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Rilvan Batista de Santana
Retalhos
Da vida
Ano 2007
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Índice
I. Apresentação
II. O casamento
III. O fantasma
IV. Filho adotivo
V. Judite
VI. Eutanásia
VII. Afrodite
VIII. O velho e o rio
IX. O quarteto
X. A vedete
XI. A dama de preto
XII. As gêmeas
Apresentação
O prefácio é um texto que antecede e apresenta uma obra escrita. Geralmente, não é feita
pelo autor da obra. Alguém, que tem afinidade com o escritor ou com o seu pensamento
teórico. Ele é designado pelo autor, pela editora ou pelos parentes, quando a edição é
póstuma. Não tenho ninguém para delegar esse mister. Não sou lido, não sou conhecido,
não sei se os textos que eu produzo sequer merecem uma edição.
Porém, produzo esses textos desde a juventude, depois de velho e com o auxílio do um
computador e os recursos técnicos oferecidos de arquivamento e divulgação, é que
debrucei-me de maneira mais organizada sobre a produção de alguns gêneros literários.
Considerando que a Internet veio para revolucionar os meios de comunicação pela
agilidade das informações, universais e resumidas, resolvi investir na produção de crônicas
e contos por achar que eles serão os gêneros do futuro, face o homem atual viver cada vez
mais sobrecarregado de obrigações existenciais. Ele tem menos tempo para os prazeres da
alma e vai preferir histórias exíguas e objetivas, prescindindo de histórias compridas e
prolixas.
Nos meus textos uso muitas sentenças exclamativas e reticentes com o objetivo de
expressar as emoções, os sentimentos das personagens. Acredito que as exclamações dão
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mais movimento aos personagens, as exclamações deixam as personagens mais soltas e as
sentenças reticentes, despertam no eleitor uma pontinha de curiosidade e mistério.
Não acredito em uma literatura universal, cada povo tem suas peculiaridades, acredito sim,
em temas universais. O amor, a paixão, a traição, a coragem, a lealdade, a procura, o
destino, o crime, a morte etc., são ingredientes que sempre serão encontrados na natureza
humana. O homem é o único animal que escreve sua história e jamais ele irá dissociar-se de
seu essência.
O romance, o conto e a crônica servem para dar respostas às inquietações do espírito
humano de maneira criativa, já a filosofia, serve para deixá-lo mais inquieto, sem solução,
porque algumas respostas são tão difíceis que se o homem as tivesse, ele resolveria todos os
seus problemas espirituais e existenciais. A filosofia é a busca constante...
Tive pais analfabetos e fui criado por tios semi-alfabetizados, além duma vida de carências
intelectuais e materiais. As circunstâncias do meio tornaram-me mais estudioso. Com
visíveis dificuldades de aprendizagem e sem muitos recursos intelectuais, cheio de lacunas,
sem talento e sem genialidade, sublimava as minhas limitações de aprendizagem triplicando
o gosto pela leitura e cobrando mais do meu lento raciocínio.
O talento e a genialidade são produtos da inspiração, não advêm do trabalho, da
persistência ou se nasce com eles ou não. O trabalho intelectual, a persistência, o estudo e a
pesquisa nos darão embasamento para discernir, separar o joio do trigo, mas jamais
contribuirão na definição do processo de criação. Por isso, acho que os meus textos têm
valor estimativo e não servem de modelos literários. Diria que são leituras palatáveis, textos
que podem não ter uma mensagem sui generis, mas que trazem mensagens do dia-a-dia,
história do cotidiano de alguém conhecido ou história de “ouvi dizer”.
Não se tira leite da pedra. Toda história, toda narrativa, tem um percentual embasado na
realidade e um percentual de ficção que também não deixa de ser realidade, produto do
nosso inconsciente e a sabedoria popular é taxativa quando se refere a isso com a máxima:
“quem conta um conto, aumenta um ponto”. Porém, faz-se necessário registrar que isso é
diferente de plágio. O plágio é uma imitação, é quase uma cópia às avessas. O plagiador é
um falsário, um ladrão das idéias alheias. É diferente daquele que conta uma história que
pode já ter sido contada, todavia, a roupagem e a estamparia são exclusivas.
