Download PDF
ads:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
A
NDRÉ LUIZ DA SILVA
Faces de Maria
catolicismo, conflito simbólico e identidade
Um estudo sobre a devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt na cidade de Ubatuba
São Paulo
2003
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
A
NDRÉ LUIZ DA SILVA
Faces de Maria
catolicismo, conflito simbólico e identidade
Um estudo sobre a devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt na cidade de Ubatuba
Dissertação apresentada à Banca Examinadora do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
da Religião da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para obtenção
do grau de Mestre em Ciências da Religião, sob a
orientação do professor Doutor Fernando Torres-
Londoño.
São Paulo
2003
ads:
A
NDRÉ LUIZ DA SILVA
Faces de Maria
catolicismo, conflito simbólico e identidade
Um estudo sobre a devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt na cidade de Ubatuba
Banca Examinadora:
São Paulo, ________________________
_________________________________
Fernando Torres Londoño (PUC-SP, orientador)
_________________________________
Josildeth Gomes Consorte (PUC-SP)
_________________________________
Carlos Alberto Steil (UFRGS)
Esta dissertação é para Maíra e Silvia Marcelino
que souberam me esperar
É para meus pais, Neide e Geraldo
que souberam me ensinar
À memória de Maria Aracy de Pádua Lopes da Silva
Que soube me iniciar na antropologia
e me ensinou o essencial da pesquisa científica
Agradecimentos
À FAPESP, primeiro pela bolsa de Iniciação Científica, sem a qual seria
impossível a formação necessária para o ingresso no mestrado. E, agora, pela bolsa de
Mestrado, cujo auxílio financeiro e pareceres técnicos foram indispensáveis para a
realização da investigação.
Às devotas de Nossa Senhora com quem conversei na cidade de Ubatuba. Sou
eternamente grato a todas vocês que me ensinaram a ter fé e me ensinaram o que é ser
devoto. Mesmo sem dizer os nomes recebam todas a minha gratidão pela hospitalidade,
pela paciência, pela franqueza e pela amizade de que fui merecedor. Sem a atenção que
dispensaram este trabalho dificilmente se concretizaria. Ao pároco que me atendeu e
autorizou a realização da pesquisa.
Ao José Rogério Lopes, amigo que me deu constante apoio e me auxiliou de
todas as formas possíveis. Foi ele quem me apresentou o material referente ao grupo de
devoção, incentivando-me a trabalhar com o mesmo. Acompanhou todo o
desenvolvimento da pesquisa e análise do material, contribuindo generosamente com
críticas e sugestões fundamentais. Agradeço a sua participação decisiva na realização deste
trabalho. Da mesma forma, agradeço-lhe a permissão para fazer parte do Núcleo
Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporânea (NIPPC) da Universidade de
Taubaté, ambiente profícuo de discussões desde os primeiros originais deste trabalho.
Ao Programa de Estudos Pós Graduados em Ciências da Religião da PUC-SP e à
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, funcionários, professores e colegas, por
todo o apoio.
Ao Fernando, orientador e amigo, por ter confiado na possibilidade deste
trabalho desde a nossa primeira conversa, por seu rigor e exigência, sensibilidade e
entusiasmo, e sua paciência, muitas vezes necessária. Sem contar todo o apoio nas horas
mais críticas do trabalho. Suas palavras foram fundamentais para seguirmos adiante.
Aos membros da banca do exame de qualificação: Maria José Rosado Nunes,
José Rogério Lopes e Fernando Torres-Londoño, pelas críticas e sugestões, estímulo
fundamental para empreender os trabalhos finais desta dissertação.
À Josildeth Gomes Consorte pelo interesse em meu trabalho e as contribuições
para o mesmo em suas aulas e em congressos que compartilhamos. Ao Régis Toledo,
amigo do NIPPC de Taubaté, pela leitura minuciosa de parte dos originais. À Vanessa
Batista companheira de uma etapa da pesquisa de campo na cidade de Ubatuba, minha
guia nos meus primeiros trabalhos de pesquisa no NIPPC. À Patrícia Chagas, amiga do
programa de Ciências da Religião e devota da Mãe Peregrina, pelas breves, mas ricas
conversas a respeito de meu trabalho (não vou nem mencionar as caronas). Ao Ênio , ao
Jung, à Denise e à Maria José pelas sugestões e incentivos em sala de aula ou em
congressos. À todos os amigos do NIPPC que de alguma forma contribuíram para este
trabalho. À Yolanda pela ajuda na revisão final do texto.
À Silvia, minha companheira, pelo apoio financeiro, emocional e técnico. Leitora
cuidadosa das primeiras versões dos capítulos e revisora das referências bibliográficas.
Muito obrigado por seu carinho, compreensão e bom-humor. À Maíra, minha filha, que
nasceu e vem crescendo junto desta dissertação. Obrigado por refazer minhas energias,
por sua alegria, sua paciência e seu carinho.
Aos meus pais e sogros que compreenderam a minha e às vezes a nossa ausência.
Também aos amigos que entenderam as minhas faltas em momentos importantes de suas
vidas, principalmente nos semanas finais da redação do trabalho.
Cristo, Nossa Senhora e os santos já não
aparecem como entes privilegiados eximidos de
qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e
plebeus, querem estar em intimidade com as
sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo
familiar, doméstico e próximo...
Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, p. 149.
O mundo não funciona apenas com crenças.
Mas dificilmente consegue funcionar sem elas.
Clifford Geertz, Nova luz sobre a Antropologia, p. 155.
Resumo
Este trabalho é uma pesquisa sobre as redes de devoção a Nossa Senhora de
Schoenstatt (Mãe Peregrina) na cidade de Ubatuba, litoral norte do estado de São
Paulo. Constata que naquela cidade essa devoção foi instituída por uma leiga e,
depois, o clero local criou uma devoção similar utilizando uma imagem do
Imaculado Coração de Maria. Entende-se que há, no caso, um conflito simbólico
entre o catolicismo clericalizado e o catolicismo popular. Realiza pesquisa de
campo e entrevistas abertas para a coleta de dados, por entender que religiosidade
clericalizada ou popular reflete-se na visão de mundo e na expressão dos
sentimentos da devotas e, também, porque este tipo de pesquisa pode informar
satisfatoriamente sobre as dicotomias entre a fé clerical e a popular. A interpretação
dos dados tem como referências a teoria da produção de consumo dos bens e
serviços simbólicos de Bourdieu, a idéia de empreendimento identitário de Agier,
bem como, a sugestão de Honneth de que os conflitos nascem a partir de interesses
criados pela busca simbólica de identidades morais individuais e coletivas. A
permanência do culto à Mãe Peregrina na cidade, mesmo sem a ajuda efetiva do
clero, significa que esse culto aciona mecanismos de reconhecimento moral e de
formação de identidades nos grupos de devotas. O trabalho contribui com a
discussão sobre as devoções no Brasil ao tentar interpretar as devoções marianas
no contexto da modernidade. Por ser um estudo de um fato excepcional de
“concorrência” entre uma devoção mariana de leigos e outra do clero, conclui-se
que seus resultados não devem ser generalizados. Porém, demonstra que está
presente no fenômeno características contemporâneas do culto mariano e do culto
aos santos de um modo geral. Sua conclusão principal é que a devoção à Mãe
Peregrina constitui um esforço no sentido de modernizar as crenças tradicionais de
suas devotas, oferecendo-lhes como parâmetro de veracidade a sanção dos
costumes tradicionais.
Palavras-chave: Devoção; Conflito simbólico; Catolicismo popular; Identidade;
Nossa Senhora de Schoenstatt; Antropologia social.
Abstract
This is a research on the devotion networks for the Our Lady of Schoenstatt
(Pilgrim Mother) in the town of Ubatuba, in the northern coast of the Brazilian
state of Sao Paulo. This case study finds out that in that town this devotion was
originally organized by a laywoman and later the local clergy established a similar
devotion adopting an image of the Immaculate Heart of Mary. It is recognized that
there is a kind of conflict between the clerical Catholicism and the popular one.
Field research and interviews were accomplished in order to collect data, believing
that the clerical and the popular faith are reflected on the way that the pious
women see the world and express their feelings, and also because this type of
research can provide a good insight on the struggle between the two faiths. The
analysis of the data adopts as a reference Bourdieu’s theory of the production of
symbolic goods and services, the Agier’s idea of identity build up, as much as on
Honneth’s suggestion that the origin of the conflicts is on the concerns raised by
the search for individual and collective moral identities. The endurance of the
worship to the Pilgrim Mother in the town, even without the support of the local
clergy, means that it triggers mechanisms of moral assurance and group
identification among the worshipers. The work adds to the debate on the devotions
in Brazil by giving an interpretation to the Marian devotion in a contemporary
context. By the fact that this work deals with the unusual “rivalry” between layman
and clergy Marian devotions, its conclusions should not be taken out of context or
generalized. Nonetheless, it demonstrates that it is part of the phenomena some of
the characteristics of the contemporary Marian devotion and of the worship to the
Saints in a more broad sense. The major conclusion is that the devotion to the
Pilgrim Mother constitutes an attempt to bring up-to-date the traditional beliefs
from the pious women by offering them, as an assurance, the sanction of the
traditional habits.
Keywords: Devotion, Symbolic conflicts, Our Lady of Schoenstatt, Popular
Catholicism, Identity, Social anthropology.
Sumário
Introdução 11
1 A devoção à Mãe Peregrina no Brasil:
o caso da cidade de Ubatuba
23
1.1 A presença da Mãe Peregrina no Brasil 24
1.2 A chegada e a afirmação do culto à Mãe Peregrina em Ubatuba 30
1.2.1 As devotas da Mãe Peregrina de Ubatuba 32
1.2.2 A introdução da devoção ao Imaculado Coração de Maria 50
1.3 As capelinhas da Mãe Peregrina em Ubatuba
e a privatização do sagrado 57
1.3.1 A construção do espaço sagrado 62
1.3.2 O culto aos santos e os espaços públicos e privados da experiência religiosa 64
2 Devoções populares, culto mariano e ciências sociais 73
2.1 Catolicismo popular em algumas obras
das ciências sociais brasileiras 77
2.1.1 A macro análise sociológica 78
2.1.2 Cultura e micro-política: os deuses populares 80
2.1.3 A tensão constituinte do catolicismo 82
2.1.4 A pluralidade de sentidos da religiosidade católica 84
2.1.5 O culto aos santos: entre a casa e a paróquia 85
2.1.6 Administração paroquial da multiplicidade católica 86
2.2 Os sentidos das devoções marianas 87
2.2.1 O surgimento da devoção de Schoenstatt e o catolicismo “militante” da Europa 92
2.3 O padrão contemporâneo da devoção à Virgem Maria 97
2.4
Conflito simbólico
e devoções populares 103
3 A devoção em conflito: catolicismo,
cultura e identidade 109
3.1 Redes de devoção e formações identitárias 113
3.2 Faces de Maria: os leigos frente à hierarquia em Ubatuba 116
3.3 A busca por reconhecimento:
uma comparação das concepções de milagre e de graça 120
3.3.1 As concepções de milagre e graça 125
3.4 Devoção mariana e as formações de
identidades católicas em Ubatuba 132
3.4.1 A reflexividade do saber e o reconhecimento moral 136
3.5 A formação da rede devocional enquanto
um empreendimento identitário 140
Conclusão 144
Referências Bibliográficas 152
Introdução
os jornais e revistas, na televisão, na internet, em todas as direções percebemos a
atualidade e expansão do culto à Virgem Maria. O incremento do culto mariano ocorre
seja através de novas formas de culto às invocações mais tradicionais, seja pela realização de
antigas práticas de devoção, seja através de novas hierofanias marianas representadas por
visões místicas, aparições de Nossa Senhora ou de imagens e relíquias suas. Essa expansão
tem ocorrido tanto no mundo católico urbano e rural, quanto no meio carismático, eclesial e
popular.
A região onde pesquisamos é privilegiada para as observações destes casos. Pelos
caminhos que levam os romeiros ao Santuário Nacional de Nossa Senhora da Conceição
Aparecida, observamos em anos recentes um incremento de pequenos grupos de peregrinos
que, particularmente de agosto a dezembro, realizam suas jornadas a pé à casa de Maria para
ali prestarem a sua homenagem ou pedir alguma graça especial. Mas há também um fato
muito curioso. Imerso no espaço consagrado da Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, os
católicos da região, como os demais católicos do país, encontram jeito e tempo para cultuar
outras denominações marianas. Temos ainda hoje casos de aparições de Nossa Senhora em
terras valeparaibanas, como atestam as cidades de Jambeiro, SP, com Nossa Senhora da Rosa
Mística, e Jacareí, SP, com Nossa Senhora Rainha da Paz. Contamos ainda com as devoções
rurais e populares como a que ocorre em Cunha, SP, com Sá Mariinha das Três Pontes, além
dos milhares devotos urbanos de Nossa Senhora, nas suas mais variadas invocações: Nossa
N
12
Senhora de Fátima, de Lourdes, Rosa Mística, Aparecida, das Graças, das Dores, entre
muitíssimos outros.
Mas o fenômeno que merece a nossa atenção neste estudo é uma devoção mariana
um pouco diferente das que relacionamos acima. Convidamos o leitor para conhecer uma
forma de devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt que existe na cidade de Ubatuba. Essa
devoção muito difundida em todo o país realiza-se dentro dos lares e estrutura-se em sua base
a partir da formação de uma rede de trinta famílias que recebem em suas casas uma estampa
de Nossa Senhora emoldurada por um quadro em forma de capela. O título devocional desta
Maria alemã é Mãe, Rainha e Vencedora Três Vezes Admirável de Schoenstatt, mas em
Ubatuba é chamada carinhosamente de Mãe Peregrina. Em outras cidades ouvimos Nossa
Senhora de Schoenstatt e Mãe Rainha como nomes de referência da imagem. A diferença a
que nos referimos acima, ocorre basicamente quanto ao espaço que se privilegia para a
devoção. Geralmente, o lugar sagrado é factualmente o santuário ou a paróquia ou ainda o
espaço sagrado da manifestação hierofânica. Mas, no caso da Mãe Peregrina, especialmente
em Ubatuba, este espaço é privilegiadamente a casa do devoto. Naquela localidade a “santa”
não se destaca na igreja da paróquia e nem há referência ao santuário do qual provém a sua
imagem.
Todavia, ela não é única neste processo de “domesticação” do culto, na realidade,
este parece ser um fenômeno típico de nosso tempo. Outras imagens de Nossa Senhora já
percorrem os lares brasileiros. Com algumas modificações quanto à maneira que as imagens
circulam e o tempo que permanecem nas casas, juntam-se a Nossa Senhora de Schoenstatt,
por exemplo, Nossa Senhora de Fátima e Nossa Senhora da Rosa Mística. Tais devoções
geralmente tem tido o consentimento do clero e em alguns casos, de fato, o seu incentivo.
Entretanto, em Ubatuba ocorreu que o movimento da Mãe Peregrina despertou no
clero, não o desejo de incentivar e de alguma forma controlar este movimento, mas, ao
contrário, a vontade de criar uma nova devoção mariana muito similar à primeira, só que
totalmente sob o controle paroquial. Nosso objeto de pesquisa nasce, pois, desta opção do
clero de Ubatuba. Ele constitui-se na relação entre essas duas devoções marianas que se
caracterizam pela forma de organização do culto: doméstico, realizado por leigos que recebem
a visita de uma capelinha com uma imagem da Virgem Maria.
13
As devoções divergem uma da outra, primeiramente, com relação às imagens que são
contidas pelas capelinhas. A primeira tem uma estampa do século XIX de Maria com o
menino Jesus, esta é a capelinha da Mãe Peregrina. A outra capelinha criada pelo clero tem
uma estatueta do Imaculado Coração de Maria e é conhecida por este nome, capelinha do
Imaculado Coração de Maria. Elas também divergem, quanto à forma de introdução na
paróquia que é o lócus da pesquisa. A primeira, a da Mãe Peregrina, chegou à cidade através
de uma leiga, moradora recente da paróquia. A segunda chegou depois e pelas mãos do
pároco da época. Nosso método de trabalho está centralizado na tentativa de perceber os ethos
religiosos encerrados nesses símbolos marianos, principalmente, na capelinha da Mãe
Peregrina de um bairro específico da cidade (Perequê-Açu), porque consideramos que, neste
caso, essa devoção ganha sentidos específicos de novos modos de viver o catolicismo
devocional tradicional.
Essa estratégia do clero local de desvincular o culto doméstico de qualquer outra
referência externa contou com uma ação evidente de ignorar a presença das redes da Mãe
Peregrina na cidade, o que gerou, no nosso entendimento, um processo de desrespeito moral
em relação às crenças e condutas das devotas da Virgem Maria de Schoenstatt,
principalmente, com relação às lideranças do movimento. A negação simbólica dos interesses
destas devotas teve lastro e ao mesmo tempo repercutiu em outras esferas da vida dessas
mulheres. A concorrência do clero serviu para desvelar o desrespeito simbólico das crenças
populares tradicionais e conseqüentemente da identidade moral das devotas que fazem parte
da rede da Mãe Peregrina. Isto é, a permanência das redes de culto à Mãe Peregrina, a
despeito do comportamento distanciado do pároco, significa que esse culto aciona
mecanismos de reconhecimento moral e de formação de identidades nos grupos de devotas.
No entanto, todas essas pressuposições precisam ser atenuadas pelo fato de a maior
parte das devotas da Mãe Peregrina também terem tomado parte na devoção ao Imaculado
Coração de Maria, criada pelo clero da paróquia. Diante destas constatações, observamos que
foi necessário realizar um trabalho de análise do movimento da Mãe Peregrina tendo como
base as idéias desenvolvidas a partir da relação entre religião, cultura e identidade.
Podemos dizer, como hipótese principal deste estudo, que a devoção à Mãe Peregrina
constitui-se numa motivação das devotas no sentido de estabelecer a modernização de suas
crenças. Afirmação que se desdobra em outras hipóteses secundárias que se associam às
anteriores. A modernização que as devotas buscam é diferente da modernização desejada pelo
14
clero: as primeiras almejam espaços de individualização dos rituais, o segundo tenta uma
operação de controle dos ritos devocionais a fim de garantir e mesmo ampliar o número de
fiéis.
A consciência de pertencimento a um subgrupo devocional responde à busca de
reconhecimento das tradicionais práticas de culto à Maria, realizadas pelas devotas da Mãe
Peregrina. O processo de modernização a que nos referimos diz respeito à operação de leitura
da realidade atual segundo um conjunto de informações provenientes da tradição religiosa e
moral e das relações sociais. Tudo isso tendo como pressuposto que os cultos aos santos de
um modo geral vem sofrendo um processo de modernização – que no Brasil não significa,
necessariamente, a negação do tradicional – e que o estudo das identidades no contexto das
devoções é importante para o entendimento daquele fenômeno cultural da circularidade entre
o erudito e o popular, entre o passado e o presente, ou de outra maneira, este estudo é
importante para interpretar os mecanismos de significação do novo (ou da mudança),
mediante a sanção do precedente e a sensação de continuidade.
Apresentadas as hipóteses do texto, faz-se necessário esclarecer que esta dissertação
constitui-se num desdobramento, um tanto quanto modificado, do projeto de pesquisa
desenvolvido no Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporâneas (NIPPC), da
Universidade de Taubaté, intitulado A imagética da devoção: a iconografia popular como
mediação entre a consciência da realidade e o ethos religioso, que descobriu estas redes de
devoção à Maria em Ubatuba e que primeiro chamou à atenção para o conflito que ocorria
entre as mesmas. A pesquisa teve um universo bem mais amplo do que Ubatuba e o litoral
norte paulista. Os pesquisadores recolheram amplo material sobre religiosidade popular em
várias cidades do Vale do Paraíba paulista. Entretanto, o que nos chamou a atenção é que, na
ocasião, o pesquisador responsável observou que as redes de devoção contemporâneas
representam um modo de demarcação de espaços relacionais de devoção (L
OPES, 2000a).
Tivemos conhecimento desse fenômeno de tensão entre o clero e as leigas de Ubatuba com a
nossa adesão ao NIPPC, já quando se sistematizavam os resultados finais da pesquisa sobre a
imagética da devoção. Mas, diante de tantos ganchos criados por aquela pesquisa tronco, que
aliás gerou mais três dissertações de mestrado sobre o tema, o leitor pode perguntar, afinal,
porque escolhemos este caso para investirmos esforços no sentido de interpretá-lo? Sem
dúvida, um motivador foi a possibilidade de entender um episódio de conflito entre a
hierarquia católica e os devotos populares. Nos sentimos seduzidos pelo objeto, da mesma
forma que somos atraídos pela bibliografia a respeito destas tensões dentro das religiões. Foi
15
assim que optamos por estudar esse caso que chamamos de conflito simbólico entre devoções
marianas: nos sentimos atraídos por este tema das disputas no campo do imaginário tão
comum no catolicismo brasileiro.
O pressuposto teórico principal de análise é que a religião é um espaço privilegiado
de manifestações da cultura popular, marginalizada no atual contexto nacional, de um lado,
pela cultura de massas e, de outro, pela cultura elitizada, que busca “iluminar”, “esclarecer”,
isto é, domesticar esta outra cultura que é popular. Neste sentido, adotamos o conceito de
conflito simbólico como norte das análises do choque entre o catolicismo clericalizado e o
catolicismo popular. Entendendo por popular a autoprodução dos não-especialistas religiosos,
isto é, todos os leigos que não se afinam com a cultura clericalizada do catolicismo.
O conflito simbólico neste caso não significa uma dissidência ou uma contestação,
mas sim diferenças de ênfases, proporcionadas pela visão de mundo e os valores religiosos
que tendencialmente estão presentes na rede da Mãe Peregrina em contraste com as devotas
clericalizadas da rede do Imaculado Coração de Maria da matriz. A possível dissidência não
se afigura pelo fato da devoção à Mãe Peregrina se inserir numa religião que é dominante
porque consegue administrar suas divergências internas em nome de uma unidade universal.
Desse modo, somada ao pressuposto teórico acima, aceitamos a interpretação que
entende que a tensão é constitutiva do catolicismo e é a força motriz que regula o duplo e
simultâneo movimento de re-apropriação, de um lado, do clero que toma crenças e práticas
leigas para torná-las instrumentos de controle e, de outro, reagindo a essa estratégia, as táticas
dos católicos populares tradicionais, que re-apropriam os discursos e práticas institucionais
para, assim, dar vazão a suas formas culturais, re-encontrando, através das suas
autoproduções, o substrato mais denso de suas culturas.
Esperamos, desse modo, contribuir para o debate sobre a constituição do catolicismo
brasileiro na sua atualidade, fazendo somar às análises dos grandes rituais extraordinários, as
situações de conflito que ocorrem de maneira mais sutil, dentro de um campo tão complexo
como é a paróquia, onde se condensam práticas religiosas muito distintas. Para percorrer o
assunto elegemos um problema, que nos pareceu aquele que melhor revela as sutilezas dessas
tensões, que é o de saber como é que práticas religiosas tradicionais de culto à Virgem Maria,
coloridas com práticas renovadas, podem contribuir para a formação identitária de um grupo
de mulheres que foram reunidas analiticamente segundo a participação num conjunto de
16
práticas religiosas e de valores morais que chamamos de popular em oposição a práticas e
valores que chamamos de clericais (querendo destacar um discurso racional e formalizado que
quer, justamente, “esclarecer”/dominar o universo popular).
Quanto à metodologia de análise do material, acabamos nos cercando de obras que
destacam o papel das religiões como espaço privilegiado de representações simbólicas
periféricas. Bem como, aquelas obras que de alguma forma se aproximam da idéia de que as
formações de grupos distintos de uma dada religião ou de uma nova religião, são espaços
propícios para a vivência de ethos religiosos, valores e emoções religiosas particularmente
distintas daquelas que são as formas hegemônicas e que são perceptíveis na relação com o
modo de vida destes grupos específicos. Assim, fomos em busca da compreensão de como a
simbologia mariana pode configurar o processo de produção-consumo
1
das representações
simbólicas das devotas e também da análise da construção da identidade das pessoas
envolvidas enquanto grupos de devotos. A maioria dos trabalhos que adotamos e que seguem
esta linha são trabalhos antropológicos. Partindo de nossa formação acadêmica, elegemos,
desde já, a antropologia como a disciplina central das nossas análises. A partir dela,
esperamos sorver contribuições de outras disciplinas afins, principalmente, a sociologia.
Todavia, reconhecemos a limitação da competência antropológica de análise deste fenômeno
em todos os seus desdobramentos. Mas, em seu conjunto, estas devoções assentam-se no
processo de re-configuração do campo religioso do país, portanto, possuem dados específicos
que ajudam a amenizar esta limitação.
O trabalho de campo foi formado por visitas esporádicas no período de janeiro de
2001 a outubro de 2002, procurando explorar algumas datas importantes para a devoção da
Mãe Peregrina. A primeira visita à cidade foi frustrada pela notícia de que a principal
informante para conhecer o histórico da devoção na cidade estava impossibilitada de nos
atender porque estava acompanhando um parente, muito doente, fora da cidade. Só depois de
alguns meses e telefonemas conseguimos falar com essa informante, que até aquele momento
era nossa única referência sobre o movimento na cidade. Muito gentilmente ela se desculpou e
sugeriu que procurássemos outra devota da Mãe Peregrina na cidade. Em posse apenas de seu
endereço nos dirigimos novamente à Ubatuba para conhecer e conversar com a nova
1
Ver Bourdieu (1992) para explicação desse conceito. Certeau (1994, p. 39) irá analisar esse processo
como uma “outra fabricação” marginal à produção racionalizada e expansionista dos poderes
constituídos nas diversas ordens sócio-culturais. Neste sentido, esta outra produção (consumo) “não se
faz notar com produtos próprios, mas na maneira de empregar os produtos impostos por uma ordem
econômica dominante”.
17
informante e para agendar uma entrevista com a mesma. Na ocasião tentamos, sem muito
sucesso, conversar com o pároco. Ele nos pareceu pouco receptivo e condicionou a realização
de uma entrevista ao envio prévio de um questionário para que analisasse as questões
antecipadamente. Causou-nos surpresa o fato dele não saber ou não querer responder sobre o
nome das devoções marianas que existem na paróquia. De qualquer forma, ele nos indicou o
nome de uma senhora com a qual poderíamos conversar sobre tais devoções. A partir dessas
duas devotas que conhecemos no mês de agosto de 2001, fomos ampliando nossas entrevistas.
Somamos às informantes iniciais, a zeladora do movimento da Mãe Peregrina do bairro do
Perequê-Açu, que encontramos numa missa. E, também, a principal liderança do movimento
da Mãe Peregrina na cidade, que, depois do falecimento de seu parente adoentado, aceitou
conversar conosco. Além dessas quatro mulheres, falamos e entrevistamos mais algumas
senhoras que descobrimos ser importantes para a interpretação do nosso objeto de estudo.
Desse modo, contamos com uma senhora que só participa da devoção à Mãe
Peregrina e que reside na matriz da paróquia, centro da cidade. Como contraponto,
conversamos com uma devota que só recebe a visita do Imaculado Coração de Maria e que
também reside na matriz e, do mesmo modo, falamos com outra que só recebe o Imaculado
Coração, mas que mora na comunidade do Perequê-Açu.
As demais devotas com as quais falamos participam de ambas devoções. Foram duas
na matriz e três no Perequê-Açu. A preferência pelas mulheres que entrevistamos ocorreu
primeiro pela posição de liderança que exercem, depois pela representatividade dos modos de
religiosidade presentes nas redes de devoção. Assim, ao lado de devotas totalmente engajadas
nos serviços paroquiais, falamos com uma que freqüenta ordinariamente apenas a missa.
Quando o padre nos indicou uma devota que se mostrou totalmente identificada à hierarquia
da igreja, procuramos alguma que, ao contrário, demonstrasse uma visão crítica com relação à
atuação do clero local. Falamos com devotas que nasceram e cresceram na cidade de Ubatuba
e com outras que imigraram para lá vindas do espaço urbano e do rural.
A pesquisa em Ubatuba consistiu em observações de campo, conversas informais e
entrevistas abertas com um grupo de oito mulheres de dois bairros da cidade de Ubatuba, SP
(Centro e Perequê-Açu). Visitamos também o santuário regional da Mãe Peregrina em Atibaia
para adquirir informações e material sobre o movimento. Em Ubatuba, realizamos
observações na paróquia, assistimos a algumas missas na matriz. Entrevistamos o pároco
atual. Conversamos com algumas senhoras na capela da comunidade do Perequê-Açu e
18
entrevistamos as devotas em suas respectivas casas. Nas entrevistas abertas motivamos
inicialmente as devotas a falar sobre suas devoções a Nossa Senhora e sobre a devoção
específica à Mãe Peregrina e ao Imaculado Coração de Maria.
Optamos por realizar entrevistas abertas por entender que a religiosidade específica
de cada uma estaria refletida na sua visão de mundo e na expressão de seus sentimentos.
Sempre iniciamos as entrevistas perguntando sobre a devoção a Nossa Senhora e o milagres e
graças, por ela, realizados em suas vidas. A partir daí, exploramos os elementos que surgiram
nos discursos e que nos interessavam, sobretudo, indicações que pudessem sugerir a
dicotomia entre um modelo tradicional e popular de fé e um modelo clericalizado de fé.
Sempre que possível, perguntamos também sobre as origens do movimento no Brasil e na
cidade de Ubatuba, e sobre a existência ambígua das diversas denominações de Nossa
Senhora, para tentarmos indicar a procura e a formação de um elemento identitário que
poderia estar presente, nomeadamente, no movimento da Mãe Peregrina. Por princípios éticos
os nomes que utilizamos neste trabalho são fictícios – inclusive o nome dos integrantes do
clero da cidade, apesar de reconhecermos que, neste caso, podem ser mais facilmente
identificados.
* * *
Conforme a estrutura da dissertação proposta no sumário, apresentamos um primeiro
capítulo mais longo que contém toda a descrição etnográfica da pesquisa, além de uma
primeira leitura focando o olhar nas interfaces do nosso objeto com o fenômeno
contemporâneo da privatização do sagrado, ou seja, procuramos interpretá-los segundo àquilo
que mais chama a atenção na sua relação com a forma tradicional de culto aos santos: a sua
natureza exclusivamente doméstica e o mecanismo de formação de uma rede de relações
caracterizadas antes pela circulação do sagrado e depois pela partilha de vivências cotidianas.
19
Nesse capítulo apresentamos uma construção mais detalhada do nosso objeto.
Fazemos a caracterização do movimento de Nossa Senhora de Schoenstatt, uma observação
mais cuidadosa sobre a Campanha da Mãe Peregrina de Schoenstatt no Brasil e um
mapeamento de como ela se desenvolveu e alterou a configuração da devoção mariana da
paróquia da Exaltação à Santa Cruz de Ubatuba.
A objetivação do problema da pesquisa vai acontecendo à medida que descrevemos
as experiências particulares que cada uma das devotas analisadas têm tanto com Maria quanto
com o clero local. Nosso objeto, o conflito simbólico entre uma devoção agenciada por leigos
e outra agenciada pelo clero, inicialmente pensado como única e exclusivamente do âmbito do
imaginário, explicita-se também materialmente nas relações cotidianas das devotas e do clero.
No segundo capítulo optamos por construir um arcabouço teórico capaz de direcionar
a análise para a construção de um conceito chave para a interpretação da tensão vivida no
campo católico da cidade de Ubatuba. Então, retomamos algumas das principais obras de
cientistas sociais brasileiros (com destaque para a Antropologia) que estudaram a devoção
popular no Brasil. Apesar da amplitude territorial que o conjunto das obras reunidas
abrangem, percebe-se que uma “essência” de crenças e práticas, ao menos em nível analítico,
percorre os estudos. A que se refere esta essência? Os estudos sobre devoção popular e
devoção tradicional sempre enfatizaram o conflito que se mostra ao longo da história como
constitutivo da religião cristã. Na sua grande maioria, estes trabalhos enfocam a dimensão do
conflito aonde eles são mais evidentes: nos rituais extraordinários da religião, isto é, as festas
e as peregrinações religiosas. Trabalhos como Os Deuses do Povo e Memória do Sagrado, de
Carlos Rodrigues Brandão (1986a e 1985), analisam estes conflitos valendo-se do arcabouço
teórico do campo religioso (Bourdieu, 1992), conseguindo assim, ampliar o debate para os
outros momentos da religiosidade, ou seja, para a prática cotidiana da religião. Mas mesmo
aqui, o autor centrou o olhar para aqueles sujeitos extraordinários (não comuns) da religião: os
especialistas religiosos, oficiais ou não. Nossa proposta é estudar esse conflito dentro de um
campo religioso muito restrito, na sua dimensão cotidiana e com sujeitos religiosos que não
exercem o papel de especialistas religiosos destacados – seja pela instituição, seja pelo
reconhecimento comunitário.
2
2
A despeito da abrangência limitada de nosso objeto, acreditamos poder ser possível identificar como
elementos universais se configuram nesse caso, segundo os aspectos locais (cf. G
EERTZ, 1978).
20
Algumas das mulheres que nos acompanharão poderiam ser chamadas de
especialistas se assumíssemos que a participação em pastoral, ou o cargo de ministra leiga,
confere uma distinção religiosa às pessoas. Contudo, para o caso em questão, não adotamos
essa classificação pelo fato de não observarmos essa relação. De fato, reservamos o termo
especialista religioso ao padre, e além deste, aos leigos que, como tais, contestam
explicitamente a monopolização dos bens simbólicos.
Afora o conjunto de conceitos levantados para a interpretação do objeto, devemos
destacar a significação atual do culto mariano no Brasil e também os sentidos que as devoções
marianas assumiram nos últimos séculos. Neste ponto, procuramos traçar as principais
características do culto mariano através da história, principalmente, a partir do século XX,
período em que nasce e se desenvolve a devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt, que irá se
desdobrar, no Brasil, no movimento da Mãe Peregrina.
No terceiro capítulo, procuramos retomar as principais contribuições dos capítulos
precedentes para observar o conflito simbólico no interior do culto mariano como a expressão
de um movimento identitário. Recorremos à discussão sobre cultura e identidade para pensar
a formação das redes da Mãe Peregrina de Schoenstatt em Ubatuba enquanto uma busca do
reconhecimento de identidades morais e religiosas. Neste capítulo destacamos a análise das
ambigüidades da atuação clerical, das negociações entre a hierarquia e as devotas e da
explicitação das diferenças através das concepções dos milagres e graças. Tudo isso como
componentes do estudo da identidade no contexto das devoções.
Ao fim da abordagem desse conflito segundo vários prismas, esperamos ter
conseguido mostrar, com o exemplo desse objeto, como o processo de atualização do culto
mariano dialoga com a realidade envolvente e como ele pode acontecer de muitas formas
diferentes. Conscientes disso, poderemos olhar com atenção para o fato de que o desrespeito
ou a intolerância, que ocorrem na maioria das vezes de forma latente, sempre acabam gerando
pressões que direcionam os elementos culturais ao sabor das combinações históricas dos
grupos, do fluxo de informações diversas que os perpassam e do processo criativo de
reinterpretação cultural dos grupos pressionados. Em muitos casos, quando todas as brechas
para a expressão cultural são negadas, esse conflito – até então simbólico – pode transformar-
se num conflito material.
Figura 1 (a e b) Capelinha da Mãe Peregrina.
Reprodução de material de divulgação.
Figura 1 (c) Imagem da Mãe, Rainha e Vencedora
Três Vezes Admirável de Schoenstatt.
Fotos do autor.
Figura 2 (a e b) Capelinha do Imaculado Coração de Maria.
Capítulo 1
A Devoção à Mãe Peregrina no Brasil:
o caso da cidade de Ubatuba
niciamos apresentando nossa pesquisa de campo e construindo mais detalhadamente
nosso objeto. Partimos da caracterização do Movimento de Nossa Senhora de
Schoenstatt, para terminarmos com uma observação mais cuidadosa sobre a Campanha da
Mãe Peregrina de Schoenstatt e como ela se desenvolveu e alterou a configuração da devoção
mariana da paróquia da Exaltação à Santa Cruz de Ubatuba, SP. No entremeio apresentamos
uma etnografia do nosso universo de pesquisa.
A objetivação do problema de pesquisa vai acontecendo à medida que descrevemos
as experiências particulares que cada uma das devotas analisadas têm tanto com Maria quanto
com o clero local. Nosso objeto, o conflito simbólico entre uma devoção agenciada por leigos
e outra agenciada pelo clero, inicialmente pensado como única e exclusivamente do âmbito do
imaginário, explicita-se também materialmente nas relações cotidianas das devotas e do clero.
A discussão dos resultados, aqui reunidos, conta com um importante apoio
representado pelas idéias da análise cultural de Raymond Williams (1979), que nos orienta no
sentido de que o conflito só se explicita em algo perceptível porque está relacionado a outros
conflitos de ordem geral, ou seja, aborda-se o problema de pesquisa pensando no modelo dos
I
24
círculos concêntricos (no qual um fato/idéia local se espalha, reflete na margem e retorna ao
centro), sugerindo que o conflito simbólico reificado nas imagens sofre pressões externas
provenientes do conflito deflagrado, de um lado, pelo atual contexto de pluralidades do campo
religioso, no qual as novas denominações pentecostais reivindicam a exclusividade da crença
dos fiéis, portanto, um cenário no qual o catolicismo vem perdendo sua hegemonia (cf. ORO,
1996 e SANCHIS, 1994).
1
Olhando por este prisma, percebe-se que as práticas devocionais
emergentes são a resposta da igreja católica contra a ofensiva dos pentecostais (cf. ORO &
SÉMAN, 1997, p. 127-155). De outro lado, pelo avanço de novos espaços profanos
construtores de sentido, muitas vezes, diferentes dos oferecidos pela religião católica (oficial e
popular).
O auxílio de uma imagem analítica pode nos ajudar a explicar melhor a reflexividade
dos elementos constituintes do campo religioso. Semelhante às ondas formadas num lago
quando arremessamos uma pedra, um fenômeno religioso, devido à dinâmica própria das
práticas culturais, espraia-se por todos os lados, alcança as margens ou fronteiras do campo e
retorna ao ponto de origem, trazendo todas as forças e transformações sofridas no percurso.
Uma pequena alteração num ponto do campo altera todo o arranjo de sua face visível, até o
momento em que, dificilmente, poderemos apontar com certeza o local exato em que a
alteração teve início. Ou seja, um novo fenômeno, religioso ou não, altera todo o campo em
que se encontra, tanto no conjunto mais amplo da sociedade como no campo mais restrito da
comunidade ou da paróquia, no caso do catolicismo.
2
Para aprofundarmos a descrição da devoção mariana de Schoenstatt em Ubatuba será
necessário conhecer um pouco melhor como é que se processa de maneira geral e oficial o
movimento da Mãe Peregrina, para que possamos entender as especificidades do caso dessa
cidade.
1.1 A presença da Mãe Peregrina no Brasil
As características da devoção à Mãe Peregrina, Mãe Rainha ou Nossa Senhora de
Schoenstatt possuem aspectos de conduta ética fruto do espírito moralizante do Concílio de
1
Quanto ao conceito de hegemonia, ele é utilizado segundo a teoria gramsciana, analisada, entre outros,
por Pedro Ribeiro de Oliveira (1985, p. 107-111) e Williams (1979, p. 111-117).
2
Ele opera uma transformação total, semelhante à transformação provocada num ecossistema devido à
presença de um novo organismo.
25
Trento e um caráter individualizante – em consonância com valores “modernos”.
3
No Brasil,
como veremos, este aspecto individualizador se acentua através da ação de um leigo
totalmente identificado com o movimento e com o início da construção das capelinhas que
passam a circular entre as famílias para divulgar o culto que, mais do que familiar, torna-se
individual. Por isso, esta devoção separa-se dos cultos aos santos tradicionais que se
caracterizam por uma união da família extensa e do grupo ou comunidade local, que acontece
nos espaços das capelas ou ermidas.
A devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt chegou oficialmente ao Brasil na década
de 1940 quando foi inaugurado um santuário em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, através
da ação missionária do Instituto das Irmãs de Maria, órgão da Obra secular de Schoenstatt.
4
Neste período, o movimento de romanização do catolicismo estava disseminado pelo país, e já
havia lançado suas raízes na fé do povo.
5
Nessa década também começam as atividades
sociais da igreja de cunho mais progressista. Já a década seguinte foi marcada pelo espírito
renovador que culminaria com o Concílio Vaticano II, que trouxe profundas modificações
para o interior da igreja católica. Esse concílio representou um processo de renovação da
igreja que alterou o pensamento católico oficial. A orientação do Vaticano foi no sentido da
promoção de uma abertura para o mundo contemporâneo. Entre as medidas surgidas no
Concílio está a reforma litúrgica que restaurou o uso da língua vernácula, além de permitir a
participação mais ativa dos leigos na missa. (cf. DELUMEAU, 2000, p. 273-280).
O Movimento ou a Campanha da Mãe Peregrina de Schoenstatt, como é chamado
pelos manuais de orientação, nasceu em 1950, na cidade de Santa Maria, onde, a convite do
3
Voltarei à questão do surgimento e do contexto de criação desta nova devoção, na Alemanha do início do
século XX, quando analisar os sentidos da devoção Mariana no próximo capítulo.
4
Todos os santuários inaugurados no mundo inteiro reproduzem exatamente a capela original onde
nasceu a devoção, no Vale de Schoenstatt - Alemanha. O elemento fundamental das hierofanias
“schoenstattianas” é a cooperação humana, o compromisso de formar um capital simbólico ou “capital de
graças” (como dizem). Seu fundador, o padre pallottino José Kentenich, tinha a convicção de que a
reduplicação do santuário fundava uma nova Terra Santa, como ele dizia, uma “Nova Schoenstatt”.
Todas as informações a respeito da devoção e organização oficiais do movimento foram retiradas das
obras de Uriburu (1983 e 1985) e dos materiais de divulgação do movimento da Mãe Peregrina editados
pelo secretariado regional de Atibaia, SP, (M
ANUAL, 2000; MENSAGEM, [199?]).
5
O termo romanização refere-se a um conjunto de reformas ocorridas na igreja católica a partir da
segunda metade do século XIX e que teve impactos significativos no catolicismo tradicional praticado
pelo povo. Uma das estratégias dos Bispos reformadores foi a substituição de devoções aos santos
tradicionais por devoções que estavam em voga na Europa, entre elas as devoções marianas, utilizadas,
inclusive, como instrumentos contra o liberalismo anticlerical e o modernismo (cf. O
LIVEIRA, P., 1976, p.
137-138).
26
padre e de uma irmã da congregação,
6
um leigo chamado João Luiz Pozzobon dá início à
campanha do terço que originou, no Brasil, a devoção popular da Mãe Rainha, Três Vezes
Admirável de Schoenstatt ou Nossa Senhora de Schoenstatt, popularmente conhecida por Mãe
Rainha ou Mãe Peregrina. O futuro diácono Pozzobon ganhou uma cópia da estampa de
Maria – a Virgem com o Menino Jesus –, emoldurada numa capelinha de madeira na forma da
silhueta dos santuários “schoenstattianos” (figura n.
o
1),
7
com a incumbência de levá-la, em
peregrinação, para as instituições e famílias da cidade de Santa Maria. No início, este senhor
levava a imagem para os hospitais, escolas, comunidades e casas que solicitavam, e rezava o
terço com os presentes. Com o passar do tempo a devoção ganhou fama na região
8
o que
obrigou o futuro diácono a providenciar uma réplica de sua capela, mas em tamanho reduzido,
para que um grupo de famílias pudesse receber a visita de Nossa Senhora. O sucesso foi tão
grande que, dentro de pouco tempo, em fevereiro de 1959, foi preciso conseguir mais réplicas
da capelinha para atender à demanda das famílias. O senhor Pozzobon passou a organizar
grupos de trinta famílias para que recebessem mensalmente em suas casas a visita de Maria
(cf. URIBURU, 1985, p. 179-180). Desta forma, cada uma destas famílias teria um dia do mês
reservado para receber a capelinha que circulava somente dentro daquele grupo. No dia em
que recebessem a capelinha, as famílias deveriam permanecer vinte e quatro horas com ela e
teriam a incumbência de rezar para a Virgem Maria. Inicialmente, pedia-se um terço ou
algumas ave-marias, mas hoje cada participante recebe um livrinho de orientações com
orações específicas, inclusive de recebimento e entrega da imagem. A fórmula funcionou e
nasceu assim essa devoção que ganhou o Brasil e se espalhou pelo mundo, nos locais onde os
braços de Schoenstatt estão presentes.
9
No presente a campanha conta com uma grande
estrutura (formada por leigos das paróquias e dioceses e leigas consagradas que vivem nos
6
Assim como a fundação do primeiro santuário na Alemanha, a Campanha da Mãe Peregrina de
Schoenstatt, através das mãos de um brasileiro, nasceu do desejo expresso do padre Kentenich, logo
após a inauguração do Santuário Monte Tabor (nome com o qual foi batizado este braço schoenstattiano
no Rio Grande do Sul). Tomamos como sinônimo, neste trabalho, as expressões “Campanha da Mãe
Peregrina” e “Movimento da Mãe Peregrina”.
7
De onde surge a expressão “Capelinha da Mãe Peregrina” que identifica estes objetos sagrados de
devoção.
8
Conforme Marta R. Borin, historiadora da cidade de Santa Maria – RS, que prepara tese de doutorado
sobre Nossa Senhora de Schoenstatt, a devoção não ganhou apenas fama na região, mas também a
desconfiança do clero da Diocese de Santa Maria, que questionava a devoção, principalmente, a
respeito da natureza secular do grupo que cuidava do Santuário Monte Tabor. No início, o movimento
não teve o reconhecimento da hierarquia local e da Diocese (informação verbal, de Comunicação Oral no
IV Simpósio de História das Religiões, ABHR, São Paulo, em 24 maio 2002).
9
Estima-se que, hoje, no Brasil sejam mais de 3 milhões de casas que recebem a visita da Mãe Peregrina
(cf. V
ANNUCHI, 2001).
27
santuários do movimento), que controla às vezes mais, às vezes menos, estas redes de
devoção.
Hoje, a sacralização dessas capelinhas ocorre por intermédio de orações e vigílias das
irmãs dos diversos santuários espalhados pelo Brasil (e também pelo mundo) e através da
benção imposta por um padre. Dos santuários as capelinhas são enviadas para as paróquias,
mediante um pedido formal que a devota (ou devoto) faz junto à equipe que coordena essa
devoção na região. No estado de São Paulo a equipe situa-se no santuário regional Monte
Tabor das irmãs de Schoenstatt, que se localiza no município de Atibaia-SP.
O pedido deve vir acompanhado de uma autorização do pároco local e de uma lista
com o nome de trinta famílias que desejam receber a visita periódica da Mãe Peregrina. Desta
forma, a capelinha circula, isto é, “peregrina” durante o mês todo, permanecendo vinte e
quatro horas na casa de cada família do grupo. Cada capelinha, então, fica a cargo de um/a
zelador/a que é responsável por ela perante a equipe de coordenação do movimento. Assim, a
primeira liderança do movimento é o zelador ou zeladora que, além da capelinha, é
responsável pelas famílias que a recebem em casa. Para ser zelador é necessário cumprir as
normas oficiais da igreja, preferencialmente, deve ser casado.
A equipe de coordenação, estruturada num “secretariado”, oferece um
acompanhamento da devoção através de visitas, reuniões periódicas e envio de folhetos. Por
fim, no dia dezoito de cada mês celebra-se uma missa na paróquia ou comunidade em
intenção da Mãe Peregrina e das famílias que a recebem, com a presença das famílias do
movimento. Além desta missa mensal, a cada ano, no dia dezoito de outubro, celebra-se uma
missa especial para a “Renovação da Aliança de Amor” que as famílias fazem com Maria.
Nesta ocasião, realizam a coroação da imagem. Em Ubatuba, esta atividade não é cumprida
periodicamente. A zeladora do Perequê-Açu realizou o ritual de coroação uma única vez.
Fora essa missa em homenagem à Mãe Peregrina, todo o ritual de devoção ocorre de
maneira privada. A relação com Nossa Senhora é direta e individual (ou familiar).
Considerando que em Ubatuba quase nenhuma devota participa daquela missa no dia dezoito,
a única integração possível ocorrerá pelo deslocamento da capelinha com a estampa de Maria
entre as trinta casas, ou seja, é a visita da Mãe de Jesus à casa da devota que cria uma
28
comunnitas.
10
Inverte-se desta forma a lógica da peregrinação tradicional, na qual o devoto
vai à casa do santo.
11
A coordenação do movimento espera que as famílias – e principalmente, o/a
zelador/a – obedeçam a rígidas normas de controle moral. A zeladora, por exemplo, deve dar
bom testemunho cristão, caso seja casada, deve ser fiel, não deve participar de práticas rituais
de outras religiões ou movimentos não-católicos – como a maçonaria. Fundamentalmente, ela
não deve ter impedimentos canônicos para a participação plena na vida sacramental da igreja
e deve ter um bom relacionamento com o pároco. Para assegurar estas normas e orientar a
devoção, como dissemos, em tese, o secretariado planeja visitas nas comunidades para
acompanhamento e orientação. No caso do secretariado de Atibaia-SP, verificamos que
apenas duas irmãs eram responsáveis por realizar as visitas em toda a região abrangida pelo
santuário (estado de São Paulo). A estrutura burocrática procura orientar e controlar
detalhadamente o desenrolar da devoção em cada pequena rede formada pelas trinta famílias.
