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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Washington Santos Nascimento
CONSTRUINDO O “NEGRO”:
lugares, civilidades e festas em Vitória da Conquista/BA
(1870-1930)
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Washington Santos Nascimento
CONSTRUINDO O “NEGRO”:
lugares, civilidades e festas em Vitória da Conquista/BA
(1870-1930)
MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do título de
MESTRE em Ciências Sociais com concentração em
Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, sob a orientação da Prof
a
Doutora
Josildeth Gomes Consorte.
SÃO PAULO
2008
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BANCA EXAMINADORA
______________________________________________
______________________________________________
______________________________________________
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À minha filha Amanda e à minha
esposa Railda.
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AGRADECIMENTOS
Sempre gostei de “agradecimentos”, toda vez que abro um livro para ler
começo por eles. Acho muito interessante e porque não dizer? importante saber
quem é a pessoa que está escrevendo aquele texto, com quem dialogou, onde
trabalhou, porque isso acaba ajudando a entender o próprio texto escrito.
Primeiro gostaria de agradecer à minha orientadora Prof. Dra. Josildeth
Gomes Consorte (Josi), pessoa cuidadosa, profunda conhecedora do tema em
discussão e principalmente generosa. Ela consegue dar autonomia ao seu
orientando e é sutil e acurada nas suas intervenções, contribuindo dessa forma
decisivamente para o desenvolvimento das reflexões presentes nesta dissertação.
À professora Dra. Leila Leite Hernandez, preciosa descoberta em São Paulo
de quem fui aluno em uma disciplina, me ajudou muito a desconstruir uma certa
visão marcada pelos binarismos e “maniqueísmos” e a entender que a realidade
cotidiana é sempre marcada por ambivalências e “entre-lugares”.
Á professora Dra. Maria Antonieta Antonacci pelas preciosas colaborações
durante o exame de qualificação. A ela devo a indicação de textos valiosos para o
entendimento das representações construídas sobre o negro, referências para o
entendimento de batuques, sambas e cordéis.
Ao professor Dr. Itamar Pereira de Aguiar, amigo, interlocutor constante,
com afinco como em poucas pessoas leu com atenção diferentes versões desta
dissertação, sempre chamando a atenção para os cuidados com a forma e para que
percebesse as especificidades da formação histórica de Vitória da Conquista.
Ao professor Jorgeval Andrade Borges, outro grande interlocutor, amigo
leal, nunca se furtou nem mesmo aos sábados e domingos em discutir esse texto.
Crucial no momento de término da dissertação quando soube balizar o trabalho e
sugerir que não era mais necessário avançar em outros debates, mas, sim, dar
conta daqueles que já estavam em curso.
À professora Ms Graziele de Lourdes Novato Ferreira, devo a paixão pelos
estudos sobre o negro, pelo aprofundamento da discussão dessa temática, a partir
do momento em que, trabalhando juntos, nos tornamos mais próximos, lá pelos idos
de 2004. Ela me ajudou a rever e aprofundar o meu entendimento sobre o assunto.
Devo a ela também o franqueamento de sua biblioteca e as sugestões de pesquisa
desde o momento do projeto.
.
7
A Flávio, Ocerlan, Vanderlucy, Renata, Thiago, Fabíola, Claudimércia, Ana,
Eliana e todos os participantes do “Grupo de Estudos em História da África e da
América Negra”, ligado ao Museu Pedagógico, espaço de discussão importante que
tem ajudado nesses anos a amadurecer temas e pesquisa no que tocam à
discussão étnico-racial.
Ao Museu Pedagógico, nas pessoas de Lívia, Tininha, Keila, Sandra,
Cecílio, Dona Vitória, Seu Robertino, Irani, Claudinei, Tânia, Beth, Ana, espaço de
grande aprendizado para mim. Em qual lugar travaríamos um debate entre um físico,
um lingüista e um historiador sobre a polissemia da palavra gênero? O período em
que atuei como agente cultural do museu foi de muito amadurecimento, só tenho a
agradecer.
Aqui um agradecimento especial à professora Dr. Lívia Diana Rocha de
Magalhães. Poucas pessoas têm a capacidade de ser tão articuladas, tão
propositivas e de trabalhar tanto em prol da pesquisa, do ensino, sem, entretanto,
perder a sua veia ética e moral. O trabalho lado a lado com ela só fez renovar as
forças de que é possível construir uma Universidade diferente das que temos.
Agradeço também ao Departamento de História da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia, no qual sou professor substituto, aqui representado na figura
do seu ex-diretor, professor Dr. Luiz Otávio de Magalhães, a quem agradeço a
colaboração no momento em que me encontrava em São Paulo e dando aula na
UESB. Agradeço também indistintamente a todos os professores. Foram cinco anos
de convívio que possibilitaram uma maturação intelectual imprescindíveis para a
minha formação, como professor, historiador e pesquisador. A todos, muito obrigado.
A Zélia Chequer, pela justeza na correção ortográfica, mesmo com os
prazos exíguos dados por mim.
Aos amigos Cida, Miro e seu filho Caio, que sempre me receberam de
braços abertos em São Paulo. Peço desculpas pelos possíveis incômodos
causados. Vocês sempre serão referências para mim. Muito obrigado por tudo.
Ao amigo José Rubens (Binho), parceiro, companheiro de História da
América e das aspirações de que é possível construir outro mundo.
Aos colegas de mestrado da UESB, por terem ajudado a “segurar a barra”
em São Paulo e pelo carinho fraternal com que sempre nos tratamos.
À UESB e sua Pró-Reitoria de Pós-Graduação, por ter, por meio do
convênio com a PUC/SP, tornado possível a existência desse mestrado. Aqui um
.
8
destaque especial ao gerente de Pesquisa, Romildo, que sempre se esforçou ao
máximo para resolver quaisquer problemas que tivéssemos.
À Fundação de Amparo a Pesquisa da Bahia, de quem recebi uma bolsa
durante parte da realização do mestrado.
À contribuição inestimável da minha irmã Fernanda, fundamental no
momento em que, por questões estruturais, a minha ida a São Paulo tinha se
tornado difícil. A ela, meu muito obrigado.
À meus pais, Uilson e Cida, por tudo.
Agradeço, principalmente a minha esposa Railda e a minha filha Amanda,
pela alegria e tranqüilidade que trouxeram para minha vida.
.
9
O que é teoricamente inovador e politicamente crucial é a
necessidade de passar além das narrativas de subjetividades
originárias e iniciais e de focalizar aqueles momentos ou
processos que são produzidos na articulação de diferenças
culturais. Esses “entre - lugares” fornecem o terreno para a
elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou
coletiva – que dão início a novos signos de identidade e postos
inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a
própria idéia de sociedade.
BHABHA, Homi K. (1998, p. 20)
.
10
RESUMO
Esta dissertação tem por propósito discutir a criação de “lugares sociais” para a
população afro-descendente, da região de Vitória da Conquista, município localizado
no sudoeste da Bahia, no período compreendido entre 1870 e 1930. Esses lugares
eram definidos pelo racismo, por diferenciações sócio-econômicas, pela ideologia do
branqueamento (mesmo difusa e não sistematizada) e, ainda, por questões de
moral, honra e noções diferenciadas de civilidade. Ancorados nas discussões
propiciadas pelas representações sociais e pelos estudos culturais, aprofundamos o
debate sobre a criação desses “lugares”, bem como dos “contra-lugares” e “entre-
lugares” com base na análise de conflitos cotidianos inscritos, sobretudo em
processos crimes e jornais e nas análises de festas, momento máximo de interação
social dos membros daquela sociedade.
.
.
11
ABSTRACT
This thesis has the purpose to discuss the creation of "social places" for african-
descendant population, the region of Vitoria da Conquista, located in the southwest
municipality of Bahia, in the period between 1870 and 1930. These places were
defined by racism, by socio-economic differences, the ideology of money (even
diffuse and not systematized), and also, for reasons of morality, honor and different
notions of civility. Anchored in the discussions offered by the social representations
and cultural studies, deepened the debate on the creation of these "posts" and
"counter-posts" and "between-posts" on the basis of everyday conflicts subscribers,
especially in cases crimes and newspapers and reviews of festivals, when most of
the social interaction of members of that society.
.
12
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 Localização das fazendas da Família Gonçalves da Costa......................38
Figura 2 Euflosina Maria de Jesus (Fulô do Panela) .............................................45
Figura 3 – Banda Militar (I) ....................................................................................... 67
Figura 4 – Banda Militar (II) ...................................................................................... 68
Figura 5 – Destacamento Militar ................................................................................68
Figura 6 – Serviços Públicos (I)................................................................................ 67
Figura 7 – Serviços Urbanos .....................................................................................70
Figura 8 – Serviços Públicos (II) ................................................................................71
Figura 9 Maria Rogaciana ....................................................................................106
Figura 10 João Gonçalves da Costa na visão de Orlando Celino........................ 123
.
13
LISTA DE TABELAS E GRÁFICOS
Tabela 1– Filhos da Ex-escrava Maria Bernarda e seus escravos........................... 43
Tabela 2 Censo de 1870 ........................................................................................50
Tabela 3 Escravos nos Inventários (1878 – 1888)................................................. 50
Tabela 4 Relação da cor dos escravos (1878 – 1888) ..........................................53
Tabela 5 Negros e Mestiços (1878 – 1888) ............................................................54
Tabela 6 Censo de 1872 ........................................................................................55
Tabela 7 – Crianças da Rua de Cima .......................................................................66
Tabela 8 – Crianças da Rua de Baixo ...................................................................... 66
Gráfico 1 Cor dos escravos (1878 – 1888) .............................................................53
Gráfico 2 Censo de 1872 ........................................................................................55
Organograma da Família Gonçalves da Costa ........................................................ 48
.
14
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AFJM – Arquivo do Fórum João Mangabeira – Vitória da Conquista/BA.
AFWL – Arquivo do Fórum Washington Luiz – Maracás/BA.
AFLSC – Arquivo do Fórum Liderico Santos Cruz – Ituaçu/BA.
AIMVC – Arquivo da Igreja Matriz de Vitória da Conquista.
APEB – Arquivo Público da Bahia – Salvador/BA.
GEPHAAN – Grupo de Estudos em Historia da África e da América Negra.
MP – Museu Pedagógico.
MR – Museu Regional.
.
15
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................17
Em torno das terminologias .......................................................................................18
Trajetórias de uma pesquisa .....................................................................................21
Trabalho de Campo ...................................................................................................23
Estrutura da Dissertação ...........................................................................................24
CAPITULO I
PERSPECTIVAS TEÓRICAS ...................................................................................25
1.1 – O “outro-homogeneizado”: Representações, violência Simbólica e
ambivalências ............................................................................................................25
1.2 - Polifonias, discurso e contexto. .........................................................................28
CAPÍTULO II
A FORMAÇÃO DE UMA REGIÃO NEGRO-MESTIÇA.............................................30
2.1 - Índios e negros e os contatos étnico-raciais......................................................30
2.2 – A família Gonçalves da Costa: negros, mestiços e a formação do Sertão da
Ressaca. ....................................................................................................................37
2.3 – A presença escrava ..........................................................................................49
2.3.1 – Dimensões da presença escrava na região da Imperial Vila da Vitória ........57
2.4 - A Abolição da escravidão e seus diferentes significados .................................62
CAPITULO III
REPRESENTAÇÕES DE “MESTIÇOS”, “PRETOS” E “NEGROS” EM VITÓRIA
DA CONQUISTA (1870-1930) ..................................................................................71
3.1 - Crioulos, Mulatos e Pardos: Cor e Comportamento ..........................................71
3.2 - Construindo o “negro”: Lugares e ambivalências...............................................75
.
16
CAPITULO IV
NEGROS, CIVILIDADES E FESTAS EM VITÓRIA DA CONQUISTA/BA (1870 –
1930)..........................................................................................................................98
4.1 – Festas cívicas: O 13 de maio......................................................................... 101
4.2 – Festas Religiosas: Divino Espírito Santo, Nossa Senhora das Vitórias, São
Benedito e Folia de Reis .........................................................................................106
4.3 – Festas Populares: Batuques e Sambas .........................................................112
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................120
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS E DOCUMENTAIS .......................................123
ANEXOS ................................................................................................................ 137
.
17
INTRODUÇÃO
Em 1979, Roberto da Matta publicou um ensaio, hoje clássico para o
entendimento da realidade brasileira, intitulado "Você sabe com quem está
falando?". O texto mostra a existência de um ritual autoritário, incrustado na
realidade cotidiana e que remete não à tão celebrada cordialidade brasileira, mas a
um traço estruturante da realidade, o autoritarismo nas relações cotidianas.
Segundo ele, a expressão “Você sabe com quem está falando?” funciona
como um verdadeiro ritual que, em momentos de tensão e ambigüidade, demarca
fronteiras, delimita lugares e constitui um componente decisivo e eficaz para a
proteção da paz hierárquica ameaçada. Apesar de ser uma questão não plenamente
desenvolvida por Da Matta, essa expressão traz a marca de problemas não
resolvidos desde o período da escravidão e trata de um embate em assuntos ligados
à discussão étnico-racial em meio às ambigüidades da classificação racial brasileira.
Segundo Josildeth Consorte (1991):
[...] a definição do lugar do negro na sociedade brasileira sempre se
constituiu um problema para o estado, para as elites e para o próprio povo,
não obstante a intensa miscigenação que se iniciou desde os primeiros
tempos da colonização e que correu solta desde então e das marcas
profundas que a sua presença foi imprimindo à cultura que então se formava
(CONSORTE, 1991, p.87).
À luz dessa consideração, levanto a argumentação de que, historicamente, na
região de Vitória da Conquista, foram construídos determinados “lugares sociais”
para a população afro-descendente, definidos não só pelo racismo, mas, também,
por questões de moral, honra e noções diferenciadas de civilidade.
Para entender que “lugares” são esses, é preciso discutir como, no cotidiano
da população afro-descendente (mestiços e negros), foram construídas, por
“brancos” e pela própria população afro-descendente, as representações sobre o
“ser negro” e o “ser do negro
1
” e as ambigüidades inerentes a essa construção.
A região em questão é a de Vitória da Conquista, município localizado no
Sudoeste da Bahia, distante 512 quilômetros de Salvador. Ao longo do tempo, essa
cidade teve diferentes denominações, sempre associadas à conquista sobre os
1
Parafraseando aqui SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro. São Paulo/Rio de
Janeiro:Pallas/EDUC/Fapesp, 2002
.
18
indígenas locais e à intercessão de Nossa Senhora das Vitórias nesse
empreendimento: a primeira, “Arraial da Conquista”, até 1840, quando se tornou vila,
e, então, recebeu a denominação de “Imperial Vila da Vitória”. No ano de 1891, com
a elevação à categoria de cidade, passou a se chamar "Conquista" e, por fim, no ano
de 1943, passou a ter, definitivamente, o nome de "Vitória da Conquista".
Como este trabalho se refere aos anos compreendidos entre 1870 e 1930,
seria correto adotar as denominações utilizadas nesse período. Entretanto, para não
dificultar o entendimento, utilizo, em boa parte do texto, a terminologia "Vitória da
Conquista", a não ser nos casos em que houver necessidade de uma identificação
mais específica.
Começo a discutir as representações havidas no século XVIII sobre a
população afro-descendente, com base nos contatos entre índios, negros e brancos,
mas o recorte proposto é entre 1870 e 1930. É nesse período que as
representações sobre o negro e suas práticas culturais serão analisadas com maior
profundidade.
Em torno das terminologias
A construção de determinados termos, expressões, palavras, reflete e reduz
as discrepâncias e conflitos existentes nas relações sociais
2
. Para Pierre Bourdieu
(1998), “O que faz o poder das palavras e das palavras de ordem, poder de manter a
ordem ou de subverter, é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as
pronuncia, crença cuja produção não é de competência das palavras” (BOURDIEU,
1998, p. 15).
Como os termos que aparecem ao longo desta dissertação são construções
sociais, creio ser útil discutir o contexto em que foram criados, o qual remonta a uma
historicidade que antecede ao Sertão da Ressaca (atual região de Vitória da
Conquista). Florence Carboni e Mario Maestri (2003) destacam o quanto essas
denominações têm sido retomadas de maneira acrítica por boa parte da
historiografia contemporânea
3
.
2
Ver HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e medições culturais. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2003,
p. 180.
3
Ver MAESTRI, Mário e CARBONI, Florence. A Linguagem Escravizada. Editora Expressão Popular,
São Paulo, 2002, p. 76.
.
19
A origem desses termos data do século XVIII, quando foi criado um sistema
classificatório que visou categorizar as formas vivas do planeta e que, estendido às
classificações sociais, visando ai categorizar os seres humanos. Em 1758, o homo
sapiens era classificado em seis “variedades”: homem selvagem, americano,
europeu, asiático, africano e “monstros”. Na descrição do africano, já havia a
associação entre cor e comportamento, “Africano. Negro, fleumático, relaxado.
Cabelos negros, crespos; pele acetinada; nariz achatado, lábios túmidos;
engenhoso, indolente, negligente. Unta-se com gordura. Governando pelo capricho”.
(BURKE In PRATT, 1999, p. 68)
Nessa descrição, já se observa a associação entre africano e negro
4
. Em
Portugal, segundo Florence e Maestri (2003), que citam José Ramos Tinhorão, o
termo “negro” era utilizado para se referir a todos aqueles de pele escura, inclusive
os mouros. Os contingentes de escravos africanos, por terem a pele mais escura do
que a dos mouros, foram chamados de “pretos”. Esse qualificativo passou a
designar todo escravo vindo da África, que, quando se tornava livre ou, em casos
excepcionais
5
era denominado “preto livre” ou “preto forro”
6
. Ao que parece, o uso
do vocábulo “preto” suplantou o uso do vocábulo “negro” em Portugal: segundo
testemunho de Luís da Câmara Cascudo (2002), em 1965, ao realizar viagens à
África e a Portugal, raramente ouvia o termo “negro”
7
.
No Brasil, segundo André Antonil (1967)
8
, os primeiros senhores inicialmente
utilizavam a expressão “ladinos” quando se referiam aos escravos já “habituados” ao
trabalho; e “boçais”, aos ainda “crus”, sem contato com os portugueses e com o
trabalho a ser desenvolvido no novo mundo. Com o passar do tempo, aqueles que
eram nascidos no Brasil passaram a ser chamados de “crioulos”
9
.
4
A etimologia da palavra “negro” segundo Câmara Cascudo (2002) se referiria aos povos do rio niger,
situado na África.
5
Tivesse vindo livre da África por exemplo.
6
A partir dos documentos que vimos esse “preto forro” fora o qualificativo recebido por João
Gonçalves da Costa.
7
Ver CASCUDO, Luís da Câmara. Made in África. 3ª ed. São Paulo : Global, 2002, p. 45
8
O texto original de Antonil é de 1711. Ver ANDREONI, João Antonio (Antonil). Cultura e opulência
do Brasil por suas drogas e minas. São Paulo: Melhoramentos, 1970. [1711]
9
LARA, Silvia. H. Linguagem, domínio senhorial e identidade étnica nas Minas Gerais de meados do
século XVIII.. In: FELDMAN-BIANCO, Bela, ALMEIDA, Miguel Vale de; BASTOS, Cristiana (Org.).
Trânsitos Coloniais: diálogos críticos luso-brasileiros.. 1 ed. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais,
2007, v. , p. 205-225.
.
20
Segundo Sílvia Lara (2007), os senhores de escravos e traficantes detinham
um vasto conhecimento sobre a diversidade étnica da escravaria, já que a origem é
que determinava o preço das “peças” a serem vendidas. Com o passar do tempo, as
denominações passaram a ser associadas à nação de origem dos escravos, daí
terem surgido os benguelas, minas, angolas etc. Esse raciocínio não é de todo
correto, pois havia certa “confusão” entre o porto de saída e a origem do indivíduo.
Por exemplo, os escravos que tivessem embarcado no porto do Castelo de São
Jorge da Mina, região de Gana, Golfo da Guiné, mesmo tendo origens diversas,
eram chamados de escravos Mina.
Em finais do século XVIII e no século XIX, com a ampliação do número de
escravos nascidos no Brasil e a grande miscigenação alcançada, novas tipologias
foram criadas ou acentuadas pelo uso corrente, tais como “mulato”, “pardo”, “cabra”.
Esses termos eram utilizados para insinuar matizes de mestiçagem, mas, também,
gradações sociais. Já a palavra negro, “[...] podia ser empregada de modo genérico,
amalgamando escravos e libertos (ou mesmos livres) numa massa indistinta,
socialmente inferior e, sobretudo, apartada da liberdade” (LARA, 2007, p. 228).
Como bem observa Lilia Moritz Schwarcz (1996), a mestiçagem, articulada à
possibilidade de ascensão econômica, levou não a uma absolutização terminológica,
branco versus negro, mas à construção de matizes de cor, que,
contemporaneamente, fizeram emergir o termo “moreno” em contraposição ao
caráter inócuo do termo “pardo”, ou à “frieza” do branco e do preto
10
.
Antes mesmo de Schwarcz, Josildeth Consorte (2003), em parceria com
Marvin Harris, Joseph Lang e Bryan Byrne escreveu um texto com o sugestivo titulo
de “Who are the Whites?” (“Onde estão os Brancos”) publicada no ano de 1993 pela
Social Forces Journal. Através de uma pesquisa de campo realizado na região de
Rio de Contas, na Bahia mostraram que quando em uma pesquisa censitária o
“moreno” é utilizado como substitutivo de “pardo”, há um aumento da população que
se considera como “morena” e uma diminuição dos que se consideram “brancos”.
Esses resultados mostraram segundo os autores as incoerências de se utilizar no
Brasil (e no resto do continente) categorias dicotômicas (brancos/não brancos) ou
10
Antes mesmo de Scwartz, Josildeth Consorte, em parceria com Marvin Harris, Joseph Lang e
Bryan Byrne escreveu um texto com o sugestivo titulo de “Who are the Whites?: Imposed Cesus
Categories and the Racial Demography of Brasil”
.
21
tricotômicas (brancos/mestiços/negros) tidas até então como adequadas para
evidenciar a identidade racial nos Estados Unidos.
Atualmente, o termo afro-brasileiro tem sido utilizado em contraposição a
“moreno” ou mesmo a afro-descendente, por se entender que todos no Brasil seriam
descendentes de africanos. Como o termo afro-brasileiro, da forma como é
entendido por parte do movimento negro, pode excluir o “mestiço”, prefiro usar nesta
dissertação o termo “afro- descendente” ou, mesmo, descendente de africanos.
Convém ressaltar que o emprego para designar grupos (pardos, crioulos, mulatos,
pretos) que, apesar de sua ascendência africana, podem, caso assim entendam, se
dizer não negros.
Quanto ao termo “negro”, devo explicar que, ao utilizá-lo, não me refiro
somente à questão de pele; refiro-me, sobretudo, a um “lugar social” que independe
da tonalidade mais clara (mestiços) ou mais escura (pretos) de pele. Como veremos,
esse lugar pode ser mais de um, mas é sempre construído.
Trajetórias de uma pesquisa
O meu trabalho sobre as populações negras teve início no ano de 2000, com
um estudo sobre a presença negra na Gruta da Mangabeira, no município de Ituaçu,
região Sudoeste da Bahia: um trabalho de memória, que tomou como ponto de
partida as histórias de vida das pessoas mais velhas da localidade. A princípio, os
primeiros entrevistados me contavam “histórias para turistas”, reproduzindo um
imaginário coletivo, já solidamente cristalizado, principalmente pelos órgãos de
turismo local, que enfatizavam a força religiosa da gruta, para a qual os primeiros
moradores teriam convergido.
Ao permanecer mais tempo na região e conhecer um casal de velhos, negros,
dona Alzira Oliveira (então com 76 anos) e seu João Oliveira (então com 69 anos), a
história começou a ser desmontada. O povoado da Mangabeira existia antes de a
gruta ser “descoberta” como centro religioso. Era terra devoluta, sem dono certo e
para onde migrou parte da população negra depois da escravidão, oriunda
principalmente das zonas de mineração da Chapada Diamantina. Com o passar dos
.
22
anos e com a chegada de pessoas atraídas pelo centro de romarias no local
11
, o
grupo foi perdendo a sua característica de comunidade negra.
Os depoimentos também me incentivaram a buscar, no Fórum local,
documentos escritos que dessem suporte ao relato dos meus depoentes. Por se
tratar de uma cidade criada no século XIX e com uma comarca antiga, localizei
documentos valiosos sobre a presença negra na localidade, por meio dos quais
tomei contato com histórias de outros personagens negros dos finais do século XIX.
Personagens, como Iria de Brito Gondim e Maria Januária, mulheres forras que
tiveram filhos com senhores de escravos e entraram na justiça para ter a posse dos
filhos, me evidenciaram o quão complexa tinham sido as relações entre os mesmos
e o motivo pelo qual esse processo não contribuiu para a “harmonia” social, pelo
contrario, acentuou as tensões entre negros e brancos
12
.
Após a pesquisa em Ituaçu, me dediquei à análise da presença escrava em
uma das mais antigas cidades do interior baiano, Maracás, também localizada no
Sudoeste do estado, onde fiz o levantamento de todos os processos de óbitos da
população negra (1877-1887), tentando, sobretudo, perceber a dinâmica da vida
cotidiana da população negra na localidade
13
.
Em Vitória da Conquista, com a experiência de docência na área de História da
América e preocupado em fazer algumas “pontes” entre a docência e a pesquisa
anteriormente realizada, dediquei-me a investigar as representações da revolução
haitiana entre letrados brasileiros e viajantes estrangeiros entre os anos de 1871 a
1940
14
.
A partir de 2005 com o “Grupo de Estudos e Pesquisa em História da África e
da América Negra (GEPHAAN)
15
”, vinculado ao Museu Pedagógico, da UESB,
passei a me preocupar, sobretudo com a presença negra em Vitória da Conquista.
11
NASCIMENTO, Washington Santos. Escravidão e Memória: Os negros no Arraial do Brejo Grande
e na cidade de Ituaçu, BA. Revista Memória Conquistense, v.7, Vitória da Conquista, Edições UESB,
2007. p.19 – 38.
12
NASCIMENTO, Washington Santos. Famílias escravas, libertos e a dinâmica da escravidão no
sertão baiano (1876–1888). Afro-Ásia (UFBA), v.35, p.220 - 240, 2007.
13
NASCIMENTO, Washington Santos. Padrões e Tendências das Enfermidades e Causas Mortis
entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-1887). In: IIII Encontro Estadual de
História: Poder, Cultura e Diversidade. Vitória da Conquista - Bahia: Eureka, 2006. v.1.
14
NASCIMENTO, Washington Santos. Além do medo: A construção de Imagens sobre a Revolução
Haitiana no Brasil Escravista (1791 – 1840). Revista Especiaria-Cadernos de Ciências
Humanas. Ilhéus: Universidade Estadual de Santa Cruz, Editus, n.18, vol.10, jul/dez. 2007.
15
O Gephaan é um grupo coordenado por mim e pelos professores da Área de África da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Graziele de Lourdes Novato Ferreira e Jorgeval
Andrade Borges. Esse grupo procura reunir professores e alunos que estejam pesquisando temas
ligados à história do negro na África e das Américas.
.
23
Por meio de um trabalho coletivo, ainda em curso, fizemos um primeiro
levantamento (ainda não concluído) das fontes existentes no Arquivo do Fórum João
Mangabeira e do relato de velhos negros da cidade de Vitória da Conquista
16
. Foi o
trabalho realizado junto a esse grupo que me possibilitou construir o projeto de
pesquisa apresentado a PUC/SP. Esta dissertação, portanto, é resultado de uma
trajetória de estudos junto à parte da população negra (e temas correlatos), que se
iniciou no ano de 2000.
O trabalho de Campo
Iniciei o trabalho de campo no Arquivo do Fórum João Mangabeira em
Vitória da Conquista, a princípio com a catalogação de fontes documentais
existentes, tendo em vista o estado de desorganização em que se encontravam.
Inventários, testamentos e processos cíveis e criminais marcados pelas
subjetividades e reveladores da dimensão cotidiana da população afro-descendente
foram os que mais me possibilitaram perceber a história das representações sociais.
Depois do Fórum, passei a pesquisar no Arquivo da Igreja Matriz de Vitória
da Conquista, particularmente nos livros de tombo, os quais cobrem boa parte das
cidades do Sudoeste baiano. Esses livros foram de fundamental importância para a
discussão sobre a dinâmica religiosa da localidade. Para a dimensão política, os
livros de atas do Conselho Municipal pesquisados no Arquivo Público de Vitória da
Conquista foram igualmente valiosos.
O trabalho com jornais se deu na Biblioteca do Museu Regional, da Uesb,
onde tive à minha disposição um conjunto disperso de jornais dos anos de 1910 a
1930 e uma seqüência organizada entre os anos de 1927 e 1928. Além dessa
documentação, contei também com o material do Arquivo Público da Bahia, cedido
pela historiadora Antonieta Miguel, por intermédio da professora Maria Aparecida de
Souza, e que se encontra no arquivo do GEPHAAN no Museu Pedagógico.
16
NASCIMENTO, Washington Santos. Maria Jacaré, Joaquim Curandeiro e o Samba na casa de
Pedro Fumaça: Elementos do Universo Cultural da população Negra do Sertão Baiano (1850-1888)
In: Anais do VI Colóquio do Museu Pedagógico, Vitória da Conquista, 2006.
.
24
Estrutura da Dissertação
Esta dissertação está organizada da seguinte maneira: no Capítulo I,
aprofundo a discussão sobre dois marcos teóricos que estruturam o trabalho: as
“Representações Sociais” e o “Discurso”, procurando dialogar com os autores que a
alicerçam teoricamente, além de fazer uma discussão sobre a metodologia a ser
utilizada.
No Capítulo II, me preocupo em analisar a história da ocupação do Sertão
da Ressaca (região de Vitória da Conquista e seu entorno), marcada por
mestiçagens que envolveram índios, negros e brancos, nele tinham destaque a
presença escrava na região e o processo de abolição da escravatura.
Tentar entender de que maneira foram construídas determinadas
representações sobre a população afro-descendente, marcadas, sobretudo pelo
racismo e por julgamentos de honra, moral e civilidade, gerando a criação de
“lugares sociais” para essa população, é o que me proponho a desenvolver no
Capítulo III.
No Capítulo IV, continuo a discussão sobre a construção de lugares sociais
para o negro com o aprofundamento do debate acerca de civilidade. As
manifestações sociais de civilidade serão vistas/analisadas e discutidas nas
celebrações coletivas, momento máximo de interação social daquela sociedade.
Para fins analíticos, foram divididas em três gêneros: festas cívicas, festas religiosas
e festas populares (batuques e sambas), apesar de todas assumirem um cunho
popular.
Por fim, destaco a importância do Anexo: além de elementos que ajudam a
entender e elucidar questões que aparecem ao longo da dissertação, incluí
documentos localizados por mim ou a mim confiados e algumas informações ou
discussões que foram retiradas do corpo do texto, mas que podem ser úteis para o
desenvolvimento de pesquisas futuras.
.
25
CAPÍTULO I PERSPECTIVAS TEÓRICAS
Pretendo neste capítulo aprofundar a discussão sobre a “Teoria das
Representações Sociais”, fundamentado principalmente em Pierre Bourdieu e nos
Estudos Culturais (Stuart Hall e Homi Bhabha), e fazer uma breve discussão sobre
os pressupostos metodológicos utilizados neste trabalho.
1.1 O “outro-homogeneizado”: representações, violência simbólica e
ambivalências.
Representação social é um conceito que no campo da filosofia significa “[...] a
reprodução de uma percepção retida na lembrança ou do conteúdo do pensamento”.
(MINAYO, 1995, p. 89). Adotada pelas ciências sociais, é definida como “[...]
categorias que expressam a realidade, explicam-na, justificando-a ou questionando-
a”. (MINAYO, 1995, p. 89).
Os primeiros teóricos a trabalharem de maneira explícita com o conceito de
representação social foram Émile Durkheim (1976) e Marcel Mauss (2003).
Preferindo a terminologia “Representações Coletivas”, Durkheim (1976) diz que
existem determinadas categorias de pensamento por meio das quais certas
sociedades elaboram e expressam a sua realidade. Seria uma forma de manter o
grupo social coeso, bem como suas proposições para o mundo, mediante imagens,
normas, ritos, discursos e instituições.
Indo ao encontro de Durkheim, Mauss (2003) mostra que a sociedade se
exprime simbolicamente em suas instituições e costumes por meio da linguagem, da
arte, da magia e das crenças. Assim seria objeto das ciências sociais tanto o “fato
social total” quanto a sua representação, sem, entretanto, reduzir a realidade apenas
à percepção que os homens têm a respeito dela.
Contemporaneamente, o termo possui vários significados, em decorrência da
existência de outras categorias similares, tais como “imaginário”, “imaginação”,
“mentalidades” etc. Para Francisco Falcon (2000), as representações são vistas,
pelo paradigma “moderno”, como um discurso produzido pela constatação de uma
realidade e, pelo “pós-moderno”, elas podem ser associadas ao próprio objeto do
conhecimento.
.
26
Para os “modernos”, a questão se coloca em termos epistemológicos, ou
seja, é um conceito por meio do qual se pode analisar um fenômeno social concreto;
é também uma categoria inerente ao conhecimento histórico de uma “realidade
17
”.
Para os pós-modernos, essa categoria mostra a impossibilidade de ter um
conhecimento “histórico” do mundo, ou seja, o “real” como um “objeto” não existe,
apenas suas representações
18
.
Tomando posição nesse debate, adoto a perspectiva “moderna” do que sejam
as representações: elas partem do real, mas não se confundem com ele; constroem-
se com base em várias determinações sociais para, em seguida, tornarem-se
matrizes de classificação e ordenação do próprio mundo social.
Apesar de não ter conceituado explicitamente e de não ter estudado acerca da
questão étnico-racial
19
, creio que Bourdieu (2004, 2005, 2007a, 2007b) constitui-se
em um referencial válido para entender de que maneira grupos distintos em
situações de conflito social representaram a si mesmos, aos “outros” e as suas
práticas culturais.
Para Bourdieu, as representações sociais são sempre determinadas pelos
interesses dos grupos que as forjam. Assim não seriam discursos neutros, pois
tenderiam a impor determinada visão de mundo, que implicaria em condutas e
escolhas. A idéia contida nas suas obras contribui para a formulação renovada do
estatuto do real não mais entendido como oposto a representações. Segundo ele,
era preciso incluir no real as representações do real, pois “[...] a representação que
os indivíduos e os grupos exibem inevitavelmente através de suas práticas e
propriedades faz parte integrante de sua realidade social”. (BOURDIEU, 2007, p.
447).
As “lutas de classificação
20
” teriam tanta importância quanto as lutas
econômicas e nelas estaria em disputa
[...] o poder de impor uma visão de mundo social através dos princípios de di-
visão que, quando se impõe ao conjunto do grupo, realizam o sentido e o
17
Falcon enumera, entre os autores que se encontrariam nessa tradição iluminista, Baczko, Elias,
Bourdieu, Chartier, Ginzburg, etc.
18
Entre esses Foucault, Veyne, Rorty, Barthes, White, Jenkins etc.
19
Seus estudos se concentram, sobretudo no debate sobre o campo religioso (2005), a educação
(2007b) e os estilos de vida (2007b).
20
“[...] lutas pelo monopólio de fazer ver e fazer crer, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, de
impor a definição legitima das divisões do mundo social e por este meio, de fazer e de desfazer os
grupos” (BOURDIEU, 2005, 113).
.
27
consenso sobre o sentido e, em particular, sobre a identidade e a unidade do
grupo, que fazem a realidade da unidade e da identidade dos grupos.
(BOURDIEU, 2004, p.113).
Se existe a necessidade de uma luta de classificações é porque há uma
fissura grande no meio social, ou seja, ele é complexo, nuançado e ambíguo, o que
“exige” uma representação que dê conta de normatizar aquele universo social, que,
de alguma forma, diga: “é isso” e não “aquilo”. Nesse sentido, essas lutas de
classificações imporiam uma identidade grupal única e coesa, ou seja, um “outro –
homogêneo”, idealizado que de fato nunca existiu.
Outro conceito da obra de Bourdieu que me ajuda a compreender
particularmente as representações feitas pelo “branco” (ou a partir da ideologia do
branqueamento) sobre o “negro” é a idéia de “violência simbólica”, ou seja, a
dominação de um grupo sobre outro por meio de símbolos e de palavras. Segundo
ele, essa violência (e o poder engendrado por ela) impõe significações como sendo
legítimas, “[...] dissimulando as relações de força que estão na base de sua força,
acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica a essas relações de
força”. (BOURDIEU, 2007b, p. 25).
Trazendo as categorias criadas por Bourdieu para o objeto desta dissertação,
entendo que as representações sobre o negro e suas práticas culturais não se
explicam sozinhas, isto é, não se explicam sem que pensemos na sociedade que as
fundamenta e as cria. Daí a necessidade que senti em aprofundar a discussão sobre
a formação histórica da região de Vitória da Conquista.
As lutas de representações (“lutas de classificações”) podem ser percebidas no
momento em que a população afro-descendente se manifesta em relação às
representações feitas sobre ela, sobretudo quando se trata de disputas no universo
cultural.
Igualmente importantes para a nossa discussão são os autores dos estudos
culturais ingleses, marcadamente Stuart Hall (2003 e 2005) e Homi K. Bhabha
(1998). Para o primeiro, “Os sistemas de representação são os sistemas de
significado pelos quais nós representamos o mundo para nós mesmos e os outros”
(HALL, 2003, p.169). Para ele, esses sistemas não são únicos; existe uma
diversidade deles em quaisquer formações sociais, são, portanto, plurais. Como
veremos ao longo do texto, associadas e articuladas às representações do “negro”,
estavam as representações de “mulheres”, do “civilizado” etc.
.
28
Para Bhabha (1998), “A representação da diferença não deve ser lida
apressadamente como o reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos,
inscritos na lápide fixa da tradição”. (BHABHA, 1998, p.21). Nesse sentido, a
“identidade” construída pelas políticas de representação não é um a priori “[...] nem
um produto acabado; ela é apenas e sempre o processo problemático de acesso a
uma imagem de totalidade”. (BHABHA, 1998, p. 85).
Na perspectiva de entender esses autores, é possível enfatizar a função
política das representações como sendo a tentativa de legitimação de uma ordem
com a sanção de um regime de dominação e a contraposição a essa tentativa pelo
grupo “subordinado”. Assim, penso esse negro-mestiço como um agente político,
que, mesmo em uma situação de desigualdade, se manifestava politicamente e
criava estratégias diferenciadas para confrontar ou dialogar com o mundo do
“branco”.
