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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
DEPARTAMENTO DE LITERATURA
CALDEIRÃO, DE CLÁUDIO AGUIAR:
O NARRADOR SE FAZ MEMÓRIA DE UM POVO
SAMARKANDRA PEREIRA DOS SANTOS
Fortaleza – Ceará
Março de 2006
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Samarkandra Pereira dos Santos
CALDEIRÃO, DE CLÁUDIO AGUIAR:
O NARRADOR SE FAZ MEMÓRIA DE UM POVO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras como um dos requisitos
para obtenção do grau de Mestre em Literatura
Brasileira.
Fortaleza, março de 2006
2
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CALDEIRÃO, DE CLÁUDIO AGUIAR:
O NARRADOR SE FAZ MEMÓRIA DE UM POVO
Samarkandra Pereira dos Santos
Dissertação_______________em ___/___/___, com menção:
___________________________________.
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________
LÍVIA MÁRCIA TIBA RÁDIS BAPTISTA
_____________________________
MARIA NEUMA BARRETO
____________________________
CELINA FONTENELE GARCIA
(orientadora)
3
4
5
Ao Fernando, participante ativo da minha vida.
6
AGRADECIMENTOS
À professora Celina Fontenele Garcia sou grata pelos conselhos e orientação.
À professora Maria Neuma Barreto agradeço pelas críticas e sugestões.
Ao escritor Cláudio Aguiar agradeço pelos materiais imprescindíveis para este
estudo.
À colega Samara Inácio sou grata pelas conversas descomplicadas.
Ao professor Simão Filho (meu pai) pela revisão do presente trabalho.
À FUNCAP agradeço pela bolsa de estudos.
7
Tudo, aliás, é a ponta de um mistério.
Inclusive, os fatos. Ou a ausência deles.
Guimarães Rosa
8
RESUMO
O romance Caldeirão (1982), do escritor cearense Cláudio Aguiar (1944),
ficcionaliza um dos mais tristes episódios da história do Ceará, ocorrido na fazenda
homônima do romance.
Em nossa análise, observamos que o romancista buscou representar “a
verdadeira história” do povo do Caldeirão e de seu principal integrante, o beato José
Lourenço, chegando mesmo a escolher como narrador a ficcionalização de um
remanescente da comunidade, que pela verbalização de suas memórias a um
repórter, constrói e reconstrói seu passado a partir das perspectivas presentes.
Assim sendo, vimos a necessidade de examinar a confluência entre história e
literatura, atentando às diferenças que ocorrem na passagem do fato histórico para o
ato literário no romance. Dadas as especificidades do romance em estudo, foi
natural questionar se esta confluência se no quadro do novo romance histórico
latino-americano, paradigma de romance histórico que se afasta substancialmente
do modelo scottiano do subgênero. Esta indagação norteou o presente estudo.
Para tanto, foram abordados os traços messiânicos, os registros folclóricos e
a intensidade dramática do narrador que, ao fornecer o seu testemunho, pretenso
registro da experiência de muitos, o torna veículo de uma certa cosmovisão que
deve ser antes atribuída ao autor do romance por seu caráter eminente sociológico.
Por outro lado, podemos entender a narrativa de Caldeirão como
autobiográfica, pois seu narrador conhece todo o passado a ser reconstituído pela
memória. Dessa forma, dois planos temporais: o tempo da enunciação, do ato de
narrar e o tempo das vivências narradas. Na época dos acontecimentos, Mestre
Bernardino estava envolvido pelo calor das emoções e não poderia tecer longas
considerações sobre sua vida, sobre o fim da sua comunidade. Mas agora, na sua
nova condição de remanescente, velando o corpo do principal representante de sua
comunidade, adquiriu o distanciamento necessário para as reflexões e
comentários que irá elaborar sobre atos passados e suas angústias recorrentes.
Qualquer narrador, ao contar uma série de acontecimentos. adota, inevitavelmente,
determinada distância temporal em relação a eles. Este distanciamento fica bem
marcado ao longo do da obra, caracterizando-a também como pseudo-memórias.
9
Verificaremos que o autor, com apuro técnico e estilístico, recorre a este artifício
para tornar sua estória verossímil.
Ao longo da dissertação, tentamos dar ênfase à três grandes questões
tratadas em Caldeirão: as idéias que dizem respeito à tradição, à realidade histórica
e sócio-cultural e aos elementos que compõem a sua narrativa. A partir do seu
enquadramento no modelo do novo romance histórico latino-americano pudemos
responder a essas duas interrogações que se cruzam: quais as dimensões da
história no romance, e quais os elementos de romance que se fazem presente na
história. Dessa forma, esperamos contribuir para o debate das relações,
freqüentemente obscuras, entre o romance histórico e a história.
10
RÉSUMÉ
Le roman Caldeirão (1982), de l’écrivain Cláudio Aguiar (1944), transforme en
fiction l’épisode le plus triste de l’Histoire du Ceará, qui a eu lieu dans une ferme,
laquelle avait le même nom du roman.
Dans notre analyse, nous avons remarqué que le romancier a essayé de
présenter “la vraie histoire” du peuple de Caldeirão et son habitant le plus important,
le dévot José Lourenço. L’auteur du roman a choisi comme narrateur, un ancien
habitant fictif de la communauté, qui par la verbalisation de ses souvenirs à un
reporter, construit et reconstruit son passé à partir des perspectives présentes. Ainsi,
nous avons constaté qu’il fallait examiner la convergence de l’histoire et de la
littérature, tout en faisant attention aux différences qui surviennent dans la
transposition du fait historique à l’acte littéraire, dans le roman. Étant données les
particularités du roman étudié, on doit poser la question: est-ce que cette
convergence arrive dans le quadre du roman historique latino-américain, paradigme
de roman historique, qui s’éloigne beaucoup du modèle scottien? Cette question a
orienté notre étude.
Nous avons abordé aussi les traces messianiques, les remarques folkloriques
et l’intensité dramatique du narrateur, qui tout en donnant son témoignage comme
enregistrement de l’expérience de plusieurs personnes, il nous présente une certaine
cosmovision, que l’on doit attribuer plutôt à l’ auteur du roman par sa caractéristique
éminemment sociologique.
D’autre part, nous pouvons comprendre la narration de Caldeirão comme
autobiographique, parce que son narrateur connait déjà tout le passé, qui va être
reconstitué par la mémoire. Ainsi, il y a deux niveaux temporels: le temps de
l’énnonciation, de l’acte de raconter et le temps des existences narrées.
À l’époque des événements, Maître Bernardino subissait la chaleur des
émotions et ne pourrait pas faire de longues considérations sur sa vie, sur la fin de
sa communauté. Mais, dans la condition d’ancien habitant il était suffisamment
capable d’élaborer des commentaires sur les choses passées, sur ses angoisses
récurrentes. Le long de la dissertation, nous avons essayé de mettre en relief trois
idées importantes: la tradition, la réalité historique et sócio-culturelle et les éléments
11
qui composent son récit. À partir de sa classification dans le modèle du nouveau
roman historique latino-américain, nous avons pu répondre deux questions: quelles
sont les dimensions de l’histoire dans le roman et quels sont les éléments du roman
présents dans l’histoire.
12
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................14
1 – HISTÓRIA E FICÇÃO: UM DISCURSO DE FRONTEIRAS.................................18
1.1 O romance histórico e o novo romance histórico latino-americano:
características............................................................................................................19
1.2 – As temáticas ou “contextos”..............................................................................27
1.3 – Outra temática: mito e paraíso ........................................................................30
2 – CALDEIRÃO: A HISTÓRIA NA FICÇÃO .............................................................41
2.1– Cláudio Aguiar: entre a literatura e a crítica social ........................................... 42
2.2 Governo, Militares e Igreja: a “Trindade do Mal” em
Caldeirão ........................51
3 – CALDEIRÃO: A FICÇÃO .....................................................................................61
3.1 – Bernardino: um narrador benjaminiano ............................................................62
3.2 – Baixa Dantas, primeira casa: a aceitação da fé e da missão ...........................69
3.3 – Caldeirão, a “Pátria do Sertão”: eternamente durante dez anos ......................78
3.4 – Sítio do Maracujá, mais outra morada: a traição ..............................................94
3.5 – O êxodo final: o bombardeio na mata ..............................................................97
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................104
BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................108
13
INTRODUÇÃO
Apesar da vasta produção literária e dos prêmios concedidos a Cláudio
Aguiar, sua obra ainda não recebeu a devida atenção da Academia. Com a minha
orientadora, Celina Fontenele Garcia, decidimos buscar o melhor modo de
analisarmos Caldeirão (1982), romance de Cláudio Aguiar que ficcionaliza um dos
mais tristes episódios da história do Ceará, o fim da comunidade homônima do
romance.
O primeiro contato com sua obra se deu em uma palestra intitulada “Análise
histórico-literária de Caldeirão, de Cláudio Aguiar” ministrada pelo professor Doutor
Teoberto Landim (UFC), em 2002. Nela, foram abordados os aspectos históricos, os
traços messiânicos e a intensidade dramática do narrador, tendo sido encerrada por
uma digressão sobre a falta e a importância de um estudo mais denso sobre a obra
de Cláudio Aguiar. A partir deste fato surgiu um interesse maior de nossa parte em
conhecer a obra deste autor.
Observamos que Cláudio Aguiar buscou representar “a verdadeira história” do
povo do Caldeirão e de seu principal integrante, o beato José Lourenço, chegando
mesmo a escolher como narrador um remanescente da comunidade Caldeirão.
Impôs-se então a necessidade de examinar a confluência entre história e literatura,
atentando às diferenças que ocorrem na passagem do fato histórico para o ato
literário no romance. Dadas as especificidades do romance em estudo, é natural
questionar se esta confluência se no quadro do novo romance histórico latino-
americano, paradigma de romance histórico que se afasta substancialmente do
modelo scottiano do subgênero. Esta indagação norteará o presente estudo.
Para empreender esta análise, dividimos nosso trabalho da seguinte maneira:
No primeiro capítulo, intitulado “História e Ficção: um discurso de fronteiras”,
apresentamos a gênese do romance histórico e as mudanças por ele sofridas que
vão desembocar no surgimento do novo romance histórico latino-americano. Neste
capítulo, estudamos detidamente as principais características, tanto do modelo
tradicional, o estabelecido por Walter Scott, quanto do “novo romance latino-
americano”, surgido em meados do século XX. Para nos direcionar neste estudo,
14
analisamos as obras: La novela historica, de Lukács, História da Literatura Ocidental
(vol.IV), de Otto Maria Carpeaux, A perda das ilusões: o romance histórico de José
de Alencar, de Valeria de Marco, La Nueva Novela Historica de la America Latina,
de Seymour Menton. Vários artigos acerca deste tema também se revelaram úteis
nesta análise.
Constam ainda do primeiro capítulo, dois subcapítulos. O primeiro versa sobre
o que Alejo Carpentier denomina os principais temas recorrentes, ou “contextos”, no
romance latino-americano. Cláudio Aguiar, em muitos pontos, insere em sua
literatura estes temas que, sinteticamente, seriam: os raciais, os econômicos, os
ctônicos (relativos às crenças e práticas culturais muito antigas como a tradição
oral), políticos, culturais, culinários, ideológicos, de dimensão épica, dentre outros.
Na redação deste subcapítulo, fizemos uso de alguns artigos de Alejo Carpentier,
escritor que com El Reino de este Mundo (1949), instaurou o novo romance histórico
latino-americano e também utilizamos a obra America en sus novelas, do
especialista em estudos hispano-americanos Francisco Morales Padron. O segundo
subcapítulo, intitulado “Outras temáticas: mito e paraíso”, foi dedicado ao estudo da
estrutura e função do mito do paraíso, tema tão freqüente nos romances latino-
americanos, principalmente nos escritos a partir de meados do século XX, como
observa Álvaro Manuel Machado, em Introdução à literatura latino-americana, ao
analisar o romance Paradiso, de José Lezama Lima.
Após estudarmos o romance histórico e suas principais temáticas, passamos
à análise do romance Caldeirão à luz do novo romance histórico latino-americano.
No segundo capítulo, destacamos a forma como a história se faz presente no
romance: Cláudio Aguiar optou pela interpretação marxista da história, que se
pretende contrabalançada pelo rigor documental e pelo uso de temas da cultura
popular. De fato, acontecimentos registrados em documentos ou pesquisados em
fontes primárias estão presentes na obra. Também a cultura popular e o resgate da
memória são instrumentos usados na recriação de certos fatos históricos que,
transferidos para o campo dos sentimentos e das reflexões, tornam verossímeis os
personagens.
Verificamos, ainda, neste capítulo a presença de uma importante
característica do novo romance histórico: a história não ser apenas um pano de
15
fundo para a ação ficcional.
No terceiro capítulo, observamos os elementos definidores da narrativa.
Benedito Nunes demonstrou que o conceito de representação é uma falácia, pois é
impossível, para qualquer narrativa, reconstruir ou mesmo recriar os fatos. Ainda
que seja possível recorrer a documentos históricos, será a imaginação que irá
estabelecer elos e nexos entre os dados pré-existentes, de modo a criar a realidade,
ou antes, uma realidade, dentro de uma gama de possibilidades. Quanto à narração,
o ensaio O Narrador, de Walter Benjamin, Las voces de la novela, de Oscar Tacca e
O narrador do romance: e outras considerações sobre o romance, de Ronaldo Costa
Fernandes foram os nossos apoios teóricos.
Intimamente ligado ao estudo da narração (aqui, o termo narração abrange
tanto exposições orais, quanto exposições escritas, de fatos rememorados em
jornais da época e em folhetos de cordel representados no romance) é o estudo da
memória, pois ela constitui a matéria-prima da criação. Neste estudo, nos detemos
no personagem Bernardino, narrador fictício de Caldeirão e exemplo de narrador no
sentido benjaminiano aquele que colhe o que narra na experiência, própria ou
relatada, e a transforma outra vez em experiência dos que ouvem sua história
pois, suas lembranças da história, à maneira de Riobaldo, em Grande Sertão:
Veredas, de Guimarães Rosa, é que serão relatadas ao seu culto interlocutor. Estas
estão repletas de informações não somente sobre o massacre no Caldeirão, mas
também, sobre a cultura deste povo e a dos primeiros habitantes da região, os
índios Cariris. Então também coube aqui discutir o caráter autobiográfico do
romance.
Ainda neste capítulo, observamos que apresentando as raízes do Cariri – que
propositalmente aproxima às raízes do Brasil Cláudio Aguiar também agiu como
etnógrafo em Caldeirão, ao fazer um verdadeiro levantamento folclórico,
reproduzindo festas, rezas, danças, cantos, contares e fazeres característicos de
sua região. Nosso apoio teórico foi o Dicionário do Folclore Brasileiro, de Câmara
Cascudo e Termos de linguagem e de folclore, do cearense Florival Seraine.
Como disse Franklin de Oliveira, “Cláudio Aguiar parte da história para a
estória. A ficção é uma sua ficção historicizada”. No último capítulo, à guisa de
conclusão, vimos que, seguindo uma das tendências marcantes da literatura
16
brasileira e latino-americana, Cláudio Aguiar soube conciliar, no espaço do romance,
as exigências de uma certa interpretação supostamente crítica da história sem a ela
subordinar a matéria literária. Ainda, através da criação ficcional, o escritor renovou
esse espaço fronteiriço entre o que está dito na história pública e o que poderia ter
sido vivido na esfera particular.
Ao longo da dissertação, tentamos dar ênfase a três grandes questões
tratadas em Caldeirão: as idéias que dizem respeito à tradição, à realidade histórica
e sócio-cultural e aos elementos que compõem a sua narrativa. A partir do seu
enquadramento no modelo do romance histórico poderemos responder a essas duas
interrogações que se cruzam: quais as dimensões da história no romance, e quais
os elementos de romance que se fazem presentes na história. Dessa forma,
esperamos contribuir para o debate das relações, freqüentemente obscuras, entre o
romance histórico e a história.
17
1
HISTÓRIA E FICÇÃO:
UM DISCURSO DE FRONTEIRAS
... mas quanto dentre vós estudam
conscienciosamente o passado?
José de Alencar
18
1.1 – O romance histórico e o novo romance latino-americano: características
Na expressão de Aristóteles, na Poética, mímesis era imitação daquilo que
julgamos ter acontecido, isto é, algo que pertencia ao domínio da memória histórica,
ao passo que Poiesis representava o campo das possibilidades, que também inclui o
real, mas o real tanto no sentido do que aconteceu, como possibilidade, mas
também no sentido do realmente acontecido. Rosenfeld (1970) observa que o termo
“verdade”, quando usado em relação a obras de ficção, tem significado diverso:
É a intensa “aparência” de realidade que revela a intenção ficcional
ou mimética. Graças ao vigor de detalhes, à “veracidade” de dados
insignificantes, à coerência interna, à lógica das motivações, à
causalidade dos eventos etc., tende a constituir-se a verossimilhança
do mundo imaginário. [...] Trata-se de um “verdadeiro ser aparencial”
(Julian Marías), baseado na conivência entre autor e leitor. O leitor,
parceiro da empresa lúdica, entra no jogo e participa da não-
seriedade” dos quase-juízos e do “fazer de conta” (ROSENFELD,
1970:20-21).
Desde Homero, ou seja, desde os primórdios do gênero, escritores
souberam mesclar história e ficção, apresentando, assim, uma espécie de memória
coletiva inventada, um texto que, valendo-se de acontecimentos históricos compõe
ficção. Outros recursos também foram aliados à história para a criação do texto
ficcional, por exemplo, a mescla dos mitos de um povo com as invenções pessoais
do autor, que findavam por revelar suas intenções estéticas e éticas.
Essas memórias trazem verdades fictícias que, muitas vezes, realizam
melhor os conteúdos do emocional coletivo que as memórias da informação
histórica, provavelmente por prescindirem de provas. Elas podem, assim, fingir-se
completamente mentiras.
No caso do romance, desde o seu surgimento, por volta do século XVI, e em
especial nos séculos XVII e XVIII, existiam romances de temas históricos, em que se
misturavam heróis imaginários e personagens históricas, nos quais a História se
fazia presente simplesmente para determinação temporal das ações e dos
personagens. Porém, a partir do início do século XIX, com as publicações das obras
19
do escritor escocês Walter Scott (1771-1832), o romance começou a reconstituir o
passado. Apesar de não poder ser considerado o fundador do romance histórico, foi
Scott quem revitalizou o gênero, ao ambicionar recriar outras épocas e outros
mundos, delineando assim, um modelo da estrutura narrativa histórica que foi
assimilado por alguns escritores como Alfred de Vigny em Cinq-mars (1826), Victor
Hugo em Notre-Dame de Paris (1831), Honoré de Balzac em Les Chouans (1829) e
Prosper Mérimée em Chronique du temps de Charles IX (1829).
Scott conseguia fazer interagir o tema histórico e sua narrativa, ao organizar
dramaticamente os acontecimentos (isto é, ao estruturar o enredo do romance em
partes, com exposição, crise e desenlace), criando episódios convergentes, cada
qual contribuindo para fazer progredir a ação.
Ivanhoé (1819), por exemplo, foi o primeiro romance de Sir Walter Scott que
deixou os temas escoceses para falar de assuntos mais britânicos. Logo no primeiro
capítulo, à maneira dos clássicos, onde Scott introduz-nos a obra, somos informados
que a ação tem como pano de fundo o período do fim do reinado de Ricardo
Coração de Leão que havia partido para as cruzadas; ao retornar, em 1192, tornara-
se prisioneiro pelo duque Leopoldo, da Áustria, com quem tivera desavenças na
Ásia. O irmão de Ricardo, o príncipe João, aliado a Filipe de França, preparou um
grande complot para usurpar o trono.
Scott não se abstém de demonstrar a insatisfação inglesa com esta
situação, atacando a língua francesa:
Na corte, e nos castelos dos grandes nobres, onde se emulava a
pompa e a magnificência da corte, o franco-normando era a única
língua usada. Nas cortes de justiça, as petições e os julgamentos
eram exarados na mesma língua. Em suma, o francês era o idioma
da honra, da nobreza e mesmo da justiça, enquanto a língua anglo-
saxônia, muito mais viril e expressiva, achava-se entregue ao uso
das pessoas rústicas, e dos camponeses, que não conheciam
nenhuma outra (SCOTT, 1972:11).
Vale a pena ressaltarmos este trecho porque, aparentemente, ele é o tema
de todo o livro, a luta de nobres anglo-saxões contra o domínio normando. Verifica-
se, entretanto que não era o intento de Walter Scott apresentar uma versão
revisionista da história, pautando sua narração por um suposto ponto de vista dos
vencidos. Longe de destilar amargura e ressentimento numa história de oprimidos,
20
Scott celebra em seu romance a formação de uma grande nação pelo amálgama de
dois grandes povos: os normandos invasores e os saxões subjugados:
Além dos membros das duas famílias, compareceram ao casamento
tanto normandos como saxônios de alta linhagem. O povo recebeu o
acontecimento com demonstrações gerais de regozijo, pois era uma
garantia de paz e harmonia futuras entre as duas raças, as quais,
desde essa época, se misturavam tanto que, hoje, não é mais
possível distingui-las. Cedric viveu o suficiente para ver essa fusão
quase completa, pois, à medida que os dois povos se aproximavam e
se uniam pelo casamento, os normandos iam-se tornando menos
desdenhosos e os saxônios menos rústicos. Mas não foi senão
durante o reinado de Eduardo III que a língua mista, agora chamada
inglesa, passou a ser falada na corte de Londres, e que o espírito de
hostilidade entre normandos e saxônios também desapareceu
completamente (SCOTT, 1972: 551).
Outros temas envolvendo superstições, personagens mitológicos ou
folclóricos, também apareceram em Ivanhoé. (o romance inicia revelando uma
Inglaterra repleta de florestas, belas colinas, carvalhos e lendas; governados pelo rei
Oberon). Scott se inseria em um movimento que, desde o fim do século XVIII,
provocava, em alguns países europeus, um forte interesse em pesquisar tradições
populares e recriá-las. Carpeaux (1962) observou esta questão:
A arte de Scott não tem nada em comum com o medievalismo
artificial, puramente literário, dos pré-românticos. Os seus romances
baseiam-se em documentação cuidadosa, e os maiores dentre eles,
em documentação oral, ainda viva. Visto assim, Scott é realista
(CARPEAUX, 1962:1729).
Esta observação pode até soar estranho aos leitores que desconhecem a
vasta obra scottiana, pois, é freqüente se pensar que o autor de Quentin Duward se
dedicou apenas a obras ambientadas na Idade Média. Porém, observa Carpeaux,
Scott não é propriamente medievalista: apenas cinco dos seus
muitos romances se passam na Idade Média, e no mais Scott
parece medievalista porque a cena preferida a Escócia, do século
XVIII – era um país muito atrasado, quase medieval (idem,
1962:1727).
Carpeaux termina seus comentários, acerca de Walter Scott, afirmando que
“os seus romances mais importantes não se passam na Idade Média; Scott
21
descreveu o passado não muito remoto da Escócia independente, antes de ela
confundir-se com a nação inglesa. É o epitáfio da civilização” (idem, 1962:2091).
Assim, antes de descrever seu romance histórico por excelência, Ivanhoé, o
romance dos cruzados, pesquisara baladas e tradições da Escócia, no intuito de
contribuir para a preservação da história de sua terra natal, que estava se
dissolvendo e se misturando à da Inglaterra.
Além disso, sua visão do romance histórico a necessidade de paixão nos
dramas era possível para alguém que se norteasse pelos princípios do drama
romântico, que fosse hábil o bastante com o tratamento dos personagens e dos
diálogos.
Assim, o romance histórico, possui várias características que o determinam:
“informação histórica; cor local; exotismo; atenção especial ao exterior, mesmo em
sacrifício de algo do interior; evocação de civilizações longínquas e de sociedades
diferentes ou desaparecidas; sentimentos não individuais, mas comuns da
comunidade e representativos: tipos não individuais; a história central, ao revés que
na tragédia e na epopéia, não é inventada” (LANDIM, 2004:108).
Lukács (1977), por sua vez, teorizou o romance histórico a partir da análise
dos romances de Walter Scott, nos quais observou a constância de alguns
elementos que definem esse gênero narrativo. Assim, ele o definiu:
1. A época histórica resgatada está num passado mais ou menos distante do
presente do autor e serve como um pano de fundo histórico para o romance;
2. Neste pano de fundo é desenvolvida uma trama fictícia, inventada pelo autor,
com ações e personagens fictícios que se encaixam perfeitamente na época
passada reconstruída;
3. Geralmente, na trama inventada, uma história amorosa que tanto pode ter
um desenlace feliz ou trágico;
4. A trama fictícia ocupa o primeiro plano do romance, ela canaliza a atenção
maior tanto do narrador quanto dos leitores;
5. A época histórica passada é somente um contexto, melhor, um pano de
fundo, embora não tenha uma importância secundária. O contexto histórico
perpassa toda a obra, explicando os comportamentos dos personagens e as
soluções dos conflitos.
22
Um dos pontos chave quanto ao romance histórico clássico é que numa obra
deve haver um distanciamento significativo no tempo tratado pelo autor, em relação
ao seu próprio. Lukács ao analisar a obra de Scott e esquematizar o paradigma do
romance histórico, observou que o autor de Ivanhoé não escrevia sobre a sua
época, mas sobre épocas passadas. Porém, apresentou algumas obras de outros
escritores que não seguiram, rigorosamente, o modelo que se instaurou com o
escritor escocês. Pois em meados do século XIX havia romances que romperam
com determinados elementos do paradigma tradicional.
Em nossa literatura, temos José de Alencar (1829-1877), “o primeiro grande
prosador do Brasil”, segundo Carpeaux, como um grande exemplo de escritor que
tanto segue o modelo scottiano em algumas obras tais como O Guarani e As Minas
de Prata como rompe com o paradigma tradicional, em Guerra dos Mascates.
Em O Guarani, cuja história se passa em 1604, encontramos o personagem
histórico D. Antônio de Mariz, fidalgo português que, com Mem de Sá, foi um dos
fundadores do Rio de Janeiro, “homem de valor, experimentado na guerra, ativo,
afeito a combater os índios”. Alencar o representou como exemplo de nobreza
naquela terra de brutos. “Homogêneo de Peri”, segundo Wilson Martins, foi,
entretanto, apresentado a uma distância média, uma vez que o enfoque do romance
está nos personagens fictícios Ceci e Peri.
No romance, Peri é mitificado, configurando assim a imagem do herói além
das capacidades humanas. Isto que fica claro em algumas de suas façanhas. Temos
então o comentado episódio da onça que, apesar de os “instintos carniceiros”, foi
trazida viva aos pés de Ceci.
Segundo Wilson Martins (1992), O Guarani (1857)
[...] é um romance histórico que busca enraizar num medievalismo
ideal os fundamentos da nacionalidade. O Guarani tem sido
obstinadamente lido como se fosse um romance realista que tivesse
o defeito de idealizar o índio; na verdade, é um romance histórico,
isto é, idealista e mítico, que procura dar significação nacional a
personagens e processos que só idealmente a poderiam ter. Por isso
mesmo, é erro evidente dizer que Alencar idealizou o selvagem: ele o
apresenta, juntamente com a paisagem, os personagens europeus e
as peripécias da ação, numa escala gigantesca, que, por sê-lo, nos
parece irrealista, o que efetivamente é (MARTINS, 1992: 66).
Guerra dos Mascates não segue rigorosamente o modelo scottiano. A
23
história narrada no romance transcorre no ano de 1710, época dos conflitos entre os
aristocratas de Olinda, que decaíam graças à crise açucareira desde a expulsão dos
holandeses do Nordeste, e os comerciantes do Recife, apelidados de mascates, que
prosperavam graças ao intenso comércio e a empréstimos a altos juros concedidos
aos olindenses. Estes últimos, mesmo arruinados, mantinham o predomínio político.
