e pondo, no lugar dos vícios, as
virtudes correspondentes. E quem, indo-se pelo ramo do mal, retorna ao vértice,
evolui. O senhor tem razão: evoluir não é seguir pelo caminho do bem, senão,
também, tornar atrás no do mal. E se a tornada atrás na senda do mal é evolão, o
movimento inverso de avançar por ela é involução, retrocesso, retrogradação. E
se não há saltos ou passagens de um ramo ao outro do “V”, e por isso o Espírito
pode andar e desandar numa ou noutra estrada, passando e repassando pelo vértice
do “V”, segue-se que as duas vias o continuativas, como o senhor aventou.
- Por conseguinte, prezado Hierão, se as tais duas estradas são continuativas,
o o duas, o uma, embora dobrada em V. Endireita-se o V, e ter-se-á
uma reta que leva do caos a Deus. O vértice do V é o meio da jornada
evolutiva, e neste ponto Santo Agostinho Espírito supõe que Deus criou o
Espírito na fase de simplicidade e ignorância, uma espécie de tábua rasa de
valores, sem passado algum a atuar como inércia, sendo-lhe, ao Espírito, por isso,
o fácil enveredar-se pela trilha do bem, como pela do mal. Todavia, a ver-
dade é bem outra: se a fase de simplicidade e ignorância representa o meio do
caminho para Deus, segue-se que o Espírito já possui vida e experiências
pregressas estratificadas nos instintos por milhões de anos. E quem possui
impulsões animalescas tenazes, quais hão de ser as do pré-homem macacóide,
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não é livre de escolher, como hei demonstrado. Eis que, partindo da premissa
espírita das duas estradas, tenho chegado ao mesmo resultado exposto antes, em
perfeita concorncia com os últimos dados da pesquisa paleantropológica. O
Espírito simples e ignorante, portanto, no vértice do “V”, possui um passado
que remonta à origem da vida. Santo Agostinho supõe, e dá esta suposição por
doutrina, que o Esrito simples e ignorante, no vértice do “V”, é uma tábua rasa
de valores, uma cera virgem, pronta para receber as primeiras impressões.
Porém, a verdade é que o Espírito, nessa fase, representa uma formação que
resiste às mudanças por impulsões de muitos milhões de anos. E quando segue,
como ocorre sempre, pela senda do mal, não faz seo abandonar-se à inércia das
fases vividas no passado, e que se estratificaram no subconsciente sob a forma
de instintos. Então, quem se acha no vértice do “V”, no meio da escalada, e pode
seguir o caminho do mal, no rumo do caos, de onde evoluiu, mais não faz do
que retrogradar. A evolução do Espírito, por conseguinte, se faz por avanços e
recuos, sendo os avanços, via de regra, um pouco maiores que os recuos, não
havendo isso de ele seguir sempre, desde o início, sem parar, pelo caminho do
bem. Quanto maiores forem sendo os avanços para Deus, tanto mais curtos
ir-se-ão tornando os recuos, até que, por fim, quando não houver mais recuo
algum, o Espírito está perto de entrar para a classe de puro, ou seja, sábio e
santo.
Neste ponto do estudo, interveio Ramon Sileno, exclamando:
- Achei, aqui nos Evangelhos, o passo em que Cristo falou das duas estradas;
diz o texto: "Entrai pela porta estreita; porque larga é a porta, e espaçoso o
caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por ela; e porque
estreita é a porta, e apertado o caminho que leva à vida, e poucos há que a encon-
trem" (Mat 7, 13 e 14).
- Eis aí, Hierão, comentou o mestre, como Cristo apenas empregou uma bela e
oportuna figura, mostrando, na porta e caminho estreitos as virtudes por serem
adquiridas com grande esfoo e luta; na porta e estrada largas ele simbolizou os
instintos e impulsões atávicas de milhões de anos cristalizados pela repetição.
Basta só, portanto, afrouxar a tensão do esforço da subida, e já se desanda para
a largura dos impulsos e bitos malsãos, estratificados no profundo do Espírito,
no subconsciente. Não são paralelas ou em “V” as estradas, mas, ambas são uma,
visto que uma se continua na outra. Posso estreitar ou alargar a conduta, se cuido
de adquirir virtudes que o tenho, ou se me abandono às próprias impulsões
animalescas das fases superadas, mas o extintas. Com esta idéia das duas
estradas independentes, interroga Kardec: "m necessidade da encarnação os
Espíritos que, desde o prinpio, seguiram o caminho do Bem?" (P. 133).
Resposta: "Todos são criados simples e ignorantes e se instruem nas lutas e
tribulações da vida corporal. Deus, que é justo, não podia fazer felizes a uns, sem
fadigas e trabalhos, conseguintemente sem mérito". Então, como Deus é justo,
e na impossibilidade de criar a todos felizes, fê-los a todos sofredores, isto é,
pôs por lei geral as lutas e as tribulações da vida corporal. E isto para terem o
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rito, só que, se os Espíritos fizerem alarde disso, isto é, que têm o rito,
podeo ser punidos por vaidade, por orgulho e por ingratidão. Todavia, não
satisfeito, Kardec, com estas sem-razões, acrescenta: "Mas, eno, de que
serve aos Espíritos terem seguido o caminho do bem, se isto não os isenta dos
sofrimentos da vida corporal?" Resposta: "Chegam mais depressa ao fim" (R.
133). Que fim, se para o Espiritismo ortodoxo a evolução é eterna? Diga-
me, Hierão: pode ser considerado salvo um Espírito, enquanto estiver sujeito
às contingências da vida corporal?
- Claro está que não, pois, salvação significa estar livre da dor; ora, quem
se livrará das dores, estando submetidos às contingências da vida corporal?
- Se, pois, a salvação significa isenção da dor; e se isto é impossível até
mesmo para o que seguiu, sempre, somente, pelo caminho do bem, de novo se
impõe o imperativo anterior: a salvação não existe, e a dor é eterna. Tanto faz,
logo, ser Cristo ou Gestas, que, para ambos, cruzes não hão de faltar.
E depois de refletir um pouco, prosseguiu Árago:
- Diga-me mais isto: pode sofrer o inocente, de acordo com sua Doutrina?
- Absolutamente não... que não pode haver efeito sem causa. Toda dor
provém de erros cometidos.
- E os Espíritos que, na proposição de Kardec, desde o começo sempre
seguiram pelo caminho do bem, concorda que o inocentes?
- Tenho de concordar, pois, seo têm culpa,o inocentes.
- Contudo, sofrem, ao ser submetidos às "lutas e tribulações da vida
corporal" (R. 133). Como cordeiros mansos, pacíficos, que o, não ficam sempre
esses inocentes, no mundo, expostos às sanhas dos lobos vorazes de que se constitui
grande parte dos homens?
- O inocente e o justo, concordou Hierão, sofrem neste mundo; isto é da
experiência histórica.
- É inocente e justo, e sofre? Logo, pode sofrer o que não tem culpa, e o
que sempre temeu a justiça? É pacífico, para todas as religiões, que a salvação tem
de corresponder a um estado de inocência; e se mesmo o inocente e o justo sofrem,
segue-se, por aqui, também, que a salvação não existe, porque a dor é eterna!,
haja ou não causa para o efeito da dor.
Tentando livrar-se do arrocho, com que Árago o afligia, enveredou-se,
Hierão, por caminho já trilhado, ao dizer:
- Suponhamos que a Evolução, como um todo, seja finita, e não eterna;
neste caso, o fim, referido no "O Livro dos Espíritos", seria o regaço do
Pai ao qual se dirige o filho, ou seja, a criatura vai a Deus por Evolução.
- Sendo Deus a única Realidade da qual todas as demais decorrem, só pode ir a
Deus quem não esnele; ir, pois, a ele, é retornar à fonte donde procedeu. Se a
criatura torna a Deus, é porque saiu dele, visto ser impossível voltar sem ter
saído! Portanto, este fim é também o começo de onde o Espírito podia não
ter saído; e se saiu por vontade própria, como o entendem, as grandes religiões e os
mitos, é culpado, sendo bem merecidas as dores todas que o assoberbam; todavia,
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se foi compelido a sair, se possível, é bom que o retorne, para não precisar
sair de novo...
- Eu disse que o Espírito se dirige ou vai ao Pai, por evolução - retrucou
Orsoni. Ora, ir ou dirigir-se para alguma parte, não é tornar a ela. Todavia, o
senhor, ou por inadvertência ou matreirice, trocou o meu ir para ou dirigir-se
pelo termo tornar ou voltar, o que o é a mesma coisa, dando a entender que o
Espírito teve origem em Deus, para o qual retorna, e não, no caos, de onde
procede. O Espírito vai ao Pai, disse eu, porém, não retorna, porque não
dimanou dele, o sim, do caos. Pois claro: se o processo evolutivo tem origem no
caos, e termina em Deus, evoluir significa ir para Deus que não é o mesmo que
tornar a Deus.
- Você me está dizendo, então, que o caos é estranho a Deus, não procedente
dele, não originário da sua Substância?
- Foi isso mesmo que eu disse, não por enigma, senão claramente. Como pode
Deus ter alguma coisa a ver com o caos, se este representa a suma oposição de
Deus?
- Se o caos não surgiu de Deus, de que surgiu então?
- Do nada, ora bolas!
- Mas surgiu por si mesmo, por acaso, ou foi por vontade e obra de Deus?
- Claro que surgiu por obra e vontade de Deus! De quem outro havia de
ser?
- Logo, Deus criou o caos do nada, visto que este não procede da sua
Subsncia?
- É isso mesmo!
- E o homem também veio do caos?
- Perfeitamente.
- Por conseguinte, tornou o mestre, o homem veio do nada. É como diz o
Espírito na Resposta 15 de "O Livro dos Espíritos": "Não podendo fazer-
se Deus, o homem quer ao menos ser uma parte de Deus". Ora, dado que a
Crião teve prinpio, houve um tempo em que só havia Deus. Se ao criar,
Deus não tirou coisa nenhuma de si, pode ter criado do nada, como você diz.
Tiro disto, então, que o homem é nada; porque qualquer que seja o estado, em que
qualquer coisa se apresente, é o seu estado anterior sob novo aspecto, e, deste
modo, inexoravelmente, se pode remontar à última substância de que a coisa
consiste. Eis, eno, que, segundo sua Doutrina Esrita... que expressa o pensar de
Santo Agostinho, Deus não pode estar no interior das suas criaturas, mesmo as
mais perfeitas, visto que Deus é exterior à sua Criação, tendo esta vindo do nada.
Desenvolvendo sua premissa agostiniana temos: se no começo tudo era o nada,
qualquer coisa é o mesmo nada sob outro aspecto. A Criação é exterior a Deus?
Sim, é, responde Santo Agostinho, pois ela veio do nada e é nada, Deus sendo
o Tudo, completamente separado, estanque, da sua Criação, existindo ele, somente,
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como Transcendência, e não, como Imanência que é ele na sua expressão
criacional. E se alguma coisa pode ser exterior a Deus, e estar fora de Deus,
então ele é finito, tem limites, podendo haver-lhe os foras que são os
extralimites. Então Deus é finito, e não é Deus. E Cristo é Deus, Hierão?
- Cristo é homem, conforme o ensina o Espiritismo.
- Então Cristo é nada, porque não é Deus, mas, somente sua criatura, vindo,
como tudo, do nada, pelo que é nada sob o aspecto de Cristo. Sendo, pois, Cristo,
um nada fantasmagórico e ilusório, que então pode ser o Evangelho que ele
pregou? Eis aí, Hierão, um nada criando outro, que tudo é ilusão fósmea, com ser
tudo exterior à divindade que é a única Realidade que não se reparte no
criado. Mas que é o nada? Acaso não é a negão total, absoluta? o é,
acaso, o nada, o o-ser que se opõe ao Ser por excelência, que é Deus? E,
pois, se Deus criou as suas obras, ainda as mais perfeitas, do nada substancial, do
nada consistencial, segue-se que elas vieram do não-ser para a ilusão de ser. O
nada está abaixo do caos mais inteiro e primitivo, sendo o último estágio,
portanto, a que alguma coisa pode regredir. Neste ponto foi que Deus, o
Grande Mago, deu os seus passes de mágica, fazendo surgir, do vácuo, o homem
angustiado, aflito, sofredor, ignorante, fraco. E esse nada com aspecto de homem,
sofre, sua, sangra, vive na morte, porque a vida é nada. Luta por evoluir,
enfrenta o martírio já como Gestas, já como Dimas, já como Cristo. Mas não
adianta nada evoluir, porque eterno é o sofrer, visto que a dor é caractestica
desse sistema que começou do nada, e por isso é nada. Qual, logo, é a última
consistência ou substância de Cristo? O nada! Pois que gema, então, chore, sue e
sangre na sua Cruz, que esse de ser o eterno resultado que pode produzir o
nada!
Fez silêncio o pensador, e ficou a ver se Hierão ainda se dispunha a
retrucar. Mas vendo-o quieto, pôs remate ao que vinha dizendo:
- Como estão vendo, está por terra o dualismo agostiniano que põe Deus de
uma parte, como a Realidade única ou o Ser absoluto, e da outra, o não-ser e o
nada substancial. Como puderam observar, da premissa “creatio ex nihilo” tirei
estas conseqüências implacáveis, irreverentes, blasfemas, e fiquei depois a esperar
pela resposta, aí, de Hierão, que não veio, e, presumo, nem virá.
Depois de uma pausa, voltando a olhar o livro que tinha, aberto, nas mãos,
prosseguiu:
- Diz, mais, aqui, a letra: "Demais, as aflições da vida são muitas vezes a
conseqüência da imperfeição do Espírito" (R. 133). Se "são muitas vezes", e
não, todas as vezes, segue-se que pode haver "aflições da vida" que não
decorrem da imperfeição do Espírito. Por conseguinte, pode o inocente e
perfeito sofrer... Como é então que, aí, o Orsoni afirma, com base na Doutrina
Espírita, que o inocente não pode sofrer, porque, não havendo efeito sem causa,
toda dor tem de provir de erros cometidos? Mas o Espírito sofre por ser
imperfeito, e o é, porque assim o fez Deus, com criá-lo simples e ignorante.
Que se diga, então, sem eufemismos ou rebuços, que as aflições da vida são im-
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pingidas pelo Pai aos filhos inocentes, visto que qualquer erro decorre,
imediatamente, da ignorância da qual o ser não tem culpa. Se o sou culpado da
ignorância, e erro, porque sou ignorante, não sou culpado pelo erro; por que,
logo, me pune Deus? E se me decido a seguir sempre pelo caminho do bem,
ainda assim, terei de sofrer as dores e tribulações da vida corporal, e isto, diz o
Espírito, para poder chegar à perfeição. Daqui se tira, claramente, que aquele
que anda sempre pela estrada do bem ainda não é perfeito. No entanto, para
escolher entre uma estrada e outra, usando o livre arbítrio, preciso é ser sábio,
porque quem for completamente insciente não pode escolher, e se toma por uma
estrada ou outra, há de ser por acaso. Ora, quem age ao acaso não usa o livre
arbítrio nem escolhe. Conseqüentemente, se sigo sempre pelo caminho do bem,
e nunca, pelo do mal, nisto dou prova de sabedoria. Contudo, apesar de sábio, e de,
por isso, nunca errar, tenho de passar pelas vicissitudes todas da vida corporal
para chegar à perfeição. Por conseguinte, na sabedoria também não reside a
perfeição, por isso que o sábio sofre, e Sócrates foi condenado a morrer pela
cicuta, e Cristo, pela cruz. Então, que é a perfeição? E se ignoro o que vem a
ser perfeição, como hei de querer o que ignoro? E se a ignoro, não a posso
querer; e se a não quero, como guiar, então, meus passos para ela?
E tendo Árago consultado o relógio, concluiu:
- Convém encerrarmos estes nossos estudos de hoje. Resumindo tudo, temos:
o Espírito simples e ignorante é uma etapa ou fase de um desenvolvimento que
começou pelo caos. As coisas se organizaram pouco a pouco, através de
bilhões de anos. Os seres vivos apareceram, então, e evoluíram, lentamente, até
o surgimento do homem, o qual, deste modo, se viu criado como simples e
ignorante; e porque procedeu, o homem dos animais inferiores, se viu
assoberbado pelos instintos animalescos, os quais, por uma necessidade de vida, teve
de desenvolver-se e de reforçar-se por meio de repetições constantes.
E pegando Árago um livro de sobre a mesa, e abrindo-o numa página marcada,
continuou:
- André Luiz nos dá um relato desses Espíritos, assim como de um dos
lugares onde habitam, quando desencarnados: diz-lhe seu mentor Gúbio: "Milhares
de criaturas, utilizadas nos serviços mais rudes da natureza, movimentam-se nestes
sítios em posição infraterrestre. A ignorância, por ora, não lhes confere a
glória da responsabilidade. Em desenvolvimento de tendências dignas,
candidatam-se à humanidade que conhecemos na Crosta. Situam-se entre o
raciocínio fragmentário do macacóide e a idéia simples do homem primitivo na
floresta. Afeiçoam-se a personalidades encarnadas ou obedecem, cegamente, aos
espíritos prepotentes que dominam em paisagens como esta. Guardam, enfim, a
ingenuidade do selvagem e a fidelidade do cão".
E fechando o livro, prosseguiu:
- Tais Esritos, como se vê, eso abaixo da fase das paixões, que
representam "um sinal de atividade e de consciência do eu, porquanto, na alma
primitiva, a inteligência e a vida se acham no estado de germe" (R. 191).
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Esse Espírito nascente e incipiente é posto no começo da fieira da ignorância
que, absurdamente, não é a do mal (R. 120). Dá-se-lhe um livre arbítrio,
para ele escolher entre o bem e o mal, sendo que isto, nem os filósofos ainda não
sabem o que sejam. Sofre, por dentro, a pressão dos instintos ferozes e
vissimos, e por fora, a "dos Espíritos imperfeitos, que procuram apoderar-se
dele, dominá-lo, e que rejubilam com fazê-lo sucumbir" (R. 122). Depois de
tudo isto, acha Kardec (P. 121) seja possível terem, alguns Espíritos,
seguido, sempre, somente, pelo caminho do bem? Como se existissem, de fato,
dois caminhos, em vez de um só, Caos-Deus, no qual se pode avançar ou
retroceder? Se tudo fosse desse jeito mesmo, seria Deus justo e bom, como tanto se
apregoa? Contudo a intuição ("Dados imediatos da consciência" - Bergson;
"Imperativo categórico da razão" - Kant); a intuição nos afiança,
peremptoriamente, que Deus é justo, que Deus é bondade e amor; logo, estas coisas
não passam de absurdo e blasfêmia, se as quisermos válidas para os nossos dias.
Chegado é o tempo de o Espiritismo avançar mais um passo, se não quiser ficar
estagnado, deslocando o pensamento de sua filosofia ao longo do eixo
agostinianoplatônico, de Santo Agostinho para Platão. A premissa teológica
agostiniana, o seu creatio ex nihilo, está superada, e leva ao sarcasmo, à
blasfêmia, se quisermos ainda estar com ela; como o Pentateuco, pertence, já,
agora, ao passado. É respeitável como elo do passado mental da humanidade, sem o
qual o pensamento não lograria ter chegado até aqui, do mesmo modo que este
arrazoado nosso é passo necessário para os desenvolvimentos futuros. Platão e São
João Evangelista têm razão: no começo era o mundo espírita (topos uranos
para um e o Verbo para o outro) não só que preexiste, senão que sobrevive a
tudo, podendo o mundo corporal ou acidental nunca ter existido, ou pode deixar
de existir, sem que isto afete a essência do mundo espírita. Por conseguinte, o
mundo espírita é o necessário e primitivo, e o corporal, acesrio e posterior,
visto ter surgido por causa da falência dos Espíritos, não sendo, portanto,
obra direta de Deus. É incrível que haja sido possível associar a obra criadora
e sábia de Deus à Evolução a qual, sabidamente, se dá por acaso. As coisas,
na Evolução, se encaixam onde o possíveis os encaixes, só que estes são
encontrados pelo todo da loteria, do ensaio-e-erro..., e num tempo
inimaginável, o que afasta a idéia de um Ordenador sapiente que jamais, nunca,
seguiria esse caminho do aprendiz que faz milhões de experncias frustradas, e
deixa, depois da obra semi-acabada, um aluvião de monstrengos, isto é, de material
desperdiçado.
- Esta, a verdade, continuou o filósofo, que poderá ser aceita pelo Espiritismo
liberal; porém, o ortodoxo, falando pela boca de seus mestres conservadores, irá
pretender impedi-Ia, sob o pretexto irrisório de que "devemos defender a
unidade da Doutrina". Que importa a unidade da Doutrina? Que culpa tenho eu
de o Espiritismo ortodoxo ter-se enveredado pelo ramo de Santo Agostinho, em
vez de pelo de Platão? A verdade, e a verdade interessa, e não, a unidade de
quaisquer doutrinas, como sempre foi, e para todo o sempre o será. Todavia, como
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também é fato que a história se repete, a ortodoxia espírita pretenderá pôr
diques ao curso da verdade, como fizeram os judeus no tempo de Cristo, e a
Igreja de Roma no tempo da Reforma. Porém, detida em seu curso natural, a
verdade avolumar-se-á, como sempre tem acontecido, arrebentando os diques
misérrimos levantados por esses reacionários. Hierão Orsoni, aí, é um exemplo
da reação espírita que estaria disposta a lutar pela integridade da Doutrina, não
importa se obsoleta ou falha. Todavia, eu, cumprindo uma missão, aponto-lhe no
texto mesmo do “O Livro dos Espíritos", o ponto em que baseio a reforma que
se fa, quer queiram, quer não queiram.
E consultando de novo o relógio exclamou:
- Convém encerrarmos estes nossos estudos de hoje.
VII - INCOERÊNCIAS DA FILOSOFIA ESPÍRITA
Caída que foi a noite, e estando todos reunidos na sala da biblioteca, Árago
principiou a falar:
- No sábado da semana passada, após vocês saírem, fui para a cama, mas não
pude conciliar o sono. As idéias fervilhavam-me, e só pela madrugada me
acalmei. O que pensei então, acho deve ser o assunto de nossas cogitações de hoje.
Ainda mais que é prosseguimento do que hemos visto na noite daquele dia. O
que andei cogitando é que se Kardec fosse filósofo, orientaria as
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interrogações ao Espírito Instrutor de outra maneira. Ocorre que tudo o
quanto o homem vê, toca, percebe pelos sentidos, desde logo estimula sua
inteligência. E quando deseja conhecer a coisa que o ocupa, procura, em
primeiro lugar, saber o que ela é, e, depois, de que é feita. E assim o filósofo
coloca o problema do ser perguntando: o que é isto? Qual, a sua essência? E
depois: qual a sua substância? do que ela é feita? de que ela se constitui, ou em que
consiste? Todavia, lendo "O Livro dos Espíritos", sobrevém-nos uma
desolação, por causa de as perguntas serem diferentes de como as faria um
pensador.
E pegando do "O Livro dos Espíritos", prosseguiu:
- Aqui pergunta Kardec: "O universo foi criado, ou existe desde toda a
eternidade?" Resposta: "É fora de dúvida que ele não pode ter-se feito a si mesmo.
Se existisse, como Deus, de toda a eternidade, não seria obra de Deus" (R. 37).