1.2 - Polifonias, discurso e contexto
Utilizei técnicas qualitativas de investigação, procurando mergulhar em um
emaranhado de narrativas fragmentadas e polifônicas constitutivas da
documentação que permite acessar a dinâmica social do sertão baiano. Quando falo
em polifonia, refiro-me à possibilidade de vencer as dificuldades impostas por uma
documentação de caráter quase sempre oficial para encontrar outras falas possíveis
– principalmente aquelas dos descendentes de africanos – com uma leitura crítica,
atenta aos indícios que surgem nas entrelinhas e às mediações sofridas pelos
interlocutores, buscando interpretá-los à luz dos instrumentos das ciências sociais.
Ao me referir a essa polifonia, não estou abrindo mão da presença crítica do
pesquisador no trato com as fontes e no trabalho de campo, que não se esqueça de
“[...] considerar a sua relatividade, a sua existência entre outras, mas que também
não se furte a entrar no jogo de forças em que a pesquisa [...] se faz para fornecer
uma interpretação que se define em termos críticos e políticos” (CALDEIRA, 1988, p.
151).
Os documentos são entendidos como um “produto social” que revela situações
plenas de significação, por isso é mais relevante apreender como as diversas
representações de um fato se produzem, difundem e repercutem, em lugar de
.
29
buscar uma concepção única, estática, ou seja, uma síntese empobrecedora das
diferentes possibilidades de análise.
Entendendo que os textos não são um meio neutro de reflexão ou descrição
de determinados fatos sociais e que o discurso tem uma importância na construção
da vida social, a perspectiva metodológica que adoto em toda a dissertação é a da
análise de discurso. Essa terminologia é aplicada a uma variedade de enfoques no
estudo de textos e parte do pressuposto de que a linguagem não é um meio “neutro”
de apreensão da realidade social e que, no discurso, existe uma representação da
vida social.
Acredito, como Mikhail Bakthin (1988), que jamais apagamos as vozes
daqueles que falam por meio de outras linguagens sociais, por mais inadequadas
que sejam. Segundo ele, a fala está indissoluvelmente ligada às condições da
comunicação, essas estão ligadas às estruturas sociais, e a “palavra é a arena onde
se confrontam valores sociais contraditórios”. Cada época e cada grupo social têm
seu próprio repertório de formas de discursos. “Toda enunciação, mesmo na forma
imobilizada da escrita, é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal”
(BAKTHIN, 1988, p. 98).
Atualmente, um termo muito utilizado tanto na Antropologia quanto na
Lingüística para descrever a relação entre discurso e contexto é “intertextualidade”.
Esse termo se refere às conexões discursivas entre os diferentes tipos de “texto” e o
contexto geral.
[…] a análise intertextual demonstra de que maneira os textos lançam
mão, seletivamente, de ordens de discurso — configurações
específicas dentro do conjunto das práticas convencionadas
(gêneros, discursos, narrativas, etc.) que estão à disposição de
produtores e intérpretes de um texto em uma determinada situação
social. (FAIRCLOUGH apud SCHNEIDER, 2004, p. 99).
A análise intertextual, concebida por Bakhtin de forma dinâmica e dialética,
mostra que os textos podem se transformar em materiais sociais e históricos, ou
seja, pode haver “inserção” da história em um texto e desse na história para, assim,
tentar apreender os diferentes gêneros do discurso.
.
30
CAPITULO II A FORMAÇÃO DE UMA REGIÃO NEGRO-MESTIÇA
Neste capítulo, analiso o processo de formação da região de Vitória da
Conquista (antigo Sertão da Ressaca), na Bahia: destaco o contato étnico-racial
entre índios, negros e brancos no início do processo de ocupação humana da região
e procuro mostrar a diversidade e complexidade da formação local.
Utilizo principalmente fontes secundárias de cronistas e historiadores locais,
além de relatos do príncipe Maximiliano Wied-Neuwied
21
em documentos que
enfocam particularmente o papel que a mestiçagem assumiu na formação da região
do Sertão da Ressaca.
Segundo Josildeth Consorte (1999), “[...] não obstante a facilidade com que
se iniciou desde os idos do século XVI, a mestiçagem nunca foi expressão de
ausência de preconceito, entre nós, e com ele convive até hoje” (CONSORTE, 1999,
p. 108). Por outro lado, essa é uma dimensão importante das relações étnico-raciais
no Brasil que precisa ser mais bem analisada até mesmo para entendermos quem é
esse “negro” brasileiro.
Faço ainda uma discussão sobre a presença escrava na região, embasado
no que já foi escrito sobre essa temática e na análise de inventários existentes no
Arquivo do Fórum João Mangabeira, em Vitória da Conquista. Nessa discussão,
analiso ainda a abolição da escravatura e seus possíveis significados.
2.1 - Índios e negros e os contatos étnico-raciais
Três grupos indígenas se fixaram na região onde se localiza Vitória da
Conquista e no seu entorno: os Ymborés, os Kamakãs e os Pataxós. Segundo Maria
Hilda Paraíso (1992), os Ymborés viviam em uma imensa faixa de terra entre Minas
21
O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied parece ter sido o mais antigo viajante oitocentista a
registrar suas impressões sobre o interior da Bahia, ao promover a primeira grande expedição
científica estrangeira em nosso país. Segundo Lúcia Guimarães (2001), ele era o oitavo filho de um
dos mais velhos troncos da nobiliarquia renana e fugiu dos exemplos de seus irmãos ao inclinar-se
para o estudo das ciências naturais, em vez de se dedicar à carreira militar ou administrar as
propriedades da família. Considerando o barão de Humboldt como seu grande mestre, por acaso
transformou-se em príncipe, o que o levou a participar das ações contra Napoleão, como o episódio
da ocupação de Paris, ao lado das tropas austríacas e inglesas em 1814. Ele chegou ao Brasil em
1815, mais especificamente no Rio de Janeiro, de onde partiu para o estudo de áreas inóspitas
porem habitadas do interior da Bahia.
.
31
Gerais, Ilhéus, Porto Seguro e Espírito Santo e se fracionavam em inúmeros
subgrupos, o que dava a impressão de serem em maior número. Viviam, sobretudo
da caça e da pesca, mas cultivavam mandioca, batata-doce, banana, arroz e cana-
de-açúcar.
Uma das suas características marcantes era o fato de se deslocarem com
rapidez e facilidade, pois, como sabiam retirar água de plantas como as bromélias,
podiam sobreviver por algum tempo sem a necessidade de córregos e rios para se
estabelecerem. Eles desenvolveram bem a arte da cerâmica, principalmente a
confecção de panelas. Em seu universo simbólico, a lua (taru) ocupava papel
principal, já que era considerada a grande responsável pela maioria dos fenômenos
naturais e, por isso, os nomes de quase todos esses fenômenos estavam
associados a ela, como, por exemplo, o sol (tarudipó), o trovão (tarutemareng) e a
noite (tarutatu).
Os Pataxós, que habitavam a região compreendida entre os rios Cachoeira e
Pardo, eram nômades, andavam em pequenos grupos e, segundo Paraiso (1992),
foram das últimas tribos a ser dominadas pelos brancos. Pintavam o corpo com
traços geométricos negros e vermelhos, com tinta produzida com frutos, resinas de
árvores ou óleos animais e vegetais. Acreditavam na volta dos mortos, entretanto,
segundo a autora, esse retorno era privilégio apenas dos homens e só ocorria
quando um amigo ou parente próximo assim o solicitasse no momento do ato
sexual.
Vivendo principalmente entre os rios Colônia, Pardo, Jequitinhonha e Rio das
Contas, os Camacãs (ou Mongoiós, na denominação dada pelos portugueses)
praticavam a agricultura articulada com caça, pesca e coleta. Tinham uma série de
ritos de passagem, nos quais podemos incluir a furação das orelhas, a nominação
das crianças e, o maior deles, a corrida de toras que, segundo Paraíso (1992), era a
condição primordial para que o homem camacã pudesse se casar. Eles conferiam
grande poder às forças da natureza, especialmente ao sol, e praticavam uma serie
de recursos e praticas destinadas à cura, como a fumaça de tabaco soprada nos
doentes, longos cânticos, infusões e emplastros feitos de ervas
22
.
22
Para mais informações, ver PARAÍSO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos de ir e vir e caminhos sem
volta: índios, estradas e rios no sul da Bahia. 1982, (Dissertação (mestrado) – UFBA, Salvador, 1982
e AGUIAR, Edinalva Padre. (org.) Ymboré, Pataxó, Kamakã: A presença indígena no Planalto de
Conquista. Museu Regional de Vitória da Conquista – UESB, 2000.
.
32
Quanto à presença negra no sertão baiano, sabemos que os primeiros negros
vieram com o intuito de formarem comunidades quilombolas, fato que causou
desconforto e preocupação às autoridades coloniais. Em um dos primeiros
documentos que trata da ocupação européia na região datada do ano de 1727,
Pedro Leolino Mariz, um dos principais responsáveis pela penetração nas diversas
áreas do interior da Bahia e norte de Minas Gerais
23
, incumbiu a bandeira dirigida
por André da Rocha Pinto de conquistar as atuais regiões de Rio de Contas e Vitória
da Conquista, entre o Rio das Contas e os rios Pardo e São Mateus, para “encontrar
metais preciosos, estabelecer fazendas de gado, matar índios que se opusessem à
conquista, estabelecer aldeias e destruir quilombos que fossem encontrados”
24
. A
leitura desse documento nos leva a pensar que a ocupação negra na região de
Vitória da Conquista foi anterior à ocupação portuguesa, o que também se deu em
localidades vizinhas, como Brejo Grande (atual cidade de Ituaçu).
Em Ituaçu, onde estivera em 1732, André da Rocha Pinto encontrou a
localidade denominada Mocambo
25
, onde passou a residir seu filho Sebastião da
Rocha Pinto. Designados, por André da Rocha Pinto, para percorrer o Rio São
Mateus (que passa nas terras da cidade de Poções), João da Silva Guimarães e
João Gonçalves da Costa chegaram, em meados do século XVIII, até a região onde
hoje está localizada a cidade de Vitória da Conquista.
26
Por essa época, João Gonçalves da Costa, um “preto-forro”, empreendeu
algumas viagens entre o interior e o litoral, mais especificamente entre o Sertão da
Ressaca e a Vila de Ilhéus, com o objetivo de facilitar a penetração portuguesa no
23
Para mais informações, ver SOUSA, Maria Aparecida Silva. A Conquista do Sertão da Ressaca:
povoamento e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2001, p 31 a
33.
24
Documentos relativos às minas, no tempo do superintendente Pedro Leolino Mariz ( 172 – 173)
apud TORRES, Tranquilino Leovigildo (1859 – 1896). O Município da Vitória. Vitória da Conquista,
BA. Museu Regional de Vitória da Conquista/ Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 1996
(série Memória Conquistense).
25
Para mais informações, ver NASCIMENTO, Washington Santos. Famílias escravas, libertos e a
dinâmica da escravidão no sertão baiano (1876–1888). Afro-Ásia (UFBA), v.35, 2007, p.222 e 223 e
NASCIMENTO, Washington Santos. Escravidão e Memória: Os negros no Arraial do Brejo Grande e
na cidade de Ituaçu, BA. In: Revista Memória Conquistense, v.7, Vitória da Conquista, Edições UESB,
2007.
26
Convém esclarecer que a palavra mocambo, de significado semelhante a quilombo, foi utilizada
para se referir ao lugar onde os escravos se escondiam. Segundo Roy Glasgow, Mocambo era o
nome da irmã mais moça da rainha africana Nzinka, que utilizava as estratégias dos quilombos para
guerrear com os portugueses e seus adversários. Para mais informações, ver GLASGOW, Roy.
Nzinka Resistência africana à investida do colonialismo português em Angola, 1582 -1663. São
Paulo, Ed. Perspectiva, 1982.
.
33
interior do estado. Em uma dessas viagens, encontrou algo que chamou a sua
atenção, cujo relato está contido em uma carta enviada por ele, em 1783, ao então
desembargador e ouvidor de Ilhéus:
Devo dizer a V. M. que em algumas destas aldeias se acham metidos alguns
escravos que fugiram lá debaixo e um mulato ladino que me dizem, é capitão
de uma das aldeias (...) e esta foi uma das razões porque me não resolvi a
fazer a paz, receoso de que os ditos escravos me fizesse alguma traição,
vendo-me com tão pouca gente
27
.
Este documento mostra a presença de um “mulato ladino” nas aldeias
indígenas existentes entre a região do Sertão da Ressaca e a vila de Ilhéus. Um fato
interessante de ser analisado ainda nesse documento é que, na gradação de valores
de João Gonçalves da Costa, os indígenas seriam mais merecedores de confiança
do que os negros, tidos, por ele, como traidores
28
.
Outro aldeamento indígena em que existia a presença de negros se localizava
nas proximidades do Sertão da Ressaca, às margens do Rio Grande de Belmonte
29
.
Segundo relato do príncipe Maximiliano,
Tinha nas margens do Rio Grande de Belmonte o resto de tribo de índios
que a si mesmos dão o nome de Camacãs, os portugueses denominam-nos
“menian”. Segundo aprendi, esses ‘menian’ constituem realmente um ramo
dos camacãs, porem degenerado, não são mais da raça indígena pura
,
tendo a maioria deles o cabelo encarapinhado dos negros e também a cor
escura (MAXIMILIANO apud VIANA, 1982, p. 26).
Percebo nessa fala do príncipe conceitos ligados a raça, que irão ganhar força
no Brasil principalmente depois da abolição da escravatura, quando a mestiçagem
passou a ser considerada como um elemento degenerativo que maculava a pureza
27
Cópia da Carta de Desembargador e Ouvidor de Ilhéus aos Exmos Governadores. Arquivo
Nacional da Torre do Tombo, Brasil – Avulsos (6 de agosto de 1783), p. 160 apud SOUSA, Maria
Aparecida Silva. A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da
Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2001.
28
Nesta mesma região em que o João Gonçalves da Costa encontrou uma aldeia indígena com
presença de negros, há o caso do quilombo do Oitiziero, destruído por uma tropa composta por índios
cariris em 1806, que vieram da região de Pedra Branca, localizada no Recôncavo baiano. Para mais
informações, ver REIS, João. Quilombo do Oitiziero. In REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos
(org.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
29
O Rio Grande de Belmonte, provavelmente, era o Rio Jequitinhonha, que nasce na Cordilheira do
Espinhaço, na serra da Pedra Redonda, em Milho Verde, lugarejo próximo da cidade de Serro - MG,
banha o norte mineiro, ruma para o sul da Bahia e deságua no Oceano Atlântico na cidade de
Belmonte, depois de percorrer cerca de 1 090 quilômetros.
.
34
de qualquer povo. Para o príncipe, aqueles não eram mais índios, porque tinham se
miscigenado.
A ligação entre negros e índios é antiga. Pedro Paulo Funari (1996), estudando
arqueologicamente o Quilombo de Zumbi dos Palmares (XVII – XVIII)
30
, encontrou
grande quantidade de cerâmica indígena, o que sugere que “a mescla cultural no
assentamento quilombola devia ser, a exemplo de outros casos, muito intensa
31
” .
Outro aldeamento onde pode ser verificada a presença de negros é o de
Cachimbo, atual Capinarana, distrito da cidade de Ribeirão do Largo, sudoeste da
Bahia. Fundado pelo filho de João Gonçalves da Costa, Antonio Dias Miranda, foi
administrado durante algum tempo pelo frei Luis de Garva e nele conviviam negros e
índios mongoiós. Segundo o príncipe Maximiliano, a ocupação negra/mestiça teria
sido anterior à ocupação branca. No relato seguinte, observamos a presença de
negros no aldeiamento de cachimbo administrado por um mulato:
Três famílias de gentes de cor foram os primeiros moradores deste sertão, na
época em que se teve a idéia de fundar nesse lugar uma aldeia (...) o governo
nomeou um mulato para chefe dos kamakãs; reside nesta localidade e tem
sob seus cuidados diferentes aldeias ou “rancharias”’ (WIED-NEWIED, 1958,
p. 385-386
).
Convém deixar claro que não estou plenamente certo de que, ao se referir a
“gentes de cor”, estaria o príncipe se referindo a negros/metiços, e não a indígenas.
Entretanto, ao analisar a sua obra, percebemos que, em decorrência de sua
formação de naturalista, ele caracteriza bem os índios como Mongoiós, Camacãs,
Pataxós e descreve seus hábitos, o que não acontece quando se refere a pessoas
denominadas “gentes de cor”.
Ao analisar a documentação entre os anos de 1870 e 1930, encontrei apenas
um processo que faz referência à relação entre negros e índios. Trata-se de um
processo crime de 1877, onde é narrada a história do índio Joaquim e do negro
Vitor. O primeiro tinha 18 anos e, ao que parece, era criado do tenente Joaquim
Ribeiro Fernandes
32
e também seu afilhado. Já o segundo, Vítor, era escravo desse
mesmo tenente, nascera na Imperial Vila da Vitória, era solteiro e tinha trinta anos.
30
FUNARI, Pedro. Arqueologia da Serra dos Palmares. In REIS, João José; GOMES, Flávio dos
Santos (org.). Liberdade por um fio. História dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 46.
31
Idem p. 46
32
Talvez seja só coincidência, mas não deixa de ser curioso o fato de o coronel e o índio terem o
mesmo nome.
.
35
Mesmo com essa idade, era chamado pelo seu senhor de “moleque”, provavelmente
por ter sido criado dentro da casa do tenente.
No rol das testemunhas, uma pequena amostra da diversidade étnica da região
de Vitória da Conquista, apesar de sobrenome não ser um indicativo plenamente
confiável: sobrenomes de origem portuguesa - Pereira, Domingues de Oliveira; de
origem indígena - Paraguay e Guabiraba; e sobrenomes, ou melhor, ausência de
sobrenomes nos negros ou mestiços: Carolina de Tal, Zeferina de Tal e o escravo
José.
Outro fato interessante nesse processo é a presença de um escravo como
“testemunha/informante”, ou seja, ele não tinha o status jurídico de testemunha, mas
servia como informante. Teria ele credibilidade? Acredito que sim. Segundo o
processo, o conflito se dera da seguinte maneira:
No dia 17 de Maio do corrente ano de 1877, vindo o mencionado índio
juntamente com Vitor, escravo do mesmo tenente Ribeiro, com algumas
cargas com destino a esta vila, a alguma distancia do lugar denominado
Giboya matou Joaquim com facadas uma das bestas que conduziam as
cargas, e, receoso de que semelhante fato, por intermédio de Vitor,
chegasse ao conhecimento de seu amo, entendeu matá-lo. Efetivamente,
achando-se de posse de uma espingarda e de um facão, disparou sobre
Vitor a primeira dessas armas, sendo porem mal sucedida em seu
criminoso plano, porque o tiro não acertou, lançou mão do facão, com que
fez no escravo diversos ferimentos, descritos no corpo de delito, e de que
só milagrosamente escapou o paciente
33
.
Pelo que consta do processo, o conflito se deu porque o índio temera que o
negro contasse que ele havia matado animais que pertenciam ao tenente Joaquim,
mas a fala de dois depoentes revela que, além desse temor do índio, havia certa rixa
entre os dois. No seu depoimento, o tenente Joaquim toma como ponto de partida
da ocorrência o diálogo que se deu entre Vitor e Joaquim (índio) no momento do
conflito, segundo relato que o escravo lhe fizera: “[...] disse-lhe você quer me matar
caboclo, e ele gritou-lhe – mato-te hoje, negro dos diabos”
34
. Continua o tenente em
outro momento de seu depoimento, “[...] o caboclo estava, neste dia, dominado, pois
não contente de já ter feito tudo isto, depois que o moleque pode fugir dele, ainda
matou o cavalo que o moleque montava, com uma grande facada”
35
.
33
Ver “Sumário de Culpa”, 1877, Caixa Diversos (1877-1879), Arquivo do Fórum João Mangabeira/
Vitória da Conquista/BA (Não Catalogado).
34
Idem
35
Idem
.
36
Estaria o caboclo “dominado” por alguma “força demoníaca”, pelo ódio, ou
pelos dois, já que a fúria do índio fora tão grande que, passados setenta e quatro
dias, o escravo ainda se encontrava enfermo, “[...] pois que aleijado de ambas as
mãos, é servido por outros, até para levar-lhe a comida na boca, abotuar e todas as
mais precisões
36
”? Qual a razão de tamanha fúria? Haveria uma divergência anterior
com o tenente, ou mesmo com o escravo? O processo não esclarece isso, mas
mostra que o índio fugira para o distrito de Verruga e, de lá, para a Aldeia do Catolé,
um antigo aldeamento indígena, que existia no sertão baiano. Uma das testemunhas
diz que o índio Joaquim “procurou a companhia dos índios do Catulé, onde já se tem
visto por alguém” e onde, provavelmente, estaria seguro e assim permanecera, pois,
até 1894, 17 anos depois, ainda não tinha sido detido, prescrevendo dessa forma o
processo.
Outro exemplo da relação entre negros e índios pode ser retirado da obra de
Aníbal Viana (1982), que citou como fonte as memórias de Laurinda Silva que, na
época em que foi entrevistada por Viana (provavelmente no ano de 1981 ou 1982),
tinha 87 anos. Segundo essa depoente, o seu avô, Francisco José Maria da Ponte, o
“tio Nagô”, escravo do João Gonçalves da Costa, contava que teria sido ele que, a
mando de João Gonçalves, teria colocado veneno na bebida dos índios no episódio
que ficou conhecido nas crônicas locais como “banquete da morte
37
”.
Em relação ao início do século XX, não encontrei, nas fontes escritas,
nenhuma alusão à presença indígena na cidade, tampouco seu relacionamento com
negros. Entretanto as pesquisas mais recentes em comunidades quilombolas têm
demonstrado que a presença indígena nesses espaços é antiga e remonta ao século
XIX
38
. Na comunidade do Boqueirão, por exemplo, diz uma moradora, em
depoimento colhido por Graziele Ferreira (1999):
Eu nasci no Boqueirão, não sei há quanto tempo existe a comunidade,
porque estou com 75 anos e desde quando me entendo por gente, aqui já
36
Idem
37
O Banquete da morte foi uma festividade organizada por João Gonçalves da Costa com o propósito
de atrair os índios para, posteriormente, matá-los. Tal fato foi descrito pelo príncipe Maximiliano
durante a sua passagem pela região. Para mais informações, ver SOUSA, Maria Aparecida Silva. A
Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da
Conquista: Edições Uesb, 2001.
38
Ver FERREIRA, Graziele. Cinzento: Memória de uma comunidade negra remanescente de
quilombo. São Paulo, Departamento de Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica,
(Dissertação de Mestrado) 1999 e NERY, Vanderlucy Barreto. Boqueirão: O romper do silêncio.
Monografia de final do curso de Licenciatura em História, 2002.
.
37
era Boqueirão. Meus pais nasceram no Boqueirão também. Meus avós, eu
conheci, minha avó chamava-se Marcionília, meu avô chamava-se Roseno.
Meus avós eram dessa região, eles foram do cativeiro. Eles (o senhor)
pegavam os meus avós, amarravam e judiava deles presos. O cativeiro era
lá no Boqueirão. Os negros faziam a roça aqui em baixo, eles diziam que
plantavam um "chapéu de mantimento" e eles falavam que era manaíba. Até
hoje tem forquilhas velhas aí nessas capoeiras. Era mato, tudo mato, hoje só
tem capoeira. Meus avós eram do cativeiro. Meu bisavô mesmo foi pego "a
dente de cachorro", porque era caboclo legítimo (FERREIRA, 1999, p.75).
Na pesquisa realizada por Vanderlucy Barreto (2002) no Boqueirão, alguns
depoimentos fazem referência ao fato de a comunidade ter uma ascendência
indígena, além da africana:
O povo de antigamente não gostava de contar nada. Minha vó Feliciana
falava que, quando eles mudaram pra cá, disse que tinha os índios que
morava no mato. Eles pegaram uma menina bonita e meu avô casou com
ela. Meu avô ficou com essa menina que era minha vó Feliciana. A minha
mãe era dessa cor (apontando para a pele dela), meu pai era bem claro,
quase que da sua qualidade. Minha vó Feliciana era índia. Eu lembro que ela
tinha uma roça lá em cima numa baixa ai, e que hoje tudo mundo tomou e
não é mais nosso. Eu sei que minha mãe tinha uma banda de couro, quando
ela vinha da roça, minha vó pedia a ela para pentear o cabelo dela. Eu
lembro que íamos para casa de minha vó mais mãe, ela era pequena. (vó)
Ela ia trançar meu cabelo, eu gostava de levar meu cabelo para ela trançar,
por que o cabelo dela era grande e pro meu crescer também, mas não
cresceu não! O cabelo dela era grande e não teve uma neta para puxar ela.
O cabelo dela batia... era aquele xale no chão para mãe pentear (BARRETO,
2002, p. 20).
Pelo que vimos até aqui, podemos considerar que a história de Vitória da
Conquista está ligada a um processo de mestiçagem que envolve índios, negros e
brancos. Aprofundaremos ainda mais essa questão com a análise da família
Gonçalves da Costa.
2.2 - A Família Gonçalves da Costa: negros, mestiços e a formação do Sertão
da Ressaca.
A história de boa parte das cidades do sudoeste baiano (Vitória da
Conquista, Planalto, Encruzilhada, Poções, Boa Nova e Manuel Vitorino) está ligada
à formação e expansão do grupo familiar formado pelo “preto-forro” português João
Gonçalves da Costa. Com base na pesquisa de Ruy Medeiros, reproduzida em
Sousa (2001), vemos que as propriedades desse grupo familiar se espalharam por
uma vasta extensão de terra dessa região.
.
38
Figura n
o
1: Região Sudoeste da Bahia
Fonte: SOUSA, Maria Aparecida Silva. A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da
Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2001.
João Gonçalves da Costa foi o primeiro preposto de Portugal a ocupar
economicamente o Sertão da Ressaca. Segundo Sousa (2001) e Ivo (2007), ele
provavelmente tenha nascido em 1720, na cidade de Chaves, em Trás-os-Montes,
Portugal. Era integrante do Terço de Henrique Dias, uma milícia organizada no início
.
39
do século XVII, composta majoritariamente por negros que tinha por propósito
combater índios, quilombos e outros inimigos da Coroa Portuguesa. Pela sua
participação nesse Terço, recebera em data não precisada a patente de capitão,
que, de acordo com as ordens do governador do estado da Bahia da época, o conde
de Galveas, André de Mello e Castro, diz o seguinte:
[...] porquanto se faz preciso [...] criar de novo o posto de capitão do terço de
Henrique Dias [...] pela presente elejo e nomeio [...] capitão da gente preta
que servirá na conquista e descobrimentos do mestre de campo João da
Silva Guimarães que Vossa Majestade teve por bem criar de novo na pessoa
de João Gonçalves da Costa: preto forro
39
.
Outro indício de que João Gonçalves da Costa era, de fato, descendente de
africanos é que, mesmo antes da descoberta desse documento, na memória da
população conquistense mais velha essa era uma verdade, como demonstram os
livros dos cronistas locais Aníbal Viana (1982) e Israel Orrico (1982), pautados, em
grande parte, nos relatos orais das pessoas mais velhas da cidade. Outra evidência
é que, segundo esses mesmos cronistas,
40
todos os seus descendentes diretos
(filhos e alguns netos) eram reconhecidamente mestiços.
Aparentemente, no intuito de branquear a sua descendência, casou-se com
Josefa da Costa, branca, nove anos de idade,
41
filha de um dos homens mais ricos
da região de Rio de Contas, Mathias João da Costa. João Gonçalves nada herdara
do espólio de seu sogro, provavelmente pelo dispositivo testamentário escrito por
Mathias, segundo o qual, todos aqueles seus filhos “que se casarem com mulher e
homem que não for branco e cristão
42
” nada receberiam.
Esse dispositivo não deixa de ser interessante porque se, por um lado, é
mais uma evidência da ascendência africana de João Gonçalves, por outro, o fato
de não receber nada não significa que não tivesse boas relações com seu sogro,
39
Patentes e Alvarás do Governo (1738-1745). APEB. Seção de Arquivo Colonial e Provincial. 356
apud SOUSA, Maria Aparecida Silva. A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da
terra no interior da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2001, p. 68.
40
VIANA, Aníbal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas, volume
1e 2, 1982, ORRICO, Israel Araújo. Mulheres que fizeram História em Conquista. Feira de Santana,
Bahia Artes Gráficas, 1982 e TANAJURA, Mozart. História de Conquista: crônica de uma cidade,
Vitória da Conquista, Brasil Artes Gráficas, 1992.
41
Essa informação ainda não está plenamente confirmada, mas, segundo os dados de Maria
Aparecida Sousa, dificilmente ela teria mais do que doze anos. Ver SOUSA, Maria Aparecida Silva. A
Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da
Conquista: Edições Uesb, 2001.
42
Documento apud SOUSA, Maria Aparecida Silva. A Conquista do Sertão da Ressaca: povoamento
e posse da terra no interior da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2001.
.
40
afinal muito dificilmente ele teria casado com a filha de um homem rico e poderoso
da região de Rio de Contas, se não tivesse o consentimento dele.
Mesmo sem a herança do sogro, João Gonçalves da Costa enriqueceu e se
tornou o mais importante personagem da ocupação européia no Sertão da Ressaca.
Em início do século XIX, ele obteve o reconhecimento público de parte da nobreza
portuguesa, como se pode depreender de um ofício de 1807 do governador Conde
da Ponte para o Visconde de Anadia sobre a exploração das margens do Rio Pardo:
“[...] não produz um século um homem do gênio deste capitão-mor, tem 80 e tantos
anos e todas as suas paixões tendem a estas aberturas e descobertas, em que tem
gasto o que é seu e arrisca freqüentemente a própria vida
43
”.
Com Josefa, teve oito filhos, todos mestiços
44
. Fora do casamento porem,
também teve um filho, Raymundo Gonçalves da Costa, que, segundo Viana (1982),
Orrico (1982) e Tanajura (1992), teria sido fruto de um relacionamento com uma
descendente cabo-verdiana, chamada Carlota
45
, “[...] como afirmam algumas
pessoas mais idosas consultadas
46
”, nos diz Viana (1982). Segundo Sousa (2001),
Raymundo morava na Fazenda Morrinhos, que distava oito quilômetros da atual
cidade de Poções, região da Imperial Vila da Vitória, e lá falecera em 1831. Era, ao
que parece, um dos filhos “favoritos” do João Gonçalves da Costa, que elogiava a
sua coragem no enfrentamento dos Botocudos, os mais aguerridos índios do Sertão
da Ressaca. Tal qual o pai, Raymundo teve filhos ilegítimos com mulheres negras,
que receberam sua herança.
Um dos filhos de João Gonçalves da Costa, Antonio Dias de Miranda, casou-
se com a viúva Lucinda de Uruba, que, com o casamento, passou a se chamar
Lucinda Gonçalves da Costa e que já tinha alguns filhos, entre eles Joaquim José
Sampaio. Este quando passou a morar com o padrasto e a mãe na fazenda Uruba,
atual região da cidade de Poções, “a face dos altares”, ou seja, na Igreja, casou-se
com uma ex-escrava de seu padrasto, chamada Bibiana, com quem teve sete filhos.
43
Anais da Biblioteca Nacional. Vol. XXXVIII, Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes
no Arquivo de Marinha e Ultramar, feito por ALMEIDA, Ed. de C. p. 455. Ofício do governador Conde
da Ponte para o Visconde de Anadia, sobre a exploração das margens do Rio Pardo, pelo capitão-
mor João Gonçalves da Costa. 31.03.1807.
44
São eles Antonio Dias de Miranda, João Dias de Miranda, Lourença Gonçalves Castelo, Joana
Gonçalves da Costa, José Gonçalves da Costa, Faustina Gonçalves da Costa, Manuel Gonçalves da
Costa e Maria Gonçalves da Costa.
45
Ver ORRICO, Israel Araújo. Mulheres que fizeram História em Conquista. Feira de Santana, Bahia
Artes Gráficas, 1982, p. 86
46
Ver VIANA, Aníbal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas,
volume 1e 2, 1982, p. 70
.
41
Entretanto, ela fora casada com Cosme “de tal”, crioulo, também escravo de Antonio
Dias de Miranda.
47
Nesse caso, temos um enteado que se envolve com uma escrava de seu
padrasto, Bibiana, envolvimento esse que se deu não depois do falecimento do seu
marido Cosme, mas quando ainda estava casada com ele, pois diz o próprio
Joaquim em seu testamento, “[...] durante o tempo de seu primeiro marido teve ela e
eu a fraqueza de ter três filhos
48
”. Após a morte de Cosme, Bibiana e Joaquim
tiveram ainda mais quatro filhos
49
.
Segundo Sousa (2001), não se sabe por que Joaquim esperou tanto tempo
para assumir a ex-escrava, pois, como “[...] enteado do capitão-mor que também era
senhor da mãe de seus filhos, não precisaria esperar pela morte de Cosme para
admitir um relacionamento que vinha de longa data” (SOUSA, 2001, p.138). Esse
reconhecimento somente se deu em seu testamento, ao deixar escravos e bens para
os seus filhos com a ex-escrava Bibiana,
[...] a meu filho Florindo Elias Sampaio um escravo africano de nome João
[...] a meu filho João Álvaro [...] um moleque crioulo de nome Domingos [...] a
minha filha Guilhermina [...] um escravo criolo de nome Bernardo Machado
[...] uma escrava de nome Luzia [...] a minha filha Maria [...] um escravo
Francisco Cabra [...] a minha filha Domitilia [...] o escravo Luis Africano [...] a
escrava Basilda crioula [...] a minha filha Romoalda [...] o escravo Francisco
Africano [...] a escrava Antonia Crioula [...] a minha filha Leopolda [...] o
escravo felizardo crioulo
50
.
Vemos assim ex-escravos que recebem como herança outros escravos que,
provavelmente, viviam com eles. Bibiana tinha um filho com Cosme, de nome
Serafim, que, mesmo sendo filho dela, continuou sendo cativo do mesmo Joaquim,
seu padrasto. Apenas com a morte de Joaquim é que, por dispositivo testamentário,
Serafim deveria ficar livre.
No testamento de Joaquim, percebemos que ele estava preocupado com a
possibilidade de seus filhos não receberem a herança, pois, como diz ele: “[...] e se
por acaso, e se por minha infelicidade não poderem em direito herdar nas duas
47
Testamento de Joaquim José Sampaio, 1874. Caixa Diversos 1874. AFJM/BA.
48
Foram filhos desse período: Florindo Elias Sampaio, João Álvaro Sampaio e Guilhermina Ferreira
da Rocha.
49
Maria Joaquina da Encarnação, Domitilia Maria da Conceição, Romoalda Maria do Espírito Santo e
Leopolda Maria da Conceição.
50
Inventário de Joaquim José Sampaio, Caixa Inventários n. 12 (1871-1874). AFJM, Vitória da
Conquista/BA
.
42
partes de meus bens os meus três filhos havidos com minha mulher no tempo do
seu primeiro matrimonio serão estes exclusivamente herdeiros de minha terça
51
”.
O processo de partilha aparentemente se deu sem problema, e os filhos de
Joaquim e Bibiana concordaram em alforriar, além de Serafim, outro escravo, Simão,
que tinha entre 70 e 80 anos de idade. Como não está esclarecido o porquê da
alforria, poderemos fazer duas especulações: teria sido em decorrência da idade de
Simão, ou Simão era parente dos filhos de Joaquim e Bibiana
52
.
Tia “emprestada” de Joaquim, Faustina Gonçalves da Costa foi uma das
filhas de João Gonçalves da Costa que mais alcançaram riqueza e prestígio.
Segundo Viana (1982), “conforme narração de pessoas idosas que ouviram de seus
antecessores” era uma “bela mulata”. De seu casamento com o português Manoel
de Oliveira Freitas, teve três filhos: Tereza de Oliveira Freitas, Vitória de Oliveira
Freitas e João de Oliveira Freitas.
O terceiro filho de Faustina e Manoel, João de Oliveira Freitas, casou-se
inicialmente com Maria Clemência do Amor Divino com quem teve cinco filhos
53
. Em
data não precisada, separou-se de Maria Clemência, pois mantinha uma relação
extra-conjugal com a escrava Maria Bernarda.
54
Foi feita uma partilha dos bens, pela qual João doou 1/3 de seus bens
(avaliados em doze contos de réis) para os seus filhos com Maria Bernarda.
Segundo ele, pelo “[...] reconhecimento que devia fazer alguns benefícios aos filhos
de Maria Bernarda criados por ele doador, lhes fizera doação aproveitando também
o ensejo de dar a seus filhos legítimos com igualdade
55
”. Percebemos nesse ato o
reconhecimento dos filhos ilegítimos.
Para provar que doava os valores de livre e espontânea vontade, João de
Oliveira Freitas registrou na justiça um “Processo de insimação a doação intervivos”,
em que seus vizinhos Manoel Rodrigues de Oliveira Barbosa, Raimundo Ferreira de
Alcântara e Thomaz de Aquino Lemos foram chamados a depor sobre a
espontaneidade das doações. Todas as testemunhas disseram que ela foi feita
espontaneamente e que o capitão ainda reservara a importância de “dezoito contos
51
Idem
52
Outro escravo também é alforriado, Bernardo crioulo, de 62 anos. Entretanto, nesse caso o escravo
é que compra a sua alforria.
53
Joana Maria de Oliveira, Jorge de Oliveira Freitas, Umbelina Maria de Oliveira, Joaquim de Oliveira
Freitas e Isabel Maria de Oliveira.
54
Processo de insimeação a doação intervivos feito pelo capitão João de Oliveira Freitas, 1871. Caixa
Diversos 1871, AFJM/BA.
55
Idem
.
43
de réis” para a sua sobrevivência. A doação foi feita principalmente em escravos,
como podemos ver na tabela seguinte:
Tabela no. 1
Filhos da ex-escrava Maria Bernarda Escravos Recebidos
Higina
Dionísia, crioula de 12 anos de idade
Inácio
Theofila, crioula de 11 anos
Rosa
Justina, crioula de 18 anos
Engracio
Marcelina, crioula de 2 anos
Euflosina
56
Martinha, crioula de 2 anos
Felismina
Maria Jeronina, crioula.
Martiniano
Roberta, crioula
Fonte: Autos de partilha amigável e inventário procedida entre o capitão João de Oliveira Freitas e
seus filhos. Caixa Diversos, número 12 (1867). AFJM, Vitória da Conquista, BA.
