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Expediente
entrelinhaseConcreto Teatro Brasiliense Contemporâneo – nº 1 – ISSN: 2175-5094
Equipe Editorial
Francis Wilker
Maria Carolina Machado
Sérgio Maggio
Micheli Santini
Robson Castro
Jornalista Responsável
Sérgio Maggio
Projeto Gráfico
Julio Mendes
Revisão
Nayse Hillesheim
Fotolitos e Impressão
Alpha Gráca Editora
Tiragem 1.000 exemplares
Colaboradores desta edição
Bárbara Tavares Santos, Sérgio Maggio, Aline Seabra, José Regino, e Tatiana
Bittar
Organização Cultural Filhos do Beco
Av. Comercial – lote 1331
Bairro- Setor Tradicional
CEP - 71690-000 São Sebastião – Distrito Federal - Brasil
CNPJ - 07.360.823/0001-77
ISCR. EST. - CF/DF:07485663/001-67
Teatro do Concreto
SDS - edifício Venâncio V, Bloco R - loja 20
CEP 70.393-904 Brasília – Distrito Federal – Brasil
Telefone 55 61 3226 0011
www.teatrodoconcreto.com.br
concreto@teatrodoconcreto.com.br
A revista entrelinhaseConcreto é uma publicação independente.
As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade exclusiva de seus autores.
Setembro de 2009
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Sumário
Editorial
Deixem as Sementes com os Pássaros
Três Cenas do Teatro Brasiliense
Teatro do Concreto
Caminhos da Criação
A voz dos criadores
Espetáculo: Diário do Maldito
Críticas
Companhia B de Teatro
Caminhos da Criação
A voz dos criadores
Espetáculo: Páginas Amarelas
Críticas
Grupo de Teatro Celeiro das Antas
Caminhos da Criação
A voz dos criadores
Espetáculo: Bagulhar
Críticas
Créditos
5
6
9
23
46
59
86
91
102
110
126
131
153
159
164
167
Editorial
A entrelinhaseConcreto nasceu do nosso desejo de sistematizar e compartilhar
conhecimento na área teatral e também contribuir para o registro do teatro
contemporâneo que vem sendo produzido no Distrito Federal, principalmente a
prática de coletivos criadores, forma de produção com a qual nos identicamos.
Queremos que nessas páginas e nas próximas edições que se seguirão, possamos
encontrar aqui um espaço, acima de tudo, aberto à reexão sobre as artes cênicas
em toda a sua diversidade e complexidade.
Sabemos que um grupo de teatro está, a todo o tempo, construindo conhecimen-
to de forma prática e teórica, às vezes de maneira mais intencional e em outras
mais intuitiva, porém, sempre perseguindo certo rumo no ato criador. Portanto,
dedicamos essa primeira edição da entrelinhaseConcreto ao registro dos pro-
cessos criativos de três espetáculos criados por grupos do Distrito Federal: Bagu-
lhar (Grupo de Teatro Celeiro das Antas), Diário do Maldito (Teatro do Concreto) e
Páginas Amarelas (Companhia B). A reexão sobre um processo criativo possibilita
identicar caminhos, características, ferramentas, técnicas e referências que mui-
tas vezes podem passar despercebidas. Para fazer essa verdadeira arqueologia do
processo, esses grupos compartilharam conosco depoimentos, textos, reexões
e imagens que narram um pouco do caminho que percorreram para chegar aos
seus espetáculos.
Se por um lado o leitor terá acesso ao ponto de vista dos criadores das obras, para
incentivar o diálogo, convidamos outros “olhares” para essas criações, por meio
de dois artigos elaborados respectivamente pelo jornalista Sérgio Maggio e pela
diretora e pesquisadora Bárbara Tavares.
O teatro acontece no instante fugaz e sagrado do encontro com o público, mo-
mento que não se repete. A sua natureza efêmera reforça ainda mais a busca de
registros que possibilitem aos interessados do presente e do futuro “ler essa ex-
periência que está sendo construída no agora. É por meio da memória, que reúne
tudo aquilo que somos, que podemos reconhecer a nossa própria identidade e
pensar quem somos, quem fomos e quem queremos ser.
Boa leitura!
Teatro do Concreto
Essa publicação integra o projeto de manutenção Teatro do Concreto: conexão DF e conta com
o patrocínio do Fundo de Apoio a Cultura, da Secretaria de Cultura do DF.
6 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Deixem as sementes com os pássaros
Sérgio Maggio*
Ator do antológico grupo Pitú, companhia dirigida por Hugo Rodas, que viveu a
contracultura dos anos 1970 em apartamento comunitário de Brasília, o cantor, compositor
e artista plástico Renato Matos tem uma explicação alegórica quando acusam o Distrito
Federal de terra seca para o teatro e outras artes. Ele diz:
— Não se pode exigir que uma árvore nova dê frutos tão frondosos.
A imagem simples remete a tanta discussão que não caberia numa revista que revisita o
processo de criação de três grupos brasilienses. De fato, os frutos que brotam nessa árvore
nova são poucos. Em se tratando de coletivos de teatro, podemos contá-los nos dedos.
Colocá-los numa palma da mão. No passado, foram mais, contam os que por aqui estavam.
A colheita, de fato, encolheu. Sabe-se o quanto é difícil manter a ideologia coletiva acesa
em tempos de patrocínios conquistados no balcão dos gerentes de marketing. Sabe-se
também que mais vale um único nome e sobrenome de forte retorno de mídia do que
uma lista de 20 artistas reunidos. Sabe-se que, no DF, a política cultural ainda é incapaz de
adubar essa planta.
Falar então desses pedregulhos que se misturam à terra vermelha é cair em desgraça,
numa ladainha sem m, que não é entoada por quem segue fazendo um teatro mais
próximo à contemporaneidade. Teatro do Concreto, Companhia B e Celeiro das Antas fazem
parte dessa safra seleta. Não estão sós, felizmente. outros grupos, cujo fazer teatral se
assemelha à prática da coletividade, da colaboratividade, da pesquisa estética, do diálogo
forte e íntimo entre forma e conteúdo. Mas são poucos, não se esqueçam. Não enchem
uma cesta de frutos.
É claro que 50 anos (ainda a ser completados) representam uma fração ínma no percurso
histórico. Principalmente se levarmos em conta que Brasília nasceu contra os caprichos
das elites do eixo de poder do país. Uma capital aberta no meio do mato era uma afronta
para o orgulho da corte que sobrou da monarquia deposta. Assim, a contragosto, muita
gente transferida para “a cidade-esperança veio contrariada. Chegou querendo sair. Por
quanto tempo fomos um dormitório de oportunistas? Por quanto tempo fomos também
um depositário de maus políticos? Todos ajudaram a dar ao DF uma máscara fria de carne
putricada do poder e da infelicidade de estar numa terra sem o encosto do mar e da
umidade.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 7
Mas será que essa falta de pertencimento à terra vermelha do DF teria sido a única causa
para o orescer tímido dessa árvore? Não vamos crer nesse conto de Carochinha. Brasília,
assim como o Brasil, foi ceifada de liberdade e de expressão cultural com o golpe militar de
1964. Os anos de exceção, que paralisaram um país de quase 500 anos, aqui imobilizaram
uma cidade-bebê. Brasília teve 3 anos de liberdade. De 1961 a 1964. Depois, tudo foi
suspenso. A Universidade de Brasília (UnB), que nasceu como modelo de ensino livre, foi
sucessivamente invadida na década de 1960. Em pesquisa recente, que acompanhei como
orientador na Faculdade de Artes Dulcina de Moraes (FADM) da monograa de conclusão
de curso da estudante Nara Silva, constatou-se que a UnB estava cheia de coletivos
teatrais.
O teatro contaminava o campus. Os grupos eram interdisciplinares e dialogavam com a
seminal prática teatral coletiva que chegava ao Brasil, com força e retardo histórico. Estavam
ligados às questões que afetavam o país e a América Latina. Buscavam uma dramaturgia
própria, que reetisse as agonias do homem brasileiro e latino-americano. Nas sucessivas
e brutais invasões, alguns desses grupos encenaram a truculência do poder. Estetizaram
a violência e denunciaram a perda do direito do cidadão brasileiro, por meio da realidade
sensível comum ao campo da arte.
Foi assim nos anos mais terríveis do AI-5, da censura, da tortura e do desaparecimento dos
corpos, do m do direito de se agrupar com qualquer nalidade, sobretudo a de fazer arte.
Foi preciso ter coragem para fazer o que o Grupo Pitú fez. No falso milagre brasileiro, o clima
era o da dramaturgia de gabinete e do teatro bem-comportado, cada vez mais estreitando
os laços entre cultura e mercado. Até chegarmos ao período de redemocratização (com
boa vontade, o ano de 1982), não tivemos tempo para fertilizar esse solo. O que brotou de
interessante em Brasília e nas cidades do DF nasceu da determinação heróica de indivíduos
e grupos. Clandestinamente, eles regaram essa árvore decerto de poucos frutos, mas
dulcíssimos.
Quando se ouve Renato Matos falar com propriedade dessa árvore sagrada, algumas
questões vêm à mente. Quantos frutos teriam nascidos se não tivessem sido subtraídos
todos esses anos de criação? Quantos criadores tiveram que interromper o processo de
criação por conta desse tempo de não”? Só pra exercitar a memória, Silvia Orthof foi um
deles. E ela estava por trás de coletivos de criação pulsante. Esse discurso não é revisionista,
nem tampouco rancoroso. Mas é preciso entender a trajetória descontinuada para não
cobrar uma supersafra. Sejamos justos. E mordamos os frutos aqui servidos pelo Teatro do
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Concreto, Companhia B e Celeiro das Antas. Depois, deixem o resto com os pássaros. Eles
se encarregarão de espalhar as sementes.
* Sérgio Maggio é jornalista, crítico de teatro, professor de artes cênicas e
dramaturgo.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 9
Três cenas do teatro brasiliense
Bárbara Tavares Santos*
Introdução
No meio do planalto central, quase meio século, foi erguida Brasília. Cidade
da profecia de Dom Bosco, dos sonhos de Juscelino Kubitschek, dos desenhos e
maquetes de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa. Pérola do Cerrado, esculpida a mão
pelos artistas-operários da construção civil. Candangos de todas as partes do país,
que juntos zeram emergir do suor, do sangue, do cimento e dos tijolos a cidade
de mármore e de luzes, de retas e de planos, de árvores e ores exuberantes,
enm, de sabores e de cores tão vastos, quanto vasto é o Brasil.
Resumindo, a história da minha cidade desde a sua inauguração em 1960 foi, e
ainda hoje é, uma perene epopéia. E claro, como toda epopéia, a nossa é repleta
de mitos. Alguns verdadeiros, outros falsos. Entre os verdadeiros encontram-se a
burocracia e a corrupção que recorrentemente assolam os poderes Legislativo,
Judiciário e Executivo. Mas, entre os falsos, eu gostaria de problematizar um em
especial: o mito de que em Brasília o teatro de grupo não prospera.
E para tanto, começo agradecendo ao Grupo Teatro do Concreto pelo convite e
aproveito também para parabenizá-los pelo lançamento desta publicação, que
tanto vem a contribuir com as nossas reexões sobre o fazer teatral brasiliense.
Proponho-me, então, a falar sobre três cenas recentes do cenário teatral da
cidade, que vêm ganhando visibilidade em festivais nacionais e internacionais
e consolidando cada vez mais o trabalho de grupo. Os espetáculos o Diário do
Maldito (2006), do Grupo Teatro do Concreto, Bagulhar (2006), do Grupo Celeiro
das Antas, e Páginas Amarelas (2006), da Companhia B. Esclareço, porém, que
esses espetáculos representam apenas uma parte do que vem sendo pesquisado
produzido e encenado nos palcos de Brasília.
Afinidades
Em comum entre os três trabalhos, eu diria que, além de estrearem todos no
mesmo ano, o processo colaborativo de escritura cênica e o fato de terem a
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cidade como uma espécie de personagem coadjuvante ou subtema gerador da
dramaturgia principal.
No caso do processo colaborativo, por ser este pautado por uma forma de
construção cênica dialógica, que horizontaliza as relações entre os criadores do
espetáculo, penso que seja possível situá-lo como o responsável por dois aspec-
tos. Primeiro, pela consolidação do grupo, uma vez que no processo de criação
partilhada tudo é confrontado e debatido até o estabelecimento de um acordo
coletivo. E segundo, pelo desenvolvimento de uma pesquisa de linguagem, que,
nestes três casos especícos, me parece não ter desenhado o resultado esté-
tico dos espetáculos, como também de certa forma conferido a cada grupo uma
identidade.
Com relação à cidade, creio que ela funcionou, nos três trabalhos, como campo
de pesquisa e ou “motor da dramaturgia, O espaço urbano, desde a moderni-
dade, tornou-se a grande arena pública de convivência humana e cultural. Nas
metrópoles é que emergem os urbanóides, os personagens e as cenas que se
movem e se entrecruzam anonimamente pelas ruas, praças, esquinas e avenidas.
Em síntese, “[...] ela, a cidade, personagem secundária da vida, vê-se de repente
no centro das atenções. Transforma-se em espetáculo, hipótese a ser investigada.
(CALDEIRA, in: Lima (ORG), 2008, p. 120).
Entretanto, antes de apontar nos três trabalhos de que forma a cidade aparece
como “motor” da dramaturgia, gostaria de comentar sobre a contribuição do
processo colaborativo de escrita cênica para construção das identidades de cada
grupo. Não pretendo, no entanto, com isto, armar que estas identidades estéti-
cas sejam “identidades mestras”, únicas e abrangentes absolutamente fechadas e
denidas.
Ao contrário, sabemos hoje que na construção da cena artística contemporânea
os limites entre o teatro, a dança, a música, a artes visuais, as tecnologias e a
vida cotidiana são cada vez mais tênues. Não posso deixar de notar também os
caminhos e ou possibilidades identitárias que o próprio processo de pesquisa de
linguagem viabilizou.
Processos e identidades
Diário do Maldito começa com o público sendo recebido num bar onde co-
nhecerá diversas histórias e personagens que descrevem a trajetória divertida
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 11
e comovente de um Poeta. O espetáculo traz à tona, por meio das memórias e
devires de Mira (a dona do bar) as incertezas de um artista que dedicou anos a o
a escritos de denúncia social, mas agora pensa em parar de criar. Inconformados
com a situação, seus personagens invadem a cena para cobrá-lo.
Para construção do espetáculo, o grupo Teatro do Concreto mergulhou, durante
dois anos de pesquisa, no universo da vida e da obra do poeta e diretor Plínio
Marcos. Textos dramáticos, poemas, entrevistas impressas e ou lmadas, fotos e a
biograa do artista, foram digeridos e transformados posteriormente em material
cênico.
O trabalho se desenvolveu a partir de um amplo processo de levantamento de
cenas que deram origem a um canovaccio
1
. Este canovaccio foi sendo, ao logo de
meses de ensaio, colaborativamente lapidado e burilado até chegar ao roteiro
nal. Neste processo de montagem do roteiro nal, o grupo trabalhou com proce-
dimentos de cortar e colar, extrair e enxertar textos, personagens, sons, imagens,
gurinos e objetos cenográcos.
Em relação ao processo de levantamento de cenas (das quais eu tive a oportu-
nidade de assistir algumas durante a realização de dois ensaios abertos), se deu
por uma interface entre o material referente à vida e a obra de Plínio Marcos e o
depoimento pessoal
2
dos atores e atrizes. Esta interface entre a pesquisa dramática
e a experiência de vida produziu como material cênico uma “amálgama entre
vida pessoal e texto dramático extremamente rica e fecunda para a montagem
do roteiro nal.
Esta forma de composição cênica baseada no depoimento pessoal é hoje bas-
tante difundida, sendo utilizada por muitos grupos de teatro e dança. Mas creio
que foi de fato consolidada por Pina Bausch, nos trabalhos com o Balé do Teatro
Wuppertal:
Nunca é como o que aconteceu realmente, sempre se
transforma, muitas vezes, em uma coisa que acaba perten-
cendo a nós todos. Se alguma coisa é verdadeira em uma
1. Roteiro básico, que, de forma sucinta, trazia o esboço da peça e a indicação dos jogos cênicos, dan-
do ampla liberdade de criação quanto à interpretação e aos diálogos. Termo originário da Commedia
dell’arte, conforme Flaminio Scala (2003).
2. Relato pessoal dado pelos atores acerca de algo que eles viram, ouviram, leram e ou vivenciaram
de forma extremamente impactante em suas vidas.
12 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
pessoa, ela conta algo sobre seus sentimentos, acho que
nós acabamos reconhecendo o sentimento, não é uma
história privada. Falamos de alguma coisa que nós todos
temos. Todos conhecemos esses sentimentos e os temos
em conjunto. (BAUSCH, In: FERNANDES, 2000, P.50).
No caso do espetáculo Diário do Maldito, é possível ver a proximidade com o
trabalho de Bausch em duas cenas, pois não há nestas uma necessária separação
entre processo criativo e produto nal. Em uma delas, o Poeta invade o espaço di-
zendo: Muita gente já andou comigo. Uns morreram, outros foram se acomodando. E
eu sempre vendendo badulaque. Olha o livro ruim e barato! Olha aí. (entrega um livro
para alguém da platéia). Sempre sem ter sossego. É o destino, é o dinheiro, é o sucesso,
é a porra da realidade, é a censura, é o aluguel, é a falta de espaço, de ar, de palavras,
de energia, de amor. (para a mesma pessoa) Quer não? Ele não morde não, xinga. E
como xinga! Como é o teu nome? Pode car fulano. Tô vendendo é pra te ajudar.
Durante o desenrolar desta fala, temos a sensação de que o tempo está sus-
penso. Nós os espectadores nos vemos de repente jogados para dentro da cena.
Rompe-se aí a parede que separa cção e realidade. Nós nos sentimos, então, por
alguns minutos, cúmplices e responsáveis pela dor do outro”. Este estado dura
apenas uns cinco minutos, mas é suciente para que, de súbito, algumas pessoas
da platéia acabem comprando de verdade o livro. Talvez não propriamente para
ajudar os “poetas marginais”, mas, eu diria, para minimizar a sensação de vazio e
de impotência que se instaura diante de todos nós.
Em uma outra cena, a platéia é encurralada no centro da arena pelos atores que
correm em círculo gritando: Eram vinte e cinco homens empilhados espremidos
esmagados de corpo e alma entre frias grades de ferro e úmidas paredes. Vinte e cinco
homens num cubículo onde mal cabiam oito. Seus pêlos caíam, seus olhos purgavam,
urinar era um suplício a mais.
A cena remete às superlotações e as condições desumanas das cadeias públicas
espalhadas pelo Brasil e pelo mundo a fora. A cada volta que os atores dão, o
ritmo da cena vai acelerando e nós somos também cada vez mais encurralados
uns sobre os outros. Temos a sensação de estarmos presos e amontoados como
animais em um matadouro.
De repente, no ápice dos gritos e dos sons, ouve-se um último estampido e, em
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 13
seguida, tem-se um intenso silêncio. Os atores, que param de correr, posicionam-
se diante de alguém da platéia e, enquanto falam ao do ouvido um segredo
pessoal para esse espectador escolhido, vão despindo-se até carem completa-
mente nus. Novamente neste momento cção e realidade se misturam. Nós es-
pectadores estamos ali, parados diante de um ator, mas estamos diante também
de um corpo nu, um corpo que inexpugnavelmente se expõe, e que nos revela
a nossa frágil e reduzida dimensão humana. Em suma, dessa vida nada levamos.
Nascemos corpo e vamos morrer corpo.
Penso ser exatamente essa busca por uma comunhão de sentimentos entre es-
pectador e ator uma marcante identidade estética do Grupo Teatro do Concreto.
Uma identidade que nos põe em uma espécie de ritual profano-sagrado, que, em
última instância, me parece recuperar uma parte do sentido atávico que o teatro
em seu devir dionisíaco e artaudiano produziram.
Bagulhar conta história de Ogro e Micóbrio, dois moradores de rua que se vêem
na condição de dividir o mesmo espaço em uma noite fria. Trata-se de uma ence-
nação clownesca, em que os personagens trazem à cena o cotidiano da precária,
desumana e por vezes inescrupulosa sobrevivência dos moradores de rua.
No caso da construção deste espetáculo faz-se necessário esclarecer que o Grupo
Celeiro das Antas, que existe de 1991, já desenvolvia em sua trajetória de trabalho,
uma pesquisa de linguagem cômica como ênfase na arte do palhaço. Mas, a meu
ver, o processo colaborativo em Bagulhar recongurou o caminho de pesquisa,
ampliando ainda mais as possibilidades de composições artísticas.
Para o começo dos trabalhos, o grupo havia denido duas propostas: que o tema
do espetáculo seria o universo dos moradores de rua e que a construção cênica
seria conduzida a partir do trabalho de palhaço dos atores Regino e Elison
Oliveira. O palhaço de Zé Regino chama-se Zambelê e apresenta-se com caracte-
rísticas passivas (augusto), o de Elison Oliveira chama-se Lajota e apresenta-se
com características ativas (branco).
Na primeira etapa do processo, foram realizadas pesquisas objetivando o levan-
tamento de material para a criação. Para tanto, os dois atores realizaram diversas
observações do cotidiano dos moradores de rua, que eram levadas à sala de en-
14 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
saios, onde, colaborativamente, atores e direção trabalhavam na sicalização de
ações e de cenas. Entretanto, ao longo deste processo de composição partilhada,
acabaram surgindo os personagens Ogro e Micóbrio. A partir daí instaurou-se um
impasse de trabalho, pois, segundo Luiz Otávio Burnier:
[...] O clown não representa, ele é - o que faz lembrar os
bobos e os bufões da Idade Média. Não se trata de um
personagem, ou seja, uma entidade externa a nós, mas
da ampliação e dilatação dos aspectos ingênuos, puros e
humanos (como nos clods
3
) portanto estúpidos”, de nosso
próprio ser. [...] (BURNIER, 2001, p. 209).
Ou seja, o palhaço é um tipo especíco, e, portanto, torna-se difícil construir
sobre ele um outro personagem. Como solução os atores realizaram, com a
colaboração da direção, uma espécie de adaptação
4
, ou ajuste perceptivo (entre
ator-personagem), mantendo em cena a característica ativa de Lajota e passiva de
Zambelê e acomodando-as respectivamente aos personagens Ogro e Micóbrio.
Em síntese, no meu entender, o trabalho de palhaço em Bagulhar funcionou
como base, ou metaforicamente falando, como uma espécie de cama elástica na
qual os atores puderam se movimentar para compor os personagens.
Nesse sentido é que vislumbro uma reconguração da própria identidade do
grupo, pois a partir do processo de pesquisa o trabalho de palhaço foi dilatado,
ampliando, com isso, as possibilidades de composições cênicas para quantos
tipos ou propostas cômicas fossem necessários.
Páginas Amarelas, da Companhia B de Teatro, nos conduz, por meio de suas
insólitas cenas de histórias em quadrinhos, a situações espaciais e temporais
que parecem em princípio incompatíveis do ponto de vista de uma coerência
referencial. Estamos diante de uma narrativa não-linear, em um misterioso local
sem nome, retratado em tom amarelo pelo desgaste do tempo e em cujas ruas e
3. Segundo o dicionário Password: signica torrão de terra. Nessa citação tem o sentido de rude. Esse
termo foi usado para denir homens que trabalhavam a terra, razão pela quais alguns estudiosos ar-
gumentam vir daí a origem da palavra clown.
4. Um dos elementos do método das ações físicas desenvolvidos por Cosntantin Stanislavski, discuti-
do no livro A Preparação do Ator (1998).
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 15
edifícios se cruzam personagens aprisionados por um cotidiano de repetições em
que pairam 29 anos de fracassos.
O processo de escrita cênica do espetáculo também foi construído colabora-
tivamente pelos membros da Companhia B. O objeto principal de investigação
eram as histórias em quadrinhos e, conforme alguns relatos do grupo, aos quais
tive acesso, a pesquisa buscou compreender profundamente a linguagem dos
quadrinhos em toda a sua tessitura escrita e imagética.
Para tanto foram analisados o estilo dos requadros, dos balões, das falas, das
onomatopéias e, o realismo e a caricatura nas histórias. O grupo percebeu que os
quadrinhos apresentavam uma sobreposição de palavras e imagens que exigiam
do leitor duas habilidades simultâneas: a de interpretar texto e imagem. Parece-
me então pertinente armar que a linguagem dos quadrinhos é em si mesma
também uma linguagem de movimento, uma vez que ela solicita do leitor um
movimento duplo de interpretação. Acerca desta idéia, os pesquisadores Marco
Aurélio Lucchetti e Rubens Francisco Lucchetti armam:
[...] sobre as histórias em quadrinhos devemos dizer que
ela nasceu como a necessidade de exprimir movimento. O
que equivale dizer que a sucessão de desenhos estáticos
está disposta de tal maneira a estabelecer a idéia de movi-
mento ressaltada pelos “claros” ou “vazios” existentes entre
um quadrinho e outro (http://www.usp.br/revistausp/16/03
marcoaurelio.pdf).
Dito de outra forma, a partir da estrutura cinética” da linguagem dos quadrinhos
o movimento, ou melhor, o corpo em movimento passou a ser o foco principal da
pesquisa cênica. Nesse sentido, o trabalho corporal buscou desenvolver um corpo
que fosse capaz de traduzir e materializar o texto em movimento, transformando,
assim, o corpo no próprio texto.
O grupo aproximou-se dos referencias conceituais do trabalho de Meyerhold,
segundo o qual “O movimento está subordinado às leis da forma artística. Em
uma representação, é o meio mais poderoso. O papel dos movimentos cênicos
é mais importante que qualquer outro elemento teatral”. (MEYERHOLD in: FER-
RACINE, 1999, p. 66). E também de Laban: “Os impulsos internos, a partir dos quais
se originam o movimento, [...] são denominados esforços”. (LABAN in: BONFITTO,
2002, p. 51).
16 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Trabalhou-se, portanto, com um treinamento físico que possibilitasse uma pre-
cisão total de movimentos, para que os atores do grupo pudessem realizar ações
individuais e ou coletivas (a exemplo uma cruzada de pernas ou abertura de um
jornal) da forma mais controlada possível, tanto em relação ao espaço e ao tempo,
como em relação ao peso e à uência.
Houve, portanto, uma potencialização do desenho dos movimentos em cena,
valorizando, assim, os gestos, as respirações, os olhares e as pausas. A meu ver,
essas opções estéticas zeram com que o trabalho do grupo assumisse de certa
forma uma identidade próxima à da dança-teatro. Mas, por outro lado, as imagens
do espetáculo me remetem também aos corpos dos personagens dos vídeo ga-
mes e dos lmes e desenhos de animação. Uma estética que me parece caminhar
também em direção a um diálogo com as linguagens da computação gráca e do
cinema.
O espaço da cidade nos três espetáculos
Na dramaturgia de Bagulhar, o espaço da cidade esteve presente tanto no
processo quanto no resultado cênico. No processo, porque o elemento a ser in-
vestigado era a vida dos moradores de rua. No resultado, porque em cena há uma
“sicalização dos becos e ruas em que vivem e transitam miseráveis como Ogro e
Micóbrio. Nesta perspectiva, me parece que o grupo foi bastante enfático ao mos-
trar que no conito homem X cidade há uma potencialização de valores e práticas
humanas pautadas por interesses individuais em detrimento do coletivo.
De fato, as metrópoles apresentam, ao lado de belezas e encantos, inúmeros
problemas sociais que incluem as diversas formas da violência, a cultura do medo
e as intrincadas relações de poder. E são exatamente as relações de poder que
fazem com que os governos e os habitantes das cidades rejeitem e excluam os
milhares de favelados que habitam os centros urbanos, como as personagens
Ogro e Micóbrio.
Por conta desta situação desumana de sobrevivência nas ruas é que vemos nas
inter-relações entre Ogro e Micóbrio disputas pelo domínio do espaço e pela
utilização de objetos e restos de comida, que são achados ou “bagulhados” nos
lixos urbanos. Objetos como um cobertor velho e rasgado, um pedaço de pão
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 17
dormido, e, até mesmo, um garrafa como um pouco de cachaça. Com o que resta
da bebida, os personagens se embriagam, entorpecendo a mente e o corpo, para
minimizarem o frio no decorrer da madrugada.
Estas disputas e hierarquias de poder instauradas para que haja um mínimo de
sobrevivência fazem com que os personagens Ogro e Micóbrio utilizem méto-
dos muitas vezes inescrupulosos para aquisição de dinheiro, roupas e comida.
Tal atitude pode ser ilustrada em uma das cenas do espetáculo em que uma
intensa participação do público. Os dois personagens ngem-se de aleijados para
conseguirem dinheiro das pessoas que estão passando pela cidade.
À medida que a platéia vai se envolvendo na disputa, Ogro e Micóbrio exacerbam
ainda mais as deciências. A cena transforma-se uma espécie “ringue de misérias”,
na qual o personagem Micóbrio (augusto) acaba quase sempre ganhado certa
vantagem no jogo em relação à Ogro (branco).
Há, portanto, na cena, um redimensionamento da visão puramente dualista
entre dominantes e dominados. Sabemos que todas as relações humanas são re-
lações de poder. Michel Foucault arma sobre isto que a dominação não se refere
a um domínio global de um sobre os outros, ou de um grupo sobre outro, mas
às múltiplas formas de dominação que se pode exercer na sociedade: “Portanto,
não o rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas:
não a soberania em seu edifício único, mas as múltiplas sujeições que existem e
funcionam no interior do corpo social”. (FOUCAULT, 1990, p. 182).
Páginas Amarelas traz na dramaturgia o retrato do espaço urbano opressivo. A
cidade que, por meio dos prédios, ruas e avenidas, sufoca e conna os habitantes
em sua casa, escola ou trabalho, em um cotidiano de repetições e fracassos.
Isto pode ser percebido logo na primeira fala do texto: Guia turístico: Boa noite!
Por uma quantia módica proporcionamos a você uma visita guiada a alguns locais
menos conhecidos da cidade. Se os senhores passageiros quiserem fazer a neza de
olhar para vossa direita poderão ver a agência ¨O Repouso¨, especializada em servi-
ços fúnebres para animais de estimação que, apesar de estar aberta treze anos,
nunca teve um cliente. Do outro lado da rua temos o consultório dentário do doutor
Samuel Pzner, introdutor dos dentes postiços em celulose, que perdeu a maioria de
18 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
seus pacientes, uma vez que seus dentes se incendiavam quando aqueles fumavam
tranquilamente um cigarro. A loja de Natanael Sturn é o único lugar da cidade onde
se pode comprar línguas do pássaro estorninho, que originais e da Coréia. Mas a
clientela é escassa, pelo fato de o senhor Sturn insistir em reger-se pelo fuso horário
de Seul.
Os habitantes desta estranha e insólita cidade passam uma vinda inteira subme-
tidos ao medo e controlados pelas regras, leis e princípios de convivência social. A
imagem irremediavelmente me remete à crítica à sociedade de controle descrita
por Michel Foucault por meio do Panopticon: “Uma forma de arquitetura que per-
mite um tipo de poder do espírito sobre o espírito; uma espécie de instituição que
vale para as escolas, hospitais, prisões, casas de correção, fábricas etc”. (FOUCAULT,
2005, p. 87).
Para o autor, o panoptismo é um dos traços da contemporaneidade, que possui
uma espécie de tríplice aspecto vigilância, controle e correção. De forma mais
objetiva, poderíamos ler o panoptismo como um poder de controle que paira
sobre nossas cabeças. A exemplo dos milhares de câmeras de vigilância espalha-
das pelos espaços públicos e até mesmo privados, ou dos cartões de crédito que
parecem ser o supra-sumo da liberdade, mas que exercem um controle sobre o
cidadão, assim como as multas, infrações e penalidades, que muitas vezes nos são
impostas injustamente.
No caso do espetáculo, a imagem da cidade controladora, repetitiva, asxiante e
corroída pelo tempo aparece estilizada por toda a cena. No tom amarelado da luz,
nos ternos e gravatas acinzentados que vestem as personagens, nos praticáveis
quadrados que remetem aos requadros das histórias em quadrinhos, e também
aos edifícios que enquadram” em uma espécie de camisa-de-força as sociedades,
as cidades, a vida, e, por m, o próprio corpo humano.
A cidade no espetáculo Diário do Maldito ganha status de personagem. Ela apa-
rece representada na dramaturgia por uma jovem e bela prostituta de luxo que
procura seduzir e corromper o personagem Poeta, sugerindo que ele “venda suas
idéias e sua força de trabalho aos interesses do poder e do dinheiro. Prostituta:
Chega! Deixa ele ser o que ele quiser! (para o público) Ou vocês pensam que ele vai
passar a vida sendo poeta maldito? Que nada! Ele vai escrever capítulo de novela, vai
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 19
ter um teatro com o nome dele, noite de autógrafo. Gente, ele nasceu pra brilhar.
O grupo traz para a cena a dupla face da cidade. Tanto o que ela não absorve,
quanto o que ela corrompe. E de fato as cidades não absorvem os artistas de rua,
que eles transitam anonimamente pelas praças e bares fazendo apresentações
e ou vendendo obras, que, embora esteticamente necessárias e belas, não
conseguem visibilidade no mercado artístico urbano elitizado. Por outro lado, o
espetáculo mostra, também por meio das falas da prostituta, o quanto os grandes
centros urbanos dominados pelas elites e pelo poder do dinheiro, da luxúria e da
ganância são capazes de corromper valores e princípios morais.
Parece-me inevitável armar que o espaço da cidade emerge na dramaturgia
dos três trabalhos como um corpo que se encontra em crise consigo mesmo.
Mas, como diria Ítalo Calvino, “As cidades, como os sonhos, são construídas por
desejos e medos, e ainda que o o condutor de seu discurso seja secreto, que as
suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas
escondam uma outra (CALVINO, 1990, p.43).
Nesse sentido, talvez revirando pelo avesso o o condutor das cidades, reve-
lando a face medrosa, avassaladora e sufocante das grandes metrópoles, os
três Grupos estejam buscando justamente reverter o anonimato, a solidão e o
enclausuramento que os grandes centros urbanos causam. E eu diria também, em
última análise, buscando ganhar força coletiva e reverter como isso o mito de que
em Brasília o teatro do grupo não prospera.
Gostaria de nalizar o ensaio dizendo que meu objetivo aqui não é chegar a uma
visão acabada, mas a um registro temporário de imagens “instantâneas, que a
própria dinâmica da vida em constante mutação pode suscitar.
Referências Bibliográficas
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pectiva: 2002.
BURNIER, Luis Otávio. A arte de ator: da técnica à representação. São Paulo: UNI-
CAMP, 2001.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
20 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
FERNANDES, Ciane. Pina Baush e o Wuppertal dança-teatro: repetições e transfor-
mações. São Paulo: Hicitec, 2000.
FERRACINE, Renato. Os pais mestres do ator criador [Editorial] Revista do lume
UNICAMP/ LUME Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais COCEN UNI-
CAMP, Campinas, nº. 2, ago, 1999.
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. RJ: NAU, 2005.
. Soberania e disciplina. (1976). In: Microfísica do poder. Roberto
Machado (Org. e trad.) 9º ed. Rio de Janeiro: Graal, 1990.
LIMA, Evelyn Furquim Werneck. (ORG). Espaço e teatro: do edifício teatral à cidade
como palco. RJ: 7 Letras, 2008.
SCALA, Flaminio. A loucura de Isabella e outras comédias da commedia dell’arte.
São Paulo: Iluminuras, 2003.
STANISLAVSKI, Constantin, A preparação do ator. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1996.
* Bárbara Tavares Santos é professora e diretora teatral, graduada pela Universidade
de Brasília (UNB) e, atualmente, mestranda do Programa de Pós-graduação em Artes
Cênicas – PPGAC – UNIRIO.
Teatro do
concreto
É com essas palavras que me permito chorar
É com essas palavras que me proponho gritar
É com essas palavras que não deixarei silenciar em mim
e em vocês a voz daqueles que gritam e choram no escuro dos dias intermináveis
e na claridade cega das noites lentas.
Hoje tenho em mim palavras malditas
Hoje tenho em mim a sede dos mortos
Hoje tenho em mim todos os personagens que um dia saíram para dar uma volta
nos palcos vazios e voltaram
E eles voltam sempre... gritando na minha cabeça, perturbando o meu sono
Ah! Não quero dormir! Não posso dormir nunca mais!
Enquanto as vozes carem só em mim não descansarei´
É preciso despertar, despertar sempre... é preciso!
Tudo já foi claro, claro demais. E é mais claro agora!
Não quero pedir ajuda, mas me ajudem!
Adotem um, pelo menos um desses personagens e saiam daqui com ele!
Meus olhos ardem de fogo, não posso fechá-los
Não agora! Nunca mais fecharei meus olhos, nem minha boca, nem minha garganta,
minha palavra maldita!
Fechem as portas desse teatro! A partir de agora ninguém mais entra, ninguém mais
sai!
O dinheiro não será devolvido
Eu avisei, a peça é ruim, muito ruim!