Então, tornou Kardec: "Como criou Deus o universo? (P. 38). Se Kardec
fora filósofo, perguntaria: do quê Deus criou o universo? Pois claro: o como não
interessa tanto, como o de que substância, de que coisa anterior foi feito, dado que
criar é transformar algo em algo. E porque a pergunta não nos satisfaz,
também a resposta nos deixa insatisfeitos: "Para me servir de uma expressão
corrente, direi: pela sua Vontade" (R. 38). E com isto a substância ontológica
ficou no tinteiro... Porém, isto que não ficou explicitado, s podemos deduzir de
outras partes, como já o fizemos outro dia. Agora vamos a isto:
- Noutro lugar diz o Espírito que o espo é infinito (R. 35), e que não
há vácuo. "O que te parece vazio está ocupado por uma matéria que te escapa aos
sentidos e aos instrumentos" (R. 36). Ora, o espaço é infinito, e está ocupado
por uma matéria que, não deixando vazio no espaço, ipso facto, é infinita.
Kant também esbarrou com esta dificuldade: sendo o espaço objetivo infinito,
está ocupado por uma matéria tamm infinita; e sendo a matéria infinita, ela
se confunde com Deus. Escreve Will Durant: "A verdade é que Kant, para fugir
ao materialismo sentia grande desejo de provar a subjetividade do espaço;
receava o argumento de que, se o espaço é objetivo e material, Deus deve existir no
espaço e ser, por conseguinte, espacial e material" (... ) "A velha raposa abocou um
pedaço maior do que o que podia mastigar".
Consulte-se, agora, o Dicionário de
Filosofia de Nicola Abbagnano, e ver-se-á que para os Neoplatônicos, o Espaço era
o próprio Deus; e outro não é o pensamento de São Paulo para dizer que Deus
"não está longe de cada um de s; porque nele vivemos, e nos movemos, e
existimos (Atos 17, 27-28); ou então Espinosa que afirma, na sua Ética: "tudo
o que é, é em Deus".
- Porém, não é só isto, continuou o mestre, porque "ao elemento material
se tem que juntar o fluido universal, que desempenha o papel de intermediário
entre o espírito e a matéria propriamente dita, por demais grosseira para que o
espírito possa exercer ação sobre ela" (R. 27). "Esse fluido universal, ou
primitivo, ou elementar" (R. 27), tem que ser também infinito, porque
coexiste com a matéria, sendo, talvez, o que Einstein chamou de "campo", e se
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pode chamar de energia. A matéria não se acha nunca desacompanhada da
energia, nem esta, daquela; e sendo a matéria infinita, ipso facto, a energia ou
campo também o é. Deste modo, matéria e energia infinitas enchem o espaço
infinito. E o espírito? "Que é o espírito?" É "o princípio inteligente do
universo" (R. 23), que atua na matéria através do seu intermediário, o fluido
universal. Então, o universo que ocupa o espaço infinito é constituído de
matéria, energia e espírito. Agora, a questão: estas três substâncias, ou são
redutíveis a uma delas, ou o o são. Se o são, somente uma substância
universal e não três. Se o não são, neste caso três substâncias fundamentais,
separadas, estanques, três mônadas, para usar uma expressão de Leibniz.
Tanto é assim, que explica o Espírito: "Se o fluido universal fosse
positivamente matéria, razão não haveria para que também o espírito não o
fosse" (R. 27). No caso de haver três substâncias separadas, irredutíveis entre si,
fica recolocado o velho problema metasico: como se intercomunicam ou
interligam as substâncias, se são estanques? Não havendo um bordo de contato, uma
zona de sintonização onde as duas subsncias se confundam, o impulso gerado
numa, não se transfere à outra. Havendo zona de sintonização, nesse ponto as
duas subsncias são uma. Se o espírito atua sobre a matéria, e esta, sobre o espírito,
preciso é que haja uma zona de sintonia ou de passagem dos impulsos; nesse ponto,
o espírito e a matéria se confundem, donde vem que um se reduz ao outro. O fato de
haver fluido intermediário universal, como se , o altera o problema, porque,
no lugar em que este fluido se faz uníssono com a matéria, ele é matéria, e no lugar
que sintoniza suas vibrações com as do espírito, é espírito. Ora, se o fluido
universal tanto se reduz a matéria como a espírito, ele é um denominador comum
entre ambos. E para os que gostam de ouvir isto mesmo posto nos termos da gica,
temos o enunciado que diz: duas coisas iguais a uma terceira, são iguais entre
si. Se A = B, e B = C, então, A = C. As duas coisas são o espírito (A) e a
matéria (C); e o iguais, pelos bordos de sintonização, à terceira (B) que é o
fluido universal. Por conseguinte, o espírito não é outra coisa que a mesma matéria
sob outro aspecto. Tal é o que se acha implicitado na Resposta 27, quer queiram,
quer não queiram os espíritas ou os Espíritos.
E fazendo uma pausa longa para a meditação dos ouvintes... em cujos rostos
se podia ver o entusiasmo o espanto que causara estas conclues, e verificando o
mestre que ninguém se dispunha a contra-argumentar, prosseguiu:
- Para fugir disto, havemos de supor que duas substâncias separadas,
incomunicáveis, que são matéria e espírito, dado que, como diz o Espírito
instrutor, o fluido pode ser considerado como imaterial. Todavia, o exemplo
clássico usado pelos filósofos idealistas até Leibniz, dos dois relógios sincronizados,
de modo que tudo o que acontece com um, ocorre, simultaneamente, com o outro,
mostrou-se totalmente inconveniente, e foi abandonado No entanto, sejam três,
ou seja uma, resta saber de onde Deus retirou esta substância, se de si, ou se
do nada. Se de si, tudo no universo é partícipe dessa Substância divina. Não é,
então, que todas as coisas sejam Deus, senão que Deus constitui a substância
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primeira de todas as coisas; não panteísmo, mas, panenteísmo. Porém, Santo
Agostinho Espírito, respondendo a Kardec diz: "Não podendo fazer-se Deus, o
homem quer ao menos ser uma parte de Deus" (R. 15).
- Os Espíritos "são obras de Deus, exatamente como uma máquina o é do
homem que a fabrica" (R. 77). Logo, segundo esse Instrutor de Kardec, os
Espíritos o o emanões ou porções da divindade, e por esta causa,
denominados filhos de Deus (P. 77). Pelo que nos diz "O Livro dos
Espíritos", Deus não tirou os filhos do seu seio, da sua Substância; os filhos
foram criados do nada substancial. Ora, é o pprio Instrutor que afirma a
Kardec: "Ficai sabendo: coisa nenhuma é o nada e o nada não existe" (23). Pois
se coisa nenhuma é o nada, e somos feitos dessa coisa nenhuma, somos nada; e como
o nada não existe, não existimos. Somos aparências, pura ilusão de ser, e não, seres
reais, e está certo o bramanismo em afirmar que o mundo é "maya", isto é,
ilusão. O mundo é mau, porque, "maya", ou, como escreve Maritain: "A existência
das coisas individuais e desta imensa decepção que se chama a natureza (maya)
e que nos mantém prisioneiros do ltiplo e do mudável é essencialmente ,
fonte de todo sofrimento". Ora, Deus foi o que criou do nada a ilusão de
existir; portanto, Deus é o culpado direto pela exisncia de "maya" que é ilusão,
erro, e dor, e dano, e mal. Do exposto, concluo que, se Kardec tivesse
perguntado: do quê Deus criou o universo, a resposta teria sido: do nada; embora
consinta o Instrutor em que "coisa nenhuma é o nada e o nada não existe" (R.
23). Esta resposta é coerente com a doutrina que diz: "Não podendo ser Deus, o
homem quer ao menos ser uma parte de Deus (R. 15). Ora, se nem o homem é
partícipe da Divindade, como sê-lo-ia o universo?
- Não e não! - esbravejou Hieo Orsoni, num assomo incontido de
fanatismo, citando, de cor, "O Livro dos Espíritos": "Não é na pequenina
esfera em que vos achais
",
diz o Mentor a Kardec, "que podeis compreendê-
lo" (R. 35); isto quer dizer que nesta esfera não podemos compreender todas
as coisas.
- Que importa o lugar, Hierão? Acaso Sócrates seria menos ou mais
Sócrates, e Cristo menos ou mais Cristo, se estivessem em Mercúrio ou Plutão?
Então se pode ser menos ou mais inteligente e sábio, dependendo da esfera em
que se está? Se posso ser mais inteligente e sábio, só por habitar esferas
superiores, por que, logo, não me deixa Deus ir a elas? Conquanto esta nossa
esfera, como quaisquer outras possa atuar na mediocridade, o certo é que os gênios,
em vez de acomodar-se a ela, como todos, rompem os diques do tradicional, e
fazem a própria esfera modificar-se, progredindo. Eu acredito na inteligência
e no gênio que podem mudar o mundo; você acredita que o mundo, esfera,
como você diz, é que modifica o homem. Se o homem é produto da esfera, a
esfera é produzida por quem? Se por Deus, por que não me deixa ele ir logo
às mais altas, eu que me abraso na ânsia de saber?
- Para habitá-las, tornou Hierão contrafeito, preciso é ser achado na senda do
bem, sem nunca haver desviado dela.
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- Que nada, meu inflamado Hierão! Não importa que os Espíritos hajam
seguido "desde o princípio (...) o caminho do bem (R. 133), que "isso não os
isenta dos sofrimentos da vida corporal". As reencarnações lhes são impostas
nesta "pequenina esfera", a fim de desenvolverem também a inteligência. E é
nesta esferinha de nada que terão os Esritos de esfoar-se por compreender o
que vem a ser um espaço infinito cheio de uma matéria, e como é que essa matéria
pode ser assim infinita sem ser Deus, visto que somente ele deveria ser infinito, e
não também a matéria que, neste caso, com Deus se confunde. A fé espírita
tem por certo que a matéria é infinita, e que Deus também é infinito. O
Criador infinito, e a criatura, também, infinita. Porém, o infinito Criador,
diz-nos a razão, há que ser maior que a matéria infinita, porquanto, somente o
mais pode criar o menos, e não, o contrário. Ora, se esse menos, que é a matéria,
chega a ser infinito, como não ser, eno, mais que infinito o mais que criou esse
menos? Deus é infinito; a matéria, também, infinita; mas, Deus criou a matéria;
portanto, o infinito-Deus é maior do que o infinito-matéria. Por conse-
guinte, segundo se deduz do que ensina o Instrutor espiritual da "grande
esfera", pode haver um infinito maior que outro infinito > (!). Também
estabelece o Pe. Antônio Vieira, quando pretende construir uma ponte por sobre
o ar, declarando que o ventre de Maria é maior que Deus, pois que cercou e
teve em si o próprio Deus. E argumenta o Pe.: "A boa filosofia admite que pode
haver um infinito maior que outro infinito, porque se houver infinitos homens,
também os cabelos hão de ser infinitos; porém o infinito dos cabelos, maior
que o infinito dos homens". E se antes só havia o infinito-Deus, de que
substância foi feita a matéria infinita?, do nada? Então, do nada, que não
existe ("coisa nenhuma é o nada" - R. 23), pôde Deus, criar outro infinito que
não o seu? Se a substância deste infinito criado é o nada, tudo é infinita
negação, infinita ilusão, "maya" infinito. Disto se conclui, por correto
raciocínio, que a iluo, o erro, a dor, o dano, o mal são infinitos, não podendo
haver nenhum culpado pela existência deste outro deus contrário, deste anti-Deus,
que o o próprio Criador!
- Ocorre, prezado Árago, obtemperou Orsoni, que está escrito que Deus é
infinito, conquanto seja essa uma "definição incompleta. Pobreza da linguagem
humana, insuficiente para definir o que está acima da linguagem dos
homens" (R. 3).
- E que é o infinito para o Espirito?
- "O que não tem começo, nem fim: o desconhecido; tudo o que é
desconhecido é infinito" (R. 2).
- E o espaço também é infinito?
- "Infinito. Supõe-no limitado: que have para lá de seus limites?" (R.
35).
- Esse espaço infinito está cheio, ou vazio?
- "Não, não há o vácuo. O que te parece vazio está ocupado por uma
matéria que te escapa aos sentidos e aos instrumentos" (R. 36).
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- Logo, essa maria é infinita, tanto quanto o espaço infinito que ela
ocupa?
- Sim, pois claro!
E sendo Deus infinito, e a matéria também infinita, esses dois infinitos
coexistem no mesmo lugar, ou estão separados?
- Estão separados, sem dúvida, visto que Deus Criador não se pode confundir
e misturar com a matéria criada.
- Então, se há dois infinitos separados entre si, há o limite entre ambos; e
se há limite, não são infinitos.
- Neste caso, nego o que disse antes, e coloco a questão deste modo: os dois
infinitos coexistem encaixados um no outro.
- Sendo assim, Deus se acha jungido à matéria, sendo tão onipresente quanto ela
no espaço infinito. Criador e criatura se confundem, e Deus es na sua Criação,
sendo-lhe a Substância prima.
Depois de relutar um tanto, exclamou Hierão|
- Sou forçado a concordar: não fugir a essa conseência... embora esteja
escrito que os Espíritoso seres distintos da divindade. "São obras de Deus,
exatamente como uma máquina o é do homem que a fabrica. A máquina é obra do
homem, não é o próprio homem" (R. 77).
- Se Deus não se confunde com suas obras, estando ambos separados, então, nem
Deus nem a maria são infinitos, porque, aquele que for infinito abarcará o
outro. Se Deus for infinito, e a Criação, não, Deus abrangerá a Criação, visto
que esta não poderá estar fora dele, porque fora implica limite, e o que tem limite
não é infinito. Se a matéria for infinita, e não, Deus, a matéria abarcará
Deus. Para que possam estar separados, é preciso que nenhum seja infinito,
como ocorre, exatamente, com o homem em relação à quina que ele fabricou.
Como ambos são finitos, podem estar apartados sem se confundirem. Porém
Deus é infinito; abarca toda a Criação, confundindo-se com ela. E se a Criação
também for infinita (espaço objetivo infinito) não haverá Deus além nem
fora dela, porque um infinito não poderá sobrepujar a outro. Todavia, se Deus
for infinito, mas a Criação limitada, como entendo que é, então Deus abarca a
Criação coexistindo com ela como imanência, e ao mesmo tempo existe ou é fora
e acima dela num aspecto a que se o nome de transcendência.
E após ponderosos pensamentos, prosseguiu:
- Eis, amigo Hierão, que "O Livro dos Espíritos" é incoerente. Declarando
que o Criador não se confunde com suas criaturas, afirma a transcendência pura
que implica no dualismo agostiniano. Neste caso a Criação veio do nada via
caos. Declarando que o espaço e a matéria que o enche são infinitos, tal como
Deus, junge o Criador às criaturas não havendo Deus fora do universo. Isto é o
imanentismo puro, exatamente que pretende negar. Com afirmar estas duas
posições, assim de forma que se excluam, fica incoerente.
- Todavia, atalhou Hierão, o fato de Deus coexistir com suas criaturas,
seja no todo, porque ele e ela são infinitos, seja em parte, porque Deus é
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infinito, a Natureza, não, isso não quer dizer que Criador e criaturas se
confundam. Os gases atmosféricos estão juntos sem se ligarem. 0 azoto, o
oxigênio, o gás carbônico, etc., conservam cada um sua identidade química,
independência e autonomia, apesar de misturados. Assim, Deus, conquanto lado a
lado com suas criaturas, pode não se imiscuir com elas.
- Pois é aí mesmo, replicou o mestre, que esteve o pecado de Kardec. Em
vez de perguntar do quê fez Deus as suas criaturas, interrogou, ociosamente,
como as fez? (P. 38). 0 precário exemplo do homem e sua máquina (R. 77), que
já vem desde Aristóteles, não se aplica a Deus, porque, o homem que executa
uma obra, fá-la exterior a si, e lança mão duma substância existente e também
exterior a si. Como a substância da máquina já era exterior ao homem, depois de
ela feita, continuou-lhe exterior. Ora, Deus, sendo infinito, não tem exteriores;
e não podendo laar mão doutra subsncia que não a sua ppria, segue-se que
as criaturas ou são feitas dessa Substância divina, ou são feitas do nada, e são
nada. Daí o imanentismo criacional, pelo qual Deus é a Substância prima e única
de todas as coisas, e o dualismo agostiniano, pelo qual Deus é apartado de suas
criaturas, visto que elas o feitas do nada. Para que Criador e criaturas
permaneçam juntos, mas, separados, como os gases do ar, preciso é que se cons-
tituam de substâncias diferentes, tal, exatamente, como ocorre com os gases. E é
nisto mesmo que consiste o transcendentalismo puro ou dualismo agostiniano.
Deus, neste caso, é o Ser, e as criaturas, ilusão-de-ser ou não-ser, visto que feitas
do nada. Se a Criação foi feita do nada, a substância dela é a não-substância,
por isso que não se pode confundir com a Substância do Ser, embora permaneça
junto deste. Então, Substância e não-substância permanecem lado a lado sem
reciprocamente se imiscuírem, por ser estranhas uma à outra, como se foram as
mônadas independentes de Leibniz. No entanto, como toda coisa, sem nenhuma
exceção, é o seu estado anterior modificado, sendo a substância da Criação o
nada, ela é nada, tenha o aspecto que tiver. Voltamos, outra vez, à ilusão ou
"maya" bramânico sobre o qual discorri há pouco.
E voltando-se o pensador para Hierão, interrogou
- Você acha mesmo, meu caro, que a matéria possa ser infinita, como o
próprio Deus?
- Segundo minha Doutrina Espírita, ela é infinita, pois não havendo vazio
no espaço, e sendo ele infinito, infinita terá que ser a matéria que o enche.
- E que me diz você: Deus criou toda essa matéria dum lanço, ou a está criando
ainda alhures?
- Diz-nos "O Livro dos Espíritos" que Deus não cessa de criar. "Por
mais distante", diz o Espírito a Kardec, "que logreis figurar o início de sua
ação, podereis concebê-lo ocioso, um momento que seja?" (R. 21). Logo,
Deus está criando alhures mais universos, e, portanto, mais matérias.
- E no começo, quando Deus criou nossa matéria, o espo era já infinito?
- Sim, pois claro! Como concebê-lo limitado? Se puséssemos, então, um
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limite, que haveria para além desse limite?
- E quando Deus cria outras matérias, outros universos, cria também outros
espaços?
- Tem que ser assim.
- Então muitos espaços infinitos, todos cheios de suas respectivas matérias
tamm infinitas? É possível haver, logo, dois ou mais infinitos; e se eles se
tocarem, não estará aí o limite?
- Neste caso, experimento colocar a questão assim: um espaço infinito, e
todas as matérias, cada uma infinita, que o ocupam, interpenetram-se.
- Interpenetram-se e se interatuam, porque toda a matéria é formada "de
um só elemento primitivo" (R. 30). Quer dizer que está havendo uma
acumulação de matéria no espaço. Haverá um paradeiro a isso, ou no espaço
pode caber toda a matéria que Deus cria ininterruptamente, desde toda a
eternidade? E suposto que a ação criadora de Deus teve início no tempo (R.
37), o espaço pré-criacional era, então, vazio? Ou não havia, então, espaço?
- Que vou fazer, prezado Árago, o que eu disse está nos escritos esritas.
Diz lá, nos escritos, que " uma coisa, todavia, que a razão vos deve indicar: é
que Deus, modelo de amor e caridade, nunca esteve inativo" (R. 21).
- Mal, mal, Hierão! Vem lá o psitacismo! Acaso me quer você impor o que
está escrito nas obras espíritas, como o fazem os protestantes com a Bíblia? Amor
é igual a caridade (I Cor 13, 3) e não há por que separar as coisas fazendo
duas de uma. Antes disse o Espírito que "Deus é a inteligência suprema causa
primária de todas as coisas" (R. 1). Se este é o enunciado posto por base do
sistema, de onde foi surgir agora, assim, sem mais nem menos, que Deus é
amor? E se o é, por que não constou este termo do enunciado? Mas, convenhamos
em que Deus seja o modelo do amor; porém, disto se pode tirar a conseqüência
de que, por isso, "nunca esteve inativo"? Deus nunca esteve inativo por ser a
suma Intelincia, ou é por ser o supremo Amor? Se a Inteligência suprema é
que é a causa primária ou basilar de todas as coisas, como afirmar agora que todas
as coisas o produzidas pelo Amor que não permite a Deus ficar inativo? E
como pode satisfazer-se o Amor de Deus com a criação da matéria infinita e
do caos? O caos não é a negação extrema de Deus? Não é certo que tudo o que
Deus é, o caos não é, pelo que este se mostra, em relação a Deus, como
contraditória, como oposição polar? Deus é Amor?, logo, o caos é egoísmo que
nega e subverte o Amor. Como pode contentar-se o Amor de Deus em criar o seu
contrário, e isto, por um ato de amor? Como pode Deus semear amor e colher
egoísmo, treva, desarmonia, fealdade, ódio, desintegração, ignorância, dor, visto
que de tudo isto se compõe o caos? Como é Hierão: no começo tudo era caos?
(R. 43). E é por aqui que principiou o Amor de Deus que não pode
permanecer quedo?
Hierão abaixou a cabeça, pensativo, desnorteado pelo bombardeio que lhe
movia o pensador com sua palavra fácil e rápida. Cobrando ânimo, porém, re-
plicou:
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- O que nos interessa não é tanto a origem, mas o fim; e o progresso para a
felicidade é um fato iniluvel.
- Pois as origens e os fins disse Árago, se confundem, como é normal
suceder com todos os ciclos; no momento em que termina um ciclo para iniciar
outro, ninguém poderá divisar quando é um, e quando, outro, no átimo da
coincidência. As vinte e quatro horas de um dia se sobrepõem à hora zero do
dia seguinte. Caminhar para o fim, pois, é idêntico a ir para o começo de onde
o ciclo partiu. Por conseguinte, o caos é o meio de um ciclo que teve seu
começo e terá seu fim no mundo celeste; daí que: no como era o mundo espírita
que, por isto mesmo, preexiste e sobrevive a tudo. Portanto, o caos não é como,
a não ser em relação ao meio ciclo da volta para Deus, que se completa com o outro
meio ciclo, o do afastamento de Deus. E se teimarmos em que a primeira origem
esteve no caos, o fim último será a volta a ele, como pensava Nietzsche, com
sua doutrina da eterna recorrência. Se, todavia, a origem primeira esteve em
Deus, o fim último será quando se houver retornado, religado, a ele. A doutrina
da Evolução, portanto, se completa com a da Involução ou Queda dos Espíritos do
mundo celeste, do mundo espírita, o primeiro na ordem das coisas. Sem esta
Involução... de que resultou o caos, a Evolão se torna absurda e blasfema, ou
seja, como diz Schopenhauer, "a miséria do mundo se torna uma acusão amarga
contra o Criador e dá margem aos sarcasmos".
- Nada disso!, vociferou Hierão; eu tenho minha religião Espírita que é
evolucionista, sem admitir a fancia das almas
- Pois é que está o absurdo! A idéia da Evolução, esposada por um
religioso, é uma sem-razão semelhante a de quem se diz cristão comunista, porque
cristianismo e comunismo se excluem mutuamente. A mim me soa isso como se
dissera : "Associarão dos Açougueiros Vegetarianos"; ou então: "Liga Anti-Al-
coólica dos Produtores de Pinga".