Como foi dito, temos para cada capelinha um zelador; a cada dez zeladores de capelinha,
destaca-se um coordenador de grupo; quando o caso exigir, estes coordenadores de grupo
ligam-se a um coordenador paroquial que, por sua vez, está subordinado ao coordenador geral
(municipal) que está ligado à coordenação diocesana. Até aqui, geralmente, todos os
coordenadores são leigos. Os coordenadores diocesanos fazem a ligação com o Secretariado
Regional da Mãe Peregrina, este agora formado pelas leigas consagradas da congregação de
Schoenstatt. Como se vê, ao menos no âmbito das dioceses, procura-se traçar uma hierarquia
correspondente ao quadro oficial da igreja. Uma preocupação clara de estabelecer vínculos
com o poder eclesial local, que está presente no pensamento do padre fundador do
movimento, conforme veremos no próximo capítulo. Porém, devido à montagem de uma
estrutura que corta transversalmente a hierarquia territorial tradicional da igreja, o sucesso do
movimento da Mãe Peregrina no Brasil, obtido na maior parte através da exposição na mídia,
exerce um papel ambivalente, semelhante ao da Renovação Carismática católica – guardadas
10
No sentido que Turner (1974) dá a este termo.
11
Sobre a importância da inversão desta lógica para a concepção religiosa tradicional, indicamos a leitura
do trabalho de Gutilla (1993). Seu texto analisa a construção da devoção a São Judas Tadeu em São
Paulo e a importância da presença do devoto na casa do santo (santuário) para a confirmação da fé num
“novo” santo.
29
as proporções necessárias. Ele é ao mesmo tempo instrumento para reter fiéis e ameaça ao
modelo clerical da Diocese.
12
Portanto, devido a sua organização hierarquicamente centralizada e ao seu caráter
ambivalente, o que se observa é uma enorme diversidade no seguimento destas normas do
movimento que depende, basicamente, da disponibilidade das lideranças locais e da aceitação
que o movimento tem na diocese e na paróquia. Ao lado de paróquias e dioceses que aceitam
integralmente o movimento, encontramos casos como o da cidade de Ubatuba, onde o clero
apesar de aceitar e autorizar a vinda das primeiras capelinhas, atuou no sentido de organizar
uma devoção paralela e concorrente. Os padres criaram uma devoção ao Imaculado Coração
de Maria com a mesma estrutura, depois que conheceram e observaram a aceitação da Mãe
Peregrina em Ubatuba. Pelo menos no início, usaram do expediente de oferecer a sua própria
devoção às devotas que vieram pedir-lhes a autorização exigida pelo movimento da Mãe
Peregrina. Ao menos em dois casos relatados, observamos que o clero lançou mão dos
recursos técnicos da paróquia, disponibilizando o uso do computador e da secretaria, como
estratégia para “desviar” devotas para a devoção que iniciavam.
Recentemente, nos anos 1990, esta devoção ganhou destaque nos meios de
comunicação do Brasil em decorrência da exposição de um Padre cantor pertencente à
Congregação dos Padres de Maria de Schoenstatt.
13
Sem dúvida sua presença na televisão
contribuiu para a expansão da devoção, porém, ela vinha conhecendo um crescimento muito
antes do “fenômeno” dos padres artistas. Por se tratar de uma devoção contemporânea – a
invocação, como veremos, surgiu no início da Primeira Guerra, na Alemanha, e a forma
popular de culto em 1959 no Brasil – ela afina-se com o modelo de experiência religiosa da
contemporaneidade, pois permite um culto mais individualizado, livre das amarras severas da
burocracia paroquial e do compromisso sócio-comunitário que, do outro lado, abre a
possibilidade das próprias devotas construírem a seu modo a sua relação com Nossa Senhora
e nessa relação as suas identidades de católicas.
14
12
Remetemos o leitor à observação que Steil (2001a, p. 119) fez a respeito da estrutura da RCC, que
verificamos ser muito parecida ao que ocorre com o movimento da Mãe Peregrina em Ubatuba.
13
Trata-se do padre Antônio Maria que ficou muito conhecido em meados dos anos 1990 em diante ao se
apresentar junto com o cantor Roberto Carlos nos programas de televisão.
14
Essa característica das redes, como veremos adiante, possibilita até mesmo a participação de fiéis de
outras denominações religiosas.
30
Os dados de Ubatuba apontam para o fato de que o movimento não vem
simplesmente substituir a freqüência dos católicos às missas, que poderia estar rareada diante
da falta de tempo característica da atualidade. De fato, numa homilia a que assistimos, o
pároco local acusava, justamente, os novos ídolos da modernidade, apontando os pequenos
afazeres profanos da vida cotidiana, que impediriam a freqüência às missas. Nessa direção
reducionista também segue uma reportagem sobre as várias imagens de Nossa Senhora que
percorrem os lares brasileiros. O autor alega que, mediante a falta de tempo para assistir às
missas com a freqüência desejada, vem crescendo o fenômeno e o número destas imagens
peregrinas no Brasil e no mundo (cf. VANNUCHI, 2001).
Na verdade, como tentamos tornar evidente no terceiro capítulo, o culto à Mãe
Peregrina vem complementar a religião paroquial, no sentido de preencher uma lacuna
identitária. A grande maioria das devotas que formam o movimento em Ubatuba não é
“relapsa” quanto as suas “obrigações” comunitárias e eucarísticas. Pelo contrário, estão
engajadas nos serviços paroquiais. No entanto, a participação na devoção à Mãe Peregrina de
Schoenstatt, por causa da sua forma, pode facilmente escapar ao controle eclesial. Sua
estrutura perpassa a forma tradicional do poder clerical, por isso o cuidado em insistir para
que os devotos participem da vida comunitária e se submetam aos serviços sacerdotais. E por
isso – essa é a nossa hipótese – algumas senhoras buscam nessa devoção mais autônoma as
respostas para as questões que lhes são impostas na sua vida cotidiana. Questões complexas
que visões simplistas e interesseiras como a esboçada pelo padre no quesito freqüência às
missas não são capazes de solucionar.
1.2 A chegada e a afirmação do culto à Mãe Peregrina em Ubatuba
O campo religioso do catolicismo brasileiro dos anos 1990 vive numa constante
tensão entre o social e o individual que se reflete nos movimentos e paróquias católicas
(PRANDI, 1997; TORRES-LONDOÑO, 1997; STEIL, 1996; GUTILLA, 1993). Ao mesmo tempo,
em Ubatuba como em muitas outras cidades brasileiras, a década de 1990 é paradigmática
para a relação do catolicismo com as religiões neo-pentecostais. É neste período que a igreja
universal do reino de Deus (IURD) se instala na cidade, ocupando o prédio do cinema que
fica bem ao lado da igreja Matriz. Esse fato incomodou muito não só o clero, mas também os
católicos tradicionais da cidade. Além da presença da IURD, espalha-se pela cidade,
especialmente nos bairros pobres da periferia inúmeras igrejas neo-pentecostais que disputam
31
a posse das almas errantes dos imigrantes que enchem as favelas escondidas da cidade. A
favelização – aliada à ocupação de áreas de risco e de proteção ambiental –, fenômeno típico
das grandes cidades, é o outro lado desse “paraíso turístico” que Ubatuba deseja ser.
Muito difundido a partir da década de 1990 em todo o Brasil, como parte da resposta
da igreja, podemos dizer, à presença pentecostal nos meios de comunicação, o movimento da
Mãe Peregrina de Schoenstatt chegou na cidade de Ubatuba através de uma leiga, que ao se
transferir com a família para a cidade em 1994, levou consigo a devoção praticada no
município de Atibaia, onde residia. Possivelmente, um de seus objetivos com a devoção foi
facilitar o diálogo com os novos vizinhos.
15
Dona Rosa, a senhora que iniciou esta devoção na
cidade teve dificuldades, segundo uma informante, de reunir trinta pessoas no bairro da
Enseada onde morava. Por ser recém chegada na cidade, procurou as esposas dos
companheiros de trabalho do marido.
16
Esta rede acabou se organizando num amplo espaço
geográfico, que vai do bairro da Enseada, limítrofe ao centro, até a região central da cidade.
A orientação formal do movimento sugere que as escolhas das famílias que farão
parte de cada uma das redes sejam feitas com o intuito de se percorrer a menor distância
possível com a capelinha da Virgem “santa”. No caso da primeira rede de Ubatuba, a grande
distância que algumas pessoas tinham que percorrer no bairro onde morava a primeira devota
da Mãe Peregrina em Ubatuba foi justificada pela ausência de pessoas que aceitaram receber a
imagem. Os motivos relacionados por nossa informante foram dois: o alto número de
protestantes e espíritas do bairro da Enseada e a incompatibilidade de horário de muitas
pessoas, principalmente no período de alta temporada na cidade.
15
Este motivo foi aventado por uma de nossas informantes. Dona Rosa era oriunda de Atibaia. Como já
observamos, nesta cidade localiza-se um santuário regional dedicado a Nossa Senhora de Schoenstatt,
que centraliza a distribuição e organização das capelinhas e seus grupos de devoção. Este se vincula ao
Secretariado de Santa Maria, RS. De acordo com a pesquisa de campo realizada pelos membros do
Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas de Práxis Contemporâneas (NIPPC), da Universidade de Taubaté,
dona Rosa chegou à cidade por volta de 1994/1995 (informação verbal). Agradeço a José Rogério Lopes
o acesso aos questionários e entrevistas realizados na cidade de Ubatuba no âmbito da pesquisa “A
imagética da Devoção: a iconografia popular como mediação entre a consciência da realidade e o ethos
religioso”, realizada no Vale do Paraíba e Litoral Norte paulistas, entre os anos de 1998 e 2000, cujo um
dos desdobramentos foi a pesquisa que dá sustentação a este trabalho.
16
Dona Vera, uma das informantes, diz que a devota fundadora da devoção na cidade de Ubatuba veio
para a cidade em função da transferência do local de trabalho do marido. Há cerca de três anos ela
mudou-se para a cidade de São Bernardo do Campo – SP, mas ainda mantém sua casa na cidade.
32
1.2.1 As devotas da Mãe Peregrina de Ubatuba
Ainda na época de dona Rosa, a pioneira do movimento da Mãe Peregrina em
Ubatuba, uma moradora do bairro do Perequê-Açu, que também é limítrofe ao centro da
cidade, só que do lado oposto ao da Enseada, observou o grupo de devotas da primeira rede de
devoção rezando o terço na igreja matriz e procurou saber do que se tratava aquele grupo.
Muito devota de Nossa Senhora, ao tomar ciência da devoção, dona Neide resolveu tornar-se
uma zeladora da capelinha da Mãe Peregrina e reuniu trinta famílias no seu bairro para, assim,
formar a segunda rede de devoção à Mãe Peregrina. No Perequê-Açu também existe a
dificuldade de se percorrer grandes distâncias, mas ali, o motivo alegado foi o fato de a
maioria das casas do bairro consistirem em casas de veraneio. A observação de que a maioria
das mulheres com quem conversamos na cidade participa da Legião de Maria, denuncia uma
tática utilizada pelas lideranças do culto para organizar as redes de devoção no caso das duas
Marias. Esta tática – aliada à própria configuração do catolicismo leigo das paróquias, em
geral, que é eminentemente feminina – é um dos fatores explicativos da participação quase
exclusiva das mulheres, tanto no caso da Mãe Peregrina, como no caso do Imaculado Coração
de Maria.
17
a) Dona Neide, zeladora de Nossa Senhora e de gentes
Dona Neide é zeladora de uma capelinha da Mãe Peregrina e também recebe a
capelinha do Imaculado Coração de Maria. Como a quase totalidade das mulheres que
entrevistamos, é integrante da Legião de Maria. Ela mora no bairro do Perequê-Açu – uma
das duas localidades que pesquisamos. Como liderança local do movimento, dona Neide é
central em nossas análises, sobretudo, quando tratarmos das relações entre a devoção à Mãe
Peregrina e a identidade das católicas com quem trabalhamos. Ela é casada, tem cinqüenta e
quatro anos,
18
tem quatro filhos (um já falecido), uma filha e um neto. Com a exceção do
caçula, todos os seus filhos moram ou já moraram na Inglaterra. Sua filha se casou com um
sul-africano que conheceu na Inglaterra com quem tem um filho –, depois retornou para
Ubatuba onde abriu uma pousada e uma escola de inglês com o marido.
Dona Neide é uma pessoa muito amável. Natural do Sul de Minas Gerais, gosta de
conversar, principalmente quando o assunto é religião ou sua família. Ela nos contou que
17
Com relação ao Imaculado Coração de Maria, dona Lourdes, coordenadora de uma capelinha no
Perequê-Açu, citou o caso de um homem que recebe a capelinha.
18
Consideramos como referência para as idades aqui indicadas o mês de janeiro de 2003.
33
chegou a Ubatuba há mais de vinte anos. O marido abriu um pequeno bar na cidade, mas
depois de alguns anos, no período do final dos anos oitenta e início dos noventa, devido a
muitos calotes, teve que acabar com o negócio para saldar as dívidas. Desde então o marido
vem trabalhando sempre de forma provisória, fazendo pequenos “bicos” para sobreviver. Para
ajudar no orçamento familiar Dona Neide também precisou sair para trabalhar. Conseguiu
algumas casas de veraneio para vigiar e limpar até arrumar um emprego mais estável e formal
como zeladora de um condomínio de veraneio, cujos proprietários são do Vale do Paraíba. A
partir desta referência, ela pôde indicar o marido para cuidar de várias casas de veraneio
próximas ao prédio em que trabalha.
Sua devoção a Nossa Senhora teve início na infância vivida no interior do país, cuja
presença do clero só existia ocasionalmente, na época das missões religiosas da igreja católica
na região. De família muito numerosa, diz que seus pais cultivavam o hábito sagrado da reza
do terço e uma fé muito intensa em Nossa Senhora Aparecida. Esta fé a marcou já na infância.
Segundo uma lembrança que guarda consigo, diz que um padre missionário se encantou com
a fé e paixão com que ela e sua irmã cantaram e coroaram Nossa Senhora, numa dessas
ocasiões de missa que aconteceu no mês de maio, mês dedicado a Maria em todo o Brasil.
Mas, duas outras importantes experiências encontram sentido na devoção à Virgem
Maria e a tornam significativa. A primeira está relacionada à saúde, dela e da família. Para
explicar porque é devota – e para comprovar que há razões para sê-lo –, narrou-nos o
sofrimento e depois a cura do filho que havia tido câncer facial quando era criança. Ela
reconhece o papel da medicina e a eficiência do médico do filho, mas atribui a cura à
promessa que fez a Nossa Senhora Aparecida de levar o filho curado para a Basílica de
Aparecida, no Vale do Paraíba paulista. Da mesma forma, é assim que ela tem sobrevivido a
várias cirurgias por que tem passado ao longo de sua vida para tratar dos seus próprios
problemas de saúde. Ela faz questão de deixar claro que sempre que precisa ir ao médico ou
fazer uma cirurgia, deposita sua vida e sua sorte nas mãos da Virgem Maria. Por exemplo,
toda vez que vai ao médico pede para Nossa Senhora entrar com ela no consultório e tocar no
coração do médico, pede ainda que a Virgem seja como uma enfermeira ao lado do médico.
Mas a segunda experiência é a mais decisiva porque é a que trata da delicada questão
da morte. O seu filho mais religioso, devoto de Nossa Senhora, veio a falecer enquanto estava
residindo na Inglaterra. Ela tem registrado toda uma memória do filho que está totalmente
vinculada a Nossa Senhora. Para começar, ela associa o sofrimento que teve pela morte do
34
filho ao sofrimento de Maria – operação muito comum, aliás, entre as devotas brasileiras.Ela
diz que o que a ajudou no momento da perda do filho foi a fé em Deus e sua peregrinação
com a Mãe de Jesus; Maria deu todas as forças que ela precisou. Esse filho foi quem a ajudou
a formar o grupo de trinta famílias necessárias para requerer uma capelinha da Mãe Peregrina
ao Santuário de Atibaia-SP. Foi ele quem escolheu mensagens na Bíblia e fez cartões para que
dona Neide convidasse suas amigas ali do bairro a fazer parte da campanha da Mãe Peregrina.
Além disso, esse filho lhe prometeu que, chegando à Inglaterra, conduziria seu filho e sua
filha que já estavam lá para o caminho da igreja. Uma vez distante dos filhos, dona Neide
depositava todas as angústias e preocupações na esperança de que se os filhos freqüentassem
a igreja estariam mais protegidos dos perigos de um mundo que ela não conhecia.
19
A devoção de dona Neide representa a característica devoção brasileira à Virgem
Maria. Ela associa Maria a uma mãe terrena enfatizando seus atributos maternos, reconhece
seus sentimentos humanos, ademais, credita poder de conversão à estampa da Mãe Peregrina.
Porém, conforme a teologia sistemática, concebe Maria como mãe da humanidade. Também
crê que Maria é intercessora; através dela se chega ao Filho. Dona Neide salienta que Maria
sempre foi uma mulher forte e corajosa e que desde o momento da concepção de Jesus não
teve preguiça. Ela tem Maria como uma mulher muito preciosa para a igreja e diz que com ela
a gente sempre alcança o que deseja, “a Mãe sempre dá um jeitinho”.
Ela entrou para a campanha da Mãe Peregrina por vontade própria, conta que sentiu
uma emoção muito forte ao passar na porta da igreja no dia que estavam rezando terço com a
imagem da Mãe Peregrina e daí pediu para participar do movimento. Desta forma, verifica-se
que a sua participação na rede tem um significado um pouco diferente, daquele vivido pelas
pessoas que ela convidou. No seu caso, a sua participação é resultado da sua vontade pessoal
de participar de um movimento com o qual se identifica, representa um esforço para a
conversão de novos devotos e, principalmente, a aceitação de uma missão que é a de ser canal
para Maria realizar a sua vontade aqui na terra. Já no caso daquelas devotas que ela convidou
para fazer parte da rede, subsiste o sentimento de ter sido convidada por Nossa Senhora a
fazer parte do seleto grupo de trinta famílias daquele local que terão a honra de receber a sua
visita. A decisão de aceitar a visita da capelinha faz parte do foro pessoal de cada devota.
19
No final de 2002 dona Neide viajou até a Inglaterra para assistir ao casamento de seu filho, que ainda
reside naquele país.
35
Apesar disso, no caso das devotas que são convidas a fazer parte da rede, destaca-se a vontade
da Virgem; é ela quem quer caminhar e elegeu tais famílias para realizar esta sua vontade.
Dona Neide elencou uma série de graças alcançadas por intermédio da Mãe
Peregrina especificamente. A primeira delas foi a conversão do marido. Depois da falência do
seu negócio ele havia ficado muito desgostoso com a vida e não participava mais de rituais
religiosos, chegando a criar uma certa aversão por assuntos da fé. Com jeito e com muita
oração de dona Neide à Mãe Peregrina, o marido, primeiro, foi se acostumando com a
presença da santinha em sua casa, depois passou a rezar o terço junto com ela. Hoje, quando
dona Neide está muito ocupada, ele aceita, até mesmo, levar a santinha para a próxima família
da rede – antes ele tinha vergonha até de acompanhar a esposa com a capelinha pelas ruas.
Em Ubatuba, as capelinhas devem sair pelas ruas, envoltas num saco de brim grosso com uma
cruz vermelha estampada – medida para protegê-la do sol e da chuva, segundo dona Vera. Em
outros locais, ao contrário, ela deve vir exposta à altura do peito, sem nenhum plástico ou
pano cobrindo-a, ela deve ser vista pelos transeuntes.
Duas outras graças ocorreram com famílias que tomaram parte na rede de dona
Neide. Uma delas aconteceu para uma mulher que estava separada do marido. Ela não queria
se separar do marido, mas sentia muita raiva pelo fato dele constantemente se embriagar. A
raiva era tanta que esta senhora não queria nem mesmo mencionar o nome do marido para que
dona Neide pudesse justificar a inclusão daquela família na rede junto ao secretariado da
campanha. Depois de muito argumentar que, uma vez conhecido o nome do marido, a oração
que o movimento faria para ele resolveria o problema e ele retornaria para casa, a senhora
aceitou dizer o nome dele. Não demorou muito tempo, de fato, o homem voltou para casa e
não bebeu mais. A outra graça, também dizia respeito a problemas com alcoolismo. Só que
dessa vez era uma viúva que se recusava em dizer o nome do falecido, pois, quando em vida,
ele vivia batendo nela. Com o mesmo jeito e justificativa, dona Neide convenceu a senhora
que se ela perdoasse o marido e rezasse para ele, dentro da rede da Mãe Peregrina, o falecido
se tornaria um aliado seu lá no céu. E assim foi, a mulher perdoou o marido e passou a viver
mais feliz em oração, conforme o relato de dona Neide.
Apesar desse cuidado demonstrado com os participantes de sua rede, dona Neide
sente hoje uma dificuldade muito grande em acompanhar a devoção. Ela não conseguiu, por
exemplo, que a sua capelinha estivesse presente na missa do dia dezoito de outubro de 2002
porque a mesma havia ficado retida na casa de alguma devota. Ela reconhece que precisa
36
voltar a cuidar da parte de “evangelização” da rede, mas reclama da falta de tempo. Seu
tempo é escasso, sobretudo no período da temporada de verão no litoral norte paulista, quando
o condomínio em que trabalha fica repleto de turistas. Neste período também as outras
devotas da rede estão ocupadas trabalhando em alguma casa de turistas ou vendendo alguma
coisa na praia. De qualquer forma, é preciso registrar que este seu emprego, tornou-se um
trabalho familiar. Sempre que é imprescindível que ela deixe o condomínio, o seu marido ou o
seu filho ficam no seu lugar até que ela retorne. Isso garante uma disponibilidade,
especialmente fora dos meses de temporada, que facilita o seu trabalho tanto na rede da Mãe
Peregrina como nas atividades comunitárias da capela do seu bairro.
b) Dona Vilma
Dona Vilma é a mais jovem das mulheres com quem conversamos, ela tem quarenta
e dois anos, duas filhas e um filho. Residente no bairro Perequê-Açu, recebe a capelinha da
Mãe Peregrina e uma das cinco capelinhas do Imaculado Coração de Maria do bairro. Ela
veio da cidade de Lorena, no Vale Paraíba paulista. Seu marido é pedreiro autônomo e ela
também trabalha, esporadicamente, como faxineira autônoma. Seu depoimento foi muito
emocionado e, ao lado do depoimento de dona Neide, foi o que mais se aproximou do modelo
tradicional de catolicismo popular, notadamente no que se refere à relação com os santos.
Diferentemente das outras senhoras, as suas atividades na igreja limitam-se a ajudar, às vezes,
na limpeza da capela da comunidade. Diz que gosta muito de ajudar as pessoas, o que faz em
outras instâncias, como por exemplo, recolher leite para crianças pobres. É a única das
entrevistadas que não participa da Legião de Maria. Talvez seja por essa distância das
atividades laicas no âmbito paroquial que a sua concepção de milagres e graças seja a mais
sincrética que observamos, revelando uma visão extremamente em consonância com o
espiritismo. De todas, foi também a que mostrou mais abertura para se relacionar com adeptos
de religiões evangélicas. Sempre escuta aqueles que batem á sua porta, afinal, eles vêm falar
de Deus e, portanto, são bem vindos.
Com relação ao culto aos santos tem uma afirmação muito peculiar, acredita que é
Deus que coloca a devoção a determinado santo na vida do fiel quando este está em
dificuldade. É assim que interpreta o convite que recebeu para participar da rede da Mãe
Peregrina. Comenta que quando a Mãe Peregrina está em sua casa, sente a todo momento que
há uma convidada em sua casa. O caráter de transformação do seu lar é expresso no
comentário de que em uma ocasião em que a Mãe Peregrina chegou em sua casa e trouxe um
37
forte cheiro de rosas que permaneceu por vários dias, mesmo depois que a Nossa Senhora de
Schoenstatt foi embora. E, também, pela presença em sua casa das crianças da sua rua quando
a santinha está em sua casa. Ela mantém uma relação muito peculiar com os santos que se
manifesta através de sonhos mediúnicos e divinatórios. Um exemplo está relacionado
diretamente com a devoção a Mãe Peregrina. Certa noite, antes mesmo de conhecer a Mãe
Peregrina, sonhou que estava levando Nossa Senhora para a igreja, na mesma semana ela foi
convidada por dona Neide para fazer parte de sua rede de devoção. Na ocasião, dona Neide
sorteou quem iria receber a visita de Nossa Senhora no dia dezoito. Este dia é especial, pois é
o dia em se celebra uma missa em intenção à Maria de Schoenstatt e às famílias que a
recebem, e quem está com ela neste dia é a responsável por levá-la à igreja. A sorteada foi
Vilma. Mas dona Neide sorteou mais duas vezes. Nas duas vezes seguintes foi de novo o
nome de Vilma que saiu. Então, ela ficou encarregada de levar Nossa Senhora para a igreja.
O outro caso relatado envolve uma situação mais crucial. Ocorreu por ocasião de
uma cirurgia que dona Vilma deveria fazer para retirar tumores dos seios. Os médicos haviam
alertado que seria preciso retirar o seio totalmente, caso contrário, haveria o risco do tumor se
espalhar para outras partes do corpo. Mas na véspera da cirurgia, em sua casa, ela sonhou que
o Sagrado Coração de Jesus lhe apareceu em forma de facho de luz e operou os seus seios.
Quando os médicos abriram seu corpo ficaram sem entender o que havia acontecido, pois não
encontraram os tumores que esperavam.
O fato dela ainda sofrer com os problemas dos tumores não desabona em nada a
intervenção divina em seu corpo. Pelo contrário, ajuda a reforçar a presença do sagrado em
sua vida, uma vez que atesta a presença continua de Jesus e Nossa Senhora em sua vida.
Afinal, não teve mais problemas no seio e as outras várias cirurgias que fez para a retirada de
nódulos de outras partes do corpo foram bem sucedidas, graças a Deus. E ela ficou realmente
debilitada com seus problemas de saúde –que se arrastam desde 1982. Ela chegou a pesar
trinta e sete quilos na fase aguda da doença, mas graças a Deus e Nossa Senhora sempre teve
forças para superar os problemas, chegando inclusive a trabalhar de faxineira nesse período
para poder pagar um plano de saúde e assim fugir da morosidade do sistema público de saúde.
c) Dona Teresa
Dona Teresa, que foi indicada a nós por dona Vera, é separada do marido, tem
sessenta e dois anos de idade. Dona de casa, tem duas filhas e três netos. Uma de suas filhas
mora em São Paulo; a outra, com os dois filhos, mora junto com ela. Dona Teresa tem uma
38
casa na propriedade que recebeu de herança de seus pais e que divide com cinco irmãos. Este
imóvel localiza-se no centro da cidade.
Ela diz que se pudesse iria todos os dias à missa, além do sábado e domingo
freqüenta a igreja nas terças e quintas-feiras. Dona Teresa também foi cruzada e filha de
Maria, diz que sempre esteve em atividade na igreja. Comenta que já participou das reuniões
dos carismáticos e lamenta que hoje não tenha mais tempo para participar deste grupo – ela
cuida dos netos enquanto a filha trabalha. Há dezessete anos é catequista de crisma e é
ministra da eucaristia há cinco anos. Além disso, ajuda na cantina da catequese, trabalha na
cozinha para encontros de jovens, também faz as costuras dos enfeites da igreja e dos andores
em ocasiões de festas. Ela participa do movimento da Mãe Peregrina há cerca de seis anos e
no primeiro semestre de 2002 também passou a receber a capelinha do Imaculado Coração de
Maria.
Dona Teresa conta que já foi em excursão para a Canção Nova e que gosta de
assistir à programação televisiva desse movimento e do canal Rede Vida – ambos canais
católicos de televisão. Acompanha, particularmente, os programas de oração que acontecem
ao amanhecer, no período do almoço, no final de tarde e no fim de noite.
Sua ex-sogra é presbiteriana, talvez por isso, foi uma das que mais frisou que “os
crentes estão equivocados”, porque estariam desrespeitando a Mãe de Jesus. Na sua
argumentação existe uma contradição neste comportamento, afinal, como é que os crentes
podem se gabar de Jesus se não acreditam na sua Mãe, como é que Jesus viria à terra se não
fosse por Maria? Questiona aos cristãos não-católicos.
Ela representa um dos pontos de maior negociação da paróquia. Tanto em relação ao
moralismo do movimento da Mãe Peregrina, quanto ao moralismo formal da igreja. Por suas
funções dentro das pastorais da paróquia, ninguém nega a sua importância para a igreja. Na
verdade, ela é essencial para os padres quando se trata de serviços de costura para a paróquia.
Aliás, ela foi convidada para fazer parte da rede da Mãe Peregrina justamente porque dona
Rosa, a pioneira de Schoesntatt em Ubatuba, sempre a via em atividade na igreja. Por outro
lado, ela não nega que é separada, que o marido a abandonou. No caso da Mãe Peregrina,
justifica-se sua permanência pelo dado da distância eclesial que o movimento conserva.
Quanto à paróquia, seu caso revela a permissividade necessária para a realização a contento
das atividades pastorais, afinal de contas, não é fácil conseguir uma catequista dedicada e uma
39
costureira sempre a disposição. Acima dos constrangimentos que os párocos podem sofrer, é
preciso tolerar e perdoar estas pessoas, mesmo porque, as regras canônicas, em muitos casos,
têm sido vivenciadas nas paróquias como limites ideais de conduta. Os casos de divórcio e de
uso de contraceptivos por agentes de pastorais são aqueles que mais denunciam esta situação.
Quase todo mundo sabe, quase ninguém os recriminam, ao menos não diretamente. Quanto às
mulheres que vivenciam estas experiências, cabe a procura por espaços em que podem
continuar sentindo-se católicas.
Ela possui muitas imagens de santos em sua casa, inclusive, várias imagens de
Maria. No entanto, é uma das devotas que mais permite perceber o caráter de sacralização que
a capelinha da Mãe Peregrina exerce nos lares. Ela conta que quando a capelinha está em sua
casa reza de vinte em vinte minutos na sua frente e que antes de passar para a próxima
família, percorre todos os cômodos da casa para abençoá-los com a presença de Maria. Como
todas as outras entrevistadas, ela diz que Maria é uma só, a Mãe de Jesus. Porém, ela diz que a
Mãe Peregrina é especial porque ela foi convidada para participar; ela poderia ter recusado o
convite dizendo que já tem muitas imagens de Maria, mas não o fez. Diz que é um privilégio
receber mais uma imagem de Nossa Senhora e que não podemos ter exceção com Nossa
Senhora, quanto mais imagens tivermos é melhor. Quando é questionada sobre a natureza das
imagens da Nossa Senhora, reconhece que são objetos, mas acaba atribuindo vontades
próprias às capelinhas.
Mais do que alguma contradição, seus pensamentos revelam, na verdade, a complexa
natureza dos ícones católicos. Todos reconhecem que são objetos que representam alguém
que não está naquele objeto, mas muitos, principalmente, os católicos populares, acabam
estabelecendo uma relação com estes ícones que acabam personalizando-os, atribuindo-lhes
até ações, desejos e sentimentos humanizados, acabam transformando estes ícones em atores
sociais, que interagem e alteram o cotidiano dos devotos. Não nos cabe denunciar algum
falseamento ou uma inverdade desta concepção, cabe reconhecer que, de fato, eles têm esse
poder eficiente de alterar a realidade, de trazer segurança e autoconfiança ao devoto. Nesse
sentido, precisamos muito mais reconhecer a existência dessa personagem social representada
pelo ícone e sua importância social numa época marcada pela presença constante de perigos e
riscos reais.
Quando dona Teresa tem alguma dificuldade de difícil resolução recorre a Nossa
Senhora da Divina Providência, mas o santo que mais lhe socorre no dia-a-dia é Santo
40
Antônio. Conforme podemos perceber na sua entrevista, a graça para ela tem um caráter mais
corriqueiro e diz respeito a coisas mais banais das atividades cotidianas e seculares. Quando
solicitamos que narrasse alguns milagres que a marcaram, não comentou nenhuma situação
limite entre a vida a morte, pelo contrário, disse que as graças estão ocorrendo a todo
momento e citou como exemplo uma ajuda para achar um objeto perdido ou a resolução de
um problema de pagamento de um cheque que não tem fundos. Isso pode revelar duas
situações com relação a estes milagres extremos em situações limites:
20
ou ela não foi
contemplada com um milagre desses quando pediu, ou de fato, não vivenciou estas situações
extremas que exigem a ajuda vital dos santos. No segundo caso, não há o que dizer sobre a
crença de que se precisar seus santos de devoção a atenderão. No primeiro caso, a fé também
não é demovida, porque, em geral, a leitura é que o devoto não mereceu o milagre por culpa
própria, ou o santo ou santa fez o que era melhor para o caso. Portanto, nas duas situações
possíveis está assegurada a eficácia simbólica do poder dos santos e de Nossa Senhora.
d) Dona Cecília
Dona Cecília é irmã de dona Teresa, tem sessenta anos, é casada, mãe de um filho
adolescente. É funcionária pública aposentada. Mora nos fundos da casa de dona Teresa, na
propriedade que herdaram dos pais. Seu depoimento sobre sua devoção a Nossa Senhora foi o
mais emocionado que ouvimos. Depois de sua aposentadoria foi assumindo algumas funções
na igreja; antes ela não tinha tempo. Agora ela é coordenadora das ministras da eucaristia e
secretária da Legião de Maria – só depois que se aposentou pôde entrar para a Legião de
Maria, porque agora tem tempo. Ela recebe a capelinha da Mãe Peregrina e também recebe a
capelinha do Imaculado Coração de Maria. Agora também vai à missa todo dia. Ao lado de
dona Teresa, destacamos o fascínio que Cecília sente pela imagem que peregrina. Ela diz que
a imagem da Mãe Peregrina traz uma força muito grande na peregrinação e sente que há uma
transformação na sua casa quando ela chega.
Quando estava comentando sobre os rituais que realiza quando a imagem está em sua
casa, se emocionou muito ao se referir a sua família e a todas as famílias. Com a voz
embargada lembra que as famílias de hoje passam por muitas dificuldades, principalmente as
que têm filhos, por causa da violência e das drogas. Diz que se emociona porque a sua família
é muito especial, uma família “que se dá super bem”. O marido apesar de ser católico não
20
Ao contrário, para a igreja católica são esses milagres que são considerados para a comprovação dos
poderes de algum santo.
41
praticante é muito bom e o filho é uma benção, pois freqüenta as missas, o grupo de jovens e
não usa drogas. Então quando Maria entra em sua casa pede a proteção para a família, que ela
cuide do coração do marido e que de forças a ela para seguir sendo o esteio de sua casa, o
exemplo, com relação à religião. Como sua irmã reconhece valores humanos e maternos em
Nossa Senhora. Concebe Maria como o canal para Jesus; a ponte. Uma intercessora muito
especial, pois é muito difícil o filho negar o pedido de uma mãe.
e) Dona Vera, a coordenadora da Mãe Peregrina
Dona Vera, uma de nossas principais informantes, mora no centro da cidade. É
descendente da cultura caiçara do município, marcada profundamente pelos modos da cultura
e da religião popular. Ela formou-se no magistério num colégio religioso de Taubaté. Possui
cinqüenta e quatro anos, é solteira, professora aposentada, mora com a mãe (viúva) e uma
irmã e suas filhas. Durante o período da pesquisa perdeu um irmão que também morava junto
com ela. Dona Vera é zeladora da primeira capelinha da Mãe Peregrina que veio para cidade.
Com a partida de dona Rosa ela assumiu a sua capelinha e a coordenação do movimento na
cidade. Ao lado de dona Neide representa a liderança da rede que enuncia os projetos
identitários do grupo em busca de um lugar dentro do conjunto plural de práticas da paróquia.
Além desse movimento mariano, também é legionária orante (ou auxiliar) da Legião
de Maria – seu papel é rezar o terço para que “o movimento tenha sempre mais força”, ou
seja, ela não participa ativamente das atividades de visita a doentes e idosos. Participa da
Pastoral do Batismo e da associação de Santo Antônio, grupo que distribui cestas básicas para
famílias carentes da cidade. É, ainda, guia da oficina de Oração e Vida que existe na cidade. A
atividade da oficina consiste em ministrar um “curso” para despertar a prática da oração nas
pessoas. Os objetivos da oficina acabam levando a um rigoroso controle moral e uma ética de
vida puritana de se policiar a todo momento para não cair em tentação.
Com a ausência de dona Rosa, que mudou da cidade para acompanhar o marido que
assumiu um novo posto de trabalho, dona Vera assumiu a coordenação do movimento na
cidade. Associamos os objetivos de dona Rosa, ao reunir as famílias em torno da capelinha,
como sendo o de ampliar a rede de amizade numa cidade estranha. Verificamos que dona
Vera vive uma situação totalmente diferenciada, afinal ela é filha da terra, uma caiçara como
dizem na cidade. De início percebemos que a sua intenção era expandir o movimento pela
42
cidade.
21
Foi assim que, por intermédio de uma conhecida, ela conseguiu reunir, num curto
espaço de tempo, noventa famílias/pessoas interessadas em receber a visita da Mãe Peregrina
no bairro do Ipiranguinha. Contudo, o clero conseguiu reverter esse processo, ao oferecer para
a devota do Ipiranguinha o envio imediato de três capelas do Imaculado Coração de Maria,
sem que ela precisasse passar por toda, vamos dizer, “burocracia” do movimento da Mãe
Peregrina. Claramente a contra gosto, dona Vera consentiu que sua amiga aceitasse a oferta
do clero. Isso não a impediu de, mais tarde, se oferecer para ajudar o frei Pedro (o novo
pároco) a transplantar a oração e as regras de transmissão da imagem da sua devoção para a
devoção que o clero implantava. Apesar disso, segundo podemos supor, esse “golpe” veio
alterar sua relação e disposição com o frei que havia chegado há pouco tempo na cidade.
Fato semelhante ocorreu na rede da zeladora Neide. Ela havia encontrado mais uma
senhora interessada em zelar por outra capelinha no Perequê-Açu. Mas ao pedir a autorização
para frei Paulo (o pároco anterior, que iniciou a devoção), esta senhora, dona Marta, recebeu a
oferta para cuidar não de uma, mas de cinco capelinhas que ele estava trazendo para a cidade.
Mais tarde, em outubro de 2000, dona Vera conseguiu trazer a terceira capelinha da
Mãe Peregrina para circular entre trinta famílias do bairro Sertão da Quina, que fica no limite
Sul da cidade, mais distante do centro, como o nome do bairro indica. Recentemente, com a
formação da Diocese do litoral norte paulista, com sede em Caraguatatuba – SP, o bairro do
Sertão da Quina tornou-se parte de uma das duas novas paróquias criadas na cidade e que
estão sob a coordenação do clero diocesano.
22
Dona Vera demonstra ter um apreço e respeito muito grande pela mãe. Ela, sua mãe
e sua irmã têm um pensamento homogêneo sobre a religiosidade que praticam. Ela tem uma
preocupação marcante com a participação, principalmente, dos jovens na igreja católica. Mas
não aprova a estratégia utilizada pela igreja para atrair os jovens. Não concorda com a nova
21
Na entrevista que nos concedeu, dona Vera mostrou-se extremamente preocupada com o fenômeno de
crescimento das igrejas neopentecostais e a respectiva ausência, principalmente, dos jovens nas missas
católicas. Conforme argumentaremos adiante, ela tentou transformar o movimento da Mãe Peregrina
num empreendimento de identificação, utilizando-se de novos elementos rituais de uma religião católica
que se atualiza e se faz presente por meio de recursos midiáticos. Balandier (1999), ao analisar o dilema
da igreja católica na modernidade, num belíssimo trabalho sobre a natureza da religião e do sagrado na
contemporaneidade – ou na sobremodernidade, como ele diz – chama a atenção para o uso que a igreja
faz das técnicas de comunicação como recurso para manifestar sua presença no tempo corrente. No
mesmo instante que ela precisa impor a Santa Sé, tem de criar uma abertura para a modernidade
superativada que apóie as novas demandas de seus fiéis.
22
A nova diocese do Litoral Norte paulista criou duas novas paróquias dividindo a velha paróquia
franciscana que abrangia todo o território do município.
43
maneira de celebrar as missas que dizem que é para atrair os jovens. Discorda da agitação: “é
muita empolgação”. Diz que a bagunça que fazem é um desrespeito ao Santíssimo – que ele
deveria ser tirado da igreja naquele momento. Diverge da opinião de que a igreja precise
aceitar isso para manter os jovens, diz que é preciso ter mais profundidade nas práticas, afinal,
“não se pode tornar a igreja como uma boate ou uma discoteca”.
Ela idealiza uma atração consciente, uma freqüência à missa que busca conteúdo e
sentido reto para a vida. Evidentemente, privilegia sua visão do que deve ser o rito da missa.
Nesse sentido critica, assim como sua mãe e sua irmã, profundamente o modo dos
carismáticos, “os novos católicos”. Elas criticam os ritos gestuais e as musicas dos
carismáticos; diz tratar-se de ignorância o fato de se introduzir práticas religiosas indevidas e
até inconseqüentes, como o bater palmas em momentos impróprios durante a celebração.
Também reprovam a agitação e movimentação dos carismáticos no momento dos
cumprimentos e saudações da Paz de Cristo, “não é certo sair correndo pela igreja para
abraçar todo mundo, perde-se o sentido da oração, de comunhão”, sentenciam. Reprovam as
palmas e as danças e, também as missas-shows do Padre Marcelo Rossi, por causa de suas
músicas e da presença de artistas em seus eventos: “o povo vai por causa de Cristo e de Maria
ou por causa do Roberto Carlos e do Agnaldo Raiol?”, perguntam.
No ponto de vista de dona Vera, a RCC acarreta mudanças na igreja e missas – que
muitas vezes são incorretas. A sua experiência do sagrado tradicional não admite alterações
rituais; a repetição ritual, neste caso, é o que confere o sentido ao evento máximo da vida
coletiva do catolicismo hierárquico. Ela acredita que os carismáticos não assumem
compromissos duradouros na igreja. É bem consciente dos conflitos dentro da igreja,
atribuindo aos carismáticos a pecha de um grupo à parte que procura se isolar dentro da igreja.
Quando dona Vera fala de compromissos duradouros, fica claro que está mirando no seu
próprio exemplo. Apesar de todas as críticas que ela faz ao momento atual de sua paróquia,
apesar do revés que sofreu no movimento da Mãe Peregrina com as investidas dos párocos e
apesar de questionar algumas inovações rituais impostas pela espiritualidade católica
carismática, ela mantém-se fiel à igreja católica, assiste à missa todos os dias e, acima do
representante do sagrado, mira-se no sagrado em si, na comunhão com Cristo, para seguir
adiante com o seu trabalho dentro da igreja.
Não obstante nos relatar algumas vezes com alguns pormenores os problemas
internos da igreja, critica aquelas companheiras que inadvertidamente comentam com seus
44
maridos, que não freqüentam a igreja, estes assuntos. Ela reprova esta atitude porque, segundo
o que diz, são estes maridos incrédulos que acabam disseminando os problemas internos da
paróquia, oferecendo um bom argumento para os evangélicos atacarem os católicos.
A opinião de que os carismáticos não assumem compromissos duradouros revela
também a percepção da presença de uma espiritualidade mais solta das amarras institucionais.
Neste sentido, algo que se aproxima da religiosidade do movimento das capelinhas da Mãe
Peregrina, no entanto ela não fez esta associação. Ela procurou dar um novo sentido ao
movimento da Mãe Peregrina, mais em acordo com suas visões. Examinando sua percepção
do movimento e a sua avaliação sobre o clero percebe-se uma confluência que alimenta,
segundo nossa argumentação, a sua busca por reconhecimento de um trabalho mais autônomo
em relação ao clero. Dona Vera diz que o movimento da Mãe Peregrina veio à parte da igreja
local – a paróquia – e refere-se a ele como um movimento de leigos que é fruto do Concílio
Vaticano II. Diz que ele representa a consciência de que precisamos evangelizar até dentro de
casa, afinal todo mundo tem uma pessoa afastada da igreja dentro da própria casa, como é o
caso dela. Na verdade, como veremos, o movimento da Mãe Peregrina é extremamente
clericalizado, traz todas as características da intervenção e do controle eclesial sobre as
práticas laicas da reza do terço e da devoção aos santos, contudo, conforme ele se desenvolve
em Ubatuba, podemos afirmar que, de fato, ele é um movimento leigo, ali estão ausentes as
mãos da igreja local e da coordenação oficial do movimento.
Por outro lado, ao levantar o motivo pelo qual as igrejas estão se esvaziando dona
Vera externa a opinião de que os padres de antigamente eram mais piedosos. Inclusive, fala
com aprovação sobre um velho frei da cidade que utiliza pequenas fábulas dos santos para
evangelizar e catequizar os católicos. Com suas palavras, ela constata que antigamente
estavam muito mais nítidas as fronteiras entre o sagrado e o profano. Na sua época, eram os
freis que catequizavam as crianças, só eles pisavam o altar e tocavam a eucaristia. Hoje, com
a abertura do concílio Vaticano II, ao qual ela recorre para justificar o movimento que
coordena, muitos leigos tomam funções sagradas para si, não as principais, é verdade, mas
para algumas pessoas, são funções tão sagradas que só poderiam ser exercidas por gente
piedosa. Não é isto o que dona Vera vê, ao contrário, como ela diz, hoje o pároco convive
com ministros da eucaristia que não poderiam exercer tal função, porque não se vestem
adequadamente ou porque pintam as unhas e usam maquiagem.
45
Parece que dentro de dona Vera convivem as tensões do último Concílio Vaticano,
visíveis nas relações dos movimentos da igreja – entre CEBs e RCC, por exemplo. Ao mesmo
tempo em que ela justifica a devoção à Mãe Peregrina pela abertura da igreja aos leigos,
critica a presença indevida de leigos nos cultos e o movimento laico da RCC. Seu paradoxo
pessoal se estende para suas fontes de crítica da atuação da RCC e da paróquia. Crítica da
atuação da RCC e das escolhas do pároco, ela é leitora assídua da Revista católica, editada
pela Tradição Família e Propriedade (TFP), grupo de ultradireita, conservador, à margem da
hierarquia católica e divulgador no Brasil da devoção a Nossa Senhora de Fátima, enfatizando
principalmente sua mensagem apocalíptica. O paradoxo é que em vários contextos, há uma
afinidade muito grande entre os carismáticos e a TFP.
23
Uma outra possível contradição é a
presença de carismáticos ou admiradores da RCC dentro de sua rede. Como vimos, dona
Teresa que faz parte da rede de devoção encabeçada por dona Vera tem simpatia pela RCC.
No entanto, isto não pode ser tratado como paradoxo, primeiro pela natureza das redes em
Ubatuba, ali elas têm um caráter bem inclusivo admitindo até mesmo a possibilidade de
devotas de outras religiões. Em segundo lugar, porque dona Teresa simpatiza-se com a RCC
recorrendo as suas práticas tradicionais, que são extremamente similares às de dona Vera.
Ambas são naturais da cidade e partilham da formação religiosa e cultural no universo
caiçara. A bem dizer, dona Vera tem um grande apreço por dona Teresa. Quando dona Vera
estava ocupada cuidando do irmão adoentado ela sugeriu-nos que falássemos com dona
Teresa, pois ela seria a pessoa indicada a nos dar todas as informações sobre a campanha da
Mãe Peregrina e a devoção a Nossa Senhora. Se há algum paradoxo, ele existe no processo de
leitura do presente recorrendo-se aos valores e experiências tradicionais. O recurso à tradição
para legitimar ou deslegitimar novas realidades sociais ocorre segundo às idiossincrasias
históricas e psicológicas e segundo às relações sociais nas quais os sujeitos estão inseridos.
Este caso revela, portanto, quão ricos são os universos culturais e os símbolos religiosos,
ambos capazes de legitimar e ao mesmo tempo desrespeitar – dependendo dos aspectos
selecionados pelo sujeito – um novo símbolo religioso.
f) Dona Marta, cooptada pelo clero
Dona Marta é casada, tem dois filhos solteiros, sessenta anos e veio de São Paulo
para morar na cidade de Ubatuba após a aposentadoria do marido; já está há dezesseis anos na
cidade. É a única católica da família de seus pais: “um crente, o ouro espírita...” Também foi
23
Haja vista a proliferação de adesivos de Nossa Senhora de Fátima vendidos pela TFP nos automóveis
de carismáticos católicos.
46
cruzada e filha de Maria. Depois de casada, em São Paulo, fez cursilho e encontros de casais.
É da Legião de Maria e ministra da eucaristia – mas só atende aos doentes em suas
residências, não pode trabalhar no altar porque tem problemas de saúde. Ela recebe a Mãe
Peregrina e também recebe o Imaculado Coração de Maria. Na verdade, ela coordena cinco
capelinhas do Imaculado Coração de Maria no bairro do Perequê-Açu, onde mora. Numa
ocasião pediu para a Mãe Peregrina ajudar o filho a arrumar um emprego, em troca prometeu
que se tornaria uma nova zeladora e arrumaria mais trinta famílias para que ela, Maria,
visitasse. Só que quando ela foi pedir a autorização para o pároco, ele lhe ofereceu a
oportunidade de iniciar uma nova devoção com a capelinha do Imaculado Coração de Maria.