Fabíola Gontijo
22 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 23
Teatro do Concreto
Aline Seabra
Caminhos da Criação
Diário do Maldito: Da gênese do grupo ao início do proces-
so criativo
O Teatro do Concreto é um grupo de Brasília profundamente identicado com
a cidade e com as possibilidades de diálogo que o seu signicado simbólico e
real possibilitam. O foco de trabalho está na reexão sobre temas que aigem o
homem contemporâneo e na investigação de novas possibilidades de composição
da cena teatral.
A origem do grupo, em 2003, reúne experiências e encontros diversos entre seus
integrantes, seja no curso de artes cênicas da Universidade de Brasília, em aulas
de teatro de escolas públicas seja em ocinas. Essa diversidade é uma marca forte
do Teatro do Concreto, que integra artistas de diversas cidades satélites do DF
(Ceilândia, São Sebastião, Samambaia, Cruzeiro, Sobradinho e Plano Piloto), o que
possibilita um olhar mais amplo da realidade que nos cerca e o diálogo intenso
entre periferia e centro.
Um princípio norteador para o trabalho do grupo é a concepção do teatro como
pesquisa coletiva de atores, dramaturgo, cenógrafo e encenador. Conceitualmente,
isso se traduz no processo colaborativo. Outras características do trabalho do
grupo são: criação a partir de improvisações; utilização de depoimentos pessoais;
criação de imagens poéticas; elementos ritualísticos; dramaturgia em processo;
investigação de elementos de contextos reais; diálogo com espaços urbanos e
com o público no processo de criação, entre outros.
O primeiro trabalho prossional, que investigou as possibilidades de composição
da cena a partir da dança pessoal, foi realizado em 2003 na Universidade de Brasília
e resultou no espetáculo Sala de Espera, adaptação do romance – A Doença uma
24 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
experiênciade Jean-Claude Bernardet, que trata da questão da Aids pela óptica
do portador. Em 2005, a peça foi selecionada para o II Prêmio SESC do Teatro
Candango e, em 2006, para a mostra Fringe do Festival de Teatro de Curitiba e
para a II Mostra de Teatro em Barreiras (BA).
Em 2004, o grupo agrega novos artistas, se consolida como um coletivo criador
e inicia uma ampla pesquisa acerca da vida e da obra do dramaturgo Plínio
Marcos. O início da investigação resultou em um conjunto de sete performances
denominado Altar das Sentinelas, que integrou o evento Êxodos de Performances,
do projeto Tubo de Ensaios realizado pela Universidade de Brasília. Com duração
de dois anos, a continuidade da pesquisa resultou no espetáculo Diário do
Maldito, que estreou no Teatro Ocina do Perdiz em novembro de 2006. O
espetáculo, que deu maior visibilidade ao grupo, alcançou grande repercussão
em 2007 ao participar de importantes festivais e acumular prêmios e elogios da
crítica especializada.
Um marco na trajetória do grupo foi a participação, em 2006, da ocina Processo
Colaborativo, realizada em Brasília pelo Galpão Cine Horto (Grupo Galpão-BH/
MG) tendo como orientadores o dramaturgo Luís Alberto de Abreu, a diretora e
atriz Tiche Vianna, o diretor Chico Medeiros e o ator Júlio Maciel. Essa experiência
foi produzida pela Alecrim Produções no âmbito do Festival de Teatro Brasileiro
– Cena Mineira e possibilitou aprofundar práticas e conceitos para ampliar nosso
fazer teatral e nossa atuação como grupo. O resultado artístico da vivência foi
Borboletas têm Vida Curta, um espetáculo que explora a questão da memória a
partir de sons e objetos e nos leva a uma viagem emocional pela infância e suas
descobertas inaugurais. Em 2006, o trabalho foi um dos convidados do 7º Festival
de Cenas Curtas do Galpão Cine Horto (MG) e, em 2008, do Festival Nacional de
Teatro de Macapá.
Em 2008, além de excursionar com Diário do Maldito, o Teatro do Concreto
deu início a sua nova pesquisa, a partir do tema Amor e Abandono. Como
primeiro resultado dessas investigações, foi criado Ruas Abertas, um conjunto
de intervenções cênicas no espaço urbano, que integrou o Cena Contemporânea
2008 - Festival Internacional de Teatro de Brasília.
Em maio de 2009, o grupo foi convidado para participar da IV Mostra Latino
Americana de Teatro de Grupo, organizada pela Cooperativa Paulista de Teatro,
em São Paulo.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 25
O Teatro do Concreto se apresentou em Brasília (DF), Goiânia (GO), Curitiba
(PR), Belo Horizonte (MG), Barreiras (BA), Macapá (AP), Santana (AP) e São Paulo
(SP).
Diário do Maldito: Um olhar sobre os núcleos de
dramaturgia,cenografia, direção e interpretação.
“O teatro foi a forma que encontrei para dar testemunho a
respeito do mau tempo em que vivemos. Falo de gente que
conheci e que conheço, gente que está amesquinhada por
gente. Gente que vai se perdendo. Meu teatro é só isso.
Plínio Marcos
O espetáculo Diário do Maldito é resultado de dois anos de pesquisa acerca
da vida e da obra do dramaturgo Plínio Marcos, um dos criadores brasileiros mais
censurados durante a ditadura militar e que teve sua obra caracterizada como
“pornográca e subversiva.
Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos, em 29 de Setembro de 1935, e faleceu
em São Paulo, em 19 de Novembro de 1999. Antes de se revelar ator e escritor,
ganhou a vida como estivador, funileiro, jogador de futebol, palhaço de circo e
camelô. De 1958, ano em que foi encenada sua primeira peça, Barrela, até sua
morte em 1999, o autor incorporou o tema da marginalidade na cena brasileira
em textos de desconhecida violência. Para ele, os marginais” são retratados como
gente na boca de cena, com direito a vez e voz. A opção em falar da “banda podre
do mundo o tornou conhecido como o autor maldito” do teatro brasileiro, jargão
que nunca o incomodou, já que reconhecia na vida dos excluídos a extensão de
sua própria vida e a matéria-prima para as suas histórias e personagens.
Durante o trabalho de criação do espetáculo, o Teatro do Concreto reuniu cerca
de oito horas de cenas e improvisações criadas a partir de pesquisa teórico-prática
desenvolvida ao longo dos dois anos, numa rotina de doze horas de ensaios
semanais. O material cênico, a estrutura do texto e os demais elementos foram
selecionados e aprimorados. Questões envolvendo a estética, a biograa de Plínio
Marcos, a conexão de sua obra com Brasília e o que queremos dizer ao público a
partir dessas reexões foram apenas algumas das indagações que os criadores
do Teatro do Concreto se zeram durante essa pesquisa e que de alguma forma
perpassam as cenas e textos criados.
26 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Este trabalho do grupo está pautado na idéia difundida pelo Processo
Colaborativo
1
, que pontua, essencialmente, uma relação entre os criadores sem
hierarquias desnecessárias. O princípio norteador que serve de referência para
o Teatro do Concreto desde sua criação é a concepção do teatro como pesquisa
coletiva de atores, dramaturgo, cenógrafo e diretor.
Para a criação do Diário do Maldito, o grupo entrevistou pessoas próximas ao
Plínio, como o diretor Tanah Correa, o secretário de cultura de Santos, Carlos
Pinto, e a sua última companheira, a jornalista Vera Artaxo. Foi realizado também
amplo levantamento de material bibliográco sobre o autor e estudos sobre tarô
e arquétipos, possibilitando a criação de uma dramaturgia própria que também
integrou citações de textos do dramaturgo. A obra e a vida de Plínio Marcos não
foi o texto ocial, mas um pretexto para construir um diálogo vivo sobre o homem
e o artista contemporâneo.
O interesse do Teatro do Concreto em falar de Plínio Marcos está expresso,
principalmente, no conjunto de sua obra, palavras que dão vez e voz àqueles que
são considerados a escória da sociedade. Por ter escolhido esse caminho para sua
vida e para sua arte, Plínio foi constantemente perseguido pela censura durante a
ditadura militar. Um exemplo disso é um de seus textos, Barrela, ter cado vetado
durante doze anos. Não foi à toa que recebeu o apelido de “maldito, o que lhe
retirou diversas oportunidades de trabalho.
Em pleno século XXI, quarenta e sete anos depois da estréia de Plínio Marcos
como dramaturgo em Barrela, ainda existe lugar para uma obra que marcou a
década de 60? Esses textos ainda dizem respeito ao Brasil de 2009? Infelizmente,
sim. O que move jovens atores da capital brasileira no desao de representar a
trajetória dos personagens plinianos é a possibilidade de fazer, na prática, um
teatro no qual acreditam, uma investigação estética pautada na possibilidade
de provocar o público, de colocá-lo frente a frente com o reexo de um país
desigual.
1. O processo de criação chamado Processo Colaborativo visa, essencialmente, ao estabelecimento
de uma horizontalidade na relação entre os agentes teatrais na elaboração de um espetáculo. Seu ob-
jetivo primordial é exibilizar as hierarquias entre os criadores. A atuação dos agentes teatrais, como
por exemplo, ator, diretor, dramaturgo, cenógrafo, iluminador, gurinista, diretor musical, entre ou-
tros, tem os seus limites em estado de constante interferência. Todos os envolvidos na criação têm o
direito e o dever de contribuírem para a produção artística, visto que somente a troca permite que o
processo exista.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 27
Criar a partir da reexão sobre o Plínio cidadão do Brasil, vendedor de livros no
país de analfabetos, nos instigou muito durante todo o processo. O que isso nos
provoca? O que isso nos faz dizer? Quais os locais onde viveram os personagens
do Plínio? Quais os lugares da nossa cidade onde os personagens vivos do
Plínio estão? O que eles querem nos dizer? ... Ou querem que a gente diga? O
que queremos dizer por eles? E o que queremos dizer por nós? Por que estamos
nesse processo? Para quem é o nosso teatro? O que signica ser artista na sede
do poder?
Acreditamos que todas essas questões provocaram um nível de entrega muito
grande por parte do elenco que precisou se desnudar e se posicionar a cada cena.
O espetáculo procurou abordar textos do dramaturgo Plínio Marcos que não são
tão populares, como os contos que integram O prisioneiro de uma canção e Inútil
canto e inútil pranto pelos anjos caídos. Dessa forma, buscou ampliar o contato
do público com outras temáticas abordadas por ele. Três fases identicadas pelo
pesquisador Paulo Vieira na obra de Plínio também motivaram a pesquisa.
“Se solução para a vida não há, tal qual se apresenta
no plano da matéria, há de haver no plano do espírito.
Esse teorema, se verdadeiro – tudo indica que o é – de
alguma maneira estimulou-o, no conjunto de sua obra, a
elaborar certa teologia. A primeira fase pode ser chamada
de CONSTATAÇÃO, com o olho clínico de um repórter,
constata a existência do mal na sociedade. A Segunda fase
compreende os MUSICAIS. A terceira fase, PROPOSIÇÃO,
onde o autor, nas peças que compõem esse grupo temático,
propõe a superação do mal na sociedade. As obras cujos
temas apontam para o misticismo indicam um caminho
diferente para as suas criaturas, como se o autor propusesse
a via do espírito para a superação da condição humana.
2
Toda a temática abordada pelo autor nos interessava. Além de falar sobre
assuntos que nos tocavam, percebemos que o contexto pliniano permanecia
atual. Plínio parecia falar do submundo de forma poética e foi essa poesia um dos
principais atrativos que motivaram o grupo.
2. VIEIRA, Paulo. In: A or e o mal. São Paulo: Paulinas, 1994, p. 13.
28 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
A dramaturgia
O texto produzido para o espetáculo Diário do Maldito conta, resumidamente,
a seguinte história: Trata-se de uma noite de lembranças e devaneios, em que
a personagem Mira, que é dona de um bar, ao receber seus clientes começa a
relembrar histórias do passado. Ela relembra ao mesmo tempo em que sonha
com a trajetória divertida e comovente de um poeta amigo, que num momento
de incertezas quanto a sua trajetória de vida anos a o dedicados a escritos
sobre o universo marginal pensa em parar de criar. Nos sonhos e devaneios de
Mira, os personagens do poeta, inconformados com a situação, invadem a cena
para cobrá-lo. O Poeta está rumo à sua última criação. Compromisso, censura,
realidade e sedução convivem num habitat de putas, catadores de lixo, ciganos,
artistas e uma cidade que lhe cobram lealdade. Experiência de transformação
humana em que a motivação se transforma em obra e a vida em morte.
Para a construção do referido texto, tivemos como referências as próprias
obras do Plínio Marcos, assim como imagens, lugares e músicas, dentre outros
estímulos. Algumas das peças e textos do dramaturgo pesquisados pelo grupo
foram: Barrela, Navalha na Carne, Dois Perdidos numa Noite Suja, A Dança Final,
Abajur Lilás, Querô, Balada de um Palhaço, Jesus-Homem, Madame Blavatsky, Inútil
Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos, O Assassinato do Anão do Caralho Grande,
A Mancha Roxa, Homens de Papel, Oração para um Pé de Chinelo, Balbina de Iansã,
O Truque dos Espelhos, Quando as Máquinas Param, Prisioneiro de uma Canção e Na
Barra do Catimbó.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 29
Algumas das fases de produção de material cênico passaram pelas seguintes
temáticas, que foram propostas pelo diretor: “Qual é o seu inferno pessoal?”
A pátria, que englobava as perguntas Qual é a minha pátria? Quem é o meu
povo? Qual é a minha maior revolta? A minha identidade? Quem é Plínio Marcos?
O que é a nossa cidade?’A cadeia”, que englobava, entre outras coisas, justiça/
injustiça/violência e foi associada às peças Inútil Canto e Inútil pranto pelos anjos
caídos, Barrela e A mancha roxa. Em outro momento, a temática foi O circo, lugar
de saltimbancos e palhaços, que foi associada às obras O truque dos espelhos,
Balada de um Palhaço e O assassinato do anão do caralho grande. Outro tema foi A
exploração humana” (poder/solidão/humilhação) e as peças de referência foram:
Navalha na Carne, Homens de Papel, Dois perdidos numa noite suja e Abajur lilás.
Mais à frente, a temática foi “O espiritualista e foi associada às peças Balbina de
Iansã, Madame Blavatsky e Jesus-Homem. Outro tema foi “O samba e o futebol”
e as obras indicadas foram: O poeta da vila e seus amores, Chico Viola, A bola e a
boleta. Anjos caídos” (cenário de barbárie e exclusão) foi outro tema gerador que
teve como referências as peças: Quando as máquinas param, Oração para um
de chinelo e Querô.
Todas as temáticas acima citadas surgiram a partir das primeiras impressões
que tivemos ao ler os textos do Plínio, assim como de discussões que tínhamos a
respeito do nosso próprio ofício. As temáticas apareciam, embora fossem propostas
pelo diretor a partir, entre outras coisas, de sensações que relatávamos ao ler
tais peças. Embora não tenhamos lido todas as obras ao mesmo tempo, porque
fazíamos um revezamento dos livros, estávamos sempre descrevendo nossas
impressões e trocando informações. Propusemos também alguns seminários
internos, em que discutíamos temas levantados pelas obras do dramaturgo como,
por exemplo, a violência e o sistema carcerário. Nossas memórias também eram
motivo de improvisações. Sempre estávamos associando a bibliograa ao nosso
posicionamento pessoal. Nossos medos, angústias, desejos e questionamentos
eram materiais humanos para a construção de cenas. A fonte para a criação das
improvisações foi a vida e a obra do Plínio, assim como a nossa própria vida.
Assistíamos a lmes, buscávamos imagens e lugares que estivessem relacionados
a esse universo. Para a pesquisa sobre a vida do Plínio, além da bibliograa a seu
respeito, conversamos também com pessoas próximas ao dramaturgo. Enm,
tentamos cercar de todas as maneiras o mundo do Plínio e o nosso.
30 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Desenvolvemos um exercício chamado Imagem Poética, que também serviu
para a criação de cenas. Nesse caso, o exercício consistia em um processo de
apropriação por um ator da cena de outro. O intérprete tinha que transformar
a cena criada por outro ator em uma imagem poética. Poderia ser uma imagem,
com ou sem movimento, com ou sem voz, com ou sem cena”. Poderia ser, por
exemplo, uma instalação com todos esses elementos conjugados. Os únicos pré-
requisitos para a criação é que as imagens deveriam ser curtas, condensadas
e portadoras das impressões/sensações mais fortes que a cena original havia
trazido. Na imagem poética, o apelo visual era maior do que a palavra.
Muito material surgiu a partir das pesquisas e experimentações e, mais ainda,
a partir das primeiras apresentações. Organizávamos os materiais produzidos
em canovaccios
3
e as cenas levantadas a partir deles eram apresentadas no que
chamamos de cenas concretas
4
. A cada apresentação que fazíamos e, a partir do
diálogo como público, acabávamos agregando elementos e revendo muitos dos
criados. As inuências vinham de todos os setores da criação e nos “atacavam
constantemente. Precisávamos estar sempre em estado de alerta, prontos para
mudar de idéia e para criar novamente. As cenas concretas fechavam ciclos de
cenas e nos preparavam para uma construção contínua. No total, realizamos
quatro edições de apresentações.
Estávamos quase fechando o texto quando decidimos buscar a assessoria
da diretora e atriz Tiche Viana. Ela foi a responsável pelo núcleo de atuação na
ocina sobre Processo Colaborativo que zemos pelo projeto Galpão-Cine Horto
(Grupo Galpão-BH). A partir da sua consultoria, pudemos perceber uma série
de questões a respeito da história que pretendíamos contar ela trouxe outros
questionamentos, outros pontos de vista que foram ótimos contrapontos para
amadurecermos nosso discurso e nossa dramaturgia. Uma delas é o fato de que,
por muito tempo, mantivemos a idéia de contar a história da vida e da obra do
Plínio. Um dos questionamentos que a Tiche nos fez foi o seguinte: O que de fato
3. O canovaccio é um roteiro de “trama larga, que pode reunir ações, imagens, metáforas, intenções,
conceitos, enm, uma idéia do que se pretende com o espetáculo. Ele consiste na contribuição do
dramaturgo. Representa uma estruturação cênica do material produzido.
4. As Cenas Concretas são apresentações realizadas para um publico seleto que reuniam os ciclos de
improvisações produzidos pelo grupo. Seu objetivo principal consistia em testar nossa produção com
o público. A partir dessas apresentações, muitos elementos foram criados e outros eliminados. Eram
o espaço dado ao espectador para criar. Fechavam um ciclo de trabalho, preparando terreno para um
novo.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 31
vocês viram na obra do Plínio que merece ser contado pelo grupo? Apesar de
essa pergunta estar presente desde que começamos a pesquisa, agora tínhamos
que respondê-la de forma mais madura e crítica, levando em consideração as
nossas próprias pretensões e as cenas que até então havíamos criado. Tiche nos
questionava, entre outras coisas, sobre representar a pessoa do Plínio. Outra
inquietação que também reverberou na criação do texto foi o fato de que até
o presente momento tínhamos uma forte tendência à produção de textos
panetários. Ela enfatizou a necessidade de transformar a patologia na cena em
mitologia. Na verdade, a comoção gera assistencialismo e não o fazer teatral. O
Plínio colocou em cena os marginais, deu voz a esse segmento, no entanto, seus
textos nunca foram ingenuamente panetários. Quando o questionavam sobre
o uso de palavrões nos seus escritos, por exemplo, ele mesmo armava que a
única coisa que fazia era escrever o que ouvia nas ruas. Plínio não levantava
bandeiras, ele escrevia a realidade, essa era a bandeira. Se as discussões sobre o
social surgiam, elas eram fruto de uma dramaturgia insuportavelmente real e que,
portanto, gerava discussões. Todas essas perguntas passaram, então, a permear
nossas idéias para a construção e reconstrução do texto. Questionamentos à
parte, chegamos à conclusão de que o que de fato nos tocava era a maneira como
Plínio (sua vida e sua obra) atravessava cada um de nós, ou seja, o importante
era o que ele nos estimulava a dizer. A gura do Plínio se transformou, então, na
de um Poeta e as nossas dores pessoais em dores universais. A verdade é que,
embora nossas fontes fossem o Plínio, os nossos depoimentos pessoais e a nossa
raiz brasiliense, toda a criação do texto pareceu tender para o universal. A minha
dor emocionou o outro porque ele se identicou com ela e ao mesmo tempo
se identicou com as dores descritas pelo dramaturgo, que são dores e alegrias
humanas, universais.
A partir das reexões suscitadas pelos questionamentos da Tiche Viana e das
nossas diversas apresentações, construímos a dramaturgia, que ainda hoje,
mesmo depois da estréia, está sujeita a mudanças. Um dos maiores desaos
que encontramos nesse percurso rumo à construção de um texto de forma
colaborativa, foi tornar expressivo e universal sentimentos tão particulares e caros
para nós. Outro importante desao foi buscar de todo esse material inspirador
o essencial, procurando eliminar julgamentos e textos de cunho panetário. O
desapego a textos e cenas também representou um forte desao na construção do
texto. A força do diálogo entre os núcleos de criação (direção, atores, dramaturgia
32 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
e técnicos) foi inquestionável, uma vez que Diário do Maldito só aconteceu graças
ao entrosamento entre esses diversos setores. É importante ressaltar, ainda, que a
cada apresentação vamos amadurecendo o texto. A platéia também cria conosco.
Uma fala improvisada de um ator que reverbere de forma positiva na apresentação
pode ser incorporada ao texto, ao mesmo tempo em que uma fala considerada
desnecessária pode ser dele retirada. A vantagem de produzir um texto a partir do
processo colaborativo parece estar relacionada ao fato de que, inevitavelmente,
um texto construído nesses moldes ressalta a contribuição individual de cada
integrante e acaba por reetir o pensamento do coletivo.
O espaço
As diculdades em relação ao espaço para esta montagem teatral começaram
a surgir desde o período de ensaios. A falta de uma sede para o grupo, de um
espaço próprio destinado à criação, é algo que desde o início do processo gerou
desconforto. Não possuíamos, por exemplo, um local para guardar os materiais
de cena e isso nos obrigava a levar e trazer os objetos em todos os ensaios.
Realizávamos os encontros muitas vezes na casa de algum integrante do grupo,
no horário de não funcionamento de algumas escolas, ou mesmo na Universidade
de Brasília (UNB) e na Faculdade Dulcina de Moraes.
A itinerância causada pela falta de espaço nos desestabilizava, pois, a qualquer
momento, poderíamos ter que nos retirar de tais locais, que por realizarem
outras atividades, não poderiam atender às prioridades e demandas do grupo na
ocupação do espaço.
A falta de espaço para a apresentação também representou um entrave à estréia
do espetáculo. O grupo procurava algum tempo um local para a realização
do Diário do Maldito; no entanto, todas as idéias iniciais encontravam barreiras
burocráticas e/ou nanceiras. A falta de patrocínio, determinante em muitos casos
para a permanência de um grupo, representou no processo do espetáculo um
dado muito relevante. Fomos nossos próprios patrocinadores. Cada integrante
contribuiu nanceiramente de acordo com as suas possibilidades. Investimos
dinheiro no próprio gurino, compramos um objeto aqui, conseguimos outro
emprestado ali e assim conseguimos realizar o espetáculo.
As características do material cênico produzido nos levavam a crer que o espaço
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 33
a ser escolhido deveria ser alternativo. Tínhamos diculdade em visualizar o
universo que estávamos abordando dentro um teatro tradicional, que utiliza
o ilusionismo da cena frontal, dita italiana. A quebra do ilusionismo é um dos
elementos que caracterizou o teatro moderno e que vem ganhando um espaço
cada vez maior no teatro contemporâneo. Jean-Jacques Roubine, pesquisador
do assunto, ao comentar sobre o encenador Meyerhold, assim relata o fenômeno
que culminou com a quebra do ilusionismo:
“(...) a teatralidade nunca deixará de exibir-se no
palco, de tal modo que o ator não possa nunca
identicar-se completamente com o seu personagem,
não possa nunca apagar a presença real do espectador
da sua consciência de comediante; e de tal modo que,
simetricamente, o espectador não deixe de perceber o
teatro como teatro, os cenários como objetos de teatro,
o ator como um indivíduo que está representando ou
atuando.
5
O Diário do Maldito lidou com o ilusionismo de forma semelhante com a que
é descrita por Roubine. A opção do grupo por um espaço alternativo, o Teatro
Ocina do Perdiz, em Brasília, por exemplo, está vinculada (entre outras coisas)
ao peso da realidade daquele lugar. É a teatralidade do real o que nos interessou
naquele espaço. A história daquele lugar aliada ao texto que criamos é o que
nos permitiu contar uma história, que não é unicamente o texto proposto pela
dramaturgia, mas um novo texto, que só foi possível no diálogo com o espaço.
Outro elemento em comum com o comentário do pesquisador está ligado
ao tratamento dado aos espectadores. No espetáculo, a relação com o público
era de proximidade, de engajamento e até mesmo de comprometimento. Este
envolvimento da platéia na cena é um dos elementos que caracterizam o teatro
contemporâneo. A inuência do grupo Teatro da Vertigem se fez presente nesse
momento, pois suas encenações em espaços não convencionais alimentaram
nosso imaginário e nos zeram escolhê-lo como uma das referências bibliográcas
para nossa pesquisa.
5. ROUBINE, Jean- Jacques.O nascimento do teatro moderno. In: ROUBINE, Jean-Jacques. A Lingua-
gem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 30.
34 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Escolhido o espaço, o grupo passou por um período de reconhecimento dele.
Atores, dramaturgo, cenógrafo, diretor e assistente de direção buscaram, num
período de aproximadamente quinze dias, transpor as criações da sala de ensaio
para o referido local. Muitas foram as diculdades. Faltava uma estrutura teatral
mínima como, por exemplo, equipamentos de iluminação básicos. Defrontamo-
nos, também, com a precariedade de muitos dos materiais presentes no espaço
teatral: os atores passaram a se equilibrar entre ferros e frágeis arquibancadas.
Fios elétricos diversos pendiam do teto e foram incorporados à encenação, entre
outros exemplos.
Além do desconforto e da falta de recursos técnicos, ainda tínhamos que lidar
com o fato de que o espaço se prestava a outros serviços. De segunda a sábado,
ou mesmo em qualquer dia ou horário em que alguém procurasse pelo dono do
local, “seu Perdiz, o espaço funcionava como ocina mecânica, ferro-velho e lugar
de consertos em geral. Outro fator importante foi o fato de que o ambiente de
trabalho do mecânico Perdiz também era a sua casa. Tivemos que lidar, portanto,
com um ambiente que era ao mesmo tempo familiar e prossional.
Mesmo diante das diculdades, acabamos concluindo que o local era o mais
apropriado para a realização do espetáculo. Segundo o diretor do Teatro do
Concreto, Francis Wilker, “não fomos nós que escolhemos o Perdiz, e sim o Perdiz
que escolheu a gente. Já estávamos há muito tempo procurando um local para a
apresentação, mas sempre sem sucesso, e foi numa conversa informal que a ocina
foi citada. Estávamos quase adiando tudo aque alguém trouxe a ocina até nós.
É como se precisássemos muito mais do Perdiz, do que ele da gente. Um jornal
local, numa reportagem sobre o trabalho, levantou a escolha do espaço como
um fator que colaborou para estabelecimento do universo das personagens. O
jornalista Sérgio Maggio, em uma crítica que, inclusive, recebe o título de “Plínio
Marcos em local perfeito, diz o seguinte: As montanhas de ferro-velho, os gatos
vadios que correm por entre os interstícios, as gambiarras de luz acentuam os
tipos tortos que Plínio Marcos transpôs do cotidiano para a dramaturgia
6
O trabalho da cenograa foi pensado coletivamente; no entanto, como é comum
em um processo colaborativo, tínhamos pessoas que respondiam pela área. Nunca
tivemos um cenógrafo especializado, mas sim um estudante de teatro e dois de
6. MAGGIO, Sérgio. Plínio Marcos em local perfeito. Correio Braziliense, Brasília, 14 de dez.2006. Ca-
derno de Cultura, p. 1.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 35
artes plásticas que, interessados no assunto, se debruçaram sobre a pesquisa e a
execução do cenário. A entrada e saída de pessoas, assim como os desaos que
fomos encontrando ao longo das apresentações, zeram com que tivéssemos três
responsáveis diferentes pela cenograa.
Com o primeiro integrante, estudante de Artes Cênicas, tivemos mais tempo de
experimentação. Ele propunha elementos cenográcos, os atores experimentavam
e ao mesmo tempo propunham novos objetos e elementos diversos. A direção e
a dramaturgia também dialogavam com as propostas. Assim, íamos construindo
o material cênico. Experimentamos, por exemplo, a utilização de tendas na
construção do cenário. Esse elemento faz referência tanto ao universo cigano
quanto ao universo do circo. Plínio começou sua carreira artística como palhaço e
tinha forte inuência cigana, era um homem místico. Utilizamos também caixotes
de madeira para a ambientação do cenário. Eles remetiam ao ambiente da rua, do
comércio, de uma feira. Plínio tinha muito contato com o povo da rua. Vendia seus
livros nesse ambiente, além de possuir uma banca onde lia tarô para as pessoas.
Cada ator também estruturou um “altar”, denominado “meu espaço Plínio Marcos.
Ele era formado por objetos, textos e imagens, que faziam uma relação entre as
realidades trazidas pelos atores e o universo de Plínio Marcos.
Numa segunda fase, já com a saída e a entrada de novos integrantes, passamos
a trabalhar com o foco voltado para a estréia. Já não tínhamos tempo para
tantas experimentações, pois estávamos na fase das decisões. Muitas idéias
dos cenógrafos foram repensadas após a escolha do espaço. Numa visita à
CEASA (Centrais de Abastecimento do DF S.A.), um elemento foi incorporado às
experimentações. Tratava-se do capim, utilizado nas caixas de abacaxi. Achávamos
que o capim trazia referências dos gramados do cerrado e isso contemplava em
parte nosso objetivo de ressaltar nossa raiz brasiliense. A cenograa aprovou o
material, mas a direção, ao ver a movimentação dos atores sendo dicultada e
a poeira que invadia a platéia, argumentou com a cenograa da inviabilidade
de utilizar esse elemento. Devido ao tempo curto, o diálogo entre cenograa e
espaço cou prejudicado.
O Teatro Ocina do Perdiz carregava uma série de informações que não podiam
ser ignoradas. Seu histórico como espaço cultural importante de Brasília, tanto
quanto o ferro entulhado e a história do mecânico Perdiz que, mesmo ameaçado
de fechar por autoridades locais, sempre acreditou na importância do espaço
36 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
para os grupos brasilienses não poderiam car de fora. Perdiz desabafou:
“No m, continuo aqui. Também não tenho para onde
ir. Tenho que cuidar daqui porque os artistas realmente
precisam deste palco” Perdiz é respeitado por artistas de
Brasília, principalmente pelos pioneiros. Em 1989 estreou
em sua ocina/teatro o espetáculo Esperando Godot, de
Samuel Becket, com direção de Mangueira Diniz, e confessa
ter por Bella Ciao, sucesso na época e também dirigida por
Diniz, um carinho todo especial.
O ar marginal da ocina é algo extremamente próximo da poesia de Plínio
Marcos. O ferro-velho, a graxa, as goteiras, enm, tudo o que parecia colaborar
para o universo da peça estava lá bem antes de nós. Cada lata velha daquele lugar
é verdadeira, portanto não teatral. “Os objetos que representam no palco um
papel de signo assumem, na representação, traços, qualidades e marcas que não
têm vida real. As coisas, tal como o ator, renascem no teatro
7
.
Em nosso caso, a goteira de que nos apropriamos para construir a cena está
por falta de dinheiro para trocar as telhas. Ela, assim como muitos elementos da
cenograa, fazia parte daquele lugar. Nós não construímos gambiarras pensando
no espetáculo, elas estavam lá. O que zemos foi nos apropriar dos elementos
que julgávamos pertinentes. É a teatralidade do real que gura diretamente com
uma das essenciais indagações do Teatro Moderno. Roubine diz: “O problema
reside menos em escolher entre o objeto real e sua imitação do que em fazer
aparecer e perceber a sua presença, a violência de sua teatralidade
8
.”
O mais importante era sublinhar os elementos que já existiam no local. A
violência da sua teatralidade reside na realidade de cada um daqueles objetos, que
possuem uma vida fora do teatro. Realidade e cção se agregam e potencializam
a força expressiva deles.
No contato com o espaço, a personagem Mira ganhou especial relevo. Sua
relação com a platéia era de extrema proximidade. Por saber onde aconteceriam
as cenas, ela conduzia o público pelo espaço, por meio de improvisações,
7. BOGATYREV, Piotr. Os signos do teatro. In: GUINSBURG, J; NETTO, J. Teixeira Coelho e CARDOSO,
Reni Chaves. Semiologia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 75.
8. ROUBINE, Jean- Jacques.O nascimento do teatro moderno. In: ROUBINE, Jean-Jacques. A Lingua-
gem da Encenação Teatral. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 30.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 37
acomodando cada um nos locais mais apropriados. Parte dos fruidores sentava
nas arquibancadas, ocupando um lugar onde algumas cenas aconteciam. A
personagem então alegava que existiam, por exemplo, goteiras e gatos nos locais
das cenas, fazendo o público se deslocar. A atriz, a partir do espaço, criou falas e
movimentações. Ela recebia as pessoas naquele espaço, que segundo a história
representava o bar de sua propriedade. Seu contato direto com as pessoas exigia
uma grande capacidade de improviso, o diálogo entre atriz, público e espaço
acontecia no momento presente da cena.
O ambiente que construímos no diálogo com a ocina pode ser resumido da
seguinte forma: um bar “pé sujo” e desgastado, repleto de garrafas e pôsteres de
cervejas. O espaço foi recriado a partir de mesas e cadeiras típicas de boteco. O
público se acomoda tanto nas mesas do bar, quanto na arquibancada. Mira evoca
um espaço durante a peça, trata-se da cozinha do bar. É um ambiente que não
é preenchido pelo público, mas cuja existência é conhecida devido à fala da
personagem. Ao longo da encenação, por meio da interferência dos atores, o
espaço se transforma em outros ambientes. Recria-se um altar/sala de milagres,
que reúne os vários “Espaços Plínio Marcos”, condensando em um único altar os
altares individuais: um cabaré, um terreiro de candomblé, um lixão e uma sala” de
interrogatórios onde está a Justiça, uma personagem que ora intervém na ação
dramática, ora ca congelada como uma estátua compondo o cenário.
Desde o início das pesquisas fomos muito inuenciados por espaços alternativos.
Fizemos visitas à rodoviária, à CEASA, à esplanada dos ministérios, a terreiros de
candomblé, entre outros lugares. Queríamos um lugar que se alinhasse ao universo
proposto pelo Plínio, bem como ao nosso universo como atores brasilienses. A
rodoviária nos remetia a elementos como trânsito, chegada, partida, viagem,
saudade, despedida, esperança e solidão. Os terreiros nos transportavam para o
universo místico/religioso tanto do Plínio quanto do grupo. No Parque da Cidade,
percebíamos como elementos relevantes o contato com a natureza, a presença
da água e de uma idéia de puricação/espiritualidade. A marginalidade do lugar é
reforçada pela presença de suas festas GLS, pelo histórico de crimes supostamente
homofóbicos e pelos espaços de prática de sexo anônimo.
Nesses espaços realizamos experimentações, construímos cenas. As imagens
e sensações suscitadas por esses espaços foram levadas para a sala de ensaio.
Um dos nossos objetivos com as visitas era justamente o de tentar reproduzir
38 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
as sensações que aqueles lugares nos provocavam. Muitas vezes uma cena era
construída a partir de uma imagem vista na esplanada dos ministérios, ou mesmo
de um cheiro sentido na rodoviária, ou seja: os diversos espaços serviam como
estímulos para a criação como um todo. Um cheiro suscitava uma fala, que por
sua vez estimulava uma ação e assim por diante.
Alguns objetos de cena também surgiram a partir das visitas. Houve elementos
de cena que foram experimentados nas cenas concretas, contudo não foram
utilizados na versão nal do espetáculo. Empregamos muitos tecidos na construção
de tendas, pois duas das referências de pesquisa eram o circo e o mundo cigano.
Trabalhamos também com “Espaços Plínio Marcos”, que funcionavam como altares
característicos de cada personagem e eram construídos pelos próprios atores.
Enm, muitos materiais e idéias de espaços foram experimentados ao longo da
pesquisa e, após o encontro com o Teatro Ocina do Perdiz, muitos elementos
foram repensados e novos, criados.
Uma outra característica do trabalho da encenação está no relacionamento com o
público. Desde as cenas concretas, nossa relação com a audiência é de mobilidade.
Ora mantínhamos a encenação numa relação de nítida divisão palco-platéia, ora
convocávamos o público para eventuais mudanças de local. O ator conduzia a
multidão pela sua viagem. Em alguns momentos as pessoas recusavam as nossas
propostas de mudança de lugar, cavam com medo e receosas. Tínhamos que
lidar com possibilidade da recusa do público e assumir o risco ao qual estávamos
nos expondo. Mais do que nunca, precisávamos conquistar a conança de cada
um. Também era preciso ter sempre uma segunda opção no caso da conança
não se estabelecer.