- Que nos es dizendo? - replicou Hierão. Acaso a Evolução não esta
comprovada por fatos?
- Sim, está, tornou Árago. Porém, por causa do modo como a Doutrina
Espírita se acha codificada, a verdade da Evolução colide com os atributos da
divindade, igualmente, dado por certos. Assim, todas as religiões e excetuado o
Espiritismo, são contrárias à Evolução, porque esta lhes solapa a teologia. Então,
os religiosos, coerentemente, para não perderem a fé, negam os fatos da
Evolução.
E após uma pausa reflexiva e profunda, prosseguiu o filósofo:
- O primeiro a falar de Evolução foi Anaximandro, discípulo de Tales de
Mileto. Segundo ele, a vida apareceu primeiramente no mar, sob formas
muito simples; e desses animais marinhos saíram os terrestres, por evolão, dos
quais surgiu o homem. Esta doutrina encontrou sua dura réplica em Aristóteles,
apesar de ele ser o primeiro a organizar, às expensas de Alexandre Magno, o
primeiro jardim zoológico da história. Via, Aristóteles, tudo o que a evolução
nos pode mostrar em animais diferenciados reunidos num mesmo lugar. Viu
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que, na base da escala da vida, quase não se podia distinguir os seres vivos da
matéria bruta. Fundou a embriologia, com estudar o desenvolvimento de
embriões de pintos, em suas várias fases. Constatou o paralelismo anatômico, ao
escrever que as aves e os répteis são aparentados entre si, e que o macaco, pela sua
forma corporal, é intermediário entre os quadrúpedes e o homem. Todavia,
saltando dos olhos de Aristóteles todas estas evidências, negou a evolução, para
aceitar a idéia da criação das espécies em planos paralelos e independentes.
Refutou Empédocles que afirmava haver seleção natural dos órgãos e dos seres
melhor adaptados, e também discordou de Anaxágoras cuja doutrina era a de
que o homem se tornou inteligente por se utilizar das mãos para pegar, em vez
de para locomover-se como o fazem os quadrúpedes. Ao contrário disto,
Aristóteles afirmava que, por ser inteligente, o homem se utiliza das mãos.
- Ora, meus caros, continuou Árago, Aristóteles era um gênio que tinha uma
grande quantidade de fatos que evidenciavam a evolução. Os fatos estavam
patentes, mas o gênio grego negava os fatos; por que? Porque, se os
aceitasse, e admitisse a Evolução, teria, ou de negar Deus, ou de concebê-lo
de forma negativa. Aristóteles procurou conciliar, então, o que via, com a
idéia que formara de Deus. E assim, sua metafísica surgiu da sua biologia. O
reinado de Aristóteles durou muito, em virtude de sua idéia relativa à natureza
coincidir com o criacionismo bíblico. Não havendo Evolução, o homem, para
Aristóteles, como para os bíblicos, era uma criação à parte. Outro sistematizador
da natureza de linha aristotélica foi Lineu. Para ele também as espécies são
constantes, o havendo ponte nem passagem entre elas. E um dia em que um
estudante chamado Zioberg, lhe mostrou uma planta que não se enquadrava no seu
sistema, Lineu classificou-a como um monstro botânico. "Vou chamá-la
pelória - monstro", disse Lineu.
Todavia, inquieto, Lineu comou a plantar a "pelória", e viu que ela se
reproduzia, dando descendentes iguais a si. Tratava-se de uma espécie diferente,
surgida pela mutação da linária. Honestamente, o cientista deu ao mundo o
resultado de suas pesquisas, considerando ser possível tenham vindo umas espécies
de outras. Então não havia constância entre as espécies? Não! E que sucedeu disto?
Sucedeu que o mundo repudiou as conclues de Lineu, porque elas levariam à
idéia da Evolução, e esta, ao caos das origens, ao acaso ou causas fortuitas no lugar
do Criador, à formações tacteantes, a avanços e recuos de experiências
ocasionais, que, por isto mesmo, ocorrem em bilhões de anos na construção da
matéria bruta, e em milhões, na edificação da vida. "Em seu Systema naturae
o mundo era claro e mpido, sólido e ordenado, e a gente desejava que ele
continuasse como estava no papel". A natureza não saltos, diziam todos; as
espécies são imutáveis, constantes, exatamente hoje, como quando saíram das mãos
do Criador!
Fez uma pausa o mestre. E folhando o livro de Herbert Wendt para a
frente, prosseguiu:
Todavia, a natureza dá saltos, sim, senhores!; saltos quânticos nas
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órbitas atômicas, e dá saltos genéticos nas mutações. Kant e Goethe já se ocupavam
com as teorias da Evolução, quando foi admitido Jorge Cuvier no Jardin des
Plantes de Paris, onde já exercia sua atividade científica João Batista
Lamarck. Entretanto, Cuvier não era, como Lamarck, evolucionista; ao
contrário, admitia a criação em quatro planos, e esta teoria ganhou logo
terreno, porque representava a volta aos saudosos modelos estáticos de Lineu.
Jorge Cuvier pregava que "É preciso concluir que existem planos de criação
eternos e imutáveis! É imperdvel (...) falar ainda de evolução! Evolução
equivale ao capricho de uma natureza desordenada tomando o lugar dum gênio
construtor trabalhando segundo um plano consciente e ordenado. E isso é
evidentemente absurdo!"
-
Mas Cuvier estava errado, vociferou Hierão.
- Estava certo, replicou o mestre. Os modelos das espécies novas o
laados às loucas no cerio natural; as mutações dão-se às cegas; depois é que
opera a lei de seleção dos valores garantindo vida e perpetuidade aos melhores
dotados.
- Então!, aí está, tornou Hierão; esse é o modo como opera o tal "gênio
construtor", conforme a expressão de Cuvier, para criar, ordenadamente,
segundo um plano consciente.
- Se é assim que age o "gênio construtor", temos duas coisas a considerar: a
primeira é que ele não passa de aprendiz de criador, tendo em vista o enorme
desperdício do material consumido nas tentativas feitas na base do puro ensaio-
e-erro, sem contar ainda que o "gênio" não tem nenhuma pressa,
considerando o enorme tempo despendido nas experiências. A segunda é que a
Evolução se faz pela lei impiedosa da luta, pela vitória incondicional do mais
forte, do mais astuto, do mais apto. Se Deus quer e faz isto, então é dar razão
a Nietzsche e não a Cristo. Rasguemos, logo, os Evangelhos que nos querem
justos, e sigamos a Nietzsche que nos manda ser fortes. Comamo-nos uns aos
outros, pois Deus impôs esta lei na natureza, conferindo, invariavelmente, a
palma da vida ao vencedor, e aos fracos, débeis e ineptos, decretou ele a tragédia e
a morte! ...
- Está bem...; melhor é eu ficar quieto, e o senhor prosseguir com o que
vinha dizendo.
- Depois vem Darwin que armazenou grande cópia, de documentos, de
provas, antes de dar ao mundo sua teoria das espécies, e isto, por saber que onda, tal
idéia iria levantar, como, de fato, levantou. Vendo ele que aborígenes
antropófagos comiam os mais fracos caídos em combate, concluiu que isso era
uma lei natural, visto que assim também sucede entre os animais. E se foi Deus
que pôs normas à natureza, então é certo que outra não é sua vontade. Por isso,
a idéia da Evolução é um pesadelo para o homem de fé, pois vendo como opera a
Evolução, não como não concluir que Deus, ou não existe, ou se existe não é
bom, visto que premia a astúcia, a força e a crueldade. Esta visão negativa de
Deus, que o stico moderno se recusa ter, era a do homem primitivo que
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concluía logicamente: Deus dá a palma da vitória e da vida, invariavelmente,
aos fortes e aos astutos; logo, ele é força e astúcia; para estes, portanto, a alegria,
a felicidade; para os paficos e inermes, a tristeza, a desesperação e a morte.
Todavia, o forte se torna fraco, ou pela velhice ou pela doença, sendo,
também, por isto, abatido. Deste modo a felicidade do forte é mesclada pelo
temor de tornar-se fraco. Assim, o temor do forte se liga ao sofrimento do
fraco, com que vem a estar a vida fundada sobre a dor. As dores do mundo, pois,
levam à conclusão de que Deus se compraz com elas, e goza ao ver sofrer as suas
criaturas. É preciso, então, aplacar-lhe as fúrias com sacrifícios dolorosos. Ou
fazer isto, ou Deus tomará por sua conta cevar-se nos míseros mortais. Leão
alimentado é leão inofensivo, e tal qual com Deus. Façamos-lhe, portanto,
sacricios... Entretanto, Deus também é astuto; por isso não o podemos enganar
no negócio, fazendo-lhe sacrifícios dos que nos são indesejáveis. Há de ele querer
as pricias, pois estas o as partes que cabem aos leões. E como o
sacrifício e a morte dos escolhidos são para a alegria do Deus-Forte, ele ficará
zangado se, em vez de participarmos do seu contentamento, da sua festa, jogarmos
fora as hóstias sacrificadas, para pasto das aves de rapina, bestas do campo e
vermes da terra; cumpre-nos, portanto, co-las, em ritual agradável a Deus.
E ainda mais: alimento forte e sadio produz força; ora, sendo as hóstias o
melhor que há, delas sobrevirão as qualidades para os comungantes. Deste modo as
stias humanas sempre foram atender a banquetes antropofágicos. Todos os
crânios da caverna de Altamira m seus occipitais quebrados, de modo a se
poder tirar por ali o cérebro. Comiam-se miolos humanos, e também as carnes
das vítimas sacrificadas, para se incorporarem as qualidades do morto. Cristo
diria, na seqüência desta tradição: aquele que me não comer a carne, e me não beber
o sangue, não terá vida eterna (Jo 6, 53 e 54). A ingestão, por conseguinte, do
pão e do vinho consagrados,o passa de um canibalismo simbólico idealizado.
E ponderando um pouco, em silêncio, continuou:
- Aristóteles, com seu gênio enxergou claro estas conseqüências, e por isso
recusou-se a tomar por este caminho, o da Evolução... que se lhe antolhava a
cada passo. Também não quiseram meter-se por ele, nem Lineu, nem Cuvier. E os
que se puseram a andar nesta estrada, foram dar consigo no materialismo mais
arrematado, que consiste na negação de Deus e na do espírito. Ora, sendo o
Espiritismo evolucionista, tinha, necessariamente, de chegar a este resultado. No
entanto, fala-nos ele da moral de Cristo, em vez da de Nietzsche; fala-nos de Deus
como de amor e bondade, ao invés de nô-lo apresentar como um Moloch amonita
odiento e cruel. Pela generalização ou indução das verdades evolucionistas,
chega-se à moral nietzscheana de Moloch. Pela dedução, partindo dos atributos
da divindade, aceitos a priori, chega-se à moral de Cristo que se opõe,
frontalmente, à de Nietzsche, do mesmo modo como é Moloch o contrário do
Deus Pai cristão. E como a filosofia do "O Livro dos Espíritos" aceita e dá
por certas estas duas contradições, que mutuamente se excluem, sem fazer a
necessária síntese, torna-se incoerente.
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- Por outro caminho, o filosófico, também se pode chegar a este mesmo
resultado, prosseguiu Árago: é pacífico, hoje, para os pensadores, que nós
conhecemos o mundo externo unicamente através das sensações e das
percepções que esse mundo exterior não nos proporciona, seo que também
nos suscita. Por conseguinte, se é verdade que a filosofia deve começar pelo
pensamento, pelo eu que pensa (penso, logo, sou - Descartes), também é verdade
que o mundo exterior, os objetos das impressões, têm que estar presentes nas nos-
sas experiências sensoriais e nas nossas cogitações. Se penso, logo, sou, sem o
mundo que desperta e excita o pensar, não penso; portanto, sem o mundo, o
penso, e se não penso, o sou. Conseqüentemente, tudo tem de sair desse mundo
frente a nós, e até quando o negarmos, é preciso que ele esteja aí à nossa frente
para objeto de nossa negação. Esta foi a razão por que a filosofia começou
estudando a matéria do mundo, os elementos, aquilo de que ele,
primordialmente, é feito. Depois dos filósofos de Mileto (VI séc. a. C.) que
fizeram este trabalho, abrindo as portas para a filosofia, sempre houve retorno
à filosofia da natureza, havida por materialista, a começar pela dupla
Leucipo e Demócrito (V séc. a. C.), e, mais tarde, Epicuro e Lucrécio. As
coisas, segundo Demócrito, e com ele concordam os evolucionistas, não têm
finalidade. Elas e os seres vivos são feitos a esmo, aos montes, e a seleção natural,
depois, os orienta. Mas como os orienta? Por exemplo: numas ilhas do Pacífico
batidas por ventos fortes, todos os insetos e aves não têm asas, porque, ali, voar é
perder-se no mar. Quer dizer: a obra da seleção preservou os monstrengos,
inaptos para a vida fora dali.
E feita uma pausa, para que todos meditassem sobre o que dissera, continuou:
- Na Idade Média tivemos o italiano genial Giordano Bruno (1548-1600),
para quem a realidade multíplice do mundo se centraliza na unidade de uma única
substância, que é Deus. Para ele, espírito e maria são apenas aspectos diferentes
de uma mesma substância, e, portanto, ambos se integram na unidade de Deus.
o há, por conseguinte, separão, no momento da gênese, entre o físico e o
psíquico. Escreve dele Will Durant: "O objeto da filosofia, portanto, consiste
em apreender a unidade na diversidade, em ver o espírito na matéria, em
descobrir a síntese em que as contradões se fundem, em elevar-se ao supremo
conhecimento da unidade universal que é o equivalente intelectual do amor de
Deus".
E fechando o livro onde estava marcado o ponto com uma tira de papel,
prosseguiu:
- Outro fisofo da natureza foi Baruch Espinosa (1632-1677) que
incorporou toda a filosofia de Giordano Bruno, a de Moisés de Córdova que
identificava Deus com o universo, a de Ben Gerson que admitia a eternidade do
mundo, e ainda a idéia de Hasdai Crestas de que a matéria do universo é o
corpo de Deus.
E procurando um ponto previamente marcado no livro de Herbert Wendt,
para tê-lo à mão, prosseguiu:
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- Contra esta filosofia natural que, como já expus, leva a um Deus negativo, o
recurso consistiu em negar a natureza e afirmar Deus em oposição a ela. Deus
seria a contraditória do espetáculo desapiedado e amoral de que nos dá conta a
natureza. A filosofia realista, iniciada por Parmênides (450 a. C.), teve seu
termo no fim da Idade Média, quando se descobriram os grandes erros
científicos de Aristóteles. Assumindo posição antípoda à do pensamento grego,
teve icio o período idealista com Descartes. Partindo de idéias muito
simples, muito claras, das verdades de razão da geometria, Descartes
geometrizou o mundo, criando, depois, a geometria analítica que reduz a
geometria à álgebra, tornando possível operar, algebricamente, com as figuras
geométricas. O mundo cartesiano tornou-se, por isso, ideal, artificial, antinatural,
forçado, cheio de gráficos e máquinas registradoras, medidoras de tudo,
abrindo caminho para as máquinas de calcular, computadores, robôs, etc. E a
vida? Como colocou Descartes os problemas da vida? Pois colocou-os, muito
simplesmente, em termos geométricos e mecânicos. Os animais são máquinas
disse ele. Todavia, o evolucionismo de Montaigne e Gassend havia demonstrado
que o homem é um animal. Tomando de Descartes que os animais são máquinas, e
de Montaigne e de Gassend que o homem é um animal, Julien Offray de La
Mettrie concluiu: o homem é uma quina.
- Observando a linha dos filósofos da natureza, continuou o Mestre, que diz
ser Deus imanente no universo, pom reagindo contra a doutrina cartesiana dos
animais máquinas, Baruch Espinosa afirmou que o espírito e a matéria procedem
de uma substância - Deus. E Espinosa esclarece este ponto numa passagens de
sua Epístola 21: "Tenho uma vista de Deus e da Natureza totalmente diversa
da que os cristãos em regra propõem, porque afirmo que Deus é a causa ima-
nente de todas as coisas e não causa externa. Digo: Tudo está em Deus; tudo
vive e move-se em Deus. E isto mantenho com o apóstolo Paulo e talvez com
cada um dos filósofos da antiguidade, embora de maneira diversa. Poderei ainda
aventurar-me a dizer que minhas vistas são as mesmas dos velhos hebreus, como
pode ser inferido de certas tradições por mais alteradas e falsificadas que
tenham sido. Constitui, porém, erro completo dizer-se que meu propósito é
mostrar que Deus e Natureza (por este último termo entendendo-se uma certa
massa de matéria corpórea) são uma e a mesma coisa. Nunca tive tal intenção".
Agora Herbert Wendt, falando de Espinosa: "O Deus dele não atuava sobre as
coisas, e sim nas coisas, identificava-se com aquilo que os homens chamavam
natureza. Pensamento inaudito, angustioso e inebriante ao mesmo tempo. No
mundo da suprema unidade de Spinosa não havia bem nem mal, anjo nem demônio.
Sua Ética desembaraçou-se inteiramente da camisa-de-força de todo o ensino
doutrinário professoral. Tudo o que acontecia era natural e pertencia à
essência de Deus".
Fechando ambos livros, ficou por certo tempo, o mestre, com o olhar
perdido no vazio. Tornando a si, porém, concluiu:
- Quer dizer, então, que a lei da seleção das escies, da luta, da vitória do
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mais apto, do mais astuto, do mais forte é natural, ou seja, da essência mesma de
Deus. O cordeiro, com ser fraco e indefeso, é pasto do lobo voraz, assim como
a rola serve de comida ao gavião. Que as moscas o parar nos palpos das
aranhas, e estas, nos feres dos marimbondos, tudo é lei da natureza, e,
portanto, divina. Esta mesma lei divina inscrita na natureza, no campo
econômico deu a ciência chamada Economia, a qual tem por objeto o estudo das
riquezas as quais não se divorciam do egoísmo individual e do de classe. As
barbaridades praticadas contra as crianças dos orfanatos, no século XIX, pelo
Industrialismo nascente, obrigando-as a trabalhar dezesseis horas por dia, quase
sem descanso, dormindo em pocilgas e comendo restos como porcos, sem assistência
sanitária, nem direitos nenhuns, pelo que morriam aos magotes, já de doenças, já
de acidentes do trabalho, tudo é natural. Não coisa nenhuma que o homem
possa fazer, com exemplo na natureza, que seja antinatural. E tudo aquilo que a
natureza nãoexemplo, é antinatural. Ora, a bondade, a tolerância, o perdão, a
piedade para com o fraco, a monogamia para o homem, tudo é antinatural. Não
me venham vocês com o argumento de que os santos são, também, produtos da
natureza. Nada disso : eles o o produto da negação da animalidade natural,
portanto, da negação da natureza. A natureza não conduz o homem a ser uma
pia de Cristo, mas a negação dela, sim, conduz. O natural é a guerra, a luta, a
seleção pela força, pela astúcia... esta que quer dizer: mentira, engano, ludíbrio,
falsidade. Por isso é que Pascal dizia: "Todo natural é sem Deus; para mim
a Filosofia Natural não vale uma hora de esforço".
E arrematou Árago, após pensar um pouco:
- Por aqui se vê que a visão do universo, seja a que proporciona a
mecano-geometria cartesiana, seja a que oferece a teoria da Evolução, seja a
propiciada pela Filosofia Natural, não pode conduzir a uma teologia e a uma
ética que não sejam as de Moloch. "As mesmas pessoas que tinham verificado
que sob o escalpelo desapareciam as diferenças entre o animal e o homem,
ficaram cheias de horror quando um pensador tirou as conseências desse fato".
A guerra contra Espinosa foi encarniçada, tendo sido ele forçado a renunciar
sua herança, e para a subsistência própria, teve de fazer-se polidor de lentes.
Sua família o renegou, e a sinagoga judaica o excomungou com todos os ritos do
cerimonial judaico. Um fanático o quis assassinar. "O próprio Leibniz, que tinha
muita afinidade espiritual com ele e uma vez chegou a procurá-lo em Amsterdã,
não sabia o que pensar dele. Um mundo sem bem nem mal, sem gidas leis morais
e sólidas nões de ordem, sem fim nem utilidade, em que criador e criatura
eram um e no qual o homem, no fundo, não significava mais do que um
microrganismo, era inconcebível, mesmo para os esritos tolerantes". Muitos
pensadores se tinham ocupado com essa hipótese de um Deus-Natureza, incluindo
entre eles o próprio Kant que considerava isso "uma arrojada aventura da razão".
Todos recuavam assustados com as conseqüências que disso podiam advir. Não
obstante, Espinosa, porque empreendeu essa aventura, foi espezinhado por
todos. "E ainda depois do seu fim prematuro foi tratado (segundo palavras
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de Lessing) como um cão morto".
E fechando o livro em que lera o texto, rematou:
- Viram, meus caros, o que Aristóteles, Lineu, Cuvier e outros refugaram?
Viram por que as religiões todas, exceto o Espiritismo, são contrárias à teoria
da Evolução? Todavia, o Espiritismo faz exceção às religiões, e com isto é
incoerente... até o dia em que aceite a síntese entre criacionismo e
evolucionismo. Por enquanto, comete a sem razão de manter, juntas, doutrinas que
se excluem mutuamente como tese e antítese. Para ser evolucionista, devia
deixar de ser evangélico, porque, no Evangelho, diz São João que "no
princípio era o Verbo, o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (Jo 1,
1). No entanto, apesar de Platão Espírito ter ditado a Kardec esta mesma
verdade, por outras palavras, ao dizer que no começo era o mundo espírita que
preexiste e sobrevive a tudo, de tal maneira que o mundo corpóreo poderia
nunca ter existido ou pode deixar de existir, sem que isto altere a essência do
mundo esrita, apesar desta doutrina expressa no "O Livro dos Espíritos", o
Espiritismo descambou para o lado de Santo Agostinho Espírito que dá
doutrina polarmente contrária a esta, com dizer que no começo tudo era caos. Que
era, eno, no prinpio? Era o Verbo, era o mundo espírita, era o topos
uranos, ou era o caos? E se o caos é algo, e não, o nada, de que proveio esse
algo? Não está por demais evidente a incoerência, Hierão? Acaso preciso eu
continuar, exaustivamente, com repetições, variando apenas o modo de dizer as
coisas?
Hierão, vendo-se advertido, exclamou:
- Basta já o quanto expôs. Já entendi tudo.
- Entendeu, mas daqui a pouco estará me retrucando como se não entendera
nada. É o misoneísmo que reage em você, propondo, de novo, o que ficou
esmiuçado!
- Mas agora entendi mesmo. que, do mesmo modo como eu reagi a essa
solução nova do problema, reação a que o senhor chamou de misoneísmo, igual-
mente, os da "velha guarda" do Espiritismo vão reagir.