Não se pode afirmar em nenhum momento que a vida e a obra de Jesus Cristo foram
plagiadas no Novo Testamento. Os textos da Mateus, Lucas, Marcos e João são tão
parecidos que alguém poderia perguntar: “quem plagiou quem?”, mas observa-se amiúde
que embora seja a mesma história, cada autor faz sua exegese da palavra.
Enfim, se o eventual leitor dos meus escritos não se enfadar com as primeiras páginas do
meu livro e folheá-lo até a última página, agradeço-lhe e dar-me-ei por satisfeito pelo
esforço e coragem que tive de submeter-me às críticas dos que não irão gostar por
quaisquer motivos ou o ataque ferrenho dos críticos que por preconceito compreensível não
vão gostar.
Itabuna, 25 de julho de 2007.
Rilvan Batista de Santana
Autor
O C a s a m e n t o
R. Santana
O casamento é um consórcio em que a mulher entra com a beleza, o sexo, as curvas bem
delineadas, um bumbum empinado, uns peitos avolumados e o homem entra com o trabalho
e o capital. Por mais que tenhamos progredido intelectualmente e culturalmente, a tradição
permanece: é feio a mulher pagar as contas – o homem é o provedor da família. Porém,
nem sempre foi assim, em épocas não muito remotas, o mancebo recebia um polpudo dote
que lhe garantia o feito e o feitio.
Há um conto de Malba Tahan, que num país do Oriente (não me pergunte o nome), um
judeu muito rico, com base no Talmude, fez chegar notícias aos jovens rapazes daquela
época, que sua linda filha além de possuir um riquíssimo dote, o felizardo que a desposasse
ficaria às expensas dele por dez longos anos, sem trabalhar, na maior boa vida... Um pobre
jovem judeu, de tribo rival, apaixonou-se pela moça e pelas promessas do seu pai. Como
“esmola grande cego desconfia”, pensou: “esses judeus não dão prego sem estopa, há truta
nisso!” - Aí decidiu aconselhar-se com o mais velho ancião da sua tribo: - estou
apaixonado. Ela é a mulher da minha vida. Porém, laranja madura na beira da estrada ou
está bichada ou tem marimbondo no pé, né? – o velho pensou, pensou, achou que o rapaz
procedia bem em desconfiar, essa raça não era fácil e disse: - meu jovem, não se faz
omelete sem quebrar os ovos. Tu cuidas do teu casamento e do contrato, se algo não ocorrer
bem com a promessa do teu sogro, procuras um judeu rival do pai da tua noiva e
aconselhas-te com ele - o jovem sentia que havia algo de podre no reino da Dinamarca, mas
valia qualquer sacrifício para desposaràquelajovem.
O casamento transcorreu com muitos folguedos, bebidas, comidas durante três dias, tudo
era só alegria! Seu sogro era uma simpatia em pessoa, cuidou dos mínimos detalhes para
que nada fosse motivo de reprovação e comentários desairosos. Os convidados ficaram
encantados com o fausto da casa. Os nubentes se esbaldaram de tanto dançar e degustar dos
prazeres da mesa, porém, toda festa tem início e fim e cada um voltou para o seu dia-a-dia.
Passados longos dez dias de bonança, o sogro vai à casa dos pombinhos e depois de muitos
abraços e beijos dando fim às saudades, o sogro chama o genro em segredo e pergunta: - e
aí meu genro, estás feliz? O genro não pode esconder o contentamento e respondeu-lhe: -
melhor estraga, meu sogro! - Não podia se queixar. A esposa era maravilhosa, possuía todas
qualidades, além disso o sogro estava cumprindo tudo que prometera. O felizardo estava
navegando em céu de brigadeiro, não tinha motivos para reclamar... O velho começou
andar dum lado pra outro, pigarreou, coçou a cabeça, por fim falou: - meu genro, eu não
posso me queixar, a minha filha está feliz a olhos vistos, porém... já não tenho mais
obrigações contigo, já cumpri o meu dever de pai e de sogro - o genro foi abaixo, não
estava entendendo... queria uma explicação: - Meu sogro, não estou lhe entendendo, além
do dote, não me foi prometido dez anos às tuas expensas? Casei-me com tua filha, estamos
felizes, gozando ainda nossa lua de mel e tu me vens com esta de ter cumprido o nosso
contrato? Maluqueceu? – o velho continuou no seu périplo, reflexivo, respondeu: - não
estou maluco meu genro! Tu me dissestes ainda pouco que és feliz, melhor estraga e há um
provérbio do nosso povo que um “dia feliz na vida de um homem vale por um ano”, tu estás
com dez dias de felicidade, então, pela nossa tradição és feliz há dez anos! – o rapaz caiu
em si, realmente, foram dez dias de gozo e felicidade, não podia reclamar, o velho lhe tinha
pego uma peça... teria que trabalhar daí em diante para prover sua casa. Tinha sido
embrulhado e enrolado pelo artifício e sagacidade do sogro, como se safar dessa esperteza?