A construção da cenograa deu-se aos poucos. Atores, diretor, assistente de
direção, dramaturgo e cenógrafo estavam em estado de constante interferência.
Cada atuante produzia material, o qual era constantemente revisitado e
revisto. Essa produção e renovação constante de material é uma das principais
características que povoaram o trabalho. A oportunidade de outros agentes, que
não os cenógrafos, entrarem em contato com as pesquisas de imagens ou
mesmo de lugares foi um elemento que pareceu enriquecedor para a construção
tanto individual quanto coletiva.
As visitas surgiram, entre outras coisas, devido à necessidade de realizar
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 39
laboratórios. Buscávamos o universo de catadores de lixo, de moradores da
rodoviária, de prostitutas, de pessoas da rua. Os lugares pelos quais passamos
eram referências para a construção de cenas e, conseqüentemente, para a
criação de imagens que acabavam povoando nossos imaginários e permeando
nossa criação. A atuação do cenógrafo responsável era constante. Ele estava
regularmente presente na sala de ensaio e estimulava o corpo do ator, a cabeça
do diretor, a idéia do dramaturgo e assim por diante.
Após a estréia do espetáculo no Teatro Ocina do Perdiz, surgiram novos desaos
em relação ao espaço. Inscrevemos nossa peça em festivais, mostras e eventos que
não disponibilizavam espaços alternativos para a apresentação. Embora a Ocina
do Perdiz não possa ser considerada como um espaço genuinamente alternativo,
uma vez que oferece uma estrutura teatral mínima, como luzes e arquibancadas,
podemos entendê-lo como um espaço relativamente diferente dos encontrados
nos teatros convencionais. A princípio, como foi relatado anteriormente, não
conseguíamos visualizar o material criado em um palco italiano, no entanto a
necessidade de difundir o trabalho fez com que repensássemos essa questão.
Após longas discussões chegamos à conclusão de que deveríamos apresentar
o Diário em diferentes espaços, mesmo que, para isso, fosse necessário realizar
adaptações ao que havia sido feito no Teatro Ocina do Perdiz.
Um dos primeiros locais em que tivemos que apresentar foi o teatro do SESC,
em Brasília, pela mostra do Teatro Candango. O espaço que nos foi oferecido,
embora dotado de alguma exibilidade pelo fato de não ser um palco italiano,
era destinado, predominantemente, a atividades culturais, diferentemente do
Perdiz que, além de espaço cultural, era uma ocina mecânica e ferro-velho.
Apesar de todas as dúvidas, optamos por realizar o espetáculo no local. Devido
à saída da última cenógrafa do grupo, convidamos um novo colaborador para
a reelaboração do cenário. O cenógrafo fez as adaptações necessárias, como
por exemplo, preencher o novo espaço que era muito maior do que o original,
procurando manter a atmosfera que havíamos conseguido criar no Teatro Ocina
do Perdiz. Algumas sucatas presentes no Perdiz foram inclusive levadas para o
local. Enm, apesar de todas as aparentes diculdades conseguimos não só
realizar o espetáculo, como recebemos por ele o prêmio de melhor cenário.
Após a apresentação, com êxito, do Diário do Maldito em um espaço diferente
da Ocina do Perdiz, nos sentimos mais seguros para realizar o espetáculo em
40 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
outros locais. Apresentamos a peça até mesmo em palco italiano, subvertendo
a ordem do lugar. Colocamos toda a platéia dentro do palco anulando o espaço
das poltronas. A idéia era aproximar a platéia dos atores para recriar um pouco
a atmosfera de intimidade que havíamos conseguido no Perdiz. Posteriormente,
vieram as apresentações em Belo Horizonte e São Paulo e mais uma vez tivemos
que dialogar com espaços diferentes. Independente do lugar sempre havia uma
tentativa de levar um pouco da Ocina do Perdiz conosco. Algumas estruturas
presentes na estréia mantiveram-se. São elas: as arquibancadas, a sala de milagres,
o espaço dos personagens da justiça, do poeta e do cigano, uma cozinha que,
embora não seja vista, é citada por uma das personagens e dezenas de papéis
picados pelo chão.
Por m, acabamos percebendo que era perfeitamente possível apresentar o Diário
em locais diferentes da ocina. Embora ela tenha inuenciado decisivamente no
cenário do espetáculo, não havia empecilho para experimentar e dialogar com
diferentes possibilidades de espaço. A investigação de novos locais enriqueceu
nosso trabalhom, uma vez que nos manteve em constante processo de pesquisa
de novas possibilidades.
A direção
A maneira como o processo colaborativo foi aplicado ao espetáculo Diário do
Maldito, no que se refere à direção, foi decisivo para a execução do projeto. A
iniciativa de falar sobre o Plínio partiu do diretor e ele foi o responsável pela
orientação das pesquisas do grupo. Ele coordenou nossas atividades, tanto criativas
quanto de produção. Orientou nossas improvisações, indicou bibliograas,
estabeleceu a conexão entre os núcleos e direcionou nossas atividades.
No Diário do Maldito tivemos a oportunidade de trabalhar com uma assistente de
direção. Diretor e assistente discutiam idéias e propunham experimentações. Com
a assistente de direção, entre outras coisas, produzíamos cenas, repetíamos as
criadas, melhorávamos o texto, experimentávamos canovaccios, ou produzíamos
material que, posteriormente, deveria ser avaliado pelo diretor. A assistente, além
de colaborar para a produção de material criativo, também foi responsável pelo
registro do que estava sendo produzido. Além de registro escrito, ela realizou
fotos e lmagens de cenas, ensaios, cenas concretas, entre outros.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 41
Dentre as perguntas que povoaram as idéias da direção estão as seguintes:
Qual seria o relato central da história? Quais são as possibilidades de alinhavo das
cenas? Quais os pontos que não foram trabalhados? Quais perguntas devo fazer
ao ator para o esclarecimento dos objetivos das ações criadas? Como a disposição
do espaço afeta a cena e a expressão dos atores? Como fazer da disposição do
espaço um elemento provocador? Como provocar sensações? Como o repertório
dos núcleos se modica mediante a ação dos outros? Como o trabalho do outro
me afeta? Como propor estímulos a partir do que o ator traz e não daquilo que
eu quero?
A proposta do diretor partia, principalmente, da sensibilidade. Uma pergunta
constante que ele fazia aos atores e a si próprio era: O que o toca nesse trabalho?
Com o intuito de trabalhar a sensibilidade como viés principal, o diretor
procurava evitar formulações pré-concebidas e de senso comum por parte de
todos. Realizávamos muitos exercícios com o objetivo de produzir sensações.
Improvisávamos com elementos como água, vento ou mesmo imagens,
fotograas, entre outros. O poder da imagem parecia muito provocativo para o
diretor. A partir de uma foto, ou mesmo de uma imagem que surgisse em uma
cena, ele criava novas propostas de improvisações. As sensações produzidas
pelos exercícios deviam ser sempre aprofundadas. A partir delas intensicávamos
e transformávamos as ações em novas ações, ou seja, em material efervescente e
vivo. A utilização dos depoimentos pessoais aguçou ainda mais a sensibilidade de
todos. O mergulho nas nossas próprias histórias e experiências nos fez quebrar
alguns preconceitos. Fomos provocados a criar sem estabelecer barreiras para a
construção das cenas.
A produção do Diário do Maldito representou um aprendizado para todos nós
no que se refere à metodologia do processo colaborativo. Acostumados a nos
relacionar com um texto pronto e um diretor que diz o que temos que fazer,
trabalhar em um processo de colaboração como esse representou um grande
desao. O diretor como um organizador geral, além de trabalhar a partir da
contribuição dos núcleos, era quem promovia a comunhão entre os mesmos. Ele
experimentou com os atores os canovaccios, propôs improvisações, dirigiu cenas,
promoveu o diálogo entre os atores, o espaço e a cenograa, criou a partir do que
observou na reação do público, arquitetou, enm, uma criação maior que estava
repleta de particularidades de cada criador.
42 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
A interpretação
A argumentação dos atores, no espetáculo Diário do Maldito, precisava basear-se
na ação. Convencíamos o diretor, ou o dramaturgo, ou quem quer que fosse a partir
da nossa produção. Somente uma cena melhor era capaz de modicar a anterior
e, conseqüentemente, de mudar a encenação como um todo. Precisávamos
brigar pela nossa cena e provar por meio da ação que o que estávamos fazendo
era o melhor para a criação. Devíamos ainda estar preparados para abrir mão
de cenas e criar outras a partir de novos estímulos. Inevitavelmente, adquirimos
autonomia. Precisávamos nos desapegar de algumas cenas em nome de uma
criação maior que estivesse de acordo com o coletivo. Apesar das diculdades
que surgiam, entre outras coisas devido ao fato de termos experiências anteriores
com processos cênicos cheio de hierarquias, conseguimos nos fortalecer.
O ator no processo colaborativo não é visto como um intérprete somente,
mas como um criador. A obra só se realiza à medida que todos contribuem.
O trabalho não é elaborado somente pelo dramaturgo, mas também pelos
próprios atores, que, por exemplo, sugerem cenas ao diretor e ao cenógrafo, que
respondem com novas provocações. Cada ator possui suas especicidades físicas,
emocionais e intelectuais para a criação e o processo colaborativo proporciona o
desenvolvimento e o compartilhamento de tais características.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 43
No Diário do Maldito utilizamos depoimentos pessoais
9
para a construção de
cenas. Tais depoimentos nos sensibilizaram muito e representaram, nesse caso
especíco, um grande diferencial do trabalho. Todos os relatos encaixados na
peça pareciam emocionar o público, que se identicava com nossas anseios e
alegrias. Ilustramos com dois depoimentos:
“Eu queria que você olhasse por baixo da minha armadura
e que você visse tudo o que está aqui dentro... Todos os meus
medos, às vezes em que não fui um bom lho, estudante,
namorado... Mas eu queria que você soubesse que mesmo
sendo desse jeito, mesmo sendo assim, eu tenho amor... Eu
não sei onde ele tá aqui, mas a minha vontade, sabe, era que
ele crescesse e me explodisse.
10
“Eu te chamei aqui, mas não tenho nada pra te falar, não
tenho nada pra te mostrar. Pra falar a verdade, eu gostaria
que você saísse que você fosse embora agora mesmo. Não
quero que você escute que às vezes me sinto um peixe fora
d’água e que tudo isso aqui não tem nada haver comigo.
E isso dói, dói no meio do peito. Você sentiu essa dor no
meio do peito? A dor de uma saudade que você não sabe
nem do que é. Não se preocupe... Você não precisa saber... O
importante é que ela te impulsiona. Sabe, às vezes isso aqui
é a única coisa que faz eu me sentir viva!”
11
Os referidos depoimentos eram ditos na cena que denominamos de “Sala dos
Milagres”. Nela, transferíamos a platéia do local no qual estavam acomodados
para o centro do acontecimento. A partir daí, buscávamos que ela casse cada vez
mais envolvida. O deslocamento a que a obrigávamos a submeter-se nos ajudava
nesse envolvimento. A platéia estava realmente presente e ativa nesse contexto.
Cada ator escolhia uma pessoa para dizer o seu depoimento. O objetivo era que
o ator se desnudasse, que se colocasse como ser humano – sem personagem – e
compartilhasse com a platéia a urgência do que queríamos dizer como artistas.
À medida que falávamos o depoimento, nós íamos nos despindo. De todas as
9. O depoimento pessoal é o posicionamento sincero do intérprete como ser humano, como cidadão
e como artista e pode ser sempre usado como material na criação da cena.(Conceito formulado com
base nos estudos do Teatro da Vertigem publicados no volume Trilogia Bíblica, Publifolha, 2002)
10. Alonso Bento, ator do Teatro do Concreto e aluno de Artes Cênicas da Universidade de Brasília.
11. Maria Carolina Machado, atriz do Teatro do Concreto.
44 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
cenas, essa foi sem dúvida uma das mais delicadas. O processo de se despir foi
fortalecido a partir de muitos exercícios e conversas dentro do grupo. A construção
do vínculo de conança e respeito entre nós foi fundamental. Um dos problemas
que surgiram na sua execução foi à recusa de alguns integrantes de tirar a roupa
e se expor. Como, na perspectiva do processo colaborativo a criação é o centro
da questão para um grupo, diante desse conito o grupo precisou discutir muitas
vezes o sentido da cena, que tipo de sensação a nudez era capaz de provocar, que
tipo de barreira impede um ator de se despir, até que ponto a diculdade com o
nu não é uma herança cristã que em certa medida coloca o corpo como o lugar
do pecado que precisa ser constantemente educado e vigiado, o que o trabalho
perderia ou ganharia tendo a cena executada tal como foi criada e idealizada
e assim por diante. Embora alguns atores tenham conseguido ultrapassar as
barreiras preconcebidas, outros continuam encontrando diculdade na execução
da cena, o que faz com que ainda hoje ela seja discutida no grupo. Além de essa
questão ter criado um espaço fértil de reexão dentro de nossa equipe, acabou
também por fortalecer as escolhas estéticas, anal, o que pesa para todos é a
vontade de dizer o que a cena diz, criar a sensação e o sentido que ela é capaz
de gerar por meio da revelação de uma nudez quase sacra, que se distancia de
qualquer possibilidade de erotismo, num ato-rito de entrega-diálogo-encontro-
sinceridade com o público.
Outro exercício utilizado em nosso processo de criação foi a escrita automática.
Tratava-se de uma atividade com um tempo pré-determinado, normalmente de
três a cinco minutos, durante o qual, pautados por um tema denido, deveríamos
escrever tudo o que viesse à nossa cabeça. A idéia era escrever da maneira
mais espontânea possível. A partir do que escrevíamos, construíamos cenas e
reetíamos sobre o que estávamos pesquisando. Quanto ao treinamento físico
dos atores, três exercícios foram utilizados intensamente durante o processo: o
Susuki, o energético e o bastão. O Susuki consiste em um exercício em que ao
som de uma batida criamos uma pose que muda a cada novo som. A cada batida
realizamos movimentos diferentes condicionando o nosso corpo a atingir um
estado de alerta capaz de realizar movimentos com precisão e clareza de intenção.
O energético é um exercício em que realizamos movimentos espontâneos ao som
de uma música. A orientação é para manter o corpo num estado neutro, buscando
uma movimentação - uma dança” que não fosse racional. O objetivo é ampliar
nosso repertório de movimentos e aumentar o nosso condicionamento físico
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 45
para entrar em cena. Muitas ações e características de personagens surgiram do
energético. No jogo com o bastão, lançamos bastões como cabos de vassouras
uns para os outros, tanto parados quanto em movimento. A atividade nos
proporcionava agilidade, precisão, controle da base corporal, atenção e preparo
físico.
Os exercícios citados acima foram os mais signicativos para a preparação dos
atores no espetáculo Diário do Maldito, entre uma série de atividades propostas
e executadas. Realizamos muitas cenas e exercícios que não permaneceram no
espetáculo nal, mas que serviram como base para experimentações e reexões
sobre o processo. A verdade é que ainda hoje descobrimos novos elementos e
ampliamos o nosso olhar sobre o espetáculo, assim como novas possibilidades de
nos prepararmos para ele.
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A Voz dos Criadores
Do Plínio eu conhecia A Navalha na Carne e, então, de repente, estávamos
ali, sentados no gramado, bem no centro da Capital Federal, lendo Inútil Canto,
Inútil Pranto pelos Anjos Caídos. Parecia tudo meio insólito... E começamos a
trilhar o caminho do Teatro do Concreto, numa cidade de concreto e com o vento
correndo por entre os prédios e os nossos cabelos. Não tínhamos espaço físico
determinado, eles foram surgindo na medida da nossa necessidade e foram
sumindo também... Ao mesmo tempo em que nossas idéias ganhavam asas, os
textos do Plínio ganhavam forma de cenas e personagens inusitados. As palavras
dele se tornaram a argamassa para a construção das histórias que transbordaram
as páginas dos seus livros. Chegou ao ponto de termos tanto material, que não
dávamos conta de selecioná-lo. Muita coisa teve que ser descartada e como foi
difícil abrir mão de coisas que a gente construiu! Esse processo criativo é muito
prazeroso, mas igualmente doloroso. Eu era responsável por compilar o texto,
tentar dar uma linha para amarrar a história que seria contada. Lancei mão de
recursos tecnológicos como o blog, uma página de discussão do grupo, pra
ver se conseguia manter um contato maior, mas a inspiração veio mesmo num
dia, sentada sozinha ao lado do Teatro Plínio Marcos, na Funarte, ali, naquele
momento, me veio um texto à mente. Peguei uma caneta e escrevi sem pensar.
Era isso: os personagens voltavam para questionar o seu autor, para cobrar dele
uma história mais decente, mas o que ele poderia fazer, se suas palavras sempre
foram malditas... Então me veio um nome, que eu nem imaginava que seria o
título do espetáculo. Eu deveria escrever as histórias como num diário... o Diário
do Maldito.
Tem duas coisas que eu gostaria de ver publicadas, que eram parte do texto e
que são imagens que nunca me saíram da cabeça:
Fabíola Gontijo
Sobre a tarefa de nascer
O processo que gerou o Diário do Maldito é, sobretudo, uma experiência de
duplo nascimento. Como no mito de Dionísio, nasceu um espetáculo e nasceu
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 47
denitivamente um grupo. Nessa gestação coube a mim a tarefa de parteiro
aquele que ajuda a nascer –, ainda que nascer e morrer sejam missões individuais.
Para ajudar a nascer foi preciso aprender muitas coisas: a encontrar maneiras
de motivar os criadores, em especial os atores e atrizes; a dar retornos mais
consistentes, a partir do que eles propunham em cena; a não ter respostas; a
encontrar estratégias e exercícios que pudessem auxiliá-los na execução de seus
personagens e cenas; a brincar com as possibilidades dos espaços (cênicos ou
não); a fazer perguntas; a abrir mão de idéias aparentemente necessárias; a unir,
misturar e contrapor diversas criações; a buscar muito. Desses aprendizados,
certamente o mais importante foi o de acreditar na própria força da criação, que
nos move indistintamente rumo à obra e, de alguma forma, rumo a nós mesmos.
Esse ato de crer só foi possível ao lado de jovens artistas que se entregaram com
absoluta paixão ao desejo de nascer, talvez de um jeito mais difícil e demorado,
fazendo teatro de pesquisa, de forma coletiva e colaborativa, numa perspectiva
em que o processo é entendido como espaço de experimentação e formação.
Nessa jornada – de vir a ser – encontramos na música de Chico César um princípio
muito caro ao Teatro do Concreto e que se arma na base do nosso trabalho, que
se espera duradouro: “Eu e os meus companheiros queremos cumplicidade para
brincar de Liberdade no terreiro da Alegria.
Francis Wilker
Sobre o risco de (se) criar
Plínio Marcos gostava de gente da banda podre, da esparrela. Foi esse o ponto
que nos pegou por inteiro: somos a maioria da periferia, moradores de uma
capital que exclui, que mantém a “banda podre afastada, escondida, na margem.
Assim como ele, também queríamos gritar e nossa arma era o teatro. Seguimos
o mesmo caminho, levando para o palco nosso grito, o grito de nosso povo e
o grito de todos os personagens que povoaram a obra e também a vida desse
incrível dramaturgo. Acho que uma das coisas mais emocionantes foi ouvir as
pessoas que conviveram com o Plínio falar dele, suas piadas, suas pegadinhas,
sua doçura e dureza e, acima de tudo, sua fé na vida. Toniquinho Batuqueiro, Zeca
da Barrafunda, Carlos Pinto, Tanah Correa, Vera Artaxo... Quantas coincidências,
ou será destino? Quanto encontro comigo mesma, com as energias ocultas, com
meu amor, com o teatro. Estar como assistente de direção junto ao grupo me
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trouxe uma nova maneira de trabalhar, de criar em grupo, colaborativamente,
em cumplicidade e apostando alto no poder da criação. O ensaio passou a ser
um lugar em que podíamos errar, ter crises, fazer perguntas muitas vezes sem
respostas e de frustrações com certas criações que nos zeram perceber por onde
não ir. É também o lugar de mergulho profundo em nós mesmos e nos outros.
Um brinde ao Poeta que nos ensinou e continua a ensinar, pois o Diário é uma
obra aberta, está sempre em fase de acabamento. Por mais que nos esforcemos,
será sempre inacabado, tem sempre algo de inesperado, de novo, de desaador
em levá-lo para a cena. Plínio Marcos escolheu viver no risco e nós escolhemos o
risco de fazer o Diário.
Ivone Oliveira
Ruas, palavras e mandingas para nascer e ser Poeta
Lançar-se num vasto campo aberto em busca do Maldito que havia em mim. Essa
tarefa não era nem um pouco fácil e em muitos momentos o sentimento de perda
de mim mesmo era latente e me deixava a sensação de ser o homem mais vazio
do universo. Nesses momentos, a busca por uma solução se apoiou nos estudos
sobre o “Malditão” e seu respeito pela cultura popular, que abriu caminho para
os terreiros das religiões de matriz africana e que desembocou nos arquétipos
junguianos. Encontrando no arquétipo umbandista do Pelintra, suas roupas e
estilo de vida pelas ruas, um paralelo com o Plínio-Nei-Poeta. No meio de tantos
vazios, descobri que havia muitos pontos em comum entre os três, que recheavam
o personagem. E nesse recheio eu ia conhecendo a mim e ao personagem sem
saber e me questionando, às vezes, se o que estava nascendo não era na verdade
um renascimento imbuído de novos saberes. No calor da rua marginal onde
ensaiávamos quando não conseguíamos espaço, o Poeta enchia-se de angústias
e nas cores sujas ele se vestia de vigor, nos vermelhos das emoções brutas ele
se imbuía de ânima. O que do Nei, do Plínio e do no Poeta é um misto
de indignação, fome, alegria, dança, malemolência, palavras tortas, comiseração,
grotesco, sujeira, força, rmeza e proteção.
Nei Cirqueira
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Mergulho
A proposta inicial para o processo foi para que navegássemos profundamente em
nosso íntimo. Então, por meio de exercícios como o depoimento e a dança pessoal,
fomos mergulhando em direção a essa fonte tão complexa: eu”. Com isso, fomos
rompendo barreiras, furando egos, preconceitos, quebrando estruturas já xadas
por nós mesmos e retirando nossas próprias máscaras para também encontrar
outras. Fomos nossos próprios garimpeiros para, aos poucos, nos aproximarmos
e nos envolvermos com esse sagrado e profano Plínio Marcos. Nesse encontro,
descobrimos muito dele em nós e muito de nós nele e nessa grande devoração
foram brotando esses outros “eus”, nem meus, nem seus, tão nossos e tão dele.
Depois desse mergulho, toda vez que levantamos esse espetáculo é impossível
voltar para a superfície, pois camos submersos e intensamente inundados por
esse maremoto chamado Diário do Maldito.
Micheli Santini
Interpretar no Concreto
Nunca pensei que meus medos, meu povo, meus mistérios pudessem compor
uma cena. Jamais imaginei ser diretora, dramaturga, gurinista, cenógrafa
de uma cena a partir de um tema que o diretor nos estimulasse. O Diário do
Maldito teve sua origem assim. Várias de suas cenas têm a mola propulsora
Plínio Marcos, mas a base são nossas vidas, a forma como vemos essa insana
sociedade. Esta é nossa metodologia: colocar em cena nossos pontos de vista.
Conseguir expor artisticamente o que está guardado, esquecido, latente ou
bem/mal resolvido. Complicado não? Sim, muito complicado. A crise faz parte
deste tipo de metodologia, porém, depois que passamos por ela, conseguimos
trilhar um entendimento de quem nós somos e do trabalho criador. A minha
personagem nasceu assim. O estímulo era a Neusa Sueli, de Navalha na Carne, mas
a Silvia Beatriz estava presente o tempo todo, para nessa mistura nascer a Puta –
personagem que tinha a função de fazer o poeta voltar para si, car e escrever
para sua gente – como tanto fez Plínio Marcos. Isto me deu uma experiência como
atriz, e até mesmo como mulher, que nenhum outro trabalho havia me dado. Pois
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para o ator vivenciar um processo que mexe tanto ele mesmo, em que o olhar
é denitivamente para si, para suas perguntas, suas incertezas, seus desejos,
amores, preconceitos, enm, você inteiro ali na construção de sua cena; é preciso
coragem, entrega, conança no diretor que chacoalha tudo isso dentro da gente.
Além de permitir nos vermos em cena. Pois quando isso acontece, o olhar é vivo e
a palavra, a atuação se torna verdadeira.
Silvia Paes
Convite
Qual é o seu inferno pessoal? Essa foi a primeira provocação que recebi ao entrar
para o Teatro do Concreto e uma das inquietações que permeou o processo criativo
do Diário do Maldito. Qual é a sua revolta, o seu povo, a sua indignação, o seu
grotesco, a sua imagem poética? Tire uma carta do tarô, cante e dance um ponto
de candomblé, vasculhe essa cidade! O que você quer dizer para o mundo e não
o que você quer consolar no mundo. Tudo veio sem avisar (como tudo na minha
vida), sem pedir licença. Quando dei por mim estava ali! Chorando, contando
verdades, me desnudando, me surpreendendo, me escondendo, sentindo...
Aprender a ter voz e dizer-gritar o mundo de Plínio Marcos; a levar tapas de luva e
socos no estômago a cada dia. Eu me desestruturava a cada encontro. O mundo,
realmente, não é o meu umbigo e para descobrir isso precisei me colocar na beira
de um precipício e, assim, reagir... E a reação veio! Rompendo, rasgando, fazendo
sangrar! Nasceu o Diário do Maldito. Nasceu a personagem Brasília e com ela a
subversão de um hino, do sentido heróico dado a uma cidade, para um contexto
marginal e envolvente. “Um pouco histérica, é verdade, mas não faz mal (...) não
tens culpa de ser tão bela e patética e pungente e doida (...) Brasília é vidro partido
no chão da rua. Cacos (...) Brasília convida.... é vermelha!”
12
E eu aceitei e me atirei
em seus braços...
Maria Carolina Machado
12. Texto de Clarice Lispector sobre a cidade de Brasília no livro Abstrata Brasília Concreta de Wagner
Hermuche
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Sobre a nascente de um rio
Costumo atribuir a maioria das coisas que aprendi ao Teatro do Concreto. E não
digo isso por mera identicação, mas no sentido literal: junto do grupo eu pude
dar meus primeiros passos na esfera do fazer teatral e em um mundo prossional
que estava se desenhando para mim, para nós; fazendo as coisas acontecerem
para mim e para nós; fazendo com que esta publicação fosse feita. Agradeço e
agradecerei sempre que puder à parceria feita entre as pessoas que integram a
nossa equipe, o nosso grupo.
O Diário do Maldito foi a minha primeira grande experiência com o teatro (até
então tinha como vivência artística algumas experiências de teatro na escola,
de saraus etc). Junto com o Concreto eu tenho a sensação de estar participando
de uma unidade, de um verdadeiro coletivo.
O processo também foi, e ainda é, uma escola, onde posso cada vez mais
complementar minha formação, principalmente com a pesquisa do processo
colaborativo, que propicia para mim uma experiência paulatina bastante
importante como artista criador.
Eu me enxergo diluído no corpo de um cigano conselheiro ao mesmo tempo em
que também me diluo nas demais personagens da peça. Acho que isso também
deve acontecer com os demais. E acho também este seja talvez um dos fatores que
tornam o Diário do Maldito um espetáculo tão nosso, por isso que nos sentimos
inteiros fazendo-o.
Alonso Bento
Gão: nascido por estupro, morto por excesso de amor
O personagem Gão, do Diário do Maldito, nasceu das cenas criadas pelo Alonso
e pela Gleide, que encontraram eco em minhas inquietações ao estudar um
Plínio Marcos visto de forma tão ética e tão el aos seus princípios – mais do que
talvez seja possível, ou do que talvez eu acredite possível, ou por causa do que
lhe impõem suas próprias circunstâncias. Somei minhas crises às do Plínio e às
do Gão. O Gão tem uma série de complicações físicas e mentais e carrega então
uma crise que esteve rondando esse autor maldito e que nele é trazida às últimas
conseqüências, a ponto de criar uma cisão com o mundo real pela impossibilidade
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absoluta de coerência. Convenientemente ou não, conscientemente ou não, Gão
vive em (ou foge para) um mundo paralelo, não menos fácil do que o nosso,
mas que ao menos dilata sua existência e lhe permite ser em essência pura. A
cada dia reaprendo com este personagem que, ao mesmo tempo, é lho de pai
desconhecido, que se mistura com a visão do estupro de sua mãe pela força
militar, momento onde foi concebido, sendo o mesmo momento em que morre
no seio de sua mãe que tanto o ama. Nascer para morrer de tanto amor. Assim
são os lhos nas barras das saias das mães, assim nos escondemos de nossas
próprias mazelas. Gão traz também uma faceta do Plínio que se mostra em cada
peça, é nosso anti-herói, a antítese de um poeta, agora sem palavras, só gritos, só
espasmos, só o que lhe sobra de fôlego de tanta luta, só baba.
Robson Castro
Profundo aprendizado
Ter participado da criação do espetáculo Diário do Maldito é algo extremamente
signicativo para mim. Desde o começo do processo, a pesquisa demonstrava sua
força e parecia arrebatar o grupo inteiro. Entreguei-me a sua proposta, porque
desde o princípio percebi que este seria um dos trabalhos mais verdadeiros
de minha vida. A dedicação dos integrantes do grupo é algo que até hoje me
emociona. Fizemos o Diário do Maldito com nosso próprio dinheiro, fomos os
nossos patrocinadores apesar de todas as diculdades individuais. Entregamos
todo o nosso potencial criativo para a realização desse sonho. O processo de
pesquisa foi longo e intenso. Aprendi e ainda aprendo muito com esse espetáculo.
Creio que adquiri conhecimentos, tanto como atriz quanto como apreciadora de
teatro. Hoje eu percebo que a peça ganhou proporções que vão muito além do
que imaginávamos. O Diário tem força própria e talvez seja muito maior do que
o grupo inteiro.
Aline Seabra de Oliveira
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A Mãe
Para a criação da Mãe, percorremos um longo caminho em que foram utilizadas
todas as fontes de pesquisa que me ajudassem nesta tarefa. Passamos pelos
arquétipos, depois pelo universo dos alcoólatras, visitei crianças decientes que
foram abandonadas por seus pais, assisti ao Documentário Estamira, z visitas ao
aterro sanitário de Brasília. Pesquisei o andar de uma moradora de rua que está
sempre vagando pela rodoviária do Plano Piloto. Fui muitas vezes para observá-
la e até hoje posso renovar o meu olhar, por que quatro anos depois ela continua
ali. Até mesmo o corpo de um gorila, como é seu andar, seu peso etc. Utilizei ainda
um texto do Plínio Marcos, que se chama Homens de papel e que retrata o universo
dos catadores – este universo foi fundamental para a personagem se desenvolver.
Vali-me muito também de um trabalho sensorial, os cheiros foram preciosos para
trazer à tona toda a veracidade que a cena pede a mim. Sempre tento relembrar
o cheiro do lixo, do chorume, visualizar os urubus voando, o esgoto correndo a
céu aberto, o cheiro de cachaça. Isso é o que mais me ajuda a fazer o mergulho no
universo desta personagem, que mata o lho deciente em busca de alívio para
ambos. Outro elemento que me ajuda a dar vida a este personagem é o gurino,
que se aproxima muito das roupas que vemos os moradores de rua usarem, sujas,
rasgadas e que me fazem sentir o peso daquela situação.
Gleide Firmino
Marcha soldado, cabeça de papel...
Um processo intenso e revelador, a descoberta das gavetas da alma, o
questionamento quem é você dentro de uma sociedade tão desigual. O poder
da crítica e a impotência da palavra. O início, o primeiro workshop: o truque dos
espelhos  Plínio Marcos. Quem seria esse dramaturgo de poesia tão intensa e de
obras tão censuradas? Sentia-me perdido, alienado, confuso... Seria o começo da
mudança de minha trajetória como pessoa de teatro. A primeira cena no mato da
UnB (o meu batismo). Estupro, descaso, esperança... Cadê você Plínio? A primeira
impressão: um grupo que pesquisava, questionava e se entregava por completo
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em uma cena sobre os vinte e cinco homens queimados em uma cadeia em São
Paulo. Meu coração palpitou mais forte, era o início de um dilema que ainda não
teve um m. É difícil soltar as amarras. Censura. Qual a relação com o seu pai? PM.
Marcha soldado cabeça de papel quem não marchar direito vai preso no quartel.
Um personagem que nasceu da poesia de um menino que veio ao mundo pelas
mãos de uma parteira, no interior Goiás, que passou pelo sadomasoquismo, virou
o cachorrinho da justiça e se transformou em um pitbul raivoso e de coração
ingênuo. Nunca mas seria o mesmo depois da força militar, ou melhor, Soldado
Floquinho (nome dado por minha companheira de cena). Diário do Maldito nasceu,
cresceu se tornou maior que todos do Teatro do Concreto. A cada apresentação,
um novo questionamento, uma nova luta.
Jhony Gomantos
Liberdade criadora
Particularmente, costumo fazer uma analogia entre um processo de criação e
uma gravidez, que em ambos a cria se desenvolve gradativamente até atingir
a maturidade ou a necessidade de seu nascimento. Para conceber a prostituta
no espetáculo do Diário, acredito ter sido o nascimento de minha cria como um
parto a fórceps, visto que, entre todas as minhas experiências como atriz, este foi
um dos maiores desaos. Apesar de seguir algumas referências do grupo para o
meu processo, a sensação constante que me acompanhava era a de percorrer um
caminho totalmente inverso, pois se para eles o processo havia sido colaborativo,
para mim era totalmente individualizado. Se a encenação e a dramaturgia vieram
das experimentações, para mim eram concebidas. Percebi que um dos fatores
essenciais para meu processo foi a minha experiência como espectadora, fato que
ocorreu muito antes do meu vínculo com o grupo. Este meu olhar distanciado e
sem um grande envolvimento com o espetáculo contribuiu em alguns pontos
essenciais para a minha criação, como a própria movimentação pelo espaço
e a triangulação com o público e a sensação de intimidade com todas aquelas
personagens, que me trouxeram uma proximidade maior e mais rápida com a
encenação. Vejo a minha personagem ainda em fase de crescimento, em busca
de sua maturidade e, nas encenações, encontro possibilidades de enriquecer e
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inovar a minha criação, visto que a estrutura estética do espetáculo permite aos
atores uma liberdade criadora peculiar e uma experiência privilegiada que se
renova a cada apresentação.
Celma Ioci
Escolher. Organizar. Compor. Criar.
Mas, acima de tudo, dialogar.
A criação da dramaturgia do Diário do Maldito foi um longo e intenso diálogo
entre dramaturga, atores, atrizes, direção e assistência. Após me inteirar do
material produzido e acessado ao longo de um ano e meio de pesquisa, elaborei
o primeiro canovaccio - roteiro de ações que propunha uma seqüência para as
cenas e era um esboço da estrutura da peça. O canovaccio era sempre levantado,
ou seja, virava cena, improviso. E assim basicamente se dava o diálogo: entre
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canovaccios e cenas. Dessa forma, a estrutura da peça ia se desenhando.
Um momento particularmente complicado foi o início do processo, em que os
atores precisaram abandonar uma enorme quantidade de material produzido em
função das escolhas da dramaturgia. Exigiu desapego. Eu pensava na imagem de
um ímã que, ao ser erguido, atrai para junto de si determinadas cenas, ao passo que
outras cam imóveis. Às vezes, uma cena muito boa cava de fora da peça porque
não conseguia se inserir na estrutura que estava sendo criada. Outras vezes, a
própria estrutura era composta em função de uma cena. As escolhas levavam em
consideração a potência de algumas cenas, o impacto que causavam em mim,
as relações que estabeleciam umas com as outras ou entre as personagens e as
exigências dos atores e direção.
Desde o início, ative-me à importância de me colocar como artista, como pessoa,
imbuindo a criação daquilo em que acreditava. Penso como o espetáculo teria
sido diferente se fosse outra pessoa a responsável pela dramaturgia, assim como
com qualquer outro criador.
Juliana Sá
Um breve histórico sobre a montagem do espetáculo...
O espetáculo Diário do Maldito foi nalizado e estreado no Teatro Ocina do Perdiz.
Este espaço, história de amor e resistência em nome do teatro, contribuiu muito
mais do que poderíamos supor para o espetáculo. Por isso, não seria conveniente
falar sobre a montagem sem citar a importância deste contato. Toda essa vivência
neste teatro-ocina trouxe muita consistência para a montagem do trabalho. E,
surpreendentemente, foi o que mais nos auxiliou, desde a inspiração de causa,
até o trabalho prático de uma ocina mecânica. A montagem do Diário do Maldito
nasce coberta de graxa, ferro velho, abandono, vontade e muito, muito trabalho.
A primeira apresentação fora do espaço foi no Festival do SESC, o Palco Giratório.