Ela aceitou e ele lhe entregou – na verdade, ela teve que pagar – cinco capelinhas e assim
conseguiu “não trinta, mas cento e cinqüenta famílias para Nossa Senhora”.
Do seu ponto de vista, a troca não acarretaria problemas ao cumprimento da
promessa, pois se trata da mesma Nossa Senhora. Mas para o frei a criação de uma nova
devoção era crucial. Quando perguntei à dona Marta o motivo pelo qual o frei quis fazer uma
nova, já que se trataria da mesma Nossa Senhora, ela demonstrou plena consciência das
intenções do pároco: “É que a Schoenstatt já vem de outra igreja [vem da Alemanha, ela
explicou adiante], é um movimento diferente, ele não poderia entrar com ela aqui. [...] aí ele
teria que prestar ordem para alguém. Ele teria que receber as santas e todas...” Apesar desse
reconhecimento, dona Marta diz que o frei não foi “arbitrário” ele deixou a opção, se ela
quisesse receber a de Schoenstatt não teria problema. Segundo suas palavras, ela aceitou o
Imaculado Coração de Maria, pois todas se referem a mesma Mãe de Jesus. Porém, é visível o
constrangimento que ela passaria caso não aceitasse a imagem do padre. Poderia ser acusada
de estar confundindo a devoção à Maria com a devoção a uma imagem de Maria e poderia se
indispor com o pároco. Por outro lado, ela se viu privilegiada, por se sentir como aquela que
incentivou o pároco para que ele desse inicio à devoção. Um sentimento de contentamento por
fazer parte diretamente nos planos do pároco deve tê-la acometido na ocasião. Ao menos, é o
que podemos supor, quando ela comenta que recebeu cinco capelinhas de uma vez, três a mais
que as outras coordenadoras, porque foi quem deu o incentivo para o frei iniciar a devoção. O
argumento de que estas imagens estavam abençoadas pelo padre, é um forte chamativo para
que as pessoas tomem parte desta devoção. Outro aliado seu foi a natureza mais “frouxa” dos
rituais da devoção do padre; os devotos não precisariam seguir a maioria das normas vigentes
no caso da Mãe Peregrina. Quanto à dona Marta, ela pôde continuar na rede da Mãe
47
Peregrina, ao mesmo tempo em que complementava sua participação e seu prestígio
coordenando as capelinhas do padre em sua comunidade.
g) Dona Lourdes
Dona Lourdes de setenta e um anos, não tem filhos e é casada só no civil. Por ter
criado os irmãos mais novos, gosta de dizer que tem netos – os sobrinhos – sem ter tido filhos.
É policial militar aposentada, seu marido é coronel da reserva, e juntos tocam e administram
chalés destinados a turistas no bairro do Perequê-Açu. Há vinte anos, depois que se
aposentaram, vieram para Ubatuba oriundos da capital paulista. Nas últimas eleições
municipais seu marido foi candidato derrotado ao cargo de vereador na cidade de Ubatuba.
Participam da associação Guarda Mirim de Ubatuba, entidade que prepara menores carentes
para o exercício de atividades de aprendiz nas empresas da cidade. Ela também foi das filhas
de Maria. Atualmente é responsável pela pastoral do batismo e é secretária da Legião de
Maria na comunidade do Perequê-Açu. Sua condição financeira e de educação formal, assim
como o de dona Nair (que veremos a seguir), destaca-se em relação à das demais
entrevistadas.
Também como dona Nair, só recebe a capelinha do Imaculado Coração de Maria, da
qual é coordenadora – na hierarquia desta rede ela está ligada à dona Marta. Com relação à
diferença da Senhora da capelinha e as outras imagens de Nossa Senhora que tem em casa diz
que, no caso da capelinha, Deus permitiu que Maria entrasse em sua casa. Mas ela salienta
que a capelinha serve para lembrar de Nossa Senhora, para lembrar que se pode pedir à Maria
e se deve rezar para ela. O interessante a se destacar nesta fala e em outros momentos de sua
entrevista é que ela sempre se refere à terceiros: “...serve para lembrar eles..., ...eles não
freqüentam a missa..., ...eles não gostam de rezar o terço juntos...” – no caso das famílias que
recebem a visita da capelinha que ela toma conta. Diz que lê muita literatura religiosa, mas lê
pouco a Bíblia propriamente dita –só recentemente passou a ler com mais freqüência a Bíblia.
E também tem uma concepção muito abstrata de graças e milagres, aliás, falou pouco a esse
respeito. Disse sobre a graça de estarmos vivos e comentou que se nós pedimos para Maria,
nós recebemos as graças que desejamos.
h) Dona Nair, recomendada pelo pároco
Dona Nair, que foi indicada pelo pároco, é residente na matriz. Ela nasceu em
Ubatuba, é de família abastada da cidade, e a família do marido participa do poder político do
48
município, tendo elegido um prefeito no passado. Ela tem sessenta e nove anos, é dona de
casa, casada, tem um filho, cinco filhas, dez netos e quatro bisnetos. Depois que se casou
morou por vinte e três anos em São Paulo. Apesar da condição de aposentado e da saúde que
requer cuidados, seu marido ainda mantém uma loja no centro da cidade. A atividade de
cuidar do marido toma boa parte do tempo de dona Nair. Por isso hoje ela abandonou a
maioria de suas atividades na igreja e os cargos de liderança que tinha na paróquia.
Quando criança foi cruzada, participou das Filhas de Maria e aos quatorze anos
tornou-se legionária de Maria. Foi catequista durante trinta anos – coordenou a catequese por
doze anos – foi coordenadora do batismo por outros dez anos, organizou cursos de noivos e
cursilhos, além de ter sido a presidente da Legião de Maria da cidade por vinte e oito anos.
Hoje, participa do Apostolado da Oração, da Legião de Maria – apesar de não exercer cargos
no movimento, parece que ainda hoje tem papel decisivo no grupo – e há trinta anos é
ministra da Eucaristia. Como muitas das outras mulheres com quem falamos, vai à missa todo
dia. Dona Nair é coordenadora de uma capelinha do Imaculado Coração de Maria, e não
recebe a Mãe Peregrina. Diz que tem um sentimento especial quando a capelinha do
Imaculado Coração de Maria chega, mas não porque uma imagem diferente chegou, mas sim
porque o espírito de Maria entrou em sua casa. Este foi o único comentário que fez, depois da
nossa insistência, a respeito da capelinha que recebe. Com efeito, ela fez questão de frisar, em
seguida, que não se prostra diante da imagem, mas diante de Maria, não pede à imagem, mas
à Maria, pois sabe que as imagens são nulas, não se movem, não fazem nada; e se a capelinha
se move é porque ela e as amigas a movimentam. Posição bem distinta de muitas devotas da
Mãe Peregrina, que como vimos e veremos salientam que é Maria que caminha/peregrina por
sua vontade e que as pessoas são instrumentos para que ela realize esse desejo de andar. Dona
Nair vai mais além e lembra que as imagens de santos que tem são ornamentos da residência,
estão enfeitando sua casa, assim como o vaso e o abajur que estão sobre a mesa.
Ao lado de dona Vera, ela é a que externa mais claramente uma consciência de
divisões e conflitos dentro da igreja, falou-nos especialmente do caso das devoções marianas.
Apresenta uma elaborada diferenciação entre os movimentos e devoções marianas.
Privilegiando a todo o tempo a Legião de Maria, diz que se a pessoa é legionária não deveria
ser da capelinha medianeira (referindo-se à capelinha da Mãe Peregrina). Os dois movimentos
atuam para a mesma Nossa Senhora, que é a Mãe de Deus, mas cada uma tem a sua própria
espiritualidade voltada para o trabalho que realizam.
49
Outro momento de sua fala em que percebemos tensões é quando avalia a situação
atual do movimento da Legião de Maria. Depois que deixou a presidência do movimento,
argumenta que não se respeitam mais as formalidades do movimento. Critica em primeiro
lugar a presidente atual porque começa as reuniões sem rezar uma dezena do terço e a oração
do Espírito Santo, “coisinhas que são mínimos detalhes, mas que são correções para a gente
crescer, aperfeiçoar mais e mais a cada reunião”, justifica. Depois dirige a crítica aos dois
presidium, núcleos de legionárias, existentes em duas comunidades da paróquia, a do bairro
do Maranduba/Sertão da Quina e do Perequê-Açu, bairros onde justamente existem outras
capelinhas da Mãe Peregrina. Ali a sua crítica segue no sentido de censurar as legionárias por
estarem acrescentando os serviços paroquiais no computo geral dos trabalhos da Legião. Ela,
de fato, reconhece que nas comunidades há muito mais trabalho a se fazer – na verdade, deve
haver trabalho concentrado nas mãos de poucas pessoas – mas chama a atenção de que os
trabalhos da Legião de Maria são única e exclusivamente espirituais, é o trabalho de visitar e
rezar com as famílias, o hospital, os doentes e os presidiários. Eles não podem nem mesmo
agir diante de uma situação de necessidade. Quando encontram alguma família ou doente que
precisa receber uma cesta básica ou remédios, precisam encaminhar o caso para alguma
pastoral da comunidade. O assistencialismo espiritual da Legião de Maria, renega toda a
forma de solidariedade característica da religião popular, ao mesmo tempo, que nega o valor
dos trabalhos mais pesados, ingratos, mas fundamentais do espaço comunitário, que é a sua
limpeza. Esse trabalho geralmente está a cargo dos mais humildes da comunidade.
Talvez não seja coincidência a presença corriqueira da coordenação estadual da
Legião de Maria na cidade, ao lado da efetiva presença do pároco nos encontros mensais, para
proferir alguma palestra às legionárias.
Da mesma forma que a visão a respeito da imagética religiosa, a sua concepção de
graça e milagres apresenta uma elaboração racionalizada, muito mais próxima da posição
oficial da igreja, quando comparada com as concepções das demais devotas com quem
falamos. Em primeiro lugar, ela sente-se realmente como uma apostola de Cristo – tem, não
por acaso, como santos da sua maior devoção São Paulo e São Pedro, “os apóstolos
fervorosos de Jesus” – e nessa missão confia que Maria lhe dá orientação nos momentos em
que precisa aconselhar alguém que lhe pede ajuda. Pede nesses momentos para Maria dizer-
lhe o que for melhor para aquela pessoa, atitude muito semelhante ao que os carismáticos
chamam de locução interior, com relação à experiência espiritual de auscultar o Espírito Santo
e Nossa Senhora. Em segundo, porque geralmente os relatos das graças de Nossa Senhora que
50
narrou ao nosso pedido, foram definidos como testemunhos da presença viva de Maria e
ocorrem especialmente nos momentos limiares entre a vida e a morte e, sobretudo, pela via ou
dos sacramentos eclesiais ou do anúncio do evangelho.
1.2.2 A introdução da devoção ao Imaculado Coração de Maria
Hoje, apesar do interesse despertado nas mulheres da cidade, existem apenas três
capelinhas da Mãe Peregrina em circulação na cidade e dois fatores contribuíram para a
limitação da ampliação do movimento na cidade. O primeiro deles foi a mudança de cidade da
agente inicial. O segundo e decisivo fator foi, como veremos, a competição patrocinada pelo
clero da paróquia em relação à devoção. Ao contrário do movimento da Mãe Peregrina, que
conta com três capelinhas, a devoção implantada pelo clero espalhou-se rapidamente pela
cidade, atingindo um número superior a quarenta capelinhas em circulação.
24
Atualmente, a
devoção ao Imaculado Coração de Maria conta com cerca de dezesseis ou dezoito capelinhas
circulando.
Frente ao sucesso inicial e potencial da Campanha da Mãe Peregrina, o pároco da
época, frei Paulo, encontrou na rede em atividade uma oportunidade para introduzir a imagem
e a devoção do Imaculado Coração de Maria. Uma tentativa de, ao mesmo tempo, controlar o
culto mariano da paróquia e de enfrentar o avanço neopentecostal na cidade. Ele criou assim,
uma nova devoção à Maria com a mesma estrutura da primeira depois que conheceu e
observou a aceitação da Mãe Peregrina em Ubatuba.
25
Pelo menos no início, os padres usaram
do expediente de oferecer a sua própria devoção às devotas que vieram pedir-lhes a
autorização exigida pelo movimento da Mãe Peregrina. Como dissemos há pouco, frei Paulo
propôs à Marta, devota da Mãe Peregrina do bairro do Perequê-Açu, que foi lhe pedir a
autorização para zelar por uma nova rede de devoção, que, ao invés de venerar aquela Virgem
Maria, ela deveria dar início a uma devoção semelhante, nos mesmos moldes daquela, porém,
com a imagem do Imaculado Coração de Maria (figura n.
o
2).
26
Da mesma forma, mais tarde,
24
Até onde sabemos, o movimento criado pelo clero de Ubatuba ainda não avançou os limites da cidade.
25
Há que se ressaltar que a Mãe Peregrina não é a única Maria, no Brasil, que possui um culto em que
uma imagem circula pelas residências dos devotos. Só na cidade de Ubatuba tivemos notícias de que
circulam pelos lares católicos (ou não) as imagens de Nossa Senhora da Rosa Mística e, bem
recentemente, Nossa Senhora de Fátima. Esse fenômeno, que tem seu fundamento nas poucas
referências evangélica da vida de Maria (como a narrativa da visita a sua prima Isabel e sua
peregrinação até Belém), vem sendo muito bem explorado pela igreja católica.
26
Apropriando-se de vários elementos presentes no repertório religioso da primeira Maria (inclusive a
capela e a forma de circulação) o primeiro sacerdote substituiu a estampa da Mãe Peregrina de
51
ele arregimentou o grupo de noventa famílias do bairro do Ipiranguinha, representadas pela
devota que foi pedir-lhe a utilização dos recursos paroquiais para organizar a lista necessária
para solicitar o envio das capelinhas da Mãe Peregrina.
Com o aceite de Marta, frei Paulo, então encomendou vinte capelas de madeira e
“mandou trazer do Paraná” vinte estatuetas do Imaculado Coração de Maria. Mas, foi frei
Pedro que substituiu frei Paulo depois que este deixou a paróquia, quem deu o grande impulso
dessa devoção, fazendo circular as vinte capelinhas iniciais e distribuindo outras mais que
mandou fazer. Do ponto de vista organizacional, esta nova devoção era muito mais simples,
nada de exigências concretas, apenas a recomendação de fazer uma oração livre e pessoal à
imagem e o compromisso de não a reter por mais de vinte e quatro horas. Quanto aos
coordenadores, eles deveriam cuidar para que as recomendações se cumprissem e participar
de uma reunião mensal com o pároco.
27
Por outro lado, na campanha da Mãe Peregrina o fiel segue (ou melhor, deveria
seguir) exigências concretas de oração e vivência religiosa. Esta diferença, levaram os líderes
locais do movimento da Mãe Peregrina a atribuírem a maior difusão da imagem introduzida
pelo clero ao fato de o movimento da Mãe Peregrina exigir um compromisso maior, no
sentido das famílias não falharem na pontualidade no momento de entregar e receber a
imagem. A Mãe Peregrina exige, também, uma responsabilidade maior por parte da zeladora,
que deveria participar periodicamente dos encontros de formação no Santuário de Atibaia,
zelar pela espiritualidade e moral das famílias que estão sob seus cuidados, além de cuidar
efetivamente para que a santinha não fique mais de um dia na casa de uma pessoa. Ela tem
que ser pontual e severa na execução das normas do movimento. Entretanto, observo com
muitas ressalvas, que o sucesso se deve muito mais ao prestígio que envolve a participação
num movimento incentivado pelo padre local, marcador mais claro de distinção entre os
paroquianos. A ressalva é feita porque algumas devotas, no caso das duas devoções, não são
Schoenstatt pela estatueta do Imaculado Coração de Maria. O pároco que o sucedeu finalizou o
processo de cópia introduzindo também as orações de recebimento e de entrega da capelinha. Nesta
estratégia do clero explicita-se o significado de “tradição inventada” (cf. H
OBSBAWM & RANGER, 1984).
27
Uma das poucas coisas que se diferencia nesta nova devoção é a presença de um cofre no pé da
capela, cujas ofertas mensais são oferecidas para a formação dos seminaristas da Diocese – e isto não
é um mero detalhe. Quanto ao Movimento de Schoenstatt, apesar do secretariado contar com um
departamento de contabilidade que faz o controle do pagamento (“dos custos”) dos materiais enviados
para os coordenadores e zeladores, não identificamos uma forma direta de contribuição dos devotos
para a manutenção da organização burocrática. Seria essa inovação do pároco uma re-significação do
“capital de graças” da devoção à Mãe Peregrina?
52
católicas praticantes, encontrou-se até mesmo um caso em que a família nem era mais
católica. Isto é, elas se diferenciam até mesmo no grau de participação eclesial.
Em defesa das devotas da Mãe Peregrina registramos, também, que essa
“competição” é percebida muito mais claramente do lado dos clérigos, porque hoje, quase
todas as senhoras que recebem a capelinha da Mãe Peregrina, que são em menor número,
recebem também o Imaculado Coração de Maria. Fato que vem confirmar nossa tese de
complementaridade que a devoção da Mãe Peregrina exerce. Antes de avançarmos, talvez seja
importante observar a visão do atual pároco, para tentar perceber de que forma o clero pensa e
cria essa competição.
a) Frei Pedro, o pároco que ampliou a devoção clerical de Maria
Pouco soubemos a respeito de frei Paulo, que introduziu a devoção do Imaculado
Coração de Maria. As poucas informações que dispomos foram passadas pelas devotas que
nos acompanharam na pesquisa. Sabemos que hoje ele reside em Santo André e é frei
franciscano. Porém, conseguimos mais dados a respeito de seu sucessor na paróquia da
Exaltação de Santa Cruz, frei Pedro, que está há cinco anos à frente da paróquia e foi quem
deu fôlego à devoção iniciado por seu companheiro. Franciscano italiano, tem sessenta anos e
estudou em Roma e nos Estados Unidos. Foi missionário na África e no estado do Paraná
antes de vir para Ubatuba. Ele ainda possui um forte sotaque, sempre destacado pelas devotas
da Mãe Peregrina. A primeira coisa que nos chamou a atenção foi a primeira missa presidida
por frei Pedro que assistimos. Naquele dia a missa iniciou-se às sete e meia da manhã e antes
das oito horas já havia se encerrado. Anotamos no caderno de campo a seguinte informação a
respeito da celebração:
Não deu para entender muita coisa sobre o que o padre falou. Além de falar
rápido, ele possui um forte sotaque. Essas missas não têm nada a ver com as
missas festivas que se realizam em paróquias com padres carismáticos. Foi
muito rápida, sem muitos cantos, sem emoção; burocrática. Parece que ao
invés de fazer um grande ritual que sensibiliza emocionalmente, o padre
oferece os sacramentos e a experiência de Deus, em doses homeopáticas,
todos os dias, sem um caráter extraordinário para o rito.
Uma das poucas informações que tínhamos a seu respeito, informava que ele era
receptivo aos carismáticos, por isso a surpresa em ver uma missa tão rápida. Não obstante, os
relatos colhidos de devotas da matriz registraram a ocorrência de missas carismáticas em sua
53
paróquia. Outra coisa que chamou a atenção naquele dia foi a completa ausência, de sua parte,
de referências à Mãe Peregrina (Nossa Senhora de Schoenstatt), cuja imagem encontrava-se
numa mesa ao lado do altar. Sua homilia versou sobre a primeira leitura retirada do Antigo
Testamento, que dizia respeito aos falsos ídolos dos judeus. Argumentou que os ídolos de
hoje são os pequenos compromissos corriqueiros que nos afastam da igreja. A seguir,
comentou o evangelho, ligando-o à primeira leitura para dizer que devemos ser como as
crianças, “pessoas de espírito infantil”, e nos doarmos totalmente para os serviços de Deus.
Não fosse a oração do terço após a missa realizado pelo grupo de oração que estava
presente à missa – e sem a presença do padre – nenhuma referência a “Nossa Senhora, Mãe
Rainha Três Vezes Admirável” (a Nossa Senhora de Schoenstatt), teria sido feita naquele dia.
A propósito, do movimento da Mãe Peregrina só uma devota da matriz e a zeladora do
Pereque-Açu estavam presentes naquela missa do dia dezoito de agosto de 2001. Missa que,
pelas normas do movimento, deveria reunir todas as famílias do movimento. A atitude do frei
naquele dia contrastou totalmente com outras missas que assistimos em São José e em
Taubaté no mesmo período. Nesses dois casos os padres convidaram para a missa do dia
dezoito não só as famílias que recebem a visita da Mãe Peregrina, como também, todas as
famílias da paróquia.
Da mesma forma que a missa a que assistimos, a conversa que tivemos com frei
Pedro foi muito rápida, ele quis ser o mais objetivo possível, limitando-se apenas aos temas
que lhe enviamos previamente. Apesar da primeira impressão não ter sido muito boa –
achamos-lo esquivo – nas outras duas vezes que o encontramos, percebemos que o jeito sério
e firme, não o impede de ser cortês com os paroquianos. Observamos-lo cumprimentando e
brincando, principalmente, com comerciantes do centro da cidade. Não obstante, sua
velocidade em responder as minhas questões, se mostrou disponível, dentro da sua limitação
de tempo para tratar do tema que lhe propusemos. Talvez sua disponibilidade tenha sido
incentivada pelo fato de aquela ter sido a terceira vez que nós tentávamos entrevistá-lo.
Não inquirimos a respeito da intenção do padre em incentivar a devoção ao
Imaculado Coração de Maria, na verdade, intrigou-nos o fato dele ter omitido estas devoções
quando perguntamos pelos movimentos marianos de sua paróquia. Neste momento ele citou
apenas a Legião de Maria, aliás, falou muito bem do movimento que é muito grande e muito
ativo na paróquia. Mas aguça-nos a curiosidade, por saber que frei Pedro é doutor em
sociologia, e uma das coisas que lhe chamou a atenção aqui em Ubatuba foi exatamente o fato
54
de os católicos serem “bem comprometidos” e gostarem de festas. Ele diz que há muitas festas
na paróquia e por isso encontra muita alegria nos católicos de Ubatuba. Como sociólogo da
religião e segundo as observações que fez a respeito da paróquia, ele sabe da importância da
devoção aos santos e também da imagética religiosa para os paroquianos de Ubatuba. Desse
modo, ele deve ter estabelecido um objetivo bem claro ao incrementar a devoção ao
Imaculado Coração de Maria, a despeito da devoção à Mãe Peregrina. Na realidade, alguns
turistas que conhecemos observaram que depois que ele assumiu a paróquia, as festas da
cidade, principalmente a do Divino que ocorre no mês de junho ganharam em grandiosidade.
Ele não só percebeu “a necessidade dos católicos de Ubatuba de dar visibilidade para a sua
” como também incentivou essa prática. Tanto nas festas como nas capelinhas por ele
controladas.
Frei Pedro chama a atenção para o papel de Maria para igreja, porque uma igreja sem
Mãe é uma igreja morta, e se lamenta pelo fato dos irmãos crentes a teremjogado fora”.
Ainda reforça que as devotas marianas são fundamentais para a realização dos trabalhos
espirituais, dos movimentos e pastorais, diz que ao lado de Jesus, ela é referencia fundamental
para os trabalhos da paróquia. Por isso a sua predileção pelo movimento da Legião de Maria
e pelas devotas do Imaculado Coração de Maria, são elas as mais afinadas com as diretrizes
pastorais, não foi por acaso que a sua única indicação para esta pesquisa tenha sido a da
devota que presidiu a Legião de Maria por quase trinta anos na cidade.
b) Imigrantes e nativas, Mãe Peregrina e Imaculado Coração de Maria
Uma divisão possível e muito interessante a se fazer – antes de simplesmente dividir
os grupos segundo a devoção a que pertencem – pode ser a da localidade de residência,
porque muito providencialmente essa divisão demarca a origem dessas mulheres. Assim, as
quatro devotas que moram no bairro central são naturais de Ubatuba. Por sua vez, todas as
quatro entrevistadas que moram no bairro do Perequê-Açu são migrantes, duas da cidade de
São Paulo, uma do Vale do Paraíba e outra do sul de Minas Gerais.
Podemos dizer que não é coincidência o fato das quatro entrevistadas do bairro
Perequê-Açu serem migrantes. Uma característica de Ubatuba é o enorme fluxo demográfico,
fluxo que altera de maneira expressiva, entre outros aspectos, o campo religioso da cidade,
seja internamente ao catolicismo, seja na relação deste com as demais religiões cristãs e não-
cristãs – principalmente as diversas religiões contemporâneas.
55
O fato de a cidade receber intenso fluxo migratório se explica por sua posição
geográfica e histórica.
Ubatuba
, localizada no litoral norte do estado de São Paulo a 262 Km da
capital e possui 748 Km
2
de área.
28
Entrou para a história do Brasil colonial desde muito
cedo. Tinha grande população de Tupinambás e de outros grupos indígenas no período em
que Cabral aportou no continente. Hans Staden se aventurou por aquelas terras já em 1554 e
logo depois os jesuítas Nóbrega e Anchieta deixaram suas marcas nas praias que se
constituíram em vila em 1637. Contudo, infelizmente a situação histórica da população
autóctone é de expropriação e expulsão de suas terras, que esvaziadas foram repovoadas por
imigrantes europeus e índios incorporados ao sistema produtivo colonial (cf. MARCÍLIO,
1986)
.
No final do século XVIII, a lei portuária que deu exclusividade para o porto de Santos-
SP mergulhou a cidade de Ubatuba num isolamento territorial. A estrada que ligava o porto da
cidade ao interior do Vale do Paraíba (Taubaté-SP) foi praticamente desativada e a população
foi reduzida a 2.000
habitantes. Mas em 1954 foi aberta a estrada Caraguatatuba - Ubatuba,
logo em seguida foi restabelecida a comunicação com o Vale do Paraíba, através da Serra do
Mar e, na mesma época, a ligação com o Rio de Janeiro, depois da conclusão da BR 101 que
ligou Santos-SP à capital fluminense. Foi neste período também que chegou a energia elétrica
na cidade.
Com essa configuração, a especulação balneária invadiu a região expulsando os
caiçaras
29
de suas terras para dar início ao balneário turístico em que se transformou a cidade.
A imigração para a cidade foi inevitável e conheceu seu auge do final dos anos 1970 ao início
dos anos 1990. A população que hoje forma a cidade é constituída, principalmente, por
imigrantes do interior do estado de São Paulo, de Minas Gerais e da Bahia e outros estados do
nordeste (cf. SETTI, 1985 e LOPES, 2000b). Segundo dados do IBGE, a cidade tinha 47.398
habitantes residentes em 1991, passou para 55.033 habitantes em 1996 e hoje conta com uma
população residente de 66.861 indivíduos (50,69% homens e 49,31% mulheres), mostrando
que ainda hoje possui um dos maiores índices de imigração do estado (cf. IBGE, 2002). A
formação dos bairros, com exceção da região central, e das vilas de pescadores caiçaras, é
relativamente recente e constituem-se, mormente, de casas de imigrantes e/ou de veraneio. Os
bairros citados neste texto encontram-se no entorno da região central:
Perequê-Açu ao norte,
Enseada ao Sul e Ipiranguinha a oeste, na entrada da cidade para quem vem de Taubaté. O
28
Segundo dados da Malha Municipal Digitalizada do Brasil (1997), do IBGE (2002), o município possui
atualmente 711,33 Km
2
de área.
29
Os caiçaras são os moradores tradicionais de grande parte do litoral Sul-Sudeste do Brasil,
descendentes de índios, os primeiros habitantes do litoral.
56
outro bairro citado, Sertão da Quina, localiza-se no extremo Sul do município.É neste
contexto, pois, que se formam as redes de devoção à Mãe Peregrina em Ubatuba e os demais
grupos de devoção à Virgem Maria.
Devido àquela predileção do padre pela Legião de Maria (e o movimento do
Imaculado Coração de Maria), traçamos uma distinção analítica entre aquelas senhoras que
recebem a Mãe Peregrina e aquelas que recebem somente a capelinha do Imaculado Coração
de Maria. Na verdade, segundo os dados observados em campo, a divisão segundo o
pertencimento exclusivo à devoção ao Imaculado Coração de Maria e o pertencimento
simultâneo às devoções da Mãe Peregrina e do Imaculado Coração de Maria, acaba
justapondo-se de alguma forma sobre a divisão de origem e moradia atual. A distinção em
relação às mulheres das redes do Imaculado Coração de Maria é maior para o grupo da Mãe
Peregrina do bairro do Perequê-Açu, no qual todas as devotas que entrevistamos são
migrantes. As católicas desta comunidade, apesar de se situarem muito próximas do centro da
cidade, percebem-se e são percebidas como distintas das católicas da matriz. Referimo-nos ao
fato, destacado acima, da divisão feita por dona Nair, devota do Imaculado Coração de Maria,
residente na matriz, quando avaliava a atuação dos diversos grupos da Legião de Maria na
cidade de Ubatuba.
Uma das causas possíveis desta distinção e do conflito por nós identificado é a
relativa autonomia que as devotas da Mãe Peregrina podem ter na relação com o sagrado. A
produção simbólica de um “santuário familiar” (ou a privatização do espaço sagrado, outrora
essencialmente público) abre a possibilidade para experiências religiosas que não são
vivenciadas nos serviços paroquiais. Contudo, para os agentes eclesiais estas práticas
religiosas podem parecer, no mínimo, pouco satisfatórias quanto ao objetivo de evangelização
e “arrebanhamento”; justificando, desta forma, mecanismos de inclusão destas nas atividades
oficiais da paróquia.
30
Como vimos, o que aconteceu em Ubatuba, porém, não foi exatamente
uma inclusão, mas uma tentativa de substituição.
30
Esta constatação não é nova, Reginaldo Prandi (1997), por exemplo, fez observação semelhante em
relação à Renovação Carismática católica.
57
1.3 As capelinhas da Mãe Peregrina em Ubatuba e a privatização do
sagrado
Para abordar o estudo de outro enfoque do conflito simbólico presente na busca do
reconhecimento moral e identitário das crenças populares das mulheres que veneram a Mãe
Peregrina, propomos uma análise dos dados etnográficos tomando o movimento da Mãe
Peregrina enquanto um fenômeno de privatização do espaço sagrado. Quando falamos em
privatização do sagrado nos referimos à autonomia de táticas dos sujeitos diante do consumo
dos bens simbólicos. Sociologicamente, muito já se falou sobre o caráter privatizado das
religiões brasileiras. Alguns teóricos defendem mesmo que essa característica esteve presente
desde os primórdios da colônia devido ao catolicismo de culto aos santos trazido pelos
colonizadores ibéricos.
De fato, o debate sobre este conceito remete a elementos fundamentais na
compreensão das devoções populares. Estas possuem um caráter de construção coletiva
atravessada pela visibilidade oferecida para a fé, pelos rituais, pelas celebrações, reforçando
assim, laços sociais e identitários. Ao mesmo tempo, sua dimensão individual de proximidade
com Deus, através do santos, admite relações pessoais e manipulações de caráter mágico (cf.
WEBER, 2000, p. 280, 292 e 373-384). Temos ainda, o caráter de centralidade das devoções na
vida cotidiana dos católicos, marcada pela visibilidade divina, através do Crucificado (o Bom
Jesus), Maria e os santos de maior penetração ou identificação em povos e culturas, como São
Francisco, Santo Antônio, São Benedito, entre outros.
Pela relação existente, portanto, entre as devoções populares e este fenômeno
chamado de “privatização do sagrado” e para mapear nossas posições, propomos um rápido
olhar sobre as posições de dois sociólogos da religião a respeito deste caráter da religião
católica no Brasil. O primeiro deles, Pedro Ribeiro de Oliveira (1997, p. 45-50; 1985, p. 107-
160 e 275-332), diz que a primeira expressão do catolicismo que chegou e se difundiu no
Brasil foi o catolicismo medieval organizado em torno da figura do santo, e que se
convencionou chamar de catolicismo popular, sendo o conceito “popular” utilizado para
acentuar que o trabalho religioso é anônimo, isto é: a produção religiosa caberia a todos os
58
membros do grupo, constituindo-se aquilo que Bourdieu (1992, p. 39-40) chamou de
produção de auto-consumo religioso - em oposição à monopolização da produção religiosa.
31
Posteriormente, no final do século XIX, a igreja do Brasil, seguindo os rumos do
pontificado de Pio IX, deu início à implantação do catolicismo segundo o modelo romano.
Assim, no confronto que significou o processo de romanização no Brasil, uma prática
utilizada pela igreja foi a substituição de devoções populares por devoções européias (não-
ibéricas), além da instalação dos santos nas paróquias, como formas de desestruturar o
universo religioso dos fiéis e de controlar (ou eurocentricamente “civilizar”) os rituais de
devoção. Contudo, diferentemente do que se esperava nesse processo, certos elementos do
catolicismo romano foram re-apropriados e reinterpretados pelos devotos resultando num
catolicismo privatizado”, que se expressa pela relação direta e pessoal entre o fiel e o santo.
Isto é, há uma associação do fiel com uma imagem em especial, assim o pedido feito diante da
imagem de São Judas Tadeu, por exemplo, só poderá ser pago no mesmo local e àquela
mesma imagem e não a outra qualquer do mesmo santo.
O catolicismo privatizado, segundo Pedro Ribeiro de Oliveira, não se define como
autônomo porque o lugar do santo é na paróquia e não na residência ou capela local e
santuário controlados por agentes leigos. A relação individualizada com o santo, em
detrimento do aspecto comunitário das devoções populares tradicionais, remete-nos, segundo
o autor, a um “catolicismo de massa”, denominação mais adequada para o caso. Na antiga
religião luso-brasileira, sob a orientação da liderança leiga da comunidade, os devotos
rezavam para causas coletivas. Agora, no catolicismo privatizado, o culto aos santos é um
assunto individual ou familiar: cada pessoa desempenhando o papel de rezadora para si ou sua
família (cf. OLIVEIRA, P., 1997, p. 49-50 e 54).
Antes de abordar a outra visão a sociologia da religião, nos é oportuno registrar que
Gutilla (1993, p. 121-124) observou corretamente como, no caso de São Judas Tadeu do
Bairro paulistano do Jabaquara, a relação mais forte e duradoura com o santo que está na
paróquia, ou no santuário controlado pelos padres, é construída sim, nas residências. A
relação com o santo protetor ganha vida e sentido com o santo de casa e não na casa do
santo.
31
Para Michel de Certeau (1994) a oposição seria em relação à monopolização da difusão das imagens
oficiais da igreja.
59
É ali, em sua casa, que o devoto irá reforçar, à luz das relações pessoais
(em oposição à ênfase universalista da igreja), os laços de significado que o
mantêm atado ao santo e amigo protetor. É, pois, na duração temporal
profana – literalmente ‘fora do templo’ -, ordinária e cotidiana, que irão se
estabelecer os mais duradouros vínculos entre o devoto e São Judas Tadeu.
Sobre estas, os agentes de pastoral não exercem nenhum controle. (1993, p.
122).
Este autor se aproxima das idéias de Negrão (1997) que estão apresentadas abaixo.
Quanto ao nosso caso, apesar de se tratar de Nossa Senhora, que se multiplica nas várias
invocações, além da constatação de Gutilla, podemos afirmar que a “santa” de casa é
diferente da “santa” da paróquia. Essa diferença imagética das devoções trás importantes
elementos que serão discutidos mais adiante.
Diferentemente de Ribeiro de Oliveira que enfatiza a individuação da crença, Lísias
N. Negrão (1997, p. 65-69), coloca a ênfase maior no aspecto da autonomia dos fiéis frente ao
controle institucional. Num estudo sobre a vivência religiosa plural dos brasileiros, ele critica
os sociólogos da religião (como Ribeiro de Oliveira) que, sob a influência de Peter Berger
(1985), atribuem um processo de privatização do sagrado para a realidade brasileira. Do ponto
de vista de Negrão, essa característica de relação subjetiva com o santo católico – ou o orixá
africano – de âmbito pessoal e local, está presente desde o início da história do catolicismo no
país; e, portanto, não se deve falar em enfraquecimento institucional do catolicismo brasileiro
na era moderna, pois seus fiéis sempre se formaram fora dos espaços institucionais.
Sem desprezar estas relevantes considerações sobre o problema histórico da
“privatização” do catolicismo; entendemos que, ao utilizar este conceito, autores tal como
Ribeiro de Oliveira, criticados por Negrão, referiram à tentativa de socialização (isto é,
formação) das práticas concentradoras de Roma e sua conseqüente apropriação re-elaborada
pelo fiel católico brasileiro. Nesse sentido, “privatizado” está em oposição à nova prática
romanizada perpetuada globalmente, e não à situação histórica do caso específico do Brasil.
Reconhecendo ou não a configuração histórica da relação subjetiva e contratual entre o santo
e o fiel, acreditamos que os sociólogos criticados por Negrão, queriam afirmar que as
produções das novas devoções realizadas pelo clero romanizado, instalando os santos nas
paróquias com o intuito de controlar a prática “popular”, foram re-elaboradas pelos católicos
brasileiros em uma relação privatizada não em termos espaciais (na casa, no oratório ou na
capela particular), mas simbolicamente, através da relação direta e íntima com o santo sem a
60
intermediação do padre, isto não quer dizer, por outro lado, que no Brasil se dispensou os
“usos” dos sacramentos distribuídos pela igreja.
Todavia, observamos que esta privatização também pode ocorrer com relação aos
espaços físicos do culto, sobretudo nos dias atuais. O episódio da Mãe Peregrina em Ubatuba
aponta exatamente para esta direção. Aqui, a devota não leva a “santa” da paróquia para a
casa, mas, ao contrário, leva a “santa” de casa para a paróquia (a morada terrestre dos santos,
segundo a visão romanizada).
32
É bem plausível que o catolicismo vivido por estas mulheres
conceba que uma esfera complementa a outra. No Brasil, não há devoção ao santo ou santa
cuja imagem só existe na paróquia, assim como, não há devoção a um santo cuja imagem
exista na casa do fiel. O significado dos santos e do sagrado, em geral, prescinde da esfera
pública, mas prescinde também, e ao mesmo tempo, da esfera privada.
Essa característica de familiaridade e de relação emotiva com as imagens de santos
está presente já em Portugal. No estudo das romarias portuguesas, Pierre Sanchis (1992, p.
41-42) descreve esse vínculo afetivo de identidade individual e coletiva que leva os
portugueses a uma dupla aproximação sentimental, nomeando os objetos de devoção de
“nosso santinho”.
...Quer se trate de uma imagem de Cristo, da Virgem ou de um personagem
canonizado, é, aliás, por este vocábulo, freqüentemente empregue sob a
forma de diminutivo de afectividade, que ele é designado (‘o santo’ – ou ‘o
Senhor’ – o ‘santinho’, nosso ‘santinho’). E muitas vezes com entoação de
verdadeira ternura: ‘Nosso São Bentinho!... Ah! Jesus!...’ (1992, p. 41).
Enfim, para que exista a importância do santo da paróquia (ou santuário) é preciso a
experiência da dimensão cotidiana e individual de proximidade relacional com os mesmos. Da
mesma forma, para que a santa ou santo de casa tenha seu valor reconhecido é necessário que
ele participe da experiência extraordinária dos rituais institucionalizados, e prestigiados pelo
32
Diante da verificação de que somente a coordenadora da Campanha da Mãe Peregrina visitou (uma
única vez) o santuário da Mãe Peregrina, podemos mesmo dizer que a Maria de Schoenstatt não é
exatamente uma “santa” que foi trazida do santuário, no sentido que podemos atribuir quando uma
pessoa, visitando regularmente o santuário de seu protetor, resolve trazer uma recordação do lugar
sagrado, como uma espécie de relíquia (B
EOZZO, 1977). Diversamente do que ocorre com o São Judas
Tadeu do Jabaquara, não foi a visita à casa da “santa” que motivou as devoções domésticas das devotas
da Mãe Peregrina. Por outro lado, a “santa” de casa, também, não suscita a visitação da casa da “santa”,
como desejam os coordenadores regionais do movimento da Mãe Peregrina.
61
grupo, como a missa (cf. GUTILLA, 1993).
33
É preciso que o santo de casa ganhe visibilidade
nos rituais da comunidade para que ele tenha eficácia. Essa visibilidade que a Mãe Peregrina
adquire, ainda que os padres a neguem, é muito importante para o reconhecimento moral que
as devotas procuram.
Antes de prosseguir com estas discussões, precisamos deixar claro que, com relação
ao debate sobre o fenômeno da privatização do sagrado e da subjetividade devocional,
faremos uma tentativa de conciliar estas posições divergentes, apresentadas acima, baseados
no fato de que, enquanto processos histórico-culturais, tanto a prática recorrente de
interferência da instituição eclesial, como a re-apropriação leiga/popular, encontram novas
configurações diante do conjunto mais amplo de elementos que passa pela emergência de
novas religiões e seitas no campo religioso brasileiro, relacionado com uma
“secularização/racionalização” do catolicismo e com a explosão de individualidades
construídas no atual jogo de inter-relações e produções técnico-científicas chamadas de “pós-
modernidade” (cf. SANCHIS, 1995, p. 81-131).
34
As devoções marianas guardam uma construção simbólica especial pelo fato de uma
única personagem mítica proporcionar centenas de representações diversas, conforme um
aspecto seu que se queira enfatizar. Verificamos que as devotas que se aproximam mais do
paradigma popular de culto aos santos se relacionam de uma maneira muito particular e
emotiva com cada uma das imagens marianas com as quais têm contato, mesmo reproduzindo
o discurso institucional de que Nossa Senhora é uma só. Nesse ponto nossas afirmações
corroboram os estudos anteriores sobre devoções populares (cf. SEGATO, 2000; OLIVEIRA, P.,
1997; N
EGRÃO, 1997; SANCHIS, 1992). Contudo, registramos que a devoção mariana – e aos
santos em geral – atualmente deve ser entendida considerando-se as características culturais
do nosso tempo, como por exemplo, a concepção de tempo e espaço vigentes no mundo
contemporâneo (aceleração e redução tempo-espacial).
33
Ainda que as devotas populares não valorizem o caráter imprescindível dos sacramentos clericais
regulares, a missa tem um significado religioso muito importante no culto aos santos, de participação na
comunhão universal dos santos (cf. T
URNER & TURNER, 1978).
34
O debate sobre a secularização das sociedades ocidentais é pautado atualmente pela conceitualização
weberiana a respeito da secularização e de seu fenômeno correlato: o desencantamento do mundo.
Concordamos com o entendimento de Negrão (1997, p. 66-67) de que o conceito de “desencantamento
do mundo” de Max Weber se refere à perda dos conteúdos sacrais dentro do âmbito interno da religião e
que os autores cometeram equívocos de interpretação quando o associaram ao avanço e predomínio da
racionalidade científica da modernidade.
62
Da mesma forma, a observação etnográfica mostra que uma característica das
católicas entrevistadas é a posse de inúmeras representações de santos, incluindo variadas
imagens marianas. A despeito da presença permanente destas imagens, a “visita” mensal da
Mãe Peregrina opera uma transformação do espaço doméstico num santuário particular – um
“espaço sagrado” – concomitante com um sentimento de que há estreitas relações com o
santuário original de Schoenstatt. Se isso for verdadeiro, de fato, acreditamos ter encontrado
um novo sentido para aquilo que a sociologia da religião vem chamando de “privatização do
sagrado”.
1.3.1 A construção do espaço sagrado
Previamente, devemos definir o que chamamos de espaço sagrado e de que maneira
ele se opõe aos espaços profanos da sociedade. Quando utilizamos “sagrado” para qualificar o
espaço, queremos atribuir um significado que o transporte para a esfera simbólica e o separe
das demais esferas da vida cotidiana, como por exemplo, as esferas política e econômica (cf.
ROSENDAHL, 1996, p. 11-12). A sacralização do espaço e a polaridade entre espaço sagrado e
espaço profano, ordena o mundo do fiel e, portanto, orienta sua conduta cotidiana.
O estudo de Mircea Eliade (1992) sobre O Sagrado e o Profano é oportuno para o
que desejamos afirmar neste momento. Analisando o simbolismo do Centro do Mundo como
demarcador espacial das sociedades de “culturas tradicionais”, Eliade (1992, p. 40-54) afirma
que as cidades santas e os santuários encontram-se nos diversos centros do mundo.
35
Nestas
sociedades, também as habitações encontram-se o mais próximo possível do centro do
mundo. A habitação nestas culturas sempre é santificada. E mesmo as sociedades modernas
guardariam reminiscências desta mentalidade expressas nos sentimentos eufóricos que
acompanham a instalação em novas residências.
Mas antes das moradas, das cidades e dos templos santos, os homens conheceram o
lugar santo” provisório: um espaço provisoriamente consagrado e “cosmizado”, através de
símbolos e rituais. O mastro sagrado levantado no centro da aldeia asseguraria a residência
num espaço sagrado, ou seja, numa realidade absoluta (cf. ELIADE, 1992, p. 52-55). O
simbolismo do mastro sagrado teria sido transferido, em algumas culturas, para o interior da
35
“...a irrupção do sagrado não somente projeta um ponto fixo no meio da fluidez amorfa do espaço
profano, um ‘centro’ no ‘caos’; produz também uma rotura de nível, quer dizer, abre a comunicação entre
os níveis cósmicos (entre a Terra e o Céu) e possibilita a passagem, de ordem ontológica, de um modo
de ser a outro.” (E
LIADE, 1992, p. 59).
63
própria casa, sendo o pilar central da cabana, o veículo próprio através do qual a Terra liga-se
ao Céu (cf. ELIADE, 1992, p. 51).
O espaço provisoriamente consagrado aponta para um elemento que não foi
desenvolvido por Eliade, que é a experiência do tempo sagrado provisório. Nas culturas
tradicionais, como vimos, a revelação do sagrado dá-se espacialmente na projeção de um
ponto fixo. Da mesma forma, o lugar santo inaugura um tempo sagrado, o tempo mítico, que,
se é provisório, não é eterno. Por outro lado, não é efêmero, possui uma duração relativamente
longa – um período ritual, cosmologicamente definido.
Em oposição, no mundo atual, assistimos à aceleração do tempo que interfere até
mesmo na definição dos usos do espaço em geral. No mundo urbano, encontramos utilizações
efêmeras dos espaços, utilizações de curtíssimo prazo e mesmo utilizações distintas – algumas
vezes opostas – do mesmo espaço, conforme o período observado (cf. ABUMANSSUR, 2001, p.
214). Um dos locais mais dinâmicos são os espaços de utilização informal: pontos de
comércio ambulante, por exemplo, tornam-se locais de prostituição no período noturno.
Também as concepções de tempo e espaço sagrado foram alteradas pela
modernidade. Os cinemas tornam-se templos, ou mais revelador: alugam-se espaços de
atividade profana para a instalação de templos religiosos.
36
A casa, no bojo da secularização
religiosa, perdeu muito do caráter santo que a caracterizava nas culturas tradicionais, aquele
caráter ainda permanece, mas agora de forma residual ou descontínua. É neste ponto que as
nossas observações encontram lastro.
Quanto à percepção do espaço, observamos em alguns relatos da pesquisa que a
vivência religiosa concebe uma gradação do poder sagrado dos lugares santos. Como
exemplo, citamos o caso de uma devota do Imaculado Coração de Maria que, ao descrever os
sentimentos que experimentou nos santuários que havia visitado, falou inicialmente sobre o
Santuário Nacional de Aparecida, sobre o de Fátima, depois sobre o de Lourdes, até reter-se
na experiência de conhecer Jerusalém, a Terra Santa. A emoção com que narrou as visitas
aumentou na proporção da importância e da distância que, ao mesmo tempo, a separa de cada
36
Tanto pentecostais como católicos, tal como nos atestam os casos da IURD em geral e do “Santuário do
Terço Bizantino” criado num barracão de uma antiga industria, alugado pelo padre Marcelo Rossi da
Diocese de Santo Amaro-SP. Em Abumanssur (2001, p. 170-177 e 237-238) encontramos uma análise
da razão do uso de cinemas e espaços semelhantes por parte dos neopentecostais. Basicamente,
podemos dizer que para estas igrejas trata-se antes de se ter um palco a um púlpito, de se realizar uma
teatralização a um culto, por isso o recurso a espaços concebidos para a realização de espetáculos.
64
um dos santuários e a aproxima da Terra Santa. Uma idéia próxima à mentalidade do Centro
do Mundo apresentada acima por Eliade. Victor Turner & Edith Turner (1978, p. 206)
também observaram que na acepção popular os pedidos feitos no local da aparição de Nossa
Senhora (ao pé da gruta em Lourdes, por exemplo) têm mais chances de ser atendidos, em
comparação aos pedidos feitos em casa.
Os relatos sobre o que acontece e o que fazem no dia da visita da Mãe Peregrina
parecem deixar claro o caráter de transformação que a capelinha aciona quando visita as
casas, além de apresentar um sentimento de eleição e regozijo para as mulheres, pelo fato de
terem sido convidadas para receber Nossa Senhora. Para as devotas da Mãe Peregrina,
37
a
visita mensal da capelinha instala ou aumenta a consagração do espaço doméstico
transformando-o num santuário “privado” que inaugura um tempo sagrado e transforma os
lares. Não importa o fato de Maria já estar presente no local, através das imagens de outras
invocações, a passagem da Mãe Peregrina transforma a casa em um santuário privado,
inaugura um tempo sagrado, cheio de graças para a devota e os seus. Como nos disse uma
devota, Maria traz uma força muito grande nesta peregrinação, ela realiza uma grande
transformação nos lares que visita. Criando assim, uma ocasião especial para agradecer e
pedir as graças da Mãe de Jesus.