Todos os filhos de Maria Bernarda receberam escravas, todas crioulas e com
baixa idade. A análise dos documentos nos mostra que Maria Bernarda residia na
Imperial Vila da Vitória e nos faz ao menos supor que João de Oliveira Freitas,
mesmo casado com Maria Clemência do Amor Divino, teria comprado ou alugado
uma casa para Maria Bernarda e seus filhos (também filhos dele).
João de Oliveira Freitas criou também um dispositivo para evitar a dispersão
de seu espólio:
[...] e sendo que faleça algum destes herdeiros instituídos sem deixarem
descendentes legítimos, não poderão os bens herdados passarem de mãos
aos demais herdeiros já mencionados e nem a sua mão, e nem a mais filhos
que esta tenha
57
Em 1872 com a morte de João de Oliveira Freitas, o seu testamento é
cumprido. Nesse momento percebemos que alguns dos filhos de Maria Bernarda
com João de Oliveira Freitas não estavam morando com a mãe, mas com Manoel
Oliveira e Umbelina Maria de Oliveira, essa última filha legítima do mesmo João de
Oliveira Freitas e Maria Clemência, sua primeira mulher.
Manoel e Umbelina se tornaram tutores dos filhos de Maria Bernarda com
João Freitas, o que nos leva a questionar se esse ato não seria uma forma de
56
Mais tarde conhecida como Fulô do Panela.
57
Testamento de João Oliveira Freitas, 1871. Caixa Diversos 1871, AFJM/BA
.
44
manter concentrada a riqueza da família, ou, ainda, uma forma de Maria Bernarda,
provavelmente malvista pelos filhos de João e Maria Clemência, nada receber
(mesmo indiretamente) do espólio de João Freitas. São questionamento a que não
podemos ainda responder.
Maria Bernarda não se manteve quieta e entraria, em 1882, com uma petição
requerendo a emancipação de Rosa, filha dela com João Freitas. No Registro de
Batismo de Rosa, podemos perceber as imbricadas teias familiares estabelecidas,
pois os padrinhos dela eram Joana Maria de Oliveira e Vital Correia de Melo,
respectivamente filha e cunhado de João de Oliveira Freitas.
Desse requerimento, o que posso presumir é que Maria Bernarda estava
tentando deixar junto de si alguma herdeira, o que é obstado pelo tutor Joaquim
Primo, filho legítimo de João Freitas e Maria Clemência e meio irmão dos filhos de
Maria Bernarda, “[...] a referida tutelada, além de ser paralítica de todo o lado direito,
em conseqüência de grave moléstia que sofreu na infância, é completamente
desapisada e, conseqüentemente incapaz de administrar sua pessoa e bens
58
”.
O juiz deu ganho de causa a Joaquim Primo, mas as disputas em torno do
controle dos bens herdados perduraram, e, em 1883, novamente Maria Bernarda
entrou na justiça com o pedido de emancipação para seu filho Engracio de Oliveira
Freitas, com o qual a justiça concordou. Pelo documento apresentado, notamos que
o padrinho de Engracio era o seu meio-irmão (filho de João Freitas e Maria
Clemência). Ao que parece, todos os filhos de Maria Bernarda eram afilhados dos
filhos legítimos de João Freitas e seus bens eram geridos por eles em um processo
que buscava evitar a descentralização da riqueza de Joaquim após a sua morte.
Euflosina, uma das filhas de Maria Bernarda, em 1871, recebeu de seu pai a
escrava Martinha, crioula com dois anos de idade, vinte cabeças de gado, vinte mil
réis, cinco éguas e vinte e cinco mil réis em terras e casa na fazenda Sanharó. Com
esses bens, conseguiu ser figura de destaque na sociedade conquistense, tornando-
se conhecida, por residir na região do Panela (atual Campo Formoso, zona rural de
Vitória da Conquista), como Fulô do Panela.
Fulô é um exemplo de como as mestiçagens foram comuns na formação das
famílias conquistenses: primeiro, casou-se com um descendente de português,
Lázaro Viana, com quem teve dois filhos; depois, abandonada pelo marido, uniu-se
58
Idem
.
45
ao comerciante italiano Francisco Pascoal, com quem teve um filho, que, entretanto,
foi registrado por outro homem, segundo um dos netos de Fulô, em um dos
depoimentos colhidos por Viana (1982), porque
O Italiano, tomando a deliberação de retornar á Itália, queria levá-lo, ainda
menino, o que não concordou minha avó, e então, para que isso não
acontecesse, combinou com o professor Eusébio de Morais, solteiro, para
registrá-lo como seu filho, tendo o professor recebido até um presente de um
terno de cassineta, fazenda fina e cara que só os homens ricos poderiam
comprá-la, vindo desta forma o nome de meu pai Noé Morais de Oliveira.
(VIANA, 1988, p. 400).
Esse depoimento colhido por Viana (1982) evidencia as “artimanhas”
utilizadas por Fulô para não perder o seu filho, usando, inclusive, recursos
financeiros para evitar que Noé saísse do país. Outro fato interessante a ser
destacado é a sua união com um imigrante europeu.
Uniu-se, Fulô, posteriormente, ao Coronel José Fernandes de Oliveira Gugé
(Coronel Gugé), futuro líder político de Vitória da Conquista, com quem teve dois
filhos. Tempos depois, ela se casou legalmente com o português Alfredo Trindade,
de quem absorveu o sobrenome e passou a se chamar Euflosina Maria de Oliveira
Freitas Trindade.
Figura n
o
2
Euflosina Maria de Oliveira (Fulô do Panela).
(Foto: VIANA, Anibal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas,
volume 1, 1982.
Ao receber a herança de seu pai, Fulô conseguiu em todos esses anos
acumular riqueza e passou a ser proprietária de imóveis e de uma loja na Rua
Monsenhor Olimpio, centro de Vitória da Conquista. Também foi uma das figuras
.
46
centrais de alguns acontecimentos importantes da cidade, tais como a briga entre
católicos e protestantes e a luta armada, em 1919
59
, entre os grupos políticos
meletes e peduros, em que foi uma das responsáveis pela solução dos conflitos.
Sobre esse fato, diz Belarmino Souza (1999): “O desfecho foi antecipado pela
intervenção das senhoras Laudicéia Gusmão, Henriqueta Prates, Joana Angélica e
Euflosina Maria de Oliveira, respeitadas matriarcas de famílias formadoras da
endogamia conquistense” (SOUZA, 1999, p.117-118).
Em 1920, Euflosina Maria de Oliveira Faria Freitas também faria parte do
“Comitê de Caridade”, que, segundo Itamar Aguiar (2007), era composto por
pessoas da “alta sociedade” (AGUIAR, 2007, p. 62). Ela faleceu em 30 de novembro
de 1935, fato que foi destaque da edição de 6 de novembro de 1935 do Jornal “O
Labor”:
Vítima de cruéis padecimentos causados por moléstia que zombou a ciência
médica, faleceu nesta cidade no dia 30 próximo passado (Outubro) a
senhora D. Euflosina de Oliveira Freitas Trindade contando com idade de 72
anos. D. Euflosina era uma das mais estimadas matronas de conquista,
deixa uma lacuna impreenchível no seio da família conquistense. (O Labor
apud VIANA, 1982, p. 401).
Fulô é tida como uma das mais “estimadas matronas de conquista”, por isso
sua morte deixava “uma lacuna impreenchível no seio da família conquistense”. As
razões para esse prestígio de Fulô provavelmente estavam ligadas à riqueza que
conseguira acumular ao longo dos anos e a sua ligação e defesa intransigente da
religião católica, alem de ter sido uma parteira muito requisitada na região.
Já Vitória de Oliveira Freitas (uma das filhas de Faustina) se casou com o
português Jacinto Fernandes Ribeiro, com quem teve quatro filhos. Desses,
Senhorinha Fernandes de Oliveira, que se casou com José Nunes Bahiense, com
quem teve uma filha de nome Adelaide Nunes de Oliveira Farias (dona Sinhazinha
Nunes), que nasceu em 1860 e viveu por mais de cem anos.
Segundo Viana (1982), com base nos relatos da própria Sinhazinha, “no dia
13 de Junho de 1884, se casou com o Major Sebastião Muniz de Farias contra a
vontade de todos os seus parentes, seu amor por um homem de cor falou mais alto.
Deste casamento em diante seus bens foram minguando” (VIANA, 1982, p.404).
Para além do comentário preconceituoso de Viana, vemos uma história se
repetir, primeiro com a ascensão social de um negro/mestiço, ou “homem de cor”,
59
Para uma discussão maior sobre essa questão ver AGUIAR (2007)
.
47
como diz Viana, afinal Sebastião era major, um posto elevado na estrutura militar, e,
depois, com o casamento inter-racial feito contra a vontade dos pais e a
conseqüente “miscigenação” da família Gonçalves da Costa no século XX.
O processo que envolve a família Gonçalves da Costa mostra que esta
família, a mais importante para a formação da cidade e da região de Vitória da
Conquista, foi composta majoritariamente por negros e mestiços. Segundo Souza
(1999), caberia a ela, principalmente depois da “fusão” com a família Fernandes de
Oliveira, em razão do casamento de Faustina com Manuel de Oliveira Freitas, a
formação da endogamia conquistense que assumiu a administração político-
econômica do município do século XVIII ao século XX, já que um descendente de
João Gonçalves da Costa, o engenheiro civil José Fernandes Pedral Sampaio, foi
prefeito de Vitória da Conquista por três mandatos (1963, 1982 e 1993).
A existência desta endogamia composta por negros e mestiços não passou
despercebida dos cronistas locais, como constata Viana:
[...] os grande lideres de Conquista no passado, José Fernandes de Oliveira
Gugé, Pompilio Nunes Oliveira, José Maximiliano Fernandes Oliveira, o filólogo
José de Sá Nunes, o jornalista Bruno Bacelar de Oliveira, o poeta Manuel
Fernandes de Oliveira (Maneca Grosso) e o engenheiro civil José Pedral
Sampaio [...] são descendentes de Faustina da Costa, que era mulher de cor
casada com branco europeu de “olhos de gato” (VIANA, 1982, p. 582).
Já Tanajura faz a seguinte observação: “daí se notar o sangue da raça negra
misturado com o sangue do branco de olhos azuis na fisionomia amulatada de
muitos conquistenses que tiveram papel de relevo na comunidade” (TANAJURA,
1992, p. 57). De acordo com o que vimos, a família Gonçalves da Costa e suas inter-
relações foram sempre marcadas por casamentos inter-raciais. Vejamos o
organograma dessa família:
.
48
Família Gonçalves da
Costa
João Gonçalves da
Costa
Josefa Gonçalves
da Costa
(negro) (branca)
Carlota
(africana)
Raymundo
Gonçalves da
Costa
(negro)
João Dias de
Miranda
Antonio Dias
Miranda
Lourença
Gonçalves da
Costa
Joana Gonçalves
da Costa
José
Gonçalves da
Costa
Faustina
Gonçalves da
Costa
Manuel Gonçalves
da Costa
Maria Gonçalves
da Costa
(mestiço)
(Mestiço)
(mestiça)
(Mestiço)
(Mestiço)
(mestiço)
(mestiço)
(Mestiço)
Lucilia
Miranda
Manuel De
Oliveira
Freitas
(branco)
Bibiana,
(Negra)
(Ex-Escrava
de Antonio Dias
Miranda)
Joaquim
Sampaio
João de
O veira Freitas
Tereza de
liveira Freitas
Vitória de
liveira Freita
li
(mestiço)
O
(mestiço)
O
(mestiço)s
8 Filhos
Maria Clemencia
do Amor Divino)
Maria Bernarda
(Negra, Ex-
Escrava)
(Branca)
8 filhos
(Negros
)
A história da região Sudoeste é marcada pela constituição de uma elite local
mestiça, que nunca perdeu o poder. Esses descendentes de africanos (a começar
por João Gonçalves da Costa), ao longo do tempo, adquiriram terras e escravos
igualmente negros ou mestiços e transmitiram seus bens, em alguns casos, para
seus filhos bastardos.
.
49
2.3 - A presença escrava
Se a historiografia sobre a presença escrava na cidade de Salvador e
Recôncavo Baiano é diversificada
60
, o mesmo não se dá em relação às regiões
interioranas
61
. Sobre Vitória da Conquista, a dificuldade é maior ainda. Citações
pontuais aparecem nas obras de Viana (1982), Orrico (1982), Mozart Tanajura
(1992) e trabalhos mais recentes, como os de Sousa (2001), Ivo (2004), entre
outros
62
. Entretanto ainda falta uma pesquisa que dê conta da presença escrava na
região.
Provavelmente os primeiros escravos da região tenham vindo com João
Gonçalves da Costa. Em ofício redigido em Lisboa, em 12 de agosto de 1780, o ex-
governador da Bahia Manuel da Cunha Menezes escreveu ao Secretário da Marinha
e Ultramar, Martinho de Mello e Castro, sobre a Capitania dos Ilhéus, e, ao
descrever João Gonçalves, salienta a existência de índios domésticos e alguns
escravos ao seu lado:
[...] um homem com sua família, vivia nas cabeceiras da citada capitania,
no sertão da ressaca, chamado João Gonçalves, o qual obrigando-se, não
sei o motivo, por aquele deserto por dilatado tempo, não logrou ver fruto do
seu trabalho, pois lhe roubavam os índios bravos e as onças que eram em
grande número, mas como se lhe foram agregando alguns casos de índios
domésticos e teve com que comprar alguns escravos; hoje tem no rancho
mais de 60 pessoas e vivem sossegados das primeiras perturbações e
rodeados das fazendas de gado com que fornecem os açougues da Vila de
Jaguaripe, povoação de Nazareth e Aldeia, tendo a fazer dilatado caminho
pra lhe introduzir os gados.
63
60
Talvez os três mais célebres sejam MATTOSO, Kátia Maria de Queiroz. Ser Escravo no Brasil. São
Paulo. Brasiliense, 1982, SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos – engenhos e escravos na
sociedade colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. REIS, João José. Rebelião Escrava no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
61
Fiz uma pequena discussão bibliográfica existente sobre a escravidão no interior da Bahia no artigo
NASCIMENTO, Washington Santos. Famílias escravas, libertos e a dinâmica da escravidão no sertão
baiano (1876–1888). Afro-Ásia (UFBA), v.35, 2007.
62
No anexo fiz uma breve discussão sobre esta bibliografia.
63
Anais da Biblioteca Nacional. Vol. XXXII. Inventário dos documentos relativos ao Brasil existentes
no Arquivo de Marinha e Ultramar feito por ALMEIDA, E. de C. p. 472. Ofício do ex-governador da
Bahia Manuel da Cunha Menezes para Martinho de Mello e Castro, sobre a Capitania dos Ilheos.
Lisboa. 12 de agosto de 1780 In: ISNARA IVO, I. P. A conquista do sertão da Bahia no século XVIII:
Mediação cultural e aventura de um preto-forro no Império português. In: XXIII Simpósio Nacional de
História. História: Guerra e Paz, 2005, Londrina. Anais Suplementares do XXIII Simpósio Nacional de
História. Londrina PR: Cd-room Anais XXIII Simpósio Nacional de História, 2005. v. 1.
.
50
Voltada para a criação de gado e a agricultura de subsistência, Vitória da
Conquista apresentava uma baixa densidade de escravos, como podemos perceber
na tabela abaixo construída com dados do censo de 1870.
Tabela n
o
2
CENSO DE 1870
Localidade População Livre População Escrava Percentual de
escravos em relação
à população livre
Vitória da Conquista 11.619 1.846 15,88%
Fonte: IVO, Isnara Pereira. O anjo da Morte contra o santo lenho: poder, vingança e cotidiano no
sertão da Bahia. Vitória da Conquista: Edições Uesb, 2004
Para ter uma amostra da dimensão da presença escrava na região nos
últimos dez anos da escravidão, sem, entretanto, ser conclusivo, realizei uma
pesquisa em 104 inventários post-mortem, entre os anos de 1878 a 1888, onde pude
encontrar 201 escravos, cuja proporção entre homens e mulheres é a seguinte:
Tabela n
o
3
ESCRAVOS NOS INVENTÁRIOS
1878 – 1888
Homens 103 51,24%
Mulheres 98 48,76%
Total 201 100%
Fonte: Inventários da Imperial Vila da Vitória. Arquivo do Fórum João Mangabeira- Vitória da
Conquista/BA. (1978-1888)
Acredito que esse equilíbrio entre homens e mulheres é uma realidade presente
apenas da região de Vitória da Conquista; na região vizinha de Maracás, em
pesquisa realizada por mim
64
, pude perceber também um equilíbrio entre homens
(55%) e mulheres (45%), de um total de 123 escravos encontrados no período de
1878 a 1888.
64
NASCIMENTO, Washington Santos. Padrões e Tendências das Enfermidades e Causas Mortis
entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-1887). In: IIII Encontro Estadual de
História: Poder, Cultura e Diversidade. Vitória da Conquista - Bahia: Eureka, 2006. v.1.
.
51
Uma das possíveis explicações para esse equilíbrio talvez seja o aumento das
famílias escravas nos últimos anos da escravidão em toda a região. A formação de
famílias cativas, extensas, por meio de parentes de sangue, compadres e
companheiros de trabalho também são elementos característicos do sudoeste do
estado.
Em Maracás, nas fazendas da família Silva Pinto, localizadas na região que
hoje corresponde à cidade de Contendas do Sincorá, constituía-se regra a formação
de núcleos familiares
65
, talvez por um maior “esclarecimento” do “doutor” Ernesto da
Silva Pinto, formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, e que era dono da
maioria das propriedades da família. Provavelmente ele tenha sido partidário da
idéia de que a construção de uniões conjugais entre a população negra levaria a um
processo de pacificação das senzalas, tal qual como descreveu Florentino e Góes
(1997) em relação à realidade do Rio de Janeiro
66
.
Analisando o interior de Minas Gerais do século XVIII, Eduardo Paiva (2001)
encontra uma situação semelhante a essa encontrada em Maracás: segundo ele, na
propriedade do paulista José Vieira de Almeida, todas as escravas eram casadas e
provavelmente ocupavam uma habitação em separado dos demais escravos
67
.
Na região da Imperial Vila da Vitória, a presença de famílias escravas
também é grande, como se pode perceber em uma correspondência enviada ao
presidente da província em 1877
68
em que o juiz municipal da Imperial Vila da
Vitória, José Cardoso da Cunha, relata os trabalhos da junta classificadora de
escravos criada para alforriar os filhos de escravos nascidos depois da Lei de 28 de
setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre. Na carta, o juiz reclamava que os valores
mandados pelo presidente da província para indenizar os donos dos escravos eram
insuficientes em decorrência da grande quantidade de famílias escravas no lugar.
[...] a classificação procedida pela junta deste município foi, em verdade,
parcial, mas abrangendo o número de 19 famílias escravas, isto é um
número muito considerável em relação à quota destinada a libertação dos
65
A Constância das famílias escravas foi vista nos livros de óbitos de 1878 a 1887.
66
Para mais informações, ver FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A Paz das Senzalas:
família escrava e tráfico atlântico. Rio de Janeiro, 1790-1850. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1997.
67
PAIVA, Eduardo França. Escravidão e Universo Cultural na Colônia: Minas Gerais, 1716-1789. Belo
Horizonte, Editora da UFMG, 2001.
68
Seção Colonial e Provincial, Presidência da Província, Série Judiciário, Período 1874-1889, Maço
2648 (1877) APEB/BA.
.
52
escravos do mesmo município, a qual cota é de 3:744$684, e, por pequena
não pode favorecer á todos os escravos classificados
69
.
Outro traço comum a essas duas regiões analisadas é a grande presença do
nome “Maria”. Em Maracás, 40% das mulheres encontradas nos livros de óbitos, de
um total de 145 (indistintamente de cor), tinham Maria em seu nome, talvez isso se
deva ao fato de a padroeira de Maracás ser Nossa Senhora das Graças, um outro
nome de Maria, mãe de Jesus.
Já em Vitória da Conquista, percebi também uma grande quantidade de
mulheres, entre os anos de 1878 a 1888, com o nome “Maria de Jesus”. Das 255
mulheres (independente de cor) encontradas nos inventários, 94 delas (36,86%)
tinham esse sobrenome. Talvez parte da explicação seja a mesma dada para a
região de Maracás, ou seja, o nome seria influência da padroeira local “Nossa
Senhora das Vitórias”. Mas o sobrenome “Jesus” pode ser uma referencia ao
passado ligado à escravidão
70
.
Voltando a falar da presença escrava em Vitória da Conquista, e
especificamente do valor dos escravos na última década da escravidão, percebo
que, quando jovens (até 30 anos), não havia muita diferença entre os preços de
homem e de mulher, mas, quando passavam dos 30 anos, havia uma
desvalorização maior do preço das mulheres, provavelmente pela perda da
capacidade reprodutiva
71
.
Com relação à cor e origem desses escravos, um levantamento feito por
Erivaldo Fagundes Neves e utilizado por Itamar Aguiar (1999), no período
compreendido entre 1768 e 1883, em documentos existentes no Arquivo Público do
Estado da Bahia (APEB), mostra que, dos 460 escravos arrolados, 396 eram
brasileiros, todos mestiços (crioulos, cabras, mulatos, pardos), ou seja, 86,08% do
total.
69
Idem
70
A associação do sobrenome Jesus aparece também em outras regiões como por exemplo Vitória-
ES, ver SOARES, Geraldo Antonio . Esperanças e desventuras de escravos e libertos em Vitória e
seus arredores ao final do século XIX. Revista Brasileira de História, v. 26, p. 79-114, 2006. ou Santa
Catarina ver FERREIRA, Sergio. L. . Transmissão de sobrenomes entre luso-brasileiros: uma questão
de classe. Boletim de História Demográfica, São Paulo, v. 36, 2005.
71
Segundo inventários localizados entre 1878 e 1888, o valor das mulheres que tinham entre 02 e 30
anos variava entre 500$000 à 1:300$000 enquanto os dos homens dessa idade entre 400$000 à
1:400$000, Já acima dos 30 anos o valor das mulheres caiam para a faixade 500$000 à 5$000
enquanto os homens tinham um decréscimo menor, ficavam na faixa de 1:000$000 à 10$000
.
53
Trabalho semelhante a esse, realizei no Fórum João Mangabeira sobre o
período de 1878 a 1888, quando investiguei 104 inventários post-mortem e cheguei
a resultados parecidos, como se vêem nos números seguintes:
Tabela n
o
4
Relação da cor dos escravos com base em dados colhidos nos
inventários do Fórum João Mangabeira (1878-1888)
Crioulo Fula Preto Mulato Cabra Parda Africano
S.
Declar.
Total
(escravos)
82 3 23 4 47 7 15 20 201
Como já referi na introdução desta dissertação, a terminologia “crioulo”,
“fula”, “preto”, “mulato”, "cabra”, "parda” e “africano” é uma construção social e tem
uma história que é anterior ao Sertão da Ressaca. Há, nessas gradações, também
uma diferenciação entre cor e origem: “preto, mulato, cabra e parda” são cores, e
“crioulo”, “fula”, “africano” são origens.
Em termos percentuais, teríamos a seguinte distribuição:
Gráfico n
o
1
Cor dos Escravos (I) (1878-1888)
A
fricano
7%
S. Declar.
10%
Parda
Crioulo
3%
42%
Cabra
24%
Fula
1%
Mulato
Preto
2%
11%
Se fizermos outra análise sem atentar para as denominações de cor
presentes nos inventários, sem considerar os “sem declaração” e assinalando
.
54
apenas duas categorias, “negros” (africanos, pretos e fulas) e “mestiços” (crioulos,
mulatos, cabras e pardos), teremos o seguinte quadro para análise:
Tabela n
o
5
Negros e Mestiços
(1878-1888)
Negros Mestiços Total
41 140 181
Em termos percentuais, a distribuição será essa:
Gráfico n
o
2
Negros e Mestiços nos Inventários
(1878-1888)
Negros
23%
Negros
Mestiços
Mestiços
77%
Os dados apontam que, para além da família Gonçalves da Costa que estava
no topo da pirâmide social da região, também os escravos, que estavam na base
dessa pirâmide, eram compostos majoritariamente por mestiços.
Essa, entretanto, não é uma realidade apenas da região do Sertão da
Ressaca, como vemos na Tabela no. 6 com dados do censo de 1872, realizado em
todo o território nacional:
.
55
Tabela n
o
6
Categoria
Brancos
3 787 289
Índios Bravos
------------
Índios Domesticados
386.955
Pardos Livres
3 324 278
Negros Livres
921 150
Pardos escravos
477 504
Negros escravos
1 033 302
Total
9 930 478
Fonte: Dados do Censo de 1872 presentes no livro “Negros, Estrangeiros: Os Escravos
libertos e sua volta á África” de Manuela Carneiro Cunha
Em termos percentuais, vemos que a população mestiça em todo o Brasil é um
pouco maior do que a população branca e muito maior do que a população negra:
Gráfico n
o
2
Brancos, Pardos e Negros no Censo de 1872
0
500000
1000000
1500000
2000000
2500000
3000000
3500000
4000000
1
Brancos, Pardos e Negros
Censo Populacional
Retornando à região de Vitória da Conquista, outra documentação que
aponta a forte presença de escravos nascidos no Brasil e em boa parte
miscigenados são as cartas de alforria. É o que podemos depreender, por exemplo,
dos comunicados enviados pelo juiz municipal José Cardoso da Cunha ao
.
56
presidente da província, entre os anos de 1872 a 1875. Sobre os anos de 1872 a
1874, ele diz:
Obtiveram carta de liberdade judicial no ano de 1872, Felisardo crioulo, em
1874, Isidoro Criolo pertencentes à herança do finado Serafim Pereira
Arruda, Bernardo Crioulo e Esperança, Africana, Manuel e Maria Feliciana
pardos e Bernardo crioulo, e por sentença do doutor Juiz d Direito, Roque,
Inácio, Ambrosio e Constantina. Todos crioulos; nada constando de escrito,
quanto ao ano de 1873. Dos livros de Notas se vê, que forma manutenidos
na posse de sua liberdade em o ano de 1872, Joaquina Africana por sua
senhora Ana Batista. Domingos cabra,por seu senhor José Nunes Bahiense.
Cremencio Cabra por sua senhora ... (?) Maria da Silva. Em 1873 Matheus,
cabra, com condição, por ser do senhor Manuel José da Silva. Crispiana
parda, manutenida na metade, por ser de senhor Francisco Inácio da Rocha.
Em 1874 Ruonardo crioulo, por seu de senhor José Antonio de Lacerda e
Albino, pardo, por seu de senhor Ruberto Rodrigues de Moura. Nada mais
consta quanto aos anos de 1872, 1873 e 1874 como me foi ordenado por
portaria. Em Fé do que passo a presente. Vila da Vitória, 11 de Maio de
1875
72
.
No total, são onze escravos nascidos no Brasil (pardos e crioulos) e um
africano. Essa mesma proporção pode ser encontrada em outro documento: uma
carta enviada no mesmo período, em que a realidade não muda muito: nesse caso
são 13 nascidos no Brasil(crioulos e pardos) e um africano. Vejamos o que diz o
documento:
[...] conta que foram manumitidos no referido espaço de tempo quatorze
escravos: a saber. Bernarda Africana E Isidoro Criolo manumitidos em juízo
este por não ter sido matriculado e aquela por haver requerido e depositado
a quantia de seu valor a forra do juízo d Carta conferida por seus senhores
lançados nos livros de notas os escravos seguintes. Roque criolo, Casimira
cabra, Ana Parda, Balbina Parda, Felismina Criola, Joaquim Criolo, Jacob
criolo, Lourenço criolo, Manuel Criolo, Verônica criola, Felippa Criola,
Florinda Criola. O referido é verdade em fé do que passo a presente
certidão. Imperial Vila da Vitória, 17 de Maio de 1875
73
.
Assim, constatei que a região tinha uma pequena quantidade de escravos,
quase todos nascidos no Brasil, e um número equilibrado entre mulheres e homens
escravos, o que, talvez, ajude a entender os resultados do fim do tráfico de escravos
e também o grau de mestiçagem que a região atingira.
72
Seção Colonial e Provincial, Presidência da província, Serie Judiciário (juízes Vitória), Período
1874-1889, Maço 2648 (1875), APEB.
73
Idem
.
57
2.3.1 – Dimensões da presença escrava na região da Imperial Vila da Vitória
Como já disse antes não constitui objeto dessa dissertação aprofundar o
debate sobre a presença escrava na região de Vitória da Conquista, entretanto para
o real entendimento dos lugares construídos para o negro é preciso entender a
especificidades da presença escrava na região, principalmente nos últimos anos
antes da abolição da escravatura.
O primeiro processo analisado é de 1870 e relata a história do escravo e João
Damasceno, morador de lagoa do Plácido, região de Caetité e nascido em Santo
Antonio da Barra (Atual Condeúba). Ele fora até a zona rural da Imperial Vila da
Vitória, na Fazenda da Casca para assassinar Quintiliano, preso, ele confessa o
crime e explica as razões pela qual cometeu o crime:
Perguntado qual a razão porque fora fazer este delito ou se alguém mandou
cometer? respondeu que por parte dele não tinha razão alguma, que o fez
como de fato já confessou , foi porque Jose de Almeida instara muito com ele
desde janeiro deste corrente ano, e depois de muito pedido e rogativas pode
ele conseguir com promessas de aforrar e que se não fizesse então José de
Almeida o iria comprar em mão de seu senhor para açoita-lo
74
Segundo o réu, José de Almeida lhe disse que se contasse a história para alguém
que o mataria. Nessa primeira fala diz que seu senhor nada sabia do acordo e do
ocorrido. Mas uma testemunha o contradiz:
[...] o mesmo réu dissera a ele testemunha que José de Almeida acordou de
pagar a José Abade o seu valor e este dar-lhe carta de liberdade no caso que
ele fizesse a morte, ao contrario ele réu seria surrado até morrer para não
descobrir segredo de que estava de posse.
Segundo essa mesma testemunha Quintiliano sabia que José de Almeida
estava querendo mata-lo, pois fora avisado por Manoel Abade (irmão de José
Abade), de que José de Almeida tinha-o oferecido um conto de réis para matá-lo.
Essa morte seria por envenenamento, “[...] para cujo fim (José de Almeida) lhe dera
uma porção de veneno, porque deste modo ficara a culpa em Luis Inácio Pereira e
Dona Joana Maria da Silva, mulher do assassinado, visto ter havido outrora
discórdia entre eles
75
”.
74
Sumário de Culpa, 1870. Caixa diversos 1870. AFJM
75
Idem
.
58
Segundo Domingos Ferraz de Araújo, outra testemunha fora Manuel Abade
que conversara com seu irmão José Abade que tinha um “negro matador
76
” que
poderia fazer tal serviço. Segundo essa mesma testemunha José Abade sempre
andava em companhia de jagunços.
Essa informação é confirmada pelo próprio réu que dizer sido seu senhor o
“agenciador”. Dá detalhes dessa transação e diz que viera pela primeira vez em
Janeiro para matar Quintiliano, disfarçado com o nome de Antonio, dizendo vir de
Brejo Grande a procura de uma filha que estaria em Barra da Vereda. Ao chegar na
Fazenda da Casca, na localidade chamada Rancharia, encontrara Quintiliano
“arranchado”, nessa oportunidade tentou envenenar o mesmo, mas não conseguira,
retornou então a seu lugar de origem.
Em Abril voltara novamente para tentar matar Quintiliano: “[...] aonde
chegou em um dia de sexta-feira a tarde, emboscou-se detrás do curral aonde
passou a noite, e de manha muito cedo no momento em que Quintiliano ia tirar leite
em uma vaca ele réu lhe disparara o tiro de que morreu momentaneamente
77
”.
Segundo ele todos os suprimentos da viagem forma fornecidos por José de
Almeida e que esse mesmo o ensinara um outro jeito de carregar uma arma “[...]
pondo a bala sobre a pólvora, envolvendo o chumbo em puxa de estopa para figurar
a outra bala”.
Mas ao retornar seu senhor negou-lhe a carta de liberdade, dizendo que
José de Almeida não o tinha pagado ainda.. O escravo então “alerta” de que assim
como ele seu senhor “[...] tinha família e também poderia sofrer”. Também manda
um recado para José de Almeida informando que tinha feito o “serviço”.
Não obteve o retorno e em uma situação não explicitada no processo, é
preso na Imperial Vila da Vitória e segundo ele com receio de morrer, resolve contar
toda a história. O escravo é então condenado a galés perpetuas
78
. Mas por ação do
advogado de defesa o processo é transferido para o Superior Tribunal da Relação
na capital, Salvador, onde um outro julgamento é marcado.
Nesse processo vemos um escravo com família e que era um jagunço
profissional, visto a forma com que ele se disfarçou, mentiu, tentou usar veneno, de
76
Vê-se aqui o “entre - lugar” ele era negro e matador.
77
Sumário de Culpa, 1870. Caixa diversos 1870. AFJM
78
Segundo Célia Marinho de Azevedo (2004) as galés perpetuas era a pena máxima imposta a um
escravo, corresponderia hoje a prisão perpetua.
.
59
um único tiro acertou e de como detalhara o jeito “novo” de carregara arma. Ele
adentrava as articulações daquele universo social no intuito de conseguir sua
liberdade.
Em 1875, um outro processo mostra a dinâmica da vida escrava, trata-se de
uma briga existente entre um escravo e um homem livre. Segundo Luiz Alves
Barreiros, o dono da casa onde se dera o conflito, em um sábado por volta das
19:00 horas estava em sua casa, na região de Vargem, zona rural da então Imperial
Vila da Vitória, Vicente Pereira dos Santos que brigara com Raimundo Tal, depois de
ter serenado os ânimos:
[...] com poucas horas depois chegaram os escravos, Izidoro de Dona
Heduviges Angélica de Andrade, Vicente e David escravos do Capitão Idario
Vieira de Andrade, João e Noberto escravos de Marciano José da Ponte, ela
testemunha correu com esses escravos de sua casa, estes desobedeceram,
entrou ela testemunha para o interior de sua casa, viu sua mulher lhe
chamando para acudir um barulho no terreiro, ela testemunha veio
imediatamente ver, achou Vicente Pereira dos Santos e o escravo Izidoro, de
dona Heduvigens, estarem em luta de briga, ambos de porretes espancando
um a outro, ela testemunha [...] já estando Vicente bastante ensangüentado
dos ferimentos que havia recebido na luta, e nesta ocasião o escravo Izidoro
pode escapar das mãos de Benedito de Tal, ainda deu uma cacetada sobre o
braço de Vicente
79
.
A fala da testemunha revela a mobilidade que os escravos tinham na
Imperial Vila da Vitória, á noite cinco escravos de três senhores diferentes, estavam
juntos, sem nenhum tipo de vigilância, a se locomover, aparentemente para onde
lhes aprouvessem e segundo a testemunha “[...] pedindo a ele testemunha para dar-
lhes um pouco de cachaça”.
Um documento é uma evidencia muito pequena, mas ele parece sugerir que
aos sábados os escravos tinham o consentimento de seus senhores para saírem de
suas fazendas, se reunirem com outros escravos, de outros senhores e estavam
“livres” para poderem se divertir e beber cachaça.
Esse processo também releva a postura moral que um determinado escravo
poderia ter quando um livre não se portasse bem. Diz a mesma testemunha, que
Vicente (livre):
[...] deu uns pescoções na referida sua cunhada e outros em Januaria de Tal,
o escravo Izidoro pediu a Vicente que deixasse daquilo. Vicente dirigiu-se
para o escravo Izidoro, dando-lhe duas facadas pequenas, uma no pescoço e
79
Sumário de Culpa, 1875
.
60
outra em um ombro; e Izidoro pode denvenciar das facadas e dar-lhe uma
cacetada
80
.
A questão aí não era escravo versus livre, mas sim de alguém que não
estava se portando bem e outro que se obstou a esse comportamento. Outras
testemunhas também relatam o comportamento “errado” de Vicente e a forma como
Izidoro teve que intervir. Segundo ela “sem motivo algum” Vicente batera nas duas
mulheres e que por essa razão Izidoro tivera que intervir. Dessa forma a fala das
testemunhas levam a Izidoro ser inocentado.
Outro processo interessante é de 1877 e relata os castigos sofridos por uma
escrava de nome Maria, natural da Bahia (Salvador), solteira, de idade ignorada era
a única escrava de Cordula Maria de Carvalho. Segundo uma testemunha ela
apanhava de vara de Marmelo de sua senhora. O exame de corpo de delito diz que
foram encontrados diversos ferimentos “[...] desde as partes inferiores de ambos os
joelhos até acima das nádegas bastante inflamadas. Encontraram mais iguais
ferimentos, no mesmo estado, no meio das costas”
81
.
Segundo a escrava Maria, toda vez que a senhora bebia, batia nela, por
essa razão não queria ficar mais com a mesma. Segundo uma outra testemunha
tanto a senhora quanto a escrava tinha por habito se embebedarem. Por essas
razões e pelo resultado do exame de corpo de delito a escrava é então retirada das
mãos de sua senhora e “depositada” nas mãos de um tutor. A senhora, se defende,
levantando os seguintes argumentos:
O artigo 14 & 6º do nosso código criminal isenta de punição o mal causado
pelo castigo moderado que darem os senhores a seus escravos. Se a razão
e a moral reprovam os excessos no castigo, as conveniências sociais
aconselham que se de aos escravos castigo moderado diante de algumas
atitudes. Infelizmente ainda temos muitos escravos, se tratar de se processar
todos os senhores que cometem algum excesso nos castigos de seus
escravos, veríamos grande desorganização nas relações domesticas de
nossa sociedade, pela infinidade de abusos que necessariamente
apareceriam
82
.
Continua ela dizendo que os peritos que fizeram o exame de corpo de delito
não eram qualificados e que os ferimentos feitos na escrava não tinham sido tão
graves assim. Outras testemunhas são chamadas a depor e uma dimensão da vida
da escrava Maria aparece, ela tinha um “amazio” (um relacionamento intimo) com
80
Idem
81
Atuação de corpo de delito, 1877
82
Idem
.
61
um homem livre de alcunha Alecrim
83
. Segundo duas testemunhas teria sido Alecrim
quem teria batido em Maria.
Mesmo com duas testemunhas afirmando que vira a senhora bater na
escrava, a fala de que Maria apanhava de Alecrim é aceita, mostrando assim haver
tido algum arranjo entre juiz e réus, a senhora é absolvida e Maria volta para a
antiga casa.