O que zemos foi reconstruir, de uma forma simplicada, a Ocina em outros
espaços. Neste Festival, levamos o prêmio de Melhor Cenograa. E desde então
não paramos mais de adaptar lugares, muitos deles impossíveis a uma primeira
olhada, todos com suas diculdades particulares, o que faz o espetáculo car com
a cara de cada lugar por onde passa. Não que tenha se tornado fácil a montagem
do espetáculo, por que ela é muito trabalhosa, mas de fato nos especializamos
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 57
com as inúmeras apresentações naquele teatro Ocina, que, a priori, parecia mais
precisar receber do que dar. Era lá, sempre, a metáfora do próprio espetáculo.
Impossível não carregar este tipo de coisa, não se afetar.
Zizi Antunes
Trilha sonora e processos musicais na peça Diário do
Maldito
A música como elemento componente do fazer teatral tem importantes
funções na condução e signicação de um espetáculo. Desta maneira, o trabalho
com a música foi, e ainda é, uma grande frente de trabalho na composição e no
desenvolvimento da peça Diário do Maldito. A vida e a obra do dramaturgo Plínio
Marcos foram estudadas de várias maneiras, assim como o universo musical e
as paisagens sonoras que acompanham o “personagem Plínio foram fontes de
criação cênica. As músicas que fazem parte do imaginário dos vários mundos ou
das diferentes fases que ele percorreu em vida não são simplesmente encaixadas
em cena, mas desdobradas, adaptadas e recriadas, compondo e corporicando os
personagens que não são especicamente criados por ele, mas que certamente
habitam e dialogam com as suas obras. O resultado da criação musical da
peça apresenta uma forma de utilização da música bastante diversicada, ora
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narrando, ora pontuando ou simplesmente acompanhando. A trilha foi trabalhada
durante todo o processo criativo e ao nal foi lapidada com a entrada dos músicos/
criadores. A cada nova apresentação surgem novas idéias e formas diferentes de
executar a trilha. Do mesmo jeito que ocorre numa roda de samba, músicos e
atores dialogam e improvisam durante o espetáculo, trazendo organicidade para
a obra e novas condutas para a sala de ensaio.
Daniel Pitanga
Espaços não convencionais
O processo criativo já contava dois anos de elaboração quando me uni ao
grupo, o que signicou que o universo da peça possuía alguns contornos e
que minha proposta de cenograa deveria então existir dentro dele. A utilização
de espaços não convencionais foi a maior diretriz recebida e a garantia de uma
ampla margem criativa resultou na elaboração de propostas múltiplas e bastante
diversas entre si. O fato de todo o processo criativo se basear em colaboração,
tornava as decisões lentas e fazia as questões serem problematizadas a partir de
várias perspectivas. Ainda hoje tenho diculdade em precisar minha autoria na
concepção cenográca. A criação mediante processo colaborativo absolutamente
dissolve os limites do que cada um, individualmente, poderia considerar como
seu quinhão de mérito (ou demérito). Findo o processo, tive a dimensão do
desao que foi aliar minha tradição visual essencialmente ordenada àquela que
melhor caberia ao espetáculo como um todo, mas os pontos de concessão do
grupo parecem ter acrescentado algo positivo. Pude pontuar o espaço fantástico
e não linear onde se desenrola a trama com minha predileção pela clareza visual,
dispondo de cortinas que organizaram o espaço e recobrindo todo o chão com
papel, de forma a dar consistência à imaterialidade dos espaços e dos personagens
que ali tomavam vida. Característica muito interessante do Teatro do Concreto
é a forma como o grupo se permite incluir outras visões a cada nova criação,
aceitando a riqueza da dialética própria de encontros entre criadores. Talvez essa
capacidade de incorporar novas perspectivas seja, em parte, responsável pela
vitalidade marcante dos trabalhos do Teatro do Concreto.
Isabella Veloso Sá
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Espetáculo: Diário do Maldito
O público é recebido num bar, onde conhecerá diversas histórias e personagens
que descrevem a trajetória divertida e comovente de um Poeta. O espetáculo traz
a tona à incerteza de um artista que dedicou anos a o a escritos de denúncia
social – agora, pensa em parar de criar. Inconformados com a situação, seus
personagens invadem a cena para cobrá-lo.
Em uma área externa, Mira recebe o público do alto de uma escada.
Mira (enquanto o público entra. Fala para o alto de um telhado): Desce daí
disgrama, vamo Teco-teco, pára de me azucrinar, vai quebrar as telhas, tão
tudo arrebentada. Ta olhando o que, hein, minha lha, nunca viu gato em cima
de telhado não... Sua (para o público) pu...ta.... que... pa... riu....! Ah... eu sabia, era
baixar o preço da pinga que tudo vocês iam aparecer, bando de cachaceiro
mesmo viu. Eu sei que ele ia car numa felicidade, a casa cheia, como nos
velhos tempos....Eu não acredito, olha quem ta aí...Seu Troinhaaaa! (descendo da
escada) Esse homem é uma nura, olha a beca disso. Que saudade...(abraça-o).
Isso dança que é uma beleza.
(para outro) Ui, ui, ui, quem é essa graxinha??? Qual é o seu nome belezura??? Então,
quer dizer que temos um cliente novo... Mas me diz quem foi que te trouxe?? Não,
não precisa nem dizer, garanto que foi Glorinha, né, sua safada, (para outra) mas
tu não tem jeito não mulher...cadê o de ontem, já chutou pra escanteio? Ta certo,
minha lha, não pode deixar a água parar não porque água parada só dá dengue.
Mas bem que eu queria um mosquitão desses zumbindo no meu pescoço... Puta
que o pariu! Deixei a mandioca na panela, ta tudo queimando. Entra minha gente,
vão entrando, deixem de frescura, aqui não tem essas coisas não, podem ir se
ajeitando.
Público entra na área interna e se senta. Mira ajuda platéia a sentar nos locais
apropriados, enquanto conversa com um e outro.
Mira: Teco-teco, eu já mandei tu descer daí de cima. Esses gatos me incomodam
dia e noite, não deixam nem eu dormir. Mas essa noite eu não dormi, não foi
por causa deles não. Eu tava tão nervosa, quei pensando, lembrando de umas
60 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
coisas... É tanta lembrança que a minha mente ca toda embaralhada.
(para outro) Ah não, seu Joaquim, sai pra lá. Eu vou logo te avisar, se tu veio aqui
pro bar pra chorar as pitanga por causa da dona Rita, esquece, eu não vou sair aí te
carregando não. O pior não é deixar de pagar não, o pior é car se lamentando por
causa da dona Rita. Olha, z uma pra você, escuta essa, seu Joaquim: (cantando)
Chora Dona Rita, Dona Rita chora, chora Dona Rita, por favor, VAI SE EMBORA
minha lha, vai se daná, deixa o seu Joaquim viver a vida dele. Seu Joaquim, o
senhor tem que ser mais atento. Deixa eu fazer um lero aqui rapidinho com o
senhor. Ta vendo aquela moça ali, (aponta para alguém) desde que entrou aqui
tava te marcando, presta atenção meu camarada, num pode ser tão devagar assim
não, vou te dar um papelzinho aqui, você escreve e eu entrego pra ela (entrega um
papel).
Alguém tem um cigarro aí? Fogo também tem, é? (para alguém do público)
Imagina esse fogo seu juntando com o meu, pense no estrago que num ia
dar! Isso mesmo, um cigarro, um. Ter um maço ou dois cigarro signica ter
futuro, ter que fumar no futuro, se preocupar com o futuro e não desfrutar o
enorme prazer de se fumar um cigarro nesse momento... (traga profundamente).
Eu mesma ia ter um futuro de luxo, duvida? Tinha um ricaço que vinha todo dia
aqui atrás da Miroca, parecido com aquele ali, estilo galã. Pois esse homem se
encantou pela Mira, também, isso aqui tem feitiço... (apontando para o sexo) Ele
cou louco, vinha aqui todo santo dia. Queria comer a Mira, queria possuir a Mira,
mas tu é gostosa, hein, “eu arrasto uns quatro vagão de merda por tu”, eu quero
casar contigo, te dar as estrelas...Filho da puta! Arruinou com a minha vida. Eu
devia mais era ter deixado o Poeta escrever. Ah! Deixa pra lá. Hoje é tarde pra
pensar uma coisa dessas. E também, como ele mesmo dizia, meu velho amigo,
palhaço, poeta e sambista: ninguém compra lágrima, num é mesmo, até porque
eu não vendo”. Falando nisso, até agora ninguém pediu nada. Como assim, ta
todo mundo caladinho?... Olha, eu chamei vocês foi pra comemorar porque car
remoendo as lembrança sem cachaça num tem quem agüente. Espera que
eu vou descer uma rodada grátis para todo mundo. Mas vão ter que comer as
mandioquinhas!Tão torradinha, mas vão ter que comer!
Voz do Poeta (barulho de máquina de escrever): “Eu-já-mor-ri-um-ca-ce-tão-
de-vez. Um lho da puta encheu minha mãe de porra e se arrancou”. Sufocado.
Sufocado no seio. Anjo de merda.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 61
Mira sai de cena enquanto a Justiça entra sentindo um mau cheiro. Procura de
onde ele vem.
Justiça: Escrevendo subversão! Não libero.
Justiça (para a FM - Força Militar, apontando para onde o poeta se esconde): Pega,
Floquinho!
FM corre atrás do Poeta, que brinca de pega-pega.
Poeta (para FM): Pega, bibelô!
FM pega o Poeta e o leva à Justiça.
Poeta: Me larga! Que é isso! Sai pra lá!
Justiça: Tava te procurando... Então, é aqui que vagabundo se esconde? (para a
FM) Solta ele. Lê. (para o Poeta) Ele vai ler a mais curtinha.
FM (com diculdade): “Ho-je foi um di-a pé-ssi-mo. An-dei pra ci-ma e pra bai-xo e
só pe-guei um gor-do a noi-te in-tei-ra. Ele me falou de toda a ...
FM e Poeta: ... puta da vida dele, da puta da mulher dele, da puta da lha
dele...
Justiça: Tem puta demais, vou arquivar. Não libero, não libero essa porcaria de
peça!
Poeta: Por que não libera?
Justiça: Porque eu não quero, porque eu não quero!
Poeta: Tu num explica é porque não sabe!
Justiça: (Latido) É claro que eu sei. Sua peça é pornográca, subversiva e tem
cheiro de cocô! (para FM) Come cocô!
Poeta: Por que é pornográca?
Justiça: Porque tem palavrão.
Poeta: Porque é subversiva?
Justiça: Porque você sabe que não pode colocar palavrão e você bota palavrão.
Poeta: Escuta aqui, ooh, vaca velha...
62 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Justiça late.
Poeta: Como é que tu fala do que num sabe... Você nem leu a peça! Pra fazer a
crítica tem que ler! Se não leu, não pode falar!
FM: Mas eu li...
Poeta e Justiça: Cala a boca, cão vadio!
Justiça: Como é que você fala assim do meu cão. Ele é o meu cão. (para FM) Pega
ele, pega ele, Floquinho! (Latidos).
FM corre atrás do Poeta, que brinca de pega-pega, mais uma vez.
Poeta: Pega, Floquinho!
Poeta baixa as calças mostrando a bunda para a FM e sai de cena. FM volta sem o
Poeta.
Justiça (para o público): Você já teve vontade de xingar um PM? Eu também. (para
a FM) Filho da puta!
Mira volta e Justiça vira estátua. Mira serve cachaça e mandioca para o público.
Mira: Olha a cachaça. Vou começar por esse aqui que tem cara de pinguço.
Ouve-se o som do pagode do lado de fora. Poeta entra acompanhado dos músicos,
do Cigano, da Mãe e do Menino. Ele canta, sorri, cumprimenta todos.
Mira: Olha quem tá chegando!
Todos (cantando Tiririca):
É tumba, moleque, tumba
É tumba pra derrubar
Tiririca, faca de ponta
Capoeira quer te pegar (2x)
Dona Rita do Tabuleiro
Quem derrubou seu companheiro? (2x)
Abre a roda minha gente
Que o batuque é diferente (2x)
Poeta (interrompendo o Pagode com um assobio): Essa é pro Ari Pára-Raios, que
agora tá fazendo teatro nas ruas do céu!
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 63
Todos: É tumba, moleque, tumba
É tumba pra derrubar
(...)
Que o batuque é diferente.
Poeta (interrompendo com um assobio): Essa é pro Boi do Seu Teodoro, que com
dinheiro ou sem dinheiro, faz o boi rodar no terreiro!
Poeta interrompe com um assobio
Mira: Essa sou eu! Essa é pro Perdiz, que mesmo sendo ameaçado de fechar, abre
as porteiras pro nosso samba rodar!
Pagode continua. A Puta entra em prantos, cria-se um burburinho e o pagode
cessa pouco a pouco.
Puta: Tão cantando demais, né? Tá todo mundo cantando e ninguém escuta.
Poeta: O que que é, mulher? Que que aconteceu?
Puta: É só isso que tu quer, né? Farra, curtição.... Tu não escuta não?
Poeta: Escutar o que? Tá maluca?
Puta: Num escuta mesmo!
Poeta: Qual é, bota a real pra fora, caralho! (pega a Puta pelos braços, depois a
abraça)
Enquanto isso, Mãe aparece com o Menino. Ela bebe e ele ena papéis debaixo
dos braços.
Puta: Era só um menino...
Mãe: Ô menino!
Puta: um menino frágil e um grito...
Mãe (para o Menino): Pega essas garrafa aí, moleque. Pega isso aí!
Poeta abraça a Puta e os dois olham para a Mãe e o Menino.
Menino não atende. A Mãe pega garrafa e bebe.
Menino descobre bonequinho, roda o brinquedo no ar e grita.
64 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Mãe: Pára com isso, moleque! Pára com isso!
Ele não pára. Ela parte pra cima dele e lhe arranca o brinquedo.
FM se aproxima devagar.
FM: Já disse que num quero esse mongolóide aqui!
FM empurra a Mãe no chão e chuta o Menino.
FM (para a Mãe): Tá fazendo o quê?
Mãe: Catando papel.
FM: O quê?
Mãe: Catando papel.
FM: Então cata esse bem aqui. Esse aqui, o mais curtinho. Cata. O mais curtinho.
FM empurra Mãe no chão. Ela se levanta. FM a derruba novamente e a estupra.
Mãe e Menino gritam. FM sai.
Mãe: Deita aqui menino. Deita. (ela puxa o Menino para o seu colo e faz carinho em
sua cabeça)
Mãe (para o público): “Sabe seu moço, tudo que eu sei nessa vida é rezar o rosário.
A minha mãe que me ensinou. Um lho da puta encheu minha mãe de porra e se
arrancou. Nem sei por que ela não me tirou com purgante ou deu nó nas trompa.
Quem sabe eu era um anjo... Num sei por que eu não tirei esse aí com purgante.
(joga o menino do colo)
Mãe bebe.
Mãe (rindo): “Eu morri um cacetão de vez. Morri de fome, de frio, de medo de
ver a cria morrer”.
Menino tem ataque epiléptico. Mãe bebe. Mãe acode o Menino. Mãe tira o peito
para fora e o oferece a ele.
Mãe: A mamãe vai te dar mamar.
Mãe nana Menino até matá-lo sufocado entre os seios. Ela se levanta e sai.
Puta: Agora ele é anjo. Anjo de merda.
FM volta para recolher o corpo, com um carrinho de mão, e a Justiça atravessa o
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 65
espaço cantando Oh abre alas que eu quero passar”.
Puta (para o Poeta): Fala da gente, fala da gente fodida desse lugar, vai ver que a
gente ca famoso ou pelo menos ganha coragem pra se olhar no espelho.
Poeta: Eu falo e o que eu ganho? Diz aí? O que que o poeta aqui ganha?
Puta: Pelo menos tu num vive nessa merda. Vem pro boteco de noite e pronto.
Será que tu ia agüentar viver nisso aqui? Aqui não tem silêncio, não. É barata com
gemido com dor com gente! “Tem horas que eu nem sei se a gente é gente...
Poeta: Claro que é, piranha! Eu escrevo sobre gente. sei falar de gente, de
puta, de veado... Mas tem hora que essa merda toda cansa!
Puta: Vá à merda... a vida é assim! E se tu tá cansado dela, todo mundo também tá,
e não é por isso que tamo aí deixando de fazer o que tem que fazer!
Poeta: Me deixa em paz, vai, só um instante...
Puta: Paz?! Eu nem sei o que é isso. Me escreve um pouco de paz que te deixo!
Poeta: Tu quer é sacanagem!
Puta: Olha aqui! Eu também tô cansada dessa vida, tá legal!
Mira (para o público): Esses dois não tinha jeito! Era que nem cão e gato. Eu cava
na minha, se eu queria que ele continuasse nessa, eu não! Era a única que botava
lenha pra ele melhorar de vida. Tinha tanto talento, sabia escrever tanta coisa... Sai
daí, Barrichelo! Esse aqui é igualzinho a tu, seu Joaquim: leeeento, lentiiiiinho...
Puta (para o Poeta e para o público, comendo pão com mortadela): “Ontem foi de
lascar. Andei pra cima e pra baixo e peguei um trouxa à noite toda... Me falou
de toda a puta da vida dele, da puta da mulher dele, da puta da lha dele...tudo
gente muito bem instalada na puta dessa vida! O puto pesava mais de mil quilos.
Ficou em cima de mim duas horas. Bufou, babou, babou, bufou e na hora de pagar,
reclamou pacas. É isso que cansa a gente, é isso que acaba com a gente. Tudo o
que a gente quer é chegar em casa e encontrar o homem da gente de cara legal,
tirar aquele sarro e se apagar, é ou não é? Pra ver se esquece de toda sacanagem
desse mundo de merda. (para o Poeta) Fodido não tem pra onde correr não...
Puta sai.
66 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Cigano aparece
Cigano: Que porra é essa, gajdo!
Poeta (brincalhão): Qual é, cigano truquero!
Cigano (sério): Num tá escrevendo por quê?
Poeta: Ué, poeta tem que escrever 24 horas, é?
Cigano: Você tem.
Poeta: Por quê? Por que sou poeta de fodido? Que isso... todo miserável tem seu
dia de descanso...
Cigano: Descanso só se conhece na hora da morte.
Poeta: Sai pra lá, cigano truquero! Tu querendo botar medo no seu camaradinha?
Cigano: Tu sabe que o teu caminho é o das palavras. Descobre a energia que elas
podem carregar! Come elas! Bebe elas!”
Poeta: Escuta essa Mira, esse porra tá querendo falir o teu buteco!
Cigano: Num fala merda, seu poeta de...
Poeta: Poeta de que, hein? Me diz? Poeta de nada... Poeta fodido! Poeta otário!
Poeta...
Cigano: “Maldito gajdo! Conte histórias! Essa é a sua trilha. E que os da sua raça te
odeiem por causa dessas palavras, porque na mesma medida você será amado...
Poeta: Mas as palavras vêm quando querem...
Cigano: A fonte tá dentro, gadjo!”
Poeta: Dentro... No fundo de um copo de cachaça. Ô, Mira!
Cigano: Vai brindar a sua covardia!...
Cigano sai.
Mira aparece com uma garrafa na mão e serve dois copos.
Mira (para o Poeta): Qual é, gurinha difícil, tá dando pra trás?
Poeta: Eu, hein!? Essa coisa de dá pra trás não é comigo não, é com o meu amigo
ali (aponta alguém da platéia).
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 67
Mira (para o Poeta): Quero ver se tu agüenta essa aqui: Chora Rita. O seu Joaquim
não agüentou, tá chorando até hoje. (para alguém da platéia) Porque tu sabe né,
minha lha, homem cabra macho a gente conhece é pela pinga: bebeu e fez cara
de japonês é porque o cabra é moliiiiiiinho...
Poeta coloca cachaça para o santo.
Mira (para o Poeta): “Labrego lho de uma cadela, racista lho da puta!”
Poeta (sem entender): O que, Mira?
Mira: “Não pode ver santo crioulo, que logo acha que é cachaceiro! Quem mandou
botar cachaça pro santo beber?”
Poeta: “Mas Mira... Sempre achei que São Benedito bebia cachaça!”
Mira (para Poeta): “Esse não é o Bitotô, seu paspalho. É o Santo Antônio do
Catigeró! (para o público) Essa gente não se manca! Não sabem o que bebe o
santo e vão logo servindo qualquer coisa, depois querem milagre. (para Poeta,
puxando-o pela orelha) Ajoelha e pede perdão. (para público) Ta o Labrego!
Reza, reza e só ca no prejuízo!” (para alguém da platéia, mostrando a tatuagem na
coxa) Quer ler? Pode ler. O que tá escrito aqui?
Alguém do público: EU SOU O AMOR DE ALDAIR.
Mira: Não sou, leu errado. Não sou. O amor de Aldair é o caralho! me lembro
de um porre memorável, um navio zarpando e eu zanzando no quarto do bordel
com essa puta coceira na perna. Sabe o ricaço que vinha todo dia atrás da Mira,
que queria a Mira pra todo o sempre... Vazou, me deixou na mão, arriô os quatro
vagão de merda pra puta que o pariu. Sabe por quê? Toda vez que nós ia pra
cama, naquele chamego todo, naquele dengo, o camarada via a marquinha da
Miroca e brochava. ele pinou fora, vazou, me abandonou de vez. Cadê você,
hein, ricaço? Cadê aquele amor todo? Cadê o casamento? Cadê as minhas estrelas,
porra? Cadê, hein, poeta? Eu jurei pela alma de minha mãezinha que eu não sabia
quem era esse tal de Aldair. “Fui marcada como gado.
Poeta: Como gado não, Miroca, como bicho de São Sererê. Tá no prejuízo, Mira,
tira no mijo!”
Mira: Eu tiro no cuspe!
Os dois sobem na arquibancada, ao lado do público, balançam bêbados ao vento.
68 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Mira e Poeta: “Subo num edifício bem alto...
Mira: “Fico de cima olhando as pessoinhas. Elas não têm rumo. Rei. Capitão.
Soldado. Ladrão. Quando isso me cansa, começo a cuspir lá de cima.
Poeta e Mira cospem em várias direções.
Poeta: “Pra acertar na cabeça de um.
Mira: “Não. Cuspo pra ver a cuspida bailar no ar. O cuspe tocado pelo vento faz
curvas incríveis até se dissolver no ar. Se integrar...
Poeta e Mira: “Eu gostaria de ser assim.
Mira: “Bailar no ar. Dançar até dissolver todas as minhas penas, doenças, mágoas,
rancores. Tudo o que é do ego. E depois, livre desses sons embrutecedores que
soam nas minhas entranhas...
Poeta: “Livre das minhas histórias, dos rostos dos meus anjos e demônios, sem
nenhuma memória de mim mesmo...
Mira: “Mergulhar no mais profundo, absoluto, perfeito silêncio e nele me
integrar.
Poeta e Mira (olhando-se): A dança louca do cuspe voador!”
Os dois riem, cospem um no outro e se abraçam.
Mira: Pára tudo! Pára tudo! E agora, com vocês, a grande atração dessa noite. Ela,
que abalou as estruturas do Planalto Central! Senhores passageiros do Bantãbar,
apertem os cintos porque o avião vai decolar! É um, é dois, é um, é dois, é três e
vai!
Mira desce junto com o Poeta. Brasília surge de detrás das cortinas (cantando o hino
de Brasília):
Todo Brasil vibrou e nova luz brilhou,
Quando Brasília fez maior a sua história
Com esperança e fé é o gigante em pé
Pelo raiar da alvorada e sua glória
Com Brasília no coração
Epopéia surgiu do chão
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 69
O candango sorri feliz
Símbolo da força de um...
(para o Poeta) É um prazer te receber!
País...
É um, é dois, é um, é dois, é três e vai!
Todo Brasil vibrou e nova luz brilhou,
Quando Brasília fez maior a sua história
Com esperança e fé é o gigante em pé
Pelo raiar da alvorada e sua...
(pede que alguém do público tire a sua luva)
A mim você não engana, poeta,
A sua sede é de poder!
Vai!!!! (manda beijos para o Poeta)
Glória...
(estalar de dedos)
Assim...
Todo mundo...
Comigo...
Assim... ai que gostoso...
Não pára, não pára, não pára!
Capital de um país audaz
Bom na luta e melhor na paz
Salve o povo, salve esse povo todinho... (gargalha)
Salve o povo que a gente quis...
(senta no colo do Poeta)
Símbolo da força de um país!
Símbolo da força de um....
(falando para o Poeta) Vem! Vem que a minha cidade te acolhe, vem... Grana,
fama, luz e poder... Vem que tem, vem meu bem...
70 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Vem ser o símbolo da força de um país, símbolo da força de um...
Puta (rindo): Como se fez prostituta a cidade el! Que bonito! Fizeram uma
festinha e nem me convidaram?! (para o público) Uma salva de palmas pra ela,
gente.
Poeta: O que você tá fazendo aqui?
Brasília: Que situação! Não se tem mais privacidade nos dias de hoje.
Puta: Olha aqui, ordinária, enquanto você vinha com o pau, o fogo já tava
aceso há muito tempo. (para o Poeta) E você trate de levantar. Levanta que você
tem muito que fazer.
Poeta: Calma.
Brasília: Ah, ele vai levantar sim, mas é pra sentar no meu colo, no colo do meu
povo.
Puta: Oh que esse colo esfria rápido, é de mármore.
Poeta: Ai, ai, ai... a noite vai ser longa.
Puta: Olha aqui, você tem um compromisso.
Poeta: Que que é piranha, não precisa me lembrar.
Brasília: Ele tem um compromisso com a ordem e o sucesso. Vem, vem pro
sucesso...
Brasília e o Poeta dançam juntos.
Puta (para Brasília): Olha aqui, o compromisso dele é de vida, carne e sangue.
Você não sabe o que é isso, né! Porque é falsa. Age como se fosse ser uma nova
era pra todos. No cu! No meu cu e no de muita gente. (para o Poeta) Coloca a
mão no meio das pernas dela pra ver o que que sai, coloca! Daí num sai nada,
porque isso aí é linda por fora e oca por dentro.
Brasília (para a Puta): Chega! Deixa ele ser o que ele quiser! (para o público)
Ou vocês pensam que ele vai passar a vida sendo poeta maldito? Que nada! Ele
vai escrever capítulo de novela, vai ter um teatro com o nome dele, noite de
autógrafo. Gente, ele nasceu pra brilhar.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 71
Puta: É esse brilho falso que tu quer? Essa onda rasa, esse baseado frouxo?
Poeta: E se for, qual o problema? Tu já experimentou?
Puta: Eu não preciso comer bosta pra saber que é ruim.
Brasília (cantando e convidando o Poeta): Ei, chega mais perto, bem mais perto,
que eu tenho o coração aberto e entre as pernas uma fornalha!!!”
Poeta se aproxima de Brasília.
Puta (para o Poeta): Olha aqui, seu puto, não vai me deixar na mão, não.
(segurando o braço dele) Hoje você é o que é graças à gente fodida como eu.
Poeta (para a Puta): Mais um fodido.
Puta pega uma folha de papel em branco e mostra ao poeta.
Puta: Agora você vai fazer a porra dessas palavras valerem a pena.
Brasília (para o Poeta): Pega... Pega! Vai ser uma história linda. (para a Puta)
E olha que a inspiração ele já tem. (passando a mão no próprio corpo) Uma
estrutura planejada. Tô até vendo, vai ser um escândalo! (para a Puta) Se inspira
você também na minha luz...
Puta: Eu não quero esse brilho falso!
Brasília: E o que você quer, hein? Hora de almoço? Repouso remunerado? Fim
de expediente? Mas você não pode! Você não cabe!Você fede! Vovó das putas,
arregaçada. Tem que pagar pro teu homem te comer!
Puta tira uma navalha e ameaça Brasília.
Puta: Desce! Desce, anda!
Poeta tenta intervir e é ameaçado.
Puta: Olha os seus eixos, sua estrutura de mármore branco (passeia a navalha
pelo corpo de Brasíla). Olha esse brinquinho? E se eu cortar essa orelhinha...
Brasília: Não!!!
Puta: Cala a boca!!! Se eu vender esse brinquinho, vai me dar uns bons
trocados!...
Brasília cospe na Puta
72 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Puta: Sua Puta! Linda, não é? Agora, corta a veia dela pra você ver o que sai! Da
minha boceta sai sangue, porra!
Puta empurra Brasília, que ca caída.
Poeta: Porra, pra que isso?
Puta (para o Poeta): Corre nas minhas veias o sangue das puta, gigolô, veado,
bandido, de toda gente fodida que anda por aí.
Poeta e Puta discutem.
Brasília levanta inesperadamente.
Brasília: Um brinde!
Pede ao público as taças com vinho.
Brasília (indo em direção ao Poeta): Um brinde Poeta! (dá uma das taças ao
Poeta) Um brinde ao mais novo fenômeno literário da capital!
Poeta: Um brinde!
Poeta sente o cheiro do vinho, faz o jogo de sedução da Brasília, mas não bebe.
Poeta entrega a taça à Puta.
Poeta: Brinda você.
Puta gargalha.
Brasília: (para o Poeta) Volta aqui!
Poeta (saindo): Eu tô cando é velho, não é frouxo, não!
Poeta sai.
Brasília: Poeta de merda! Bem merece a vida que leva!
Puta ri, sente o cheiro do vinho e bebe.
Brasília: (para alguém da platéia) Um brinde ao que de mais lindo nesse mun-
do! (ela bebe e olha para a iluminadora) Cadê a luz que tava aqui? Cadê a minha
luz? As minhas estrelinhas... Eu sou linda, tá ouvindo! (devaneando. Para o público)
Aqui tudo brilha, desde o céu azul até o mármore branco” Eu sou a seta que apon-
ta pro futuro. O esplendor, o eterno, a euforia. Alegria, minha gente, que se ergam
as bandeiras, que hoje é dia de festa! Eu sou linda. Eu sou linda. Eu sou...
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 73
Ela fala e gira, gira, gira cada vez mais rápido até cair.
Brasília está caída no chão.
Puta: É piranha, tu tá pior que eu. Fim de linha!
Voz da Justiça: Que cheiro é esse de vagabunda?
Puta: Ihh, sujou.
Puta sai. Brasília ca caída.
Mira recolhe Brasília.
Mira: Olha isso! Vê se isso é exemplo que se dê! Vamo, mulher, levanta. Cadê o
gigante em pé?
Brasília: Tô aqui Mira.
Mira: Anda, vamo.
Brasília: Eu sou linda.
Mira: É, é.
Brasília: Eu fui um sucesso?
As duas saem. Justiça entra cheirando entre o público.
Justiça: Que cheiro é esse de vagabunda? Que cheiro é esse de vagabunda?
(para a FM, apontando para alguém do público): Prende ela.
FM faz menção de prender a pessoa.
Justiça (tira venda dos olhos): Ela não, seu imbecil, a perigosa (apontando para a
máquina de escrever).
FM apreende a máquina de escrever. Começa a teclar na máquina.
Justiça: Ei, você, tá fazendo o quê com esse dedo?
FM: Tô escrevendo.
Justiça: Escrevendo o quê? (para o público) Ele não sabe nem ler!
FM: Tô escrevendo pornograa...
Justiça: Escrevendo pornograa na minha frente! Não pode, não! Não libero!
74 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
FM: Mas por quê?
Justiça: Porque eu não quero.
FM: Mas por quê?
Justiça: Porque eu não quero. Não pode car parado aí, não. Vai circulando!
(Latido) Parado na minha frente eu não libero.
FM: Sabe de uma coisa, eu acho que a senhora tá velha demais pra mandar em
mim.
Justiça: Eu tô velha, mas eu já tive meu tempo. Eu fui de fechar. E no meu tempo
não tinha essas ondas de travesti não. Era um nojo. Qualquer coisinha era um es-
cândalo. Mas no carnaval... no carnaval só dava eu.
FM estoura confetes e lantejoulas em cima da Justiça.
Justiça (cantando Abre Alas): Oh abre alas que eu quero passar/ Oh abre alas
que eu quero passar/ Eu sou da lira não posso negar/ Rosa de ouro é quem vai
ganhar.
Começa um pagode mais agitado, a FM tira as calças e começa a requebrar.
Justiça interrompe a música.
Justiça: (comenta para público) Que horror! Que horror! (para FM) Que zona é
essa aí? Não pode, não. Não libero.
FM: Mas por quê?
Justiça: Porque eu não quero.
FM: Mas por quê?
Justiça: Porque eu não quero. Que horas são?
FM (para o público): Que horas são?
Justiça: Ai, tá na hora. Mira, pode trazer.
Mira entra e entrega uma banana à Justiça.
Mira: Toma aí, o, vaca velha! (para o público) Era assim que eu chamava ela...
Justiça (para Mira): Tu desfaz essa cara de bunda, garota.
Mira sai.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 75
FM (curiosamente): O que você tá fazendo?
Justiça (comendo obscenamente a banana): É que de três em três horas eu
sempre como uma coisinha. (para a FM) Me beija. Me beija, vai. Acaba comigo.
Os dois se beijam e saem transando.
O Poeta aparece só, com uma sacola cheia de livros.
Poeta (para o público): “Olha o livro ruim e barato! Quem vai querer? Ele não
morde não, só xinga, e como xinga. (Poeta improvisa venda de livros com a platéia)
Muita gente andou comigo. Uns morreram, outros foram se acomodando. E
eu sempre vendendo badulaque. Olha o livro ruim e barato! Olha aí. (entrega um
livro para alguém da platéia, conversa com a pessoa). Sempre sem ter sossego. É o
destino, é o dinheiro, é o sucesso, é a porra da realidade, é a censura, é o aluguel,
é a falta de espaço, de ar, de palavras, de energia, de amor. (para a mesma pessoa)
Como é o teu nome? Pode car, fulano. Tô vendendo é pra te ajudar. “Sabe de
uma coisa, fulano, meu pai dizia pra não se apegar a nada pra morte não doer.
Não é fácil não, seu Armando. Pra resistir tem que agarrado em alguma coisa.
Ou a gente resiste porque agarrado às coisas? Ou a gente resiste porque não
conhece outro jeito?” Depois de tanto furacão, me abate uma sensação de estar
parado no mesmo lugar...
Aparece um boneco cantando, manipulado pelo Cigano, que não está visível.
Palhacinho (cantando):
“Uma duas angolinha
Finca o pé na pampolinha
E o rapaz que jogo faz?
Faz o jogo do capão...
Poeta: Ei, essa canção...
Palhacinho: É sua, ora. Tu vivia cantando. Falava que era a canção da tua vida.
Poeta (sussurando e imerso em lembranças): uma duas angolinhas, nca o pé na
pampulinha...
Palhacinho: Era engraçado demais ver um cara marrudo como tu cantando
uma musiquinha tão idiota dessas!
76 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Poeta: Foi minha mãe que me ensinou, porra!
Palhacinho: Então canta! Canta até não poder mais...
Poeta: Queria cantar sem medo de emudecer...
Palhacinho: Tua voz é forte.
Poeta: Mas eu sinto a alma aleijada.
Palhacinho: Ora, tu num é cabra de despertar pena nos outros.
Poeta: Do jeito que a coisa anda, nem mandinga braba pra dá jeito.
Cigano aparece segurando o Palhacinho nas mãos.
Cigano: Ou você vai querer ser mais um desses que se fodem por não continuar
no caminho? Você num andou nem metade dele. Anda, deixa de ser frouxo! Ou
você acha que tem pra onde ir? Você não tem pra onde voltar, Poeta. Tu não co-
nhece outra vida. (Cigano joga o Palhacinho para o Poeta) Toma, esse é o teu des-
tino! (as personagens do Poeta clamam por ele ao longe) Tá ouvindo? São as suas
crias. Elas vão vir toda vez que você pensar em desistir...
As Personagens – todas da peça, com exceção da Mira - aparecem de diversos
lugares e vão em direção ao Poeta, entoando o “Clamo Maldito. O Cigano
também vai para junto do Poeta, gargalha e participa do coro.
Poeta: Mas, o que que elas querem, Cigano? O que que eu já não dei?
Todos:
Clamo maldito,
Poeta de compaixão
Ginga, bravura, esperança, nossa chama
A ti gritamos na aldeia do desconsolo,
A ti suamos, gememos e lutamos neste mar de lamento
Esse sambista nosso,
Cantando o porto da fome que vós viveis
Debaixo da lona, mostrai-nos a luz
Bendita a navalha na nossa carne,
Ó valente, ó palhaço, ó homem do meu caminho.
Dai sempre a minha voz
Para que a minha balada nunca pare.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 77
As personagens e o Cigano o empurram de um lado para o outro, tiram suas vestes
e jogam as folhas de papel do chão para o alto, ao som das batidas do tambor. Cria-
se uma grande algazarra. O Poeta dança como num ritual de candomblé. Tudo pára
repentinamente.
Poeta: Eu vou cortar, eu vou ferir, eu vou rasgar, eu vou esbravejar.
Demais atores em volta do Poeta nu entoam um canto para Ogum.
Todos (cantando Ponto de Ogum): Ogum, Ogunhê, diga lá quem é você. (2x)
Ogum mora na aldeia. É terra de caboclos camará.
