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Feiúra, doença, deficiência e algumas páginas jurídicas: “e era de fera a sua fé
mirada”.
1
Daniela de Freitas Marques
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Juíza
de Direito da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais.
RESUMO: A pedra de toque do artigo funda-se na comparação entre o Direito e o
corpo humano. Qual seria a representação sensível e simbólica do Direito fosse ele tão
tangível e tão real como o corpo humano? As páginas jurídicas, em especial, as páginas
jurídico-penais são escritas e vivenciadas como se dotadas de conteúdo racional, com os
atributos de completitude e coerência. A apreciação do Direto conduz à contrária
conclusão: as páginas jurídicas são dotadas de conteúdo emocional, com os atributos de
não-completitude e incoerência. Entre as cantigas de escárnio e a balada de John Keats:
o direito ora é a mulher velha, feia e sandia, ora é A bela dama sem piedade”. Em
licença poética, a dama sem mercê e sem misericórdia é a melhor escolha, a ser
superada, porque senão a verdade dos tempos será a última estrofe da balada: eis
porque passo por aqui/ Só em desalento vagando/Embora os cíperos secos desde o
lago/E nenhum pássaro cantando.” (KEATS, John. La Belle Dame Sans Merci)
PALAVRAS-CHAVE: Direito – Corpo – Feio –Doença – Deficiência.
ABSTRACT: The cornerstone of this paper is the comparison between Law and the
human body. What would be the sentient and symbolic representation of Law, if it were
as tangible and corporeal as the human body? The writings in Law, and the writings in
Penal Law, in particular, are written and experienced as if they were endowed with
rational content, with attributes of completeness and coherence. But the appreciation of
Law leads to the opposite conclusion: The writings in law are endowed with emotional
content, with attributes of incompleteness and incoherence. From the scornful odes and
the ballad of John Keats: the law is sometimes the old, ugly and foolish woman, and
sometimes “the beautiful, pitiless lady”. With the due poetic permission, the merciless,
1
KEATS, John. La belle dame sans merci. In: GRÜNEWALD, José Lino (Organização e Tradução).
Poesia de todos os tempos. Grandes Poetas da Língua Inglesa do Século XIX. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira,1988. p.65.
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pitiless lady is the best choice, yet to be overcome, or else the truth to come as time
passes by will be the last strophe in the ballad: “this is the reason why I pass by/ only
in discouragement roaming/ though the dry sedges from the lake/ and no bird singing.”
(KEATS, John. La Belle Dame Sans Merci)
KEY WORDS: Law – Body – Ugly – Ilness – Disability.
SUMÁRIO: 1. Caos e cosmos: feiúra e beleza. 2. O corpo doente, algumas buscas pela
perfeição e as similitudes com as páginas jurídicas. 3. A “falta” e a “ausência”. 4.
Conclusão. 5. Bibliografia..
1. Caos e cosmos: feiúra e beleza.
O caos e o cosmos integram a realidade cotidiana. Ao cosmos e à harmonia sempre
estiveram ligados conceitos como beleza, virtude e pureza e, contrariamente, ao caos e à
desordem sempre estiveram ligados conceitos como fealdade, vício e impureza.
Muito pouco foi escrito sobre o feio – porque o conceito de fealdade é o não-conceito, o
indizível, apontado como physica curiosa
2
, a qual, causadora de risos e escárnio, é
freqüentemente utilizada na identificação do feio.
A fealdade é corpórea ou espiritual? O corpo feio pode abrigar impoluto e virtuoso
espírito ou o corpo belo pode abrigar corrompido e impuro espírito?
No romantismo, a feiúra infeliz ou a beleza perversa estiveram presentes na literatura.
“(...) É possível permanecer belo e dissoluto, sem envelhecer jamais, mas infeliz porque
a própria decadência e feiúra interior são impiedosamente denunciados por um retrato
que se corrompe em seu lugar, como acontece com o Dorian Gray, de Wilde. Contudo, a
pesquisa do interessante e do individual, ou do grotesco, leva também à imaginação de
uma deformidade que arrasta a um destino trágico quem, mesmo nutrindo uma alma
delicada, é condenado pelo próprio corpo. Talvez o primeiro “feio infeliz” do
romantismo tenha sido o monstro protagonista de Frankestein, de Mary Shelley (1818),
seguido depois pelos patéticos abortos da natureza de Hugo, como Quasímodo em
Notre-Dame e Gwynplaine em O homem que ri. Também fazem parte do rol de feios
2
ECO, Umberto (organização). História de Feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record,
2007.
2
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infelizes os heróis verdianos, como Rigolleto embora Verdi também tenha posto em
cena alguns feios danados, de Lady Macbeth a Iago, e tenha escrito em uma carta que
gostaria que este último fosse interpretado como “uma figura bastante magra e longa,
lábios finos, olhos pequenos e próximos do nariz como os símios, a fronte alta e fugidia
e a parte de trás da cabeça muito desenvolvida”.
3
A feiúra, ligada à infelicidade, também é ligada ao mal e ao crime. Lady Macbeth
invoca a maldição, ao negar a sua condição feminina, ao dizer que os seus seios não
mais produziriam leite e sim fel: mulher que somente deveria dar à luz a varões,
imensos o seu amargor e o seu desabrido orgulho. Iago é a essência do mal falso
amigo e manipulador astucioso – quem não cairia em suas artimanhas? Somente alguém
com o espírito e a graça de Rosalinda ou a glutonaria e o prazer pela vida de Falstaff.
No sistema jurídico, consciente ou inconscientemente, o feio tem sido perseguido,
castigado e destruído. Embora se reconheça a fealdade espiritual presente tanto no belo,
quanto no feio corpo, a feiúra física tem sido associada ao mal e, conseqüentemente, ao
crime. “E, convencido de que existem harmonias sutis entre corpo e alma e de que a
virtude embeleza, enquanto o vício enfeia, Johann Kaspar Lavater (Physiognomische
Fragmente, 1775-1778) examinava igualmente as feições de certos personagens
históricos.”
4
O positivismo criminológico é conhecimento especulativo sobre a feiúra. É bem
verdade que “(...) Lombroso não chegava à simplificação de dizer que quem é feio é
sempre delinqüente, mas associava estigmas físicos a estigmas morais, como
argumentos que se pretendiam científicos.”
5
Hoje retorna-se ao fundamentalismo
científico. A genética e os discursos pseudocientíficos têm legitimado o sistema
prescritivo punitivo, e, feliz ou infelizmente, os estigmas sobre o feio e o crime
permanecem nos contornos autoritários da formação dos sujeitos do aparelho repressor
estatal – das polícias, do Ministério Público e do Judiciário.
6
Toda pessoa, como dito por Adorno, traz em si certo conteúdo autoritário – o nó górdio,
consciente ou inconsciente, dos seus preconceitos, das suas intolerâncias, das suas
frustrações e das suas incompreensões. A reprodução dos conteúdos autoritários faz-se
3
Ibidem. p. 293.
4
Ibidem. p. 257.
5
Ibidem. p. 261.
6
A relação estabelecida entre o aparelho repressor estatal e o imputado é a relação de eu-isso
instrumentalizada, na acepção soberba de Martin Buber. A relação eu-tu relação humana é esquecida,
obliterada, alijada do pensamento e da prática penais.
3
presente em instituições repressivas e repressoras, como as que cuidam da segurança
pública, como as que zelam pela aplicação do direito.
O Direito, tal qual ensinado e efetivamente realizado, apresenta-se distanciado das
humanidades, excessivamente dogmático e extremamente empobrecido, quer na
retórica, quer na fundamentação. Alija-se a pessoa humana e sofistica-se o apelo às
instituições e às ideologias.
As buscas e apreensões pessoais, v.g., têm como destinatários certos o outro não
assemelhado, o outro instrumentalizado, o feio aquela pessoa de má aparência,
expressão tão ambígua quanto polissêmica, a qual esconde e oculta discriminações
sócio-econômicas e étnicas. A boa aparência presente nas contratações da seara civil,
também é determinante nas práticas da seara penal.
7
O direito penal, na lembrança do dito de Eugenio Raúl Zaffaroni, ainda é o direito do
feio. “O estereótipo do suspeito é um legado cultural antigo, que se incorporou ao
imaginário popular e ao aparelho repressor do País. "Já em 1560, havia autores
7
“Para alguns, a discriminação é tão fácil de detectar quanto um desastre ferroviário à luz do dia. Ela é
percebida por meio de pistas sutis no modo como os outros são tratados ao nosso redor ou na maneira
como nós mesmos somos tratados. A conversa áspera com o atendente da loja, o segurança que aguça sua
atenção, o taxista que não pára. Seja pela idade, gênero, raça, deficiência, orientação sexual, seja por
qualquer outra identidade estigmatizada, a maioria consegue pensar em, no mínimo, um caso no qual nós
ou alguém próximo foi tratado de modo injusto por causa de uma única diferença de condição. (...)” Cf.
PAGER, Devah. Medir a discriminação. Tempo soc., São Paulo, v. 18, n. 2, Nov. 2006 . Disponível
em:<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000200004&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 Jan. 2009.
doi:10.1590/S0103-20702006000200004.
Também se vê que “(...) Os múltiplos preconceitos de gênero, de cor, de classe, etc. têm lugar
tipicamente, mas não exclusivamente, nos espaços individuais e coletivos, nas esferas públicas e privadas.
Fazem-se presentes em imagens, linguagens, nas marcas corporais e psicológicas de homens e de
mulheres, nos gestos, nos espaços, singularizando-os e atribuindo-lhes qualificativos identitários,
hierarquias e poderes diferenciais, diversamente valorizados, com lógicas de inclusões-exclusões
conseqüentes, porque geralmente associados a situações de apreciação-depreciação/desgraça.
O preconceito se contrapõe às qualidades de caráter, como lealdade, compromisso, honestidade,
propósitos que afirmam valores atemporais e regras éticas. As demandas nos espaços de trabalho,
sobretudo em relação às mulheres, por exemplo, exigem juventude, boa aparência (magreza, altura,
altivez, cabelos lisos e claros, dentes perfeitos, porte, postura, etc.), além da cor branca. As mulheres não-
brancas são aceitas na proporção em que tais atributos estejam presentes associados à sensualidade, à
exuberância erótica, evidenciado a vulnerabilidade e manipulação dos componentes do preconceito.