Contrariando o paradigma do romance histórico clássico, (vide o conflito de
Ivanhoé: anglo-saxões versus normandos) esses acontecimentos e as soluções dos
conflitos não possuem relevância no romance. O narrador, um jornalista que escreve
uma crônica alinhavada “sobre uma papelada velha, descoberta de modo bem
estúrdio” e encontrada 150 anos depois, posiciona-se à distância e ressalta somente
pequenos acontecimentos nada heróicos como briguinhas amorosas e familiares e
peripécias quixotescas, pois a guerra aparece na última página do romance.
Estas diferenças não foram acidentais nem refletem falhas na construção do
romance. Schwarz (1998) afirma que José de Alencar tencionava ali ridicularizar a
figura do Imperador. Corroborando Schwarz, Afrânio Coutinho encontrou
características de roman à clef em Guerra dos Mascates, ou seja, registrou a
ocorrência de personagens reais que aparecem com nomes fictícios (José Alencar
era um talentoso criador de nomes). É notória a semelhança do personagem D.
Sebastião com D. Pedro II (o narrador critica constantemente o governo de D.
Sebastião e coloca em seus diálogos citações de O Príncipe). o sábio
personagem Carlos de Enéia, se lembrarmos da querela de José de Alencar com o
Imperador, seria o alter ego do próprio romancista.
Menton (1993) citou alguns romances históricos tradicionais brasileiros: O
Continente (1949), de Érico Veríssimo, A Muralha (1954), de Dinah Silveira de
Queirós, Tocaia Grande (1984), de Jorge Amado, Boca do Inferno (1989), de Ana
Miranda, dentre outros.
Mas o romance histórico continuou sofrendo mudanças. Nos fins do século
XIX, segundo Bella Jozef (1989), tornou-se “mais interessado nos fatos políticos e
sociais, convertendo-se em documento de testemunho ou participação” (JOZEF,
1989: 99). Na América Latina, em especial, ele sofreu uma grande revitalização
surgindo um novo modelo do gênero que grande parte da crítica especializada
convencionou chamar de Novo Romance Histórico Latino-americano, para
24
diferenciá-lo do romance romântico e naturalista.
Contudo, a presença de uma visão ideológica sobre o passado está
presente no romance histórico, quer seja scottiano ou o novo. Landim (2004), ao
observar o romance histórico naturalista, esclarece-nos que o que o caracteriza é a
[...] análise das relações da natureza com o homem; entretanto, a
realidade aparece não somente através de suas formas exteriores,
como acontece com Zola e seus seguidores, mas o romancista tende
a surpreender o homem em sua integridade intelectual e psíquica;
um determinado tipo de análise espiritual cuja evolução se do
realismo à interpretação. Chegando a esta complexidade o romance
histórico pouco perdeu ao atingir a época contemporânea (LANDIM,
2004:111).
Landim completa dizendo que “o elemento fundamental do romance deixa
de ser a ação imaginada para converter-se na visão de uma personalidade”
(LANDIM, 2004:111).
Menton estabelece o ano de 1949 como marco do Novo Romance Histórico
Latino-americano, data da publicação de El Reino de este mundo, de Alejo
Carpentier (1904-1980). Neste romance, ambientado na ilha de Santo Domingo, o
autor cubano narrou a revolta dos escravos haitianos do século XVIII. Protagonizam
este livro personagens históricos como o monarca negro Henri Cristophe, rei do
norte do Haiti, responsável pela implantação de um regime autoritário e que foi
morto em 1820.
O novo modelo difere do romance histórico tradicional principalmente ao
destacar os personagens históricos, tornando-os protagonistas dos romances.
Assim, eles não podem ser mitificados como antes, pois têm o cotidiano esmiuçado
e as fraquezas explicitadas. Isto reflete outra característica deste novo paradigma, o
distanciamento da versão oficial da história. Os propugnadores deste novo romance
histórico procuraram então criar na América Latina, em meados do século XX, um
meio de diálogo pretensamente crítico com o passado, ao apresentarem uma nova
visão da história, supostamente verdadeira.
Assim, podemos afirmar que o modelo clássico passou por várias
modificações após chegar à América latina. Adquiriu mesmo identidade própria, ao
se transformar no novo romance histórico latino-americano. Vários críticos se
propuseram a analisar as características desse novo romance histórico e, dentre
25
eles, Menton. Este destacou seis traços característicos do novo romance histórico
latino-americano, diferenciando-o do romance histórico clássico:
1. A reprodução mimética de determinado período histórico aparece
subordinada, em diferentes graus, a algumas idéias filosóficas, amplamente
desenvolvidas por Jorge Luís Borges, em sua literatura, segundo as quais é
praticamente impossível se conhecer a verdade histórica ou a realidade,
aceitando-se, também, o caráter cíclico da história e, paradoxalmente, sua
imprevisibilidade, o que faz com que os acontecimentos mais inesperados e
absurdos possam ocorrer;
2. A história é distorcida conscientemente através de recursos como omissões,
exageros e anacronismos;
3. Os personagens históricos são ficcionalizados, ou seja, tornam-se
protagonistas da obra;
4. Aparece comentários do narrador sobre o processo de escritura da ficção
a metaficção;
5. Presença da intertextualidade;
6. Pode-se notar conceitos elaborados por Bakhtin: dialogismo, carnavalização,
paródia e heteroglossia.
Como podemos ver, este novo romance histórico não se constitui apenas
das possibilidades postas pela história. Ele surge, também, e com o mesmo vigor e
profundidade, a partir da própria história realizada. Nesse caso, entretanto, a arte
tentará buscar, na experiência, as tensões que produziram esta mesma experiência.
E a vida que foi vivida é revivida na recriação artística. Os homens reencontram-
se não apenas com datas, fatos e lugares que a história lhes indicou mas,
principalmente, com medos, angústias e eventuais momentos de prazer e felicidade.
Assim, a arte no novo romance histórico latino-americano, ao se defrontar
com os documentos e com os testemunhos deixados pelo tempo, torna o leitor
partícipe de uma história que foi escrita, mas que agora se recria sob a voz do
artista, de uma forma particular, pois amiúde se quer crítica. Para dar conta dessa
importante característica do novo romance histórico latino-americano, devemos
lembrar que esse novo romance histórico é latino-americano, o se podendo furtar
às suas origens. E é este caráter de romance latino-americano contemporâneo que
condiciona a sua abordagem da história, supostamente crítica, chegando muitas
vezes às raias do engajamento.
26
1.2. - As temáticas ou “contextos”
Coutinho (1984) aponta as características da narrativa latino-americana,
destacando que, durante todo o seu desenvolvimento histórico, esteve presente uma
tensão entre tendências opostas, que se expressavam através de uma série de
antônimos do tipo regionalismo versus universalismo, consciência versus
engajamento social.
Embora estas características não sejam exclusivas da América Latina, elas
assumiram um significado especial no contexto latino-americano. Na retratação da
paisagem, diferente da descrição puramente exótica, encontramos uma visão mais
crítica, comprometida com o propósito de denunciar a situação política, social e
econômica de uma determinada região ou país. A inclusão do maravilhoso, do
mítico, do fantástico, ou seja, de “outros níveis de realidade”, foram recursos
importantes utilizados pelo escritor latino-americano para alcançar uma
representação por ele tida por autêntica e global da realidade do seu continente, e
oferecer uma contribuição nova e significativa para a literatura ocidental.
Oviedo (1972) observa que na década de 20 foi fundado o romance latino-
americano contemporâneo: Los de abajo, de Azuela, em 1916; Raza de bronce, de
Alcides Arguedas, em 1919; La vorágine, de Rivera, em 1926; Macunaíma, de Mário
de Andrade, em 1929, foram algumas das obras. Embora haja exceções, com elas
[...] nasce um novo romance e nascem seus ismos mais definidores:
indigenismo, crioulismo, regionalismo, naturalismo urbano. Todos
estes matizes concorrem, todavia, para uma tendência comum: a
documental, que trata de oferecer um inventário da realidade de cada
país, tanto orográfica como social, agrícola ou política, como uma
atitude sempre demonstrativa ou retratista. Esse apego à natureza e,
em geral, aos modelos imediatos que a realidade oferece é
conseqüência de uma vocação missional: de um lado, os romances
de tal período funcional como ata de acusação e denúncia da
violência e injustiça que regem a vida do homem americano; de
outro, servem de sucedâneo ao livro de viagens: descrevem o país
àqueles que não o conhecem ou o conhecem mal, metem-se na
selva, na planície ou na socava mineira para tirar uma mensagem de
27
identidade nacional que sane as diferenças abismais que a política
oficial dissimula. Postulam uma moral e uma fé, quando não uma
militância; no fundo são afirmativos e esperançosos, embora seus
quadros sejam deprimentes e atrozes: explicam-nos a piedade e o
afã reivindicatório (OVIEDO, 1972: 437).
Na década de 30, essa tendência chegaria à mais veemente expressão:
uma literatura dita “engajada” surgia, voltada quase exclusivamente para o
conteúdo, na qual, segundo Octavio Paz, “os artistas tentaram inserir-se na história
viva, mas quase sempre confudiram a política com a história” (PAZ, 1991:180),
freqüentemente convertendo-se em servidores de causas ideológicas, em
propagandistas por considerarem a linguagem como um mero veículo para a
transmissão de idéias revolucionárias, porém cheia de clichês e estereótipos.
Assim, em poucos anos, essa novelística havia transitado de um panteísmo
telúrico e de uma fascinação geográfica “o romance da terra” à profecia
ideológica e à agitação partidária, e caiu nas armadilhas do simplismo, da pedagogia
e da mensagem.
Depois o que se viu foi a realidade objetiva coexistindo com o sonho e a
fantasia, o engajamento político ou social se casando à consciência estética, e os
conflitos locais, circunstanciais, se fundindo com outros de ordem genérica ou
existencial; e, segundo Coutinho, é exatamente nesta mistura de elementos
diversos, nesta fusão de 'aparentes opostos' que consiste a essência de tal ficção, a
única passível de expressar, de maneira profunda e integral, a relatividade de nosso
tempo e cultura” (COUTINHO,1984:182).
Carpentier (1969) é um escritor que muito bem representa esta fusão do
engajamento político com a consciência estética. Em seu artigo “Problemática do
atual romance latino-americano”, ele se propõe a ajudar a desmistificar o que,
segundo ele, é uma idéia antiga, porém, ainda freente, a de que o romance é
destinado somente a causar “prazer estético aos leitores”. Diz então concordar com
Sartre, que postula que, por meio de peças e romances, pode-se favorecer a
participação das massas em seu sistema de pensamento. O autor de A Harpa e a
Sombra afirma que o romance deve ir “mais além da narração, do relato; quer dizer
do próprio romance, em todos os tempos em todas as épocas, abarcando aquilo a
que Jean-Paul Sartre chama de contextos” (CARPENTIER, 1969:11).
28
Carpentier, mais adiante, enumera esses “contextos sartrianos”, que são os
contextos políticos, científicos, materiais, coletivos, ou seja,
[...] contextos de repercussão e eco, por operação de fora-dentro,
haverá de definir-nos o homem americano, nas suas cidades onde é
preciso vê-lo agora e vê-lo agora nas suas cidades é realizar um
trabalho de definição, de ubiquação, que é o de Adão nomeando as
coisas (op.cit., p.19).
Nessa linha, Carpentier, objetivando definir o homem latino-americano,
enfatiza os contextos “cabalmente latino-americanos”, que seriam os raciais, os
econômicos, os ctônicos (relativos às crenças e práticas culturais muito antigas
como a tradição oral), políticos, culturais, culinários, de iluminação, ideológicos, da
dimensão épica, dentre outros.
Estes temas reaparecem em America en sus Novelas, de Padron (1983).
Seguindo a linha de pensamento de Carpentier, que muito se assemelha à adotada
pelo escritor peruano Manuel González Prada (1848-1918), Padron traça um
panorama geral dos temas recorrentes na literatura hispano-americana. Na
introdução de seu livro, o autor observa que a literatura pode ser um veículo para
nos acercarmos das realidades de um determinado país ou área geográfica. Padron
divide seu livro em três partes. Em “Questões sociais”, encontramos capítulos
dedicados à representação do índio, do mestiço e do negro no romance. A seguir, o
autor enfoca a superstição, o sincretismo e o catolicismo, temas que,
indubitavelmente, remetem aos anteriores. Sobre o índio, Padron observa:
Estos seres sufren las consecuencias de una carencia de legislación
protectora, del latifundio, del minifundio, de la subalimentación
cuantitativa y cualitativa, de la elevada mortalidad infantil por la
negativa salubridad, de la limitación de viviendas, de la alcoholismo y
drogas (coca), de marginación política, de explotación demagógica,
de dudosa situación jurídica en relación con los patronos, del
caciquismo de éstos, de falta de atención cultural y religiosa
(analfabetismo, supertición), etc. La población indígena brinda, pues,
um alucinante material para antropólogos, políticos, novelistas...
(PADRON, 1983:24).
Segundo Padron, escritores como Ciro Alegría, em La serpiente de oro
(1935) e Jorge Icaza, em Huaipungo (1934), ambos com a sua problemática agrária
e rural e com suas reivindicações indigenistas e exaltantes do nativismo, que
29
viveram ou procederam do povo, captaram e expressaram de forma magistral o
drama vivido pelo o índio.
Em Alegría e Icasa, diz ele, “los indios son vistos como equivalentes al
proletariado y como cantera de militancias revolucionarias” (PADRON, 1983:29).
Ainda segundo Padron, para Manuel González Prada a trilogia inimiga do
índio era formada pelos latifundiários, o clero e os militares. Será a esta trilogia que
recorrerá no romance de denúncia, de viés marxista. O enfoque do problema pelos
romancistas, um tanto esquemático, expunha, sobretudo, as violências às quais
seria submetido o índio e advogava na educação a panacéia dos seus males.
Vale a pena explicarmos que para Manuel González Prada a questão central
levantada por estes escritores era tornar presente o índio, os oprimidos,
transformando-os em fundadores da história do seu país natal, o Peru. O índio,
portanto, passava a representar a possibilidade de se resgatar as tradições
americanas para que elas se transformassem no cerne de uma nova cultura
americana.
Vários autores então cultivaram um novo neo-indigenismo com intuito de
suscitar um remorso/arrependimento, através da denúncia social e análise cultural.
Em muitas destas obras, o problema do índio é visto ou exposto em situações onde
vivenciam a destruição de suas comunidades, o arrebatamento de suas terras, a
dificuldade para a integração social, a exploração, a superstição, o sincretismo, etc.
1.3- Outras temáticas: mito e paraíso
Reconhecendo quão difícil é definir o que é mito Eliade (1994) propõe a
seguinte definição, que considera “a menos imperfeita porquanto mais ampla”: “O
mito conta uma história sagrada, narra um fato importante ocorrido no tempo
primordial, no tempo fabuloso dos começos”.
Eliade então detalha sua “ampla” definição caracterizando o mito por certos
aspectos que explicitam sua estrutura e função nas sociedades ditas arcaicas:
1. constitui a História dos atos de Entes Sobrenaturais;
2. que essa História é considerada absolutamente verdadeira
30
(porque se refere a realidades) e sagrada (porque é obra dos Entes
Sobrenaturais);
3. que o mito se refere sempre a uma criação”, contando como algo
veio à existência, ou como um padrão de comportamento, uma
instituição, uma maneira de trabalhar foram estabelecidos; essa a
razão pela qual os mitos constituem os paradigmas de todos os atos
humanos significativos;
4. que, conhecendo o mito, conhece-se a “origem” das coisas,
chegando-se, conseqüentemente, a dominá-las e manipulá-las à
vontade; não se trata de um conhecimento “exterior”, abstrato, mas
de um conhecimento que é “vivido” ritualmente, seja narrando
cerimonialmente o mito, seja efetuando o ritual ao qual ele serve de
justificação;
5. que de uma maneira ou de outra, “vive-se” o mito, no sentido de
que se é impregnado pelo poder sagrado e exaltante dos eventos
rememorados ou reatualizados (ELIADE, 1994:22).
Esta caracterização se contrapõe ao caráter literário atribuído aos mitos
arcaicos pelos ditos modernos, de conotação eminentemente alegórica. Não teriam
os modernos os seus próprios mitos?
Partindo deste ponto, abordamos a seguir outros grandes mitos,
imprescindíveis ao nosso estudo, tais como o mito da Idade de Ouro que, segundo
Brunel (2000) é “o mais representativo dos grandes mitos da humanidade”.
Brunel responde que a Idade de Ouro, na cultura ocidental, reveste-se de
uma dimensão filosófica (quando submetida a uma demonstração) e uma utilização
política (quando submetido às aspirações de um povo) que favoreceram a sua
sobrevivência, pois “se transformam e oferecem à imaginação uma imagem
renovada da felicidade humana total” (BRUNEL, 2000: 474).
Brunel observa que o alcance político deste mito não parou de aumentar
desde a Renascença até os dias atuais:
É o mito da Idade de Ouro greco-romana que alimenta a utopia da
cidade ideal no século XVI, a crítica social no século XVIII (contos de
Voltaire) e o pensamento revolucionário nos séculos XIX e XX.
Realmente, ligando o mito da Idade de Ouro à sua história os
romanos politizaram um mito de essência religiosa e experimentaram
as condições de aplicação de uma ideologia (op.cit., 2000: 475).
Como exemplo, Brunel cita Virgílio que, na sua IV Bucólica, anuncia o
retorno dos Saturnia regna em um futuro próximo, para um povo que anseia pela
“restauração da paz, da abundância e de justiça em circunstâncias excepcionais”
(op.cit, p.475).
31
Reconhecemos facilmente esta espera por “paz, abundância e justiça” que
Virgílio fala em seu texto. Não nas épocas de crise, quando tudo parece incerto,
mas até em tempos menos conturbados, o mito ressurge, em um contexto profético,
estreitamente ligado aos apocalipses. Esse fato, explica a ressurgência do “mito da
Idade de Ouro” no pensamento contemporâneo.
Machado (1979) observa que um dos aspectos essenciais da literatura
latino-americana é a nostalgia da Idade de Ouro. Ao analisar o romance Paradiso,
de José Lezama Lima, ele responde que não neste romance, mas em muitos
outros romances latino-americanos contemporâneos (os escritos a partir de meados
do século XIX), o tema do paraíso está “na origem mais determinante dessa
evolução e mesmo na origem longínqua de todas as primeiras tentativas literárias
latino-americanas no sentido de criar uma expressão literária autônoma”
(MACHADO, 1979:28).
O ensaísta português mostra que a descoberta da América Latina, como,
aliás, a da América do Norte, está profundamente ligada à idéia religiosa da criação
de um novo mundo. Segundo Machado, Eliade notou muito bem isso ao afirmar que:
A colonização das duas Américas começou sob um signo
escatológico: acreditava-se que chegara a altura de renovar o mundo
cristão, e a verdadeira renovação era o regresso ao Paraíso terrestre
ou, pelo menos, o recomeço da História sagrada, a reiteração dos
acontecimentos prodigiosos de que falava a Bíblia. Eis a razão por
que a literatura da época, bem como sermões, as memórias, a
epistolografia abundam em alusões paradisíacas e escatológicas
(ELIADE apud MACHADO, 1979:28-29).
Machado completa afirmando que muito pouco se conhece desta literatura
embrionária em que o tema do paraíso, “quer seja perdido ou reencontrado, é
retomado a cada passo, como uma espécie de obsessão.” Entretanto, duas visões,
segundo ele, totalmente opostas podem ser observadas: a dos conquistadores e a
dos conquistados.
Enfatize-se, entretanto a importância dos primeiros escritos os relatos dos
viajantes pois, a partir mesmo da gênese da nação, os discursos histórico e
literário propiciam que se imagine, se consolide e se dissemine a nação enquanto
forma de comunidade. De fato, através da linguagem é que é possível o registro de
uma história, de uma genealogia, de uma vida nacional, de laços sociais, políticos e
culturais. A linguagem molda assim o arcabouço simbólico e conceitual que medeia
32
a visão que a nação tem de si e dos outros.
Imbuídos da idéia do caráter formador de mentalidades dos primeiros
escritos registramos que Machado também observa que o tema do paraíso perdido
“dos heróis de outrora” vem acompanhado de um outro tema, o da revolução. Certos
escritores latino-americanos contemporâneos, continua o ensaísta, “recusam-se a
considerar o tempo e o espaço como entidades separadas, opondo o tempo mítico
da festa ao tempo histórico da revolução, o primeiro realizando a osmose tempo-
espaço, enquanto que o segundo o separa irremediavelmente” (MACHADO,
1979:38).
De fato, a revolução socialista é a manifestação profana e tardia da utopia
do estabelecimento do reino de Deus na terra (a volta ao paraíso perdido, cara aos
milenaristas desde o heresiarca Joaquim de Flora). Segundo alguns autores de
doutrina mais ortodoxa e possivelmente mais realista a realização desta utopia
está votada ao fracasso ou mesmo à tragédia. Assim, Santo Agostinho, em Cidade
de Deus, punha a Civitas Dei fora da história, pois seria instituída por Deus após
a consumação dos tempos. Outra, entretanto, é a escatologia de muitos autores do
nosso continente.
Le Goff (1990) ao definir 'escatologia', afirma que o termo “designa a
doutrina dos fins últimos, isto é, o corpo de crenças relativas ao destino final do
homem e do universo” (LE GOFF, 1990: 325).
Certas concepções escatológicas se caracterizam pela crença de que
durante mil anos haveria a “instalação do céu na terra”, amparada numa
interpretação heterodoxa do Apocalipse. Este Millenium, segundo Le Goff, “deu o
nome a toda uma série de crenças, de teorias, de movimentos orientados para o
desejo, a espera, a ativação dessa era: são os milenarismos (ou, segundo o grego,
chiliasmos)” (op.cit.,p.328).
Muitas vezes, a escatologia também se constrói por referência às origens.
Quase sempre, associado ao milenarismo está a vinda de um salvador, o Messias
que servirá de guia para a preparação para o fim dos tempos.
Na Europa, observa Eliade, a mitologia escatológica e milenarista
reapareceu no século passado, em dois movimentos políticos totalitários:
33
Embora radicalmente secularizados na aparência, o nazismo e o
comunismo estão carregados de elementos escatológicos; eles
anunciam o Fim deste mundo e o início de uma era de abundância e
beatitude. Norman Cohn, o autor do mais recente livro sobre
milenarismo, escreve a propósito do nacional-socialismo e do
marxismo-leninismo: “Sob a terminologia pseudo-científica de que
um e outro servem, pode-se reconhecer facilmente uma fantasia
cujos elementos lembram singularmente as elocubrações em
curso na Europa medieval. A batalha final e decisiva dos Eleitos
(sejam eles a raça ariana” ou o “proletariado”) contra as hostes do
mal (sejam eles os judeus ou a “burguesia”); um decreto da
Providência, pelo qual os eleitos serão amplamente compensados
por todos os seus sofrimentos, com as alegrias do domínio total ou
da comunidade total ou de ambos ao mesmo tempo; um mundo
purificado de todo mal e no qual a história irá encontrar sua
consumação eis algumas antigas quimeras que ainda hoje
acalentamos” (ELIADE, 1994:65).
Figura arquetípica, o messias faz-se presente no imaginário coletivo desde a
mais remota antigüidade. Importado do Oriente junto com o Cristianismo, no
Ocidente o messianismo foi importante componente de quase todas as heresias e
mitos. para citar algumas manifestações, recordamos a heresia milenarista de
Joaquim de Flora, eivada de messianismo. Os trovadores de outrora narraram a sina
do Rei Arthur, encantado na mítica Avalon, jazendo inerme até o seu retorno no
momento oportuno. Portugal teve seu Rei Arthur na figura d`El Rei Dom
Sebastião, desaparecido em combate e aguardado por alguns até hoje.
Segundo Queiroz (1976) para religião judaica, messias
[...] é o personagem concebido como um guia divino que deve levar o
povo eleito ao desenlace natural da história, isto é, à humilhação dos
inimigos e ao restabelecimento de um reino terreno e glorioso para
Israel. A vinda deste reino coincidirá com o “fim dos tempos”e
significará o restabelecimento do Paraíso na terra (QUEIROZ, 1976:
26).
Com o advento do cristianismo, o Messias havia chegado. O que se notou,
observa Queiroz,
[...] foi a junção da crença messiânica com a idéia do Juízo Final:
Cristo vai retornar, e será o sinal do fim das eras. A figura de Cristo
se modifica; não é mais o salvador, é um líder guerreiro que virá no
futuro dar combate ao Anticristo, personificação do mal, sua vitória
constituindo justamente o prenúncio do fim do mundo (op.cit., p.26).
Citando Max Weber e Paul Alphadéry que analisaram o termo messias e
34
chegaram à conclusões próximas, Queiroz diz que:
[...] o messias é alguém enviado por uma divindade para trazer a
vitória do Bem sobre o Mal, ou para corrigir a imperfeição do mundo,
permitindo o advento do Paraíso Terrestre, tratando-se pois de um
líder religioso e social. O líder tem tal status não porque possui uma
posição dentro da ordem estabelecida, e sim porque suas qualidades
pessoais extraordinárias, provadas por meio de faculdades mágicas
ou estáticas, lhe dão autoridade; trata-se, pois, de um líder
essencialmente carismárico. Assim, age graças ao seu dom pessoal
apenas, colocando-se fora ou acima da hierarquia eclesiástica ou
civil existente, desautorizando-a ou subvertendo-a, a ruptura de
ordem estabelecida podendo ser breve ou de longa duração (op.cit,
p.27).
O messias é uma figura real, geralmente, um príncipe ou um cavaleiro em
cuja morte não se acreditou e cujo retorno era, portanto, esperado, como o de Jesus
Cristo. Queiroz observa que os adeptos deste líder religioso cumprem as ordens
dele. sua responsabilidade consiste em voltar-se para a coletividade,
moralizando-a e santificando-a, a fim de permitir o Advento:
Estes objetivos, que são políticos, sociais, econômicos (conforme se
localizem os erros neste ou naquele setor), devem sempre ser, no
entanto, religiosamente alcançados, isto é, por meio de rituais
especiais que um enviado divino revela aos homens (op.cit., p.29).
A história do messias segue os seguintes passos: eleição divina; provação;
retiro e volta gloriosa. O seu Reino também precisa ser definido: “era nova da
humanidade, que na Idade Média foi chamada o Milênio por se julgar que duraria mil
anos, nela encontrariam os homens, com a eternidade, a felicidade perfeita. Seria,
pois, a realização do céu na terra” (op.cit.,p.30).
Este Reino Messiânico geralmente é um reino futuro, espera-se por ele.
Poderá ser algo novo, como também poderá reproduzir uma Idade de Ouro que
tenha existido no passado, mas em ambos os casos com as mesmas características
de santidade e perfeição.
Em contraposição, definindo o herói cultural, Queiroz afirma:
O herói cultural é, por sua vez, um ser semi-humano e semidivino,
que trouxe à humanidade os bens de que goza a tribo, mas cujo
35
caráter é dualístico: altruísta e malicioso, ao mesmo tempo benfeitor
e malandro, cumulou o povo de melhoramentos mas é também um
moleque sempre em busca de aventuras amorosas, reunindo traços
sérios e bons a outros tolos e imorais (op.cit., p.33).
Queiroz, ao observar movimentos messiânicos brasileiros, diz que
A falta de padres afligiu sempre as autoridades eclesiásticas e foi
uma das razões do desenvolvimento de muitos dos fatos que a
religião oficial tem considerado anômalos e até mesmo pagãos, ao
contrário das populações que os vivem, as quais consideram estar
com a verdade religiosa... Além disso, formada a nação por etnias
diferentes, forçosamente a religião, como os outros setores socio-
culturais brasileiros, sofreu influências de costumes muito diversos,
que ou se conservaram em cerimônias ou ritos, ou deram um influxo
especial à sua evolução (QUEIROZ, 1976: 161).