É terra que ninguém passeia.
O ambiente do bar se transforma em sala de milagres. As cadeira e mesas são
retiradas para um canto. Ao som do toque de Ogum, atore e atrizes convidam o
público para sair de seus lugares e ocupar o centro. Atores caminham ao redor
do público num movimento circular, rezando. Poeta realiza ritual de preparação
e também reza. Enquanto narra os mistérios, Poeta realiza uma dança como se
escrevesse no espaço, com seu corpo. Os movimentos se tornam mais intensos
até que ele cai morto.
Poeta: 1º mistério - A condenação: Contemplamos os vinte e cinco homens que
ocuparam espaços e comeram o pão que não lhes pertenciam;
Todos (repetem a cada mistério, caminhando ao redor do público): “Eram vinte e
cinco homens empilhados espremidos esmagados de corpo e alma entre frias
grades de ferro e úmidas paredes. Vinte e cinco homens num cubículo onde mal
cabiam oito. Seus pêlos caíam, seus olhos purgavam, urinar era um suplício a
mais. Amém.
Poeta: mistério - A degradação: contemplamos como os “vinte e cinco ho-
mens disputavam os imundos colchões, a comida nojenta, a água suja e o direito
de cagar na latrina”;
Poeta: 3º mistério - A tortura: contemplamos a “frieza do carrasco e dos cidadãos
contribuintes”;
Poeta: mistério - A esperança: contemplamos como os “vinte e cinco anjos
queriam escapar da escapa morte”;
78 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Poeta: e último mistério - A profecia: esperamos que os anjos caídos se er-
gam das cinzas.
Poeta cai morto. Tudo cessa.
Ator 1: 1 minuto de silêncio pelo índio Galdino, morto na parada de ônibus.
Após um breve intervalo, segundo ator fala.
Ator 2: 1 minuto de silêncio pelos meninos da Chacina da Candelária.
Breve intervalo.
Ator 3: 1 minuto de silêncio pela nossa falta de tempo.
Uma atriz canta, enquanto os atores se despem de suas personagens e com-
partilham depoimentos pessoais com o público. Depoimentos que expressam o
sentido, para cada um deles, de estar ali, fazendo aquele trabalho. Mira passa um
pano úmido no Poeta.
Atriz (cantando Pingo de Lua): “Você é pingo de lua/ Minha bolinha de sabão/
pedrinha branca do ribeirão/ de minha vida quando você sorri pra mim/ Pingo de
gente é esperança/ Você criança é meu amor.
Após os depoimentos, ao som de batidas do tambor, os atores e atrizes se viram
para o corpo do Poeta, caminham em direção a ele e lhe entregam as próprias
vestes. Carregam o corpo do Poeta formando um cortejo. Todos cantam “Silêncio
no Bixiga, de Geraldo Filme, enquanto saem.
Todos (cantandon Silêncio no Bexiga):
“Silêncio
O sambista está dormindo
Ele foi, mas foi sorrindo,
A notícia chegou quando anoiteceu.
Escola
Eu peço o silêncio de um minuto
O Bexiga está de luto
O apito de pato n’água emudeceu
Partiu
Não tem placa de bronze, não ca na história
Sambista de rua morre sem glória
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 79
Depois de tanta alegria que ele nos deu
Assim
O fato repete de novo
Sambista de rua, artista do povo
E é mais um que foi sem dizer adeus
Mira (recolhendo as roupas das personagens e subindo a escada do altar):
Barulhos e cheiros de memória velha. Uma balada dentro do peito cansado. E
esse morto vivo que não para de fazer zuada dentro de mim! A minha boca é
seca, mas ainda cospe. E haja cuspe pra tanta memória e tanta indignação. Mas
chega de falar, que amanhã tem que trabalhar, e não sou só eu não. Vamo se
indo. Boa noite, seu Troinha. Ô, seu Joaquim, se cuida, hein. Tô de olho. Brigada,
gente. Ah, uma coisinha, ia esquecendo. 1 minuto de barulho por uma vida.
Mira sopra um apito.
Ao som dos batuques, os atores voltam cantando com alegria “Silêncio no Bixiga” e
fazem um grande samba junto ao público.
O texto integra citações das seguintes obras de Plínio Marcos: Navalha na
Carne, Prisioneiro de uma canção, Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos e
Abajur Lilás, Quero e Homens de Papel.
Referências musicais:
Hino de Brasília (Geir Campos/ Neusa Pinho França Almeida); Silêncio no Bexiga
(Geraldo Filme); Ponto de Ogum (Canção folclórica – domínio público); Tiririca
(Canção folclórica – domínio público); Pingo de Lua (Canção folclórica – domínio
público); Abre alas (Chiquinha Gonzaga - domínio público)
Ficha Técnica
Espetáculo
Diário do Maldito – inspirado na vida e na obra de Plínio Marcos
Criação
Teatro do Concreto
80 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Direção
Francis Wilker
Assistente de Direção
Ivone Oliveira
Consultoria Artística
Tiche Vianna
Dramaturgia
Juliana Sá
Elenco Original
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 81
Aline Seabra
Alonso Bento
Gleide Firmino
Jhony Gomantos
Maria Carolina Machado
Micheli Santini
Nei Cirqueira
Robson Castro
Silvia Paes
Personagens
Justiça – Aline Seabra
Cigano – Alonso Bento
Mãe – Gleide Firmino
Força Militar (Floquinho) – Jhony Gomantos
Brasília – Maria Carolina Machado
Mira – Micheli Santini
Poeta – Nei Cirqueira
Gão (lho) – Robson Castro (2006 a 2009), Josuel Júnior (2009)
Puta - Silvia Paes (2006), Marta Aguiar (2007), Celma Ioci (2008 e 2009)
Músicos
Daniel Pitanga, Igor Guilherme, Janari Coelho, Regina Neri, Rodrigo Fusquinha
(2006) e Cristian Jones (2006)
Coordenação de Montagem e Operação de Luz
Zizi Antunes
Ambientação Cenográca
o grupo, com a colaboração de Isabella Veloso e Leonardo Cinelli
Desenho de Luz
Marcelo Augusto
Fotos
Thiago Sabino, Tati Reis e Alexandra Martins
Figurinos
82 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
o grupo, com consultoria de Cyntia Carla
Cenotécnica
Lisbeth Rios
Currículo
2006
Estréia de Diário do Maldito, com temporada de um mês no Teatro Ocina do
Perdiz.
2007
Participação no Festival Internacional de Teatro de Brasília Cena Contemporânea,
em que provocou sessão extra, e no Prêmio SESC do Teatro Candango.
2008
Novas temporadas no Teatro Ocina do Perdiz, nos meses de janeiro, março e
meados de abril. Participação no quadro “Me Leva Brasil”, do programa Fantástico,
da Rede Globo, exibido em março, que teve como tema o Teatro Ocina do
Perdiz.
É uma das atrações do Festival Nacional de Teatro de Macapá.
Integra o Circuito SESC do Teatro Candango.
Participa da mostra Palco Giratório Brasília, também promovida pelo SESC.
A Secretaria de Cultura do DF aprova o projeto Diário em Órbita, que possibilita
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 83
a circulação do espetáculo pelas cidades satélites de Ceilândia, Planaltina e São
Sebastião.
Integra a programação do Cena Contemporânea Brasília.
Participa do projeto Galpão Convida, do Galpão Cine Horto de BH/MG.
2009
Participa da IV Mostra Latino-Americana de Teatro de Grupo, realizada no Centro
Cultural São Paulo.
Integra a programação A Arte dos Malditos”, no SESC Santos.
Prêmios
Festival Nacional de Teatro de Macapá - 2008
• melhor espetáculo
• melhor cenograa
Indicado nas categorias de melhor direção, melhor ator e melhor atriz.
Prêmio SESC do Teatro Candango - 2007
• melhor atriz
• melhor cenograa
Indicado nas categorias de melhor ator e melhor gurino.
84 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Repertório
Borboletas têm vida curta
Espetáculo que leva para a cena, por meio de imagens, momentos delicados de
nossa infância: as primeiras dores, as perdas e os amores. Vivências e momentos
íntimos que caram guardados no fundo da nossa “mala de memórias”. O
espetáculo conta a história de Heitor, um homem que, ao resgatar imagens da sua
infância, tenta preencher o vazio deixado por alguém especial. Passado e presente
se cruzam, o passado re-signicando o presente. O o condutor da narrativa é a
própria memória, provocando uma relação de identidade e pertencimento com
o público ao trazer à tona lembranças de vivências universais que podem ser de
qualquer pessoa.
Inútil Canto e Inútil Pranto pelos Anjos Caídos - Leitura
Dramatizada
A leitura narra os últimos momentos da vida de 25 homens enclausurados numa
cela de presídio e que morrem queimados durante uma rebelião. O texto, publicado
em 1977 e inspirado em fato verídico ocorrido em Osasco/SP, guarda profunda
relação com as questões carcerárias no Brasil, mantendo sua atualidade na crítica
ácida ao sistema prisional 30 anos depois de seu lançamento. O autor chama a
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 85
atenção para questões importantes como distribuição de renda, violência, justiça,
dignidade humana, fome e saúde. Neste conto, mais uma vez, Plínio Marcos
vez e voz aos excluídos, criando na sua narrativa detalhada do episódio uma
verdadeira poética da crueldade. A encenação evidencia cada momento por meio
de recursos sonoros e ações físicas.
Ruas Abertas
Intervenção cênica no espaço urbano, a partir do tema Amor e Abandono, e
ponto de partida do Teatro do Concreto para a criação de seu novo espetáculo.
Para um grupo que trabalha na perspectiva do processo colaborativo e se pauta
pelo diálogo visceral com Brasília, Ruas Abertas signica uma aproximação maior
com a dimensão autoral da platéia.
86 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Críticas
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 87
88 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Uno de los trabajos más importantes presenciado en este Festival fue el ofrecido
por el Grupo de Teatro do Concreto en el denominado Teatro Ocina do Perdiz
que es un taller mecánico acondicionado con unas gradas donde desde hace
décadas, después de la jornada laboral, se hacen representaciones teatrales y que
se intentó cerrar hace unos años por la autoridad y los artistas se movilizaron para
impedirlo, como así sucedió, por suerte.
En este espacio tan peculiar disfrutamos de Diario do maldito, una investigación
sobre la vida y la obra del dramaturgo Plinio Marcos, logrando una obra teatral
absolutamente conmovedora, en donde unas interpretaciones contundentes
logran una comunión emocional con los espectadores que llegaron a las lágrimas
en una escena nal absolutamente genial. Es una gran experiencia teatral,
una comunicación con los espectadores por los cinco sentidos, una inusitada
capacidad para expresarse artísticamente manejando lenguajes fronterizos.
Carlos Gil Zamora, crítico da revista Artez
Revista Artez – n.126 – outubro de 2007 – Bilbao, Espanha.
Companhia B de
Teatro
Eu queria compor uma música para homenzinhos bar-
rigudos que atravessam a rua num passo quase bovino,
como se não quisessem chegar a lugar nenhum. Uma músi-
ca para quem forra as gavetas com páginas arrancadas de
calendários de anos que ainda estão por vir. Uma música
para quem guarda em caixas de sapato, fotograas de
desconhecidos em lugares onde nunca esteve. Uma música
pequena que possa caber numa caixinha de fósforos. Eu
queria compor uma música para quem passa as noites
em claro a ouvir pingar a torneira da cozinha que promete
reparar sem falta no dia seguinte. Uma música pra quem
falece despercebido, na luz fria e mansa de outubro.
90 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 91
Companhia B de Teatro
Tatiana Bittar
Caminhos da Criação
Páginas Amarelas
Concepção e criação
As escolhas desse processo começaram a ser feitas em novembro de 2005,
quando nós seis, Camila, Ludmilla, Thiago, Márcio, Ana Felicia e Tatiana, todos
alunos de artes cênicas, nos juntamos com o intuito de realizar o Projeto de
Diplomação. Desde então, começamos a nos encontrar semanalmente para
podermos, primeiramente, decidir o nosso objeto de pesquisa.
O processo se desenvolveu de forma a buscar o que para nós era desconhecido
e apostar em uma nova experiência de trabalho no teatro. De início, em nossas
discussões, levantamos questionamentos em relação ao lugar do texto no teatro
contemporâneo e também sobre o lugar que queríamos que ele ocupasse em
nossa montagem.
Estava claro que ele ocuparia, em Página Amarelas, um lugar de extrema
importância. Mesmo tendo optado por desenvolver um trabalho de construção
de cena a partir da investigação corpórea do ator, podemos observar que até
mesmo esta se deu a partir do signicado que queríamos ressaltar no texto.
O texto foi nosso guia, mas tínhamos sobre ele uma total liberdade de manobras,
o que nos levou a tentar captar seu espírito, mais do que suas palavras. Partindo do
princípio que Meyerhold chama de estilização da situação
1
,
a atmosfera do texto
foi materializada não só através do corpo do ator, mas também através do cenário,
da sonoplastia, do gurino e da iluminação, buscando construir um signicado
através da estética do espetáculo. De acordo com Meyerhold
, tudo o que se dirige
aos olhos do espectador deve auxiliá-lo a escutar o discurso falado e a penetrar,
1. CAVALIERE, Arlete. “O inspetor geral de Gógol/Meyerhold”. São Paulo: Perspectiva, 1996.
p103.
92 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
também, no diálogo interior oculto
2
.
A partir desta discussão, optamos por buscar em cena um corpo que não seria
somente a conseqüência de um texto verbal, mas um corpo capaz de ser o próprio
texto. Assim, o texto não se limitaria à palavra, mas se expandiria por todos os
elementos constitutivos da cena.
Para tanto, contamos, inicialmente, com a ajuda da professora Giselle Rodrigues,
diretora do Núcleo de Dança Contemporânea Basirah e, na época, professora
da UnB, que durante os quatro meses de pré-projeto
3
nos proporcionou um
treinamento de ator baseado nas técnicas do “Movimento Autêntico
4
e do “Body-
Mind Centering”
5
, e, posteriormente, durante a montagem propriamente dita, da
professora Kenia Dias, atriz e bailarina, que também foi nossa orientadora prática
e nossa diretora.
Como a idéia não era abolir o texto, saímos em busca de um que necessariamente
dependesse de uma imagem para criar um signicado: as histórias em quadrinhos
(ou HQs). Como esta era ainda uma linguagem pouco conhecida por todos, foi
necessário um estudo aprofundado sobre o tema, que se deu também durante o
pré-projeto e nos levou ao encontro da série de HQs A Pior Banda do Mundo, que,
por motivos que irei abordar posteriormente, se tornou nosso objeto de estudo.
Após a realização do pré-projeto, em agosto de 2006, demos início ao processo
de montagem, que foi, para todo o grupo, um grande desao, já que estávamos
trabalhando com uma estrutura de texto complexa, não linear e que deveria, de
acordo com nossas propostas, estar intrinsecamente ligada à cena.
A pesquisa teórica
Após termos denido que iríamos pesquisar histórias em quadrinhos, passamos
a adquirir e ler os mais variados tipos de revistas do gênero. Lemos desde gibis da
2. Idem. p.107
3. O pré-projeto foi realizado durante quatro meses na UnB, como preparação para o Pro-
jeto de Diplomação.
4. Técnica desenvolvida pela norte americana Mary Starks Whitehouse, primeiramente
chamada de “Movimento em profundidade, que consistiu na investigação das conexões
entre a psicologia junguiana, por meio da Imaginação ativa e os simbolismos e conteúdos
revelados no movimento corporal. ( apud: BRITO, Giselle Rodrigues)
5. Desenvolvido pela norte-americana Bonnie Bainbridge Cohen, está fundamentado na
visão do corpo integral, corpo e mente conectados como expressões mútuas e interativas
do ser humano. ( apud: BRITO, Giselle Rodrigues)
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 93
Turma da Mônica, de Maurício de Souza, com os quais tínhamos contato desde a
infância, O pequeno Ninja e Smilinguido, passando por famosos super-heróis, como
Demolidor, o homem sem medo, Batman ou Homem-Aranha até os consagrados
Sandman, de Neil Gaiman, Lobo Solitário, de Kazuo Koike e Goseki Kojima, e Spirit,
de Will Eisner.
Esta leitura suscitou diversos questionamentos sobre o assunto, principalmente
sobre os elementos que esta linguagem utiliza para se comunicar “tais como o
design, o desenho, o cartum e a criação escrita”
6
. Estava claro que simplesmente
ler as HQs não responderia diversas de nossas questões. Começamos então a
procurar teorias e estudos sobre o assunto.
Primeiramente, sobre a conguração geral das revistas em quadrinhos, é possível
armar que esta apresenta uma sobreposição de palavras e imagens, que leva
o leitor a exercer duas habilidades: a de interpretar simultaneamente palavras e
imagens.
A história em quadrinhos lida com dois importantes
dispositivos de comunicação, palavras e imagens. Decerto
trata-se de uma separação arbitrária. Mas parece válida,
que no moderno mundo da comunicação esses dispositivos
são tratados separadamente. Na verdade, eles derivam da
mesma origem, e no emprego habilidoso de palavras e
imagens encontra-se o potencial expressivo do veículo.
7
Estudamos minuciosamente os elementos que constituem esta linguagem,
procurando um entendimento total do nosso objeto de estudo. Estudamos sobre
o tempo nos quadrinhos, as linhas de movimento, os diversos tipos de requadro,
os balões de fala, as onomatopéias e sobre o realismo e a caricatura nas HQs.
Durante o processo de leitura de quadrinhos, que continuou acontecendo
paralelamente à pesquisa teórica sobre eles, nos deparamos com a série de revistas
A Pior Banda do Mundo, escrita e desenhada pelo português José Carlos Fernandes,
que, na época, havia publicado no Brasil quatro de seus seis volumes. As revistas
são constituídas de pequenas histórias de duas páginas, que apresentam diversos
personagens em situações aparentemente absurdas.
Embora o desenho seja um elemento fundamental na construção desta série, é a
6. EISNER, Will. “Quadrinhos e arte seqüencial”. Zahar Editora. São Paulo, 1995. p.05
7. Idem.
94 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
narrativa de José Carlos Fernandes que a torna tão grandiosa. Uma banda de jazz
que ensaia trinta anos, mas que nunca se apresentou ao público, é a porta de
entrada para um país sem nome, que é um espelho de nosso mundo. Os habitantes
deste país são senhores e senhoras (não uma criança ou adolescente na
cidade) cheios de sonhos e desejos, mas incapazes de tomar qualquer atitude
que os leve a concretizá-los. Temas como o consumismo, a utopia, a banalidade
do cotidiano, o academicismo e o sensacionalismo são recorrentes em todos os
volumes da série, que pode ser vista como uma severa crítica à realidade urbana
dos tempos de hoje.
As histórias são coloridas com diversos tons amarelados, que ajudam a criar uma
atmosfera decadente e envelhecida, e ambientadas nos anos 50, o que pode ser
percebido por meio das roupas e do cenário construído pelo autor. Outro aspecto
importante é o discurso pomposo, afetado e erudito, muitas vezes composto por
palavras desconhecidas, o que nos levava a ler as HQs acompanhados de um
dicionário.
Os personagens destas histórias não
se assemelham, nem de longe, aos
famosos heróis das HQs. Poderíamos
dizer que são praticamente os anti-
heróis, personagens que o leitor julga
menos importantes, livre de virtudes.
Não existe entre eles nenhum tipo
de reexão ou julgamento sobre seu
comportamento, cabendo estes ao
leitor/observador ou ao narrador, que
se coloca como o olho de fora deste
país, assumindo o papel de quem julga
e caracteriza estes personagens.
A série logo atraiu a atenção de
todo o grupo, principalmente pela
atualidade do tema e por seu senso de
humor ríspido, irônico e sutil. Em duas
semanas todos haviam lido os quatro volumes (O Quiosque da Utopia, O Museu
Nacional do Acessório e do Irrelevante, Ruínas de Babel e A Grande Enciclopédia do
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 95
Conhecimento Obsoleto) e nos vimos totalmente envolvidos pelo tema. De fato,
nos sentimos entusiasmados ao primeiro contato com o objeto de estudo e os
primeiros sinais do processo de criação começaram a aparecer em discussões
acerca do texto e das imagens.
Primeiramente, constatamos a impossibilidade de levar todas as 108 histórias
ao processo criativo de cena. As histórias da revista abordam diversos temas e
decidimos então nomeá-los e separá-las por assunto. Nomeamos dez assuntos e
dividimos as histórias entre estes grupos.
Depois de concluída esta etapa, passamos a descartar os assuntos que não nos
interessavam. Restaram-nos, então, quatro grupos: cultura de massa, tecnologia,
sensacionalismo e conhecimento. O passo seguinte foi analisar, dentro dos grupos,
quais as histórias que queríamos levar ao processo de criação. Separamos as que
mantinham alguma relação entre si, personagens ou situações semelhantes.
Assim, nalizamos esta etapa do processo com vinte e nove histórias.
Como as histórias em quadrinhos normalmente contêm, ao mesmo tempo,
texto e imagem, nos propusemos a separá-los com a intenção de trabalharmos
o texto e criar, em cena, as nossas imagens. Descolamos o texto da imagem
transformando-o em uma espécie de roteiro.
Depois de o texto pronto, lido e relido, pudemos perceber que estava muito
extenso e sem unidade e que precisávamos de, mais uma vez, descartar algumas
histórias. Neste ponto, o grupo se apresentava descrente da validade deste
trabalho, pois tínhamos a sensação de que estávamos andando em círculos e
podíamos não chegar a lugar algum. Como esta etapa de pesquisa teórica não
estava sendo acompanhada por nenhum orientador ou professor, não tínhamos
o olhar de fora tão importante em um processo de criação.
Decidimos, nalmente, procurar a professora Kenia Dias, que ao observar o
desenvolvimento de nossa pesquisa, nos tranqüilizou mostrando que havíamos
criado, intuitivamente, um método de trabalho em grupo que se constituiu a
partir do que o objeto de estudo nos oferecia e que havia andado muito bem
até o momento. Após a visita de nossa orientadora, nos sentimos conantes para
podermos, mais uma vez, modicar o “roteiro. Assim, descartamos outras quinze
histórias e camos com um primeiro roteiro base, composto de dez histórias, para
que começássemos a trabalhar.
96 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Este roteiro de textos foi sendo modicado durante o processo de montagem.
A ele foram sendo adicionados ações e outros pequenos textos e até cenas que
foram construídas a partir de improvisos. Até hoje, posso dizer, ele é aberto e
mutável.
O Processo de montagem
“No teatro as palavras são apenas desenhos saídos dos
esboços dos movimentos.
8
Ao iniciarmos o processo de montagem, tínhamos um texto em formato
de um roteiro base que apresentava mais de trinta personagens. Resolvemos não
escolher ou distribuir os personagens, como seria feito em um processo tradicional,
mas designar como tarefa de todos os atores memorizar todo o roteiro. Assim,
optamos também por deixar que os personagens fossem encontrados a partir de
improvisos realizados pelo grupo.
Ainda no pré-projeto, havíamos explicitado à nossa orientadora a atmosfera
que gostaríamos de trabalhar, tendo como base a situação das dez histórias
escolhidas. Levantamos pontos importantes como a inação, a incomunicabilidade,
as constantes dúvidas dos personagens e sobre o clima aparentemente absurdo
sugerido pelas situações encontradas no texto. Assim, a orientadora nos propôs
diversos exercícios, aquecimentos e improvisações visando à apropriação dos
vários elementos desta atmosfera.
É importante esclarecer que, neste processo, todas as etapas (aquecimento,
improviso e levantamento de cenas) ocorreram simultaneamente, ou seja, ao
mesmo tempo em que nos aquecíamos, desenvolvíamos os improvisos que eram
gradativamente adaptados ao contexto de cena. Portanto, não podemos separar
o processo laboratorial do processo de montagem.
Primeiros exercícios propostos
Estava claro, a esta altura, que queríamos conduzir o trabalho de construção de
cena de forma que esta fosse norteada pela investigação corpórea do ator. Para
8. Vsevolod Meyerhold em CONRADO, Aldomar “O teatro de Meyerhold”, Rio de
Janeiro,Civilização Brasileira, 1969. p.86
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 97
tanto, a diretora Kenia Dias propôs alguns exercícios com o intuito de estimular a
investigação corporal do ator, tendo como base fundamental as oposições. Estas
se dividiam em quatro grupos:
1) Premissas básicas do movimento
9
(pontos-chave da consciência corporal) –
exercícios de resistência e entrega à gravidade, exercícios de respiração e exercícios
de investigação dos pontos de apoio e compensação.
2) Movimentos simétricos e assimétricos, movimentos central e periférico,
movimentos de partes isoladas do corpo e do corpo inteiro e movimentos físico e
espacial
10
.
3) Oposições entre as partes do corpo
11
.
4) Dinâmicas do movimento – tempos lento e rápido/pesos leve e rme
12
.
Estes exercícios foram de extrema importância no processo, pois, somados
às pesquisas teórica e corporal anteriormente citadas, moldaram no corpo dos
atores a incapacidade de decisão dos personagens e as tensões do cotidiano,
signicados especícos que estão intrinsecamente ligados ao texto e às questões
mais profundas que esta montagem ressalta na obra.
O aquecimento individual
A construção da base corporal do ator se deu a partir do aquecimento individual,
que era constituído, basicamente, pelos exercícios de oposição. A oposição -
vista como o quero-mas-não-quero, o vou-mas-não-vou - é também a base da
construção de todos os personagens do texto.
Sempre após o término da seqüência do aquecimento, desenvolvíamos
partituras corporais, organizando alguns movimentos encontrados durante os
exercícios realizados. Ao mesmo tempo em que trabalhávamos na organização
9. Exercícios retirados do método desenvolvido por Lenora Lobo em seu livro Teatro do
Movimento: um método para o intérprete criador”/ Lenora Lobo e Cássia Navas. Brasília: LGE
Editora, 2003, pág.59.
10. Exercícios propostos por Rudolf Laban. Fazem parte de uma das pontas da estrela laba-
niana denominada “Corpo. Para um maior aprofundamento vide: LABAN, Rudolf. “Domínio
do Movimento. São Paulo: Summus, 1978.
11. Exercício desenvolvido por Kenia Dias. Fazem parte de uma das pontas da estrela laba-
niana denominada “Dinâmica”.
12. Idem.
98 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
destes movimentos, desenvolvendo a partitura corporal, a orientadora introduzia
alguns estímulos e indicações, realizando improvisos com jornais, barulhos de
telefone, frases e situações do texto criando um vínculo direto com o contexto
criativo da cena.
As improvisações
“Usamos o ser inteiro do ator quando improvisamos para
criar algo; depois vamos xando estas formas e o tempo se
encarrega de preenchê-las”
13
Para realizarmos as improvisações, tivemos como primeira base as partituras
corporais desenvolvidas nos aquecimentos. Elas eram diretamente associadas ao
roteiro, abrindo mão das imagens da Pior Banda do Mundo, para podermos, assim,
criar as nossas imagens para o texto.
Desta forma, passamos a integrar as frases de movimento aos diversos elementos
que a própria dramaturgia do texto nos oferecia. Trabalhamos com jornais, toques
de telefone, músicas, silêncios, textos e situações das histórias em quadrinhos e
através das relações entre os próprios atores.
Por meio deste trabalho, pudemos perceber que era possível levantar todo o
espetáculo tendo como base estas improvisações. Havíamos criado um material
de qualidade, mas ainda não sabíamos como transpô-lo para a cena. Neste ponto
residiu nossa maior diculdade. Construímos diversos esboços, mas ainda não
sabíamos quais cenas seriam estas de fato.
No decorrer do processo de construção do espetáculo passamos a adaptar
estes esboços, aprofundando e realizando diversas modicações nas partituras
corporais, nas músicas e até mesmo na estrutura das histórias em quadrinhos.
Descreverei aqui uma destas cenas, denindo o caminho percorrido desde o
improviso até a construção da cena.
13. Ricardo Fowler (Odin Theatre) em palestra e mostra de trabalho no teatro Sérgio Cardo-
so - SP em junho de 1987 (apud) AZEVEDO, Sônia Machado de. “O papel do corpo no corpo
do ator”. São Paulo: Perspectiva, 2004. p.48
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 99
Descrição da Cena 4 - Mercedes Zneb em “O Inextricável
Labirinto do Destino”
Durante o aquecimento individual aprofundamos o trabalho com o exercício
de movimentos com partes isoladas do corpo, organizando os movimentos
e montando, a partir destes, uma partitura corporal. Todos os atores do grupo
montaram sua partitura, mas o improviso foi realizado apenas com as quatro
atrizes, já pensando no contexto da cena.
Os primeiros improvisos se desenvolveram de forma a entender as partituras
e o que cada movimento suscitava em termos de sensações em cada atriz.
Realizamos as partituras nos tempos rápido e lento, com movimentos leves
e rmes; inserimos e retiramos o texto do narrador e as falas do personagem;
modicamos as partituras e inserimos alguns objetos de cena.
A partir destes improvisos desenvolvemos o esboço desta cena, em que as quatro
atrizes representavam o mesmo personagem. Quando este foi levado à cena de
fato, percebemos que não estávamos atingindo o signicado que queríamos e
precisávamos realizar diversas modicações. Construir e desconstruir caminhavam
juntos no processo de montagem.
Realizamos diversos improvisos visando à modicação das partituras corporais,
mas mantendo alguns elementos que nos interessavam. Distribuímos o texto da
fala da personagem entre as atrizes e eliminamos o texto do narrador. Passamos,
também, a trabalhar com pausas seguidas de movimentos e nos colocamos em
uma espécie de escada, cada uma em um degrau, fazendo referência às imagens
da história em quadrinhos.
Posteriormente esta cena passou a ocorrer simultaneamente a outra cena em
que uma das atrizes estava presente, então, no lugar de quatro Mercedes Zneb,
tínhamos agora três. Esta simultaneidade de cenas nos proporcionou a inclusão
do texto do narrador, que ajuda no entendimento da cena.
O resultado que chegará ao espectador é uma cena em que há três atrizes
em uma escada, cada uma em um degrau. Todas elas representam o mesmo
personagem, cada uma à sua maneira. As falas da personagem são divididas entre
as três atrizes, sendo que a cada fala cada atriz monta uma foto, um movimento
estático. O narrador está presente ao fundo da cena, sentado em uma mesa de
jogos.
100 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
A construção de personagem
Como foi dito anteriormente, o roteiro que criamos apresentava exatamente
trinta e dois personagens, que foram se modicando – alguns se fundiram em um
só e outros se multiplicaram em muitos.
Optamos por trabalhar com diversos personagens, pois, para o grupo, era
importante a manutenção do universo criado por José Carlos Fernandes. Este,
para construir sua crítica à sociedade urbana ocidental, nos mostra diversos
fragmentos do cotidiano de milhares de personagens que, juntos, ajudam a
moldar o signicado do todo. Reduzir este universo a poucos personagens poderia
prejudicar o entendimento do que estávamos nos propondo a fazer.
Se analisarmos os personagens presentes no roteiro que criamos, poderemos
observar que todos estes, com exceção do narrador, se encontram na mesma
condição, cheios de dúvidas, utopias e, tomados pela inação, são incapazes de
concretizar seus sonhos. Aqui não existem personagens que se opõem ou que
estão em contraponto, todos estes caminham ao mesmo destino: a estagnação.
o narrador, faz o papel do que está distante, observa e critica. Ele é o único
contraponto nesta peça.
Decidimos, então, que todos os atores deveriam decorar todo o roteiro para que
nos improvisos pudéssemos passar por todos os personagens e posteriormente
designar os papéis de cada ator. E, como era de se esperar, durante os improvisos
cada ator foi, naturalmente, encontrando seus personagens.
Ao fazermos a opção de cada ator desenvolver diversos personagens durante
a peça, optamos por não realizar uma construção psicológica destes, então
passamos a nos apoiar em nossa corporalidade, nas partituras encontradas
durante os aquecimentos e aprimoradas durante as improvisações. Percebemos
que, através de um estímulo exterior, podíamos reproduzir, com veracidade,
movimentos, palavras ou sensações.
“Na realidade, todo estado psicológico está condicionado por
certos processos siológicos. Ao encontrar a solução correta
do seu estado físico, o ator chegará a uma situação através da
qual surgirá nele essa excitabilidade que constitui a essência de
seu jogo, que contagia os espectadores, e que os faz participar
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 101
desse jogo. É a partir de toda uma série de situações ou de
estados físicos que nascem esses pontos de excitabilidade e
que só depois se tingirão deste ou daquele sentimento.
14
Partindo destes princípios, passamos a organizar e entender os diversos
personagens das histórias em quadrinhos como diversas intenções de uma
gura. Entenda-se por gura “uma forma imprecisa que signica mais por sua
posição estrutural do que por sua natureza interna. (...) Ela se apresenta como
uma silhueta, uma massa ainda imprecisa (...)”
15.
Esta gura foi sendo construída a partir das partituras corporais que eram
repetidas diariamente, possibilitando o encontro de posturas, de olhares e de
formas de respirar e de andar que foram gradativamente xadas. O desao estava
em não deixar que as posturas ou as máscaras encontradas se cristalizassem,
impedindo que as intenções necessárias em cada cena acontecessem.
Pudemos perceber durante o processo que, ao possibilitarmos que o texto ou
uma música ajam no corpo de forma efetiva, conseguimos produzir as nuanças
desejadas em um personagem construído a partir do corpo.
Conclusão
Páginas Amarelas estreou no nal de 2006 na Universidade de Brasília. Como
a etapa acadêmica foi bem sucedida, a equipe decidiu continuar o trabalho
nos âmbitos prossional e comercial. O espetáculo participou de importantes
festivais de teatro no Brasil e chegou a ser apresentado em Portugal, no Festival
Internacional de Teatro de Santo André.
Para a Companhia B de Teatro, mais do que um bom trabalho, que foi reconhecido
e premiado, Páginas Amarelas signicou a possibilidade de solidicar um grupo.
No momento, a Companhia tem como sede uma sala no Clube Naval de Brasília,
onde realiza projetos voltados aos associados e à comunidade em geral e ensaia
outros três trabalhos cênicos, que estrearão em 2009 e 2010.
14. CAVALIERE, Arlete. O inspetor geral de Gógol/Meyerhold. São Paulo: Perspectiva, 1996.
p.110
15. PAVIS, Patrice. “Dicionário de Teatro”. São Paulo: Perspectiva, 2005. p.167.
102 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
A Voz dos Criadores
Participar do processo criativo de Páginas Amarelas foi um grande desao. Nunca
havia vivenciado a construção de um espetáculo, que tivesse como fundamento
a construção de cenas e personagens a partir do corpo e, consequentemente, de
sua expressividade. Além disso, a utilização de histórias em quadrinhos, ao invés
de um texto dramático, para orientação das cenas não foi tarefa nada fácil.
Imbuídos de muita determinação, estabelecemos como palavra de ordem
a superação de limites e também o ímpeto por alargar os horizontes, o que
possibilitou um conhecimento amplo, que abrange Artes Cênicas, Comunicação,
Música, Artes Plásticas e Literatura.
Considero que tanto o processo de criação como a continuidade do espetáculo,
modicaram por completo minha visão sobre os processos criativos e sua prática.
Páginas Amarelas me fez pensar o teatro por imagens, compreender e descobrir
minha expressividade e, por m, perceber o movimento como um belo poema
em ação.
Ludmilla Valejo
Meu processo dentro do espetáculo Páginas Amarelas deu-se de forma distinta
e acelerada em relação aos outros integrantes da Companhia B. Quando entrei
para o grupo, a peça já havia sido montada e encenada e dispúnhamos de pouco
tempo para a próxima temporada.
A encenação, no sentido de movimentações, entradas/saídas e contracenas,
estava estabelecida, assim como a pesquisa corporal do grupo estava bastante
solidicada. No entanto, não me foi imposta a mera reprodução do trabalho
anteriormente desenvolvido pela atriz que eu estava a substituir. Pelo contrário, a
minha pesquisa corporal foi direcionada para a descoberta de partituras corporais
próprias.
A base da pesquisa era a mesma: como o texto dito reverberava no meu corpo
através das oposições. Para a construção de Sebastian Zorn, o líder da banda, z
aulas de bateria. A cena do carteado foi moldada pela direção a partir de improvisos
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 103
com pontos xos e, com o decorrer da peça continuamente em cartaz, os jogos
e a química entre os atores foram se modicando, revelando outras camadas de
contracena.
O mesmo processo deu-se em todas as cenas. A cada ensaio, a cada apresentação,
descobertas eram feitas, revelando um contínuo trabalho de pesquisa da
Companhia B.
Giselle Nierenberg
O processo de criação do espetáculo Páginas Amarelas foi um mergulho
profundo em um universo de criação estética, física e intelectual. Propusemo-nos
a realizar uma montagem sem uma referência de texto teatral, com a intenção de
partir do nosso corpo como princípio para qualquer conito, ou seja, no corpo do
ator surgiria o drama. Este processo de criação a partir do ator era o que mais me
inspirava nesta pesquisa.