São demandas fugidias que se contrapõem às qualidades humanas que podem significar experiência
acumulada, valores, motivações, homens e mulheres decididos a provar seu valor através do trabalho.
Nesse sentido, tanto o trabalho quanto o emprego tornaram-se incertos, voláteis, flexíveis e fragmentados.
Paradoxalmente, as exigências mais de ordem estética muitas vezes independem da condição sócio-
econômica. Inexistem o tempo e o espaço necessários à construção de relacionamentos profundos e
duradouros que invocam o caráter da pessoa, o que permite compreender por que algo tão fugidio como a
imagem da beleza e da aparência é cada vez mais valorizado nos ambientes de trabalho.” BANDEIRA,
LOURDES; BATISTA, ANALÍA SORIA. Preconceito e discriminação como expressões de violência.
Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 10, n. 1, Jan. 2002 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-026X2002000100007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 30 Jan. 2009. doi:
10.1590/S0104-026X2002000100007.
4
relacionando fisionomia com propensão para o crime. Um exemplo consta no Edito de
Valério, no qual Muscardi recomenda que ‘na dúvida entre presumíveis culpados,
condene-se sempre o mais feio’.”
8
A fisionomia de bandido ou de marginal ou os estereótipos ligados ao pilantra, ao
criminoso autorizam e permitem a discriminação.
9
Não por acaso, a primeira impressão
na sala de audiências é visual e, exige-se do acusado uma postura de humildade e de
submissão. Quando ausentes os referidos atributos, o acusado é identificável e tachado
como “criminoso”, “marginal”,“diferente”, “elemento” e a pena, ao final aplicada, não é
dolorosa ao julgador. A sombra lombrosiana persiste, inconscientemente, no senso
comum.
Na criminalidade feminina, a bela compleição desperta simpatia, cuidado e solicitude e,
dificilmente, a prática do crime é creditada à bela mulher. É significativo e antigo o
8
Cf LAKATOS, Suzana Cara de suspeito. Na ponta da caneta. Jornal do
Advogado..http://www2.oabsp.org.br/asp/jornal/materias.asp?
edicao=76&pagina=1803&tds=7&sub=0&sub2=0&pgNovo=67. Data de acesso: 13 Maio 2008.
9
Na Revolta da Chibata, datada de novembro de 1910, a perícia dos marinheiros espantou aqueles que
assistiram às manobras. “(...) A exibição de competência e, sobretudo, de elegância nas manobras
chocava-se com a imagem que se tinha dos marinheiros nacionais: homens rudes, brutos, recrutados na
marginália das cidades, quando não entre condenados das casas de detenção. Na avaliação dos oficiais, os
marinheiros eram a ralé, a escória da sociedade, eram facínoras que só a chibata podia manter sob
controle.
João Cândido Felisberto não fugia ao figurino. Um crioulão alto e forte e feio, boca enorme, maças
salientes, trinta anos de idade em 1910. Filho de ex-escravos, pai alcoólatra, entrara para a Marinha em
1895, com 15 anos. Em 1910, ainda era semi-analfabeto, lia mas não escrevia. Nos 15 anos de
engajamento, fora promovido a cabo, mas por mau comportamento tinha sido rebaixado a marinheiro de
primeira classe. Envolvera-se em lutas corporais com colegas e espancara outros. Em 1909, dera uma
chibatada em um grumete que, em represália, o esfaqueara nas costas.” Cf. CARVALHO, José Murilo
de. Pontos e Bordados: escritos de história e política. Belo Horizonte: UFMG, 1998, p.17.
“(...) Cerca de 100 marinheiros são presos e mandados, nos porões do navio "Satélite" - misturados a
ladrões, prostitutas e desocupados recolhidos pela polícia para "limpar" a capital - para trabalhos forçados
na Comissão Rondon, ou simplesmente para serem abandonados na Floresta Amazônica. Na lista de seus
nomes, entregue ao comandante do "Satélite", alguns estão marcados por uma cruz vermelha. São os que
morrerão fuzilados e, depois, serão jogados ao mar.
João Cândido, embora não tenha participado do novo levante, também é preso e enviado para a prisão
subterrânea da Ilha das Cobras, na noite de Natal de 1910, com mais 17 companheiros. Os 18 presos
foram jogados em uma cela recém-lavada com água e cal. A cela ficava em um túnel subterrâneo, do qual
era separada por um portão de ferro. Fechava-a ainda grossa porta de madeira, dotada de minúsculo
respiradouro. O comandante do Batalhão Naval, capitão-de-fragata Marques da Rocha, por razões que
ninguém sabe ao certo, levou consigo as chaves da cela e foi passar a noite de Natal no Clube Naval,
embora residisse na ilha.
A falta de ventilação, a poeira da cal, o calor, a sede começaram a sufocar os presos, cujos gritos
chamaram a atenção da guarda na madrugada de Natal. Por falta das chaves, o carcereiro não podia entrar
na cela. Marques da Rocha só chegou à ilha às oito horas da manhã. Ao serem abertos os dois portões da
solitária, só dois presos sobreviviam, João Cândido e o soldado naval João Avelino. O Natal dos demais
fora paixão e morte.
O médico da Marinha, no entanto, diagnosticou a causa da morte como sendo "insolação". Marques da
Rocha foi absolvido em Conselho de Guerra, promovido a capitão-de mar-e-guerra e recebido em jantar
pelo presidente da República.” A Revolta da Chibata. Disponível em:
http://www.cefetsp.br/edu/eso/patricia/revoltachibata.html. Data de acesso em: 12 Jan. 2009.
5
exemplo de Frinéia: a bela hetaira, absolvida por sua beleza, retratada na poesia
parnasiana de Olavo Bilac:
10
Mnezarete, a divina, a pálida Frinéia,
Comparece ante a austera e rígida assembléia
Do Areópago supremo. A Grécia inteira admira
Aquela formosura original, que inspira
E dá vida ao genial cinzel de Praxíteles,
De Hipérides à voz e à palheta de Apeles.
Quando os vinhos, na orgia, os convivas exaltam
E das roupas, enfim, livres os corpos saltam,
Nenhuma hetera sabe a primorosa taça,
Transbordante de Cós, erguer com maior graça,
Nem mostrar, a sorrir, com mais gentil meneio,
Mais formoso quadril, nem mais nevado seio.
Estremecem no altar, ao contemplá-la, os deuses,
Nua, entre aclamações, nos festivais de Elêusis...
Basta um rápido olhar provocante e lascivo:
Quem na fronte o sentiu curva a fronte, cativo...
Nada iguala o poder de suas mãos pequenas:
Basta um gesto, - e a seus pés roja-se humilde Atenas...
Vai ser julgada. Um véu, tornando inda mais bela
Sua oculta nudez, mal os encantos vela,
Mal a nudez oculta e sensual disfarça.
cai-lhe, espáduas abaixo, a cabeleira esparsa...
Queda-se a multidão. Ergue-se Eutias. Fala,
E incita o tribunal severo a condená-la:
"Elêusis profanou! É falsa e dissoluta,
Leva ao lar a cizânia e as famílias enluta!
10
BILAC, Olavo. O Julgamento de Frinéia. Disponível em: http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?
link=http://www.biblio.com.br/conteudo/OlavoBilac/sarcasdefogo.htm. Data de acesso em: 12 Dez. 2008.
6
Dos deuses zomba! É ímpia! é má!" (E o pranto ardente
Corre nas faces dela, em fios, lentamente...)
"Por onde os passos move a corrupção se espraia,
E estende-se a discórdia! Heliastes! condenai-a!"
Vacila o tribunal, ouvindo a voz que o doma...
Mas, de pronto, entre a turba Hipérides assoma,
Defende-lhe a inocência, exclama, exora, pede,
Suplica, ordena, exige... O Areópago não cede.
"Pois condenai-a agora!" E à ré, que treme, a branca
Túnica despedaça, e o véu, que a encobre, arranca...
Pasmam subitamente os juízes deslumbrados,
- Leões pelo calmo olhar de um domador curvados:
Nua e branca, de pé, patente à luz do dia
Todo o corpo ideal, Frinéia aparecia
Diante da multidão atônita e surpresa,
No triunfo imortal da Carne e da Beleza.
2. O corpo doente, algumas buscas pela perfeição e as similitudes com as páginas
jurídicas.
O corpo é percebido de forma variada e multifacetada. Por mais que dele se conheça ou
dele se aproprie, o corpo, embora anatomicamente conhecido, simbolicamente é
incógnito.
“Se os primeiros experimentos de dissecação anatômica começaram no século XIV,
com Mondino de Liuzzi, foi somente do Renascimento em diante, e sobretudo com o
De humani corporis fabrica, de Vesalio, dotado de esplêndidas e enregelantes imagens
de seres descorticados, que a arte se voltou para os corpos seccionados nos anfiteatros e
que uma exposição de órgãos internos triunfou sob forma hiper-realista nos museus de
ceras anatômicas. Aí se reproduzia aquela facies hippocratica que anuncia o trespasse
no rosto do moribundo, mas agora o esgar do agonizante excita pintores e escultores,
assim como as feições devastadas dos doentes incuráveis.”
11
11
ECO, Umberto.op.cit, p. 249.
7
A doença é a face decrépita e ignorada do corpo – caso deformante ou estertorante tanto
pior. As representações do corpo doente estão restritas, na atualidade, aos tratados
médicos. E o corpo doente, no sistema jurídico-penal, é representado na elaboração
incerta e imprecisa sobre as doenças mentais e, no caso de doenças incapacitantes, aos
direitos sempre tímidos da Lei de Execução Penal Lei n.7.210/84. Sempre há o receio
da simulação e das falsas aparências dos atestados e dos exames médicos,
eventualmente falsos, juntados ao processo de conhecimento ou ao processo de
execução.
A infelicidade maior reside, justamente, no esquecimento e nas condições sub-humanas
daqueles presos cautelarmente ou daqueles submetidos ao cumprimento da pena. O
tributo pago ao crime são o corpo e a alma doentes.
12
A doença, ao contrário da feiúra, não ocupa posição altaneira nas páginas penais. À
exceção das doenças e dos males psiquiátricos, com a velha disputa entre o tratamento e
a punição.
13
O louco-criminoso, a associação da maldade e da perversidade à loucura, o
imenso desconhecimento acerca da estrutura psíquica e mental da pessoa humana são os
limites perseguidos pela Medicina e pelo Direito Penal.