38
A produção simbólica de um santuário familiar abre a
possibilidade para experiências religiosas que não são vivenciadas nos serviços paroquiais.
Esta possibilidade representa a relativa autonomia e o anonimato da relação com o sagrado,
característicos do catolicismo brasileiro, e pode ser a fenda para possíveis conflitos.
1.3.2 O culto aos santos e os espaços públicos e privados da experiência
religiosa
A observação de práticas religiosas tradicionais do catolicismo nos ajuda a entender
os sentidos da peregrinação. Em primeiro lugar, temos a atividade mais usualmente
37
No caso de Ubatuba, as participantes são na sua maioria mulheres pertencentes à classe média, média
baixa. Temos aquelas que tem uma intensa participação na vida paroquial até católicas não praticantes.
A maioria das senhoras que entrevistamos participa efetivamente da vida comunitária da igreja.
38
Mas, a visita não cumpre apenas uma função de consagração sobrenatural. Durante uma discussão num
grupo de trabalho, uma participante deu uma contribuição muito interessante que ilustra a outra função
da capelinha. Ela contou que no condomínio onde reside, as mulheres estavam “alvoroçadas” com a
chegada de uma capelinha, pois algumas queriam receber a imagem e não podiam (elas teriam que
formar um grupo de trinta famílias), por outro lado, as que recebiam experimentavam um sentimento de
consideração muito forte. O fato de serem convidadas desencadeou vontades e confianças que levaram
algumas a planejar mudanças no condomínio e até no bairro. (informação verbal).
65
denominada peregrinação (ou romaria): a visita do fiel ao santuário do padroeiro. Os
elementos envolvidos nesta “aventura” (os seus sacrifícios) e os circuitos estabelecidos pelos
fiéis atribuem a eficácia da peregrinação em favor do peregrino. A mobilidade opera a força
simbólica do devoto (cf. TURNER & TURNER, 1978).
Entretanto, do outro lado, os santos também se movimentam. Lembremos o corrente
e antigo costume anual do catolicismo, na época do advento, de fazer circular o Menino Jesus
pelas casas das famílias. E Maria também caminha. A Basílica nacional de Nossa Senhora
Aparecida possui uma réplica da imagem de Nossa Senhora que circula durante todo o ano
pelo país; recentemente, esta imagem reuniu muitos devotos num parque da cidade de São
Paulo. Nossa Senhora de Fátima, Portugal, também recentemente, visitou inúmeras paróquias
brasileiras em sua peregrinação mundial.
39
Almeida (2001), da mesma forma apresenta-nos o caso paradigmático da vidente
Mariana de Piedade dos Gerais que recentemente passou a ver e transmitir as mensagens de
Nossa senhora fora do local original das aparições. Uma das justificativas apresentadas pela
vidente e a comunidade de devotos, que foi criada na localidade, é que, devido ao grande
número de romeiros e o alcance internacional tomado pela devoção, já não basta que os
devotos venham à Maria, é preciso que, agora, Maria vá até seus devotos.
Ao comentar a transformação dos fenômenos das aparições marianas, Steil traz uma
importante contribuição para nossa discussão, ao inserir neste processo atomização do espaço
sagrado o dado da subjetivação característico da atualidade.
Esse movimento de subjetivação da experiência religiosa, no contexto das
aparições, minimiza a idéia de um centro geográfico único como locus
privilegiado da manifestação do sagrado. Há um deslocamento do espaço
como mediação do sagrado para a pessoa do vidente ou de seus
mensageiros. Se as aparições tradicionais se estruturam basicamente sobre
os santuários, inscrevendo o evento hierofânico na paisagem, o modelo
atual tende a ultrapassar a referência espacial, inserindo o milagre numa
extensa rede de comunidades organizadas muito mais como movimento do
que como circunscrições geográficas.... (S
TEIL, 2001a, p. 133).
39
O fato de Maria ser, quase que exclusivamente, a única personagem sagrada católica que circula pelos
lares, tem uma fundamentação bíblico-teológica no episódio da visitação de Maria a sua prima Isabel.
Outra Nossa Senhora que nos últimos anos visitou as paróquias brasileiras foi Nossa Senhora
Guadalupe (México). Também no catolicismo progressista venera-se a peculiar Nossa Senhora dos
Mártires da Caminhada (cf. V
ANNUCHI, 2001, para outros exemplos de Nossas Senhoras que visitam as
casas dos devotos brasileiros).
66
Suas afirmações são bastante relevantes para nossas argumentações, bastando apenas
que façamos uma adaptação. Devemos substituir as figuras mediadoras do sagrado, os
videntes ou os mensageiros do sagrado, pela estampa de Nossa Senhora, que no nosso caso é
a portadora da mensagem divina, a mediadora entre o fiel e o sagrado. É através da imagem
da Mãe Peregrina que as devotas se comunicam com o sagrado. Como no caso da Mãe
Peregrina, nas atuais aparições marianas, o vidente e/ou mensageiro também circula por
diferentes lugares para fora do “santuário” da aparição. Há um entendimento de que Nossa
Senhora já não pode esperar pelos romeiros, é preciso multiplicar as conversões para que mais
pessoas atendam aos pedidos da Senhora (cf. ALMEIDA, 2001).
De fato, na acepção popular o santo que circula tem mais poder do que aquele que
fica parado. Fazendo uma comparação sobre a forma de relação com o sagrado, Brandão
(1998, p. 87) afirma que os protestantes são mais refreados, mas a dramaticidade católica
exige o deslocamento contínuo do sagrado e ao sagrado. É esse sentimento que, numa
definição particular, transfere-se re-significado para o caso da Mãe Peregrina. Parece-nos que
a idéia de que a Mãe Peregrina constrói a sua eficácia simbólica na circulação entre as
famílias e com isso torna-se um lugar de autoprodução religiosa que resiste (mas não
“compete”) ao monopólio de bens religiosos (sacramentos como mediação do mundo material
e espiritual) representados pela igreja católica institucional, a torna uma modalidade de
devoção emblemática que se mostra afinada com nosso tempo e afinada com a vivência dos
católicos urbanos porque requer pouco tempo, permite um culto mais particularizado e
liberado,
40
pouco ou nenhum compromisso com serviços comunitários ou paroquiais. Ao
mesmo tempo, esta é uma experiência religiosa profunda pelo fato da pessoa ser convidada
por uma zeladora para fazer parte da devoção, o que, na acepção das entrevistadas,
corresponde a receber a graça de ser escolhida pela própria Mãe Peregrina.
41
Gerando assim,
40
Mais uma vez, lembramos que, abaixo, veremos que o grupo de famílias de uma capelinha pode,
inclusive, aceitar fiéis de outras religiões, revelando desta forma, um caráter “ecumênico” popular
(popular, porque esta possibilidade é negada pela direção oficial do movimento).
41
O sentimento moral de eleição, construtor de transformações e significações identitárias, constitui-se
num dos pólos da força simbólica do movimento. Este sentimento encontra lastro na opinião de que é
Maria que quer circular, sendo as pessoas meros instrumentos desta “vontade divina”. Uma devota da
Mãe Peregrina lembra, reproduzindo o discurso institucional, que a “missão” de Maria é caminhar. Foi
assim desde a concepção de seu divino filho, quando ela se dirigiu para a casa de sua prima Isabel.
Receber a visita de Maria, neste sentido, torna a devota equivalente à Isabel. Fazendo uma comparação
desta experiência com a que o fiel vivência quando visita o santuário de seu padroeiro(a) e traz para
casa sua imagem, percebemos logo os contrastes. Nesta última, foi o fiel quem trouxe – ou no caso
muito comum de ele ter ganhado a imagem, ela foi doada por outra pessoa, “normal” como ele. No
movimento da Mãe Peregrina, é a própria divindade que escolhe as famílias por onde ela quer se
deslocar.
67
um sentimento de valorização da identidade individual tão renegada pela “massa social” –
lugar mais comum da sociabilidade dos tempos atuais. A construção deste espaço de
religiosidade sugere que a visão religiosa “alternativa” das devotas – em relação à visão
oficial – não as coloca em oposição direta ao pároco. Mas suas concepções religiosas,
principalmente em relação ao culto aos santos, significam uma luta pelo reconhecimento de
suas identidades católica popular, experimentada, não raro, na infância vivida num contexto
de catolicismo rural ou periférico (na cidade ou no campo), mais distante do movimento
renovador do Concílio Vaticano II.
Em outras palavras, essa devoção, ao menos como ocorre em Ubatuba, permite um
culto mais individualizado, livre das amarras severas da burocracia paroquial e do
compromisso sócio-comunitário, que abre a possibilidade das devotas construírem sua relação
com Nossa Senhora segundo seus costumes tradicionais (de intimidade com e reconhecimento
das criaturas sagradas) e com a independência que o espaço doméstico estabelece em relação
à paróquia. Esta afirmação abre uma janela para, no terceiro capítulo, dialogarmos com a obra
de Honneth (1996) que discute as lutas sociais como sendo antes uma luta por
reconhecimento moral e respeito, portanto, nem sempre com enfrentamentos físicos, mas sim
no âmbito simbólico.
De acordo com os relatos das graças alcançadas na devoção à Nossa Senhora de
Schoenstatt (grandes e pequenos milagres corriqueiros, de caráter mágico) podemos supor que
a devoção cria um lugar de autonomia da prática religiosa, de maneira que a paróquia forme o
espaço público de devoção e a capelinha itinerante o espaço privado desta devoção, conforme
o que Lísias Negrão (1997, p. 64) observou para a vivência dúplice da experiência religiosa
afro-brasileira: “[o] catolicismo [é] a face pública e formal e o culto afro-brasileiro (...) [é] a
face privada e efetivamente vivenciada [da experiência religiosa]”.
Mas o que difere a prática de prestar culto individual a uma capelinha de Maria do
hábito tradicional de entronizar em casa a imagem do santuário e do padroeiro trazidos da
romaria? No caso das devoções tradicionais, Beozzo (1977, p. 752) afirma que “as orações
em família perante o seu santo e a reprodução do santuário mantêm vivo o laço religioso do
devoto com o seu santuário”. O mesmo não ocorre com a Mãe Peregrina. Primeiro, porque na
maioria dos casos, nem se conhece o santuário original. Em segundo lugar, porque a eficácia
simbólica desta devoção está no fato de, justamente, não ser o devoto que peregrina, mas sim
a Virgem Maria. A transformação da residência num santuário e a obrigação de aumentar as
68
graças, isto é, a força simbólica do santuário irradiador, garantem o poder de intercessão da
Mãe Peregrina. É enfim, a rede que as devotas formam que estabelece a relação de forças
simbólicas que ajudam a dar sentido ao catolicismo cotidiano que elas vivenciam. Mesmo que
muitas mulheres do culto à Mãe Peregrina não conheçam todas as companheiras da rede (ou a
maioria das companheiras), o fato de se envolver com um objeto sagrado de devoção, que não
lhe pertence efetivamente, de maneira muito particular e familiar – mas que do mesmo modo
não é da paróquia – oferece um sentimento, ao mesmo tempo de posse, de eleição, de
participação em alguma coisa que a ultrapassa, de familiaridade com algo importante porque é
universal (ao menos supralocal e não paroquial); enfim, de reconhecimento, que de fato,
difere do sentimento que se tem em relação ao santo que está no oratório. Na lógica das
devotas, isto não significa que a Mãe Peregrina seja, necessariamente, mais importante em
relação aos outros santos, significa que ela é diferente, oferece sentimentos diferentes e num
aspecto de suas experiências, condensa sentimentos morais que lhes são caros porque
ordenam sua visão de mundo.
Traçando um paralelo com a devoção tradicional aos santos, concluímos que neste
caso, o sentido e a ordenação do mundo cotidiano são garantidos pela formação da rede de
santos de um devoto em particular, através da soma de seus poderes, ou melhor, através da
aglutinação da especialidade de cada um dos santos cultuados.
O significado da integração das famílias numa rede sistematizada, operado pela
circulação da capelinha, deve ser explicitado. Dentro das trinta famílias, existem desde
aquelas que são bastante engajadas nos serviços comunitários da igreja até aquelas que nem
sequer freqüentam regularmente as missas, apesar de um dos objetivos do movimento ser,
exatamente, a busca de engajamento comunitário.
42
Na verdade, ao que tudo indica, a visita
da Mãe Peregrina não altera o dado da multiplicidade dos modos de ser católico e não é
alterada por essa diversidade. O que une as famílias é a devoção a Nossa Senhora e não a
natureza da filiação religiosa.
42
Não realizamos um levantamento concreto para verificar a proporção de católicos
participantes/praticantes e de católicos nominais, contudo, calculamos que a proporção aproxima-se da
proporção nacional. Pierucci & Prandi (1996, p. 216) estimam em 61,4% o total de católicos tradicionais
(os que tem freqüência esporádica e os que não se envolvem em movimentos ou agremiações apesar de
freqüentarem regularmente a igreja), dentro do universo da população brasileira com direito a voto.
Dentro deste universo, existem 13,5% que são católicos que vivem o catolicismo engajados em pelo
menos um grupo de engajamento (o que chamamos de participantes/praticantes). Fazendo os cálculos,
temos no universo de todos católicos, 84,7% que são tradicionais (ou nominais) e 15,3% que são
participantes/praticantes.
69
Os dados que dispomos sobre este movimento em Ubatuba informam-nos que ele
tem, até mesmo, um caráter bastante “ecumênico” no sentido de conter devotos até mesmo
entre os evangélicos. Como exemplo, citamos o caso da mãe de uma devota do Perequê-Açu
que era crente, mas que passou a se interessar e perguntar pela capelinha todas as vezes que ia
à casa de sua filha. Segundo Marta, sua mãe passou da idéia de que os católicos praticavam
idolatria às imagens de Maria para o interesse por Nossa Senhora e o entendimento da fé
católica. Fato que foi narrado como uma graça de Nossa Senhora. A rede de famílias pode,
inclusive, aceitar fiéis de outras denominações religiosas. Como o caso de uma devota
ubatubense que, em janeiro de 2000, afirmou que havia se convertido a uma religião
protestante, mas ainda continuava a receber a imagem.
43
Dados de fora da cidade de Ubatuba
também mostram-nos o seu caráter aglutinador como símbolo religioso (sobre esse caráter, cf.
T
URNER, 1974 e TURNER & TURNER, 1978).
44
Porém, ressaltamos que a diversidade de
concepções religiosas registradas na pesquisa de campo na cidade de Ubatuba e que vem
sendo apresentadas neste trabalho, mostra-nos que cada entrevista espelha a singularidade de
cada devota e que é preciso tomar muito cuidado com as generalizações que podem ser feitas
a partir dessa pequena amostra do campo religioso desta paróquia.
45
Outro elemento de reconhecimento que circula entre as devotas é a recriação mítica
do mero envio burocrático da listagem das pessoas que participam da devoção ao secretariado
do movimento. Acredita-se que as irmãs do santuário de Atibaia se revezem dia e noite
orando para todas as famílias que recebem as capelinhas todos os dias de cada mês. A
integração dos “perfeitos” (ou “eleitos de Maria”) que a imagem de Nossa Senhora de
Schoenstatt cria em sua peregrinação, aliado ao recurso mítico do seu reconhecimento pessoal
dentro de uma instância da hierarquia católica, fornecem um elemento identitário muito
poderoso para as devotas desta Maria.
43
Conforme questionários aplicados em 2000, no âmbito da pesquisa do NIPPC, citada acima.
44
Nós conhecemos dois outros casos. Um na capital do Estado, onde uma devota que recebe a capelinha
da Mãe Peregrina pertence à igreja Adventista do Sétimo Dia. O outro, trata-se de uma devota de Lorena
– SP, que recebe a Mãe Peregrina, mas não é católica (“ex-adepta da Nova Era”), entretanto, lembra que
é devota de Nossa Senhora.
45
A título de registro, a paróquia possui práticas religiosas, principalmente nas capelas mais distantes que,
talvez, apresentem muito mais pontos de tensão com o catolicismo dos freis da cidade. Apenas para
ilustrar, citamos que a cidade ainda possui algumas comunidades caiçaras com grupos de moçambique
e reisados, além de outros movimentos católicos como a Renovação Carismática e um amplo calendário
de festas católicas oficializadas ou não. Exemplos desta diversidade da cidade, no âmbito do catolicismo
popular, podem ser conhecidos em Setti (1985) e Brandão (1981).
70
Freqüentemente, as devotas, de forma implícita, associam o fato bíblico da escolha
de Maria por Deus e a sua própria escolha para receber a Mãe Peregrina, interpretando-a,
conforme já observamos, de acordo com uma graça recebida: como tendo sido a própria
Nossa Senhora que a escolheu. De fato, esta devoção abre as portas para uma relação direta
com o sagrado, sem a mediação eclesial, tal como as expressões religiosas que vêm
conhecendo um avanço real no campo religioso atual.
46
Nossa suposição é que as devotas que
participam da devoção na Campanha da Mãe Peregrina reivindiquem um espaço de
autonomia religiosa, mas não partam para um confronto direto com o pároco, porque o
elemento político não se constitui num dado central.
47
Entendemos que o conflito ocorre
essencialmente no domínio do imaginário e envolve símbolos e signos de identificação, e que
são objetos de devoção. A bibliografia que consultamos sobre a especificidade do catolicismo
brasileiro, mostra que essa relação tencional constitutiva das paróquias brasileiras tem gerado
incompreensões dos dois lados (cf. OLIVEIRA, P., 1985, 1997; NEGRÃO, 1997; STEIL, 1996;
TORRES-LONDOÑO, 1997).
No final da década de 1970, Beozzo (1977, p. 754-755), retomando idéias de
Eduardo Hoornaert, chamava a atenção para os três níveis da prática devocional do
catolicismo popular. Num pólo, a esfera privada do culto cotidiano de reza ao santo, de
âmbito familiar. No outro, a esfera mais ampla da peregrinação aos santuários dos santos
padroeiros, de caráter extraordinário. Selando estes dois pólos estaria o espaço da prática mais
densa desse catolicismo tradicional, mediador entre o espaço anônimo-privado e o espaço
oficial-público,
48
representado pelas capelas da comunidade e seu agente ou comissão leiga,
espaço público, mas autônomo, com força e vida próprias. “Nestas capelinhas estaria”,
defende Beozzo (1977, p. 755), “a chave da compreensão da história religiosa mais
quotidiana do povo e de sua resistência por exemplo à ‘romanização’ do catolicismo
brasileiro”. Hoje também, acreditamos que nessas novas capelinhas da Mãe Peregrina
encontramos uma chave importante para a compreensão do catolicismo contemporâneo.
46
Tais como as expressões religiosas afro-brasileiras que conheceram seu auge nas décadas de 1970 e
1980, protestantes pentecostais e neo-pentecostais, que hoje estão “na crista da onda” e mesmo
expressões pentecostais do interior da igreja católica.
47
Ainda que se verifique que o conflito esteja envolvido com a questão do poder, isto é, do controle dos
fiéis, do ponto de vista que se pretende realizar a análise (a saber: dos devotos), é suposto que o
problema apareça e efetive-se no universo simbólico. Mesmo por que, boa parte das devotas da Mãe
Peregrina é leiga engajada na paróquia e exerce atividades constantes na igreja.
48
Utilizamos “oficial” para nos remeter ao caráter formal atribuído pelos devotos, seja para a instituição
eclesial oficial, seja para o especialista religioso reconhecido como tal pelos devotos, ainda que o
santuário que ele administra não seja reconhecido pela igreja.
71
Através do entendimento destas práticas devocionais podemos compreender as
transformações porque estão passando os cultos aos santos.
A afirmação acima é importante, pois, de um lado, pressupõe que as práticas dos
cultos aos santos não são residuais ou reminiscências do passado, mas, ao contrário,
constituem-se práticas fundamentais do catolicismo contemporâneo. Do outro lado, a prática
autônoma de culto aos santos demonstra que estes símbolos reproduzem-se conforme o
movimento dos grupos, das redes ou categorias de pessoas representadas pelos santos ou
associações (ZALUAR, 1983, p. 64). Dito de outra forma, os dados acima apontam para a
associação entre a criação plástica e a recriação mítica
49
dos símbolos sagrados oficializados
pela instituição.
O caráter simbólico das imagens figuradas utilizadas pela igreja no processo de
evangelização, retém duas ordens de fatores: a primeira é a da produção da imagem, a
segunda a da catalisação, pela imagem, de concepções sagradas distintas daquelas que
orientaram a sua produção (LOPES, 2000a, p. 63). A respeito do catolicismo popular, Lopes
afirma que:
Como a aceitação da criação plástica das figurações religiosas pelos
segmentos populares não é passiva, opera-se nessa dinâmica uma
combinação dos elementos presentes nas figurações, que são produzidos
novamente [por narrativas míticas] para atender necessidades ou ajustar-se
às referências próprias da visão de mundo dos segmentos populares (2000a,
p. 63-64).
Desta maneira, de uma definição de Maria como a Mãe que atende ao seu Filho Jesus
nos momentos mais difíceis e paradigmáticos da vida, passa-se para uma definição de Maria
como a Mãe que acolhe todos os seus filhos indistintamente em qualquer momento e situação.
Ao menos é isso o que parece informar os relatos “míticos” de graças e milagres narrados
pelas mulheres entrevistadas. Talvez, devêssemos ressaltar que essa acolhida não é tão
indistinta como pode sugerir os discursos das devotas. Não se pode esquecer que a escolha
para fazer parte da rede, como já observamos, traz esse sentimento de predileção, de
depositária do desejo e da graça de Nossa Senhora. Infelizmente, os dados que possuímos não
49
Cf. idéia sugerida em Lopes (2000a, p. 63). Weber já chamava a atenção para o monopólio da
reprodução plástica dos deuses como forma de padronização (estereotipagem) e transferência de
eficácia mágica (por similaridade) para os ícones religiosos (2000, p. 283).
72
nos autoriza a avançar na investigação dessa possível afinidade com a ética calvinista e suas
conseqüências para a fé católica destas mulheres.
Agora, nos próximos capítulos, centraremos a discussão nos sentidos das devoções
em questão e na tentativa de caracterização do movimento em Ubatuba enquanto um
empreendimento identitário das mulheres que dele participam.
Capítulo 2
Devoções populares, culto mariano e ciências sociais
ara iniciar, é necessário falar sobre o sentido atribuído aqui a alguns termos. Quando
falarmos em cultura popular estaremos nos referindo a uma cultura que melhor se
define pela oposição a uma cultura erudita, formalizada e mais associada às elites econômicas,
intelectuais e religiosas. Ao contrário desta “cultura da elite” que tomamos como
extremamente clericalizada, a cultura popular é característica do povo comum, no caso, não-
especialista religioso e, também, mais distante de uma cultura dos especialistas da religião e
de uma religião racionalizada.
Da mesma forma, religião popular refere-se à religião praticada por este “povo”,
uma religião que guarda peculiaridades em relação à religião oficial, que é monopolizada pela
hierarquia religiosa. Por isso, a religião popular se diferencia da religião clerical
racionalizada. O sentido que emprestamos ao conceito de religião popular segue a
classificação mais corriqueira dos estudos sobre o assunto no Brasil, aquilo que, em seu
trabalho, Brandão classifica como religião de mediação (1986a, p. 114 e 121).
1
É preciso
1
Pois, segundo o modelo construído por Brandão (1986a, p. 114), há um catolicismo popular que faz a
mediação entre o domínio popular em que se encontra o catolicismo popular camponês, negro, ou seja,
P
74
assinalar que assumimos como classificadores, critérios essencialmente culturais, em
detrimento de uma classificação mais política do campo religioso. Nesse sentido, nosso
conceito de religião popular aproxima-se muito do conceito de catolicismo popular proposto
por Maués (1995, p. 17), que o define como “aquele conjunto de crenças e práticas
socialmente reconhecidas como católicas, de que partilham sobretudo os não especialistas do
sagrado, quer pertençam às classes subalternas ou às classes dominantes.” Nesta acepção, a
condição de não sistematização do saber religioso e, portanto, o não exercício do monopólio
dos bens sagrados é que aproxima as pessoas ao pólo do catolicismo popular. Mas com isso
não queremos negar, é claro, que esses leigos jamais são passivos frente aos especialistas.
Aliás, é essa ação, esse “autoconsumo religioso” (BOURDIEU, 1992), que é capaz de anular,
provisoriamente, as diferenças de classe que, eventualmente, existam dentro do grupo (cf.
M
AUÉS, 1995, p. 18).
Com o uso do conceito de catolicismo popular não estaremos nos referindo
exatamente aos “pobres” ou “iletrados”. Apesar de não termos dados “oficiais”, a observação
pessoal mostra que as mulheres, sujeitas da pesquisa, que classificamos como “popular”, são
todas de classe-média-baixa, que guardam entre si uma origem em contexto rural ou urbano-
periférico. Na verdade, poderíamos aprofundar mais teoricamente este conceito dizendo que
ele é afim ao conceito de religiosidade popular proposto por Weber que o caracteriza como a
crença daqueles cuja ação religiosa não exclui a influência mágica sobre os deuses. Uma
religiosidade que abarca a dupla possibilidade de concepção dos poderes divinos: uma que
reconhece a existência do Deus todo poderoso, onisciente e não influenciável por meios
mágicos, a quem cabe apenas a veneração e ação do tipo “serviço ao deus” (e que motiva a
ação religiosa racional) e a outra, baseada nos interesses religiosos que buscam relacionar-se
com um objeto religioso palpável que se apresenta concretamente na vida cotidiana e que é,
sobretudo, aberto à influência mágica (ou animista, segundo o modelo evolucionista criado
por W
EBER, 2000), a quem se reserva uma ação religiosa do tipo “coação sobre o deus”.
Assim, ao invés de negar a existência do Deus universal, onipotente e onisciente, a
religiosidade popular convive regularmente com a ambigüidade da existência do Deus todo
poderoso ao lado dos deuses (santos) mais acessíveis à coação humana: por exemplo, através
de rezas e de ações rituais (2000, p. 292).
dos sujeitos subalternos, e o domínio do erudito no qual temos a igreja católica instituída formalmente.
Considerando a classificação de Brandão, diríamos que é desse catolicismo popular do domínio de
mediação, intermédio do sistema propriamente popular (ou subalterno) e da paróquia que estamos
tratando neste trabalho.
75
Por fim, neste trabalho, devoção popular diz respeito ao culto tradicional aos santos,
isto é, um culto caracterizado por uma maneira específica de se relacionar com o santo que se
resume na prática de alianças e contratos, na forma de dom e contra-dom, em que o fiel se
compromete a retribuir simbolicamente uma vantagem material ou simbólica conseguida ou
pretendida. Em oposição a este modo popular de relação, há uma relação “esclarecida” com
os santos, que é mais cristocêntrica e abstrata (soteriológica), na qual o santo presta-se a
modelo de e modelo para o seguimento a Cristo, portanto, mais racionalizada, nos termos
weberianos, porque estabelece um fim (a “salvação”) e os meios – uma conduta – para atingi-
lo (cf. WEBER, 2000, p. 292, 357-385). É dessa conduta, desse caminho para a salvação que
dona Nair fala ao explicar os papéis que os santos têm em sua vida:
São Paulo e São Pedro, é isso daí, que eles são os apóstolos fervorosos de
Jesus, então é neles que a gente busca se apoiar e encontrar essa, essa
mesma garra, né, de levar avante o Evangelho. São Paulo não mediu, ele
sempre dizia: “Quando me sinto fraco é que estou forte”. Porque quando a
gente se sente fraco é porque a gente está totalmente abandonada na mão do
Senhor, não é? E quando a gente se sente forte, está sentindo um pouco da
gente mesmo. Então eu acho essa frase de São Paulo muito forte, uma frase
que me leva, me mostra bastante. E Santo Antônio, né, que ele se preocupou
só com os pobres, com as pessoas, não viveu para ele, ele viveu mais para
os pobres, né. São Francisco que foi seguidor nato de Jesus Cristo, dando a
sua própria vida, vivendo aquela vida de desapego total, então eu vejo
muito, a gente precisa ter um pouco de desapego, porque enquanto não tiver
desapego você não está ainda ágil a pegar o arado e caminhar, né, você
está sempre olhando para trás, porque você sempre quer alguma coisa e na
realidade da vida nós somos assim, a gente põe a mão no arado, mas nunca
está abandonado,...
[...]
...se você quer ser um bom cristão você tem que ter sempre exemplo
de alguém que foi valente, foi forte. Você veja bem, Paulo, ele
obedecia piamente, né, seguia piamente o Evangelho dentro daquilo
que era do conhecimento dele. E quando Jesus fala com ele, o que ele
faz? Ele vai fazer a mesma coisa, assumir o mesmo compromisso, só
que pelo evangelho, né, lutando pelo evangelho, não mais contra os
cristãos, mas a favor dos cristãos, que foi o que chocou a
comunidade, né. Então a gente procura encontrar forças em tudo isso
para poder continuar...
Acompanhando o discurso de uma devota mais clericalizada, como Nair, percebe-se
a tentativa de racionalizar as relações com os santos. Ela mira-se nas vidas e obras dos santos
76
que venera enquanto modelos (meios) de e para se alcançar o fim último, a salvação ou os
“tesouros do céu”.
Em contrapartida, concepções mais populares buscam outras formas de relação:
Olha, santo Antônio para mim, é..., sei lá, é aquele que não me deixa faltar
nada, que eu posso estar na pior situação financeira que tiver, mas eu falo:
Meu Santo Antônio, meu pão de cada dia não vai faltar. Tanto é que eu não
perco a missa de terça-feira, porque aqui em Ubatuba a gente, é costume
distribuir o pãozinho de Santo Antônio, toda terça-feira, né. E graças a
Deus nunca faltou nada. E eu gosto muito de Santo Antônio, assim de uma
maneira bem particular, porque tudo o que eu perco ele faz eu achar. Pode
ser a coisa mais difícil, mas... Aconteceu ontem, domingo, nós fomos num
almoço e a criançada brincando perdeu o anel da menina na piscina. E
perde para lá e procura, fala daqui: “Não, porque jogou lá”, “Não, porque
caiu aqui”, “Não, porque caiu na água”. E eu sentada lá, mas é coisa de
criança, né. No fim, o pai resolveu, foi ajudar, a mãe também e tinha uma
construção assim, uma edícula em construção, e o meu neto: “Não vó, eu
joguei eu tenho certeza que ele caiu lá”. Nossa! E todo mundo procura,
procura, aí procuraram e eu falei: “Bom, ninguém achou?” “Ai vó,
ninguém achou”, e a menina já..., e eu falei: “Então espera aí um
pouquinho que eu já vou achar esse anelzinho para vocês”. A Cíntia:
“Imagina mãe que a senhora vai achar, ninguém está achando”. Mas eu
falei: “Eu não estou falando que sou eu que vai achar, é Santo Antônio que
vai achar”. “Pronto, vem ela com o Santo Antônio dela”. Eu falei: “Então
espera aí”. Quando eu olhei assim, o anelzinho na minha frente, falei: “Está
aqui”. “Ai, não acredito”, todo mundo [falou]. “Eu não falei para vocês que
era Santo Antônio que ia achar, não fui eu”. Mas foi na hora, não deu dois
minutos. E todo mundo passou para lá, pisou. Sei lá..., para mim aconteceu,
né. Então agora você acha que eu não vou gostar de Santo Antônio para
achar as coisas perdidas? É claro que eu vou!... (Teresa).
Neste depoimento percebemos claramente como que, através de um compromisso
ritualizado e da posse de objetos sagrados (o pãozinho de Santo Antônio), o santo empresta
sua eficácia, age dentro de sua especialidade para resolver os problemas mais corriqueiros.
Neste tipo de relação estão em foco os interesses imediatos. A distante busca pelos “tesouros
do céu” não importa tanto. Pois, afinal, a seu tempo, o santo estará disponível para
providenciar aquilo que seu devoto precisa, desde que o devoto tenha sido fiel e tenha
retribuído a contento os dons e as graças que lhes foram entregues pelo santo.
7
7
Mas, voltando a nossa análise dos estudos sobre o catolicismo popular, verificamos
uma peculiaridade que dificultou parte de nossos planos. Apesar de se encontrar entre nós
muitos estudos sobre a igreja católica, sentimos alguma dificuldade para localizar nesta
bibliografia estudos voltados especificamente para a religiosidade em si. Desde Procópio
Camargo, na década de 1960, tem-se falado muito a respeito do catolicismo, mas do
catolicismo enquanto instituição, os temas abordados giram em torno das questões de poder,
das relações da igreja com o Estado e com a política. (ver a este respeito o importante artigo
de MONTERO, 1999).
2.1 Catolicismo popular em algumas obras das ciências sociais
brasileiras
Os trabalhos das ciências sociais sobre as relações entre o catolicismo erudito e
popular tradicionalmente enfatizaram, de um lado, sob a influência da sociologia e da
antropologia marxistas, as relações dinâmicas entre estrutura e superestrutura, como o
trabalho de Pedro Ribeiro de Oliveira (1985), que dentro das ciências sociais brasileiras é um
dos mais importantes referenciais para esse gênero de análise. De outro lado, os trabalhos
influenciados por Bourdieu (1992), detiveram-se no entendimento das relações dos
especialistas oficiais e não-oficiais da religião. Aqui um trabalho referencial, pela
extaordinariedade é, Os Deuses do Povo de Carlos Rodrigues Brandão (1986a).
2
Por mais que
se tenha buscado os elementos culturais que iluminam as tensões dentro do catolicismo, salvo
raras exceções, as análises ainda desembocam na questão “classes dominantes versus classes
subalternas”. Só recentemente, na década de 1990, mais distante dos determinismos
metodológicos que marcaram, sobretudo, os anos 1960-70, apareceram mais trabalhos que
avançam não no sentido de negar a importância das relações apontadas acima, mas por
enfatizar a centralidade das tensões culturais para a determinação e orientação dos conflitos
religiosos. Restringindo os exemplos apenas ao campo católico, citamos as teses
monográficas de Raymundo H. Maués (1995) e Carlos A. Steil (1996) como representantes
desta abordagem que se afigura no estudo das religiões. Além destes, destacamos também os
trabalhos, como o de Rosado Nunes (1994), que chamam a atenção para o fato de que os
2
Ao lado deste e com a mesma envergadura, destacamos o trabalho de Zaluar (1983).
78
diversos seguimentos do campo religioso católico não devem ser entendidos enquanto
unidades genéricas, mas, ao contrário, possuidores, por exemplo, de um corte de gênero
heuristicamente relevante.
Quanto aos estudos das devoções marianas propriamente dita há de se destacar a tese
de doutorado de Tânia Almeida, Uma Maria Brasileira: um estudo sobre o catolicismo
popular (2001). Embora este trabalho se refira a uma aparição de Nossa Senhora, suas
análises foram de extrema importância para o entendimento da devoção que estudamos. A
devoção à Mãe Peregrina não é fruto de nenhuma aparição, contudo, seu alcance e seus
predicados, em muitos sentidos podem ser relacionados aos aspectos das aparições marianas
contemporâneas, principalmente no que diz respeito às relações com a instituição eclesiástica
e às questões identitárias das devotas. Guardadas as especificidades de cada um dos
fenômenos que ora comparamos, podemos constatar que tanto a aparição em Piedade dos
Gerais (MG), objeto de estudo de Almeida, quanto a formação da rede de devoção à Mãe
Peregrina em Ubatuba, SP, constituem ressignificações/atualizações do catolicismo
tradicional.
Ao percorrer esta recente linha cronológica que privilegia algumas análises que
interessam ao nosso caso, poderemos entender melhor o lugar dessas re-significações no
campo religioso do catolicismo no país.
2.1.1 A macro análise sociológica
No final dos anos 1970, em Religião e Dominação de Classe, Pedro Ribeiro de
Oliveira (1985) procura explicar a forma pela qual o capitalismo agrário e a correspondente
ideologia liberal-burguesa puderam tornar-se hegemônicas no país, sem terem sido,
necessariamente, coercitivas. O sucesso da dominação burguesa do país se explicaria,
portanto, pela valoração moral que o “catolicismo romanizado” – com sua promessa de
salvação eterna – empresta às práticas sociais do modo de produção capitalista. Segundo a
argumentação do autor, o modelo sócio-econômico mercantilista é baseado no modo de
produção patrimonialista e senhorial, cujas relações sociais são de dependência hierárquica e
marcadas pelas relações pessoais de “aliança entre poderosos e fracos”. Este modelo sócio-
econômico possui um catolicismo medieval com uma visão religiosa que organiza as
entidades sobrenaturais hierarquicamente, a qual orienta as relações com o sagrado como uma
79
aliança dos homens indefesos e seus poderosos protetores celestes. A existência desta visão
religiosa justifica e possibilita este modelo de sociedade. O modelo posterior é o da
implantação e consolidação do capitalismo agrário, cujas relações sociais são impessoais e
marcadas pelas relações de venda e de troca no mercado de bens e serviços. Este modelo
possui uma religião centralizadora e racionalizadora (no sentido de avaliação dos meios e dos
fins) com uma visão religiosa que traz a promessa soteriológica da salvação eterna e
individual (ou seja, uma promessa da melhoria simbólica da condição existencial). A
existência dessa visão religiosa, da mesma maneira, justifica e reflete a hegemonia de uma
nova classe dominante, que promete ao trabalhador que aderir às relações de produção
capitalista uma melhoria de suas condições materiais de existência. Não se pode negar que,
em seguida, o autor faz a ressalva de que a romanização não apenas reflete a instauração do
capitalismo agrário, “mas é também uma das condições de possibilidade de instauração do
capitalismo agrário no Brasil”, se referindo oportunamente ao caráter dialético da história e
às limitações de uma abordagem mecanicista da história (OLIVEIRA, P., 1985, p. 315-323 e
333-337).
Contudo, apesar do avanço e da consistência desta obra de análise macro-social da
religião, a ênfase nas funções sociais da moral da igreja católica no Brasil – concebendo-a
como “um poderoso aparelho de hegemonia” (OLIVEIRA, P., 1985, p. 274) – não permite
perceber as relações complexas e as influências mútuas entre o modo de vida e a concepção
religiosa do mundo. Principalmente, quando se percebe que todas as características da igreja
romanizada que se afinam com o modo de produção capitalista são produções da hierarquia
católica impostas à população brasileira que não as aceitam necessária e simplesmente. Na
maioria dos casos, as ações romanizadoras foram ressemantizadas pelo povo, que no contexto
das condições do regime do padroado já eram habituados a formar suas concepções religiosas
fora do espaço de ação do clero.
3
Se a romanização logrou mais êxito no meio urbano, não
podemos esquecer, também, que foi neste meio que floresceram com mais vigor outras
formações religiosas e, ainda, outras esferas da formação do sentido e da concepção de
mundo, como a científica/educacional, a jurisdicional, o senso-comum, entre outros. Sem
esquecer, além disso, que nestas outras esferas formam-se até mesmo concepções sagradas do
mundo. Acreditamos, deste modo, que a macro-análise, neste caso, não percebe
adequadamente as relações entre o modo de vida e a concepção de mundo.
3
Ver tópico “As capelinhas da Mãe Peregrina em Ubatuba e a privatização do sagrado” do primeiro
capítulo deste trabalho.
80
2.1.2 Cultura e micro-política: os deuses populares
Carlos Rodrigues Brandão (1986a), deslocando sua análise de um universo macro-
sociológico de relações entre a classe dominante e a classe dominada, no livro Os Deuses do
Povo, concentra mais a sua análise nas relações entre a cultura e a religião eruditas e, a cultura
e a religião populares. Brandão apresenta a religião popular como uma forma de resistência
das classes subalternas, desembocando a questão na micro-política dos diversos grupos que
lutam pela possibilidade de representação nas relações sociais na cidade de Itapira, SP. Fato
que gera conflitos verticais (interclasses) e horizontais (dentro da própria classe subalterna).
4
Analisando minuciosamente as relações e representações dos diversos grupos das
diferentes religiões populares dos bairros pobres e da área rural de Itapira, Brandão faz
constatações inovadoras e importantes para a compreensão do assunto, como por exemplo, o
fato de a lógica das religiões populares do catolicismo e do evangelismo ser a mesma, ou
melhor, ele constatou que o processo e a forma lógica, neste caso, são os mesmos, preenchido
por práticas e crenças diferentes, conforme a experiência anterior e a afiliação religiosa dos
agentes populares do sagrado. Nos termos de Garfinkel, um importante fenomenológico da
teoria social contemporânea, poderíamos dizer que as diversas religiões populares possuem
um mesmo método de produção de significados (apud MARTINS, 2000, p. 61).
5
Outra
importante conclusão do estudo de Brandão é que a religião não serve apenas para a
manutenção das estruturas sociais de dominância. Como o autor bem identificou nos vários
casos que apresentou, a religião é o lugar da contestação da ordem estabelecida. Ele explica
que os serviços entre a religião e o poder secular:
...têm a ver com os projetos de hegemonia erudita dos dominantes. [Mas,
também] Têm a ver com as estratégias de autonomia e resistência política e
cultural dos subalternos. Têm a ver com as lutas de interesses profanos e,
também, com as esperanças de reconhecimento e salvação de sujeitos e
grupos internos a todas as classes sociais. Quando vista de longe, a religião
significa a equação sacralizada de uma ordem social existente ou percebida
como um todo (Durkheim, 1968: 600-609). Olhada mais de perto, a religião
revela que legitima modos definidos do poder que sustentam a ordem de
4
Uma das críticas mais contundentes aos trabalhos como o de Brandão chama a atenção para a sua visão
essencialista da tradição enquanto fonte de resistência do rural (passado) frente ao urbano (presente).
Para maiores detalhes remetemos o leitor para o ensaio bibliográfico de Paula Montero (1999, p. 332-
338).
5
Garfinkel refere-se ao senso-comum, mas sua teoria serve perfeitamente às constatações feitas por
Brandão (1986a) sobre as religiões populares.
81
dominância política segundo os interesses definidos por algumas de suas
classes. Mais de perto ainda, às vezes pelo lado de dentro, as agências e as
ideologias mostram que respondem por funções e serviços de significação
diferenciada de modos sociais de vida, e dos projetos políticos de cada uma
das classes de uma mesma formação social. (B
RANDÃO, 1986a, p. 297-
298).
6
De maneira que, logo adiante, ele pode afirmar que a religião popular “é a parte
subalterna de um trabalho simbólico e político no setor religioso.” (BRANDÃO, 1986a, p.
298). Porque, justamente, a religião popular é um lócus onde a relação estrutural de oposições
do mundo político se apresenta segundo artifícios culturais específicos. Poderíamos afirmar
que a religião é o lócus privilegiado da produção não-hegemônica, ou, mais precisamente do
“saber ou conhecimento local” (conforme a terminologia geertziana, “local knowledge”,
GEERTZ, 1997). No Brasil, a religião, enquanto uma esfera ainda importante de produção de
sentido, é a esfera em que o “saber local” e popular encontra as maiores brechas para agir.
O estudo de Brandão é inovador, ainda, na análise dos conflitos entre a esfera erudita
e popular. Mostra como na primeira, a lógica de encontro com a diferença é exclusivista, isto
é, o erudito se relaciona com o popular para negá-lo, corrigi-lo, iluminá-lo, segundo aquilo
que considera o correto, o verdadeiro. Já, do lado do popular, a lógica que rege o encontro é
inclusiva, o popular vê o erudito como mais uma alternativa para se conhecer e se relacionar
com a realidade visível e invisível, toma-o como complementar ao seu modo (limitado) de
ser, sem deixar de reconhecer que também o erudito tem limitações.
Segundo Paula Montero, os estudos como o de Brandão (1986a) e de Zaluar (1983),
entre outros trabalhos sobre o catolicismo popular, se destacam, ainda, por que:
...tiveram a virtude de contribuir para a superação do reducionismo inerente
à sociologia dos discursos institucionais dos anos 70, permitindo um
entendimento da religião em seus próprios termos e ampliando o modo de
compreender as relações entre mundo religioso e política...(M
ONTERO,
1999, p. 361).
6
Chamamos a atenção, nesta citação, entre outras coisas, para o dado do reconhecimento de grupos e
classes através das práticas religiosas, pois é para este ponto que avançamos neste trabalho, e é neste
debate que pretendemos nos inserir.
82
Por sua importância e pertinência, o trabalho de Carlos Brandão fornecerá uma sólida
base para o nosso estudo. Porém, devemos avançar na análise de mais algumas obras, pois
acreditamos que o entendimento do nosso problema, sem negar a importância da esfera
política da religião popular, passa pela análise de questões culturais presentes nas formações
das identidades do grupo e dos indivíduos estudados.
2.1.3 A tensão constituinte do catolicismo
Raymundo H. Maués (1995) defendeu uma tese que será de grande utilidade para o
nosso propósito. Apesar de falar sobre as representações do catolicismo popular e da
pajelança de uma região do interior da Amazônia, seu estudo traz importantes contribuições
para a formulação do nosso problema de pesquisa, principalmente, por se concentrar num
aspecto que, por ser geralmente considerado como óbvio, passa despercebido em alguns
estudos sobre o tema. Fazemos referência ao caráter constitutivo que a tensão, o conflito,
exerce no catolicismo. Aliás, como veremos a seguir, a tensão pode ser considerada
constitutiva não só do catolicismo, como de todas as religiões, se as consideramos como
sistemas de símbolos religiosos. Isto porque, como lembra Victor Turner (1974), os símbolos
– especialmente os símbolos religiosos – possuem uma característica de condensação que
podem reunir pólos contraditórios de significado. E isto no caso das religiões de motivação
universalista é muito mais evidente.
Na introdução de seu trabalho, Maués (1995, p. 18-21) apresenta uma classificação
interessante das obras das ciências sociais sobre o catolicismo no Brasil que vale a pena ser
mencionada aqui. De um lado, o autor reúne os trabalhos que, de um modo geral, analisam as
relações entre a igreja e a sociedade civil e o Estado, formados por duas linhas de interesses: a
primeira, que enfatiza as mudanças da igreja que busca se adaptar a partir da década de 1950
às mudanças da sociedade e do Estado brasileiros, libertando-se dos compromissos com a
estrutura patrimonialista-paternalista da velha sociedade agrária do Brasil colonial. A segunda
linha enfatiza a relação entre diferentes grupos dentro da mesma igreja e a questão dos
conflitos sociais e a estrutura de classes.
7
7
Optamos por não relacionar as obras analisadas por Maués por entender que, para este trabalho, é
suficiente a constatação das diferentes temáticas do catolicismo abordadas pelas ciências sociais
brasileiras. Aos interessados no assunto, sugerimos que busquem em seu livro estas referências,
mesmo porque, lá a classificação está mais bem embasada e justificada. Outra importante análise do
83
O outro conjunto de trabalhos, que reúne a maioria dos textos antropológicos, está
voltado para temáticas mais específicas. Desse lado, a variedade de temas é enorme, por isso
Maués se limita a citar exemplos de temas estudados, como os rituais: desde a missa até as
tradições populares mais distantes da igreja institucional e os estudos que analisam o
catolicismo e a religiosidade popular em áreas rurais e urbanas. Aliás, o autor lembra que,
outra forma de classificação destes estudos colocaria em destaque, exatamente, os trabalhos
sobre as religiões populares.
Uma importante constatação de Maués, de certa forma, dá orientação ao nosso
método de análise. Diz o autor que, apesar da importância do conjunto da literatura sobre o
catolicismo e a religiosidade popular, ele carece “de análises voltadas para categorias sociais
específicas”, porque, em geral os trabalhos das ciências sociais, com raras exceções,
consideram a população na sua totalidade, ainda que assumam um recorte de classes e se
comprometam com a classe subalterna (MAUÉS, 1995, p.20).
8
Quanto à religiosidade popular propriamente dita Maués (1995, p. 21-22) identifica
dois grupos distintos e complementares de trabalhos, um deles, segundo o autor, tende a
identificar a religiosidade popular com as classes subalternas, o proletariado e o campesinato
(é neste grupo que se encontram os trabalhos de Brandão, entre outros). O outro grupo está
mais preocupado com a globalidade do social e com as relações hierárquicas e de status
presentes na sociedade brasileira.
Apresentando, desta forma, um breve balanço da produção das ciências sociais sobre
o catolicismo, Maués encontra um caminho pouco percorrido nos estudos em questão e se
propõe a pesquisar as especificidades locais do catolicismo, enfatizando as crenças,
representações e práticas religiosas de populações rurais ou de origens rurais de uma região
interiorana da Amazônia. Para os nossos objetivos, seu trabalho é útil, principalmente, por
quadro teórico social sobre o catolicismo pode ser encontrado no, já citado, ensaio bibliográfico de Paula
Montero (1999). Seu trabalho analisa não só a produção sobre o catolicismo, mas também, de um modo
geral, os estudos sobre as religiões brasileiras e os dilemas das sociedade nacional, segundo a ótica
presente nos autores dos trabalhos abordados. Interessa-nos neste trabalho, sobretudo, a identificação
da autora com relação à dicotomia teórica, criada pelas intencionalidades dos pesquisadores, entre o
desejo da modernização da sociedade brasileira e a valoração da identidade dos grupos classificados
como populares. Segundo Paula Montero (1999, p. 347), somente a superação desta divisão pode
resultar em trabalhos produtivos que associem leituras sensíveis dos processos de significações às
análises das macro-determinações que orientam a ação social.
