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ANA CLAUDIA BRIDA
A CRIAÇÃO FANTÁSTICA DO HUMANO E O CONHECIMENTO DE MUNDO:
CONTEXTOS PARA O ESTUDO DA OBRA FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY
UEMS / 2005
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ANA CLAUDIA BRIDA
A CRIAÇÃO FANTÁSTICA DO HUMANO E O CONHECIMENTO DE MUNDO:
CONTEXTOS PARA O ESTUDO DA OBRA FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEY
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Fundação Universidade Estadual do Mato Grosso do
Sul, curso de Letras/Inglês, sob orientação da Profª.
MSc. Luiza Mello Vasconcelos.
DOURADOS – MS
2005
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à Senhora Mary Wollstonecraft Shelley, pela genialidade
e sensibilidade para elaborar a história de criação humana mais
fantástica, significativa e representante do conhecimento de
mundo do ser humano, depois da Criação do Homem por Deus,
relatada no Gênesis, por Moisés.
Gostaria de agradecer primeiramente a Deus e ao
Senhor Jesus Cristo pela profunda e auxílio nos
momentos mais árduos da minha vida, e às pessoas que
colaboraram com a minha jornada nestes quatro anos e
muito me incentivaram a ser persistente:
Márcio de Alencastro Brida,
Maria da Silva Brida,
Neuza Bordini Brida,
E principalmente a um ser, que mais do que tudo
me foi a grande inspiração para enfrentar todas as
dificuldades e vencer todos os obstáculos:
Julia Brida Loureiro.
“Of what a strange nature is knowledge! It clings to the
mind, when it has once seized on it, like a lichen on the rock”.
Frankenstein – Mary Shelley
“Oh, que coisa estranha é o conhecimento! Uma vez
que alcançou o cérebro, agarra-se a ele como o líquen numa
rocha”.
SUMÁRIO
RESUMO........................................................................................
ABSTRACT.....................................................................................
1 INTRODUÇÃO.....................................................................................
2 FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEYA OBRA............................................
2.1 O romance gótico e o romance de ficção científica...........................................
2.2 História do romance Frankenstein.............................................................
2.3 Estrutura da obra Frankenstein.............................................................10
2.4 Análise dos Personagens.......................................................................
2.5 Foco Narrativo em Frankenstein...............................................................
2.6 O Tempo e o Espaço em Frankenstein........................................................
2.7 A Mitologia em Frankenstein...............................................................22
2.8 Filmografia.....................................................................................
2.9 A Intertextualidade presente em Frankenstein................................................
3 A CRIAÇÃO FANTÁSTICA DO HOMEM E O CONHECIMENTO DE MUNDO............
3.1 Conceito de Fantástico.........................................................................
3.2 A Criação Fantástica do Humano em Frankenstein...........................................
3.3 Conhecimento de Mundo......................................................................
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................
REFERÊNCIAS.................................................................................
RESUMO
Frankenstein, a obra, narra a história da criação do homem pelo homem e as suas
conseqüências. Utilizando uma série de recursos fantásticos, é considerado como um romance
gótico; no entanto, a obra vai além: pode se caracterizar como um dos primeiros romances
científicos da história e também o que estuda mais aprofundadamente as relações humanas.
Paralelos com a Bíblia, o Paraíso Perdido de John Milton e a história de Prometeu não faltam,
pois todos têm a temática da vida e a degradação do homem, e assim como todas essas obras
citadas, Frankenstein também tem uma moral que poderia ser: a sociedade (ou humanidade),
com seus vícios e preconceitos, destrói as virtudes do homem. Na adaptação de Kenneth
Brannagh para o cinema, a Criatura pergunta para Victor, seu Criador: Quem eram estas
pessoas que me formam? Pessoas boas? Pessoas más?... Você me deu vida, e depois me
abandonou para que eu morresse... Quem sou eu?... Acha que eu é que sou mau? Justamente
por essas questões é que neste trabalho é analisada A Criação Fantástica do Homem e o
Conhecimento de Mundo, pois esta passa por toda a série de valores e conceitos formados ao
longo da história da humanidade, e é em Frankenstein que se torna possível encontrar a chave,
ou a resposta, para as ações dos homens, as criações dos homens, suas descobertas e o seu
egoísmo.
ABSTRACT
Frankenstein, the work, talks about the history of the mans creation by the man and its
consequences. Using a series of fantastic resources, this is considered a Gothic novel; however,
the work goes beyond: it can be characterized as one of the first scientific novels of the history
that also studies more deeply the human relationships. Parallels to the Bible, John Milton's Lost
Paradise and the history of Prometheus don't lack, therefore they all have the thematic of life
and man’s degradation, and as well as all those mentioned works, Frankenstein also has a
morals that could be: the society (or humanity), with its addictions and prejudices, destroys
man’s virtues. In Kenneth Brannagh’s adaptation for the movies, the Creature asks Victor, its
Creator: "Who were these people that form me? Good people? Bad people?... You gave me life,
and later you left me so that I died... Who am I?... Do you think I am bad?". This is the reason
why Man's Fantastic Creation and the Knowledge of World are analyzed in this work, for it
goes through the whole series of values and concepts formed during the history of humanity'
and Frankenstein becomes possible to find the key, or the answer, for men’s actions, men’s
creations, men’s discoveries and men’s selfishness.
1 INTRODUÇÃO
Quando Mary Shelley teve o lampejo de construir sua história espetacular sobre a vida
de um cientista e o ser por ele criado, apenas como um passatempo, num castelo próximo aos
Alpes Suíços no ano de 1816, mal sabia ela que sua obra se tornaria, ao longo da história da
humanidade, uma verdadeira premonição dos tempos futuros, nos quais Deus não mais
precisaria estar no posto de Criador, mas que competiria com a criação do homem pelo homem.
Frankenstein, a obra, conta a história de um homem obcecado pela busca da verdade e
pelas possibilidades que a ciência lhe oferece. Protótipo do cientista louco, Victor Frankenstein
deixa-se levar, sozinho e cada vez mais afastado da sociedade, por todos os caminhos que a sua
curiosidade científica procura. Buscando compreender os mecanismos mais profundos da vida,
Victor acaba por dar origem ao seu monstro (que lhe vai roubar o nome no imaginário popular),
que passa a assombrá-lo e no fim o leva à destruição pessoal, ao destruir tudo o que lhe é caro.
A dramaticidade, a eloqüência, a seriedade e a criatividade com que Mary Shelley
compôs Frankenstein são citadas por todos os seus analisadores. E, principalmente, o fato de
uma mulher ter composto um texto narrativo gótico, com a finalidade de “despertar horror no
coração” a torna a pioneira nas histórias de suspense e ficção científica que chegam até os dias
atuais.
Desnecessário também catalogar quantas filmagens foram feitas utilizando os
personagens dessa história, mas, uma que perdura, justamente por procurar respeitar a
literariedade e ir a fundo nos textos que se interligam a Frankenstein, é a versão de 1994,
dirigida por Kenneth Brannagh.
Este trabalho tem por objetivo estudar a criação fantástica do homem, não apenas no
sentido biológico e fantasioso do termo, mas em todas as esferas como a criação de um ponto de
vista mais transcendente, onde são englobados os sentidos religiosos, sociais e filosóficos; ainda
pretende analisar o conhecimento de mundo (seus valores) na obra Frankestein, de Mary
Shelley, voltado para os resultados que se obtêm quando posse do saber e quando se depara
com uma realidade que não é a imaginada, e que desconsidera o anômalo; vale ressaltar que,
para isso, além de uma análise da obra e do estudo da intertextualidade entre referências e a
versão cinematográfica citada, e ainda, a referenciação bibliográfica e os paralelos traçados, é
possível, com um conhecimento maior, chegar aos elementos que compõem o fantástico e
relacioná-lo com a criação do homem e a aquisição do saber.
2
2 FRANKENSTEIN DE MARY SHELLEYA OBRA
2.1 O romance gótico e o romance de ficção científica
Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, contém elementos dos dois gêneros principais
da literatura romântica: o estilo gótico e a ficção científica.
Maria Cristina Gozzoli (1986, p. 08) explica que o tico é parte do movimento
romântico que surgiu no início do século XVIII e permaneceu até as três primeiras décadas do
século XIX. O movimento romântico é caracterizado pela inovação (ao invés do
tradicionalismo), espontaneidade de acordo com o poeta Wordsworth, a poesia boa é “um
transbordamento espontâneo de sentimentos poderosos” –, liberdade de pensamento e expressão
(especialmente os sentimentos e pensamentos do próprio poeta), uma idealização da natureza
(os poetas românticos também eram chamados de “poetas da natureza”) e a convicção de viver
numa era de novos começos e altas possibilidades.
O primeiro romance que foi identificado como tendo influência gótica foi O Castelo
de Otranto: Uma História Gótica, em 1764, de Horace Walpole. O Castelo de Otranto, assim
como muitos outros romances góticos, fixa-se numa sociedade medieval, tem muitos
desaparecimentos misteriosos como também algumas ocorrências sobrenaturais. O personagem
principal geralmente tem um caráter solitário de natureza egocêntrica. Embora este gênero seja
uma fase do movimento romântico, é considerado como o precursor do mistério moderno ou o
romance de ficção científica.
Muitos dos elementos acima citados surgem em Frankenstein. Por exemplo, a natureza
é freqüentemente utilizada para criar a atmosfera envolvente da história. Os campos desertos
glaciais dos Alpes e as névoas do Ártico servem para indicar o isolamento dos personagens
principais. O caráter solitário em Frankenstein pode ser aplicado tanto a Victor como a sua
Criatura, pois ambos os personagens, em momentos cruciais da vida, se isolam socialmente.
Embora muitos dos romances góticos sejam escritos para provocar terror em seus
leitores, eles também servem para mostrar o lado negro da natureza humana, conforme nos
relata Cynthia Hamberg (2005), pois eles descrevem os pesadelos horrorosos que vivem na
controlada e ordenada superfície do cérebro. Surpreendentemente, existe um vasto número de
autores góticos femininos. Não é improvável que este tipo de ficção tenha promovido uma
liberação dos desejos secretos dessa classe prejudicada pela autoridade masculina então vigente.
O gênero tico também se estende à poesia. Poemas compostos por Coleridge e Keats
(Christabel e Véspera de Santa Agnes, respectivamente) apresentam a transação do fantástico
para a exploração da mente inconsciente.
A ficção científica explora as maravilhas das descobertas e pesquisas que podem
resultar em desenvolvimentos futuros na ciência e na tecnologia. Mary Shelley usou um dos
mais recentes estudos tecnológicos de sua época para criar Frankenstein. Ela substituiu o fogo
divino do mito de Prometeu com a faísca da eletricidade recentemente descoberta. Os conceitos
de eletricidade e calor conduziram à descoberta do processo de galvanismo que se supunha ser a
chave da vida. Realmente, este é um dos processos utilizados para reanimar a criatura de Victor.
2.2 História do romance Frankenstein
4
Quanto às circunstâncias em que a obra foi criada, vale lembrar que ele aconteceu
quase de maneira casual. Conforme nos relata Harold Bloom (2002, p. 262), Mary Shelley e seu
marido Percy estavam passando o verão de 1816 às margens de um lago na Suíça e tinham
como vizinho o poeta Lord Byron
1
. Durante as noites ou quando o tempo não estava propício
aos passeios, os amigos reuniam-se para ler histórias alemãs de fantasmas e discutirem teorias
científicas que estavam em propagação naquela época, como, por exemplo, o galvanismo
2
e as
experiências do Dr. Erasmus Darwin (avô de Charles Darwin) no campo das leis da vida
orgânica. No fulgor das discussões, eles chegaram a cogitar a possibilidade de se reanimar um
cadáver.
Para passar o tempo, Byron propôs que cada pessoa presente (ele próprio, seu amigo
Polidori e os Shelley) escrevesse uma história fantasmagórica. Sob a influência das histórias
lidas e das discussões filosóficas e científicas, Mary Shelley conforme ela mesma diz, “viu” em
uma noite que estava com insônia a cena principal de sua história: um jovem cientista
apavorado diante da criatura disforme que acabara de dar vida. No outro dia, Mary disse aos
seus amigos que tinha pensado em uma história e escreveu um conto de poucas páginas que se
iniciava com a frase: It was on a dreary night of November [...] (SHELLEY, 1996, p. 25)
3
que, na versão definitiva da obra, está localizada no início do capítulo V, página 25, onde
justamente a Criatura recebe a vida. Entusiasmados com o que leram, os amigos, e
principalmente o marido, incentivaram-na a transformar aquele conto num romance, que foi
publicado pela primeira vez em 1818. A idéia de Mary Shelley foi a melhor que surgiu no grupo
naquele momento e a única que foi concluída.
1
Lord Byron: George Gordon Noel Byron (1788-1824) é considerado o principal expoente do movimento mal-
do-século, na língua inglesa; sua vida repleta de momentos intensos caracterizam a postura do homem
romântico. É autor do célebre Don Juan, bem como Beppo: Uma História Veneziana e inúmeros poemas
(BURGESS, 1999, p. 187).
2
Galvanismo: conjunto de fenômenos de natureza eletroquímica que se passam em sistemas constituídos por
metais diferentes postos em contato com eletrólitos (SILVA; FRIEDMAN, 2005).
3
Tradução: “Era uma noite lúgubre de Novembro” (SHELLEY, 2002, p. 65).
5
A história é dividida em grandes blocos narrativos, a começar pelas quatro cartas do
explorador inglês Robert Walton, o grande-narrador, por assim dizer: é ele quem descobre,
numa expedição ao Pólo Norte, em meio às geleiras, o definhado doutor Frankenstein, que irá
contar-lhe toda a sua história. Sendo assim, na opinião de Cynthia Hamberg (2005), os
episódios desenvolvem-se de maneira seqüenciada e admitem, muito mais do que cenas de
terror propriamente, mas também um caráter de reflexão filosófica.
He then told me that he would commence his narrative the next day when I
should be at leisure […] This manuscript will doubtless afford you the
greatest pleasure; but to me, who know him, and who hear it from his own
lips, with what interest and sympathy shall I read it in some future day!
4
(SHELLEY, 1990, p. 11).
Depois de alguns dias de repouso no navio, Victor Frankenstein decide contar a sua
história para o capitão, com a finalidade de não deixar que a busca desenfreada pelo
conhecimento e sabedoria arruinasse a vida de Walton.
Victor conta sua vida desde quando era pequeno. Relata como sua amada Elizabeth
entrou para a família; como procurava descobrir a origem das coisas; a morte de sua mãe e o
desejo dela de que Victor e Elizabeth se casassem. Antes de se casar, no entanto, Victor vai para
a universidade em Ingolstadt estudar medicina. Após dois anos de estudo, decide estudar
Fisiologia e descobre como animar a matéria sem vida – devido às conseqüências catastróficas
de tal descobrimento, Victor não especifica este segredo:
I was surprised that among so many men of genius, who had directed their
inquiries towards the same science, that I alone should be reserved to
discover so astonishing a secret
5
(SHELLEY, 1990, p. 23).
4
Tradução: “Disse-me então que começaria sua narrativa no dia seguinte, quando eu estivesse de folga [...] esse
manuscrito, sem dúvida, proporcionará a você um enorme prazer; para mim, porém, que o conheço e que ouço
tudo de seus próprios lábios com que interesse e simpatia hei de lê-lo em algum momento, no futuro!