14
No entanto, alijado e
12
Graciliano Ramos, em Memórias do Cárcere, diz: “O mundo se tornava fascista. Num mundo assim,
que futuro nos reservariam? Provavelmente não havia lugar para nós, éramos fantasmas, rolaríamos de
cárcere em cárcere, findaríamos num campo de concentração. Nenhuma utilidade representávamos na
ordem nova. Se nos largassem, vagaríamos tristes, inofensivos e desocupados, farrapos vivos, fantasmas
prematuros; desejaríamos enlouquecer, recolhermo-nos ao hospício ou ter coragem de amarrar uma corda
ao pescoço e dar o mergulho decisivo. Essas idéias, repetidas, vexavam-me; tanto me embrenhara nelas
que me sentia inteiramente perdido.” RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere, v. I, n e IV Rio de
Janeiro, José Olympic, 1953.
13
“Lima Barreto foi mandado para o hospício devido ao seu vício: o álcool. Ele foi internado duas vezes,
a primeira por ordem policial e a segunda por decisão de seu irmão. Essa relação entre polícia e
manicômio é estranhamente íntima.
“Logo após o café, fui chamado à presença de um jovem médico, muito simpático, pouco certo de seus
podêres para curar-me. Fêz-me umas perguntas, e senti mesmo que seu desejo era mandar-me embora.
Disse-me mais ou menos isso, ou melhor, as suas palavras foram estas, depois de dizer o que eu tinha
tido:
Não há dúvida... Mas o senhor ou você não me recordo veio pela polícia, tem que se demorar
um pouco”.(p. 178)
Esse episódio demonstra que o modo como a autoridade define as normas numa cadeia é muito próxima
ao modo como são definidas as normas num hospício, embora suas justificativas sejam bastante distintas:
uma cadeia recebe criminosos, pessoas que devem pagar por erros cometidos; um hospício recebe pessoas
que não estão em equilíbrio normal e devem ser afastadas do convívio social. Ambos os ambientes têm
uma espécie de busca da redenção, de possibilitar a reabilitação dos indivíduos para viver em sociedade.”
BATISTA, Eloisy Oliveira. Histórias Esquecidas um estudo sobre as obras Memórias do Cárcere e
Cemitério dos Vivos. Disponível em:
http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/h00003.htm. Data de acesso: 15 Jan.2009.
14
“As relações entre a psiquiatria e a Justiça penal têm sido, pelo menos desde o séc. XIX, bastante
estreitas. Por um lado, a Justiça não dispunha de meios para dar conta de certo tipo de crime cujas
características pareciam fugir completamente à razão. Culpado ou louco, eis a questão ao mesmo tempo
deixada em aberto pela Justiça criminal e proposta pela psiquiatria nascente. Enquanto a Justiça só pode
agir sobre o delito depois de cometido, a psiquiatria parece capaz de prevê-lo em função de critérios de
periculosidade, definidos cientificamente.
8
esquecido das páginas do direito, o estudo do corpo doente: do constante imperfeito, no
corpo que se vê e se apreende pelo olhar do outro.
Se o corpo doente é o imperfeito, contrariamente ele também pode simbolizar a busca
pela perfeição ou, ao menos, a necessidade de domínio do próprio corpo, como se vê,
v.g, na anorexia e na bulimia.
15
O inatingível e o ideal marcam os corpos anoréxicos e bulímicos. Limitar a anorexia
nervosa exclusivamente à moda é desconhecer a história ela é tão complexa, quanto
difícil de ser estudada, mas está indiscutivelmente ligada ao desejo da perfeição ou do
perfeito domínio sobre o corpo.
Como se sabe, “(...) há evidências de que a anorexia atual seria um contínuo de um tipo
de comportamento inalterado através da história do Ocidente. Behar e Fendrik
acreditam que, no passado, mesmo dentro de um contexto sociocultural diferente,
principalmente na região européia, a doença sempre foi igual: restrição sistemática do
alimento com risco grave da saúde e da própria vida.
É possível, então, estabelecer um paralelo entre as anoréxicas atuais e as santas
jejuadoras medievais, como já discutimos anteriormente em relação às meninas
cloróticas do século XIX.
Nota-se a existência, desde então, de uma polaridade entre a justiça e a medicina, segundo a qual o saber
médico tende a estabelecer meios de formalizar a loucura num estatuto cientifico e, por outro lado, a
justiça procura determinar o ato criminoso e a sua sentença a partir de um juízo moral.
Impossível, pois, declarar alguém ao mesmo tempo culpado e louco; o diagnóstico de loucura, uma vez
declarado, não pode ser integrado no Juízo, ele interrompe o processo e retira o poder da Justiça sobre o
autor do ato.
É nesse ambiente de novas definições que surge a medida de segurança, como proposta de proporcionar
ao louco criminoso um destino diferente daquele dado ao criminoso comum. Nesse ínterim, as medidas
de segurança têm caráter preventivo e terapêutico, e não punitivo, pois prescrevem tratamento.
O cárcere ou o asilo, tal será o destino de uma determinada categoria de indivíduos. Entretanto, na própria
fronteira entre as duas instituições, haverá aqueles considerados excessivamente lúcidos para as casas de
alienados e insuficientemente responsáveis para a prisão,
o que suscita uma questão: se o louco-criminoso
não pode ser simplesmente condenado à pena de prisão ou ser internado em manicômio comum, qual
seria o local adequado a ele? Uma resposta a essa questão leva à adoção de medidas de segurança que
trazem consigo a exigência de diversos estilos arquitetônicos e a existência de aparelhagem interna nos
estabelecimentos penais destinados a sua execução.” SANTOS, Mauro Leonardo Salvador Caldeira dos;
SOUZA, Fernanda Silva de; SANTOS, Cláudia Verônica Salvador Caldeira dos. As marcas da dupla
exclusão: experiências da enfermagem com o psicótico infrator. Texto contexto - enferm., Florianópolis,
v.15, n.spe, 2006. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0104-07072006000500009&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 Jan. 2009. doi:
10.1590/S0104-07072006000500009.
15
A escolha da anorexia e da bulimia são apenas ilustrativas e exemplificativas. Sabe-se que elas são
mais complexas que a breve digressão presente no artigo. A proposta do estudo de ambas é mostrar e
demonstrar que elas fazem parte de uma visão não-individualizada e não-atribuível somente aos que dela
padecem – mas são o símbolo distorcido e infeliz da busca de controle nos vazios do mundo, distantes do
“corpo” humano. As pessoas humanas e os seus constructos individuais ou coletivos tentam assimilar as
realidades ao corpo como se, na vida, fosse possível quer o controle do corpo, quer o controle do
mundo.
9
O diagnóstico de clorose, ou doença verde, fazia-se na presença de palidez, fraqueza,
cansaço, irritabilidade, constipação, irregularidade menstrual e repulsa à comida,
principalmente às carnes, além de um pronunciado emagrecimento. Descrita por
Johanes Lange, em 1554, como "doença das virgens", seria causada por uma "febre
amorosa" e teria cura, segundo esse autor, com o casamento, o intercurso sexual e a
maternidade. Após haver se constituído, no século XIX, em verdadeira epidemia entre
as meninas na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, desapareceu completamente
após 1920. Loundon, entre outros autores, considera que a clorose e a anorexia nervosa
sejam condições análogas de uma mesma psicopatologia.
Numa tentativa de explicação do verdadeiro surto de santas anoréxicas na Idade Média,
Gamero afirma que, com o advento do Cristianismo, houve uma substituição drástica
dos deuses obesos, hedonistas, pelos cristos magros. Foram abandonadas as imagens
gordas de divindades ancestrais, bem como o hábito dos grandes banquetes romanos
seguidos de vômitos auto-induzidos. Nos primeiros anos da Idade Média, a glutonaria
passou a ser sinônimo de impureza, a gula converteu-se num dos sete pecados capitais,
e a rejeição aos alimentos foi eleita a penitência preferida para alcançar o estado de
máxima espiritualidade. A busca da santidade, do puro, exigia privações do corpo. (...)
(...) começaram a aparecer santas anoréxicas, como Santa Liduina, que, durante anos,
alimentou-se só de um pedaço de maçã por dia, e Santa Wilgefortis (do latim Virgo
fortis, "virgem forte"), a jovem filha do rei de Portugal, que rejeitava os alimentos
oferecidos, fazia jejuns e vomitava o que era obrigada a ingerir, emagrecendo
notoriamente e praticamente deixando-se morrer de fome. A presença de hirsutismo
também é um fato relevante na sua história, ainda que, segundo a lenda, seu corpo tenha
se coberto de pêlos e uma barba tenha crescido como resultado de suas orações, em que
rogava a Deus que lhe apagasse a beleza.
Porém, segundo a literatura, foi na época em que Santa Catarina de Siena viveu que
existiu uma verdadeira era da anorexia santa. Fendrik afirma que chegou a tal extremo o
hábito de "nunca comer" entre as santas do século XIII, que os registros feitos pelos
confessores surpreendem por constituírem verdadeiras histórias clínicas.
Ainda sobre o comportamento anoréxico das santas medievais, é da maior importância o
trabalho desenvolvido por Rudolf Bell sobre a vida de 250 mulheres santas ou beatas da
Igreja Católica, desde o século XIII aos dias atuais, utilizando-se de escritos
autobiográficos, cartas, testemunhos de confessores e relatos canônicos. Segundo Bell,
10
entre as santas com suposto transtorno alimentar estariam Santa Catarina de Siena,
Santa Colomba de Rieti, Santa Catarina de Gênova, Santa Verônica, Santa Maria
Madalena de Pazzi e Santa Clara de Assis.”
16
Também a bulimia, ideal e simbolicamente, tem a mesma conotação da anorexia: o
domínio do corpo, a fala por meio do corpo, a ordenação do corpo: o grito de controle
no universo caótico.
A busca da aparência perfeita, religiosa ou esteticamente motivada, deve-se a múltiplos
fatores. O controle do corpo, no incontrolável e imponderável mundo, talvez seja o mais
significativo.
Nada do que é humano me é estranho”, dito por Terêncio, faz lembrar que a tentativa
de controle do universo caótico é o signo do Direito. O Direito, como uma das mais
formidáveis construções humanas de controle de condutas e de comportamentos
humanos, segue a lógica de ordenação da realidade e do universo caótico. Suas
prescrições, seus mandamentos e suas ordenações são construídos culturamente, eivados
de preconceitos e de limitações, às vezes, de boas intenções. Nas páginas jurídico-
penais, motivações religiosas, motivações de Estado, motivações intencionadas por
bons ou maus propósitos são uma constante.