- Bom. Eles são odres velhos... incapacitados, por causa do misoneísmo,
de receber o vinho novo. É como diz Fritz Kahn: "Depois dos quarenta,
ninguém gosta de reformar os seus conhecimentos, porque os velhos erros
são mais cômodos do que as novas verdades”(...) Porém, o que está dito está
dito. Gerões novas virão; e é assim que o Espiritismo progride. De mais a
mais, para propor essa nova solução, aos problemas... que a própria filosofia
espírita deixara implicitados, eu não tive de sair dos enunciados do O Livro dos
Espíritos". É melhor que alguém aborde esse assunto, do que ficar em
silêncio a respeito de O Livro dos Espíritos", como ficaram os filósofos, e
já vai para cem anos. Porém, por hoje basta o que estudamos, ficando o
resto para outro dia, querendo Deus.
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VIII - ESPÍRITO E MATÉRIA SURGIRAM DE
UM
ELEMENTO COMUM
Os estudiosos estavam reunidos no jardim e arredores da casa de Árago, e este
ainda não saíra do banho a que fora forçado a tomar, por causa de uma pescaria
que fizera, com rede de arrasto, na qual tomaram parte Chilon Aquilano,
Benedito Bruco e Bento Caturi. Em razão disto, estes também se atrasaram.
Dona Corlia deu a todos conhecimento do ocorrido, pedindo-lhes em .nome do
professor, que esperassem um pouco. Não demorou muito, e aparecia Árago,
sorridente, pedindo desculpas pelo atraso, e recontando as mesmas coisas de que
falara sua esposa. E enquanto todos tomavam assento na sala da biblioteca,
foram aparecendo um a um os retardatários, sendo Chilon o último a chegar. Sem
preâmbulo, Árago entrou no assunto do dia, o qual, segundo ele, guardava
continuidade com o tema tratado na última reunião. Principiou ele por estas
palavras:
- Na seqüência doutrinária, nem sempre cronológica, dos filósofos de
Mileto, surge Heráclito que afirmava a mobilidade e transformabilidade de
todas as coisas, pelo que nada é, porque, no ponto que é, se está mudando para
outra coisa. Assim, tudo muda, e nada está quedo. 0 que há é um vir-a-ser ou
devir constante. Disto se tira o enunciado da lógica natural que afirma: nada é
idêntico a si mesmo (em dois tempos sucessivos); tudo se contradiz. Examinando
esta questão, diz Parmênides haver uma contradição lógica na afirmativa de
Heráclito, porque se tudo muda e nada é, então, o que é, não é; quer dizer: o ser
não é. Daí que Parmênides fez uma afirmação que passou a basear toda a filosofia
até nossos dias; disse ele: o ser é; e o não-ser, não é. O mundo de Heráclito,
portanto, é o mundo do não-ser.
E prosseguiu o mestre, após uma pausa:
- Para que o ser seja, sempre seja, sem mudanças nem transformações, ele
tem que ser fixo; se fixo, então é imutável, imóvel e intransforvel; se
imutável, não teve um antes, nem terá um depois no tempo, pelo que é
eterno ou intemporal. Se o ser fosse causado, ele teria procedido de algo
antecedente, do qual é, agora, o conseqüente; e isto implicaria em mudança, em
transformação, am de num antes e num depois no tempo, e ele é imutável e
eterno. O ser não pode ocupar lugar no espaço, porque, neste caso, seria material,
e, como matéria, móvel, transformável. E por aí foi Parmênides deduzindo as
qualidades do ser que é, o qual se confunde com o pensamento, com os entes de
rao de que fazem parte todos os objetos matemáticos como triângulos,
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círculos, trapézios, etc., além de todos os conceitos, que são generalizações,
com os quais jogamos em nossas conversações. As leis científicas, os enun-
ciados, tudo faz parte dos entes de rao que são fixos. Destes entes se pode
enunciar, segundo a lógica formal: tudo é idêntico a si mesmo; nada se
contradiz.
E após o descanso numa pausa, continuou o filósofo:
- Portanto, concluiu Parnides, ser e pensar são uma e mesma coisa.
Conseqüentemente, há dois mundos: o fixo e estável do pensamento, e o
transformável, corpóreo e exterior, que impressiona os nossos sentidos. Vem
Platão, e projeta esse mundo do pensamento parmenídico, mundo subjetivo,
para fora do homem, no seu topos uranos que ele chama mundo celeste das idéias e
das formas ou Arqtipos eternos, e Aristóteles não fez menos que pôr Deus
como ocupado de pensar sobre o pensar, ou pensar pensamentos. Estes dois
mundos, desde logo, passaram a chamar-se dualismo metafísico. Este dualismo
dominou a filosofia até o fim da Idade Média. A partir do cogito de
Descartes, a filosofia chamada realismo... porque transitava das coisas (res)
para o sujeito (eu), mudou de sentido, passando a transitar do sujeito (eu) para as
coisas (res), sendo, por isto, chamada idealismo, psicologismo, subjetivismo,
etc. Aqueles dois mundos de Parmênides, separados, como nô-lo mostra Platão e
outros, continuou ainda a apresentar-se como dois, só que, agora, encaixados um no
outro. Aí, então, surgiu um problema novo que não havia para os filósofos
realistas: como é que o fixo, imutável, imaterial, etc., mundo das idéias se
comunica com o mundo material, móvel e transforvel? De que maneira o
espírito, havido por imaterial, se comunica com o corpo? Porque se o fixo se
liga ao móvel, ou o móvel pára, ou o fixo anda. É como um carro parado
com o motor em funcionamento; quando o disco de fricção se atrita com a peça
ligada ao resto do veículo, ou este anda, ou o motor se "afoga". Como é que
o espírito se comunica com a matéria? A idéia proposta, então, dos dois relógios
fabricados e sincronizados por Deus, não deu certo.
Neste ponto interveio Hierão Orsoni dizendo:
- Mas o Espiritismo resolveu essa questão ao afirmar que ao elemento
material se tem que juntar o fluido universal, que desempenha o papel de
intermediário entre o espírito e a matéria propriamente dita, por demais
grosseira para que o espírito possa exercer ação sobre ela" (R. 27). E esclarece
ainda o Espírito: "Se o fluido universal fosse positivamente matéria, razão não
haveria para que também o espírito não o fosse" (R. 27).
- Não é como eu disse, Hierão, que você não aprende mesmo? Essa matéria
foi estudada quando eu dizia que o fluido universal, ao entrosar-se com o
espírito, tem a mesma freqüência vibratória deste no bordo de sintonização.
Igualmente, no lugar em que o fluido se sintoniza com as vibrações da
matéria, torna-se tal qual ela. Assim, o fluido universal pode ser matéria e
pode ser espírito. Ora, dizia eu, duas coisas iguais a uma terceira, são iguais
entre si. As duas coisas são: espírito e matéria; e são iguais à terceira que é o
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fluido universal; logo, espírito e matéria são iguais entre si.
Conseqüentemente, o fluido universal é o denominador comum que permite a
passagem do espírito para a matéria e vice versa. Sendo assim, só há uma
matéria prima, o fluido universal que se pode diferenciar em matéria ou em
espírito. Ora, se o fluido universal é vibração, e daí o falarmos de ressonância
que é a vibrão uníssona sinfônica, segue-se que também é vibração a matéria
(matéria é energia), como vibração é o espírito. Se o espírito é vibração
(forma de energia) nele oscilação, movimento, mudança, transformação.
Logo, o espírito não é o ser fixo de Parmênides, nem os tais dois mundos,
um fixo e um móvel, porém, ambos são móveis, que um é material, e o outro,
espiritual. Resposta para os idealistas: o espírito se comunica com a matéria
corporal porque é da mesma natureza da matéria, visto que um e outro se
reduzem a um termo comum, a energia, a vibração. Vo acha, Hierão, que
pode escapar ao aperto com que o cinjo nestas conclusões?
- Não... não posso!
- E as premissas com que joguei não saíram do "O Livro dos Espíritos"?
- Sram.
- Então, ainda há mais isto: considerando que Deus não criou o universo do
nada, o que já ficou, também, explicitado, ao criá-lo, Deus transformou um algo
antecedente num algo conseqüente. Esse algo antecedente se chama causa, e o
conseqüente, efeito. E os Espíritos, Hierão, foram também criados?
- Sim, foram, é o que nô-lo ensina a Doutrina Espírita.
- Então, eles resultam, também, da transformação de algo neles?
- Sim, resultam, e, de certo modo, eles são materiais. Diz o Instrutor a Kardec,
quando este pergunta se o Espírito é imaterial: "Imaterial não é bem o termo;
incorpóreo seria mais exato, pois deves compreender que, sendo uma criação, o
Espírito de ser alguma coisa. É uma matéria quintessenciada, mas sem analogia
para vós outros, e tão etérea que escapa inteiramente ao alcance dos vossos
sentidos" (R. 82). E noutro lugar, querendo Kardec saber se os Espíritos têm
forma, recebeu esta resposta: "Para s, o; para nós, sim. O Espírito é, se
quiserdes, uma chama, um clarão, ou uma centelha etérea" (R. 88). E gastam
tempo em percorrer o espaço, que é com "a rapidez do pensamento" (R. 89),
portanto, com velocidade menor que a da luz.
- Como vocês estão vendo, o Espírito possui características de entes da
natureza, saturados, portanto, do devir heracliteano, e não de entes de razão,
fixos, intransformáveis, só dos quais nos fala Parnides. E porque os
Espíritos são seres da natureza, ainda que invisíveis, procederam de um algo
anterior, duma substância, pelo que m um tempo de antes e de depois de
criados. Além de eles serem causais e temporais, estão no espaço, possuem forma
como a da energia que é o da onda, da chama, do clarão, da centelha. Portanto, eles
são um modo de ser da matéria, conforme o disse o próprio Instrutor a Kardec,
ou da energia, o que dá no mesmo, dado que matéria e energia o termos re-
versíveis entre si. E o que é que dizia Giordano Bruno, já referido nestes
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estudos? Pois ele afirmava ser o espírito e a matéria aspectos diferentes de uma
mesma substância, e que, por conseguinte, ambos se integram na unidade de Deus.
Daqui ele tirava que não separação entre o físico e o psíquico. Ben Gerson,
porventura, não admitia a eternidade do mundo? E como não admiti-Ia se tudo,
até os próprios Espíritos, com serem criados, tiveram um antes e estão tendo um
depois? sendo que o "antes" se refere a algo que o é o nada? E Hasdai
Crescas não dizia que a matéria do Universo é o corpo de Deus? E como não
o ser, se a matéria veio do espírito (Deus é espírito - Jo 4, 24) por
transformação, por degradação, sendo que ainda, agora, o Espírito, seja de que
hierarquia for, não deixa de ser material, espacial, temporal, causal, transforma-
tivo, gastando tempo em deslocar-se de um lugar para outro? E Moisés de
Córdova, acaso não identificava Deus com o Universo? E como não
identificá-lo, se Universo, aqui, com U maiúsculo, como também pensava
Hasdai Crescas, integra toda a Criação, inclusive a do Mundo Espírita que
preexiste e sobrevive a tudo? Disto tudo veio o IMANENTISMO de Espinosa,
para quem Deus age, não sobre as coisas, mas nas coisas, porque se acha nelas.
E feita uma pausa, para tomar fôlego, prosseguiu o mestre:
- Eis o que escreve Bertrand Russell, a respeito da unidade entre matéria
e espírito: "Pavlov não foi um materialista, nem um mentalista. Ele defendia
a idéia, que eu também acredito firmemente ser verdadeira, de que o costume
de distinguir entre espírito e matéria é um erro, e que a realidade pode ser,
igualmente, considerada como pertencente a ambas as naturezas, ou a nenhuma
delas. «Estamos, agora, sendo levados - afirma Pavlov - a considerar a mente, a
alma e a matéria como uma coisa só, e com esse ponto de vista não há necessidade de
realizar uma escolha entre elas»".
E fechando o livro, concluiu:
- que Deus não é Imanência, como pensava Espinosa e antecessores,
nem Transcenncia como pensara Aristóteles na cabeça da sua escola. Deus é
ambas coisas, e a isto se dá o nome de MONISMO. Deus, como
Transcendência, é como o oceano; o aspecto imanente ou criacional dele, é como
uma onda encapelada desse mesmo oceano.
Quem não se podia conter de satisfação era Benedito Bruco que, não se
aguentando mais, rompeu nestas palavras:
- Acaso o senhor se fez materialista? Suas conclusões inexoráveis o
conducentes ao materialismo!
- Calma, Bruco! Nada de afoiteza! Você fala da maria como se soubesse o
que ela é. Quem você acha que deve ser autoridade para dizer o que vem a ser a
matéria?
- Acho que um químico.
- Não é. 0 químico trabalha com átomos inteiros e com moléculas. Sua
ciência opera só com a última camada eletrônica dos átomos, onde as órbitas dos elé-
trons, em se combinando, por ressonância, produzem as moléculas dos
compostos.
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- Eno, um físico
- Um físico nuclear. É ouvir, então, o que eles dizem: "O homem comum
acredita que a matéria é sólida, ao passo que o físico pensa que se trata apenas
de uma onda de probabilidade ondulando no vazio. Em poucas palavras: a matéria
existente num lugar é definida como sendo a verossimilhança de vermos um
fantasma nesse lugar". Mais isto: "Agora, devido principalmente a dois físicos
alemães, Heisenberg e Schrodinger, os últimos vestígios do velho átomo sólido se
derreteram, e a matéria se tornou tão fantástica como qualquer coisa que se
manifestasse numa sessão espírita". Mais isto: "O átomo de Schrodinger é uma
«nuvem carregada» em que vibra uma neblina de energia..." Por causa desta
dificuldade em se saber o que vem a ser a matéria, num congresso, um físico de-
clarou: "Procuramo-nos explicar reciprocamente algo que nós mesmos não
entendemos. "Um outro sarcasticamente exclamou: "A física? É difícil demais para
os físicos!" (Fritz Kahn O livro da Natureza). Por causa de coisas quais estas, o
que antes era certeza, virou dúvida, e não menos que para os próprios cientistas.
Ei-lo, pela confissão de Bertrand Russell:
DIGNO DE NOTA o fato de que, exatamente quando o homem comum
começou a acreditar irrestritamente na ciência, o cientista começou a perder a sua
fé. Quando eu era moço, a maior parte dos físicos não tinham a menor dúvida de
que as leis da Física nos fornecessem uma informação real a respeito do
movimento dos corpos, bem como de que o mundo físico realmente consistisse
daquelas entidades que figuravam nas suas equações. É verdade que os filósofos,
desde os tempos de Berkeley, duvidavam da veracidade desses pontos de vista,
mas uma vez que as suas críticas nunca se referiram a um ponto específico do
processo científico, elas podiam ser ignoradas pelos cientistas, e, de fato, o eram.
Mas, atualmente, as coisas estão muito diferentes. As idéias revolucionárias
da Filosofia da Física foram levantadas pelos pprios sicos, e resultaram de
cuidadosos experimentos. A nova Filosofia da Física mostra-se humilde e
balbuciante em relação àqueles pontos em que a velha Filosofia se mostrava
orgulhosa e ditatorial". E remata Bertrand Russell: "No campo da
metafísica, o meu credo é simples. Penso que o mundo externo pode ser uma
ilusão, mas, no caso de existir, então ele será composto por eventos de pequena
duração e tamanho, que se dão a esmo. Ordem, unidade e continuidade são
invenções humanas, tão verdadeiras quanto os catálogos e as enciclopédias.
Mas, as invenções humanas podem, dentro de certos limites, ser capazes de
prevalecer no nosso mundo humano; além disso, na nossa conduta diária podemos,
vantajosamente, nos esquecer da existência do reino ctico e negro que talvez
nos cerque".
E fechando o livro com estrépito, disse o mestre para Benedito Bruco:
- Que me diz agora? Continua achando que sabe o que é a matéria?
Bruco, meio corrido, exclamou:
- Desse jeito, não sei mais o que pensar dela...
- Continuemos, então, com o assunto principal de nossa terlia, do qual estas
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últimas questões são pormenores. Aristóteles declara que não ser, se ele não se
apresentar, bifrontalmente, como forma e matéria, como essência e conteúdo. E
cai logo na incoencia de afirmar que Deus é forma pura sem matéria
alguma. Se em Deus não conteúdo algum, ele não passa de pura forma vazia,
de pura idealidade não objetiva, carente, portanto, de realidade. No erro
oposto incidiram os substancialistas puros ou materialistas, ao afirmar que se, sem
matéria, não há, ser real, segue-se que a matéria é que dá realidade ao ser, e, por
extensão, é o ser.
Ora, se a matéria ou substância existencialidade, realidade, ao ser, como,
certamente, declaram os substancialistas, por outro lado, a essência confere intelec-
ção, ideação, razão, lei e ordem à substância. Ninguém pode, por isso, saber o que
viesse a ser a substância pura sem forma, sem esncia alguma. Por este motivo,
uma o pode estar sem a outra na unidade do ser, valendo esta regra também para
Deus. É o que tenho demonstrado nestes nossos serões; tenho feito ver que não
ser real sem substância, pelo que Deus, em possuindo Essência e Substância, é a
Realidade por excelência da qual todas as demais realidades decorrem. Não
enfatizo mais um que outro destes termos, porque, se Deus é sabedoria plena pela
sua hiper-razão, é a substancialidade primordial pelo Amor e Luz que é, incriados
e infinitos. Não obstante, prezado Bruco, como você dá ênfase à substância,
pelo que é substancialista ou materialista, vale a pena examinar a questão por
essa face.
E prosseguiu o mestre, após refletir um pouco:
- Você sabe, caro Bruco, que quando supomos que uma coisa consiste em algo,
verificamos logo que esse algo se decompõe em outra coisa, donde dizermos que é
nesse antecedente que consiste a coisa. E fixando a atenção sobre esse antecedente,
notamos haver outro, anterior, ou por debaixo, e assim, somos levados a afirmar
que aquilo em que a coisa consiste, de verdade, há de ser o que represente o último
limite desta cadeia de análise, que é o fundamento primeiro de tudo. Está certo
isto?
- Está, tornou Bruco.
- E você sabe que a matéria se resolve em energia, que o átomo é um campo de
forças onde nada é sólido, e que essa solidez que pensamos existir, é o resultado da
velocidade com que os etrons corpúsculos-ondas envolvem o núcleo, e tornam o
átomo impenetrável. Daí o ter Einstein criado o termo energia-substância
para representar todas e quaisquer matérias e todas e quaisquer energias do
universo. Sendo matéria e energia termos reversíveis entre si, toda a matéria do
universo veio da energia cujas ondas se enovelaram em corpúsculos
materiais, que são as partículas sub-nucleares das quais se formaram os núcleos
atômicos primeiro, e os átomos, depois. Por outro lado, sabemos, hoje, que a
matéria se decompõe em energia. A bomba atômica serve, não só para dar sustos à
humanidade, como para convencer a todos de que matéria é energia. E que as
energias se transformam umas em outras, padece alguma dúvida, Bruco?
- Absolutamente.
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- E que as energias se degradam, do ponto de vista dinâmico, a cada
transformação, perdendo, por isso, sua capacidade de produzir trabalho mecânico,
ou seja: as energias se degradam na medida em que vão se transformando de
ondas curtas em ondas longas; isso, também, é do conhecimento de todos?
- Penso que é, pelo menos para os que têm algum rudimento desica.
- Portanto, as energias se transformam umas em outras, na medida em que, em
se tornando ondas longas, vão perdendo sua capacidade de produzir trabalho me-
cânico, o que se o nome de degradão dimica. A substância, portanto, que
antes era matéria compacta, táctil, desvaneceu-se em pura energia, e o que se dava o
nome de materialista, deve, agora, chamar-se energista. Concorda que é assim?
- Concordo, respondeu Bruco.
- E antes, não havia vida no universo, continuou Árago. Depois surgiu a vida:
do quê? Primeiro, temos o princípio científico da conservação da matéria em
todas as transformações ou reações químicas; depois, temos que o mesmo
princípio vigora, não só para a passagem da matéria para a energia e vice-
versa, como, também, para todas as transformações dinâmicas, ao que se dá o
nome de "princípio de conservação da energia". Estes dois princípios podem
ser generalizados na expressão: "princípio de conservação da energia-
substância", ou enunciados como o fez Lavoisier: "Na Natureza nada se cria
e nada se perde, mas tudo se transforma". Considerando isto, Bruco, e dado
que a vida é algo, e não, nada, o que foi que se transformou para tornar-se em
energia vital? Do que saiu a vida?
- A conexão de idéias que o senhor armou, me leva ao óbvio; me leva à
resposta de que a vida surgiu das energias dinamicamente degradadas, de ondas
longas, quase retificadas.
- Então, você concorda comigo em que tudo o que existe é algo anterior
modificado?
- Isso é apodítico, axiomático, evidente por si mesmo.
- E que o algo anterior da vida são as energias degradadas, assim como o
algo anterior da energia, em nossa fase evolutiva, é a matéria?
- Perfeitamente.
- Seguindo o mesmo raciocínio, Bruco, você de concordar que as forças
nascidas da vida, como a vontade, como os sentimentos, são formas de energia
também?
- Concordo, também, com isso.
- E o amor não é o mais nobre sentimento?
- Exato! Sendo ele, portanto, a mais excelsa forma de energia.
- E existe transformações para cima do amor, isto é, pode o amor transformar-
se em algo superior a si?, pode haver o super ou o transamor?
- Não. Não pode.
- Ora bem, concluiu Árago: se o amor não tem nada mais acima de si; se ele não
se refere, não se relaciona a coisa nenhuma acima de si, não se relacionando, não
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se referindo, deixa de ser relativo, pelo que é relativo o que se relaciona. O
amor é o referencial supremo de tudo, mas não referenciável a nada. Tornado
único em si mesmo, cessada a relação subordinativa, o amor fica absoluto, com o
que ele vem a ser Deus. Daí que São João afirma que "Deus é amor" (1 Jo 4, 7).
E fazendo uma pausa para que todos meditassem sobre estas acrologias,
concluiu para Benedito Bruco:
- Eis onde veio dar o seu materialismo... que eu prefiro chamar de
substancialismo.
Com ar de espanto, interrogou Benedito Bruco:
- Quer dizer que o Amor, que é Deus, saiu da matéria, por transformação
ascendente desta matéria?
- é que está o busílis, meu nego, tornou o mestre. Eis por que todos os
místicos e religiosos repudiam com inaudita veemência a Doutrina da Evolução.
Ninguém reparou, porém, que Cristo, como que personificando o Amor, declarou:
"Eu sou o Alfa e o Ômega, o princípio e o fim, o primeiro e o derradeiro” (Apoc.
22, 13). Se, por um processo ascendente, evolutivo, a partir da matéria, chegamos
ao fim, dado que não nos foi possível subir a posto nenhum acima do amor, segue-
se que esse amor, com ser o fim, é o Ômega. Todavia, como o Ômega e o Alfa são
um e o mesmo personifícado no Cristo-Amor, temos, então, que o começo de
tudo é o Amor tal qual o fim. Você partiu da matéria, mas ela procedeu do
Caos. Logo, esse Caos é o meio da descida de algo que se dissociou. A matéria,
como a conhecemos, não é o começo de nada, mas, apenas um elo, e ainda não
central, duma grande cadeia circular que, partindo de Alfa, se fecha em ômega,
sendo que Alfa é igual a Ômega, tal qual o começo é igual ao fim em todo
circuito fechado sobre si mesmo. Por conseguinte, há, hoje, a Evolução,
porque houve antes a Involução, estando esta doutrina da queda dos Espíritos
celestes em todas as religiões e mitos da Terra, além de achar-se expressa nos
Evangelhos, no Pentatêuco, e ainda na doutrina de Platão. Foi assim que os
homens mais inteligentes de vários lugares, em vários tempos, resolveram o
problema da existência da ignorância, do sofrimento, do mal e da morte. Mesmo
Schopenhauer, o grande niilista búdico ocidental, reconheceu isto ao afirmar: "As
dores e as misérias são, pelo contrário, outras tantas provas em apoio, quando
consideramos o mundo como obra de nossa própria culpa, e portanto como uma
coisa que não podia ser melhor. Ao passo que na primeira hitese, a miria do
mundo se torna uma acusação amarga contra o criador e dá margem aos sarcasmos,
no segundo caso aparece como uma acusação contra o nosso ser e a nossa vontade,
bem própria para nos humilhar".