Esses movimentos messiânicos rústicos, como os denomina Queiroz,
ocorreram e continuam ocorrendo em nosso país. Porém, é difícil precisar a sua
freqüência e a quantidade, “somente os de maior vulto foram registrados, os quais,
em geral, deram lugar a repressões sangrentas” (idem, 1976: 216).
Queiroz observa que anterior ao aparecimento destes movimentos
messiânicos propriamente ditos, aqui existiu uma crença proveniente de Portugal, o
sebastianismo, que depois serviu de base para pelo menos dois movimentos. Entre
1530 e 1540, Bandarra escrevera trovas em que compilava uma série de profecias
então correntes, provenientes de diversas fontes, que anunciavam a vinda de um
grande príncipe e senhor, o Encoberto, que daria a Portugal a hegemonia sobre as
outras nações.
Como citamos, crenças semelhantes a esta proliferam com facilidade em
ambientes de crise e em Portugal isso não foi diferente. A Península atravessava
uma fase de grande descontentamento interno. Na Espanha, Rei Carlos V, com
intuito de se tornar monarca universal, travava múltiplas guerras que levavam a
população ao desassossego; em Portugal, todos presenciavam a decadência do
Império Português. Foi neste ambiente que formas heterodoxas de religião
ganharam força e, com elas, diversos messias surgiram.
Os primórdios da nossa colonização coincidiram justamente com este
período e é lícito, como observa Queiroz, que suponhamos “que desde os primeiros
tempos aqui tivessem chegado indivíduos que conhecessem as Trovas de
36
Bandarra”, principalmente cristãos novos (judeus forçados à conversão) enviados à
colônia.
O número de sebastianistas, com o passar dos anos, cresceu. Segundo
Queiroz, é Ferdinand Denis, que esteve no Brasil a partir de 1816, que notícias
mais precisas acerca da crença e dos crentes:
Era considerável o número de pessoas que esperava o regresso de
D. Sebastião, devendo subir a três mil em Portugal e no Brasil. Não
formavam congregações distintas, nem se reuniam em assembléias
ou quaisquer grupos neste último país, unindo-os tão-somente a fé
no Rei Encoberto, cuja chegada se daria a qualquer momento. Eram
mais numerosos no Rio de Janeiro e em Minas Gerais, chamando a
atenção pela severidade, pela bondade, pela vida frugal que
levavam, lembrando os quacres. [...] Um comerciante com loja na
Rua da Direita, no Rio de Janeiro, concedia crédito à larga, para que
lhe pagassem quando regressasse D. Sebastião... (op.cit., p. 219).
A crença começou a arrefecer por volta de 1860. Porém, apesar do grande
número de crentes em Minas Gerais e no Rio de Janeiro, foi em Pernambuco que,
pouco antes, surgiram dois movimentos sebastianistas: o da Cidade do Paraíso
Terreste e o da Pedra Bonita.
O segundo é mais conhecido entre nós. Talvez o mais trágico dos
movimentos messiânicos brasileiros. Em princípios de 1836, na comarca de Flores,
apareceu João Antônio dos Santos, pregando que D. Sebastião em breve iria
desencantar, trazendo riquezas para os adeptos. Muitas pessoas deixaram de
trabalhar para segui-lo. As autoridades, preocupadas com o ocorrido, enviaram, com
êxito, o Padre Francisco Correia, missionário idoso e influente na região, para
dissuadi-lo, fazendo-o abandonar a região. Porém, após dois anos, o cunhado de
João Antônio dos Santos, João Ferreira, retomou a pregação, indicando duas pedras
enormes como portas do Reino Encantado, pois entre elas surgiria D. Sebastião
com a sua corte, no momento do desencantamento. Por volta de trezentas pessoas
se reuniram em torno das pedras, sobre uma das quais João Ferreira pregava, com
uma coroa na cabeça. Segundo o “rei”, o Reino desencantaria à custa de muito
sangue vertido a custa de sacrifícios humanos. Entretanto, quando D. Sebastião
surgisse, os sacrificados retornariam sãos.
37
João Ferreira passou a gozar de muito prestígio entre o seu séquito de
fanáticos. Em casamentos, por exemplo, ele tinha a prerrogativa de passar a
primeira noite com a noiva, entregando-a, no dia seguinte, ao seu marido. Revivia
assim o antigo costume feudal do jus primae noctis.
Os acontecimentos se precipitaram e, em maio de 1838, muitos foram
sacrificados, inclusive o próprio João Ferreira, tomando o seu lugar, o seu cunhado
Pedro Antônio. Este transferiu, devido ao grande número de corpos em
decomposição no local, o lugar dos sacrifícios. No percurso, os remanescentes
foram mortos ou aprisionados pelo forte contingente que vinha em direção contrária.
Pedra Bonita serviu de tema não para antropólogos e historiadores mas
também para os ficcionistas, que não se furtaram ao apelo desse campo aberto ao
imaginário. Entre eles, podemos citar José Lins do Rego, em Pedra Bonita e Ariano
Suassuna, em Romance da Pedra do Reino e Príncipe do sangue do vai-e-volta.
Acerca de Pedra Bonita escreveu Queiroz (1966):
[...] nos sertões de Pernambuco, sertanejos fanatizados se
suicidavam ou matavam uns aos outros, na crença de que o seu
sangue, vertido no rochedo sagrado, apressaria o advento do
millenium, quando todos ressuscitariam na maior felicidade. Parece
claro que tais casos se encontram no terreno da patologia social”
(QUEIROZ, 1966: 260).
Outro exemplo de messias brasileiro foi Antônio Vicente Mendes Maciel, o
Antônio Conselheiro. Nascido no Ceará, o, em princípio, romeiro partiu em direção à
Bahia. Após alguns anos, se autodenominando missionário, pregava, realizava
novenas, procissões, construía capelas, reparava muros de cemitério, realizava
curas extraordinárias. Quando rezava, a Virgem chorava sangue. Madeiros
pesadíssimos eram erguidos à sua ordem, por apenas dois e em determinada hora
do dia, “entrava em êxtase, para se comunicar com o próprio Deus”.
Após algum tempo, instalou-se com seus seguidores em uma fazenda à
beira do Vaza-Barris, denominado Belo Monte. Segundo Euclides da Cunha, em Os
Sertões, os sermões de Antônio Conselheiro, eram “oratória bárbara e arrepiadora
[...], misto inextricável e confuso de conselhos dogmáticos, preceitos vulgares da
moral cristã e de profecias esdrúxulas...”. Os temas giravam em torno da República,
reinado do Anticristo, esperanças sebastianistas, o apocalipse e a própria Igreja
38
Romana.
Canudos, segundo a visão dos seguidores de Conselheiro, adquiriu uma
conotação de volta à Idade de Ouro, sendo uma espécie de “antecâmara do Éden,
nova terra de Canaã”. Porém, a independência de Canudos começou a incomodar a
administração pública. Durante o Império, as autoridades admitiam a comunidade e
até viam com bons olhos as obras empreendidas sob a liderança do Conselheiro.
Com a proclamação da República, esta situação chegou ao fim; contrário às idéias
republicanas, pois separavam a Igreja do Estado, Antônio Conselheiro buscou, o
máximo possível, a separação do seu povo da sociedade tão pervertida. Essa
atitude incomodava o Governo. Os inúmeros moradores de Canudos só votavam em
candidatos indicados pelo Conselheiro. muitos entre o clero nutriam verdadeira
simpatia pelo profeta que “promovia batizados, casamentos, festas e novenas”, sem
tirar proveito pecuniário. Outros prelados naturalmente não viam com bons olhos o
ensinamento do conselheiro, que não se coadunava com o magistério da igreja, ao
contrário do que ele mesmo aparentemente pensava.
Muitas foram as obras escritas acerca de Canudos. Euclides da Cunha,
jornalista mais representativo que cobriu o acontecimento, escreveu Os Sertões,
misto de relato e ensaio antropólogico sobre a tragédia. Lhosa ficcionalizou o
acontecimento em A Guerra do fim do mundo e José J. Veiga, em A Casca da
Serpente (1989), também o fez, criando um “final alternativo” para o profeta em que
este sobrevive.
Vale lembrarmos que na segunda metade do século XX, buscaram-se
explicações sociológicas para movimentos messiânicos semelhantes ao ocorrido em
Canudos. E os ficcionistas, como mencionamos, não se furtaram ao apelo desse
campo aberto ao imaginário, potencializado por dois aspectos que lhe é inerente:
luta fratricida e guerra entre patrícios (WEINHART, 2001:80). Entre eles, além dos
citados, temos Luiz Antônio de Assis Brasil, em Videiras de Cristal, romance
histórico, ambientado no Rio Grande do Sul, acerca do movimento messiânico,
liderado por Jacobina Maurer, os muckers.
A maior parte deles criou um cenário social e humano que apresenta suas
versões de como e porque camponeses encontraram forças para o que eles
consideram ser um certo tipo de resistência na via mística. Projetam então nesses
39
movimentos suas concepções, preconceitos e ideologias, compondo uma narrativa
que se estrutura como um mito moderno. Em Caldeirão veremos que Cláudio
Aguiar, mesmo optando por uma via de marca nitidamente antropólogica, afirma
rejeitar a história oficial de vezo supostamente etnocêntrico. Isto necessariamente
concorre para maior imparcialidade no tratamento deste tema? Ou, ao contrário,
Cláudio Aguiar se baliza por imperativos ideológicos na narração e apreciação dos
diversos acontecimentos?
40
2
CALDEIRÃO:
A HISTÓRIA NA FICÇÃO
As coisas, eu sei, nunca se apresentam por igual.
Há sempre um lado escuro e outro claro.
O dia e uma noite no meio da gente.
O doce e o salgado. O bem e o mal.
A manhã e a tarde. A zoada e o silêncio.
Cláudio Aguiar
A geografia fantástica do Brasil, como do restante da
América, tem como fundamento, em grande parte,
as narrativas que os conquistadores ouviram ou
quiseram ouvir dos indígenas, e achou-se além
disso contaminada, desde cedo, por determinados
motivos que, sem grande exagero, se podem
considerar arquetípicos. E foi constantemente por
intermédio de tais motivos que se interpretam e,
muitas vezes, se “traduziram” os discursos dos
naturais da terra.
Sérgio Buarque de Holanda
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2.1. Cláudio Aguiar: entre a literatura e a crítica social
Cláudio Aguiar (1944) é cearense, porém, em 1962, radicou-se no Recife,
onde se matriculou no Ginásio Pernambucano. Formou-se pela Faculdade de
Direito do Recife (UFPE) e doutorou-se pela Universidade de Salamanca, Espanha.
Atuou como repórter em diversos jornais e foi colaborador literário do Jornal do
Commercio e do Diário de Pernambuco. Em 1994, pelo conjunto de sua obra foi
escolhido entre escritores latino-americanos, para receber na Espanha o prêmio-
homenagem, de caráter internacional, perante a Cátedra de Poética Fray Luís de
León, da Universidade Pontifícia de Salamanca, ocasião em que lhe foi outorgado o
título de honra pela mesma Universidade. Tal feito, rendeu-lhe um livro Viento del
Nordeste Homenaje internacional al escritor brasileño Cláudio Aguiar, conjunto de
breves ensaios acerca de sua vasta obra. Atualmente, Cláudio Aguiar é membro do
conselho editorial de Calibán, uma revista de cultura, publicada no Rio de Janeiro.
Suas principais obras são: Exercício para o Salto (contos, 1972), Flor
Destruída (teatro, 1976), Suplício de Frei Caneca (teatro, 1977), Caldeirão (romance,
1982), Antes que a Guerra Acabe (teatro, 1985), Lampião e os Meninos (novela,
1988), A Volta de Emanuel (romance, 1989), Os Espanhóis no Brasil (ensaio,1992),
Brincantes do Belo Monte (teatro, 1993), Os Anjos Vingadores (romance, 1994),
Somba, o Menino que não Devia Chorar (novela, 1995), A Corte Celestial (romance,
1996), Franklin Távora e o seu Tempo (biografia, 1997).
Como mencionamos, este trabalho é votado ao estudo de Caldeirão, a
obra mais conhecida de Cláudio Aguiar.
Antes de partirmos para a análise deste romance, faremos uma breve
resumo da história de Caldeirão.
No início do romance, aparece um presente central, que decorre na
madrugada de 12 para 13 de setembro de 1946, cuja ação tem lugar durante dez
horas, no velório de beato José Lourenço.
42
Será através de um interlocutor ‘doutor letrado’ que só se explicita como
tal no início da narração, que descobriremos que o que a história que será contada
é um “pedaço de conversa” de mestre Bernardino, curandeiro, guerreiro e “decurião”
do povo do Caldeirão. Nela, o narrador se propõe a contar “a verdadeira história dos
funestos acontecimentos d'A Santa Cruz do Deserto destruída violentamente pelas
armas militares e onde também são reveladas as feitorias do Beato José Lourenço”
(AGUIAR, 2005:3). Outros fatos também serão relatados. Ao narrar a história de
seu povo, Bernardino também apresenta a história, a religiosidade e os conflitos
vividos pelos primeiros habitantes da região, os índios Cariris.
O outro plano representado é o dos acontecimentos propriamente ditos,
seguindo a ordem cronológica.
Em Caldeirão encontramos uma história que se inicia em 1865, desenvolve-
se em 11 de setembro de 1936, dia em que a comunidade que dá nome ao romance
é ocupada e tem seu desenlace em maio de 1937, dia em que ocorre o ataque
aéreo que põe fim à comunidade.
A vida do principal representante do Caldeirão, o beato José Lourenço,
ganha destaque. Nascido em uma família pobre, ainda menino foge de casa por
medo da violência do pai. Passados alguns anos, arrependido, parte para Juazeiro
em busca da família e a encontra, após uma conversa com o Padre Cícero.
Instalando-se com a família e um grupo de romeiros em Baixa da Anta, sítio
de João de Brito, passaria a levar uma vida reta, sob a orientação de Padre Cícero.
Porém, em 1926, o poder político representado por Floro Bartolomeu, mandou
acabar com as práticas religiosas do local, segundo ele, repleta de perigosas
superstições, e prender o Beato José Lourenço. Na prisão, após dezessete dias sem
comer, o beato foi libertado, a pedido de Padre Cícero que, sabiamente, para evitar
problemas imediatos, o enviou com os romeiros para um lugar, na Serra do Araripe,
chamado Caldeirão.
Após a morte de Padre Cícero, o beato José Lourenço, naturalmente,
tornou-se o seu sucessor, aconselhando o povo. Muitos iam com intuito de pedir-lhe
conselhos e acabavam ficando definitivamente no Caldeirão.
Assim, a comunidade começou a ganhar boa fama e o progresso do lugar
começou a despertar inveja e receio nos coronéis vizinhos que começaram a perder
43
mão-de-obra. No romance de Cláudio Aguiar, o clero também se pronunciou de
maneira hostil sobre a religiosidade do lugar, alertando as autoridades civis sobre o
perigo subversivo que a comunidade representava.
Dessa forma, boatos maldosos sobre o Caldeirão começaram a surgir. Um
deles, foi acerca das relações de produção e de consumo. Foram vistas como
comunistas ou até de completa escravidão.
Outro boato foi 'espalhado' por Tião Grande, dono de casa de montaria
próspera em Juazeiro e freguês do Caldeirão, chegou mesmo a contar que ouvira
em uma feira no Crato que o beato se deliciava com as virgens da comunidade.
Com o propósito de dissolver a colônia por meios pacíficos, foram enviados
em 1935 membros da polícia, que aconselharam a cada um dos moradores da
comunidade a retornarem aos seus lugares de origem, pois o Estado não poderia
tolerar aquele agrupamento marginal. O povo se negou a sair e a solução
encontrada pelos militares, em setembro de 1936, foi destruir as casas e incendiar a
comunidade.
O Beato Lourenço e o povo do Caldeirão partiram para a Serra do Araripe e
construíram casas. Porém, sob a liderança de Severino Tavares, um grupo
resolveu partir para a resistência armada.
O Governo enviou tropas e fracassou. Entretanto, na segunda tentativa, o
destacamento veio não só por terra como pelo ar e assim pôs fim aos rebelados.
José Lourenço conseguiu refugiar-se em território pernambucano e se
instalou com algumas famílias. E ali faleceu aos 74 anos de peste bubônica.
Para se chegar à verdade dos fatos, tanto no jornalismo quanto na pesquisa
histórica, são buscadas as fontes primárias, ou seja, aquelas informações que
provêm diretamente dos personagens atuantes ou das testemunhas mais próximas.
Uma vez confirmada a sua autenticidade, elas quase sempre têm, por si, o poder de
estabelecer os fatos, separando-os do erro e da mentira. Cláudio Aguiar, em
Caldeirão, finge fazer isso.
Já na orelha do livro encontramos comentários sobre o processo de escritura
da ficção: o autor indica que o que será lido é 'um pedaço de conversa' entre um
repórter que, ao 'cobrir' o enterro do Beato José Lourenço, tentou saber mais sobre
a comunidade extinta. Para tanto, buscou junto a um remanescente da comunidade,
44
Mestre Bernardino, a 'verdadeira história' do Caldeirão. Na orelha da obra temos a
narração deste encontro:
De repente, entra no salão o repórter de um jornal da Capital
encarregado de cobrir o enterro do famoso beato José Lourenço,
líder do Caldeirão, [...]
Em vez de preocupar-se com o beato, inexplicavelmente, o repórter é
atraído pela estranha figura de um ancião chamado mestre
Bernardino que, com respeito, vela o morto. Como não encontra, até
então, quem lhe desse maiores informações sobre os
acontecimentos, indaga ao mestre: “Por favor, poderia me dizer
quem foi o beato Lourenço e qual o significado de Caldeirão?”
[...] o ancião [...] começa a falar. Parece transportado para um
mundo fora dali e a um outro tempo.
Vale ressaltar que esta nota explicativa apareceu na quarta edição de
Caldeirão, publicada em 2005 (em princípio, nesta dissertação não cotejaremos as
diversas versões pois a lição básica da crítica textual é tomar-se por definitiva a
última edição revista pelo autor). Chama-se de metaficção historiográfica este
processo iniciado na orelha e levado a cabo ao longo da obra que, ao buscar reviver
fatos, episódios e épocas passadas, tenta tornar o romance instrumento de
representação da realidade histórica. O romance deve então lançar luz, analisar
criticamente o fato histórico. Assim, Cláudio Aguiar aborda em seu livro fatos
ocorridos em passado recente o massacre da comunidade se deu em 1937
tendo a preocupação em não relegar a história a um mero pano de fundo
contextualizando a ação dos personagens.
Domingos Sávio de Almeida, em Memórias e narrações na construção de
um líder, escreve que Cláudio Aguiar, em seu “romance etnográfico”, baseou-se em
[...] narrações de um remanescente da “comunidade” chamado Mário
Bernadino. Conhecido por “velho Bernadino”, era um enfermeiro
idoso que trabalhou muito tempo num hospital em Recife
(J.B.M/m/reman./jul.-1983). Ele teria morado no sítio Baixa Dantas e
na “Sedição de Juazeiro” (1914) teria participado como enfermeiro
das tropas de Juazeiro. No Caldeirão, aplicava, no tratamento de
doentes, procedimentos ambulatoriais, um vasto conhecimento em
plantas úteis e rezas como meio de cura (CORDEIRO, 2001:59).
Domingos Sávio observa também que o “velho Bernadino” foi um
personagem importante na trajetória de José Lourenço. Ele participou como “doutor
45
raiz” em todas as comunidades do beato” (op.cit.p.27).
Desde a infância, o autor de Caldeirão ouvia seu pai, camponês da Serra da
Ibiapaba, falar sobre o Padre Cícero, a beata Mocinha, o beato Lourenço e a
história do Caldeirão. Porém, a primeira vez que leu sobre o tema foi em 1972, em
um ensaio de Rui Facó, Cangaceiros e Fanáticos, no qual também são estudados os
acontecimentos do Caldeirão. Stella Leonardos, para o Jornal de Letras, de janeiro
de 1982, escreveu uma matéria intitulada “Em romance a vida do beato José
Lourenço a luta dos fanáticos do Caldeirão deu matéria de ficção para Cláudio
Aguiar”, que traz esta explicação da origem do interesse de Cláudio Aguiar pelo
tema em questão. Neste texto a jornalista transcreve um comentário de Cláudio
Aguiar onde o autor discute a diferença entre o ensaio historiográfico e a ficção
histórica:
Em princípio pensei muito nesta questão. Mas acontece que não me
satisfazia tratar este tema cientificamente, mas artisticamente. O
ensaio, com a preocupação do dado histórico, fiel à pesquisa
científica, tem a desvantagem de limitar o acontecimento. Enquanto
que o tratamento artístico, inversamente, implica em se procurar
dizer o que deveria ter sido, sem, naturalmente, se cair no lado
oposto da questão: a mentira, a desonestidade. No romance, na
medida em que me foi possível, conservei até certos episódios na
integridade dos fatos. Depois, é preciso ter em mira aquela verdade
que tão bem anuncia o romancista João Felício dos Santos, quando
ele diz que o tempo, a História vai se gastando e termina virando
ficção, ao passo que a lenda, por ter em si a força e o colorido,
cresce tanto que vira realidade.
O romancista, ao ficcionalizar temas históricos controversos, tem diante de si
amplo leque de opções para explorar as diversas possibilidades oferecidas à ficção.
Poderia mesmo resultar desse tratamento artístico do material histórico uma
contribuição à ciência historiográfica, aqui entendida como a análise crítica da
produção histórica. Esta contribuição consistiria em sugerir aos historiadores novas
possibilidades de investigação sobre temas polêmicos, onde é difícil algum
consenso. Ao propor ao historiador novas hipóteses e rotas alternativas de
investigação que lhes escaparam, o autor criticaria a pesquisa histórica realizada
sobre o tema, que teria ignorado uma linha de investigação supostamente válida.
Assim, a criatividade do autor serviria ao historiador ao imaginar o que poderia ter
sido.
46
Entretanto, Cláudio Aguiar afirma acima que o tratamento artístico visa
narrar o que deveria ter sido, sem naturalmente, se cair no lado oposto da questão,
a mentira, a desonestidade”. É a estranha conciliação do que foi com o que deveria
ter sido. Esta contradição se resolveria, e se evitaria a mentira e a desonestidade, se
ficasse claro que o que se narra na obra é a ficcionalização do que o autor gostaria
que se tivesse passado. Para não se constituir em revisionismo histórico, ele deveria
evitar assuntos controvertidos e tratar de temas conhecidos de todos. Mas o próprio
Bernardino, o narrador fictício de Caldeirão, acalma a consciência por outros meios,
valendo-se da crença de que, às vezes, os fins justificam os meios:
Por que não afinar a vontade dos demais na soma dos sofrimentos
desse povo que precisa de santos e heróis para guardar suas
esperanças? Por isso, padre Cícero, ainda hoje, está aqui e a gente
não se cansa de narrar fatos que, mesmo não sendo de verdade
provada nos floreios dos registros documentários, servem para
diminuir nossas faltas. (AGUIAR, 2005: 84)
Como Bernardino, Cláudio Aguiar aposta no desgaste da História em favor
da ficção: “a História vai se gastando e termina virando ficção, ao passo que a lenda,
por ter em si a força e o colorido, cresce tanto que vira realidade”. Ao invés de
meramente adotar uma postura historiográfica crítica da história oficial, o autor se
constitui em historiador, que sua ficção se tornará realidade, por ter em si “força e
colorido”. Veremos que Caldeirão, longe de confrontar possibilidades, apresenta
uma versão dos eventos ocorridos que se pretende verdadeira, que, supostamente,
se contrapõe à da história oficial e que idealmente deverá substituí-la no imaginário
das pessoas (e assim a “lenda cresce tanto que vira realidade”).
Observa-se que essa contraposição à história oficial é meramente suposta
porque não se sabe quem chancelou uma versão oficial da história do Caldeirão à
qual caberia criticar por sua parcialidade (a tendência da historiografia moderna,
influenciada pelo marxismo e pela Nova História, é, ao contrário, em se constituir em
um certo tipo de discurso dos oprimidos, dando voz aos ditos excluídos). Entretanto,
como vimos acima, é característico do novo romance histórico latino-americano
colocar-se como alternativa à história oficial, supostamente endossada pela classe
dominante. A nosso ver, esta atitude serve a dois propósitos: dar credibilidade à
narrativa, ao se valer da desconfiança nutrida por qualquer versão que carregue a
47
pecha de oficial, e veicular uma certa visão de mundo, típica deste “novo romance
histórico latino-americano”. Tal visão de mundo não é posta como possibilidade, mas
tida por evidente. E a sua evidência provém, paradoxalmente, de sua elevada carga
ideológica.
Devemos então aqui comprovar que, conforme os cânones do novo romance
histórico latino-americano, Cláudio Aguiar tenta colocar a ficção como história
verdadeira em Caldeirão, visto que, ao analisarmos certos recursos ficcionais
utilizados (como tomar por narrador uma testemunha dos eventos dando ao livro o
caráter pseudo-memorialístico, portanto de documento), observamos que estes
visam conferir verossimilhança à história narrada (tais recursos serão analisados
posteriormente no capítulo referente à narração). Neste capítulo nos deteremos na
versão da história apresentada em Caldeirão, atentando às razões pelas quais ela
se põe como crítica e verdadeira.
Em “Caldeirão, messianismo e luta pela terra”, artigo publicado na revista
Continente – multicultural, em julho de 2001, encontramos um Cláudio Aguiar menos
lírico. Neste texto, o autor critica a freqüente postura dos historiadores de apresentar
a história sob a perspectiva dos dominadores ou vencedores. Ele afirma que “existe
uma “História” a partir da visão dos vencidos que precisa ser contada”. Para Aguiar,
a história do Caldeirão poderia ser intitulada de “A luta pela a terra”, pois ali, como
em outros casos, incidiu-se no erro de tratar os conflitos como caso de polícia e não
como o que realmente são: uma questão social. No decorrer do seu texto, o autor
faz um panorama dessas questões, desde os irmãos Graco e sua primeira tentativa
de realizar a tão sonhada Reforma Agrária na Roma antiga, passando por Palmares,
até os massacres sofridos pelos membros do MST, o Movimento dos Sem-Terra.
Segundo ele, todos foram dizimados pela violência institucional. Temos assim
confirmada pelo próprio autor a nossa hipótese sobre o estatuto da História em
Caldeirão.
Gavilanes Laso (1995) afirmou que Caldeirão é, ao mesmo tempo,
documento, compromisso e ficção:
Documento, porque investiga y de esa investigación extráese que ha
habido una difamación de unas personas y desvirtualización de unos
hechos realmente sucedidos. Compromisso de parte de la dignidad
humana frente a las instancias que la atacan y envilecen. Y ficción,
48
porque el escritor va más allá del hecho referencial y trata el asunto
artísticamente. Imagina, inventa, altera nombres (al real teniente
Cordero lo convierte en Lobón), traduce plasmando lo que podría
haber sido, sin caer en la tergiversación, es decir, en la mentira, ni
tampoco en la mitificación glorificadora (LASO, 1995: 65).
Como diz Gavilanes Laso, em Caldeirão, os personagens históricos são
ficcionalizados e protagonizam a obra. Alguns de seus nomes, antes, haviam sido
modificados: o coronel Cordeiro Neto, ironicamente, passou a ser Coronel Lobão e o
capitão Bezerra tornou-se Capitão Tourinho no romance. Outro ponto levantado por
Gavilanes Laso é o tratamento dado aos personagens históricos que, segundo ele,
evita tanto a mistificação quanto a difamação. Assim Cláudio Aguiar fugiria dos
maniqueísmos fáceis.