16
WEINBERG, Cybelle; CORDAS, Táki Athanássios; ALBORNOZ MUNOZ, Patricia. Santa Rosa de
Lima: uma santa anoréxica na América Latina?. Rev. psiquiatr. Rio Gd. Sul, Porto Alegre, v. 27, n.
1, Apr. 2005. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0101-81082005000100006&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 03 Feb. 2009. doi:
10.1590/S0101-81082005000100006.
11
À semelhança do corpo humano, o Direito é um corpo.
17
Às vezes saudável, às vezes
fraco, às vezes doentio, às vezes ensandecido. Na atualidade, o Direito apresenta-se
como o corpo anoréxico ou o corpo bulímico ou, ao menos, o Direito Penal assim se
apresenta.
“O corpo que se mostra é um corpo descorado e fraco; mas para o anoréxico que se vê,
a magreza nunca é suficiente e o excesso é latente a sua condição. De acordo com
Merleau Ponty (1999), o corpo-sujeito e o corpo-objeto estão justapostos através de uma
mesma relação de possibilidade, e esse corpo-sujeito, ao mesmo tempo em que sente,
pode também ser sentido. É no cruzamento de possibilidades entre corpo-sujeito e
corpo-objeto que essa doença cria um paradoxo entre o corpo real e a imagem do corpo
que o indivíduo anoréxico projeta para si na anorexia, a percepção auto-referida de
imagem corporal é transbordante e está além dos limites do pequeno corpo anoréxico.
Para compreender melhor esse ponto, utilizou-se o conceito de imagem corporal de
Schilder (1999), que extrapola os aspectos neurológicos, mas relaciona-se às conexões
entre o indivíduo e o mundo ao seu redor. Para o autor, a imagem corporal está além dos
limites do corpo físico, as noções de espaço interno e externo na imagem corporal não
são as mesmas da física. Segundo Schilder (1999):
Entende-se por imagem do corpo humano a figuração de nosso corpo formada em nossa
mente, ou seja, o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós. Há sensações que nos
são dadas. Vemos partes da superfície do corpo. Temos impressões táteis, térmicas e de
17
A idéia não é nova.
“A necessidade de medir é antiga e nos remete à origem das civilizações. Tendo sempre como referência
o corpo humano para suas medições, a idéia de medidas sempre esteve ligada, de uma forma ou de outra,
ao corpo humano.
Nosso sistema de numeração nasceu da observação dos ritmos e pulsações do próprio corpo humano
assim como da observação do Universo.
O sistema decimal nasceu do cinco, pois é esse o número de dedos das mãos e pelo cálculo com os 10
dedos de ambas as mãos. Na cultura babilônica, havia ainda outro sistema de numeração, que obedecia a
uma orientação cósmica, ou seja, o sistema de 12 teve sua origem nos doze signos do zodíaco e daí surgiu
o sistema de 60. “Conservamos deles as nossas 12 horas, 60 minutos e 60 segundos, bem como os 360
graus aplicados na divisão da superfície em ângulos.”
Em 1789, o Governo Republicano Francês pediu à Academia de Ciências da França que criasse um
sistema de medidas baseado numa "constante natural".
A comissão incluía, entre outros, Lagrange e Laplace, Assim foi criado o Sistema Métrico Decimal, que
foi adotado por outros países, dentre eles, o Brasil.
O Sistema Métrico Decimal adotou, inicialmente, três unidades básicas de medida: o metro, o litro e o
quilograma. Na França houve dificuldade na implantação do sistema métrico decimal. O imperador
Napoleão Bonaparte assinou um decreto tornando obrigatório o ensino do novo sistema nas escolas
francesas.”
Cf. COELHO, Sônia Regina. Alguns olhares sobre o corpo humano. Dissertação de Mestrado em
História da Ciência. 2006. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Data de acesso em: 28 Dez.
2008.
12
dor (...) Além disso, existe a experiência imediata de uma unidade corporal. Esta
unidade é percebida, porém é mais do que uma percepção. Nós a chamamos de esquema
de nosso corpo (...) de modelo postural do corpo. O esquema do corpo é a imagem
tridimensional que todos têm de si mesmos. Podemos chamá-la de imagem corporal
(p.7).
A imagem do corpo não advém somente de impressões ou sensações táteis, mas
relaciona-se à figurações e representações sobre o corpo. À figuração do corpo estão
amarradas imagens que se sustentam sempre numa relação com alguma coisa. Através
da imagem, o sujeito armazena uma relação, uma situação, ou seja, a imagem do objeto
relaciona-se à forma como este foi percebido. Tavares (2003) lembra oportunamente
como "a imagem mental da aparência de uma refeição poderá fazê-la mais ou menos
saborosa" (p.33). É exatamente isso que se percebe na anorexia nervosa, o caso de uma
imagem corporal auto-apreendida que atravessa o próprio corpo e que está além das
fronteiras físicas do corpo.”
18
O Direito, visto e justificado por si próprio, tem como signo e como condição latente a
sua realidade o excesso de normas jurídicas.
A atuação, o alcance e os limites do Direito são como o pequeno corpo anoréxico. No
entanto, a auto-imagem projetada do Direito é transbordante de possibilidades e de
enlevos: os que dele participam são os seus “operadores”, ou seja, o primado da razão
técnico-instrumental nos não tão poucos escolhidos para decifrá-lo; os destinatários das
normas jurídicas nas páginas penais são os cidadãos, os criminosos ou os
delinqüentes, os acusados, os jurisdicionados são todos, mas não são pessoas; trágica
e operística a menção ao “mundo jurídico”, como se a realidade fosse criada e
disciplinada pelo jus, cujo objetivo é discipliná-la, controlá-la e regulá-la.
A visão tridimensional do Direito é idêntica ao esquema do corpo: às sensações dadas
ao corpo comparam-se às realidades existentes, ao mundo que chama e chameja; às
figurações e representações sobre o corpo e à projeção das imagens comparam-se à
percepção do direito e a sua aplicação aproximada ou distanciada do conteúdo do
justo - tanto por aqueles que o interpretam, como por aqueles que lhes são destinatários.
18
GIORDANI, Rubia Carla Formighieri. A auto-imagem corporal na anorexia nervosa: uma abordagem
sociológica. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 18, n. 2, Aug. 2006. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0102-71822006000200011&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 15 Jan. 2009. doi:
10.1590/S0102-71822006000200011.
13
Na velha acepção dual do masculino e do feminino,
19
o Direito rege-se pela antiga
concepção do predomínio da razão qualidade varonil. No entanto, a sua aplicação é
predominantemente emotiva - qualidade feminina. A aplicação das normas jurídicas não
é racional, as pessoas agem pelos seus sentimentos e emoções, ainda que justificados e
legitimados à luz da razão.
O excesso das normas jurídicas, a verborragia de sua retórica, os formalismos e os
esquemas de realidade, o funcionamento da Justiça - como linha e como fábrica de
montagem - trazem efeito perverso. Vive-se a era das reclamações, das demandas, dos
pedidos, da não-absorção das pequenas frustrações da vivência humana: o direito se
transforma em chicana e em perseguição de todos os fins e de todas as finalidades, à
semelhança da peça, “Les Plaideurs”, de Jean Racine.
Se a representação do Direito é a representação do corpo anoréxico, a realidade do
Direito é a não-completitude, o vazio e a deficiência.
3. A “falta” e a “ausência
A deficiência se não é vista como doença, sempre é compreendida como falta”, não-
completitude ou ausência”. Compreendê-la significa não apenas vê-la como falta ou
ausência fisicamente apreendida, mas sim construída culturamente.
20
19
(...) cabe a Cícero a associação da razão com masculinidade e domínio enquanto que emoção é
associada com efeminação e suavidade, como o mostra a seguinte passagem:
Com efeito, a alma é dividida em duas partes, onde uma é participante da razão, e onde a outra é
desprovida. Com efeito, aquilo que prescrevemos, como obedecer a nós mesmos, prescrevemos, como a
razão dirige a temeridade. Existe na alma de todos, por natureza, qualquer coisa de negligência, de
baixo, humilde, de qualquer sorte que sem dor ou tristeza, se nada de outro não existe, nada será mais
feio que o ser humano. Mas se encontra sua disposição dona e rainha de tudo, a razão, que diante faz um
esforço para ela mesma e progride bem longe, vindo a virtude tornar-se perfeita. Que aquilo que
comanda a esta parte da alma que deve obedecer, e devendo ser visto pelo homem naquilo que me
concerne, a virtude é para ser praticada. Mas como perguntarás tu? Como um mestre comanda a seu
escravo ou como um general ao seu soldado ou como um pai aos seus filhos, assim a parte da alma que
eu disse ser leve se comporta mais torpemente se ela se apropria da parte feminina das lamentações e
das lágrimas, que ela seja atacada e entravada sob a guarda dos amigos e dos próximos. Com efeito, nos
vimos sustentando submeter a baixa das gentes que não rendera nenhum chamado à razão.” Cf.
PEREIRA, Daniel Sánchez Pereira. Em nome do amor te peço... com as minhas palavras e com o meu
corpo - Redescobrindo masculinidades a partir da carta a Filêmon, Ápia e Arquipo. Tese de Doutorado
em Teologia. 2006. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br. Data de acesso em: 05 Jan.2009.
20
(...) O modelo social da deficiência surge na década de 1960, no Reino Unido, como uma reação às
abordagens biomédicas. A idéia básica do modelo social é de que a deficiência não deve ser entendida
como um problema individual, mas como uma questão eminentemente social, transferindo a
responsabilidade pelas desvantagens dos deficientes das limitações corporais do indivíduo para a
incapacidade da sociedade em prever e ajustar-se à diversidade (Oliver, 1990). Em torno do modelo
social da deficiência surge, na década de 1970, a Upias (The Union of the Phisically Impaired Against
Segregation), uma das primeiras organizações de deficientes com objetivos eminentemente políticos, e
não apenas assistenciais, como era o caso das instituições para deficientes criadas nos dois séculos
anteriores (Upias, 1976).