E pulando, o mestre, pequeno trecho do que lia, em seu caderno de anotões,
prosseguiu com Schopenhauer:
- "De um modo geral não nada mais certo: é a pesada culpa do mundo que
causa os grandes e inúmeros sofrimentos a que somos votados; e entendemos esta
relação no sentido metafísico e não no físico e empírico. Assim a história
do pecado original reconcilia-me com o antigo testamento; é mesmo a meus olhos
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a única verdade metafísica do livro, embora ai se apresente sob o véu da
alegoria. Porque a nossa existência assemelha-se perfeitamente à conseqüência de
uma falta e de um desejo culpado... "
Fechando, Árago, o caderno, em que lera o texto de Schopenhauer, e
virando-se para Benedito Bruco, rematou:
- Aí está no que deu o seu materialismo. Se fôramos nos emparelhar com
os filósofos de Mileto do VI século a. C., em lugar dos elementos ar, água,
terra, fogo, ou os quatro elementos juntos, o que diríamos é que a Energia-
Substância primacial de tudo é o Amor. Tal o disse o arcanjo Rafael a Adão,
na intuição de Milton, neste verso do seu "Paraíso Perdido"
Existe só um Deus Onipotente
Que tudo fez, de quem procede tudo;
Regressam-lhe para ele as coisas todas
Quando se o depravam, mas perfeitas
Foram por seu poder todas criadas.
Não há mais que uma só matéria-prima;
Pode variar de consistência e formas,
E em diferentes graus alcançar vida
Nos entes que a viver são destinados.
Quanto eles mais do Eterno se aproximam,
Ou quanto mais a aproximá-lo tendem,
Tanto mais se refinam, mais se apuram:
Cada um gira na esfera que lhe é própria
Té que o corpo em espírito se muda
Nos termos às espécies designados".
- Vejam todos, prosseguiu o professor, que assinalei com reforço na voz e
nos gestos dois pontos; o que diz: "Não mais que uma só matéria-prima", e
outro: "Té que o corpo em espírito se muda", sendo este corpo-espirito pura
energia luminosa nos Esritos sublimes.
E fechando o livro de Milton, concluiu Árago:
- Essa matéria prima, no seu estado primordial, por excelência, é o Amor,
que é Deus, e da qual ele criou os Filhos. A queda ocorrida no prístimo
passado, primeiro, por causa do esfriamento do amor, e, segundo, pelo fato de ter
havido a inversão do amor no egoísmo, o atingiu a todos os Espíritos celestes,
ou seja, todos os habitantes do mundo espírita. Apenas um terço de tais Esritos
caíram pelos níveis do espaço, este ainda não ocupado pelo universo que veio
depois, a partir do caos, este formado pela dissociação de uma parte dos caídos, e
não de todos. Só os Espíritos mais altos na escala hierárquica, e, por conseguinte,
com maior responsabilidade, desintegraram-se, eles e seu mundo, tornando-se no
dilúvio da energia que antecedeu o Caos.
Depois de uma pausa, para organizar as idéias, prosseguiu o mestre:
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- Como eu dizia, nem todos os Esritos se dissociaram no atro abismo. Os
níveis do que, depois, se chamou universo, ficaram povoados desses Espíritos aos
quais São Paulo dá o nome de "potestades do ar" (Ef 2, 2 e 3), e essas
"potestades" foram as que se encarnaram nos pré-homens macacóides que,
posteriormente, se tornaram homens. Os corpos, como se vê, vieram, por evolução,
de um ancestral comum ao macaco e o homem; porém, as almas são aqueles
Espíritos celestes desviados do amor, porque seduzidos e enganados por outros
maiores, em hierarquia, cuja culpa, porque maior, os levou a desintegrarem-se
no medonho abismo. Assim, os Espíritos celestes que se desviaram do amor porque
enganados, caíram, também, mas não tanto ao ponto de se desfazerem em puras
energias, como ocorreu com seus sedutores que, por isto, tinham maior culpa.
Este é o motivo por que o nenhuma diferença entre as tais "potestades"
(espíritos errantes) e os homens. Este é o pensar mais antigo que pode ser
achado em São Paulo, e num diálogo entre Deus e o Diabo, no livro de Jó:
" - Donde é que vens, para te apresentares perante mim, entre os meus
filhos?" - disse o Senhor (Jó 1, 7) - "Venho de rodear a terra, e passear por
ela", responde o Demo. Agora São Paulo:
"E vós estáveis mortos pelos vossos delitos e pecados, nos quais andastes
outrora, segundo o costume deste mundo, segundo o príncipe que exerce o poder
sobre este ar, espírito que agora domina sobre os filhos da incredulidade, entre os
quais também todos nós vivemos outrora, segundo os desejos da nossa carne, fa-
zendo a vontade da carne e dos apetites, e éramos por natureza filhos da ira,
como todos os outros" (Ef 2, 1 a 3).
E tendo, ainda, a Bíblia aberta nas mãos, comentou o mestre, apontando para o
texto:
- Como vocês viram, alterei a entonação da voz para realçar os pontos que
dizem: "o príncipe que exerce o poder sobre este ar", que é o mesmo que
"príncipe deste mundo" (Jó 14, 30) de que nos fala Cristo, príncipe ou
Espírito que atua sobre os filhos da incredulidade, entre os quais também todos
nós vivemos outrora, etc. Com esses destaques quero mostrar que não havia
nenhuma diferença entre as "potestades do ar", e os homens, não primitivos,
como também, ainda, a maioria dos modernos. Afora alguns santos da Huma-
nidade que compreenderam como funciona o Universo Moral, o Universo do
Amor, no mais, no grosso, ainda somos todos Diabos, ainda todos egoístas, apenas
uns, intelectualmente, mais evoluídos que outros, o que, apenas, nos torna mais
aptos, não, porém, melhores, não importando nada estarmos na carne, ou fora dela
como aquelas "potestades do ar", ou como o diabrete ertico que disse ao
Senhor: "Venho de rodear a terra, e passear por ela" (Jo 1, 7). Lembra-me
haver lido que as casas dos chineses têm seus beirais levantados para cima, a
fim de jogarem, de volta, para o espaço, os demônios malévolos que, por ventura,
hajam caído sobre o telhado, e deslizado por ele.
E parando o pensador numa pausa em que ficara, por certo tempo, com os
olhos perdidos nas luzes distantes por fim, concluiu:
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- Primeiro, no empíreo, tudo era a Energia-Substância Amor da qual foram
criados os Espíritos celestes, e isto porque o próprio "Deus é amor" (I Jo 4,
7-8). Uma vez que o oposto do Amor é o Egsmo, depois da inversão do impulso
amoroso no seu contrário impulso egoístico, principiou a QUEDA dos Espíritos,
da periferia da grande esfera empírea para o seu centro, onde se situou, o
medonho Caos. Primeiro, o Caos dinâmico, referto de energias; depois, também,
o Caos material. Todo o universo, nesse tempo, se concentrava no grande globo, o
Colosso Primitivo, de dez mil anos luz de diâmetro, e isto, antes da arquiformi-
dolosa e tonitruante primeira explosão... de que nos dá notícia a ciência. São
João diz que "Deus é amor" (I Jo 4, 7-8); e diz, também, que "NO
PRINCÍPIO era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus" (Jo 1,
1). Logo, se Deus era o Verbo, e é o Amor, segue-se que o Verbo é Amor.
Então, podemos construir a sentença de S. João deste modo:
"NO PRINCÍPIO era o Amor, e o Amor estava com Deus, e o Amor era
Deus ( ... ) Todas as coisas foram feitas por ele, e sem ele nada do que foi feito
se fez.
- A Energia-Substância primacial, fundamental, primária, portanto,
continuou Árago, na ordem das coisas, é o Amor do qual tudo se fez, por
transformação, dado que, segundo o princípio cienfico da indestrutibilidade da
ENERGIA e da MATÉRIA, "na Natureza nada se cria e nada se perde mas tudo se
transforma" (Lavoisier). Nosso universo, como matéria, veio da energia,
conforme a ciência. E essa energia veio do quê? Pois ela procedeu da Energia-
Substância de que os Espíritos celestes e seu mundo foram criados, parte dos
quais, tanto dos Espíritos quanto de seu mundo, CAIRAM e se
DESINTEGRARAM. Aquela Energia-Substância Amor de que eram feitos os
Espíritos e seu mundo, desceu pelos níveis dinâmicos, por transformação de umas
energias em outras, rumo às ondas curtas às quais, em se enrodilhando
sobre si mesmas, produziram as parculas sub-nucleares de que se formaram os
cleos dos átomos, e, destes, as moléculas, as rochas, os amontoados gacticos, o
universo material.
- Como vos podem imaginar, prosseguiu o filósofo, depois da QUEDA até o
centro da grande esfera empírea, onde se situou o CAOS, principiou a fase
oposta, chamada EVOLUÇÃO. Agora, num processo inverso ao da INVOLUÇÃO
ou QUEDA, as energias de ondas curtas se vão transformando em energias de
ondas cada vez mais longas, menos penetrantes, menos potentes do ponto de vista
dimico, o que vale dizer, DEGRADADAS, porém, mais EVOLUÍDAS.
E continuou, após grave reflexão:
- Antes, não havia VIDA, no universo; depois, ela surgiu: do quê?, se tudo o
que existe, sem nenhuma exceção, é o seu estado anterior modificado? A Vida, já o
concluíra Benedito Bruco surgiu das energias dinamicamente degradadas que lhe
ficam abaixo. Essa energia vital organizou a matéria bruta em arranjos cada
vez mais complexos, que são os organismos biológicos; a partir da biologia
molecular, do vírus e da célula, primeiro vieram os vegetais, e, logo, os
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animais. A escala zoológica avança pelo tempo de milhões de anos, até que, enfim,
sai de quatro, e se põe de o pré-homem. Este é o Adão primeiro, anterior ao
lendário Adão de Moisés; e ele traz, já, consigo, o seu pecado original do
egoísmo..., o mesmo que o derrubara, na forma espiritual, do Mundo espírita,
juntamente com os demais Espíritos, agora não mais celestes, os quais ficaram
estagiando nos rios níveis do universo, consistindo eles no que S. Paulo
chama "potestades do ar" (Ef 2, 2). E não há só as "potestades do ar",
como também os "Dragões" das cavernas subcrostais, de que nos fala
André Luiz. E até onde vai, Terra a dentro, esse domínio dos Dragões? A
darmos crédito à intuição de Dante Alighieri, vai até o centro onde tem
assento o Dragão-Mor, o Demonázio... que estabelece um regime político de
terror e de exploração de próximo em próximo até a superfície onde é
praticada a vampirizão generalizada das energias vitais dos que se
localizam. Nós, encarnados, que nos achamos em contato com a fonte suprema da
energia solar, desta nos alimentamos; depois, por causa da nossa invigilância,
somos sugados, fluidicamente, pelos vampiros que transportam essa energia
Terra a dentro, pela exploração de próximo em próximo, até o Dragão-Mor o
qual, só por isto, ainda não se finou, por aniquilamento. A guerra do Mal
contra o Bem que se deflagra por toda a Terra, é uma luta de vida ou morte
para os Dragões, para o Demonázio-Mor e seus consócios.
E ficou o mestre a cismar, por largo tempo; depois, tornando a si, concluiu:
- Um dos Espíritos celestes, espírito não caído, notem bem..., portanto,
detentor do Amor puro, Amor sem metas, que é Cristo, desceu à Terra, tomou
carne, e isto para ensinar o ÚNICO caminho de volta que a cada um cumpre
palmilhar, com seus próprios pés, dado que Cristo não é substituto do homem no
resgate da culpa, porque isto é impossível, mas modelo e exemplo que cumpre a
cada um seguir. O caminho de volta é o caminho do amor... que cada ente
humano terá de desenvolver, sem o que esta infernado neste mundo, como
homem, ou no espaço, post-mortem, como "potestade do ar", como era antes.
- Esta nova filosofia, continuou o pensador, a da síntese entre a tese
CRIACIONISMO e sua antítese EVOLUCIONISMO, vigorará no futuro.
O programa de trabalho, para cada ente humano, consiste em ele vencer sua
própria animalidade que se cifra no requintamento de suas paixões inferiores,
todas, sem exceção, nascidas do egoísmo, com desprezo total para com as coisas
do espírito. Este programa pressupõe que seu executor é amigo de Cristo, e
aqui começa a primeira dificuldade, somente superável por aproximações e a
longo prazo. É que para ser amigo de Cristo, ele estabelece uma condição ao
sentenciar: "Vós sereis meus amigos, se fizerdes o que vos mando" (Jo 15,
14). E quem é que faz o que ele manda? No referente ao amor, seu mandamento
primeiro é de que amemos a Deus sobre todas as coisas. No entanto, vemos trocado
o mandamento, como se afirmara: ama primeiramente todas as coisas, inclusive
todos os regalos e comodidades da vida, sem te preocupares com que haja ou o
Deus. No tocante ao próximo, estabelece: ama ao próximo como a ti mesmo.
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Todavia, tirando pequeno percentual de justos e de santos, para a imensa maioria,
é como se o mandamento dissera: ama-te a ti e aos teus, e, sempre que possível,
usa o próximo em teu proveito. No que se refere à reforma individual, o
programa imposto por Cristo divide-se em três partes ou etapas que são as
constantes do texto de Mateus 10, 38 e 16, 24:
- Primeira etapa: negar-se a si mesmo em animalidade grosseira; segunda:
pegar a própria cruz e pô-la ao ombro; terceira: seguir a Cristo... que já vai
indo, na frente, com sua própria Cruz. No fim da jornada, Cristo é pregado
na sua Cruz, e nós o somos nas nossas. Disto nasce o corolário repudiado por
todos os crisos, exceto alguns santos: "Quem quiser ganhar a sua vida perdê-la-á,
e quem perder a sua vida por amor de mim (mim Doutrina), achá-la-á" (Mat
16, 25 - Jo 12, 25). Este é o único caminho de volta, e não atalhos, nem os
subtergios que os homens, por comodismo egoísta, inventaram... para o fazer
o que tem de ser feito. Pior para esses homens: suas cruzes multiplicar-se-ão
tantas vezes quantas são as que tentaram iludir-se.
Ao término destas palavras, dona Cornélia entrou na sala com o café, e, com
ele, Árago deu por finda a reunião.
IX - UNIVERSALIDADE DA TEORIA
DA QUEDA
No outro sábado, pela manhã, Árago estava lendo em sua biblioteca, como
era costume seu fazer; e como a leitura o pegasse, tornou a ela, mesmo após o
almoço. O tempo ficara quente, à tarde, e assim mesmo, pôde o fisofo estar com
o seu livro, até que o canso mental o impedisse de prosseguir. Só bem à
tardinha é que foi até o mar respirar a maresia que o vento brando lhe ofertava.
E assim ficou descansando largo tempo, pisando, descalço, a areia morna, e
gozando as vistas que a natureza lhe mostrava a cada lanço de olhos. Depois, o
Sol começou a esconder-se por trás da serra do Cadeado, e o pensador retornou à
casa para o jantar. E quando, à noite, os costumeiros estudiosos estiveram reunidos
na sala da biblioteca, o mestre principiou a falar:
- Faz poucos dias, Hierão e eu estávamos arrastando o picaré na praia, a
fim de nos provermos de camarões e de siris, quando me falou ele da universali-
dade do ensino dos Espíritos, sendo este um dos pontos tratados na
"Introdução" ao "O Evangelho Segundo o Espiritismo". Diz Kardec lá:
"Um homem pode ser ludibriado, pode enganar-se a si mesmo; já não será
assim, quando milhões de criaturas vêem e ouvem a mesma coisa. Constitui
isto uma garantia para cada um e para todos" (pág. 18). "Nessa
universalidade do ensino dos Esritos reside a força do Espiritismo e, também,
a causa de sua tão rápida propagação" (pág. 19).
E munindo-se o mestre de outros livros de Allan Kardec, principiou a
argumentar:
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- Não sei por que, sendo o Espiritismo uma Doutrina essencialmente
platônica, foi permitir se enxertasse no seu contexto a filosofia agostiniana do
"creatio ex nihilo", que se opõe, frontalmente, à de Platão, criando, deste
modo, incoerência dentro do " O Livro dos Espíritos". Enquanto a doutrina de
Platão é a do mais amplo universalismo a de Santo Agostinho é dele,
exclusivamente dele. A criação ininterrupta de Espíritos simples e ignorantes,
partindo do caos, faz o mal e a dor eternos; o mal, porque é fruto da ignorância;
a dor, porque tanto sofrem os Espíritos nos baixos níveis, quanto os dos altos;
embaixo, e enquanto se está embaixo, sofre-se a dor diretamente na carne; porém,
para os que subiram à perfeição, a dor continua, porquanto os Espíritos puros
sofrem por compaixão e empatia a eterna dor dos que, continuamente, são criados
no caos. Ou isto, ou os Espíritos perfeitos se tornam insensíveis às dores
alheias. Se ficam insensíveis, então já não têm caridade, que é amor. Ora, se os elei-
tos são indiferentes, insensíveis, então o gozo deles consiste numa pura
contemplação metafísica, num isolamento alto, distante, em torre de cristal.
Estes Espíritos puros, então, não têm caridade. E se diz "O Evangelho
Segundo o Espiritismo" que "fora da caridade não salvão" (pág. 213),
segue-se que dentro da salvação o caridade. Ora bem. Como pode não ter
caridade aquele que logrou salvar-se por desenvol-la? Mas onde acharmos
esta forma de beatitude e gozo puramente racional, nada amoroso, nada afe-
tivo? Ei-lo: "Santo Tomás, quando tenta imaginar ou ver ou intuir em que deva
consistir a bem-aventurança dos santos, não encontra outra atividade senão a mesma
de Aristóteles: os santos são bem-aventurados porque contemplam a verdade,
porque contemplam a Deus. Como Deus é pensamento puro, contemplam o pensa-
mento puro e vivem eternamente nas zonas do puro pensar". E que é feito
do amor? que é feito da caridade? A caridade ou amor não conta! Se
fizermos, assim, a beatitude realizar-se pela inteligência, gozarão mais os mais
inteligentes, sendo que os entes não dotados dela estarão desamparados da
felicidade que é, necessariamente, o fim supremo de tudo. E certo como é, que
entes demoníacos, mas, inteligentes, seguir-se-ia queo felizes?
- Isso o, prezado Árago, redarguiu Chilon. Aos Espíritos inteligentes,
porém, demoníacos, está vedada a visão de Deus!
- Que é isso, meu Chilon! Segundo Aristeles e Santo Tomás, Deus é puro
pensamento, é a verdade, não é assim?
- Isso mesmo.
- E inteligência, conforme a própria etimologia da palavra, não é a visão
do nexo que a tudo interliga na unidade? não é a visão de eros?
- Exato.
- Pois então, meu caro, se admitirmos haver Espíritos demoníacos, porém,
inteligentes, em que, logo, reside as suas inteligências?
- É, o senhor tem razão; tais Esritos vêem a verdade das coisas, que isto é ser
inteligentes, pois se não a podem enxergar, são estúpidos, broncos, obtusos, e
não, inteligentes. Se a tais Espíritos estiver interditada a visão da verdade,
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não serão inteligentes, porquanto o objeto da inteligência é o nexo oculto às
vistas, segundo o qual as coisas o inter-legíveis. O senhor tem razão: se admito
que um Espírito luciferino pode ser inteligente, ipso facto, tenho de admitir
que ele também contempla a verdade, e pode operar nas zonas do puro pensar; logo,
eles também vêem a Deus do único modo pelo qual Deus pode ser visto, isto é,
intelectualmente, a estarem certos Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.
- O inteligente, tornou o mestre, é o que enxerga a verdade. E se admitirmos
demônios inteligentes, temos de concordar que também contemplam a verdade, só
que, atenção a isto, não a amam, e antes, pelo contrário, sofrem-na. Tanto
contemplam a verdade os anjos fiéis, como os rebeldes, tanto no céu, como no
inferno, se são inteligentes: no céu, para gozo, porque a amam; no inferno, para
sofrimento, porque a odeiam. O rebelde gostaria que a verdade fosse
diferente do que é; gostaria que ela fosse o que ele deseja; que fosse ele pprio
no que sente e imagina. Mas não; a verdade é o que sua inteligência constata ser,
para além e acima de seu desejo e querer, e isto o rala e martiriza. O
problema da felicidade, como se vê, não é o da simples contemplação ou não
contemplação da verdade, porque se reduz ao amor que se tem ou não se tem por
ela. A contemplação ou visão da verdade faz ao demônio sofrê-la, porque a
odeia, no mesmo passo que faz ao bem-aventurado deliciá-la, porque a ama.
Assim, a felicidade não é um problema de rao, mas, de sentimento; nada tem a
ver com a contemplação metafísica, e sim, com a fluição do amor. A razão, sozinha,
não produz nem alegria, nem dor; ela é neutra, indiferente, distante, e opera com
a mesma frieza de um computador; mas quando se acha incendiada do sentimento,
produz gozo e alegria, se esse sentimento é o amor, e desesperação, aflição e dor,
se ele, é o egsmo. Os Espíritos perfeitos contemplam e gozam a verdade, e,
harto, entendem que ela é o mesmo amor, seja no seu aspecto de pura idealidade ou
eros que a inteligência busca, seja no seu aspecto de substancialidade que é a força
unitiva que promove e manm coesas as integrações. Esta dupla fluição,
erosóide pela inteligência, e conectiva pelo amor, confere ao bem-aventurado
a mais alta emão com que cabeça e corão tudo é uno na Unidade-Deus. E
quando razão e sentimento amoroso se fundem na unidade, a razão se ergue para a
terceira dimeno consciencial, com que o eleito contempla em volume, e,
incendiado do seu êxtase amoroso, tudo por intuição. Já o espírito inteligente
que se aborrece do que vê, sofre a visão, fecha os olhos para não a enxergar, finge
para si, a verdade que lhe convém, e, à força de virar o rosto para a ilusão e
para as trevas, torna-se obtuso, estúpido, animalizado, cada vez mais inferior. O
que era intuição volumétrica, quando da vigência do amor, caiu para a pura,
simples e fria contemplação metafísica duma intelincia planimétrica. E
perdido nesta planície, se estafa na construção duma "verdade" diferente por
meio de sofismas, porque o anseio último do rebelde é de que a verdade seja ele
próprio, ele, a medida de todas as coisas.