8
O autor lembra oportunamente que a dificuldade em se considerar categorias específicas decorre da
generalidade do fenômeno religioso que se expande por todas as classes e grupos sociais, e mesmo que
o recorte de classes possa oferecer alguma especificidade às manifestações religiosas, existem
momentos da religião em que as classes se dissolvem na generalidade (cf. M
AUÉS, 1995, p.21).
84
suas conclusões quanto à tensão constitutiva do catolicismo, formada no encontro e embate
entre a lógica clerical do sacramento e a lógica laica popular do santo.
2.1.4 A pluralidade de sentidos da religiosidade católica
Seguindo na contextualização de nosso tema, gostaríamos de apresentar mais uma
obra antropológica recente, especialmente por sua contribuição a respeito da metodologia de
análise deste conflito interno ao catolicismo. O estudo sobre o santuário do Bom Jesus da
Lapa de Carlos A. Steil (1996), também fornece alguns marcos teórico-metodológicos para a
análise que empreendemos das práticas de cultos marianos da paróquia da Exaltação à Santa
Cruz, de Ubatuba.
Essa é uma obra essencial que traz valiosa contribuição para o estudo recente das
devoções populares no Brasil.
9
Ela destaca-se, em primeiro lugar, pelo rigor metodológico e
teórico que permitiu ao autor analisar os dados coletados num consistente trabalho de campo à
luz das teorias mais recentes sobre o tema em foco, além de incorporar ao longo do texto a
presença concisa e harmoniosa de algumas das mais importantes teorias clássicas da
antropologia. Em segundo lugar, porque brinda o leitor com uma criativa análise das múltiplas
narrativas sobre o culto ao Bom Jesus no Santuário da Lapa, BA.
Por trás das análises deste autor temos uma concepção de que o social e o religioso
não são consensuais, num viés que não despreza o que é ambíguo e contraditório, que
privilegia as tensões e vê o social como um drama, um campo de forças em luta, no caso, em
luta para estabelecer os sentidos do culto da romaria ao santuário de Bom Jesus da Lapa, no
Estado da Bahia (cf. STEIL, 1996).
Naquilo que esta obra contribui para este estudo destacamos, neste momento, a
constatação de que, além da tensão que lhe é inerente, no caso do Brasil o catolicismo possui
uma pluralidade de sentidos nas diferentes esferas de práticas e crenças, que, como bem
apontou Steil, estão mais explicitas nos grandes momentos da religiosidade, como os rituais
de peregrinação devido a sua natureza de aglutinar a polissemia de significados e a
multivocalidade dos símbolos religiosos. O autor define com habilidade a maneira como, nas
9
Tanto o livro de Steil (1996) quanto o livro de Maués (1995) são frutos de suas teses de doutoramento em
Antropologia Social, no Museu Nacional / UFRJ.
85
romarias, entram em choque os diversos sentidos emprestados à religião, principalmente a
tentativa de se conectar o universal ao local e vice e versa, traduzida na tentativa clerical de se
apropriar da tradição oral sobre o culto, bem como, a atuação dos romeiros tradicionais de se
apropriarem dos elementos universais do discurso clerical, como uma forma de legitimar sua
produção local (cf. STEIL, 1996). Seguiremos de perto as análises de Steil sobre como as
configurações das várias conjunturas da igreja católica mundial se realizaram no contexto
específico de um culto regional. Contudo, para contribuírmos criativamente para o debate
sobre o catolicismo brasileiro, deslocamos nosso foco de análise do espaço e tempo
extraordinários, para tentar perceber como essa pluralidade em conflito potencial configura
uma esfera das práticas cotidianas e crenças de uma paróquia específica.
Sem dúvida, um elemento universal do discurso clerical que é apropriado pelas
devotas da Mãe Peregrina de Ubatuba para tentar legitimar suas redes de devoção é o
enunciado oficial de que Maria é uma só e a mesma em todos os lugares. No entanto, não é
raro descobrir em suas falas matizes e nuances que teimam em diferenciar a “especialidade”
ou a “cumplicidade” desta ou daquela figuração mariana. Segato também estudou a aparição
em Piedade dos Gerais, e uma das coisas que ela destaca de um entendimento “nativo”
daquele fenômeno é exatamente essa distinção entre uma Virgem onipresente (anunciada pelo
clero ou pela renovação carismática que reproduz o discurso oficial) e a Virgem da aparição
local (2000, p. 4-5).
2.1.5 O culto aos santos: entre a casa e a paróquia
Mas, para entrar propriamente em nosso problema de pesquisa, recorremos a um
estudo de culto aos santos que tem como lócus de estudo privilegiado, justamente, uma
paróquia. Somada às demais obras, a dissertação de Gutilla (1993), A Casa do Santo & O
Santo de Casa, orientará nossa tentativa de demonstrar como, numa paróquia em particular, se
aglutinam e distinguem, no mínimo, dois modos de ser católico, um modo que chamaremos
de clericalizado e outro popular. Apesar de não concordarmos com a conclusão de Gutilla de
que a privatização da devoção de São Judas Tadeu, na paróquia do Jabaquara, na cidade de
São Paulo, é uma forma de resistência dos devotos tradicionais frente ao processo de
desapropriação de seu capital simbólico comum, compartilhamos com suas idéias a respeito
da associação e das influências das conjunturas históricas da igreja católica mundial, tanto no
santuário, como na paróquia de São Judas Tadeu.
86
O estudo de Gutilla (1993) descreve com maestria o processo de criação de uma
devoção popular, contudo, o autor não conseguiu incorporar em seu trabalho as críticas às
visões essencialistas do tipo “nostalgia da tradição”. Nossa objeção é, justamente, ao fato de
Gutilla considerar a privatização do culto como uma resistência frente à desapropriação de seu
capital simbólico original. Ora, conforme tentaremos apontar, a tradição religiosa é
extremamente dinâmica e passível de inovações e, ao invés de falarmos em desapropriação,
somos levados a pensar que uma re-apropriação mútua baliza, tanto a ação clerical como a
ação dos leigos populares, como aliás, o próprio antropólogo aponta em outra parte de seu
texto (cf. GUTILLA, 1993). Sobre a característica de re-apropriação mútua, remetemos o leitor
ao trabalho de Montero (1994, p. 89) que procura demonstrar as relações contraditórias (e
simultâneas) em nossa sociedade entre a magia e a modernidade.
2.1.6 Administração paroquial da multiplicidade católica
Conforme podemos observar, com a exceção de Brandão, os autores que
relacionamos acima, estudam a confluência histórica entre a igreja católica nacional e
universal e a sociedade civil. Separando Ribeiro de Oliveira que faz uma sociologia
(marxista) desta confluência da sociedade brasileira de modo global, os outros três autores
vão tentar perceber como se configurou historicamente esses movimentos da instituição
católica numa esfera específica, seja nas práticas festivas, institucionais ou não institucionais
de uma região da Amazônia, seja num ritual de peregrinação a um santo popular tradicional,
ou seja, num santuário de um santo “romanizado” criado pelo clero para atrair mais fiéis ao
seu rebanho.
Nossa intenção é, partindo de um caso que, aparentemente, guarda os limites da
cotidianidade e da sincronicidade, observar como esses diferentes momentos da religiosidade
católica brasileira, se relacionam dentro de uma paróquia e como ela forma e informa a visão
de mundo e a identidade de devotas de Nossa Senhora. No caso que apresentamos, o
tradicional corte analítico entre classes sociais não esclarece adequadamente os motivos do
conflito entre ethos religiosos diferenciados. Não esclarece porque, em primeiro lugar, a
tensão se apresenta, quase que exclusivamente, no campo das relações simbólicas. Em
segundo lugar, porque a formação social heterogênea dos grupos em questão não nos permite
dividi-los segundo critérios estritamente econômicos ou sócio-culturais. De fato só poderemos
falar de grupos diferentes enquanto participantes de uma rede de devoção mariana específica,
8
7
mas que possuem, internamente, uma gama de diferenças de classe, de instrução e de inserção
social e religiosa (e no limite étnica e racial).
Assim, esse é um dos arcabouços teóricos que fundamentam nossa análise dos
conflitos da religião nas sutilezas das variadas práticas rituais de uma paróquia. Afora este
conjunto de conceitos devemos destacar a significação atual do culto mariano no Brasil.
Entretanto, antes de passarmos a este tópico propriamente, e para entender melhor o que se
passa em Ubatuba, talvez seja necessário, agora, expor algumas idéias sobre os sentidos que
as devoções marianas assumiram nos últimos séculos.
2.2 Os sentidos das devoções marianas
Neste tópico procuramos traçar as principais características do culto mariano através
da história, principalmente, a partir do século XX, período em que nasce e se desenvolve a
devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt, que irá se desdobrar, no Brasil, no movimento da
Mãe Peregrina.
O culto a Maria nasce na passagem do século III para o século IV, logo após o
surgimento do culto aos primeiros santos, os mártires cristãos. Neste período, os mártires e
Maria começaram a ser venerados como modelos humanos da santidade cristológica
(BEINERT, 1979, p. 33-34). Ao longo dos tempos, podemos identificar momentos de maior e
menor destaque do culto a Maria no conjunto de práticas religiosas dos cristãos, no nosso
caso, dos católicos em particular. O afluxo e o refluxo deram-se, ora com relação exclusiva ao
culto à Virgem Maria, ora ao conjunto dos cultos aos santos em geral. Sucintamente, podemos
identificar três momentos de ascensão e queda do culto mariano. O primeiro movimento de
crescimento da veneração à Virgem é identificado na Idade Média, com seu grande número de
aparições, revelações e profecias marianas, momento no qual Maria estava associada
intrinsecamente ao seu filho, ou seja, o culto era prestado à Mãe de Deus (Theotokos).
10
Depois desse avanço, o relaxamento em relação ao culto mariano apresentou-se associado à
Reforma Protestante e, depois, ao Iluminismo, devido principalmente aos pressupostos
teológicos que não encontravam fundamento bíblico. O segundo momento de crescimento do
10
Atestam-nos estes cultos as diversas representações icônicas da época que retratam a Virgem e seu
Filho divino. Para uma discussão histórica sobre o termo grego Theotokos, e sua versão latina, ver
Pelikan (2000, p. 83-95).
88
culto à Virgem Maria pode ser identificado no período que vai do final do século XIX ao
século XX, momento imediatamente anterior ao Concílio Vaticano II, do papado de Pio IX ao
de Pio XII, também fortemente marcado por inúmeras aparições da Virgem Maria, agora
como uma figura autônoma intercedendo pelos homens e mulheres junto a Deus.
11
O refluxo
seguinte foi representado pelo Concílio Vaticano II, enquanto movimento de aproximação às
concepções religiosas da antiga Reforma Protestante e às concepções seculares da sociedade:
a racionalização do discurso e prática religiosos, bem como, a busca do diálogo com as
demais religiões cristãs, o que implicava, no mínimo, negligenciar práticas religiosas
específicas do catolicismo e criticadas pelos cristãos não-católicos. Esta “Renovação” católica
significou, entre outras coisas, a ênfase nos sacramentos católicos e na figura de Cristo e a
decorrente recolha dos inúmeros santos das igrejas, entre eles as imagens de Maria.
12
Por fim,
encontramos a emergência devocional que se desenvolve como reação a esta “Renovação”,
entendendo que o incentivo das práticas devocionais tradicionais é um meio eficaz para reter
os fiéis diante dos avanços da secularização e protestante. Mas é preciso dizer que estamos
falando de tendências de representações do sagrado e de relações com o sagrado. Ou seja, o
que queremos mostrar é que a devoção a Maria conheceu maior ou menor apreço por parte da
Instituição, maior ou menor apreço por parte dos fiéis,
13
nos diferentes momentos históricos
acima apontados.
11
Cf. Pelikan (2000, p. 58) e Turner & Turner (1978, p. 203). Os Turner reconhecem que os contextos das
modernas aparições da Virgem caracterizam-se sempre por crises políticas ou econômicas. Em acordo
com esta afirmação, Ribeiro de Oliveira (1985, p. 266-269) diz que, no Brasil, os movimentos religiosos
de protesto desenvolveram-se em contextos de crises sociais de hegemonia.
12
No Brasil, a devoção à Maria conheceu recentemente um crescimento e apoio da instituição,
principalmente diante do perigo representado pelo crescimento pentecostal na sociedade brasileira. No
ano de 1995, depois que um Bispo neopentecostal da igreja Universal do Reino de Deus (IURD) agrediu
na TV a imagem de Nossa Senhora, a igreja católica reagiu veementemente através de ações nos meios
de comunicação de massa e junto à justiça brasileira. Essa reação ao fato tornou-se também uma
diferenciação e uma reação ao pentecostalismo protestante (cf. P
RANDI, 1997). Na verdade, por trás
desta contenda televisa, está toda uma disputa pelo espaço religioso público que a IURD vem
empreendendo no Brasil. Mais detalhes a respeito desta conquista da esfera pública da religião
pentecostal podem ser encontrados em Johnson (1997).
13
Cabe aqui uma distinção quanto ao uso das imagens marianas. A igreja institucionalizada utilizou ao
longo dos tempos a figura de Maria como mediadora da cultura religiosa autóctone e suas concepções
ortodoxas. Maria é símbolo de ligação entre concepções religiosas politeístas e a concepção monoteísta
do cristianismo. Do outro lado, para o povo em geral, Maria é símbolo restaurador da ordem, suas
aparições e revelações procuram recuperar a ética religiosa ameaçada pelas crises sociais. (P
ELIKAN,
2000; T
URNER & TURNER, 1978; STEIL, 1995). O culto popular a Maria exerceu forte influência nas
posições teológicas da igreja. Basta lembrar que os dois últimos dogmas marianos, a saber, a Imaculada
Conceição e a Ascensão aos Céus, se impuseram à mariologia devido ao vigoroso culto a Maria
representado pelas festas, novas meditações sobre os mistérios marianos, novos lugares de culto e
peregrinações. Neste ponto, o culto a Cristo fora baseado em dogmas pronunciados tão abstratamente
que não inspiraram a mesma espiritualidade com relação a sua humanidade (cf. B
EINERT, 1979, p. 30).
Confira Lopes (2000a, p. 31-57) para uma análise das devoções sob a ótica da representação imagética.
89
Ao fazermos uma aproximação com o nosso objeto, destacamos que em Ubatuba
existem atualmente, no mínimo, três importantes movimentos de culto mariano. Além dos
dois que analisamos mais detidamente neste trabalho – a saber: o movimento da Mãe
Peregrina e o movimento do Imaculado Coração de Maria, que se organizam através da
devoção em família e nas residências, há um terceiro: a Legião de Maria, que é fundamental
para entender as relações e a devoção das paroquianas que participam das duas redes de
devoção nas residências. Ele é importante porque, salvo raras exceções, todas as mulheres
com as quais falamos, participam também da Legião de Maria.
14
Através deste movimento de
devoção e auxilio espiritual podemos entender a natureza eclesial do movimento da Mãe
Peregrina. Ambos nascem de organismos criados no início do século XX como parte de um
modelo de religiosidade incentivado por Roma, e que possui uma estrutura de organização
semelhante à estrutura paroquial de organização (burocracia hierárquica), mas que atravessa
esta estrutura paroquial, tal como as ordens religiosas da igreja católica. Em alguns casos,
estas estruturas iguais, mas separadas, podem se alinhar, em outros se chocar, dependendo
muito da realidade particular de cada paróquia, de cada movimento e ordem e do período
histórico considerado (cf. TORRES-LONDOÑO, 1997; STEIL, 1996).
A Cúria Romana procurou, em alguns casos, solucionar ou simplificar estas relações
quando, por exemplo, entregou prelazias inteiras a movimentos (como o caso do Opus Dei),
outras vezes quando entregou um santuário juntamente com a paróquia para as ordens
religiosas. O próprio movimento da Mãe Peregrina experimenta realidades diversas da que
encontramos em Ubatuba, tendo paróquias (e até Dioceses) onde recebem apoio decisivo de
padres e bispos (mesmo dos padres que não pertencem à obra de Schoenstatt). Assim, também
o movimento da Legião de Maria, ora encontra mais retorno do pároco, ora menos. Em
Ubatuba parece que o padre apóia a Legião de Maria, contudo, as “incorreções” das práticas
das legionárias das comunidades periféricas criaram uma situação ilustrativa para o que
desejamos afirmar em relação ao movimento da Mãe Peregrina. Diante da inobservância de
certas regras e entendimentos internos ao movimento, as visitas das lideranças estaduais da
Legião de Maria deverão ser bem mais freqüentes para fazer o acompanhamento dos dois
praesidium das comunidades periféricas da paróquia: o da comunidade do Perequê-Açu e o da
14
Segundo o relato de dona Nair, pinçado de algum manual do movimento, a Legião de Maria tem cerca
de oitenta anos e foi fundada em sete de setembro de 1921, por Frank Duff e um grupo de jovens, na
cidade de Dublin na Irlanda. Segundo nossa informante, esses jovens passavam por grandes
dificuldades em suas famílias e decidiram rezar um terço e invocar Maria como a medianeira para salvá-
los daquela situação em que eles se encontravam. Daí o título dado à padroeira do grupo: Nossa
Senhora Medianeira de Todas as Graças.
90
comunidade do bairro Ipiranguinha.
15
Portanto, apesar de ter o apoio do padre, de estar
totalmente vinculado à paróquia, há momentos em que o movimento tem que contar com suas
forças e métodos particulares para se estruturar da forma que lhe parece adequada, ou seja, há
a possibilidade de se criar espaços e tempos de maior independência do papel do pároco. Isso
não significa que essas legionárias estão contra o padre. Todavia, acreditamos que isso
significa que elas dão ênfase a alguns objetivos que são diferentes das ênfases do pároco e da
paróquia como um todo. É desta forma que vemos o movimento da Mãe Peregrina,
entendemos que as pessoas que recebem as capelinhas têm não só objetivos distintos dos
objetivos da paróquia, mas também experiências distintas. É a configuração das estratégias e
táticas de produção do consumo dos bens religiosos envolvidos no culto mariano que têm
determinado a significação do movimento para suas devotas. Desta maneira, dizer que são
objetivos e práticas distintas, não significa dizer que são necessariamente antagônicos,
significa dizer, apenas, que podem ser antagônicos. Significa também que, devido à dinâmica
cultural e religiosa da paróquia, podem estar aliados num momento e em choque no momento
seguinte.
Por outro lado, quanto ao contexto do catolicismo no momento em que surgiu a
devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt na Alemanha, em 1914, cabe lembrarmos que ele foi
rico em movimentos marianos criados a partir da reunião de um grupo de fiéis movidos pelo
ideal de orientação moral e espiritual baseado no modelo da vida religiosa, que foi tomado
como caminho de santificação segundo os documentos do Concílio de Trento (século XVI), e
que representaram parte da resposta da igreja ao “modernismo”, corrente de pensamento
europeu que buscava analisar a Bíblia e o cristianismo segundo as ciências profanas, em
franco desenvolvimento neste período (DELUMEAU, 2000, p. 265). Outros exemplos deste
catolicismo pietista, além dos de Schoenstatt (Alemanha, 1914) e da Legião de Maria
(Irlanda, 1921), são o Apostolado da Oração (França, 1844) e o movimento Opus Dei
(Espanha, 1928).
Com relação às devoções marianas, Turner & Turner (1978, p. 207-209) disseram
que o século XIX e a primeira metade do século XX foram muito ricos em aparições de
Maria, originando algumas das peregrinações mais populares da Europa. Ao contrário das
aparições medievais, nas quais Maria pedia ao visionário a construção de um santuário, nas
15
Praesidium é o nome dado aos grupos bases do movimento. Estes grupos são sempre apadrinhados por
algum santo ou invocação sagrada. Assim, temos em Ubatuba, por exemplo, o Praesidium Stela Maris, o
Praesidium São Francisco, etc.
91
aparições modernas Maria comunicava uma mensagem importante chamando a humanidade
para o arrependimento e a salvação. Estas mensagens marianas, segundo os Turner, estão
identificadas com os interesses legais da classe-média.
16
Outro movimento mariano que foi importante na constituição do modelo de devoção
mariana para as mulheres que dialogam conosco neste texto, foi o das Pias Uniões das Filhas
de Maria, que a partir de 1930 foram disseminadas, quase sempre orientadas pelo clero, nas
paróquias brasileiras. Da mesma forma que hoje são legionárias, quase todas dizem que foram
das “Filhas de Maria” na infância quando perguntadas sobre os movimentos e devoções
marianas que praticam. Precisamos recordar que esta Congregação Mariana nasceu das idéias
do Vaticano I (que teve início em 1869) e foram fortemente estimulados pelo clero, ao lado de
outras associações católicas “modernas”, como o Apostolado da Oração, as Ligas católicas,
Jesus, Maria, José e a Cruzada Eucarística Infantil, entre outras, como parte do projeto
“romanizador” da igreja católica brasileira. Neste período destaca-se o vigor das organizações
do laicato sob a direção dos párocos, que após décadas de adaptação no país, conseguem
substituir, em importância, o papel de instâncias aglutinadoras que as antigas associações e
irmandades leigas seculares exerciam no catolicismo tradicional brasileiro (cf. BANDEIRA,
2000, p. 83-84).
Apesar de serem filhas de um mesmo contexto histórico, a Legião de Maria e a Mãe
Peregrina não chegam e nem se desenvolvem da mesma forma na cidade de Ubatuba. A
Legião de Maria está presente na cidade desde 1974, tem o padre como diretor espiritual, e
complementa os serviços paroquiais, contribuindo com o papel de representante da igreja
16
Concomitante à aparição de Nossa Senhora em Medjugore (Iugoslávia, 1981) podemos dizer que surge
um novo momento no culto mariano. Até este evento, a igreja católica havia reconhecido somente sete
aparições de Nossa Senhora, todas européias – a despeito do enorme número de aparições em todo
mundo – e que, logicamente vieram a se tornar, umas mais outras menos, cultos universais. Com
Medjugore, um movimento leigo, os carismáticos, assumem o desenvolvimento e a divulgação da
aparição, forçando o culto a se tornar universal, ainda que o Vaticano não tenha se pronunciado até hoje
sobre as aparições de Nossa Senhora Rainha da Paz, para não se envolver nas disputas entre os
Franciscanos responsáveis pela paróquia de Medjugore – e que incentivam a devoção – e a Diocese de
Mostar, que engloba Medjugore – e que proíbe o culto relacionado às aparições. Para um
desenvolvimento deste assunto indicamos o artigo de Segato (2000). O registro do que acontece em
Medjugore é exemplar para o caso que estudamos, no qual uma devoção, muito provavelmente, não
reconhecida pelo Vaticano – não obstante, o Papa João Paulo II, depois de perguntar sobre o significado
daquela imagem peregrina, tê-la abençoado em sua audiência semanal, no Vaticano, em vinte e cinco de
julho de 1979 (U
RIBURU, 1985, p. 82-84) – avança com enorme força dentro das paróquias brasileiras.
Nesta devoção que pesquisamos, como em Medjugore, o conflito pode ser mais evidente entre os
setores da instituição católica, no entanto, concordamos com Segato (2000, p. 12) quando ela diz que,
para o Brasil, somente a competição hierárquica entre setores e regimes oficializados do campo da igreja
não é suficiente para explicar os conflitos entre as diferentes práticas do culto mariano. Um bom exemplo
deste fato é o fenômeno das aparições de Maria no município de Piedade dos Gerais – MG (cf. A
LMEIDA,
2001).
92
católica nas visitas domiciliares e, principalmente, ao hospital e asilo da cidade, para
orientação espiritual.
17
A devoção à Mãe Peregrina, por outro lado, chega na cidade somente
depois de vinte anos, em 1994, através de uma leiga, como vimos. Apesar de contar com a
anuência do padre para funcionar, sua relação com a devoção se resume à permissão para que
a capelinha da Mãe Peregrina permaneça ao lado do altar nos dias mensais de missa a ela
consagrados. Mesmo aqui, não sabemos se podemos falar de relação, pois o que observamos
numa missa a que assistimos foi a total falta de referência à Mãe Peregrina por parte do
pároco que celebrava a missa naquele dia.
18
Neste caso, defendemos que a devoção à Mãe
Peregrina complementa, para as devotas que dela participam, as crenças marianas
incentivadas pela paróquia.
19
Voltaremos, mais à frente, a falar sobre a Mãe Peregrina em
Ubatuba, passemos agora para uma caracterização mais específica sobre a devoção inicial e
mais geral a Nossa Senhora de Schoenstatt, surgida na Alemanha, para compreender melhor a
natureza clerical desta devoção.
2.2.1 O surgimento da devoção de Schoenstatt e o catolicismo “militante” da
Europa
Toda a grande “Obra Internacional de Nossa Senhora de Schoenstatt” nasce na
Alemanha no início da Primeira Guerra Mundial, em outubro de 1914. Seu fundador, o padre
pallottino José Kentenich (1885-1968), decidiu juntar os seminaristas que ele reunira em uma
Congregação Mariana, para com eles selar uma “Aliança de Amor com Maria”, antes que a
iminente convocação para a guerra chegasse aos jovens. Ele escolheu para o local do “pacto”
uma velha capela abandonada nos arredores do Seminário em que vivia. Ali juraram fervorosa
veneração à Virgem e em troca pediram para que ela cuidasse da proteção e orientação de
cada um dos jovens presentes. Na verdade, o padre Kentenich tinha um desejo de fundar um
santuário e teve a idéia de “convidar” Nossa Senhora a se estabelecer naquela capela ao ler
17
De acordo com nossa informante Nair, a Legião de Maria, em Ubatuba, foi fundada pelo frei Geraldo
Maria em sete de julho de 1974. Quanto à presença do padre, ressaltamos que, aparentemente, ela não
tem a freqüência que o movimento gostaria, ou ao menos exigiria. Voltaremos a este ponto mais adiante.
18
Situação bem diversa da que observamos em duas paróquias de Dioceses da região (Taubaté - SP e
São José dos Campos - SP), onde os padres convidaram enfaticamente os paroquianos a participar das
missas da Mãe Peregrina, celebrada todo dia dezoito de cada mês, no caso de Taubaté, ou todo
segundo sábado do mês, no caso de São José dos Campos.
19
Na verdade, conforme o desenvolvimento deste trabalho, defendemos não só uma complementaridade
em relação às crenças marianas, como, de fato, uma complementaridade em relação às crenças
católicas oficiais, em geral.
93
sobre um advogado italiano que fizera o mesmo em Pompéia, na Itália (URIBURU, 1983, p. 37-
47).
20
Na biografia que consultamos, não há referência a nenhuma revelação mística de Nossa
Senhora, mas sim uma vontade de interpretar, segundo o biógrafo, os sinais da Divina
Providência que “buscava um instrumento humano para realizar os planos da Virgem Santa”.
Desde o início, todos os atos relacionados ao santuário e à futura Congregação
secular foram detalhadamente registrados em documentos e cartas. Neles podemos observar
como Maria invocada ali ganhou uma imagem figurada, como foi o desenvolvimento de seu
nome devocional e como centenas de réplicas daquela capela-santuário se espalharam pelo
mundo.
21
A imagem associada à invocação foi um quadro da Virgem segurando o Menino
Jesus, que foi pintado por um artista italiano no século XIX e reproduz traços estéticos da arte
oriental. O novo grupo recebeu-o como um presente de um Padre pallottino, que o adquiriu
num antiquário. A imagem não guarda nenhuma especificidade com o evento de criação do
Santuário. Mais interessante foi a construção da invocação devocional: seu primeiro nome foi
Mãe Três Vezes Admirável, passou por acréscimos até chegar à forma atual, Mãe, Rainha,
Vencedora Três Vezes Admirável de Schoenstatt. Sendo cada uma destas etapas, desde a
aceitação da imagem até a forma final do nome, racionalmente justificada pelo fundador.
Outro elemento característico foi intencionalmente acrescentado à devoção. Trata-se
da formação de uma fortuna simbólica, que deve ser abastecida por cada uma das pessoas que
participam dos diversos segmentos de devoção que se originaram da Congregação inicial. Os
participantes do Movimento, consagrados ou não, devem ter a obrigação de alimentar o
“Capital de Graças” do santuário. Cada um deve, diariamente, oferecer os méritos
conseguidos por intercessão de Nossa Senhora de Schoenstatt e os seus esforços de
santificação para o aumento desse capital simbólico, para que a “santa” consiga aumentar,
assim, o seu poder de solicitar as graças de Cristo. Para a orientação do Movimento da Mãe
Peregrina, este seria o sentido da cooperação de cada um dos devotos (cf. M
ENSAGEM, [199?],
20
Neste tópico, além da biografia do padre Kentenich, escrita pelo padre Uriburu (1983), utilizamos
também os documentos de organização e divulgação do movimento da Mãe Peregrina, relacionados nas
referências bibliográficas.
21
Hoje somam mais de cento e cinqüenta espalhados por cinco continentes. No Brasil são, no mínimo,
treze santuários. Uma característica muito importante destes santuários filiais é que eles seguem
exatamente a mesma forma do santuário original de Schoenstatt, inclusive o mesmo tamanho e até o
detalhe da planta que recobre seu lado exterior. A criação de templos dedicados a santos de grande
devoção que se relacionam com um lugar santo (santuário), o local da hierofania, não é novidade. O
culto mariano oferece-nos inúmeros exemplos, como as várias igrejas de Nossa Senhora Aparecida, de
Fátima ou de Lourdes, entre outras. Mas, nestes casos a vinculação pretendida é com a Virgem Maria e
seus poderes, raramente reproduz-se o santuário como no caso de Schoenstatt. É como se, neste último
culto, apenas a presença da imagem não fosse suficiente para instalar o espaço sagrado.
94
p. 47-53). Verificando a memória que as devotas de Ubatuba têm sobre o movimento,
percebemos que este estratagema tornou-se um dos principais mecanismos simbólicos para a
construção da eficácia da devoção.
22
Por parte da direção erudita do movimento, a manutenção e a ampliação deste capital
é importante para a ação evangelizadora da Obra, conforme a explicação oficial a esse
respeito:
Em Schoenstatt, Maria é convidada a se estabelecer, diante o nosso sério
compromisso de aspiração à santidade. É por isso que os Santuários de
Schoenstatt, por desígnio da Providência, dependem da colaboração
humana. Onde não houver mais esta colaboração, deixa de existir um lugar
especial de graças. (M
ENSAGEM, [199?], p. 53).
As exigências de compromisso e colaboração para manter e ampliar o “capital de
graças” garantem a realização das promessas atribuídas à Maria aos que tomarem parte no
movimento: distribuir graças em abundância e cuidar da educação dos jovens para
empreender um movimento de renovação da igreja e da sociedade. É com esse espírito
missionário que nasce, entre muitos, o Santuário-filial de Santa Maria, no Rio Grande do Sul,
em 1948.
O movimento, desde o seu início, sempre foi clerical e fortemente atrelado aos
cânones da Instituição católica, defendendo rigores de conduta espiritual e moral muito
“severos” quando comparados às orientações de cultos marianos mais populares. O
“Movimento Apostólico de Schoenstatt”
23
não segue o modelo popular de devoção,
porquanto, está afinado com os discursos institucionais sobre Maria e utiliza como estratégia
de ação (e crescimento) a busca de um caminho de perfeição e salvação individual.
Lembramos que, diferentemente do catolicismo de meados do século XX, o
catolicismo do século XIX se caracterizou pelas inúmeras congregações e associações,
22
Dona Neide, a zeladora do Perequê-Açu, acredita que no santuário de onde partem as capelinhas, as
irmãs colocam no altar uma lista com os nomes e rezam para todas as famílias que estão recebendo as
capelinhas naquele dia. Prática que não observamos junto ao santuário de Atibaia. Uma relação das
famílias das redes de devoção realmente é encaminhada ao santuário, contudo, são arquivadas e
servem para evitar que um zelador coordene mais de uma rede ou que pessoas em situação eclesial
irregular assumam cargos de coordenação no movimento.
23
Nome que, ao lado de “Obra Internacional de Schoenstatt”, os autores dos documentos produzidos pelo
grupo utilizam para se referir ao conjunto de associações, congregações e cultos relacionados a Nossa
Senhora de Schoenstatt.
95
responsáveis pela formação dos “católicos sociais” (ou “católicos militantes”), que se
voltavam para trabalhos em hospitais e escolas e para questões do mundo operário e dos
“desfavorecidos”, como atestam a Sociedade São Vicente de Paulo, os Salesianos e as Irmãs
de Caridade (DELUMEAU, 2000, p. 269).
Jean Delumeau (2000, p. 265-270) diz que no século XIX o cristianismo
experimentou uma vitalidade extraordinária. Diante da perda dos Estados pontifícios e da
ofensiva da “civilização moderna” e da filosofia das Luzes, os católicos mais fervorosos
procuraram agir em dois sentidos indissociáveis: a recristianização das cidades e vilas rurais
européias e a conversão dos pagãos (impulso missionário). Essas ações se traduziram
concretamente no aumento do número de ordenações sacerdotais, de paróquias e de
congregações religiosas nos países católicos da Europa, além da expansão das missões –
sobretudo na África – que acabaram suscitando inúmeras vocações que, muitas vezes,
levaram ao martírio.
24
Especificamente sobre as congregações, verificou-se uma forte
preocupação com as questões sociais. De uma maneira geral os cristãos sociais, que eram
conservadores politicamente, demonstraram uma ação mais atenta ao mundo operário que se
desenvolvia num ritmo assustador no século XIX. Esse catolicismo “militante”, ao mesmo
tempo em que olhava melancolicamente para o passado, dedicou-se aos serviços de
assistência aos doentes em hospitais, aos pobres e ao ensino nas escolas. Como vimos acima,
este período da passagem do século XIX para o século XX, baseado nesta espécie de nostalgia
do passado cristão, foi marcado também por uma restauração de práticas espirituais. O
catolicismo “militante”, ao atuar com os mais necessitados, valorizava o entregar-se ao
próximo e o despojar-se das preocupações com o próprio corpo. Da mesma forma, a estratégia
de atuação pedagógica das novas congregações buscava atingir, através das instituições
seculares, como a escola, os jovens para imprimir neles o ideal cristão de espiritualidade e
sexualidade.
25
Não é coincidência que as associações que cumpriam, neste período, um maior
24
A vitalidade dessa época não foi exclusividade dos católicos, a igreja Anglicana e as igrejas protestantes
da Inglaterra e dos EUA também conheceram uma enorme expansão de seus raios de atuação e de
importância na sociedade (cf. D
ELUMEAU, 2000, p. 269).
25
Essa efervescência religiosa fez surgir desconfianças entre as várias associações e movimentos locais e
Roma. De fato, uma releitura do passado, do presente ou do futuro, poderia ir de encontro aos dogmas
católicos e às orientações do Vaticano. Todos sabemos quão tênue são as fronteiras entre o profeta e o
herege. Quando o padre José Kentenich começou a ampliar seu movimento de Schoenstatt – depois da
Segunda Guerra Mundial, quando esteve prisioneiro (1942-1945) em Dachau, Alemanha – foi
denunciado por alguns bispos da Alemanha ao Vaticano (“aborrecidos com a expansão do movimento na
sua diocese, pois temiam que isso podia criar conflitos com as organizações católicas já existentes”,
segundo a versão que consta em sua biografia). Antes disso, um visitador diocesano constatou
problemas, principalmente, na educação das seculares Irmãs de Maria e, também, quanto a alguns
cânticos e orações do movimento. “O Visitador fez observações relativas ao papel que o P. Kentenich
96
papel de direção espiritual e moral estivessem ligadas ao culto à Virgem Maria. O historiador
do cristianismo Jaroslav Pelikan identificou esta associação para o período da Idade Média,
mas suas palavras servem perfeitamente para o período a que nos referimos:
O ascetismo cristão certamente é anterior à expansão do cristianismo. O
mundo do inicio do cristianismo experimentava uma série de vigorosos
movimentos dedicados á negação das exigências da vida física, postulando o
cultivo da disciplina e do autocontrole com relação aos alimentos, às
bebidas, ao conforto físico e, sobretudo, à sexualidade.
[...]
Como seria de se esperar, os apologistas do ascetismo cristão se apegaram
à Virgem Maria como um modelo de virgindade e autonegação. (P
ELIKAN,
2000, p. 156 e 159).
A incipiente Obra de Schoenstatt tinha por objetivo expresso, justamente, a educação
dos jovens “segundo a pedagogia de Maria”, que estaria sendo esquecida naquele período de
grande efervescência no campo profano das idéias filosóficas e científicas. Outra
característica das práticas católicas do período, que se manifestou também em Schoenstatt, foi
o ardor por converter os pagãos. O movimento enviou missionários, principalmente, para a
África e, posteriormente, atingiu os cinco continentes. Da Segunda Guerra até hoje, o
movimento se transformou de uma pequena Congregação Mariana, dentro de um seminário,
para uma complexa Organização internacional, com um rigoroso controle centralizado e que
atua em muitos países e de diversas formas.
26
exercia dentro da Família de Schoenstatt e, particularmente, em relação às Irmãs de Maria”. Alegou-se
que o padre fundador exercia exagerada influência sobre as pessoas e excessos quanto à devoção à
Virgem Maria, ao que o padre respondeu que o “pensamento mecanicista” do Ocidente, do qual o
visitador era representante, impedia a percepção do papel da Virgem Maria e do princípio paternal como
expressão e caminho para Deus (U
RIBURU, 1983, p. 131-133).
Mas a suspeita de heresia, neste período, não foi exclusividade de Schoenstatt. Gutilla (1993, p. 45)
revela que a Congregação do Sagrado Coração de Jesus, recém formada por João Dehon na França, foi
interditada pela Santa Sé em 1893 diante de uma denúncia de que um padre do grupo teria visões
místicas e revelações divinas. Gutilla defende que este episódio tenha originado o zelo pela ortodoxia de
culto que os padres do Sagrado Coração de Jesus têm hoje. Em sentido semelhante, o padre pallotinno
Esteban Uriburu, que escreveu a biografia do padre Kentenich, reproduz a opinião do fundador sobre a
natureza eclesial da obra de Schoenstatt: “Não queremos existir ao lado da igreja (...) nem sobre a igreja,
mas sim na igreja... daí a forte tendência de incorporar o nosso Reino na jeraquia [sic], daí também a
dependência correspondente à paróquia e à diocese” (U
RIBURU, 1983, p. 131-132).
26
Na rede mundial de computadores (world wide web) encontramos uma descrição dos organismos que
formam a “Obra Internacional de Schoenstatt” (S
CHOENSTATT, 1999): (1) Praesidium Geral, organismo
supremo da Obra Internacional de Schoenstatt de caráter diretivo. (2) Institutos Seculares que possuem
uma direção internacional centralizada e agrega institutos de famílias, de leigas enclausuradas, leigos
enclausurados, de padres e de sacerdotes diocesanos; sendo que o primeiro foi fundado em 1926. (3)
9
7
O registro da organização e natureza do movimento oferece ainda mais importância
ao caso que estamos estudando, pois verificamos que um movimento tão clericalizado e com
um controle rigoroso de conduta – que defende, por exemplo, que a “salvação” passa pelo
seguimento de uma ética religiosa mariana e pietista – vem sendo utilizado para criar um
espaço de relativa autonomia e de recriação de valores religiosos tradicionais, por nós
identificados como sendo de natureza distante do controle eclesiástico da paróquia (isto é, de
um catolicismo camponês, laico, anônimo ou popular do Brasil). Esse registro também exige
que se tenha uma maior atenção para que se possam identificar as possíveis fendas por onde
se formam estes espaços de não-visibilidade ou de tolerância da paróquia.
A formação das redes de devoção em Ubatuba, apesar de serem originais com
relação à devoção a Nossa Senhora de Schoenstatt em si mesma, encontra respaldo num
processo mais amplo, de caráter coletivo, que é a transformação por que vem passando a
devoção à Virgem Maria no contexto de globalização (mais uma das características da
“modernização” da sociedade). Internamente, o caso de Ubatuba é, em alguns aspectos,
idiossincrático. Contudo, ele não está isolado no campo religioso brasileiro. A nova
configuração que pode ser percebida nos cultos marianos está refletida em muitos elementos
simbólicos daquela rede.
2.3 O padrão contemporâneo da devoção à Virgem Maria
Através das aparições contemporâneas da Virgem Maria poderemos estabelecer um
modelo que representa o padrão que o culto a Maria, de um modo geral, vem tomando nos
últimos tempos. Defendemos que muitos elementos do modelo que opera no caso dos cultos
em torno das aparições repercutem nos outros grupos de devoção a Nossa Senhora. Ou seja,
Federações Apostólicas, comunidades que se reúnem em torno dos ideais morais e espirituais do
movimento, sem se retirarem da vida em sociedade, constituídas segundo divisões de gênero e serviços
religiosos: federação apostólica de homens, de mulheres, de madres, de senhoras, de sacerdotes
diocesanos de Schoenstatt, de matrimônios e de enfermos. (4) Ligas Apostólicas, formadas por pessoas
que se reúnem para formação moral em encontros e atuam em seus meios, abrangendo as seguintes
divisões: Liga Apostólica de famílias, Liga Apostólica de Mães, Liga Apostólica Feminina, Liga Apostólica
de Enfermos, Liga Apostólica de Profissionais, Liga Apostólica de Homens, Liga Apostólica de
Sacerdotes, Juventude Feminina, Juventude Feminina Universitária, Juventude Masculina e Juventude
Masculina Universitária. (5) Movimento popular e de peregrinos, formado pelos peregrinos que se
vinculam aos santuários presentes no mundo todo. E além desse movimento popular de peregrinos que
visitam o santuário, descrito no site, temos outra forma de divulgação popular e em grande escala que é
a Campanha da Mãe Peregrina, que descrevemos no capítulo anterior, nascido aqui no Brasil em 1959,
que organizam grupos de 30 famílias para receberem a visita mensal de uma capelinha com a imagem
de Nossa Senhora de Schoenstatt (U
RIBURU, 1985, p. 180).
98
acreditamos que muitos dos valores e práticas rituais presentes nos contextos das aparições
também alteram as demais formas de culto mariano, como é o caso da Campanha da Mãe
Peregrina.
As aparições definitivamente não são fenômenos só do passado. A recente onda de
aparições de Nossa Senhora e de imagens de Nossa Senhora vem comprovar aquilo que os
estudiosos vem afirmando, que as aparições são atuais e possuem forte apelo religioso,
principalmente quando veiculados pelos meios de comunicação de massa ou por grupos
organizados com ampla inserção territorial e social. Steil (1995, p. 546) defende mesmo que
se pode “situar as aparições de Nossa Senhora como parte de um processo mais abrangente de
‘re-encantamento’ do mundo moderno, inscrevendo-se no limiar entre uma tradição católica
de longa duração e uma nova corrente de espiritualidade que se afirma à margem da
instituição.” A tradição católica milenar refere-se aos elementos bíblicos do Apocalipse de
São João. Já a nova espiritualidade diz respeito ao que, em outro trabalho sobre o tema, Steil
(2001a) denominou de internalização do “self sagrado”,
27
que está fortemente associado à
espiritualidade da Renovação Carismática católica (RCC). Para examinar de perto esta
alteração de paradigma no culto de aparição, talvez seja importante analisar rapidamente o
desenvolvimento diacrônico de um caso específico. Voltemos então à obra de Almeida.
A aparição de Maria em Piedade dos Gerais (MG) inicia-se em 1987, com a vidência
de três meninas que liam em uníssono as mensagens que a Virgem escrevia com uma varinha
no céu. Estas mensagens se reportavam aos trabalhadores rurais da região e conclamava para
que eles se preparassem para o breve advento de um mundo melhor. Passados alguns meses
da primeira aparição, formou-se no local uma comunidade com algumas dezenas de pessoas
que abandonaram tudo o que faziam para atender ao chamado da Virgem. A partir deste
momento, as mensagens se alteram e voltam-se para a estruturação deste grupo. As
mensagens passaram a ocorrer várias vezes ao dia, se dirigiam a pessoas específicas, duravam
até horas e tratavam dos mínimos detalhes das relações e atividades cotidianas. Mas nos finais
de semana, quando romeiros das cidades vizinhas chegavam ao local, as mensagens tinham se
27
A internalização ou interiorzização do self sagrado indica que o sagrado não se apresenta objetivamente
como um outro exterior, que se apresenta em sua corporeidade e transmite ao “vidente” (o que vê) uma
mensagem; mas sim na própria consciência do indivíduo, muitas vezes se confunde com o próprio
indivíduo, não se caracterizando, pois, como vidência, mas sim como uma “locução interior”, conforme
uma categoria utilizada pelos próprios carismáticos (cf. S
TEIL, 2001a, p. 130).
99
alterado no sentido de conter informações mais genéricas e subjetivas, porém preservavam o
tema da salvação e da construção de um mundo melhor (cf. ALMEIDA, 2001).
28
Passados outros tantos meses, instalam-se na comunidade grupos urbanos que
vinham freqüentando assiduamente o local. De um lado, vieram pobres e marginalizados das
cidades, de outro, pessoas da classe média e média alta. Desta clase mais abastada, a maioria
era formada por carismáticos. Esta diversidade, étnica, social, moral e até mesmo religiosa
trouxe enormes desafios para a comunidade do local da aparição, relativamente homogênea
até então. Uma das alterações mais significativas ocorreu no fenômeno da aparição
propriamente dita. As mensagens passaram a ser transmitidas essencialmente por uma única
vidente. Apesar de todo o grupo de videntes ver a Virgem, somente uma passou a retransmiti-
la. E lentamente foi ocorrendo uma transformação do self divinizado do fenômeno, as
mensagens foram se deslocando do “ela” para o “eu”. A vidente principal, a mensageira, foi
deixando de ditar a mensagem que via, para transmiti-la na primeira pessoa, à maneira da
locução interior. Essa transformação possibilitou não só a proliferação da vidência entre
vários membros do grupo, como também a extrapolação do fenômeno para fora do “lugar
sagrado”. A mensageira passou a receber a mensagem em locais independentes do contexto
inicial, incrementando o público atingido pelas mensagens. Neste tempo as mensagens
passaram a se dirigir à “humanidade”, despersonificando seus receptores. Na mesma ocasião,
quando são dirigidas para a heterogênea comunidade do santuário que se criou, tornam-se
inconclusas (“façam o que os seus corações mandarem”, “acontecerá o que Deus quiser”),
abrindo margem para diferentes interpretações subjetivas, respondendo, desta forma, às mais
diferentes aspirações reunidas no local.
Para Steil (2001a, p. 125-132) é exatamente a presença dos carismáticos no contexto
das aparições o que vai caracterizar e diferenciar as aparições contemporâneas. A partir de
Medjugorje as aparições (eventos localizados) perdem o monopólio clerical da mediação com
o universal. A presença dos carismáticos enquanto mediadores entre o local e o universal re-
configura os aspectos das aparições. E para poderem circular no mercado globalizado dos
bens simbólicos pela via dos carismáticos uma das transformações que ocorrem nas aparições
28
Observa-se claramente nestas mensagens uma oposição radical com relação às mensagens européias
quanto ao caráter das mensagens. Se os segredos característicos das aparições européias de Fátima a
Medjugorje estão associados a catástrofes iminentes e ao fim dos tempos (cf. S
TEIL 1995), as
mensagens de Piedade possuem um caráter revolucionário de glórias para os marginalizados do local: o
advento da Boa Nova do reino de Deus para os oprimidos, tema afinado ao pensamento libertador das
CEBs, uma das expressões religiosas vivenciadas naquele contexto (A
LMEIDA, 2001).
100
é exatamente a interiorização do self sagrado, ou seja, nos novos fenômenos de aparições, as
profecias (elemento comum entre as aparições e os ritos carismáticos) se deslocam do ritual
da vidência para a experiência das locuções interiores. Porém, esse processo de mudança
cultural ocorre na via contrária. Isto é, Nos contextos carismáticos de locuções interiores, o
self sagrado se desloca da figura do Espírito Santo para Maria. Em outras palavras, há um
duplo mimetismo no qual Maria se subjetiva se manifestando diretamente e intimamente na
consciência individual dos “videntes”, ao mesmo tempo que o Espírito Santo que fala à
consciência do carismático vem sendo substituído pela figura de Maria. Essa confluência com
nítida valorização da locução interior, segundo Steil, corresponde “a uma tendência mais
geral da religião na condição pós-moderna”, marcada pela reflexividade entre tradição e a
inovação e expressa, entendemos, pela privatização da experiência religiosa. Essa dimensão
da subjetividade e da reflexividade presente na condição pós-moderna da religião
demonstraria, ainda segundo Steil (2001a) a leitura que a tradição vem fazendo das novas
formas de expressão religiosa.
Outra diferença observada por Steil (2001a, p. 132-133) é que se nas aparições
anteriores os rituais e mensagens se mostravam chaves de leitura da cultura e da estrutura
social das comunidades locais, hoje as aparições já não representam mais uma realidade
anterior. As comunidades formadas pelas aparições reúnem a mais expressiva alteridade
contemporânea: diferentes pessoas vindas dos mais diferentes lugares. Agora, portanto, as
pessoas que se agrupam em função das aparições são instruídas na vivência dos rituais,
passam a se organizar e pautam as suas vidas em função da criação de um self coletivo – ou
um novo mundo, tido como dado – que fornecerá os modelos de organização da vida e do
culto. “...De modo que, mais do que revelar comunidades referidas a um espaço material, as
aparições contemporâneas estão criando comunidades rituais que, ao se depreenderem da
paisagem local, acabam inserindo-se na extensa rede de referência do movimento
carismático...”. Esse processo pode ser observado tanto na aparição de Taquari, RS, estudada
por Steil, como em Piedade dos Gerais (ALMEIDA, 2001).