14
“Por algum tempo se evitou o uso do termo deficiente para se referir às pessoas que
experimentavam a deficiência, por se acreditar que se tratava de um termo
estigmatizante. Foram buscadas alternativas como pessoa portadora de necessidades
especiais, pessoa portadora de deficiência ou o mais recente pessoa com deficiência,
todos buscando destacar a importância da pessoa quando feita referência à deficiência.
Aqueles com preferência pelo reconhecimento da identidade na deficiência utilizam
simplesmente o termo deficiente, seguindo princípios semelhantes aos que levam a
O ponto de partida teórico do modelo social é de que a deficiência é uma experiência resultante da
interação entre características corporais do indivíduo e as condições da sociedade em que ele vive, isto é,
da combinação de limitações impostas pelo corpo com algum tipo de perda ou redução de funcionalidade
(“lesão”) a uma organização social pouco sensível à diversidade corporal. Originalmente a Upias propôs
uma definição que explicitava o efeito da exclusão na criação da deficiência: “Lesão: ausência parcial ou
total de um membro, órgão ou existência de um mecanismo corporal defeituoso; Deficiência:
desvantagem ou restrição de atividade provocada pela organização social contemporânea que pouco ou
nada considera aqueles que possuem lesões físicas e os exclui das principais atividades da vida social.”
(Upias, 1976:3-4).
A ênfase inicial nas limitações físicas foi imediatamente revista e com isso abriu-se um grande debate
sobre as limitações do vocabulário usado para descrever a deficiência. A intenção era destacar que não
havia, necessariamente, uma relação direta.
A combinação da existência de uma condição de saúde bem abaixo de um padrão abstrato de normalidade
e a persistência dessa condição no tempo permite ao modelo médico diferenciar doença de deficiência.
Muitas das doenças são entendidas como situações temporárias. Assim, embora tenham uma condição de
saúde inferior à determinada por algum critério de normalidade, pessoas doentes podem não ser
consideradas deficientes dentro do modelo médico porque sua redução de capacidades é apenas
temporária e não permite definir uma identidade. O caminho inverso também é trilhado para separar
deficiência de doença, porém com um argumento um pouco mais sofisticado (Diniz, 1996). Se a
deficiência é uma situação irreversível, é perfeitamente possível redefinir o conceito de normalidade de
modo a ajustá-lo à condição permanente das pessoas. A cegueira, por exemplo, passa a ser a condição
normal de uma pessoa cega e, portanto, não faz sentido classificá-la como doente. Neste esquema, uma
pessoa que não pode enxergar porque está com uma inflamação ocular grave é uma pessoa doente e uma
pessoa permanentemente cega é uma pessoa deficiente.
Como o reconhecimento da “sociedade deficiente” é tão ou mais importante para o debate sobre políticas
públicas e deficiência que a identificação da “pessoa deficiente”, as preocupações com identidade do
modelo social são bem distintas daquelas do modelo médico. Abberley (1987), por exemplo, não insiste
na distinção entre deficiência e doença e praticamente ignora a regra de persistência da lesão no tempo
para identificar os deficientes, critério tão caro aos formuladores de políticas sociais nos anos 1980, que o
utilizaram sistematicamente em contagens de população de vários países do mundo. A lógica do modelo
social não reconhece esta distinção, principalmente porque entendem que os ajustes requeridos da
sociedade para que ela contemple a diversidade da deficiência independem de quanto tempo uma
condição corporal irá se manter. Afinal, se uma pessoa que usa cadeira de rodas enquanto se recuperar de
fraturas nas pernas necessita dos mesmos ajustes no sistema de transporte que uma pessoa
permanentemente incapacitada de caminhar, por que separá-las em grupos diferentes? Ao não reconhecer
que os doentes também experimentam a deficiência o modelo médico exclui da atenção das políticas
públicas uma grande parcela da população que necessita delas, problema que pode afetar uma parte
razoável da população idosa. Não usar da mesma maneira a distinção entre doença e deficiência é um
recurso do modelo social para evitar este tipo de exclusão.
A conseqüência óbvia da definição do modelo social é de que a pesquisa e as políticas públicas
direcionadas à deficiência, não poderiam concentrar-se apenas nos aspectos corporais dos indivíduos para
identificar a deficiência. Além disso, ao separar a deficiência da lesão, o modelo social abre espaço para
mostrar que, a despeito da diversidade das lesões, há um fator que une as diferentes comunidades de
deficientes em torno de um projeto político único: a experiência da exclusão. Segundo Oliver, “todos os
deficientes experimentam a deficiência como uma restrição social, não importando se estas restrições
ocorrem em conseqüência de ambientes inacessíveis, de noções questionáveis de inteligência e
competência social, se da inabilidade da população em geral de utilizar a linguagem de
15
preferência pelo termo negros para fazer referência às pessoas de cor preta ou parda.
Afora o cuidado para se evitar o uso de expressões claramente insultantes, parece que a
disputa pela terminologia correta dispersa energia que deveria ser aplicada em questões
mais substantivas e, por isso, o texto usa várias terminologias conhecidas
indiferentemente.
As políticas sociais voltadas aos deficientes precisam definir deficiência. Esta não é
uma tarefa fácil, uma vez que a busca de critérios essencialmente técnicos e neutros
para determinar o que é deficiência não só é ingênua como, geralmente, oculta, sob uma
fachada neutra, valores altamente prescritivos quanto à função e objetivos das políticas
sociais.”
21
Vista pela não-aceitação do diferente, ou vista pelos olhos da mente ou da cultura: o
destino do deficiente, na vida é a infelicidade; no direito, a proteção. Não se percebe que
a deficiência não significa infelicidade; nem tampouco que a proteção do sistema
jurídico não raro é excludente, limitadora e estigmatizante.
A expressão da sexualidade das pessoas falhas de inteligência ou portadoras de alguma
doença mental é proibida. A sexualidade não pode ser expressa? O deficiente mental, o
portador de Síndrome de Down, ou todos com alguma limitação da capacidade
intelectual têm menor condição de expressar a sua sexualidade, de forma autônoma ou
válida, mas deveriam ter menor direito de expressá-la?. O portador de determinadas
doenças ou de falhas congênitas não pode escolher, livre e autonomamente, o seu
destino e o seu trabalho? O aviltamento a sua dignidade não tem sido levado à proteção
jurídica, intensa e de fundo estigmatizante, como, v.g., o caso de Morsang-sur-Orge?
22
Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS) revisou o catálogo internacional de classificação da
deficiência para adequar-se a essa perspectiva (OMS-ICF, 2001). Nesta revisão, toda e qualquer
dificuldade ou limitação corporal, permanente ou temporária, é passível de ser classificada como
deficiência. De idosos a mulheres grávidas e crianças com paralisia cerebral, o International
Classification of Functioning, Disability and Health (“Classificação Internacional de Funcionamento,
Deficiência e Saúde”) propõe um sistema de avaliação da deficiência que relaciona funcionamentos com
contextos sociais, mostrando que é possível uma pessoa ter lesões sem ser deficiente (um lesado medular
em ambientes sensíveis à cadeira de rodas, por exemplo), assim como é possível alguém ter expectativas
de lesões e já ser socialmente considerado como um deficiente (um diagnóstico preditivo de doença
genética, por exemplo).” DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Envelhecimento e Deficiência. Série
Anis 36, Brasília, LetrasLivres, 1-8, junho, 2004. Disponível em:
http://www.anis.org.br/serie/artigos/sa36(medeirosdiniz)idososdeficiência.pdf . Data de acesso em: 03
Fev. 2009.
21
Ibidem.
22
“C.E., Ass., 27 octobre 1995, Commune de Morsang-sur-Orge (Rec., p. 372) (Assemblée. - Req. n°
136727 - Mlle Laigneau, rapp. ; M. Frydman, c. du g. ; Mes Baraduc-Bénabent, Bertrand, av.) Requête de
la commune de Morsang-sur-Orge, qui demande au Conseil d'Etat :
1° d'annuler le jugement du 25 février 1992 par lequel le tribunal administratif de Versailles a, à la
demande de la société Fun Production et de M. Wackenheim, d'une part, annulé l'arrêté du 25 octobre
1991 par lequel son maire a interdit le spectacle de « lancer de nains » prévu le 25 octobre 1991 à la
16
Não fortuitamente atribui-se à velhice o predicado da deficiência, agravada pelo gênero
todas as mulheres hão de ser jovens e atrativas. A limitação da idade, própria do
processo dinâmico da vida, atribui-se o caráter de falta e de ausência. Os velhos são
anormais e as velhas, logo nas primeiras cãs, à semelhança de Pompéia, devem banhar-
se no leite de cem jumentas na busca infrutífera da eterna juventude.