Nesse processo algumas questões importantes de serem destacadas.
Primeiro o fato de uma senhora ter um único escravo, isso aparecem em outros
documentos
84
, depois o fato dela, supostamente beber com sua senhora e por fim a
possibilidade real de ter um relacionamento aparentemente estável entre uma
escrava e um homem livre, aparentemente um ex-escravo.
Em 1878 o mesmo escravo Isidoro, anteriormente relatado e que tinha dado
pauladas em Vicente, novamente se mete em uma outra briga, dessa vez com um
outro escravo de nome Clemente, escravo de Domingos de Oliveira Bastos, estando
ele em um samba
85
:
[...] e saindo daí em direção a casa de residência de seu senhor, encontrara
com Clemente conversando com a escrava Cecília do domínio de Dona
Senhorinha Nunes Fernando Ribeiro, no beco da casa do Tenente Bahiense,
ele respondente dissera à rapariga que fosse embora e neste ato o Clemente
dissera que ele respondente não era capaz de dar na rapariga, dizendo ele
respondente que não queria dar em pessoa alguma, e neste intere o referido
Clemente puxara uma faca – e ele respondente que se achava com um
cacete na mão, arremessara contra seu ofensor, que não pode pegar a
cacetada, caindo ele respondente por terra por um escorrego que levara
aproveitando esta ocasião em que ele respondente levara a queda para
Clemente ferir-lhe com uma faca
86
.
83
Não era raro um escravo ter relações com pessoas livres, em um “Auto de Portaria para registros
de escravos e concessão de cartas de liberdade pelo fundo de emancipação” de 1877, vemos um
escravo com pecúlio, com mulher e filhos libertos. A mesma coisa de dá em uma “Autuação da
petição para ser libertado pelo Fundo de Emancipação” de 1884, onde o escravo Bernardo tinha uma
mulher liberta e da mesma forma na “Ação de Liberdade” de 1884, vê-se o escravo Antonio casado
com uma mulher liberta.
84
Principalmente nos últimos anos da escravidão, depois do fim do trafico, e da migração que passou
a existir para os cafezais de São Paulo, o valor dos escravos aumentou e não era raro encontrar
senhores com um único escravo. Em uma “Autuação de Portaria” de 1870, temos um homem
“mentecapto” que tinha como único bem um único escravo, na “Ação Ordinária” de 1870, filhos
disputam na justiça o único escravo do pai falecido, No “Processo Civil” de 1870, a disputa é em torno
do único bem de uma família, uma escrava de 7 anos, da mesma forma no “Processo Civil” de 1873 a
disputa entre dois irmãos era por um escravo pardo, único bem de seu pai. A disputa por um escravo
chegava a extremos como no caso da “Autuação de uma petição” de 1883 em que um escravo é
dividido em sete partes em um inventário, um dos beneficiários concede liberdade de sua parte, dois
dizem que esse escravo terá que trabalhar quatro anos para ser considerado livre e quatro dizem que
será necessário sete anos de serviços prestados para que ele se torne livre.
85
No ultimo capitulo faremos uma discussão sobre sambas e batuques.
86
Processo crime 1878. AFJM (Caixa Diversos). Vitória da Conquista/BA
.
62
Algumas questões aparecem nessa citação, escravos á noite perambulando
pelas ruas de conquista e participando de sambas, andando armado, um com faca e
outro “com um cacete na mão”, e exigindo que uma outra escrava se portasse de
maneira correta, não ficasse em um beco conversando com outrem, pois se assim o
fosse seria penalizada com uma possível agressão física.
É interessante destacar a presença, no processo, de uma depoente escrava e
de uma depoente africana. Em um contexto marcado pela mestiçagem, esse caso é
uma exceção. Trata-se de Bernarda Maria da Ponte, de 55 anos, solteira, moradora
da Imperial Vila da Vitória, “natural da Costa d’África”. Provavelmente ela seria
parente de Francisco José Maria da Ponte, o “tio Nagô”, que, segundo Viana (1982,
p. 15), era escravo de João Gonçalves da Costa
87
.
Nesse momento ela já estava livre mas mantinha algum tipo de relação com
outros escravos, pois ela soubera do que teria ocorrido “[...] por ouvi dizer de
Bernarda escrava da casa da senhora Guilhermina
88
”, ou seja, o fato forma
divulgado em toda a Vila e a partir de uma escrava, Bernarda soubera o que teria
ocorrido. O processo termina sem nenhum tipo de punição para os envolvidos.
O que esses documentos evidenciam é uma grande mobilidade espacial
desses escravos, o fato de serem valiosos e quase sempre morarem sozinhos na
casa de seus senhores. Mas também mostram que esse mesmo escravo poderia
manter relações conjugais estáveis quer com livres ou cativos e poderiam, em
situações extremas, ser condutor de moral e bons costumes.
2.4 - A abolição da escravidão e seus diferentes significados
A abolição da escravatura veio concretizar um processo que já estava em
franco desenvolvimento com as alforrias e a ação do fundo de emancipação. Um dos
primeiros documentos locais que fazem referência direta à abolição é de 17 de julho
de 1888, escrito por Lydio Nunes Bahiense:
A C. M desta Imperial Vila da Vitória tem a distinta honra de, em sessão
ordinária, acusar o recebimento da circular de V. Exª, de 14 de maio último,
comunicando haver S. A. , a Princesa Imperial Regente sancionado, a 13 do
referido mês a lei que extinguiu a escravidão no Império. Esta comarca, pois,
esperando reunir em sessão, folga hoje em congratular-se com V. Exª e com
87
O processo envolvendo índio também tinha um depoente escravo.
88
Processo crime 1878. AFJM (Caixa Diversos). Vitória da Conquista/BA
.
63
o país inteiro, por nos vermos, assim livres de uma instituição legada por
nossos maiores, a qual detestava-no, é certo, ante os povos cultos; mas
sente profundamente ver por nossos legisladores violado o preceito do § 22
artigo 179 do nosso pacto fundamental, na parte em que, garantindo o direito
de propriedade em toda a sua plenitude, estatue prévia indenização nos
casos excepcionais em que o bem público, legalmente verificado, exigir que
se fira tal direito. E mais lamentável se torna aquela violação, porque veio
dar em nossa lavoura o golpe mais profundo que até aqui tem ela recebido; e
em que quadra (?). Exemplos sem numero: quando em luta com a barateza
e nenhuma procura dos seus produtos, a mingua de recursos para
aperfeiçoar-se ou variar de cultura, vendo cada dia escassear os braços
afeitos ao trabalho, pedia, a lavoura em pungentes brados aos poderes
públicos que o amparassem e a livrasse de tal ruína! De maneira que grande
número de lavradores, vendo-se abandonados dos seus trabalhadores, sem
meios de angariarem gente nova e disciplinada
89
.
Pela leitura desse documento, percebemos que a escravidão era vista como
um fardo e um traço que conduziria ao atraso, mas, ao mesmo tempo, era
necessário que houvesse indenização pelo “golpe na lavoura”, sofrido com a saída
dos escravos, sobretudo ante a impossibilidade de conseguir trabalhadores “novos e
disciplinados”.
Nesse mesmo documento, vemos o temor pela grande presença negra e livre
na localidade:
Lamenta igualmente esta comarca que a lei de 13 de maio, não
acompanhada de medidas previdentes que reprimisse o ócio e a
vagabundagem, de perniciosas e terríveis conseqüências, para que não se
desse o triste e singular espetáculo que presenciamos atualmente de em
Chusma percorressem os ex-escravos, homens e mulheres as vilas e
povoados, tendo por única ocupação licita dizerem cada momento – agora
somos livres – ao passo que incitados pela fome que os estortega,
mergulham-se na prostituição para exercer a gatunice, prenuncio este de
roubos qualificados e assassinatos cruéis
90
.
Nesse documento, os negros são caracterizados como preguiçosos,
vagabundos, ladrões e assassinos. Ao salientar que a única ocupação desses ex-
escravos é dizer “agora somos livres”, o documento nos mostra uma realidade bem
próxima daquela encontrada por Hebe Matos (1988) no sul carioca, onde os negros
diziam “agora somos tudo cidadão”. Como diz Bakhtin (1988), mesmo em condições
adversas, nunca conseguimos abafar a voz do outro, percebemos a dimensão que a
abolição assumira para parte daquela população.
89
Oficio 1875. Seção Colonial e Provincial Presidência da província Serie Judiciário (juizes
Vitória) Período 1874-1889 Maço 2648 (1875)
90
Idem
.
64
Depois desse documento, parece ter havido certo silêncio sobre a abolição
nas fontes documentais, pois outro localizado por mim com referência direta a esse
evento é apenas de 1913, ou seja, de 25 anos depois. Trata-se da ata da sessão da
Câmara Municipal de Vereadores de Vitória da Conquista, realizada em 12 de maio
de 1913, em que se relata que:
[...] o senhor presidente (dr Lau Juan) tomando a palavra e relembrou a
grande data de treze de maio que representa um dos mais gloriosos dias da
historia brasileira que viu riscar de suas paginas a existência da escravidão
e que portanto em honra a esse dia convocava uma seção extraordinária
em comemoração a esse dia, marcando-a para as oito horas da noite.
Pediu a palavra o conselheiro Paulino Fonseca, que apoiando essa
convocação requereu que fossem expedidos convites a todas as
autoridades e pessoas gradas da cidade para esse ato comemorativo o que
foi unanimamente aprovado
91
.
No dia seguinte, todas as autoridades se fizeram presentes para comemorar
a “grande data”:
Estando presente todos os conselheiros, Juiz de Paz, Delegado de policia,
conego, e mais ainda “representantes da imprensa”, “grande numero de
senhoras e cavalheiros”, direção da “sociedades Vitória Aurora”, do “grêmio
Literario” e “crescido numero de representantes de todas as classes
sociais
92
.
A idéia que o secretário quis passar é que foi uma festa com toda a elite local,
mas que contou com a participação do povo.
O presidente tomou a palavra fazendo ver o fim da sessão extraordinária
convocada, que era a comemoração solene da grande data treze de maio
que registrava a abolição da escravidão, fato altamente glorioso na história
brasileira e que por tanto o governo municipal de conquista congratulava-se
com seus munícipes e que concitava a todos a venera-la sempre,
terminando erguendo vivas a republica brasileira, ao dia 13 de maio e ao
povo conquistense, tocando em seguida a filarmônica Vitória, o hino
nacional que foi ouvido de pé, respeitosamente por todos os presentes
93
.
Além do presidente, o cônego Manuel Olímpio fez questão de pronunciar
algumas palavras, que assim foram sintetizadas pelo secretário do Conselho
Municipal:
[...] que em vibrante e patriótico discurso em nome do povo conquistense
saudava ao grande dia e se orgulhava por ver o governo municipal dava
essa solene prova de patriotismo e que pediu que fosse incendo na ata de
hoje um voto de louvor pelo culto a este memorável dia
94
.
91
Ata da sessão ordinária do Conselho, 12 de Maio de 1913. Livro de Atas do Conselho Municipal
1913 - AMVC/BA.
92
Idem.
93
Idem
94
Idem
.
65
Na descrição dessa comemoração cívica feita pela Câmara Municipal, não
há menção à situação de ex-escravo. Ele some! Parece não ser um dado importante
para os membros da Câmara. No Jornal “A Noticia” de 13 de maio de 1928,
aniversario de 40 anos, a situação é a mesma, o ex-escravo praticamente inexiste, e
quem entra em cena são os abolicionistas e a princesa Isabel, “A Redentora”:
Pobres cativos, Ia muito longe o sofrimento,a raça infeliz, triste herança do
domínio lusitano, debatia-se ainda jungida pelos elas da escravidão. O povo
que se erguera soberano na Jornada do Ypiranga, quebrando os grilhões
pesados da escravidão, escravizava ainda sobre o império despotismo e
tirania, uma raça desvantajada. Triste absurdo. Pouco a pouco porem,
inflamados de civismo, começara a despertar os corações dos mais patriotas
e liberais. Nos serros longínquos como uma sombra, divisava-se o vulto
perdido entre brumas, do abolicionismo
95
.
No decorrer da matéria, foram lembrados nomes como o de Joaquim
Nabuco, José do Patrocínio e outros abolicionistas menos conhecidos e foi dada
grande ênfase ao papel assumido pela princesa Isabel - “A Redentora”. No Jornal é
feita uma referência a Maria Rogaciana, uma ex-escrava sobre quem discutiremos
no último capítulo, onde também desdobraremos outras nuanças dessa festa cívica.
Nesses documentos não há nenhuma discussão sobre o destino dos ex-
escravos. Uma pista de como se instalaram territorialmente esses ex-cativos em
Vitória da Conquista depois do 13 de maio pode nos ser dado por Viana (1982) em
sua revista ele relata uma brincadeira que havia entre os meninos da rua de cima e
os meninos da rua de baixo. Vejamos o que ele diz:
Nos idos de 1917 e 1919 os meninos de 12 a 16 anos inventaram uma
brincadeira que serviu para criar animosidade entre os jovens que moravam
na “ruas de cima” com os moradores das “ruas de baixo”. As “ruas de cima
eram as dos Fonsecas, Andrades, Boiada, Rua Grande, Rua da Conquista,
Rua do Espinheiro, Triunfo e Juazeiro. As ruas de baixo, era a da Vargem,
Baixa da égua, dos Campinhos, Ruía da Avenida, do cemitério e Rua das
Flores. Os meninos do batalhão das ruas de cima, lembrados eram muitos e
dentre estes Valdé de Tonico Santos, Hildebrando (neném de Viriato Dias),
Climériâo de Ioio Silva, Belmiro Palhares, Tiago Oliveira, José Calixto
(Grosso) os quais depois de adultos, forma para a Policia Militar, Missias
irmão de Groso, Juvenal do Capitão Clemente, Henrique, Filho de Alfredo
Sande e os meninos da rua de baixo eram Agenor de Fulo, (Agenor Freitas),
Isalino Moreira Magno, Gió Gusmão, Armando Santos, Juquinha Gusmão,
Elvrio, Ambrosino e Aníbal, filhos de Bocório Preto. (VIANA, 1982, p. 426)
95
Idem
.
66
Vejamos o quadro abaixo em que tento identificara procedência dessas crianças:
Tabela 7
Crianças das Rua de Cima
Valdé de Tonico Santos Pertencente a uma das famílias mais
tradicionais de conquista a Santos Silva
Hildebrando (neném de Viriato Dias) Não Identificado
Climério de Ioio Silva Pertencente a uma das famílias mais
tradicionais de conquista a Santos Silva
Belmiro Palhares Não Identificado
Tiago Oliveira, Não Identificado
José Calixto (Grosso) Não Identificado
Missias irmão de Grosso, Não Identificado
Juvenal do Capitão Clemente Filho de Clemente José da Silva, Conselheiro
Municipal, Fazenderio, “homem de cor”
Henrique, Filho de Alfredo Sande Não Identificado
Fonte: VIANA, Anibal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas,
volume 2, 1982.
Tabela 8
Crianças da Rua de Baixo
Agenor Freitas Filha de Fulo do Panela (fila de uma escrava com um
senhor)
Isalino Moreira Magno, Não Identificado
Gió Gusmão, Filhos da Família Gusmão, responsáveis pela
instalação da Igreja Batista em Conquista
96
Armando Santos, Não Identificado
Juquinha Gusmão, Filhos da Família Gusmão, responsáveis pela
instalação da Igreja Batista em Conquista
Elvrio, Ambrosino e Aníbal Filhos de Bocório Preto
Fonte: VIANA, Anibal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas,
volume 2, 1982.
96
Segundo Itamar Aguiar (2007) os Gusmão eram descendentes de espahóis e também oriundos de
famílias judias.
.
67
O que podemos fazer aqui é apenas uma especulação a partir dos dados de
Viana (1982), mas parece-me que inicialmente havia uma cisão social entre aqueles
mais ricos que moravam na rua de cima e os mais pobres que moravam na rua de
baixo. Entre aqueles que moravam na rua de baixo estavam os negros e aqueles
que irão fundar a igreja Batista em Vitória da Conquista. Os negros que acenderam
estavam na rua de cima, como o Capitão Clemente.
Outro indicio importante sobre o destino do negro após a abolição pode ser
encontrado a partir da analise das fotos localizadas por mim na casa de Ariosvaldo
Cardoso dos Santos (Moreno Sapateiro). Algumas dessas fotos encontram-se no
Museu Regional de Vitória da Conquista e outras reproduzidas no livro de Israel
Orrico (1982). Não localizei as datas exatas das fotos, mas, segundo informações
do livro de Orrico (1982) seriam provavelmente da primeira metade do século XX.
Dois “lugares” aparecem nas fotografias: o serviço militar e a limpeza pública. Nas
fotos ligados ao serviço militar vemos negros-mestiços também participando das
bandas de musicas militares. Vejamos:
Figura 3
Autor não identificado
.
68
Nessa fotos vemos negro-mestiços de posse de instrumentos de sopro e
percussivos, pó que também é perceptível na foto seguinte:
Figura 4
Autor não identificado
Nessa aqui vemos um destacamento militar:
Figura 5
.
69
Outra parte das fotografias localizadas por mim, se refere ao serviço de
limpeza publica realizado em Vitória da Conquista, na primeira vemos os
trasportadores de lixo:
Figura 6
Autor não identificado
Vê-se também nas fotos trabalhos ligados a limpeza urbana:
Figura 7
Autor não identificado
.
70
E a serviços de construção e melhorias de estradas:
Figura 8
Autor não identificado
Por fim, percebo ao longo da história de Vitória da Conquista, um amplo
processo de mestiçagem que envolveu índios, negros e brancos. Traço marcante
também da região é que sua formação está ligada à história de uma família
negra/mestiça, os Gonçalves da Costa. Essa história mostra a ascensão e a
permanência de um núcleo familiar negro/mestiço no topo do poder econômico e
político, que legou a seus filhos bastardos quinhões de suas riquezas.
Embora a presença escrava tenha sido pequena, não significa que a
presença negra também o tenha sido, haja vista referencias aos negros quilombolas,
a família Gonçalves da Costa e os filhos “bastardos” que resultaram do
entrelaçamento entre brancos e negros. A abolição só veio consolidar um processo
em andamento e trouxe impactos diferenciados para a população local.
.
71
CAPITULO III REPRESENTAÇÕES DE “MESTIÇOS”, “PRETOS” E “NEGROS”
EM VITÓRIA DA CONQUISTA (1870-1930)
Neste capítulo, centro-me na análise das representações construídas sobre a
população afro-descendente (mestiços, pretos, negros) por diferentes atores da
realidade de Vitória da Conquista no período de 1870 a 1930. As fontes que utilizo
são, sobretudo, jornais e processos crimes, por se tratar de documentos que
possibilitam adentrar no universo cotidiano principalmente da região de Vitória da
Conquista, onde, ao que parece, o racismo se mostrava com mais força, sempre
“mesclado” com as desigualdades sociais. Ao pensar nesses documentos, penso
que “[...] toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma resposta a
alguma coisa e é construída como tal”. (BAKHTIN, 1988, p.98).
3.1 - Crioulos, Mulatos e Pardos: Cor e comportamento
Para refletir sobre os mestiços e as tipologias criadas para representá-los,
convém lembrar o que diz Consorte (2002):
[...] a mestiçagem abriu um leque de possibilidades novas de identificação
através das quais foi sendo fragmentado todo o conjunto [...] os africanos
eram identificados a partir das suas nações ou dos seus lugares de origem,
também os mestiços aqui nascidos foram sendo distinguidos a partir dos
tipos de cruzamentos que representavam. (CONSORTE, 1992, p.109).
Ao abrir esses “leques de possibilidade” talvez seja interessante pensar os
mestiços como uma “categoria” criada por Bhabha (2001): a de “entre-lugar”, ou
seja, no caso deste estudo, o mestiço seria o “negro-não-negro e/ou branco-não-
branco
97
”:
Esses “entre-lugares” fornecem o terreno para a elaboração de estratégias
de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de
identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de
definir a própria idéia de sociedade. (BHABA, 2001, p. 20).
Uma das primeiras representações de mestiços aparece em 1872, em um
processo que envolve Maria Bernarda. Moradora da Rua do Espinheiro, na Imperial
Vila da Vitória, Maria Bernarda, filha de Marcolina, em 1872 tinha “mais ou menos”
97
Parafraseando Eneida de Almeida dos Reis (2002)
.
72
36 anos de idade. Solteira, vivia de seu trabalho e da porcentagem dos objetos que
lhe entregavam para isso
98
. Que objetos seriam esses? Talvez escravos, já que
Maria Bernarda possuía ao menos uma escrava, de nome Felicidade, que estava
batendo em uma criança de nome Theotonio, filho de Carolina Teixeira, o que fez
com que outra vizinha, Roza Silveira de Oliveira, pedisse na justiça um Termo de
Bem Viver.
Segundo Eduardo Martins, esses Termos de Bem Viver “[...] não diziam
respeito às infrações consideradas criminosas, eram essencialmente normatizadores
da ordem pública, portanto podia-se fazer prender no caso da reincidência da sua
assinatura” (MARTINS, 2003, p. 102), ou seja, eram termos “civilizatórios”, que
visavam garantir a “moral” e os “bons costumes”.
Pela pena do escrivão, Roza assim descreve Maria Bernarda: “[...] Diz Roza
Silvana de Oliveira, viúva, e moradora na Rua do Espinheiro desta vila, onde vive de
negócios, aí é sua vizinha a crioula Maria Bernarda, prostituta, turbulenta, e
habituada a vociferar injurias contra qualquer pessoa”
99
.
O termo “crioula” aparece antes do nome “Maria Bernarda”, para qualificá-la,
em seguida, vem uma depreciação da sua condição de mulher, “prostituta”, e, logo
depois, os qualificativos morais “turbulenta” e “injuriosa”. O “vociferar injúrias” remete
à inexistência de uma fala polida na linguagem de Maria Bernarda. Cor e
comportamento moral aparecem associados e marcam a presença do racismo na
representação de Maria Bernarda. Além disso, existe a idéia de que ela não tinha
bons costumes: “turbulenta”, “injuriosa” são palavras usadas pela acusação.
O processo não se estende; talvez Roza quisesse apenas “assustar” Maria
Bernarda. No mesmo ano, ela retira, mas faz questão de ressaltar o que considera
um comportamento anti-social de Maria Bernarda: “[...] desistia do processo crime
intentado contra a crioula Maria Bernarda e que perdoava as ofensas que por sua
turbulência lhe havia rogado a sua constituinte”. Aqui a idéia de que “naturalmente”
Maria Bernarda era “turbulenta”, ou seja, novamente a associação entre cor (crioula)
e comportamento moral (turbulenta).
Em 1888, na descrição daqueles chamados de “mulatos”, a cor aparece
também como um determinante comportamental, mas de maneira mais específica,
98
AFJM, Caixa Diversos 1872 a 1873, Termo de Bem Viver, 1872.
99
AFJM, Caixa Diversos 1872 a 1873, Termo de Bem Viver, 1872.
.
73
associada à criminalidade. É o que percebo em um processo cível de 1888, em que
o negociante Deraldo Pereira, de 44 anos, assim relata o assalto que sofrera:
[...] inocente e pacificamente passeava em sua calçada, no dia vinte do
corrente as quatro horas da tarde, quando foi assaltado por um mulato
chamado Candido que vive na companhia de Ancelmo da Silva Brasileiro, o
qual mulato pelas costas dele respondente abraçou-o de forma tal que
impossibilitou-o de qualquer movimento, neste ínterim apareceu Ancelmo da
Silva Brasileiro, o escravo Estevam, do domínio de Dona Lydia Roza
Guedes, e Onésimo da Silva Brasileiro de idade de mais ou menos
dezesseis anos
100
.
Na narrativa do depoente, o discurso se desenvolve suave “inocente e
pacificamente passeava” para, depois, explodir: “quando depois foi assaltado por
um mulato”. Mulato foi quem o assaltou, só depois é que aparece o nome, Candido,
e reitera: “o mulato”.
Em 1889, em um processo cível, encontrei a descrição de um ex-escravo
chamado Inocêncio. Em todo o processo, podem ser encontradas algumas
representações sobre Inocêncio, construídas principalmente pelo seu ex-tutor, em
que a questão da cor logo aparece: “Inocêncio crioulo”. O seu sobrenome é
“Crioulo”.
No registro de batismo de Inocêncio, feito em 1873, o vigário José Moniz
Cabral Leal de Menezes descreve-o sucintamente: “Inocêncio, livre, crioulo” nome,
condição e cor, indissociavelmente ligados. Onze anos mais tarde, em 1884, já sob a
tutela de Luiz Moreira dos Santos, Inocêncio é retratado pelo tutor como alguém que
“[...] não quis mais sujeitar-se a trabalhar no serviço do hoje ex-tutor, e isso porque já
estava possuído da influência de casar-se, o que realizou pouco tempo depois
101
”.
Expressões fortes, como “sujeitar-se”, “possuído”, são utilizadas na representação
de Inocêncio. Segundo seu tutor, para impedir que Inocêncio se cassasse, seria
preciso prendê-lo. Entretanto, “[...] com a realização do qual talvez fosse este
espancado por soldados, conforme o abusivo costume que há nesse termo
102
”. Luiz
Moreira dos Santos apresenta-se como alguém que poderia defender Inocêncio da
violência contra os presos e/ou descendentes de africanos
103
.
Morto em 1897, Inocêncio é novamente retratado pelo vigário, agora, com o
nome completo, “Inocêncio Minas dos Santos”, possivelmente o “Minas” do
100
AFJM, Caixa diversos 1890 a 1899 (22), Auto de corpo de delito 1888.
101
AFJM, Caixa Diversos 1888 a 1890. Termo de Tutela 1889
102
Idem
103
Em alguns documentos a cadeia é associada a uma senzala, é o que se percebe em ofícios
enviados nos anos de 1871 e 1872 para o presidente da província.
.
74
sobrenome seja uma derivação do termo “Mina”, presente no sobrenome de seu pai,
Joaquim Mina, e o “dos Santos”, seja advindo de seu tutor Luiz Moreira dos Santos.
Em seu sobrenome, então, a sua procedência, “Mina”, e a sua ligação posterior “dos
Santos”. “Cor/procedência” (Mina) e “condição” (ligado à família dos Santos)
continuam aparecendo na descrição de Inocêncio.
Ao final do processo, percebo que, antes da abolição, há um Inocêncio
“crioulo”, “livre”, “menor”, “sem domicilio”, “sem ocupação”; já depois da abolição:
descendente de escravo (“Minas”), que não queria “sujeitar-se” mais, estando
“possuído” para casar-se. Se antes, era “livre”, “mas sem domicilio”, “nem
ocupação”, tinha que se sujeitar. Agora livre, mas na iminência de casar-se, não
queria sujeitar-se mais. Entretanto estava suscetível a violências (cadeia). Comum
aos dois momentos é a associação direta à origem escrava de Inocêncio.
Continuando a análise das representações de mestiços em processos
crimes, localizei um processo do início do século XX, de 1919, em que um ofendido
descreve seus ofensores com uma clara alusão a “mulato” como um eixo explicativo:
“[...] que um de seus agressores é baixo, mulato e que tem dois dentes de ouro,
sabendo quanto ao outro que é alto da mesma cor”. Um atributo físico, a altura
(baixa), aparece associada à cor (mulato).
Em outro processo de 1922, há uma descrição de Ana Maria dos Reis, nos
autos de corpo de delito, feita pelos “doutores” Crescencio Antunes da Silveira e o
cirurgião-dentista Amphilophio Pedral Sampaio. Ana é descrita como “surda e
dislalica, parda, de cabelos bons
104
”. Na descrição “técnica”, a condição de saúde
aparece antes, para só depois, enfocar a questão da cor, “parda”. A expressão “de
cabelos bons” parece uma tentativa de aproximar a parda do mundo branco.
Anos depois, em 1924, outra menção a “mulato” aparece na descrição do
escrivão de polícia, quando diz que: “[...] no dia 14 do corrente mês, foi assassinado
Antonio de Tal de cor mulato claro, olho de gato”. Nessa descrição, “mulato claro”
com “olho de gato” chama a atenção para a matiz de mestiçagem de Antonio.
A imagem construída no processo é a de alguém que “procedia mal”, um
“grande turbulento”, segundo uma testemunha:
[...] o procedimento era péssimo, tanto que a poucos dias tinha chegado de
Itabuna com duas cutiladas no braço, em barulho de facão que ali
provocou, por tanto não deixaria de ser um grande turbulento , e tinha por
104
Idem
.
75
costume viver provocando a este e a aquele, tanto que esteve preso nas
cadeias desta cidade por duas vezes
105
.
A imagem de turbulência é associada ao comportamento de “viver
provocando a este e a aquele”. O processo se estende por dez anos e, nele, duas
imagens sobre Antonio estão sempre presentes: na descrição do escrivão e do
promotor, a questão da cor, “o mulato”; já na descrição das testemunhas (seis no
total, todos lavradores e casados), Antonio aparece como “turbulento
106
”. A
estratégia era caracterizá-lo como alguém violento, e o acusado, como alguém que
agira em legítima defesa.
Mesmo sendo mestiços, o racismo e a ancestralidade escrava são marcas
indeléveis da representação desses personagens, feitas, sobretudo por aqueles que
detinham o poder na localidade. Mas essas representações nunca apareciam
sozinhas, estavam associadas também a uma falta de “civilidade” desses
personagens.
Outra questão importante a ser ressaltada é a distinção que a população de
Vitória da Conquista fazia entre crioulo, pardo, mulato, cabra e preto, o que revela a
existência da noção da intensa miscigenação formadora daquele grupo
populacional.
3.2 - Construindo o “negro”: lugares e ambivalências.
De maneira mais explícita do que nos casos anteriormente analisados, que
envolveram personagens que estavam, a meu ver, nos “entre-lugares”, em uma
outra série de processos encontrados o que estava em jogo eram as diferentes
representações sobre o “ser negro” e o “ser do negro
107
” articuladas com outras
dimensões e entre os próprios negros-mestiços.
Um dos primeiros processos em que essa discussão ganha força é de 1874 e
envolve o “negro-curandeiro” Joaquim Antonio Bandeira. Dois eixos discursivos, não
excludentes, mas complementares, entram na representação de Joaquim “negro” e
“curandeiro”
, mostrando que ele também estava no “entre-lugar”, ora negro, ora
105
AFJM, Caixa diversos 1924 , Sumário de culpa – 1924.
106
A presença desse termo, “turbulento” , nos diferentes depoimentos talvez se deva a normatização
imposta pela pena do escrivão, como se pode deprender do caso de Maria Bernarda (1872)
anteriormente analisado.
107
Parafraseando aqui SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro. São Paulo/Rio de
Janeiro:Pallas/EDUC/Fapesp, 2002
.
76
curandeiro. Ele aparece em um processo por injúrias verbais de 1874, impetrado por
Severiano da Silva Pinha e sua mulher (acusadores) contra Maximiliano José de
Barros e sua mulher Theofila Boa Sorte (acusados)
108
.
A acusação de Severiano é de que Maximiliano e Theofila estavam difamando
sua filha Balbina, por um suposto envolvimento “imoral” com Joaquim Antonio
Bandeira, um “negro-curandeiro”. No primeiro relato, os acusadores ressaltam o
papel dele:
Diz Severiano da Pinha Silva, casado com família morador do lugar
chamado Olho d’Agua, que achando-se o suplicante ausente de sua casa
em fins do mês de junho passado , sua mulher e sua filha Balbina Maria da
Silva, menor de 21 anos foram de visita a casa de Maximiano José de
Barros no lugar assim denominado Furados – vizinho desta vila e aí
pernoitaram, mas a filha do suplicante nessa noite adoeceu gravemente e
achando-se presente um curandeiro de nome Joaquim Antonio Bandeira
aplicou-lhe algumas mezinhas, com as quais ela melhorou
109
.
Segundo Severiano, o curandeiro depois de ter bebido cachaça, dissera que
Balbina estava com “fogo”:
[...] e que estava prenhe, depois de ter o mesmo curandeiro ter uma
conversa particular com a mãe da dita, foi esta atacada por uma moléstia
desconhecida na história médica. Que sendo Balbina conduzida para o
quarto onde dormem os acusados, aí pos-se a estrebuchar e ao mesmo
tempo abraçando e sendo abraçada pelo curandeiro. Que Balbina, durante
o referido ataque pedia a todos, inclusive a mãe, que a deixassem só com o
curandeiro e proferia palavras obscenas e impróprias para uma donzela
110
.
Na fala do acusador, uma “donzela” (menor de 21 anos) teria proferido
palavras “obscenas” e “impróprias”. Uma “donzela” pura e casta teria sido
“corrompida” por um curandeiro. Nesse ponto, também os réus (Maximiliano e
Theofila) concordam e dão mais detalhes:
Que o curandeiro não consentia que pessoa alguma entrasse no quarto
onde ele e Balbina estavam; e querendo fazer também retirar a acusada,
esta teimou em ficar e não retirou-se, e depois do que pos-se a moça a
dizer que não podia suportar a luz, e sendo esta apagada pelo curandeiro,
a acusada fez de novo acender, isto por duas ou três vezes. Que vendo
Balbina e o curandeiro que a acusada não saia do quarto, trataram de sem
rebuliço se abraçarem e pedindo o curandeiro um vidro de banha, pos-se a
esfregar as partes pudentas de Balbina, consentindo essa e até
manifestando prazer chegando mesmo a dizer que o curandeiro fizesse do
corpo dela o que quisesse
111
.
108
Esse processo foi localizado por Itamar Aguiar (1999) e citado em sua dissertação.
109
Processo Crime por injúrias verbais. Caixa Diversos (1874). Fórum João Mangabeira, Vitória da
Conquista /BA
110
Idem
111
Idem
.
77
Aqui a revelação de que o curandeiro teria tocado as partes íntimas da
“donzela”, o que a teria levado a pedir que fizesse com o seu corpo “o que quisesse”.
Imoralidade, lascívia e prazer aparecem em destaque na fala dos réus. Continuam
os acusadores a detalhar os atos “imorais” do curandeiro:
Que entre beijos e abraços e tratando-se por meu bem, levaram Balbina e o
curandeiro grande parte da noite; e durante este tempo à acusada saiu
duas ou três vezes para ir buscar alguma coisa a pedido do curandeiro.
Que no dia seguinte Balbina não quis aparecer com a saia que trazia e o
curandeiro pediu a acusada uma saia emprestada para a mesma Balbina
vestir pelo que a acusada emprestou uma saia cor de rapé. Que Balbina
amanheceu com os beiços inchados e a cútis roseada
112
.
Na citação, várias expressões exemplificam uma suposta “lascívia” e
“imoralidade”, tais como: “beijos e abraços”, “se tratando por meu bem”, “não quis
aparecer com a saia que trazia” (manchada de sangue diante da perda de
virgindade da donzela?) e “beiços inchados”.
A mãe de Babina parece que sabia o que estava acontecendo, mas confiava
na “honra” que o curandeiro poderia oferecer a sua filha:
Que Balbina mandou que o curandeiro deitasse na cama com ela, e
opondo-se a isso a acusada, a mãe de Balbina, que tudo ouvira de fora,
disse à acusada que nenhum mal faria e que o curandeiro tinha honra para
dar a sua filha e à acusada
113
.
Já as impressões dos réus sobre o curandeiro são diferentes: “Que os pais
de Balbina são os primeiros a difamarem-na, consentindo que andasse em passeios
na garupa de um biltre como o negro curandeiro”
114
. No momento em que associam
o curandeiro a uma imagem negativa, a sua cor é logo posta em evidência. “Biltre”,
vil, patife, não era uma pessoa de honra.
Não tendo como escapar do fato de que sua filha teria tido um
“relacionamento” com o curandeiro, a mãe justifica esse ato como movido por forças
sobrenaturais, ou seja, por um feitiço feito pelo curandeiro. Dessa forma, o
curandeiro é o responsável pela corrupção dos costumes:
Que os acusados guardavam silencio de tais ocorrências por serem muito
vergonhosas até que foram descobertas pela própria mãe de Balbina, que
112
Idem
113
Idem
114
Idem
.
78
narrando os fatos, dizia que tudo tinha-se dado por feitiço da acusada. Que
se houve feitiço, o feiticeiro é o curandeiro
115
.
João Moreira Prates, empregado público, testemunha do caso, reforça a idéia
de que o curandeiro era “imoral” e oferece detalhes sobre os acontecimentos,
particularmente sobre o comportamento do curandeiro e seus procedimentos:
[...] em certa hora depois de beberem muita cachaça, sentando-se o dito
curandeiro Bandeira junto a Balbina, e espreguiçando-se junto dela, esta
também fizera o mesmo, isto indicando sensualidade, e que dali foram para
o quarto onde dormem Maximiano e sua mulher, e indo também o
curandeiro, este não queria que pessoa alguma entrasse no dito quarto
ficando no mesmo a força a mulher de Maximiano e vendo sem vestido a
dita Balbina, o curandeiro deu a esta um pedaço de ananaz dizendo que
era para ela não mover o seu filho e depois de esfregar a barriga de Balbina
e mais outros lugares com a banha, apagou a luz, porem a mulher de
Maximiano fez acender de novo, e isto por algumas vezes e pondo-se
Balbina a dizer-reçebo a vós senho. O curandeiro dissera discunjura de
sinhô que aqui está douto
116
.
A imoralidade é associada ao consumo de cachaça, que teria levado a atos
que remetem à sensualidade
117
. A mesma testemunha continua relatando os feitos
imorais do curandeiro e a referência às suas divindades:
[...] estando Balbina deitada adiante da mulher de Maximiano e supondo o
curandeiro está já noite avançada que esta estava já dormindo, o mesmo
curandeiro foi devagar deitar-se na cama e abriu com jeito as pernas de
115
Idem
116
Idem
117
É importante destacar a representação de todo um arsenal utilizado pelo curandeiro, como o
ananás e a banha. Parece-nos que Balbina recebera santo, quando ela diz “Recebo a vós senho” e o
curandeiro pede que a entidade saia, “O curandeiro dissera discunjura de sinhô que aqui está douto”.
O que seria esse Conjuro? Mesmo analisando o México Colonial, Serge Gruzinski (2001) diz que o
conjuro era uma forte idolatria entre a população indígena, que, por meio dela, chegava até o outro
plano. Segundo ele “[...] é mais um poder sobre os seres e as coisas do que um saber é uma práxis,
um estabelecimento de relações, mais do que uma especulação intelectual. O que não significa que a
exclua completamente: curandeiros e outros poderem ter sido levados a pensar o conjunto dos
conjuros que conheciam, mas este não era seu objetivo imediato e habitual. (GRUZINSKI, 2001, p.