(SHELLEY, 2002, p. 32-33).
5
Tradução: “Surpreendi-me de que, entre tantos homens de gênio que haviam dirigido suas indagações no
mesmo sentido, a mim apenas estivesse reservada a revelação de um segredo tão espantoso” (SHELLEY, 2002,
p. 59).
6
Então constrói com parte de cadáveres, um ser gigantesco e lhe vida. Quando a
Criatura abre os olhos e respira, percebe que infundiu vida num ser que lhe causa horror e
repulsa. Victor então cai num sono repleto de pesadelos; ao despertar, a face horrenda da
Criatura a lhe contemplar; sai correndo desesperadamente pela noite chuvosa e pára quando
encontra, descendo de uma carruagem, o amigo de infância, Henry Clerval, que veio estudar em
Ingolstadt. Eles vão à casa de Victor, o qual fica tão contente em não mais encontrar a Criatura
que tem um ataque de riso, muito próximo à loucura, e desmaia. Victor fica acamado durante
alguns meses, tendo, como enfermeiro, Henry.
Ao ter a saúde restabelecida, Victor começa a estudar Literatura juntamente com
Henry. Um dia, recebe a notícia de que William, seu irmão mais novo, estava morto. Ele retorna
imediatamente a Genebra. Ao chegar, é impossibilitado de entrar porque era tarde da noite e os
portões da cidade já estavam fechados. Então, visita o lugar onde seu irmão foi morto. Lá a
Criatura e logo deduz que ela é a responsável pela morte de William. Ao chegar em casa, seu
irmão Ernest diz que Justine Moritz era culpada pela morte da criança, porque a jóia que ele
estava usando naquele dia foi encontrada em seu poder. Justine foi julgada e condenada ao
cadafalso pelo crime.
Melancólico com a morte de Justine, Victor vai passear pelas montanhas e encontra a
Criatura; ela implora a Victor que ouça a sua história. Esse, movido pelo remorso, decide ouvi-
la: após receber vida, vendo-se sozinha no laboratório, a Criatura pega algumas roupas e segue
para a floresta. Ali, aprimora seus sentidos e aprende algumas coisas, como, por exemplo, a
utilidade do fogo. Devido à escassez de comida, muda-se dali e refugia-se sob uma cabana.
Nesse lugar, a Criatura observa, através de uma fenda na parede, o comportamento de seus
moradores. Uma família composta por um velho cego, de nome De Lacey, e seus filhos Félix e
Ágata. Eles viviam em Paris e tiveram seus bens confiscados porque Félix auxiliou um
comerciante turco a fugir da prisão por acreditar em sua inocência. O turco, em gratidão,
7
prometeu-lhe a mão de sua filha Safie. No entanto, após a fuga, o turco volta para sua terra natal
e tenta levar a filha com ele, mas a moça foge para viver junto ao seu amado. Como ela não
sabia falar a língua inglesa, Félix começa a ensinar-lhe o idioma. Através dessa fresta, a
Criatura assiste às aulas e aprende a falar. Logo depois, encontra uma pasta com alguns livros e
toma conhecimento da leitura e da escrita. Nessa época, encontra, entre as roupas que trouxera
do laboratório, o diário de Victor. Por meio dele, descobre a sua origem, quem era seu criador e
passa a odiá-lo. Esse ódio aumenta quando a Criatura sente-se rejeitada pelos homens; primeiro,
ela tenta uma aproximação com o velho De Lacey (que a acolhe carinhosamente), mas Félix o
espanca e foge com sua família da cabana; em seguida, após salvar uma criança da morte, é
ferida pelo homem que a acompanhava.
Depois de se recuperar, a Criatura segue para Genebra, na esperança de encontrar seu
criador. Um dia, enquanto descansava, um menino brincando na floresta. Ela acredita que
aquela criança, por ser inocente, não iria rejeitá-la. Movida por esse impulso, agarra o menino,
que começa a gritar que seu pai, o Sr. Frankenstein, a castigaria. Ao ouvir esse nome, a Criatura
mata o garoto. Logo depois, encontra uma jovem adormecida num celeiro e coloca em sua
roupa a jóia que retirou do garoto.
Ao terminar sua história, a Criatura pede a Victor para criar uma fêmea para lhe fazer
companhia. Victor concorda com essa idéia, desde que eles deixem para sempre os lugares
habitados pelo homem. Por sentir repulsa em desenvolver seus trabalhos em casa, vai à
Inglaterra. Nessa viagem, tem a companhia de Henry; no entanto, Victor desvencilha-se dele e
vai para uma ilha quase deserta montar seu laboratório.
Após construir o novo ser, Victor percebe que está cometendo outro erro e o destrói
antes de lhe dar vida. Isso desperta a ira vingativa da Criatura, que promete acompanhá-lo em
sua noite de núpcias. Victor abandona a ilha e, após adormecer num barco que tomou para se
desvencilhar do cadáver, aporta na Irlanda. Lá, é acusado da morte de um homem, ninguém
8
menos que o seu amigo Henry. Ao ver o corpo, desespera-se e cai em coma profundo. Após
recuperar a saúde, Victor é absolvido das acusações e volta a Genebra para se casar com
Elizabeth. Desta forma, determinaria seu futuro: ou morreria ou destruiria a Criatura.
Após o casamento, o casal segue para sua noite de núpcias. Victor arma-se e aguarda
que a Criatura venha ao seu encontro. Enquanto inspecionava a hospedaria, ouve um grito
terrível. Ele corre até o quarto e encontra Elizabeth morta no leito nupcial. Através das vidraças,
a figura sinistra da Criatura. Victor saca a sua arma, atira, mas ela consegue sumir no lago.
Depois disso, seu pai adoece e morre de desgosto.
Movido pela vingança, Victor passa a perseguir a Criatura por várias partes do mundo;
sofre muito durante essa perseguição, que só acaba quando fica preso num bloco de gelo no mar
e é salvo por Robert.
Assim termina a narrativa de Victor Frankenstein. O que segue foi descrito por Walton.
Várias vezes, o capitão tenta arrancar informações sobre a criação da Criatura, mas o cientista
sempre se nega a dar tal informação. A saúde de Victor foi piorando a cada dia, até culminar
com a sua morte. Na noite em que isso ocorreu, Walton entra na cabina onde estava o corpo e se
depara com a Criatura chorando abraçada ao cadáver. No entanto, agora é tarde para
lamentações, como ele mesmo diz. A Criatura promete rumar para o Norte, onde acenderia sua
pira funerária e, assim, encontraria seu fim. Dizendo isto, salta do navio e desaparece na
escuridão infinita.
2.3 Estrutura da obra Frankenstein
Construída em camadas sucessivas de flashback, com histórias dentro de histórias; na
opinião de Jorge Candeias (2005), a obra Frankenstein seria surpreendentemente moderna, não
fosse toda a carga de romantismo que contém. É um livro onde são levantados dilemas morais
9
que ainda hoje continuam sem resposta, e onde se abriram portas para todas as dúvidas sobre o
lugar que a busca pelo conhecimento deve ter na sociedade humana, dúvidas que atravessaram a
ficção científica desde os seus primórdios até à atualidade, e que são hoje uma preocupação
muito real e concreta das sociedades modernas. Será que a busca pelo conhecimento, um fim
em si mesmo, terá de ter limites, será que as conseqüências previsíveis são compensadas pelas
recompensas possíveis?
Shelley levanta as questões, mas não lhes dá respostas definitivas, ainda que seja óbvio o
lado para que pende: o monstro é um criminoso, mas não é um criminoso sem coração. Limita-
se a reagir às injustiças e ofensas de que foi vítima. Assim sendo, quem é o maior criminoso? O
monstro, ou Frankenstein, que lhe deu vida e depois o repeliu, repugnado pela sua fealdade?
No fim das contas, para Michel Jalil Fauza (2005), em Frankenstein tem-se uma fábula
acerca da responsabilidade humana perante a sociedade como um todo e perante cada um dos
seus componentes, uma grande parábola acerca dos atos que se praticam e das suas
conseqüências, e que mostra como a vida toma rumos inesperados devido, por vezes, a
pequenas coisas. Escusado será dizer que é uma obra-prima, um grande livro de ficção
científica e um ótimo exemplo do que a ficção científica pode ser quando usada de forma séria.
Estruturalmente, o livro possui quatro cartas iniciais, vinte e quatro capítulos e pode
ser dividido da seguinte maneira conforme Antonio Carlos Pinho Silva e Abílio Friedman
(2005):
Introdução – do início até o final do capítulo IV. Aí temos:
apresentação dos personagens;
a maneira como Robert Walton faz a sua viagem ao Pólo Norte;
como foi constituída a família Frankenstein;
a maneira como Elizabeth passou a integrar a família;
10
a afinidade entre Victor e Elizabeth;
a morte da mãe de Victor;
o início dos estudos de Victor na universidade.
Complicação – capítulo V.
A complicação ocorre no momento em que Victor dá vida a sua Criatura.
Desenvolvimento – capítulo V ao XXII:
a Criatura mata William, irmão mais novo de Victor;
Justine é acusada por esse crime e morre no cadafalso;
Victor encontra a Criatura e esta lhe narra a sua história;
Victor concorda em construir a fêmea, mas se arrepende e destrói o ser antes de
lhe dar vida;
a Criatura promete vingança e ameaça a lua-de-mel de Victor;
a Criatura mata Henry Clerval;
Victor se casa com Elizabeth.
Clímax – capítulo XXIII.
O clímax se dá quando a Criatura cumpre a sua promessa de vingança e mata Elizabeth
no leito de núpcias.
Desfecho – capítulo XXIII até o final da obra:
o pai de Victor morre de desgosto;
Victor começa a percorrer o mundo atrás da Criatura;
11
Victor morre a bordo do navio de Walton;
a Criatura diz a Walton que se suicidará, conforme o desejo do seu criador e
some na escuridão.
2.4 Análise dos Personagens
Protagonista – Victor Frankenstein
Victor nasceu em Genebra como o filho primogênito de uma família distinta. Como ele
mesmo descreve em sua história, teve uma infância muito agradável, graças aos pais carinhosos
e indulgentes e Elizabeth. Desde criança ele possui um temperamento agitado, paixões
veementes e sede por conhecimento. Seu primeiro interesse é a poesia, mas depois de certo
tempo focaliza suas atenções à ciência. Este interesse em breve se torna uma obsessão: ele se
dedica completamente a aprender “os segredos do céu e da terra”. Sua obsessão é diagnosticada
por mudanças radicais de caráter e de saúde. Ele muda de um homem sensível e saudável para
se tornar um egoísta, doentio e que se afasta da amada e da família durante alguns anos. Depois,
Victor alega que foi “enganado por uma paixão” e que estava sobre o jugo da: Evil influence,
the Angel of Destruction, which asserted omnipotent sway over me from the moment I turned
my reluctant steps from my father's door
6
(SHELLEY, 1996, p. 19).
É apenas depois da criação do monstro que Victor passa a pensar nas conseqüências
dos seus atos. A obsessão o havia cegado, aparentemente antes de concluir sua obra. No entanto,
segundo Cynthia Hamberg (2005), ele não leva a culpa pelo que aconteceu. De fato, parece
ansioso para esquecer isto de qualquer forma, mas fica claro que a Criatura o o deixará
esquecer.
6
Tradução: “Demoníaca influência do Anjo da Destruição que me dominou desde o instante em que,
relutantemente, eu me afastei dos degraus da porta da casa de meu pai” (SHELLEY, 2002, p. 51).
12
Depois que a Criatura lhe conta sua história, Victor sente um pouco de compaixão, a
ponto de sentir, até mesmo, responsabilidade pela sua criação. Porém, a responsabilidade de um
ser humano da sua categoria eventualmente desaparece, e ele decide, ao final, não acatar ao
pedido da Criatura. Esse sentimento de compaixão pela Criatura desaparece totalmente quando
Elizabeth é assassinada. A única coisa que Victor passa a sentir é o ódio. O único propósito de
sua vida será exclusivamente matar ao ser que deu vida e vingar sua família.
No final de sua vida, o ódio violento desaparece, mas Victor permanece tão
determinado quanto antes. Isto resulta em algumas ações contraditórias e comentários que faz.
Por um lado, o fato de contar sua história, pode ser algo positivo. Fazendo isto, ele assegura que
a história é real e serve de advertência para as gerações futuras. Isto leva à conclusão que ele
descobriu seu erro e que finalmente se responsabilizou pelos seus atos. Mas, por outro lado,
o episódio em que a tripulação do navio de Walton exige a volta para a sua terra natal, e Victor
responde a este fato com um discurso emocionante e apaixonado. Entre outras coisas, ele acusa
aos homens de covardia e fraca índole. Se eles iriam abandonar a expedição, que voltassem para
casa com um “estigma de desgraça”. Julgando por este comentário, Victor não apreendeu muito
da sua provação; aparentemente, ainda sente que as pessoas deveriam colocar seus sentimentos
e desejos acima de tudo. Este é um raciocínio interessante da natureza egoísta de Victor.
Outro exemplo de seu egoísmo, retratado por Antonio Carlos Pinho Silva e Abílio
Friedman (2005), é a maneira como ele lida com as ameaças da Criatura. É óbvio que a Criatura
quer feri-lo; desta forma, Victor acredita que é apenas ele quem ela quer eliminar. Porém,
parece claro que a melhor forma de atingir Victor é ferir as pessoas que ele ama. Isto é
exatamente o que faz a Criatura ao exterminar sua família e seus amigos. Assim, Victor não
percebe isto; se ele tivesse percebido, teria protegido mais a Elizabeth, por exemplo.
Essencialmente, há duas formas de Victor escapar da vingança da Criatura: uma forma é matar a
Criatura. Victor tenta, mas a Criatura sempre escapa; outra forma seria sacrificar a sua vida em
13
troca das vidas dos amigos e familiares, em outras palavras, suicidar-se. Desta forma, Victor
teria como se vingar da Criatura; esta tática poderia ter sido trabalhada no final do livro. Este
modo drástico de parar com os assassinatos da Criatura não passa pela mente de Victor, no
entanto, ele não tem medo de morrer. Aliás, quando estava adoentado, com febre, ele mesmo
deseja estar morto: Soon, oh! Very soon, will death extinguish these throbbings, and relieve me
from the mighty weight of anguish that bears me to the dust; and, in executing the award of
justice, I shall also sink to rest
7
(SHELLEY, 1996, p. 98-9).
AntagonistaA Criatura
A primeira aparência da Criatura, que permanece sem nome, é descrita por seu criador,
ela é construída de vários corpos diferentes:
His yellow skin scarcely covered the work of muscles and arteries beneath;
his hair was of a lustrous black, and flowing; his teeth of a pearly whiteness;
[…] his watery eyes, that seemed almost of the same colour as the dun white
sockets in which they were set, his shrivelled complexion and straight black
lips”
8
(SHELLEY, 1996, p. 26).
Combinadas estas características à sua estatura gigantesca, à sua deformidade, a
imagem de monstro está completa, no parecer de Cynthia Hamberg (2005). Seu aparecimento se
mostra como a causa de todos os problemas. As pessoas ficam horrorizadas quando a vêem, e
impedem que a Criatura tente manter contato com elas. Essa falta de contato pessoal e o
isolamento resultam, indiretamente, nos crimes que ela vem a praticar.
Ela tenta se comunicar com as pessoas em várias ocasiões, mas sempre é rejeitada.
Acaba por perder um pouco da esperança, até o momento em que se refugia na choupana da
família De Lacey. Ela os observa durante muito tempo, enquanto aprende seu idioma e seus
7
Tradução: “Breve, muito breve a morte extinguirá essas palpitações e me aliviará da pesada carga de angústia
que me conduzirá ao e, cumprindo a decisão da justiça, eu também deverei mergulhar no repouso eterno”
(SHELLEY, 2002, p. 212).
8
Tradução: “Sua pele amarela mal cobria o relevo dos músculos e das artérias que jaziam por baixo; seus
cabelos eram corridos e de um negro lustroso; seus dentes, alvos como pérolas; ... seus olhos desmaiados, quase
da mesma cor cinzenta das órbitas onde se cravavam, e com a pele encarquilhada e os lábios negros e retos”
(SHELLEY, 2002, p. 65).
14
hábitos. Ao ler romances como o Paraíso Perdido de John Milton, começa a desejar conhecer
sobre a sua origem e porque a sua aparência a isola dos outros: I was apparently united by no
link to any other being in existence
9
(SHELLEY, 1996, p. 67). Claro está que ela almeja um
pouco de bondade, proteção e companhia. Estes desejos se tornam mais evidentes até mesmo
quando o diário que Victor manteve durante sua criação. Através da leitura, percebe que seu
criador não ficou contente por tê-la criado, isso a faz se sentir mais e rejeitada até por ela
mesma.
Apenas quando se convence da bondade dos De Lacey, é que decide se aproximar para
fazer um contato pela primeira vez. A sua conversa inicial com o velho De Lacey é muito
positiva; isto acontece, principalmente, pelo fato do velho ser cego e, desta forma, o
aparecimento da Criatura não pode levar a qualquer idéia preconceituosa. Inesperadamente, os
demais familiares retornam ao lar, e a Criatura é expulsa da casa. Ainda assim, ela se recusa a
pensar mal deles e se culpa por ter sido descoberta. Apenas quando ela descobre que a família
fugiu apavorada da choupana é que começará a nutrir sentimentos negativos como o ódio e a
vingança. Estes sentimentos não são dirigidos à família De Lacey, mas sim, para o seu criador.
Posteriormente, ela declara que as matanças não lhe fizeram bem. Alega que era: “the
slave, not the master, of an impulse which I detested, yet could not disobey
10
(SHELLEY, 1996,
p. 121), um estado que se assemelha ligeiramente com a obsessão de Victor pela ciência. A
Criatura, da mesma forma que Victor, chega a um ponto onde não nutre outro sentimento além
do ódio. Quando vê que sua última vítima, Victor Frankenstein, está morto, mostra remorso. Ela
agora aceita que nunca haveria possibilidade de: pardoning my outward form, would love me
for the excellent qualities which I was capable of unfolding
11
(SHELLEY, 1996, p. 121), com
9
Tradução: “Aparentemente, eu não possuía liame algum com qualquer outra criatura viva” (SHELLEY, 2002,
p. 150).
10
Tradução: “O escravo, e não o senhor, de um impulso que, embora detestasse, não podia deixar de obedecer”
(SHELLEY, 2002, p. 256).
11
Tradução: “Perdoando a minha forma exterior, me amassem pelas excelentes qualidades que era capaz de
revelar” (SHELLEY, 2002, p. 258).
15
um imenso rancor, promete a Walton: consume to ashes this miserable frame para que as
curiosas gerações do futuro não criem such another as I have been
12
(SHELLEY, 1996, p.
122).
Coadjuvante – Robert Walton
Walton era um jovem aventureiro que pretendia desvendar os mistérios do Pólo Norte.
Teve sua viagem financiada por uma herança que recebeu de um primo. Nunca se dedicou aos
estudos, mas sempre gostou muito de ler. Seu pai morreu numa viagem marítima. É por meio de
suas cartas, destinadas à irmã Margaret, tomadas enquanto Victor estava enfermo em seu navio,
que se conhece a história de Victor Frankenstein e a sua Criatura.
Secundário – Elizabeth Lavenza Frankenstein
Órfã muito cedo, vive com uma família de camponeses em Milão antes de ser adotada
pela família Frankenstein. Eles a levam para Genebra, onde ela é iniciada em seus costumes.
Desde o momento que Elizabeth entrou na casa, estava certo que ela seria esposa de Victor.
Este sempre achou que ela era realmente sua propriedade, ou seja, o matrimônio era algo
inevitável: No word, no expression could body forth the kind of relation in which she stood to
me--my more than sister, since till death she was to be mine only
13
(SHELLEY, 1996, p. 14).
Uma clara descrição do surgimento de Elizabeth é apresentada quando seus futuros
pais adotivos a vêem pela primeira vez:
This child was thin, and very fair. Her hair was the brightest living gold, and,
despite the poverty of her clothing, seemed to set a crown of distinction on
her head. Her brow was clear and ample, her blue eyes cloudless, and her
lips and the moulding of her face so expressive of sensibility and sweetness,
that none could behold her without looking on her as of a distinct species, a
12
Tradução: “Reduzirei a cinzas este corpo miserável...outro ser igual a mim” (SHELLEY, 2002, p. 259).
13
Tradução: “Nenhuma palavra, nenhuma expressão poderiam incorporar melhor o tipo de parentesco que ela
representava para mim mais do que irmã, que até a morte ela deveria ser apenas minha” (SHELLEY, 2002,
p. 39).
16
being heaven-sent, and bearing a celestial stamp in all her features
14
(SHELLEY, 1996, p. 13).
Todos os termos dessa descrição são representativos do bem e do angelical. Assim
como pode ser apresentada por várias outras descrições no romance, para João Luís Almeida
Machado (2005), Elizabeth encarna a mulher jovem e perfeita de classe-média. Ela sempre está
tranqüila e concentrada, sem preconceitos, ama a poesia e a beleza da zona rural e sempre é leal
aos amigos e familiares.
Secundário – Henry Clerval
Henry é o único amigo de Victor. É difícil determinar porque eles são tão amigos, pois
a relação parece um pouco unilateral, na opinião de Cynthia Hamberg (2005). Ao longo do
livro, Henry acompanha seu amigo: cuida da sua saúde e o acompanha em suas viagens.
Henry e Victor têm personalidades opostas. É evidente que Victor admira a
sensibilidade de Henry, a imaginação entusiástica e a gentileza. Ao contrário de Victor, Henry
es mais interessado em literatura (canções heróicas, livros de cavalheirismo e romances),
estudo da língua e da natureza. Embora Henry também tenha uma mente questionadora e esteja
ansioso por obter experiência e instrução, nunca deixa isso interferir em suas relações pessoais.
No romance, é declarado que Henry tem “uma percepção aguda dos outros”; por causa
disto e pela frágil saúde de Victor, Henry sente que há algo de terrivelmente errado acontecendo
com o amigo. Mas, sendo leal, nunca pergunta a Victor sobre isto, pois é óbvio que este não
quer compartilhar seu problema. Para Antonio Carlos Pinho Silva e Abílio Friedman (2005),
14
Tradução: “Esta era esguia e muito bela. Seu cabelo era vívido e brilhante como o ouro, parecia ostentar uma
coroa de distinção sobre a cabeça. Sua fronte era larga, seus olhos azuis sem uma névoa, os lábios e o contorno
do seu rosto exprimiam tanta sensibilidade e doçura que ninguém podia contemplá-la sem ver nela uma origem
distinta, um ser enviado pelo céu, com a marca celestial em todas as suas feições” (SHELLEY, 2002, p. 38).
17
talvez, se Victor tivesse dividido seu segredo ao amigo em quem tinha tanta confiança, Henry
não teria pago o preço mais caro por sua amizade.
Secundário Alphonse Frankenstein
O pai de Victor, Alphonse, é um homem nobre e bem respeitado na comunidade.
Também é protetor e leal a todos que estão à sua volta. Por exemplo, ele sempre partirá em
defesa do filho, até mesmo quando este é acusado de assassinato, sem sequer questionar sua
inocência. Ele adora a esposa Caroline, por ter lhe aliviado os sofrimentos quando esta era
criança.
Alphonse é paciente, extremamente benevolente e tem um grande autocontrole. Pode
ser considerado uma pessoa sensata em relação aos estados psíquicos de Victor:
Had taken the greatest precautions that my mind should be impressed with
no supernatural horrors. I do not ever remember to have trembled at a tale of
superstition, or to have feared the apparition of a spirit. Darkness had no
effect upon my fancy; and a churchyard was to me merely the receptacle of
bodies deprived of life, which, from being the seat of beauty and strength,
had become food for the worm
15
(SHELLEY, 1996, p. 22).
Secundário - Caroline Beaufort Frankenstein
Sendo uma pessoa atenciosa, Caroline, como uma adolescente, cuida de seu pai
gravemente doente durante vários meses. As circunstâncias são difíceis para ela, mas sua
coragem a tira das dificuldades. Ela trabalha arduamente e faz pequenos trabalhos manuais para
ajudar no orçamento.
Depois que se casa com Alphonse Frankenstein, as finanças não mais lhe preocupam;
ela se torna um anjo da guarda dos menos afortunados. Ela é delicada, sensível e indulgente
com seus filhos, em resumo, é uma mãe perfeita. A descrição de Caroline pode ser comparada à
15
Tradução: “Tomara todas as precauções para que minha mente não se impregnasse de horrores sobrenaturais.
Não me lembro de haver me arrepiado ante um conto de superstição ou haver temido o aparecimento de um
espírito. A escuridão jamais me perturbou, e um cemitério nada mais era para mim do que o receptáculo de
corpos privados de vida, que depois de terem sido sede da beleza e da força, se haviam transformado em
alimento dos vermes” (SHELLEY, 2002, p. 59).
18
de Elizabeth; ambas são a imagem perfeita da feminilidade na metade do século XVIII pela
ideologia da nobreza, para Cynthia Hamberg (2005).
Secundário – William Frankenstein
Irmão mais novo de Victor, criança meiga e alegre que foi assassinada pela Criatura
quando passeava na floresta.
Secundário – Ernest Frankenstein
Irmão de Victor; rapaz forte e vigoroso que aspirava entrar para o serviço militar; sua
última aparição na obra foi no julgamento de Justine.
Secundário – Justine Moritz
Veio morar com a família Frankenstein quando tinha doze anos; uma garota muito
humilde e perturbada pela mãe que era insana, mas sempre atenta às necessidades da família
que a acolheu. Foi acusada injustamente pela morte de William. No entanto, seu confessor a
assediou e ameaçou-a de tal forma que ela confessou um crime que não cometera e morreu no
cadafalso como assassina.
Secundários – Professor Krempe e Professor Waldman
Ambos são os professores de Victor quando este chega à universidade de Ingolstadt; o
primeiro causará certa repugnância a Victor, devido à postura moralista que adota, e sempre
entrarão em discussão. O segundo será o professor com quem Victor se identificará e que irá
colaborar para seu aprendizado das ciências de composição do homem.
2.5 Foco Narrativo em Frankenstein
19
Na obra Frankenstein, três focos narrativos em primeira pessoa. Primeiro, Robert
Walton conta, por meio de quatro cartas enviadas a sua irmã, os detalhes de sua viagem, que
tinha o intuito de chegar ao Pólo Norte. Depois, tem-se a narrativa de Victor Frankenstein, que
relata sua história a o momento do encontro com a Criatura numa cabana abandonada nas
montanhas. Em seguida, a Criatura narra a sua história, desde quando se viu abandonada no
laboratório até aquele encontro com Victor. Após isso, a narrativa volta para Victor que termina
de relatar sua história, e os detalhes finais da obra são feitos por Walton.
Exemplos de focos narrativos:
Robert Walton - “My affection for my guest increases every day, he excites at once
my admiration and my pity to an astonishing degree
16
(SHELLEY, 1996, p. 09).
Victor Frankenstein - How can I describe my emotions at this catastrophe?
17
(SHELLEY, 1996, p. 25).
A Criatura - It is with considerable difficulty that I remember the original era of
my being; all the events of that period appear confused and indistinct
18
(SHELLEY, 1996, p. 52).
2.6 O Tempo e o Espaço em Frankenstein
Apesar de existir, na obra, uma certa ordem de narrativa, segundo Antonio Carlos
Pinho Silva e Abílio Friedman (2005), o tempo que predomina é o psicológico, uma vez que
Victor, na maior parte da história, relata a Robert Walton a sua história de infortúnios, para que
16
Tradução:Aumenta a minha estima pelo hóspede, na razão direta da minha admiração e da minha piedade”
(SHELLEY, 2002, p. 29)
17
Tradução: “Como posso descrever minhas emoções ante aquela catástrofe?” (SHELLEY, 2002, p. 65).
18
Tradução: “É com muita dificuldade que me lembro dos primeiros tempos da minha existência. Todos os
acontecimentos daquele período estão encobertos pela névoa do tempo e me parecem confusos e indistintos”
(SHELLEY, 2002, p. 119).
20
sirva de exemplo ao jovem capitão e ele, na sua ânsia por conhecimento, não cometa um erro
semelhante ao seu.
A maior parte da história se passa em Genebra e Ingolstadt. Embora existam várias
descrições de montanhas, vales, rios e vegetação abundante, as cenas de maior tensão ocorrem
em lugares fechados e até macabros:
durante o processo de criação do monstro, Victor walk to the occult ones, as a
fugitive
19
(SHELLEY, 1996, p. 24) e se enclausurava em seu laboratório;
a Criatura sempre habitou lugares escondidos e de difícil acesso, primeiro
refugiou-se na floresta e depois, escondeu-se sob uma cabana;
o encontro entre Victor e a Criatura dá-se numa cabana no alto das montanhas;
a morte de Elizabeth, clímax da obra, passa-se num quarto de hospedaria;
finalmente, o desfecho ocorre na cabina de um navio.
2.7 A Mitologia em Frankenstein
O subtítulo O Prometeu Moderno refere-se à figura da mitologia grega que foi
responsável por um conflito entre o gênero humano e os deuses. De acordo com Antonio Carlos
Pinho Silva e Abílio Friedman (2005), Prometeu era filho do titã Lápeto e de Clímene. Ele
esposou Celeno e teve Deucalião, Lico e Quimereu. Prometeu manteve-se neutro durante a luta
entre os Titãs e os Olímpicos. Entretanto, quando notou que a vitória caberia aos Olímpicos,
ofereceu seus préstimos a Júpiter. Desse modo, foi recebido no Olimpo, participando das
assembléias e dos banquetes das divindades. Em determinada ocasião, para se vingar do pai dos
deuses por ter exterminado a sua raça, resolveu criar um ser diferente dos animais – apanhou o
19
Tradução: “Caminhava às ocultas, como um foragido” (SHELLEY, 2002, p. 62).
21
barro do chão, umedeceu-o com água e esculpiu a massa, até obter as feições iguais à de um
deus. Inspirado nessa primeira estátua, modelou muitas outras. Em seguida, insuflou-lhes a
fidelidade do cavalo, a força do touro, a esperteza da raposa, a avidez do lobo. Minerva fez as
novas criaturas sorverem algumas gotas de néctar e elas adquiriram o espírito divino: estava
criada a raça humana.
Algum tempo depois, num banquete em que um boi seria dividido entre os Olímpicos
e os homens, Prometeu encarregou-se de fazer a partilha. De um lado, pôs a carne e as
entranhas do animal; de outro, apenas os ossos disfarçados sob gordura branca. Júpiter escolheu
a segunda parte. Ao verificar que fora vítima de um ardil, encolerizou-se contra Prometeu e os
mortais. Para puni-los, escondeu-lhes o fogo, último elemento que lhes faltava para
desenvolverem uma civilização. Para ajudar o ser humano, Prometeu subiu ao Olimpo e roubou
o fogo de Zeus; a partir deste instante, definitivamente, as pessoas foram diferenciadas dos
animais, no momento em que receberam o fogo dos deuses e desenvolveram as habilidades de
criar armas e ferramentas. Enganado mais uma vez, Júpiter, para vingar-se, mandou Pandora à
terra para espalhar toda a sorte de desgraças entre os homens e acorrentou Prometeu no cume do
monte Cáucaso, onde abutres iam todos os dias comer-lhe o fígado imortal. Apesar do
sofrimento, o titã manteve a sua atitude de revolta. Desafiou Júpiter, declarando que sabia um
segredo sobre a sua deposição. Passados trinta anos, ou trinta séculos, Júpiter permitiu que
Hércules libertasse Prometeu. Este revelou um oráculo
20
, segundo o qual, se piter esposasse
tis, ela teria um filho que o destronaria.
Esta narração mitológica, para Alexander Martins Vianna (2005), também recorre à
plasticidade com que Prometeu criou o ser humano através do barro; esse mito, infundido em
conjunto com o fogo que Prometeu tinha roubado, torna-se o fogo da vida com que ele animou
suas estátuas.
20
Oráculo: divindade que responde a consultas e orienta o crente. (SILVA; FRIEDMAN, 2005).
22
Por causa do aspecto de criação, segundo Cynthia Hamberg (2005), Prometeu tornou-
se um símbolo para a criação artística do século XVIII. Victor Frankenstein, por exemplo, pode
realmente ser visto como o Prometeu moderno. Ele desafia aos deuses (ou a Deus) quando cria
a vida. No instante da criação, ele toma o lugar de Deus e se torna o criador. Da mesma forma
que Prometeu, Victor é castigado por suas ações. No entanto, é castigado por sua própria
Criatura, ao contrário do titã, que foi castigado pelos deuses.
2.8 Filmografia
Como todo grande livro, Frankenstein teve várias versões cinematográficas, sendo
um dos mais adaptados em toda a história do cinema, somando a marca de 110 produções
(FRANCO, 2005), entre as quais se destaca o clássico de 1921, dirigido por James Whale, tendo
Boris Karloff no papel da Criatura e imortalizando seu rosto (como podemos constatar através
do desenho de capa da edição de 2002 da editora L&PM Pocket). Alguns desses filmes não
foram fiéis à estrutura da obra criada por Mary Shelley e ligaram o nome Frankenstein à
Criatura e não ao criador; outros, como a versão do inglês Kenneth Brannagh, Mary Shelleys
Frankenstein, de 1994, procuraram manter o espírito da obra, sendo esta a adaptação mais fiel
para o cinema, estudando com afinco as referências citadas no livro.
A obra de Brannagh, justamente por ater-se ao texto original, uma clara dimensão
do embate entre criador e Criatura, entre a ciência e a religião, temas tão presentes no momento
atual devido às polêmicas descobertas científicas. Como nos relata João Luís Almeida Machado
(2005), algumas das questões que estão em pauta no debate acerca da clonagem aparecem na
trama do Dr. Frankenstein (mas estudar-se-á mais aprofundadamente estas questões na próxima
unidade). Debates de caráter filosófico rondam o texto e transparecem nas telas. Afinal, o que
motivou a criação desse temível monstro? Se ele foi criado, o que motivou seu criador a rejeitá-
23
lo de forma tão veemente? Devem ser criados limites para a ação da ciência? A criação da vida
não é apenas atributo de Deus? Os homens, imperfeitos como são, não devem restringir suas
ações e acatar os desígnios de Deus? Observando estas indagações e tendo como base o livro, o
filme tenta respondê-las.
A versão cinematográfica de 1994 conta com a escalação de um elenco brilhante e que
realmente dá vida aos personagens do livro de Mary Shelley: além de dirigir, Kenneth Brannagh
também atua no filme, fazendo o papel do atormentado Dr. Frankenstein; Robert de Niro, como
a Criatura, concede uma maior expressividade e dramaticidade à figura do monstro; têm-se
ainda outros nomes como Aidan Quinn, Helena Bonham Carter e John Cleese.
Sem dúvida alguma, uma das passagens mais marcantes do filme é o diálogo
estabelecido entre Victor e a Criatura no interior de uma caverna no Ártico; apesar da adaptação
feita pelos roteiristas na fala da Criatura, a mesma é repleta de uma intensa filosofia e
romantismo. Nesta ocasião, a Criatura questiona seu criador pela morte de Willie e Justine, pois
é sua culpa o fato dela não saber usar adequadamente as capacidades que possui. Pergunta se ela
tem alma ou se o criador se esqueceu disso: Quem eram estas pessoas que me formam?
Pessoas boas? Pessoas más?... Você me deu vida, e depois me abandonou para que eu
morresse... Quem sou eu?... Acha que eu é que sou mau?
Diante de tal argumentação, Victor sente-se totalmente impotente e comovido, como se
fosse assumir a sua responsabilidade pelo ser que criara; mas, devido ao seu próprio egoísmo,
vê-se que, no transcorrer da história, ele acredita que a Criatura tem um forte poder
argumentativo, mas que não passa de uma armadilha. A adaptação cinematográfica utiliza, com
um senso acurado, os espaços fechados e abertos, o jogo do claro e do escuro, e a trilha sonora
envolvente. Neste trabalho de análise, serão desenvolvidos argumentos tendo como base esta
versão, que se encaixa perfeitamente no estudo da fantástica criação do homem e do seu
conhecimento de mundo.
24
2.9 A Intertextualidade presente em Frankenstein
É possível constatar a intertextualidade em Frankenstein não apenas através do
relacionamento da figura mitológica de Prometeu a Victor, mas também pelas diversas menções
que a obra faz a cientistas que influenciaram a criação do monstro, poetas do período
romântico, e algumas obras literárias que se relacionam com a temática do livro, que podem ser
os limites éticos e religiosos da ciência, bem como a rejeição ao diferente e ao anômalo,
características da sociedade de massa. Abaixo, seguem as referências:
Erasmus Darwin: avô de Charles Darwin, publicou o livro Zoonomia ou Leis da Vida
Orgânica onde assinalou que a variação do ambiente provoca uma resposta do organismo
(estrutura de um órgão). Portanto, os animais transformavam-se pelo hábito provocado pelas
necessidades. João Luís Almeida Machado (2005) relata que, em suma, Erasmus Darwin
acreditava na herança de caracteres adquiridos e, com essa crença, produziu o que decerto era
uma emergente teoria da evolução, embora, de fato, ainda deixasse muitas questões sem
resposta. A citação a este cientista surgirá na “Introdução da Autora”, feita para a edição de
1831, onde Mary Shelley conta a história que ouviu da boca de seu marido e de seus amigos, e
que a fez pensar na estrutura inicial de seu romance: “Eles falavam do Dr. Darwin... não me
refiro ao que o doutor fez ou disse que fez, mas no meu próprio interesse, no que se falava que
ele teria feito” (SHELLEY, 2002, p. 9).
Paracelso: conforme a Enciclopédia Barsa (p. 257, vol. 10), o fundamento do seu
sistema é uma filosofia visionária neoplatônica, na qual a vida humana é vista como inseparável
do universo. O corpo humano é primeiramente composto de sal, enxofre e mercúrio, e a
separação destes elementos místicos seria a causa das doenças. Para ele, o médico deve
25
conhecer as Ciências Físicas e a Alquimia, a Astronomia e a Teologia, pois, além do corpo e do
espírito, há, nos seres humanos, um terceiro elemento, criado por Deus, a alma. Em
Frankenstein, Paracelso influirá nos conhecimentos científicos de Victor através de suas
leituras: when I returned home, my first care was to procure the whole works of this author,
and afterwards of Paracelsus
21
(SHELLEY, 1996, p. 16). Na versão cinematográfica de
Kenneth Brannagh, a Criatura pergunta a Victor se ela possui alma ou, se ele, ao criá-la,
esqueceu deste fato; subentende-se que, em determinado momento, o cientista não observou
profundamente os ensinamentos de Paracelso.
Albertus Magnus: santo padroeiro das ciências naturais, procurou adaptar as teorias
de Aristóteles à filosofia cristã, e recuperou para a cultura ocidental os estudos científicos do
grande pensador. Especulando sobre o conhecimento da verdade, Albertus Magnus procurou
demonstrar que se podia alcançá-la tanto por meio da revelação e da fé, quanto da filosofia e da
ciência não havia contradição entre esses dois caminhos. Embora houvesse mistérios
acessíveis somente à fé, alguns aspectos da doutrina cristã, como a imortalidade da alma,
podiam ser compreendidos também pela razão. A importância dada à razão viria a ser uma das
principais características da filosofia de seu mais notável discípulo, santo Tomás de Aquino. De
especial interesse foram os estudos de santo Albertus sobre Aristóteles, nos quais introduziu
comentários e descrições de suas próprias observações e experiências nos campos da biologia,
da astronomia e das matemáticas. Quando, na obra, segundo Cristina Maria Teixeira Martinho
(2005), Victor começa a construir sua criatura, não sente que está desafiando as leis de Deus,
justamente por acreditar que os princípios da ciência e da religião eram compatíveis ao que ele
se propunha a fazer; no caso, essa seria a influência de Albertus Magnus: I little expected, in
21
Tradução: “Quando voltei para casa, meu primeiro cuidado foi procurar toda a obra daquele autor e, depois, as
de Paracelso” (SHELLEY, 2002, p. 43)
26
this enlightened and scientific age, to find a disciple of Albertus Magnus
22
(SHELLEY, 1996,
p. 19).
Cornelius Agrippa: foi um mago que viveu na Renascença, adotou o nome de Agrippa
em homenagem ao fundador de sua cidade natal na Alemanha. Trabalhou como médico,
advogado, astrólogo e com curas através da fé. Mas fez tantos inimigos quanto amigos e foi
acusado de feitiçaria. Em 1529, publicou um livro chamado Sobre a Filosofia Oculta, valendo-
se de textos hebraicos e gregos para argumentar que a melhor maneira de chegar a conhecer a
Deus era por meio da magia. A Igreja declarou-o um herético e o prendeu. Agrippa foi uma das
inspirações de Goethe para escrever a peça Fausto, na qual um homem de ciência faz um pacto
com o diabo segundo Nelson Ascher (2004, p. 14). Seu nome é também um termo para designar
um livro de magia muito especial, cortado em forma de pessoa. Ele também inspirou Mary
Shelley na composição do caráter de Victor Frankenstein:
In this house I chanced to find a volume of the works of Cornelius Agrippa. I
opened it with apathy; the theory which he attempts to demonstrate, and the
wonderful facts which he relates, soon changed this feeling into enthusiasm.
A new light seemed to dawn upon my mind; and, bounding with joy, I
communicated my discovery to my father. My father looked carelessly at the
title page of my book, and said, - Ah! Cornelius Agrippa! My dear Victor, do
not waste your time upon this; it is sad trash.
23
(SHELLEY, 1996, p. 15).
Luigi Galvani: médico e fisiologista italiano que, ao realizar pesquisas sobre o
comportamento dos músculos das rãs, fez descobertas importantes para a eletricidade (implantar
agulhas em pontos vitais do anfíbio para observar a contração muscular); segundo a
Enciclopédia Barsa (p. 414, vol. 6), ele colaborou para a criação das pilhas elétricas. Sua
doutrina é chamada de galvanismo. No filme de Kenneth Brannagh, antes de dar vida à
22
Tradução “Jamais esperei encontrar, nesta idade das ciências e das luzes, um discípulo de Albertus Magnus”
(SHELLEY, 2002, p. 52).
23
Tradução: “Nessa casa, eu encontrei por acaso um volume das obras de Cornelius Agrippa. Abri-o
displicentemente; a teoria que ele tenta demonstrar e os maravilhosos fatos que ele relata logo transformaram
esse sentimento em entusiasmo. Parecia que uma nova luz surgia em meu cérebro, e vibrando de alegria,
comuniquei minha descoberta a meu pai. Meu pai olhou descuidadamente para a capa do meu livro e disse: - Ah!
Cornelius Agrippa! Meu caro Victor, não perca tempo com isso. É uma bobagem” (SHELLEY, 2002, p. 43).
27
Criatura, Victor faz uma experimentação reanimando um sapo através de descarga elétrica em
seus pontos vitais. No livro, existem várias passagens referentes à doutrina de Galvani, tais
como:
On this occasion a man of great research in natural philosophy was with us,
and, excited by this catastrophe, he entered on the explanation of a theory
which he had formed on the subject of electricity and galvanism, which was
at once new and astonishing to me
24
(SHELLEY, 1996, p. 17).
Wordsworth e Coleridge: Anthony Burgess (1999, p. 198-1999; 200-201) apresenta
algumas das principais características desses dois grandes poetas do romantismo inglês. O
primeiro caracteriza-se pelo uso da intuição, misticismo, bucolismo, idealização das pessoas
simples (“são mais puras, mais sábias que os habitantes da cidade, e a sua linguagem é menos
corrupta, possuem uma conduta de acordo com natureza”). Pode-se estabelecer um paralelo das
suas características principais com a mentalidade inicial da Criatura, que age intuitivamente,
refugia-se em localidades rurais ou próximas à natureza e também pela idealização da família
de camponeses De Lacey. Como exemplo, um trecho de seu poema Tintern Abbey, que está
dentro da obra, referindo-se a um desabafo de Victor sobre a personalidade do amigo
assassinado, Henry Clerval:
The sounding cataract / Haunted him like a passion: the tall rock, / The
mountain, and the deep and gloomy wood, / Their colours and their forms,
were then to him / An appetite; a feeling, and a love, / That had no need of a
remoter charm, / By thought supplied, or any interest / Unborrow'd from the
eye
25
(SHELLEY, 1996, p. 83).
O segundo poeta tem fixação pelo sobrenatural, os elementos mágicos e misteriosos,
geralmente voltados para o mal ou sensações sinistras e as qualidades demoníacas das suas
descrições. Um trecho do seu mais famoso poema, Ancient Mariner, está inserido no capítulo V,
24
Tradução: “Nesta ocasião, achava-se conosco um homem, grande pesquisador das ciências naturais, que
excitado por este acidente, se pôs a explicar uma teoria que elaborara sobre a eletricidade e o galvanismo, ao
mesmo tempo nova e espantosa para mim” (SHELLEY, 2002, p. 46).
25
Tradução: “Assaltava-o uma paixão: as rochas altaneiras, as montanhas e os bosques profundos e sombrios,
com suas cores e suas formas, despertavam nele sensações e um amor que não precisavam de recônditos
encantos, nascidos da imaginação, ou de interesses emprestados pelo que a visão lhe podia proporcionar”
(SHELLEY, 2002, p. 182).
28
justamente o da criação do monstro, e expressa o estado emocional de Victor após esta
realização:Like one who, on a lonely road, / Doth walk in fear and dread,/ And, having once
turned round, walks on, / And turns no more his head; / Because he knows a frightful fiend /
Doth close behind him tread
26
(SHELLEY, 1996, p. 27).
Volney: com a sua obra Impérios Arruinados, apresenta uma legítima descrição
geográfica e historiográfica de várias nações, dando-lhes um caráter romanesco segundo
Antonio Carlos Pinho Silva e Abílio Friedman (2005). A Criatura lerá este livro e é partir dele
que saberá se orientar em direção a Genebra para procurar seu criador, conhecerá as regiões
inabitadas do planeta e aprenderá o caminho para o Pólo Norte que lhe servirá de esconderijo e
sepultura:
The book from which Felix instructed Safie was Volney's Ruins of
Empires... Through this work I obtained a cursory knowledge of history, and
a view of the several empires at present existing in the world; it gave me an
insight into the manners, governments, and religions of the different nations
of the earth
27
(SHELLEY, 1996, p. 61).
Plutarco: fez um verdadeiro catálogo de personalidades mistura de heróis, figuras
míticas, e exemplares cidadãos estadistas –, era o sacerdote de Apolo e escreveu 46 biografias
comparadas e mais 4 adicionais. Intitulou-as de os Varões Ilustres (que conhecemos como Vidas
Ilustres), onde rende seu tributo às grandes figuras do mundo greco-romano, humanizando-os
ao coletar-lhes anedotas e pequenos incidentes. Foi nele que Shakespeare abeberou-se para
encenar Antônio e Cleópatra, e Júlio César, segundo Michel Jalil Fauza (2005), enquanto Jean-
Jacques Rousseau recomendava-o como leitura obrigatória na formação do caráter dos jovens.
O próprio Plutarco, que criou um cânone, isto é, uma apresentação padrão para as vidas que
26
Tradução: Como alguém que numa estrada solitária, caminha temeroso e aterrorizado, e, tendo olhado em
derredor, avança, sem virar mais a cabeça; por saber que um terrível inimigo aproxima-se por trás dele”
(SHELLEY, 2002, p. 67).
27
Tradução: “O livro com que Félix instruía Safie era Impérios Arruinados de Volney... Através deste livro,
obtive um breve conhecimento da história e uma visão dos impérios atualmente existentes no mundo. Consegui
compreender os costumes, os governos e as religiões das diferentes nações da Terra” (SHELLEY, 2002, p. 138).
29
escreveu em grossos volumes, concorda que não fez história no sentido maior, de investigação
acurada, como assume, por exemplo, com um Tucídides, mas simples biografias, algo mais
descomprometido com os rigores metodológicos, mas que até hoje atrai um universo maior de
leitores. Na obra Frankenstein, quem cita a obra de Plutarco é a Criatura; esta conta que sentiu
grande comoção ao tomar conhecimento do caráter humano através da leitura:
The volume of Plutarch's Lives, which I possessed, contained the histories of
the first founders of the ancient republics [...] but Plutarch taught me high
thoughts; he elevated me above the wretched sphere of my own reflections
to admire and love the heroes of past ages
28
(SHELLEY, 1996, p. 67).
Goethe: no romance As Tristezas de Werther é relatada a vida do jovem artista
Werther, pertencente ao mundo blasé da alta burguesia, que refugia-se numa bucólica vila, onde
busca o modo de vida contemplativo. Cerca-se dos clássicos gregos, passeia pelos campos e
quase que rejeita as frivolidades burguesas, inclusive arengando contra alguns cânones daquela
sociedade. Mas ele próprio está preso àquela condição: sua existência revela a caricatura
daquele savoir-vivre burguês: freqüenta bailes das altas rodas, relaciona-se com a aristocracia e
nunca revela a que veio: é apenas a potência de um artista, que não se manifesta. Pois esta
figura de homem acaba por vergar-se à paixão (impossível) por Lotte. A menina agrada-lhe por
seus modos e pelas feições pintadas em tons pastéis pelo romântico Goethe. Mas é noiva de
Albert, que se torna barreira intransponível a Werther: a lealdade e correção impedem-no do ato
mais verdadeiramente sincero. E é em meio a este enredo de amor-ideal e renúncia que
permeiam os conceitos de suicídio de Werther, segundo Nelson Ascher (2004, p. 16). Em
Frankenstein, a Criatura sente uma profunda identificação com o personagem Werther, não
apenas por procurar o refúgio no campo, mas por se sentir preso na terrível condição de
28
Tradução: “O volume que eu possuía das Vidas Ilustres de Plutarco continha as histórias dos primeiros
fundadores das antigas repúblicas... mas Plutarco ensinou-me pensamentos mais sublimes, elevou-me para acima
da ruinosa esfera de minhas próprias reflexões, ensinando-me a admirar e amar os heróis do passado”
(SHELLEY, 2002, p. 149-50).
30
rejeitado que seu criador lhe causou e por tomar o romance como verídico, concedia ao
personagem atributos quase divinos:
In the Sorrows of Werther, besides the interest of its simple and affecting
story, so many opinions are canvassed, and so many lights thrown upon what
had hitherto been to me obscure subjects, that I found in it a never-ending
source of speculation and astonishment... I thought Werther himself a more
divine being than I had ever beheld or imagined; his character contained no
pretension, but it sunk deep.
29
(SHELLEY, 1996, p. 66-67).
Roger Shattuck (2000, p. 84-111) tenta identificar um paralelo entre o personagem
Victor Frankenstein com mais um personagem que título a outro romance de Goethe,
Fausto, pois ambos o médicos e cientistas obcecados por vencer a idéia da morte, ambos
perdem suas amadas em conseqüência dos seus erros e ambos criam um ser deformado. A
Criatura, neste caso, é posta em paralelo com o Homúnculo, ser grotesco criado por Fausto, e
ainda com Mefistófeles, por ser deficiente, incompleto. Como a autora Mary Shelley não faz
referência a esta obra em seu romance, não porque aprofundar este estudo no presente
trabalho.
John Milton: um dos pilares da cultura de língua inglesa, bem como um clássico em
que a erudição épica renascentista se associa à sonoridade retórica e religiosa do barroco; sua
obra-prima é a epopéia Paraíso Perdido, em que recria o conflito entre Lúcifer e Deus e o mito
da criação do homem, bem como sua expulsão do paraíso com uma metafísica monista (dita
também filosofia biológica, em que a realidade total se reduz sempre à
unidade monista da matéria, vida e espírito; neste sentido não Deus
separado do mundo, nem alma separada da matéria, da qual o
psiquismo é apenas uma epifenômeno; encontrou fundamento através das
teorias positivistas de Rousseau e Comte) e uma espécie de materialismo cristão.
29
Tradução: “Em As Tristezas de Werther, além do interesse da narrativa simples e comovente, são examinadas
tantas opiniões e tanta luz foi lançada sobre o que até então foram os meus temas obscuros, que nele eu encontrei
uma infindável fonte de especulação e espanto... Eu achava que Werther era, em si mesmo, um ser mais divino
de quantos eu vira ou imaginara; seu caráter, sem o pretender, penetrava no fundo de minha alma”
(SHELLEY, 2002, p. 149).
31
Composta de doze livros e escrita em pentâmetros ingleses, a obra apresenta a inovação dos
versos brancos, com extraordinário senso de ritmo e sonoridade. A relação da obra Frankenstein
com o Paraíso Perdido é profundamente evidente para Harold Bloom (2002, p. 265), não
apenas por causa das duas histórias abordarem a criação e queda do homem, mas por mostrar
que geralmente o grotesco, o anômalo é o símbolo do mal. Além da epígrafe ser um trecho do
texto de Milton, onde Adão aborda a Deus sobre a sua criação, quem tomará conhecimento no
romance de Mary Shelley sobre esta história é a Criatura, ora se identificando com Adão, por
ser um objeto de criação, ora o invejando por ter um Criador sempre presente; outras vezes se
identificando com Satanás, pela rejeição porque passa e pela inveja do convívio harmonioso
entre as pessoas: But Paradise Lost excited different and far deeper emotions... Many times I
considered Satan as the fitter emblem of my condition; for often, like him, when I viewed the
bliss of my protectors, the bitter gall of envy rose within me
30
(SHELLEY, 1996, p. 67).
Schiller: importante poeta, dramaturgo e filósofo alemão, interessado, sobretudo, na
Estética; faleceu jovem, mas deixou poesias, peças teatrais e escritos que marcaram a literatura
e a filosofia alemãs. No livro, ele não é mencionado; mas faz uma pequena participação no
filme de Kenneth Brannagh, como um jovem e arrogante estudante de Ingolstadt, que se
interpõe no caminho de Victor e Henry Clerval.
30
Tradução: Mas o Paraíso Perdido provocou-me sensações ainda mais diversas e profundas... muitas vezes
considerei Satanás como o emblema que mais se adaptava à minha situação, pois não raro, como ele, quando eu
via a alegria de meus protetores, sentia dentro de mim o gosto amargo da inveja”. (SHELLEY, 2002, p. 150-1).
32
3 A CRIAÇÃO FANTÁSTICA DO HOMEM E O CONHECIMENTO DE MUNDO
3.1 Conceito de Fantástico
Primeiramente, para que se possa entrar no estudo do elemento fantástico dentro da
obra de Mary Shelley, faz-se necessário conceitualizar o termo. Segundo Aurélio Buarque de
Holanda Ferreira (2004, p. 338), o fantástico é o elemento existente apenas na fantasia, no
imaginário de cada um, também pode representar o que é extraordinário ou o que é falso e
simulado. Também na obra de Selma Calasans Rodrigues (1988, p. 9), o termo fantástico (do
latim phantasticu, por sua vez do grego phantastikós, os dois oriundos de phantasia) recebe
conceito similar, acrescentando que se aplica melhor a um fenômeno de caráter artístico, como é
a literatura, cujo universo é sempre ficcional por excelência, por mais que se queira aproximá-lo
do real.
No sentido restrito, o fantástico ainda se elabora a partir da rejeição que o Século das
Luzes faz do pensamento teológico medieval e de toda a metafísica. Nesse sentido ele operou
uma transformação sem precedentes do pensamento ocidental. A partir do grande movimento de
racionalização, pode-se afirmar que se procurou absorver os antigos terrores e dar uma
explicação leiga para a história da humanidade. Entretanto, a racionalidade se depara com um
limite imposto pela própria situação do homem que a pensa, segundo Cristina Maria Teixeira
Martinho (2005).
A moderna narrativa fantástica remonta, em última instância, ao romance gótico
(Gothic Novel) que surgiu no século XVIII. Ao contrário de seu ancestral que explorava
diretamente os ambientes macabros, os lances dramáticos e o ritmo acelerado de aventura o
fantástico foi paulatinamente sendo depurado ao longo do século XIX até chegar no XX com
um arsenal narrativo mais sutil, enredos mais condensados, escritura mais requintada. Seu
campo temático, porém, foi abandonando a rápida sucessão de acontecimentos surpreendentes,
assustadores e emocionantes para adentrar esferas mais complexas que o aproximam do mito e
do símbolo. Cynhtia Hamberg (2005) relata que a narrativa fantástica tornou-se receptiva à
inquietação perante os avanços científicos e tecnológicos (principalmente com a obra
Frankenstein, de Mary Shelley), aos devaneios oníricos ou de faz-de-conta, às angústias
existenciais e psicológicas, e à sensação de impotência frente às opressões.
Qualquer que seja seu pretexto ou contexto, a narrativa fantástica efetua uma
reavaliação dos pressupostos da realidade, conforme refere-se Selma Calasans Rodrigues (1988,
p. 35), questionando sua natureza precípua e colocando em dúvida nossa capacidade de
efetivamente captá-la através da percepção dos sentidos. Em conseqüência disso, o fantástico
faz emergir a incerteza e o desconforto diante daquilo que era tido como familiar. Ao contrário
do gênero Fantasy (The Lord of the Rings, de J. R. R. Tolkien), tão ao gosto dos leitores
modernos, o fantástico não cria mundos fabulosos, distintos do nosso e povoados por criaturas
imaginárias, mas revela e problematiza a vida e o ambiente que conhecemos no dia-a-dia.
Esse “realismo” do fantástico não implica, porém, em uma limitação ou pauperização
de seu alcance na abordagem de problemas humanos. Antes, é a fonte de sua complexidade
estética e de representação social estando aí justamente sua distinção da simples “história de
horror”, composta de personagens e situações macabras visando não somente o efeito de terror,
na visão de Cristina Maria Teixeira Martinho (2005). Bom exemplo dessa diferença está entre o
livro Frankenstein ou o novo Prometeu (1818), de Mary Shelley que realiza um profundo
34
estudo da psicologia humana (efeitos da rejeição e falta de afeto sobre o indivíduo) e também
das relações sociais (preconceitos e valorização das aparências causando a marginalização
daqueles que formam uma minoria) e diversas versões cinematográficas da mesma obra, em
que as nuances do texto original estão apagadas e, em seu lugar, é apresentada apenas a
trajetória de um monstro feio e mau.
Selma Calasans Rodrigues (1988, p. 14) relata que ao longo do caminho, o fantástico
atravessou fases distintas, em que lançou mão de expedientes diferentes para criar a sensação de
insegurança e, se inicialmente o insólito era produzido no nível semântico, no século XX ele se
infiltra no nível sintático: em fins do século XVIII e começo do XIX, o fantástico exigia a
presença do elemento sobrenatural, advindo o medo da figura de um fantasma ou monstro (a
causa da angústia está no ambiente externo); também passa a explorar a dimensão psicológica,
sendo o sobrenatural substituído por imagens assustadoras cuja origem está na loucura, em
alucinações, pesadelos (a causa da angústia está no interior do sujeito).
Ainda em Selma Calasans Rodrigues (1988, p. 17), encontramos o parecer de Arvède
Barine sobre o fantástico na literatura do século XVIII:
Nosso século foi favorável à literatura fantástica. Nele ela encontrou seu
renascimento, do qual nós não vimos senão a aurora. A honra dessa nova
floração tem origem provavelmente na ciência. Quando essa nos ensina que
uma ligeira alteração de nossa retina faria o mundo para sempre descolorido,
ela sugere a todos o pensamento de que o mundo real poderia bem não ser
uma aparência, como os filósofos o sabiam. Quando ela nos provê de
criaturas dotadas de órgãos e de sentidos diferentes dos nossos, ela faz
pressentir que deve haver tantas aparências de mundos quantas formas de
olhos e de variedades de entendimento. A ciência torna-se assim a aliada e,
mais ainda, a inspiradora do escritor fantástico: ela o encoraja a sonhar
mundos imaginários ao falar-lhe sem cessar de mundos ignorados.
(RODRIGUES,1988, p. 17).
Justamente em decorrência dos fatos acima citados é que se descobriu a importância
do indivíduo, o despontar de diversos elementos basilares para a modernidade como a
declaração dos direitos humanos, o acesso universal à educação e conseqüente ampliação do
35
público leitor, a transformação da arte em mercadoria e o surgimento da literatura de massas –
ou seja, a narrativa fantástica impôs-se como veículo de expressão do sujeito e mecanismo de
crítica e transgressão da situação vigente.
3.2 A Criação Fantástica do Humano em Frankenstein
Mary Shelley trabalha a interação obra e mundo, apresentando uma obra que pode ser
lida de diversas formas. Produzida num contexto que via surgir o declínio do poeta como
demiurgo, o ato de criar toma a direção da fantasia sobrenatural, fugindo de uma concretização
esquematizada, conforme João Luís Almeida Machado (2005). E isto tem a ver com a
depreensão do imaginário e sua natureza pois:
O difuso do imaginário é a condição para que ele seja capaz de assumir
configurações diversas, o que é sempre exigido pois se trata de tornar o
imaginário apto para o uso. A ficção e a configuração apta para o uso do
imaginário (porque) cria possibilidades dele se organizar, mas provoca
tematizações pragmáticas correspondentes. A ficção é a configuração
contrafactual da realidade existente; ela ultrapassa os limites dos dois planos
- imaginário e real. (LIMA, 1983, p. 379).
Mary Shelley trabalha esta dialética do imaginário e propõe três narrativas que se
interconectam, contadas por homens totalmente destituídos do sentimento de vida familiar.
Cada um deles apresenta a perspectiva de negação desta experiência. Walton, Victor e a criatura
são seres que problematizam o TER da vida burguesa, segundo Luís Carlos Calil (2005).
Walton está determinado a encontrar regiões no Pólo Norte para nelas viver e deseja partilhar
sua descoberta com a humanidade, da mesma maneira que Victor. Os dois se encontram
duplos / parceiros no isolamento. Victor, para gerar uma vida artificial se exila da humanidade,
dos confortos da casa, da noiva. Incapaz de confessar seus atos, não consegue avisar sua família
do perigo que a ronda. A Criatura, centro da narrativa, por sua vez, está colocada como um
marginal na sociedade; sem família, apreende o mundo pelos livros e, enfurecida por
36
comportamentos para ela incompreensíveis, aniquila todos que possam contribuir, de alguma
forma, para com a vida feliz de seu criador.
Vivendo numa época que mostra os sinais da decadência de uma ordem que não
satisfazia as demandas do real, na opinião de Harold Bloom (2002, p. 268), Mary Shelley
parece impregnada das idéias da mãe, famosa escritora feminista, e delas se serve para criar
uma fantasia que fala sobre os efeitos periculosos e perniciosos da manutenção rígida das
esferas masculina e feminina do domínio público. Trabalho versus lazer, razão versus
imaginação são a tônica que impulsiona subversivamente o real ficcional. Inocência versus
marginalidade são eixos que determinam os narradores.
De acordo com Cristina Maria Teixeira Martinho (2005), as três narrativas
concêntricas impõem um desdobramento linear da linha do enredo. Este inicia-se e termina com
Walton, escrevendo para sua irmã inglesa, da periferia exterior do mundo civilizado, limite
entre o conhecido e o desconhecido. Deste ponto, caminhamos para dentro do círculo da
civilização, os arrabaldes rurais de Genebra, centro da ética Protestante. Neste lugar, homens e
mulheres demonstram os bons sentimentos, a compostura e o decoro decorrentes das
convenções tradicionais. As famílias ligadas à temática estão bem codificadas. Estas famílias
não mostram a visão de tantos romances da época, com as aventuras que sempre apresentaram
finais felizes, triunfando sobre qualquer posicionamento contrário.
Temos, em Frankenstein, na visão de Harold Bloom (2002, p. 270), o caminho oposto.
Os leitores se deparam primeiro com a civilização e seus descontentes, em suas tentativas de
resgatar-se dentro desta sociedade com aventuras miraculosas que atinjam o valor de uma
regeneração de vida. A circularidade do enredo enfatiza um outro tipo de vida mantida pela
consciência das personagens que se vinculam a outros valores. Cegos para quaisquer outros
contextos, Walton e Victor, na realidade, não se compreenderam ainda como trânsfugos sociais.
37
Mary Shelley não tematiza o processo inconsciente que os leva ao isolamento, mas trabalha a
transcendência dos valores que permeiam suas ações.
Vale ressaltar que este trabalho não tem a intenção de se posicionar sob uma ou outra
perspectiva, mas sim o de apresentá-las como pólos de pensamento concernentes aos caminhos
da evolução (não propriamente biológica, mas também social), configurando na dialética citada
anteriormente. Estaríamos, pois, diante de duas provisões: aquela por base rousseauniana, de
apego à natureza e a seus costumes, à cultura rústica e tribal que resulta em convivência justa; e
a que dita o progresso, o desenvolvimento como percalço natural do homem, destino natural de
sua espécie e que a ela faz jus como característica significante do processo vital e de suas
gerações.
É neste ponto que entra Shelley e sua advertência com relação ao furor científico
vivido principalmente no século XVIII, colocando em plena Europa uma criança deformada,
mal-amparada e, o que é pior, por ninguém aceita, conforme Cristina Maria Teixeira Martinho
(2005). The being”, por vezes não propriamente traduzido como “o monstro”, não cresce de
forma diferente aos “párias” das sociedades modernas, sem o mínimo possível de assistência ou
compaixão, e dessa forma se transforma no assassino de consciência incomum. É, sem dúvida,
o personagem mais humano da obra, mesmo sendo o único que não foi gerado como um.
Michel Jalil Fauza (2005) alega que por essa razão e a partir do pressuposto de sua
época, Frankenstein é consensualmente considerado o pai da ficção científica, e não apenas um
conto de horror, como assim se transformou para muitos leitores:
Na verdade, trata-se do grande, senão único mito original produzido
pela idade da ciência e da técnica, a cujos primórdios sua autora
assistiu na Inglaterra e cuja culminação estamos hoje vivendo pelo
mundo todo com o advento da cibernética e da engenharia genética
(FAUZA, 2005).
A complementar estas palavras, diz-se que a “culminação” ainda está por vir, já que no
início do século XXI, é difícil a tarefa de definir o que já aconteceu, o que está acontecendo e o
38
que está por vir em termos de tecnologia e ciência. Porém, é certo que o “ser” de Frankenstein,
criado a partir do casamento “homem & ciência” foi o primeiro de muitos humanóides da
espécie na literatura, segundo Edgar Franco (2005).
De conformidade com José Paulo Paes (1997, p. 235), a respeito deste tópico, no
capítulo V de Frankenstein, onde é descrito o momento decisivo em que o monstro se anima,
inexiste qualquer indicação acerca dos meios utilizados pelo seu criador para insuflar-lhe a
“centelha da vida”. Esta é produto, todavia, não de artes mágicas ou de recurso ao sobrenatural,
como na ficção gótica, mas de uma descoberta científica; a artificialidade dessa recriação de
vida está bem marcada, no prefácio de 1831, pela alusão ao uso de uma máquina para consegui-
la e ao próprio caráter maquinal dos movimentos executados pelo monstro, que parece
participar dessa simbiose entre o mecânico e o biológico característica dos cyborgs da moderna
ficção científica.
Na versão cinematográfica de Kenneth Brannagh, é possível chegar mais longe, pois
os roteiristas mergulharam nas fontes intertextuais citadas na obra e criaram uma forma de
apresentar a criação do monstro ao público. Primeiramente, Victor, obcecado, invade o
laboratório do professor Waldman e rouba suas anotações. Constata que o professor usou
material errado, precisa de fontes auxiliares; aqui está a experiência: um fracasso, o ser
reanimado é deformado e a sua figura causa asco; esse fator depende de matéria-prima
apropriada”, a matéria-prima a que se refere seriam os cadáveres (pressupõe-se, de corpos
ainda “frescos”). Utilizando todos os seus conhecimentos sobre a eletricidade, o galvanismo e
os estudos de vários cientistas, além de acupuntura e uma idéia original de utilizar “líquido
amniótico” que seria o responsável pela manutenção da vida nos estágios iniciais, a Criatura
construída e modelada recebe, além de descargas elétricas, vários choques de enguias que estão
na solução preparada por Victor, e é reanimada. Nesse ponto da criação humana, tanto de forma
implícita no romance, como explícita no filme, define-se o elemento fantástico a partir do efeito
39
de incerteza e da hesitação provocada no receptor em face de um acontecimento sobrenatural,
visto de uma forma plausível.
Para Roger Shattuck (2000, p. 100), não lugar para gracejos e é lembrado ao
receptor que a produção artificial de vida tem conseqüências terríveis, como se pode comprovar
logo depois que Frankenstein vida à Criatura; essa empresa recebe os epítetos de
“catástrofe... horror”, operação que traz à luz “um monstro... desgraçado... um cadáver
demoníaco” (capítulo V). Ainda nesta ocasião, Victor foge para o seu quarto e sonha com
Elizabeth, sua irmã de criação e verdadeiro amor. Em seus braços, ela se transforma no cadáver
cheio de vermes de sua falecida mãe. É difícil evitar uma interpretação simbólica: Frankenstein,
em busca da realização de um milagre científico que mereça admiração, descobre ter violentado
a própria Mãe Natureza.
Como se pode observar por meio desse relato, a literatura fantástica abre um outro
precedente para a análise, as visões oníricas (os sonhos), e estas, no mundo gótico, geralmente
explicitam, desde o início, a presença do perigo e da morte iminente, a par de uma grande luta
para vencê-la. Em conformidade com o romance, sabe-se que é justamente o que ocorre na vida
de Victor ao longo do seu relato.
Agora, no que se refere à Criatura, Harold Bloom (2002, p. 264-265) alega que a
mesma, atraindo seu vingativo criador para o mundo gelado que representa o Ártico, é uma
Emanação (forma ideal do desejo) perseguida por um Espectro (a sombra), com a enorme
diferença de ser uma Emanação disforme, mais um pesadelo da realidade do que um sonho de
desejo. Embora mais odiado do que amado, a Criatura é a representação total do poder criador
de Victor e mais imaginativo que o seu criador. A Criatura é, ao mesmo tempo, mais intelectual
e mais emocional que seu criador; com razão, excede de muito a Frankenstein como o Adão de
Milton excede o Deus representado por Milton no Paraíso Perdido. O maior paradoxo e a mais
espantosa realização do romance de Mary Shelley é que o monstro é mais humano que seu
40
criador. Este, ser sem nome, é mais digno de amor que seu criador, e mais odioso, mais digno de
pena e quem mais se deve temer e, sobretudo mais apto para causar ao receptor um choque
maior de conscientização no qual o reconhecimento estético compele à mais elevada concepção
do ego. Assim como o Espectro e a Emanação, Frankenstein e sua Criatura constituem as
metades solipsísticas
31
de um só eu. Victor é a mente e as emoções voltadas para o interior de si
mesmo, e sua Criatura, a mente e as emoções dirigidas imaginariamente para o exterior,
procurando maior humanização através do confronto com os outros egos.
Vale notar também que, com a morte próxima, Victor mostra grande agitação ao falar
ao capitão do navio:
Farewell, Walton! Seek happiness in tranquillity and avoid ambition, even if
it be only the apparently innocent one of distinguishing yourself in science
and discoveries. Yet why do I say this? I have myself been blasted in these
hopes, yet another may succeed
32
(SHELLEY, 1996, p. 120).
Ou seja, o desafio que lança a si mesmo e a mudança de direção no final do trecho
exigem, de acordo com Roger Shattuck (2000, p. 101), uma pausa clara e marcam o
reaparecimento do cientista fanático que deseja passar adiante o bastão. Mesmo na morte, o Dr.
Frankenstein, o Moderno Prometeu, não consegue descartar os impulsos ambiciosos que
destruíram sua vida.
Nesse momento, surge a Criatura. Nas quatro últimas páginas, sobre o cadáver de
Victor, ela faz um longo discurso a Walton. De modo melodramático, o ser alega haver sofrido
mais que seu criador, que perdera os entes mais próximos violentamente assassinados.No
guilt, no mischief, no malignity, no misery, can be found comparable to mine
33
(SHELLEY,
1996, p. 121). Então, para finalizar seus atos, a Criatura promete acender uma pira funerária, na
31
Solipsismo: doutrina filosófica que considera o “eu” como única realidade no mundo. (BLOOM, 2002, p. 265)
32
Tradução: “Adeus, Walton! Procure a felicidade na tranqüilidade e evite a ambição, mesmo que seja apenas
aparente, para distingui-lo na ciência ou em alguma descoberta. Contudo, por que digo isso? Eu tive as minhas
esperanças destruídas, mas outro pode ser bem-sucedido”. (SHELLEY, 2002, p. 254).
33
Tradução: “Não existe culpa, maldade, desgraça, ou miséria que se possa comparar à minha” (SHELLEY,
2002, p. 258).
41
qual pretende ser consumida. Seu exagero é tão grotesco quanto melodramático. A batalha a que
se dedicam esses terríveis inimigos é a luta pela glória, esse impulso viril que inspirou horror à
autora, levando-a a escrever seu livro como um protesto. A Criatura usurpa ao homem que o
criou o papel de Prometeu sofredor. Realmente, não é de se espantar que no mito resultante e na
visão popular o nome Frankenstein seja assimilado à Criatura, e não ao criador.
Na opinião de Edgar Franco (2005), a literatura, muitas vezes, tem o poder de
antecipar os fatos, ou melhor, profetizar sobre eles. Frankenstein, como literatura fantástica,
pôde prever o surgimento da clonagem humana. Para ele, o romance pode ser caracterizado
como o marco da literatura de ficção científica, pelo fato de narrar a história da criação de um
ser humano híbrido, formado pela união de partes humanas retiradas de diversos corpos. Na
época em que foi escrito, a ciência ainda estava distante de desvendar a estrutura do DNA, mas
até hoje o romance demonstra sua atualidade servindo de metáfora para ecologistas do
Greenpeace batizarem os biotecnólogos que desenvolvem pesquisas de hibridização de genes
humanos com animais para empresas de bioengenharia, eles foram apelidados de “Cientistas-
Frankenstein”, numa alusão ao “Dr. Victor Frankenstein”, responsável pela criação do monstro.
O romance questiona até que ponto a ciência pode subverter a ética e desafiar os princípios da
natureza, subvertendo a ordem natural das coisas. No final, a Criatura volta-se contra o criador,
demonstrando o posicionamento da autora em oposição à onipotência da ciência.
Essa análise da criação do ser pelo Dr. Frankenstein, e do romance por Mary Shelley,
leva ao último dos elementos contextualizantes do fantástico, que Selma Calasans Rodrigues
(1988, p. 37) chama de “inanimado animado”. Compreendendo, desde já, por inanimado, aquilo
que o é dotado de alma, de movimento próprio proveniente da vontade (um cadáver, por
exemplo); e ao contrário, o animado, o que tem alma, vontade e movimentos próprios; pode-se
enfrentar alguns motivos fantásticos como o das estátuas animadas (no caso Prometeu,
42
construindo a estátua de barro), ou outros que lhe são homólogos, como, no romance
Frankenstein, a reanimação de um cadáver.
3.3 Conhecimento de Mundo
Frankenstein, da autora inglesa Mary Shelley, é um exemplo clássico da idealização do
homem super-poderoso e do encantamento do mundo que o circunda, este a léguas da
simplicidade da vida cotidiana. Em outras palavras, o livro é um representante por excelência da
literatura tica e constitui uma espécie de resposta aos ideais racionalistas em voga na Europa
até então, segundo Cynthia Hamberg (2005).
Como diz Gabriela Almeida (2005), é desta permissividade criativa que nascem os
mais inventivos exemplos deste tipo de literatura. O escritor mergulha num mundo sobrenatural
para ser salvo por seres superiores e circunstâncias que nada têm a ver com sua triste realidade.
Frankenstein é considerado marco por reunir todos os elementos estilísticos característicos do
gênero gótico, ao mesmo tempo em que instaura as premissas do romantismo. Trata-se da
história de Victor Frankenstein que, numa busca sedenta pelo conhecimento científico, acaba
perdendo o controle sobre o monstro que resulta de seus experimentos. As premissas do gótico
se antecipam à própria história: temos, em vista do próprio tema, um romance criativo, livre de
dogmas e formalismos de escrita, onde a natureza é idealizada e se acredita viver numa nova era
de possibilidades e transformações dantes inimagináveis.
Do ponto de vista ético e religioso, a obra busca criticar, de certa forma, a toda
tentativa de transgressão da ordem natural e divina. Ao dar vida à Criatura, Victor está tentando
superar, ou equiparar-se, a Deus. Com isso, transgride as leis divinas e é punido com o
sofrimento e a morte. E se, por um lado, a obra faz uma crítica à superação de Deus, por outro,
defende a razão científica. Fato esse que é percebido quando Victor destrói a “noiva da
43
Criatura”, evitando, assim, a procriação dessa espécie e, quem sabe, o extermínio da raça
humana.
Para João Luís Almeida Machado (2005), o leitor é levado a conhecer a vida do
protagonista solitária e egocêntrica, como o são os protagonistas de romances góticos e
todos os pormenores que o conduzem da criação do monstro à sua própria autodestruição.
Victor é ambicioso no que diz respeito ao conhecimento; tem, à sua espera, uma mulher que o
ama a prima Elizabeth e com quem pretende se casar depois de ter concluído seus planos
acadêmicos. O ideal romântico pincelado pela autora na expectativa de união desses dois
personagens é interrompido pelos efeitos da ciência, usada como elemento deflagrador das
transformações da aparente normalidade na vida do protagonista. “From this day natural
philosophy, and particularly chemistry, in the most comprehensive sense of the term, became
nearly my sole occupation
34
(SHELLEY, 1996, p. 22). A energia elétrica recém-descoberta é o
ponto alto da ciência, responsável pela criação do monstro verifica-se, daí, traços claros de
elementos de ficção científica presentes também na obra.
Alexander Martins Vianna (2005) alega que, laicizando o tema da (re)criação do
(super)homem, Mary Shelley cria um plano dramático de condenação para Frankenstein por
pretender romper a barreira entre a vida e a morte. A visão da natureza como exemplo perfeito
de força vital pressupõe a existência do ciclo entre a vida e a morte, pois a vida brota da
decomposição da matéria morta em uma projeção perpétua para o futuro. Nesse sentido, tal
espiral o pode ser rompida e, caso ocorra, estar-se-ia diante de um novo paradigma, algo
estranho a tudo existente em matéria de saber, normas, valores e convenções. Tal é a condição
existencial de um monstro. O monstro, ou “pária social”, é o sinal de que algo dentro de uma
sociedade não vai bem. No entanto, longe de contemplarem a si mesmas na imagem do
34
Tradução: “A partir daquele dia, as ciências naturais, e particularmente a química, no mais compreensível
sentido do termo, tornaram-se quase que minha única ocupação” (SHELLEY, 2002, p. 57).
44
monstro, as sociedades tendem geralmente a criar fronteiras (reais / simbólicas) para projetar no
alienígena social os seus males.
No entanto, Mary Shelley não concederá tal mecanismo de escape a Frankenstein:
afinal, a sua “escultura viva” não seria uma abstração distante perdida numa estatística, mas um
ser individual especial que, desenvolvendo razão e sensibilidade, era capaz de se fazer presente
à mente de seu criador como indivíduo e, portanto, tornou-se impossível para Victor alienar-se
dos efeitos imprevistos de sua obra – desconforto do qual é poupada a maioria dos cientistas (do
passado e do presente), sob o manto protetor da “neutralidade científica”, especialização e
finalidades nobres.
O monstro, por sua vez, é também protagonista e instaura, na narrativa, o dilema moral
que conduz à grande questão da história: a maldade do monstro pode ser compreendida, uma
vez que a ele foi negado qualquer tipo de instrução à hora de sua criação? – “How delineate the
wretch whom with such infinite pains and care I had endeavoured to form?
35
(SHELLEY,
1996, p. 25) é o que Frankenstein diz ao se deparar com a Criatura, que é jogada ao mundo
sem nenhum tipo de tutela. O monstro desaparece, aprende a lidar com os problemas do mundo
e retorna, tempos depois, em busca de uma vingança que não é gratuita, mas fundada no
ressentimento que vem como conseqüência das adversidades por quais passa.
Para Gabriela Almeida (2005), o que é mais grave é a maldade humana,
preconceituosa e intolerante; ou a maldade acionada não por opção, mas como revide ao julgo
preconceituoso dos seres-humanos? This was then the reward of my benevolence! I had saved
a human being from destruction, and, as a recompense, I now writhed under the miserable pain
of a wound, which shattered the flesh and bone
36
(SHELLEY, 1996, p. 74) relata a Criatura
35
Tradução: Como descrever o ser miserável que eu lograra formar através de sofrimentos e cuidados
infinitos?” (SHELLEY, 2002, p. 65).
36
Tradução: Foi essa então a recompensa da minha bondade! Eu salvara um ser humano da morte e, como
recompensa, contorcia-me agora com a dor miserável de uma ferida que me rasgara a carne e estraçalhara os
ossos” (SHELLEY, 2002, p. 164).
45
num monólogo em que explica o porquê de ter optado por odiar todos os homens, que o haviam
tratado mal apenas por causa de sua aparência horrenda – “Am I to be thought the only criminal
when all human kind sinned against me?
37
(SHELLEY, 1996, p. 122). O monstro, aqui, é um
personagem redondo, que evolui ao longo da trama, e que tem, de alguma forma, sua maldade
justificada.
Axel Kahn (2005) pede para que se observe o fato da Criatura ter não somente forma e
força humana, mas ter outros atributos humanos, que são a consciência, a empatia, o desejo.
Quando ela escapa e se acha na floresta, no interior da Suíça, de onde observa uma família, ela
se impressiona pela vida familiar, pela afeição do homem e da mulher, dos pais pelas suas
crianças. Ela gostaria de, também, experimentar isso. Essa é a razão pela qual vai procurar
Victor Frankenstein, o criador, e lhe pede para criar uma criatura fêmea. Não tanto para se
reproduzir, mas para ser totalmente humanizado, para o que é preciso ter uma parceira que o
olhe como tal. Ora, os homens não olham essa Criatura como um homem, como um deles,
conseqüentemente, o incapazes de interagir com ela positivamente, são incapazes de
humanizá-la. É preciso dois para ser um homem, ou, mesmo, uma Criatura humanizada, e a
Criatura pede isso a Victor Frankenstein, que começa a fabricar a mulher. Ele não chega ao final
do seu empreendimento, porque sente medo de uma geração de pequenos monstros
conquistando a Terra. Fica-se, então, diante de um ser que tem a capacidade de ser humano, que
tem a capacidade de ter uma consciência, que tem o desejo de amar, mas está proibido de
humanizar-se. Percebe-se que os seres humanos estão, de alguma forma, na situação de todos os
grandes criminosos, que não foram nunca considerados pelos outros como pertencentes ao seu
mundo. Assim as pessoas, cuja violência extraordinária tem sua origem no fato de que foram
permanentemente rejeitadas, negadas como pertencentes à humanidade. Em Frankenstein, a
Criatura representa isso. É potencialmente humana, mas é impedida de ser humanizada pela
37
Tradução: “Devo considerar-me o único criminoso, quando toda a humanidade pecou contra mim?”
(SHELLEY, 2002, p. 258).
46
única pessoa que pode fazê-lo. Reinterpreta-se assim, o mito de Frankenstein, concluindo que é
porque a tecnologia não foi até o fim nos seus propósitos que o desastre acontece e, não, porque
deu início a esse empreendimento.
Os dois parágrafos anteriores, analisados de todos os ângulos, chegam, em mais um
enfoque abordado no livro, ao preconceito ao diferente ou ao anormal, características de todas
as sociedades, principalmente as de massas. Conforme relatam Antonio Carlos Pinho Silva e
Abílio Friedman (2005), a Criatura sempre foi desprezada e maltratada pela sociedade. Sob essa
ótica, o monstro de Frankenstein, que no fundo é um ser dócil e amável, passa a ser um símbolo
dos excluídos. Essa idéia é reforçada pelas falas da Criatura estarem sempre grafadas entre
aspas e pelo fato dela não ter sequer um nome. Ela é a Criatura e mais nada, e que leva a crer
que o ser humano é um produto da natureza e da civilização.
Alexander Martins Vianna (2005) nos relata que, portanto, a tragédia de Frankenstein
contada por Mary Shelley não deixa de manifestar certos incômodos com a forma que as elites
governantes tratavam a questão social na época. A arrogância social, a afetação nas afeições e a
falta de solidariedade constroem seus próprios monstros sociais, que são jogados “para o nada
social” ou “para o mal”. Nesse sentido, não é uma condenação moralista religiosa contra o saber
médico-científico que Mary Shelley nos apresenta, mas uma provocação romântico-humanista
que pretende lembrar que o homem, em sua ânsia de tentar aperfeiçoar a si mesmo e a seu
mundo, não pode perder a sensibilidade, o que significa equilibrar de modo inclusivo as
relações entre meios e fins. Tal é a lição que Frankenstein quer deixar para Walton em seus
últimos momentos:
In a fit of enthusiastic madness I created a rational creature, and was bound
towards him, to assure, as far as was in my power, his happiness and well-
being… I refused to create a companion for the first creature… He showed
unparalleled malignity and selfishness, in evil: he destroyed my friends; he
devoted to destruction beings who possessed exquisite sensations, happiness,
and wisdom; nor do I know where this thirst for vengeance may end.
Miserable himself, that he may render no other wretched he ought to die.
47
The task of his destruction was mine, but I have failed…That he should live
to be an instrument of mischief disturbs me
38
(SHELLEY, 1996, p. 119).
Assim, as últimas palavras de Frankenstein que concluem seu ciclo trágico estão longe
de anularem as esperanças de descobertas no campo da ciência, pois, mesmo recomendando o
afastamento do capitão de uma sorte como a sua, acaba por se lamentar e acredita que uma
outra pessoa poderia assumir o seu legado; mas as palavras ditas servem para corrigir em
Walton (que está na mesma posição do leitor) um tipo de ânsia de saber que – por desequilibrar
a relação entre meios e fins – perde a sensibilidade em relação à beleza da vida, em qualquer de
suas expressões.
Para criar um contraponto sentimental a isso, Mary Shelley expõe, logo em seguida, a
interlocução de Frankenstein com Walton e, assim, coloca o leitor num plano de suspense e
segurança em relação àquilo que deve ser entendido como a “moral da história”:
I do not know that the relation of my disasters will be useful to you; yet,
when I reflect that you are pursuing the same course, exposing yourself to
the same dangers which have rendered me what I am, I imagine that you
may deduce an apt moral from my tale; one that may direct you if you
succeed in your undertaking, and console you in case of failure. Prepare to
hear of occurrences which are usually deemed marvellous… nor can I doubt
but that my tale conveys in its series internal evidence of the truth of the
events of which it is composed
39
(SHELLEY, 1996, p. 10).
Por isso mesmo que, para Cristina Maria Teixeira Martinho (2005), o paradoxo
prometéico de Frankenstein é rico de implicações para a análise da sensibilidade romântica em
matéria de conhecimento: ele tinha em mente uma escultura viva, uma criatura superior ao seu
38
Tradução: “Num rasgo de entusiástica loucura, criei um ser racional e devia assegurar-lhe, tanto quanto me
fosse possível, sua felicidade e bem-estar... Eu recusei criar uma companheira para a primeira criatura. Ela
demonstrava uma crueldade sem par e um egoísmo diabólico; ele destruiu meus amigos; devotou-se à destruição
de seres que possuíam delicados sentimentos, eram felizes e sábios. Desgraçado ele próprio, para que não cause
mais desgraças deve morrer. A mim competia destruí-lo, mas falhei... Aflige-me pensar que ele possa ficar vivo
para ser um instrumento da desgraça” (SHELLEY, 2002, p.253-4).
39
Tradução: “Não sei em que a narração dos meus desastres lhe será útil; no entanto, quando penso que o senhor
está seguindo os mesmos caminhos, expondo-se aos mesmos perigos que me tornaram no que sou, acho que o
senhor talvez tire algum proveito da minha narrativa, uma conclusão que possa orientá-lo se for bem sucedido
em sua empresa, e consolá-lo, se falhar. Prepare-se para ouvir fatos que comumente são julgados maravilhas...
nem eu duvido que a minha narrativa reúna em si uma série de evidências internas da verdade dos
acontecimentos de que se compõe” (SHELLEY, 2002, p.31-2).
48
criador em beleza, sensibilidade, inteligência, força e resistência; mas, como tal criação poderia
ser a imagem da beleza se seu criador, para torná-la possível, privou-se de vida e afeição,
acercando-se somente da morte? A afeição e a sensibilidade são apresentadas por Mary Shelley
como medidores para definir quando a busca do saber adquire feições monstruosas. Lição cara
para a posteridade ...
49
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Frankenstein, ou o Moderno Prometeu, apareceu pela primeira vez anonimamente, em
três volumes, no ano de 1818. Ian Ousby (1994, p. 345) relata que foi um sucesso desde o
princípio, assim como um best-seller e, especialmente, uma das maiores presenças culturais e
literárias de todos os tempos. Todas as opiniões da crítica eram-lhe favoráveis. Por exemplo,
Walter Scott escreveu, em Blackwood, que o conto, “apesar dos incidentes selvagens, é escrito
num inglês planejado e forçado, sem apresentar aquela mistura hiperbólica germânica com que
normalmente textos fantásticos são apresentados”. Ele elogiou o autor – erroneamente pensando
que era Percy Shelley pelo “gênio original e o encantador poder de expressão”. Até mesmo a
opinião mais hostil, emitida por John Wilson Croker, na Revista Trimestral, teria estimulado o
interesse:
Nossos leitores perceberão através deste resumo, o que é o tecido horroroso
de absurdo e de asquerosidade que este trabalho contém... Os sonhos de
loucura são encarnados num forte e notável idioma insano e, o autor, apesar
da sua racionalidade no prefácio, freqüentemente nos deixa em dúvida sobre
a sua própria opinião a respeito de seu herói... Frankenstein tem passagens
intrigantes e rastejantes. (STILLINGER, 1996, p. 11).
O autor, cuja identidade foi revelada na página do título na segunda edição, em
1823, era Mary Shelley, filha dos dois escritores radicais mais conhecidos na Inglaterra no final
do século XVIII. No prefácio da obra em inglês, feito por Jack Stillinger (1996, p. 06) uma
biografia sobre a autora, a qual é parafraseada nestas considerações para auxiliar um pouco
mais na compreensão da história como um todo. O pai dela era William Godwin, filósofo
influente e novelista muito ligado ao aspecto judicial e político do Romantismo. Sua mãe era
Mary Wollstonecraft, autora de artigos para revistas, cartas de viagem, traduções, um romance,
uma história contemporânea da Revolução Francesa e uma Reivindicação dos Direitos das
Mulheres, o trabalho mais importante sobre os direitos das mulheres antes de J.S. Mill e o seu
Sujeição das Mulheres, quase oitenta anos depois. Wollstonecraft faleceu alguns dias depois de
dar à luz a Mary, no final de agosto de 1797; assim, a autora de Frankenstein, assim como todos
os personagens importantes de sua trama, não teve mãe. A jovem Mary passou uma parte de sua
vida na Escócia e outra em Londres. Aos dezesseis anos, ela conheceu o poeta Percy Shelley,
então com vinte e um anos, que era um admirador e spede freqüente do seu pai; eles se
apaixonaram, Mary engravidou, e o casal foi morar junto no verão de 1814. Durante os dois
anos que se seguiram a sua união, eles viveram em constantes dificuldades financeiras. Seu
primeiro filho, uma menina, nasceu prematuramente em fevereiro de 1815 e morreu alguns dias
depois; o segundo filho, William a quem Mary deu nome ao irmão mais novo de Victor
Frankenstein, “queridinho William”, foi a primeira vítima da Criatura nasceu depois de onze
meses, em janeiro de 1816.
No verão de 1816, os Shelley foram morar na Suíça, residindo na cidade de Colônia há
pouca distância de Genebra, na costa sul do lago. Estava lá, no meio do mês de junho, um
vizinho próximo, Lord Byron, quando Mary Shelley começou a escrever Frankenstein. Ela
recorda os detalhes na “Introdução da Autora”, feita para a terceira edição em 1831, onde ela
tenta responder a pergunta: “Como é que eu, então uma jovem, pude pensar e discorrer sobre
um assunto tão horrível?”( SHELLEY, 2002, p. 5). Como o tempo não estava bom, Mary
Shelley, seu marido e amigos mantiveram-se no interior dum castelo lendo histórias alemãs de
fantasmas uns para os outros, até Lord Byron propor uma competição para a criação de uma
história fantasmagórica. “Dediquei-me a pensar numa história” (SHELLEY, 2002, p. 8) ela
51
tentava escrever, mas não conseguia criar nada ainda. “- encontrou a história?
perguntavam-me todos os dias, e eu era obrigada a responder com uma mortificante negativa”
(SHELLEY, 2002, p. 9). Mas numa noite, participando de uma longa conversa sobre “o
princípio da natureza e da vida”, algumas experiências do médico Erasmus Darwin, e a
possibilidade de se reanimar um cadáver através do galvanismo, Mary Shelley teve a sua
inspiração:
A noite escoou por sobre essa conversa, e até mesmo a hora das bruxarias
muito havia passado, quando nos retiramos para repousar. Coloquei a cabeça
sobre o travesseiro, mas não conseguia dormir, nem podia dizer que eu
estivesse pensando. Minha imaginação, solta, possuía-me, guiava-me,
dotando as sucessivas imagens que se erguiam em minha mente de uma
clareza que ia além dos habituais limites do sonho. Eu via com os olhos
fechados, mas com uma penetrante visão mental –, eu via o pálido estudioso
das artes profanas ajoelhado junto à coisa que ele tinha reunido. Eu via o
horrível espectro de um homem estendido, que, sob a ação de alguma
máquina poderosa, mostrava sinais de vida e se agitava com um movimento
meio-vivo, desajeitado. Deve ter sido medonho, pois terrivelmente espantoso
devia ser qualquer tentativa humana para imitar o estupendo mecanismo do
Criador do mundo. O sucesso deveria terrorizar o artista; ele devia fugir de
sua odiosa obra cheio de horror. Ele esperaria que, entregue a si mesma, a
centelha de vida que ele lhe comunicara extinguir-se-ia, que aquela coisa que
recebera uma animação tão imperfeita mergulharia na matéria morta, e ele
poderia então dormir na crença de que o silêncio do túmulo envolveria para
sempre a breve existência do hediondo cadáver que ele olhara como berço de
uma vida. Ele dorme; mas é acordado; abre os olhos; avista a horrorosa coisa
de ao lado de sua cama, afastando as cortinas e contemplando-o com os
olhos amarelos, vazios de expressão, mas especulativos... Foi então que a
idéia me empolgou, rápida como a luz. ‘Achei! O que me havia aterrorizado,
certamente encheria de horror aos outros; e eu tinha apenas de descrever o
espectro que assombrara o meu sono da meia-noite’. Na manhã seguinte,
anunciei que já havia encontrado uma história. Comecei a escrevê-la naquele
mesmo dia com as palavras: ‘Era uma noite lúgubre de Novembro’,
transcrevendo apenas os lúgubres terrores do meu sonho acordado.
(SHELLEY, 2002, p. 9-11).
“Sonho acordado” pode lembrar a obra de Coleridge da visão dos sonhos e da posse
imaginativa que propositadamente resultou no poema “Kubla Khan”, segundo Harold Bloom
(2002, p. 274). Frankenstein, porém, não é nenhum fragmento nem uma “curiosidade
psicológica” (como Coleridge chamou seu trabalho), mas faz perfeitamente a ficção com um
enredo complicado, camadas múltiplas de narrações, e vários textos com inesgotáveis
52
significados temáticos. Mary Shelley tinha dezoito anos quando começou a traçar sua história
no ano de 1816, e dezenove quando concluiu onze meses depois. Especialmente nas décadas
atuais, quando os romances passaram a ser consumidos avidamente pelos estudantes
universitários em cursos de inglês, é que foi acrescentado o interesse pelo trabalho sofisticado
da autora; quando ela escreveu sua história, era da mesma faixa etária dos seus leitores
modernos.
Às vezes, os leitores são chocados logo de início ao descobrir que Frankenstein é o
nome do cientista obcecado ao invés da criação monstruosa por ele criada; e que a Criatura não
nomeada, figura grotesca dos filmes populares e da televisão, é na verdade, o caráter mais
eloqüente e racional do romance. Mary Shelley começa a oferecer pistas sobre as suas intenções
com a edição de 1818, onde no subtítulo compara Victor Frankenstein a Prometeu, o titã
conhecido na mitologia grega por sua defesa humanitária contra a tirania o ser que roubou o
fogo dos deuses para aperfeiçoar sua criação do homem, e que foi castigado por Júpiter, sendo
encadeado numa rocha e tendo abutres a lhe devorar o fígado. Desta forma, o subtítulo é
irônico: Frankenstein é um Prometeu moderno cujos motivos humanitários iniciais (descobrir o
segredo da vida para banir as doenças que atormentam ao homem e torná-lo invulnerável à
morte violenta), são subordinados imediatamente por uma sede maníaca pela fama (a glória da
descoberta) e os seus resultados acabam sendo a destruição e a morte.
A epígrafe do romance, palavras do desesperado monólogo de Adão no fim do Paraíso
Perdido de John Milton: “Pedi eu, ó meu criador, que do barro me fizesses homem? Pedi para
que me arrancasses das trevas?” (MILTON, 2003, p. 390) subversivamente compara
Frankenstein com Deus, e a sua Criatura com o Adão pecador.
A forma epistolar da narrativa é apresentada pelo explorador Robert Walton que atua
como um tipo de elo entre os eventos da história e os leitores. Ele é o primeiro dos três
narradores do romance, suas cartas dão uma credibilidade pessoal à fantasia. Simultaneamente,
53
da mesma maneira do Ancient Mariner de Coleridge um poema que é citado e ecoa várias
vezes na trajetória do romance as cartas separam ao leitor do mundo real, ajudando-os, desta
forma, a eliminar as suas descrenças. Junto com seus marinheiros Walton segue para desbravar
o Pólo Norte, e a sua primeira visão da Criatura é como uma observação científica:
We perceived a low carriage, fixed on a sledge and drawn by dogs, pass on
towards the north, at the distance of half a mile: a being which had the shape
of a man, but apparently of gigantic stature, sat in the sledge, and guided the
dogs. We watched the rapid progress of the traveler with our telescopes.
40
(SHELLEY, 1996, p. 7).
As cartas de Walton também estabelecem os temas principais da narrativa desde o
início – em particular a oposição da ciência e da poesia (Walton é um poeta fracassado que tenta
buscar a glória desta vez como desbravador), e a importância das relações comunitárias e do
amor (Walton sente desesperadamente falta de um amigo com interesses similares ao seu para
dialogar).
O tema da ciência versus a poesia é desenvolvido subseqüentemente no contraste entre
os interesses exclusivamente científicos de Victor Frankenstein e das inclinações poéticas e
morais de sua amada prima Elizabeth e do seu amigo Henry Clerval.
O que seria mais tarde conhecido como o jargão dos oprimidos, tem na obra de Mary
Shelley o valor de uma profecia: os alicerces da futura sociedade das massas onde a relação
opressor versus oprimido se torna mais patente; a liberdade de ação torna-se mais limitada e
idéias de retaliação e vingança são a tônica de um ciclo inteiro de autodefesa, mutuamente
perniciosa e geradora da destruição. (MARTINHO, 2005).
Esta é a dinâmica central de Frankenstein. É uma narrativa sobre a dialética da
opressão na perspectiva ampla do opressor e do oprimido, perpassando para a família e daí para
a sociedade como um todo. Talvez melhor do que qualquer historia gótica, a obra retrata o
40
Tradução: “Percebemos uma carruagem baixa, fixada a um trenó e puxada por cães, que passava na direção do
Norte à distância de meia milha; uma criatura que tinha a forma de um homem, mas aparentemente de estatura
gigantesca, estava sentada no trenó e guiava os cães. Acompanhamos o progresso do viajante com nossas
lunetas’ (SHELLEY, 2002, p. 25).
54
trabalho extremo de uma forma diatônica da alteridade. Expõe com clareza os resultados
infelizes da recusa em validar as necessidades e o direito da existência de Um versus o Outro.
Ao deixar sua casa, Victor Frankenstein torna-se melancólico, inicialmente, mas o
objetivo de suas pesquisas em atingir o Conhecimento retira-o do contexto do círculo
doméstico. Chega a dar vida a sua Criatura, mas por não ser capaz de entender as vinculações
de sua ação, afasta dela qualquer tipo de elo afetivo, negligenciando seu papel. A Criatura, sem
mesmo receber nome, perde a identidade e a possibilidade de conseguir enquadrar-se
socialmente, pois o nome representa a autodefinição e a pertença social. Ser insignificante, é
sempre mencionada como “demoníaca, espectro, monstro”, sempre repelida pelos outros por
seu aspecto desproporcional, um Outro diferente e ameaçador à sociedade. Desesperada e
isolada, determina-se ao aniquilamento de ambos, criador e Criatura. A combinação dos
elementos textuais tem ressonância na vida comum; a estatura da Criatura / monstro de Victor
tem seu análogo nas máquinas que aparecem na Inglaterra e são de estatura gigantesca; a
tecnologia de então tinha monstros mecânicos enormes, que Blake em 1808 chamara de Dark
Satanic Mills”, conforme o relato de Harold Bloom (2002, p.262).
O tema das relações humanas, de fato, é um dos mais importantes que se referem à
Criatura, além da sua criação fantástica:
But where were my friends and relations? No father was watched my infant
days, no mother had blessed me with smiles and caresses… I had never yet
seen a being resembling me, or who claimed any intercourse with me
41
(SHELLEY, 1996, p. 64)
Onde o Ancient Mariner finalmente encontra o sucesso é na relação com o resto de
natureza e humanidade, todas as tentativas da Criatura para se relacionar socialmente terminam
41
Tradução: “Mas, onde estavam os meus amigos e meus parentes? Nenhum pai vigiara meus dias de criança,
nenhuma mãe me dedicara seus sorrisos e suas carícias... Jamais vira um ser semelhante a mim, que quisesse
relacionar-se comigo” (SHELLEY, 2002, p. 140-1).
55
em desastre: primeiro quando tenta se unir à família De Lacey e é violentamente rejeitada, e
depois quando é ferida ao salvar uma criança da morte.
As outras duas narrativas que compõem a obra, a de Victor Frankenstein e a da
Criatura, adicionam as preocupações que teriam sido claras aos leitores de sua época, se o
tempo não as tivesse obscurecido. As experiências de Frankenstein têm base em
questionamentos científicos importantes feitos por Mary Shelley – a evolução, chamada “debate
vitalístico” sobre o original e a natureza da vida, e o conflito entre religião e ciência inerente em
tais tópicos. Frankenstein é comparado a uma metáfora faustiana, de acordo com Roger
Shattuck (2000, p. 99), principalmente no instante em que adverte Walton sobre a busca
desmedida por conhecimento, e várias vezes, a criatura é assimilada ao Satanás de Milton.
Em vários capítulos interessantes, a Criatura é descrita como portadora de um
conhecimento autônomo, começando quando esta apreende rapidamente suas percepções frente
aos fenômenos naturais – o sol, os pássaros, a lua, as árvores – e aprendendo com facilidade o
idioma, a lógica, a literatura, a filosofia e a política. Ela também parece possuir uma bondade
natural que acaba por ser corrompida pela exposição ao comportamento humano, isto a faz
assemelhar-se às concepções românticas de inocência humana associadas à filosofia de
Rousseau. Alguns dos conteúdos políticos complexos de Frankenstein vem pelas lições que a
Criatura aprende, baseados na obra de Volney:
I heard of the division of property, of immense wealth and squalid poverty;
of rank, descent, and noble blood […] I learned that the possessions most
esteemed […] were, high and unsullied descent united with riche
42
(SHELLEY, 1996, p. 62).
42
Tradução: “Tomei conhecimento da divisão da propriedade, das imensas riquezas e da miserável pobreza das
classes, da descendência e do sangue nobre... Aprendi que os bens mais estimados... eram uma alta e imaculada
linhagem, unida à riqueza” (SHELLEY, 2002, p. 139).
56
De certa forma, é uma crítica ao imperialismo colonial, começando pela tentativa de
Walton em descobrir uma rota polar para o Pacífico (ampliando ainda mais o império), até em
outros incidentes posteriores.
Depois que seu marido morreu afogado em 1822, Mary Shelley, viúva aos vinte e
quatro anos, passou a escrever como um meio de sobrevivência. Além de escrever mais cinco
romances, artigos, livros de viagem, biografias, ela organizou e reeditou toda a obra poética de
Percy Shelley. Logicamente que nenhum dos seus trabalhos subseqüentes teve a originalidade e
o caráter fantástico de Frankenstein, nem foram mais influentes. Mas ao final, este único
romance principal teve mais efeito na imaginação popular que qualquer outro trabalho de
literatura romântica (OUSBY, 1994, p. 845).
57
REFERÊNCIAS
ABRAMS, M.H.; GREENBLATT, Stephen (ed.). The Norton Anthology of English Literature.
7. ed. New York: W.W. Norton & Company ltd., 2000, 1033 p.
ALMEIDA, Gabriela. Dr. Frankenstein: O poder criador. Disponível em:
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