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aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o
perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore
descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra,
com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só
se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e,
se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se
despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros
sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente
imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa;
assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites
de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça
para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum
conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com
nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo,
de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos,
com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das
peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto
mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa
de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um
dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato;
mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não
subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-
encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela
mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos,
todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido
branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a
criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o
guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu.
Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
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Ao final, esse posicionamento termina por permitir que a criança se constitua como
sujeito psiquicamente autônomo, a neurotiza, cresce e decide trocar de lugar com o pai:
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha
tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o
rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de
velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de
reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão
idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a
canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio,
para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da
cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração.
Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que
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Ibidem, p. 80.