Considerando o nosso estudo da Mãe Peregrina em Ubatuba, talvez devêssemos nos
perguntar se estas características de subjetivação, reflexividade e desterritorialização,
destacadas por Steil (e também por Almeida) não ultrapassam tanto o contexto das aparições
contemporâneas quanto a RCC. Ao concordarmos com Steil (2001a) a respeito da condição
pós-moderna da religião (de todas as religiões e não uma em específico) como sendo a
101
radicalização da subjetividade, da quebra do monopólio da produção dos bens religiosos e da
reflexividade cultural, então, estaremos autorizados a transferir suas observações a respeito
das relações entre o carismatismo católico e as aparições marianas para o nosso estudo das
redes de devoção da Mãe Peregrina.
Mas antes de prosseguir é preciso destacar de que forma ocorrem as relações entre
estes dois gêneros católicos de religião (o catolicismo popular das aparições e o catolicismo
de massas da RCC). Com efeito, Steil retoma, no estudo sobre as aparições marianas (2001a),
o que observou em outro contexto de religiosidade popular (1996). Ele afirma que há uma
disputa no campo dos sentidos e das estratégias dos grupos mediadores envolvidos no
fenômeno (clero e carismáticos) em busca de legitimidade e hegemonia. Conforme estes dois
grupos se relacionam, isto é, disputam e negociam significados e rituais, troca de favores e
espaços de atuação, a abrangência do evento será maior ou menor, tanto na sociedade local
quanto entre os peregrinos.
Este elemento também desponta na análise de Almeida (2001). Conseqüentemente,
ele torna-se significativo para o arcabouço teórico-metodológico que utilizamos para
compreender a relação entre as duas devoções marianas de Ubatuba. No caso de Piedade dos
Gerais, trata-se da capacidade que o complexo de símbolos envolvidos nos fenômenos da
aparição têm para reunir diferentes tipos de catolicismo, valores e projetos sociais. Cada um
deles capazes de se expressar e encontrar sentido nas mensagens enunciadas por Nossa
Senhora naquela aparição. “...Espontaneamente, longe de qualquer projeto elaborado por
elites clericais ou teológicas, tal evento surgiu em moldes capazes de agregar diversas
místicas populares e propostas utópicas, tentando, cada uma, legitimar-se e colocar-se como a
hegemônica...” (ALMEIDA, 2001, p. 22-23).
Esse ponto de vista considera os símbolos religiosos como expressões não só da
unidade das sociedades, mas também de suas contradições. Desta forma, a autora, fazendo eco
às análises antropológicas que têm chamado a atenção para o caráter dinâmico e ambíguo dos
símbolos religiosos e da transitoriedade de seus significados, destaca do fenômeno de Piedade
dois elementos interdependentes.
29
O primeiro deles é, justamente, a pluralidade de
identificações individuais e grupais relacionados pelo conjunto simbólico da aparição. O
29
As ciências sociais da religião têm destacado a importância de compreender, por trás da unidade de
cada uma das religiões, a complexa convivência de distintas religiosidades. Menos para fixar as
diferenças pré-existentes e mais para reconhecer a existência dinâmica de um conjunto de valores e
elementos rituais em constantes re-combinações.
102
segundo, a fragmentação discursiva das mensagens. Ambos levam, muitas vezes, a conflitos e
oposições. No entanto, formam um complexo de reconhecimento mútuo que acaba acolhendo
a pluralidade, por meio da fragmentação discursiva, dentro do centro simbólico formado pela
tônica das mensagens: a salvação e a construção do reino de Deus.
Com efeito, em Piedade dos Gerais “o antagonismo inerente ao símbolo religioso
vem sendo vivido de modo cada vez mais agudo e dramático” nestes anos todos desde 1987
(ALMEIDA, 2001, p. 297). No caso de Ubatuba observamos que o processo se inverte, o
conflito vem sendo amenizado com o passar dos anos. Talvez devêssemos nos perguntar por
que razão as diferenças vêm se acomodando. Por se tratar de duas imagens marianas,
poderíamos sugerir que a segregação cria a possibilidade de legitimar, no mínimo dois estilos
religiosos. Outra fonte de abrandamento é a dupla pertença existente no caso da maioria das
devotas da Mãe Peregrina. Mas, uma variável que não pode ser esquecida é a relativa retração
de ambas as redes – que perderam suas motivações iniciais. Contudo, tanto os casos
analisados por Almeida e por Steil como o que ora estudamos demonstram que o simbolismo
mariano é privilegiado para apresentar a articulação entre o pólo ideológico – dos aspectos
centrais da universalidade católica – e o pólo orético – da literalidade dos aspectos concretos e
emotivos que o objeto sagrado tem para a cultura local – (cf. TURNER & TURNER, 1978 e
AGOSTINHO, 1986, p. 20-21).
Com relação a este aspecto ambivalente do simbolismo em geral, e especialmente do
simbolismo religioso, verificamos que, em algumas obras que analisamos, o elemento da
tensão interna tem sido privilegiado nos estudos mais recentes sobre as religiões do país,
principalmente com relação ao catolicismo. O estudo das disputas pelos sentidos e da
tentativa de fixação hegemônica de valores e práticas são fundamentais para o entendimento
das religiosidades do catolicismo e das demais religiões (cf. STEIL, 1996 e 2001a, ALMEIDA,
2001; M
AUÉS, 1995; GUTILLA, 1993; SANCHIS, 1979 e 1992 para o catolicismo; e BRANDÃO,
1985; M
ONTERO, 1999 para o catolicismo e outras religiões).
Reunindo os diversos recursos analíticos da diferenciação e negociação interna do
catolicismo e do campo religioso em geral, elegemos a categoria “conflito simbólico” para
expressar essa tentativa que os estudos recentes têm empreendido para revelar a complexidade
dos fenômenos religiosos e sua aplicabilidade para ampliar não só o debate do tema, mas as
possibilidades de compreensão dos fenômenos religiosos, sobretudo em contextos sociais
complexos como as sociedades urbanas/complexas ou em vias de urbanização/modernização.
103
2.4
Conflito simbólico
e devoções populares
Por “conflito simbólico
30
entendemos a contradição expressa através dos símbolos e
que se desenvolvem na esfera da superestrutura, ou do imaginário. Já o conceito de símbolo
segue a formulação de Turner que diz que:
...os símbolos possuem as propriedades de condensação, unificação de
referentes díspares, e polarização de significado. Um único símbolo de fato
representa muitas coisas ao mesmo tempo, é multívoco e não unívoco. Seus
referentes não são todos da mesma ordem lógica, e sim tirados de muitos
campos da experiência social e de avaliação ética. (1974, p. 70-71).
Com esta formulação, concluímos que o símbolo é uma construção coletiva e
representa algo mais do que ele realmente é.
Um aspecto da discussão aqui apresentada passará pela análise dos conflitos
simbólicos resultantes da relação das imagens de Maria e o conjunto de símbolos que elas
reúnem segundo as idéias da discussão mais ampla sobre a “imagética religiosa”, tal qual
definida por Lopes, para quem:
...a imagética é o campo extensivo de objetos figurativos de uma cultura, ou
de uma esfera mais ou menos autônoma da experiência cultural, que se pode
traduzir em códigos que cristalizam uma problemática do imaginário. Assim
como a imagem adquire especificidade segundo seu lugar nas redes de
interações complexas que constituem a realidade das culturas, a imagética é
um campo onde os objetos figurativos compõem uma rede também
indissociável. (2000a, p. 22).
O lugar da imagem, de que nos fala Lopes, só pode ser definido segundo as
manobras do receptor”, isto é, a imagem comporta, segundo Francastel (apud LOPES, 2000a,
30
Numa busca de trabalhos nacionais e internacionais (de língua espanhola, inglesa ou francesa)
encontramos apenas um artigo, em uma revista de sociologia da religião, que utiliza este termo como
recurso analítico. Pérez-Agote (1986) analisa a intervenção do Estado franquista sobre os países
Bascos, no período 1950-1960 –estratégia de formação da Nação Espanhola unificada – como um
conflito simbólico fundado numa política de proibição da expressão pública da língua e cultura basca.
Segundo as afirmações do autor tal estratégia acabou gerando um processo ambíguo de recolhimento
da influência cultural do nacionalismo basco, ao mesmo tempo que fortaleceu este sentimento na esfera
da vida familiar privada, formando o substrato cultural e político para as futuras atividades do movimento
separatista basco.
104
p. 23), interpretações variáveis tanto quanto são os que a observam/ recepcionam. Por
conseguinte, existe a necessidade de se estabelecer um sentido mínimo possível de ser
socializado por uma rede de trocas simbólicas. Assim, a “imagem sugere respectivamente
uma forma e um enigma, a necessidade de conservar a convenção e de decifrar o seu código,
ou a emergência de novos códigos”. Essa necessidade determinada segundo a subjetividade
cria “um campo de manobras que se opera na constituição das mundividências [visões de
mundo] dos sujeitos”. Enfim, para uma melhor compreensão do campo da imagética é preciso
compreender as negociações entre produtores e receptores da imagem, isto é, identificar e
entender as estratégias de construção de “um lugar de onde se comunica uma forma de ser,
uma forma de querer, uma forma de fazer e uma forma de pensar. Daí que a recepção,
compreendida desde este lugar próprio, é sempre uma ‘produção do consumo’.” Lugar
próprio que é próximo e representa o ponto de vista de onde se vê o mundo, lugar que confere
ao sujeito a consciência com a qual é possível compreender o que vem de fora dessa
mundividência” (LOPES, 2000a, p. 24-27).
Ao propor a substantivação do termo “imagética”, Lopes (2000a) o considera como
constituinte de um “lugar” – um ponto ou nó da “rede” – de onde se pode apreender as
inovações, oposições, manipulações e auto-apropriações do símbolo imagético. Neste sentido,
ele se aproxima, de certa forma, às idéias centrais da “antropologia religiosa” de Victor
Turner que, segundo Filoramo & Prandi (1999, p. 204-222), entendia a religião como um
sistema simbólico” onde os símbolos não são dados auto-sustentáveis e sim modelados pela
experiência de vida
31
e que, no caso de uma tensão social, “a oposição não aparece enquanto
tal, mas como confrontos de objetos simbolicamente perceptíveis” (T
URNER, 1974, p. 59).
32
Assim, o ajustamento e a adaptação ao ambiente externo ao sistema são condicionados pela
flexibilidade do símbolo que “só é vivo enquanto cheio de significado para homens e
mulheres que interagem, observando, transgredindo e manipulando, para fins privados, as
normas e os valores que o símbolo exprime” (T
URNER apud FILORAMO & PRANDI, 1999, p.
221). Portanto, diante do exposto acima, defendemos que a imagem religiosa pode ser
identificada como um “lugar simbólico”, com todas as implicações e relações que o símbolo e
a imagética carregam.
31
Cf. Victor Turner (1974, p. 70-71). É nesse sentido que, mais adiante, falaremos da capelinha da Mãe
Peregrina enquanto um símbolo vivo para suas devotas.
32
Ver Filoramo & Prandi (1999, p. 221).
105
As considerações de Michel de Certeau (1994) quanto à abordagem das práticas
cotidianas, segundo a linguagem dos jogos ou artes de guerrear, ajudar-nos-á a esclarecer
aonde pretendemos chegar. O pensador francês explica que em oposição a uma suposta
passividade dos sujeitos “consumidores” existe, na verdade, uma prática ativa de apropriação
e utilização dos “produtos” não fabricados por eles mesmos. Essa prática é o que ele chama de
táticas ou artes de fazer, ou ainda, usos do consumo. Para entender o que o autor afirma,
resumimos, ligeiramente sua categorização. Em primeiro lugar, Certeau (1994, p. 96-102) faz
uma distinção entre estratégia e tática. A estratégia pressupõe um corte entre um lugar
próprio de onde se administram as relações e o seu Outro, a exterioridade dos alvos e
ameaças. O lugar próprio (ou, simplesmente, o próprio) implica uma “prática panóptica”, a
partir da qual se observa, mede, controla e inclui o que lhe é estranho. É prática característica
do poder constituído, da instituição e da ordem. É a “vitória do lugar sobre o tempo”.
A tática, por sua vez, só tem por lugar o lugar do outro, ou melhor, pressupõe um
não-lugar”; um movimento “dentro do campo de visão (...) e no espaço controlado pelo
inimigo” em busca de “ocasiões”, de brechas para agir. “A tática é a arte do fraco”, afirma o
autor. “Sem lugar próprio, sem visão globalizante, cega e perspicaz como [quando] se fica no
corpo a corpo sem distância, comandada pelos acasos do tempo, a tática é determinada pela
ausência de poder assim como a estratégia é organizada pelo postulado de um poder”. Para
concluir, em oposição aos três lugares próprios das estratégias, a saber, o lugar de poder que
elabora o lugar teórico capaz de articular o(s) lugar(es) físico(s), Certeau propõe o não-lugar
da tática. É aquilo a que o sociólogo francês chama de não-lugar que aqui denominaremos de
lugar simbólico. Neste caso, o lugar simbólico é materializado no símbolo da imagem
religiosa e assim como o não-lugar de Certeau, ele é o lugar privilegiado da “astúcia” e da
surpresa” características da tática, o nó da rede de relações de onde se vê o presente e se
vislumbram o passado e o futuro, segundo a ótica do consumidor – ou do popular, que
estamos assumindo como análogo – (cf. CERTEAU, 1994, p. 96-102).
As conclusões de Honneth (1996) para o campo das lutas sociais, guardadas as
proporções que o caso exige, servem muito bem para expressar o que queremos defender
aqui. Uma de suas afirmações é que as lutas sociais são motivadas pela experiência de serem
negadas as condições para a formação identitária, enfatizando, desta forma, a dimensão
“moral” dos conflitos sociais que buscam, na verdade, a ampliação dos padrões sociais de
reconhecimento. Neste sentido, os meios simlicos dos movimentos sociais desempenham
106
um papel crucial na projeção do desrespeito – isto é, o não reconhecimento – contra um grupo
de pessoas, contribuindo desta maneira, para estabelecer as condições culturais de resistência
e revolta.
Como iremos defender mais à frente, o conflito simbólico estudado apresenta
demandas pelo reconhecimento da visão de mundo da religião popular que está por trás de
uma busca simbólica de identidades morais coletivas e individuais. Desta forma, a polarização
analítica das relações entre a estrutura social e as concepções religiosas ou entre os
especialistas oficiais e não-oficiais da religião, ajuda a entender melhor as questões de fundo
que orientam as ações dos grupos que se enfrentam no campo religioso. No entanto, como
lembram Brandão (1985) e Steil (1996), uma análise mais próxima da realidade aponta para
uma diferenciação minimizada das percepções e significados imersos no plural e complexo
jogo de alianças e rupturas dos rituais religiosos e dos modos sociais de vida em geral.
Somado a esta complexa relação de significados está o fato de que, nem sempre, os grupos
são homogêneos, isto é, as tensões também são internas aos grupos. Mas, a disputa entre os
vários grupos com percepções distintas acontece de forma implícita e simbólica, ou seja,
como vimos defendendo para o estudo que realizamos, trata-se de um conflito simbólico.
No trabalho de Steil podemos encontrar esta característica em conceitos que ele
utiliza associados às tensões percebidas, como os de “conflito de interesses simbólicos
(1996, p. 240), “disputa no campo dos sentidos e da doutrina” (p. 243) ou ainda “grande
violência simbólica” (p. 255). Em outras palavras, no caso da oposição entre romeiros
tradicionais e clero trabalhada por Steil, a disputa não acontece necessariamente no plano
político ou material, ela acontece antes entre forças e formas do imaginário, que se explicitam
para o pesquisador nas relações ambíguas que os diferentes sentidos simbólicos encerram. A
romaria, portanto, segundo Steil, é um processo de interação social no qual seus símbolos e
sentidos são constantemente ressignificados, disputados e negociados. Defendemos que,
segundo o material teórico e empírico que reunimos, a constatação de Steil, muito
provavelmente, é valida para o catolicismo brasileiro como um todo, e totalmente válida para
o nosso objeto. Afinal, o catolicismo popular não é um catolicismo totalmente avesso, em
confronto com o catolicismo hierárquico, mas sim um catolicismo que está em negociação
constante com ele.
Entretanto ao falar em conflito simbólico, podemos imaginar que em algum momento
ele pode se transformar num conflito abertamente político e físico. Pedro Ribeiro de Oliveira
10
7
(1985, p. 239-274), lembra-nos, a este respeito, em seu capítulo sobre a “Religião e crise de
hegemonia”, de alguns movimentos agrários e populares na história do país que levaram a
igreja (e o Estado) ao confronto concreto. De fato a possibilidade existe, mas Maués (1995, p.
496-498) encerra seu trabalho afirmando oportunamente que, no caso do catolicismo
brasileiro, a despeito da tensão que lhe é constitutiva, são raros os cismas. Isto porque, ao lado
da tensão, existe uma ambigüidade que gera uma complementaridade, do lado clerical e do
lado popular. Se, de um lado, a devoção popular exige uma certa disciplina ao sacerdote – não
a um sacerdote específico, mas a qualquer sacerdote – porque ao lado do milagre do santo,
existe a necessidade da autoridade terrena do padre. Do outro, o padre também precisa dos
leigos, e por isso tolera certas “heresias” populares, pois:
...para o devoto do catolicismo popular, a devoção apresenta uma
abrangência maior do que os domínios do padre, desde que se legitima, num
nível mais profundo, no culto individual e coletivo que encontra seu
fundamento último, como foi visto acima, no milagre. (M
AUÉS, 1995, p.
497).
Constatação que o leva a propor a relativização da distinção entre o catolicismo
oficial e hierárquico e o popular e tradicional. De outra maneira, Steil sugere uma
circularidade entre os dois pólos, que são identificados como o local e o universal:
...o catolicismo popular local e o romanizador [universal] estabelecem entre
si um jogo onde a tradição e a novidade, as antigas e novas devoções, as
crenças populares e os conceitos racionalizados da teologia são usados por
ambos num processo criativo de apropriações e re-apropriações. (1996, p.
236-237).
Como percebemos, as leituras do catolicismo popular tradicional e, também, do
catolicismo popular romanizado, que utilizam o instrumento analítico de se trabalhar com as
tensões que são tanto internas como externas, identificando ao mesmo tempo suas relações
complementares e de influências mútuas e simultâneas, foram bastante férteis no sentido de
identificar, não só a lógica que orienta as ações dos grupos distintos, mas também os
significados que estes diversos grupos emprestam àquilo que eles fazem e àquilo que os
outros grupos fazem. Esse significado que é religioso nos remete a duas outras esferas que se
relacionam nesse complexo fenômeno que é ser fiel. Referimo-nos à questão cultural e à
108
questão de identidade. Acreditamos que é neste ponto que podemos contribuir para a
ampliação do debate sobre o conflito simbólico de sistemas religiosos. Para orientar nossas
pesquisas temos trabalhado segundo as idéias de Geertz (1978) sobre a cultura e sobre a
religião como sistemas simbólicos, e quanto à identidade, temos tentado fazer um diálogo
com as idéias de Honneth (1996) sobre a busca por reconhecimentos morais de identidades
coletivas e individuais.
Após termos identificado mais precisamente nosso objeto de estudo e nossa chave de
explicação do fenômeno, entendemos que podemos discutir as questões da cultura e da
identidade. Ao término de nosso trabalho esperamos contar com novos dados que situarão
melhor nossas discussões, principalmente, sobre a questão das devoções no contexto das
identidades.
Capítulo 3
A devoção em conflito:
catolicismo, cultura e identidade
alar de identidade certamente nos remete para questões culturais. Principalmente quando
procuramos discutir esse problema dentro do catolicismo, um sistema religioso
caracterizado pela multiplicidade cultural e tão rico de símbolos e significados. É evidente
que essa coexistência de uma unidade religiosa e uma pluralidade cultural acaba criando
espaços de negociação de significados e de conflitos. Na busca de um conceito de cultura que
pudesse dar conta desta realidade e orientar este trabalho nos vimos à volta das idéias de
Geertz. Deste modo, a definição de cultura que se reflete ao longo deste trabalho é a que a
define como um domínio de comunicação simbólica e como um sistema simbólico que atua
por meio de metáforas (GEERTZ, 1997) ou conforme ele definiu em seus primeiros trabalhos, o
conceito de cultura...denota um padrão de significados transmitido historicamente,
incorporado em símbolos, um sistema de concepções herdadas expressas em formas
F
110
simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
conhecimento e suas atividades em relação à vida” (1978, p. 103).
1
Porém, os assuntos aqui tratados apresentam-se em contradição com algumas
suposições teóricas implícitas no trabalho de Geertz e é preciso, portanto, desvelá-los. Em
primeiro lugar, é preciso atenuar o papel dominante que o antropólogo norte-americano
oferece à cultura, não negamos o papel essencial da cultura na definição de natureza humana e
das realizações humanas, entretanto há que se ressaltar que ela não é o único fator ou o fator
determinante das diferenças entre os grupos humanos (cf. KUPER, 2002). Por outro lado, é
preciso ponderar sobre alguns essencialismos de sua teoria. Por exemplo, com relação aos
símbolos religiosos e à utilização de expressões englobantes – tal como “o místico javanês
ou “a versão balinesa do espírito cômico” – que pressupõem que todos os membros do grupo
se identifiquem da mesma forma frente ao símbolo religioso. Em seu artigo A religião como
sistema simbólico, Geertz (1978, p. 103-104) afirma que estes símbolos sintetizam o ethos de
um povo e a sua visão de mundo e, mais, “formulam uma congruência básica entre um estilo
de vida particular e uma metafísica específica”. Ora, como salienta Carvalho, ao criticar a
noção de estabilidade dessa definição geertziana,
... talvez o mais importante a ser pensado, em qualquer símbolo religioso,
não seja tanto a sua estabilidade, mas as identificações individuais, ou as
identificações de secções, ou de sub-grupos dentro da mesma comunidade,
que são inclusive cada vez mais complicadas de se equacionar. [...]... Talvez
não seja suficiente dizer apenas um conjunto de símbolos, porém ressaltar
que se trata de um conjunto de símbolos para conjuntos diferenciados de
pessoas... (2000, p. 4).
2
Assim, é preciso insistir na ênfase que Victor Turner (1974) destacou em relação aos
símbolos religiosos: a sua polaridade semântica, o seu paradoxo. De acordo com o que vimos
defendendo aqui é preciso insistir no conflito simbólico.
1
Mais tarde, incorporando as contribuições da hermenêutica, Geertz encaminha esta definição para a
noção de teias de significado e começa a tratar a cultura como texto. Diz que aos antropólogos cabe a
interpretação do significado e não a busca de leis culturais (cf. G
EERTZ, 1978, p. 15).
2
Em seu mais recente livro publicado no Brasil, Geertz (2001, p. 124-126) apresenta, à sua maneira, ao
estilo “anti anti-relativismo”, uma critica à pretensão universalista do conhecimento antropológico e às
generalizações enquanto conclusões fáceis. Na sua opinião, as generalizações são válidas como pontos
de partidas heurísticos. De qualquer modo, como não dirige essa crítica a seus trabalhos anteriores,
cujas idéias são as mais difundidas, acreditamos ser oportuno registrar as observações que seus críticos
fazem a respeito dos subentendidos que existem na sua teoria sobre os símbolos religiosos e sobre a
religião como sistema cultural.
111
O conflito simbólico ocorre, como se pode constatar, em contexto em que há uma
determinação hegemônica para os significados dos símbolos. Nesses contextos, o lugar
subalterno não pode apreender na rede de significados vigente todos os conceitos que
informam sua visão da vida e do mundo. Há que se recorrer, portanto, a táticas que criem e
recriem os significados com os quais o popular se identifica. Por isso, talvez seja o momento
de analisarmos o movimento da Mãe Peregrina na cidade de Ubatuba, tendo como base as
idéias desenvolvidas a partir da relação entre religião, cultura e identidade.
Já observamos que o grupo de mulheres (sujeitas de nossa pesquisa) é representante
de uma religiosidade quase que marginal e, deste modo, popular. As devotas da Mãe
Peregrina estão relativamente marginalizadas porque não têm suas práticas integralmente
reconhecidas pelo pároco – poderíamos dizer, em extensão, pela paróquia – ator social
legitimador de crenças no contexto em que elas vivem. Na verdade, conforme já observamos
no tópico etnográfico do primeiro capítulo, há, por parte do pároco, um silêncio total em
ralação ao grupo e ao movimento da Mãe Peregrina. No alcance máximo desta constatação
poderíamos dizer que há um desrespeito com relação àquela devoção mariana. Neste sentido,
a complexa relação de subordinação feminina, uma vez que as redes são formadas
praticamente só por mulheres, é aqui relativizada. De fato, encontramos no grupo estudado
interesses femininos que estão em choque com os interesses masculinos dominantes, mas de
um modo indireto, mediado pela dinâmica eclesiástica. Na maior parte dos casos essas
devotas reproduzem o discurso católico de subserviência e dependência feminina.
Sustentamos que a questão de gênero está “escondida” pelas relações eclesiásticas – que não
deixam de ser, em última análise, relações de gênero, mas que entretanto, serão minimizadas
em favor das relações de poder entre um universo cultural erudito e clerical e um universo
cultural popular e leigo, presentes nas disputas pelo monopólio da produção dos bens
religiosos. Para entender esta distinção que propomos é importante retomarmos o sentido
empregado ao termo popular e religião popular, conforme conceituação acima, e lembrar que
o catolicismo popular, no sentido adotado por Maués (1995, p. 22), denota a oposição de
leigos comuns aos sacerdotes, religiosos e leigos mais identificados com os propósitos da
hierarquia eclesiástica. Sem insinuar com isso algum corte mais especificamente econômico,
ainda que em alguns casos ele exista factualmente.
112
Ao olharmos com atenção para a comparação entre as duas devoções femininas a
Nossa Senhora – a capelinha da Mãe Peregrina e a capelinha do Imaculado Coração de Maria
– percebemos que somente a devoção à Mãe Peregrina reivindica, em suas práticas, espaços
de identificação que ultrapassam o contexto localizado da paróquia. E, desta forma, disputa
com os representantes oficiais da instituição os sentidos da devoção mariana, negociando os
significados e rituais e definindo acordos tácitos de convivência e ação (cf. STEIL, 1996;
2001a, p. 126). Estas práticas e espaços em si mesmos não conduzem necessariamente à
emancipação do julgo social e subordinação, mas apresentam e se relacionam a práticas e
valores que podem favorecer esta emancipação, na medida em que contribuem para a auto-
estima destas mulheres.
3
No nosso entendimento, o que vai determinar a emancipação e a
radicalização em fenômenos como estes é o reconhecimento ou não, é a porosidade ou não do
lado dominante e hegemônico envolvido na disputa pela, nas palavras de Steil, “mediação
entre a ‘pequena tradição’ e a ‘grande tradição’ católicas” (2001a, p. 125).
A principal suposição, que nos orienta para a associação de nosso objeto à busca ou
criação de novas formas de identificação, é que a condição pós-moderna evidenciada pela
extrema globalização, com seu intenso desenvolvimento e maior acesso às comunicações e
informações, re-configura o contexto tradicional de fabricação de identidades e culturas, isto
é, o mundo contemporâneo reordena as relações entre lugar e identidade e entre lugar e
cultura (cf. AGIER, 2001, p. 7). É isto que sugerem as relações entre a rede de devoção a
Nossa Senhora de Schoenstatt (Mãe Peregrina) e o clero da paróquia da Exaltação à Santa
Cruz em Ubatuba, SP.
4
3
Em outro material sobre esta devoção, que estamos preparando para publicação, estudamos, com o
auxilio da psicologia junguiana, os aspectos simbólicos da imagem da Mãe Peregrina. Considerando a
teoria dos arquétipos de Jung, desenvolvidas por Neumann (1999), e a despeito da recusa feminista em
geral, é possível encontrar nos símbolos da Grande Mãe e do Feminino presentes na iconografia
mariana elementos de transformação do Feminino. Cabe ressaltar que pesa a favor da recusa do
movimento feminista o uso ideológico destes símbolos em favor da hegemonia masculina nas
sociedades ocidentais (S
ILVA, 2003).
4
Percebemos a sugestão desse problema não só no estudo de nosso objeto. Os recentes casos de
diversas “aparições” de imagens de Nossa Senhora em janelas e o próprio aumento de aparições da
Virgem pelo mundo todo trazem uma nova forma de relação com o sagrado: pela via dos meios de
comunicação social estes fenômenos ganham legitimidade antes no contexto externo (global) e só
depois no local. Um processo inverso à forma tradicional de legitimação dos fenômenos de aparições
marianas. Para um aprofundamento desta questão em relação às aparições mais tradicionais indicamos
o excelente estudo de Steil (2001a).
113
3.1 Redes de devoção e formações identitárias
Há uma primeira dificuldade que surge na construção de um coletivo capaz de reunir
as mulheres de quem falamos. Como observamos no primeiro capítulo, a caracterização do
grupo de mulheres que participam do movimento da Mãe Peregrina em Ubatuba é muito
complexa, pois apresenta uma pluralidade de traços sócio-culturais, que impõem à análise
somente padrões genéricos com capacidade de aglutinar essas mulheres. Em função da
diversidade cultural presente no movimento, focaremos a análise apenas no grupo de devotas
do bairro do Perequê-Açu. Já as lideranças do movimento, elementos chaves da análise do
fenômeno enquanto formações identitárias, estarão representadas tanto pela zeladora da
capelinha do bairro – dona Neide – como pela atual coordenadora do movimento na cidade –
dona Vera – que também é zeladora da capelinha que circula pelo centro da cidade, onde
reside.
O processo de formação de um grupo de devotas da Mãe Peregrina segue, mais ou
menos, o seguinte roteiro: num primeiro momento, uma pessoa interessada em receber a visita
da capelinha de Maria e zelar pela sua guarda convida as companheiras de outros grupos da
igreja ou, então, suas vizinhas para fazerem parte do movimento. Num segundo momento,
com o passar do tempo e as ocasionais transferências de residência, é necessário convidar
outra pessoa para fechar o círculo. Freqüentemente, opta-se pelos vizinhos, para tornar mais
fácil a circulação. Pode ocorrer também que uma pessoa que foi convidada a fazer parte do
movimento indique outra amiga para integrar o grupo. Segundo os casos que conhecemos em
Ubatuba e outras cidades,
5
quanto mais difundido o movimento na cidade, maior é a tendência
de se formar os grupos indiretamente, isto é, através do convite de uma pessoa que foi
convidada pela zeladora. Este não é o caso de Ubatuba, ali o processo de formação, ao menos
no grupo do centro e do Perequê-Açu, é mais centralizado na pessoa da zeladora. Neste
sentido, podemos dizer que o grupo de devotas forma uma rede social parcial ou uma rede
idiossincrática – um “quase-grupo”, para Barnes – porque derivada não da filiação a grupos
5
Conhecemos pessoas que participam do movimento da Mãe Peregrina em Taubaté e São José dos
Campos, SP, contudo, estas redes não tomaram parte efetiva em nossa análise, salvo, quando foram
extremamente relevantes para demonstrar a especificidade do movimento em Ubatuba.
114
pré-determinados, mas do status de uma pessoa, no caso, uma amiga ou mesmo a “patrona”
da imagem de Nossa Senhora – isto é, a zeladora – (cf. BARNES, 1987, p. 185-186).
6
Também, podemos falar da rede de devotas enquanto um quase-grupo para denotar
que estabelecem relações que não estão incluídas nas estruturas dos grupos ou categorias
institucionalizadas da paróquia. Ressaltamos que essas maneiras de se relacionar são
características da contemporaneidade. A situação de mudança social acelerada, o grande fluxo
migratório em direção às cidades acarreta a esgarçadura das antigas formas de relações sociais
que tinham na comunidade e na tribo seus modelos ideais: grupos homogêneos, com longa
tradição e pessoas da mesma linhagem, que partilhavam relativamente as mesmas
experiências.
Essa nossa época de radicalização das conseqüências da modernidade (GIDDENS,
1991), ou da modernidade superativada (BALANDIER, 1999), amplia e alimenta a
reflexividade, o fluxo de informações, culturas e símbolos heterogêneos, que permitem apenas
a formação de redes parciais, instáveis e sobrepostas, que se estruturam não em função de um
passado comum, mas sim da experiência comum que compartilham no presente. Ainda que
reuníssemos, como fizemos, essas mulheres de origens tão diversas umas das outras sob a
égide da religiosidade periférica – tanto rural como urbana – o que constataríamos é que o
coletivo a que esse quase-grupo se refere vai se confirmando na integração propriamente dita
da rede. Ou seja, trata-se de uma formação identitária, um movimento coletivo que busca
explicitar uma proposta que ainda não está totalmente elaborada do ponto de vista de se
referenciar frente à hegemonia paroquial/local existente ou frente à grande tradição católica
institucional, e que, também por conta disso, não adquire contornos explícitos, não tem
configurações muito bem delineadas (cf. WILLIAMS, 1992).
7
Ou seja, seus interesses ainda
permanecem latentes.
6
O convite que a pessoa recebe para participar da rede é interpretado pelas devotas, conforme
registramos, como sendo uma escolha pessoal e especial de Maria, é entendido como uma graça
recebida de Nossa Senhora. Acreditamos que esse sentido é reforçado quando o convite é feito pela
zeladora, essa “patrona” de Nossa Senhora.
7
Ao comentar o problema do lugar da criação cultural no mundo globalizado, no qual, em geral, as
identidades perdem suas referências locais, Agier, cuja análise seguimos de perto aqui, também diz que
...Nas escalas microssociais – o campo do etnólogo –, surge uma multidão de pequenas narrativas
identitárias, que ocupam o vazio deixado pelas ‘grandes narrativas’ em crise (missão cristã, destino das
classes, projeção nacional). Elas aparecem nos mais diversos contextos, mas enraízam-se de
preferência nos meios urbanos; elas possuem um conteúdo religioso, étnico ou regional, mas mostram
construções híbridas, ‘bricoladas’, heterogêneas; enfim, são o resultado da iniciativa dos indivíduos, dos
pequenos grupos ou das redes que, freqüentemente, têm dificuldades em fazer compreender a
especificidade que reivindicam para si.” (2001, p. 18).
115
Portanto, para o caso da rede da Mãe Peregrina do Perequê-Açu, o que reúne as
devotas não é simplesmente o pré-texto da cultura popular e/ou da religião periférica; é,
diversamente, o resultado contemporâneo da pluralidade de fluxos de informações
provenientes deste pré-texto, através da memória seletiva; das relações inter-religiosas,
principalmente com os protestantes pentecostais; das relações intra-religiosas, com o clero e
as leigas mais clericalizadas da matriz e da representação da maternidade e da família em
transformação no ideário coletivo contemporâneo.
O quase-grupo formado pelas devotas da Mãe Peregrina, especialmente através de
suas representantes – as duas zeladoras a que fizemos referência acima – reivindica portanto,
o reconhecimento de suas práticas rituais, valores e crenças que mais do que tradicionais no
sentido de pertencentes ao passado, são atuais, estão respondendo a questões contemporâneas.
Estes rituais, valores e crenças são, assim, formados por fragmentos reordenados da cultura e
religião popular que elas vivenciaram no passado, ou seja, do pré-texto composto de
conteúdos tradicionais, apreendidos ao longo da vida nos catecismos da infância, na
espiritualidade dos movimentos marianos que integraram e nos textos bíblicos mais
populares, como o Apocalipse de São João (cf. VELHO, 1987).
Ao lado deste pré-texto da tradição, suas crenças e rituais são formados também por
fragmentos reordenados das velhas e atuais relações sócio-religiosas, as confrontações com a
fé protestante, com a fé pentecostal protestante e católica e com a fé oficial dos clérigos e
leigos clericalizados. Estas relações impõem-lhes negociações, trocas e concessões que as
obrigam a selecionar as frações da crença que deverão ser enfatizadas, ora para diferenciação
ora para identificação.
Além disso, tomam parte nesta crença em construção valores fundamentais para a
visão de mundo e para a formação emocional destas senhoras, tais como, a concepção
histórica e machista de maternidade e de família.
8
Mas nem mesmo estes valores podem ser
8
A moral masculina do mundo ocidental, curiosamente, serve de referência aos ideais morais das
mulheres – apesar de todos os avanços conquistados nesta área. Ainda hoje as regras estruturantes da
sociedade – e da cultura – são masculinas, sobretudo, nos contextos das religiões tradicionais. Mas, se
são os homens que formulam as regras que regem a sociedade, são as mulheres que as exercem,
especialmente as regras que se referem diretamente ao corpo. São as mulheres que assistem aos
nascimentos, às mortes, às doenças, uma vez que os lugares a elas destinados, mesmo com toda a
conquista feminina do mundo público, são os lugares de dentro: dentro dos corpos, das casas, do quarto.
Lugares que nós homens – com raríssimas exceções para além da limitação biológica – ainda não
assistimos, fato que acaba penalizando de maneira perversa a existência das mulheres, particularmente,
no momento presente – referimo-nos às duplas e triplas jornadas que muitas mulheres assumem: no
trabalho, na casa e, às vezes, no banco da escola – (sobre a condição da mulher e seu corpo cf. o
poético artigo de Sherrine B
ORGES, 1989).
116
tomados como totalidades rígidas, coesas e perenes. A condição contemporânea lança
desafios a estes valores, essas devotas precisam explicar porque filhos, filhas, parentes
próximos, não os respeitam. Elas precisam entender e explicar razoavelmente, porque a filha é
mãe solteira ou o por que o sobrinho é usuário de drogas, sem deixar ruir por completo a
estrutura secular destes valores. É preciso incluir – dificilmente elas irão excluir – este casos
fora da regra. É preciso, com efeito, novamente selecionar fragmentos. É esta bricolagem, esta
incessante reunião fragmentária de discursos de várias esferas da vida, que entendemos por
“pluralidade de fluxos de informações e símbolos”. Podemos dizer que, assim como os
símbolos religiosos, o sistema cultural da religião (isto é, a religião como uma totalidade de
significados) tem natureza plurivocal, paradoxal e semanticamente polarizada.
3.2 Faces de Maria: os leigos frente à hierarquia em Ubatuba
Em uma coletânea voltada para professores do ensino fundamental e médio da rede
pública de ensino do Brasil, Steil atenta que a intervenção clerical do século XIX no curso do
catolicismo brasileiro cria “...uma divisão entre o catolicismo popular tradicional e o
catolicismo esclarecido clerical dentro do sistema católico como um todo”. Seguindo com sua
clareza habitual de argumentação Steil diz que a partir daquela intervenção dois subsistemas
passam a “...disputar espaços de poder e de influencia na sociedade brasileira: um popular,
de corte devocional, centrado no culto aos santos, e outro moderno, centrado nos
sacramentos e na mediação do clero.” (2001b, p. 16).
Na mesma direção, para ilustrar melhor as diferenças que observamos entre as
devotas que recebem a Mãe Peregrina e as devotas que recebem somente o Imaculado
Coração de Maria, apresentamos roteiros “ideais” de crença.
9
Estes roteiros podem ser
representados por alguns personagens ou grupos que estudamos. Num pólo, há um quase-
grupo mais identificado com o popular. No outro, o grupo mais identificado com os estratos
mais clericalizados. Entre estes dois, há um terceiro quase-grupo tentando negociar e conciliar
os valores e práticas dos dois pólos. Na realidade, é muito difícil separá-los nitidamente, por
9
No sentido dos tipos ideais de Weber (2000), ou seja, que têm somente existência teórica.
11
7
isso falamos que existem diferentes tendências que são mais acentuadas em um ou outro
grupo.
10
O catolicismo clericalizado evidencia uma face de Maria mais abstrata. Os relatos
sobre a crença em Nossa Senhora e a respeito da mediação imagética evidenciam o resultado
da operação que busca explicações e teorias sobre esses domínios. Essa visão é, geralmente
marcada pela resignação. Destaca-se a graça ou milagre como privilégio pela conduta
racionalizada segundo os valores da hierarquia e burocracia religiosas.
11
O popular concebe o sagrado de uma forma particular e se relaciona com uma face
de Maria mais emocional, Maria está mais presente. O símbolo da maternidade sintetizada na
figura da Mãe Peregrina orienta a conduta, os hábitos e os valores de muitas de suas devotas.
A partir deste símbolo religioso reúnem-se um conjunto de sentimentos, idéias e julgamentos
que estruturam uma espécie de crítica de alguns elementos da modernidade. Mas, não
podemos esquecer que neste processo há uma certa ambigüidade, porque elas elegem a Mãe
Peregrina de Schoenstatt um símbolo identificado com esses processos de alteração dos
modelos tradicionais de crença e de vivência, que enfatiza práticas mais individualizadas, para
produzirem a crítica da modernidade.
Apesar de reproduzirem o discurso oficial de que Maria é uma só, as práticas das
devotas mais populares denunciam uma concepção de diferenças entre as imagens e de
diferença entre o que elas representam. Todas as mulheres da rede da Mãe Peregrina com as
quais falamos elaboraram uma oposição com relação aos cristãos não-católicos, ao se
referirem a Maria. As mulheres deste grupo popular, por terem uma relação mais intensa com
as imagens de santos e de Nossa Senhora, têm de lidar mais corriqueiramente com a complexa
natureza de Nossa Senhora que é uma e se “apresenta” de diversas maneiras e com nomes
diferentes para a humanidade. Essa elaboração reproduz, claramente, o discurso do clero em
relação aos cristãos de igrejas cristãs mais distantes na relação com a igreja católica,
10
Na verdade, acabamos tentados a considerar que o fato de serem mais ou menos clericalizadas pode ter
a ver com a situação econômica e educacional dos sujeitos (cf. a este respeito M
INAYO, 1994, p. 61-65).
Por isso, seria necessário, um acompanhamento mais sistemático da dinâmica e das características do
grupo, para estabelecer as linhas precisas que dividem o grupo. Porém, os objetivos a que nos
propomos são satisfeitos com os dados que dispomos sobre os mesmos. Até porque, procuramos não
limitar nossa análise, considerando que a definição e a vida das comunidades e sociedades não se
limitam apenas ao dado da cultura, isto é, a cultura não explica tudo sobre um determinado grupo, seus
aspectos materiais, biológicos e históricos têm papel importante nesta definição (cf. K
UPER, 2002).
11
Minayo (1994) observou as mesmas características com relação aos devotos que freqüentam o
Santuário de Porto das Caixas, no estado do Rio de Janeiro.
118
principalmente os protestantes pentecostais. Inclusive, uma de nossas hipóteses iniciais afirma
que o incentivo paroquial à devoção mariana é estratégia de embate contra os neopentecostais
que avançam na cidade. O trabalho de Prandi (1997, p. 131-141), que analisa a Renovação
Carismática Católica, apresenta afirmação semelhante no caso do enfrentamento do
catolicismo renovado com o neopentecostalismo protestante. Do mesmo modo, Steil (1996, p.
121) diz ter ouvido do clero do santuário de Bom Jesus da Lapa que buscavam “canalizar as
forças inerentes à devoção mariana” contra as seitas protestantes identificadas como uma
ameaça às romarias. O clero da Lapa fez esta afirmação baseado na crença de que Maria é a
arma mais poderosa para proteger os católicos da ação protestante (a respeito desta utilização,
ver também ORO & SÉMAN, 1997, p. 127-155).
12
O recurso de recorrência a práticas
enraizadas no imaginário religioso – o culto aos santos – é ferramenta poderosa para tentar
“segurar” fiéis junto à igreja católica. Para estas mulheres, a vivência desta questão significa a
formação de uma identidade religiosa na qual se opõem os católicos – que, na visão deste
grupo, seriam aqueles que amam a Mãe de Jesus e da humanidade – aos crentes – que,
também segundo esta visão, desprezariam Maria e com isso magoariam a Cristo seu filho.
Na comparação das duas devoções destaca-se também o rigorismo moral do
movimento da Mãe Peregrina. Esse zelo moral, que se assemelha ao puritanismo protestante,
foi incentivado pela igreja católica no início do século XX, momento em que nasce o
movimento de Schoenstatt na Alemanha. Aliás, este movimento não é o único movimento
católico que incentiva este tipo de controle moral da família, baseado em valores reforçados
pelo Concílio de Trento, também os movimentos da Legião de Maria, Apostolado de Oração
ou Opus Dei fazem esse controle. Além de praticar modelos de assistência mais centrados na
esfera espiritual e moral, o movimento de Schoenstatt tem normas rigorosas para estabelecer o
controle moral das fiéis.
Lembramos, neste aspecto, as diferenças de relação com Nossa Senhora, divididas
em posições distintas conforme as duas devoções marianas da cidade: a da relação emocional
com o santo e a da relação mediada pela razão. Na análise das romarias ao santuário de Bom
Jesus da Lapa, Steil, citando Isambert, lembra que “Enquanto os romeiros se relacionam,
sobretudo com um ‘sagrado que se mostra’, ao qual têm um acesso direto, o clero e os
católicos esclarecidos se fixam num ‘sagrado proclamado’, mediado pela palavra e pela
12
Os pesquisadores do NIPPC/UNITAU que realizaram a pesquisa na região de Ubatuba (1998-2000),
mencionada na nota 15 do capítulo um, também disseram que, informalmente, ouviram o pároco afirmar
algo neste sentido.
119
razão” (1996, p. 56). Aliás, neste intrigante trabalho sobre devoções, Steil mostra as disputas
pelos usos e sentidos do sagrado travadas pelos romeiros, pelos moradores da cidade da Lapa
e pelo clero responsável pelo santuário. Três visões de mundo, três objetivos, três tipos de
valores, enfim, três cosmologias religiosas – no mínimo – se enfrentam nas romarias do sertão
da Bahia. Essa complexa relação conflituosa é constitutiva da natureza do santuário, local
privilegiado, no qual o discurso moderno-racional é re-apropriado pela lógica da cultura
popular e as visões de mundo da cultura popular são re-apropriadas pela lógica racional dos
dirigentes do santuário. Como sugere o autor, as romarias nos ensinam como lidar com as
diferenças ao invés de, simplesmente, acabar com elas (STEIL, 1996, p. 55-66).
O paradigma popular de santidade, que está mais presente entre as senhoras que
rezam para a Mãe Peregrina, tem elementos mágicos que levam à crença de que a posse de
um objeto sagrado ou o contato com uma imagem milagrosa, é canal privilegiado para a
aquisição de graças e proteção.
13
A relação com o “sagrado que se mostra” é fundamental, no
entanto, não basta. No bojo de concepções desta natureza se difundiu entre as devotas do
Perequê-Açu a idéia de que a relação do nome das famílias enviada à direção institucional do
movimento – que o secretariado da Mãe Peregrina da cidade de Atibaia solicita para um
controle burocrático das redes de devoção – serve para a realização de orações em nome das
famílias que recebem a capelinha em cada dia do mês. Como observamos no tópico 1.2.1 do
primeiro capítulo, a zeladora da Mãe Peregrina daquele bairro narrou o caso de duas graças
alcançadas devido ao envio do nome dos interessados ao santuário. De acordo com a sugestão
dos Turner, diferentemente da visão individualista dos protestantes, os católicos imaginam
que há um mérito real por estarem em interação com seus “pares-cristãos” (1978, p. 206).
Neste sentido, observa-se em última instância que se arma um “sistema de proteção” que
socorre a uma mediação, podemos dizer, terrena. Dessa maneira, para as devotas da Mãe
Peregrina do Perequê-Açu, não há o recurso direto à imagem e da imagem para Deus; a rede
criada converge a um centro, em torno de alguns sujeitos, e desse centro encontra uma via
expressa para Deus.
14
Essa idéia merece ser relativizada, pois a capelinha Mãe Peregrina não
é a única forma de cultuar e de acessar a intercessão de Nossa Senhora. A Mãe Peregrina é
mais uma via de acesso, é uma parte complementar da devoção à Mãe de Deus. Afinal como
13
Conforme o final do tópico 2.1.4 no capítulo dois desta dissertação.
14
A força desse núcleo terrestre de mediação viria da condição de seus integrantes, personagens virtuosos
– como virgens em oração constante – e inacessíveis – pois em Ubatuba nenhuma devota visitou o
santuário – e da formação de um capital de graças, rememorado todo mês nos testemunhos publicados
nos folhetos de divulgação enviados aos coordenadores (que os repassam para cada devoto).
120
sentencia uma devota ubatubense, lembrando Manuelzão do livro de Guimarães Rosa, “Ah,
não pode ter exceção com Nossa Senhora não menino [...] quanto mais melhor” (Teresa).