No texto do ensaísta espanhol se reconhece uma aproximação com o
poético no texto de Cláudio Aguiar: a história se humaniza nos episódios do
romance, adquirindo nuances que seriam imperceptíveis na leitura de documentos
ou de textos oficiais. De fato, logo no início do romance, lemos a seguinte
passagem: “nada aumentarei ou diminuirei, porque, se assim não proceder, o senhor
pode crer, o beato, ali mesmo morto no caixão, será capaz de levantar-se e me
mostrar a retidão dos fatos” (AGUIAR, 2005:18).
Como podemos observar, a interpretação do romance Caldeirão, de Cláudio
Aguiar, situa-se num território de fronteiras arbitrárias. Ao movê-las, elas tanto
podem esclarecer esses transcursos quanto tornar mais obscuros os limites entre a
história e a literatura. Tal história, recriada pela arte, tem a capacidade de tornar os
leitores solidários do que foi, insinuando, a um tempo, a cumplicidade com o que
poderia ter sido, na concepção do autor. A história é quase mais um personagem da
obra: o enredo algo trágico, articulado pelo escritor, confere à narração um caráter
peculiar, que, aparentemente, buscou transcender a limitação histórica e ultrapassar
a conotação de romance histórico, faz-nos, num primeiro momento cogitar na
possibilidade de atribuir um sentido além do ficcional ao seu texto. Porém, num
primeiro momento, pois sabemos que devemos observar o romance como o propõe
o novo romance histórico, não como história e sim como uma interpretação “crítica”
que não tem compromisso com a veracidade histórica.
Para tanto, se faz necessário determinar, no romance, aqueles elementos
49
propriamente críticos que traem a visão particular do autor sobre o tema. Porém, é
difícil, para nós, balizar os limites que separam a ficção do fato histórico e discernir o
que é história oficial do que é versão na narração de Cláudio Aguiar dos episódios
ocorridos no Caldeirão. Os eventos são controversos até hoje. Por exemplo, acerca
do número de mortos, o escritor e participante do Grupo Clã, Eduardo Campos, em
seu ensaio “Caldeirão: subsídios à redefinição de sua história”, observa que os
desencontros de informação acerca do assunto são muitos, que uns afirmam que
morreram 200, outros chegam a dizer que as vítimas foram mais de 1000. Os
sobreviventes também não conseguiam dar informações precisas acerca do
episódio. Eduardo Campos cita o sociólogo e professor Diatahy Bezerra de Menezes
que, segundo registrou o repórter Tarcísio Holanda, “confessava que depois de
cinco anos de pesquisa (sobre o Caldeirão) sentia-se “desolado” em razão de os
sobreviventes não saberem “transmitir com fidelidade” informações sobre os fatos
“em face dos poucos conhecimentos de que são dotados” (CAMPOS, 1999: 32).
Eduardo Campos corrobora esta opinião e a complementa afirmando que,
geralmente são confusos e quase sempre exagerados os relatos destes
remanescentes. Cordeiro (2001) não apresenta nenhum depoimento de
remanescente que afirme ter ocorrido uma chacina quer na invasão da polícia quer
no bombardeio da serra do Araripe. Os únicos mortos registrados pelos
remanescentes tombaram no combate que se seguiu a uma emboscada de alguns
membros do Caldeirão a um destacamento da polícia. Na ocasião morreram quatro
policiais e quatro camponeses. A chacina aparece nos depoimentos colhidos de
contemporâneos, que não são fontes primárias.
Vemo-nos, assim, diante da impossibilidade de comparar a versão de
Cláudio Aguiar sobre os eventos passados no Caldeirão com qualquer outra versão,
porque esta não existe. Diante desse impasse, nos restaria apenas tentar verificar
nos aspectos puramente ficcionais a existência de uma certa parcialidade que
caracterizaria a ação do ponto de vista do autor na construção de uma versão que
lhe convenha (isto será feito no próximo capítulo, que estudará a narração em
Caldeirão).
Existe, porém, alternativa à análise puramente ficcional da questão da
verdade acerca da história narrada em Caldeirão. Exploraremos a seguir esta
50
alternativa e coligiremos fortes indícios de ser Caldeirão versão parcial dos fatos
narrados. Para tanto, prosseguiremos nosso estudo do caráter da história em
Caldeirão, verificando se ela é alternativa legítima à história oficial não em toda a
obra, mas apenas nas partes que abordam temas exaustivamente estudados na dita
“história oficial”. Assim, nos deteremos em trechos do romance que tratam da
questão do índio e da “trilogia do mal”.
2.2 – Governo, Militares e Igreja: a “Trilogia do Mal” em Caldeirão
Do que eu aprendi, após anos de vida no Caldeirão, trabalhando,
sofrendo e rezando com o povo de lá, restou a confirmação de
que os suspiros dos selvagens ainda não se desfizeram. Eles se
movem nos olhares inquietos e suspeitos de milhares de homens
que teimam em não se entregar à morte antecipada, porque
precisam viver. Nós queremos continuar a luta dos antigos. Ela não
terminou com a destruição do Caldeirão, porque a madeira da santa
cruz do deserto ainda indica para os lados o caminho reto do
trabalho, e para as alturas celestiais os sonhos do seu povo
(AGUIAR, 2005: 17).
Assim, Cláudio Aguiar criou em Caldeirão uma 'trilogia do mal', inimiga não
do índio, 'os primeiros habitantes', como também do povo do Caldeirão. Essa
'trilogia do mal' seria composta pelo clero, pelos latifundiários e fazendeiros. A partir
dela se estruturaria então uma crítica que explica as mazelas dos excluídos, via
algum tipo de teoria da exploração (Padron). Como vimos anteriormente, Padron
(1993) destaca que este tipo de abordagem crítica da questão fundiária foi muito
explorada nos romances hispano-americanos. No Brasil, entretanto, esta crítica, não
teve muito destaque. Porém, observaremos, a seguir, que Cláudio Aguiar,
conhecedor da obra crítica de Padron, vale-se desta fórmula em Caldeirão. Para
isto, lançamos mão de textos críticos diversos.
O primeiro deles é de Peñate Rivero, ensaísta que tomou como obra de
referência Brincantes do Belo Monte, texto dramático acerca do massacre ocorrido
em Canudos, publicado em 1993, e observou que o autor de Caldeirão especial
relevo à estrutura do poder, composta pela Igreja, os coronéis (o poder civil), os
militares na arbitrariedade da imposição dos seus interesses. Imposição que
significa também a destruição da forma de vida e valores do povo. De fato, em
51
Caldeirão o problema da catequese do índio vem agravado pelo surgimento de
estruturas de poder que se articulam em torno dos grandes latifundiários, dos
coronéis, e dos militares, representantes do poder central. Cláudio Aguiar sugere a
importância destas estruturas de poder, responsabilizando-as por um sem número
de arbitrariedades.
Peñate Rivero (1995) completa afirmando que Cláudio Aguiar, em sua obra,
mostra a vigência atual dessa problemática testemunhada pela história, que
questiona as estruturas sociais e de pensamento hoje existentes. Fica-nos então a
seguinte pergunta: esta abordagem crítica de Cláudio Aguiar, comum em obras
latino-americanas com esta temática, é universalmente empregada ou faz parte de
uma cosmovisão particular? Se esta crítica é lugar-comum na historiografia, então
temos a história como mero pano de fundo no romance. Se ajuda a compor uma
versão, vemos no romance de Cláudio Aguiar aspectos que o enquadram no
paradigma do novo romance histórico latino-americano.
Como sabemos, muito foi escrito sobre o processo de colonização da
América Latina, inclusive do Brasil. É vasta a literatura sobre os homens que
embarcaram nas caravelas e fizeram a travessia do Atlântico em busca de riquezas
e sobre os jesuítas que buscavam catequizar seus habitantes. Esses escritos,
discursos fundadores, funcionam como referência básica em seu imaginário
constitutivo das nações que desde então se constituíram. Tudo que se escreveu
sobre a América a hoje, seja documental ou fictício, tem como marca específica a
predominância da imaginação. Nos primeiros documentos, esta marca revela-se
devido ao fato de que os primeiros homens a pisarem no nosso continente traziam já
uma expectativa errônea de visão de paraíso nascida na imaginação humana desde
a narrativa bíblica.
Errônea porque, se a paisagem tropical reverberava reflexos do Paraíso,
nem por isso os indígenas, marcados pela idolatria e pela antropofagia,
manifestavam a inocência de Adão e Eva, como julgava Pero Vaz de Caminha na
sua carta.
Na Idade Média, muitos acreditavam que existia um lugar distante em que se
vivia em perfeita harmonia. Por causa do Pecado Original, a maioria da população
estaria excluída deste paraíso terrestre. Os primeiros desbravadores assimilaram em
52
vários dos seus escritos a América a este paraíso mítico. Na imaginação de muitos
surgiu a possibilidade de uma volta à Idade de Ouro. Segundo Pipes (1999),
[...] as primeiras impressões (de Colombo e Américo Vespúcio, por
exemplo) deram o tom de toda a literatura utópica dos quinhentos
anos seguintes, parecendo que o homem imperfeito poderia atingir a
perfeição se adotasse os caminhos do 'bom selvagem'”, ou seja, se
desconhecessem a vergonha e a propriedade (PIPES,1999:41).
(O termo “bom selvagem” surgiu muito antes de Rousseau, porém, foi no seu texto
Discurso da desigualdade, mais de dois séculos depois, que ele ganhou força).
Em Caldeirão, Cláudio Aguiar ao lutar contra o que ele diz ser a história
oficial, na verdade, reverbera essa visão idílica do nativo, velha de 500 anos.
Ramos (1995) observa que encontramos em Caldeirão dois espaços. O
primeiro é o da comunidade do Caldeirão que é o espaço da espiritualidade, da
liberdade, da caridade e da solidariedade. o segundo espaço é o da colonização,
segundo o ensaísta, explicitamente tematizada, da opressão e do lado sujo da
realidade. Ramos observa que “en Caldeirão, no hay leyes, no hay propiedad como
tal (como origen de opresión, sino posesión, usufructo; no hay autoridades ni
diferencias sociales. Caldeirão es, además, el espacio de lo maravilhoso y, por ende,
del milagro” (RAMOS, 1995: 71).
Nós, até certo ponto concordamos com o crítico. Porém, quando este
observa a ausência de leis na comunidade, vemo-nos na obrigação de citarmos uma
das mais belas passagens do romance que põe esta idéia abaixo:
As pessoas que formavam a embaixada do Rio Grande do Norte logo
se apresentaram. Vinham com recomendação.[...] Quando o Beato
entrou para descansar, Zaías, o encarregado de zelar pela ordem do
lugar, falou sobre o tipo de vida, os costumes que cada um teria de
adotar dali para frente. Ninguém era obrigado a ficar, mas se iam
morar, que obedecessem às regras reinantes” (AGUIAR, 2005:181).
Logo no início de Caldeirão, encontramos Bernardino narrando a história dos
índios Cariris nos seus primeiros contatos com o branco:
Os Cariris donos do Céu, do Sol, da Terra, dos Ventos, dos Rios,
dos Espantos e das Festas nas Caatingas de repente ouviram as
recomendações de homens de cabeças santas e de vestes sagradas
pela sabedoria divina:
53
- Deus está em toda parte.
Nos currais livres dos campos do vale, os índios se convenceram de
que o onipotente Badzé dominava todos os lugares. Então os santos
padres das missões ouviram a voz de fortes espíritos selvagens:
Para que nos levar a outras ribeiras? Estas, onde estamos, não são
também de El-Rei? Se é para nos fazer filhos de Deus, para que
sairmos daqui se Ele está em toda parte?
Encrespou-se o tempo nos vagidos dos bois sonolentos. O dia foi
curto para sentir o malogro das idéias. Quem não se atreveria a
alvejar aqueles avoengos vultos, caga-fogos ardentes de veredas
sombreadas? Quem ousaria dizer lorotas desconcertantes, enganos
leves, embriagadores, por via de palavras desnecessárias?
(AGUIAR, 2005:16).
Assim, ao relatar a conquista da sua região, o narrador busca desfazer a
imagem freqüente que, segundo ele, vigorava na época da colonização brasileira: a
de que a luta entre portugueses e indígenas era uma luta entre Deus e o Diabo.
Acaba, enfim, por inverter os papéis, satanizando os primeiros, beatificando os
últimos e realizando o seu acerto de contas com a dominação colonial.
Gilberto Freire, publicado em 1933, foi muito esclarecedor quanto à
catequese dos índios na época do descobrimento do Brasil. Segundo ele, um dos
mecanismos utilizados foi tornar o culumim “cúmplice do invasor”, fazendo com que
ele repudiasse sua cultura e assimilasse os padrões da superior moral católica:
Longe dos padres quererem a destruição da raça indígena: queriam
era vê-la aos pés do Senhor, domesticada para Jesus. O que não era
possível sem antes quebrar-se na cultural moral dos selvagens a sua
vértebra e na material tudo o que estivesse impregnado de crenças e
tabus difíceis de assimilar ao sistema católico (FREIRE, 2002: 279).
Como podemos ver, a violência tão divulgada não foi tão violenta assim,
afinal de contas, completa o escritor pernambucano, “a posse do culumim significava
a conservação, tanto quanto possível, da raça indígena sem a preservação de sua
cultura”. Pois, como sabemos, dentro do imaginário cristão, os esforços de
colonização eram compreendidos como uma etapa necessária para atingir o juízo
final. O plano dos desígnios divinos, apresentado na Bíblia, projetado para o
apocalipse, prega a uniformização religiosa universal. A catequização dos povos de
outros continentes era um dos requisitos para viabilizar o fim dos tempos e a
redenção.
Longe de se contrapor a toda corrente de pesquisa histórica, em Caldeirão
54
Cláudio Aguiar cerra fileiras com uma das tendências da historiografia
contemporânea, especialmente forte na América Latina, de vezo Marxista e herdeira
direta da tradição Rousseauniana. Estes epígonos de Rousseau idealizam a vida em
pindorama antes do achamento, tomando por preconceituosos os parâmetros de
compreensão que encaravam como desvios as práticas indígenas. Para tanto se
valem de uma abordagem historiográfica marcada pelo relativismo cultural, que
adquire caráter de princípio ontológico, perdendo sua função metodológica original.
Temos, então, Florestan Fernandes, que ao dissertar sobre a realidade
indígena colonial, centrada na tribo tupi, afirma que os índios conviviam
ordenadamente, seguindo um princípio estável da solidariedade, e adotando regras
de educação que defendem o respeito. Viviam com um padrão rígido de equilíbrio
interno. Em suma: para Florestan os colonizadores tiveram efeitos desintegradores,
que atingiram o cerne desse suposto equilíbrio. Pois assim descreve o historiador:
O anseio de 'submeter' o indígena passou a ser o elemento central
da ideologia dominante no mundo colonial lusitano (...) Tomar-lhes as
terras, fossem 'aliados' ou inimigos'; convertê-los à escravidão, para
dispor ad libitum de suas pessoas, de coisas e de suas mulheres;
tratá-los literalmente como seres sub-humanos e negociá-los
(FERNANDES, 2000: 83).
Como contraponto, lembramos o conteúdo da primeira Carta de Pero Vaz de
Caminha, em que seu autor, após descrever a beleza da terra descoberta, conclui
que “o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que salvar essa gente”. Ou
seja, o fruto que se propõe nela plantar é a catequese. Acerca da intenção inicial e
do “fruto” colhido, Orlandi (1993) lança uma questão: “o que eles constroem? São
espaços da identidade histórica: é memória temporalizada, que se apresenta como
institucional, legítima” (ORLANDI, 1993:13).
O que caracteriza o colonizador como fundador é que ele cria uma nova
tradição, ele re-significa o que veio antes e institui uma memória outra. Esse
processo de instalação do discurso fundador se apoia no discurso instalado e a
partir de 'retalhos', instala um novo discurso.
Um exemplo disto é o texto de Caldeirão. Cláudio Aguiar pretende agir como
um etnólogo. Ao narrar a história do Caldeirão, seu narrador crê na importância de
“gotejar pingos de esclarecimentos sobre a origem do Vale do Cariri e o que os
55
selvagens perderam para os senhores brancos da Casa-da-Torre-da-Bahia”. Nesta
narração, observamos a sua proximidade com a história do descobrimento do Brasil,
com a própria história do Caldeirão e com o sofrimento de outros povos colonizados.
Bernardino, ao narrar a criação do mundo, diz: “tudo começou quando ele fez uma
narrativa misteriosa, terrivelmente parecida com a que mais tarde irei contar ao
senhor”, ou seja,
Eram senhores de perneiras longas decididos a andar por estradras
ocupadas pelas traições e violências, país acima, país abaixo.
Todos, subindo e descendo, levando o lucro dos que honram a
bondade do sol com a pele na quentura jorrosa de lágrimas do
trabalho (AGUIAR, 2005:15)
[...]
Do que eu aprendi, após anos de vida no Caldeirão, trabalhando,
sofrendo e rezando com o povo de lá, restou a confirmação de
que os suspiros dos selvagens ainda não se desfizeram. Eles se
movem nos olhares inquietos e suspeitos de milhares de homens
que teimam em não se entregar à morte antecipada, porque
precisam. Nós queremos continuar a luta dos antigos. Ela não
terminou com a destruição do Caldeirão, porque a madeira da santa
cruz do deserto ainda indica para os lados o caminho reto do
trabalho, e para as alturas celestiais os sonhos do seu povo
(op.cit., p.17).
Ainda a respeito do fruto da colonização, a conversão dos povos indígenas,
Câmara Cascudo (2002) observou a maneira como foi feita a catequização dos
índios cariris e conclui que ela foi bem diferente da realizada na época do
descobrimento do Brasil:
A conquista do território foi uma sucessão de guerrilhas.
[...]
No litoral, praias imensas e brancas, com recursos limitados para a
fixação demográfica, viviam os Tupis, vindos do Sul, fazendo recuar
para o interior os Cariris. Esses, retraídos, refratários ao contato da
violência lusitana, aliada ao inimigo racial, foram desaparecendo, em
guerrilhas ininterruptas, exaustão, diluídos na raça povoadora.
[...]
Os Cariris, evaporados no cadinho bárbaro onde a raça se formou,
não foram estudados como tinham sido Tupis litorâneos. Nem a
catequese se fez como nos tempos evangélicos de Nóbrega e
Anchieta. Ao padre acompanhava o sesmeiro, capitão-mor da ribeira,
com sua escolta de bacamartes e sua tropa de flecheiros. A guerra
ao índio era um estado normal, a suprema razão para a petição da
terra (CASCUDO, 2002: 24).
56
Pereira (2000) informa-nos também que, até cerca de 50 anos antes da
chegada do colonizador, uma verdadeira guerra de extermínio foi empreendida pelos
tupis contra os antigos habitantes do litoral brasileiro, de sul a norte. Estes eram os
odiados tapuias, ou seja, índios cujo idioma não pertence ao tronco tupi-guarani. A
ocupação do litoral pelos tupis beneficiou os portugueses, que assim, onde quer que
aportassem, tratavam com índios, falando algum dialeto de um mesmo idioma.
para a sua infelicidade, os cariris eram tapuias e, portanto, tiveram de se haver com
o ódio dos tupis, inimigos ainda mais formidáveis, que apoiados pelo português
colonizador. Daí a diferença no tratamento por eles recebido quando submetidos
pelo inimigo ancestral a soldo do europeu. Acerca disso, Cláudio Aguiar lamenta em
Caldeirão:
Os Cariris, gente de passos livres sobre a terra, pisaram cautelosos.
O fogo rondava os seus corpos. os mortos ouviam o canto de
Badzé, mestre da Ordem, da Guerra, Pai dos Rumos e dos
Esconderijos sem Veredas. Os vivos escutavam o ronco das
labaredas voadoras contra suas costas puladas, antecipando o
cheiro do metal sonante dos senhores novos, ganhadores das
ribeiras e dos vales (AGUIAR, 2005:17).
Nota-se, assim, em Caldeirão, uma certa idealização do modo de vida e do
caráter dos povos ditos primitivos. O fato é que até onde se sabe, nunca existiu
paraíso na terra, sem propriedade, nem violência. Assim temos em Pipes (1999),
citando E. Adamson Hoebel, uma descrição da posse entre os povos primitivos:
A propriedade é uma característica universal da cultura humana. A
terra na qual o grupo social está assentado, da qual ele tira o seu
sustento, as feras que perambulam selvagemente por ela, os animais
mansos que nela pastam, as árvores e as colheitas, as casas
erguidas pelos homens, as roupas que usam, as canções que
cantam, as danças que executam, os cânticos que entoam, estes e
muito mais são objetos de propriedade. Tudo o que conta para a
manutenção da vida, ou do valor, o homem tende a trazer para o
domínio da propriedade. Isto porque a propriedade é ubíqua como o
homem, uma parte da estrutura básica de toda sociedade (PIPES,
1999: 103).
a violência, como a propriedade, é onipresente mesmo entre os
primitivos, como vimos acima na descrição das guerras travadas pelos tupis. Acerca
disto, é interessante comparar os tupis, pretéritos algozes dos Cariris, com os tão
difamados portugueses. Segundo Pereira (2000) os povos tupi-guarani descendem
57
de uma única nação que habitava as margens do lago Titicaca, na Bolívia. De
buscaram outras paragens, expulsos pelos incas e, segundo Le Goff (1990)
compelidos pela ânsia de encontrar o paraíso na terra, pois
Acreditam na existência de uma alma Terra sem mal”, a “Terra da
imortalidade e do repouso eterno”, situada “do outro lado do Oceano
ou no centro da terra”, na Ilha dos Bem-aventurados, o Paraíso do
mito original: o atual mundo impuro e decadente vai desaparecer
numa catástrofe; só a “Terra sem Mal” será. Os homens devem, pois,
tentar alcançá-la antes da última catástrofe. Daí a razão das
migrações dos Guarani, desde séculos, em busca da ilha
fabulosa.
Métraux (1957) refere um jesuíta do século XVII, a propósito de uma
etnia Guarani, os Tupinambá: “Os “chamans” persuadem os índios a
não trabalhar, a não ir para os campos, prometendo-lhes que as
sementeiras crescerão por si, que a comida, ainda que escassa,
encherá as suas cabanas e que as enxadas trabalharão sozinhas a
terra, que as flechas caçarão para os seus donos e capturarão
inúmeros inimigos. Predizem que os velhos se tornarão jovens”
(citado em Eliade, 1969). Mircea Eliade comenta este: “Reconhece-
se a síndrome da Idade de Ouro” (ibid.). Sublinha igualmente que
este paraíso da Idade do Ouro é o do princípio dos tempos: “O
paraíso representa, dos Índios Tupi-Guarani, o mundo perfeito e puro
do 'princípio', quando foi acabado pelo criador e onde os
antepassados das tribos atuais viviam na vizinhança de deuses e
heróis” (ibid.). E ainda: “O paraíso que procuram é o mundo
restaurado na sua beleza e glória iniciais” (ibid.) (LE GOFF, 1990:
285-286).
Assim, segundo Le Goff, citando Eliade, os guaranis, conquanto “comunistas
primitivos”, se viam num mundo impuro e decadente e ansiavam por retornar a Idade
de Ouro, i.e., “o mundo perfeito e puro do princípio”. E estranhamente os
Tupinambás, a maior das nações tupis conforme Pereira (2000), é relegada à
condição de etnia guarani no texto acima.
Observando os movimentos messiânicos em tribos primitivas no Brasil,
Queiroz corrobora Le Goff, pois, descrevendo os portugueses recém chegados ao
Brasil, encontraram os tupi-guaranis
[...] que pareciam recentemente instalados na região: conheciam
muito pouco da arte de navegação e quase não utilizavam produtos
marítimos, sua alimentação baseando-se primordialmente na caça e
nos produtos agrícolas. Kurt NIMUEENDAJU levantou, pois, a
hipótese de que este povoamento teria sido o resultado de uma
grande migração religiosa na direção de leste, em busca da Terra
sem Males, levando tribos do interior até a beira-mar. Servia de base
à hipótese a constatação de existirem entre estes índios, tanto na
58
mitologia, quanto em sua estrutura social, elementos que permitiam e
podiam mesmo suscitar a realização de movimentos messiânicos
(QUEIROZ, 1976:165).
Ainda sobre a efervescência religiosa em tribos tupi-guaranis na época da
colonização, Queiroz observa que grande número de jesuítas tais como José de
Anchieta, Pero Correia e João Azpilcueta afirmaram que
[...] profetas indígenas iam de aldeia em aldeia apresentando-se com
a reencarnação de heróis tribais, incitando os índios a abandonar o
trabalho e a dançar, pois osnovos tempos”, que instalariam na terra
uma espécie de Idade de Ouro, estavam para chegar (IDEM,1976:
165).
Esses movimentos em busca de um paraíso nativo, que foram registrados,
com dissemos, por cronistas e jesuítas, foram designados, mais tarde, como
messiânicos ou quase messiânicos. Eis alguns exemplos citados por Queiroz:
O primeiro parece datar de 1539, segundo refere Alfred MÉTRAUX,
que o encontrou em vários documentos e relatado especialmente por
Gandavo. Sob a orientação do feiticeiro Viaruzu, partira grande
quantidade de tupis das costas brasileiras; dez anos depois
chegavam os trezentos restantes à aldeia de Chachapoyas, no Peru,
onde despertaram muita curiosidade. Embora certos cronistas
invocassem o desejo de aventuras e de guerras dos tupinambás para
explicar o movimento, Gandavo, que conhecia muito bem a
mentalidade desses índios, afirma que tinham para encontrar a terra
“da imortalidade e do descanso eterno”.
[...]
Por volta de 1600, tupinambás migraram “em três tropas, em busca
do Paraíso terreal (coisa de bárbaros) rompendo e conquistando
terras”, e depois de muito caminhar acabaram instalando-se na ilha
de Tupinambarana. A peregrinação tinha-os levado a atravessar o
Brasil em sua maoir largura, até o sopé dos Andes; encontraram
os espanhóis, retrocederam e acabaram por se estabelecer na
referida ilha, na confluência do Madeira com o Amazonas, em 1684.
a citação de Maurício de HERIARTE mostra que se tratava também
de uma busca da Terra sem Males, e não de simples fuga diante da
penetração portuguesa em seus territórios (idem, 1976:166).
Continuando o paralelo entre os portugueses e os índios tupi-guarani, nos
apoiamos em Pereira (2000) que no seu estudo citado acima nos informa que os
tupis deixaram os altiplanos da Bolívia em passado relativamente recente, em cerca
de 1300 da era cristã. Para infelicidade dos autóctones, os Guaranis invadiram o
59
Paraguai e o sul do Brasil. os tupis adentraram nosso país pela Amazônia.
Seguindo o curso dos rios chegaram ao nosso litoral, que conquistaram de norte a
sul, expulsando os nativos para o interior. Verdadeiros colonizadores, estes
conquistadores consolidaram seu empreendimento entre 1400 e 1450, quando os
invasores tupi, pelo norte e guarani, pelo sul, se encontraram perto do rio Tietê em
São Paulo. Para os primitivos habitantes do Brasil esta junção foi como o cerrar de
uma gigantesca mandíbula. Pobres dos Cariris.
Nesse sentido, em uma nota de rodapé, Queiroz (1976), ainda acerca da
chegada dos tupi-guaranis, observa que
Anchieta é de opinião que primeiramente os tapuias teriam povoado
a costa baiana e que depois teriam “se recolhido” para os matos,
provavelmente em conseqüência do avanço tupi-guarani
(ANCHIETA, 1933, pag. 302). segundo MÉTRAUX, várias dessas
tribos tapuias foram desalojadas pelos tupinas; em seguida os
tupinambás afugentaram os tupinas e prosseguiram pela costa em
demanda do sul (MÉTRAUX, 1927, págs. 5, 8; 1950, pág. 342)
(QUEIROZ, 1976: 164-165).