De mãos dadas com a história em quadrinhos A Pior Banda do Mundo e com
nossa diretora, zemos essa trilha marginal tentando descobrir uma nova forma
de narrativa teatral e corporal. Foi interessante perceber que, durante o processo
de adaptação, alguns códigos da linguagem das histórias em quadrinhos
permaneceram, uns de maneira sutil, outros tão nítidos que certa vez escutamos
de alguém em nossa turem Portugal –”Eu acreditaria se me dissessem que
José Carlos Fernandes dirigiu esse trabalho”. Outras características peculiares
do espetáculo também vieram da narrativa dos quadrinhos: nossos textos são
diretos, não há rodeios, o conito se dá pela intensidade das ações e pela força da
temática proposta em A pior banda do mundo.
Páginas Amarelas é um espetáculo descomprometido se comparado às narrativas
complexas, com mistérios, ápices e com uma linha dramatúrgica denida. Ele é,
assim como Brasília, uma idéia de experimentação ímpar colocada em prática e
que não se enquadra facilmente em nenhum outro padrão ou gênero. Foi um
grande aprendizado ser uma das criadoras e intérpretes deste espetáculo, me faz
ter orgulho das pesquisas teatrais produzidas em Brasília.
Camila Morena
104 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Acredito que ter passado pelo processo de criação de Páginas Amarelas e,
posteriormente, ter viajado e dado vida a este espetáculo tenha sido denitivo
no meu crescimento prossional. Posso inclusive armar que sou outra artista
depois de Páginas Amarelas.
Durante o processo de criação do espetáculo, tínhamos milhares de inseguranças
em relação a como o público iria receber este trabalho. E qual foi nossa surpresa
em vê-lo viajando Brasil afora e recebendo prêmios e aplausos.
Hoje sou uma artista conante de que é preciso atirar-se ao desconhecido para
descobrir as pérolas escondidas dentro de cada trabalho, de cada pesquisa, de
cada ator, atriz, diretor, iluminador, etc...
É necessário sair do lugar confortável e arriscar.
Tatiana Bittar
Comecei a participar do processo na época em que as primeiras cenas estavam
sendo construídas. O grupo me convidou para fazer a produção do espetáculo e
compor a equipe de criação do gurino. Depois, passei a atuar como Assistente de
Direção e como Operadora de Som.
Observar a pesquisa corporal desenvolvida pelo grupo, que ao longo do processo
trabalhou movimentos de oposição em suas mais variadas formas e intensidades,
e acompanhar o trabalho de criação de cada integrante desse processo foi, para
mim, um aprendizado determinante. Mas, o que mais me capturou, foi encontrar
pessoas que, mesmo correndo riscos, não abriram mão de pensar a linguagem
teatral e de assumir suas posições.
Acredito que o processo de criação do espetáculo Páginas Amarelas contribuiu
para o amadurecimento de cada integrante da Companhia, além de possibilitar
ao grupo construir-se como grupo. algo a ser dito. O quê? Como? Isso é um
caso a se pensar... É bom experimentar.
Mariana Botelho
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 105
Pensar a iluminação teatral não somente como um dos elementos que compõem
a cena, mas como recurso dramático e, até mesmo, assumindo o papel de
contadora da história, foi o desao que mobilizou a minha imaginação na criação
da luz de Páginas Amarelas.
A iluminação do espetáculo exigia algum esforço, pois a composição da luz
estava recheada de detalhes, de efeitos, de recortes, de sombras e de junções,
fusões de imagens. Tinha que carregar muitas pilhas, eventualmente refazer
globos e anar as luzes com riqueza de detalhes.
De alguma forma a luz do espetáculo deveria remeter às tiras de quadrinhos,
material original do trabalho. Mas não eram quadrinhos quaisquer, senão
quadrinhos com um profundo tratamento losóco e com uma idéia de tempo
muito diferenciada e especíca.
Então, havia iluminações. Basicamente vou dividi-las em três blocos.
Uma parte da concepção da luz era que ela fosse conduzida pelos próprios atores,
por meio de lanternas ou de equipamentos manipulados diretamente, expondo a
fragilidade da luz em relação à ação direta deles, que revelavam, ou não, as coisas
e os personagens. Enm, uma iluminação ativa, e delicadamente frágil.
Para contrapor essa característica, havia outro conjunto estético de muitos
recortes, com cortes secos, sem esfumaço e retirado diretamente dos quadrinhos,
como por exemplo o balão de diálogo, o recorte do canhão perseguidor e os
recortes trapezoidais das bancadas, que remetem a uma perspectiva.
E havia também um conjunto de luzes indiretas com grande ocorrência de
sombras e penumbras, ou que gerassem sombras, como se as próprias tiras, e sua
adaptação, quisessem nos mostrar os verdadeiros contornos humanos, que não
conseguimos ver com clareza.
Era preciso certo esforço da platéia para perceber a luz cênica, uma vez que
estamos acostumados a ver os atores quase sempre no centro do foco. E toda a
iluminação em geral utilizada serve para melhorar a percepção de contornos e
não jogar com isso.
Em termos de palheta, a luz geral tinha uma coloração eminentemente amarelada,
o que nos remete a uma qualidade de luz que traz a memória, a recuperação da
imagem. Havia ainda recortes individuais brancos e que dramaticamente traziam
106 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
à tona as percepções individuais dos personagens, cenas isoladas ou cenas de
passagem. Em uma cena especíca, uma luz azulada e fria, como a de nossas
casas.
Como a luz esforçada do meu computador.
Manuela Castelo Branco
Inicialmente, z a sonoplastia de Páginas Amarelas e a direção musical à distância,
já que na época estava morando fora de Brasília.
A sonoplastia foi composta por “sons cotidianos, colagens de trechos de
jazz e de música eletrônica. A fonte de inspiração para criação da trilha foi a “Banda
Sonora proposta pelo autor, que, em cada volume das histórias, coloca uma lista
de músicas e álbuns de jazz que o inspiraram a criar.
Com as indicações da direção e do grupo e a apreensão do universo tratado na
peça e da atmosfera de cada cena, utilizei tanto as músicas propostas pelo autor
como samples dessas. Foi um processo instigante e desaador, até mesmo porque
sou um grande amante de jazz. Após meu retorno para Brasília, aprofundamos
a proposta inicial de trilha sonora, o que nos rendeu inclusive prêmio no
Riocenacontemporânea e boas críticas.
Tomás Seferin
Um panorama sobre o processo de direção do espetáculo Páginas
Amarelas
A proposta de direção do espetáculo Páginas Amarelas foi baseada na investigação
de um vocabulário de ações e de movimentos desenvolvido a partir do conceito
básico de oposição, estudado por Meyerhold e Laban e revisitado no decorrer
da montagem. Foi realizado um estudo prático-teórico, tanto sobre os estudos
de Meyerhold, quanto sobre o método de estrutura e análise do movimento de
Laban.
Esse estudo foi desenvolvido ao longo dos encontros, que eram organizados
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 107
de forma a não haver separação entre aquecimento e laboratórios de criação. Os
elementos trabalhados no aquecimento eram imediatamente transportados para
a materialização de guras e de cenas em pequenas organizações de ações, que
podemos chamar de fraseamento.
Iniciávamos a prática estudando determinados focos de oposição como, por
exemplo, mãos e dedos; pescoço e ombros; pés e pernas; artelhos e planta dos pés;
bacia e pernas; olhos e boca; bacia e tronco e, em seguida, como estes afetavam
outras partes do corpo. Cada foco desses compreendia determinadas qualidades
de ações que se diferenciavam das demais e, consequentemente, um imaginário
corporal distinto era criado de acordo com o foco de oposição investigado. Isso
gerava uma abertura no vocabulário de movimentos dos atores que, por sua
vez, verticalizavam suas pesquisas na construção de uma possível dramaturgia
corporal para o espetáculo.
108 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Junto com esse estudo, realizávamos também o estudo da metodologia
labaniana, no que se refere aos elementos do corpo e aos fatores da dinâmica
do movimento. Em relação ao corpo, foram investigados os seguintes tópicos:
movimento simétrico e assimétrico; físico e espacial; central e periférico; isolado
e de corpo inteiro. E, no tocante à dinâmica: peso leve e rme; uência livre e
controlada; espaço direto e exível; tempo rápido e lento.
Para cada par de oposições labanianas um fraseamento era feito e localizado em
possibilidades cênicas. Tudo que era investigado em termos de ação era lançado
ao contexto criativo da cena. Com o decorrer das pesquisas, o elenco conquistou
a habilidade de jogar com as oposições de partes do corpo concomitantemente
com os tópicos acima descritos, provocando, dessa forma, uma proximidade entre
o que se queria realizar e o que de fato se realizou. A percepção do corpo e as suas
possibilidades expressivas começaram a ser manipuladas de acordo com o desejo
de cada ator.
É importante ressaltar que, a cada dia de trabalho, o material pesquisado
anteriormente era revisitado e retrabalhado através do fraseamento de ações. Ele
era repetido periodicamente e reorganizado ao serem incluídos outros tópicos
de investigação. Aos poucos, os atores estruturavam seu aquecimento pessoal a
partir dessas ações que se transformavam em personas, situações de cenas, ou
somente elementos de aquecimento ao longo do processo. A base da dramaturgia
do espetáculo era essencialmente corporal. A partir dela os desdobramentos
possíveis de cenas se desenvolveram.
No percurso da pesquisa, nosso diálogo era com a série de HQs A Pior Banda
do Mundo, de José Carlos Fernandes, que, com maestria e humor renado, nos
colocava diante de um mundo inusitado, com guras de homens e mulheres que
carregam uma boa dose de ironia trágica em suas rotinas. A questão central era
como deslocar a poesia das cores, das formas e das situações dos quadrinhos para
o espaço e a criação cênica.
O principal passo havia sido dado ao trabalharmos corporalmente com
oposição, pois lidávamos sistematicamente com a desconstrução de um corpo
cotidiano, que apontava o lugar do grotesco cênico como referência do trabalho
expressivo, nos aproximando, dessa forma, às características dos traços, das
linhas e das formas de Fernandes. Contudo, tínhamos o desao de construir uma
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 109
dramaturgia textual através de centenas de histórias de duas páginas e organizá-
las num roteiro a ser seguido. Após a escolha dessas histórias, a característica
que marca a nossa dramaturgia é a não linearidade de tempo e espaço e a ação
recheada de cortes e fragmentos. Foi justamente na não linearidade do texto e
das ações que encontramos a unidade da dramaturgia cênica, cujo o condutor
foi a pesquisa corporal que se tornou a identidade do espetáculo.
Aos poucos, os elementos de cena, como gurinos, objetos, música, luz e caixas
de madeira, que se tornaram a base de nosso cenário, junto com os instrumentos
musicais, foram investigados. Com isso, aumentou necessidade de se editar ainda
mais o material expressivo. A relação do movimento e da ação com o tempo, com
o espaço e com a vocalidade foi estudada em detalhes, esmiuçada, repetida e
modicada até se chegar a um primeiro formato de ação cênica. A essa altura, a
competência do elenco foi traduzida em esforço, rotina de trabalho e qualidade
de atuação. Ao nal do processo, o diretor Hugo Rodas nos acompanhou em
alguns ensaios auxiliando e contribuindo na dinâmica e musicalidade das cenas
e na atuação dos atores.
Da estréia até hoje, se passaram dois anos e meio e a montagem ultrapassou os
muros da academia, participando de festivais no Brasil, no exterior e conquistando
prêmios de direção, atuação, trilha sonora e outras indicações.
Como diretora, o que ca dessa experiência é a disponibilidade em rmar
um caminho, ou linha de pesquisa cênica, sem enrijecer as provocações e as
possibilidades de trabalho criativo, a que tanto o elenco quanto a direção se
propuseram. A ação coletiva calcada na criação, reexão, receios e questionamentos
por parte de todos foi fundamental para estabelecermos diferenças de expressão
e de potencialidades criativas. Foi pela diferença que o espetáculo se edicou e se
mantém, ainda hoje, vivo!
Kenia Dias
110 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Espetáculo: Páginas Amarelas
Inspirado na série de quadrinhos A Pior Banda do Mundo, de José Carlos
Fernandes.
Cena 1 – O Roteiro do Fracasso/Prefácio
(movimentos de pernas pedalando)
Guia Turístico 1 (Hugo) : Boa noite! Por uma quantia módica, proporcionamos
a você uma visita guiada a alguns locais conhecidos da cidade.
Guia Turístico 2 (Tati) : Se os senhores passageiros quiserem fazer a neza
de olhar para vossa direita, poderão ver a agência O Repouso, especializada em
serviços fúnebres para animais de estimação, que, apesar de estar aberta há treze
anos, nunca teve um só cliente.
Guia Turístico 2 (Tati): Do outro lado da rua, temos o consultório dentário do
doutor Samuel Pzner, introdutor dos dentes postiços em celulose...
Guia Turístico 1 (Hugo): ... que perdeu a maioria de seus paciente, uma vez que
seus dentes incendiavam quando estes fumavam tranquilamente um cigarro
Guia Turístico 2 (Tati): Aqui, a loja de Natanael Sturn, o único lugar da cidade
onde se pode comprar línguas de estorninho, só que originais e da Coréia...
Guia Turístico 1 (Hugo): ...mas a clientela é escassa, pelo fato de o senhor Sturm
insistir em reger-se pelo fuso horário de Seul.
Guia Turístico 2 (Tati) : Aquele sujeito ali, aquele que segura uma placa com os
dizeres “ajude-me, sou dislexo é Vladimiro Stolz, antigo campeão do mundo de
taquigraa, 382 palavras por minuto no mundial de 1956 em Helsinque, Finlândia.
Hoje em dia, debate-se com problemas de falta de liquidez.
Guia Turístico 2 (Tati): Entre as avenidas Bakunine e Tomas Morus, existe um
quiosque destinado a recolher as sugestões de utopias dos cidadãos.
Guia Turístico 1 (Hugo) : Ao lado dos correios, ca a sede do Partido Impopular
Idiossincrático. As tomadas de posição do seu líder Kaspar Groz têm lhe rendido
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 111
ataques de todos os quadrantes.
Guia Turístico 2 (Tati): Na praça Dr. Gregório Khazar, ao fundo da rua Goritz,
situa-se o Museu Nacional do Acessório e do Irrelevante.
Guia Turístico 1 (Hugo) : Que é o museu menos visitado da cidade, mesmo
porque seus objetos não são suscetíveis de atrair a atenção do público.
Guia Turístico 2 (Tati): Na cave desta alfaiataria (parada brusca – PAUSE MÚSICA
2) ensaia vinte nove anos, uma banda que nunca se apresentou em público...
Esta música.
Guia Turístico 1 (Hugo): Oito pisos acima, vive o grande compositor Dimitri
Skorski, que pôs termo a uma aclamada carreira de maestro e compositor. São
de sua autoria peças tão conhecidas como A valsa dos Contabilistas e a Sonata
Protocolar. Instalou-se nesse andar para criar sua obra-prima absoluta.
Cena 2 – Fenômeno Acústico
(som da banda ensaiando, Dimitri é visto por dois ângulos diferentes)
Dimitri Skorsky 1 (Camila): estão eles outra vez! É impossível trabalhar
nessas condições! Esterco!
Dimitri Skorsky 2 (Tiago): Hoje, as nuvens estão estranhas... Um inexplicável
fenômeno acústico faz com que os sons produzidos na cave subam através de
oito andares e cheguem aqui com incrível clareza. Não se está salvo em lugar
algum. Valha-lhe, Santo Expedito!
Dimitri Skorsky 1 (Camila): Daqui vê-se o mar... Nessas ocasiões, sinto-me
tomado por um desejo irreprimível de compor um amplo fresco sinfônico, que
retrate a gente vulgar, as vidas banais, a irrelevância do cotidiano... Esterco!
Dimitri Skorsky 1 (Tiago): Estarão eles todos a tocar a mesma música? É óbvio
que após o sustenido, que conclui o adágio repulsivo, não mais nada para
dizer.
Dimitri Skorsky 1 (Camila): tentei calafetar todas as frestas e orifícios deste
apartamento...Desisto!
112 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Cena 3 – Porque paramos? Baralho
(três pessoas jogam baralho ao redor de uma mesa)
Idálio Alzheimer (Hugo): Por que paramos?
Ignácio Kagel (Tiago): Dessa vez não fui eu!
Anatole Kopek (Gisele) : Fui eu que parei, pra mim chega! 29 anos é muito
tempo!
Idálio Alzheimer (Hugo): Ah! Não é preciso dramatizar...
Anatole Kopek (Gisele): Dramatizar? Que jogo estavas a jogar Sr. Kagel?
Ignácio Kagel (Tiago): Eu? A jogar? Estava jogando truco!
Idálio Alzheimer (Hugo): Nós estávamos a jogar canastra!
Ignácio Kagel (Tiago): Quando é o próximo jogo?
Idálio Alzheimer (Hugo): Não há próximo jogo!
(distribuem as cartas novamente)
Anatole Kopek (Gisele): Por que paramos?
Idálio Alzheimer (Hugo): Dessa vez não fui eu!
Ignácio Kagel (Tiago): Fui eu que parei, para mim chega! 29 anos é muito
tempo!
Idálio Alzheimer (Hugo): Ah! não é preciso dramatizar
Ignácio Kagel (Tiago): Dramatizar? Que jogo estavas a jogar Sr. Kagel?
Idálio Alzheimer (Hugo): Eu? A jogar? Estava jogando mexe-mexe é claro!
Anatole Kopek (Gisele): Burro, nós estávamos a jogar burro!
Ignácio Kagel (Tiago): Caixeta era o que estávamos a jogar!
Idálio Alzheimer (Hugo): Quando é o próximo jogo?
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 113
(Narração introduz o público na próxima cena)
Narrador (Gisele): Mercedes Zneb detém-se ao ouvir o toque de um telefone,
alguns andares acima. Hesita sobre se deve ou não voltar para casa. Como sempre
acontece nestas ocasiões, a sua mente envereda por sinuosas conjecturas. se
tornou numa segunda natureza. Para a mais ínma encruzilhada. Para a mais simples
escolha. se tornou numa segunda natureza. Para a mais ínma encruzilhada.
Para a mais simples escolha imagina elaborados cenários alternativos. Longas
cadeias causais. Que conduzem a desfechos insuspeitados.
Cena 4 – O inextricável Labirinto do Destino
(cena acontece simultaneamente à anterior e é narrada por um dos jogadores
de baralho)
Mercedes 1 (Camila): Será o meu? E sendo o meu, não se tratará de engano? Já
estou atrasada para consulta.
Mercedes 3 (Ludmila): Pode ser Constanza Brendel convidando-me para assistir
esta noite a uma récita da ópera O Penhorista Fleumático.
Mercedes 2 (Tati): No fosso da orquestra reconhecerei Olímpio Medina, uma
paixão da juventude, de quem não tinha notícias há 18 anos.
Mercedes 3 (Ludmila) : Irei falar-lhe depois do espetáculo.
Mercedes 1(Camila): E amanhã estarei a 500 km daqui.
Mercedes 2 (Tati): Ou ignorarei o telefone, descerei as escadas e surpreenderei
um desconhecido a mexer na minha caixa de correio
Mercedes 3 (Ludmila): Ao fugir deixará cair um sobrescrito que me era
endereçado e que se preparava para interceptar.
Mercedes 1(Camila): A carta, assinada pelo Dr. Zvalov, meu oftalmologista,
conterá um lindo e longo poema de amor.
114 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Narrador : Atemorizada com as conseqüências tremendas que qualquer decisão
parece acarretar, Mercedes Zneb acaba invariavelmente por não tomar Nenhuma!
Mercedes 2 (Tati) : Parou de tocar!
Cena 5 – Quiosque da Utopia
(Música de espera telefônica. Monta-se uma escada ao fundo com o cenário)
Sr. Mengel 1 (Tiago) : No limite norte da cidade, numa zona de baldios tristonhos,
onde em tempos localizavam-se a Fábrica de Acordeões Klucevsek e o antigo
Armazém de papel mata-borrão, ergue-se agora mais uma grande realização. Uma
parceria do Laboratório Nacional de Histerese Social e Psicologias de Massa e do
Departamento de Engenharia Teofânica, com o patrocínio da Indústria Nacional
de Lipo-sucção, do Centro de Estudos Irrisórios e da Escola Superior de Falácia
e Diletância. Tenho o prazer de anunciar essa oitava maravilha do mundo. Um
verdadeiro monumento, construído com madeira reforçada, que tem o céu como
limite. Trata-se de um quiosque destinado a recolher as sugestões de utopias dos
cidadãos. Projeto que nascera na mente visionária de Pompeu de Karamazov.
Em letras já um pouco apagadas, pode ler-se o futuro que estamos a construir é
para si” Por isso queremos saber qual é a sua utopia. Deixe aqui a sua sugestão.
Obrigado.
(Pessoas sobem na escada construída, sentam e esperam...)(A numeração dos
cidadãos está relacionada ao local que cada um ocupa na escada)
Cidadão 3 (Camila): A minha utopia? Ahh... É conseguir passar 365 dias sem
precisar tomar decisão nenhuma! Ia ser tão bom, nunca mais ter dúvida.
Cidadão 4 (Ludmila): um teatro de luxo, ar condicionado, gurinos levemente
perfumados e um camarim sempre fornecido.
Cidadão 5 (Tiago): É quando eu pedir pizza portuguesa, que venha portuguesa,
e não marguerita!
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 115
Cidadão 1 (Tati): Queria conseguir mudar os móveis de lugar, desentortar os
quadros, tirar a poeira das coisas...
Cidadão 2 (Gisele): Era que quando eu tivesse em minha barriga fosse a
mesma de quando eu tivesse deitada.
Cidadão 6 (Hugo) : Minha utopia...a minha utopia é... não posso dizer, se não
deixava de ser minha utopia.
Cena 6 – Porque paramos? Baile
(todos dançam ao som de Jazz, um casal dança)
Mulher (Camila): Por que paramos?
Homem (Hugo): Dessa vez não fui eu!
Mulher (Camila): Fui eu que parei, pra mim chega! 29 anos é muito tempo!
Homem (Hugo): Não é preciso dramatizar!
Mulher (Camila): Dramatizar? Que dança estavas a dançar senhor Kagel?
Homem (Hugo): Eu? A dançar? Sapateado, é claro
Mulher (Camila): Nós estávamos a dançar tcha-tcha-tcha!
Homem (Hugo): Quando é a próxima dança?
Mulher (Camila): Não há próxima dança!
Cena 7 – Desporto Nacional
(Todos sentados em um banco - a cena se inicia com o narrador, segue texto e
coreograa do jornal. Após este momento, é simultânea a cena do Kaspar Groz.
Termina com o tombo da Camila. Todos começam a arrumar o cenário e Tati se
prepara para a cena 8).
Narrador 2 (Camila): O ser humano é atormentado por uma angústia profunda
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e insanável: a sorte que nos calha nunca parece ser sucientemente rica ou
excitante, receia-se estar perdendo algo de muito melhor na cidade vizinha ou
no quarto ao lado. A existência humana é constantemente tomada pela terrível
suspeita de que a vida é em outro lugar.
Camila: Dimitri Skorsky aclamado compositor diz que há dois tipos de música a
boa e a má.
Tiago: Grupo de telelólogos se reúne e...
Tati: Vitória Galope diz que essa é sua opinião, mas que ela pensa que...
Hugo: Laboratório Nacional de Esterese Social adverte...
Ludmila: A Escola Superior da Falácia e Diletância abre inscrições...
Hugo: Que os símios podem escrever best-sellers...
Camila: É possível aprender canto tirolês durante o sono.
Kaspar Groz (Gisele): O cidadão comum é tão freqüentemente solicitado a
responder a inquéritos, sondagens, eleições e referendos, que se convenceu de
que a sua opinião tem algum préstimo. Sobretudo no artístico, pois uma vez que
neste existe uma forte componente subjetiva... Logo assumem que qualquer
opinião é tão boa como qualquer outra. Assim, tornou-se comum que criaturas que
ignoram o que seja um hemistíquio ou uma hipálage, discorram à vontade sobre
literatura... Ou que, desconhecendo o que seja um pizzicato, uma semi-fusa ou até
mesmo um contrabaixo, emitam juízos denitivos sobre música! Todos parecem
ter uma necessidade imperiosa de espalhar aos quatros ventos a amálgama de
ignorância e preconceito que faz a vez do gosto educado e da cultura. O triunfo
absoluto do capitalismo selvagem e do consumismo desenfreado traduziu-se
num dramático empobrecimento da vida espiritual... O advento da cultura de
massas traz consigo um quotidiano estupidicante... Não podemos deixar que
em nome da correção política... Não se pode dar dinheiro à classe média logo
se apressam a transformá-lo em ruídos e cheiros desagradáveis... À massicação
opomos o elitismo, último reduto do homem culto. Nos tempos que correm, o
artista é como um pato numa barraca de tiro: qualquer burguês que pague bilhete
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 117
se julga no direito de disparar sobre ele. Muito obrigado.
Cena 8 – Prólogo
Guia Turístico 2 (Tati): Da cave desta alfaiataria, encerrada desde 1958, vêm
sons abafados de música... É que ensaia a Pior Banda do Mundo. Sebastian
Zorn, serrilhador de selos e líder da banda. Ignácio Kagel, scal municipal de
isqueiros. Idálio Alzheimer, vericador metereológico. Anatole Kopek, criptógrafo
de segunda classe e as irmãs Glatz, hermeneutas aposentadas. A pior banda
do mundo resulta de uma inaudita conjugação de inépcia e de uma completa
ausência de sentido musical.
Cena 9 – Manual de Instruções para a Vida Cotidiana
(Cada um no seu espaço, como se fosse um pequeno apartamento, com pouca
iluminação, cada um na sua estória).
Indivíduo 3 (Tiago): Sinto que chegou o momento de fazer uma mudança
radical na minha vida!
Indivíduo 1 (Camila): Quem sabe, uma nova paixão? Ou deverei alistar-me na
legião estrangeira?
Indivíduo 4 (Hugo): Talvez devesse tornar-me vegetariano... Ou aderir a uma
loja maçônica...
Indivíduo 2 (Gisele): Acho que vou descer as cataratas do Nilo num barril? E se
escrevesse um livro? Assim não tinha de me molhar...
Indivíduo 6 (Tati): Pensando melhor, vou antes inscrever-me num curso por
correspondência de mecânica quântica... Ou será preferível de canto tirolês?
Indivíduo 5 (Ludmila): Devo esticá-lo? Frisá-lo? Acho que vou pintá-lo, hoje em
dia já ninguém usa o tom natural... Está decidido!Vou pintá-lo! Mas, de que cor?
Indivíduo 3 (Tiago): E se eu simular um desmaio no refeitório? Com o tabuleiro
e tudo, ela não pode deixar de reparar em mim.
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Indivíduo 5 (Ludmila): Não tenho jeito nenhum para combinar as cores. O lenço
açafrão cará mal como tailleur bordeaux?
Indivíduo 6 (Tati): As vezes me acho pouco atraente, deve ser por ter os dentes
tortos. Devo fazer uma plástica? Ou seria melhor fazer um curso de dança de
salão?
Indivíduo 1 (Camila): Se o chefe me perguntar que música ouço, o que devo
responder? Devo afetar erudição e declarar ter adquirido recentemente a integral
das 48 sonatas para gongo solo de Dimitri Sikorsky?
Indivíduo 4 (Hugo): Onde está minha certidão de nascimento? é a décima
que tiro. O carteiro esquece-se de me entregar a correspondência que me é
destinada. Devo reclamar nos correios ou procurar um médico?
Indivíduo 6 (Tati): Gosto de ler romances ...
Indivíduo 1 (Camila): Não compreendo porque as TVs cam 24 horas ligadas.
Indivíduo 3 (Tiago): Sim, eu sei que horas são, mas é urgente!
Indivíduo 6 (Tati): Neles nada acontece por acaso, e as vidas fazem, sempre,
sentido.
Indivíduo 5 (Ludmila): A maioria das pessoas teme a morte acima de tudo.
Indivíduo 2 (Gisele): O meu maior medo é que um incêndio destrua os meus
livros.
Indivíduo 1 (Camila): Nem porque existe música em todos os lugares e ninguém
as escuta.
Indivíduo 2 (Gisele): Vou tentar elaborar uma lista dos livros que salvaria das
chamas em primeiro lugar.
Indivíduo 6 (Tati): Perdi um brinco. Encontrei um bilhete do Museu Nacional do
Acessório e do Irrelevante.
Indivíduo 5 (Ludmila): Pois o que me atemoriza é não ser um cadáver digno.
Indivíduo 3 (Tiago): Lembra-se da fábrica de acordeões Klucevsek?
Indivíduo 2 (Gisele): A Grande Enciclopédia do Conhecimento Obsoleto.
Indivíduo 5 (Ludmila): Inspeciono unhas, cabelo e troco de roupa 29 anos
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diariamente.
Indivíduo 3 (Tiago): As paredes da fábrica são rebocadas ou os tijolos estavam
à vista?
Indivíduo 1 (Camila): Porque as pessoas tagarelam sem parar e narram com
prazer os mais irrelevantes acontecimentos.
Indivíduo 3 (Tiago): Lembra-se certamente, passamos tardes a brincar nos
baldios entre a fábrica e a linha de ferro...
Indivíduo 2 (Gisele): Mas também Memórias de um Domador de Alces e Tratado
de Aerofagia...
Indivíduo 1 (Camila): Por que repetem várias vezes os mesmos argumentos?
Indivíduo 2 (Gisele): Mas nunca conseguirei decidir, todos os livros me parecem
igualmente imprescindíveis.
Indivíduo 3 (Tiago): Raquel? Qual Raquel?
Indivíduo 1 (Camila): Por que insistem em dar ao mundo seus irrisórios pontos
de vista?
Indivíduo 5 (Ludmila): Uma tia minha foi enterrada viva. O que a salvou do
vexame foram as coroas funerárias.
Indivíduo 6 (Tati): Hoje de manhã acordei com um estorninho a esvoaçar contra
a janela do meu quarto.
Indivíduo 3 (Tiago): Mas essa usava rabo-de-cavalo e aparelho nos dentes.
Indivíduo 6 (Tati): O que quer dizer tudo isso?
Indivíduo 1 (Camila): Tudo isso não é mais que uma tentativa de evitar que a
morte tenha a última palavra.
Indivíduo 2 (Gisele): Não me resta outra escolha, quando o fogo vier, perecerei
junto com os livros.
Indivíduo 5 (Ludmila): Só queria deixar expressas minhas últimas palavras.
Indivíduo 1 (Camila): Mas à morte pouco interessa de quem é a última palavra,
pois dela será sempre o último silêncio.
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Cena 10 – Irrealidade Crônica –
Simeon Lichtenstein (Hugo): É a décima certidão de nascimento que tiro.
Extraviam-se, tornam-se ilegíveis, desfazem-se... Décima. E mais... Não consto dos
cadernos eleitorais, o dentista nunca consegue encontrar a minha cha, passam
sempre à frente nas las. Marco quarto num hotel e, quando chego, descubro que
está ocupado. Lichtenstein? Não, não temos ninguém com esse nome. Não terá
sido no Hotel Continental? Ao ir buscar um terno à lavanderia. Hummm... Não! Não
pode ser, eu tenho certeza. Foi na semana passada. Era cinzento-perolado. Como
se tudo isto não bastasse, o carteiro esquece-se de me entregar a correspondência
que me é destinada. O meu problema é, obviamente, ser produto do sonho de
alguém, sonhar alguém requer uma extraordinária minúcia e concentração. É
natural que muitos detalhes escapem. E quando a pessoa que me sonha acordar?
E quando a pessoa que me sonha acordar?
Cena 11 – A Pior Banda do Mundo
(Abre-se o pano, a banda está a tocar. Alguns integrantes ainda estão por
chegar e aos poucos a banda se completa. Quando o último chega...).
ThiagoEstávamos a te esperar há uma eternidade!
Hugo Não é preciso fazer drama por conta de uma hora e meia de atraso.
(voltam a tocar, até que parem novamente)
Gisele – Por que paramos?
Tatiana Desta vez não fui eu.
Hugo – Fui eu que parei. Pra mim chega!
Camila Vinte e nove anos é muito tempo!
Gisele – Volta aqui! Não é preciso dramatizar!
Camila – Dramatizar?
Hugo Que música estavas a tocar Sr. Kagel?
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(Líder da banda retoma a música. Quando pára ...)
Gisele A Step Behind The Stars, é claro!
Hugo – Não, estávamos a tocar Who’ll Buy My Violets!
Camila – O que vem a ser isto de Who’ll Buy My Violets?
Thiago – Estávamos a tocar Do In The Rumba!
Tatiana Era isso que estávamos a tocar, não era?
(pausa longa e constrangedora. Até o momento que o Líder da Banda chama
a atenção de todos para reiniciarem a música... Até pararem novamente).
Hugo – Por que paramos?
Camila – Estavas a tocar com a partitura ao contrário.
Gisele Ah, merda!
(Voltam a tocar, até pararem de novo)
Gisele – Os instrumentos estão uma ruína!
Thiago – Também estás a tocar com os sapatos invertidos!
Ludmila São sempre as mesmas desculpas... Não empenho, não
empenho!
(Mais uma vez voltam a tocar, até pararem novamente).
Camila – Por que paramos?
Ludmila – Desta vez não fui eu.
Tatiana Fui eu que parei! Onde é que estão as minhas baquetas?
Hugo Onde é que estão as minhas baquetas?! Pra mim chega, vinte e nove
anos é muito tempo!
(Voltam a tocar. Aos poucos a velocidade aumenta, até que a música resulte
em uma inaudita conjugação de inépcia e de completa ausência de sentido
musical).
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Cena 12 – Cair da Noite
Dimitri Skorsky 3 – Chega!!!!!
Eu estou cansado dessa música acadêmica, intelectualizada, afastada da emoção.
Afastada do que eu sou.
Eu queria compor uma música para homenzinhos barrigudos, que atravessam
a rua num passo quase bovino, como se não quisessem chegar a lugar nenhum.
Uma música para quem forra as gavetas com páginas arrancadas de calendários
de anos que ainda estão por vir. Uma música para quem guarda, em caixas de
sapato, fotograas de desconhecidos em lugares onde nunca esteve. Uma música
pequena, que possa caber numa caixinha de fósforos. Eu queria compor uma
música para quem passa as noites em claro a ouvir pingar a torneira da cozinha,
que promete reparar sem falta no dia seguinte. Uma música pra quem falece
despercebido, na luz fria e mansa de outubro.
Ficha técnica
Primeiro Elenco
Camila Morena da Luz, Ludmilla Valejo, Felicia Castelo Branco, Márcio
Minervino, Tatiana Bittar e Thiago Sabino.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 123
Segundo Elenco
Camila Morena da Luz, Ludmilla Valejo, Giselle Niremberg, Hugo Leonardo,
Tatiana Bittar e Thiago Sabino.
Orientação de Pré Projeto
Giselle Rodrigues
Direção e orientação corporal
Kenia Dias.
Assistência de direção
Diego Azambuja e Mariana Botelho.
Dramaturgia
Companhia B de Teatro. Inspirada em A Pior Banda do Mundo, de José Carlos
Fernandes.
Texto original
José Carlos Fernandes.
Orientação de arte
Sônia Paiva.
Iluminação
Manuela Castelo Branco.
Operação de luz
Manuela Castelo Branco e Diego Azambuja.
Trilha sonora
Tomás Seferin.
Operação de som
Mariana Botelho.
Programação visual
Thiago Sabino.
Produção
Companhia B de Teatro.
Montagem e Cenotécnica
Leonardo Shamah e Diego Azambuja.
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Fotograa
Diego Bresani.
Indumentária
Sônia Paiva, Mariana Botelho e Companhia B de Teatro.
Cenograa
Thiago Sabino e Roustang Carrilho.
Orientação de maquiagem
Jesus Vivas.
Currículo
2006
Estréia do Espetáculo Páginas Amarelas, desenvolvido a partir do contexto
criativo visual e narrativo dos quadrinhos A Pior Banda do Mundo, de José Carlos
Fernandes.
2007
Primeira temporada prossional da Companhia B de Teatro com a peça Páginas
Amarelas, no Centro Cultural de Brasília (CCB - DF), que obtém elogios da crítica da
imprensa especializada e do público.
Participação na Mostra Internacional de Teatro Cena Contemporânea 2007
– DF.
Participação na Mostra Universitária do Festival Internacional
Riocenacontemporânea 2007 – RJ
Participação no Prêmio SESC de Teatro Candango 2007 - mostra que reúne os
melhores espetáculos de Brasília e a única de caráter competitivo da cidade.
O espetáculo Páginas Amarelas é considerado, pelo Correio Brasiliense, um
dos três melhores trabalhos de teatro desenvolvidos durante o ano de 2007 em
Brasília.
2008
Participação naMostra de Teatro Candango no SESC - RJ, com o espetáculo
Páginas Amarelas, realizado no SESC Copacabana.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 125
Participação, com o espetáculo Páginas Amarelas, da Mostra de Teatro de
Santo André, em Portugal, no período de 8 a 25 de maio de 2008.