Lembrou-se do conselho do ancião de sua tribo: “procuras um judeu rival do pai de tua
noiva”.
Ele foi ao mentor mais famoso da sua região queixar-se do procedimento e esperteza do
sogro, do artifício que ele tinha usado para safar-se dos compromissos e retirar-lhe a gorda
mesada. Que faria? Como iria sustentar a si e a mulher? O mentor depois de ouvir os
queixumes do folgado, disse: - jovem, teu problema é fácil de resolver, tu voltes e digas ao
teu sogro que a lei judaica dá direito ao marido repudiar a esposa que em dez anos não
concebeu! - O jovem saiu dali saltitante, achava que seu caso tinha sido solucionado,
embora amasse a esposa, tinha que cutucar o velho e não deixar a bonomia matrimonial:
- Querido sogro vim devolver tua filha! -, o velho ficou estupefato, teria ocorrido um
flagrante adultério? Porém, como todo bom judeu, manteve-se calmo, reprimiu os impulsos,
pois sabia que um escândalo naquele momento o deixaria em maus lençóis e por
experiência sabia que uma boa conversa e umas moedas de ouro na bolsa de um fraco
caráter enfraquece qualquer ímpeto de dignidade. Ademais, bronca é arma de trouxa. Abriu
os braços, um largo sorriso estampou-lhe o rosto, perguntou: - Não amas mais minha filha?
- O rapaz não esperava por aquele desprendimento e desfaçatez... O seu sogro era um
grande canastrão, representava mal, mas representava... – pensei que tu estavas me
preparando um neto? – neto!... neto era o gancho: - é justamente o neto meu sogro, está
faltando um neto! E, conforme a lei judaica, a mulher que não concebe em dez anos é
repudiada! – o velho não perdeu a fleuma: - meu rapaz quer matar do coração este velho?
Esqueces tudo que te falei! Foi uma grande brincadeira! Queria somente conhecer se o meu
genro é arguto... vás e continua fazendo minha filha feliz... Tu és o genro que pedi ao
profeta Moisés! Se quiserdes morar comigo, és mais um filho à mesa...
Para um sabido, sabido e meio. Para os inimigos a lei e para os amigos as falhas da lei...
O Fantasma
R. Santana
O meu amigo Pedro é pior do que S. Tomé. São Tomé duvidou mas creu na ressurreição
quando encontrou Cristo Ele mesmo vendo ainda usa empecilho e dúvida. Não é uma
dúvida cartesiana, racional e inteligente. Ele é um niilista sem ser niilista. O niilista nega a
verdade absoluta, mas propõe um novo modelo social a partir do zero. Pedro é mais um
chato que não acredita porque não quer acreditar, duvida pelo prazer da duvidar.
-Pedro, saímos de Vitória da Conquista com quatro carretas carregadas de café com destino
ao Porto de Ilhéus, ao invés de passarmos por Itabuna e pegar a BR-415, pernoitamos em
Uruçuca por motivos particulares e o dia ainda escuro, puxamos os carros.
-Se vocês quatro viajavam juntos como só você viu o fantasma?
-Pedro, não se viaja um colado no outro, há um intervalo de tempo de cinco ou mais
minutos. Assim que a garota me levou até o carro virado quase embaixo da ponte, voltei
para pedir socorro e já encontrava os meus companheiros parados no acostamento,
preocupados comigo.