Todo esforço conquistador ou colonizador requer algum tipo de assimilação
do vencido pelo vencedor. Como vimos acima, Scott nos diz em Ivanhoé que saxões
e normandos findaram por viver em paz e mesclar as raças e culturas. Constituíram
assim uma grande nação, nem normanda nem saxônia, mas genuinamente inglesa.
Os portugueses adotaram solução parecida e o Brasil é o resultado deste processo.
os gentios tupis, segundo Pereira (2000), no que é corroborado por diversos
cronistas e historiadores, eram adeptos de uma assimilação mais direta, de cunho
nitidamente antropofágico.
A função dos índios na composição de Caldeirão parece ser então conferir
veracidade ao caráter idílico atribuído pelo narrador à vida na comunidade do beato
José Lourenço. Para tornar crível a realização da utopia, faz-se necessário remetê-la
a um passado do qual ela seja avatar. A mitologia disponível ao escritor
contemporâneo, descrente de Atlântidas e Idades de Ouro, reduz-se aos mitos
modernos do bom selvagem e do comunismo primitivo. Valendo-se destes mitos,
cuja crença compartilha com boa parte dos seus leitores, Cláudio Aguiar compôs
uma narrativa verossímil, que traduz uma certa visão de mundo. Esta perspectiva
60
traz embutida uma concepção da história, fruto de uma interpretação particular, de
índole marxista. E a história, assim idealizada, passa, então, ela mesma a ser
ficcionalizada.
3
CALDEIRÃO:
A FICÇÃO
O beato botou as mãos na cabeça de cada um e
disse palavras cariris, aqueles misteriosos
sons com que Badzê gostava de gloriar as suas vitórias,
assunto de elevada sabedoria:
Deduá, atissali aliô, Deduá...
Cláudio Aguiar
Existen hombres decididos a no contentarse con la
realidad. Ellos aspiran a que las cosas lheven un curso
distinto: se niegan a repetir los gestos
que la costumbre, la tradición, y, en resumen,
los instintos biológicos les fuerzan a hacer:
Estos hombres son los que lhamamos héroes.
Ortega y Gasset
61
3.1 – Mestre Bernardino: um narrador benjaminiano
Toda narrativa se estrutura sobre cinco elementos, sem os quais ela não
existe: os fatos, os personagens, tempo, lugar e o narrador. Este último é o elemento
organizador de todos os outros componentes, o intermediário entre o narrado e o
autor, entre o narrado e o leitor. A narrativa surge de um desejo, de uma vontade de
transmitir mensagens vivenciadas ou criadas. Para isso, a presença do narrador se
torna indispensável. O tempo se reveste também de grande importância, uma vez
que o ato de narrar exige um afastamento entre a temporalidade dos eventos
narrados, reais ou imaginários, e a do narrador.
Segundo Benjamin (1994), os primeiros relatos eram produtos da memória
que se transmitiam pela oralidade, tendo como principais protagonistas as figuras de
camponeses e homens do mar, os “velhos mestres da narração”, cujas histórias
alimentavam a tradição e a imaginação. Porém, lamenta o filósofo alemão, a
possibilidade de troca de experiências não se encontra nas narrativas modernas,
pois, “as ações da experiência estão em baixa” e, aos poucos, deverão desaparecer
para dar lugar à narrativa solitária e imaginativa do presente no romance. Essa
constatação se baseia no utilitarismo da narrativa clássica, da qual deveriam advir
ensinamentos e conselhos de ordem moral e prática.
Corroborando Benjamin, Le Goff (1990) observa que na Idade Média os
velhos eram venerados, “sobretudo porque viam-se neles homens-memória,
prestigiosos e úteis” (LE GOFF, 1990:449).
Fernandes (1996) acrescenta que
[...] alguns antropólogos acreditam que a religião em seus primórdios
era uma questão ritual antes que de crença. Aos poucos, o medo do
perigo, do desconhecido foi criando fantasmas e deuses, vida eterna
e salvação para aquilo que antes era apenas ritos para celebrar as
estações do ano, buscar a fertilidade da terra e das mulheres. O
papel dos mitos nesse momento da historia é fundamental. Através
das lendas, da narração, da palavra, cria-se um comportamento
religioso, não apenas rituais mas conceitos. O papel do narrador não
62
era apenas um papel de contador de histórias mas como um xamã
que tinha a função de médico, juiz e conselheiro (FERNANDES,
1996:21).
Como foi mencionado, a última edição de Caldeirão trouxe uma nota
explicativa na orelha do livro acerca das circunstâncias da narração: um
personagem repórter, buscando mais informações sobre a morte do beato José
Lourenço, escuta o relato (que vai bem além do buscado) de um participante
Mestre Bernardino – da comunidade da qual o beato foi líder.
Mestre Bernardino, “curandeiro, guerreiro e decurião” do povo do Caldeirão,
personifica no romance o grande narrador benjaminiano que “tem sempre suas
raízes no povo, principalmente nas camadas artesanais” (op.cit., p.214). Através
dele, serão mostrados os demais personagens do romance, inclusive o suposto
protagonista da história, o beato José Lourenço.
Mas Bernardino tem consciência de que a sabedoria, “o conselho tecido na
substância viva da existência está em extinção. Por isso, explica ao seu atento
interlocutor: “O tempo é culpado. Vai apagando a sabedoria da gente. não leva a
experiência, o palpar, o ver. tudo vira lembrança, coisa feita. Tudo volta”
(AGUIAR, 2005:37).
Assim, Bernardino legitima a sua história. Oferecendo sabedoria na forma de
experiência vivida, ele se investe da autoridade do narrador tradicional. Afirma que
“tudo volta”, e tudo voltará em sua narração. Esta transmissão de conhecimentos,
segundo Benjamin, é fundada pela rememoração (Eingedenken) – que é a retomada
salvadora pela palavra de um passado que, sem isso, desapareceria no silêncio e no
esquecimento – esta inclui todas as variáveis da forma épica e, particularmente, a do
narrador. Mas a desagregação desta origem comum a todas as formas, consolidou a
separação entre o romance, baseado na lembrança individual (Erinnerung) e a
narração baseada na memória coletiva (Gedächtnis). Bernardino é assim mais que
uma mera testemunha dos fatos ocorridos. Sintetizando memória individual e
coletiva, torna-se, então, o porta-voz da Verdade. Esta caracterização de Bernardino
é um recurso ficcional que pode levar o leitor do romance a acreditar que Caldeirão
mostra a verdade dos fatostratados. A versão da ficção se passa por história e os
julgamentos de Bernardino (que talvez reflitam as opiniões do autor) emanariam de
uma forma ancestral de sabedoria.
63
Deve-se então distinguir cuidadosamente os tipos de narrativa. As narrativas
ficcional e histórica estão atreladas aos elementos da memória, no sentido de que a
primeira, segundo Benjamin, vai buscar na rememoração, na lembrança que se faz
presente de novo, a matéria-prima para a representação da realidade, aqui alterada
pelo fator imaginário e transfigurador; quanto à segunda, está relacionada com a
apropriação das reminiscências que articulam o passado histórico através de uma
“cadeia da tradição, que transmite os acontecimentos de geração em geração”.
Bernardino uniu os conceitos de sujeito histórico e narrador de suas
memórias. Foi ele que interpretou e filtrou os acontecimentos em sua memória,
fazendo uma construção narrativa. E, ao resgatar e valorizar suas memórias,
trilhando os caminhos de Mnemosine, ele se reconheceu como agente da própria
história e do grupo, protegidos pela musa Clio.
Gagnebin (1994) responde:
Hoje ainda, literatura e história enraízam-se no cuidado com o
lembrar, seja para tentar reconstruir um passado que nos escapa,
seja para “resguardar alguma coisa da morte” (Gide) dentro da nossa
frágil existência humana. Se podemos assim ler as histórias que a
humanidade se conta a si mesma como fluxo constitutivo da memória
e, portanto, de sua identidade, nem por isso o próprio movimento da
narração deixa de ser atravessado, de maneira geralmente mais
subterrânea, pelo refluxo do esquecimento; esquecimento que seria
não uma falha, um “branco” de memória, mas também uma
atividade que apaga, renuncia, recorta, opõe ao infinito da memória a
finitude necessária da morte e a inscreve no âmago da narração”
(GAGNEBIN, 1994:4).
O romance não deriva da tradição oral. Enquanto a narração nasce do
intercâmbio com o público, ou seja, das experiências partilhadas pelo narrador e por
aquele que o ouve ou lê, o romance é idealmente fruto da atividade individual e
isolada do escritor que geralmente, não aconselha seus leitores nem tampouco
recebe conselhos (pelo menos, este não é, em princípio, seu objetivo, que visa
antes deleitar o leitor). Na narração, o acontecido penetra na vida do contador de
histórias, sendo oferecido aos ouvintes como experiência.
Ao produzir sua narrativa, esse narrador sempre tem um propósito definido.
Ele é uma espécie de conselheiro de seu ouvinte. O narrador diz Benjamin, “é um
homem que sabe dar conselhos”, alguém capaz de “fazer uma sugestão sobre a
64
continuação de uma história que está sendo narrada”. Tanto que,
[...] os narradores gostam de começar sua história com uma
descrição das circunstâncias em que foram informados dos fatos que
vão contar a seguir, a menos que prefiram atribuir essa história a
uma experiência autobiográfica (op.cit., p.205).
Como elemento organizador da narrativa, Bernardino, em sua narração,
antecipa, anuncia, critica, denuncia, ironiza e corrige outras versões dos feitos que
narra:
Como o senhor é de fora, antes de explicar o porquê da renitência
dos sinos contra os ouvidos de Juazeiro do Norte, convém gotejar
pingos de esclarecimentos sobre a origem do Vale do Cariri e que os
selvagens perderam para os senhores brancos da Casa-da-Torre-
Bahia, um mundo fora daqui. Depois, posso falar da Santa Cruz do
Deserto, enterrada no Caldeirão, acima daquela ponta de serra
(AGUIAR, 2005:15).
Mas nenhuma narração é em vão. O leitor procura algo mais que uma
história e seu autor, através do narrador, sempre conta além do narrado.
A versão do narrador é dada pelo ponto de vista, pela maneira como nos
conta e pelo conhecimento que tem da história. O leitor, inicialmente, não sabe o
que virá, por isso, silenciosamente, segue o narrador, passando, aos poucos, a ter
que ler nas entrelinhas. A relação de leitura sempre será uma relação de poder
envolvendo fascínio e dominação.
As épocas irão determinar os narradores. Segundo Fernandes (1996) os
narradores são marcados pelo seu meio, quer seja ele o Renascimento, o
Romantismo, ou boom latino-americano. O seu estatuto, qualquer que seja ele, é o
de quem conhece. O grau de como revela o que sabe ou a forma de como o faz é
que o irá distingui-lo dos demais narradores. Em Guerra dos Mascates, de José de
Alencar, por exemplo, o narrador afirma que o que irá ser contado será o que
realmente aconteceu e para legitimar o que narra, diz que tomará por base um
autêntico documento encontrado em um velho baú, mais de cem anos depois, sobre
a Guerra dos Mascates. o narrador de Caldeirão, mestre Bernardino, vale-se da
vivência, ressaltando que não narra a versão de um fato que outros o fizeram,
mas a expressão de sentimentos, aumentando, assim, a sua relação de
credibilidade com o leitor. Pois este
65
[...] não é apenas mais um recurso, ele é a gênese, o elemento
inaugural. O romance sempre vai apresentar-se como fruto do
desajuste e de crítica social, e o narrador, como aquele que levanta
as provas para julgar. A crítica social não será necessariamente
explícita, pode o herói ser personagem em crise ou a crítica aparecer
através das leituras suplementares dos códigos velados do autor
(FERNANDES, 1996:21).
Sendo assim, “o narrador pode dar-se ao luxo de expressar os
preconceitos de sua época se estes preconceitos têm alguma função dentro da obra
e não são meras opiniões” (FERNANDES, 1996:47). Pois, quando a ideologia (o
discurso revolucionário) do autor é reproduzido com muita nitidez pelo narrador, e
este é percebido pelo leitor, perde-se o encanto e o romance degenera em panfleto.
O importante é que uma “conveniência pactual”, ou melhor, uma intimidade
literária, esteja assegurada entre o leitor real e o narrador. Mas discurso do narrador
é um discurso perigoso, pois seu objetivo é que o leitor compartilhe o seu ponto de
vista. Deve-se sempre atentar para o fato de que o narrador ficcional ao polemizar
com temas históricos geralmente narra uma mera versão (afinal de contas trata-se
de um romance), portanto, uma parcialização da realidade.
Aqui, tentaremos apreender a forma pela qual o narrador ficcional realizou o
seu objetivo, o de tentar reconstruir um passado através da memória que o
escapava: a história do personagem beato Lourenço e de seu povo.
O personagem beato José Lourenço, líder da comunidade do Caldeirão, é
representando quase como um profeta bíblico, ou seja, o guia escolhido de seu
povo, dotado de resistência sobre-humana, sabedoria divina, chegando
eventualmente a manifestar poderes sobrenaturais.
Logo ao iniciar a narração da história, Mestre Bernardino conta a história de
Teresa, a mãe do beato: quando Teresa estava grávida de José Lourenço, ela
presenciou o sofrimento de um escravo chamado Serafim, condenado a levar 300
açoites. Ficou, então, extremamente impressionada com a violência do castigo e
tomou por certa a morte do escravo. Tomada de emoção, naquele momento,
começou a sentir as dores do parto . Chamou imediatamente o marido: “- O sinal
chegou agora. Senti uma pontada aqui desse lado. A água fedorenta já molhou as
minhas pernas... chamar Terta, a parteira. Se for homem vai se chamar
Serafim” (AGUIAR, 2005: 22).
66
O escravo, entretanto, não morreu das chibatadas e, conseqüentemente,
não recebeu a homenagem. Bernardino, ironicamente, diz: “Herói precisa morrer, o
senhor não acha?” (op. cit, p.23).
Assim, Teresa resolveu homenagear São José e o pai do beato, que se
chamava Lourenço. Tudo isso acontecera em 1872. Aqui, o narrador, de certa
maneira, expõe ironicamente o seu ponto de vista e também justifica a postura do
protagonista diante dos fatos que virão.
Como a maioria das pessoas pobres da época, a família de Lourenço vivia
da terra, vendendo o que colhia para sobreviver. Porém, em 1874, na serra de
Bodopitá, ocorreu uma revolta violenta contra “sistema métrico decimal”, sistema
que trazia medidas como o metro e o litro, criava o “imposto da terra” e abolia as
medidas conhecidas pelos feirantes: a cuia, a canada, a onça, a arroba e o palmo. O
confronto dos feirantes com os policiais ficou conhecido como a rebelião dos
“Quebra-quilos”. Foi liderada por João Carga d'Água e contou com a participação de
Lourenço.
Lourenço era homem calado, à maneira de Fabiano, personagem de
Graciliano Ramos, em Vidas Secas. Entretanto, possuía uma característica que se
destacava: a rudeza com os filhos. Certa vez, tentara castigar os filhos José
Lourenço e Joaquim, que haviam aprontado. Com medo, José Lourenço, com 15
anos, fugiu e Joaquim, o Quim, ficou e levou uma surra que o deixou “de cabeça
ruim”. Transtornado com seus atos, Lourenço partiu rumo a Juazeiro com Teresa,
que estava muito doente, Quim, e as duas filhas, Joana e Inácia. Lá ele intencionava
se aconselhar com padre Cícero. A viagem foi longa e difícil. Ao chegar, se
estabeleceram. Conseguiram viver bem na cidade, onde trabalhavam, comiam,
rezavam e sentiam a falta do filho pródigo.
Por medo do pai, José Lourenço fugiu, dormiu ao relento, passou fome, mas
não queria voltar. Após a primeira noite da fuga, encontrou uma casa cujo dono deu-
lhe comida e um canto para dormir. No dia seguinte, partiria de novo. Vários anos
após a fuga, Jo Lourenço ainda pensava, com saudades, na mãe e nos irmãos,
pois “só não perdoava a maneira braba de Lourenço tratar os filhos” (op. cit., p.42).
Trabalhou em fazendas, nas estrebarias. Foram as éguas que “lhe deram os
primeiros prazeres”, diz o narrador, pedindo perdão por dar tal informação em hora
67
tão imprópria. Um dia, porém, sentiu muita saudade da família e resolveu procurá-la
para pedir perdão. No caminho de volta, descobriu que ela havia partido em direção
a Juazeiro. Foi então aconselhado a procurar padre Cícero, pois ele saberia dar
informações de sua família.
Fernandes (1996) observa que “a grande literatura, segundo Cortázar,
trabalha com arquétipos. Por isso a permanência das grandes obras” (op.cit., p.45).
Esta fase inicial vivida pelo protagonista remonta bem à narrativa bíblica do filho
pródigo. E é na volta do filho pródigo aos seus que principia a sua redenção. Para
tanto se viu Lourenço obrigado a juntar-se a um grupo de pessoas que partiam em
direção a Juazeiro:
Andou um bom tempo junto delas e, pouco a pouco, foi se
aborrecendo com a cantinela, o murmúrio a ganhar as quebradas, a
latomia pondo sentido nos santos mistérios do rezar. Mas ele não
queria saber daquilo. Seu desejo era achar os pais, encontrar-se com
a família. Nunca havia pensado em praticar nenhuma penitência,
ficar de joelho de diante de padre, contar seus pecados. Nunca. Não
havia precisão. Seguia o seu caminho, sua vida de pobre fugido,
fazia tudo certo e, portanto, não via necessidade de cair de joelhos.
(AGUIAR, 2005:55)
Durante o percurso, as orações começaram a trazer “conforto” a José
Lourenço, embora ainda o irritassem as ladainhas intermitentes. A verdade é que,
naquele momento, começava a descobrir a fé.
Na chegada a Juazeiro, tanto José Lourenço como os romeiros sentiam que
andavam “num chão diferente”. Cantaram com mais força:
O chefe do grupo autorizou que soltassem os fogos. O céu, de
repente, viu-se iluminado pelo estrelado da alegria. Os benditos
cresceram e aqueles olhos, espantados por tantos dias de
caminhada, brilhavam como nunca. Enchiam-se de esperança,
porque chegavam à terra prometida.
José Lourenço, montado no seu cavalo alazão, junto aos romeiros,
também contemplava, empolgado, o verde dos sítios, os babaçus e
os buritis misturados com canaviais ao longo do da chapada do
Araripe (AGUIAR, 2005: 57).
José Lourenço fora aconselhado a procurar padre Cícero e assim o fez.
Chegando à casa do padrinho, encontrou a lotada, e, após muito esperar, chegou
sua vez de falar-lhe, porém, quem tomou a palavra foi Padre Cícero:
- José, eu estava te esperando muito tempo, José. Tu estavas
escolhido, José. muito tempo, José. Tu vais me ajudar a carregar
o peso da Santa Cruz para a salvação do gênero humano, José.
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José Lourenço pensou em dizer que o padre procurasse um de mais
capacidade, de mais galanteria, de mais representação. Ele era
apenas um pobre negro que vivia só, procurando os seus pais, um
fugindo de sua casa... Mas o padre Cícero adiantou-se:
- Já chega, já chega, meu filhinho. É tu mesmo, José. Vai lá dentro e
fala com a Mocinha (AGUIAR, 2005:65).
O povo que o aguardava, irritava-se com a demora de Lourenço e com sua
falta de respeito ao desobedecer às ordens do padrinho. Mas José Lourenço estava
mudando, não conseguia esquecer a frase: “é tu mesmo, José”.
Sem comprometer o enredo, o narrador assimila José Lourenço aos profetas
do Antigo Testamento. Notável é a semelhança com Moisés, que reluta em aceitar
sua missão, alegando ser gago, mas que finda por se submeter à vontade de Deus.
Padre Cícero, ali, fazendo as vezes de uma espécie de Deus-Demiurgo, chama o
protagonista às suas obrigações.
Por fim, encontrou a família. Grande foi a felicidade no encontro tão
esperado.
3.2– Baixa Dantas, primeira casa: a aceitação da fé e da missão
José Lourenço fora cuidar, a pedido de padre Cícero, do sítio Baixa Dantas,
a primeira moradia, no Ceará, de José Lourenço. O sítio pertencia ao fazendeiro
João de Brito e havia sido arrendado pelo padrinho. Muitos romeiros partiram para o
local, inclusive Mestre Bernardino.
Mesmo respeitando padre Cícero, José Lourenço, “homem prático”, “ainda
não ficava rezando feito beato, rendido à fé”, pois, não esquecia seu passado de
pecado com as éguas, como observa o narrador: “talvez por isso fosse tão difícil,
para ele se enovelar com as coisas da igreja, como fazia sua irmã Joana, irmã de
Maria. Ele não podia ser coisa nenhuma. Era apenas um pecador, um perdido, sim”
(op.cit., p.69).
Porém, certo dia, ao acompanhar Joana até a casa dela, escutara cantigas
que não vinham da igreja, “soavam como pancadas abafadas, soltas no chão
molhado da terra”, aquilo chamou sua atenção. Descobrira que os sons vinham das
“cortes celestiais”, grupo de pessoas condenadas pelo padrinho a cumprir
69
penitência, que buscavam a redenção de seus pecados por meio de violência
corporal. José Lourenço viu que era o lugar para pessoas como ele, com pecados
tão monstruosos.
Com a morte da mãe, diz o narrador: “vi claramente que a vida de José
Lourenço mudara de vez. Havia nos seus olhos uma aceitação dos ritos e das
coisas da santidade” (op.cit.,p.72). Fora observar as auto-flagelações dos
penitentes, ficara impressionado com as lamentações, com “pancadas certeiras,
amargosas, chispadas, assim como espinhos de mandacaru retos para o alto, para
os lados, para baixo”, entretanto, o mais arrepiante, foi ao ver
[...] um homem com enorme cruz de madeira, braços cobertos com
alvos panos, derramados nos ombros, a ponta ferindo a terra com
força, deixando risco no chão, qual escrita assombrosa. Era um
crucificado, mas com energia. José Lourenço escorregou os olhos
por aquelas cenas e não quis acreditar. Ele tinha suas próprias
razões.
[...]
O que afinal era certo? Os sermões do padre Cícero ou as vexadas
lapadas dos homens pecadores nas lamentações das almas sobre a
serra do Horto? (AGUIAR, 2005:74).
Secretamente, José Lourenço passara a participar da corte celestial, guiada
pelo beato Palmeira. Mandara construir uma cruz e caíra “nas obrigações”:
Era uma cachoeira de ronco bonito. Puxava o bendito numa
lamentação de alma penada, ecoando nos sovacos da serra do
Horto...
[...]
Aquela voz se misturava com a dos outros penitentes, enquanto as
cutiladas por ele mesmo aplicadas, com violência sem freio,
cortavam seus músculos, anulavam a dor, mas, no final das contas,
tudo nos unia naqueles benditos cheios de certeza que
alcançávamos o perdão de Deus. Com o tempo a gente nem sentia o
repisar das pancadas. A carne ficava dura, resistente, apoio da
salvação (AGUIAR, 2005:77).
Após nove anos, o velho Lourenço descobriu o segredo do seu filho pois as
penitências deixaram de ser ocultas. Porém, a cruz que carregava, tornara-se
pesada. José Lourenço procurou Padre Cícero para devolvê-la:
- Meu padrinho, eu vim entregar a cruz, porque não aguento mais o
peso dela. O povo anda dizendo coisa comigo, botando apelido. Eu
não aguento mais não.
Aí, meu padrinho Cícero espiou para ele, assim bem dentro do olhos:
- José, eu procurei muito canto pra botar essa cruz, mas o melhor
lugar que eu achei mesmo foi o teu ombro, José. Tens que ficar com
70
ela, José.
Claro, o padre usou uma imagem e José Lourenço tomou o dito com
verdadeiro. Seguiu com as penitências (AGUIAR, 2005: 80).
Nesses trechos ecoam histórias contadas nas hagiografias, onde os santos
se penitenciam se mortificando. Mas esta história tem seu viés realista. Ao enumerar
as qualidades do beato José Lourenço, Mestre Bernardino explica ao repórter:
Falar dele, que dizer tudo. Até o que conviria calar, coisas não
propositadas para essa hora de dor maior.
[...]
Homem do certo, da vida reta, podia brincar, ter algum escorrego no
fácil delirar das demonstrações do humano viver. Mas profundas
maldades, dessas que ameaçam a moral dos outros, nunca. Fora
disso, posso contar que ele se divertia, amiudamente, com cuidado
(AGUIAR, 2005:86).
Havia também as “bebedeiras” do beato. Bernardino garante que estas não
passavam “de exemplo da religião”, afinal de contas, ele completa, “então o senhor
não sabe que o padre bebe vinho na hora da missa?” (op.cit., p.88). Bernardino
assim humaniza o beato, pois, “fama, dessa que deita na cama, como a de meu
padrinho Cícero, nunca superada por ninguém, porque, até provarem o contrário, ela
vem de um proceder santificado, um convencimento ditado pela veneração” (op.cit.,
p.88).
Ao agir desta maneira, o narrador aparentemente aproxima seu protagonista
do que Queiroz (1976) contrapõe à definição de messias, o herói cultural:
O herói cultural é, por sua vez, um ser semi-humano e semidivino,
que trouxe à humanidade os bens de que goza a tribo, mas cujo
caráter é dualístico: altruísta e malicioso, ao mesmo tempo benfeitor
e malandro, cumulou o povo de melhoramentos mas é também um
moleque sempre em busca de aventuras amorosas, reunindo traços
sérios e bons a outros tolos e imorais (QUEIROZ, 1976: 33).
Mas José Lourenço não é nenhum Macunaíma. O propósito de relatar
deslizes do beato parece ser o de conferir verossimilhança à narrativa: ao justificar
certos destemperos, Bernardino ganha credibilidade junto ao leitor moderno, e a
ficção ganha ares de verdade histórica.
Doutor Fuloro e beata Mocinha eram as pessoas de confiança de padre
Cícero. O primeiro, era o médico de padre Cícero. Baiano, viera fugido da terra natal
por medo de um rival que queria matá-lo. Completa o narrador:
71
[...] fazia sua lei, como se fosse governante, mandava em tudo aqui.
Até nas sombras do Juazeiro do meu padrinho Cícero.
[...]
Fraco que vendo no matraquear do peito, no esforço próprio,
afrouxava a conversa ante os poderosos maiores do que ele. Contra
o fraco, o pobre, não. Ele era duro (op.cit., p.93).
Em nome de padre Cícero, Floro Bartolomeu, em Juazeiro, conduziu os
romeiros a uma guerra contra coronel Alírio, do Crato. Crato enfrentando Juazeiro.
Rabelistas versus Molambudos. “Irmãos contra irmãos. Cariris contra cariús”. Floro
Bartolomeu, de início, venceu Todos comemoraram, mas o beato, observa o
narrador, “explicou que dali nasceria a guerra feia, sangrenta, porque o mando caía
nas mãos de Doutor Fuloro. E foi o que aconteceu. Aquele dito do beato pareceu
profecia de santo” (op.cit., p.99). Floro Bartolomeu se tornaria o primeiro antagonista
do povo de José Lourenço.
O narrador de Caldeirão, “com sinais de perturbação”, conta que numa das
piores fases do confronto, quando rabelistas cercaram Juazeiro, ele e sua numerosa
família tentaram furar o cerco para levar mantimentos para os romeiros. Nisso, duas
de suas filhas foram brutalmente assassinadas:
Foram cortadas, assim pelo meio, como quem parte uma melancia,
indo do verde para o vermelho do miolo. O verde da idade, nos
cabelos lisos e compridos, nunca cortados para se ver como a
natureza fez a pessoa. O vermelho, o sangue a jorrar como água de
fonte. As duas foram transformadas em quatro, num ato de maldade
sem tamanho. Ainda pegaram elas pelos cabelos e amarraram em
estacas, para que todos vissem o que mereciam os romeiros do meu
padrinho Cícero (AGUIAR, 2005: 104).