Participação, com o espetáculo Páginas Amarelas, da Mostra de Teatro Candango
do SESC – DF, no SESC Taguatinga, em maio de 2008.
Participação, com o espetáculo Páginas Amarelas, do Dia de Portugal, evento
realizado pela Embaixada de Portugal, Instituto Camões e TAP. Sala Martins Penna,
junho de 2008.
Participação do Projeto Teatro na Escola, realizado pela Fundação Athos Bulcão.
FUNARTE, julho de 2008
Participação, com o espetáculo Páginas Amarelas, do Festival Palco Giratório
do SESC. SESC Taguatinga e SESC Garagem. Julho de 2008.
Participação, com o espetáculo Páginas Amarelas, do evento Galpão Convida
Mostra Candanga, realizado pelo Galpão Cine Horto e pelo Grupo Galpão. No
Galpão Cine Horto, Belo Horizonte, e em Ipatinga – MG. Outubro de 2008.
Prêmios e Indicações
Mostra Universitária do Festival Internacional Riocenacontemporâ-
nea 2007 – RJ
Indicada nas categorias de Melhor Cenário (Thiago Sabino) e Melhor Atriz
(Giselle Nirenberg)
Premiada nas categorias de Melhor Trilha Sonora (Tomás Seferin), Melhor Atriz
(Tatiana Bittar), Melhor Direção (Kenia Dias) e Segundo Melhor Espetáculo.
Prêmio SESC de Teatro Candango 2007
Indicada nas categorias de Melhor Figurino (Mariana Botelho e Sonia Paiva),
Melhor Cenário (Thiago Sabino), Melhor Iluminação (Carlos Tomazolli e Martha
Paiva), Melhor Trilha Sonora e Melhor Espetáculo.
Premiada na categoria de Melhor Direção.
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Críticas
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Grupo de Teatro
Celeiro das Antas
“Saí Satanás, do corpo desse indivíduo!”
130 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
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Grupo de Teatro Celeiro das Antas
Zé Regino
Caminhos da Criação
Reflexões Sobre a Construção de uma Obra Cômica
Relatos Sobre a Montagem de Bagulhar
Fundado na primavera de 1991, o Grupo de Teatro Celeiro das Antas realiza
estudo, pesquisa, montagem e apresentação de peças teatrais. O nosso objetivo
é o desenvolvimento de trabalhos voltados à experimentação de linguagens
artísticas, com especial atenção à linguagem cômica e ênfase na arte do Palhaço.
Desde sua fundação, o grupo dialoga, entre outras referências, com as tradições
da cultura popular. Posteriormente, o gênero cômico ganhou destaque em nossa
trajetória. Temos participado de diversos festivais no Brasil e no Exterior, atuando
em projetos educativos governamentais e de organismos internacionais. Somos
um dos grupos integrantes da Cooperativa Brasiliense de Teatro que, desde 2001,
oferece ocinas e mostras de teatro em cidades do Distrito Federal e entorno.
Op’s... Que bom esse convite do Grupo Teatro do Concreto para participar
dessa publicação! Assim poderei usar os textos da minha dissertação de Mestrado.
É uma boa forma de divulgar esse trabalho, que foi tão difícil de ser feito, mas muito
prazeroso como resultado, e que não tem no momento nenhuma perspectiva de
ser publicado, pelo menos não em forma de livro, porque na forma digital ele esta
disponível no blog www.zeregino.blospot.com. Acredito na sua importância. Penso
que, se respondeu algumas perguntas que foram importantes para mim, deve
responder para mais alguém.
Uma consideração importante: a montagem de Bagulhar foi possível devido
ao projeto aprovado no edital da FUNARTE, prêmio Mirian Muniz, com apoio da
Petrobras, que foi elaborado pela Laura Cavalheiro, a nossa produtora na época.
132 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Foi que resolvi vincular essa montagem ao meu projeto de mestrado. Anal,
nada melhor que juntar a teoria com a prática.
E por falar em teoria, é importante denir que meu estudo sobre o cômico
tem bases teóricas nos escritos sobre as Ações Físicas, feitos por Stanislavski,
nos estudos de Freud sobre os Chistes e sua relação com o Inconsciente, com o
foco sobre o conceito do processo de comparação e as suas denições sobre as
espécies do cômico e na prática diária a partir das construção e apresentações dos
espetáculo que compõem o repertório do grupo.
Vamos ao que interessar possa.
Os primeiros estudos
A montagem de Bagulhar começou pelos estudos na literatura. Nas obras que
usamos como referência, como Don Quixote, de Miguel de Cervantes
1
, dentre
tantas qualidades mostradas pelo autor, me marca o fato dele usar do próprio
gênero Romance de Cavalaria, para fazer sua crítica ao modo de vida da época.
Em Dom Quixote Quatro Séculos de Modernidade
2
, de Mário Amora Ramos, a paixão
com que o autor se refere a obra de Cervantes, seus comentários e as curiosidades
levantadas por ele funcionam como uma iniciação à Don Quixote, aguçando a
vontade de quem o seu livro de partir direto para ler as aventuras do cavaleiro
andante. Em Minha Vida, de Charles Chaplin
3
, é curioso conhecer as histórias que
envolveram a criação do Carlitos, um dos mais famosos personagens do cinema
do século XX, principalmente quando narrados pelo seu próprio criador. Percebe-
se que a gura do vagabundo, sua ingenuidade, seu jeito de perdedor, o anti-herói
são a síntese das experiências do seu criador. Carlitos não é uma personagem
que foi criada, é uma personagem que foi se criando para suportar a vida do seu
criador. Lazarilho de Tormes
4
, por sua vez, conta a história de Lázaro, um indivíduo
1. Cervantes narra de forma crítica as aventuras e desventuras de Alonso Quijamo, que, após horas
intermináveis de leitura de romances de cavalaria, gênero em moda na época, é tomado por um surto
e sai pelo mundo a fora vivendo as aventuras do cavaleiro andante Dom Quixote, personagem no qual
ele se transforma.
2. Em que o autor faz uma análise da obra de Cervantes, destacando aspectos e características conti-
das na obra que a mantêm moderna até os dias de hoje.
3. Autobiograa em que narra, entre outras experiências, como foi construído o seu mais famoso
personagem, o vagabundo Carlitos.
4. Escrita por autor desconhecido. Narra à história de Lázaro, nascido da sorte e por ela guiado du-
rante toda a sua vida. É o anti-herói, o ser não idealizado. O livro faz uma crítica tão aberta à sociedade
da sua época, que a Inquisição o colocou no catálogo de livros proibidos.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 133
que, no decorrer de uma vida marcada por perdas, abandono, exploração, fome
e indignidade, ao se tornar adulto, o máximo que alcança é a consciência de um
retrato mal formulado do que vem a ser o cidadão no qual ele se transformou. É
o retrato crítico de uma sociedade corrupta, em que os valores se moldam pela
necessidade de cada um. As aventuras são narradas de forma extremamente
cruel, mas que ganha contornos cômicos.
Ao término dessas leituras, cou muito claro o envolvimento desses artistas
com as realidades de suas épocas, como cada obra, de uma forma ou de outra,
reinterpreta o momento em que viviam. Passamos então a nos perguntar:
qual seria o universo da nossa obra? Qual seria o nosso Lazarilho nos dias de
hoje? A resposta: o universo dos moradores de rua. Acreditávamos que nele
encontraríamos o nosso “Lazarilho de Tormes”, ou material para compormos o
nosso “Carlitos. Acrescentamos ao nosso conjunto de obras Esperando Godot, de
Samuel Becket, que nos motivou a buscar mais elementos sobre o universo dos
vagabundos, malandros e outros errantes.
Durante os estudos teóricos mantínhamos nossa rotina de treinamento físico
com aquecimentos, técnicas de acrobacias em dupla, saltos, mímica, jogos com
bastões, gags tradicionais de palhaços e rotinas clássicas. Não sabíamos o que
montar - tínhamos certeza de que a obra seria levada à cena pelos nossos
palhaços, portanto treinávamos pelo menos três dias por semana.
Em muitos casos, quando não sabemos para onde ir, saber para onde não
queremos ir pode fazer uma grande diferença. De uma coisa tínhamos certeza:
não iríamos criar o espetáculo fazendo improvisações sobre a vida dos moradores
de rua, apenas imaginando como vivem. Queríamos evitar a construção de
comportamentos fantasiosos. Por mais que julguemos conhecer a nossa realidade,
quando nos permitimos olhar de perto o mundo que nos cerca, ele sempre terá
mais a nos oferecer do que podemos imaginar. Assim como o ser humano, a
realidade é mutável, instável e extremamente reveladora do nosso momento
presente.
Stanislavski alerta para aspectos que envolvem o conceito de imaginação dentro
do seu sistema: A imaginação cria coisas que podem existir ou acontecer, ao passo
que a fantasia inventa coisas que não existem, nunca existiram e nem existirão.
134 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
E, no entanto, no quem sabe, talvez um dia elas passem a existir. (1984, p. 82).
A esta distinção entre imaginação e fantasia é importante de se ater, porque na
prática elas podem provocar muita diferença no trabalho do ator. Imaginar um
comportamento dentro de uma circunstância proposta é distinto de fantasiar um
comportamento, pois a imaginação tem vínculos com os fatos: Todo invento da
imaginação do ator deve ser minuciosamente elaborado e solidamente erguido
sobre uma base de fatos. (1984, p. 96). Imaginar por imaginar apenas também
pode não fazer sentido, uma vez que, assim como a fantasia, ele perderia o vínculo
de referência, ... Imaginar em geral, sem um tema bem denido e cabalmente
fundamentado, é trabalho infrutífero. (Idem).
A falta da distinção entre imaginação e fantasia pode propiciar erros
comprometedores na representação do comportamento humano. Armo isso
pela experiência em salas de aulas e em ensaios de improvisação com atores.
Não é raro que alunos e atores utilizem comportamentos fantasiosos, sem
vínculos algum com a realidade da obra ou do contexto social que deveria ser
representado durante uma improvisação. Quando da avaliação, questionados
sobre o que zeram, argumentam que buscavam ser criativos; queriam ser
originais nas suas criações querem por tudo evitar uma atuação realista. Pensam
que representação realista é o oposto da representação teatral. Para Stanislavski, a
imaginação, como ele propõe que seja usada no trabalho do ator, tem vínculos com
a realidade proposta pela obra a ser criada. a fantasia é completamente livre,
não tem nenhuma necessidade de criar alguma verossimilhança. Outro conceito
importante a considerar é o do efeito cômico surgido a partir da comparação.
Segundo Freud, é da natureza do homem apreender uma idéia nova utilizando
como referência um padrão por ele adquirido anteriormente, ou seja, aprender
comparando algo novo com o que já conhecemos, tendo como referência o
modelo aprendido como ideal. Assim, a comparação estaria na base do processo
da formação do efeito cômico na mente humana. Usar a imaginação dentro dos
limites denidos pela obra a ser criada e do contexto onde ela será encenada se
mostra de extrema importância, uma vez que o vínculo com as experiências da
platéia é a base desse procedimento.
Imaginar a partir do que sugere a obra signica ver as coisas ausentes, inexistentes
ou irreais, contando que as veja mentalmente (KUSNET, 1992, p. 39), deixando
que essa visualização afete as ações físicas realizadas pelo ator. A imaginação e a
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 135
memória das emoções foram dois importantes elementos do sistema usados na
construção do espetáculo Bagulhar, uma vez que, para esse espetáculo, não foi
usado nenhum texto ou roteiro pré-denido. Trabalhamos a partir da realidade a
nossa volta, observamos, durante todo o processo, moradores de rua da cidade
de Brasília e entorno. Simultaneamente, em sala de ensaio, construíamos as cenas
a partir da memória dos acontecimentos observados, usando nossa imaginação
para completar fatos, criar novas situações e estabelecer relações entre as
circunstâncias criadas.
Uma vez escolhido nosso objeto de pesquisa, tínhamos que ir a campo. Mas,
como conhecíamos muito pouco desse universo, a necessidade nos levou ao
encontro de Kênia Dias e da sua Dissertação de Mestrado Da rua a Cena: Trilhas
de um Processo Criativo
5
. O encontro com a Kênia abriu uma porta totalmente
desconhecida, revelando a complexidade da rotina desses personagens que
povoam o dia a dia das grandes cidades.
A sua dissertação não se tratava de um estudo sociológico ou antropológico,
mas de um estudo sobre os corpos desses indivíduos, como eles se colocam no
espaço e dele se apropriam. O resultado traduz a visão de uma artista sobre a sua
realidade. Sua pesquisa gerou o espetáculo de dança solo “Lambe-lambe”, parte
integrante da defesa da sua dissertação.
Após uma leitura mais acurada do trabalho da Kênia, e de assistir a tas de vídeo
contendo imagens recolhidas por ela durante a sua pesquisa, decidimos dar início
ao nosso trabalho de campo. Sabíamos agora por onde começar.
Cientes de que os moradores de rua possuíam uma rotina, que a maioria vivia
em grupos, e que era possível fazer um mapeamento na cidade para localizá-
los, decidimos que a nossa pesquisa seria de observação à distância. Por eu
ter realizado trabalhos com pessoas em situações desprivilegiadas e em muitos
momentos ter me envolvido emocionalmente, optei por manter durante toda a
pesquisa uma distância dos indivíduos a serem pesquisados, acreditando que essa
distância me protegeria e me ajudaria a manter uma visão mais crítica do universo
dos moradores de rua. Na prática, a distância evitou apenas o envolvimento
direto com os indivíduos. No decorrer do processo de montagem, percebemos
5. Pesquisa Desenvolvida no Mestrado em Artes - IDA, sob a orientação do Professor Doutor Marcus
Mota, 2005.
136 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
que o envolvimento emocional com o universo pesquisado já havia ocorrido. Não
queríamos uma aproximação pessoal. Estávamos atrás de situações que poderiam
servir de referência para criação do nosso espetáculo.
A realidade cotidiana como referência na construção do espetáculo
Em nossa primeira saída de campo, com início às 5 horas da manhã, fomos à
quadra 502 Norte em Brasília. Tínhamos mapeados alguns grupos e escolhemos
um formado por homens adultos, por se assemelharem ao que procurávamos. Ao
chegarmos, escolhemos um lugar onde poderíamos observar sem ser vistos e ali
camos durante aproximadamente três horas. Quando decididos ir embora, pelo
fato do grupo começar a se dispersar, percebemos que tínhamos sido vistos
por um deles, que teve uma mudança brusca de comportamento, perdendo
toda uma espontaneidade que havia chamado a nossa atenção. Concluímos que
a melhor forma de observar, sem alterar o comportamento deles, era ver sem
sermos vistos.
Aquela experiência iria mudar completamente a nossa visão sobre os
moradores de rua. É incrível perceber como a nossa imaginação constrói
uma referência fantasiosa do mundo a nossa volta. As formas como aqueles
homens se relacionavam, a cumplicidade que os unia diante de uma condição
de vida precária, a divisão do pouco que possuíam e a necessidade de alguns
em compartilhar o que adquiriam, dividindo ou apenas exibindo aos outros os
objetos conquistados provocando a inveja e a cobiça! A ocupação do espaço
público sendo transformado em espaço privado, não pela posse, mas pela
apropriação, como ocupam e se comportam, os gestos e atitudes, a eleição de
partes do espaço para ns especícos, quarto, sala, depósito e banheiro. Após um
tempo de observação, podia-se ver uma casa de paredes invisíveis denida pelas
ações no espaço.
Kênia Dias dene:
A esfera pública é simbolizada pela rua e a esfera privada
pela casa. Os ambientes da rua e da casa, apesar de fazerem
parte de mundos distantes, são complementares e interagem
num movimento cíclico, com distinções bastante denidas
no que diz respeito ao comportamento e à aparência da
pessoa (DIAS, 2005, p. 31).
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 137
No caso daqueles homens a distinção entre casa e rua não se fazia por pertencer
a casa e a rua a mundos distintos, o mundo da casa não mais existia sicamente,
apenas o da rua a casa se fazia presente pelos gestos e atitudes. A casa existia
em suas memórias e se tornava presente, visível em suas ações.
A pesquisa de campo se estendeu durante quase todo o período dos ensaios, só
que não mais em dupla; cada um começou a observar grupos variados que iam
encontrando no dia a dia. Eles deixaram de ser personagens invisíveis para nossos
olhos.
Ensaios em sala, criando as cenas
Na sala de ensaio, improvisávamos situações que apreendemos nas nossas
observações e, em nenhum momento, tínhamos a pretensão de reconstruir cenas
vistas na rua. Usávamos situações como escolher lugar para dormir; se proteger
do frio da noite, dividir o pão, querer para si o que o outro possui, estratégias para
se apropriar do que pertence ao outro e outras tantas que observamos.
Como método de criação do espetáculo, optamos trabalhar com improvisações
que consistiam em criar as situações que iria compor as cenas com o mínimo de
combinado sobre o que iria acontecer, denindo apenas as circunstâncias em que
as personagens se encontravam, criando as ações no ato das suas execuções a
partir das nossas experiências adquiridas nas observações.
Stanislavski, em um dos seus últimos estudos, denominado Das Ações Físicas à
Imagem Viva
6
, através da sua personagem Tortsov, propõe a seus alunos realizar
a montagem de um espetáculo utilizando da improvisação em detrimento da
análise minuciosa das situações e dos personagens que compõem a peça.
Esse também foi o combinado feito com a direção do nosso futuro espetáculo
e logo aceito, uma vez que todos os envolvidos no processo tinham grande
experiência em criar trabalhos a partir da improvisação, ou trabalhar em cena
apenas com roteiros de ações, sem necessariamente possuir um texto dramático.
Para as improvisações, adaptamos o exercício n° 12, proposto por Michael
Chekhov e descrito em seu livro Para o Ator, que consiste em estabelecer um
momento inicial e um momento nal de uma improvisação. O ator, após executar
6. Publicado no livro A Criação de um Papel.
138 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
a primeira ação, segue improvisando até a execução do último momento. Chekhov
(1986, p. 41) sugere que o ator não tente prever o que irá fazer entre esses dois
momentos: “Dena apenas o estado de espírito ou os sentimentos nesse início e
nesse nal.
Após a improvisação, escolhíamos os momentos que melhor contribuíam para
contar a história que estávamos criando e os adotávamos como pontos xos.
Voltávamos a improvisar entre o primeiro momento e o nal, dessa vez tendo que
passar pelos pontos xos, improvisando entre uns e outros. A cada improvisação,
mais pontos xos eram adicionados e repetíamos esse processo até a conclusão
da cena. Em seguida, o registro da improvisação era feito pelos pontos xos e
não pelo que acontecia entre eles. Esse processo acabou denindo a forma nal
do espetáculo. Em cena improvisamos, criamos novas situações, mas jamais
deixamos de passar por um ponto xo. Tal procedimento garante a unidade do
trabalho nal.
As cenas criadas dentro do processo de montagem, quando repetidas, nem
sempre provocavam o Riso. Acreditava que o motivo era o fato de todos já
conhecerem as cenas, daí ela perder o seu impacto inicial. Essa resposta não me
satisfazia: intuía que algo faltava quando as cenas eram repetidas. Perguntava-
me: como manter na cena repetida a sua força de origem?
Freud faz uma armação, que tomo como advertência e como indicador de
caminho a ser considerado para alcançar êxito com o intuito de provocar o prazer
cômico na platéia:
O cômico aparece, em primeira instância, como
involuntária descoberta, derivada das relações sociais
humanas. É constatado nas pessoas – em seus movimentos,
formas, atitudes e traços de caráter, originalmente, com
toda probabilidade, apenas em suas características físicas,
mas, depois, também nas mentais ou naquilo em que estas
possam se manifestar (FREUD, 1996, p. 178).
As palavras “involuntária descoberta dentro dessa armação indicam uma
possibilidade de formulação de um princípio a ser considerado no trabalho do
ator que pretende obter êxito em despertar o prazer cômico na platéia. O foco
durante uma atuação não pode estar voltado para o ponto onde estaria o motivo
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 139
do cômico, a platéia tem que percebê-lo por si de forma inadvertida, como uma
conseqüência das ações que o ator criou em função das intenções da personagem.
A atuação, portanto, não pode ter como m um resultado especíco, como
adverte Stanislavski:
O erro cometido pela maioria dos atores é o de pensar no
resultado, em vez de apenas na ação que deve preparar.
Evitando ação e visando diretamente o resultado, temos um
produto forçado que pode levar a canastronice. Evitem
fazer força atrás do resultado. Atuem com sinceridade,
plenitude e integridade de propósitos. Podem desenvolver
esse tipo de ação escolhendo objetivos cheios de vida
(STANISLAVSKI, 1984, p. 143).
A partir desses princípios citados por Freud e por Stanislavski, pudemos estabelecer
uma conduta fundamental dentro do nosso trabalho: evitar reproduzir o que foi
feito no dia anterior. Cada dia é literalmente um novo dia impossível querer
repetir o sucesso alcançado na última noite. Durante a execução do espetáculo,
portanto, a atenção tem que ser voltada para as ações, intenções e objetivos das
personagens. Quando se pensa a partir da lógica das ações estabelecidas, evita-
se o equívoco de pensar no que foi feito e tentar reproduzi-lo. A forma como as
ações foram executadas passa a ser conseqüência da necessidade da narrativa,
no momento exato da sua execução. Basta que o ator se deixe levar, antes de
agir, pelo impulso que o leva à ação. Esse impulso, que se mostra em fração de
segundos, posto em dúvida ou suspensão, gera imediatamente um novo impulso,
se movido pela necessidade da ação.
O impulso é um dos últimos elementos denidos por Stanislavski. Sobre os
impulsos existem poucas elaborações feitas por ele, mas em suas armações
podemos perceber a importância que esse elemento ganhou dentro do seu
sistema:
Esses impulsos criadores são naturalmente seguidos de
outros que levam à ação. Mas impulso ainda não é ação. O
impulso é um ímpeto interior, um desejo ainda insatisfeito,
enquanto a ação propriamente dita é uma satisfação,
interior ou exterior, do desejo. O impulso pede a ação
interior, e a ação interior exige, eventualmente, a ação
exterior (STANISLAVSKI, 2003, p. 66).
140 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
O impulso seria um fenômeno que ocorre no ator, antecedendo a própria ação,
levando-o a agir por uma necessidade ou razão não necessariamente racional,
mas percebida e provocada pelas forças aglutinadas pelo impulso de agir. Um
impulso gera uma ação, que gera um novo impulso, que consequentemente
leva a outra ação. Assim temos uma seqüência de acontecimentos que vão
revelando a intenção da personagem, geradas pelos seus objetivos, contidos nas
circunstâncias propostas, que se relacionam pelas necessidades de se adaptar a
cada nova situação que se transformam em conseqüência das ações. O impulso se
torna assim o catalisador de todos os elementos do método. Ele é em si o ponto
de partida: ... o ponto principal não está na ação propriamente, mas na evocação
natural de impulsos para agir. (STANISLAVSKI, 2003, p. 268), e, como conseqüência,
o ponto de chegada. Renovando o impulso, as ações parecem surgir de forma
inesperada. Agindo assim, constatamos que os resultados da execução das ações
ganhavam um grau de autenticidade, até mesmo de espontaneidade, levando o
ator a “atuar com sinceridade, plenitude e integridade de propósitos (Idem).
Percebemos que, atuando a partir dos impulsos, o ator teria maior possibilidade
de alcançar o seu êxito cômico, evitando voltar a sua atenção para aspectos dos
procedimentos que provocam o Riso. Exatamente não querendo ser engraçado é
que ele tem mais possibilidade de sê-lo. O Riso é um efeito produzido pelo prazer
cômico, provocado por uma atuação convincente, espontânea e executada de
uma forma inadvertida.
Passamos então a adotar uma frase como lema, que repetíamos sempre antes da
nossa entrada em cena: Vamos ao encontro do inesperado!
Em um ensaio, um dos diretores pediu-me que improvisasse sobre o tema da
solidão e sugeriu uma situação de abandono. Sentei-me no meio da sala sobre
um pacote de jornal. A lembrança do abandono foi tomando conta de mim, até
o ponto em que nada fazia, nem uma ação ou gesto; apenas fui sendo tomado
por uma tristeza e uma apatia, que eu mesmo desconhecia, sem julgamento
ou pensamentos dirigidos. Fui me deixando ser tomado por impulsos que não
se traduziam em ações. Por mais que surgissem em mim desejos de sair dali,
fugir, correr, evitar a dor, me permitia ser tomado a cada momento por impulsos
diferentes, me sentia tomado por forças internas que dilatavam meu corpo de
dentro para fora. Essas forças eram concretas para mim, podia quase mensurar
suas potências. Por não se transformarem em ação, que provocasse o rompimento
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 141
daquela imobilidade aparente, os movimentos externos eram muito pequenos,
oscilavam entre um corpo dilatado e um esvaziar; nenhum deles alcançava sua
plenitude, apenas oscilavam entre um e outro de forma desigual, num tempo-
ritmo dilatado. O resultado foi uma sensação de vazio e incapacidade. Deixei
que aquele estado contaminasse tudo a minha volta. A sala de ensaio foi sendo
impregnada por uma atmosfera de angústia e desesperança, que levou todos ao
choro. Quando estava no extremo dessa solidão, a direção pediu que eu cantasse
uma música, a primeira que me viesse à memória. Normalmente sou péssimo
para cantar, por mais que me esforce. Num impulso comecei a cantar de forma
baixa e tímida. Ele ia pedindo mais volume na voz, eu obedecia, sem perder o
estado de abandono e solidão. No começo era triste a canção. À medida em que
a direção insistia e eu buscava, desesperadamente, forças para cantar, o ambiente
foi mudando de tal forma que quem assistia ao exercício teve crise de Riso. Quanto
mais cantava, mais eles riam. Era patética aquela imagem de um homem afogado
em tristeza e abandono, não tendo nem o consolo de sua própria voz. Aquela
imagem triste e desolada foi ganhando contornos cômicos e risíveis.
Podemos considerar que uma das espécies do cômico ocorreu nessa situação: o
ingênuo, gerado pelo fato de o ator cantar desconsiderando a sua incapacidade
para isso, o que criou uma situação de nonsense, uma vez que sua cantoria não
aliviava a dor da solidão e mesmo assim ele continuava a cantar cada vez mais
alto.
Para Freud, o ingênuo é uma grande fonte do cômico, algo que se constata e que
não é produzido
7
. O que a prática tem nos mostrado, no entanto, é que é possível
de produzi-lo, tendo em vista que essa espécie do cômico é muito utilizada nas
artes cênicas, principalmente se considerarmos a gura do palhaço e suas mais
innitas variações de tipos. Muitos artistas têm buscado formas para chegar à sua
produção.
Assim,
O ingênuo ocorre quando alguém desrespeita
completamente uma inibição, inexistente em si mesmo
portanto, quando parece vencê-la sem nenhum esforço...
Para reconhecer o ingênuo, devemos saber que a inibição
7. Nota do autor (FREUD, 1996, p. 172).
142 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
interna está ausente na pessoa produtora. Apenas
quando estamos certos disso é que nós rimos ao invés de
indignarmo-nos. Assim tomamos em consideração o estado
psíquico da pessoa produtora, e nos introduzimos nele,
tentando compreendê-lo por comparação com o nosso
próprio. Tais processos de empatia e comparação é que
resultam na economia da despesa, que descarregamos pelo
Riso (FREUD, 1996, p. 172/175).
Encontramos em nosso cotidiano várias ocorrências dessa espécie do cômico,
principalmente quando se convive com crianças: não raro suas perguntas ou
atitudes acabam gerando situações cômicas provenientes da total falta de
autocensura e do seu desconhecimento da inadequação do seu comportamento.
Em geral, denominamos o comportamento ingênuo como espontâneo, tanto nas
crianças quanto nos adultos que o realizam.
Para a utilização desse procedimento, é necessário que o ator tenha consciência
do material pessoal que ele manipula na criação da situação ou da sua personagem
– “O ingênuo ocorre quando alguém desrespeita completamente uma inibição”
pois a esse tipo não cabe autocensura ou reexões profundas sobre a sua
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 143
existência. Ele deve passar por todas as situações propostas, desconsiderando
a sua incapacidade de lidar com os problemas e os limites que a situação lhe
impõe: “Para reconhecer o ingênuo, devemos saber que a inibição interna está
ausente na pessoa produtora. O primeiro e grande obstáculo para o sucesso
desse recurso é a presença de autocrítica no ator que utiliza desse procedimento
na construção do personagem. A crítica racional pode gerar um desconforto no
ator, que será percebido pela platéia, pois a ... a vida no palco é mostrada dentro
de um ângulo reduzido, como na lente de uma câmara. As pessoas olham-na de
binóculos, como quem examina uma miniatura com uma lente de aumento. Por
isso nenhum detalhe escapa ao público nem o mais ínmo. (STANISLAVSKI, 1984,
p. 133). Agindo assim o ator estaria criando um ambiente desfavorável para o
Riso.
Para Freud, o nonsense e o absurdo são formas de manifestação do ingênuo,
por possuir um valor nulo de censura. São permitidos ao indivíduo que se mostra
ingênuo os comentários e as ações mais sem propósito (sem sentido ou absurdas),
realizados sem o mínimo esforço.
Na cena improvisada, quanto mais o ator aumentava o volume da voz, mais
aumentava o contraste entre o fato de cantar e o estado de tristeza gerada
pela solidão. As manutenções desses dois estados extremos teriam gerado a
justaposição simultânea, que tem como mecanismo revelar pensamentos válidos
em si mesmos, sendo que um anula o outro, quando colocados simultaneamente
(FREUD, 1996, p. 192) - nesse caso o pensamento estaria sendo traduzido pelos
impulsos, os que geraram a solidão justapostos aos que geraram o cantar com o
intuito de ser feliz.
Descobrimos nesse ensaio uma conduta a ser utilizada. Todas as cenas
deveriam ser precedidas pela instalação dos climas correspondentes e projetadas
para além do espaço da cena, como uma forma de comunhão. Segundo
Stanislavski (1984, p. 211) a comunhão é a capacidade de o ator se relacionar com
os outros elementos que compõem o espetáculo, atribuindo a essas relações o
mesmo sentido de verdade que ele estabelece com suas ações, de uma forma
contínua sem interrupção, como uma espécie de irradiação que contaminasse o
meio a sua volta com seus sentimentos e emoções.
Trabalhamos com “estado”, entendendo-o como sendo um conjunto de fatores
144 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
atuantes emocional, psicológica ou moralmente de um indivíduo em dado
momento, que inuenciam seu modo de encarar as situações e os acontecimentos,
como por exemplo, o da fome. O diretor pedia: “quero ver a fome nos olhos de
vocês, nas pernas, no respirar. Assim fazíamos com todos os estados e situações
propostos para as cenas.
Improvisamos novamente algumas situações procurando manter os
climas bem denidos. Muitas situações se tornaram cômicas pelo fato de serem
executadas em um clima instaurado de forma mais extrema, ou seja, com um
estado físico manifestado com alto grau de intensidade, o que tornava as ações
exageradas sem perder a verossimilhança com o universo pesquisado, deixando
mais clara a situação em que os nossos personagens se encontravam.
Freud (1996, p. 179) dene ainda o cômico do exagero, que seria a quantidade
de energia aplicada em dose superior ao necessário para realizar uma ação,
transformando esta ação em uma ação exagerada e uma das fontes geradoras
do Riso.
Um procedimento foi estabelecido durante as improvisações e mantido no
trabalho nal: todos os estados e situações a serem utilizados em cena deveriam
ser construídos aos olhos do público, ou seja, a construção ocorria no tempo em
que a cena acontecia. Isto acabou estabelecendo uma dinâmica básica: um ator
agia enquanto o outro observava. Quando o primeiro concluía a ação, ele transferia
o foco para o segundo, que, então, reagia deixando claro o que a ação do outro
havia provocado nele e então partia para a ação. Todas as ações passavam a
ser antecedidas por uma reação explicitada sicamente, evitando criar estados
psicológicos nas personagens, os quais, por sua vez, podem comprometer
a energia psíquica da platéia, provocando nela envolvimento emocional, ou
racional, ou, ainda, a necessidade de entender a situação proposta. Percebemos
que agindo assim, não se deixava tempo para que a platéia criasse divagasse
sobre conseqüências das ações de uma personagem sobre a outra.
Quando o ator não está agindo, ele apenas sustenta o foco no que está com a
ação, deixando-se ser contaminado pelo que vê. Segundo o Método das Ações
Físicas, uma peça de teatro é composta de cenas; a cena, composta de unidades
de ação, e em uma unidade de ação encontra-se uma situação, ou seja, o todo
é feito por partes, mas nem todas as partes têm a mesma importância dentro
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 145
do todo. Para que o ator não transforme o seu trabalho em uma seqüência de
ações com a mesma intensidade, que levaria à monotonia, o método propõe a
utilização do círculo de atenção (STANISLAVSKI, 1984, p. 108).
O círculo de atenção pode ser comparado com o olhar humano, que tem a
capacidade de abranger até 180° no seu campo de visão total e reduzir a ângulos
pequenos para obter detalhes de uma paisagem (KUSNET, 1992, p. 49). O círculo de
atenção pode ser aplicado também às ações da personagem, conduzindo o foco
para detalhes do seu comportamento, destacando características que ajudam a
platéia a conhecer seu personagem. Expandindo também por toda a circunstância
proposta, ou apenas direcionando a atenção para um detalhe, esse elemento do
método traz ao trabalho do ator possibilidade de dinâmicas e o ajuda a chamar
a atenção para aspectos da personalidade do seu personagem que ele considere
importantes, bem como conduzir a atenção da platéia para detalhes externos à
sua personagem, elementos do cenário ou ações do parceiro de cena.
A manipulação feita através do círculo de atenção pode ser muito valiosa
para estabelecer com a platéia parâmetros de comparação. A utilização de
procedimentos como a caricatura, empréstimo cômico, personicação, formas
corporais e traços faciais, são exemplos de procedimentos usados para fazer surgir
o prazer cômico, que exigem a utilização do círculo de atenção, além de ajudar o
ator a desenvolver sua concentração.
Na encenação de Bagulhar, para o ator tomar qualquer atitude é necessário
que o foco esteja nele, e, portanto, que ele não possa subtrair o foco do outro: o
foco deve sempre ser transferido. Caso o ator que está no estado de observador
da ação sinta um impulso, uma vontade para agir simultaneamente à ação do
outro, ele deve se conter, sem esconder a sua necessidade, mas sem criar ação
especíca, apenas deixar-se ser contaminado pelo que acontece com ele. Antes
de agir, o ator deve sempre reagir ao que acaba de acontecer.
A reação passou a ser outro elemento fundamental na construção do cômico.
Percebemos que ela é tão reveladora quanto a ação. Entendendo reação como
uma resposta a uma ação anterior, ela nem sempre se caracteriza como uma ação
de início, meio e m. Ela pode muitas vezes ocorrer apenas como estímulo para
uma nova ação. As cenas improvisadas passaram a ser registradas considerando
as ações e as reações.
146 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Um exemplo pode ser elucidativo para entender o trabalho feito com ação
e reação utilizando os impulsos. Vou usar uma cena improvisada durante os
exercícios preparatórios para a montagem de Bagulhar, realizada com máscaras
neutras. Essa cena não entrou no roteiro nal da peça.
Uma personagem entra em cena para pegar um objeto escondido que não
lhe pertence. Ao perceber que entrou alguém no ambiente, ela vai colocá-lo de
volta onde estava, mas o objeto cai no chão cando em evidência entre ela e a
personagem que acabara de entrar. A primeira reage como se não tivesse nada a
ver com a situação, tentando não levantar suspeita, mas o objeto caído denunciava
a sua ação anterior. A segunda que entrou olha para ambos. O primeiro ator toma
a atitude de quem vai abaixar e pegar o objeto, mas interrompe a ação e olha
para o outro (levantando os ombros e abrindo um pouco os antebraços de forma
lenta). O segundo repete a ação anterior de olhar para o objeto e volta a olhar para
ele, agora de forma a expressar indignação diante do que vê (esticando o pescoço
para frente e dilatando os ombros). A ação do segundo ator será a de repetir os
mesmos gestos toda vez que o foco voltar para ele, ampliando gradativamente
a cada repetição. O primeiro reage revelando que ele não tem nada a ver com
aquilo (erguendo novamente os ombros, esticando o pescoço para frente e
movimentando a cabeça de um lado para outro de forma negativa). Quando olha
para o outro ator, este repete o mesmo gesto com um pouco mais de intensidade.
O primeiro volta a olhar para o objeto e reage com total surpresa, como quem o
pela primeira vez (levando uma das mãos ao peito e recuando o tronco para
trás), e olha para o segundo reagindo sicamente como quem pergunta – O que
é isso? (retira a mão do peito, deixando o tronco recuado, abrindo os antebraços
simultaneamente um para cada lado). Essa seqüência se repetiu várias vezes,
sendo que a cada repetição as pequenas ações iam sendo reduzidas até chegar
apenas aos impulsos dos quais se originaram. As várias repetições acabaram
revelando a total inabilidade da primeira personagem para lidar com a situação.