-Sua história estar parecendo de pescador, compra o peixe para arrotar eficiência de
pescador. Vocês usam tantos artifícios de segurança, iriam se render aos apelos de uma
garotinha, na bruma da madrugada, na beira do asfalto, que poderia ser uma isca? Vai pra
lá...
-Não estou lhe pedindo para acreditar. Você que me pediu pela enésima vez para repetir
essa história.
-Eu gosto tanto de ouvir suas histórias de caminhoneiro que mesmo não acreditando nelas,
espairece-me a alma.
-Pedro se você não fosse meu amigo, eu iria mandar você...
Mudamos de assunto, senão, iria aborrecer-me com o meu amigo Pedro, ele é polêmico mas
aprendi que numa amizade contam mais os defeitos do que as qualidades. Quem não sabe
conviver com os defeitos não alcança as qualidades. Ele é ranzinza, enjoado, mas, não
conheço pessoa mais prestativa e solidária do que Pedro. Tem um coração que não pode ver
alguém sofrer, é capaz de vender a mulher e empenhar os filhos se isto fosse possível para
atender às necessidades de um amigo.
A história que lhe contei foi verdadeira, não foi um conto da carochinha. Sei que é difícil
acreditar em visagem, assombração, alma penada, fantasma, enfim, cousas do outro mundo,
entretanto, existe uma contradição na negação porque quando se nega a existência de um
ser, é que o não-ser existe.
Peço que o amigo leitor tenha paciência que irei repetir a história que comecei contar para
Pedro.
Pernoitamos em Uruçuca. Tínhamos condições de dormir em Ilhéus. Era cedo quando
chegamos à Uruçuca, naquela última quinta-feira, à tarde, do mês de maio de 2004. Porém,
um dos colegas tinha residência e família ali; outro uma xodó de priscas eras. Eu e o colega
mais novo não tínhamos mulher nem xodó, mas estávamos doidos pra cair na gandaia,
tomar umas cervejas e depois dormir enroscado com alguma andorinha da terra.
Acordamos às quatro da madrugada. Tomamos um café, fumamos, fizemos uma vistoria
nos carros e partimos. Por ser o mais velho e o mais experiente, o meu carro ia na frente.
Juliano, o motorista mais novo e mais moleque, costumava falar:
-Deixe o coroa ir na frente, experiência é posto! - Não gostava de puxar os demais carros,
pois teria que ser o mais rápido e o primeiro a enfrentar o perigo. Embora a brincadeira de
Juliano fosse de mau gosto, gozando dos meus anos de estrada e de idade, a expressão
“experiência é posto”, dava-me fumos de autoridade no volante e enchia o meu ego, já que
estava prestes à aposentadoria.
Acredito que viajamos menos de 25 quilômetros. Longe ainda, avistei uma garota loira, os
cabelos compridos e escorridos nas costas, pedindo pra parar. Pensei acelerar o carro e
passar distante, poderia ser uma isca, nos assaltos, era comum o uso de mulheres e menores
para atrair o incauto motorista ou o motorista de bom coração. Porém, fui refreado por uma
força estranha e impedido de continuar, parei poucos metros distantes da garotinha.
-Senhor, salve meus pais e meu irmão!!!... Venha, eles estão lá embaixo dentro do carro. –
Não pensei uma fração de segundo (não sei se os astrônomos têm um instrumento
eletrônico capaz de medir um tempo tão infinitesimal), peguei a garota pela mão e descei a
ribanceira para acudir os pais dela e seu irmão.
Era um quadro dantesco sem ser o quadro de Dante Alighieri que só tinha fogo. Um carro
da Fiat, quatro portas, tinha arrastado matos e pedras na descida desgovernada
de uma ribanceira e virado uma ou duas vezes e quase caído dentro do rio que cortava a
rodovia. O motorista estava desmaiado, debruçado sobre o volante, um menino chorando e
uma mulher gemendo e sangrando presa ao sinto de segurança. Voltei-me para garota:
- Espere-me aqui um minuto, vou pedir ajuda aos colegas que estão chegando!