Outra concepção muito importante chamou a nossa atenção nas entrevistas do
Perequê-Açu. Ali tanto a zeladora da Mãe Peregrina, quanto a coordenadora do Imaculado
Coração de Maria – que também faz parte da rede da Mãe Peregrina – afirmaram que chamam
as famílias que recebem a capelinha para ir à missa, pois isto é uma orientação das irmãs de
Schoenstatt ou do pároco local, contudo, dizem que o mais importante é a imagem/Nossa
Senhora visitar a casa das famílias e que estas rezem o terço. É impossível não associar estas
falas aos trabalhos de Pedro Ribeiro de Oliveira (1985 e 1997) sobre o catolicismo brasileiro,
nos quais ele retoma conclusões da historiografia já clássica sobre a religião do “povo” (cf.,
por exemplo, HOORNAERT, 1983, p. 399), que diz que os católicos vivem uma religião com
muita reza e pouca missa” e “muito santo e pouco padre”. Registramos, contudo, que estas
devotas não têm uma visão negativa quanto aos sacramentos, como a Eucaristia. Para elas, as
graças e milagres acontecem diretamente em função da sua relação com o santo que intercede
por elas no céu. Dessa maneira, não é preciso a mediação do padre ou do sacramento para se
relacionar com as divindades. Os padres e sacramentos têm uma função que está em outro
lugar, podendo até mesmo se relacionar aos problemas de prestígio comunitário ou disputa
pelo poder e, também, de ingresso na participação da comunhão dos santos – com o batismo,
por exemplo.
3.3 A busca por reconhecimento: uma comparação das concepções
de milagre e de graça
É a situação de relativa periferia em relação ao poder religioso e de efetiva
submissão social à hegemonia masculina que orienta a vivência das devotas da Mãe Peregrina
da comunidade do Perequê-Açu. Ao mesmo tempo, esta condição periférica oferece as
condições objetivas para a difícil construção de um espaço de busca de reconhecimento
social, cultural, mas principalmente, moral. A respeito da ambigüidade da situação, Rosado
Nunes, numa revisão histórica sobre o papel das mulheres no catolicismo brasileiro, lembra
que:
121
A análise dos efeitos sociais do processo reformador católico para as
mulheres, revela a ambigüidade de que são portadores o discurso e a
prática eclesiais. Por um lado, destaca-se o reforço e a reprodução, ao nível
eclesial, da exclusão social que atinge a população feminina. Por outro
lado, a ação eclesial junto às mulheres não tem como único efeito controlá-
las, mas lhes propicia certos ganhos. [...] As associações femininas criam
espaços de sociabilidade, tanto mais importantes para as mulheres quanto
por esta época, no Brasil, o acesso a outros lugares sociais – o exercício de
uma profissão, a política, as artes – era muito difícil para elas. A criação de
instituições de assistência aos doentes, às crianças e aos velhos constituiu a
ocasião para muitas mulheres de alargar o seu campo de atividades (2000,
p.16).
Ora, essa ambigüidade é alimentada pelo conflito simbólico, que apresenta demandas
pelo reconhecimento da visão de mundo da religião popular que está por trás das recriações de
identidades coletiva e individual das devotas. Para o melhor entendimento a respeito do que
dissemos, procuramos identificar um conjunto de elementos que, a partir de um núcleo
central, que se pode chamar de catolicismo popular, reúne valores e práticas de outras esferas
culturais. Tentamos seguir os passos de Segato (2000, p. 6-11) que se propôs a distinguir
hermeneuticamente, através do estudo de pares de oposição, duas devoções marianas,
partindo da oposição mais geral entre o global e o local. Contudo, apresentamos aqui, de uma
forma geral, a síntese dos pares de oposição que desenhamos. Seguimos também os passos de
Steil (1996) que, ao reconhecer na memória dos romeiros tradicionais que estudou uma
tradição bíblico-católica-brasileira, procurou identificar de que forma esse substrato religioso
permite aos católicos tradicionais entrarem em contato com o núcleo de sua cultura.
Por trás das diferenças das mulheres que participam da devoção da Mãe Peregrina,
pode-se encontrar algumas características que são comuns à maioria das mulheres da rede que
pesquisamos. Todas se caracterizam, de alguma forma, pelo fato de estarem “liberadas” das
lidas domésticas em função de se encontrarem aposentadas ou com os maridos aposentados,
ao mesmo tempo em que já não precisam reservar grande parte do tempo aos filhos, hoje
criados. Esta condição permite à maioria delas participar intensamente das atividades
religiosas, em contraste com uma situação anterior, onde, muito provavelmente, os serviços
domésticos ocupavam-nas quase por completo.
Outra característica que as aproximam é a concepção do sagrado, principalmente a
maneira como concebem suas relações com a Virgem Maria. Elas atribuem à figura de Maria,
122
e às vezes ao objeto que as representa, ações e vontades humanizadas, destacando-se o papel
maternal segundo o modelo católico tradicional da boa-mãe e da esposa exemplar. Nesta
acepção, Maria é mais próxima e até mais compreensiva e compassiva do que o próprio Jesus
Cristo, porque, como mãe da humanidade, acolhe todos os seus filhos sem distinção. Como
diz uma devota: “Para a mãe os filhos nunca têm defeitos, para a mãe os filhos são todos
perfeitos. Então, para Nossa Senhora nós somos todos perfeitos” (Neide).
Aqui fica clara a identificação com Maria pelo papel da maternidade, fundamental na
vida destas senhoras. Uma maternidade específica que impõe às mulheres a plena
responsabilidade da criação dos filhos. Uma maternidade que, por outro lado, vem sendo
desafiada pelo acesso das mulheres às outras esferas públicas da vida, além da religiosa. De
fato, como lembra Woodhead,
...mulheres que escolheram manter papéis domésticos, e para quem a
família continua sendo o espaço social primário, podem ainda encontrar nas
formas mais tradicionais de religião o espaço social de que necessitam. Isso
torna, se é que torna algo, mais importante um espaço para as mulheres,
uma vez que o papel doméstico é desafiado na sociedade moderna
avançada, e a maternidade perde sua condição normativa para as mulheres
(2002, p.3).
Na mesma direção, mas em caso bem diferente, Rosado Nunes (1994, p. 187-188)
observa que na CEB que estudou as mulheres justificam suas idas para fora da casa
recorrendo à própria condição de mães e esposas. Segundo a autora, é dessa forma que podem
viver a transgressão e, ao mesmo tempo, tornarem-na aceitável tanto para elas mesmas como
para a sociedade que força a permanência delas junto da maternidade e do lar. Desse modo, a
maternidade tanto pode impor as formas e o espaço de sociabilidade/ identificação, como
pode justificar as novas formas de sociabilidade/identificação, demonstrando claramente, é o
que nos parece, aquele processo de reinvenção da tradição como forma de tentar manter
invariável alguns aspectos da vida cotidiana, e também como forma de identificação frente
aos novos personagens e às novas vivências da condição pós-moderna. Estes processos
apontam ainda, segundo entendemos, para a relação entre o ethos religioso do catolicismo
tradicional e a visão de mundo das católicas tradicionais (cf. G
EERTZ, 1978, p. 101-142).
Aliás, Geertz diz que os símbolos religiosos têm a qualidade de sintetizar o ethos – o tom, o
123
caráter emocional coletivo – e a visão de mundo de um povo (e entendemos que ele também
se referia a grupos dentro de sociedades). E mais, segundo o autor:
... entre o ethos e a visão de mundo, entre o estilo de vida aprovado e a
estrutura da realidade adotada, concebe-se que exista uma congruência
simples e fundamental, de forma que uma completa e empresta significado à
outra. [...] [Ou seja,] ...a noção de que a vida assume um significado
verdadeiro quando as ações humanas são afinadas de acordo com as
condições cósmicas é muito difundida. (1978, p. 147).
Olhando para os grupos sociais das sociedades complexas, como a que estudamos,
não é muito comum encontrar um encaixe ressonante desse tipo. Geertz fala pensando em
sociedades tradicionais, se bem que, a população javanesa que ele estudou naquela época já
estava em franco processo de contato e re-estruturação em função da situação colonial – e
sobre esta situação, ao menos no artigo aqui mencionado, nada foi citado a respeito dessa
situação. Por outro lado, é preciso reconhecer que o processo de significação cultural tende a
conciliar os costumes ou as disposições morais e estéticas com a visão de mundo ou as
condições cósmicas. É dissipando toda a associação à rigidez desse arranjo, desse encaixe
entre o ethos e a visão de mundo, que passamos a utilizar estes conceitos e as idéias
associadas a eles. Desta forma, ao falarmos em ethos estaremos nos referindo ao conjunto de
valores práticos e morais dominantes em uma ou outra rede de devoção a Maria e que tendem
a controlar o tipo de comportamento de seus membros (cf. AMARAL, 1992, p. 203). E ao
falarmos em visão de mundo estaremos pensando com Geertz no “...quadro que [os povos, e
as redes neste caso] fazem do que são as coisas na sua simples atualidade, suas idéias mais
abrangentes sobre ordem.” (1978, p. 103-104).
Considerando, de um lado, a proposta teórica de Woodhead (2002) da religião como
espaço privilegiado para a identificação feminina – tanto conformadora quanto
transformadora – e de outro, as considerações de Segato (1997) sobre a formação de
diversidades no contexto atual da modernização, pode-se argumentar que as devotas da Mãe
Peregrina da comunidade que estudamos estão lidando com uma série de rupturas e
intervenções na visão de mundo que tradicionalmente possuem. Nunca é demais lembrar que
em grande parte essa visão de mundo é formada concomitantemente com a aquisição do ethos
da religião católica popular que oferece as principais chaves de leitura da experiência de vida
dessas devotas. É a oposição a traços “modernos” que as direcionam para a atualização da
124
busca pelo reconhecimento de um modelo de maternidade tradicional
15
que vem sendo
“ameaçado” pelas transformações sociais e pelas conquistas feministas.
16
Nesse sentido,
diante da atual dinâmica cultural, legitimar esta maternidade, através do seguimento de Maria,
representa um movimento em duas direções: de um lado, buscam legitimar as suas próprias
experiências, ou nos raros casos em que as devotas precisaram entrar no mercado de trabalho,
justificar e compensar a não observância deste modelo valorizado – através da vivência de um
papel “mais feminino”. E, de outro lado, é um discurso dirigido para os filhos e filhas, que
muitas vezes já não correspondem à visão tradicional de maternidade/virgindade, de família e
da relação com os pais (sintetizados no simbolismo mariano).
De outro modo, o fato de terem vivido uma certa marginalidade, de terem ficado na
retaguarda da família e, depois, terem que se ajustar ao novo papel que assumem é muito
importante. Elas são em sua maioria mulheres de meia idade que estão liberadas dos afazeres
domésticos mais árduos e constantes, e mulheres que são comprometidas com as práticas
religiosas.
Buscam o reconhecimento de uma identidade moral de mulheres reprodutoras,
buscam valorizar o papel que tiveram como mães e que têm hoje como anunciadoras da fé em
Maria, mas sem abandonar seus parceiros, seus maridos, que poderiam ser negligenciados
pelo fato da opressão vivida por elas. Ao contrário, o processo de “libertação”, isto é, de
reconhecimento e de identificação, destas mulheres do Perequê-Açu abrange a “conversão”
dos maridos. Através da oração por eles e os filhos – isto é, do orar no lugar deles – muitas
vezes conseguem que os familiares participem mais ativamente das práticas religiosas que
valorizam. Uma mentalidade mais clericalizada como a de dona Nair, devota do Imaculado
Coração de Maria, lamenta que os familiares não realizem as práticas religiosas oficiadas pela
igreja e ora para que se “convertam” – isto é, “pratiquem” a religião católica.
15
Não podemos deixar de fazer referência aqui às idéias seminais de Geertz sobre a natureza dos
símbolos religiosos, capazes de sintetizar os dois significados do modelo, o modelo de e o modelo para,
segundo essa característica, a maternidade de Maria, além de ser um modelo daquilo que suas devotas
acreditam, é também um modelo para a crença nesta maternidade (1978, p. 130).
16
Sublevo com aspas o termo ameaçado para indicar que não estão em questão na análise proposta os
ganhos (ou perdas) provenientes das reivindicações feministas. Registro apenas que, no caso que
estudamos, as mulheres são participantes de grupos ou movimentos de mulheres, mas não são
“feministas” (no sentido de serem críticas ao modelo atual de relações entre os gêneros). Ao contrário,
na busca por reconhecimento, recorrem a valores conservadores há muito veiculados pela igreja
católica.
125
Da identificação com Maria nasce outra crença que une estas devotas – e aliás, todos
os católicos. É a visão alimentada e sustentada pelo clero, que é a identificação dos católicos
como aqueles que acolhem Maria em contraste com os “crentes” que negam ou, pior,
“ofendem” – segundo o ponto de vista católico – a Mãe de Jesus. “Mas eu acho que se eu
falar mal de sua mãe, você não vai gostar, não é? Então, eu penso que Jesus fica aborrecido
se a gente não falar bem dela, deixar Maria de lado”, comparava a devota Teresa.
17
Se as devotas em questão assumem a identidade contrastiva dos que acreditam em
Maria, elas fazem isso reinterpretando, modificando, esta operação “institucional” e oficial de
identificação, porque acentuam muito mais o ressentimento humanizado de Jesus ao ver sua
Mãe “difamada”, sem mencionar qualquer ponto da Teologia sistematizada que primeiro
alimentou esta cisão. Além disso, elas não desabonam ou deslegitimam a fé protestante,
reconhecendo, inclusive, a qualidade da fidelidade dos protestantes a Jesus Cristo: “Nossa
Senhora ama todo mundo, a humanidade inteira, até aqueles que são evangélicos, mas ela
ama do mesmo jeito porque crêem fielmente no Filho dela” (Neide).
18
3.3.1 As concepções de milagre e graça
A distinção entre as duas redes de devoção a que nos referimos fica evidente num
aspecto já mencionado. Fazemos alusão à natureza e regularidade das intervenções
sobrenaturais. Em contraste com uma visão salvífica, sacramental, extraordinária e
racionalizada dos milagres – presente no estrato mais clericalizado da paróquia – boa parte
das devotas da Mãe Peregrina acredita numa intervenção sagrada mais gratuita e corriqueira,
mais mágica e direta:
Aí quando chamou o número nove eu entrei no corredor assim, e no
corredor do hospital tinha uma mesinha, como estava hoje lá na igreja, uma
17
Questionadas a respeito da acusação protestante de que os católicos idolatram as diversas imagens
marianas existentes, várias informantes defendem que “Maria é uma só” e que suas imagens são
lembranças, como as fotos que guardamos; quanto à variedade, afirmam que a Virgem se apresenta aos
humanos em vários locais, por isso as várias imagens e nomes representam a forma e o local em que
ocorreram as aparições. A este respeito, ver, também, Segato (2000, p. 4-5).
18
Na verdade, dona Teresa tem uma posição distinta. Podemos supor que ela afirme que há incoerência
na fé protestante, pois, segundo seu discurso, não é possível adorar o Filho se não se reconhece as
qualidades sobre-humanas da Mãe, que foi a intermediária de sua existência humana. Mas essa sua
posição irreconciliável pode ser entendida a partir de seu papel enquanto catequista há mais de
dezessete anos.
126
imagem da Rosa Mística de madeira, né. Então eu fui nela primeiro antes de
entrar na sala de consultório, aí eu segurei na mão dela e ainda falei assim:
‘Eu sei que aqui na minha frente você é uma imagem de madeira, mas no
céu você está intercedendo por nós, entra comigo no consultório e toca no
coração desse médico’. (Neide).
Ah, o Sagrado Coração de Jesus me operou da enfermidade que eu tinha
nos seios, que eram nódulos e eu tinha que arrancar o seio fora. Três
médicos falou que eu tinha que arrancar. Aí o Coração de Jesus me operou.
Eu sentei na cama, pedi para ele que ele me curasse, né, da enfermidade que
eu tava. Aí eu deitei, aí eu fiquei assim, eu não estava dormindo, eu estava
‘madormano’, assim, e eu senti ele me operando. Ele estava todo de branco,
com os braços abertos, assim para baixo, e o rosto era uma luz intensa. E aí
ele, eu senti o corte, ele me cortando tudo, aí quando ele terminou eu
acordei. Aí acordei o outro dia estava tudo dolorido [...]. Passou sete dias a
dor saiu tudo, saiu o dolorido, aí eu fui e operei no hospital. Fizeram a
cirurgia lá e lá no hospital o médico não chegou à conclusão, o que tinha
acontecido com o meu seio e eu não tirei o seio fora. Estou com os dois, fiz
mamografia seis meses atrás e não deu nada. Está tudo bem. (Vilma).
Quanto ao relato de Vilma, observamos que apesar de ter sido o Sagrado Coração de
Jesus o operador milagroso, foi Nossa Senhora a mensageira do milagre. Na noite anterior foi
ela que apareceu em seu sonho para lhe informar que Jesus realizaria um milagre.
19
Comparando os dois relatos de milagres alcançados, fica claro que florescem dois modos
populares de interpretar a intervenção sagrada: os milagres acontecem pela intervenção divina
num agente humano em favor da devota, ou acontecem por uma intervenção mediúnica de
algum santo ou santa. Na relação popular com o sagrado os santos aparecem constantemente
nos sonhos dos devotos, socorrem-lhes em momentos banais da vida cotidiana, além de
prover-lhes a proteção mais geral da vida. Essa relação gera um compromisso entre o fiel e o
santo que se traduz em interações do devoto com a imagem do santo, por mais que eles
próprios reconheçam tratar-se “apenas” de uma imagem de barro ou papel (cf. OLIVEIRA, P.,
1985). Ocorre aqui a idéia de que o objeto sagrado é um canal que melhora a qualidade da
relação e aumenta a possibilidade do pedido ser atendido (cf. ELIADE, 1992 e TURNER &
TURNER, 1978, p. 205-206).
19
Processo que nos remete ao episódio evangélico das bodas de Caná, no qual Maria exorta o Filho a
socorrer milagrosamente os noivos (cf. Jo. 2, 1-11). Uma referência muito provável na experiência
religiosa de dona Vilma.
12
7
Para a crença baseada nessa forma de relação com a graça e o milagre, conta muito
mais a reza do que a missa, a promessa do que o sacramento institucionalizado, ainda que não
se negue a importância dos sacramentos da igreja para outras instâncias da relação do profano
com o sagrado (cf. OLIVEIRA, P., 1985). É essa crença que permite às lideranças leigas do
movimento na cidade desafiarem a reivindicação da exclusividade clerical na mediação com o
sagrado. Como exemplo, citamos novamente o episódio em que, ao serem perguntadas se
seria mais importante ir à missa ou receber a imagem de Nossa Senhora em casa, duas devotas
responderam que é mais importante a visita da “santa” nas casas das pessoas:
Ontem mesmo eu fui na Legião de Maria, e falei: Olha, amanhã é missa da
Mãe Peregrina. Daí: “Ah, nós vamos”. Lá num mês ou no outro vão, mas
como a irmã lá [do secretariado] fala que é para levar a conversão da
família, né, da casa, então a gente faz esse movimento com ela de levar na
missa, então, para as pessoas verem que a gente tem mesmo a devoção em
Nossa Senhora. E aí, mas não é que a gente precise estar com ela, assim,
sabe. Ela tem que vir só em casa. (Neide).
Pela minha fé, eu acho mais importante a Mãe ir visitar, porque eu acho
que se ela conseguiu alguma coisa, foi ela que fez, né. (Marta).
Podemos perceber, ainda, nos relatos recolhidos na pesquisa, uma outra variante
dessa concepção de santidade, agora bem mais próxima ao paradigma popular, com um
caráter abertamente mágico. Ao discorrer sobre a crença em São Benedito, a zeladora da Mãe
Peregrina compara o seu modo de cultuar ao de outra devota de sua rede dizendo que:
Apesar que na terra tem muitos santos, muitos nomes de santo, tudo, e a
gente tem em casa, eu tenho até um São Benedito, né. tem gente que coloca
São Benedito na cozinha, né, põe até café para São Benedito, põe mais não
sei o que mais, isso é só uma superstição, né. Não do santo, né. Porque São
Benedito mesmo, ele quando faltavam as coisas no convento, ele não punha
nada no pé do outro santo, né, ele ajoelhava [...] não foi assim que ele
peregrinou aqui na terra não, né. Ele foi um cozinheiro de um convento, ele
era um frei, e então, faltava comida, né, as coisas no convento, aí os outros,
ele era muito simples, muito humilde, né, e sempre quando as pessoas são
humildes, os outros querem aproveitar, então São Benedito como ele era
cozinheiro, os outros falavam para ele: ‘E amanhã Benedito, o que vai ter
para nós comer?’ Aí ele falava: 'Espera que Deus vai dar'. Aí ele falava
para as pessoas, para os outros da cozinha: 'Enche a panela de água’, né.
Ele entrava no quarto dele e não dormia, passava a noite toda de joelho,
128
ficava em jejum, sabe? Rezando, pedindo para que Deus tocasse o coração
de alguém e fosse lá levar alguma coisa. Não tinha nada para o Benedito
comer, né, e era um seminário, né. Aí o que que acontecia? No outro dia, no
café alguém da padaria levava pão lá, sabe? [...] Então ele resolvia os
problemas dele... com o esforço dele. Então Deus mandava as coisas,
porque ele sabia que tinha uma pessoa ali de joelho a noite toda rezando,
né, pedindo mesmo. Foi assim a vida de São Benedito até terminar a vida
dele aqui na terra foi assim. (Neide).
A crença de dona Neide, embora permaneça mágica sofre uma racionalização dos
ritos para se compatibilizar com a sociedade moderna. Parafraseando a visão de Montero
(1999, p. 83) sobre a umbanda, dona Neide, na busca de reconhecimento e adequação ao
estilo de vida urbano-individualista, incorpora uma visão científica do mundo, sistematiza sua
crença, depurando-a dos traços mágicos mais imediatistas. Neste caso específico, ao lado de
São Benedito, a Mãe Peregrina é uma tentativa de rotinização do culto aos santos para que se
harmonizem ao tempo racionalizado do trabalho e estilo de vida urbanos.
Sua crítica dirige-se à prática de se ofertar comida ao santo para conseguir algum
favor seu e à crença de se ter garantias materiais apenas pela posse de uma imagem de santo,
sem precisar nem mesmo fazer orações e sacrifícios pessoais para merecer a atenção do santo.
Na verdade, as práticas reprovadas são práticas religiosas que possuem diferenças sutis em
relação à própria crença de quem afirma que se “entrega” a Nossa Senhora, como esta devota
afirma. Isto vem ilustrar que não é só a paróquia que engloba práticas e concepções diversas,
mas também o próprio movimento da Mãe Peregrina, e até mesmo, o próprio catolicismo
popular.
Olhando para essa última variante de relação com Maria e os santos, podemos
construir o seguinte roteiro de mediação com o sagrado:
Devoto Æ Maria (e os santos em geral) Æ Deus (trino e abstrato)
Neste caso, Maria é vista como a Mãe de Jesus e de cada um de seus devotos; é uma
personagem que de algum modo ainda participa das vicissitudes deste mundo através de suas
imagens (cf. STEIL, 2001b, p. 22). Ao lado de Maria, os intercessores dos humanos junto aos
seres sobrenaturais são semideuses, criaturas que, tendo sido humanas, foram transformadas
em deuses como prêmio por suas condutas santificadas. No termo “santos em geral” devem
129
ser incluídas todas as invocações marianas e, também, as invocações cristológicas que
enfatizam um ou outro caráter humano de Cristo: as setes Chagas de Cristo, Sagrado Coração
de Jesus (segundo a acepção popular), o Menino Jesus, o Cristo Morto, Bom Jesus, entre
outros. Revelando que, dado o caráter abstrato que a figura de Cristo possui – enquanto Filho
de Deus e a terceira pessoa da Trindade – ele tende mesmo a ser identificado com o Pai, na
equivalência de poder e de inacessibilidade, daí as várias invocações populares para se cultuar
Cristo mais como uma pessoa humana (o Bom Jesus) do que como um Deus (o Cristo
Ressuscitado). Criando, desta maneira, um atalho para o acesso às benesses divinas.
20
Como
observou Steil a este respeito,
A imagem de um santo, portanto, não é apenas uma representação que
evoca alguém que esteve entre os vivos, mas é ‘um sacramento’: algo que
torna presentes no mundo visível, de forma eficaz e real, personagens que
transitam entre os vivos e os mortos. Ou seja, há uma relação entre a
imagem e o santo que os torna uma única e mesma coisa...(2001b, p.23-24).
Segundo o que entendemos no estudo da campanha da Mãe Peregrina em Ubatuba,
ela forma uma variante intermediária nos modos de relação com o sagrado. A natureza da
rede, constituída pelos devotos e não por santos, associada à idéia de uma existência mítica e
mística de uma comunidade de leigas consagradas – virgens dedicadas à oração pela
humanidade – introduz nas vias de mediação esse núcleo de sujeitos “especiais” que
centraliza as energias postas em movimento na rede. Então, é como se a força simbólica do
movimento, cuidadosamente cultivada na forma do “capital de graças” – uma espécie de
“poupança coletiva” de eficiência simbólica – se resolvesse primeiro na terra antes de se
dirigir aos céus.
21
Podemos pensar o grupo de irmãs do santuário da Mãe Peregrina como uma
comunidade de convencimento, de esforço para que Nossa Senhora se compadeça dos
problemas e aceite os agradecimentos dos fiéis. Assim, temos o segundo roteiro de mediação:
Devoto Æ Maria (ao lado da ação espiritual de seletos virtuosos)
Æ Deus (trino e abstrato)
20
Infelizmente teríamos que desviar muito o nosso propósito inicial, mas ficamos tentados em traçar, a
partir da constatação deste caminho mais curto e mais rápido aos milagres, um paralelo com a re-
emergência fabulosa destes velhos santos, como Santo Expedito, que se transformam, na
contemporaneidade, em santos “das causas urgentes”.
21
Baseamos-nos em informação verbal de José R. Lopes.
130
Essa variante segue na direção da variante seguinte. A diferença é que a mediação
terrena é exterior ao mundo das devotas, é função de uma comunidade seleta da qual elas não
tomam parte e nem a conhecem – o que possibilita uma recriação mítica desta comunidade,
segundo as observações que recolhemos. O caráter intermediário não significa
necessariamente que as redes e a forma de mediação são transitórias entre a primeira variante,
mais “popular” e mágica e a terceira mais “clericalizada” e racionalizada. Mas sugere que há
uma dupla apropriação destes dois universos, capaz de re-ordenar seus elementos
constituintes, sobrepondo as sinonímias e compatibilizando as diferenças de modo que essa
nova forma de relação com o sagrado seja capaz de retirar sua coerência da e prover de
coerência à realidade concreta em que vivem. Esse processo de produção de significados
coerentes – e de produção de uma rede de significados – nunca finalizado, é paralelo à busca
de reconhecimento empreendido pela rede, pois o reconhecimento da crença quer dizer o aval,
a legitimidade do significado, o seu encaixe na esfera mais ampla do catolicismo.
Em oposição a estas duas variantes do modo de acreditar nas formas de intervenção
sobrenatural, temos na visão “esclarecida” da maioria das devotas do Imaculado Coração de
Maria uma natureza de extraordinariedade para o milagre, que, a princípio, só ocorre naqueles
momentos da liminaridade entre a vida e a morte. É preciso ressaltar que “...Em situações-
limite de desespero frente ao sofrimento, à dor, à morte, em nossa sociedade se recorre a
poderes sobrenaturais, em vista da precariedade de elementos naturais disponíveis, e nessa
situação as classes se confundem...” (M
INAYO, 1994, p. 61, inspirada em BERGER, 1985).
Com as exceções percebidas nos diversos santuários, onde de fato prevalece a busca direta
sem intermediários, estes milagres só ocorrem através da mediação do sacramento praticado
pelo padre, conforme podemos comprovar no seguinte relato:
Tem um outro fato pela Eucaristia. É o meu próprio fato. Eu tive uma
dilatação cardíaca, de não passar nem água mais, não passava nada, tudo
voltava pelo nariz. O médico disse para o meu marido que ele tinha me
levado tarde demais, não tinha mais o que fazer. Falei: Bom, tudo o que eu
tenho que fazer é me preparar para o meu encontro com o Senhor. Então, a
cabeça estava boa, eu ficava lendo muito a Bíblia, lendo os Salmos e tal. Aí
o padre que foi me confessar, ele tentou falar comigo, perguntando se eu
tinha filhos, se não tinha. Eu falei: Ah, tem os meus netos, né, que são
pequenos e precisam de mim. Eu murmurava, porque mal podia falar. Não
tinha condições para falar. Aí, ele falou assim para mim: ‘Olha, eu vou te
dar a unção, vou te dar a absolvição, você vai receber Jesus, logo você vai
estar de volta na sua casa, você acredita, que você fará uns bolinhos para os
131
teus netos, para Deus nada é impossível’. Olha André, eu recebi a
Eucaristia, não sei se eram dez horas, que horas eram, após ter recebido a
Eucaristia, passou um tempo e eles me levaram suco de laranja, eu tomava
pelo canudinho. Eu tomei o suco de laranja todinho sem voltar nada. E aí
fiquei, eu sobrevive um ano sem alimento, até que o coração tomasse toda a
rigidez, porque ele tinha amolecido os tecidos. Isso foi em setenta e cinco.
Então não tinha transplante, eu tive que me submeter ao tratamento de
acordo com o que o médico pedia. Mas cada dia, cada instante Jesus
operava na minha vida e eu não preciso te falar que eu estou viva. Estou
aqui dando testemunho desse amor maravilhoso de Jesus. (Nair).
Nesta variante, a relação com Deus, a divindade suprema, segue o seguinte roteiro de
mediação:
Devoto Æ Igreja (sacramentos, ação de Maria e do Espírito Santo) Æ
Deus Filho Æ Deus Pai.
Nessa variante, conforme os dogmas católicos, a igreja ocupa o lugar de Maria: a
Mãe da humanidade e a esposa de Cristo. Sendo que, conforme a transcrição acima, o
sacramento que dá acesso ao sobrenatural somente pode ser alcançado mediante uma ação
terrena de uma pessoa que, nos assuntos do sagrado, considera-se mais próximo do divino. Se
quem precisa do milagre for um leigo comum, a conversão e o sacramento ocorrem pela ação
de um especialista leigo, caso seja esse especialista que necessite do milagre, a ação que abre
o acesso ao sacramento vem do sacerdote porque é, hierarquicamente mais elevado, mais
identificado com a igreja. Na categoria igreja, dada a capilaridade da instituição, é mais
facilitado o sentimento de pertença, especialmente para os sujeitos reconhecidos pelo clero
local. Mesmo no caso das exceções, a concepção do milagre diverge da concepção popular,
pois a intervenção sobrenatural ocorre através de uma entidade abstrata, genérica, ou seja, é
um “sagrado proclamado”:
Meu marido acompanhou eles, depois que todos estavam quase chegando à
praia meu marido se lançou no mar que era uma distância pequena, muito
pequena mesmo, acho que uns cem, cento e cinqüenta metros da praia e um
redemoinho pegou ele. Depois que o redemoinho pegou, ele relutava,
relutava para sair e não conseguia, pedia auxílio para as pessoas que
estavam na frente dele que jogassem uma bóia, ninguém estava nem aí,
porque acho que pensou que estava brincando, né. [...] Eu mesma não
132
acreditei e ele disse que, depois de muito relutar e ninguém o ajudava, ele
falou: ‘Bom, só me resta entregar a minha alma a Deus, né’. Aí ele falou
assim: ‘Oh minha Nossa Senhora tenha misericórdia de mim’. E quando ele
pede assim, ele sentiu como uma grande pedra que veio em baixo dos pés
dele e tirou ele daquela correnteza, né. Aí ele saiu, chegou na praia
ofegante, muito cansado e eu falei: Mas o que estava acontecendo? Ele
falou: ‘Ah! Eu estava morrendo’. E ele deu este testemunho, né, que ele
sentiu a presença de Maria, como se o mundo tivesse sido colocado embaixo
dos pés dele e erguendo ele para cima, né. Então são os testemunhos que eu
te dou de Maria, presente na nossa vida. (Nair).
Raramente, neste grupo, se reconhece alguma graça cotidiana que se destaque na
memória da devota, além da graça fundamental de “estar vivo”. Na verdade, essa ausência de
distinção revela a idéia de estar vivendo a graça constantemente, como o seguinte relato de
uma devota do Imaculado Coração de Maria comprova:
Eu acho que graças eu tenho recebido muitas, muitas graças que eu acho
que a vida por si só é uma graça de Deus, mas é uma graça que a gente tem
e no caminhar dela a gente se defronta com todos os tipos de situações e
quando a gente vê já está pedindo para Nossa Senhora ajudar, né... Isso é
normal também. Mas depois, específico, assim, eu não lembro mais... Não,
acho tudo importante, acho tudo importante mesmo e quanto mais velha eu
fico mais eu vejo o quanto é importante... (Lourdes).
3.4 Devoção mariana e as formações de identidades católicas
em Ubatuba
Após termos lançado pistas sobre o papel da cultura no processo de transformação do
culto a Nossa Senhora, faz-se necessário percorrer, exclusivamente para iluminar a execução
do nosso objetivo, a teoria antropológica sobre identidade.
Quando se pensa em identidade na teoria antropológica, imediatamente se é remetido
para a questão da etnia. O conceito de identidade na antropologia sempre esteve ligado aos
objetos clássicos da disciplina: os grupos indígenas e afro-brasileiros. A partir de meados dos
anos 1980, com a ampliação do campo de estudos antropológicos e a consolidação dos
estudos de antropologia urbana, ou das sociedades complexas, o conceito de identidade vem
133
ganhando autonomia de seu corolário primeiro, a etnia. Sobretudo a partir da formulação
barthiana de “identidade relacional”, mesmo os estudos que discutem especificamente a
identidade de grupos étnicos têm considerado a limitação da definição do grupo étnico
enquanto uma unidade cultural e têm destacado a diversidade contextual, buscando romper
com a associação direta entre etnia e cultura, entre traços culturais e identidade (cf., por
exemplo, AGIER, 2001; BRANDÃO, 1986b, 1992; CONSORTE & COSTA, 1988; CUNHA, 1987;
OLIVEIRA, R., 1976). Assim, Montero (1999) defende que a desvinculação destes conceitos
ocorreu em função dos desafios postos à antropologia por seus novos objetos.
Por outro lado, no bojo da interdisciplinaridade que vem se instaurando no campo
das ciências sociais, despontam aproximações entre a antropologia e a psicologia social, no
tocante aos temas identitários (cf., por exemplo, LOPES, 2002; OLIVEIRA, R., 1976). Roberto
Cardoso de Oliveira foi um dos primeiros a incorporar as noções de identidade contrastiva, de
Barth, e de relações de identidades, de Goodenough, ao estudo das identidades indígenas no
Brasil. O conceito de identidade contrastiva ou relacional chama a atenção para o fato de que
as identidades sociais ou coletivas são formadas em contexto, são determinadas pelo sistema
social. Da mesma forma, a noção de relações de identidades, chama a atenção para o fato de
que não existe uma identidade social única. Nos casos mais extremos há pelo menos duas
identidades em relação, complementares ou combinadas umas às outras. Isto é, dependendo
do contexto ao qual o grupo ou sujeito se refere, ele assumirá uma identidade. No caso dos
índios, se estão se relacionando com a sociedade inclusiva – a sociedade brasileira – entra em
cena o par identitário índio-branco ou caboclo-civilizado, porém, se a relação for apenas com
outros grupos indígenas, estas identificações não têm mais operacionalidade, entra em cena,
então, outro par identitário, como xavante-kaiapó. Para os xavantes, por exemplo, essas
identificações e outras, tais como suas identidades coletivas internas à etnia, complementam-
se (O
LIVEIRA, R., 1976, p. 43-51). Além disso, elas não são estanques nem permanentes.
Dependendo da trama de relações sociais outros pares de identidades contrastivas entram em
jogo. O que é importante ressaltar é que, segundo Roberto Cardoso de Oliveira,
as representações coletivas, as ideologias ou as identidades étnicas
[tomadas como intercambiáveis, pelo autor] somente serão inteligíveis à
condição de serem referidas ao sistema de relações sociais que lhes deram
origem. Nisto talvez esteja a peculiaridade de um conceito antropológico de
identidade. (1976, 50-51).
134
A alusão ao sistema de relações sociais remete-nos a uma reflexão de Lopes (2002) à
respeito do processo histórico da construção do conceito de identidade nas ciências sociais e
de seus limites para a psicologia social entender as metamorfoses dos sujeitos. Neste trabalho
o autor lembra que a interpretação antropológica da identidade vincula o sujeito "aos
movimentos que permitem apreender seus registros, como manifestação de uma consciência
de pertencimento, de motivações racionais de ação, ou de constituição de lugares do humano,
como referência cultural." (LOPES, 2002, p. 20).
Reportando estes argumentos ao nosso estudo, percebemos que dentro da rede de
devotas da Mãe Peregrina, apenas a coordenadora da cidade e a zeladora da comunidade do
Perequê-Açu explicitam essa consciência de pertencimento e enunciam suas motivações
racionais para a manutenção do movimento. Foi por isso que chamamos a formação em torno
da devoção de quase-grupo, porque, considerando os integrantes fora da posição de liderança,
seu interesse permanece latente. De qualquer forma, optamos por trabalhar considerando o
movimento como um empreendimento identitário. Afinal, essa diversidade não anula o ponto
de união das devotas em questão, sendo tal elemento de união a percepção de que a igreja
católica está mudando para uma direção que se distancia das formas reconhecidas das práticas
religiosas que realizam. Desse modo, se as lideranças estão enunciando algo, é porque
possuem esta capacidade de sintetizar, ordenar e externar esse sentimento coletivo – acima
dos diferentes modos de sentir. Como, segundo Brandão (1992), o que mais importa aos fiéis
dentre todos os bens e serviços da agência religiosa é a atribuição de sentido, então, investir
esforços para a compreensão dos grupos religiosos enquanto um empreendimento, uma ação
social racionalizada de justificativa de pertencimento e, portanto, de identificação, pode ser
um caminho bastante fértil. O que podemos constatar até aqui é que esse método tem sido
muito fértil para compreender as formas diversas do ser, do representar-se e do viver como
devota de Maria. Dentro do movimento mariano de Ubatuba, as diferenciações existentes
enquanto grupo de devoção, crença, prática e identidade recobrem os desejos, os imaginários
e os interesses de classes e outras categorias de sujeitos, tais como grupos criados em função
da origem, do percurso social e do grau de escolaridade (cf. BRANDÃO, 1992, p. 72).
Se nós entendemos o que essa discussão precedente significa, podemos dizer que
toda a atribuição de sentido realizado pelas devotas – no caso específico da Mãe Peregrina,
mas que pode ser estendido para todas as devotas de Nossa Senhora – é fortemente
fundamentada na esfera religiosa. Assim, a religião constitui-se num "...amplo reservatório,
135
um repertório multissêmico, sujeito a combinações limitadas, mas múltiplas a um só tempo,
de tudo aquilo em que a cultura fala e significa através da religião...". É nesse repertório que
elas têm encontrado os significados para as transformações da conduta moral com relação à
maternidade, para ficar num exemplo a que fizemos referência acima. É sobre esse repertório,
ainda, que as redes de devoção a Maria atuam e se organizam. Não enquanto re-emergência,
mas sim como formas novas e "adaptadas ao agora e aqui" (cf. CUNHA, 1987, referenciada
por BRANDÃO, 1992, p. 74). Se as devotas de cada uma das redes das duas capelinhas de
Ubatuba compartilham uma maneira própria de viverem as suas crenças e os seus
pertencimentos à igreja, é porque compartilham também outros interesses.
Talvez o elemento mais perceptível da divisão e do conflito simbólico que
observamos seja a partilha da concepção da natureza da mediação imagética. Do lado do
Imaculado Coração de Maria, partilha-se a separação intelectual, racionalizada e secularizada
do significante (a capelinha) do significado (a personagem histórica conhecida por Virgem
Maria); neste caso, os atributos da personagem destacados são a sua imaculada concepção e
sua ascensão aos céus; a face de Maria enunciada é a da Rainha da Humanidade e dos Céus.
Do lado da outra capelinha, a da Mãe Peregrina, partilha-se a dificuldade de separar
nitidamente o significante do significado, o símbolo da realidade. A despeito da separação
intelectualmente e ideologicamente enunciada, a vinculação emotiva (orética) é mais forte;
neste caso, a devoção é a uma imagem específica, Maria é chamada de “nossa”, Nossa
Senhora e, sobretudo de mãe. Os atributos destacados são os afetivos, os familiares e os de
reciprocidade. A face enunciada é a da Maria compadecida e a da Mãe de Jesus, a Mãe
Peregrina, ou seja, as devotas vêem em Maria uma mãe como elas, solteira, fiel ao esposo,
amada, obediente a Deus, sofredora (de acordo com o atributo que mais trás identificação para
a devota em particular). Sendo assim, ao menos, analiticamente, o conflito explicita-se
materialmente na mediação imagética: no primeiro caso, o das devotas clericalizadas, a
imagem do Imaculado Coração de Maria está lembrando seus valores sobrenaturais; no outro,
o das devotas populares, a estampa da Mãe Peregrina, um retrato de Maria com o Menino
Jesus no colo, está lembrando seus valores extrema e essencialmente humanos.
Também é preciso chamar a atenção, no caso dessa distinção entre as duas imagens,
para a relação do sistema de nominação ao significado religioso. Observa-se que a estampa da
Mãe Peregrina possui o título devocional oficial de Mãe, Rainha e Vencedora Três Vezes
Admirável de Schoenstatt e em muitos outros lugares do país é chamada abreviadamente de
136
Mãe Rainha. Mas não em Ubatuba, ali o nome mais comum da capelinha com a estampa de
Maria de Schoenstatt é Mãe Peregrina. Quando uma pessoa denomina outra de “mãe”, ela
espera um determinado tipo de comportamento usualmente benéfico. Dessa forma, ao nomear
e classificar outra pessoa (humana ou divina), a pessoa pode conhecer e planejar a maneira
como deve agir e, ao mesmo tempo, prever a ação da outra. Em verdade a antropologia
demonstrou que os sistemas de nominação estabelecem as atitudes dos atores sociais humanos
e divinos.
3.4.1 A reflexividade do saber e o reconhecimento moral
Assim como o fenômeno de transformação do ideal de maternidade impõe
descontinuidades ao repertório identitário, as mulheres devotas da Mãe Peregrina têm que se
defrontar com outros fatores novos que minam o reconhecimento das suas crenças populares e
tradicionais. Elas se deparam com estratégias institucionais de domesticação-racionalização
das devoções populares – como a substituição de santos por parte do clero. Observam, cada
dia mais, parentes ou amigos que se convertem a novas denominações religiosas – como no
caso dos protestantes pentecostais. Assistem a novas formas de celebração da missa – como a
missa carismática e/ou televisionada. Todos estes fenômenos, por contigüidade temporal são
percebidos como sendo elementos de um único e ubíquo processo a que chamamos
“modernização” e que altera cada vez mais os espaços de identificação disponíveis a estas
mulheres, mães e esposas tradicionais, devotas populares e leigas comuns.
Seguramente a condição sócio-cultural corrente em nosso tempo-espaço, fortemente
preenchida por descontinuidades como estas enfrentadas em Ubatuba, cria novos desafios ao
processo de identificação individual e coletivo. Como lembra Giddens (1991) uma das fontes
destas descontinuidades é o caráter reflexivo que o conhecimento social adquire na
modernidade. Mas, se a reflexividade é uma das fontes da ruptura que desafia a identidade,
ela é, ao mesmo tempo, conforme pretende Agier, o principal recurso para as novas
identificações. O acesso de grupos culturais aos conceitos e descrições das pesquisas
realizadas em seu meio acaba transformando, na contemporaneidade, a natureza das
associações segundo traços culturais. Temos hoje não comunidades étnicas ou culturais, mas
empreendimentos identitários. Em conseqüência, insistir em conceitos datados como o de
identidade cultural pouco esclarece sobre essa nova realidade. Por isso, Agier propõe que a
antropologia estude não identidades culturais, mas culturas identitárias (AGIER, 2001).
13
7
Contudo, como vimos tentando defender, a participação nesse processo não é
passiva, nem tampouco sua cultura é estática, diria até que não podemos nem mesmo afirmar
que ela seja inteiramente conservadora (cf. ROSADO NUNES, 1994, p. 186; 2000, p. 17).
22
O recurso da devoção à Mãe Peregrina também não significa um retorno à
religiosidade popular camponesa (ou algo equivalente) ou ao rigorismo moral do catolicismo
do início do século XX, mas sim uma inovação cultural e identitária. Nossos dados nos
remetem a um pressuposto básico, que parece ser a chave heurística para a compreensão do
objeto de estudo, é o entendimento de que a experiência devocional anterior orienta o
significado da nova devoção a Maria. Apesar de ser uma devoção clericalizada, ela pode ser
consumida de forma criativa e adaptada pela tradição religiosa de suas devotas. Estendemos
para a rede da Mãe Peregrina as palavras de Steil, a respeito das aparições marianas em
Taquari, RS. Segundo o antropólogo a incorporação de rituais carismáticos nos grupos locais
aponta para:
...um processo pelo qual podemos ver como a dimensão da subjetividade e
da reflexividade é incorporada em ambientes tradicionais através de
recursos rituais disponibilizados pelas religiões. Ou, se quisermos, como a
22
Sem nenhuma pretensão de encaminhar nossa análise na direção da Renovação Carismática Católica,
gostaríamos de registrar neste capítulo algumas palavras sobre as similaridades que a Campanha da
Mãe Peregrina pode ter com a RCC, enquanto um modelo do que pode acontecer entre os diferentes
grupos rituais no interior das paróquias. A RCC também tem em Maria um elemento muito importante
para a sua fé e identidade. Ambos movimentos buscam serviços e vinculam-se ao especialista religioso
oficial. Ambos caracterizam-se como movimentos de renovação conservadora do indivíduo. Um pela via
do Espírito Santo e com ênfase nos ritos de supressão temporária da identidade – o transe – (P
RANDI,
1997, p. 23). O outro, pela via de Maria e com ênfase na “pedagogia” mariana da contrição e reza do
terço, e com valorização da identidade individual.
Simultâneos e em muitos aspectos semelhantes – como o fato de transferir momentos importantes da
experiência religiosa para o interior da casa, no caso da RCC, pelas missas televisionadas – estes
movimentos guardam diferenças, por exemplo, na construção do espaço doméstico como um espaço
sagrado. Sabemos que a RCC incentiva e cria, para além do âmbito da fé individualizante, a
necessidade da participação em grandes eventos coletivos. Estas configurações permitem variadas
relações entre os movimentos dentro das paróquias e dioceses.
Em nossa pesquisa faltam dados mais precisos sobre o assunto, entretanto, supomos que ali em
Ubatuba, a maioria das devotas da Mãe Peregrina vê com alguma reserva a RCC. Isto devido,
principalmente, ao contexto histórico vivido no momento que aderiram à devoção da Mãe Peregrina, a
saber: a relação de forma tradicional com uma rede mais ampla de santos. A experiência devocional
anterior orienta o significado da nova devoção à Maria. Diferentemente dos adeptos mais recentes, que
conheceram a devoção através da divulgação em massa através dos meios de comunicação.
Mas conhecemos também casos como o da diocese de São José dos Campos, SP, onde o movimento
da Mãe Peregrina reuniu, recentemente, seus participantes no estádio de futebol da cidade, num evento
semelhante ao cenáculo do movimento carismático. Enfim, o que procuramos demonstrar é que a
devoção à Mãe Peregrina nasceu no mundo contemporâneo. “Filha da Primeira Guerra”, Nossa Senhora
de Schoenstatt chega aos nossos dias com a face do nosso tempo. Sua natureza flexível e autônoma em
relação ao poder sacerdotal local abre caminhos para a experiência religiosa dos vários tipos de fiéis,
desde o católico praticante mais fervoroso até o católico “de pia batismal”.
138
própria tradição vai interpretando as novas formas de expressão da religião
na sociedade... (2001a, p. 132).
Observamos que as mulheres do Perequê-Açu são capazes de reinterpretar, à luz da
tradição, uma nova devoção (a Campanha da Mãe Peregrina de Schoenstatt), clericalizada,
com valores associados à modernidade como a individualidade e a privatização do culto,
sendo a própria devoção uma releitura do ideário católico moralizante do Concílio de Trento.
Ou seja, elas elegem, com a ajuda dos acasos ocorridos em sua paróquia, esta devoção
“modernizada” como espaço de busca de reconhecimento, como um local de crítica da
“modernização”, enfatizando um dado muito importante que vem sendo destacado em
trabalhos recentes de que a crítica transformativa não nasce exclusivamente no domínio da
produção material (cf. HONNETH, 1996).
As conclusões de Honneth (1996) para o campo das lutas sociais, guardadas as
proporções que o caso exige, servem muito bem para expressar o que queremos defender
aqui. Uma das afirmações do filósofo alemão é que as lutas sociais são motivadas pela
experiência de serem negadas as condições para a formação identitária, enfatizando, desta
forma, a dimensão “moral” dos conflitos sociais que buscam, na verdade, a ampliação dos
padrões sociais de reconhecimento. Neste sentido, os meios simbólicos dos movimentos
sociais desempenham um papel crucial na projeção do desrespeito – isto é, o não
reconhecimento – contra um grupo de pessoas, contribuindo, desta maneira, para estabelecer
as condições culturais de resistência e revolta.
23
Para o caso que estudamos haveria a
necessidade de relativizar a resistência e revolta, porque, apesar de existirem em algum grau,
a devoção não é nitidamente autônoma tanto em relação ao clero local, como em relação à
igreja nacional e mundial.