Veremos diversos casos deste tipo ao longo da obra, onde a violência e a
selvageria são apanágio de indivíduos poderosos. As massas, organizadas
coletivamente, deveriam herdar a terra, já que pacíficas e trabalhadoras.
Mas a guerra continuou. Os romeiros conseguiram derrubar os rabelistas,
“com mão de ferro”, e partiram, vitoriosos, cantando benditos rumo a Fortaleza.
os romeiros descobriram que padre Cícero era um mero joguete nas mãos de Floro
Bartolomeu.
Vemos, então, que o narrador toma partido e interpreta os fatos. Fernandes
(1996) afirma que
O narrador não é apenas mais um recurso, ele é a gênese, o
elemento inaugural. O romance sempre vai apresentar-se como fruto
72
do desajuste e de crítica social, e o narrador, como aquele que
levanta as provas para julgar. A crítica social não será
necessariamente explícita, pode o herói ser personagem em crise ou
a crítica aparecer através das leituras suplementares dos códigos
velados do autor” (FERNANDES, 1996:21).
Ao retornarem a Juazeiro, os romeiros foram recebidos com festa:
Os cantadores inventavam batalhas não acontecidas, imperadores,
qual Carlos Magno, corriam o Vale do Cariri dando golpes de
gigantes treinados no esporear de cavalos saltadores de riachos,
gritos de vivação, assim como o aboiar no estouro da poeira, de vera
(op.cit., p.112).
Todos voltaram à Baixa Dantas. Estava destruída e precisava ser reerguida,
afinal de contas, continua o narrador, “o milagre vem mesmo pela atuação da
mão, dos s, da visão, do querer final que a gente sustenta no melhor da vida”
(op.cit., 117). Bernardino lembra as festas lá realizadas:
[...] festa de São João, a fogueira alta, alimentada com marmeleiro,
soltando claros na noite.
[...]
O cantador Dois de Ouro, de fama solta naqueles pés de serra,
trouxe um tal de Patativa, menino novo de Assaré que começava a
esquentar a goela no pelejar do improviso, do vivo poetar (AGUIAR,
2005:115-116).
As lembranças da história narrada por Bernardino estão ligadas à sua
cultura, que é popular. Ele narra ao seu interlocutor porque se encarregado de
passar, de geração a geração, tudo aquilo considerado essencial para a
manutenção do grupo social ao qual pertence, pois, assim, como ensinou Walter
Benjamim, estes podem sobreviver: por intermédio da troca de informação.
O beato José Lourenço foi então chamado por padre Cícero para uma
conversa. Chegando lá, soube que o povo de Baixa Dantas cuidaria de um garrote
doado por Delmiro Gouveia ao padrinho. Esta atitude dera início a comentários
maldosos acerca da “santidade” do boi. Mansinho assim ele era chamado devido
a sua mansidão por pertencer ao padrinho, era muito bem cuidado. Certa vez,
quando o beato fora visitar padre Cícero, perguntou pelo seu boi. O beato, junto com
Bernardino, decidiu levar o animal para seu dono ver. Alguns romeiros os
acompanharam. No percurso, em tom de zombaria, alguém da cidade falou: “ - Este
é o boi milagroso. Eles vão levando o bicho pra Padre Cícero benzer” (op.cit.,
p.122). Comentários desse tipo, como os de Sebastião Marinho, romeiro de Baixa
73
Dantas, que afirmou que o boi fazia milagres, fizeram com que Doutor Fuloro se
irritasse com o beato “metido a santo” e ameaçasse matar o animal.
O fato é que Mansinho, devido à superstição do povo, tornou-se uma
espécie de boi Ápis do sertão. Recebia cuidados excessivos e era idolatrado.
A festa de dia de reis havia chegado. Bernardino explica:
Havia figuração marcada, difícil de pintar sem os meneios normais do
verde, da sequidão do vermelho, afinando assim, encarnadinho, para
o lado do fogo destruidor. O amarelo aparecia pendendo dos
cinturões dourados nas lapas de espadas prontas para o pelejar
desafortunado. Quando estavam prontos os figurins de mestre Dedé
Luna se danavam na guerra das espadas, ao som de violas, sanfona
de fole e zabumbas gritadores. Guerra de feder a morte, lembrando a
luta de corpos sangrantes nas escuras e antigas cavernas por onde
andaram os Doze Pares de França do Imperador Carlos Magno. De
tal lenda se falava para se crer verdadeira (AGUIAR, 2005:125).
Não deixa de ser curiosa a menção a Carlos Magno e aos doze pares de
França num contexto sertanejo. A estranheza passa ao verificarmos que Cláudio
Aguiar, em Caldeirão, buscou recriar o saber do povo, adequando-o às
necessidades da sua ficção. O antagonismo do bem contra o mal, personificado no
conflito do povo do Caldeirão com as autoridades constituídas é permeado por
traços comuns às manifestações populares, repletas de crendices: os heróis,
feiticeiros, cangaceiros, com seus temas, tipos e costumes.
Meyer (1993), visando “reencontrar os caminhos da construção do
imaginário e constituição do romance no Brasil”, observa que o imaginário é
moldado por modelos que remetem tanto à “alta” como à “baixa” cultura, às nossas
e às dos europeus, “uma vez que, na interação entre o de e o de cá, o que era
baixo foi por uns tempos o alto de”. Para exemplificar, Meyer cita um romance
“de segundo time” (para os de lá) mencionado por Machado de Assis como grande
romance que, bem mais tarde, surgiria como “modelo” de romance para o
personagem Riobaldo: o Sinclair das Ilhas. Continua Meyer:
Os modelos começaram a penetrar por aqui com a colonização:
nas cabeças, memórias, sensibilidades, usos, tanto da gente do
povo, pequenos aldeões portugueses, cristãos com muitos resquícios
de paganismo, fidalgos, altos funcionários, aventureiros, como na
cultura e nas determinações dos evangelizadores que haveriam de
saber adaptar usanças européias às novas circunstâncias. Matrizes
do que se convencionou chamar cultura popular, ou, dizendo de
outro modo, cultura tradicional, cultura folclórica, na acepção de
74
Gramsci (MEYER, 1993: 148).
Parece espantoso, continua Meyer, “em tais condições, mas é um dado de
nossa história cultural a existência e persistência de muitas formas e temas que
remetem às mais antigas tradições européias, já, de muito, mortas lá” (op.cit.,
p.148).
Um tema ancestral pode vir através de um nome, evocado num lampejo, no
meio de um ritual, “pode subsistir numa seqüência completa, como é a do cortejo e
batalha singular entre Oliveiros e Ferrabrás, sob os olhos do majestoso Carlos
Magno, belo mulato vestido de veludo azul celeste” (op.cit., p.149).
Assim, Carlos Magno e os Doze Pares de França estão presentes na cultura
brasileira, popular e erudita:
[...] volume popularíssimo em Portugal e Brasil, leitura indispensável
por todo sertão, inúmeras vezes reimpresso e tendo ainda o seu
público leitor fiel e devotado. Fornece material aos cantadores e
muitos episódios tiveram redação em versos, constituindo temas de
cantos e leituras entusiásticas (CASCUDO, 1988:196).
Mas os grandes heróis são relegados ao passado remoto rememorado nos
cordéis e histórias populares. Tempos depois, Floro Bartolomeu cumpriu o
prometido: o povo de Baixa Dantas foi perseguido, o beato José Lourenço, preso, e
o boi Mansinho esquartejado, sua carne sendo distribuída ao povo. Narrando estas
desgraças, Bernardino revela que, naquele instante, sentia-se num sonho que
“conseguia trazer o colorido do reisado de mestre Dedé Luna: “aparecia a figura do
mestre do reisado, com muitos figurins espalhados pelo terreiro enorme, que em
tudo se avizinhava ao pátio do mercado de Juazeiro, onde o povo esperava a
matança do boi Mansinho” (op.cit., p.134).
Alheia aos devaneios de Bernardino, a multidão, faminta, não via a hora de o
animal ser esquartejado. Porém, o boi, mesmo manso, negou-se a morrer, pois fugiu
[...] desafiando a espada vingadora do gênio do mal, só comparável a
Manuel Babau, o que traz a morte nos seus passos encantados.
Ninguém sabe de onde, surgiu um anjo, vestido de vermelho
brilhante, gritando que ia salvar o Mansinho daqueles matadores.
Mas logo a voz de mestre Dedé se iluminou e os Mateus, no alto,
começaram uma luta violenta. A multidão ficou parada e o anjo
desapareceu. Aí, o andor que sustentava o boi foi baixando, devagar
como balão de São João quando começa a pegar fogo, caindo lento,
clareando a noite (op.cit., p.135).
75
Quando conseguiram pegar novamente o boi, o mataram, e com ele se
foram seus “milagres”.
Como observa Seraine (1987), o Boi é o personagem central do folguedo e
“talvez venha a ser uma sobrevivência geral do paganismo, como outras
sobrevivências, incorporadas ao catolicismo popular da Europa” (SERAINE, 1987:
299). Isto posto, diz o folclorista, “muitos vêem nesse auto popular a glorificação da
figura do boi, sua exaltação, sua apologia” (op.cit., p.301).
O beato permanecia preso. Bernardino, após a morte do Mansinho fora
visitá-lo. No almoço, o prato servido ao beato era a carne do boi estimado. O beato
a rejeitou, ficando sem comer os 18 dias em que passou preso. No nono dia, Floro
Bartolomeu, disse irritado: “- Eu nunca botei um homem na cadeia que com sete
dias não desse couro às varas. Este beato Lourenço, com este tempo todo, nove
dias, agora é que parece forte” (op.cit., p.139). Os soldados que vigiavam o beato
observaram, impressionados, que ele tanto não comia como não dormia. Floro
Bartolomeu resolveu então consultar padre Cícero:
-Eu pensava, Fuloro, que conhecias o José. Fuloro, tu estás
pensando que o José ali naquela cadeia, sofrendo naquele chão
molhado, fedorento, cheio de carrapatos, percevejos e mijo de muitos
presos que passaram por ali, Fuloro? Ele é em Baixa da Anta
trabalhando, almoçando, dormindo e rezando o rosário mais a gente
dele. Ah, Fuloro, eu pensava que conhecias o José. Tá, eu me
enganei contigo completamente (op.cit., p.142).
Desapontado, Floro duvidou do que dissera o padrinho que, desafiando-o,
respondeu: “- Ah, Fuloro, tu dizes que ele não quer comer? Pois quando chegares
em tua casa, manda preparar um prato de comida e levar pra ele comer. Depois me
contas se ele comeu ou não” (op.cit., p.142). Floro Bartolomeu fez o que padre
Cícero falou e comprovou, espantado, que o padre estava certo. Para completar, o
beato avisou ao narrador que no dia seguinte seria solto e assim ocorreu. Ao sair,
foram à casa de Floro que os convidou – amigavelmente – para almoçar.
Demonstra-se assim, conforme o narrador, a crença do padrinho em certos
poderes “sobrenaturais” do beato. Benjamim (1994) afirma:
O extraordinário e o miraculoso são narrados com maior exatidão,
76
mas o contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é
livre para interpretar a história como quiser, e com isso o episódio
narrado atinge uma amplitude que não existe na informação (op.cit.,
p.203).
Segundo Chevalier e Gheerbrant (1997), o boi é o símbolo da bondade, da
tranqüilidade, da força calma. (Características semelhantes às do beato). Conforme
Bernardino, o beato condena a mitificação do boi, tido por santo pelo povo.
Entretanto, Bernardino não se furta a incorrer no erro do povo: ao comparar o beato
ao boi, ele o transforma num santo. De fato, Bernardino associa, nitidamente, a
morte do boi com a prisão do beato que, após vários dias, dezoito ao todo, sem
comer fora libertado (fato grandioso, coisa de “rei”, segundo o narrador). Como o
profeta Jonas, engolido por uma baleia (ou como Jesus), consegue “retornar” à sua
vida, como se renascesse, mais fortalecido. Nesse simbolismo, a volta do beato
seria a ressurreição do boi, que é o ponto culminante do reisado.
Mas, novamente, a realidade se impõe. Durante a festa em comemoração
do retorno do “rei”, o Coronel João de Brito, dono de Baixa Dantas, comunica a
venda do sítio.
O beato, triste, lamentou: “- Ah, Bernardino, levamos outra chibatada no
couro”. O jeito era ter paciência completou o beato, “a semente não se planta fora de
época...” (op.cit., p.153). Essa mistura de resignação com ativismo sugere a crença
no caráter necessário do processo histórico, religião própria a intelectuais, não a
beatos.
Na companhia de alguns homens da comunidade, o beato foi ao Juazeiro
conversar com padre Cícero, em busca de solução para o despejo. A beata Mocinha
os recebeu e lhes comunicou que o padre os aguardava mais uma vez,
Bernardino ressalta a forte ligação do beato com o padrinho. encontraram um
romeiro da Paraíba: Severino Tavares. Desde então, caminharam juntos. A solução
encontrada foi o beato ir com seu povo para o Caldeirão:
José, agora você vai pro Caldeirão. O Caldeirão é meu. É uma data
de terra com três léguas em quadro, José. Você vai pra lá, José, e
trabalhe descansado por toda sua vida e sua eternidade. você
não será mais nem sujeito nem molestado por homem nenhum.
prá lá, José, e me trabalhe eternamente durante dez anos” (op.cit.,
p.158).
77
O narrador afirma que não gostou das palavras do padrinho, “aquilo não era
promessa arrimada em cego”. Mesmo assim, o povo resolveu não esperar até o
fim do ano para sair de Baixa da Anta. E, como Moisés, o condutor do povo hebreu,
José Lourenço e o seu povo partiram para o Caldeirão. Em nome do padrinho, José
Lourenço foi pedir dispensa da dívida ao coronel João de Brito, este disse que
dispensava dinheiro, mas queria uma vaca e um cavalo. O beato não gostou, mas
nada falou. O coronel cumpria cegamente as ordens do doutor Fuloro, que tinha lá
seus ressentimentos do beato. Como todos os poderosos do livro, padres, militares
e fazendeiros, Fuloro não conseguia se libertar da sua mesquinharia.
3.3– Caldeirão, a “Pátria do Sertão”: eternamente durante dez anos
Depois de muito caminharem, o velho Valdevino avistara o Caldeirão: “-
Estão vendo aquele verde perdido na cocoruta do morro? É ali o coração do
Caldeirão” (op.cit., p.165).
Na seca em 1915, quem no Caldeirão estava, partira, ficando o velho
Zacarias, recém falecido, e sua mulher. Esta comunicou a morte do marido e
garantiu aos novos habitantes que nada nascia no Caldeirão, devido às muitas
pedras do lugar. O povo do beato então preparou enterro decente para o velho.
A ausência de água obrigava o povo a ir buscá-la em Cariús. Porém, certo
dia, Bernardino descobriu um olho-d'água, um tanque com água limpa. O povo
pensou em milagre, afinal de contas, explica o narrador, “tudo era tão natural que
nem se via o extraordinário” (op.cit., p.173). Em pouco tempo, havia água em todo o
Caldeirão.
Chevalier e Gheerbrant observaram que, na Bíblia, tanto os poços no
deserto quanto as fontes encontradas pelos nômades são lugares sagrados, “centre
de paix et lumière, oasis” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 1997: 376).
Uma igreja também fora construída, faltando chegar os santos
encomendados. Antes disso, reza e trabalho, ressalta o narrador. Seguiam,
então, o lema da Ordem de São Bento, uma das primeiras comunidades monásticas
da Idade Média, ora et labora.
Graças à diligência dos seus habitantes, a comunidade começa a prosperar,
78
atraindo novos integrantes. Assim, o Conselheiro Severino Tavares chega ao
Caldeirão e, com ele, pessoas de vários lugares.
Segundo o narrador, o personagem Paulo Pancada era um “homem de fama
virada para os arrufos da brabeza declarada”, tanto que, certa vez, ao brigar com um
lobisomem, cravou-lhe um punhal no peito, depois disso, no mesmo local, um
inimigo seu aparecera ferido. Bernardino questiona seu interlocutor: “Aí, o senhor
avalie só, quem duvidaria que esse homem não fosse o próprio lobisomem que
vendera sua alma ao diabo para poder desandar a vida de Paulo Pancada, o
valentão de Santa Fé?” (AGUIAR, 2005:191).
Registrado desde Heródoto até os dias atuais, o lobisomem, “o mais popular
dos animais fabulosos”, como todo mito universal, possui algumas variantes em sua
retratação. No Brasil, segundo Cascudo, “os traços com que a imaginação do nosso
povo retratou o lobisomem são duplos, porque também essa criatura infeliz,
conforme o nome mostra, é dual” (CASCUDO, 1988: 441). Sua sorte é um fado,
talvez a remissão de um pecado moral. Cascudo ressalta que “quem ferir o
lobisomem, quebra-lhe o fado; mas que se não suje no sangue, de outro modo
herdará a triste sorte” (op.cit., p.441).
Na literatura como nas artes em geral, mitos como o lobisomem sempre
estiveram presentes. Obras como O Coronel e o Lobisomem (1964), romance de
José Cândido de Carvalho e a novela Saramandaia, de Dias Gomes, comprovam
isso.
Mas Cláudio Aguiar, não em Caldeirão, também em suas outras obras
lançou mão deste mito. Em Lampião e seus meninos (1988) encontramos em sua
composição mitos, lendas e a nossa história. Praticamente no mesmo período em
que se passou a história do Caldeirão, Lampião aterrorizava o interior do Ceará. A
história Lampião e seus meninos se passa numa cidade chamada Jardim que,
aterrorizada com a possível vinda do cangaceiro à cidade, viveu momentos de
horror. Porém, não por todos. Os meninos da cidadezinha, liderados por Jorge, o
Lua Branca, viam esta chegada como a possibilidade de se conhecer um verdadeiro
herói do sertão e, quem sabe, até fazer parte do seu bando.
O personagem Lua Branca, além de 'líder' dos meninos, possui outra
característica marcante: era filho de Fortunato Braz, segundo o povo de Jardim, o
79
lobisomem que passou pela cidade 15 anos. Segundo o personagem mestre
Zuza, “ferreiro e armeiro de profissão”, à maneira de mestre Bernardino, esse
lobisomem não passava de um homem.
Histórias assim, com exageros, afirma o narrador, eram comuns nos
alpendres ou terreiros da Estação do lugar. Até história de santa no Caldeirão
inventaram. Dona Giluca era “uma mulherzinha miúda” que rezava, curava, fazia
profecias e “depois se manifestava por modos esquisitos, assim como gente do
espiritismo, fungando, dando socos no ar, tremendo a voz nos embaraços da
santidade dela” (op.cit., p.192), por isso, estava atraindo pessoas de diversos
lugares. O beato, quando soube deste fato, ficou assustado e tratou de por fim nesta
história, pois sabia que isso o passava de uma perigosa insensatez. Bernardino
lembrara-lhe do boi Mansinho e das conseqüências dessas histórias. Novamente o
narrador credibilidade ao seu relato ao desautorizar histórias nitidamente
fantasiosas.
Outros personagens surgem durante a narrativa. Sebastião Marinho, Cícero
de Jesus e Zaías são alguns deles. Este último, exercia uma importante função na
comunidade, pois era uma espécie de “secretário do beato acomodava o povo nos
afazeres do dia-a-dia” e os outros dois, sempre traziam novidades boas e ruins
vindas de Juazeiro e das redondezas para o beato.
Algumas pessoas da região, às vezes, negociavam cavalos, tecidos e outros
objetos necessários com o povo do Caldeirão. Um desses fregueses fora Tião
Grande, “dono de montaria próspera em Juazeiro”, que chegou mal intencionado à
comunidade e ofendera gratuitamente o beato para Zaías, dizendo que ouvira,
numa feira do Crato, que o beato vivia se deliciando com as virgens nas camarinhas
da Estação.
Outro boato maldoso que circulava era que o beato exigia que romeiros lhe
dessem dinheiro. Conforme o narrador, a história não foi bem assim. Com intuito de
fazer melhorias no Caldeirão, tais como construir novas casas para os que
chegavam, o beato aceitava as doações, afinal de contas, conclui o narrador, “sendo
de todos pertencia a cada um” (op.cit., p.201) , ecoando nisto o Manifesto
Comunista.
Durante a revolução tenentista, outro boato surgira envolvendo o beato José
80
Lourenço. O narrador revela que Zaías lhe avisara de uma história que ouvira na
cidade:
Havia padres interessados em desmanchar o nosso trabalho em
Caldeirão. Alguns diziam que o beato Lourenço casava e batizava,
retirando da igreja o direito dos padres praticarem certos atos. Por
soma de intrigas a maldade crescia entre os políticos que se
aproveitavam da situação para inventar que o povo do Caldeirão não
concordava com os novos ares dos vitoriosos de 30, os tenentes-
generais do poder (op.cit., p.207).
E, para completar, a qualquer hora, os revolucionários invadiriam o
Caldeirão em busca de armas: “Caldeirão era considerado um lugar perigoso à nova
ordem”, completa o narrador, empregando categorias sociológicas inverossímeis,
dada a sua condição.
Mais uma vez, o beato, calmamente, disse que eles poderiam vir, pois não
havia nada de errado no Caldeirão. Porém, o narrador Bernardino rememora o
desespero e angústia que todos passaram e o prejuízo que os boatos maldosos
acarretaram à comunidade. Eles mantinham a comunidade em sobressalto,
reforçando a sensação da precariedade e do caráter trágico da existência humana,
preparando-a para o pior.
Enfim, os soldados chegam ao Caldeirão. O beato mandou que todos da
comunidade entregassem suas armas: “enxada, picareta, -de-bode, chibanca, pá,
ciscador e tudo que servisse ao trabalho”. Vendo que não havia armas, os soldados
partiram. O povo, depois, soube o porquê desta atitude: “Aquela invasão visava a
tomar arma do povo do Caldeirão para entregar aos amigos daquele revolucionário.
O negócio era tomar de um e dar a outro” (op.cit., p.215).
O personagem Mestre Zuca, botica do Crato, tirou as suas conclusões do
ocorrido: “- Os políticos querem amendrontar o beato para, quando houver eleição, a
gente do Caldeirão votar nos candidatos do governo” (op.cit., p.215).
Com o tempo, o povo passou a fabricar tudo o que precisava na
comunidade. Isso gerou mais boatos, que desta vez, foram trazidos por Cícero de
Jesus. Segundo este personagem, havia dois rapazes que estavam em Santa Fé,
filhos do “velho da tipóia”, homem que aparecera ferido na comunidade, vindo com
um grupo de romeiros do Rio Grande do Norte, “segundo o que eles ouviram,
Caldeirão não passava de um ajuntamento de abestados que trabalhavam em
81
regime de completa escravidão para o beato” (op.cit., p.231). Um dos rapazes ouvira
também um boato sobre o seu pai desaparecido, que dizia que este estava no
Caldeirão e havia sido obrigado a dar tudo que tinha ao beato. Sabendo disso, os
dois queriam vingança. Porém, quando o beato soubera da história, mandou
Bernardino buscá-los para que tudo fosse esclarecido.
Porém, novos problemas teimavam em aparecer. Escondido, o maior açude
do Caldeirão, estava secando. O narrador relembra que muitos começaram a chorar
de fome, porém resistiram e não aceitaram a solução dada pelo governo, que era a
que todos necessitados fossem para os chamados campos de concentração do
Governo Central, resolução sensata, segundo o narrador, pois era “onde
flagelados morriam de fome, à míngua de de-comer”. Os médicos, por falta de
meios, ajudavam dando uma droga qualquer para matar logo o flagelado.
Passada a seca, 1933 prometia ser um ano de muita colheita. Vésperas do
Natal, todos iniciaram os preparativos para o plantio e as mulheres bordavam
toalhas, enfeites e fitas para os festejos de São José e Nossa Senhora:
Como acontece em todos os cantos do mundo, o Menino Jesus iria
nascer em Caldeirão! Ante nossos olhos, entre cantigas e benditos,
ele chegaria alegre e sadio, num ato como se fosse teatro de igreja.
O lado triste era a ausência de padres. É que eles andavam de vista
apagada para os lados dos Caldeirão. Eu não escondo que tal
proceder não diminuía a nobreza do espetáculo, porque depois que a
função começava, com o beato Lourenço entrando com aqueles
paramentos, a cordura dos revoluteios de santa cruz do deserto,
creia, não se sentia mais falta de nada. Todas as forças do Divino se
apossavam da gente, o canto crescia nos céus, indo e voltando
nas encostas, nos dando a certeza de que Deus espiava mesmo
para o nosso povo (op.cit., p.246).
O narrador menciona que os padres “andavam de vistas apagadas para os
lados do Caldeirão”, e assim o beato muito naturalmente fazia “as vezes” de padre.
A esse respeito, Bernardino podia estar sendo injusto com os padres. Segundo
Queiroz (1976) esta situação não se devia à falta de zelo dos sacerdotes, mas à
ausência de padres. Conforme a autora, este problema
[...] sempre afligiu as autoridades eclesiásticas e foi uma das razões
do desenvolvimento de muitos dos fatos que a religião oficial tem
considerado anômalos e até mesmo pagãos, ao contrário das
populações que os vivem, as quais consideram estar com a verdade
religiosa” (QUEIROZ, 1976: 161).
82
A chegada de Severino Tavares era aguardada. Com ele, a festa de São
José ficaria completa.
Com passar dos dias, as chuvas não chegaram. A pedido do beato,
Severino Tavares fora pedir conselhos ao padre Cícero, doente. Por isso o
conselheiro não conseguiu falar com ele. Porém, obteve outra triste informação da
beata Mocinha: “- Diga ao beato Lourenço que o Caldeirão foi doado por meu
padrinho Cícero aos padres salesianos. Os padres vão precisar daquilo lá. Diga a
ele” (AGUIAR, 2005: 250).
A desconfiança inicial do narrador acerca do empréstimo do Caldeirão
procedia: o “eternamente durante dez anos” dito pelo padrinho chegara ao fim.
Detalhe: os dez anos já haviam se passado.
Quando o beato tomou conhecimento dos fatos, tranqüilamente, começou a
pensar para onde deveria seguir. Bernardino e Severino Tavares acreditavam que
deveriam pensar no assunto, quando o padrinho morresse. E assim foi feito.
Todos trabalhavam. Quando os santos chegaram, logo em seguida, apareceram uns
soldados, pensando que nas caixas dos santos havia armas. O capitão,
envergonhado, partiu pedindo desculpas.
Como o beato havia dito, uma festa foi organizada em comemoração à
chegada dos santos. O cantador José Bernardo compareceu e, segundo o narrador,
iria preparar um romance, contando a história da Santa Cruz do Deserto. Rezas,
benditos, muita comida e vinho, porém, nenhum padre comparecera. Novamente o
beato resolveu “fazer as vezes” para receber os santos no altar.
O narrador conta que vários meses se passaram. A felicidade reinava. Até o
dia em que receberam a notícia de que o padrinho, aos 90 anos, estava “entre a vida
e a morte”. Romeiros e o povo do Caldeirão se juntaram para rezar para padrinho,
entretanto, “às cinco da madrugada do dia 20 de março o meu padrinho Cícero
Romão Batista entregou sua alma ao Criador”, lamenta Bernardino. Todos
choraram. Beata Josefa Madalena, de Juazeiro, sabia que esta morte iria trazer
conseqüências terríveis para o povo do Caldeirão.