238). Segundo Gruzinski, o conjurador é aquele que recebe por um período de tempo a energia
divina, como fazem os homens deuses pré-hispânicos; ele é a encarnação do próprio deus e poderia
manipular como bem quisesse uma determinada situação, mesmo que não fosse fácil transmitir por
meio de palavras o mundo criado pelas invocações. Quanto aos medicamentos utilizados pelo
curandeiro, existe o uso de elementos do universo medicinal indígena, o ananás e a banha. A
utilização de óleos e/ou banhas constitui-se uma prática comum entre os curandeiros/feiticeiros do
Brasil Colônia. Além do caso já citado do frei, Mello e Souza (1986) descreve vários exemplos de
utilização de untos de carneiros (sebo), banhas e diferentes tipos de óleos.
.
79
Balbina, que nelas se acomodava, e que sendo visto pela mulher de
Maximiano esta lhe dera um empurrão que o fez cair no chão e ouvindo
Maximiano que estava na tenda tal barulho viera a porta do quarto e
perguntara a sua mulher o que era aquilo e antes de sua mulher responder
o dito curandeiro pedira a esta que pelo Senhor Bom Jesus da Lapa nada
dissesse, pelo que a mulher respondeu a seu marido que não era nada
118
.
“Imoral”, o curandeiro fora lentamente deitar-se na cama e, com “jeito”, abriu
as pernas de Balbina. O grau máximo de imoralidade tinha sido alcançado. Ao ser
descoberto, ele invoca então um santo católico, Bom Jesus da Lapa
119
. O processo
termina com o despacho do juiz sobre a improcedência da denúncia por injúrias
verbais impetrado por Severiano e o condena a pagar as custas do processo.
Severiano recorre, mas perde novamente na segunda instância. As “imoralidades”
cometidas tanto pelo curandeiro quanto pela filha de Severiano, Balbina, ficaram
então provadas. A tese de que Balbina agira sob um feitiço feito pelo curandeiro não
convencera.
No processo, vemos uma busca pelo lugar do curandeiro; mas, por ele ser
“negro” e “curandeiro”, sua caracterização era ambivalente e incerta, porém, de
qualquer maneira, o “lugar”, onde parte dos personagens envolvidos achava que ele
estava, era o lugar da “imoralidade”.
Um ano depois do processo sobre o curandeiro Joaquim Bandeira, a
discussão sobre os lugares do negro aparece em outro processo de 1875, que
envolve a história de duas famílias afro-descendentes, a família de Antonio Latão e a
de Benedito Soares. Nesse processo há também uma grande discussão sobre
moral.
Antonio Latão, negro/mestiço, era casado com Umbelina, negra, ventre-livre,
com quem tinha ao menos uma filha, Maria. Já Benedito, negro, era casado com
Joana (sem identificação) e tinha como um dos filhos Gabriel. Todos eram
moradores do Arraial dos Poções, então pertencente à Imperial Vila da Vitória (atual
Vitória da Conquista) e eram de famílias negras inimigas havia muito tempo. Não
está claro no processo o início da contenda, mas ela ganhou proporções judiciais
quando foi lançado nas ruas de Poções um pequeno “pasquim” em forma de cordel,
onde Maria, viúva de Deolino, filha de Antonio Latão é acusada, por Gabriel, filho de
118
Idem
119
Analisando as religiões afro-brasileiras em Vitória da Conquista (1930 a 1999), Aguiar (1999) nos
diz que, nessa cidade, a entidade do caboclo aboiador foi sincretizada como Bom Jesus da Lapa.
Segundo Thornton (2004), dos elementos culturais de matriz africana, indubitavelmente as religiões
foram aquelas que alcançaram um grau maior de mutabilidade nas Américas
.
80
Benedito, de roubar juntamente com a escrava Sofia, a casa comercial de
Raymundo Pereira de Magalhães, onde trabalhavam.
O autor inicia a sua descrição de Maria com a “sugestão” de que, depois da
morte do marido, ela estava se comportando de maneira diferente:
Senhores eu estou pronto
Venham prestar atenção
Um causo que aconteceu
Com Maria de Latão
Senhores dão Licença
Que quero explicar
Depois que Deolino morreu
Olha Maria como está
120
Para quem não conhecia Maria, ou não se lembrava dela, ele faz questão de
lembrar quem era e onde morava:
Muito dos senhores
Não conhece Maria
Mora na rua de Baixo
Bem na beira do caminho
121
Maria morava na rua de “baixo”, enquanto ele, Gabriel, morava na rua de
“cima”. Mas quem definia o que era alto (“cima”) e baixo? Talvez houvesse, na
diferenciação das ruas, uma gradação social e de cor
122
. Depois de ter identificado
Maria e a forma como estava agindo, “diferente“ (“olha Maria como está”), o autor a
acusa de estar roubando um dos maiores comerciantes do Arraial dos Poções,
Raimundo Pereira Magalhães:
O pai na rua de cima
Olhando para o padrim
A filha na rua de baixo
120
AFJM, Diversos 1875 a 1879, Apelação crime – 1875.
121
Idem
122
Como aparentemente havia em Vitória da Conquista e também na cidade de Maracás, como
observamos em NASCIMENTO, Washington S. Padrões e Tendências das Enfermidades e Causas
Mortis entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-1887). In: IIII Encontro
Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade. Vitória da Conquista - Bahia: Eureka, 2006b. v.1.
.
81
Roubando o Raimundim
123
Depois de acusar Maria de ser ladra, Gabriel a compara com a mãe dela,
Umbelina (negra/mestiça) que, também, segundo Gabriel, era “torta”. Já Latão
(negro/mestiço), pai de Maria, era “cego”:
Torta como Umbelina
Nem tão cego como Latão
Nem tão Ladra como Maria
Que furta até no balcão
124
Enquanto Latão era tido como “cego”, a ex-escrava Umbelina como “torta”,
Maria era “falsa”, sorrateira, perspicaz. Por que Latão era cego? Por que não via a
filha roubar e/ou por ter se casado com a “torta” Umbelina?
A Maria de doze anáguas
Bastante serpentina
Latão tão bem pinta
Negocio bem a surdina
125
E principalmente “ladra”, que roubou Raimundo em trinta mil réis. O roubo é
descrito de maneira alongada, especialmente a tentativa de Raimundo e sua mulher
de descobrirem quem era o ladrão:
Maria de Doze Anaguas
Para Influencia do Mundo
Mais quem estava sofrendo
Era a casa de Raimundo
Logo naquele dia
Latão foi delegado
Raimundo tomou de Maria
Trinta mil reis furtado
Este é o que me consta
123
Idem
124
Idem
125
Idem
.
82
Quando foi o que ele tomou
Julgava ser gente da casa
E Maria foi quem furtou
Raimundo não sabia
Do roubo que ele sofria
[...]
Dele vender a negra sufia
A mulher se apegou
Com os santos de sua devoção
Que ele lhe mostrasse
Quem era este ladrão
Falou esta palavra
Com dor no coração
De mandar dizer uma missa
E o ver com os pés no chão
126
Depois da “intercessão” dos santos, eis então que a “ladra” é descoberta:
Logo no outro dia
Em cima do balcão
Raimundo chamou Maria
127
Venha ver o ladrão
Ficou ela muito contente
Em com bastante alegria
Perguntando quem era o ladrão
Ele disse que era Maria
128
Ela se desanimou
Não me diga isso não
A Maria que furtou
Foi Maria de Latão
129
126
Idem
127
A esposa de Raimundo Pereira Magalhães.
128
A filha de Latão.
129
AFJM, Diversos 1875 a 1879 , Apelação crime – 1875
.
83
Depois da descoberta de Maria como suposta ladra, Gabriel agora ataca o
pai dela, Latão, que, segundo ele, dizia que os outros eram “ladrões” e que ele,
Latão, também queria ser um cidadão. Posso supor, ao menos, que aí havia certa
ironia pelo fato de um negro, liberto, querer ser cidadão:
Latão disse que não vinha
Mais nesta rua de cima
Porque cá só tinha ladrão
E porção de assassinos.
Como ele agora está
Querendo ser cidadão
Falando da rua de cima
E lá mesmo é que tem ladrão
130
Nesse momento, mais uma vez entra em cena outro personagem que tinha
sido citada anteriormente. Trata-se de Sofia, escrava de Raimundo Pereira
Magalhães, “negra” e que trabalhava ao lado de Maria. No cordel, também o relato
dos maus-tratos que essa escrava sofrera para poder denunciar Maria:
Raimundo mais que depressa
Amarra a negra Sofia
Indo com ela na corda
Ela bateu na porta de Maria
Raimundo na ponta da corda
Vendo o que a negra dizia
Ela bateu na porta
Mim dá o dinheiro Maria
131
Vemos uma escrava amarrada, andando pelas ruas de Poções, puxada pelo
senhor pela ponta da corda e, também, a associação entre escravo e negro. Esta
cena nos revela que é preciso de certa forma relativizar a idéia de que, nos sertões
baianos, os escravos eram mais bem tratados
132
. Ao relatar o momento em que a
130
Idem
131
Idem
132
Ver sobre isso NEVES, Erivaldo Fagundes. Uma comunidade sertaneja: da sesmaria ao minifúndio
(um estudo de história regional e local). Feira de Santana, BA: UEFS, 1998.
.
84
escrava delata Maria, Gabriel diz: “Vendo o que a negra dizia”. Dessa forma, com a
ajuda da “negra” escrava, Maria é “descoberta” e entrega o dinheiro. O autor do
cordel manifesta então o seu contentamento com o fato de Maria ser chamada de
ladra.
Raimundo foi enxergando
Com muita alegria
Maria foi intregando
Todo o dinheiro que tinha
Ele foi arrecebendo
O dinheiro com as mão
Foi logo dizendo
Já sei quem é o ladrão
Alegre que ele ficou
Prejuízo que sofria
Disse ela em voz baixa
Você é uma ladra Maria
133
A escrava Sofia disse em “voz baixa” que Maria era a ladra. Duas
possibilidades podem conter essa situação: a primeira é o fato de que a escrava
estava sendo torturada; e a segunda é que ela era cúmplice de Maria. Segundo o
autor do cordel, tanto a escrava Sofia como Maria estavam roubando Raimundo
Pereira Magalhães
:
Ele chamou Latão
Assim que amanheceu o dia
Que estava roubado
Por Sofia e Maria
134
A partir daí, vemos que houve uma disputa com envolvimento de outros
personagens sobre o fato de Maria ter sido ou não ladra, tais como João Chaves,
Felisberto, Puluca e Juca, o que evidencia a amplitude que teve o fato na sociedade
do Arraial dos Poções. Na fala do autor do cordel, o caráter racializado da escrava,
“a negra”, contrapõe-se à mestiça, Maria, chamada apenas pelo nome. A questão
133
AFJM, Diversos 1875 a 1879 , Apelação crime – 1875.
134
Idem
.
85
talvez não seja apenas de “cor”, mas, de ser escrava: Sofia era escrava, e Maria,
não o era.
Raimundo estava falando
João Chaves disse que não
A negra tinha ido ver
Era um par de butão
A negra bateu na porta
Isto é muito certo
Maria de quem é os butão
São de Felisberto.
Raimundo disse mesmo
Que ainda tinha redevu
Que tem uma nopretissa (?)
E lá tem uns baús
O Latão com estas fala
Foi ficando cheio de angustia
Raimundo falou com Puluca
[...] mandado de busca
[...]
Por influência do mundo
Arretirou os baús
Franqeou a casa Raimundo
Raimundo requer busca
Pois falou com Puluca
Diga a Latão e a Maria
Que o ladrão e a mulher de Juca
Foi logo naqueles dias
Que veio [...] João
Quando faltava qualquer coisa
Raimundo chamava Latão
135
135
Idem
.
86
Após a participação desses diferentes personagens no debate sobre o
envolvimento de Maria no roubo, inclusive da autoridade policial local, “Puluca”,
Latão é chamado à cena, e Raimundo lhe revela que Maria teria sido a responsável
pelo roubo:
Venha cá Latão
Venha ver o que me faltou
Olha que tudo isto
E Maria que furtou
136
Ao saber disso, Latão ficou estupefato, o que fez com que Gabriel o tratasse
de maneira jocosa, pois ficara com “a cara no chão”, o que revela certo prazer de
Gabriel em descrever a cena:
Latão baixava a cabeça
Com a cara no chão
É bem feito para o torto
Chame agora os outros ladrão
137
.
Mas as impressões dele não são somente sobre Latão, mas também sobre
João Chaves, que anteriormente tinha protegido Maria. Isso se dera, segundo o
“cordelista”, porque suas filhas teriam recebido presentes de Maria, mais
especificamente vinte mil réis.
No dia que João Chaves
Casou as duas filhas
Maria deu vinte mil reis
Para comprar duas novilhas
138
.
Novamente a fala se volta contra Latão, que “gostava de falar dos outros”,
mas que, agora, se via numa situação em que sua filha era acusada de ser uma
ladra:
Latão para falar dos outros
Juro que infara
136
Idem
137
Idem
138
Idem
.
87
Mais ninguém cuspa para cima
Que não lhe caia na cara
139
.
Agora se volta contra Maria e sua “desfaçatez” e destaca o fato de que não
se pode confiar em todo mundo:
Amancio bate sentido
Não se fie em todo mundo
Olha Maria que não te faça
O que ela fez a Raimundo
140
.
No final, ele deixa a entender que estava prevendo que Maria se
incomodaria com o conteúdo e impressões contidas em seu cordel,
Já me despeço
A Deus que me arrretiro
Até quando cá tornar
Será breve a minha vinda
Se Maria não se incomodar
141
.
Gabriel termina, a meu ver, fazendo uma nova alusão a Latão, que vivia
acusando os outros, mas que não se dava conta de que as coisas estavam
acontecendo debaixo de seus olhos:
Voz do povo
Quem não quer ser pele
Não vista o lobo
142
.
Outro fato interessante é que, apesar de ter sido escrito para relatar o roubo
que, supostamente, Maria teria cometido no estabelecimento comercial de
Raimundo Pereira Magalhães, grande parte das representações construídas no
cordel são de Antonio Latão. Um “negro”, que se casara com a ex-escrava
Umbelina, e que, segundo Gabriel, “queria ser cidadão”, dizendo que “os outros
eram ladrões”, mas sua filha era quem estava roubando.
139
Idem
140
Idem
141
Idem
142
Idem
.
88
Outros traços da presença negra também são relatados, como os maus-
tratos contra a escrava Sofia, que fora amarrada com uma corda e assim andou por
todo o Arraial dos Poções até a casa de Maria, com o “senhor” na ponta da corda.
Torturada, Sofia revelara que era uma das ladras ao lado de Maria.
Nesse caso, não posso também deixar de destacar o fato de que uma
escrava e uma livre, ambas negras/mestiças, trabalhavam lado a lado no balcão de
um estabelecimento comercial e, segundo o autor do cordel, também estavam juntas
no roubo a Raimundo Pereira Magalhães.
Quando esse cordel começou a circular em Poções, Maria, enquanto tomava
banho na lagoa com Ana de Jesus, fala mal de Gabriel, filho de Benedito, que
escrevera o cordel. Outro filho de Benedito, Joaquim, ouve a notícia e conta ao pai,
que vai à lagoa com um chicote na mão e xinga Maria de “puta, besta, vaca e ladra”
e, segundo umas das testemunhas, “ameaçava na face do rosto com uma taca
(chicote)”. Diante da tentativa de agressão, Maria recua e diz que não estava contra
ele, o que não o impede de continuar seus xingamentos. Todos eles são
comportamentais, senão vejamos: “puta”, o seu comportamento de mulher; “besta”,
“vaca” a sua animalidade ou falta de educação/inteligência; e “ladra”, o seu
comportamento moral.
Vendo a alteração, a mãe de Maria, Umbelina, intervém em defesa da filha e
diz que Benedito deveria provar que sua filha era ladra. Benedito então lhe responde
que, havia poucos dias, Raimundo Pereira de Magalhães e seus escravos lhe tinham
dito isso
143
. Umbelina então contesta e diz que ladrões eram Benedito e os escravos
de Raimundo. Diante da ofensa, Benedito responde: “[...] cala a boca negra se não
te meto o chicote” e xinga-a de “negra, cativa, besta e puta”.
No xingamento, o uso dos adjetivos “negra, cativa” juntos evidencia que nem
todos os negros vieram do cativeiro; o termo “besta” sugere animalidade, aquele que
não enxerga nada, que usa viseira, e “puta”, tal qual no caso de Maria, constitui uma
difamação à condição de mulher.
Mesmo sendo “negro”, como atestam as testemunhas e o próprio processo,
Benedito demarca uma clara fronteira entre ele e Umbelina: ela era negra, e ele,
não. E que para provar isso, se preciso fosse, “daria de chicote” em Umbelina, como
assim também faziam os antigos senhores de escravos.
143
Interessante destacar que Benedito coloca em condição de igualdade, no que se refere a
autenticidade da informação Raimundo Magalhães e seus escravos.
.
89
A construção de uma fronteira está clara quando ele diz que “[...]
encontrando-se com a mulher do autor na beira do rio, muito distante da casa, e
recebendo da mesma mulher alguns insultos, apenas respondia lhe com estas
palavras: não quero alterações com negra”
144
.
Em um contexto marcado por intensos preconceitos, ao proferir: “não quero
alterações com negra”, ele procura dizer de que lado ele queria estar. Em sua
defesa, a cisão racial presente naquela sociedade aflora, e ele tenta construir uma
auto-imagem pautada na negação do mundo negro.
Embora afirme que “[...] a palavra negra não tem acepção injuriosa, ainda
mesmo falando-se de pessoa que nasceu de ventre livre” e tentando mostrar que
havia uma separação entre ser negro e ser cativo, Benedito acaba por afirmar que
Umbelina era filha de escravos, informação que, até o momento, não tinha aparecido
em nenhum momento do processo. As testemunhas são unânimes em dizer que
Umbelina foi “xingada” de negra, cativa e que, tal qual escravo, se não se calasse,
ela entraria no chicote.
Ao que parece, a imagem que Benedito tenta passar é que, mesmo
biologicamente “negro”, socialmente não o era, ou melhor, não queria ser, mesmo
que fosse preciso recorrer aos hábitos dos senhores de escravos ao ameaçar “dar
de chicote” em uma mulher “negra”.
A defesa de Umbelina vem em sentido oposto à de Benedito, quando, em
tom provocativo, ela diz: “[...] sim, ela era negra, mas Benedito também era, [...] se
sou puta é de meu marido e não dele e nem de outro dos Poções e que se ela era
negra que não era dele”. A primeira “denúncia” de Maria é de que todos estariam no
mesmo “barco”, isto é, todos são negros. Umbelina se assume como negra e como
uma mulher que vive em felicidade com seu marido. A defesa feita por Umbelina
pode ser entendida à luz do que diz Bourdieu:
O estigma produz a revolta contra o estigma, que começa pela reivindicação
pública do estigma, constituído assim em emblema – segundo o paradigma
black is beatiful – e que termina na institucionalização do grupo produzido
(mais ou menos totalmente) pelos efeitos econômicos e sociais da
estigmatização. (BOURDIEU, 2004, p.125)
No processo, diferentes dimensões da questão étnico-racial no Brasil se
entrelaçam: mestiçagem, racismo e identidade étnica. Tudo isso aparece em meio
144
AFJM, Diversos 1875 a 1879 , Apelação crime – 1875.
.
90
às diferentes representações sobre o que era ser negro naquela região e aponta
para a complexidade do debate das relações étnico-raciais, que envolve racismo por
um lado e por que não dizer? identidade étnica por outro lado e ajuda a entender
as representações construídas na região sobre o ser negro e o “ser do negro”.
No cordel há uma questão de moral e de furto. Um “negro” que acusa outro
de ter roubado. Talvez o que Benedito implicitamente quisesse demonstrar é que
nem todos os “negros” fazem isso, isto é, existia a necessidade de dizer que nem
todos eram iguais.
E se nem todos são iguais, há um lugar que começa a se construir como
uma fronteira. Essa fronteira é de comportamento, mas se delimita também pelo
saber escrever, ou seja, pela possibilidade de dialogar por meio de um “instrumento”
do branco. As divisões, as tensões já vêm de muito tempo, por isso o “cordelista”
escreve, pois está atento a toda a dinâmica social que o circunda. Ele está
escrevendo e marcando aqui começa o “novo” não em 1888, mas em nossa
pesquisa, já em 1875.
Outro processo que revela as tensões sociais e a demarcação de fronteiras
negro / não-negro, em que tais representações se manifestam, é de 1876 e envolve
Elias Aneceto de Santana, tido por testemunhas como um homem valente, “[...] que
o réu, em um só dia espancara três”, “que prometeu não sair desta vila enquanto
não tirar a vida de um”.
Segundo essas mesmas testemunhas, Elias se definia como “negro velho da
Bahia” e fazia questão de propalar isto pelas ruas de Vitória da Conquista. Tomando
como verdadeira essa informação, em sua auto-imagem transparece a cor de sua
pele e sua origem, no caso específico, a cidade de Salvador. Elias lida com dois
temores existentes na cidade: o de ser negro e de ser forasteiro. Entretanto ele não
é um forasteiro qualquer, quem sabe ele é até mesmo um negro “feiticeiro de
Salvador”.
Em outros processos, essa suposta “identidade negra” é abafada pelo
racismo, como no caso que envolveu Tadeu no ano de 1896. Segundo uma das
testemunhas:
[...] que estando ele (filho da testemunha) no rio mais Tadeu, jogando
tarrafa quando chegou Ireno Dias de Cerqueira, pedindo peixe a Tadeu
este respondeu que não tinha pegado e Ireno, vendo um saco com umas
piabas e foi logo apanhando, Tadeu, disse a ele que deixasse minhas
piabas, respondeu Ireno, não sei aonde estou que te dou um tiro, negro,
.
91
respondeu Tadeu, pois atira, e logo imediatamente Ireno, atirou em
Tadeu
145
.
Apesar de não estar claro no processo, parece que já havia uma disputa
anterior entre Ireno e Tadeu e, no aumento das tensões, a questão racial emerge:
“[...] não sei aonde estou que não te dou um tiro, negro”. Tadeu não deixa a
provocação sem resposta e diz: “então atira”, o que resultou no seu ferimento.
Outra testemunha, José Marques dos Santos, de 37 anos de idade, lavrador
e casado, ao descrever a mesma situação, não conta que foi usada a palavra
“negro”; ele diz que foram pronunciadas “palavras injuriosas”:
[...] um filho dele testemunha, de idade de dez anos que estando o menino
no rio mais Tadeu pescando no poço denominado da Pedra, Tadeu jogando
tarrafa e quando chegou Ireno, pedindo pelos peixe que tinha pegado
respondeu Tadeu, que não dava e ai Ireno, dirigiu-se a panhar os peixes, e
Tadeu, requereu a ele que não apanhase e ai Ireno pos a chingar lhe
nomes injuriosos os mesmos nomes Tadeu, respondera e no mesmo
momento Ireno, deu-lhe um tiro em Tadeu.
Anos depois, em 1897, uma história parecida com a de Tadeu se dá com
Juviniano, que foi morto por Vicente com um tiro de garrucha na barriga. Segundo
uma testemunha, depois de ter feito o disparo, “[...] o Vicente Pintado, provocando
em cima do cadáver do infeliz Juviniano de Tal, dizendo não te disse nego que eu te
matava
146
?”.
Da mesma forma do caso anteriormente relatado, o crime decorreu do
aumento das tensões entre os dois por motivos que não ficaram claros para nós,
mas, depois de praticado, eis que emerge, da voz de Vicente (por meio da fala das
testemunhas), o racismo “Não te disse negro que te matava?”. Há todo um
entrelaçamento entre a violência cotidiana e o racismo existente.
Essa situação parece se repetir em 1915, em um fato que envolveu João
Urbano de Magalhães, o “José Pretinho”. Participante de um Terno de Reis (festejo
popular que analisaremos mais à frente) e morador de José Gonçalves, atual distrito
de Vitória da Conquista, descreve assim Bernardo Ribeiro de Menezes, 29 anos,
solteiro e lavrador o que acontecera com José Pretinho, “[...] eu respondente fechei a
porta e fui para o interior da casa, pouco depois ouvi um tiro e em seguida muitos e
145
AFJM, Auto de Corpo de delito procedido contra Ireno Dias de Cerqueira, 1986.
146
Idem.
.
92
ao terminar o tiroteio ouvi as vozes de Serafim, dizendo: conheceu negro como se
atira em homem
147
?”
O crime, aparentemente, foi em decorrência de uma disputa por questões de
honra: um homem mais velho desafiou um mais novo e, levado pela euforia da
bebida, o conflito se estabeleceu na manifestação da violência física. Entretanto,
como a dimensão racial se fazia presente, com força explode, quando Serafim grita:
“[...] conheceu negro como se atira em homem?”. O “preto” é esquecido; o que está
em questão é o “negro”, não como cor, mas, sobretudo como um lugar social, que
entra na correlação de forças “homem mais novo” versus “homem mais velho”, como
uma variável que dava a esse homem “novo” e “branco” uma suposta superioridade
frente ao homem “velho” e “negro”. Isso pode ser também percebido na fala dessa
mesma testemunha que continua em outro depoimento dado um ano depois, em
agosto de 1916:
[...] ouviu o estampido de diversos tiros e palavras que ele testemunha
conhecia visivelmente serem do denunciado que diziam, “conheceu negro,
como é que moleque mata homem?”.
A questão da honra é associada à dimensão racial, como deixa claro outra
testemunha, Francisco Graia, 27 anos, solteiro, lavrador:
Disse mais que ele testemunha sendo chamado por uma mulher, cujo nome
não precisou, amazia de João Pretinho, para socorrer este, ancedeu (?) e ai
chegado ainda encontrou João Pretinho em ancia da morte e antes do lugar
do crime o denunciado Serafim que lhe disse haver atirado no negro
148
.
O escrivão absorve a linguagem da testemunha, pois não fica claro no
depoimento se teria sido a testemunha ou o escrivão que qualificara José Pretinho
como negro, ou seja, quem de fato disse “haver atirado no negro”, a testemunha, ou
Serafim?
149
.
Em 1922, encontramos a descrição de Vicente Antonio da Silva, também
Tocador de reis, que fora ferido com uma facada no peito direito. Ele tinha 34 anos,
era natural de Caculé e vivia na região de Vitória da Conquista no lugar denominado
Olho d’Água de Vital. A primeira descrição de Vicente é feita pelos peritos, os
“senhores doutores” Nicanor José Ferreira e Aparício Couto Moreira, e de natureza
147
Autuação 1916. Caixa Diversos 1890-1890.
148
AFJM, Caixa diversos 1911 a 1917, Autuação 1916.
149
O processo termina quando em 1917 Serafim é morto no distrito de São João do Alípio, distrito da
região de Condeúba.
.
93
técnica: “Vicente Antonio da Silva, com trinta e quatro anos de idade, de cor preta”.
Na descrição “técnica”, a racialização de Vicente.
As testemunhas tentam construir uma imagem de Vicente como alguém
“metido a valente”. Diz Eusébio Gonçalves Costa (34),
[...] tendo o mesmo chegado de Itabuna [...] chegando teve que trazer um
facão marca jacaré e uma pistola fogo central e dizendo que ele respondente
que trouxe aquele facão para batizar no costado do pessoal do Pouso da
Vaca”
150
.
Essa imagem é reforçada por diferentes testemunhas, mas a dimensão racial
do conflito também estava presente no depoimento de outra testemunha, Serapião
Rodrigues dos Santos (66):
[...] teve que saber por Geraldo Ribeiro de Queiroz acusado que Vicente
achava-se ferido com uma facada no peito e tendo Geraldo dito para ele
respondente que ‘nós matamos o negro
151
.
Dessa vez, o racismo não é evidenciado na hora da tensão, mas, depois,
quando os acusados relatam o que haviam feito. Isso também se dá com João Felix,
em 1927. No exame cadavérico realizado por Jovelino Rodrigues da Silva e João
Queiroz de Brito, encontramos a primeira descrição, em que a cor é logo ressaltada:
“[...] que examinando a pessoa de João Felix da Rocha, de cor preta, com vinte e
oito anos de idade natural e residente deste distrito veste brim branco, camisa
branca”.
Na fala de uma testemunha, damos atenção a naturalidade com que encara a
violência e a definição dada pelo autor do tiro (Theodorico) sobre João Felix:
[...] viajando em caminho ele Theodovico me disse que tinha atirado no João
Felix, para que você fez isso! Ele não me respondeu mais nada viajemos a
noite toda para a casa e não subemos da morte então no outro dia é que nós
subemos que João Felix tinha morrido, mais Theodovico não falou que tinha
atirado no negro João Felix com uma laproxe.
Assim como no caso anteriormente analisado que envolveu José Pretinho, o
escrivão “absorve” a linguagem da testemunha, pois não fica claro quem dissera que
João Felix era negro a testemunha ou o acusado. Talvez isso aconteça por ser o
150
AFJM, Caixa: Diversos 1924, Processo a requerimento do Sr Vicente Antonio da Silva contra os
indivíduos Geraldo Ribeito de Quiroz e Ponciano de Tal, 1922.
151
O processo não é concluído e é prescrito.
.
94
qualificativo “negro” para pessoas como João Felix um dado “natural” naquela
realidade.
A briga se dera por uma questão material, uma dívida de seiscentos réis, mas
a questão da cor estava ali, para os peritos e, indiretamente, para o próprio
Theodovico. Nesse caso, podemos perceber certa diferença entre “preto” e “negro”:
para os peritos, João Felix era preto (cor), traço fenótipico, racializado; para as
testemunhas (e Theodovico?), João Felix era negro (condição). Assim, o “preto” e o
“negro” se misturam; preto como cor, e negro como condição.
De forma mais visível do que nos casos de Umbelina e Elias, em um
processo de 1929, que envolve pessoas de Belo Campo, então distrito do município
de Vitória da Conquista, é possível perceber, na fala de um advogado, que era viável
mostrar a positividade desse “lugar”, o “ser negro”, e, nesse caso, o “ser africano”. O
processo é uma reivindicação de posse.
Um senhor de escravos (Antonio Ferraz de Araújo Catão) deixara, em
testamento, uma fazenda para seus escravos com a prerrogativa de que eles
devessem acompanhar a sua esposa até a morte. Quando essa senhora se desloca
para Caetité, as terras dos libertos (fazenda Preguiça, depois denominada “São
Domingos dos Negros” - é interessante indagar se houve apenas uma coincidência
de nomes, ou se era uma referência à revolução haitiana
152
) foram alugadas por 24
anos. Ao morrer, o locatário colocou a fazenda como um bem para ser inventariado.
Para resolver a questão, os ex-escravos entraram com uma ação ordinária de
reivindicação de posse.
Diferentemente de outros processos, em que é possível perceber a fala da
população afro-descendente, nesse, a fala que mais se destaca é a do advogado
Mário Monteiro de Almeida, brasileiro, casado, residente em Vitória da Conquista. Na
primeira argumentação, ele ressalta a importância dos ex-escravos para Catão: “[...]
o Sr Antonio Ferraz de Araujo Catão era homem de muitos e largos haveres,
possuidor de abastados cabedais, ganho mercê de trabalho produtivo colaborado
por inúmeros escravos
153
”.
152
Em um outro trabalho desdobrei a discussão sobre as influencias da revolução haitiana no Brasil,
para mais informações ver NASCIMENTO, Washington Santos. Alem do medo: A construção de
Imagens sobre a Revolução Haitiana no Brasil Escravista (1791 – 1840). Revista Especiaria-
Cadernos de Ciências Humanas. Ilhéus: Universidade Estadual de Santa Cruz, Editus, n.18, vol.10,
jul/dez. 2007.
153
AFJM, Caixa diversos 1929, Ação ordinária de reinvidicação da fazenda “São Domingos” deste
município e termo – 1929.
.
95
Segundo o testamento de Catão, os ex-escravos deveriam servir a sua
mulher até a sua morte e não poderiam vender a propriedade. Segundo o advogado
isso foi cumprido:
Com uma dedicação irrepreensível e uma fidelidade só vulgar, no Brasil, na
abundância de afetuosidade dos descendentes do generoso negro africano
para aqui transplantado pela cobiça exagerada do europeu então mais que
hoje incapaz da colonização pessoal das ricas terras sul-americanas, os
legatários continuaram a servir a viúva do testador, seguindo a
resolutamente na sua peregrinação pela vida, rodeando-a sempre, sempre
acompanhando-a, até os derradeiros momentos
154
. (grifo nosso)
Nas representações do advogado sobre o “generoso negro africano”, é
ressaltada a “afetuosidade” e feita a denúncia de que, para aqui, só viera por conta
da “Cobiça exagerada do europeu”. A retórica utilizada pelo advogado mostra certa
“positividade” do “ser negro” e do “ser africano”.
O advogado de defesa é Themistocles Álvares Lima, que sempre apareceu
em processos analisados por mim em Ituaçu
155
. Nele há outra visão sobre os
“negros” que estavam fazendo a reivindicação de posse, eles habitavam “[...] uns
terrenos que se transformaram em verdadeiras capoeiras conhecidas geralmente
pela denominação capoeiras dos negros”.
O processo termina fora da justiça, quando o advogado dos ex-escravos
pede que o processo seja suspenso, pois iriam fazer uma composição amigável. Se,
de fato, houve essa composição, ela não passou pelas esferas judiciais, pois não
localizei nenhum processo que fizesse referência a esse fato.
Nas diferentes representações, percebo a racialização da sociedade na
associação ao primeiro nome do indivíduo de um “apelido” que denota sua cor e
origem. Vimos isso nos seguintes casos: Inocêncio Crioulo (1889); Antonio Preto
(1904); José Pretinho (1916); Manoel Preto (1917); Vicente Preto (1922); Antonio
Mulato (1924), entre outros
156
. Ao discutir a “luta de classificações”, Bourdieu
(2007a) diz que “[...] a imposição de um nome reconhecido opera uma verdadeira
transmutação da coisa nomeada que [...] torna-se uma função social, isto é, um
mandato, uma missão, um encargo, um papel” (BOURDIEU, 2007a, p.444). Nesse
154
AFJM, Caixa diversos 1929, Ação ordinária de reivindicação da fazenda “São Domingos” deste
município e termo – 1929.
155
NASCIMENTO, Washington Santos. Famílias escravas, libertos e a dinâmica da escravidão no
sertão baiano (1876–1888). Afro-Asia (UFBA). , v.35, p.220 - 240, 2007.
156
Não encontrei no período estudado, mas levando em consideração alguns apelidos ainda
existentes na cidade de Vitória da Conquista, talvez houvesse também apelidos como “branco”,
“claro” etc.
.
96
sentido, o “apelido” representa um papel social a ser desempenhado, ligado quase
sempre à submissão.
Mais do que a simples questão da cor, o que persistiu, mesmo depois da
abolição, foi o racismo articulado com um cotidiano “naturalmente” violento. À luz
dos processos que analisamos, ao que parece, o racismo era mais explícito para
com a população identificada como “preta”. O racismo com a população mestiça era
mais sutil, mas não menos perverso. Mesmo percebendo que havia uma diferença
na representação entre “mestiços” e “negros”, é preciso dizer tal qual fez Consorte
(1992) que:
[...] a situação social dos mestiços, no entanto, mesmo que melhorada em
relação à dos negros, estava longe, de alcançar os níveis atingidos pelos
brancos, em seu conjunto, encontrando-se muito mais próxima daqueles.
(CONSORTE, 1992, p. 110/111).
Dessa maneira, é possível perceber uma diferenciação entre brancos e não
brancos. Para esses últimos, havia uma clara associação entre cor e comportamento
e, conseqüentemente, divisões provocadas também pelo racismo, no que vale a
pena lembrar Hall (2005), para quem:
As grandes divisões do racismo como estrutura de conhecimento e
representação são também, a meu ver, um sistema profundo de defesa. São
as fortificações externas, as trincheiras, as posições defensivas em torno de
algo que se nega a ser domado e contido por esse sistema de
representação. Toda essa energia e trabalho simbólico e narrativo destinam-
se a nos segurar ‘aqui’ e a eles ‘lá’, a fixar cada um no lugar que lhe é
designado enquanto espécie. (HALL, 2005, pp. 21-22).
Outro aspecto importante para refletirmos é que, nas representações sobre
o que é ser negro, existe a idéia de negro ligada à “condição”, “lugar social”; não é
uma cor, é um lugar móvel, sempre em construção. Voltando para as categorias
criadas por Bourdieu (2004), ele diz que o efeito maior dessas representações
coletivas é a “usurpação da identidade nominal”, em favor da “identidade real”,
coletiva e determinada socialmente
157
. Assim, pode-se perceber a criação de uma
“identidade” para esse negro, condicionada pela cor.
Ao longo desses processos, percebemos que grande parte das
representações desse “lugar social” é o da subalternidade, da sujeição e é pautado
pela discriminação racial. Mas, como já dissemos, não é um lugar estático, imóvel, é
157
Ver BOURDIEU, Pierre. A distinção. Crítica social do julgamento. São Paulo: Ed. Zouk e Edusp,
2007.
.
97
um lugar sempre em construção com fronteiras móveis e fluidas como nos casos
que envolveram Umbelina e Elias. É possível estar nesse “lugar social” e dele
construir certa identidade de resistência
158
e, a partir daí, enfrentar esse racismo.
Houve também os “entre-lugares”, como no caso do “negro-curandeiro”, “parda de
cabelos bons” ou do “mulato claro olho de gato”.
Nos processos relacionados à construção dos lugares do e para o negro,
houve uma grande discussão sobre a civilidade esperada e sobre a suposta
imoralidade contida nesse lugar social “negro”. É o que vimos nos casos que
envolveram Maria Crioula, o curandeiro Joaquim Bandeira, Umbelina etc.
Desdobraremos mais essa questão no próximo capítulo, enfocando a participação
desse “negro” nas festas populares de Vitória da Conquista.
158
Sobre as Identidades de Resistência ver CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Tradução
Klauss Brandini Gerhardt. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.
.
98
CAPITULO IV – NEGROS, CIVILIDADES E FESTAS EM VITÓRIA DA
CONQUISTA/BA
Como vimos até aqui, os lugares sociais construídos para os negros estão
submetidos ao crivo das noções de civilidade, educação e linguagem. Acredito que a
civilidade, pensada principalmente pelos “brancos”, faz parte de um “discurso
competente
159
”, ligado à lógica do branqueamento, ainda difuso, não totalmente
perceptível, mas presente.