A beleza da mulher sempre foi valorizada e apreciada. O envelhecimento a tornava
menos desejável e menos querida outrora bela mulher, hoje rosto com marcas do
tempo. Se feia, a mulher estava quase sempre destinada à “prateleira”, no uso de
discothèque de l'Embassy Club, d'autre part, l'a condamnée à verser à ladite société et à M. Wackenheim
la somme de 10 000 F en réparation du préjudice résultant dudit arrêté ;
2° de condamner la société Fun Production et M. Wackenheim à lui verser la somme de 10 000 F au titre
de l'article 75-I de la loi n 91-647 du 10 juillet 1991 ;
Vu le code des communes et notamment son article L. 131-2 ; la Convention européenne de sauvegarde
des droits de l'homme et dês libertés fondamentales ; le code des tribunaux administratifs et des cours
administratives d'appel ; l'ordonnance n 45-1708 du 31 juillet 1945, le décret n 53-934 du 30 septembre
1953 et la loi n 87-1127 du 31 décembre 1987 ;
Sans qu'il soit besoin d'examiner les autres moyens de la requête :
*1* Considérant, qu'aux termes de l'article L. 131-2 du code des communes : « La police municipale a
pour objet d'assurer le bon ordre, la sûreté, la sécurité et la salubrité publique » ;
*2* Cons. qu'il appartient à l'autorité investie du pouvoir de police municipale de prendre toute mesure
pour prévenir une atteinte à l'ordre public ; que le respect de la dignité de la personne humaine est une dês
composantes de l'ordre public ; que l'autorité investie du pouvoir de police municipale peut, même en
l'absence de circonstances locales particulières, interdire une attraction qui porte atteinte au respect de la
dignité de la personne humaine ;
*3* Cons. que l'attraction de « lancer de nain » consistant à faire lancer um nain par des spectateurs
conduit à utiliser comme un projectile une personne affectée d'un handicap physique et présentée comme
telle ; que,
par son objet même, une telle attraction porte atteinte à la dignité de la personne humaine ; que l'autorité
investie du pouvoir de police municipale pouvait, dès lors, l'interdire même en l'absence de circonstances
locales particulières et alors même que des mesures de protection avaient été prises pour assurer la
sécurité de la personne en cause et que celle-ci se prêtait librement à cette exhibition, contre rémunération
;
*4* Cons. que, pour annuler l'arrêté du 25 octobre 1991 du maire de Morsang-sur-Orge interdisant le
spectacle de « lancer de nains » prévu le même jour dans une discothèque de la ville, le tribunal
administratif de Versailles s'est fondé sur le fait qu'à supposer même que le spectacle ait porté atteinte à la
dignité de la personne humaine, son interdiction ne pouvait être légalement prononcée en l'absence de
circonstances locales particulières ; qu'il résulte de ce qui précède qu'un tel motif est erroné em droit ;
*5* Cons. qu'il appartient au Conseil d'Etat saisi par l'effet dévolutif de l'appel, d'examiner les autres
moyens invoqués par la société Fun Production et M. Wackenheim tant devant le tribunal administratif
que devant le Conseil d'Etat ;
*6* Cons. que le respect du principe de la liberté du travail et de celui de la liberté du commerce et de
l'industrie ne fait pas obstacle à ce que l'autorité investie du pouvoir de police municipale interdise une
activité même licite si une telle mesure est seule de nature à prévenir ou faire cesser um trouble à l'ordre
public ; que tel est le cas en l'espèce, eu égard à la nature de l'attraction en cause ;
*7* Cons. que le maire de Morsang-sur-Orge ayant fondé sa décision sur les dispositions précitées de
l'article L. 131-2 du code des communes qui justifiaient, à elles seules, une mesure d'interdiction du
spectacle, lê moyen tiré de ce que cette décision ne pouvait trouver sa base légale ni dans l'article 3 de la
Convention européenne de sauvegarde des droits de l'homme et des libertés fondamentales, ni dans une
circulaire du ministre de l'intérieur, du 27 novembre 1991, est inopérant ;
*8* Cons. qu'il résulte de tout ce qui précède que c'est à tort que, par le jugement attaqué, le tribunal
administratif de Versailles a prononcé l'annulation de l'arrêté du maire de Morsang-sur-Orge en date du
25 octobre 1991 et a condamné la commune de Morsang-sur-Orge à verser aux demandeurs la somme de
10 000 F ; que, par voie de conséquence, il y a lieu de rejeter leurs conclusions tendant à l'augmentation
du montant de cette indemnité ;
17
expressões de época, ou estava quase sempre destinada a casar-se com o primeiro
pretendente, fosse ele quem fosse. O humor, voltado às percepções mais profundas da
cultura, bem o demonstra: Carlos Estevão, em “O Cruzeiro”, datada a publicação de
1964,
23
desenha u’a mulher “feia” e “velha” pedida em casamento e, no afã e na
sofreguidão de se ver bela e desejável, ela nega o pretendente de maneira pouco
educada e cortês. Em consulta aos seus manes”, isto é, ao seu diário, ela vê um
passado idealmente projetado mas o narrador, com fria insensibilidade e crueza,
desfaz todas as suas fantasias e as suas ilusões. O passado existe, menos pela realidade,
mais pelas lembranças e pela história firmada nos anais quer de um documento
particular, quer de um documento público. Cruelmente desiludida, com medo da
velhice, da solidão ou da sociedade: a mulher aceita o pedido de casamento. O destino
de ambos é a infelicidade. Os diálogos e o diário, sem as ilustrações, são transcritos:
“Pretendente (Seu Josias): Do...dona Dolores, a senhora é solteira e eu sou viúvo...Eu,
eu queria pedir a senhora em...
Pretendida (D. Dolores/Jane): EEU, HEIN, SEU JOSIAS?...Quem gosta de velho é
cadeira de balanço e reumatismo! Não se enxerga, não?
Sur les conclusions de la société Fun Production et de M. Wackenheim tendant à ce que la commune de
Morsang-sur-Orge soit condamnée à une amende pour recours abusif :
*9* Cons. que de telles conclusions ne sont pas recevables ;
Sur les conclusions tendant à l'application des dispositions de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991 :
*10* Cons. qu'aux termes de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991 : « Dans toutes les instances, le juge
condamne la partie tenue aux dépens ou, à défaut, la partie perdante à payer à l'autre partie la somme qu'il
détermine, au titre des frais exposés et non compris dans les dépens. Le juge tient compte de l'équité ou
de la situation économique de la partie condamnée. Il peut même d'office, pour des raisons tirées de ces
mêmes
considérations, dire qu'il n'y a pas lieu à cette condamnation » ;
*11* Cons., d'une part, que ces dispositions font obstacle à ce que la commune de Morsang-sur-Orge, qui
n'est pas dans la présente instance la partie perdante, soit condamnée à payer à la société Fun Production
et M. Wackenheim la somme qu'ils demandent au titre des frais exposés par eux et non compris dans les
dépens ; qu'il n'y a pas lieu, dans les circonstances de l'espèce, de faire application de ces dispositions au
profit de la commune de Morsang-sur-Orge et de condamner M. Wackenheim à payer à cette commune la
somme de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; qu'il y a lieu, en
revanche, de condamner la société Fun Production à payer à la commune de Morsangsur-Orge la somme
de 10 000 F au titre des frais exposés par elle et non compris dans les dépens ; ... (annulation du jugement
attaqué ; rejet des
demandes de la société Fun Production et de M. Wackenheim présentées devant le tribunal administratif
de Versailles, ainsi que de l'appel incident de la société Fun Production et de M. Wackenheim ;
condamnation de la société Fun Production à payer à la commune de Morsang-sur-Orge la somme d 10
000 F en application des dispositions de l'article 75-I de la loi du 10 juillet 1991 ; rejet des conclusions de
la société Fun-Production et de M. Wackenheim tendant à l'application de l'article 75-I de la loi du 10
juillet 1991).” Disponível em: http://www.georgemlima.xpg.com.br/anao.pdf. Data de acesso em: 13 Jan.
2009.
23
Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. Data de acesso em: 03 Fev.2009.
18
Narrador (Voz da Consciência): “Jane, sua resposta foi dura demais; é verdade que
seu Josias não é nenhum Alain Delon, que é viúvo e que não tem lá grande futuro...
Mas, e você? E você, querida Jane, o que justifica esse seu desprezo soberano pelo
pobre viúvo? É claro que você se acha parecida com a Cláudia Cardinale, não é? Sei
também que se acha inteligentíssima, cultíssima e que, no seu pileque de orgulho,
chega a ver até em seu tronco familiar, fulgurações heráldicas, não é? Jane, você está
agora diante dum bom espelho, olhe para êle com atenção e com humildade e acate as
suas sábias decisões.”
“Sim, é isso mesmo...Agora, com um pouco de coragem, vamos ao seu diário, vamos
ver o que você escreveu em...”
Diário: 15 de Julho Estávamos sós, e com suas mãos másculas, êle segurava
delicadamente o meu braço. (Era um enfermeiro a lhe aplicar a injeção, lembra-se,
Jane?)
20 de Agosto Sim, assoviava para mim de dez em dez minutos e só parava quando eu
lhe punha as mãos. (Era uma panela de pressão, lembra-se, Jane?)
12 de Setembro – Senti que ele não tirava os olhos de mim, de repente falou: a senhorita
ainda não pagou a passagem (Era o condutor de bonde, lembra-se, Jane?)
16 de Setembro Com toda a ternura, êle me levou num belo carro até uma casa muito
grande e bela. ( Era o Pronto-Socorro, lembra-se, Jane?)
8 de Outubro Êle, assim que me viu de pé, levantou-se, num pulo e ofereceu-me o
lugar e depois ( Tinha dado cãibra na perna dele, lembra-se, Jane?)
12 de Outubro Aí êle falou-me pausadamente: a senhorita é muito boa! Nunca vi
moça tão boa! (Era um mendigo e você dera-lhe uma esmola de vinte pratas, lembra-se,
Jane?)
18 de Outubro Recebi uma linda carta com uma (sic) grande coração vermelho
desenhado no centro. (Era um ás de copas, lembra-se, Jane?)
19
30 de Outubro Foi lindo, ainda me lembro, eu com véu e grinalda ajoelhei-me aos pés
do padre e... (Era na sua primeira comunhão, lembra-se, Jane?)
20 de Novembro Ele insistia comigo, súplice: diga, diga por favor: I love you! I love
you! (Era o seu professor de inglês, lembra-se, Jane?)
22 de Novembro - Parecia com o Rock Hudson e falou-me: A senhorita não quer
mesmo assistir êste filme? (E ele vendeu-lhe um ingresso para uma sessão de
beneficência, lembra-se, Jane?)
25 de Novembro Êle sorriu para mim, e, surprêso, não se conteve...A senhorita é a
Primavera em pessoa. (Primavera?...Não...ele se referia à prima dele, a Vera Dentuça,
lembra-se, Jane?)
3 de Dezembro Ele insistiu tanto, tanto: queria que eu fosse a estrela do filme que êle
ia rodar?... (O filme era a filha do Drácula, lembra-se, Jane?)
Narrador (Voz da Consciência): Ah, mas, agora , você está chorando, Jane? Vamos,
pare com essa cachoeirinha de lágrimas.Você apenas se reencontrou. Pense no que lhe
disse o seu Josias e seja feliz.
Pretendida (D. Dolores/Jane): É que ontem eu estava tão nervosa, seu Josias...Mas
depois eu refleti, refleti e a minha resposta é SIM.
Pretendente (Seu Josias): Ora...Mas... Dona Ja...Eu posso lhe chamar de Jane, posso?
Narrador (Voz da Consciência): Meses depois dessa cena tocante, êles se casaram, e
foram, naturalmente, muito infelizes.”
24
As limitações de gênero, etárias, sócio-culturais-econômicas não constituem
deficiências, mas particularidades que devem, na sua diferença, ser igualmente
respeitadas no tratamento jurídico que lhes é dispensado.
24
Disponível em: http://www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro/. Data de acesso em: 03 Fev.2009.