Cada tentativa do primeiro de agir para consertar o seu erro apenas complicava a
sua situação, cando clara a sua vontade de sair dali o mais rápido possível.
O resultado foi uma situação cômica, gerada pela capacidade dos atores de lidar
com as ações e reações. O problema apresentado à primeira personagem poderia
ser resolvido com os gestos cotidianos de abaixar, pegar, devolver e sair. Como
essas ações nunca ocorriam, cava sempre evidente a primeira intenção, que era
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 147
a de disfarçar, de mostrar que ele não tinha nada a ver com o ocorrido. Todas as
reações foram executadas de forma dilatada no tempo e no espaço, devido ao uso
de máscaras neutras. A dilatação era necessária para que pudesse ser percebida a
intenção dos atores.
O comportamento cômico utilizado nessa cena foi a sobreposição. A intenção
inicial da personagem era pegar o que não lhe pertencia, mas, ao ser agrado, a
sua intenção passou a ser negar o que havia feito. Diante de qualquer ação que
viesse a ter, ele sobrepunha o medo de se comprometer, de estar se incriminando.
Como não conseguia agir de forma a por um m no agrante, cada impulso de
agir era sobreposto pelo seu objetivo mais profundo, o de não estar ali, o de nunca
ter passado por aquilo.
Passamos a considerar como uma característica que diferencia uma atuação
cômica de uma não cômica a demonstração das reações da personagem
independentemente da sua natureza física, mental ou emocional. Constatamos
que, quando um ator se apropriava da sua reação, considerando o tempo que
ela necessita para ocorrer, antecedendo a sua próxima ação, a cena ganhava uma
clareza maior, facilitando, para a platéia, o exercício de comparar ao que assiste
com a sua experiência pessoal. Consideramos então a estrutura composta de
ação – reação – ação como apropriada para provocar o surgimento do Riso como
efeito do cômico. Considerando ainda que o tempo de uma reação pode ser
instantâneo ou dilatado sem necessariamente se caracterizar como ação, a reação
se daria no âmbito dos impulsos. A forma de manipular os impulsos deniriam
também o tempo-ritmo das ações. Stanislavski (1994, p. 220) considera a utilização
do tempo-ritmo como forma de revelar características nas ações.
O ritmo seria para Stanislavski um elemento essencial para a utilização do seu
Sistema. Para ele cada emoção, cada ação tem um ritmo próprio e característico,
até mesmo quando o ator se encontra parado em cena ele está sob a inuência
do tempo-ritmo “O ritmo é inerente ao ator e se manifesta quando ele está em
cena, quer nas suas ações, quer imóvel; quando fala ou quando está calado”
(STANISLAVSKI, 1994, p. 259). O ator inuenciado pelo tempo-ritmo de suas
ações é capaz de afetar-se por ele e afetar os outros. O ritmo inuencia o próprio
espetáculo e a platéia, podendo se tornar um grande aliado “O tempo-ritmo
geral de uma produção dramática habitualmente cria-se a si mesmo por acidente,
espontaneamente. Se o ator por algum motivo, tem o justo senso da peça e
148 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
do papel, se está em boa forma, e o público reage bem, nesse caso ele viverá
seu papel do modo certo e o tempo-ritmo, se adequado, se estabelecerá por si
próprio (Idem, p. 237). A utilização do ritmo exige a consciência do ator do que
ele está usando em cena ou no seu processo de criação. Pelo ritmo, ele pode ser
estimulado a despertar suas emoções construindo a atmosfera necessária para o
acontecimento do seu desempenho.
Uma pergunta inevitável: existe um ritmo adequado para um desempenho
cômico? Se cada ação tem um ritmo característico, a ação cômica teria o seu ritmo
próprio? - O senso comum indica que a comédia possui um tempo característico,
que seria mais acelerado que o tempo de uma atuação não cômica. Pela nossa
experiência, sou levado a pensar não em um ritmo, mas em vários ritmos cômicos
que, necessariamente, não estariam ligados a um andamento acelerado. Acredito
que “O tempo-ritmo geral de uma produção dramática habitualmente cria-se a si
mesmo (STANISLAVSKI, 1994, p. 237) pela sua própria necessidade, independente
de ser cômico ou não cômico. Não existe uma fórmula, como não existe uma
fórmula para se fazer arte.
A Construção das Personagens
Nem tanto, nem tão pouco, a medida do necessário.
Começamos o processo de montagem acreditando levar à cena o espetáculo
construído para ser executado com os nossos palhaços Zambelê e Lajota
8
. As
exigências da montagem nos levaram a construir duas novas personagens, Ogro
e Micóbrio. Essa mudança em um primeiro momento não aconteceu de forma
racional, chegando a causar choque entre as lógicas dos nossos palhaços e o que
era necessário construir em função das novas personagens.
Luiz Otávio Burnier, arma:
O clown é a exposição do ridículo e das fraquezas de
cada um. Logo, ele é um tipo pessoal e único. Uma pessoa
pode ter tendências para o clown branco ou o clown
augusto, dependendo de sua personalidade. O clown não
representa, ele é - o que faz lembrar os bobos e os bufões
8. Zambelê é o meu palhaço, com qual trabalho desde 1991, e Lajota é o palhaço do Elison, que teve
origem em uma ocina em 2003, na qual foi meu aluno e de João Porto Dias.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 149
da Idade Média. Não se trata de um personagem, ou seja,
uma entidade externa a nós, mas da ampliação e dilatação
dos aspectos ingênuos, puros e humanos (como nos clods
9
)
portanto estúpidos”, de nosso próprio ser. François Fratellini,
membro de tradicional família de clowns europeus, dizia:
“No teatro os comediantes fazem de conta. Nós, os clowns,
fazemos as coisas de verdade (BURNIER, 2001, p. 209).
Considerando que o palhaço é um tipo pessoal, cava difícil construir sobre ele
um outro tipo, mantivemos apenas as tendências pessoais, no caso a tendência
minha em ser um palhaço augusto e a do Elison em ser palhaço branco, conhecidas
pelas nossas experiências em montagens anteriores.
O universo que escolhemos para servir de referência na construção da nossa
obra não suportava os nossos palhaços - era como tentar calçar uma luva
pequena em uma mão muito grande. Estávamos criando as personagens a partir
da nossa imaginação, caindo na armadilha da qual queríamos fugir inicialmente.
Não bastava a boa intenção de trabalhar as situações a partir da realidade dos
moradores de rua, era preciso assumir aquela realidade também em nossos
corpos, em nossas ações.
Foi então que passamos a trabalhar sobre os novos personagens Ogro e Micóbrio.
Tendo como base as nossas experiências com nossos palhaços, sabíamos que
eles não seriam criados a partir de construções psicológicas. Partiríamos para
construí-los junto com as cenas, improvisando as situações e os nossos novos
personagens.
Tínhamos consciência de que as nossas personagens, mesmo sendo tipos,
teriam que ser convincentes em suas ações, não poderiam ser uma caricatura
rasa daqueles homens que havíamos observado na rua. Os elementos do sistema
denidos por Stanislavski procuram fornecer ferramentas para que o ator seja
treinado em ser capaz de desempenhar seu papel de forma a convencer a platéia
da existência da “vida da sua personagem
10
. Seu sistema não se restringe a um
estilo ou outro de encenação e nem discrimina nenhum gênero. O que ele prioriza
é a construção de uma consciência artística, criada a partir de um senso estético
9. Segundo o dicionário Password: signica torrão de terra. Nessa citação tem o sentido de rude. Esse
termo foi usado para denir homens que trabalhavam a terra, razão pela qual alguns estudiosos argu-
mentam vir daí a origem da palavra clown.
10. Expressão denida pelo próprio Stanislavski.
150 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
(KUSNET, 1992, p. XV).
Em seu sistema, Stanislavski propõe um treinamento que leve o ator a trabalhar
integrado com corpo-mente orgânico
11
, que se traduz na capacidade do corpo
do ator de responder às exigências feitas pela mente, levando o ator a ser capaz de
representar a “condição humana mais simples e normal”, que Stanislavski dene
como sendo a condição básica para apresentar em cena uma personagem com o
mínimo de qualidade de convencimento (BARBA, 1995, p. 150).
Para Stanislavski, o ator perde esta condição comum da vida cotidiana
quando sobe ao palco e se expõe ao olhar da platéia. Como manter em cena a
espontaneidade da ação? E uma vez adquirida essa qualidade pelo ator, como
mantê-la durante as apresentações de uma temporada? Foram essas as questões
primordiais que nortearam a sua pesquisa durante toda a sua carreira de ator,
diretor e pesquisador. E eram com essas questões que estávamos nos deparando
naquele momento.
Segundo Stanislavski (1984, p. 197), quando se vive uma realidade criada a
partir de uma obra, a realidade criada pela obra não é necessariamente real, mas
deve ser vivida como tal. Para tanto, o ator deve seguir algumas condições que
regem a vida humana no contexto em que ela está inserida. Diante disso, o ator
transforma-se em um observador ativo da realidade que o cerca, um pesquisador
do comportamento humano.
Desse modo, poderíamos concluir que tão importante tanto quanto denir a
obra a ser encenada, é conhecer a realidade sobre a qual o autor criou a sua obra
e denir qual o enfoque a ser dado para a montagem da obra nos dias atuais. O
recorte da atualidade será usado como referência para a encenação. O artista deve
buscar aprofundar o seu olhar sobre a obra a ser montada a partir da realidade que
o cerca, não para imitá-la ou reproduzi-la, mas para criar de forma convincente e
poética a sua encenação, atualizando assim a obra a ser montada.
Segundo Aristóteles (1995, p. 28), A obra do poeta não consiste em contar o que
aconteceu, mas sim coisas que podiam ter acontecido, possíveis do ponto de vista
da verossimilhança ou da necessidade. Dentro dessa perspectiva aristotélica, a
verossimilhança não pode ser entendida como a imitação da vida, mas como um
elo que une a realidade do fato acontecido à realidade do fato representado, a
11. Termo usado por Franco Runi no artigo Sistema de Stanislavski, publicado em A Arte Secreta do
Ator (1995).
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 151
representação do fato em si (acontecimento teatral). No teatro a verossimilhança
pode ser entendida como o que torna uma ação representada crível, algo
logicamente possível, que estaria contido nas ações ou inserido entre elas.
A realidade do universo que cerca o ator seria a base de referência para ele recriar
uma personagem, dando a ela credibilidade e tornando-a verossímil, fazendo-a
parecer verdadeira, possível ou provável de existir por não contrariar a verdade
plausível.
Hilary Chaplain, atriz cômica americana, em uma ocina ministrada em
Brasília durante o Festival de Palhaços, realizado pelo SESC em maio de 2007,
sempre questionava quando realizávamos ações, em cena, que destoavam do
comportamento humano: “Onde está a verossimilhança desse comportamento?
O que me leva a acreditar que isso que você faz é verdadeiro?”
Para Hilary
Chaplain a comicidade consiste em ações que verdadeiramente revelam o
comportamento humano, principalmente quando esse se encontra em situações-
limite, não pela crueldade da situação, mas pela limitação do homem diante
da situação em que ele se encontra. “Engraçado é o comportamento do ser
humano... quando se encontra em situação- limite.
A saber, a situação deve ser
entendida como momento de emoção ou interesse dramático que concorre para
um desfecho, consequentemente esse momento deve ser vivenciado até o limite
de suas extensões, podendo gerar uma nova situação ou apenas romper com a
existente.
Tendo vivenciado a sua ocina, me permito armar que todos os momentos
cômicos criados pelos atores eram momentos de extrema verdade. Víamos
o ator tomando para si as ações do seu personagem como se fossem suas,
desempenhando com “verdade” as situações propostas pela cena.
Na criação das personagens de Bagulhar, passamos a trabalhar para que todas
as ações realizadas em cena fossem do tamanho da verdade, considerando a
delidade da representação que cada ator conseguia alcançar e tendo como
modelo os fatos ou eventos observados na pesquisa de campo. Segundo
Stanislavski (1984, p. 154) “Precisamos da verdade no teatro até o ponto em que
podemos acreditar nela.
A recriação das situações em Bagulhar sempre tinha como realidade referencial
o universo dos moradores de rua. Em nossas discussões, quando analisávamos
as cenas e as personagens, procurávamos não perder de vista o nosso objeto
152 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
de estudo. Quando revejo as cenas de Bagulhar, entendo as colocações feitas
pela Hilary Chaplain. Compreendo que, para a construção de uma obra cômica,
é necessário elegermos um aspecto da nossa realidade como referência para a
nossa obra, e, a partir dela, transgredir, ir além de como ela se mostra, ou apenas
conrmar a nossa condição humana expressa no que se mostra como real. A
obra se constrói tendo como referência um recorte da nossa realidade. Segundo
Tchekhov, Ao exigir do artista uma atitude consciente em relação ao seu trabalho,
você tem razão, mas confunde dois conceitos: a solução do problema e a colocação
correta do problema. Apenas o segundo é obrigatório para o artista.
A obra cômica, por mais que se mostre como uma brincadeira sobre o mundo
à nossa volta, deve valer como reinterpretação do universo no qual está inserida,
não apenas na forma, nos gurinos e no comportamento do ator, mas em toda
extensão da sua dramaturgia.
Referências bibliográficas
ARISTÓTELES. A Poética Clássica. Tradução de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix,
1995.
BARBA, Eugênio. SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator. São Paulo: Hucitec e
UNICAMP, 1995.
BURNIER, Luis Otávio. A Arte de Ator: Da Técnica à Representação. São Paulo:
UNICAMP, 2001.
CHEKHOV, Michael. Para o Ator. São Paulo: Martins Fontes, 1986.
FREUD, Sigmund. O Chiste e Sua Relação Com o Inconsciente. Rio de Janeiro:
Imago Editora, 1996.
LECOQ, Jacques. (Org.). Le Théâtre du geste. Tradução de Roberto Mallet. Paris:
Bordas, 1987. Disponível em: <http://grupotempo.wwwbr.com.br/tex_busca.
html>. Acessado em: 08 de janeiro de 2008.
STANISLAVSKI, Constantin. A Construção da Personagem. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1994.
______________, _________. A Criação de Um Papel. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003.
______________, _________. A Preparação do Ator. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1984.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 153
A Voz dos Criadores
B.A.G.U.L.H.A.R.
O que eu, Denis Camargo, co-diretor, posso falar do projeto Vagabundos,
Malandros e Outros Errantes que resultou no espetáculo Bagulhar?
Para começar, eu preciso falar que recebi um convite apaixonante do José
Regino para integrar o projeto, no qual ele deixava claro este que já se encontrava
em andamento e tinha data de conclusão. Depois de muito falar e citar as fontes
da pesquisa e as parcerias, eu não pude dizer não. Primeiro, porque o projeto
primava pela busca de um discurso e de uma estética voltados para os moradores
de rua, mas com apoio na linguagem dos palhaços. Segundo, percebi logo de
início a dimensão do problema que teríamos que enfrentar. Em terceiro lugar,
mesmo estando super ocupado com a minha carreira artística naquele momento,
resolvi aceitar o convite, porque vi que a pesquisa era uma mina que poderia dar
ouro, diamantes, esmeraldas, mesmo que para achá-los fosse necessário escavar
e escavar muito. Acreditava na superação, pois acreditava na força da equipe e
enxergava o terreno fértil no qual estávamos situados.
Na prática real do trabalho confesso que não foi nada fácil lidar com todos
os elementos acima citados e, tanto pior, tínhamos um tempo super curto
para chegarmos ao resultado cênico. Logo, propus aos atores irmos direto
para as improvisações e de utilizarmos somente o material que eles haviam
selecionado (plástico, jornais velhos, caixa de papelão, rede de dormir, etc.). Horas
de improvisações e interações, disputas de espaço, soberania (Força= poder),
exposição da fragilidade humana, desejos, miséria, sonhos, enm: um despertar
humano exposto em pedra bruta que precisava ser lapidada numa estética cênica.
Qualquer um poderia dizer que eu estava perdendo um tempo extraordinário
com tudo isso, mas precisava fazê-lo. Precisava também saber como eles criavam
juntos, como lidavam com o material criado, como reproduziam esse material,
como lidavam com a repetição e, principalmente, como lidavam com a intromissão
do olhar externo do diretor. O tempo que eu ganhava observando e aprendendo
com eles, eu perdia em relação ao tempo de exposição ao público - apresentação
do espetáculo em teatro.
Estava envolvido num projeto que tinha vários focos (textos, dissertação de
154 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
mestrado, referências cinematográcas, pesquisa de campo, etc.), com atores/
palhaços desfocados e focados, mas sabíamos que precisávamos chegar a um
consenso comum. O que fazer? Comecei a observar o jogo dos atores e tentei
ver, primeiramente, o que faltava. Notei que havia uma diferença entre as idades
e que isso fazia a maior diferença nas impressões do mundo exposta no jogo. E
mais, resolvido isso logo veio a ansiedade de obter um resultado e, depois, veio o
medo de falar de algo tão profundo - da miséria em todos os sentidos.
Como resolver tudo isso num processo colaborativo que buscava a construção
de uma dramaturgia própria? primeiro, comecei a cobrar a sinceridade no jogo
dos atores. Depois, solicitei que a lógica de algumas ações deveria ter o apoio e
alguns elementos do teatro do absurdo e, principalmente, na técnica do jogo de
palhaços. Anal, estava envolvido num projeto que teria como resultado o jogo
de dois palhaços.
Precisava de muita paciência e muito rendimento nos resultados e, diga-se de
passagem, em qualquer processo colaborativo esses dois fatores não são tão
ecientes assim e nem caminham de mãos dadas. Fazer um ator car 1 hora
sentado sobre uma pilha de jornais aguardando o companheiro chegar (entrar
em cena) para saber o que muda e quais os sentimentos e sensações despertam
nesse ator, não é fácil. Levantar o nível de atuação dos atores para ter o cuidado
do discurso não despencar de um dos lados para o outro também não é fácil.
Levantar dúvidas e receios e ter que retirar outras dúvidas e receios que aparecem
nos atores, aí sim eu digo que não é fácil.
O Processo Colaborativo costuma fazer isso com o grupo. O CAOS CRIATIVO cria
um caos nada colaborativo e fragiliza uma estrutura sólida e, se houver descuido,
essa fragilização poderá destruir algo que teve um princípio sólido e motivador.
Logo, re-olhar este princípio e re-motivar a equipe é algo que nos faz re-pensar e
re-apropriar a nossa função em cada parte do projeto.
E, claro, este projeto passou por cada etapa achegar ao nal sem saber o que o
público poderia achar do resultado da pesquisa exposta em forma de espetáculo.
Como diretor, tive que questionar o jogo pessoal de cada artista e sua visão de
mundo, pois ambos inuenciavam no resultado do jogo. As dores vieram e com
elas encontrei as dores de cada um no processo geral. Posso dizer que os próprios
atores trouxeram grandes apontamentos em forma de paliativos, que vieram para
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 155
sanar as nossas dores e esses apontamentos nos indicaram uma dramaturgia
humana e instigante. Reconhecer as nossas fragilidades e as fragilidades daqueles
personagens nos humanizou e isso fez com que os atores pudessem humanizá-
los. Eles imploravam como os seis personagens a procura de autor, de Pirandello,
zeram.
Quando propus de trabalharmos num improviso em que eles teriam que comer
algo como se estivessem num café-da-manhã. E os atores chegaram numa
estrutura de improviso em que o personagem Ogro (interpretado pelo ator Elison
Oliveira) tem um saco sujo de alimento para cheirar e tem que se alimentar
deste cheiro e se satisfaz. E o outro personagem Micóbrio, tira um pão velho do
meio de tanto saco plástico e, ao ser descoberto pelo companheiro, dele é exigido
que divida o pão. Posso dizer que, para mim, esta cena ganha o projeto. Ou
quando o Micóbrio resolve beber a cachaça do companheiro e, agrado, resolve
a situação com um banho vaporizado pela boca. Depois de tantas desavenças e
discórdias, em que eles se perdem em si mesmos, no nal, quando o Micróbio
se no mundo e não sai do lugar porque isso o aterroriza, percebe que o
companheiro retorna à cena e o convida a entrar sob a colcha quente aberta pelo
braço amigo, não lhe resta dúvida, ele vai e se deixa entrar. E, assim, os dois saem
de cena revelando a cumplicidade da dupla.
E nós zemos isso, ou melhor, estamos fazendo: estamos humanizando esses
dois mendigos e, assim, procurando ultrapassar os nossos próprios limites de
compreensão humana. É o que me prazer no projeto, o que ainda me faz chorar
e rir no trabalho com os atores e, mais, será sempre isso que irá me motivar.
Denis Camargo
Processo Bagulhar
Descoberta. Esta é a palavra com a qual sintetizo o processo de Bagulhar, dado
que vasculhamos, encontramos, desencontramos, descobrimos, redescobrimos e
bagulhamos os materiais com os quais levantamos o espetáculo. Tais características
referem-se, especialmente, à minha relação de cena com o meu parceiro José
Regino, em que percebi novas possibilidades dentro do nosso trabalho.
156 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Foi através das leituras de alguns livros que encontrei alguns personagens que
contribuíram para o processo de criação, tais como Lazarilho de Tormes, Dom
Quixote e Chaplin, os quais mostram a gura do andarilho, daquele que através
das desgraças cotidianas que perpassam a vida busca encontrar-se em um mundo
que, aparentemente, não foi feito para ele. Parecia, a meu entender, que na vida
o maior erro havia sido nascer, entretanto, percebi que a maior virtude desses
personagens era continuar vivendo. Daí a necessidade de procurar, andar, pegar a
estrada. A mesma perspectiva apareceu no trabalho de campo, quando observei
os moradores de rua, bem como nos vídeos a que assisti. Nessas observações, o
que era cotidiano e até mesmo indiferente, por eu sempre encontrar essas pessoas
nas ruas, rodoviárias, portas de prédios, tornou-se mais perceptível, analítico e
menos paternalista.
Primeiramente, foi necessário amenizar o olhar burguês que pairava no início
do trabalho e perceber que as pessoas que eu analisava não eram somente seres
humanos desamparados, fracos, a merda vida, mas sujeitos que possuíam força
e que, por detrás daqueles corpos sujos e com roupas esfarrapadas, fomentava
um espírito humano. Descobrir esses valores no outro e, por alguns momentos,
despir-me dos meus foi fator preponderante no processo. Na verdade, os próprios
corpos e roupas sujas foram valores agregados na construção das personagens,
visto que neste ambiente analisado tudo tem o seu valor: uma migalha de pão é
guardada e preservada como o segredo de um cofre.
No que concerne à cena, tudo foi como posar nu em um centro comercial, pois
pouco a pouco fui destituído das minhas seguranças, referências, para assim
propiciar um novo material. No inicio das improvisações, o José Regino e eu
tínhamos materiais provenientes de outros trabalhos e, quando jogávamos
em cena, era nítido que estávamos ainda no confortável, naquilo que dávamos
conta. A própria compreensão do trabalho do outro – digo isto da minha parte
estava estatizada. Foram as provocações vindas da direção que propiciaram um
desnudamento das formas e a construção de uma nova relação. Desrespeitamos-
nos! O desrespeito contribuiu para que um visse os pontos fortes e fracos do outro,
resolvendo-os assim em cena. Não falo de um desrespeito negativo, mas daquele
que retirou as barreiras cotidianas entre nós, como idade, experiência, conceitos,
perspectiva de vida, formas de jogar. A cada improvisação, percebi que saíamos da
relação dual de palhaço branco e augusto, para aprofundarmos na mesma coisa,
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 157
porém exaltando as contradições existentes nos personagens. Tal característica foi
conrmada quando estreamos o espetáculo, Marília Abreu, atriz do grupo Roupa
de Ensaio me disse: “Elison gostei muito de Bagulhar. Achei o espetáculo muito
bom, principalmente, porque vi coisas diferentes no seu trabalho e no do . Tal
armação foi repetida por várias pessoas que me encontravam e comentavam
sobre o trabalho.
Todavia, não exponho que tenha sido um sair de mim, deixando meu repertório
ou reiventando-me para entrar em um outro corpo, uma outra forma. Mas sim,
que foi um processo em que a permissão de descobrir algo novo no meu trabalho
fez a diferença. Seria como desnudar-se: você retira partes conhecidas, mostra
partes possivelmente desconhecidas e encontra outras novas, que através de
você mesmo.
Por m, se é que tem um m, o processo de montagem do espetáculo Bagulhar
foi inovador para mim e continua sendo nas diversas apresentações que fazemos,
tendo também no retorno do público esse diferencial renovador.
Elison Oliveira Franco
Porque Bagulhar é descobrir
Das maiores provocações técnicas e porque não dizer losócas que Bagulhar
trouxe durante o seu levante, eu identico a dúvida. Como lidamos com a dúvida?
Pensei comigo mesma, território terrível, instável e inseguro. Repliquei comigo
mesma, mas pode ser potencialmente criativo e motivador também! Argumentei
comigo mesma, as certezas podem engessar os ímpetos! Mas acabei refutando
meu argumento, a dúvida na comédia é caótica, gera tensão, gera medo... E acabei
concordando comigo.
Enquanto Denis e eu estivemos por perto (porque Bagulhar, como os números
de palhaços, é de propriedade, responsabilidade e mérito dos intérpretes ou
jogadores) pudemos ver proposições nossas e dos meninos funcionarem e
falharem. Tiros certos viraram bolas fora e vice-versa. Até aí normal, mas o porquê
da oscilação... Isto gerava dúvidas sempre e olha que estamos falando de dois
158 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
grandes jogadores cômicos e palhaços, José Regino (um dos meus mestres) e
Elison (um branco gigante!).
Esta instabilidade, que no início doía, foi crucial para os queridos eternos processos
de busca do cômico de cada um de nós. Foi, e ainda é, preciso compreender
melhor estas oscilações inevitáveis e acalmar as dúvidas. Foi, e ainda é, preciso
aprimorar um estado de convicção, prazer, verdade e segurança (com vertigem!)
que a comédia pede para provocar o estrondo do seu triunfo. E o triunfo vem de
um modo mais livre e leve de tratar, principalmente a si mesmo no jogo.
Ser olheiro (diretor para quem gosta...) de um trabalho como este é ajudar a
encontrar um lugar incomum de riso, crítica e comoção entre a cção, a poesia
e a verdade livre dos palhaços. É puramente ajudar a elucidar um repertório de
lógicas, situações e possibilidades para os jogadores. E, principalmente, ajudar a
forjar a almejada segurança! O estado de graça! Sim, porque um jogador cômico
precisa acreditar além da cênica! Ele precisa crer e conferir. Conferir e testar.
Testar e vericar se funciona. E se não funcionar a seu único e exclusivo contento
(e a medida é o impacto e o riso ou o temeroso silêncio do público...), não
adianta insistir em marcações teatrais de direção! (por isso prero olheiros para
palhaços).
sei que a última vez que vi Bagulhar, eles eram os donos absolutos do
jogo. Do jeito que deve ser. Transitavam neste local privilegiado dos comediantes,
em que bolas fora quase sempre viram tiro certo e se não viraram hoje, virarão
amanhã. Sem dor, sem a autocobrança que imobiliza o jogo e com algumas
duvidazinhas de nada, pra motivar o frescor. Como diria minha lha Ana Terra,
que conhece como ninguém meus fracassos, meus medos e meus triunfos na
comédia – “Ansiosa até vai, mãe, mas temerosa nunca!” Agradeço aos parceiros
impagáveis por mais este aprendizado.
Ana Flávia Garcia
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 159
Espetáculo: Bagulhar
Resumo da Peça
Um roteiro de situações
Bagulhar conta a história de Ogro e Micóbrio, dois moradores de rua que se
vêem na condição de dividir o mesmo espaço. Em uma noite fria, Ogro procura
um local para dormir, encontra-o, coloca nele os seus pertences e se prepara para
dormir, quando é interrompido pela entrada do Micóbrio, que vem com a cabeça
enada dentro de um saco, remexendo seus bagulhos e cantando e avança até
esbarrar com o Ogro, que, irritado, aponta para ele um caminho a ser seguido,
expulsando-o dali.
Tudo que ele não quer naquela noite de frio, quando já está prestes a se deitar, é
confusão na sua vida. Micóbrio exibe para Ogro as suas conquistas de um dia de
trabalho, coisas que ele bagulhou no lixão. Entre os pertences de Micóbrio uma
manta velha e puída desperta o desejo de Ogro, que início a uma série de
estratégias para tomar a manta para si.
O que ele acaba conseguindo, quando, em troca da manta, consente que
160 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Micóbrio durma ali perto dele. Ao se preparar para deitar, Micóbrio percebe que
Ogro dorme sono profundo agasalhado em sua manta, o que desperta nele o
desejo de ter a sua manta de volta. A partir daí começa uma seqüência de disputas
da manta, que tem m quando Ogro uma surra em Micóbrio, deixando-o
desacordado.
Na manhã seguinte, iniciam as rotinas individuais de se preparar para o dia que
começa. Micróbio deixa transparecer sua admiração por Ogro, que é forte e possui
coisas que ele não possui. Após banhos improvisados, tomam o café da manhã.
Ogro, insistindo que Micóbrio nunca aprende o que ele ensina, devora quase toda
a comida dele, ensinando que ele tem que aprender a dividir. Arrumados, café da
manhã tomado, saem para mais um dia de trabalho.
Vão para o ponto onde pedem esmola. Aqui, os dois revelam as diversas
estratégias que usam para arrancar dinheiro dos que passam. Eles se transformam
em decientes, amputados, garotos desprotegidos, políticos, pastores de igreja,
chegando aos artistas de rua, tudo para arrancar da platéia suas esmolas de todo
o dia.
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 161
Fim de dia, m de trabalho, volta para “casa”. Ao voltarem para o lugar da rua
de onde tinham saído, eles iniciam uma conversa, em que avaliam as estratégias
usadas para levantar grana, tudo regado a muita cachaça. Nessa seqüência é
revelada ao público a relação de dependência, amor e ódio que acompanha a
vida dessas duas criaturas. Quando Ogro está bêbado, recolhe suas coisas e
resolve partir.
Micóbrio, mais bêbado que o outro, recolhe suas coisas para seguir com ele,
quando percebe que foi abandonado, em uma noite que se mostra mais fria do
que a noite anterior. Bêbado, abandonado e perdido, não lhe restam opções.
Para sua surpresa, Ogro retorna e o recolhe, levando-o sob a manta que antes era
apenas dele.
Lendo este resumo pode-se pensar que não haja nada que indique ser um
roteiro de comédia; muito ao contrário, é mais fácil a um desavisado levá-lo a cena
162 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
como um drama. Aqui me remeto novamente a Stanislavski, quando ele se refere
ao que diferencia uma atuação cômica de uma não cômica. A diferença estaria na
forma como o ator se relaciona com as circunstâncias que envolvem as ações da
personagem que ele está interpretando (1984, p. 172). O que, em última instância,
deixa a possibilidade da denição na mão do ator, pois a ele pertence à cena.
Ficha Técnica
Em cena
Elison Oliveira e José Regino
Direção
Denis Camargo e Ana Flávia Garcia
Figurinos
Laura Cavalheiro e José Regino
Luz e som
Pedro Gabriel
Fotos
Thiago Sabino
Duração
80 min.
Realização
Celeiro das Antas
Currículo
Temporada de 17 agosto a 3 de setembro de 2006 (Teatro Goldoni, Brasília-DF);
Prêmio Funarte Petrobrás de Estímulo ao Teatro (2006);
Linea Transversale, (Nova Lima-MG, 2006);
3° MOTEU (Mostra de Teatro Universitário) (Brasília-DF, 2007);
Anjos do Picadeiro (Bahia, 2007);
Primeiro Festival Internacional de Rua de Reggio Calabria (Itália, 2007);
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 163
Seminário Dramaturgia do Espaço Cênico (Universidade do Teatro Eurasiano em
Lamezia Terme, Itália, dirigido por Eugenio Barba, 2007);
FestClown (Festival Internacional de Palhaços) (Brasília-DF, 2008);
Palhaçadas em Geral (Belo Horizonte-MG, 2008);
Festival de Arte Cultura de Samambaia (2009);
2° Mostra Zezito de Circo (Brasília-DF, 2009).
164 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Críticas
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo | 165
166 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
entrelinhaseConcreto - teatro brasiliese contemporâneo | 167
Créditos
Página 8 – fotos de Tatiana Reis, Diego Bresani e Thiago Sabino
Fotos Teatro do Concreto
Página 57 – Tatiana Reis
Página 22 – Thiago Sabino e Francis Wilker
Página 27 – Alexandra Martins
Página 28 – Taís Peyneau, Thiago Sabino e Tatiana Reis
Página 33 – Francis Wilker
Página 42 – Tatiana Reis e Thiago Sabino
Páginas 45, 84 e 88 – Thiago Sabino
Página 55 – Guto Muniz
Página 85 – Andressa Anholete
Fotos Grupo de Teatro Celeiro das Antas
Páginas 130, 139 e 142 são de autoria de Carlos Reis.
Demais fotos autoria de Thiago Sabino
Fotos Companhia B de Teatro
Páginas 94, 109 e 122 autoria de Rodolfo Anconi
Páginas 93 e 107 autoria de Diego Bressani
Página 90 – fotos de ambos os fotógrafos
Nas páginas 86, 87, 127, 128, 166 e 167 são reproduzidas reportagens do jornal
Correio Braziliense, publicadas no Caderno de Cultura, ambas de autoria do jorna-
lista e crítico Sérgio Maggio - entre os anos de 2006 e 2007.
Página 126 – reprodução de crítica publicada no site do festival Riocenacontem-
porânea no ano de 2007.
168 | entrelinhaseConcreto - teatro brasiliense contemporâneo
Teatro do Concreto
Aline Seabra
Alonso Bento
Daniel Pitanga
Francis Wilker
Gleide Firmino
Hugo Cabral
Ivone Oliveira
Jhony Gomantos
Lisbeth Rios
Maria Carolina Machado
Organização Cultural Filhos do Beco
Diretor Presidente: Francis Wilker
Diretora Financeira: Ivone Oliveira
Diretora Administrativa: Micheli Santini
Micheli Santini
Nei Cirqueira
Robson Castro
Silvia Paes
Zizi Antunes
Coordenadora de Projetos: Juliana Veloso Sá
Secretário: Douglas Teixeira
Agradecimentos
Nossa gratidão a todas as pessoas, amigos, amores, familiares e instituições que, nesses
seis anos, nos ajudaram a fazer do Teatro um sonho Concreto.
José Perdiz, Sérgio Maggio, Guilherme Reis, Adriana Lodi, Fabíola Gontijo, Bárbara Tavares, Eduardo
Borém, Marco Pacheco, Marta Aguiar, Galdino Rebouças, Thiago Sabino, Geórgia Antony, Nayse
Hillesheim, Adalto Serra, Marcelo Augusto, Julio Mendes, Tatiana Reis, Augusto Brandão, Lucia
Andrade, João Paulo Souza, Rosanalha Martins, Valéria Cabral, Glauber Coradesqui, Ionara Silva,
Eduardo Dutra, Leone Cristina, Tiago Enoque, Tiche Vianna, Guilherme Bonfanti, Eliana Monteiro,
Leonardo Lessa, Chico Pelúcio, Joana Abreu, Luciana Lara, Julia Guedes, Fernando Villar, Rodrigo
Machado, Graça Veloso, Marconi Valadares, Júlia Gonzáles, Jonathan Andrade, Paulo Faria, Clarissa
Borges, André Luis Gomes, Sara Jore, André Amaro, Gustavo D’ Ávila, Aline Essenburg, Diego
Bressani, Lívia Frazão, Bruno Garcia, Renata Porto, Timotheo Porto, Larissa Cruz, Tanah Correa, Kiko
Barros, Leonardo Cinelli, Denis Camargo, Lina Frazão, Marks Almeida, Lorena Maria, Tiago Nery, Paola
Barcelos, Lucinaide Pinheiro, Tullio Guimarães, Gustavo Reinecken, Viviane Curado, Rosivalda Santos,
Luciana Amaral, Elvis Bittencurt, Celeste Silva, Edson Andrade, Marcelo Diaz, Luiza Guimarães, Núbia
Santana, Marley Oliveira, Neiva Cirqueira, Ana Cláudia, Teca Spera, Manoel Pina, Miguel Hernandez,
Murilo Grossi, Rita Castro, Nitza Tenenblat, Vera Artaxo, Mãe Dora de Oyá, Rafael Galvão, Grupo de
Teatro Casa Alheia, Estrupenda Trupe, Voar Teatro de Bonecos, Cedar’t, Centro de Ensino Médio 01 de
São Sebastião, Administrações Regionais de Planaltina e de São Sebastião, Galpão Cine Horto, Funarte,
Secretaria de Cultura do DF, Fundação Athos Bulcão, Departamento de Artes Cênicas da UNB, SESI DF,
Núcleo de Arte e Cultura – ESTEC, Companhia B de Teatro, Grupo de Teatro Celeiro das Antas, Festival
Nacional de Teatro de Macapá, Cooperativa Paulista de Teatro, SESC DF, SESC Santos e Faculdade de
Artes Dulcina de Moraes.
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