E concluiu o filósofo, após uma pausa:
- Como vêem, reduzo tudo à fluição do amor, como queria Platão que via o
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universo cheio de eros, e não só dominado por fria intelecção metafísica, como
querem Aristóteles e Santo Tomás. Por isto, se há o amor, há felicidade, ainda
que os seres não sejam inteligentes. Deste modo, poderíamos trocar o cogito car-
tesiano, pondo no lugar dele o amor, refazendo, nesta nova base, o "Discurso
sobre o todo" Amo, logo, sou! Porque o Espírito caído, primeiro deixou de
amar, esta é a queda moral; disto decorreu a queda mental ou metafísica, visto
como o anjo rebelde desejou criar a sua "verdade" por meio da sofística.
Voltando os olhos para a ilusão que criou para si, degradou-se, mentalmente, e
pugnando por fazer-se a medida de todas as coisas, de fazer-se a si mesmo lei, de
fazer-se autônomo, de querer impor o seu arbítrio aos demais, pela força, deu
início à guerra que o desintegrou pouco a pouco, conduzindo-o ao caos.
Enquanto amava, existia e era; tanto que deixou de amar, tanto que trocou o
amor pelo egoísmo, principiou a morrer, a deixar de existir, a deixar de ser.
Logo, existia porque amava, e cessado o amor, cessou o existir. Enquanto amava
era feliz em sua existência, qualquer que fosse o nível; tanto que passou a
dominar o impulso oposto, o do egoísmo, não cessou a felicidade, como teve
início o processo desintegrador que o levou à inexistência, ao não-ser. Deste
modo, se fizermos a beatitude dos eleitos realizar-se através do amor, todos os
filhos de Deus são igualmente felizes, e o menor em mando reconhece que é tão
feliz como aquele que ocupa o mais subido cargo. O amor é a premissa de todas as
demais virtudes, e a humildade de quem serve, embaixo, corresponde à daquele
que, servindo em cima, baixa a fronte até o solo diante de Deus que o criou
investido do mais alto posto e também encargo.
- Todavia, prosseguiu o pensador, o aristotélico Santo Agostinho, pensando
seja Deus inteligência pura, pôs, no O Livro dos Espíritos", que "Deus é a
inteligência suprema, causa primária de todas as coisas" (R. 1). Neste caso,
sendo a inteligência o atributo supremo de Deus, e tanto que mereceu entrar
sozinha no enunciado, segue-se que estará mais próximo de Deus, quem mais
altamente for racional ou inteligente. Conseqüentemente, a ascese mística
coincide com a cogitão metafísica, e ser inteligente é ser virtuoso, donde vem
que fora da inteligência não há salvação. Isto que deduzo da premissa
agostiniana está correto, Hieo?
- Está.
- Logo, ser inteligente é ser virtuoso?
- De modo nenhum. Provam-no os bandidos famosos, os "gangsters"
americanos...
- E não provei, há pouco, que do amor decorre a existência, donde ter o anjo
cessado de existir, no ponto que deixou de amar?
- Provou.
- Portanto, meu caro, troque-se, no enunciado, a palavra inteligência pela
palavra amor, e tudo estará resolvido. Digamos, então, que Deus é o Amor
supremo, causa primária de todas as coisas. Ao menos tivesse Santo Agostinho
dito que Deus é a Sabedoria suprema, ainda vá lá; mas inteligência é que não
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pode ser, porque inteligência vem de "inter-legere" (ler entre). Ler entre as
coisas, ou, dentro delas, entre as partes constituintes, o nexo ou eros que as torna
existentes; por isso, para que haja inteligência, primeiro é preciso que haja
coisas a serem lidas, e não é possível que Deus tenha feito as coisas primeiro, para
entendê-las depois. O homem é inteligente porque raciocina, e raciocina porque
não sabe, porque é ignorante, porque é imperfeito. Ora, se dou que Deus é a
Sabedoria mesma, tenho de concluir que não pensa nem raciocina, como faz o
homem, mas sabe, de antemão, sem premissas, nem conseqüências, nem mesmo
proposições, como já o dissera Rousseau.
- E Santo Agostinho, continuou o mestre, briga com Platão, no contexto da
filosofia espírita, porque, dando, aquele, novo cariz ao seu "creatio ex nihilo",
diz que "no começo tudo era caos; os elementos estavam em confusão. Pouco a
pouco cada coisa tomou o seu lugar. Apareceram então os seres vivos apropriados
ao estado do globo" (R. 43). Diz também que "a espécie humana se
encontrava entre os elementos orgânicos contidos no globo terrestre" (R. 47);
que Deus "criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem saber" (R.
115 e 121); que "se Deus os houvesse criado perfeitos, nenhum mérito teriam
para gozar os benefícios dessa perfeição" (R. 119); que "Deus de ter
sempre criado ininterruptamente" os Espíritos (R. 78), em razão do que, a
criação deles "é permanente". "Quer dizer: Deus jamais deixou de criar"
(R. 80). Neste caso, o mundo espírita veio depois do mundo corporal, sendo este
o que preexiste e sobrevive a tudo, pois claro: sem ele, os Espíritos não teriam
oportunidade, nem de ser criados, nem de evoluir. E como "Deus há de ter
sempre criado ininterruptamente" (R. 78), nosso mundo corpóreo é eterno, e não,
o mundo espírita que pode ter surgido muito depois, quando da perfeição da
primeira leva de Espíritos subidos do caos. Por esta razão, nosso mundo
corporal é o normal e primitivo, uma vez que o próprio Mundo Espírita
decorreu dele. O mundo corpóreo é o único fornecedor de Espíritos para a
formação e crescimento do Mundo Espírita. Então, podemos trocar o
enunciado de Platão Espírito (R. 85) pelo agostiniano que decorre do
exposto, e dizer: o mundo corporal é o que preexiste e sobrevive a tudo; o
Mundo Espírita poderia deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso
alterasse a esncia do mundo corpóreo. A conseqüência que se pode tirar desta
doutrina, é de que o caos e o mundo corpóreo são necessários; o primeiro é
indispensável existir para possibilitar a Deus criar sempre, de contínuo, novos
Espíritos simples e ignorantes; o segundo é necessário para dar oportunidade a
estes Espíritos de evoluírem e chegarem à perfeição. Quando, deste modo, a
primeira leva de Espíritos chegar à perfeição, eles pprios, de pronto, criam seu
ambiente natural, que é o Mundo Espírita. Eis, pois, que o caos e o nosso mundo
corpóreo que se lhe segue, são obras diretas de Deus, e por isso eternas, enquanto
que o Mundo Espírita é obra dos Espíritos e por isto contingente. E estes
Espíritos perfeitos ou são caridosos ou não são: se o não o, dentro do Mundo
Espírita o há caridade; se são amorosos, hão de sofrer eternamente, por compai-
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xão, por solidariedade, por empatia, a dor medonha dos Espíritos que,
custosamente, fazem sua evolução, partindo do caos. Isto se infere do que disse
Santo Agostinho.
- Mas Platão, continuou Árago, declara exatamente o oposto disto no "0
Livro dos Espíritos". É, para ele, "o mundo espírita que preexiste e sobrevive
a tudo" (R. 85). Então lhe pergunta Kardec: "O mundo corporal poderia
deixar de existir, ou nunca ter existido, sem que isso alterasse a essência do mundo
espírita? De certo. Eles são independentes; etc." (P. e R. 86). Ora bem. Se
o mundo espírita é o que preexiste e sobrevive a tudo, segue-se que é ele o que
existe desde o começo dos tempos, e é o que sobreviverá no fim. Ora, o mundo
espírita depende da existência de Espíritos; e se esse mundo espírita é o
normal e primitivo na ordem das coisas, o primeiro ato de Deus foi criar os
Espíritos habitantes desse mundo espírita. Logo, a criação de Espíritos simples
e ignorantes sdos do caos, e, depois, submetidos aos processos cruentos da
evolão, o é o modo essencial, primário e normal de Deus criar Espíritos,
mas, anormal, secundário e acidental. Então, no começo, era o mundo espírita
que preexiste e sobrevive a tudo, e tanto que o mundo corporal poderia nunca ter
existido, ou pode cessar de existir, sem que isso afete a essência do mundo espírita.
Por conseguinte, o mundo espírita é necessário, e o corporal, acessório, visto que
este surgiu pelo acidente da queda, não sendo este, então, obra direta de Deus,
mas, indireta e mediata, porque produzido pelos Espíritos caídos. Isto mesmo
posto em silogismo: o mundo espírita é o normal e primitivo, e tanto que preexiste
a tudo; ora, não pode haver mundo espírita vazio de Espíritos; logo, os
Espíritos, habitantes do mundo espírita, preexistem a tudo. Se preexistem a tudo,
são anteriores ao mundo corpóreo e ao caos, e não procedem destes por evolão.
Consequentemente, Deus, que é a suma perfeição, cria Espíritos perfeitos, e só
submete à evolução os Espíritos que, posteriormente, são recriados do caos, agora
sim, como simples e ignorantes. Se o mundo espírita, que é o topos uranos, pree-
xiste a tudo, pode ter surgido o caos depois, e por causa de terem cdo as
almas daquele primitivo e normal mundo espírita.
E tendo o pensador feito uma pausa para um lego, prosseguiu:
- Como vêem, Santo Agostinho e Platão estão em luta dentro do O
Livro dos Espíritos". E vai para mais de cem anos, e ninguém viu isso.
Todavia, Platão obte vitória incondicional por duas razões: a primeira é que
Santo Agostinho, sendo aristotélico, quanto ao conteúdo das idéias, como o
próprio Aristóteles, é incoerente. Em segundo lugar, a doutrina de Platão é
universalista, no passo que a de Santo Agostinho é individual, pessoal. Vamos à
demonstração disto:
Em dizendo isto, muniu-se o mestre dos documentos que tinha, de antemão,
preparado, e depois prosseguiu:
- Se a revelação verdadeira é aquela que aparece, como diz Kardec, em
pontos diferentes do globo, seja ao mesmo tempo, seja em tempos diferentes,
então esta teoria da queda das almas do topos uranos é verdadeira, senão
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vejamos: "Um Mito dos índios Pahute da América do Norte conta do deus
Hinuno, o qual, tendo-se disputado com os outros, foi para sempre expulso do
céu; e torna-se então o gênio do mal. Por outro lado, falam as lendas
mexicanas de um deus ou de um espírito, que se sublevou contra o Ente Supremo;
e que se chamava Sootã ou Xatã, nome que se parece singularmente com o Satã
dos semitas, Satanás dos cristãos ou Xaitã dos muçulmanos".
"Encontra-se uma
história semelhante na mitologia grega: a aventura dos Titãs, revoltados contra
Zeus, que tinham tentado apoderar-se do Olimpo".
Isto satisfaz a condição kar-
dequiana como prova da verdade, uma vez que aparece em lugares diferentes: na
América pré-histórica e na Grécia antiga, a mesma revelação... Mais:
"Encontramos ainda gigantes rebelados nas lendas mexicanas, das quais uma fala
dos Quinames que certa época se tinham apossado da direção do universo". (As
citações são do Livro “O enigma da Atlântida”, de Alexandre Braghine) Na teolo-
gia hinduísta, o Brama que é o Todopoderoso, e suas duas manifestações
Visnu e Civa. Visnu é o bem ou expressão divina do amor, como o é Cristo para
nós. Civa é o deus do egoísmo, do mal, anti-Visnu ou Arqui-Denio, portanto,
igual ao nosso Satanás. Civa tem uma esposa chamada Parvati que toma a
expressão de Durga na guerra, de Uma na luxúria e de Kali na destruição. Kali
se apresenta sentada sobre Civa dormindo; possui horripilante carantonha a
vomitar sangue, tem um colar de crânios humanos ao redor do pescoço, sustenta
uma cabeça decepada a gotejar sangue numa das mãos, e com a outra empunha um
alfanje mortífero. "Brama é o Absoluto e por isso é único, indivisível e
imutável. Está acima da ação ou da inação, para além do bem e do mal, e em
seu seio, como uma semente, leva latente a energia vital. Quando dita energia
se manifesta na criação de um universo, toma a forma de maya (a ilusão), ou do
mundo material que percebem nossos sentidos. Maya brota de Brama, como o
calor, do fogo: o calor não é o fogo mesmo, mas dele procede e sem ele o
existe".
E fechando a revista, dirigiu-se o filósofo aos presentes dizendo:
- Eis aí, meus caros, que Brama é o Deus Transcendente, uno, infinito,
eterno, acima do Deus Imanente, criacional, curvo, fechado, temporal,
limitado na criação do topos uranos em que vivem as almas ou Espíritos
perfeitos; este é o sistema perfeito de amor e de luz, representando Visnu, do
qual uma parte corrompeu-se pela inversão no anti-sistema Civa. A questão é
de nomes. Se Brama está acima da ação e da inação, para além do bem e do mal,
paira para do espaço (matéria) e do tempo (energia), e está acima de Visnu
e de Civa que são duas manifestações dualistas do Bem e do Mal. Como, pois,
poderia ter surgido, a não ser pela inversão, o anti-sistema Civa, no qual se
explicita uma terribilíssima Kali, à qual, a seita thugi, bem pouco tempo fazia
sacrifícios humanos, pondo em apuros as autoridades britânicas para acabar
com esse fanatismo de doidos sectários? Se o bem se pode inverter no mal, não está,
aqui, implícita, a queda?
Ao fazer esta última interrogação, fitou o mestre a todos os presentes alguns
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dos quais maneavam a cabeça afirmativamente. E prosseguiu o pensador;
- Todavia, antes de deixarmos o oriente, passemos à China milenária, a fim
de vermos o que há por lá. Das três grandes religiões da China, uma é o Bu-
dismo que é puro ascetismo ateológico, outra é o Confucionismo, e outra, o
Taoísmo. A Confúcio, certa vez, se chegaram seus discípulos, e lhe disseram:
"Grande Mestre, fala-nos da vida depois da morte"; e o venerável filósofo
respondeu: "Como poderemos conhecer a morte se, todavia, não temos
aprendido a conhecer a vida?".
Com isto Concio matou a questão da teologia, tornando-se somente um
apóstolo da moralidade. O Budismo também não tem Deus, não passando ele de
um todo ascético de libertação da dor pela vitória total sobre os desejos.
Porém, o Taoísmo, de Lao-tse, possui teologia. Segundo as escrituras lao-
tseanas, "desde o começo da eternidade, quando o Grande Último ou Primeiro
Princípio do cosmo começou a dividir-se em seus elementos Yin Yang, o Tao
atuava já como força de integração e princípio moderador do mecanismo
smico". Ora, Tao é Lei segundo a qual funciona o universo em cujo
interior deparamos com os dois princípios de contradição, o Yang (positivo,
masculino, ativo, brilhante, dinâmico, etc.) e Yin (negativo, feminino,
passivo, escuro, inerte, etc). Dizem os textos que "desgraçadamente" o
homem se obstina em realizar seus propósitos insensatos, e a obstruir o processo
natural, rompendo o ritmo de Tao, desarranjando, desta maneira, a ordem
cósmica. O remédio, por conseguinte, está nas mãos do mesmo homem: sacrificar
sua vontade em favor da vontade infinita de Tao, convertendo-se num instrumento
desta. "Deixai que as coisas sigam seu curso normal, sem estorvos (...) O que
se opõe a Tao não tarda a perecer". "Como Tao atua sem pressões, o homem
sábio cuidara de lhe não exigir nada". Eis, está, o topos uranos e o mundo
derrocado, assim como a sentença de morte para o que se obstina no mal: "o
que se opõe a Tao não tarda a perecer". E Tao, com ser a força de integração,
é o amor que une e mantém coeso na unidade o topos uranos, ou mundo espírita que
preexiste e sobrevive a tudo, com que equivale ele ao Primeiro Princípio e
Grande Último, igual, também, ao Alfa e Ômega que diz Cristo ser
(Apoc.1,8 - 21,6 - 22,13). Eis as duas ordens de Espíritos: a dos que
compõem o mundo espírita que preexiste e sobrevive a tudo, os quais se
mantiveram na virtude, no amor, e a dos que, em caindo, fazem, agora a evolução a
partir do caos, como simples e ignorantes. E fica evidenciada a distião entre
artrio e liberdade, sendo que, como já tenho dito, o arbítrio é a liberdade que
o indivíduo a si se dá, e a liberdade é o arbítrio do coletivo, do topos uranos,
do mundo espírita, de Tao. Então, "desgraçadamente o homem se obstina em
realizar seus propósitos insensatos (eis o arbítrio), e a obstruir o processo
natural, rompendo o ritmo de Tao (eis a liberdade), desarranjando, desta
maneira, a ordem smica. O remédio, por conseguinte, es nas mãos do mesmo
homem: sacrificar sua vontade (arbítrio) em favor da vontade infinita de Tao
(liberdade), convertendo-se num instrumento desta"
.
(Citões Life em
110
110
espanhol 1955). Não é isto mesmo que tem de fazer os bandidos e marginais
dentro da sociedade humana? Pois o homem só pode ser livre, dentro da lei; e
se cuida que é autônomo, e que pode fazer uma lei exclusiva para si (arbítrio), a
sociedade se levanta contra ele e o destrói. Isto é das nossas experiências sociais,
e, por isso, pacífico. Se existe um Grande Último, segue-se que o erro, dor,
dano, mal do dualismo de Tao terá fim, exatamente como o Ahriman do dualis-
mo zoroastrino, o Civa do dualismo hinduísta, e Satanás, segundo a concepção de
Orígines, Giovani Papini e outros. "Orígines, à luz duma lógica retilínea e
dum raciocínio inexorável, proclama a célebre "apokatástasis" isto é, "a
reabilitação final" de todas as coisas, o consciente e voluntário regresso à
casa paterna de todos os "filhos pródigos", seja qual for o "país estranho"
em que eles estejam guardando os seus "rebanhos de porcos".
Assim, "o pecador é um homem acósmico ou anti-cósmico". Então o
homem terá de acabar por fazer o que manda Lao-tse: "sacrificar sua vontade
em favor da vontade infinita de Tao, convertendo-se num instrumento desta".
Ou de outro modo: "O único meio de remediar os males que o egsmo
descontrolado pode produzir é integrá-lo num Todo maior, ou, se possível, no
TODO último e absoluto. A integração do Ego individual no Nós social da
humanidade se chama altruísmo ou ética; a integração do Eu individual no
TODO CÓSMICO - o que, naturalmente, inclui o Nós humano - chama-se
mística ou religião, no mais alto sentido da palavra: re-ligar (religio) o
indivíduo finito com o Universal Infinito - isto é "religião".
E depois de uma pausa, prosseguiu o mestre:
- A vitória final do bem sobre o mal é uma constante de todos os sistemas, e,
em todos, o mal se extingue pela desinversão, visto não poder ser anulado subs-
tancialmente, por ser o ente mau de substância ou consistência divina. No
Grande Último estará integrado tudo aquilo que, nos começos, procedeu do
Primeiro Princípio, pois é axiomático que não poderá haver Grande Último,
se este não integrar tudo. E como pode achar-se Yin, dentro desse Grande
Último, se Yin representa não só oposição a Yang, mas, também, dano, mal, dor?
Aquilo do Primeiro Princípio que se inverteu em Yin (negação, mal, dor),
deve perder o seu caráter maléfico e destrutivo, para que tudo retorne ao seio
do Grande Último. Toda unidade é feita da harmonia de contrários, e não de
opostos em guerra destrutiva entre si. Yin e Yang terão de estar harmonizados
na paz de eros para que a coisa ou ser que eles integram exista. Não está tudo
isto muito claro, Hierão?
- Sim, está.
- Por isso, continuou o filósofo, diz Lao-tse "Pagai o mal com o bem
(...), porque o amor é vitorioso no ataque, e invulnerável na defesa. O Céu arma
de amor a quem não quer ver destruído". Isto não parece até de Cristo,
Hierão?
- Parece mesmo.
- Logo, se "o Céu arma de amor a quem o quer ver destruído", como
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pode manter-se incólume o que se desarma do amor, enchendo-se de egoísmo e até
de ódio? Se o amor é arma de vitória, o egoísmo e o ódio serão condições de
derrota, visto representarem a inversão do amor; o ódio, podemos dizer, não
poderá ser senão arma suicida apontada contra o próprio peito de quem a
manuseia. Por isso é que, na minha iia de como ocorreu a queda, imagino os
Anjos pervertidos a se desfazerem em nada, por si mesmos, pelo que suas setas de
luz rubra, seus magnéticos farpões, suas projeções enerticas, em se
ricocheteando na cúpula da luz, tornaram sobre eles próprios, e os
aniquilaram. Deste modo é que age o amor: como campo de força que
provoca o ricochete do mal sobre si mesmo. Nisto se fundamenta a resistência
pacífica ao mal como recomenda e exemplifica Jesus.
E depois de um fôlego, prosseguiu o pensador:
- Ainda falta vermos o que diz o nese mosáico, pois é lá que aparece
Satas com a forma de serpente. Se que convinha tratarmos disto, Hierão?
- Penso que não, pois seria isso repisar, em demasia, tornando redundante, um
assunto por demais conhecido das religiões ocidentais, ou seja, a rebelião do
arcanjo Lusbel e seus consórcios, e da queda deles no profundo abismo.
Conforme a doutrina que o senhor nos tem ensinado, a falência dos Espíritos do
mundo celeste resultou de haverem invertido o amor no egsmo, consistindo
este no pecado original por excelência, geratriz de todos os outros, dado que
todos os vícios são variações ou manifestações do egoísmo.
Fez silêncio Hierão. Dona Cornélia, fazia algum tempo, já, esperava com
o café, e aproveitou a interrupção para entrar na sala. Após o café, em que
todos conversaram sobre vários assuntos, o mestre retomou a palavra dizendo:
- Bom. Nosso tema de hoje está concluído. Poderíamos ampliá-lo mais, e
o faremos, se o desejarem; porém, o quanto tenho dito basta. Isso, no entanto,
não obsta, a que continuemos reunidos, falando de outras coisas. Eu mesmo
ando curioso por saber de novas que vocês me poderão contar.
E a tertúlia prosseguiu noite a dentro.
X - SOLUÇÃO DO MAIS ANTIGO
PROBLEMA
No sábado seguinte, após o jantar, todos os estudiosos estiveram presentes,
esperando por Árago que ainda estava ocupado com alguns quefazeres. E
depois de o professor entrar na sala, e de cumprimentar a todos, dirigiu-se para a
estante a fim de apanhar alguns livros e revistas para tê-los à mão. Sentou-se,
depois, pesadamente, em sua cadeira, dando pequeno gemido, como o de quem está
cansado de algum labor estafante. É que ele seguira, de manhã, com alguns
pescadores, rumo ao alto mar, numa lancha, e retornara, à tarde, com a pele
queimada pelo Sol. E encarando a todos os presentes com simpatia, principiou a
falar:
- Eu me muni de alguns livros e revistas para os estudos que, suponho,
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teremos hoje. Isso, porém, não obsta que estudemos outra qualquer coisa. Por isto,
eu gostaria de saber se alguém de vocês tem alguma dificuldade sobre os
assuntos que temos estudado em reuniões passadas.