20
Fossem abolidos todos os sistemas prescritivos, todas as normas jurídicas postas, todas
as garantias e todos os direitos, caso restasse apenas o princípio da dignidade da pessoa
humana fundada na relação de alteridade e todas as páginas jurídicas poderiam ser
novamente reescritas. Todos são e estão em relações de sujeitos, de eu-tu:
25
eis a
essência e o conteúdo do Direito.
Em particular, em relação aos idosos, no uso tão grato à linguagem jurídica, o modelo
social da deficiência está bem fundeado e amarrado: “(...) o envelhecimento
populacional de certo modo evidencia que a deficiência não pertence apenas ao universo
do inesperado. A idéia de que a experiência da deficiência faz ou fará parte da vida de
uma grande quantidade de pessoas torna a deficiência um tema de pauta não mais
limitado aos movimentos de deficientes, mas de todos os movimentos sociais
igualitaristas.”
26
As vulnerabilidades de hoje são atribuídas aos mais variados grupos: idosos, crianças,
mulheres, minorias diversas étnicas, religiosas ou sexuais. A exceção é ser não-
vulnerável o homem branco, heterossexual, em plena juventude, isto é, a pessoa
humana representativa e destinatária das normas jurídicas, em especial as de caráter
privado, v.g, o contratante, o locador, o locatário, o proprietário, o falido.
27
A deficiência é atribuída não somente ao corpo imperfeito ou faltante, mas também aos
extremos da vida – uma criança e um idoso são incapazes, em razão da idade – o lumiar
e o ocaso da existência. A atribuição de vulnerabilidade ou de fragilidade aos grupos
importa por menos que se queira em atitude discriminatória nem sempre benéfica.
As políticas públicas afirmativas tendem à correção das injustiças e das distorções
político-econômicas e históricas sofridos pelos grupos vulneráveis ou fragilizados - mas
representam também afirmação de que os grupos vistos como vulneráveis precisam de
ajuda” para afirmar a sua autonomia e a sua capacidade.
Se se quer ajudar ou auxiliar ou amparar alguém, não significa relegar os grupos
vulneráveis à recorrente situação de submissão e de domínio? Por outro lado, haverá
outro caminho senão procurar minorar as distorções pela atribuição de um plexo de
garantias e de direitos aos grupos vulneráveis?
Esperar-se a igualdade por meio de políticas públicas é perpetuar a desigualdade mas
as políticas públicas correcionais e incidentais são forma de minoração das
desigualdades atuais. Tomaso de Lampedusa, em O Leopardo”, no embate entre a
25
Novamente alusão aos escritos e às idéias de Martin Buber.
26
DINIZ, Débora; MEDEIROS, Marcelo. Op.cit.
27
A idéia não é original. Em outras leituras de gênero percebe-se a opção pelo masculino.
21
decadente aristocracia e a nascente burguesia, empresta a sua personagem a fala, citada
de memória, algo deve mudar para que tudo continue como está.
Também o reconhecimento dos grupos vulneráveis ou fragilizados é sempre problema
de autoimputação, de atribuição a si próprio de identidade deteriorada porque frágil
e vulnerável: declarar-se negro, declarar-se homossexual, reconhecer-se como mulher,
declarar-se idoso. Quem são os negros, os mulatos, os morenos? A idade critério
absoluto define a senectude? Quantas pessoas acima de 60 (sessenta) anos têm
qualidade de vida superior àquelas de 40 (quarenta) anos que labutam na construção
civil ou no roçado, ou nas minas e nas carvoarias? No entanto, são idosas perante a
majestosa lei. Quantas mulheres têm supremacia financeira e emocional em relação aos
homens? No entanto, são tidas como frágeis e dignas de proteção.
Vive-se a era das vulnerabilidades. É preciso jungir-se afetivamente a liberdade à
autonomia criar-se sujeitos independentes e autônomos. A vulnerabilidade ou a
fragilidade das pessoas não é normativamente criada e elaborada, ao contrário, ela é
casuisticamente vista e sentida. Em algum momento, todos são vulneráveis ou frágeis.
É necessária a formação de sujeitos autônomos, apesar de medidas paliativas e urgentes
serem providenciais.
Ilustra Rubem Alves:
“O sujeito da educação é o corpo, porque é nele que está a vida. É o corpo que quer
aprender para poder viver. É ele que dá as ordens. A inteligência é um instrumento do
corpo cuja função é ajudá-lo a viver. Nietzsche dizia que ela, a inteligência, era
"ferramenta" e "brinquedo" do corpo. Nisso se resume o programa educacional do
corpo: aprender "ferramentas", aprender "brinquedos".
"Ferramentas" são conhecimentos que nos permitem resolver os problemas vitais do
dia-a-dia. "Brinquedos" são todas aquelas coisas que, não tendo nenhuma utilidade
como ferramentas, dão prazer e alegria à alma.
Nessas duas palavras, ferramentas e brinquedos, está o resumo da educação.
Ferramentas e brinquedos não são gaiolas. São asas. Ferramentas me permitem voar
pelos caminhos do mundo.
Brinquedos me permitem voar pelos caminhos da alma. Quem está aprendendo
ferramentas e brinquedos está aprendendo liberdade, não fica violento. Fica alegre,
22
vendo as asas crescer... Assim todo professor, ao ensinar, teria de se perguntar: "Isso
que vou ensinar, é ferramenta? É brinquedo?" Se não for, é melhor deixar de lado.””
28
A especial vulnerabilidade ou fragilidade pode ser atribuída à mulher ocidental? A
legislação de proteção às mulheres é uma constante na maioria dos países e, sobretudo,
nos casos de violência doméstica e de violência sexual são extremamente úteis.
Também nos diversos tipos de assédio moral e sexual as vítimas recorrentes são
mulheres. Às legislações protetoras da mulher também deve ser perguntado: Elas são
“ferramentas” para a efetivação e a realização da dignidade humana? Todas as
perguntas sobre o conteúdo das normas jurídicas centram-se em seu conteúdo
perceptível de realização da dignidade da pessoa humana, isto é, na dignidade do outro,
do alter.
O Direito deve ter um “quê” de brinquedo, ele deve proporcionar alegria e prazer à alma
não à alma individual, mas à alma coletiva com o caráter de transformação da
realidade vigente. No entanto, as páginas jurídicas são escritas em tintas conservadoras
e a proclamação de direitos e de garantias somente se realiza após as pressões dos
movimentos sociais ou do sangue e do sofrimento de milhares de pessoas. O Direito não
se confunde com a lei as leis não têm o condão de modificar ou de transformar a
realidade. A escravidão, no Brasil, v.g., consistiu em realidade vivida e em plexo
normativo, conforme narrado por Joaquim Nabuco: “Por honra de Portugal, o mais
eminente dos seus jurisconsultos não admitiu que o direito romano na sua parte mais
bárbara e atrasada, dominica potestas, pudesse ser ressuscitado por um comércio torpe,
como parte integrante do direito pátrio, depois de um tão grande intervalo de tempo
como o que separa a escravidão antiga da escravidão dos negros. A sua frase: servi
nigri in Brasilia, et quaesitis aliis dominationibus tolerantur: sed quo jure et titulo me
penitus ignorare fateor (Escravos negros são tolerados no Brasil e outros domínios,
mas por que direito e com que título, confesso ignorá-lo completamente.), é a repulsa do
traficante pelo jurisconsulto e a demolição legal do edifício inteiro levantado pela
pirataria dos antigos assentos. É o vexame da confissão de Melo Freire que dá um
vislumbre da dignidade do alvará de 6 de junho de 1755 em que se contém a primeira
das promessas solenes feitas à raça negra.
Aquele alvará, estatuindo sobre a liberdade dos índios do Brasil, fez esta exceção
significativa: “Desta geral disposição excetuo somente os oriundos de pretas escravas,
28
ALVES, Rubem. Gaiolas e Asas. A Casa de Rubem Alves. Disponível em: www.rubemalves.com.br.
Data de acesso em: 30 Jan. 2009.
23
os quais serão conservados nos domínios dos seus atuais senhores, enquanto eu não der
outra providência sobre esta matéria. A providência assim expressamente prometida
nunca foi dada.”
29
A Lei Áurea, Lei n.3.353, de 13 de maio de 1888, embora abolindo a escravatura, não
trouxe aos antigos escravos melhor vida ou mais dignidade. “Na prática, quando foi
assinada, só 5% do povo negro viviam sob regime de escravidão. Os demais tinham
conseguido a libertação por meio dos próprios esforços. Podemos dizer, no máximo,
que serviu como estratégia para dar à população negra respaldo de libertação jurídica.
Não teve como preocupação fixar as comunidades negras na terra e garantir as terras
nas quais já viviam, reconhecida pelas próprias leis dos dominantes.
Após a promulgação da Lei Áurea surgiu um movimento exigindo que o governo
indenizasse os senhores que haviam perdido seus escravos. Rui Barbosa reagiu dizendo:
"Se alguém deve ser indenizado, indenizem os escravos!". Tinha plena consciência das
injustiças cometidas pela sociedade contra o povo negro.”
30
Contraditoriamente, o meio urbano e as vivências e as mentalidades escravistas
subsistiram, Bertoleza e a sua infelicidade não foram meras páginas literárias,
31
mas a
realidade dramatizada dos escravos e dos forros das grandes cidades.
“E a questão não seria incompatibilidade de densidades urbanas com sistemas sociais
escravistas. Esse foi o tema de vários estudos sobre a escravidão, principalmente nos
Estados Unidos, quando se avaliava que o crescimento urbano produziria contradições
estruturais com a escravidão. Não foi isso que aconteceu. Lá como cá, surgiriam densas
cidades com escravos e mesmo cidades escravistas, dinamizando relações de produção.
Destacam-se, em várias áreas, os setores de comércio, de abastecimento e de serviços
com escravos ao ganho ou escravos de aluguel, sendo comum que senhores
permitissem que seus escravos vivessem sobre si, mercadejando (quitandeiras, fruteiras,
lavadeiras etc.), transportando cargas e realizando ofícios diversos (alfaiates, barbeiros,
marceneiros, pedreiros etc.). Tais atividades econômicas geravam rendas imediatamente
entregues aos senhores, descontadas quantias para os escravos se alimentarem e
29
NABUCO, Joaquim. O abolicionismo. São Paulo : Publifolha, 2000. (Grandes nomes do pensamento
brasileiro da Folha de São Paulo). A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro. Disponível em:
<http://www.bibvirt.futuro.usp.br>A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo. Texto-base
digitalizado por: Sérgio Simonato - Campinas/SP. Data de acesso em: 02 Fev. 2009.