A discussão de civilidade envolve aquilo que é ou não aceitável e
verdadeiro, mas, “[...] o ‘verdadeiro’ é sempre marcado e embasado pela
ambivalência do próprio processo de emergência, pela produtividade de sentidos
que constrói contra-saberes” (BHABHA, 1998, p. 48), ou seja, esse “verdadeiro” é
sempre marcado pelo que é considerado “falso”.
Essa “civilidade” era normatizada por uma série de códigos escritos pelos
poderes locais, dos quais o mais importante era o código de posturas, que
estabelecia multas e, em alguns casos, prisão para aqueles que transgredissem as
normas, quase sempre destinadas ao “bom” convívio social. Nele, o que estava em
jogo era uma questão comportamental muito forte. Assim como os termos do bom
viver
160
, são códigos de civilidade, com normas sobre o comportamento na vida
social principalmente para as pessoas mais pobres (negros e mestiços).
Um dos primeiros códigos de posturas de Vitória da Conquista localizados
161
data de 1842. Nesse código, além da “normatização” do comportamento social, há
uma clara proibição contra as manifestações culturais da população negra. Outro
código referente a Vitória da Conquista data de 1908
162
. Os códigos eram debatidos
no Conselho Municipal, onde também se discutia o comportamento da população
conquistense, particularmente de seus estratos inferiores (composto por negros e
mestiços).
159
De acordo com Marilena Chauí (2007) em suas análises sobre a formação das ideologias, esse
“discurso competente” seria “[...] aquele que pode ser proferido, ouvido e aceito como verdadeiro ou
autorizado [...] porque perdeu os laços com o lugar e o tempo de origem” (CHAUÍ, 2007, 19); ele seria
um discurso instituído com uma linguagem restrita. Esse “discurso competente” exige a interiorização
de suas regras, “[...] pois aquele que não as interioriza corre o risco de ver-se a si mesmo como
incompetente, anormal, a-social, como detrito e lixo”. (CHAUÍ, 2007, 31).
160
Vide referencia a esses termos de Bem-Viver no capitulo anterior.
161
Levantado e utilizado nas suas pesquisas por Itamar Aguiar (1999).
162
Itamar pereira de Aguiar (1999) também faz referencia a esse código.
.
99
Em uma cidade em que a presença de descendentes de africanos no topo da
pirâmide econômica e social, não seria diferente no campo político. Em 1915 era um
dos conselheiros o Capitão Clemente José da Silva, segundo Viana (1982) ele era
um rico comerciante, fazendeiro e “homem de cor”. Três anos depois, em 1918,
houve uma discussão sobre a fonte pública que, segundo um dos conselheiros, era
“ponto de imoralidade crescente, de escândalos sem limites, é necessário ser
reformada
163
”.
As ditos “imoralidades” e “escândalos” funcionavam como instrumento de
retórica para mostrar às autoridades municipais a necessidade de reformar a fonte.
Penso que havia também um sentimento real de moral, “bons costumes”, afinal ele
procurava sensibilizar o poder executivo municipal para a “necessidade” premente
de construir uma cidade “civilizada”. É o que vemos na análise desse mesmo
conselheiro acerca dos carregadores de água, que, segundo ele, eram os principais
responsáveis pela “vagabundagem” local:
Considerando que o primordial motivo da conservação da grande quantidade
de vagabundos desta cidade é o inominável emprego de carregadores
d’agua que nesta profissão encontram margem para os deboches e, envoltos
na preguiça ‘mãe de todos os vícios’ se esquecem de escolas, da lavoura, da
ordem. Da moral, dos lares e do futuro de Conquista, porque são estes,
justamente estes vandalozinhos os futuros cidadãos do nosso município
164
.
E quem eram esses carregadores de água? A população pobre local composta
por negros e mestiços. Eram esses que se esqueciam da escola, da lavoura, da
moral e da ordem. Enfim não eram e não se tornariam cidadãos em seu sentido
pleno, o que comprometeria, segundo o conselheiro, o futuro de Vitória da
Conquista.
Também as lavadeiras eram tidas como pessoas que precisavam ter sua
profissão “moralizada”:
[...] as lavadeiras da Rua da Vargem, que ficam seminuas, sujeitas ao sol, as
chuvas, aos ataques de animais bravios que por ali passam (boiadas), aos
olhos dos impudentes, atentos aos roubos que fazem de roupas e aos danos
causados por animais e querendo dar-lhes abrigo, moralisando-lhes a
profissão
165
.
163
Ata da Câmara Municipal de 19 de setembro de 1918
164
Idem
165
Idem
.
100
Nos jornais, a questão da civilidade atinge um público maior e neles se vê a
tentativa de construir um ideal generalizante para o social, ou seja, padrões/modelos
coletivos. O ideal presente neles era de uma Conquista que, a cada dia, se tornava
mais “civilizada”
166
. Na discussão sobre a construção da nova igreja, isso já estava
posto, como vemos no jornal “A Palavra” de 1919 que, implicitamente, constrói esse
modelo de civilidade para o povo de Conquista:
O Povo de Conquista não é retrogado; modesto e generoso, nunca fecharia
os cordões de sua bolsa negando um auxilio á construção da nova igreja ou
remodelação da atual das tradições heróicas dos seus antepassados e ali
revive toda a sua belíssima história legendária
167
.
Mas é na discussão que envolve as celebrações coletivas, principalmente as
festas, que ganha força o discurso de civilidade esperada do “negro”: “[...] as festas
revelam muito mais do que entretenimento e divertimento contidos nelas, pode-se
então [...] espiar uma rica miríade de práticas, linguagens e costumes, e sentir as
tensões latentes de forma lúdica” (CUNHA, 2002, p.12).
Assim é objetivo deste capítulo continuar a discussão sobre a construção de
lugares sociais para o negro com o aprofundamento do debate acerca da civilidade.
As manifestações sociais de civilidade eram vistas/analisadas e discutidas nas
festividades coletivas, momento máximo de interação social daquela sociedade, daí
o enfoque nas festas, que, para fins analíticos, foram divididas em três gêneros:
festas cívicas, festas religiosas e festas “negras”, apesar de todas elas assumirem
nitidamente um cunho popular.
166
No Jornal O Combate 1º. de julho de 1926, se percebe uma “divergência” entre tradição e
civilidade. Diz ele, “Balões cortando os ares, busca-pés estourando nas ruas , pistolões e toda a serie
de fogos apropriados, deram-lhe o cunho excepcional que a civilização vai procurando banir mas que
a tradição teima em conservar”. È o que se vê também no Jornal A Palavra que diz, “Que diferença,
entretanto dos tempos que forma. Que a tradição, entre nós, vai em franca decadência. Tudo passa”.
Essa noção de civilização é ligada a noção de progresso, civilidade, é o que deixa claro esse mesma
matéria. “Que diferença enorme há , entre a noite de São João nestes tempos em que Conquista já
se julga civilizada e a daqueles tempos m que ela não se corava do seu atraso”. Mais resistências nas
próprias tradições culturais, diz o mesmo a mesma matéria, “O progresso que mata a tradição, trouxe-
lhe as danças modernas, e variações, mas tirou-lhe a ruidosa alegria de suas festas encantadoras,
roubou-lhe o esplendor”.
167
Jornal a Palavra, 13 de Junho de 1918
.
101
4.1- Festas Cívicas: O 13 de maio
A construção da tão propalada civilidade naquela sociedade negro-mestiça
passava pela comemoração de determinadas datas “cívicas” consideradas seminais
para o avanço do “progresso” do Brasil e, conseqüentemente, de Vitória da
Conquista. É o que evidencia o Jornal “A Palavra” de 1915: “’Felizmente vamos
compreendendo a necessidade de soerguimento do país, com as festas cívicas,
levadas a efeito como um fator poderoso da coragem e do devotamento outrora tão
descurados entre nós
168
”.
As três datas mais importantes eram: 7 de setembro (Independência do
Brasil), 15 de novembro (Proclamação da Republica) e 13 de maio (Abolição da
escravidão). Outras eram também lembradas, como 2 de julho. A não-comemoração
dessa data foi motivo de queixa do Jornal “O Conquistense” de 1918:
Conquista, não obstante as suas grandes riquezas, fontes reaes e
verdadeiros mananciais para o seu progresso e o seu alevantamento moral e
social; não obstante o seu meio já composto de elementos civilizados, passa
de quando em quando por falta dignas, digníssimas de reparação pelos seus
próprios filhos [...] não houve uma reunião cívica, uma manifestação patriótica
promovida pelo povo; um festejo qualquer que relembrasse os rasgos
daquela jornada gloriosa e bendita que foi o despontar majestoso da aurora
que deu fim a nossa escravidão, quebrada nas campinas verdejantes da
nossa heróica Bahia, nos campos ainda fumegantes pela metralha nos
combates de Pirajá, Funil, Itaparica e Cabrito
169
.
Se a festa de 2 de julho não era comemorada, o mesmo não acontecia com a
de 13 de maio graças aos esforços de uma ex-escrava, Maria Rogaciana. Ela
organizava bailes comemorativos no clube 13 de maio, como podemos perceber na
matéria do jornal “A Semana” de 22 de junho de 1922:
Felizmente não passou despercebida em nosso meio a data comemorativa
da extinção da escravatura no Brasil. A gratidão e o entusiasmo de Maria
Rogaciana fizeram com que não obstante o indiferentismo das nossas
associações e escolas locais, o 13 de maio tivesse uma comemoração feliz,
como abaixo passamos a relatar: comemorações começaram com uma
alvorada de fogos, e continuaram durante todo o dia com discursos, sons de
orquestra, desfiles e culminando no esperado baile, ocorrido no Paço
Municipal que terminou as 04 horas da manha. Não podemos deixar, e não
cansamos de bater palmas, palmas de entusiasmo, palmas de coração, ao
gesto belo desta mulher do povo, dessa mulher que não se rende
desmerecida de dizer de onde veio – filha da escravidão nefasta – e cuja
alma é um relicário de amor e gratidão
170
.
168
Jornal “A Semana” de 22 de junho de 1922:
169
Idem
170
Idem
.
102
Ao relatar a importância de Maria Rogaciana, alguns traços comportamentais
de uma “mulher do povo”, que não se “rendia desmerecida” de dizer de onde veio,
são ressaltados, tais como “gratidão” e “entusiasmo” para com o 13 de maio.
Sutilmente Bruno Bacelar de Oliveira, o articulista, mostra que havia aqueles que
escondiam o seu passado ligado à ancestralidade escrava e africana. Em uma
sociedade marcada por grande quantidade de negros e pela mestiçagem, não seria
difícil encontrar tais personagens.
Em uma data não precisada, provavelmente na primeira metade do século
XX, Bruno Bacelar escreve a biografia de Maria Rogaciana, transcrita por Aníbal
Viana (1982). Começa ele:
Maria Rogaciana não foi escrava. Filha e irmã de escravos, teria vindo ao
mundo depois da Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de Setembro de
1871. Menina crescida viu seus irmãos serem vendidos para as matas de
café, como era conhecido entre os negros nas senzalas, o Estado de São
Paulo. (VIANA, 1982, p. 405).
O autor inicia o texto com a afirmação, enfática, de que Maria Rogaciana
não era escrava. O que mostra a criação de outra categoria, a dos que nasceram de
ventre livre. Tal qual Umbelina, ela estava em outro “estatuto”, o do ventre-livre. O
que isso significava socialmente no que se refere à ascensão da população negra?
Talvez pouco, mas era um estado de diferenciação importante em relação àqueles
que foram escravos.
E a cena dos seus irmãos vendidos não saiu jamais, do seu pensamento e
era sempre recordada por suas palavras em momentos oportunos. Era
magoa dolorosa em seu coração a partida de seus irmãos, jovens e fortes
para o cativeiro na paulicéia, onde se plantava na época o café que seria
uma das riquezas do Brasil. (VIANA, 1982, p. 405)
Apesar de não ter sido escrava, sentiu as “dores” do mundo escravo, ao ver
o destino de seus irmãos. Continua ele:
Não se sabe quando ela veio para esta Cidade no século passado, sem
dúvida ainda muito jovem, como serviçal do Padre José Muniz Cabral Leal
de Menezes [...] morrendo o padre José Muniz em 1905, Maria Rogaciana
não abandonou a professora Maria Leal Cabral de Menezes, de saudosa
memória e que grandes serviços ao ensino desta cidade prestou. Filha do
.
103
ilustre sacerdote, em casa de quem faleceu há alguns anos passados, era
querida, por toda a população. (VIANA, 1982, p. 405)
Ela servira ao padre, responsável pela educação religiosa, e à filha do
padre, professora “laica
171
”, o que mostra a sua ligação histórica com a educação
em Vitória da Conquista
172
:
Maria Rogaciana da Silva, alem de dedicação inesquecível para com os que
lhe deram zelo e abrigo na vida, possuía entre outros dotes apreciáveis,
elevados sentimentos de gratidão e reconhecimento, o que a fez,
individualmente, sozinha, sem recursos, somente pedindo as pessoas
amigas e conhecidas, promover brilhantemente, manifestação ao 13 de
Maio, todos os anos, com passeata cívica pela Cidade, aplaudida pela
população. (VIANA, 1982, p. 405).
“Grata” pelo 13 de maio e com esforços individuais, ela era responsável pela
festa cívica da comemoração de tão “importante” data:
A festa tomou cunho tradicional pelo brilhantismo e entusiasmo. Mandou ela
compor um hino ao 13 de Maio o qual foi musicado pelo maestro Francisco
Vasconcelos e que era entoado na comemoração do dia da libertação dos
escravos. Maria Rogaciana enquanto viveu não deixou desaparecer as
comemorações ao 13 de Maio, com passeatas cívicas, conduzindo o
préstito devidamente engalanado com flores e coroas de louro, os retratos
da Redentora, de José do Patrocínio e Ruy Barbosa. (VIANA, 1982, p. 405)
Com hino, passeatas cívicas, rememorações da princesa Isabel, José do
Patrocínio e Rui Barbosa:
Pela princesa Isabel ela tinha verdadeira devoção e fitava embevecida
verdadeiramente enleiada, chorando sempre que recolhia o préstito em sua
alocução, característica pela naturalidade de sua linguagem, suadando sob
forte emoção o retrato da Redentora. (VIANA, 1982, p. 405)
Segundo Bacelar, a princesa Isabel lhe causava comoção e, com a
“naturalidade” da sua linguagem, discursava. Sua linguagem “natural” mostrava a
criação de uma categoria diferente de linguagem associada a sua ancestralidade
africana:
171
Não havia necessariamente uma separação entre a educação religiosa e a educação laica.
172
Não deixa de ser interessante a naturalidade com que Bruno Bacelar se refere ao fato de um
padre ter uma filha.
.
104
Maria Rogaciana morreu desapareceu assim: símbolo de reconhecimento e
gratidão, amiga humilde da cidade e do seu povo e entusiasta do 13 de
Maio, festa que amava e promovia. Com sua morte também o 13 de Maio
nunca mais se festeja nesta cidade. (VIANA, 1982, p. 405)
A morte de Maria Rogaciana marcou o fim das comemorações do 13 de
maio. A apoteose dessa festa era o baile realizado no Paço Municipal para o qual
“[...] ela distribuía cartões de convite especiais á todas as autoridades e as pessoas
de maior representação social”. (VIANA, 1982, p.406).
Na porta do Paço Municipal, ela ficava de “sentido” para evitar penetras.
“Não deixava preto entrar ou tomar parte do baile, o que era paradoxal, dizendo que
‘ela era preta, porem não gostava de negro, que na maioria era mal educado”
(VIANA, 1982, p. 406)
Mais uma vez aparece a diferenciação entre preto (cor) e negro (lugar) e
surge a questão da educação. Maria Rogaciana dizia que não gostava de negro
porque era mal-educado. A questão, por ela colocada como de “má educação” não
seria de rebeldia, de insurgência, que ela traduzia como de âmbito da educação?.
Que lugar social é esse pelo qual Maria Rogaciana lutava? Que lugar social ela
queria afirmar para o negro?
Talvez uma boa perspectiva seja dada por Bhabha (1998), ao dizer que “[...]
é difícil concordar inteiramente com Fanon de que a opção psíquica é a de ‘virar
branco ou desaparecer’. Existe a terceira escolha, a mais ambivalente: a
camuflagem, a mímica, pele negra/máscaras brancas” (BHABHA, 1998, p. 174).
Mas a questão é complexa, Mozart Tanajura (1992) colheu um depoimento
muito interessante que nos ajuda a entender porque Maria Rogaciana não deixava
negros entrarem na festa, diz ele:
José Alexandre da Silva Leite, nosso informante, assim descreve o baile que
realizava na festa 13 de Maio em Conquista: À noite o baile era no Paço
Municipal. Só entravam os seus convidados, Rogo ficava na porta,
chamavejava, não deixava a cor negra entrar para participar da sua festa, e
dizia: “Vocês não me ajudaram, também não gozam da minha festa”.
(TANAJURA, 1992, p. 153).
Na fala colhida por Tanajura (1992) se vê que a questão não era só racial,
era também econômica, ou seja, o fato deles não ter ajudado a financiar a festa os
.
105
excluíam dela. Essa fala evidencia a complexidade das relações sociais locais a
partir do entrelaçamento das questões econômicas e raciais.
Aqueles que não entravam na festa não deixavam passar em branco o seu
descontentamento, diz o mesmo depoente “[...] Muitos da janela falavam: - “Olha o
cabaré de branco com a faixa da princesa sobre o peito dançando no salão”. A
pariceira (parceira) da Princesa está mesma celigristida (?). (TANAJURA, 1992, p.
153).
Os negros tinham noção de que era uma festa de “branco”, um “cabaré de
branco”. Esse depoente também ressalta a preocupação com a moral e os bons
costumes tido por Maria Rogaciana segundo ele “[...] quando dava a meia noite,
Rogô tinha o cuidado de mandar levar as moças nas residências de seus pais
dizendo: - Quem toma conta dá conta” (TANAJURA, 1992, p. 153).
Segundo Viana (1982), Maria Rogaciana sabia ler e escrever, e a “seu
modo cultural discursava, nas sessões cívicas, realizadas em comemoração à data
da abolição da escravatura”. (VIANA, 1982 p.406). A idéia de que Maria Rogaciana
fazia o discurso “a seu modo cultural” torna a evidenciar a linguagem diferente dela e
sua ascendência africana.
Figura 9
(Foto: VIANA, Anibal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas,
volumes 2, 1982.
Na foto da passeata em comemoração ao 13 de maio, encontrada no livro
de Viana (1982), vemos uma Maria Rogaciana com uma roupa que cobria todo o seu
corpo, um lenço na cabeça (herança africana?) no meio de homens engravatados e
.
106
mulheres igualmente compostas. Esse compromisso que ela firmou com a educação
ecoou historicamente e fez com que, no dia 13 de maio de 1976, o então prefeito do
município, Jadiel Vieira Matos, inaugurasse uma escola a que deu o nome de Maria
Rogaciana.
4.2 - Festas Religiosas: Divino Espírito Santo, Nossa Senhora das Vitórias, São
Benedito e Folia de Reis.
A primeira festa religiosa a ser realizada com grande participação popular na
região de Vitória da Conquista foi a Festa do Divino, que, com o tempo, começou a
não acontecer, mesmo com os esforços do padre Manoel Olimpio Pereira e de Fulo
do Panela
173
,, paulatinamente, foi sendo substituída pela festa de Nossa Senhora
das Vitórias, como podemos perceber no registro do vigário Manoel Olimpio Pereira,
no livro de tombo da Igreja Matriz em 1905:
Havia nessa freguesia o costume de se fazer somente a festa do Divino
Espírito Santo, a qual era celebrada com grande pompa, como dizem, com
banquetes por oito dias etc, mas esta mesma já tinha sido suspensa de
alguns anos para cá. Este ano começamos a festejar o mês de maio, o que
se faz com grande influencia e entusiasmo da parte das moças a quem
entreguei esta devoção. Conhecendo eu, então digo, de muitas pessoas da
celebração das festas religiosas, convidei o povo para fazermos a festa
religiosa de Nossa Senhora das Vitórias, a qual de preferência a todas as
outras solenizar por ser a mesma Senhora padroeira desta freguesia.
Designei portanto o dia 08 de Dezembro para a realização daquela
solenidade, nomeando festeiro do corrente ano o Ilmo Senhor Dr João Diogo
de Sá Barreto que delicadamente aceitou essa incumbência e aceitou com
gosto
174
.
A construção da Igreja da cidade dedicada a Nossa Senhora das Vitórias teria
contado com a participação de escravos, segundo depoimento de Laurinda Silva
173
Em 27 de Maio de 1926 Euflosina Maria de Oliveira (a Fulô do Panela), personagem analisado no
segundo capítulo, foi responsável para que novamente a festa do Divino Espírito Santo não deixasse
de ser comemorada, como registra o jornal “A Noticia” de 27 de maio de 1926: “Por iniciativa da sra d.
Eufrosina Maria de Oliveira, residente nesta cidade, festejou-se, este ano, entre nós, o Divino Espírito
Santo, cuja missa festiva, que foi muito concorrido, teve lugar no dia 23 do mês corrente. Foi sorteado
para os festejos no ano de 1927 o cel. João Torres Costa. Laborioso fazendeiro neste município.
muito que aqui não se festejava o aludido santo, que merece, aliás, de todo o povo católico a mais
ardente adoração”.
174
Livro do Tombo da Igreja Matriz de Vitória da Conquista, 20 de Dezembro de 1905. AIMVC/BA
.
107
colhido por Viana (1982). Segundo ela, seu avô Francisco José Maria da Ponte,
mais conhecido como “Tio Nagô”, ex-escravo do João Gonçalves, dissera:
Eu guiava o carro de bois que conduzia as pedras e madeiras para o inicio
da construção da Igreja, quando o carro chegava no lugar onde foi feita a
mesma, os bois empacavam, o carro não saia do lugar e não havia ferroada
que fizesse com que os bois puxassem o carro. (VIANA, 1992, p. 15).
Segundo “Tio Nagô”, a construção da Igreja contou com a participação dos
negros, a própria Nossa Senhora das Vitórias, para ele, seria uma índia, diferente
das outras. Diz ele:
O Capitão João Gonçalves da Costa, de facão em punho lutava com muita
coragem com os selvagens e eis que entre a folhagem surgiu uma índia
muito diferente das outras, pela beleza fisionômica. O capitão aproximou-se
para captura-la e a índia corria a sua frente pelo mato, desde o lugar de
nome Batalha, onde foi travada a luta, até o lugar da grande aldeia dos
Mongoiós. Aí, a índia de frente ao Capitão, e ele reconheceu nela a Imagem
de Nossa Senhora. O Capitão ficou apavorado, estatelado com a visão,
inficou o facão no chão, ajoelhou e disse “aqui levantarei a vossa igreja”, e a
índia desapareceu (VIANA, 1982, 15).
Mesmo sendo diferente das outras pela “beleza fisionômica”, Nossa Senhora
era uma índia, o que, a meu ver, marca o próprio caráter “mestiço” (branca-india)
assumido por essa Virgem na fala de tio Nagô. E de maneira geral, a fala desse
personagem evidencia o que será visto ao longo das festividades de Nossa Senhora
das Vitórias, que é a participação de diferentes estratos sociais.
Ao analisar as novas representações do universo católico feitas pelos
africanos, constata-se que “[...] eram expressões culturais mestiças, fruto da
interação de diferentes grupos sociais no contexto da escravidão, mas regidas pelo
signo da conversão ao catolicismo” (MELLO E SOUZA, 2002, p. 323).
Em 1906, Euflosina Maria de Oliveira foi responsável pela festa de Nossa
Senhora das Vitórias junto com o Major Heminio da Silva Piau. A realização da festa
foi marcada por uma série de tensões, como diz o Padre Manoel Olimpio Pereira:
Uma pagina negra deveria ser escrita aqui neste dia em que se efetuou a
procissão como encerramento da supra dita festa. Desde que chegou da
minha viagem ao velho mundo encontrei uma certa indisposição [...] contra o
meu companheiro Manuel Higino por motivo de práticas (?) contra o
Espiritismo e o protestantismo , e no dia referido depois da procissão
explodiu uma manifestação de desagrado contra o meu dito companheiro e
contra mim que foi mesmo uma nota profundamente triste vergonhosa e
indigna de se referir. Um grupo de pessoas exasperadas corriam as ruas a
cavalo em gritos e urros pavorosos parecendo monstros possessos que
vomitavam blasfêmias tremendas contra a Igreja, os Santos , a Virgem, a nós
.
108
padres a quem ameaçavam de arrastar de casa para nos porem fora.
Felizmente o povo tomou nossa defensiva, quando pacientes e resignados
esperávamos o sacrifício repelindo a horda de tão terríveis agressores que
envergonhados fugiram mas que dificilmente lavarão a lama que se [...]
nodoaram a sua terra com tal procedimento. Os que se exibiram em tal cena
se dizem espíritas e protestantes
175
.
Fulô não se manteria quieta diante desses enfrentamentos entre católicos e
protestantes, segundo Israel Orrico (1982), ela “[...] assegurou peremptoriamente, ao
pastor dessa igreja que ela não deixaria funda-la aqui” (ORRICO, 1982, p.100). De
acordo com Aguiar (2007), essa teria sido a razão para se acreditar que teria sido
Fulô a responsável por mandar pichar durante a noite as portas da casa dos batistas
com uma cruz preta.
Entretanto outras festas eram realizadas na região, principalmente em
localidades como a antiga (e hoje cidade de) Encruzilhada, onde se fazia a festa a
São Benedito
176
. No livro de tombo da Igreja Matriz de Vitória da Conquista, em 3 de
fevereiro de 1905, há uma primeira indicação de como o culto a esse santo teria
começado. Diz o padre Manoel Olimpio Pereira:
Em Encruzilhada há uma capela em construção, mas já abandonada desde
muito, é uma pobre velha africana chamada de Benedita que fornece ali ao
padre um quartinho construído por ela e dedicado a São Benedito para a
celebração de missa e administração dos sacramentos
177
.
Nessa citação há um elogio ao comportamento de Benedita que, mesmo
sendo “pobre” e “velha”, fornecia um “quartinho” para o padre e, assim, contribuía
175
Livro de Tombo, 18 de dezembro de 1906.
176
O Culto de São Benedito se dava também em outras localidades. Em uma pesquisa feita por mim
pude perceber a presença de São Benedito em uma localidade próxima a Encruzilhada, na região de
Ituaçu remontando também ao inicio do século XX. São Benedito é um santo negro, na história oficial
da Igreja filho de escravos etíopes e era um dos principais referenciais do catolicismo oficial para os
escravos africanos. Por mais que a igreja quisesse utilizá-lo apenas como exemplo de que
obediência, humildade e dedicação ao trabalho trariam frutos aos cativos, estes “ressignificaram” o
santo, colocando-o como solidário e companheiro de suas dificuldades. Para mais informações ver
ARAUJO, Fabiola. São Benedito, o Santo Preto de Encruzilhada. Monografia do final do curso de
História da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, 2006. Segundo Luis Felipe de Alencastro
(2001) em Angola, propagou-se a idéia de que ele teria nascido na província angolana de Quiçama.
Dali o culto teria partido para toda a África e América. Diz ainda que a representação racial do santo
se agregou ao uso da cachaça que até o inicio do século XX foi considerada no Brasil como uma
bebida quase exclusiva de negros. “Verso popular sergipano reza, São Benedito, È Negro de raça,
Toca pandeiro, E bebe cachaça”. (ALENCASTRO, 2002, 314).
177
Livro de Tombo da Igreja Matriz de Vitória da Conquista, 03 de fevereiro de 1905. AIMVC/BA.
.
109
para a propagação da fé católica em Encruzilhada, como salienta o mesmo padre
Manuel Olimpio em 1909:
No dia 15 de Junho do corrente ano Benedita Africana fez doação de uma
capelinha comprada por ela com uma porta de frente e uma sacristia com
janela ao lado com um cimo da mesma capela a São Benedito ao qual é
consagrado a mesma no arraial da Encruzilhada. A respectiva escritura de
que paguei os direitos fica em meu poder
178
.
Em 1915, encontrei uma nova menção à festividade de São Benedito, no
“Órgão critico, literário e noticioso” publicado por João Pereira, em Vitória da
Conquista, em 5 de Novembro de 1915. Diz o jornal:
Graças aos esforços dos Juizes Capitão José Antonio Pales, Dona
Philomena Palles Rocha, Joana de Oliveira Prates, tendo a frente o nosso
companheiro de trabalho Deoclecio Novais, também Juiz, teve lugar no dia
02 de Julho, no prospero Arraial de Encruzilhada (futura villa) os festejos de
São Benedito, que a oito anos não se festejava ali.
179
Os festejos começaram com uma alvorada às 4 horas da manhã e à tarde
realizou-se uma procissão pelas ruas de Encruzilhada, em que a charola de São
Benedito era conduzida por quatro “senhoritas de vestidos brancos e crianças
vestidas de anjo”. Houve ainda a “reza de costume” e leilão de animais.
Em nenhum momento, o fato de São Benedito ser um santo negro aparece na
descrição do jornal. Isso parece não ter importância, mas não deixa de ser
interessante o fato de um santo negro ser cultuado com toda a pompa pelas
autoridades locais e sem a presença de um padre, como registra o mesmo jornal. A
renda retirada dos festejos deveria ser para a construção de uma igreja
180
.
Outra festa de origem católica que contava com participação de negros era a
Folia de Reis, realizada no início do ano em comemoração aos Reis Magos. Diz
178
Livro de Tombo da Igreja Matriz de Vitória da Conquista, 20 de julho de 1909. AIMVC/BA.
179
Órgão crítico, literário e noticioso, 05 de Novembro de 1915, Biblioteca do Museu Regional, Vitória
da Conquista/BA.
180
Entretanto, com o passar do tempo, o caráter racializado do santo aparece. Em uma pesquisa de
final de curso de História orientada por mim e realizada por Fabíola Araújo. Pudemos ver como, no
decorrer do século XX, São Benedito foi substituído por Nossa Senhora de Lourdes. Afinal, como nos
disse um dos depoentes, São Benedito era um santo preto. “E como é que uma cidade como
Encruzilhada, ia ... vai ter esse padroeiro... tal? Então, teve esse questionamento... então houve esse
questionamento
180
”, ou seja, São Benedito foi trocado por Nossa Senhora de Lourdes por ser negro o
que, segundo alguns depoentes, teria levado a uma “maldição” do santo que deixara a cidade
estagnada até os dias atuais.
.
110
Bernardo Ribeiro de Menezes, 29 anos, solteiro, lavrador, em um documento de
1915; já referido:
[...] no domingo vinte e oito de novembro do ano de mil e novecentos e
quinze, as três horas mais ou menos , estando eu respondente em minha
casa de residência, dormindo despertei com o cântico de reis e batida na
porta, levantei-me e quando abri a porte encontrei João Pretinho, Serafim
de Tal, Francisco Graia e mais pessoas, os quais entraram e continuaram o
divertimento
181
Mas a “brincadeira” não foi só com os reis, continua esta mesma testemunha:
[...] poucos minutos depois João Pretinho e Serafim, começaram um
brinquedo com facas, eu respondente e Francisco Graia, conhecendo que
daquele brinquedo podia resultar mal, tratamos de aconselhá-los fazendo
desaparecem o aludido brinquedo, momentos depois saíram todos em
direção a casa de Serafim
182
.
Um dos “reiseiros” descritos é José Pretinho, personagem analisado no
capitulo anterior. O que a documentação parece indicar é que a Folia de Reis era
cantada, sobretudo entre dezembro e fevereiro, mas não era descartado em
situações especiais fazer uma folia em outras épocas do ano.
Há um processo de 1922, também já referido, que traz alguma luz sobre essa
questão, no qual Vicente Antonio da Silva, 34 anos de Idade, negro, que,
[...] achando-se ele respondente ausente de sua família, a mais de quatorze
meses, na cidade de Itabuna e tendo regressado com destino ao lugar de sua
residência no lugar denominado Olho dÁgua de Vital, onde achava sua família
e que no dia de sua chegada em satisfação do mesmo ter vindo com saúde,
teve um seu compadre que vir cantar um reis em regogizo a sua chegada, e
ele respondente cheio de satisfação teve que se dirigi a uma venda no Poço
da Vaca a qual é pertencente ao senhor Aristides Alves com o fim de comprar
café e açúcar e também cachaça
183
.
No jornal “O Combate” de 11 de janeiro de 1930, temos mais uma alusão à
festa de Reis:
Decorreram animadas as festas de reis nessa cidade. Do dia 02 a 06, á noite,
as ruas da cidade patenteavam, desusado movimento, cheias que estavam
de verdadeira animação. Não faltaram os tradicionais “bois” e “mulinhas” com
o seu séqüito de cantos e musicas que ainda agradam a população. Merece
especial menção e francos elogios o bem organizado terno “Estrela do
Oriente” que despertou viva atenção pelos seus cantigos ensaiados, o qual
181
Autuação 1916, Caixa diversos 1911 a 1917 – AFJM/BA.
182
Idem
183
Processo 1922, Caixa: Diversos 1924 – AFJM/BA
.
111
foi convidado a cantar em casa do cel Otaviano Santos e dos senhores
Hildebrando Rocha, Demóstenes Rocha e Feliciano Braga
184
.
A participação dos negros nos reisados e a menção ao bumba-meu-boi e
mulinhas permitem-me, ao menos, especular uma ligação entre o reisado e as
congadas. Vejamos o que diz Edison Carneiro (1982) sobre os reisados de Alagoas,
em que percebemos algumas semelhanças com o reisado encontrado em Vitória da
Conquista:
Os reisados [...] estão misturados às congadas, e isto envolve o duelo entre
o séqüito do embaixador e a gente do rei. Há partes representadas
(entremeios), cantadas (peças) e declamadas (embaixadas) [...] outrora o
reisado terminava com a apresentação de um bumba-meu-boi. (CARNEIRO,
1982.p.133 a 134)
Referências a “bois” e “mulinhas”, nos primeiros trinta anos do século XX,
aparecem em uma crônica de “O Jornal de Conquista”, na edição de 25 de
dezembro de 1968, encontrada por Itamar Aguiar (2008) e por ele intitulada “O Boi
do nego Rufino na sala do coronel Gugé”. Essa crônica faz menção às festividades
que eram realizadas na casa do Coronel Gugé, figura que já destacamos
anteriormente como sendo um dos mais importantes líderes locais e amante da Fulô
do Panela. Diz o cronista:
[...] com que imponência o preto Rufino, representando o vaqueiro dividia
as partes do boi que havia ‘morrido’ no salão da casa que recebia o “Reis”!
Lembro-me que em uma das noites de reis via a repartição do boi nas
casas dos coronéis Pompilio e Gugé. (MOREIRA apud AGUIAR, 2007,
p.49)
Nesse documento mais uma mostra de como essas práticas culturais com a
participação negra se faziam presentes dentro da casa das “autoridades” locais
(padres, “jornalista” e fazendeiros), ou seja, ele ajuda a entender de que forma essas
festas estavam enraizadas nas práticas culturais locais, demarcando assim o caráter
essencialmente popular dessas manifestações. Nelas a questão da civilidade
aparece de maneira tangencial. Não explícita, mas demarcatória dos padrões
comportamentais esperados. É o que veremos com mais clareza na análise dos
batuques e sambas.
184
Jornal “O Combate”, 11 de Janeiro de 1930. Biblioteca do Museu Regional de Vitória da
Conquista/BAl
.
112
4.3 - Festas populares: Batuques e Sambas
A discussão sobre civilidade e não civilidade é mais forte nas festas populares
como batuques e sambas. Em se tratando de festas de raízes eminentemente
africanas, havia um temor maior por parte dos “brancos”. Segundo João José Reis:
[...] a festa negra promovia medo e recomendava preocupação aos brancos,
por ser identificada como domínio exclusivo dos africanos, que formavam a
parte da população escrava e liberta mais rebelde da província. Alem disso,
muitos a consideravam obstáculo á europeização dos costumes, um projeto
abraçado por setores da elite engajados em ‘civilizar’ a proivincia (REIS,
2002, p. 102)
Na Imperial Vila da Vitória, a realização de Batuques era proibido. O Código de
Posturas de 1842
185
, Art. 31, diz o seguinte:
Fazer dentro da Vila, e Arraiais, pelas ruas, ou casas, das oito horas da
noite em diante batuques, VOZERIAS, e estrondos de qualquer espécie,
d’onde provenha à perturbação do sossego público, ou dos VIZINHOS:
pena de 10$000 reais, ou oito dias de prisão, que será imposta ao dono da
casa, ou motor, e os mais infratores incorrerão na de 3$000 reais, ou quatro
dias de prisão
186
Percebemos que a proibição é contra batuques e não contra sambas. Apesar
de João Jose Reis (2002) dizer que até hoje esta distinção não está clara ainda, em
uma pesquisa realizada entre os anos de 1926 e 1933, Cecília Meireles (2003) fez a
seguinte distinção:
O que vem a ser o batuque e o samba? Ambos representam, certamente,
restos de ritual primitivo. O batuque provirá do ritual de adestramento
masculino para as lides de guerra; seus movimentos são martelados e secos
e a coreografia consta de uma marcha cadenciada de um dos personagens,
ladeando a roda que sustenta a música com cânticos e instrumentos,
acompanhados de bater de palmas, terminando num golpe de agilidade que
deita por terra o companheiro escolhido para o substituir. (MEIRELES, 2003,
p.54)
185
Levantado e utilizado nas suas pesquisas por Itamar Aguiar (1999).
186
Câmara Municipal da Imperial Vila da Vitória. “Código de Posturas Municipal”. Art 31, 1842.
.
113
Segundo ela, do batuque teria derivado, no Brasil, a “escola de capoeiragem”.
Já o samba seria a “[...] sobrevivência de ritual de casamento, dado ao ar erótico que
conserva” (MEIRELES, 2003, p. 58). No batuque, “guerra”; no samba, “erotismo”.
O batuque era também proibido na vizinha Villa Nova de Príncipe e Santa
Anna do Caetité (atual cidade de Caetité). Os artigos 23 e 24 do seu Código de
Postura de 1941 eram claros:
23ª
Fica proibido á todos os moradores desta Vila e Arraiais fazer nas ruas em
horas de silencio batuques e vozerias, que perturbem o sossego publico,
sob pena de dois dias de prisão.
24ª
São Proibidos os ajuntamentos de escravos com batuques, e algazarras na
Vila e nos Arraiais, sob pena de quatro dias de prisão para cada individuo,
que for achado em tais ajuntamentos
187
.
A referência a samba em um código de postura da cidade só aparece em
1908, que dizia ser proibido “Se reunirem mais de três pessoas para cantorias de
rezas fúnebres em altas vozes, ou fizerem batuques e sambas depois das 7 horas
da noite. Pena de 10#000 de multa 2 dias de prisão
188
”.
Em um mesmo artigo, se reúnem manifestações que seriam
predominantemente negras, “rezas fúnebres”, “batuques” e “sambas”. Segundo Reis
(2002), é só no final do século XIX que o termo samba é disseminado, daí
provavelmente só aparecer nos inícios do século XX em Vitória da Conquista.
Mas, como veremos, já em 1869, na Imperial Vila da Vitória, representações
sambas aparecem em um processo por infração de posturas, impetrado pelo juiz
municipal contra Pedro Gonçalves Viana, Elias José de Deus, Isidoro Moreira dos
Santos, Josefina Maria da Almeida, Senhorinha Maria de Jesus e Ana Deolina, por
estarem realizando “um desses bacanais, o que é vulgo intitulado – samba
189
”, que
fora realizado na casa de Pedro Viana, mais conhecido como Pedro Fumaça
190
.
187
Registro das Posturas Municipais aprovadas pelo Conselho Geral e Assembléia Legislativa
Provincial, 05 de abril de 1841 In PIRES (2003) p 51
188
Código de Posturas da Cidade de Conquista, 1908, APVC.
189
Infração de postura, 1868. Fórum João Mangabeira.
190
Este documento é citado na dissertação de mestrado de Isnara Pereira Ivo.
.
114
A imagem inicialmente construída sobre o samba é que teria sido um bacanal,
algo profano, imoral, não ligado à civilidade e aos bons costumes
191
. A palavra
bacanal remete a um estereótipo construído sobre o samba, mas é sempre
importante lembrar Bhabha (1998) ao dizer que:
O ato de estereotipar não é o estabelecimento de uma falsa imagem que se
torna o bode expiatório de praticas discriminatórias. È um texto muito mais
ambivalente de projeção e introjeção, estratégias metafóricas e metonímicas,
deslocamento, sobredeterminação, culpa, agressividade, o mascaramento e
cisão de saberes ‘oficiais’ e fantasmagóricos para construir as
posicionalidades e oposicionalidades do discurso racista. (BHABHA, 1998, p.
125)
Segundo o réu Pedro, dono da casa, os fatos se procederam desta maneira:
Que nesta noite de dezenove do mês passado entrando às sete horas da
noite em sua casa Inocêncio Pereira da Silva, que se trata por Coló, este
perguntou-lhe se tinha cachaça no que ele respondeu afirmativamente este
apresentou com Ana Diolina, Josefina, Estevão Ferreira, Elias, Ludovico,
Guita, Senhorinha e estando arranchado em sua casa Emilio assim reunidos
, perguntou o dito colo se tinha uma viola e não tendo lhe pediu uma guitarra
a Cassiano e chamou a Isidoro para tocar.
A festa começara com a aglomeração de pessoas, o uso de aguardente e a
busca por instrumentos, notadamente de corda, violão e guitarra. Continua o réu na
descrição do que houvera:
Disse mais que não obstante a guitarra ter somente três cordas todavia
tocaram nela [...] Declarou mais que beberam aguardente mais que não
sambaram e que tudo foi acabado pelo cabo Clemente que nessa noite quis
matar uma mulher chamada Pia e que não conseguiu por lhe ser impedido
por Manuel Diego
192
.
A guitarra só tinha três cordas, tocaram nela, mas não sambaram. Samba aqui
é uma dança, como a que fazem os reiseiros atuais. Por fim, tudo acabou graças à
ação do cabo Clemente, ou seja, a defesa denunciou o próprio comportamento das
autoridades locais, afinal, segundo o réu Pedro, a confusão só ocorrera em razão da
ação de um agente da lei (o cabo Clemente). Evidencia-se também a participação
de “brancos” no samba.
191
João José Reis registra um pedido feito em 1854 por um subdelegado de Salvador pedido
reforços para combater uma reunião de 300 a 400 africanos “[...] eletrizados com seus costumes
bacanais” (REIS, 2002, 131).
192
Infração de postura, 1868. Caixa Diversos 1868. Fórum João Mangabeira. Vitória da
Conquista/BA
.
115
Entretanto, outra testemunha reforça que, de fato, houve um samba, dando
mais detalhes dele. Segundo a costureira Maria de Souza do Espírito Santo:
[...] quando foi passando pela casa de Pedro Viana ouviu fala de Josefina
pelo [...] conheceu entrou para chamá-la e que lá encontrou Ana Deolina
uma mulher preta que ela testemunha não conhece. Emilia uma moradora
dos Poções que também não conhece. Colo, Feliciano de Tal, como de nada
[...] Isidoro que tocava uma guitarra e que todos estavam bebendo (e Colo
sapateava) e dançando e que o mesmo Colo dera uma embigada
(umbigada) em Feliciano
193
.
Chama a atenção em seu depoimento a caracterização de Ana Diolina como
sendo mulher “preta”. Este “detalhe” da testemunha mostra que era presente
naquele cotidiano a racialização em relação à população afro-descendente. É a
única referência à presença de negros no processo, o que nos leva a acreditar que
do “samba” participavam brancos e negros.
Traço também importante na fala desta testemunha é o destaque para os
movimentos realizados pelos participantes da festa, particularmente na figura de
Coló, que “sapateava” e “dava umbigadas”. Segundo Câmara Cascudo (2000), a
pancada com o umbigo nas danças de roda seria um convite intimatório para
substituir o dançarino solista. As sapateadas são também características desse tipo
de dança; segundo esse mesmo autor, no batuque paulista o convite seria feito por
uma batida de pé diante da pessoa preferida
194
.
Maria de Fátima Pires (2003) encontrou em Rio de Contas uma situação
semelhante a essa: em 1875, Filipa, escrava de Joaquim Teixeira de Almeida, teria
adoecido depois de participar de um batuque, onde ocorrera a “dança da barrigada”,
provavelmente o mesmo tipo de dança da umbigada realizada na Imperial Vila da
193
Infração de postura, 1868. Caixa Diversos 1868. Fórum João Mangabeira. Vitória da Conquista/BA
194
Para mostrar que essa dança seria de origem africana, Cascudo (2000) cita relatos de viajantes
europeus que estiveram na África, de Capelo e Ivens entre os quilengues, cita, “Após três ou quatro
voltas perante os espectadores, termina o dançarino por dar com o próprio ventre na primeira ninfa
que lhe parece estar a repetir cenas idênticas
194
”. Em 1815, G. W. Freyress registra em Minas Gerais
um Batuque bastante semelhante ao acontecido na Imperial Vila da Vitória onde, “os dançadores
formam roda, e ao compasso de uma guitarra (viola), move-se o dançador no centro, avança e bate
com a barriga na barriga de outro da roda, de ordinária pessoa de outro sexo “.CASCUDO, Câmara.
Dicionário do Folclore Brasileiro, 10ª edição, São Paulo, Ediouro, 2000, p. 891 e 892.
.
116
Vitória
195
. Destaca também essa autora referências a outros dois batuques
realizados na região compreendida entre Caetité e Rio de Contas
196
.
Uma das testemunhas, Pia Ferreira Prates, tenta desqualificar a acusação de
ter havido um samba, pois, segundo ela, teria havido apenas uma “modinha”, mais
aceitável do que o samba. A modinha era uma variante da “moda”, feita em Portugal,
sem estrutura formal fixa, quase sempre de cunho amoroso
197
.
Aqui se inicia uma tentativa de afirmar que na verdade houvera uma festa
civilizada nos “moldes” europeus e não um samba “africano”. Mas isso sequer entra
em discussão, pois as evidências eram fortes demais. O processo termina com a
condenação do dono da casa a pagar mil réis e os demais acusados a darem três
mil réis e ainda as custas do processo, tal qual estabelecia o Código de Posturas
citado anteriormente.
Outra festa com participação negra aconteceu em 1871, mas não está claro no
documento, um “sumário de culpa”, se teria sido batuque, samba ou reisado. O que
sabemos é que brancos e negros dela participaram
198
. Diz uma das testemunhas:
Estando Romão Mathias em uma sociedade com diversas pessoas, entre as
quais estava Martinha Ribeira, passara uma noite em um divertimento no
qual derão muitos tiros de salva e amanhecendo o dia vindo Martinha Ribeira
acompanhada com Candido de Tal que vinha rufando uma caixa, ao passar
pela porta da casa do réu Romão Mathias este lançara mão de uma arma de
fogo e dera um tiro de salve para o chão
199
.
195
Ver PIRES, Maria de Fátima Novaes. O crime na Cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia
(1830-1888). São Paulo. Annablume/FAPESP, 2003, p. 75/76. Segundo Cascudo (2000), a umbigada
viera para o Brasil com os escravos oriundos da região de Angola e Congo, ou seja, seria uma
tradição banta. Concordando com Cascudo, Karash (2003) nos diz que, em Angola, um nome para a
umbigada é “semba”, palavra encontrada em quibundo, ganguela e outras línguas angolanas, que
significa “movimento pélvico
195
”. Para Gerhard Kubik (1979), no Brasil o “semba” alterou-se
foneticamente até se transformar na palavra “samba” dos dias atuais
195
. Analisando o Rio de Janeiro,
Karash (2003) diz que no século XIX o termo samba não aparece nas fontes cariocas, aparece mais o
termo batuque. Segundo Kubik (1979), é provável que, durante os batuques, os dançarinos gritassem
“samba”, “samba”, fazendo alusão à palavra da língua ganguela do interior de Angola, ”kusamba”,
que significa saltar, dar piruetas, expressar alegria e felicidade
195
.
196
Idem, pág. 52
197
Ver CASCUDO, Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro, 10ª edição, São Paulo, Ediouro, 2000,
paginas 583 a 586
198
No processo Romão Mathias é descrito como pardo, Martinha como parda escura e Candido como
Branco.
199
Processo crime 1871. AFJM-Vitória da Conquista/BA. No Rio de Janeiro, a palavra orgia era
usada para se referir ao carnaval, anota Cecília Meireles (2003). O que eles (pessoas civilizadas)
chamam de orgia, palavra tão freqüente nas canções de carnaval dos últimos tempos, é a longa
passeata com cantorias e luzes, estandartes e feras de papelão, do subúrbio ao centro da cidade,
horas e horas, com descanso nas rodas de samba, copos de cerveja ou refrescos e um
extenuamento completo, pela madrugada, estendidos nas calçadas entre brilhos de sedas e colares,
à espera da condução que os transporte a casa. (MEIRELES, 2003, p.64).
.
117
No relato, notamos a alusão a uma caixa normalmente usada na Festa do
Divino e também a referência a tiros de salva para o chão, feitos nas manifestações
dos “carabineiros” do Recôncavo baiano
200
. As representações sobre essas festas
eram sempre marcadas pelo racismo, mas também pela denuncia de falta de
civilidade, de bom comportamento. Como podemos perceber pelo relato de uma das
testemunhas, os participantes “[...] estavam em súcia ou divertimentos aonde existia
bastante bebida de cachaça e nesta orgia passaram toda à noite
201
”.
Sete anos depois, em 1878, menções a samba aparecem em outro processo
crime, como vemos no relato feito pelo escravo Isidoro:
[...] achando-se ele respondente na rua do Espinheiro em uma das casas de
José Coelho Sampaio em divertimentos de um samba e saindo daí em
direção a casa de residência de seu senhor, encontrara com Clemente
conversando com a escrava Cecilia do domínio de Dona Senhorinha Nunes
Fernando Ribeiro, no beco da casa do Tenente Bahiense, ele respondente
dissera à rapariga que fosse embora e neste ato o Clemente dissera que ele
respondente não era capaz de dar na rapariga, dizendo ele respondente que
não queria dar em pessoa alguma, e neste intere o referido Clemente puxara
uma faca – e ele respondente que se achava com um cacete na mão,
arremessara contra seu ofensor, que não pode pegar a cacetada, caindo ele
respondente por terra por um escorrego que levara aproveitando esta
ocasião em que ele respondente levara a queda para Clemente ferir-lhe com
uma faca
202
. (grifos nossos)
Pelo relato, o samba teria acontecido antes das 7 horas da noite, já que o
conflito no Beco do tenente Bahiense se dera nesse horário. É interessante destacar
a presença, no processo, de uma depoente escrava e de uma depoente africana.
Trata-se de Bernarda Maria da Ponte, de 55 anos, solteira, moradora da Imperial
Vila da Vitória, “natural da Costa d’África”. Provavelmente ela seria parente do já
citado Francisco José Maria da Ponte, o “tio Nagô”, que, segundo Viana (1982, p.
15), era escravo de João Gonçalves da Costa
203
.
Em 1883, é registrada uma “brincadeira” novamente na casa de Pedro
Fumaça
204
. Meireles (2003) lembra que no Rio de Janeiro as palavras “brinquedo”
ou “brincadeira” eram utilizadas sistematicamente pelos negros para descrever as
danças realizadas por eles durante o carnaval.
205
Segundo ela, no “brinquedo”
200
CARNEIRO, Edison. Folguedos Tradicionais. 2ª ed. Rio de Janeiro, Funarte, 1982.
201
Idem
202
Processo crime 1878. AFJM (Caixa Diversos). Vitória da Conquista/BA
203
O processo envolvendo índio também tinha um depoente escravo.
204
Mesmo personagem onde o suposto samba acontecera em 1869.
205
Ver Cecília Meireles p. 56
.
118
estava de certa maneira compreendido o samba
206
. Reis (2002) apresenta outro
sentido dessa palavra: era utilizada pelas autoridades coloniais com uma conotação
paternalista por parte delas.
Na “brincadeira” realizada em Vitória da Conquista, percebemos a participação
de autoridades locais, fato que causou divergência entre elas, como constatamos em
correspondência enviada à administração imperial:
[...] se verificou em dias do mês de dezembro do ano passado quando
ansioso procurava o doutor Juiz Municipal o subdelegado Quaresma para
que este prendesse a Pedro Fumaça e Acácio de tal a pretexto de estarem
perturbando a tranqüilidade publica
207
.
O Juiz nada fizera, mas o subdelegado sim, que manda prender Pedro
Fumaça e Acácio. O documento deixa transparecer que esses tinham boas relações
principalmente com o juiz municipal, que só vai se manifestar quando tentou livrá-los
da prisão, indo falar com o delegado: “[...] do encontro das duas autoridades resultou
ameaçarem-se reciprocamente com prisão
208
”.
A grande questão é a noção de perturbação da ordem, da existência de “atos
turbulentos”, não civilizados, confirmada em outro trecho desse mesmo documento:
Em tal sentido me dirige do doutor chefe de policia por oficio de 30 de
Novembro do ano passado pedindo-lhe providencias da policia correcional
contra a infração da postura numero 31 da Câmara Municipal desta vila,
infração que tens partido com escandalosa reincidências de atos turbulentos
praticados em Casa do Doutor Juiz Municipal desta mesma vila contra a
moral em perturbação do sossego dos vizinhos
209
.
Novamente são utilizados os termos “turbulento” e “perturbação”. Essa idéia de
“perturbação” vai estar em outro documento do ano de 1921, sobre ocorrência que
envolveu moradores de Vitória da Conquista, mas que se passou na região de
Itabuna. Vamos à carta do juiz de Itabuna enviada ao juiz de Vitória da Conquista:
No dia 23 de Abril do ano corrente, no lugar ‘Anjos’, desta comarca, estava
muita gente a festejar a tapagem de uma casa no sitio do cidadão Antonio da
Silva Porto. O denunciado João Batista Lemos, vulgo Donnes, tendo
chegado àquele local com sua boiada, pedira ao senhor Antonio Porto para
consentir ficar-se à boiada referida nos seus pastos, sendo logo atendido.
Mas, quando o denunciado começa o seu trabalho, os animais se
206
Idem pagina 58
207
Oficio 1888, CP, CMIVV – 1863-1889, Maço 146. APEB/BA
208
Idem
209
Idem
.
119
espantaram, devido à algazarra e toque de tambor, não querendo assim
entra no pasto
210
.
No documento, a condenação da “algazarra” e do toque de tambor,
demonstração da “falta de bons costumes” daqueles que praticavam tão “maus
hábitos”. Isso teria levado à irritação um dos boiadeiros, que entrou em choque com
os festejadores e dá um tiro que vai ferir um dos que comemoravam a festa da
tapagem. Diz o juiz:
João Batista tendo incolerizado com os festejadores da tapagem, trata de
os descompor e como Jesuíno reclamasse contra o seu proceder [...] que o
referido denunciante sacou de sua arma (um revolver) e disparou-a contra
a sua vítima com a intenção de matá-la
211
.
Palavras como “incolerizado”, “descompor” aparecem como elementos
definidores do momento em que João Batista dera o tiro. Mesmo ferido, Jesuíno não
morre; já os boiadeiros voltam para Vitória da Conquista, onde passam a ser
procurados pela polícia e são objeto da carta enviada pelo juiz de Itabuna ao juiz
local procurando-os. Infelizmente não tive como saber se foram encontrados.
Ao fim da análise sobre essas festas, concordo com Hall (2001) ao dizer que:
“[...] a questão importante é o ordenamento das diferenças morais estéticas, das
estéticas sociais, os ordenamentos culturais que abrem a cultura para o jogo de
poder, e não um inventário do que é alto ou baixo em um momento específico”.
(HALL, 2001, p. 322). Nesse sentido, as festas eram manifestações sociais por
excelência, pois entravam na discussão sobre o que é socialmente aceito ou não,
civilizado ou não.
Os batuques e sambas eram associados a “imoralidade” e “falta de
civilidade”, mas eram festas populares e deles participavam brancos e negros,
pessoas com maior ou menor projeção social. Era preciso, portanto, acabar com
essas manifestações para que não dificultassem a criação de uma cidade
“civilizada”, ideal, mas não real.
210
Carta Precatória 1921. Caixa Diversos 1921. AFJM/BA
211
Oficio 1884, CP PP CIVV 1863-1889, Maço 1464, APEB/BA
.
120
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tomando como ponto de partida as categorias analíticas criadas por autores
como Bourdieu, Bhabha e Hall, procurei mostrar a função política das
representações como sendo por um lado a tentativa de legitimação de uma ordem
(“branca”, “civilizada”) e por outro a contraposição/enfrentamento a essa tentativa. A
complexidade dessa dinâmica levaram à criação de “lugares”, “contra- lugares” e
“entre-lugares”.
A construção desses diferentes lugares se deu numa região que se
desenvolveu a partir de um longo processo de mestiçagem, que define o próprio
caráter que ela assume hoje. Nessa região, uma elite local “mestiça”, que, por
muitos anos, se manteve no poder político e econômico, constituiu-se quando os
descendentes de africanos (começando por João Gonçalves da Costa) começaram
a adquirir propriedades (particularmente terra e escravos) e, ao morrerem, as
transmitiram a seus filhos legítimos ou mesmo bastardos.
Mesmo com a grande presença de mestiços a procedência escrava foi marca
indelével das representações desses personagens, sobrepondo a quaisquer outros
atributos, mesmo depois da abolição da escravatura. Persistiu depois da abolição
uma violência cotidiana (motivada por questões econômicas, morais e de honra)
entrelaçada com o racismo. Por mais que fosse mais explícito com a população
tipificada como “preta”, o racismo estava presente também nas representações feitas
acerca da população mestiça, mais sutil, mas não menos perversa.
Nas diferentes representações de “mestiços”, “pretos” e “negros”, constatei,
ao longo da dissertação, a associação ao primeiro nome de um “apelido” ou
“sobrenome” que denotava a cor ou origem, como em: Inocêncio Crioulo (1889);
Antonio Preto (1904); José Pretinho (1916); Manoel Preto (1917); Vicente Preto
(1922); Antonio Mulato (1924). Nesse sentido, o “apelido” representa um lugar social
a não ser esquecido.
Os “apelidos” confirmam o que também percebi ao longo da pesquisa: não
importam os graus de mestiçagem, o lugar social era de negro. Tratava-se de um
lugar social em movimento; são “lugares”, principalmente quando percebemos que
havia negros que se consideravam menos negros do que outros e que isso não
resultava necessariamente da cor da pele, mas do estabelecimento de fronteiras
sociais.
.
121
Nas representações os lugares aparecem associados ora a resposta a
valores dominantes na sociedade como os bons modos, a civilidade e o
compromisso com a fé católica, ora a afirmação de valores de origem africana, ou
seja, como “contra-lugares” construídos a partir da negação do primeiro.
Umbelina e Elias são exemplos de que era possível ocupar um “lugar social”
ligado à “turbulência” e à “falta de civilidade” e nele construir “contra-lugares”, do
mesmo modo que a. Do mesmo modo que os curandeiros-negros, a “parda de
cabelos bons” e o “mulato claro de olho de gato”. Todos esses lugares são
entrecortados por diferentes representações, ou seja, um mesmo personagem pode
ocupar a mais de um desses lugares, às vezes, em um mesmo contexto.
Pairando sobre todas essas representações, como um pano de fundo, um
desejo de civilidade e progresso para a região e para o país. Existe por parte dessa
sociedade conquistense a constatação da diversidade de sua população e de que
em uma sociedade com um profundo grau de mestiçagem e com uma grande
quantidade de negros, a “civilidade” é fundamental, para a construção de uma
cidade, no momento ainda, retórica, não-real.
Os lugares do negro construído até agora a partir de representações
formadas segundo a ideologia do branqueamento (mesmo difusa e não
sistematizada) não são estáticos, estão sempre em construção, tanto pela imposição
de determinados modelos como na negação, resistência e desconstrução desses
mesmos modelos.
Vitória da Conquista contemporaneamente vem discutindo sua origem e
identidade com base na sua ancestralidade negro/mestiça, como o fez o artista
plástico Orlando Celino, ao dar uma dimensão do que seria o rosto de João
Gonçalves, em tela exposta na Casa Memorial Régis Pacheco.
.
122
Figura 10
João Gonçalves da Costa na visão do artista plástico Orlando Celino.
Acervo da casa Regis Pacheco.
Orlando Celino tomou como ponto de partida para o Óleo Sobre Tela (OST)
as feições do músico Elomar Figueira, ilustre filho da terra, talvez um indício de
como essa cidade negro/mestiça tem buscado rediscutir suas possíveis origens,
mestiça, sertaneja e ilustre.
.
123
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS E DOCUMENTAIS
FONTES MANUSCRITAS
Arquivo da Igreja Matriz de Vitória da Conquista
rquivo do Estado da Bahia
idente da província, 1970;
rovincial Presidência da província Serie Judiciário
ncia da Província, Serie
cial, Presidência da
rquivo Municipal de Vitória da Conquista
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ornais
O Conquistense” – Fundado em 1916 por Alziro Prates e Odilon Silva
cha
seu
do em 22 de Junho de 1922 por Deoclides Pereira de
Novais.
Livro de Tombo da Igreja Matriz – 1907 a 1930
A
Fala 1870 APEB, Falas ao Pres
Oficio 1884.CP PP CIVV 1863-1889, Maço 1464, APEB;
Oficio 1871 APEB, Maço 1464;
Oficio 1875. Seção Colonial e P
(juizes Vitória) Período 1874-1889 Maço 2648 (1875);
Oficio – 1877. Seção Colonial e Provincial Presidê
Judiciário, Período 1874-1889, Maço 2648 (1877) – APEB;
Processo Curandeiro – 1859. Seção Colonial e Provin
província, Seção Judiciário, Período 1837 – 1872, Maço 2647 (1860) – APEB.
A
Ata da sessão ordinária do conselho municipa
Ata – 1910 – APVC;
Livro de Atas 1917;
J
“ A Palavra” – Fundado em 23 de Junho de 1917 por Demóstenes da Ro
“A Noticia” – Fundado em Janeiro de 1920 por Alziro Prates foi redigido por
filho Ernesto Dantas.
“A Semana” – Funda
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“A Vanguarda” – Fundado em 7 de Setembro de 1926 por Iolando Fonseca.
“O Combate” – Fundado em 11 de Agosto de 1929 por Laudionor de Andrade
rquivo da 1ª Vara Cível do Fórum João Mangabeira – Vitória da Conquista
ão catalogados)
o escravo Antonio- 1884. Caixa: Diversos 1883 a 1884;
ção Sumária de Culpa – 1903. Caixa Diversos 1903 a 1910;
883 a 1884
Dias de Cerqueira. Diversos –
a para registros de escravos e concessão de cartas de liberdade
ixa: Diversos 1880 a 1882;
75 a 1879 ;
890 a 1899 (22);
” deste município e
. Caixa diversos 1888 a 1889 (22);
a 1919;
Brasil.
“Avante” – Fundado na década de 30.
A
(n
Ação de Liberdade d
A
Ação ordinária 1870, Caixa diversos 1872 a 1873
Autuação de portaria – 1870, Diversos 1877 a 1879
Autuação de uma petição – 1883, Caixa: Diversos 1
Apelação crime – 1876. Diversos 1875 a 1879;
Apelação crime – 1875. Diversos 1875 a 1879 ;
Auto de corpo de delito procedido contra Ireno
1888 a 1890;
Autuação 1897. Diversos 1890 – 1890;
Auto de Portari
pelo fundo de emancipação – 1877 - Ca
Autuação da petição para ser libertado pelo Fundo de Emancipação o escravo
Bernardo – 1884, Caixa: Diversos 1883 a 1884;
Autuação 1916. Caixa diversos 1911 a 1917;
Autuação de corpo de delito – 1875, Diversos 18
Auto de corpo de delito 1888. Caixa diversos 1
Ação ordinária de reinvidicação da fazenda “São Domingos
termo – 1929. Caixa diversos 1929;
Auto de sumário de culpa 1928. Caixa diversos 1927 a 1929;
Auto e exame de corpo de delito 1889
Apelação crime – 1876, Diversos 1875 a 1879;
Autuação 1916, Caixa diversos 1911 a 1917;
Carta Precatória 1921, Diversos 1921;
Inquérito Policial – 1919. Caixa diversos 1918
.
125
Inquérito Policial – 1918. Caixa diversos 1918 a 1919;
1872 a 1873
aixa diversos 1874;
1919;
5 a 1879;
a 1879;
79;
ersos 1875 a 1879;
a 1873;
a 1873;
a 1879;
a 1873;
IVROS, ARTIGOS E DISSERTAÇÔES
Infração de Posturas – 1869. Caixa Diversos 1870;
Livro de Protocolo das Audiências Criminais – 1904;
Processo – 1922. Caixa: Diversos 1924;
Processo 1889. Caixa diversos 1888 a 1889;
Processo 1870. Caixa diversos 1870;
Processo Civil – 1870 (2), Caixa diversos 1870
Processo Civil – 1873, Caixa diversos
Processo 1874. Diversos 1874;
Processo 1874 envolvendo Manuel da Silva Badé. C
Processo 1918. Diveroso 1918 –
Processo – 1922, Caixa: Diversos 1924;
Sumário de Culpa – 1876. Diversos 187
Sumário de culpa – 1878. Diversos 1877
Sumário de Culpa, 1877. Caixa Diversos 1877 a 18
Sumário de culpa. Manoel Diogo (Réu) – 1875. Div
Sumário de culpa – 1924. Caixa diversos 1924;
Sumário de culpa – 1924. Caixa diversos 1924;
Sumário de culpa – 1871, Caixa diversos – 1872
Sumário de culpa – 1872, Caixa diversos – 1872
Sumário de culpa – 1878.Diversos 1877 a 1879;
Sumário de culpa do escravo Isidoro- 1875.Diversos 1875
Termo de Bem Viver – 1872. Caixa Diversos 1872
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137
ANEXOS
ANEXO A - Região Sudoeste da Bahia
Região Sudoeste da Bahia. Fonte SEI/BA
.
138
ANEXO B: Índios do Sertão da Ressaca
Índios Pataxós
Indios Ymborés
.
139
Fonte:
WIED NEWIED, Principe Maximiliano de. Viagem ao Brasil. Rio/São Paulo,
Companhia Editora Nacional, 1940.
.
140
ANEXO C: A presença negra na região de Vitória da Conquista: um breve
balanço bibliográfico
212
Na historiografia sobre a presença negra na Bahia, contamos com vários
estudos sobre a cidade de Salvador, o Recôncavo e, mais recentemente, as zonas
de mineração do interior baiano. Entretanto em relação à presença escrava/negra no
sertão, ainda há muito a ser estudado. Um dos pioneiros, Licurgo dos Santos Filho
(1956), faz algumas referências a essa questão em meio a suas análises da vida
“patriarcal” na fazenda “Brejo do Campo Seco”, uma enorme propriedade rural
localizada na região da Serra geral nas terras do município de Bom Jesus dos
Meiras (atual Brumado), região vizinha ao Arraial do Brejo Grande.
Santos Filho diz que os negros do Campo Seco ocupavam-se de diferentes
atividades, como pastoreio, produção de alimentos, fabricação de rapadura,
aguardente, ferragens, derivados do couro, serviços domésticos, o que revela toda
uma dinâmica no emprego desses cativos, que também tinham autorização para,
nas horas livres, cultivar um pedaço de terra e criar animais.
Mais recentemente, Erivado Neves (2000, 1998, 1997), analisando a
mesma região de Filho e B. J. Barickman (2003) sobre o “Recôncavo rural” produtor
de mandioca, fumo e algodão, reafirmou a idéia central de Santos Filho ao destacar
o caráter dinâmico da escravidão no sertão baiano, que se desenvolveu
paralelamente e de forma articulada a trabalhadores livres agregados.
Segundo Neves (1997), o número de escravos nos plantéis era geralmente
pequeno, comparado com aquele encontrado na monocultura canavieira do litoral do
estado. Isto não quer dizer que a presença escrava fosse pequena. Os novos
estudos da historiografia baiana, a exemplo dos que foram desenvolvidos por nós
(2007, 2003) e pelas professoras Albertina Lima Vasconcelos (1998), Maria Cristina
Dantas Pina (2000) e Maria de Fátima Novais Pires (2003), têm demonstrado que a
quantidade de escravos no sertão era grande, embora eles não estivessem
212
Esse trecho, a princípio estava na dissertação, mas, com o propósito de torná-la mais “enxuta”, foi
transportada para o anexo.
.
141
concentrados em poucas fazendas, mas distribuídos nas diferentes propriedades de
seus senhores.
Se as pesquisas sobre o negro em outras regiões do interior da Bahia ainda
são escassas, o mesmo se dá em relação à região de Vitória da Conquista. Poucos
são os trabalhos que fazem algum tipo de discussão sobre a presença negra na
cidade. Citações pontuais aparecem aqui e ali, mas poucos aprofundam a
discussão. A primeira obra escrita de maneira abrangente sobre a história de Vitória
da Conquista foi a “Revista Histórica de Conquista”, de dois volumes, com mais de
800 páginas. A obra foi escrita por Aníbal Viana, publicada no ano de 1982 e tem a
seguinte estrutura: Presença Indígena – Desbravadores – Família de João
Gonçalves da Costa – Desenvolvimento do Arraial até se transformar em cidade.
Nele, está clara a idéia de que o Arraial teria se originado do enfrentamento de
índios e brancos. Assim, Vitória da Conquista, fora construída por meio de duas
matrizes, a matriz branca e a matriz indígena. Entretanto, é sabido que Vitória da
Conquista fora construída sobre o sangue dos indígenas, e a padroeira da cidade,
Nossa Senhora das Vitórias, foi entronada como prêmio por ter contribuído para a
vitória sobre os nativos. Como resolver essa questão? Culpando os negros, que não
tinham aparecido em sua obra até então e aparecem da seguinte forma:
O velho preto, centenário, de nome Francisco José Maria da Ponte,
conhecido por “Tio Nagô”, que nasceu escravo de João Gonçalves da
Costa, falava que quando menino estava presente na época das lutas de
seu sinhô contra os índios e que ele (tio Nagô) botou veneno na cachaça
que os índios beberam e morreram quase todos envenenados e que esse
lugar ficava em frente da Igreja” (VIANA, 1982, 15).
A idéia que ele tenta passar é a de que foi esse negro o responsável pelo
“banquete da morte”, e não os brancos. “Tio Nagô” morava no lugar denominado
“beco sujo” (hoje Rua Ernesto Dantas), onde moravam outros iguais a ele.
Contraditoriamente, dado o caráter abrangente da obra, ele não desconsidera
o fato de que a família de João Gonçalves da Costa era negra. Sobre sua filha
Faustina Gonçalves da Costa, Aníbal Viana nos diz que ela era “mulher de boa
estatura, mulata, simpática, de corpo esbelto”. Destaca também o autor a existência
de uma série de capangas negros e mulatos na cidade, a exemplo de Rufino de
Rufina, que “era um tipo negro, alto, magro, corajoso” e o mulato José Nique, além
de mulheres negras, como Fulô do Panela, que ganhara notoriedade graças à sua
“sensualidade”, e Maria Rogaciana, que organizava bailes comemorativos do 13 de
.
142
maio e fazia questão de dizer que “ela era preta, porém não gostava de negro, que
na maioria era mal educado”
213
.
Referências às mulheres negras da cidade aparecem na obra de Israel Araújo
Orrico (1982) que, ao estudar as mulheres “que fizeram a História” da cidade,
destaca a presença de Euflozina Maria de Oliveira, a “Fulô do Panela” que “tinha a
tez moreno escura, traços firmes e delicados, nariz fino, lábios sensuais bem
desenhados, olhos ligeiramente arrendondados e ardentes [...] nem mesmo os
cabelos carapinha conseguem diminuir-lhe a beleza. Exalava sensualidade”. Ela
ganha notoriedade nessa obra porque cedeu aos apelos sexuais de um dos mais
importantes coronéis da cidade, o Coronel Gugé, e, nas palavras de Orrico, “aquele
homem bravo, macho, guerreiro, de palavra jamais desmentida, dominava-a e
domava os seus anseios de mulher”
214
.
Dez anos depois, Mozart Tanajura (1992) traz algumas referências sobre a
presença negra na cidade em seu livro “História de Conquista”. Diz que as negras
eram “criaturas amorosas” e que por isso teria se miscigenado fortemente com o
branco gerando uma sociedade conquistense marcada pela existência de indivíduos
com “sangue do branco de olhos azuis” mas com “fisionomia amulatada”. Segundo
ele, o 13 de maio era uma das festas cívicas mais populares da cidade e era
organizada por uma descendente de escravos, Maria Rogaciana da Silva (que virou
nome de escola na atualidade). Entretanto, só brancos entravam em sua festa,
realizada no paço municipal. Ela fazia questão de ficar na porta para não deixar os
negros entrarem. Destaca ainda Tanajura a presença de valentões negros, como
Benedito sem beirada, Negro Vicente e Mata Neco.
Trabalhos mais recentes, como os de Maria Aparecida de Souza (2001) e
Isnara Pereira Ivo (2004), também muito circunstancialmente falam da presença
negra na região de Vitória da Conquista. Para Sousa (2001), haveria poucos negros
na cidade desde o período em que era apenas um Arraial, e os poucos que aqui
existiam viviam com certa liberdade, podendo se deslocar de uma região para outra
213
Ver VIANA, Anibal. Revista Histórica de Conquista. Vitória da Conquista: Brasil Artes Gráficas,
volume 1, 1982., p. 140, 142 e 406.
214
Mais detalhes ver ORRICO, Israel Araújo. Mulheres que fizeram história em Conquista. Vitória da
Coqnuista: Brasil Artes Gráficas, 1982, p. 169.
.
143
sem muitas dificuldades. Ivo (2004) também assinala a pequena quantidade de
cativos e destaca a existência de um batuque na Imperial Vila da Vitória.
O que percebemos nesses estudos é uma assertiva de que a presença negra
na cidade teria sido irrelevante (vide Souza e Ivo) e os negros que se destacavam
era por sua “sensualidade” (tais como Faustina Gonçalves da Costa, Fulô do
Panela), “valentia” (os capangas negros descritos por Aníbal e Tanajura) ou aqueles
que assumiam os valores dos brancos ( a exemplo de Maria Rogaciana). Os únicos
que se dedicaram a analisar aspectos dessa presença negra na cidade foram
professor Itamar Aguiar (1999) com um estudo sobre um recorte especifico, a
religiosidade de matriz africana, e a professora Graziele de Lourdes Novato Ferreira
(2005), que, estudando uma comunidade quilombola em Planalto, região vizinha, faz
uma incursão na realidade de Vitória da Conquista.
Constitui-se tarefa das novas pesquisas sobre a cidade de Vitória da Conquista
desconstruir este imaginário coletivo que concebe Vitória da Conquista como sendo
essencialmente formada de uma matriz branca. Tal fato desconsidera a realidade
plural do município: a existência de bairros eminentemente negros, as comunidades
quilombolas, as diferentes manifestações artísticas de matriz africana etc.
.
144
ANEXO D: PERSONAGENS NEGROS-MESTIÇOS DA HISTÓRIA DE VITÓRIA DA
CONQUISTA
Alguns personagens negros por uma ou outra razão não foram inclusos em nossa
dissertação, por entender a necessidade de propiciar mais estudos locais sobre a
temática negra, abaixo faremos uma descrição deles a partir das transcrições
existentes no livro de Aníbal Viana (1982) e Mozart Tanajura (1992).
José Nique
“Era um dos audaciosos ‘capangas’ dos Meletes. Este famoso ‘jagunço’ era mulato,
corpolento, de impressionante coragem, de sangue frio, atributos estes que lhe
fizeram um homem temível. A crença popular tinha na pessoa de “Zénique”, como
imune a tiros de arma de fogo, ‘tinha o corpo fechado”. Depois da luta entre Peduros
e Meletes desapareceu dessa zona, homiziziando-se no município de Itabuna, onde
se tornou célebre por suas façanhas. Havendo uma briga entre ele e mais de 20
pessoas, como afirmaram pessoas sérias, foi morto á machadadas e á “mão de
pilão”. (VIANA, 1982, p. 143).
Catueira
“Não se descobriu o seu nome nem prenome. Era mudo, porém não era surdo.
Mestiço, corpolento, perigoso quando lhe chamava pelo apelido de ‘Catueira’. Corria
a cidade toda atrás da meninada tendo apedrejado alguns meninos muitas vezes”
(VIANA, 1982, p. 422).
Sebastião Muniz de Farias
“O Sr. Sebastião Muniz de Farias, era Major da Guarda Nacional, com patente,
espada e farda, mulato corajoso e elemento de destaque da sociedade, conhecido
pelo nome de Major Tião Farias. As vezes tomava pinga em excesso provocava
arruaças e era temido geralmente por ser tido como um valentão. Certo dia, tomando
cachaça, “fechou o beco da Tesoura”. Não houve quem o repelisse, não apareceu
um homem que pudessem se medir forças com o Major Tião. Comandava o
.
145
destacamento policial da época um sargento de nome Benigno, o qual foi chamado
para conter o Major Tião que estava alterando a ordem, causando o Pânico no Beco
da Tesoura. O Sargento enviou reforços e bons modos para que o Major Tião não
continuasse com arruaças. Dizia para o sargento: _”Faça meia volta, eu sou major”.
Irritado com as provocações do Major, o sargento usou a força para reprimir o major
arruaceiro , aplicando-lhe uma sova com um cacete que portava. O caso provocou
grande comentário do povo que aplaudiu o gesto do sargento, e comentavam os
críticos da época, que: o “Major apanhou do sargento”... E desta data para frente o
Major Tião Farias tornou-se mais moderado... “(VIANA, 1982, p.p. 425- 426)
Sabina Preta.
“Tinha sua residência na travessa que liga á Rua 2 de Julho á Rua Góes Calmon e
que ficou com o nome de ‘Beco de Sabina’. Casa de sua propriedade. Maníaca, era
boa engomadeira profissional, ocupação que lhe dava rendimento para a sua
manutenção. Trajava-se constantemente de branco, usava bracelete e pescoceira
de aljôfar dourado. Era solteirona e morava sozinha. De compleição alta, magra.
Dizia ser descendente da rainha de Sabá e ficava contente quando se lhe tratasse
de ‘Rainha’. Aos domingos de sua residência rigorosamente trajada em direção á
Igreja onde tinha uma cadeirinha para ajoelhar-se”. (VIANA, 1982, p. 422)
“Seu nome completo era Sabina Maria de Jesus, como estava na sua certidão de
nascimento. Sabina do Ouro foi o povo que lhe deu. Nasceu de um fato como todo
apelido.Este fato foi o seguinte: estando empregada em casa de um árabe,
desapareceu deste uma peça de ouro, que foi roubada por alguém. Em Sabina, que
era honesta recaiu a culpa. Foi levada a Policia, mas nada ficou apurado. Deste dia
em diante, ficou impressionada, dizendo que era rainha e como rainha deveria ser
respeitada. O povo passou, então a chamar-lhe Sabina Rainha de Ouro”
(TANAJURA, 1992, p. 167)
“Passava a maior parte do tempo nas casas de pessoas ricas como serviçal, mas
tinha sua casinha na rua que ficou conhecida como Beco Sabina de Ouro ou Beco
da Rainha. Era boa quituteira. Aos sábados, vendia na feira da Rua Grande os seus
produtos: arroz de leite, canjica, doces de leite e de coco, que eram expostos em
.
146
cima de uma toalha branca, estendida sobre a pedra. Um dia colocaram na sua
cabeça que uma rainha não podia ficar solteira. Sabina, então, apaixonou-se pelo
filho do Juiz de Direito da Comarca Dr. Araújo, aquele da briga entre meletes e
peduros. Tendo o Juiz ido embora com sua família, Sabina ficou perturbada
completamente e dizia que todo o dinheiro da cidade não daria para comprar a sua
casa, porque era toda coberta de ouro. Já bastante idosa, morreu sem deixar
herdeiros e a sua casinha, que não era de ouro desapareceu. Mas ficou a rua que o
povo imortalizou com o seu nome, hoje, infelizmente, desfigurada com o nome alheio
ás tradições da cidade”. (TANAJURA, 1992, p.167).
Maçu Caminhão
“Residia na Baixa da égua. Era um caboclo forte, o melhor carregador da cidade. Os
barraqueiros gostavam muito dele e o contratava opara carregar suas mercadorias.
Tinha tanta força que trazia dos armazéns dois sacos de açúcar. Preso um dia pela
policia , porque estava embriagado, reagiu e foi espancado barbaramente. Deste dia
em diante, doente e sem forças, nunca mais conseguiu servir ao povo, seu rei e
senhor”. (TANAJURA, 1992, p. 169).
Benedito Sem Beirada
“Negro alto, espadaúdo, barbas encarapinhadas, terrível e brutal, nova aparição de
Lucas de Feira. Natural de Umburanas, tinha o olhar vítreo de cascavel de carreiro,
atrevido e fuzilante”. (TANAJURA, 1992, p.208)
Mata Neco
“Mulato baixo, barbudo, expressão alegre e gabola. Jactava-se de ter matado muitos
adversários. Quando ia pelo caminho dizia – os urubus o acompanhavam, pedindo-
lhe que matasse, porque estavam com fome. E Neco matava para agradar os urubus
famintos”. (TANAJURA, 1992, p. 207).
.
147
ANEXO E – Cor e Procedência dos Escravos em Vitória da Conquista e Maracás
Maracás (1870 – 1888).
Africano 6
Preta 11
Fula 1
Total 18 14.63%
Crioulo 13
Cabra 12
Mulato 2
Pardo 65
Total 92 74.80%
Parda
Acaboclada
1
Total 1 0.82%
Sem
Referência
12
Total 12 9.75%
Total
Geral
123 100%
.
148
Vitória da Conquista (1878 0 1888)
Tabela n
o
5
Relação da cor dos escravos com base em dados colhidos nos
inventários do Fórum João Mangabeira (1878-1888)
Crioulo Fula Preto Mulato Cabra Parda Africano
S.
Declar.
Total
82 3 23 4 47 7 15 20 201
Gráfico n
o
1
Cor dos Escravos (I) (1878-1888)
A
fricano
7%
S. Declar.
10%
Parda
Crioulo
3%
42%
Cabra
24%
Fula
1%
Mulato
Preto
2%
11%
Fonte: NASCIMENTO, Washington S. Padrões e Tendências das Enfermidades e
Causas Mortis entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-
1887). In: IIII Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade. Vitória
da Conquista - Bahia: Eureka, 2006b. v.1.
.
149
ANEXO F – A Mulher escrava na Imperial Vila da Vitória (1860 A 1887)
Parte significativa desse levantamento foi feito por Eliana Pólvora Dias entre
no ano de 2006, quando então ela era discente do curso de História e minha
orientanda na monografia de final de curso. Nessa pesquisa, foram analisados 64
inventários (documento que discrimina os bens do inventariante para um posterior
testamento), do período de 1860 a 1887.
Com base nesses inventários, foi feita uma pesquisa acerca da presença de
mulheres escravas na Imperial Vila da Vitória. Uma discussão sobre as tabelas pode
ser encontrada no artigo “A Mulher Negra no Arraial da Conquista (Século XX)”
publicado por mim e por Eliana Pólvora Dias e que se encontra nos anais do VI
Colóquio do Museu Pedagógico, realizado no ano de 2006. Abaixo apenas a relação
das tabelas construídas:
Tabela 1
ESCRAVOS EM VITÓRIA DA CONQUISTA
1860-1887
Homens 127
Mulheres 121
Total 248
Tabela 2
COR DAS MULHERES
Crioulas 34
Cabras 30
Pretas 10
Africanas 8
Fulas 3
TOTAL 85
.
150
Tabela 3
IDADE/QUANTIDADE DAS NEGRAS EM
VITÓRIA DA CONQUISTA
DE 0-30 70 Mulheres
DE 30-60 32 Mulheres
Acima de 60 6 Mulheres
Total observado 108 Mulheres
Tabela 4
TRABALHO EXERCIDO PELAS NEGRAS
Lavoura 11 Mulheres
Doméstico 11Mulheres
Cozinheira 1 Mulher
Fiandeira 2 Mulheres
Costureira 1 Mulher
Gomadeira 1Mulher
De qualquer trabalho 10 Mulheres
Total 37 Mulheres
Tabela 5
CRIANÇAS NEGRAS ABAIXO DOS 12 ANOS
Meninos 24
Meninas 35
TOTAL 59
.
151
Tabela 6
DOENÇAS ENTRE A POPULAÇÃO NEGRA
FEMININA
Aleijada 2 Mulheres
Muda-surda 2 Mulheres
Alienação mental 1 Mulher
Inflamação no fígado 1 Mulher
TOTAL 6 Mulheres
Tabela 7
V
ALOR DAS ESCRAVAS NEGRAS EM
VITÓRIA DA CONQUISTA
De 06 aos
30 anos De 500H000 à 1:300H000
A
cima dos
30 anos 500H000 à 5H000
Fonte:
NASCIMENTO, W. S. ; DIAS, E. P. . Cozinheiras, Fiandeiras, Gomadeiras...: A
Escrava na Imperial Vila da Vitória (Século XIX). In: Anais do VI Colóquio do Museu
Pedagógico, 2006, Vitória da Conquista. Anais do VI Colóquio do Museu
Pedagógico, 2006.
DIAS, Eliana Polvora Dias. Cozinheiras, Fiandeiras, Gomadeiras...: A Escrava na
Imperial Vila da Vitória (Século XIX). 2006. Trabalho de Conclusão de Curso.
(Graduação em História) - Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Orientador:
Washington Santos Nascimento.
.
152
ANEXO G – Curandeiros na região de Vitória da Conquista (1859 –
1929)
215
Os curandeiros eram personagens importantes naquele universo social. Quase
sempre descendente de africanos ou indígenas, desenvolviam uma função religiosa
e médica, mas, por lidarem com saberes não provenientes do universo cultural
europeu e por serem de natureza ambivalente (poderiam tanto fazer o “mal” quanto
o “bem”), causavam temor naqueles que defendiam padrões de civilidade em uma
cidade do sertão baiano
216
.
A primeira representação encontrada de um curandeiro na região do Sertão da
Ressaca aparece em um documento de 1859, localizado no Arquivo Público do
Estado da Bahia, pela historiadora Antonieta Miguel. Trata-se de um ofício enviado
pela presidência da província ao juiz municipal da Imperial Vila da Vitória, em 13 de
maio de 1859, em que determina dever esse juízo expedir as mais terminantes
ordens,
[...] para que seja preso e competentemente processado o preto Antonio
Gradia, não só de usar a medicina, sem que esteja para isso autorizado,
como porque segundo informou a vossa senhoria o doutor Juiz Municipal
desse termo, tem feito aplicações em seus curativos de hervas venenosas,
que dão resultado a perda da razão, naqueles que por infelicidade se
sujeitam a tal aplicação
217
”.
A idéia construída é a de um “preto” que, sem estar autorizado, usava
medicamentos que levavam à perda da razão. Cor e comportamento, marcas
inegáveis do racismo acham-se presentes nessa descrição. Vê-se também a idéia
de que a medicina era só para aqueles que estavam autorizados. E quem eram
esses? Pessoas com ascenção social que tinham conseguido realizar o curso de
Medicina, provavelmente brancos.
215
Essa discussão sobre curandeiros inicialmente estava no corpo do texto, depois foi deslocada para
o anexo, para tornar o texto mais “limpo”.
216
Segundo Melo e Souza (1987), essa imagem ambivalente dos curandeiros/feiticeiros era comum
no período colonial brasileiro, pelo fato de tais indivíduos terem o poder de restituir a saúde dos
enfermos, mas, também, de desencadear malefícios, daí o seu duplo caráter. Serge Gruzinski (2003)
também nos diz que, no México Colonial, a diferença entre o curandero do bem e curandero
malfazejo, o “devorador de corações”, era muito tênue e dependia das circunstâncias. O que esses
autores nos sugerem é que, para além da questão de cor, o próprio curandeiro é uma figura
ambivalente.
217
Seção Colonial e Provincial, Presidência da província, Seção Judiciário, Período 1837 – 1872,
Maço 2647 (1860). APEB. Documento Gentilmente cedido por Antonietta Miguel
.
153
Outro curandeiro é representado em um processo de 1874; trata-se do
“miserável preto velho de nome Manuel”, morador da Fazenda da Batalha, local
onde se deu o último enfrentamento de maiores proporções entre europeus e
indígenas. Como vemos nesse documento, já é perceptível a presença de negros na
localidade, a qual teria vindo anterior ou posteriormente ao enfrentamento. Os
documentos e a bibliografia não são conclusivos sobre isso.
No processo, vemos, nas descrições das testemunhas, um homem negro,
idoso, miserável, que perambulava por vários lugares e que morrera espancado; por
outro lado, vemos Manuel, tido como valente, que dizia que iria “deitar uma tocaia”
em seus desafetos e, segundo uma dessas testemunhas, dizia que tinha poderes
sobrenaturais e deveria ser respeitado por isso:
[...] disse que sabe por ver que no dia de ontem das três para as quatro
horas da tarde estando ele testemunha na rua do Espinheiro vira o finado
Manoel Criolo mastigando um dente de alho e sobre o que dizia que quem
mastigava era feiticeiro
218
.
Temos aqui um homem descrito como “criolo” que usa alho e se diz
feiticeiro
219
. Importante destacar a dimensão dessa atitude de Manoel como um
mecanismo de enfrentamento social, segundo Carlo Ginzburg “ [...] a feitiçaria pode
realmente ser considerada, sem exagero, uma arma de defesa e ataque nas lutas
sociais” (GINZBURG, 1989, p. 21)
220
.
Provavelmente uma outra curandeira existente na região encontrei na região
de Maracás em finais da década de 70 do século XIX em uma rua
predominantemente formada por negros, a rua dos Periquitos vivia Maria Jacaré era
em sua casa que alguns ex-escravos, nascidos na África preferiram morrer, este é o
caso, por exemplo, de João Africano, solteiro, liberto, morto em 1877 aos 65 anos de
Moléstia Interna. Também Nicolau Africano, ex-escravo de Maria Jardim,
Encontrava-se livre e morreu em 1880, aos 80 anos de velhice e José Cobra de 100
anos, ex-escravo do Major José Antonio Ribeiro de Novaes, Solteiro, liberto, morrera
218
Processo 1874. Caixa: Diversos 1874. AFJM/BA
219
Importante destacar que na pesquisa que fez sobre as benzedeiras de Vitória da Conquista,
Grayce Bonfim (1999) nos diz que o alho era um dos principais elementos utilizados para curar
doenças e para livrar o corpo de malefícios. Outro fato interessante é que as testemunhas
caracterizam Manuel como sendo um “Preto Velho”, seria ele pertencente a algum terreiro de
umbanda? Incorporaria alguma entidade? A documentação não toca nestas questões.
220
.
154
de Velhice em 1880. Todos estes óbitos foram registrados por uma única pessoa
Joaquim Nagô, que provavelmente tinha uma relação de proximidade com Maria
Jacaré
1
. Quem seria Maria Jacaré. Algumas hipóteses podem ser levantadas,
poderia ser ela, por exemplo, uma curandeira que atraia doentes na busca para a
cura de seus males e/ou ainda uma líder religiosa, procurada nos momentos finais
da vida pelos enfermos
221
Para o início do século XX, não localizei muitas referências a curandeiros. Uma
das poucas pode ser encontrada na obra de Viana (1982). Trata-se de Rufina, mãe
de Rufino, um dos capangas mais famosos de Vitória da Conquista, com
participação importante no conflito entre dois grupos políticos locais, os meletes e
peduros em 1929. Segundo Viana, Rufino dizia ter o corpo fechado por sua mãe
Rufina. Essa, de acordo com depoimentos colhidos por Viana, dizia: “Enquanto essa
Negra veia bater a pestana, fogo de pólvora não queima meu fio Rufino” (VIANA,
1982, 142).
221
Para mais informações ver NASCIMENTO, Washington Santos. Padrões e Tendências das
Enfermidades e Causas Mortis entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-
1887). In: IIII Encontro Estadual de História: Poder, Cultura e Diversidade. Vitória da Conquista -
Bahia: Eureka, 2006. v.1e NASCIMENTO, Washington Santos. Maria Jacaré, Joaquim Curandeiro e o
Samba na casa de Pedro Fumaça: Elementos do Universo Cultural da população Negra do Sertão
Baiano (1850-1888) In: Anais do VI Colóquio do Museu Pedagógico, Vitória da Conquista, 2006.
.
155
ANEXO H - Alforrias em Vitória da Conquista I
Seção Colonial e Provincial
Presidência da Província
Serie Judiciário
Período 1874-1889
Maço 2648 (1877)
Ilmo e Exmo Senhor
Em data de 3 de outubro do ano passado dignou-se vossa excelência comunicar-
me, em resposta ao meu oficio de 3 de Setembro, que havia devolvido , para o fim
conveniente, á junta de classificação dos escravos deste município a copiados
respectivos trabalhos , que a vossa excelência fora remetida e isto para não estarem
de acordo com o disposto no artigo 27 do regulamento numero 5135, de 13 de
Novembro (?) de 1872, em razão de não ter a classificação abrangido a todos os
escravos do município.
Deixei, pois, em virtude do que que havia sido comunicado, de dar pronto
cumprimento as disposições dos artigos 41 e 42 do citado regulamento e esperava
pelo novo e mais completo trabalho da junta classificadora.
Ultimamente, acabo de receber, por parte dessa presidência, um exemplar do
decreto numero 6341, de 20 de Setembro do ano passado alterando varias
disposições do regulamento a que venho referir-me, e esse decreto no seu artigo
segundo dispõe que a classificação para as alforrias compreenderá somente
aqueles escravos que possam ser libertados coma importância da quota distribuída
ao município. Ora, a classificação procedida pela junta deste município foi, em
verdade, parcial, mas abrangendo o número de 19 famílias escravas, isto é um
número muito considerável em relação à quota destinada a libertação dos escravos
do mesmo município, a qual cota é de 3:744$684, e, por pequena não pode
favorecer á todos os escravos classificados.
.
156
Neste pressuposto (?) devo cumprir o disposto nos artigos 41 e 42 do precitado
regulamento, aproveitando a classificação já feita ou deverei esperar que outra
classificação se faça mais limitada e como que mais de acordo com a disposição do
artigo 2º do decreto raríssimo, sob o numero 6341 (?).
Para o meu governo aguardo a decisão de vossa excelência.
Deus Guarde a Vossa Excelência
Vitória, 1º de Janeiro de 1877.
Ilustríssimo Exmo Senhor Presidente da Província
O juiz Municipal da VitóriaJosé Cardoso da Cunha.
.
157
ANEXO I - Alforrias em Vitória da Conquista II
Seção Colonial e Provincial
Presidência da província
Serie Judiciário (juizes Vitória)
Período 1874-1889
Maço 2648 (1875)
Ilmo e Exmo Senhor
Vitória Maio 22
Em resposta ao oficio circular de Vossa excelência, de 31 de março último, tenho a
honra de remeter a vossa excelência as duas relações juntas, contendo o número
dos escravos manumitidos neste termo em juízo e fora dele durante os anos de 1872
á 1874, e cabe-me, aqui, declarar a vossa excelência que, não obstante não constar
dos cartórios deste auditório, sei, contudo, que no dia 14 de março de 1873 o
reverendo cônego, José Muniz Cabral Leal de Menezes, vigário desta freguesia,
alforriou a sua cria, menor senhorinha.
Deus guarde a vossa excelência
Imperial Vila da Vitória, 22 de maio de 1875.
Ilmo e Exmo Senhor Presidente da Província
O Juiz Municipal
José Cardoso da Cunha
Pedro José com onunciada – Cavalheiro da Imperial Ordem da Rosa e da de Cristo,
condecorado com as medalhas do mérito militar e campanha do Paraguai, capitão
honorário do ----------------- (?), serventuário vitalício dos ofícios do segundo tabelião
do público judicial e notas, escravidão das execuções cíveis e crimes e do juízo
desta Imperial Vila da Vitória para S. M. O. -----(?)
Em observância a portaria do ilustríssimo senhor Doutor Juiz Municipal deste termo
certifico e faço certo, que revendo os autos e livros do cartório a meu cargo, durante
o período do primeiro de janeiro de mil oitocentos e setenta e dois a trinta e um de
.
158
Dezembro de mil oitocentos setenta e quatro, dos mesmos conta que forma
manumitidos no referido espaço de tempo quatorze escravos: a saber. Bernarda
Africana E Isidoro Criolo manumitidos em juízo este por não ter sido matriculado e
aquela por haver requerido e depositado a quantia de seu valor a forra do juízo d
Carta conferida por seus senhores lançados nos livros de notas os escravos
seguintes. Roque criolo, Casimira cabra, Ana Parda, Balbina Parda, Felismina
Criola, Joaquim Criolo, Jacob criolo, Lourenço criolo, Manuel Criolo, Verônica criola,
Felippa Criola, Florinda Criola. O referido é verdade em fé do que passo a presente
certidão.
Imperial Vila da Vitória, 17 de Maio de 1875.
Sr. Pedro José c/ amsiada Escrivão que o escrevi e assinei.
Pedro José c’Onconda.
José Antonio de Andrade 1º Tabelião e Escrivão de órfãos nesta Vila da Vitória em
termo, por nominações de S. M. O Imperador que Deus Guarde. Certifico que em
cumprimento da portaria do doutor Juiz Municipal e de órfãos, José Cardoso da
Cunha, revendo os autos do meu cartório, e os livros de notas, se vê dos autos, que
obtiveram carta de liberdade judicial no ano de 1872, Felisardo crioulo, em 1874,
Isidoro Criolo pertencentes à herança do finado Serafim Pereira Arruda, Bernardo
Crioulo e Esperança, Africana, Manuel e Maria Feliciana pardos e Bernardo crioulo,
e por sentença do doutor Juiz d Direito, Roque, Inácio, Ambrosio e Constantina.
Todos crioulos; nada constando de escrito, quanto ao ano de 1873. Dos livros de
Notas se vê, que forma manutenidos na posse de sua liberdade em o ano de 1872,
Joaquina Africana por sua senhora Ana Batista. Domingos cabra,por seu senhor
José Nunes Bahiense. Cremencio Cabra por sua senhora ... (?) Maria da Silva. Em
1873 Matheus, cabra, com condição, por ser do senhor Manuel José da Silva.
Crispiana parda , manutenida na metade, por ser de senhor Francisco Inácio da
Rocha. Em 1874 Ruonardo crioulo, por seu de senhor José Antonio de Lacerda e
Albino, pardo, por seu de senhor Ruberto Rodrigues de Moura. Nada mais consta
quanto aos anos de 1872, 1873 e 1874 como me foi ordenado por portaria. Em Fé
do que passo a presente. Vila da Vitória, 11 de Maio de 1875.
José Antonio de Andrade.
.
159
ANEXO J - Cordel na Integra feito por Gabriel, no Arraial dos Poções (1875).
Senhores eu estou pronto
Venham prestar atenção
Um causo que aconteceu
Com Maria de Latão
Senhores dão Licença
Que quero explicar
Depois que Deolino morreu
Olha Maria como está
Muito dos senhores
Não conhece Maria
Mora na rua de Baixo
Bem na beira do caminho
O pai na rua de cima
Olhando para o padrim
A filha na rua de cima
Roubando o Raimundim
Torta como Umbelina
Nem tão cego como Latão
Nem tão Ladra como Maria
Que furta até no balcão
A maria de doze anáguas
Bastante serpentina
Latão tão bem pinta
Negocio bem a surdina
Maria de Doze Anaguas
Para Influencia do Mundo
Mais quem estava sofrendo
Era a casa de Raimundo
Logo Naquele dia
[...] Latão foi delegado
Raimundo tomou de Maria
Trinta mil reis furtado
Este é o que me consta
Quando foi o que ele tomou
Julgava ser gente da casa
E Maria foi quem furtou
Raimundo não sabia
Do roubo que ele sofria
[...]
.
Dele vender a negra sufia
160
A mulher se apegou
Com os santos de sua devoção
Que ele lhe mostrasse
Quem era este ladrão
Falou esta palavra
Com dor no coração
De mandar dizer uma missa
E o ver com os pés no chão
Logo no outro dia
Em cima do balcão
Raimundo chamou Maria
Venha ver o ladrão
Ficou ela muito contente
Em com bastante alegria
Perguntando quem era o ladrão
Ele disse que era Maria
Ela se desanimou
Não me diga isso não
A Maria que furtou
Foi Maria de Latão
Latão disse que não vinha
Mais nesta rua de cima
Porque cá só tinha ladrão
E porção de assassinos.
Como ele agora está
Querendo ser cidadão
Falando da rua de cima
E lá mesmo é que tem ladrão
Raimundo mais que depreca
Amarra a negra Sofia
Indo com ela na corda
Ela bateu na porta de Maria
Raimundo na ponta da corda
Vendo o que a negra dizia
Ela bateu na porta
Mim dá o dinheiro Maria
Raimundo foi enxergando
Com muita alegria
Maria foi intregando
Todo o dinheiro que tinha
Ele foi arrecebendo
.
161
O dinheiro com as mão
Foi logo dizendo
Já sei quem é o ladrão
Alegre que ele ficou
Prejuízo que sofria
Disse ela em voz baixa
Você é uma ladra Maria
Ele chamou Latão
Assim que amanheceu o dia
Que estava roubado
Por Sofia e Maria
Raimundo estava falando
João Chaves disse que não
A negra tinha ido ver
Era um par de butão
A negra bateu na porta
Isto é muito certo
Maria de quem é os butão
São de Felisberto.
Raimundo disse mesmo
Que ainda tinha redevu
Que tem uma nopretissa (?)
E lá tem uns baús
O Latão com estas fala
Foi ficando cheio de angustia
Raimundo falou com Puluca
[...] mandado de busca
[...]
Por influência do mundo
Arretirou os baús
Franqeou a casa Raimundo
Raimundo requer busca
Pois falou com Puluca
Diga a Latão e a Maria
Que o ladrão e a mulher de Juca
Foi logo naqueles dias
Que veio [...] João
Quando faltava qualquer coisa
Raimundo chamava Latão
Venha cá Latão
Venha ver o que me faltou
Olha que tudo isto
.
162
E Maria que furtou Se Maria não se incomodar
Latão baixava a cabeça
Com a cara no chão
É bem feito para o torto
Chame agora os outros ladrão
No dia que João Chaves
Casou as duas filhas
Maria deu vinte mil reis
Para comprar duas novilhas
Latão para falar dos outros
Juro que infara
Mais ninguém cuspa para cima
Que não lhe caia na cara
Amancio bate sentido
Não se fie em todo mundo
Olha Maria que não te faça
O que ela fez a Raimundo
Já me despeço
A Deus que me arrretiro
Até quando cá tornar
Será breve a minha vinda
Voz do povo
Quem não quer ser pele
Não vista o lobo
.
ANEXO L – Comemoração do 13 de Maio em Vitória da Conquista
164
ANEXO M - Biografia de Maria Rogaciana escrita pelo jornalista Bruno Bacelar e
transcrita em Viana (1982)
Maria Rogaciana não foi escrava. Filha e irmão de escravos, teria vindo aio
mundo depois da Lei do Ventre Livre), promulgada em 28 de Setembro de 1871.
Menina crescida viu seus irmãos serem vendidos para as matas de café, como era
conhecido entre os negros nas senzalas, o Estado de São Paulo. E a cena dos seus
irmãos vendidos não saiu jamais, do seu pensamento e era sempre recordada por
suas palavras em momentos oportunos. Era mágoa dolorosa em seu coração a
partida de seus irmãos jovens e fortes para o cativeiro na paulicéia, onde se
plantava na época o café que seria uma das riquezas do Brasil.
Não se sabe quando ela veio para esta Cidade no século passado, sem
dúvida ainda muito jovem, como serviçal do Padre José Muniz Cabral Leal de
Menezes, de saudosa memória e que grandes serviços ao ensino desta cidade
prestou. Filha de ilustre sacerdote, em casa de quem faleceu há alguns anos
passados, era querida, por toda a população.
Maria Rogaciana da Silva,alem de dedicação inesquecível para com os que
lhe deram zelo e abrigo na vida, possuía entre outros dotes apreciáveis, elevados
sentimentos de gratidão e reconhecimento, o que a fez, individualmente, sozinha,
sem recursos, somente pedindo as pessoas amigas e conhecidas, promover
brilhantemente, manifestação ao 13 de Maio, todos os anos, com passeata cívica
pela Cidade, aplaudida pela população.
A festa tomou cunho tradicional pelo brilhantismo e entusiasmo. Mandou ela
compor um hino ao 13 de Maio o qual foi musicado pelo maestro Francisco
Vasconcelos e que era entoado na comemoração do dia da libertação dos escravos.
Maria Rogaciana enquanto viveu não deixou desaparecer as
comemorações ao 13 de Maio, com passeatas cívicas, conduzindo o préstito
devidamente engalanado com flores e coroas de louro, os retratos da Redentora, de
José do Patrocínio e Ruy Barbosa.
Pela princesa Isabel ela tinha verdadeira devoção e fitava embevecida
verdadeiramente enleiada, chorando sempre que recolhia o prétito em sua alocução,
característica pela naturalidade de sua linguagem, saudando sob forte emoção o
retrato da Redentora.
.
165
Maria Rogaciana desapareceu assim: símbolo de reconhecimento e
gratidão, amiga humilde da cidade e do seu povo e entusiasta do 13 de Maiom],
estava que amava e promovia. Com sua morte também o 13 de Maio nunca mais se
festeja nesta cidade”
Jornalista Bruno Bacelar
(Fonte: Jornal A Semana, 22 de Junho de 1922)
.
166
ANEXO N – Festa de Nossa Senhora das Vitórias.
.
167
ANEXO O – Planta da Nova Matriz
.
168
ANEXO P – Terno de Reis em Vitória da Conquista.
(Fonte: Jornal “O Combate”, 11 de Janeiro de 1930).
.
169
ANEXO Q – Festa do Divino Espírito Santo
.
170
ANEXO R - Festa de são Benedito
Órgão Literário 1915
.
171
ANEXO S Localização aproximada de onde se deram parte dos conflitos
analisados na dissertação.
Envolvidos Data do Acontecimento Lugar Nome hoje
Joao Jagunço 1870 Barra da Vereda e
Fazenda Casca
Barra da Vereda
fical no atual
distrito de
inhobim, zona
rural de Vitória
da Conquista
222
.
Como não está
claro no
processo pode
ser também a
“fazenda Vereda”
atual região de
Belo Campo
223
.
Índios Joaquim e o
escravo Vitor
17 de Maio de 1877
Gyboia
Atual distrito de
Inhobim, antes
chamado de
Barra do Jibóia
de Inhobim
224
Criola Maria Bernarda 1872 Rua do Espinheiro –
IVV
Francisco
Santos
225
Inocêncio Criolo 1889
Mulato Candido,
Ancelsmo da Silva
Brasieliro etc.
1888
Imperial Vila da Vitória Vitória da
Conquista
Mulatos 1919
Mulato “olho de gato” 1929
Parda Ana Maria dos
Reis
1922
Umbelina e Benedito 1875 Arraial dos Poções
Elias Aneceto de
Santana
1876 Imperial Vila da Vitória.
Tadeu 1896
Juviniano e Vicente 1897
José Pretinho 1915 José Gonçalves
Vicente Antonio da
Silva (é o mesmo de
1897??)
1922 Olho dagua de Vital
João Felix 1927
Libertos 1929 Belo Campo
Velha Africana 1905 Encruzilhada
Festão de São
Benedito
1915 Encruzilhada
Festa de Reis 28 de Novembro de
1915
José Gonçalves
Curandeiro Antonio 13 de Maio de 1859
222
Informações de Ruy Medeiros, presente na obra “O município da Vitória” na pagina 85.
223
Informação de Ruy Medeiros presente na obra “História e Cotidiano no planalto da Conquista” na
pagina 73.
224
Informações de Ruy Medeiros, presente na obra “O município da Vitória” na pagina 129
225
Idem
.
172
Gradia
Curandeiro Joaquim
Bandeira
1874 Olho dagua e Bomba Provavelmente
localizades
situadas na serra
da Bomba, hoje
na região de
Belo Campo
Preto Velho Manuel 1874 Fazenda Batalha
Samba Pedro Fumaça 1869 Imperial Vila da Vitória
Samba na casa de
José Coelho Sampaio
1878 Rua do Espinheiro
Brincadeira na casa
de Pedro Fumaça
1883 Rua do Espinheiro
Sabina s/d Beco da Sabina Rua Moderato
Cardoso
226
226
Idem
.
173
ANEXO T Moreno Sapateiro: Um Estudo de Caso sobre a presença negra em
Vitória da Conquista/BA
227
Um dos primeiros entrevistados foi Ariosvaldo Cardoso dos Santos,
popularmente conhecido como “Moreno”, um dos mais antigos sapateiros de Vitória
da Conquista. A visita com ele foi agendada para o dia 18 de Agosto de 2006, no
turno da manhã, às 8:00 horas. Cheguei às 8:20. Diante do meu atraso, ele me fez
esperar cerca de uma hora antes de iniciarmos a nossa conversa, deixando claro
que não aceitaria deslizes. De início, o que me impressionara ao chegar a sua casa
foi o fato de um homem de mais de 80 anos ainda estar trabalhando no mesmo
ofício com que iniciara a vida. Mesmo contando com um auxiliar que fazia os
trabalhos mais pesados, ainda continuava a fazer trabalhos leves, como furar
buracos em cintos.
A sua casa se destaca pela arquitetura antiga e por concentrar moradia e
trabalho. Na entrada, a foto de três de seus principais troféus: a medalha de
comendador recebida em Brasília; as terras que conseguira comprar; e Nilton
Gonçalves, antigo líder político de Vitória da Conquista, com quem dizia ter mantido
boas relações.
Foto 1- Casa de Moreno (Autor: Washington Nascimento)
227
NASCIMENTO, Washington Santos. Mestiçagens e Identidades negras: Um olhar a partir da
relação índio-negro In; Publicatio UEPG. Ciências Humanas, Ciências Socias Aplicadas,
Linguística, Letras e Artes, v. 2, 2008.
.
174
Sobre a mesa da sala mais de 30 cartelas de remédios, com os quais
tentava segurar seu coração, que não parava de crescer. Morando sozinho,
cozinhava e fazia pequenos trabalhos domésticos. A entrevista se dera no sofá da
sala, em frente à mesa de remédios e discos de vinil antigos. Fiz um roteiro baseado
na perspectiva de Paul Thompson (1998), no livro “A Voz do Passado”, onde ele
indica alguns passos e sugestões para se fazer um roteiro para trabalhar com
histórias de vida.
Foto 2- Sapataria do Moreno (Autor: Washington Nascimento)
Iniciei a entrevista pedindo que ele falasse o seu nome e a data de
nascimento, o que ele fez. Logo depois ele me disse que era “solteirão”, mas que
tinha seis filhos e que todos moravam em São Paulo. É importante destacar que
todos esses filhos foram com mulheres brancas. Para mim parece que ele já queria
deixar claro que ele, “moreno”, conseguira ter relacionamentos com “brancos”. Seu
pai viera de Santo Antônio de Jesus e era tropeiro; já sobre a sua mãe e sua
ancestralidade, faz a seguinte consideração:
A minha mãe foi neta de índios, aqui, entendeu. Ela sempre contava a
história que aonde que morreu o ultimo índio foi na praça Tanceredo Neves,
esse tempo eu num era nascido aindas. Que teve a vitória onde eles
terminaram com os índios. E a Vitória, sobrou o nome Vitória da Conquista,
porque também que foi a Vitória que eles ganharam, a batalha, dos índios,
né. E tem até uns lugarzim, perto aqui, do outro lado da serra, que chama
Batalha, ali tinha muito índio também, os índios vinha por aqui, do outro lado
da serra
.
175
Foto 3- Sapataria do Moreno (Autor: Washington Nascimento)
Percebemos que ele fala, tangencialmente, do fato de sua mãe ser neta de
índios. Para ele, o mais importante era mostrar para mim que conhecia a história da
cidade. Já a associação do seu passado à escravidão é logo rechaçada. Vamos à
pergunta feita a ele
ENTREVISTADOR: E o pai do senhor. O senhor estava falando da questão
dos índios, e o pai do senhor, na época da escravidão, dos esccravos tem
alguma história que o senhor lembra, assim ...
Esta questão estava no meu roteiro, entretanto a forma como eu a elaborei
na entrevista sugeria uma ligação de seu pai com a escravidão, o que é prontamente
rechaçado por “moreno”, que sobrepõe a sua voz à minha, dizendo enfaticamente:
“Não, não lembro, da escravidão eu num lembro, num lembro não”. Enfático, incisivo
para, depois, se deixar em um silêncio prolongado. Se sua ancestralidade indígena
era superficialmente tocada, o passado ligado à escravidão é enfaticamente negado.
Mas inegavelmente a sua identidade é atravessada pela mestiçagem, não
por acaso seu nome mais conhecido é “moreno”, foi este atalho, associado com a
sua competência junto a sua profissão, diz ele,
Tinha um mestre, Emiliano, era sapateiro e me chamou para, me botou pra
eu ir trabalhar com ele (...) Aí eu fui, trabalhei com ele, trabalhei com um
bocado de pessoas. E lá eu tive a oportunidade de aperfeiçoar mais do que
eles. Hoje eu tenho esses diplomas, porque fui mais caprichoso, mais
cuidado. Um serviço desse aí se eu não tiver em cima, não sai de jeito
nenhum. Tem que tá em cima, corrigindo. Como é que tá? Pra sair ao gosto
.
176
do freguês. Cê sabe, não é o dinheiro é difícil de ganhar, e a gente, honro
meu nome, eu trabalho hoje, como se diz na profissão. Não é tanto pela
necessidade da profissão. Graças a Deus o que eu tenho dá pra passar o
final da vida tranqüilo, mas é honrar o nome da profissão. Honrar meu nome
na profissão. É que eu tenho ganho muito nome. Pra você vê esse povão
vem de Salvador, tudo quanto é canto pra qui. Faz até vergonha dizer. Vem
até de São Paulo. Uns clientes meu vai pra lá e manda serviço, porque só
faço certo
Identitariamente, a questão de sua cor e de sua ancestralidade são
dirimidas pela sua competência como sapateiro. É assim que se identifica, é assim
que gosta de ser visto. A fala de “Moreno” nos sugere que a identidade é um
processo de escolha, entre alternativas socialmente dadas e as individualmente
procuradas. É claro que a análise de apenas um depoimento não nos credencia para
apresentarmos “conclusões”, mas, sim perspectivas de pesquisa. A realização de
mais entrevistas com certeza me dará maiores possibilidades de fazer análises,
principalmente nas comunidades remanescentes de quilombo. Infelizmente “Moreno”
não poderá mais conceder depoimentos, os remédios não seguraram mais seu
coração. Ele partiu em agosto de 2007. Até os últimos momentos de sua vida, ele
honrou sua profissão.
.
177
ANEXO U - Para onde foram os índios?
Foto: personagens e produção de cerâmica da Região da Batalha onde se deu
o último enfretamento entre europeus e Indígenas.
Fotos de Renata Ferreira
.
178
.
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