A estas palavras de Árago, interveio Benedito Bruco, dizendo:
- Eu tenho. O senhor nos disse que, segundo a lógica da Natureza, que é a do
mundo de Heráclito, "nada é idêntico a si mesmo (em dois tempos sucessi-
vos); tudo se contradiz". Esta lógica natural se contrapõe à lógica formal, a
dos entes de rao, à do ser parmedico que afirma: tudo é idêntico a si mesmo;
nada se contradiz. E nos demonstrou que, como diz Aristóteles, tudo é constitdo
de forma e de matéria, sendo que uma não pode estar sem a outra na realidade de
qualquer ente na Natureza, valendo esta regra, segundo a explicação que o senhor
nos deu, também para Deus. Por conseguinte, Deus não é um ente de razão; uma
abstração ou forma pura, que é o mesmo que forma oca, vazia de conteúdo,
como pensara Aristóteles. Segando sua exposição, Deus deve enquadrar-se como
Ente
,
da Natureza ou Ser natural. Sendo assim, a lógica válida para Deus é a
da Natureza que diz: nada é idêntico a si mesmo, em dois tempos sucessivos;
tudo se contradiz? Deus, então, es nessa situação de contradizer-se, em dois
tempos sucessivos?
Árago que acompanhava o raciocínio de Benedito Bruco, maneando a
cabeça a cada conclusão, respondeu, sem preâmbulos:
- Deus não se contradiz; ele é imutável, porque perfeito, e não porque seja
um Ente de Razão, abstrato, só existente, como Essência pura, em nossa
inteligência. Eu defini a Evolução como sendo a progressiva eliminação do
caos pela integração que gera o Cosmo. Onde passou a imperar a ordem, a
harmonia, a lei, cessou o caos: isso nos átomos, isso nas moléculas; isso na bio-
logia molecular em que repousa os fundamentos da vida. Se os átomos ficassem a
contradizer-se (tudo se contradiz), nada se formaria com eles e acima deles.
Faz milhões de anos que espermatozóides e óvulos o quais são hoje. O que
chegou à perfeição não evolui, pára, não se contradiz, embora possa agasalhar
contradições internas, que são as teses e as antíteses das quais é a síntese. E quando a
Evolão chegar ao seu termo, ela cessará, tendo tudo retornado àquele antigo
estado de antes da QUEDA, de que resultou a Evolução. Tudo se contradiz
descendo, involuindo, decompondo-se, indo-se para o caos, e tudo se contradiz
saindo-se do caos, evoluindo, compondo-se até a Ordem suprema que era no
princípio. Depois, as coisas e os seres param no que são; eles podem ser
contradições em relação às unidades opostas com as quais se harmonizam
para a formação de unidades maiores; mas, em si mesmos, no que o, nisso
ficam, tal qual o eram no tempo da primeira Criação, isto é, na Criação do
Mundo Espírita que, por isto mesmo, preexiste e sobrevive a tudo.
E feita uma pausa, para concatenar as idéias, prosseguiu:
- O fixo, ivel, imutável, inespacial, intemporal, etc., que Parnides deu
como sendo qualidades do Ser, na verdade são atributos da razão ou dos entes
de razão. Como Parmênides tirou todas as qualidades do Ser do pensamento,
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acabou concluindo que ser e pensar são uma e mesma coisa. E faz vinte e cinco
séculos que os filósofos ficaram impedidos de devolver ao Ser, que é Deus, o
movimento e a vida que lhe atribuíram todas as religiões. Por conseguinte,
este velho problema que ora enfrentamos, tem pelo menos, dois mil e
quinhentos anos.
Fez uma pausa o mestre, para sentir o efeito destas suas últimas palavras,
depois do que, continuou:
- Quando Parmênides afirma que ser e pensar são uma e mesma coisa, essa
expressão pode resumir-se na equação ser = pensar. Como vocês podem ver,
este ser de que fala Parmênides, não é o ser-do-sujeito, e sim, o ser-do-
objeto, dado que estamos no Realismo que faz a ênfase recair sobre a coisa
(res) ou seja, sobre o objeto. Este ciclo de pensamento esgotou-se no fim da
Idade Média, quando, com a Renascença, veio o Idealismo a partir do cogito
de Descartes. Na frase "penso, logo, sou", o "penso" ou o pensar vem antes
do "sou" ou ser, tornando possível a igualdade: pensar = ser. que este ser
não é o ser-do-objeto, como no Realismo, e sim, o ser-do-sujeito que incorpora
em si o ser-do-objeto, dado que o Idealismo ou Psicologismo não se ocupa,
em primeira mão, com os objetos exteriores. Tudo, nele, se tira do pprio
pensamento. Ora, é intuitivo que o ser-do-sujeito não é a mesma coisa que o ser-
do-objeto, o que pode ser expresso pela desigualdade: ser-do-sujeito ser-do-
objeto. Mas não foi isto que entenderam, nem Parnides, nem Descartes. Pa-
ra um e outro o ser-do-sujeito que se cifra em pensar, é o mesmo que o ser-do-
objeto que também é pensamento, uma vez que este ser-do-objeto foi tomado por
sua essência abstrata, e não, por sua realidade concreta, objetiva, in natura.
Trata-se, como se , de duas formas de idealismo metafísico: o de Parmênides
e outros, com trânsito do objeto (res) para o sujeito (eu), e como esse objeto
vem antes do sujeito, então, Realismo. No Idealismo propriamente dito, o
trânsito do pensamento é do sujeito (eu) para o objeto (res). Todavia, tanto
um como o outro desprezou a Natureza, o Mundo, para possuí-los em máximo
de universalidade, de generalidade abstrata, sob a forma de conceitos, de
essências, de puro pensamento. Nossa linguagem, por isto, ficou pejada de
construções de cariz idealista como é o caso de uma senhora inglesa, num navio,
que, ressentida com a sem cerimônia com que a tratou Ortega, disse a este: exijo
que o senhor me trate como um ser humano. A isto, Ortega respondeu-lhe:
Não conheço nenhum ser humano, in abstracto, minha senhora, e sim, homens e
mulheres concretos.
E acomodando-se melhor na cadeira, objetivando melhor conforto para as
pernas meio entorpecidas pelo cansaço, prosseguiu:
- Sendo que ser e pensar são uma e mesma coisa, para ser, é preciso pensar, e
só é, o que pensa. O ser = pensar de Parnides é o mesmo que o pensar = ser
de Descartes (penso, por isto, sou). "Deus pensa pensamentos" (Aristóteles);
portanto, o Ser de Deus, tal qual o do homem, consiste no pensar. Ora bem: como
romper este círculo do pensamento reflexivo que, partindo do sujeito que
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pensa, sempre recai sobre si mesmo? O círculo que manteve prisioneira, a
filosofia, se rompe deste modo: no ato do conhecimento, precisamos distinguir, de
uma parte, o ato de pensar, e, da outra, o objeto do pensamento. Como fe-
nômeno psíquico, o ato de pensar é atividade mental, é pensamento dinâmico,
vibratório, é pensamento-onda ou onda mental que até pode ser recebido por outra
mente; por telepatia. Este pensamento vibração, dinâmico, ondulatório, em
acontecendo..., este ato cognitivo, como se vê, é movimento e transformação,
e, não, nada fixo, estável, imutável. Portanto, pertence ao mundo heraclíteo ou à
lógica da Natureza, afora ainda isto: o pensamento é dialético, e a dialética é
feita do trânsito ou passagem das afirmações para as negações, antes da
construção da síntese. E quem diz trânsito ou passagem, refere-se ao movimento
pertencente, portanto, ao mundo de Heráclito. Como se não bastasse isto, o ato de
pensar recai sobre um objeto, sobre uma coisa, pelo que tal pensamento é
intencional, proposital, ativo, consequentemente querido pela vontade e dirigido
para o seu objeto. Portanto, a atividade de pensar é fenômeno que, como tal,
pertence ao mundo de Heráclito. Alguém pode contraditar esta conclusão?
E verificando, nos semblantes de todos, a concordância com a teoria
exposta, continuou:
- Por conseguinte, uma coisa é o pensamento em se dando no sujeito, e outra,
o objeto pensado, exterior ao sujeito. Faço uma comparação.
E dizendo isto, pôs-se a meditar em como tornar claro o que intentava
externar. Depois, prosseguiu:
- estive metido numa polêmica na qual eu contestava a definição que diz
ser a hipnose reflexo condicionado. Meu opositor querendo fazer da hipnose
um fenômeno objetivo, saía-se com essa definição. A isso dizia eu que
condicionado é partipio passado; e o passado que não tivesse sua fase
presente que, em portugs, é o gerúndio com força de adjetivo em substi-
tuição do particípio presente latino. Assim, condicionando, formando,
doutorando, dão-nos a idéia de ato em acontecendo no presente. Condicionado,
formado, doutorado são fatos que ocorreram. Deste modo, antes que haja o
reflexo condicionado como fato ocorrido e instalado, teve que haver a fase do
reflexo condicionando, em se instalando, no presente, o que implica, da parte do
hipnotizador, que saiba conduzir a indução hipnótica, além de possuir prestígio,
respeitabilidade, etc. e, da parte do hipnotizado, é indispensável sua crença
no hipnotizador, sua aceitação do princípio da autoridade. Estas duas condições,
sine qua non, aparecem eufemizadas pelo vocábulo suscetível ou sensível. Logo,
embora possa haver explicação cientifica para a hipnose, esta, em si, não é
objetiva, científica, dado que ela se envolve de credibilidade, de crença, de
fé, por parte do paciente, e, por parte do hipnotizador, não é, preciso mais do
que cnica e autoridade.
De igual modo, prosseguiu o mestre, temos o sujeito pensando e o objeto
pensado; tanto é pensamento o labor mental presente, atual, como o seu
resultado fixado, imobilizado numa sentença, numa fórmula, num conceito, numa
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essência. Do mesmo modo que todo pensamento é pensamento sobre algo, todo
querer é querer algo, toda sensação é sensação de algo, todo amor é amor a algo
ou a alguém, toda aspiração é aspiração a algo etc. Esse algo pensado se acha em
oposição ao sujeito, como objeto (de objacere que é jazer em oposição ou
contra)..., não podendo, por este motivo, ser confundido ou identificado com o
ato subjetivo de pensá-lo. Este objeto, conquanto motive o sujeito a querer
pensá-lo, é, em si mesmo, passivo, inerte, estando toda a atividade e movimento
no ato de pensar existente no sujeito. Portanto, o fenômeno psíquico (e
fenômeno é movimento ou transformação) evidenciado no ato de pensar,
resulta da vontade, do querer que são forças ou energias morais. Todavia,
como uma coisa é o querer e outra, o querido pela vontade, pela mesma razão,
uma coisa é o ato de pensar, e, outra, o objeto desse ato. Considerando que
ninguém poderia pensar nada, duas condições impossibilitam o ato de pensar: ou
que o ato fique sem o seu objeto, ou este objeto fique sem o ato. No primeiro
caso, o sujeito se dispõe a pensar, mas não sabe sobre o quê pensar; no segundo,
há o sobre que pensar, mas o sujeito se recusa a dirigir a esse quê o seu ato. No
primeiro caso uma impossibilidade ontológica, no passo que, no segundo,
uma impossibilidade psíquica, volitiva.
E olhando para o grupo, interrogou o mestre:
- Alguma objeção ao que venho expondo?
- Nenhuma!, respondeu pelos outros Benedito Bruco, após breve pausa.
Se o objeto pensado, ou o objeto do pensar sempre está fora, e em
oposição ao sujeito, como é que pode ser confundido, ou identificado com o
ato subjetivo de pen-lo? Está errada a afirmação de Parmênides de que ser e
pensar o uma e mesma coisa, porque o ser é o objeto, e o pensar, o ato; e como o
ato não é a mesma coisa que o seu objeto, porque ambos se defrontam por
oposição, segue-se, logo, que um não é o outro. Face ao fato iniludível de que o
ser-objeto se contrapõe ao pensar-ato, pelo que um não é o outro, a afirmação
de Parmênides está errada.
Neste ponto, Chilon Aquilano resolveu entrar no assunto com uma objeção,
dizendo:
- Suponhamos que o objeto do pensar seja o próprio pensamento. Como no
caso de Deus, segundo Aristóteles, que se ocupa de pensar sobre o pensar. s
temos que o pensar-ato fica igual ao pensar-objeto. Como é que o senhor
explicaria isto da parte de Deus?, e seria possível, com o homem, ocorrer o
mesmo?
- Você faz tempo que anda mudo, Chilon!, muito mudado em relação ao
tempo dos nossos "Serões Bíblicos". Folgo muito em verificar seu interesse
pela filosofia.
- Quanto à sua pergunta, prosseguiu o mestre, temos de nos referir ao ponto
da palestra que eu cuidei seria a de hoje, quando eu ia falar do pensamento está-
tico e do pensamento dimico. Se um pesquisador estiver interessado em estudar
o pensamento quanto ao trânsito de um termo ao outro do discurso, estará
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ocupado com a lógica; se sua curiosidade o levar ao estudo dos mecanismos pelos
quais adquirimos o saber, isso será epistemologia ou agnoseologia, que é a teoria do
conhecimento; se sua ocupação for verificar os reflexos nervosos, os naturais e
os condicionados, estes que podem ser suscitados por vivências passadas, e de-
sencadeados por pensamentos gratos ou aflitivos, isso se psicologia. Em
qualquer destes casos seria o pensar sobre o pensar. Deus, de certo, não terá estas
ignorâncias; por isto, quando, segundo Aristóteles, Deus se ocupa de pensar sobre
o pensar, não estará estudando lógica, nem epistemologia, nem psicologia; você
acha que está?
- Eu acho que não!
- Sobre o que Deus, então, pensaria?
- Deve pensar sobre si. Pela equação de Parmênides Ser = Pensar, Deus
sendo o Ser, e o Ser sendo o Pensar, pensar sobre si-Ser, é o mesmo que pensar
sobre o pensar.
- Muito bem Chilon! E como as propriedades do Ser de Parmênides são: fixo,
imuvel, imóvel, eterno, incausal, etc., temos que este Pensar que é Deus é pen-
samento estático, e não, dinâmico. O objeto do ato de pensar de Deus é o
pensamento estático, parado, imobilizado nos conceitos, nas essências e nos
enunciados que se podem até apresentar como fórmulas matemáticas. E sabemos
isto, porque o homem também pensa por este modo estático. Para esclarecer este
ponto, vamos dar a palavra a Bertrand Russell; diz ele:
"A ciência, na sua forma ideal, consiste numa série de proposões
arranjadas hierarquicamente, de tal modo que o grau inferior dessa hierarquia
se refere a fatos particulares, enquanto que o topo se refere a algumas leis
gerais que governam tudo no universo. Os vários níveis dessa hierarquia
apresentam uma dupla conexão lógica, no sentido ascendente, e no sentido
descendente; no primeiro caso, procedemos por indução, no segundo, por
dedução. Em outras palavras: numa ciência perfeita poderíamos proceder do
seguinte modo. Os fatos particulares, A,B,C,D etc., sugerem como provável
certa lei geral que, se verdadeira, teria como exemplos esses fatos. Outros fatos
particulares sugerem outra lei, e assim por diante. Todas essas leis gerais sugerem,
por indução, uma lei mais geral, da qual as mencionadas leis seriam exemplos, no
caso de ela ser verdadeira. Teríamos muitos estágios como esse, para passarmos
dos fatos particulares realmente observados à mais geral das leis até agora esta-
belecida. Por outro lado, a partir dessa lei geral, por dedução, podemos
chegar aos fatos particulares, que serviram de base para a nossa indução
anterior. Nos livros de texto costumamos adotar a ordem dedutiva, mas nos
laboratórios a ordem indutiva é que é a seguida".
- Como vocês estão vendo, continuou o filósofo, as tais leis gerais, a partir dos
fatos particulares A, B, C, D etc., são fixações. Portanto, tais leis, são, agora o
objeto do pensar. E como tais leis ou princípios são, já, em si, pensamentos,
pensar sobre eles é pensar sobre pensamentos. No caso anterior, o objeto do
pensar era o próprio ato de pensar, e isto era epistemologia, ou psicologia, ou
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gica. Agora, como o pensar se congelou na lei, na essência, no princípio e na
fórmula matemática, temos a metafísica, na acepção aristotélica de "depois
da física". Mas se Deus pensa, e pensar é ato, este ato implica movimento
(tempo) nas passagens de um termo a outro do discurso, da dialética, não
importando que este ato recaia sobre o objeto-pensar, ou seja, do pensar em
acontecendo, ou recaia sobre o objeto-pensamento, isto é, do pensar acontecido e
imobilizado no enunciado, na essência, na lei. Por qualquer caminho, o pensar de
Deus não se exime do movimento dialético do pensar. E como há movimento
quanto ao pensar, Deus o é fixo, nem intemporal, nem insubstancial, dado que o
pensamento é vibração, onda, o que, também, implica espaço. Resta-lhe o atributo
da imutabilidade, e isto decorre da sua perfeição: é imutável porque perfeito.
Aí está, meu caro Chilon, no que deu a sentença aristotélica segundo a qual Deus
se ocupa de pensar sobre o pensar, ou de pensar pensamentos. Logo, Deus é
Ente da Natureza da qual se refere Heráclito.
E fez uma pausa para alguma possível objeção; porém, verificando que
ela não vinha, tocou por diante, com o assunto.
- Como tenho demonstrado, o ato de pensar é diferente do objeto do
pensamento, porque o primeiro é presente, atual, psicológico, dinâmico, ativo,
intencional, energético, proposital, dirigido pela vontade ao seu objetivo, no
passo que o segundo é passado, inerte, passivo, seja na forma de pensamento
imobilizado nos conceitos, nas essências, como símbolos da linguagem, seja na
forma de pensamento condensado em princípios, leis e fórmulas, para uso das
ciências.
- Agora, prosseguiu o pensador, há isto que já ficou implícito, mas quero
que notem bem. Embora o ato de pensar e o objeto do pensamento sejam
diferentes, porque o primeiro é presente, e o segundo, pretérito, havemos de
concordar que são semelhantes. A semelhaa consiste em que um e outro é
pensamento. Então, qual é a diferença? Pois a diferença consiste (e nisto
consistiu o engano das filosofias transatas) em que o ato de pensar, com ser
pensamento dinâmico, em acontecendo, fluente, vibratório, temporal, é
conectado com a vida, com o mundo movente e transformável de Heráclito,
em razão do que eles (ato de pensar e o mundo) são a REALIDADE. Já o
objeto do pensamento o vai além de substituto do mundo real, e surge como
pensamento acabado, pronto, estático, parado, fixado, imobilizado na essência e
no conceito, e no princípio e na lei, que tudo vem a ser pura
IDEALIDADE. Bem entendido, Chilon?
- Bem! Muito bem explicado.
- Ora, a vida, prosseguiu Árago, as coisas, o mundo, tudo é movente,
cambiante, calidoscópico, devir, como notara Heráclito, e o pensamento
dinâmico... por ser ato de pensar, acompanha a vida, o mundo, buscando fixar os
aspectos cambiantes desse mundo, em quadros parados, estáticos, sob a forma de
conceitos, de essências. Por isso, os conceitos, as essências são pensamentos
imobilizados, semelhantes ao que obtemos com filmador cinematográfico. Se
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fosse possível representar pictoricamente os conceitos, poderíamos fazer uma
série dessas representões que seria como um filme, não de imagens ou figuras,
mas de conceitos. Projetadas essas "representações" numa tela, teríamos um
"discurso visto" com os olhos. Um discurso é isso: uma série de conceitos
arranjados de modo a darmos um sentido. Um discurso guarda paralelismo com
uma projeção cinematográfica: nesta a paisagem é visual, e, no discurso,
descritiva. Cada conceito ocupa o lugar do ente natural que lhe corresponde, em
nossa inteligência, porém, esse ente natural ausente, não aparece na forma
priria, como imagem refletida em nosso psiquismo, parelha, portanto, à
realidade exterior, com todos os seus pormenores, e sim como generalidade
abstrata e irrepresentável por figura, e que, por conseguinte, só pode
simbolizar-se por palavra. Uma palavra simboliza um conceito, e um conceito
representa uma multidão de entes individuais semelhantes. O conceito fixa na
imobilidade da idéia, somente o que for comum à multidão dos entes semelhantes
vistos in natura. Aqui, na Natureza que temos à mão, está a realidade que, de
fato, existe; lá no nosso mundo interior, subjetivo, estão os conceitos, as
essências, fixados na intemporalidade, e que, portanto, não existem, porque
existir é estar no tempo e no espaço. As essências, os conceitos são, como entes de
razão, mas não existem, por estarem fora do tempo, do espaço, da mobilidade, da
causalidade, etc. Assim como a realidade cambiante do mundo se fixa na série de
quadros do filme; assim como uma sinfonia se imobiliza nos sulcos do disco
fonográfico; de modo semelhante, graças ao ato de pensar, o mundo, as coisas, a
vida, o movimento se congelam no imobilismo dos conceitos, das essências, dos
princípios, das leis e das fórmulas. Todavia, as essências, os conceitos, não são
réplicas mentais exatas da realidade natural, dado que nunca esgotam essa
realidade, e, em razão disto, hão sempre de estar-se enriquecendo de novas
significações; elas se tornariam perfeitas, se pudessem corresponder, algum dia,
in totum, à coisa em si, objetiva, fora de nós, a que damos o nome de Realidade.
Dado que a Natureza, o Mundo, o Universo é mutável, cambiante, calidoscópico, a
Realidade também o é, que realidade é o mesmo que coisidade. E quando eu digo
Natureza, Mundo, Universo, não me refiro a isso que está, à mão, e que nos
entra pelos olhos. O Mundo Espírita, o Mundo Celeste, o Topos Uranos de Platão,
a Ilha Afortunada a que ele se refere para onde vão as almas sublimadas, tudo faz
parte da mesma e única Realidade da qual infinitos níveis. Não é que tudo
muda, como constatou Heráclito, senão que tudo muda e nada está quedo nos
vários níveis da Realidade. E se Aristóteles tivesse razão em supor que Deus é
como um homem que pensa, esta sua projeção do homem em Deus incluiria o
pensar de Deus na Realidade móvel de Heráclito, e isto, porque o ato de pensar é
feito não de movimento psíquico (energia mental, onda), como ainda do
movimento dialético ... com que passamos de umas a outras partes do discurso.
Porém, Deus, segundo dou testemunho ou assinalo, não pensa por este modo nem é
racional. Sua supra-razão enxerga, instantaneamente, por intuição, e tudo lhe é pre-
sente em sua sabedoria, própria dele... que é a Mente eterna, inacessível para
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nós.