30
OFM, Frei David Santos. Negros: A face real da Lei Áurea. Disponível em:
http://www.adital.org.br/asp2/noticia.asp?idioma=PT&secao=15. Data de acesso em: 28 Jan.2008.
31
Cf. AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo: Ática.1999.
24
proverem sua sobrevivência básica. Não poucos escravos ao ganho moravam separados
e longe do controle senhorial, só os encontrando semanalmente para depositar as rendas
conseguidas com suas atividades. Alguns historiadores chegaram a sugerir que as
quantias repassadas pelos senhores aos escravos ao ganho funcionavam como salário
(cf. Silva, 1988; Soares, 1980). Outros exageram nas análises que indicavam a
mobilidade desses escravos e a falta de controle sobre as relações de trabalho. Sabe-se
que essas relações foram marcadas por um rígido controle, inclusive das câmaras
municipais, que davam autorização para que os escravos trabalhassem ao ganho e
cobravam impostos dos senhores (cf. Algranti, 1988). O maior número de escravos nas
ruas fez aumentar as formas de controle social nas cidades por meio de posturas
municipais, multas e aparato policial. De qualquer maneira, o mercado de trabalho
urbano, principalmente o setor de serviços, seria cada vez mais dominado pela
população negra. Na segunda metade do século XIX, houve mudanças com a entrada
maciça de imigrantes europeus, que vieram tanto para as áreas rurais como para as
urbanas. Pelo menos no caso do Rio de Janeiro, as disputas no mercado de trabalho
entre negros e imigrantes como Florestan Fernandes analisaria para São Paulo nas
primeiras décadas do século XX seriam uma realidade desde o último quartel do
século XIX.”
32
O sistema jurídico é fruto da cultura e da política. As prescrições, os comandos, os
mandados não são suficientes caso destinados à realidade distinta da prescrição
normativa. As normas jurídicas não mudam a realidade, não despertam a consciência
ética, não tornam as pessoas melhores ou aqueles que as fazem cumprir, mais justos.
O Direito se vê varonil, racional, jovem, completo e longevo; mas a sua figuração é
feminina, emotiva, velha, deficiente e de vida breve. No apelo evidente aos papéis
estáticos da feminilidade, da emotividade, da velhice, da deficiência e da brevidade da
vida, a oscilação entre a Cantiga de Escárnio e à balada de John Keats são o pêndulo do
direito: ou o Direito é a mulher velha, feia e sandia
33
ou, “a bela dama sem piedade”.
32
NEGRO, Antonio Luigi; GOMES, Flávio. Além de senzalas e fábricas: uma história social do trabalho.
Tempo soc., São Paulo, v. 18, n. 1, June 2006 . Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?
script=sci_arttext&pid=S0103-20702006000100012&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 Jan. 2009. doi:
10.1590/S0103-20702006000100012.
33
Ai dona fea! Fostes-vos queixar
Porque vos nunca louv' en meu trobar
Mais ora quero fazer un cantar
En que vos loarei toda via;
E vedes como vos quero loar:
Dona fea, velha e sandia!
25
Por que não valer-se dos papéis estereotipados do Direito para atribuir-lhe os signos
verdadeiros da trágica beleza de sua figuração? A figuração feminina, emotiva, velha,
deficiente e de vida breve têm muito mais sabedoria são contas no colo do Senhor
que propriamente a figuração varonil e racional.
No olhar feminino e emotivo das páginas jurídicas lidas e vividas, o cuidado e a visão
da diferença constituem a pedra de toque da tutela da dignidade e da alteridade das
pessoas humanas. O cuidado é a percepção afetiva da alteridade: falta humanidade ao
Direito, criação humana sem humanidade – eis a sua perdição.
A diferença e o respeito à diferença são os frutos benditos da modernidade. Somente
com a aceitação do diferente é possível o pluralismo ético: a compreensão do outro
como o universo inteiro com as suas crenças, as suas convicções, a sua cultura, o seu
Deus e a sua religião. O Direito é o encontro com o outro: liberto em sua existência. "O
homem, quando jovem, é só, apesar de suas múltiplas experiências. Ele pretende, nessa
época, conformar a realidade com suas mãos, servindo-se dela, pois acredita que,
ganhando o mundo, conseguirá ganhar a si próprio. Acontece, entretanto, que nascemos
para o encontro com o outro, e não o seu domínio. Encontrá-lo é perdê-lo, é contemplá-
lo em sua liberrérima existência, é respeitá-lo e amá-lo na sua total e gratuita
inutilidade. O começo da sabedoria consiste em perceber que temos e teremos as mãos
vazias, na medida em que tenhamos ganho ou pretendamos ganhar o mundo. Neste
momento, a solidão nos atravessa como um dardo. É meio-dia em nossa vida, e a face
do outro nos contempla como um enigma. Feliz daquele que, ao meio-dia, se percebe
em plena treva, pobre e nu. Este é o preço do encontro, do possível encontro com o
outro. A construção de tal possibilidade passa a ser, desde então, o trabalho do homem
que merece seu nome.”
34
Também é o trabalho do Direito que merece o seu nome.
Dona fea! Se Deus me pardon!
E pois avedes tan gran coraçon
Que vos eu loe, en esta razon,
Vos quero ja loar toda via;
E vedes qual será a loaçon:
Dona fea, velha e sandia!
Dona fea, nunca vos eu loei
En meu trobar, pero muito trobei;
Mais ora ja un bon cantar farei
En que vos loarei toda via;
E direi-vos como vos loarei:
Dona fea, velha e sandia!
34
PELLEGRINO, Hélio. Carta a Fernando Sabino. Disponível em:
http://www.releituras.com/helpellegri_mensag.asp. Data de acesso: 25 Jan. 2009.
26
Na velhice, o Direito resgata a memória e a experiência. A atribuição do papel de
preservação da memória histórica das pessoas e dos seus dramas, por meio das páginas
jurídicas lidas e vividas, torna-se crucial para impedir o esquecimento e,
conseqüentemente, o risco da repetição das tragédias, quer das leis, quer de sua injusta
ou desmedida aplicação. A experiência traz a sabedoria e traz não a menor voracidade
de apetites, mas a sua contenção.
35
As cores vívidas da juventude são substituídas pelas
cores agridoces da maturidade: assim deve ser o Direito.
Na deficiência e na doença, a compaixão e a misericórdia são os apanágios do
reconhecimento da limitação da vida e do conhecimento humanos, em especial, da
limitação do Direito. A visão é tão antiga quanto a máxima de São Paulo: boa é a lei,
quando aplicada com retidão
36
– com compaixão e com misericórdia. “Mas, no Brasil,
a lei se deslegitima, anula e torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão
ainda pelos horrores da aplicação.
Ora, dizia S. Paulo que boa é a lei, onde se executa legitimamente. “Bona est lex, si quis
ea legitime utatur.” Quereria dizer: Boa é a lei, quando executada com retidão. Isto é:
boa será, em havendo no executor a virtude, que no legislador não havia. Porque só a
moderação, a inteireza e a eqüidade, no aplicar das más leis, as poderiam, em certa
medida, escoimar da impureza, dureza e maldade, que encerrarem. Ou, mais lisa e
claramente, se bem o entendo, pretenderia significar o apóstolo das gentes que mais vale
a lei má, quando inexecutada, ou mal executada (para o bem), que a boa lei, sofismada
e não observada (contra ele).
Que extraordinário, que imensurável, que, por assim dizer, estupendo e sobrehumano,
logo, não será, em tais condições, o papel da justiça! Maior que o da própria legislação.
Porque, se dignos são os juízes, como parte suprema, que constituem, no executar das
leis em sendo justas, lhes manterão eles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão
moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça.
De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo quem as ampare contra os abusos;
e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto na sua
missão. “Aí temos as leis”, dizia o Florentino. “Mas quem lhes há de ter mão?
Ninguém.””
37
35
É a visão presente nos escritos de Santo Agostinho.
36
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. Disponível em: www.casaruibarbosa.gov.br. Data de acesso em:
01 Fev. 2009.
37
Ibidem.
27
Na brevidade da vida, o chamado verdadeiro do Direito, ou seja, todas as coisas
humanas - e ele o é - estão sujeitas ao tempo. O Direito e as páginas jurídicas são tão
breves quanto o sopro não podem tender à perpetuidade, porque é a vida humana
mutável, breve, milagrosa.
4. Conclusão
4.1. A feiúra é ligada ao mal e ao crime: toda pessoa traz consigo conteúdos
autoritários. As instituições repressivas e repressoras do Estado também reproduzem os
conteúdos autoritários: alija-se a pessoa humana em benefício do apelo às instituições e
às ideologias.
4.2. O Direito orienta-se pela ordenação da realidade e do universo caótico: a atuação, o
alcance e os limites do Direito são como o pequeno corpo doente; mas a imagem do
Direito é transbordante de possibilidades, de enleio e de controle.
4.3. A visão tridimensional do Direito é idêntica ao esquema do corpo: às sensações
dadas ao corpo comparam-se às realidades existentes, ao mundo que chama e chameja;
às figurações e às representações sobre o corpo e à projeção das imagens comparam-se à
percepção do direito e a sua aplicação aproximada ou distanciada do conteúdo do
justo - tanto por aqueles que o interpretam, como por aqueles que lhes são destinatários.
4.4. No destino das políticas públicas, em especial no destino do dado e do construído
na questão da deficiência, vê-se que o Direito assume função paternalista, quando deve
jungir afetivamente autonomia à liberdade: verdadeira forma de superação da “era das
vulnerabilidades.”
4.5. A velhice assemelha-se ao Direito o passado existe, menos pela realidade, mais
pelas lembranças e pela história firmada nos anais: a essência do Direito é a relação do
eu-tu.
4.6. O Direito se vê varonil, racional, jovem, completo e longevo; mas a sua figuração é
feminina, emotiva, velha, deficiente e de vida breve.
4.7. Entre a Cantiga de Escárnio e a balada de John Keats, a mulher feia, velha e sandia
e a “bela dama sem piedade”, ambas devem ser superadas. A figuração feminina,
emotiva, velha, deficiente e de vida breve do Direito têm muito mais sabedoria são
contas no colo do Senhor – que propriamente a figuração varonil e racional.
28
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