Apesar de tantas infelicidades, Bernardino, comovido, diz ao atento repórter:
Eu sei que não devo conversar com o senhor, neste velório, apenas
lamúrias, ou o que poderia sido e não aconteceu. Seria melhor
encher os ouvidos do senhor e dos que me honram na escuta desta
palestra com assunto mais vestido de real alegria. Não a alegria do
83
riso impróprio para este momento em que nossos irmãos derramam
lágrimas. Falo de alegria do passado que anima o narrar dessa
espera da chegada da manhã (AGUIAR, 2005: 262).
A mesma passagem na primeira edição:
Eu sei que não devo conversar com o senhor, neste pequeno salão,
só lamúrias, ou o que poderia ser e não aconteceu. Eu prefiro encher
os ouvidos do senhor e dos que me honram na escuta desta palestra
corporal com assunto mais vestido de alegria. Não a alegria do riso
impróprio para o momento de lágrimas que todos os nossos irmãos
derramam neste vago das horas em que vistoriamos o corpo do
Beato Lourenço, ali dormindo (grifo nosso). Alegria do passado a
animar o presente do narrar, colorindo essa conversa rápida, de
espera” (AGUIAR, 1982: 183-184).
A alegoria da ressurreição do messias, que aguarda o momento oportuno
para acordar, simboliza o advento da nova ordem redentora. O autor nos indica a
natureza dessa nova ordem ao relatar que em 1934, na Matriz Nossa Senhora das
Dores, Monsenhor Eraldo, ao alertar aos romeiros quão perigoso era o comunismo,
passara mal após o sermão e morrera e todos pensaram que havia sido o demônio.
(O narrador garantiu ao seu interlocutor que a causa da morte do Monsenhor fora
uma congestão, devido a uma galinha gorda com pirão que ele comera em
demasia). Enfim, não se sabe o pecado que fulminou o Monsenhor, sua gula ou seu
anti-comunismo.
Nesta época, a Igreja muito falava sobre o comunismo. Uma das histórias
era a de que os comunistas chegariam à cidade de trem e atacariam a Igreja. Para
protegê-la, o homem chamado Vicente, que se dizia emissário da Sagrada Família,
nos diz o narrador, foi pedir uma contribuição em dinheiro no Caldeirão. Também
solicitou ao beato que fossem destacados alguns romeiros para ficarem de vigília
fora da Igreja. O beato achou melhor pensar antes de fornecer ajuda.
Uma sucessão de desgraças ocorreu em seguida. Vicente, o suposto
emissário, foi acusado de roubo pela polícia. Os romeiros ingenuamente resolveram
defendê-lo e alguns morreram. Houve tiroteio na Matriz. Padre Colares pediu calma.
Uma velha começou a dizer que nosso Senhor iria ressuscitar os romeiros mortos.
Foi então que um deles estava ferido, levantou-se. A velha começou a gritar que
havia acontecido um milagre. Enquanto isso, a Igreja teve a sua caixa de esmolas
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roubada e o boato que circulava era que a romeirada ladra viera do Caldeirão.
Porém, havia Sebastião Marinho e Bernardino da comunidade. Desde então, os
romeiros passaram a ser perseguidos.
Dias depois, um industrial paulista chamado Geraldo Celan, amigo de Tião
Grande, “na sua arrogância de grande capitalista”, foi ao Caldeirão interessado em
mecanizar a agricultura do lugar, prometendo vantagens ao povo. Acabou passando
três dias na comunidade. Todos se animaram, inclusive o beato, na sua bondade
quase ingênua. Até o narrador não desconfiou das más intenções do industrial: “Eu,
que sempre fui de suspeitar de esmola grande, naquela noite fiquei embalado nos
sonhos das mudanças” (AGUIAR, 2005: 276). Porém, Zaías, “levado pela sua
sabedoria de escutar vozes não-pronunciadas”, alertou o narrador: “- Compadre,
estou me lembrando das pedras da devota Josefa Madalena, quando olho meio
atravessado para esse industrial paulista. Será que ele veio bulir nas pedras da
chapada?” (op.cit., p.277). Para Zaías, esse 'bulir' de pedras simbolizava a perda da
liberdade e um possível fim. À trilogia do mal, militares, fazendeiros e padres, se
junta o capitalista moderno.
Em 1935, a guerra do Governo contra os comunistas virara assunto diário.
Quase sempre estes eram associados pelos jornais ao povo do Caldeirão, acusado
de viver em regime comunista. Bernardino cita uma notícia de um jornal de São
Paulo que disse: “o beato casava, batizava e ditava as leis do lugar e ainda vivia
amancebado num verdadeiro regime comunista com milhares de meninas virgens,
enquanto que o povo trabalhava de graça para ele” (op.cit., p.278).
Uma dessas 'virgens' era Maria de Oeiras, uma “menina órfã e de menor que
vivia sob os cuidados do beato”. O problema era que este boato acerca da pureza
de Maria de Oeiras teria surgido na própria comunidade, talvez inventado por
Cícero de Jesus, homem responsável, porém, “criador de casos, dono de
temperamento difícil”, com intuito de apressar a sua união com ela. Mais uma vez,
ficou comprovado que tudo não passara de um boato, afirma o narrador.
Um amigo do industrial Geraldo Celan, que tempos antes havia prometido
melhorias para a comunidade, chegou ao Caldeirão. que desta vez, causou
desconfiança em alguns, inclusive no narrador. Sebastião Marinho observara que o
industrial, apesar de muito bem trajado, usava botinas de soldado: “- É botina de
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soldado, mestre Bernardino. Pode olhar pelo corte do couro e pelo engraxado diário.
Tenho um primo que é militar. É botina de soldado, que Deus me perdoe, mestre”
(op.cit., p.288). Celan havia se interessado pelo algodão e seu amigo, pela oiticica.
Era estranho. Bernardino sentia que a profecia de Josefa Madalena estava mais
próxima de se realizar. Porém, o beato que acabara de dar uma toalha de renda ao
'ilustre' visitante, continuava excessivamente generoso:
Aí, a bondade do beato Lourenço falou mais alto outra vez:
- O senhor, querendo, pode levar a toalha e dar de presente à sua
mulher. A toalha é sua, o senhor querendo.
Pronto. Quando eu me preparava para lamentar a despropositada
bondade do beato, aquela mania de dar as coisas de graça, apenas
por fidalguia desenfreada, apareceu Tomázia com as terrinas se
derramando de comida, deixando a gente com água na boca (op.cit.,
p.290).
Muito grato, o ilustre visitante, ao partir, avisara ao povo: “- Breve, muito
breve, beato Lourenço, trarei os meus homens para transformar isso num paraíso.
Breve, muito breve”(op.cit., p.291).
Ao findar do dia, o beato, conversando acerca de sua vida, a importância da
verdade, as alegrias e tristezas enfrentadas por ele e seu povo, tranqüilamente,
comunicou aos seus ouvintes: “- Quero que vocês abram bem os olhos e os ouvidos.
Cuidem da vida, porque aquele homem cheira a autoridade. Ali é autoridade que
veio tomar as alturas!” (op.cit., p.292).
Após o terceiro dia da visita do suposto industrial, todos já haviam voltado ao
trabalho normalmente: “se almoçava, se jantava do bom e do melhor, porque fartura
a gente construía todos os dias com trabalho em mutirão, o esforço de cada um
apurado na soma geral” (op.cit., p.295), recorda o narrador. Essa frase do narrador é
uma versão sertaneja do famoso slogan: “de todos conforme sua capacidade, a
todos conforme sua necessidade”. O Caldeirão é a realização da utopia coletivista
prefigurada pelo comunismo primitivo:
Pouca coisa se comprava. Todos comiam, bebiam, calçavam,
tomavam remédio, até de farmácia, adquirido no Crato ou Juazeiro,
quando a minha meizinha não cumpria o efeito esperado. Ninguém
devia dinheiro em canto nenhum. O cristão para ter bens de
comedoria, de uso e de apetrechos de casa, não precisava de firmar
conta de tostão contado na ponta do lápis em barracão. Não faltava
moradia para quem quisesse ali ficar. [...] Caldeirão era uma escola.
Era o que se via (op.cit., p.299-300).
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Mas ainda não era chegada a hora: “a semente não se planta fora de
época...”.
Ao saírem para colher o algodão, o povo viu, de longe, uma estrela caindo
sobre o Caldeirão. Para todos isso foi um mau sinal. Sebastião Marinho, “homem de
preocupação firme em superstição”, afirmou a Bernardino que vira (vaticinara?): “- Vi
que ela caía sobre o Caldeirão, destroçando a plantação, provocando matança,
mestre. Vi que as mulheres gritavam, os homens corriam desesperados. Vi que ela
caía sobre o Caldeirão, mestre” (op.cit., p.296). O narrador, “apesar de não ser
homem preso à superstição”, duvidou se o amigo contava-lhe um sonho ou falava-
lhe a realidade, profetizando uma tragédia, afinal de contas, ele completa, “na
verdade, nunca separei as duas coisas” (op.cit., p.297).
O beato, sobre o assunto, apenas resmungara as palavras cariris que nunca,
reitera o narrador, se soubera o significado: “- Deduá, atissali aliô, Deduá...” (op.cit.,
p.298).
A estrela era um aviso. Dias depois, Janjão comunicaria ao beato que o
Caldeirão estava cercado pelos militares. Zaías, para acalmar a todos, mandara-lhes
permanecer em suas casas, pois, nada de errado eles haviam feito. Porém,
Sebastião Marinho, “inflamado, arrotou valentia e anticlericalismo:
-Eu bem que suspeitava desses industriais safados que nos
espionavam, beato. Isso foi a mando dos padres salesianos do
Crato. Eles estão doidos para tomar as terras do Caldeirão. Todo
mundo sabe que eles se uniram aos políticos e à polícia para
destronar a gente daqui. Igreja de Cristo! Ela cheia é de cão! Acho
que a gente deve reagir, se embrenhar no mato e atacar essas
pestes de pouco a pouco, sempre pegando eles na desvantagem do
terreno (op.cit., p.303).
Todos os presentes concordaram. Porém, não havia armas para tal
confronto.
Fernandes (1996) observa que “o narrador pode dar-se ao luxo de
expressar os preconceitos de sua época se estes preconceitos têm alguma função
dentro da obra e não são meras opiniões” (FERNANDES, 1996:47). No caso de
Caldeirão, esses preconceitos visam criticar a história oficial, portanto não podem ter
função alguma na obra, a não ser que o objetivo do romance seja justamente o de
criticar a história oficial, configurando-se assim como uma versão dessa história.
87
Mais uma vez, o beato, com sua tranquilidade habitual, disse a todos:
- Quero que haja união entre nós. Ninguém precisa contrariar a
verdade. O que um disser, por ser verdade, todos dirão. Vejam o que
eu ensinei. Essa inquisição do governo não parece com as que
passaram por aqui. A Trindade do mal se aboletou no nosso pouso
(AGUIAR, 2005:304).
E o autor se expressa através do beato, pois a terminologia “trindade do mal”
foi cunhada por teóricos marxistas do romance latino-americano contemporâneo,
como se viu acima. O narrador, apresentando claramente sua indignação diante dos
fatos, reiterou o dito pelo beato: “Veja que soletração palpável! Que claridade de
razão mediada de juízo! Como se tripartia a trindade? não via quem não queria”
(op.cit., p.304). Assim, não enxerga quem não quer a colossal sapiência desses
teóricos.
Os militares, quando chegaram, queriam saber onde o beato estava. Todos
eram a favor de que o beato fugisse. Mas o beato fora contra: “- Se eles me querem,
mestre Bernardino, por que não me apresento? Se é de cair muitos, que caia um só.
Aí, vocês ficarão livres. Eles me querem, mestre” (op.cit., p.305). Inicia-se assim o
relato da paixão do beato.
O beato se preparou, com uma espingarda nas costas, para partir “e disse
que estava pronto para o sacrifício, que todos pediam”. Aquela separação,
conforme explica o narrador, era “quase mortal para nós, foi selada quando ele deu
os primeiros passos em direção da vereda dos elevados da Chapada do Araripe,
que manda às terras de Pernambuco” (op.cit., p.306). Subindo ao monte, para o
sacrifício, parecia Jesus rumo ao Calvário. Mas na verdade fugia para Pernambuco.
Aqui é forçada a alegoria messiânica.
Nesse ínterim, os soldados, “qual formigas azuis na destruição da árvore
cariri”, se aproximavam. Para evitar que encontrassem o beato, o povo resolveu
atraí-los com uma bandeira branca improvisada, pedindo paz. Aqui não foi o beato
que se sacrificou pelo povo. Antes foi o povo que se ofereceu em holocausto pelo
beato. Seria o povo do Caldeirão o verdadeiro protagonista do romance?
O povo começou a ser interrogado. Personagens como o cabo Zé do Fogo e
o tenente Eládio iniciaram os interrogatórios sem sucesso. O capitão Bezerra
seria chamado para resolver o problema e o povo estremeceu.
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Porém, um grupo de soldados, quando estavam ainda a caminho do
Caldeirão, viu e permitiu que um velho decrépito partisse. Um deles falara ao cabo:
- Conta pro tenente que a gente não achou o beato não. Vimos
cedinho apenas um velho caçador de rolinha com mochila, chapéu
de couro e espingarda nas costas indo passarinhar. Falou com a
gente, ensinou o caminho e desapareceu no entrançado do carrasco
(op.cit., p.313).
Acreditando ser o beato, do Fogo reclamou e um dos soldados retrucou:
“-Não se podia prender um velhinho daquele, todo encurvado, de fala macia pedindo
licença para passar, educado” (op.cit., p.314).
A descrição realmente não batia com a do beato que, apesar da idade, era
um negro alto e forte. Porém, o narrador confirma que era o beato que passou
despercebido pelos soldados. Como justificativa, o narrador comenta: “Um velhinho!
Veja em que a Providência foi transformar a formosura do beato Lourenço, do
Caldeirão” (op.cit., p.314).
Precisando a data destes acontecimentos, onze de setembro de 1936, o
narrador, categoricamente, afirma que esta era: “a data do começo de nossa
desgraça” (op.cit., p.315).
Conforme prometera o tenente Eládio, devido à falta de cooperação do povo,
o capitão Bezerra fora chamado. Era temido por sua crueldade e, com certeza,
obteria a informação desejada: a localização do beato. Da Estação foram avistados
mais soldados sob o comando do Capitão Bezerra que, dias antes, havia se
fantasiado de industrial e ludibriado o povo da comunidade. O personagem Janjão
disse que eram, em média, uns 200 praças, porém, para o narrador eram bem mais.
Ao chegar, deu voz de prisão a todos. A lamúria fora geral. Mandara os
soldados fazer uma grande fogueira para queimar todos os sinais sagrados da
comunidade. Mas a “santa cruz do deserto”, mediante o pagamento ao tenente e ao
cabo de um saco com moedas de ouro, escapou ilesa: “o tenente e o cabo, de
repente, ficaram atraídos de tal sorte para a riqueza do saco que soltaram a santa
cruz ...” (op.cit., p.322).
Chega, então, o coronel Cordeiro Neto, comandante-chefe da operação:
Os soldados enfileiram-se e o coronel desceu calado, de cara
fechada, com abuso derramado pelos olhos. Subiu no alpendre e de
comandou a vistoria. Olhou para a nossa gente, espantada e
acuada pelos cantos do terreiro, sob a mira de armas mortais e deve
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ter se sentido feliz. A guerra estava ganha. A guerra dos beatos!
(op.cit.,p.323).
O capitão Bezerra, seguindo ordens do comandante-chefe, ordenou que
todos desocupassem suas casas e partissem. Zaías, relembra o narrador,
prontamente respondeu: “- Capitão, ninguém aqui é dono de nada. Tudo aqui
pertence a todos” (op.cit., p.324).
Como resposta, o capitão, ironicamente, disse ao coronel:
- Ouviu, coronel? Eles aqui são escravos do beato Lourenço. Eles
aqui são obrigados a trabalhar de sol a sol para o beato. Eles aqui
não são donos de nada, tudo pertence ao beato Lourenço, que,
sozinho, luxa a custo do suor deles. Puro comunismo o regime daqui
(op.cit., p.324).
Nesta passagem, fica nítido o caráter ideológico emprestado por Cláudio
Aguiar a sua versão dos fatos transcorridos no Caldeirão. Apresenta seu despojado
narrador com nítido sentimento antipropriedade, crendo que com a coletivização
da propriedade a desigualdade entre os homens findará. Representa, assim, o
Caldeirão semelhante a um Paraíso, cuja virtude preponderante é a ausência de
propriedade privada.
Os animais começaram a ser mortos. Os soldados bebiam. As mulheres
foram obrigadas a cozinhar para eles. Estas, observa o narrador, “logo começaram
a ser tocadas e apalpadas”, muitas tentaram se matar bebendo querosene, outras
foram estupradas, “desvirginadas pela fúria animalesca dos soldados”. Porém, duas
delas, Juliana e Conceição se agarraram alegremente com os soldados.
Apesar da ordem de despejo, o povo permaneceu no terreiro da Estação.
Foi então que o capitão Eládio mandou todos os homens, cerca de quinhentos, para
o Engenho:
No Engenho o tenente mandou que todos se juntassem uns aos
outros, formando uma corrente humana. Ficamos lá. O tenente deu
uns gritos para os soldados apresentarem as armas em nossa
direção. percebi que eles formavam um pelotão para nos
fuzilar. Mesmo assim, disse no ouvido do compadre Zaías que eles
não atirariam. Eles tinham medo, eram uns covardes. Queriam nos
torturar, apenas. Pedi que ele passasse o cochicho para os outros
(op.cit., p.329).
Depois de serem muito humilhados, todos foram mais uma vez mandados
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embora. Mas as moças sem família poderiam permanecer para irem embora com a
Força, pois, o coronel não permitiria que estas ficassem com fanáticos como o
beato, dono de “uma corte de virgens moças para ele”. Um fotógrafo tirou o
retrato de todos.
Conscientes de que suas vidas não são mais do que a realização de um
destino que fora imposto, o narrador conta que sugeriu que todos partissem em
direção ao beato, no Sítio do Maracujá, “socavão perdido nos escondidos da
chapada do Araripe, quase na fronteira com Pernambuco” (op.cit., p.341). Lá,
tentariam se reerguer com a ajuda dos amigos da comunidade.
Porém, Sebastião Marinho dera uma triste notícia ao narrador. Desesperada,
Maria de Oeiras, tocara fogo no próprio corpo. Os soldados até se divertiam com a
sua “disposição”:
O quadro era aterrador: os olhos queimados deixavam uns buracos
fumegando, uma mistura estranha de matéria escura com sangue. O
couro da cabeça pipocado, parte dos ossos descobertos e sujos de
tisna anunciavam aquele formato horrível das caveiras. As carnes
do corpo soltando um líquido a escorrer pelo chão avermelhado,
atraía moscas azuladas em grande quantidade. Também uma
catinga de podre crescia ao redor. A situação agoniada (op.cit.,
p.344).
Apesar deste quadro aterrador, ela ainda estava viva e o cabo do Fogo
fora o responsável pela sua morte, dando-lhe três tiros. Mais uma vez, o narrador
duvidando do que viu, conta: “não consegui distinguir, depois dos tiros e das
palavras do capitão o sonho da realidade” (op.cit., p.346).
Cícero de Jesus, pretendente de Maria de Oeiras, não estava no Caldeirão.
A pedido de Bernardino, ele havia ido a Juazeiro, em busca de Severino Tavares ou
de Eleutério, seu filho. Logo depois, todos saberiam que ele havia sido atingido por
balas na mata.
Havia ouro e prata no Caldeirão, vinham dos prósperos romeiros que davam
ao beato. O algodão iria para o Crato, Capitão Bezerra disse que prestaria conta
depois. Questionado pelo narrador, ele dissera que iria fazê-lo ao Governo.
transcorria o segundo dia de ocupação. Muitos partiram para sua terra natal, mas “o
melhor que se fazia era aconselhar que as pessoas ganhassem caminho em direção
ao Sítio do Maracujá, o ponto de encontro com o beato Lourenço” (op.cit., p.350).
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Uma das grandes preocupações dos homens era sobre o que a Tropa
estava fazendo com as mulheres. Algumas cediam com prazer, mas a maioria sofria
muito com o abuso. Pensando nisso, Bernardino e Zaías resolveram vigiá-las no
Engenho. Afinal de contas, não daria para protegê-las contra os ataques dos
soldados, porém, “pelo menos, dava uns gritos para dizer que estava presente”
(op.cit., p.350). Foi então que dois se esconderam atrás duma moita e viram Cabo
Zé do Fogo com Juliana:
Andaram em francas algazarras a ponto de se poder ouvir a os
suspiros de impaciência que os afagos da mulher despertavam no
militar. Não fosse a minha destacada posição de vigilância, obrigação
de voto assumida com o compadre Zaías, teria saído correndo, mato
adentro, para não ver tamanho desmantelo. Mas os cuidados em
preservar a ordem geral das mulheres presas na Estação nos
obrigava a provar daquele amargo bocado, sem fazer careta. Além
do mais, precisava ser testemunhado. Por isso, acordei compadre
Zaías (op.cit., p.352-353).
Em clima de romance, Zé do Fogo contara vantagens a Juliana, como havia,
em 1926, perseguido os seguidores da Coluna Prestes e como fora bem recebido
pelos homens do poder, junto com a Tropa, no Crato. Narrara-lhe também que em
sua chegada com a Tropa ao Crato, quando estava a caminho do Caldeirão, fora-lhe
perguntado sobre quem eles iriam combater e, prontamente, ele respondera:
Eu dizia logo que contra os fanáticos do Caldeirão do beato
Lourenço. Uma delas disse assim: “A guerra dos beatos?” Ignorava
ela e quase toda a cidade que aqui havia devassidão, que o beato
passava no papo todas as virgens, menos você, claro” (op.cit.,
p.354).
Dizendo-se valente e incapaz de inventar mentiras como os outros militares
que buscavam promoções, o cabo, “homem afogado na falsidade e maldade”,
narra todas as falcatruas dos políticos e militares e da Igreja envolvidos no massacre
do Caldeirão:
O coronel declarou nos jornais de Fortaleza que o beato Lourenço
tem duas cruzes: uma pesada, para botar nas costas do romeiro,
quando chega, e outra maneira, para botar nas costas do mesmo
romeiro, quando ele está se matando de trabalhar de graça.
[...]
O que fazem é explorar o negócio como se aqui existisse
devassidão, safadeza do beato com vocês, né, amor? Por que não
eles não dizem que o negócio é porque os fazendeiros e a Igreja
Católica pediram mesmo ao governo para destroçar isso aqui e
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pronto?
Pois olhe, amor, um dia eu digo a quem possa divulgar para o resto
do mundo que aqui não existia nada disso (op.cit., p.357).
Nesta passagem, o narrador, além de fazer a batida crítica à “trilogia do
mal” torna-a mais contundente ao atribuí-la aos seus inimigos, personagens
repugnantes como o cabo do Fogo, que apesar de todas suas maldades,
reconhecia as falhas do sistema do qual ele fazia parte. Reconhecendo quão
inverossímil é este relato da conversa do cabo, Bernardino comenta com o repórter,
seu interlocutor: “Creia, senhor, o destino tem muitos segredos e mistérios que não
se revelam sem mais nem menos à vista dos mortais” .
O Cabo se enroscava com Juliana, a que esta foi atingida acidentalmente
por tiros que o mesmo cabo havia dado em direção a uma coruja. As balas bateram
em umas pedras e acabaram recocheteando, fatalmente, na direção da moça. O
cabo chorou. Até Zé do Fogo tem coração.
Mas a infâmia continua. Divulga-se, entre os soldados, que os homens do
Caldeirão roubaram uma arma e mataram Juliana por ela estar a favor dos militares.
Diga-se de passagem, essa versão da história parece ser muito mais verossímil que
a da bala que resvalou na pedra.
As casas começaram a serem queimadas. Após isso, o narrador revelou ao
seu compadre Zaías que era hora de abandonar o Caldeirão. Todos partiram em
direção ao Sítio do Maracujá, do coronel Pedro Batista. Porém, na mata,
encontraram os soldados que ainda não sabiam da ordem dada pelo coronel e os
fizeram voltar ao Caldeirão. Desta vez, viram que quase tudo havia sido
queimado, “de deixaram a Estação, a igreja, a casa dos padres, e uns
armazéns”. O capitão, zangado por ter sido incomodado, após esclarecido o mal
entendido, mandou novamente todos partirem. O narrador lamenta:
Tudo ficou sob o comando do capitão José Bezerra, o tal Tourinho,
que se balançava tranqüilo, de botas lustradas, numa rede de
varandas rendadas, no alpendre da casa dos dos padres, poupada
do fogo por servir de apoio para eles eles. Não sei por que razão
lembrei-me dos primeiros destruidores daquela região natural. O
capitão parecia Medrado, homem pior de idéias, embalado nos fofos
da rede (op.cit., p.370).
No seu retorno ao Caldeirão, Bernardino também soubera que Zaías e
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Eleutério haviam sido presos. Este tentou, à força, levar informações ao Zaías. O
narrador afirma:
Com pouco tempo o grosso da Força foi embora, porque mais nada
restava fazer no Caldeirão. A missão estava cumprida: o governo
destruíra o foco de fanáticos que segundo dissera o coronel Lobão
numa entrevista publicada mais tarde em jornais de Fortaleza, por
pouco Caldeirão não se transformou num novo Canudos
(op.cit.,p.372).
3.4 – Sítio do Maracujá, mais outra morada: a traição
Novamente, todos partiram em direção ao Sítio do Maracujá, lugar, segundo
o narrador, de “situação especial de proteção”, pois, “se acontecesse algum perigo,
de repente todos podiam fugir e esconder-se nas abas dos talhados que formavam
grandes locas, como se fossem salões naturais”. Porém, chegando lá, as
dificuldades começaram a aparecer. Todos os dias, chegavam mais pessoas
famintas, pedindo ajuda ao Beato Lourenço. Mas foi quando Severino Tavares
chegou que o povo obteve informações sobre o que havia ocorrido: mais de cento e
cinquenta moças órfãs estavam sob a guarda dos militares que, mais tarde, as
usariam como domésticas em Fortaleza.
O povo passara todo o ano de 1937 no Sítio. No Natal, a Força libertou
Zaías e Eleutério que se juntaram ao seu povo. O Sítio do Maracujá pertencia ao
coronel Pedro Batista. O povo vivia, mas não plantava. Até o dia em que o Beato
foi conversar com o coronel, pedindo-lhe autorização para fazê-lo. Esta foi dada.
Como forma de gratidão, o beato pedira que trezentos homens o fizessem
[...] a limpa e a conservação do que fosse necessário nas plantações
dele. O coronel ficou radiante e admirou aquela união em torno do
trabalho, aquele exemplo de gratidão e amizade. Tudo aconteceu
dentro dos cuidados necessários para não despertar suspeitas dos
vizinhos” (op.cit.,p.376).
Tudo prosperava. Porém, Sebastião Marinho achava arriscado todos
permanecerem no Sítio, pois, no Crato e no Juazeiro as pessoas sabiam que eles
estavam lá, e o seguinte boato circulava: “que havia mais de mil fanáticos com
armas nas mãos embalados e decididos a invadir Crato e Juazeiro, tomar o mando
das autoridades, expulsar a Força do Caldeirão e restaurar a Pátria do Sertão, sob a
bandeira da santa cruz do deserto. No governo seria colocado o beato José
Lourenço como substituto de Padre Cícero” (op.cit.,p.378). Assim, para Sebastião
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Marinho, o melhor seria procurar o capitão para esclarecer o boato, pois, se assim
não procedesse, era “a mesma coisa que cruzar os braços e esperar a morte”.
O narrador ficou assustado com as palavras do compadre: “palavreado
assim autoritário com ressonância na ordem da obediência metia medo”. Mas, ele
completou, “assim mesmo, no final das contas, quem deveria dar as ordens de
comando e execução do decidido era o beato Lourenço, o guia de todos”
(op.cit.,p.377).
O povo da cidade também vivia assombrado com a possibilidade de um
ataque do povo do beato. Capitão Tourinho espalhava que ele havia formado um
bando de salteadores que já tinham roubado sua fazenda no Juazeiro.
Outro boato que Sebastião Marinho ouvira foi o de que Severino Tavares,
“homem arribado de outras perseguições”, estava sendo procurado pela Tropa.
Como precaução, ele queria que Severino partisse de imediatamente, pois temia
que os militares viessem atrás dele e acabassem prejudicando a todos. Em tom de
ameaça, Sebastião disse ao beato que se ele não partisse, iria chamar a Tropa para
pegá-lo. O beato, que estava meio doente, disse: “- certo, meu filho, você pode ir
buscar a Tropa, mas será que é para Severino? Será que não é para todos nós?
(op.cit., p.383).
Mesmo assim, Sebastião, em companhia de Pedro Vieira, partiu. Todos
ficaram apreensivos. A pedido do narrador, Zaías foi para Mata Cavalos, lugar no
qual Severino estava escondido, para avisá-lo.
Sobre a atitude de Sebastião, o narrador questiona:
[...] não sei que demônio se encostou na sua razão de homem
sensato, transformando-o num inimigo do conselheiro Severino
Tavares. [...] será que outros interesses se escondiam por trás de
tudo aquilo? (op.cit.,p.385).
em Santa Fé, Sebastião disse ao coronel Bené Félix que o povo do
Caldeirão, a mando de Severino Tavares, iria invadir a cidade. Imediatamente, Félix
partiu para o Crato, para obter mais informações sobre este suposto ataque.
Sebastião, acompanhado de Pedro Vieira, depois que falou com o capitão,
acabaram presos. Sem entender a atitude do capitão, Sebastião foi, de livre e
espontânea vontade, levar os soldados até o Sítio do Maracujá. Porém, havia um
homem do Caldeirão que estava acompanhando os passos dos dois e, vendo-os
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serem presos, correu de volta para avisar o que acontecera.
Ao saberem do que estava por vir, Bernardino lembrou o que o beato disse a
todos sobre tal ocorrência em Baixa Dantas: “quando o perigo rondava a Baixa da
Anta, um dia ele me chamou e disse: se é de morrer o exército, que morra um e
fique o exército” (op.cit.,p.389).
A situação era semelhante. Porém, o melhor agora seria tentarem se
defender. O beato, ainda “doente das tripas”, aprovou a idéia. Severino Tavares
seria o homem, com ajuda de mais vinte, que iria defender todo o povo. Munidos de
enxadas, foices, machados foram, então, de encontro à Tropa. Durante o confronto,
alguns foram mortos, Severino morreu com uma punhalada dada pelo capitão que,
logo em seguida, levou um golpe de foice que lhe foi fatal.
Retomando um comentário feito pelo narrador no início do romance em que
ele pergunta: “Herói precisa morrer, o senhor não acha?”. O melhor exemplo desse
perfil recai sobre o personagem Severino Tavares. Levando em conta sua história,
podemos entendê-lo como a perfeita personificação do herói da epopéia, aquele que
jamais é um indivíduo e, por isso mesmo, representa o destino de uma comunidade.
Ao ver a comunidade em perigo, sofrendo a violência dos militares, Severino
Tavares despoja-se de tudo quanto poderia conferir-lhe individualidade e sai, com
mais alguns homens, para impedir que o povo do beato sofra, em prol de um destino
comum. Essa atitude demonstra a perfeita integração em Severino e o mundo, o
sistema de valores encarnado por ele não se constitui motivo de conflito, de tal modo
que ele não apresenta dúvidas, mas convicções.
O beato era amado e respeitado pelo seu povo. Entretanto, com Bernardino,
e apenas com ele, é visto pelos critérios e valorações próprios do mundo da
intimidade. Se, antes, a ligação produzida pelas relações sociais universalizava e
dava significação às ações particulares do beato, muitas vezes negativas, quando
avaliadas pela perspectiva oficial, agora Bernardino o a partir de outra
perspectiva.
Mas sabemos que, nas relações íntimas, os indivíduos não aparecem
apenas iluminados pela luz sem cula das melhores intenções e dos seus mais
belos gestos. Ao contrário, o que termina por se revelar, na duvidosa penumbra da
intimidade, o as vilanias humanas, que se escondem à luz do sol: o desejo
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inconfessável, a hipocrisia do arrependimento, enfim, todas as pequenas e grandes
misérias que o ser humano é capaz de cometer e imaginar.
Pedro Moreno, ex-cangaceiro que era liderado por Severino, viu-se obrigado
a não deixar que os mortos fossem reconhecidos pela Tropa, por isso, como
“último recurso”, aconselhou Quinzeiro, junto com ele, à arrancar a face dos
defuntos do Caldeirão:
Pedro Moreno arrojou-se todo junto ao corpo do conselheiro, segurou
firme suas orelhas, cortou e as puxou para cima o couro e um chiado
estranho acompanhou o sangue que espirrava por todos os lados.
Quinzeiro cavou uma cova funda junta a um de minguiriba,
enquanto Pedro Moreno apanhava todos os couros dos rostos e
jogava dentro da cova, enterrando-os (op.cit.,p.403).
Sabendo do que havia ocorrido, o beato disse ao narrador que todos
deveriam partir imediatamente:
- Mestre, no Caldeirão, sem a gente ter feito nada de mal ou de
errado, eles invadiram e destruíram tudo, imagine agora que houve
essa matança. A desgraça vem por soprada pelo próprio vento
como tempestade. Reúna o povo, mestre. Que todos fujam para
onde quiserem. Eu vou para Pernambuco com o Valdevino
(op.cit.,p.404).
3.5 – O êxodo final: o bombardeio na mata
Todos partiram e a separação da comunidade se deu em três grupos.
Apesar das perdas, o povo ficara feliz com a morte do capitão Jo Bezerra, o
Tourinho, “inimigo número um do povo do Caldeirão”.
A Tropa se reuniu. Estavam presentes todos oficiais que haviam, no ano
anterior, destruído o Caldeirão. A perseguição aos “fanáticos” fora acirrada. Quem
usasse preto ou tivesse usado era preso. Tenente Eládio dissera que achava que
Sebastião Marinho e Pedro Vieira haviam levado capitão Bezerra para uma
emboscada. Estes, mais uma vez, ajudaram a Tropa, provando que o tenente estava
enganado. No caminho, encontraram uma choupana, nela havia três homens do
Caldeirão, identificados por Sebastião: Anastácio, Pedro e Cosme. A Tropa principia
a interrogá-los. Foram torturados até a morte, mas não revelaram nada. O narrador
lamenta:
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Parecia a cena do Calvário: os três estendidos sobre cruzes a
receberem os primeiros furos de ponta de punhal do tenente Eládio.
As perguntas iam aumentando na mesma proporção em as
punhaladas penetravam nos corpos, subindo, assim devagar, até
chegar no lugar mortal, aquele mesmo movimento que se faz quando
se sangra bode ou porco (op.cit.,p.410).
Os três mortos crucificados e amarrados nos cavalos para serem levados ao
Crato e Juazeiro, “foram fotografados para os jornais. Bastava dizer que eles
reagiram à bala. Como eram beatos, nada mais justo do que colocá-los na cruz”
(op.cit.,p.410).
No dia seguinte, matérias acerca dos três, saíram nos jornais. Num deles,
lembra o narrador, constava: “Os tristes acontecimentos do Caldeirão. Ainda não foi
capturado o beato Lourenço. São Cosme, São Pedro e Santo Anastácio, da Corte
Celeste do beato Lourenço, mortos na luta com o Capitão Bezerra” (op.cit.,p.411).
Cláudio Aguiar, ao escolher como recurso utilizar fontes e informantes,
mesmo que ficcionais, em sua narrativa fez com que esses fossem apresentados de
forma bem diferente da que relatam os jornais da época.
Cordeiro (2001) observou que “as representações da imprensa nos jornais
da época, compreendendo o período de 1930 a 1940, incluem “narrativas” sobre o
beato prenhes de interpretações oficiais, e são uma extensão da ótica das classes
dirigentes, de documentos militares e de divulgação do discurso do Estado
formulando a memória pública oficial. Esses textos, eventualmente, apresentam
coincidências com o texto oriundo de fontes orais, por incorporarem narrativas da
população” (CORDEIRO, 2001: 39).
O filho de Paulo Vieira decidiu procurá-lo e soube, através de soldados, que
seu pai estava preso. Quando o menino viu Sebastião, o chamou, isso foi o
suficiente para que Paulo Pancada, que estava junto à Tropa, comunicasse ao
tenente que eles estavam confabulando, com a ajuda de Bené Félix, contra os
militares. Eles foram presos. Sebastião, o menino e Paulo Vieira foram amarrados
no centro da Praça. o coronel Bené Félix, que deveria ser preso por esconder em
suas terras fanáticos, se não fosse fazendeiro com muitos amigos na região, teria
tido a mesma sorte.
Acusados de traição, os três foram torturados e queimados na fogueira.
Porém, alguém havia assistido a tudo. Paulo Pancada mandou eliminá-lo arguindo
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que era gente do beato. E assim foi feito. Tocaram fogo na casa da testemunha do
incidente. Crianças, mulheres, todos foram queimados:
Os que conseguiram se soltar das pontas das baionetas, por um
instante, ficavam a dançar em fuga diante dos sacolejos adoidados
dos soldados. Para não serem furados, eram obrigados a cair nas
chamas da casa, já em desmoronamento” (op.cit.,p.419).
Porém, uma menina conseguiu escapar para contar a história. Sobre isso, o
narrador diz: “aconteceu, senhor, que o destino, mais uma vez, deixou que uma
testemunha escapasse”. Chama nossa atenção nessas passagens a extrema
crueldade dos soldados. Esses “fatos” ganham credibilidade devido às credenciais
do narrador e visam incitar no leitor uma grande repulsa aos tipos antipatizados pelo
autor. Infelizmente, nesses trechos a literatura parece ceder espaço ao panfleto.
Escondidos na mata, o beato, ainda doente da barriga, recebia os cuidados
de Bernardino, também curandeiro. Quando o povo do Caldeirão viu um avião vindo
em sua direção, ficaram aterrorizados e sem saber direito para onde ir. Bernardino,
com seu povo, foi em direção a Pernambuco, pois, pros lados de Santa Fé, a Tropa
já havia chegado.
O desespero aumentou quando se viu que o avião jogava muitas
bombas incendiárias sobre a mata. Nos lugares onde eles divisavam
galhos secos, sapecavam balas numa catinga de metralhadora
matadeira.
[...]
A salvação da gente é que o mato, naquele final de 1937, andava
ainda verde, porque o inverno fora bom.
[...]
Quantas pessoas foram atingidas pelas balas e pelas bombas
incediárias? Quantas?
[...] Alguns falam em setecentas ou mil pessoas. Quem contou?
Os aviões?
Diziam muitos sobreviventes que não era um só, mas três. Como
eles eram iguais e andavam separados, um longe do outro, eu
mesmo não reparei nesse detalhe. Mas havia quem jurasse pela luz
dos seus olhos, ter visto apenas um e dentro do avião o satanás com
chifres, o rabo e as botas de ponta, sorrindo e vomitando labaredas
pela boca, pelos ouvidos e pelos olhos. E eu acredito (op.cit.,p.426).
No dia seguinte ao bombardeio, o Coronel Quirino Lira ofereceu almoço aos
militares, com intuito de questioná-los quanto a maldade gratuita em relação ao povo
do Caldeirão. Corajosamente, falou:
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Não, senhores, eu não posso tolerar mais isto. Que me prendam,
que me matem se quiserem, mas, depois da missa, vou direto para o
Crato pedir explicações às autoridades constituídas. Se não
houver solução, irei até Fortaleza falar com o governador. Se não
me quiserem ouvir, viajarei até o Rio de Janeiro. Que os senhores
fiquem logo sabendo dos meus passos...” (op.cit.,p.428 ).
Depois disso, a Tropa, calada, deixou Santa Fé. Do Crato, o Coronel
Cordeiro Neto, o Lobão, destacou o tenente Geraldo Celan, “já promovido por
bravura”, para permanecer em Santa Fé. Lá, os sinos tocaram, anunciando a missa.
O povo e os militares lotaram a Matriz. E
[...] o padre celebrante, vindo de Santana do Cariri, louvou no sermão
o trabalho fecundo desempenhado pela Tropa, pediu a Deus que
nunca mais permitisse tanto sofrimento e desespero para o pacato
povo dali” (op.cit.,p.429).
É a trilogia do mal em plena atividade. Bernardino, após findar a sua
história, diz ao seu interlocutor: “Conversamos tanto que nem demos de que o dia
já clareou há algumas horas. Reparou?”
Sánchez-Rey López de Pablo (1995), ao dissertar acerca da cronologia geral
do relato observa que o narrador de ficção recria um mundo fictício, que toma como
referência, e a partir daí, conta a história que possui, pelo menos, dois tempos
distintos: o tempo da história e o tempo do relato.
O tempo da história é o tempo referencial do discurso narrativo: os
acontecimentos se situam linearmente nele, segundo uma ordem causal temporal. É
o tempo que constitui o ponto de referência do contado.
O tempo do relato é o que configura, o que dá forma à história desde o ponto
de construtivo. É, assim, o tempo interno do discurso narrativo.
Pablo observa que o tempo da narração é um tempo peculiar, que aponta,
concretamente, as relações do narrador com o relato que conta. É o que acontece
em Caldeirão, Bernardino conta uma história que começa a descrever uma ação e
uns personagens que chegam ao fim. Bernardino teve que colocar estes
acontecimentos em um tempo concreto o velório do beato que tem como
referência sua própria enunciação.
Podemos entender a narrativa de Caldeirão como autobiográfica, pois seu
narrador conhece todo o passado a ser reconstituído pela memória. Dessa forma,
100
dois planos temporais: o tempo da enunciação, do ato de narrar e o tempo das
vivências narradas. Na época dos acontecimentos, Mestre Bernardino estava
envolvido pelo calor das emoções e não poderia tecer longas considerações sobre
sua vida, sobre o fim da sua comunidade. Mas agora, na sua nova condição de
remanescente, velando o corpo do principal representante de sua comunidade,
adquiriu o distanciamento necessário para as reflexões e comentários que irá
elaborar sobre atos passados e suas angústias recorrentes. Qualquer narrador que
conta uma série de acontecimentos adota, inevitavelmente, determinada distância
temporal em relação a eles.
Findo o relato de Bernardino, chegara a hora do enterro. O beato seria
levado para o cemitério do Socorro, com Mestre Bernardino, segurando uma das
alças do caixão. O defunto teria morrido de morte natural na Fazenda União, em
Exú, dez anos após o bombardeio da chapada. Bernardino avisa ao repórter que, se
ele, desejar saber mais sobre as pessoas que permaneceram na chapada, depois
ele pode contar.
Como podemos observar, Bernardino um balanço no passado sem cair
na autocomplacência, pois o seu testemunho, pretenso registro da experiência de
muitos, veicula uma certa cosmovisão. Aqui, registrar o passado é falar dos que
participaram de certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento
particular do tempo que se deseja evocar.
Toda a narrativa é marcada pela oralidade Bernardino conta a história a
um interlocutor. Portanto, não pode ser reformulada, que é emitida
instantaneamente. Persistem assim as dúvidas do narrador e suas divagações, onde
é percebida a intenção de Bernardino em reafirmar o que diz, utilizando a própria
linguagem.
Em sua atitude, como Sherazade, das Mil e Uma Noites, ele narra a sua
história e a de seu povo para continuar vivo, ludibriar a morte, afirmar-se, impedindo
assim que a “verdadeira história” de seu povo seja esquecida e passe a ser
conhecida e divulgada.
Pela verbalização de suas memórias, Bernardino constrói e reconstrói seu
passado, a partir das perspectivas presentes. Poderíamos concluir afirmando que os
sujeitos também são os narradores de suas memórias. Mas devemos lembrar que
101
por trás do narrador ficcional se esconde o autor, que pensa longamente o que
escreve e pode reformular o que diz sempre que achar necessário sem
compromisso com nenhum tipo de experiência efetivamente vivida.
Outra questão importante em Caldeirão é que, mesmo dando destaque ao
seu protagonista, observamos que outros personagens pertencentes à comunidade,
protagonizam o romance. Em conjunto representam o arquétipo do povo miserável,
em sucessivos êxodos, perseguindo uma felicidade sempre precária ou truncada,
cuja vida se rebaixa ao seu ofício mais elementar, o de sobreviver. Povo condenado
a um destino inexorável e fatal, até chegar a sua hora e vez. Esta é a tensão que
prenuncia o desenlace funesto; este é o mensageiro que, como Jajão, traz à
comunidade a notícia da chegada da tropa. O povo do Caldeirão é que é o
protagonista real do romance e esse protagonismo tem como coadjuvante a história,
que aqui se presta à condição de personagem de romance por poder ser moldada à
vontade pelo autor. De fato, ninguém sabe ao certo o que ocorreu no Caldeirão. O
autor, então, vale-se dessa liberdade para apresentar-nos sua versão, concebida a
partir de sua visão de mundo.
Caldeirão, entretanto, transcende o relato dos acontecimentos sociais e das
crises políticas que abalaram o Ceará até meados dos anos 30. Na composição dos
personagens e na narração dos fatos entram como ingredientes as crendices, a
sabedoria popular, os rigores do tempo e da natureza e sua conseqüente
mitificação. Enfim, todos aqueles aspectos que se encontram disseminados no
inconsciente coletivo e que a literatura oral encarrega-se de revelar, como se pode
depreender do próprio texto. Sobre as manifestações culturais no Cariri e aspectos
sociais da vida na região representados na literatura, observamos que muitos são os
poetas, cordelistas e romancistas eruditos e populares que apresentam suas visões
da vida no Cariri. Porém, Peter Schröder, que em seu ensaio Cultura e a sociedade
do Cariri, afirma que o que ocorre em Caldeirão é único, pois, muitos dos eruditos e
populares que se propuseram a representar a realidade não da comunidade do
Caldeirão como também do povo caririense, fracassaram por não ultrapassarem o
limite do relato histórico.
Continua o pesquisador:
[...] na verdade, a ficção de produção caririense não costuma
informar ou, pelo menos, não costuma informar bem sobre a região,
102
o que não é nem seu objetivo nem sua tarefa. Historiografia
convencional predominante no Cariri, no entanto, é muito
conservadora e não satisfaz. A história da região parece ser uma
história política e administrativa oficial, enquanto as histórias
econômica, social e cultural são pouco ou mal estudadas, como se
elas quase não existissem. Pode-se ler pouca coisa sobre o que
aconteceu com os donos originários da região, os índios, sobre a
formação social da população regional ou sobre atividades
econômicas tradicionais fora da produção canavieira e açucareira.
Pelo menos, quanto aos índios, sabe-se um pouco mais do que
sobre a população de origem africana, como se nunca tivesse havido
qualquer escravidão africana no Cariri e como se não existissem
afro-brasileiros na região. Onde está o outro Cariri de que se sabe
que ele existia e ainda existe? Também é interessante conhecer os
temas pouco escolhidos pelos estudiosos.
Temas como saberes populares, medicinas populares, crenças, a
distribuição das terras, coronelismo, estratégias de sobrevivência, memória, seca,
cooperativismo são abordados por Cláudio Aguiar que, através do narrador de
Caldeirão, Mestre Bernardino, esforça-se para que essas manifestações não
desapareçam, mesmo que relegados por muitos a frutos da ignorância e
superstição. Assim, podemos afirmar que duas variantes no romance, a histórica
e a folclórica, que lhe conferem vigor narrativo e o estatuto de obra de arte.
103
CONSIDERAÇÕES FINAIS
... julgamento é sempre defeituoso,
porque o que a gente julga é o passado.
Guimarães Rosa
Como foi observado no primeiro capítulo, o uso de temas históricos para
determinação temporal das ações e dos personagens sempre se fez presente na
literatura. Porém, só a partir do século XIX, com as publicações de Walter Scott, que
o romance começou a reconstruir o passado.
Esta reconstrução, teorizada por Lukács, não se dava de forma arbitrária.
Menton, por sua vez, informou-nos que formas alternativas de reconstrução do
passado, que se afastam do modelo scottiano, são características de um novo
paradigma de romance histórico, o novo romance histórico latino-americano.
Observamos que Caldeirão, em muitos pontos, aproxima-se deste último.
Pois, se do romance histórico tradicional temos a informação histórica, em
Caldeirão, esta na representação da comunidade que dá nome ao livro e na de
seus 'antepassados cariris' vem subordinada, em diferentes graus, a algumas
idéias filosóficas, de caráter nitidamente marxista, muito bem expressas na
abordagem da 'trilogia do mal', inimiga dos 'explorados e oprimidos' índios cariris e
habitantes do Caldeirão. Nesses trechos fica patente a utilização de categorias
marxistas na caracterização dos personagens e dos seus atos.
Além da carga ideológica, outro fator condiciona o tratamento da verdade
histórica no romance. De fato, acontecimentos os mais inesperados e absurdos
ocorrem ao longo do romance, tais como a transformação do beato, em sua fuga,
em velho decrépito; ou a forte e 'fantástica' ligação de padre Cícero com o beato,
comprovada durante a prisão dele. Portanto, apesar de datada, a história é
distorcida, conscientemente, através de recursos como omissões e exageros, típicos
104
do gênero.
Mas não devemos confundir fidelidade histórica com autenticidade histórica.
A primeira tem como o objetivo a pintura verídica, arqueológica dos usos, costumes,
linguagens e tipos humanos. a autenticidade, característica do romance histórico,
não tem essa função verídica. Sua meta é o condicionamento temporal daquilo que
é singular na vida, na moral e no heroísmo que nascem no terreno histórico.
A narração, em primeira pessoa, confere veracidade ao relato. O repórter,
interlocutor de Bernardino, se explicita como tal no início da obra, sendo o
responsável pelo seu caráter metaficcional. Sua função é a de registrar ipsis litteris
as impressões do narrador Bernardino acerca dos fatos narrados. Portanto,
personagens históricos tais como Jo Lourenço e o próprio Bernardino são
ficcionalizados. Este último, ora humaniza o beato, quando menciona que este
bebia, brincava e havia, no passado, se utilizado de éguas, buscando prazeres
carnais, ora o mitifica, afirmando-o como profeta. os 'antagonistas' na obra, os
inimigos dos índios cariris e do povo do Caldeirão, formam a 'trilogia do mal'
composta pela Igreja, Militares e Governo. O narrador os trata como o diabo
personificado, não tendo por eles qualquer condescendência. São verdadeiros
monstros de perversidade. Este tratamento pueril, eivado de esquematismo
marxista, faz com que não possamos enquadrar perfeitamente o romance Caldeirão
no novo romance histórico latino-americano. De fato, a desconstrução paródica, que
re-humaniza os personagens históricos, ou seja, não os transforma em mitos, heróis
ou monstros, retratando-os em sua vida cotidiana, particular ou privada, num
enfoque distinto do discurso oficial, não deixa espaço, quando se trata de satanizar
os inimigos de classe.
O exotismo, característico do romance scottiano, em Caldeirão veio
acrescido de uma perspectiva ideológica, comprometida com o propósito de
denunciar a situação política, social e econômica do povo do Caldeirão. E nesse
ponto, comprovamos que, como bem observou Eduardo Coutinho, acerca do
romance latino-americano, a partir de meados do século XX, coexistindo com
realidade objetiva temos, paradoxalmente, o sonho e a fantasia, o engajamento
político ou social se casando à consciência estética, e os conflitos locais,
circunstanciais, se fundindo com outros de ordem genérica ou existencial,
105
característicos de nosso tempo e cultura.
Este afastamento consciente de Cláudio Aguiar da história oficial é
característico do novo romance histórico latino-americano. Vários escritores latinos,
a partir de meados do culo XX, não se contentaram em reconstruir o passado tal
como era visto, mas se propuseram a interpretá-lo. No prefácio da quarta edição de
Caldeirão, escrito por Franklin de Oliveira, o crítico literário observa que “a verdade
social, que nele se instala, comunica a Caldeirão uma qualidade transliterária
ausente na maioria dos nossos romancistas, politicamente neutros”. A “verdade
social” do que deveria ter sido (de acordo com as concepções do autor) se opõe à
verdade histórica do que realmente foi. Portanto, negar que o autor de Caldeirão
visou não só recuperar mas reescrever a história nacional seria um absurdo.
Valendo-se de recursos históricos, sociológicos e, principalmente, literários,
Cláudio Aguiar compôs uma narrativa verossímil, que traduz uma certa visão de
mundo. Esta perspectiva, como mencionamos, trouxe embutida uma concepção
da história, fruto de uma interpretação particular, de caráter marxista. E a história,
assim idealizada, passa, então, ela mesma a ser ficcionalizada. É algo ingênuo e
maniqueísta a forma como são satanizados os personagens que representam a
'trindade do mal', oposta ao caráter quase angelical com que os habitantes do
Caldeirão são retratados em muitos momentos.
Entretanto, deve-se ressaltar que o autor compensou o engajamento social
com uma grande dose de consciência estética. Assim, o fazer literário do autor
matizou seu lado panfletário. O apuro técnico de Cláudio Aguiar se faz notar, por
exemplo, quando recorre à intertextualidade. O relato de Bernardino acha-se
pontuado por repentes, ladainhas e quadras populares que se relacionam com graça
à história narrada. Ocorre também intertextualidade com o folclore religioso as
quadras populares, repentes e ladainhas - encontradas em Caldeirão. Apesar de
importantes no romance, o estudo aprofundado destes casos de intertextualidade
não foi empreendido, pois fugiria de nosso propósito inicial, o de estudar o Caldeirão
à luz do novo romance histórico latino-americano.
O vigor narrativo de Caldeirão se faz presente também na própria
composição do romance que se estrutura não só como a história do beato e do povo
do Caldeirão, mas também como a autobiografia do narrador. De fato, Bernardino
106
viveu o passado que relata, que é assim reconstituído pela memória. Dessa forma,
dois planos temporais: o tempo da enunciação, do ato de narrar e o tempo das
vivências narradas. Na época dos acontecimentos, Mestre Bernardino estava
envolvido pelo calor das emoções e não poderia tecer longas considerações sobre
sua vida, sobre o fim da sua comunidade. Mas agora, na sua nova condição de
remanescente, velando o corpo do principal representante de sua comunidade,
adquiriu o distanciamento necessário para as reflexões e comentários que irá
elaborar sobre atos passados e suas angústias recorrentes. Qualquer narrador, ao
contar uma série de acontecimentos, adota, inevitavelmente, determinada distância
temporal em relação a eles. Esse distanciamento fica bem marcado ao longo da
obra, caracterizando-a, também, como pseudo-memórias, tornando sua estória
verossímil.
Lembramos, enfim, a máxima de Guimarães Rosa, acerca da 'estória versus
história' que diz: “A estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra
a História. A estória, às vezes, quer-se um pouco parecida à anedota”. Estaxima
não se aplica em Caldeirão. Pois, crendo numa idéia barthesiana que a literatura
age mais claramente onde a história é negada, Cláudio Aguiar realiza em sua obra o
que Bella Jozef observara em sua História da Literatura Hispano Americana, acerca
do romance histórico do século passado, que este se tornou “mais interessado nos
fatos políticos e sociais, convertendo-se em documento de testemunho ou
participação” (JOZEF, 1989: 99). “A lenda, por ter em si a força e o colorido, cresce
tanto que vira realidade”, afirmou Cláudio Aguiar. Neste caso a “estória” quer ser
História.
107
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NARRADOR SE FAZ MEM&#211;RIA DE UM POVO</span> by <span
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nd/3.0/br/">Creative Commons Atribui&#231;&#227;o-Uso N&#227;o-Comercial-Vedada a
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