Quando retornei, os meus colegas já tinham estacionado à traseira da minha carreta. Gritei
para todos:
- Correm, tem um carro lá embaixo com uma família dentro. – Tem alguma vítima grave? –
perguntou Juliano – Não sei, vamos lá! – intimei-os.
Todos desceram rapidamente. Janjão tirou logo o menino que estava com um choro
traumatizado. Juliano e Zezéu foram em socorro da mulher, enquanto eu procurava com
dificuldade abrir a porta do motorista para lhe prestar ajuda que coadjuvado por Juliano,
conseguimos retirar o motorista do carro. Era um homem enorme, que começou gemer à
medida que o tirávamos do automóvel.
Além de Janjão ter ido buscar água no seu carro para o menino, telefonou para polícia de
Uruçuca solicitando-lhe providências e organizou uma operação de socorro com os carros
que iam rumo a Ilhéus, 20 minutos depois, os socorros chegavam em abundância: desde
remédios até padiolas improvisadas.
Naquele momento, pensei que todas providências já tivessem sido tomadas quando Zezéu
me chama:
- Roberto vem cá!- Tinha subido para o asfalto para agilizar o transporte do pessoal ferido,
pois a mulher gritava de dor e pedindo-nos para cuidar dos seus filhos e o seu marido não
ficava por menos. Acho que fisicamente, ele estava sofrendo mais.
- Diga Zezéu!...
- Vem cá. Temos mais um problema! – Quando cheguei, Zezéu puxava com cuidado, do
banco traseiro, uma pessoa. Ainda não dava para ver o rosto e a idade. Percebi que era
mulher porque estava usando vestido. Quando me aproximei, Zezéu completou:
-Roberto não quis lhe dizer daqui para que os pais dela não ouvissem. Mas, esta garota
(apontou) está morta! – Estava menos de dois metros de Zezéu, quando num pulo me
aproximei do corpo e gritei:
- Não, não é possível!!!... – Zezéu ficou absorto, não tinha entendido a minha reação.
Pensou que eu estivesse preocupado com a reação dos pais da pobre garota.
Ninguém ia compreender e acreditar em mim, a garota que estava ali estirada era a mesma
que tinha me pedido socorro. Quando Janjão pegou a criança, na agonia, não percebeu que
ela estava caída entre o banco de passageiros e as poltronas da frente ou ela não estava lá?
Ele jura até hoje, que vira somente o menino que choramingava um choro sofrido. Maior
foi o mistério: é que no alvoroço e na balbúrdia, todos querendo ajudar só vir lembrar-me
dela quando a encontrei nos braços de Zezéu.
Hoje, quando me lembro de tudo que ocorreu naquele acidente, fico assustado, com os
cabelos eriçados, pois tenho certeza que foi aquela menina que salvou a família depois de
morta. As pessoas não acreditam, mas foi ela que me fez parar o carro e levou-me até o
local do sinistro, com seu rostinho angelical e sua voz delicada e dizer-me:
- Senhor, salve meus pais e meu irmão!!!...
Filho Adotivo
R. Santana
I
Estava tomando o famigerado “banho de sol”, fazendo uma reflexão da minha vida passada
e da minha doença que me debilitava dia-a-dia. Já tinha perdido os movimentos dos pés,
das pernas, das mãos (a doença ainda não me tinha afetado a voz), quando fui despertado
pelo vozeirão do meu filho mais novo, que me acompanhava na minha caminhada ao
calvário, na minha via-crúcis:
-Eh velho, tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva, ânimo! – ele não gostava de
me ver sorumbático, pra baixo.
-Estou aqui pensando na minha mocidade. Eu tinha saúde de atleta. Nunca fumei, nunca
bebi além do social e, estou aqui à mercê das pernas e dos braços dos outros, numa cadeira
de rodas. A vida nos prega cada peça!... – lamentei.
-Você não está à mercê de ninguém! Eu sou suas pernas e seus braços, pra quê braços e
pernas mais fortes? Não está satisfeito com os meus cuidados? – perguntou-me.
-Não meu filho, não é isso. É que estou velho, mas não o bastante para ficar em cima duma
cadeira de rodas. Você deixando os seus afazeres e os seus divertimentos para ficar
pajeando-me. - Justifiquei.
