testa, sussurra-lhe um adeus e rapidamente parte com os filhos. Ela tem certeza de que este foi o último beijo. Como
pode ela saber que o tempo começará de novo, que ela nascerá de novo, estudará no colégio de novo, exibirá seus
quadros na galeria em Zurique, novamente conhecerá seu marido em uma pequena biblioteca em Friburgo,
novamente sairá para velejar com ele no lago Thun em um dia quente de julho, terá filhos novamente, que seu
marido novamente trabalhará por oito anos no laboratório farmacêutico e chegará em casa uma noite com um caroço
na garganta, novamente vomitará e acabará neste hospital, neste quarto, nesta cama, neste momento. Como pode ela
saber?
No mundo em que o tempo é um círculo, cada aperto de mão, cada beijo, cada nascimento, cada palavra
serão precisamente repetidos. Também o serão todos os momentos em que dois amigos deixarem de ser amigos, toda
vez que uma família se dividir por causa de dinheiro, toda frase maldosa em uma discussão entre cônjuges, toda
oportunidade negada por causa da inveja, toda promessa não cumprida.
E, assim como todas as coisas serão repetidas no futuro, todas as coisas que estão acontecendo agora
aconteceram um milhão de vezes antes. Em todas as cidades, algumas poucas pessoas, em seus sonhos, estão
vagamente cientes de que tudo ocorreu no passado. Estas são as pessoas com vidas infelizes e elas sentem que todos
os seus julgamentos injustos e ações incorretas e má sorte aconteceram no giro anterior do tempo. Nas profundezas
da noite, esses desgraçados indivíduos lutam com os lençóis, sem conseguir descansar, atordoados por saber que não
podem mudar uma única ação, um único gesto. Seus erros serão rigorosamente repetidos nesta vida como o foram na
anterior. E são essas pessoas duplamente infelizes que dão o único sinal de que o tempo é um círculo. Pois em cada
cidade, tarde da noite, seus lamentos ecoam nas ruas e nas sacadas vazias.”
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Voltemos a Mircea Eliade e seu livro Mitos, sonhos e mistérios. A mesma importância
atribuída aos mitos – e ainda a algumas religiões orientais (do budismo ao indianismo) – de
retorno ao (ou atualização do) passado, encontra-se na origem da técnica psicanalítica. O
rememorar dos acontecimentos primordiais da primeira infância torna-se, particularmente quando
do surgimento da clínica psicanalítica, fundamental (embora haja hoje autores, correntes ou
escolas psicanalíticas que amenizam a importância desse rememorar o passado). Aquele que sofre
não sofre somente por acontecimentos do agora, sofre ainda em consequência de traumas
localizáveis no seu passado histórico. Acontecimentos “esquecidos” no limbo do inconsciente
que devem ser resgatados na relação paciente-analista, como parte do processo terapêutico de
cura – reviver o trauma para integrá-lo na consciência. Diz Mircea Eliade:
“Poderia traduzir-se esta prática operacional em termos de pensamento arcaico, dizendo que a cura consiste
em recomeçar a existência, repetir, por conseguinte, o nascimento, tornar-se contemporâneo do ‘começo’: e este não
é mais do que a imitação do princípio por excelência, a cosmogonia. Graças à concepção do Tempo cíclico, a
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Lightman, Alan. Sonhos de Einstein (ficção), p. 27.