Fez uma pausa o mestre; e fitou os presentes, esperando deles alguma
contestação, ou aprovação, mas todos se mantiveram deslumbrados, tomados de
espanto, como se nunca tivessem ouvido exposição mais surpreendente. Então,
prosseguiu o mestre:
- Conseentemente, o há os tais dois mundos separados, estanques, como o
entendera Parmênides, sendo um o mundo do ser, e o outro, o do o-ser, con-
sistindo isto o que se chamou dualismo metasico, e que dominou toda a filosofia
realista até o fim da Idade Média. Tampouco estes mesmos dois mundos, só
que um encaixado no outro, como supuseram os filósofos idealistas com Descartes
à frente, criando-se o problema insolúvel de como poderia o mundo fixo do
espírito comunicar-se com o mundo móvel da matéria, no qual es inserido o
corpo físico, e vice-versa. O problema não existe, porque não o fixo com
caráter de mundo; o fixo não é real, para ser apenas ideal, estando, por isto, só na
nossa inteligência abstrata, não na imaginativa. O real é o móvel, cambiante,
calidoscópico, transforvel; e o o é só no contdo, na substância, na maria,
senão também na forma. O par indissolúvel forma e conteúdo variam juntos e
sempre, obrigando-nos a fixar essa mobilidade formal em séries de conceitos
encadeados, como os pontos obtidos nos lculos de funções, pelos quais, depois,
passam as linhas dos gráficos; por exemplo: nascituro, bezerrinho, vitelo,
garrote, novilho, touro, boi de carro, etc., afora, ainda, as particularizações que
fazemos por meio de adjetivos qualificativos. O real é o móvel, o
transformável, o fenomênico, o existencial. O ideal é o fixo, imóvel, imu-
tável, simples recurso da Razão; Razão, a primeira técnica, que, antes do
"Homo technicus", não aprendeu a desfilar os quadros móveis colhidos da
natureza, na imaginação, senão que ainda esquematizou cada rie de entes
naturais semelhantes num único ente de razão - o conceito. É muito de admirar
que essa construção "tecnológica", inventada pela vida, que se chama Pensamento
e Razão, a fim de que sua obra prima, o homem, não só pudesse subsistir, mas,
sobretudo, perviver, o que significa sobreviver longamente, como cultura, na
posteridade, fosse considerada como sendo a Realidade, a partir dos gregos, em
detrimento da Realidade verdadeira, a da Natureza, tida por ilusão e o-ser.
- O Mundo verdadeiro, continuou o filósofo após um fôlego, não é, por
conseguinte, a Realidade fixada no imobilismo das idéias, como queriam os
gregos e os medievais, nem é a Idealidade, como pretendiam os filósofos
modernos: o Mundo verdadeiro é o cambiante, o fenomênico, o existencial, o
fluente, um com dois aspectos, inextricavelmente unidos, que são o formal e o
substancial. A forma e o conteúdo variam juntos, sem descoincincias, sem
defasagens, não por atuão de um sobre o outro e vice-versa, mas porque os dois as-
pectos, tese-forma e antítese-conteúdo são faces da mesma moeda, são um na
síntese da coisa que pode ser um objeto, um ente vivo ou o Universo. Nos
fenômenos, quaisquer que sejam, não nada fixo, e quando um fenômeno se
repete, isto se chama refazer o ciclo em continuidade. A constância na
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variação é a lei, mas constância em se dando, a repetição, o ritmo, o compasso não
pode ser considerado como imobilismo, como fixismo. Ora, uma coisa qualquer
é uma ntese entre forma e contdo, sendo ela, a coisa, mais do que a forma e
mais do que o conteúdo se estes fossem concebidos em separado. Uma forma
pura, sem conteúdo, sem subsncia, é uma abstrão que só pode ser achada na
nossa inteligência como imagem, e assim mesmo, ela se desenha com matéria
espectral do nosso psiquismo. Uma subsncia pura, sem forma de nenhuma escie,
no todo, já nas partes, é o caos ininteligível.
Silenciou por um pouco o mestre, a fim de ver por que caminho tomar.
Depois prosseguiu:
- A forma, não a externa, mas todo o universo formal que cada coisa é, é
propriedade da substância organizada; tomar forma é organizar-se; a forma é
organização da substância desde sempre, assim como sua desorganização se chama
caos. Por causa disto, toda atuação na substância é, concomitantemente, atuação na
forma, é trans+form+ação. A raiz do vocábulo é form; trans ou tras é
prefixo que significa "ir além de"; e ação é agir ou ato. Logo, se alguém,
não importa se animal, ou homem, ou Deus, quiser formar seja o que for, terá
de atuar na substância preexistente trans+ form+ando-a... do que era antes, no
algo novo que se mostrará depois. Na roda de oleiro, o artesão nova
forma ao barro, ou seja, muda-lhe a forma anterior que isto é transformá-lo em
vaso, em jarro, em pote. Ora, é fora de discussão que, se a forma pode mudar-se
ou ser mudada, então, não é fixa. E não sendo fixa, que sentido tem a
proposição dos filósofos idealistas no que concerne a estarem encaixados um no
outro o mundo formal do ser e o mundo existencial da transcorrência que
Heráclito chamou de vir-a-ser, e Parmênides, de não-ser? Como atua a alma
formal sobre o corpo substancial, e, este, sobre aquela? Pois este problema não
existe, porque a alma formal não é fixa e sofre as alterações do corpo, do mesmo
modo que este se ressente das alterações da alma. Este fato se mostra ostensivo na
hipnose, e Karl Weissmann sustenta, em seu "O Hipnotismo", que 85% das
doenças são de origem psíquica, passíveis, portanto, de serem curadas pela
hipnose. No livro "Hipnose e Letargia", do Dr. Osmard Andrade Faria, no
capítulo 12 com o título "Hipnose e Espiritismo", vocês podem verificar
quantas coisas incríveis acontecem nas sessões de terreiro, inclusive a exposição
ao fogo real, mas que não queima, a ingestão de grande quantidade de pinga, que
não embriaga, afora os charutos grossos, de ruim qualidade, fumados por
moçoilas, sem conseqüências nenhumas para elas. Medeiros de Albuquerque em
seu "Hipnotismo", afirma ter curado uma pessoa acometida de câncer, por meio
da hipnose. Depois da cura, os médicos que o diagnosticaram disseram ter-se enga-
nado, com apoio no silogismo que afirma: o câncer não tem cura; ora, o doente
apresentou-se curado; logo,o era câncer.
E pondo-se a ponderar por certo tempo, prosseguiu o mestre:
- Faz dois ou três anos, assisti uma conferência ou palestra sobre câncer,
proferida por um médico chamado Emiliano Ladeira. No preâmbulo, o Dr.
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Ladeira, como era chamado, disse que ningm conhece a causa remota pela qual
um câncer se instala num organismo. O que se sabe é que um comando central
que responde pela integridade de todo o organismo. Havendo falha nesse
comando, alguma célula pode desmandar-se, descumprindo a ordem da central,
e, em se reproduzindo, dá início ao câncer. Depois que o dico terminou a
palestra e permitiu fossem feitas perguntas, eu coloquei a seguinte questão:
considerando que o câncer se instala por falha no comando central, se não houver
falha, o haverá ncer. Cristo, por exemplo, poderia ter câncer? O Dr.
Ladeira ficou encabulado, e saiu-se com o argumento de que Cristo não teria
câncer, por achar-se isento do pecado original. Depois, segundo soube por
amigos, o médico manifestou sua irritação contra mim, entre outras coisas,
dizendo que a minha é uma "filosofia barata". Filosofia barata? Pois olhem
isto:
E dizendo-o, mostrou um recorte de "O Estado de S. Paulo", edição de 13
de abril de 1982, com o título "Câncer atribuído a problemas psíquicos".
- Segundo a teoria do médico alemão Ryke Geerd Hamer, depois de estudar
500 pacientes das clínicas universitárias de Munique, Roma, Kiel e Colônia, a
causa do câncer es nos conflitos psicológicos. "Para ele, o tumor surge como uma
falha de programação no cérebro do homem e do animal, como se fosse um curto--
circuito no campo elétrico do cérebro. Devido a isso, passam a ser emitidos
"códigos errados", que originam degenerações (câncer) nas células do corpo.
Com o fim do conflito, cessa o crescimento do câncer".
"De acordo com sua teoria, o câncer é produzido em um determinado dia,
durante uma forte situação de conflito, precisamente quando a pessoa se sente
isolada no espaço, socialmente e interiormente. Quanto pior for o estado geral da
pessoa, mais facilmente surgirá o tumor, embora o fator decisivo seja sempre
as condições subjetivas. Este é o primeiro critério elaborado pelo dico e
chama-se "síndrome Hamer " (...)
"A psicoterapia seria a forma de eliminar o conflito, para que o tumor
deixe de crescer, segundo o Hamer " (...)
- Isto me leva a pensar, intercalou o mestre, no câncer que Medeiros de
Albuquerque curou, por pura curiosidade, sem nenhuma convião nem esperança
de que a hipnose servisse para isso. O Dr. Hamer tem tanta certeza que sua
teoria é verdadeira, que poderia dizer, repetindo Einstein, em caso semelhante.
"Certeza tenho, sim, mas não tenho provas". Vendo que são ainda
insuficientes as que possui, mas bastantes para amparar-lhe a convicção, o Dr.
Hamer enviou uma carta "ao Conselho Federal de Médicos, colocando seu
título de médico "a prêmio" como prova de que os resultados a que chegou
são exatos e corretos: "Se alguém me apresentar três casos corretos,
investigados minudentemente e histologicamente comprovados, de que minha
teoria está errada, renuncio a meu titulo e à prática da Medicina".
E depondo o recorte de jornal sobre a mesa, concluiu o pensador:
- A minha "filosofia barata", conforme o desabafo do Dr. Ladeira, tem
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este apoio médico. Se o Dr. Ryke Geerd Hamer tiver razão, e o tempo o dirá,
Cristo não poderia ter câncer porque não tinha conflitos. Não se, então, a
psicoterapia que afastaria os conflitos, mas, e sobretudo, a religião e a
filosofia vividas. Se o dico alemão estiver com a verdade, pode ser que,
num futuro talvez não muito remoto, haja um recurso para prevenir e evitar o
câncer: será a filosofiterapia.
Qualquer que seja a verdade, o certo é que o corpo e a alma formam uma
unidade indissolúvel, seja na vida encarnada, seja depois da morte física, na
qual o Espírito se mostra, também, munido de um corpo orgânico de matéria.
Dona Cornélia esperava, fazia, já, algum tempo, para entrar com o café,
e o fez a um sinal de Árago. E depois de todos o haverem saboreado, em meio
a conversas variadas, e de dona Cornélia se haver retirado, o mestre retornou ao
tema, dizendo:
Escreveu Bertrand Russell: "A maioria dos homens prefere deixar-
se matar a pensar. A história o atesta". Ora, a maioria dos espíritas, de parelha
com os adeptos dos demais credos religiosos, não podia fazer exceção a esta
regra; eles, também, em sua maioria, são apenas místicos, avessos a estudos.
Para estes crendeiros, só tem valor o que vem da parte dos Espíritos, e tocam
a aconselhar-se com os "guias", como se fosse possível tornar-se sábio, só
porque se morreu... Este misticismo dos espíritas; esta misologia, fá-los conside-
rar tabus o que os Espíritos disseram; e disseram o que sabiam, o que
aprenderam. Ocorre que o saber progrediu extraordinariamente do culo
XIX para cá. Deste modo, os Esritos que responderam as perguntas de
Kardec, fizeram-no segundo o que se pensava, há cem anos atrás. Por causa disto,
"O Livro dos Espíritos", quanto à ciência e quanto à filosofia, está
superado. Uma superação que encontra resistência intransigente é aceitar a
matéria como fazendo parte da Divindade; daí insistir na prevalência da alma
sobre o corpo, do Espírito sobre a matéria. A matéria foi confundida com a
animalidade grosseira ou subanimalidade, persistindo o dualismo metafísico
inaugurado por Parmênides. Platão não enxergou que este nosso mundo está
invertido, atualmente, apenas em parte, por causa da INVOLUÇÃO, e teve, para si,
que a maldade do mundo é produto da matéria; dai o seu Mito da Caverna. E
como o corpo faz parte do mundo, como este, deve ser desprezado. Esta sua teoria
cuja nascente pode ser achada em Parmênides e Pitágoras, encontrou reforço na
corrente hinduísta, e, depois, cristã. Esta confusão entre matéria e mundo mau,
entre corpo e animalidade egoísta, fez com que se declarasse guerra ao corpo.
Plotino envergonhava-se de estar metido num corpo, razão por que nunca se
deixou retratar. Qual o teria sido a sua decepção, o seu desencanto, quando,
após seu desencarne, se viu entranhado num outro corpo, também de matéria, da
mesma natureza daquela da qual desejava livrar-se. Alma e corpo formam uma
unidade indissolúvel tal qual a forma e o conteúdo na unidade de qualquer coisa.
A alma pura, sem substância alguma, é uma abstração, uma idéia vazia, sem
realidade objetiva. Pela reciproca, o corpo sem alma é caos, é dissolução.
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Ninguém, pois, vai poder livrar-se de um corpo, seja o físico, seja o
perispiritual. 0 perispírito é corpo, e é material. Em Espiritismo, Alma e
Espírito são uma e mesma coisa, como se pode ver na "comunicação de alma",
no "Livro dos Médiuns, Cap. XXV Das Evocações.
E feita uma pausa para concatenar novas idéias, prosseguiu o filósofo:
- Perispírito: peri (do grego) significa em redor, à volta; ex.: pericárdio,
peritônio, periférico, periélio, etc.
Hoje sabemos ser falsa essa idéia. Nós somos um estado celular, e cada célula
tem sua alma. O perispírito não envolve a alma, mas está impregnado dela. Vocês
podem verificar isto lendo o caso de Cavalcanti ao qual foi aplicada eutanásia
por médicos aqui da crosta, isto é, do nosso plano. Diz o mentor: "Cavalcanti
permanece, agora, colado a trilhões de células neutralizadas, dormentes, invadido,
ele mesmo, de estranho torpor que o impossibilita de dar qualquer resposta ao
nosso esforço”.
- A idéia de corpo inimigo vai-se mudando, e São Francisco de Assis chama
seu corpo próprio de irmão corpo. Outro caso de corpo irmão é o de Dimas, des-
crito por And Luiz. Todo o respeito que aí se vê para com o corpo, patentiza que
este não é o inimigo que cumpre vencer. O inimigo consiste na subanimalidade ou
animalidade grosseira, no egoísmo, não, no corpo, nem, na matéria. Quem
quiser ser contra o corpo, terá de sê-lo, também, contra o perispírito, dado que
este é corpo, e é matéria. Diz o obreiro espiritual a Dimas, desencarnado e
desperto :
- “Venha ver o aparelho que o serviu fielmente durante tantos anos.
Contemple-o com gratidão e respeito. Foi seu melhor amigo, companheiro de
longa batalha redentora" (...) "(Dimas) debruçou-se sobre o ataúde, vertendo
grossas grimas”.
- O Cap. VIII do "Livro dos Médiuns" trata da vestimenta e dos objetos
portados pelos Espíritos. Assim, não é os corpos carnais que possuem
perispírito, seo que também os objetos possuem réplicas iguais ou duplos
etéreos. Isso vocês poderão ver no "Mensageiros" de André Luiz, Cap.
XXXVII. Os protagonistas são Emília, a mãe, e Regina, a filha ainda
meninota. Ambas aproveitavam-se da liberdade temporária proporcionada pelo
sono na carne, para encontrar-se no plano espiritual com a mãe de Elia e avó
de Regina, que, desencarnada, viera fazer-lhes uma visita. E enquanto Emília
conversava com Aniceto, o mentor espiritual, Regina, burlando a vigilância de
todos colheu um cravo no jardim. Ela saiu com o duplo do cravo na mão, ao mesmo
tempo em que a parte material dele, pertencente ao nosso plano encurvou-se, no
resto da haste, emurchecido. Outro exemplo relaciona-se com o aprendizado do
Esperanto pelo poeta desencarnado Augusto dos Anjos. Perguntou-lhe Valdomiro
Lorenz onde ele aprendera Esperanto, e a resposta foi: "nos vossos livros. Nós
estudamos nos duplos dos vossos livros”.
- Voltando ao caso do perispírito, temos o que nos relata André Luiz, no
"Nosso Lar", Cap. XXXVI. Após noite inteira de estafante trabalho nas
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"Câmaras de Retificação, André Luiz foi dormir na cama que lhe oferecera
Narcisa. Em dormindo, foi levado ao plano superior habitado por sua mãe;
diz ele: "Eu sabia, perfeitamente, que deixara o veículo inferior no apartamento
das Câmaras de Retificação, no Nosso Lar (cidade). E nesse plano mais alto,
a mãe de André Luiz abraçou-o, carinhosamente. Quer dizer: um corpo de
matéria abraçou outro do mesmo nível vibratório, o que significa, relevantes
entre si. E quando a mãe de André Luiz vai dormir, que "veículo inferior" ela
deixa na cama, para subir-se ainda mais, a planos mais quintessenciados? E com que
"veículo superior" sobe? Na reencarnação de Segismundo - "Missionários da
Luz" - Cap. XIII - após a concepção, uma coroa brilhante desceu sobre a cabeça
de Raquel, a futura mãe. A isto, diz André Luiz:
“A coroa sublime, sustentada por Espíritos muito superiores a nós, que eu o
podia ver, descansou sobre a fronte de Raquel... Seu brilho (da coroa) feria-nos
o olhar e o próprio Alexandre, ao fixá-la, curvou-se, reverente".
- Eno, que coisa é esse admirável perispírito que se desencaixa um do outro
em duplicata, triplicata, quadruplicata do corpo físico, todos, tal qual este,
feitos de matéria? Subindo-nos na escala espiritual, chegamos aos puros Esritos;
e eles têm perispírito? Acaso tem corpo perispiritual um Serafim? Sim, tem.
Um puro Espírito é "uma chama, um clarão, ou uma centelha etérea" (R88),
conforme o ensino do Livro dos Espíritos. E clao, luz e centelha etérea, tudo é
energia; e energia e matéria são termos reversíveis entre si, verdade o
corriqueira em nossos dias, que nem é preciso perder tempo em demonstrar.
E feita uma pausa mais longa, para um descanso, em que alguns até se
levantaram, para desentorpecer as pernas, e em que todos trocaram impressões
entre si, Árago pediu silêncio e atenção para continuar, no que foi atendido.
- Assente que espírito e matéria são aspectos diferentes de uma mesma
energia-substância, pelo que se pode dizer que são mutuamente reversíveis; e
visto, agora, que corpo e alma não passam de conteúdo e forma, ambos mutáveis,
havemos de concluir que o Mundo Espírita que preexiste e sobrevive a tudo, é
tão móvel, causal, temporal, espacial, rio, colorido, calidoscópico como o
nosso mundo corpóreo, este que Parmênides chamava de o-ser, e Platão
proclamava com Pitágoras ser o mundo da ilusão, onde imperam a ignorância,
o envelhecimento, a caducidade, a dor, o mal e a morte. 0 que nenhum filósofo
atinou até hoje, foi que o topos uranos de Platão, ou o Mundo Espírita dos
espíritas, ou o Mundo Celeste dos crisos é semelhante a este nosso, e toda a
diferença consiste em que o nosso é um mundo invertido, hoje só em parte, mas
que esteve totalmente subvertido, seja no fim da Involução ou Queda, seja
quando principiou a Evolução. Onde a Evolução cria um cosmo, uma perfeição,
ela pára, porque o movimento transformativo cessa, para que sobre essa
perfeição outras unidades superiores e complexas possam constituir-se. O carbono
radioativo, o C
14
reduz-se à metade em 5.560 anos, sendo usado pela arqueologia
para medir o tempo dos documentos históricos. Já o trício, um itopo radioativo
do hidrogênio, esse reduz-se à metade em doze anos e meio. Escreve F. E.
125
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Boschke: "Se tomarmos certa quantidade do uranato pechblenda, este conterá
todos os produtos de desintegração derivados, no curso do tempo, do U
238
.
o
uma rie de elementos, como o rio, o bismuto, o polônio, o próprio rádio. Mas
o último grau de desintegração do urânio é chumbo. Esse chumbo não sofre
desintegração ulterior; é estável. Poderíamos esperar uma eternidade; o urânio
desapareceria e ficaria o chumbo". Se o chumbo uranífero ou rádio D, que é
igual ao chumbo comum, pode manter-se inalterável por "uma eternidade",
como diz Boschke, que dizer dos demais elementos da escala que vai do hidrogênio
ao chumbo? Quanto tempo faz que o gelo polar é gelo, e por quanto tempo
continuará sendo gelo? Como é que a vida poderia trabalhar em suas construções
superiores, se os cinco corpos fundamentais que compõem a sigla CHONS, com os
quais ela opera, estivessem num constante vir-a-ser? Como vêem, meus caros,
o foi preciso ir muito longe para colher exemplos de imutabilidade, pelo
menos, imutabilidade durante um tempo muito longo, antes que o próprio
cosmos lance, de novo, esse material em nova fornalha estelar. Se a Evolução,
como digo, é a eliminação progressiva do caos, onde este for expulso pela
integração,passa a reinar o cosmo, a ordem, a harmonia, a constância, a beleza, o
bem; isto, aqui, só em parte ainda, mas de modo completo no Mundo Espírita, em
sua parte não caída que não é só o das inteligências incorpóreas, mas, e
sobretudo, o Mundo das Entidades Amorosas. O movimento existirá sempre,
seja no coração do átomo, seja na Mente de Deus, movimento que lhe permite a
ele passar de um termo a outro do desenvolvimento dialético, isto, se Aristóteles
estiver com a razão.
Feita uma pausa, e olhando para Benedito Bruco, interrogou-o:
- Você acha que o chumbo uranífero ou rádio D, assim como o ouro e os
outros corpos, como os que compõem a palavra CHONS, são imutáveis, pelo
menos por um tempo inimagivel?
- Sem dúvida que são.
- E esses corpos químicos são entes da natureza?
- Sim, pois claro!
- Então, como é que fica a gica natural que diz: nada é idêntico a si
mesmo (em dois tempos sucessivos); tudo se contradiz?
- Fica que esses corpos, para deixarem de ser o que são, precisam esperar que o
próprio Sol envelheça ao ponto de dissociar-se por explosão, como super-nova, se
estiverem corretas as últimas teorias da sica nuclear. Assim, os tais dois
tempos sucessivos podem ser frações de segundos, mas podem ser, também,
"eternidades".
- Pois então, tornou Árago, se em nosso mundo podemos achar coisas
estabilizadas por "eternidades", como você diz, como também não ser estáveis
por eternidades as perfeições dos entes do Mundo Celeste? Como podem ver,
embora Deus seja um Ente da Natureza, e não, um puro Ente de Razão, ele é
imutável e isto, porque perfeito. Em dizendo isto, intuímo-lo como um Ser
livre, ficando implícita a possibilidade (não necessidade, vejam bem) de ele
126
126
mudar-se;... mudar-se para outra forma de perfeição. Como Ente de Rao,
segundo o concebera Parmênides, porque é fixo e imutável, ele é, também,
determinístico, o que vale dizer: sem liberdade. E cabe na sua cabeça, caro
Bruco, que Deus possua o determinismo cego de uma máquina, e que, por
conseguinte, não possa ser livre?
- Na minha cabeça não cabe essa asneira.
- Não sendo Deus um puro Ente de Razão, como o induzira Parmênides do
puro pensar, então ele será um Ente da Natureza?
- Sem dúvida que é, tornou Bruco.
- Com isto, estamos montando uma teologia a partir das verdades incontestes
observadas por Heráclito?
- Estamos.
- E teria Heráclito pensado fosse isto possível?
- O que será que fervia na cabeça de Heráclito, não sabemos. Contudo,
mesmo sendo ele um gênio, faltava-lhe uma peça importante no quebra-cabeça, que
é a Doutrina da Evolução a qual pede a sua contraditória, a Involão.
- Então, podemos parar, hoje; por aqui?
- Da minha parte podemos; e da dos demais, vejo que estão acenando com a
cabeça em sinal de aprovação.
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