24
Porém, é válido como registro de um caso no qual estes
processos, mais claramente definidos em outros contextos, se refletem, mesmo que seja com a
força e o alcance permitidos pelo caso específico.
25
23
Em uma entrevista à Folha de São Paulo Honneth comenta da seguinte maneira as suas idéias: “Tenho
em vista a continuação de uma teoria social dos potenciais de conflito originária de Marx e Sorel até o
presente. Contudo, se existe nessa tradição uma certa tendência de considerar a ‘luta’ como um conflito
de interesses já dados, procuro formular essa luta essencialmente como um conflito simbólico dos atores
sociais em busca do reconhecimento moral, ou seja, na busca simbólica de identidades morais
individuais e coletivas.” (G
ALISI FILHO, 2001, p. 6).
24
Conforme, a constatação de Maués (1995) que reproduzimos acima.
25
Defendendo uma posição aproximada à de Honneth, Agier diz que são nos espaços indefinidos entre as
escalas locais e a universal – intervalo de fronteira conturbado pela presença de múltiplas escalas, onde
os conflitos e as negociações acontecem; um nível intermediário de criação – que os sentidos da cultura
139
O conflito simbólico não significa uma dissidência ou uma contestação, mas sim
diferenças de ênfases, proporcionadas pela visão de mundo e o ethos que tendencialmente
estão presentes na rede da Mãe Peregrina em contraste com as devotas clericalizadas da
matriz. A dissidência não se afigura, justamente pelo fato da devoção à Mãe Peregrina se
inscrever, ou melhor, pelo fato dela caber numa religião ainda dominante. A busca de
reconhecimento se justifica por não se tratar de um grupo fechado em si mesmo, mas sim uma
rede aberta, permeável a elementos externos, que vai buscar sua identificação não numa longa
tradição – que não existe, frente à formação heterogênea da rede da Mãe Peregrina – mas sim
no reconhecimento externo (cf. BALANDIER, 1999, p. 169).
26
O papel do mútuo
reconhecimento constrói as duas direções da identificação relacional. De um lado, essas
devotas reconhecem o papel do clero na condução de sua fé, um papel bem delimitado por
elas, vale lembrar, e, de outro lado, esperam o reconhecimento do clero e das leigas
clericalizadas como forma de legitimação de suas práticas e por extensão como forma de
identificação enquanto católicas – ainda que de um modo peculiar.
Na realidade, nós também acabamos fazendo parte desse processo de busca
simbólica de identidade moral quando mostramos nosso interesse pela fé destas mulheres.
Uma etapa da pesquisa de campo constituiu-se na devolução da transcrição das entrevistas
que realizamos para o consentimento do uso por nossa parte. Na comunidade do Perequê-Açu,
a leitura e as observações a respeito do texto da transcrição das entrevistas orais foram muito
comentadas entre as mulheres que participaram deste trabalho. Muitas vezes, sem citar o
conteúdo, fizeram referência da entrevista nas conversas com as demais companheiras da
comunidade. Comentários sobre os vícios da linguagem oral ou, então, da imperícia em
articular corretamente aquilo que estavam querendo dizer,
27
funcionou como medida de
reconhecimento por estarem fazendo parte da pesquisa de uma universidade católica. Para
algumas devotas que compartilharam conosco a sua crença em Nossa Senhora, o fato de
participarem da pesquisa constituiu-se em mais um elemento contemporâneo de aglutinação.
Além disso, o próprio fato de pensarem – mais exatamente, organizarem um discurso – acerca
de suas crenças já produz efeitos sobre suas ações dentro do campo religioso que atuam.
Temos a consciência de que – elas sabendo ou não – estamos sendo usados como
e da identidade serão criados, através do trabalho de síntese de discursos e símbolos heterogêneos
realizado pelo agente mediador (2001, p. 21).
26
Para Honneth (1996) esse reconhecimento é mútuo, tem duas vias. O grupo busca ser reconhecido por
aqueles (ou aquilo) que ele reconhece.
27
Este último comentário foi dito a nós, talvez entre elas comentou-se a imperícia do entrevistador.
140
instrumentos de reconhecimento simbólico no empreendimento identitário lançado por estas
católicas.
3.5 A formação da rede devocional enquanto um empreendimento
identitário
Esse processo identitário, construído através de conflitos, alianças, diálogo e
concessões provenientes da relação com os outros (outros católicos da paróquia, outros
cristãos, outras gerações, outros rituais) transforma a cultura dessas mulheres, modificando
seus referenciais originais. Esse processo é muito bem percebido por Agier que observa que,
afinal, “...Essa transformação atinge os códigos de conduta, as regras da vida social, os
valores morais, até mesmo as línguas, a educação e outras formas culturais [como a religião]
que orientam a existência de cada um no mundo...” (AGIER, 2001, p. 9-10).
Em consonância com as idéias presentes no trabalho de Cardoso de Oliveira (1976),
o raciocínio de Agier resulta na constatação de que a identidade além de relacional é
contextual e situacional, ela remete a um alhures, a um antes e a um Outro e deve ser
apreendida na prática e nos relacionamentos cotidianos dos sujeitos, em seu trabalho lemos
que:
...Toda identidade, ou melhor, toda declaração identitária, tanto individual
quanto coletiva (mesmo se, para um coletivo, é mais difícil admiti-lo), é
então múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma
busca que como um fato. (A
GIER, 2001, p. 10).
Contudo, segundo este autor, se as ciências sociais descobriram que se equivocaram
ao enfatizarem o viés essencialista e absoluto da identidade, a reflexividade do conhecimento
da vida social possibilitou às sociedades reconstruírem esse viés em seus mundos,
reafirmando o caráter absoluto, autêntico e atemporal de sua identidade afirmada (ou de sua
declaração de identidade). Assistimos, assim, à emergência de movimentos identitários de
caráter étnico, racial, regional ou religioso, capazes de instaurar “novos quadros de
socialização e de expressão dos sujeitos”, criando um novo objeto para a antropologia:
141
...o dos grandes empreendimentos identitários, que tendem a substituir as
antigas ‘tribos’, as aldeias ‘perdidas’ e outras etnias ‘em via de
desaparecimento’ da etnologia clássica. [...] Assistimos então a atitudes que
se dão o ar de retornos (‘retorno à etnia’) ou de recolhimento
(‘recolhimento sobre si’, ‘recolhimento identitário’, busca de ‘raízes’)
quando, ao decodificar os processos e resultados de sua busca, descobrimos
antes inovações, invenções, mestiçagens e uma grande abertura para o
mundo presente... (A
GIER, 2001, p. 10-11).
É enquanto um empreendimento identitário que encaramos o movimento da Mãe
Peregrina. Primeiro, porque ele contém uma nova instância mediadora (as zeladoras) entre o
contexto local, onde a produção social da cultura ocorre de forma mais densa – como, por
exemplo, a associação pessoal a uma Nossa Senhora específica – e o contexto global, mais
vazio e penetrante, lugar de onde a produção coletiva da identidade retira seus elementos
essenciais, primordiais – como por exemplo, a afirmação de que Maria é uma só. Essa nova
instância vem competir com o monopólio da mediação clerical. Em segundo lugar, porque o
clero, no caso de Ubatuba, procurou retirar da nova forma devocional implantada na cidade
todos os seus elementos universalizantes – isto é, procurou desligar a devoção doméstica de
Maria do movimento de Schoenstatt, onde as mediadoras buscam sua legitimidade – para
reintroduzi-la na paróquia, agora, controlando totalmente aquilo que da doutrina universal da
igreja deve ser incorporado à devoção local ao Imaculado Coração de Maria.
Com o recurso ao fechamento, isto é, à “tribalização” da devoção, o clero tenta o
controle da fé e das almas dos fiéis. Por outro lado, com o recurso de abertura para o mercado
globalizado dos bens simbólicos – ou para um movimento globalizante, de presença midiática
no contexto local – as líderes do movimento buscam o reconhecimento de uma fé e de uma
cultura que sentem estar ameaçadas por aqueles fatores que antes chamamos modernizantes. É
interessante perceber aqui, uma similaridade com a contradição vivida pela igreja católica
institucional frente à modernidade. Balandier afirma que o Vaticano vive o constante dilema
de ter que se definir “contra a modernidade e na modernidade” (1999, p. 161). É essa
contradição que verificamos na rede da Mãe Peregrina de Ubatuba.
28
28
Cabe aqui lançar uma interrogação para futura verificação. Será que isto significa que a tradição ou a
religiosidade popular pode ser analisada como uma instituição? De fato, o que encontramos em ambos
os casos é a presença de dois tempos e de duas lógicas, a imobilidade e a dinâmica. Talvez a diferença
encontre-se na ênfase reservada a um ou a outro pólo; a instituição com a imobilidade mais evidente e a
religiosidade popular mais aberta às mudanças.
142
Para encerrar queríamos trazer para dialogar com esta noção de empreendimento
identitário as idéias de Velho (1999) que estudou o individuo e a cultura em contextos
urbanos, especialmente entre a classe média. Pela importância de suas observações, pedimos
licença ao leitor para incorporar mais uma citação entre as demais.
Em uma sociedade complexa moderna os mapas de orientação para a vida
social são particularmente ambíguos, tortuosos e contraditórios. A
construção da identidade e a elaboração de projetos individuais são feitas
dentro de um contexto em que diferentes ‘mundos’ ou esferas da vida social
se interpenetram, se misturam e muitas vezes entram em conflito. A
possibilidade da formação de grupos de indivíduos com um projeto social
que englobe, sintetize ou incorpore os diferentes projetos individuais,
depende de uma percepção e vivência de interesses comuns que podem ser
os mais variados, como já foi mencionado – classe social, grupo étnico,
grupo de status, família, religião, vizinhança, ocupação, partido político,
etc. A estabilidade e a continuidade desses projetos supra-individuais
dependerão de sua capacidade de estabelecer uma definição de realidade
convincente, coerente e gratificante – em outras palavras, de sua eficácia
simbólica e política propriamente dita. (1999, p. 33).
A existência de projetos sociais entre grupos de interesses como os mencionados por
Velho é agravado pela condição de coexistência de vários destes projetos em diferentes graus
de desenvolvimento. No caso da Mãe Peregrina de Ubatuba, o processo se agrava um pouco
mais devido à presença de diversos destes grupos acima mencionados dentro da rede de
devoção. Há diferentes projetos de diferentes grupos. É verdade que apenas os projetos
representados pelas lideranças do movimento estão sendo enunciados, mas de qualquer forma,
essa realidade mina a força do movimento. Pudemos constatar ao final do trabalho de campo
que, apesar da riqueza de símbolos e da plasticidade dos mesmos para lidarem com
fenômenos de outras esferas da vida, as redes da Mãe Peregrina vêm conseguindo sobreviver
às duras penas. Talvez, o momento deste recurso de identificação tenha se esgotado quando a
oposição do clero foi sendo acomodada e relativizada pelo tempo. A menos que um novo
fator dinamize o campo religioso e, principalmente, a devoção à Mãe Peregrina, a sua
tendência é atrofiar-se. Esse fator pode vir de agentes externos ao catolicismo, de agentes da
devoção mariana, dos meios de comunicação social, do próprio clero da paróquia, ou pode
simplesmente não vir. No entanto, certamente, o processo de autoprodução do consumo dos
bens de serviço religioso vivenciado pelas devotas populares de Nossa Senhora não se
143
interromperá. Ele encontrará novas brechas por onde emergir: novos elementos de crença para
sincretizar-se ou, simplesmente, nova face de Maria onde se apoiar.
Conclusão
s aparições da Virgem Maria em Piedade dos Gerais foram comparadas com as
aparições de Nossa Senhora Rainha da Paz em Medjugorje (SEGATO, 2000). A Rainha
da Paz na época do estudo da autora se diferenciava da Virgem brasileira por estar globalizada
pelo movimento carismático católico e por representar um “emblema” político contrastivo.
Conforme a argumentação de Segato nessa análise comparativa, podemos afirmar que o
Imaculado Coração de Maria, sob o controle do clero, serve como emblema de identificação
política frente aos protestantes, enquanto a Mãe Peregrina tornou-se um símbolo vivo para as
devotas do Perequê-Açu, que relaciona e harmoniza as contradições que as devotas vivem
cotidianamente (2000, p. 11-13). Mesmo considerando que se trata, inicialmente, de uma
devoção européia que serve a interesses específicos do clero mais conservador e que se
difunde, também, no bojo de uma religiosidade conservadora e em conluio com
reivindicações de grupos urbanos e abastados, verifica-se que, no caso de Ubatuba, ela
adquiriu uma relativa autonomia, tanto do clero local como da direção do movimento, que
permitiu sua “autoctonização” ou “localização” mais efetiva, abrindo caminho para uma
autoprodução em relação a um Outro” (SEGATO, 2000, p. 10) que envolveu, eletivamente,
crenças e valores não necessariamente intercambiáveis.
A força desta afirmação ganha mais intensidade quando lembramos aquilo que
Brandão (1986a, p. 297-298) já havia dito em relação às classes populares e que Woodhead
(2002, p. 2) retoma para o caso das mulheres: a religião oferece um espaço social que não
seria disponível às mulheres de outra forma. Um lugar onde seus papéis como as que cuidam
A
145
dos lares, viúvas e mães podem ser legitimados, articulados e recompensados. Além disso,
esse lugar propicia meios de acumulação de capital social e cultural – tanto quanto as
mulheres conquistam espaços fora da atuação dos padres, lembra Rosado Nunes (1994, p.
199).
1
Aquele espaço criado pela circulação das capelinhas da Mãe Peregrina também tem a
ver com a luta de interesses profanos, com as esperanças de reconhecimento e com a salvação
daquelas mulheres – e dos subalternos em geral. No bojo desse processo de identificação está,
não podemos esquecer, aquela operação de união e co-justificação do ethos e da visão de
mundo, que é sintetizado nos símbolos religiosos, símbolos vívidos e densos de significado
(cf. GEERTZ, 1978, p. 103-104).
Os sentimentos e práticas do culto a Nossa Senhora levantados na etnografia
levaram-nos para a constatação de que o culto aos santos, de um modo geral, vem passando
por um processo de atualização, ou de modernização, como preferimos chamar, que não tem
representado uma secularização da crença religiosa, no sentido da racionalização da fé, como
era de se esperar segundo os estudos clássicos das ciências sociais da religião no Brasil. Esta
modernização tem se caracterizado, menos pelas dicotomias moderno e arcaico ou racional e
irracional (mágico), e mais pela criação de espaços alternativos e complementares de
exercício da crença. Sendo tais espaços nitidamente individualizados e individualizantes.
Segundo Paula Montero (1999, p. 359) “o crescimento de um protestantismo
marcadamente mágico e taumatúrgico obriga a repensar as bases da postulada relação entre
protestantismo e modernidade”. No nosso entendimento, essa reformulação deve ser
estendida também no que tange a relação entre culto aos santos “renovado” e modernidade. O
crescimento urbano dos cultos aos santos de natureza mágica e taumatúrgica não abaliza a
pretensa relação entre abstração/racionalização das crenças e a modernidade.
Nesse sentido, a modernização significa uma continuidade, talvez uma re-emergência
da tradição, uma vez que o culto privado (familiar) aos santos era uma das características do
catolicismo devocional ibérico instalado no Brasil e alterado pelos encontros e embates com
as culturas indígenas e africanas. Mas, não se trata simplesmente de uma cópia, de uma
1
Sabemos quão antiga é esta situação de negação do espaço público às mulheres. Peter Brown observou
que já no período inicial do cristianismo, na antiga sociedade romana, o culto aos santos era um espaço
privilegiado para a expressão religiosa das mulheres – e, da mesma maneira, um elemento de conflito
com a elite religiosa. O culto aos santos nasceu como culto aos mártires cristãos nos cemitérios da
periferia das cidades do Império Romano. Naquela sociedade as mulheres tinham muito pouco espaço
para a atuação nos cultos religiosos oficiais, tendo encontrado no culto fora dos muros das cidades a
oportunidade para expressarem a sua fé, muitas vezes classificada como superstição ou ignorância pela
elite religiosa (cf. B
ROWN, 1981).
146
transposição, afinal, os espaços comunitários de vivência da fé – as capelas, os santuários, as
associações leigas – também foram alterados. Não é uma cópia porque, da mesma forma, as
referências coletivas desta fé individualizada – não podemos esquecer que as práticas
culturais, por mais idiossincráticas que possam parecer, sempre têm ancoradouro nas teias de
significados tecidas pelo grupo social – apresentam-se através dos meios de comunicação de
massa, ao invés de se apresentarem dentro de esquemas locais e contextos regionais muito
mais envolventes para o indivíduo.
Por outro lado, como vimos com as redes de devoção da Mãe Peregrina em Ubatuba,
as referências da sociedade de massas nunca são interpretadas de forma unívoca ou absoluta,
ela sempre recebe seu significado na relação com a cultura local. Isto é, a significação das
crenças universais, assim como a identidade, é contextual e relacional. Em Ubatuba a devoção
à Mãe Peregrina de Schoenstatt, diversamente de outros contextos, tem o sentido de um lugar
complementar à religião paroquial e de um lugar que visa preencher uma lacuna na identidade
religiosa de suas devotas.
Foi esse último dado que nos autorizou a pensar em um conflito simbólico para
interpretar a devoção mariana naquela cidade. Um conflito simbólico que está presente, faz
parte constituinte do catolicismo, conforme percebemos na análise de algumas obras sobre as
devoções no Brasil. Assim como, no caso de Ubatuba, aponta para a busca simbólica de
identidades morais pessoais e coletivas.
Como vimos, este conflito é explicitado materialmente porque está relacionado a
outros conflitos de ordem geral, tais como o atual contexto de pluralidades do campo religioso
e o avanço de novos lugares profanos construtores de sentidos diversos daquele da esfera
religiosa. Dessa maneira, a devoção mariana deve ser entendida considerando-se as
características culturais do nosso tempo, como bem mostrou Almeida (2001) em seu estudo e
como tentamos mostrar nesta dissertação.
O processo de reinvenção presente na devoção da Mãe Peregrina por nós estudada é
um modo de tentar manter invariável alguns aspectos da vida cotidiana e do mesmo jeito uma
forma de identificação frente às novas personagens e vivências da condição pós-moderna da
sociedade e da religião. A rede de devoção à Mãe Peregrina em Ubatuba é uma dupla
reinterpretação. Numa direção, reinterpreta o catolicismo clerical a partir dos valores do
catolicismo devocional tradicional. Na outra, reinterpreta o culto aos santos tradicional a
partir dos valores do catolicismo de massa, individualizante, ao lado da racionalidade urbano-
14
7
industrial e da mistificação da vida urbana. A rede formada pelas devotas é o resultado mais
evidente dessa dupla reinterpretação. O caráter que ela assume em Ubatuba é fruto da
autoprodução do consumo de bens religiosos disponíveis no universo das devotas católicas
que estudamos.
Concluindo esse argumento é preciso reafirmar que as mulheres, como os demais
grupos subalternos, não são consumidoras passivas da ação e dos bens simbólicos da igreja,
elas re-elaboram, recusam ou aceitam parcialmente e criticamente estas ações e bens. Muito
mais na religião católica, cujo caráter de ambigüidade e tensão são constitutivos do seu campo
(MAUÉS, 1995, p. 496-497). Só a aceitação desse elemento é que permite entender como algo
aparentemente contraditório, como tomar uma devoção expressiva do clericalismo puritano e
mais conservador do início do século XX, serve para os propósitos de um grupo em busca de
reconhecimento frente ao projeto de unificação paroquial das crenças religiosas. O conceito
weberiano de “ambigüidade cultural
2
auxilia o entendimento de como os usos e os sentidos
das devoções aos santos, às vezes, têm suas direções completamente alteradas pelas
particularidades locais que estruturam o ethos e a visão de mundo de uma dada coletividade.
Vejamos de que maneira esse processo de reinvenção ou reatualização é ambíguo,
indeterminado e paradoxal. No Brasil, a igreja recomenda novas devoções para resgatar o
controle dos fiéis. Por outro lado, os fiéis re-significam estas novas devoções para poderem
preservar atualizado um conjunto de elementos de suas crenças tradicionais que ainda fazem e
dão sentido. Em Ubatuba, as devotas da Mãe Peregrina elegem elementos “modernizantes”
(valorização do individualismo, presença na mídia, privatização/internalização da crença) para
reavivar o culto a Nossa Senhora, mas ao mesmo tempo enfatizam valores tradicionais (Maria
como modelo de submissão feminina, moralismo de conduta e comportamento retrógrados,
preservação da “pureza” ritual) para se questionar as mudanças religiosas no interior da
instituição.
Do lado dos fiéis (fiéis populares, segundo a classificação que assumimos), é óbvio
que dentro desta dinâmica não há uma sobrevivência da totalidade das crenças nem uma
renovação total das mesmas; busca-se no passado a sanção das novas práticas assumidas. Já
do lado da igreja, a coisa acontece de maneira diferente; aqui se busca a imutabilidade, a
imposição de práticas imutáveis (e universais). A distinção conceitual de Hobsbawm &
2
Para uma discussão deste conceito formulado por Weber remetemos o leitor para o texto de Souza
(1999) onde encontramos uma discussão deste elemento fundamental da teoria weberiana aplicado ao
entendimento da especificidade brasileira.
148
Ranger (1984, p. 10) entre “tradição inventada” e “costume” ainda é uma das melhores
chaves para entender esse complexo jogo de manutenção (tradição) e inovação (invenção) que
acompanha o tempo todo a formação da concepção de mundo dos sujeitos e da instituição.
Segundo estes autores, a invenção da tradição é a tentativa de estruturar de maneira invariável
ao menos alguns aspectos da vida social contra as constantes mudanças do mundo moderno.
Já o costume tem a função de emprestar ao novo a sensação de continuidade.
...O objetivo e a característica das ‘tradições’, inclusive das inventadas, é a
invariabilidade. O passado real ou forjado a que elas se referem impõe
práticas fixas (normalmente formalizadas), tais como a repetição. O
‘costume’, nas sociedades tradicionais, tem a dupla função de motor e
volante. Não impede as inovações e pode mudar até certo ponto, embora
evidentemente seja tolhido pela exigência de que deva parecer compatível
ou idêntico ao precedente. Sua função é dar a qualquer mudança desejada
(ou resistência á inovação) a sanção do precedente, continuidade histórica e
direitos naturais conforme o expresso na história... (H
OBSBAWM &
R
ANGER, 1984, p. 10).
A igreja e as devotas estão se “modernizando”, mas de modos e com objetivos
distintos. A igreja quer se atualizar para manter e aumentar os seus adeptos e a sua autoridade
(ou seja, atualiza para manter o status quo). Ela quer abarcar, na medida do possível – isto é,
sem contrariar dogmas e posicionamentos oficiais do Vaticano – novas experiências
religiosas. Por outro lado, seus adeptos, que vivenciam o mundo para além das fronteiras
sagradas da igreja, também se modernizam (introjetam valores socialmente destacados, como
o individualismo e o estilo de vida urbano) buscando compreender as transformações culturais
da sociedade. Isto é, procuram dar uma solução de continuidade aos novos hábitos,
procurando acomodar aquilo que é essencial para dar sentido às suas vidas. Essas estratégias
podem se imbricar, mas não necessariamente. Certas vezes, o esforço dos adeptos para se
acomodar às exigências dos novos tempos (trabalho, consumo, autonomia, etc.) entra
diretamente em choque com os interesses eclesiais. Por outro lado, as aberturas e concessões
que a igreja faz para a realidade corrente podem contrariar as expectativas dos fiéis e os
elementos culturais e identitários que são a chave para a explicação do mundo e de sua
ordenação. No entanto, não queremos afirmar com isto que há um conjunto de elementos
culturais imutáveis que ordenam a experiência dos sujeitos. Na realidade, estes elementos
estão em constante processo de recombinação e alternam-se conforme as circunstâncias
enunciadas na dinâmica das relações sociais. Portanto, se constatamos que naquele momento
149
há incompatibilidade entre clero e leigos em torno de uma devoção, isto poderá ser
solucionado no momento posterior. Aliás, segundo pudemos constatar nas últimas visitas a
campo, a fricção devocional caminhava para um abrandamento devido a uma série de fatores,
alguns enunciados acima, como por exemplo, a ação do tempo que exerce uma relativização
sobre o ocorrido, a mudança de interesses e/ou táticas da principal leiga envolvida (Vera) e a
ausência das referências midiáticas da Mãe Peregrina.
Talvez, ao longo do trabalho pode ter parecido que assumimos uma relação entre
protestantismo (pietismo) e racionalidade, e entre clericalismo renovado e racionalidade. No
entanto, ao contrário, não podemos esquecer que estes dois modos de religião apresentam
formas diversas de concepção do mundo, cujo gradiente vai da racionalidade da conduta ética
até às ações de caráter claramente mágico – vide os exemplos da IURD e do padre Marcelo
Rossi (vide a própria Mãe Peregrina). A “racionalização” ou não, não é determinada pela
proximidade dos valores clericais. Então, qual(is) seria(m) o(s) fator(es) que a determina(m)?
Não seria a educação formal? A identidade? O reconhecimento? Talvez. Para explicar esse
processo de determinação da experiência religiosa teríamos que ter em conta a trajetória
individual das devotas, o poder político local – já que Ubatuba guarda muito da forma política
tradicional em que o poder sagrado caminha próximo do poder político secular –
3
as
alternativas disponíveis para a ação social e religiosa dos indivíduos e grupos de interesse.
De qualquer modo, a proximidade do clero, ao lado do pertencimento a grupos
associados à elite política, econômica e religiosa, é mais presente nas redes do Imaculado
Coração de Maria do centro. Acreditamos que para as devotas clericalizadas do Imaculado
Coração de Maria a dicotomia “nós e os outros” realiza-se na diferenciação extragrupal. Ou
seja, o seu ponto de referência é o seu grupo, as pessoas com quem se identificam. É essa
referência que lhes permite, por exemplo, avaliar que os núcleos da Legião de Maria da
comunidade matriz de Ubatuba seguem corretamente os preceitos do movimento, enquanto
que os núcleos dos bairros periféricos ignoram tais preceitos – e por isso precisam ser
tutelados pela direção regional da Legião de Maria.
Por outro lado, para as devotas da Mãe Peregrina, mais identificadas com a
religiosidade popular, aquela dicotomia realiza-se dentro do grupo. Pois, nesse caso, a
referência fundamental é a humanidade, ainda que a versão da humanidade localizada em seu
3
Em nossa análise, porém, esta esfera, por questão de foco, não foi privilegiada, permanecendo latente
nas discussões apresentadas.
150
contexto. Desse modo, é justificável a afirmação de que todos são vistos como perfeitos por
Nossa Senhora, uma vez que todos são seus filhos e de Deus. Essa leitura da condição
humana que iguala a todos enquanto filhos de Maria permite pensar que todos são alcançáveis
pela graça divina e passíveis do perdão divino. As diferenças existentes seriam apenas
aparentes, uma variação da forma como se reconhece e se venera o poder absoluto. Por isso, a
noção de complementaridade dos rituais religiosos se repete em diversas falas das mulheres
que entrevistamos.
Nesta época de radicalização da modernidade – denominada de sobremodernidade ou
pós-moderna – a possibilidade de recombinar elementos religiosos, reunidos provisoriamente
ou não segundo a formação atual das relações sociais das devotas da Mãe Peregrina e distante
de um controle mais radical da hierarquia católica, funciona como um mecanismo para lidar
com o dinamismo da modernidade, com a descontextualização das relações sociais e com a
expansão tempo-espacial (GIDDENS, 1991). Essa autoprodução a partir dos bens e serviços
religiosos disponíveis cria um porto seguro, o lugar desde onde aquelas mulheres restituem
significado a suas vidas e buscam recriar um universo de identificação religiosa.
Considerar este evento de reapropriação cultural como um empreendimento de
identificação, que contextualiza algumas referências católicas universais (e, enquanto tais,
esvaziadas de significado cultural), permite-nos perceber que o ponto de conflito entre o clero
e as devotas da Mãe Peregrina ocorre porque o primeiro quer monopolizar a mediação entre a
escala global e a escala local. Porém, o que se verifica na condição pós-moderna da religião é
que as “grandes narrativas” e seus representantes abrem cada vez mais espaço para a
criatividade das múltiplas e fragmentadas buscas identitárias (cf. AGIER, 2001, p. 23),
formadoras não só de identidades em processo, mas também de culturas e religiosidades,
igualmente em construção.
É este constante jogo de negociações e de conflitos simbólicos, quando enunciados
por lideranças leigas e reconhecidos pelos grupos envolvidos, que permite o processo de re-
criação cultural das identidades católicas das devotas da Mãe Peregrina em Ubatuba (cf.
MONTERO, 1999). A falta de harmonia que envolveu a introdução da devoção à Mãe
Peregrina e a criação da devoção ao Imaculado Coração de Maria em Ubatuba denuncia, pois,
o contínuo processo de interação entre as diferentes religiosidades do catolicismo, assim como
das formas culturais de um modo geral. Por isso, é importante destacar a alegação de Montero
(1999, p. 350) que procuramos seguir na construção deste estudo. Devido à natureza
151
complexa e incerta de movimentos como as redes de sociabilidade formadas pela devoção à
Mãe Peregrina, não podemos tratar estes movimentos enquanto totalidades encapsuladas, nem
tampouco cair na tentação de propor generalizações, porque são movimentos
circunstanciados.
Para encerrar, antes que qualquer conclusão, o nosso objeto de estudo trouxe-nos
uma nova interrogação. Deveríamos nos perguntar se não está na hora das ciências sociais e
das ciências das religiões demarcarem objetos de estudos que abarquem a possibilidade não só
da pesquisa e teoria interdisciplinares, mas também, e sobretudo, da abordagem simultânea de
algumas das várias religiões do Brasil. Montero (1999, p. 360-362) chama a atenção para o
fato de que a abordagem da literatura antropológica e sociológica sobre as religiões brasileiras
tem se dividido teoricamente e avançado segundo a religião em foco. Nesse sentido, um
objeto que consiga superar a simples análise comparativa destas religiões, poderia produzir
resultados expressivos se aproveitasse os ganhos mais claramente enunciados de cada
conjunto de estudos das religiões brasileiras. Esse trabalho que se encerra foi uma tentativa de
minimamente aproveitar resultados obtidos de estudos de algumas religiões, além do
catolicismo popular, para entender um fenômeno significativo da sociedade brasileira, mas
com o olhar focado num desdobramento sui generis que ocorreu numa paróquia específica.
Acreditamos que esse recurso foi muito útil para a compreensão do objeto. O movimento da
Mãe Peregrina (uma forma de culto a Nossa Senhora de origem não-ibérica) oficialmente
incentiva uma conduta moral exageradamente conservadora e uma ética de conduta social
muito semelhante à protestante (associada a um sentimento de eleição, como vimos). Mas em
Ubatuba recebe outros contornos. Ali é sincretizado às crenças populares e tradicionais (de
origem ibérica) presentes nos cultos aos santos e a Nossa Senhora. Do mesmo modo, na
comunidade do Perequê-Açu foi utilizado, em alguns casos para uma conversão intra-
religiosa; além de ter sido objeto de crenças populares ecumênicas, juntando o que parece
pouco provável: uma fé protestante a uma veneração da imagem de Maria.
Abrimos uma fresta. Estamos convencidos que um exercício mais sistemático de
investigação e reunião dos resultados profícuos dos estudos das várias disciplinas que
pesquisam as religiões do Brasil pode render muito mais. Fica conosco a vontade e o projeto
de avançar nesta direção em trabalhos futuros.
Referências Bibliográficas
ABUMANSSUR, Edin S. Moradas de Deus: representação arquitetônica do espaço sagrado
entre protestantes e pentecostais. São Paulo: PUC-SP, 2001 (Tese de Doutorado, Depto. de
Ciências Sociais, 2001).
AGIER, Michel. Distúrbios Identitários em tempos de Globalização. Mana, Rio de Janeiro,
v.7, n. 2, p. 7-33, out. 2001. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=
sci_arttext&pid=S0104-93132001000200001&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 02 set. 2002.
AGOSTINHO, Pedro. Imagem e peregrinação na cultura cristã: um esboço introdutório.
Salvador: Centro Editorial e Didático da UFBA, 1986. (ISBN 85.232.0034-7).
ALMEIDA, Tania M. C. Uma Maria brasileira: um estudo sobre catolicismo popular.
Brasília: UnB, 2001 (Tese de Doutorado, Depto. de Antropologia, 2001).
AMARAL, Rita de C. de M. Peixoto. Povo-de-santo, povo de festa: estudo antropológico do
estilo de vida dos adeptos do Candomblé paulista. São Paulo: USP. 1992 (Dissertação de
Mestrado, Depto. de Antropologia, 1992).
BALANDIER, Georges. Os retornos e os contornos do sagrado. In: BALANDIER, G. O
Dédalo: para finalizar o século XX. São Paulo: Bertrand Brasil, 1999. p. 149-187. (ISBN
85.286.0716-X).
BANDEIRA, Marina. A Igreja católica na virada da Questão Social (1930-1964): Anotações
para uma História da Igreja no Brasil (Ensaio de interpretação). Rio de Janeiro: Vozes :
Educam, 2000. (ISBN 85.7261.008-1).
BARNES, J. A. Redes sociais e processo político. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org).
Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo: Global, 1987. p. 159-193.
(ISBN não/identificado)
BEINERT, Wolfgang. Perspectivas teológicas da piedade Mariana. Em VVAA. O culto a
Maria hoje. São Paulo: Ed. Paulinas, 1979. (ISBN n/i).
153
BEOZZO, José Oscar. Irmandades, santuários, capelinhas de beira de estrada. Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 37, n. 148, p. 741-758, 1977. (ISSN 0101-8434).
BERGER, Peter L. O Dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião. São
Paulo: Paulinas, 1985. (ISBN 85.05.00240-7).
BORGES, Sherrine M. N. Maternidade e mães. In: LABRA, M. E. Mulher, saúde e sociedade
no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1989. cap. 4, p. 57-68. (ISBN n/i).
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: BOURDIEU, P. A economia
das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992. cap. 2, p. 27-78. (ISBN 85.273.0140-7).
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória/Sertão: cenários, cenas, pessoas e gestos nos sertões
de João Guimarães Rosa e de Manuelzão. São Paulo: Cone Sul : Uniube, 1998. (ISBN
85.858.9809-7)
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Crença e identidade, campo religioso e mudança cultural. In:
SANCHIS, P. (org.). Catolicismo: unidade religiosa e pluralismo cultural. São Paulo: Loyola,
1992. p. 7-74. (ISBN 85.15.00642-1).
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. 2. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1986a. (ISBN n/i).
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Identidade e etnia: construção da pessoa e resistência
cultural. São Paulo: Brasiliense, 1986b. (ISBN n/i).
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Memória do Sagrado: estudos de religião e ritual. São Paulo:
Paulinas, 1985. (ISBN 85.05.00238-5).
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Sacerdotes de viola. Petrópolis: Vozes, 1981. (ISBN n/r)
BROWN, Peter R. L. The cult of the saints: its rise and function in Latin Christianity.
Chicago: The University of Chicago, 1981. (ISBN 02.26.07622-9)
CARVALHO, José Jorge de. A religião como sistema simbólico: uma atualização teórica.
Série Antropologia, n. 285. Brasília: Instituto de Ciências Sociais/UnB, 2000.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes do Fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
(ISBN 85.326.1148-6).
CONSORTE, Josildeth Gomes & COSTA, Márcia Regina da (orgs.). Religião, política,
identidade. Série Cadernos PUC. São Paulo, n. 33, 1988. (ISSN 0102-2040).
CUNHA, Manuela Carneiro da. Religião, comércio e etnicidade: uma interpretação preliminar
do catolicismo brasileiro em Lagos no século XIX. In: CUNHA, M. C. da. Antropologia do
Brasil: mito, história, etnicidade. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. (ISBN n/i).
154
DELUMEAU, Jean. De religiões e de homens. Colaboração: Sabine Melchior-Bonnet. São
Paulo: Loyola, 2000. (ISBN 85.15.01927-2).
DURKHEIM, Emile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 2000 [1968]. (ISBN 85.336.0515-3).
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes,
1992. (ISBN 85.336.0053-4)
FILORAMO, Giovanni & PRANDI, Carlo. As ciências das religiões. São Paulo: Paulus,
1999. (ISBN 85.349.1460-5).
GALISI FILHO, José. Escola de Frankfurt: a nova geração. Folha de São Paulo, São Paulo,
22 jul. 2001, Mais!, p. 4-7.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
(ISBN 85.7110.588-X).
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis:
Vozes, 1997. (ISBN 85.326.1932-0).
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1978.
(ISBN n/i).
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. (ISBN
85.7139.022-3)
GUTILLA, Rodolfo Witzig. A Casa do Santo & o Santo de Casa: um estudo sobre a devoção
a São Judas Tadeu, do Jabaquara. São Paulo: PUC-SP, 1993. (Dissertação de Mestrado,
Depto. de Ciências Sociais, 1993).
HOBSBAWM, Eric & RANGER, Terence (orgs.). A invenção das tradições. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1984. (ISBN n/i).
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo : Cia das Letras, 1995.
(ISBN 85.7164.448-9)
HONNETH, Axel. The struggle for recognition: the moral grammar of social conflicts.
Cambridge, MA: The MIT Press, 1996. (ISBN 0.262.58147-7).
HOORNAERT, Eduardo. A vida do povo. In: HOORNAERT, E. et. al. História da Igreja no
Brasil: ensaio de interpretação a partir do povo. Primeira época. Tomo II, v. 1. 3. ed.
Petrópolis: Vozes; São Paulo: Paulinas, 1983. Cap. 4, 3
o
Período, p. 368-402. (ISBN n/i).
155
IBGE. Censo Demográfico 2000. Sinopse Preliminar e Resultados do Universo. Cidades@.
Temas. Disponível em: <http://www.ibge.net/cidadesat/xtras/perfil.php?nomemun=Ubatuba
&codmun=355540&t...>. Acesso em: 01 jun. 2002.
JOHNSON, Paul C. Kicking, stripping, and re-dressing a saint in black: visions of public
space in Brazil’s recent holy war. History of Religions, Chicago, Ill, v. 37, n. 2, nov. 1997.
(ISSN 0018-2710).
KUPER, Adam. Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002. (ISBN 85.7460.146-
2).
LOPES, José Rogério. Os caminhos da identidade nas ciências sociais e suas metamorfoses na
psicologia social. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, n. 14, v. 1, p. 7-27, jan./jun. 2002.
(ISSN 0102-7182).
LOPES, José Rogério. A imagética da devoção: a iconografia popular como mediação entre a
consciência da realidade e o ethos religioso. Relatório de pesquisa final apresentado à
FAPESP, Taubaté, 2000a. Digitado.
LOPES, José Rogério. Políticas sociais e o enfrentamento do reordenamento institucional e
público em regiões de desenvolvimento da sociedade brasileira. Relatório de pesquisa
apresentado à FAPESP, Taubaté, SP, 2000b. Digitado.
MANUAL de orientações práticas (Campanha da Mãe Peregrina de Schoenstatt). 7. ed.
Atibaia, 2000. (ISBN n/i).
MARCÍLIO, M. Luiza. Caiçara: terra e população. Estudo de demografia histórica e da
história social de Ubatuba. São Paulo: Paulinas : CEDHAL, 1986. (ISBN 85.050.0523-6).
MARTINS, José de Souza. A sociabilidade do homem simples: cotidiano e história na
modernidade anômala. São Paulo: HUCITEC, 2000. (ISBN 85.271.0519-5).
MAUÉS, Raymundo Heraldo. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular e controle
eclesiástico. Um estudo antropológico numa área do interior da Amazônia. Belém: Cejup,
1995. (ISBN 85.338.0301-X).
MENSAGEM da Aliança de Amor. 2. ed. Atibaia: Movimento Apostólico de Schoenstatt,
[199?]. (ISBN n/i).
MINAYO, Maria C. de Souza. Representações da cura no catolicismo popular. In: ALVES, P.
C. & MINAYO, M. C. de S. (orgs.). Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro:
Fiocruz, 1994. cap. 4, p. 57-71. (ISBN 85.85676.07-8).
MONTERO, Paula.
Religiões e dilemas da sociedade brasileira. In: BARROS, S. M. P. de
(org.). O que ler na ciência social brasileira (1970-1995). v. 1. São Paulo: Anpocs : Capes,
1999. p. 327-367. (ISBN 85.854.0828-6).
156
MONTERO, Paula. Magia, racionalidade e sujeitos políticos. Revista Brasileira de Ciências
Sociais, São Paulo, ano 9, n. 26, out. 1994. (ISSN 0102-6909).
NEGRÃO, Lísias Nogueira. Refazendo antigas e urdindo novas tramas: trajetória do sagrado.
Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 63-74, 1997. (ISSN 0100-8587).
NEUMANN, Erich. A grande Mãe: um estudo fenomenológico da constituição feminina do
inconsciente. 9. ed. São Paulo: Cultrix, 1999. (ISBN 85.316.0497-4).
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Adeus à sociologia da religião popular. Religião &
Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 43-62, 1997. (ISSN 0100-8587).
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função
do catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985. (ISBN n/i).
OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de. Catolicismo popular e romanização no Brasil. Revista
Eclesiástica Brasileira, Petrópolis, v. 36, n. 141, p. 131-141, 1976. (ISSN 0101-8434).
OLIVEIRA, Roberto Cardoso de. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira,
1976. (ISBN n/i).
ORO, Ari Pedro. Avanço pentecostal e reação católica. Petrópolis: Vozes, 1996. (ISBN
85.326.1741-7).
ORO, Ari Pedro & SÉMAN, Pablo. Os pentecostalismos nos países do Cone-Sul: panorama e
estudos. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 43-62, 1997. (ISSN 0100-8587).
PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos: seu papel na história da cultura. São Paulo:
Cia das Letras, 2000. (ISBN 85.7164.997-9).
PÉREZ-AGOTE, Alfonso. The role of religion in the definition of a symbolic conflict.
Religion and the Basque Problem. Social Compass, Louvain, BE, n. 33, v. 4, p. 419-435,
1986. (ISSN 0037-7686).
PIERUCCI, A. F. & PRANDI, R. A realidade social das religiões no Brasil: religião,
sociedade e política. São Paulo: FFLCH-USP : HUCITEC, 1996. (ISBN 85.271.0374-5).
PRANDI, Reginaldo. Um sopro do espírito: a renovação conservadora do catolicismo
carismático. 2. ed. São Paulo: EDUSP : FAPESP, 1997. (ISBN 85.3140.391-X).
ROSADO NUNES, Maria José F. Women, family and Catholicism in Brazil: the issue of
power. In: HOUSEKNECHT, Sharon K. and PANKHURST, Jerry G. (eds.). Family, religion,
social change in diverse societies. New York, Oxford : Oxford University Press, 2000. p. 347-
362. Citação de versão em português, não publicada.
15
7
ROSADO NUNES, M. J. Fontelas. De mulheres, sexo e igreja: uma pesquisa e muitas
interrogações. In: COSTA, A. de O. & AMADO, T. (orgs.). Alternativas Escassas: saúde,
sexualidade e reprodução na América Latina. São Paulo: Editora 34 : Prodir/FCC, 1994. p.
175-203. (ISBN 85.85490.40-3).
ROSENDAHL, Zeny. Espaço e religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro: UERJ :
NEPEC, 1996. (ISBN 85.858.8110-0).
SANCHIS, Pierre. O Campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In:
HOORNAERT, Eduardo (org.). História da Igreja na América latina e no Caribe (1945-
1995): O debate metodológico. São Paulo: CEHILA / Petrópolis, RJ: Vozes, 1995. (ISBN
85.326.1480-9).
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. Revista de
Antropologia, São Paulo, v. 37, p. 145-181, 1994. (ISSN 0034–7701).
SANCHIS, Pierre. Arraial: Festa de um povo: as romarias portuguesas. 2.ed. Lisboa :
Publicações Dom Quixote , 1992. (ISBN 97.220.0116-7).
SANCHIS, Pierre. Festa e religião popular: as romarias de Portugal. Revista de Cultura
Vozes, Petrópolis, ano 73, v. 68, n. 4, maio 1979. (ISSN 0100-7076).
SCHOENSTATT. Estructura. Disponível em: <http://www.schoenstatt.org/mov/estructu.
htm>. Acesso em: 31 dez. 1999.
SEGATO, Rita Laura. Las dos vírgenes brasileñas: local y global en el culto mariano.
Colaboração: Tânia M. C. de Almeida e Mônica Pechincha. Série Antropologia, n. 271.
Brasília: Instituto de Ciências Sociais/UnB, 2000.
SEGATO, Rita Laura. Formações de Diversidade: nação e opções religiosas no contexto da
globalização. In: ORO, A. P. & STEIL, C. A. (orgs.). Globalização e Religião. Petrópolis:
Vozes, 1997. p. 219-248. (ISBN 85.326.1846-4).
SETTI, Kilza. Ubatuba nos Cantos das Praias: estudo do caiçara paulista e de sua produção
musical. São Paulo: Ática, 1985. (ISBN n/i).
SILVA, André Luiz da. A Mãe Peregrina e o caráter de transformação do arquétipo do
feminino. Último Andar, São Paulo, 2003. (no prelo). (ISSN 1415-899X).
SOUZA, Jessé. A ética protestante e a ideologia do atraso brasileiro. In: SOUZA, J. (org). O
malandro e o protestante: a tese weberiana e a singularidade cultural brasileira. Brasília:
Editora da UnB, 1999. p. 17-54. (ISBN 85.230.0562-5).
158
STEIL, Carlos Alberto. Aparições marianas contemporâneas e carismatismo católico. In:
SANCHIS, Pierre (org.). Fiéis & Cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de
Janeiro: EdUerj, 2001a. p. 117-146. (ISBN 85.7511.019-5).
STEIL, Carlos Alberto. Catolicismo e cultura. In: VALLA, Victor V. (org.). Religião e
cultura popular. Rio de Janeiro: DP&A, 2001b. p.9-40. (ISBN 85.7490.106-7).
STEIL, Carlos Alberto. O sertão das romarias: um estudo antropológico sobre o santuário de
Bom Jesus da Lapa – Bahia. Petrópolis: Vozes, 1996. (ISBN 85.326.1744-1).
STEIL, Carlos Alberto. Aparições de Nossa Senhora, tradição e atualidade. Revista Grande
Sinal, Petrópolis, ano 49, n. 5, p. 545-555, set.-out. 1995. (ISSN n/i).
TORRES-LONDOÑO, Fernando (org.). Paróquia e comunidade no Brasil: perspectiva
histórica. São Paulo: Paulus, 1997. (ISBN 85.349.1045-6).
TURNER, Victor Witter. O processo ritual: estrutura e anti-estrutura. Petrópolis: Vozes,
1974. (ISBN n/i).
TURNER, Victor Witter & TURNER, Edith. Image and Pilgrimage in Christian culture:
Anthropological Perspectives. New York: Columbia University Press, 1978. (ISBN
0.231.04287-6).
URIBURU, Esteban J. 140.000 Km a caminho com a Virgem. Santa Maria: Instituto Secular
dos Padres de Schoenstatt, 1985. (ISBN n/i).
URIBURU, Esteban J. Um profeta de Maria: biografia do Padre José Kentenich. São Paulo:
Instituto Secular dos Padres de Schoenstatt, 1983. (ISBN n/i).
VANNUCHI, Camilo. Santa Visita. Isto é, São Paulo, n. 1675, 08.nov. 2001. Disponível em:
<http://www.terra.com.br/istoe/1675/comportamento/1675_santa_visita.htm.>. Acesso em: 31
dez. 2001.
VELHO, Otávio. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia da sociedade
contemporânea. 5. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999. (ISBN 85.7110.010-1)
VELHO, Otávio. O cativeiro da besta-fera. Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 14, n. 1,
p. 4-27, 1987. (ISSN 0100-8587).
WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 1. 4. ed.
Brasília: Editora da UnB, 2000. (ISBN 85-230-0317-2).
WILLIAMS, Raymond. Cultura. São Paulo: Paz e Terra, 1992. (ISBN n/i).
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Parte II - Teoria Cultural. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 1979. (ISBN n/i).
159
WOODHEAD, Linda. Mulheres e gênero: uma estrutura teórica. Rever, São Paulo, ano 1, n.
2, 2002. Disponível em: <http://www.pucsp.br/rever/rv1_2002/t_woodhe. htm>. Acesso em:
28 ago. 2002.
ZALUAR, Alba. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo
popular. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1983. (ISBN n/i).
E-mail do autor: <interiworld@gmail.com>
Licença Creative Commons:
<a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/"><img
alt="Creative Commons License" style="border-width:0"
src="http://i.creativecommons.org/l/by-nc-nd/2.5/br/88x31.png" /></a><br /><span
xmlns:dc="http://purl.org/dc/elements/1.1/" href="http://purl.org/dc/dcmitype/Text"
property="dc:title" rel="dc:type">Faces de Maria - catolicismo, conflito simbolico e
identidade: Um estudo sobre a devo&#231;&#227;o a Nossa Senhora de Schoenstatt na
cidade de Ubatuba</span> by <span xmlns:cc="http://creativecommons.org/ns#"
property="cc:attributionName">Andre Luiz da Silva</span> is licensed under a <a
rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/">Creative
Commons Atribui&#231;&#227;o-Uso N&#227;o-Comercial-Vedada a
Cria&#231;&#227;o de Obras Derivadas 2.5 Brasil License</a>.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo