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CEP – CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS
Curso de Formação em Psicanálise
Trabalho do ciclo III
Os três tempos do Édipo em Lacan e a terceira margem do rio em Rosa
Eduardo Benzatti do Carmo
Esse breve artigo pretende relacionar algumas considerações de Hugo Bleichmar
extraídas dos capítulos um (“O complexo de Édipo e o Édipo estrutural”), dois (“O Édipo
em Lacan I”), três (“O Édipo em Lacan II”), quatro (“O conceito de falo em Freud e
Lacan”), cinco (“O Édipo em Lacan 2
o
tempo”) e seis (“O Édipo em Lacan 3
o
tempo”)
de seu livro Introdução ao estudo das perversões
1
com um conto do escritor João
Guimarães Rosa.
Através da análise que Bleichmar faz de um aspecto da teoria Lacaniano
percebemos que para Lacan o conceito de Édipo é estrutura (subjetiva), pois não há
posições definidas na relação mãe filho pai (as posições se definem à medida que o
falo
2
circula; e um sujeito está na estrutura em função do outro e do lugar que ocupa em
determinado tempo) e, simultaneamente, o conceito de Édipo é estruturante, no sentido
que contribui para a constituição do inconsciente de todos os personagens que interagem
nesse jogo e não somente da criança como propunha Freud quando elaborou a idéia de
“Complexo de Édipo”. O Édipo também é estruturante, pois ao final dessas fases (para
Lacan trata-se de três tempos) não somente a formação da sexualidade da criança estará
definida, como também a constituição do seu caráter – através da formação do superego.
1
Editora Artes Médicas, Porto Alegre, 1984.
2
“Falo” aqui enquanto “significante de uma falta”, aquilo que “está em lugar da falta”. O autor do texto
observa que essa falta, a partir da subjetividade do sujeito, aparecer como presença a presença do falo
enquanto significante da falta (é nesse sentido que o falo ocupa o lugar da falta). Se a imagem (do falo
imaginário) está presente há a ilusão de completude expansão do narcisismo, satisfação plena mas, por
outro lado, se algo está presente há também a possibilidade de perdê-lo. Note que o falo imaginário não é
somente a imagem do pênis, o falo imaginário pode ser qualquer coisa que complemente a falta e dê a
sensação de plenitude.
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Lacan divide o Édipo em três tempos. No primeiro a relação se dá entre a criança e
a mãe e nele a criança deseja ser tudo (ser o objeto exclusivo de desejo) para a mãe: “Seu
desejo é desejo do outro, em duplo sentido, ou seja, ser desejado pelo outro e tomar o
desejo do outro como se fora o próprio.”
3
A criança acredita que a mãe é feliz por causa
dela a criança se sente completa e causadora da felicidade da mãe. Não sabe que a mãe
procura sua plenitude narcisista que vai para além dela. A criança crê ser o falo da mãe
quando na verdade simboliza o falo –; a criança acredita sê-lo para a mãe. É o falo
simbólico: algo que circula (se dá e se recebe), pode-se perdê-lo porque é algo que se tem
e não que se é.
Nesse primeiro tempo temos o que Lacan chama de ternário imaginário: a mãe, a
criança e o falo (o pai real encontra-se, nesse tempo, velado). A criança se crê o falo, no
inconsciente da mãe o falo está simbolizado na imagem da criança. A mãe sente que tem
tudo – é a mãe fálica. Afirma Bleichmar:
Tem alguém para quem ela é tudo, tem um súdito
incondicional. O menino é o falo para a mãe.
A partir da perspectiva do menino, este é que a faz feliz;
não sabe por que, porque não sabe da castração simbólica da mãe.
(...)
Notem que aqui está o conceito de lei (...). No primeiro
tempo do Édipo, está encarnada na mãe uma lei onímoda. Não é
que haja uma lei e a mãe seja sua representante. É a própria lei.
Assim como o filho é o falo, ela é a lei.
4
Já no segundo tempo do Édipo em Lacan temos o desejo do pai frustrando os
desejos da mãe e do filho: “O pai intervém efetivamente como privador da mãe em sentido
duplo, enquanto priva o menino do objeto de seu desejo e enquanto priva a mãe do objeto
fálico. (...) é aqui que encontra o Outro do outro, sua lei.” (Lacan apud Bleichmar; 1984,
p.45). Nesse tempo a mãe troca o filho pelo pai; e o pai não fica situado numa relação de total
dependência em relação ao desejo da mãe.
Aqui se dá o que se convencionou denominar “castração simbólica”: a criança
reconhece que falta algo à mãe que não é ele; ele deixou de ser o falo da mãe; ele não é o
falo da mãe: “O menino, ao dirigir-se à sua mãe, encontra que há um Outro, neste caso Outro
3
Bleichmar, H. Introdução ao estudo das perversões, p. 27.
4
Ibidem, p. 30.
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como o lugar da lei ou significando a lei, à qual a mãe deve se submeter.”
5
Na “castração
simbólica”, a criança deixa de se identificar com o falo, deixa de sê-lo, a mãe perde o falo. O
todo criança-falo/mãe-fálica é cortado e de cada parte se corta algo (da primeira, a
representação como falo; da segunda o suposto poder de instaurar o falo de acordo com sua
vontade): “(...): é a falta em relação a uma presença ilusória.”
6
É importante assinalar que a
“castração simbólica” da mãe inicia-se nesse segundo tempo, mas completa-se no terceiro.
Trata-se de um dos processos que num tempo se configura como passagem e em outro se
conclui aliás, as divisões de tempo (do Édipo em Lacan) no sentido linear são assim
apresentadas visando um efeito teórico e didático e se configuram considerando-se uma ou
outra característica predominante em um ou outro tempo, porém todos os momentos devem
ser pensados de forma mais complexa: há características que surgem num e permanecem em
desenvolvimento (ou se completam) no outro.
Retomando o outro aspecto desse tempo: o menino então crê que o pai é o falo, pois
esse aparece como mensagem proibitiva: “Em relação ao menino: não dormirás com tua mãe.
E em relação à mãe: não reintegrarás teu produto.”
7
Trata-se do pai interditor, terrível e, para
a criança, imaginário. Aparece, como a mãe no primeiro tempo, sendo a lei, embora só a
represente – o falo tão poderoso que dita/interdita o desejo da mãe. É perfeito; é aquilo que a
criança não é: o falo. É imaginário, pois é algo em si mesmo.
Esse pai real – também castrado – está, por sua vez, também submetido à lei. Essa é
promovida pelo pai simbólico que não é o pai real e terrível.
O pai simbólico é aquilo que em uma cultura promove a lei/a interdição para todos:
Não há pai simbólico, sem castração simbólica e sem lei.”
8
Na teoria, o significante dessa
função do pai simbólico é o que Lacan denominou o “Nome-do-Pai”. É o (ou através do)
“Nome-do-Pai” que se instaura o lugar da lei dentro do código. O termo é bíblico e significa
o que invoca, que representa a autoridade maior da lei (mas não é a lei), está fora da lei para
inscrever nela sua autoridade. Os personagens dessa relação agem em representação da lei:
“No nome do pai é onde temos que reconhecer a sustentação da função simbólica que, desde
5
Ibidem, p. 46.
6
Ibidem, p. 34.
7
Ibidem, p. 47.
8
Ibidem, p. 50.
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a aurora dos tempos simbólicos, identifica sua pessoa com a figura da lei.” (Lacan apud
Bleichmar; 1984, p.50).
No terceiro tempo do Édipo em Lacan constataremos que alguns processos iniciados
no segundo se completam neste último. Por exemplo: o pai também aceita a lei: trata-se do
pai castrado. Assim, nesse tempo a lei e o falo se apresentam como instâncias que estão para
além de qualquer um dos personagens da tríade. Afirma Bleichmar:
Em primeiro lugar, produzida a castração simbólica, o
filho deixa de ser o falo, tampouco o é o pai como era no segundo
tempo; a mãe deixa de ser a lei, tampouco a é o pai. O falo passa
a ser algo que poderá se ter ou carecer de, mas que não se é; a lei
passa a ser uma instância em cuja representação um personagem
possa agir, mas não o será. Logo, no terceiro tempo do Édipo
ficam instaurados a lei e o falo como instâncias que estão acima
de qualquer personagem.
9
Nesse tempo, deixando a criança de ser o falo, substitui sua identificação com o Ego
Ideal uma imagem total de perfeição narcisista pelo o Ideal do Ego que para Lacan,
trata-se de uma constelação de insígnias (um símbolo que inscreve o lugar determinado que
alguém ocupa). A criança não se identifica com a pessoa do pai, mas com as insígnias do
pai - com os significantes dos quais o pai é suporte, por exemplo, as insígnias da
masculinidade. O Ideal do Ego também está voltado à questão do desejo do sujeito ao
fato do sujeito assumir a sua masculinidade ou a feminilidade dependendo de sua
identificação com uma conduta que pertença ou não à classe dos homens. Essa
identificação o dotará de uma insígnia conduta sexual que o torna membro da classe dos
homens, por exemplo: masculinidade. É a diferença entre ter o falo ou imaginar sê-lo.
Ao final o pai aparece como instaurador de uma lei que está para além dele
próprio que é a lei do incesto. Completa Bleichmar:
(...), como resultado disso surgem duas conseqüências
que se produzem no terceiro tempo do Édipo: a) a aceitação da
lei. Ao aceitar a lei, a lei que se aceita por antonomásia é a lei do
incesto, que não só proíbe a relação sexual com a mãe como
também a possibilita com outras mulheres. Por isso, Lacan diz
que, no terceiro tempo, o pai aparece como permissivo e doador
(...) realizada a castração simbólica a lei é ‘não dormirás com a
tua mãe, mas sim com qualquer outra mulher’. O pai aparece
9
Ibidem, p. 57.
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como aquele que outorga o direito à sexualidade e, como
conseqüência, produz-se a assunção da identidade de ser sexuado,
identidade de acordo com a natureza de cada um.
10
Ao final dos três tempos então percebemos que o falo está na cultura para além de
qualquer dos personagens da relação – seja da criança, da mãe ou do pai.
Temos até aqui um resumo tempos do Édipo em Lacan. Essa teorização possui
aspectos mais complexos que não trataremos neste breve artigo. O que pretendemos é
deixar em evidência que estamos nos referindo a um processo de constituição do sujeito:
ao fim o indivíduo pode se constituir como sujeito, pois não é mais o objeto de desejo de
outro.
Tentaremos agora utilizar aspectos dessa teoria para reflexão de algumas passagens
do conto “A terceira margem do rio”, do escritor João Guimarães Rosa, que compõe um
dos seus livros intitulado Primeiras Estórias.
No início do conto há a descriçãopelo olhar da criança de um pai rígido, porém
ausente. A descrição sugere ainda a presença de uma mãe-fálica que ocupa essa lacuna do
pai lembremos que a presença da mãe-fálica para Lacan se dá no primeiro tempo da sua
teoria sobre o Édipo, tempo esse que se configura também pelo fato do pai estar velado; a
mãe-fálica permanecerá nesse lugar caso o pai não ocupe o seu: pai presente e castrador.
Inicia Guimarães Rosa:
Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e
sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as
diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que
eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais
triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe
era quem regia, e que ralhava no diário com a gente minha
irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai
mandou fazer para si uma canoa.
11
Nessa (livre) interpretação sugiro que esse pai (quieto) sabe (de forma inconsciente)
que não cumpriu, nem cumpre sua função de pai castrador. Sua decisão é então ocupar
outro espaço para além da visão (da sua família) e da linguagem (enquanto fala). O pai
constrói uma canoa e nela se posiciona no meio de um rio:
10
Ibidem, pp. 57-58.
11
Rosa, João Guimarães. Primeiras Estórias. P. 79.
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Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de
vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber
justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e
arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte
ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que,
ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para
pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no
tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de
légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que
sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E
esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.
Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e
decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não
pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa
mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente
alva de pálida, mascou o beiço e bramou: "Cê vai, ocê fique,
você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou
manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos.
Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo
daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: "Pai,
o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar
em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás.
Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso
pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se
indo a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida
longa.
12
Qual lugar ocupou esse pai que não exerceu a função esperada: de pai castrador?
O rio quer pela sua força, quer pelo fluxo de imagens que sugere parece, a meu ver,
simbolizar o inconsciente da criança:
Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte.
Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do
rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar,
nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de
todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes,
vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente
conselho.
Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura;
por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não
queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder
também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem
sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a
lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua
família dele.
13
12
Ibidem, pp.79-80.
13
Ibidem, p. 80.
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Sabemos que a teoria de Lacan à respeito do Édipo é uma das possibilidades de
teorização de um fenômeno psíquico lembremos que Freud foi o primeiro a fazê-lo e que
as duas teorias possuem pontos de aproximação e distância. Na base dessas teorias além
do aguçado poder de observação dos fenômenos há uma capacidade criativa e
imaginativa surpreendente. Pois bem, é essa capacidade humana da imaginação que
impulsiona também os escritores (no caso de Rosa) e dela vou me utilizar para interpretar
passagens desse conto. A meu ver (ou a meu ler), o pai opera um inusitado deslocamento
nos tempos do Édipo lacaniano: impossibilitado de enunciar, logo de ser portador da lei,
coloca-se num outro espaço onde, também de outra forma, pode também representá-la.
Dessa terceira margem do rio – de onde vê, mas não é visto; de onde não fala; mas é falado
– cumpre a função de introduzir o “Nome-do Pai”: a lei, ainda que distante/próximo e ainda
que tenha falhado em sua função esperada. O pai nesse lugar ocuparia outra posição, ou
melhor, aquela mesma posição sugerida por Lacan no seu terceiro tempo de teorização
sobre o Édipo, porém por outra via – posicionando-se nesse lugar imaginário, improvável e
fascinante que é a terceira margem de um rio e de outra forma: comportando-se como
alguém que está e não está lá; está, mas não responde quem o chama ou responde pelo
enigma da sua presença/ausência:
A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que,
com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na
verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria,
só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus
pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira
nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou
aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano,
sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as
semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver.
Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas
do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos,
que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em
alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho
em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um
fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do
que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na
lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável.
Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na
canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento,
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aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o
perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore
descendo de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra,
com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só
se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e,
se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se
despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros
sobressaltos.
Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente
imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa;
assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites
de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça
para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum
conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com
nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo,
de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos,
com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das
peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.
Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto
mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa
de algum meu bom procedimento, eu falava: "Foi pai que um
dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato;
mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se
lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não
subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-
encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela
mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos,
todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido
branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a
criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o
guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu.
Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.
14
Ao final, esse posicionamento termina por permitir que a criança se constitua como
sujeito psiquicamente autônomo, a neurotiza, cresce e decide trocar de lugar com o pai:
Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha
tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o
rio-rio-rio, o rio pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de
velhice esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha
achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de
reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão
idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a
canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio,
para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da
cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração.
Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que
14
Ibidem, p. 80.
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nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas
fossem outras. E fui tomando idéia.
15
A criança/homem vai tomando a idéia de troca de lugar com seu pai ocupar ela
esse lugar de onde se pode também representar a lei. Porém, ao ouvir o chamado do filho, e
tornar a aparecer como pai real, ele se dissolve numa imagem que simboliza o seu fim,
pelo fim de sua função. O filho, agora homem/criança, não cumpre a idéia e acaba por
adoecer de culpa, esperando se redimir na hora da sua morte – assim termina o conto e esse
breve artigo:
Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a
palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos,
não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou,
então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser
mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele
apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de
grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia,
jurado e declarado, tive que reforçar a voz: "Pai, o senhor está
velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece
mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a
ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E,
assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água,
proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente:
porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de
gesto o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu
não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei
de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me
pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo
um perdão.
Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém
soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que
não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo
abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos,
que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem
também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de
longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.
16
15
Ibidem, p. 84.
16
Ibidem, pp. 84-85.
Página1
Referências bibliográficas:
Rosa, João Guimarães. Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
Bleichmar, H. Introdução ao Estudo das perversões. Porto Alegre: Ed. Médicas,1984.
Página1
Artigo "Os três tempos do Édipo em Lacan e a terceira margem do rio em Rosa"
São Paulo, SP.
Maio, 2009.
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