II
Ano de 1983, mês de agosto, não me lembro o dia. Acredito que sábado ou domingo. É o
dia que mais se encaixa pra fazer visita a um doente, quem trabalha nos demais dias da
semana. Eu e a minha esposa tínhamos ido visitar um velho amigo, um amigo velho, no
hospital Manoel Novaes na cidade de Itabuna. Esse hospital tinha antigamente, uma
unidade específica de acompanhamento às mulheres grávidas, trabalho de parto, um serviço
de pediatria e um serviço geriátrico.
Hoje, esse hospital está voltado para o serviço de pediatria, obstetrícia e um banco de leite
materno, referência em todo estado baiano pelo seu bom desempenho e pelo serviço social
que presta à comunidade itabunense. Além desses serviços, tem uma unidade isolada, em
seus terrenos, de atendimento ambulatorial de quimioterapia aos doentes de câncer.
Doente visitado, dever social cumprido, fomos ver os berçários e as mães daqueles
pinguinhos de gente recém-nascidos. Num dos berçários, havia uma criança, de cor, órfã de
mãe viva e pai ignorado. Soubemos pela enfermeira que a mãe da criança a tinha deixado lá
para ser adotada. Sensibilizamo-nos com o caso, o que lhe permitiu nos perguntar se não
tínhamos interesse em adotá-la:
-Não, temos duas filhas. Se fosse um menino, nós iríamos pensar. –respondemos-lhe.- Essa
deixa foi o bastante para que assumíssemos um compromisso não escrito de adoção:
-Vocês adotariam se fosse um menino?...
-Sim!! - eu e a mulher respondemos uníssonos.
Depois vieram as explicações: era comum, mulheres solteiras e adolescentes pobres,
abandonarem seus filhos, logo após o parto, para encaminhamento de adoção pela justiça.
Quando não surgia ninguém interessado, a criança era encaminhada para algum abrigo,
uma instituição pública.
Um mês depois, já tínhamos esquecido do compromisso de adoção, quando essa enfermeira
nos telefona, avisando que se encontrava no hospital, um recém-nascido rejeitado pela mãe
e lembrava o nosso compromisso:
-O senhor e sua esposa pediram-me para avisar-lhes quando um recém-nascido fosse
rejeitado pela mãe. É um menino lindo e saudável! – procurou-nos animar...
Os mais velhos dizem que não é obrigado empenhar sua palavra, mas uma vez dada, faz-se
necessário assumi-la. Por isto, não tergiversamos, no mesmo instante, pegamos uma velha
“Brasília” e fomos buscar o filho que não parimos.
Esperávamos receber a criança formalmente, numa sala suntuosa, com os diretores do
hospital e o juiz da Vara Criança e Juventude, fazendo um discurso ressaltando o nosso
desprendimento, a nossa contribuição com a sociedade, impedindo que no seu seio um novo
marginal fosse gerado ao tempo que nos eram exigidos compromissos escritos e registrados
em cartório e homologado pelo meritíssimo juiz. Mas debalde foram nossas expectativas: a
criança foi-nos entregue pela porta dos fundos, urinada e obrada, enrolada numa fralda, sem
cerimônia, como se fosse um troço, uma coisa.
Levamos-lhe pra casa e demos-lhe carinho, amor, nome e sobrenome.
III
Doença não manda recado, principalmente, as genéticas. Lá no interiorzinho da célula, um
gene mau caráter, herdado dos nossos pais, fica encolhidinho, às vezes por vários anos,
quando ele resolve se manifestar, é que se descobre sua existência e sua nocividade. É mais
ou menos assim que se explica a atrofia muscular espinhal – AME. É uma doença insidiosa,
traiçoeira, que pouco e pouco vai se manifestando. Os movimentos voluntários dos
membros vão se restringindo e enquanto se peregrina de médico em médico, ela já tomou
conta do nosso corpo e o final é caixão e vela.
Alguns exames, a exemplo do eletromiografia, da biópsia muscular e do exame de DNA,
detectam as alterações das fibras musculares, evidencia a histoquímica de desnervação,
medem as atividades elétricas dos músculos, localizam, retardam, ajudam no tratamento,
mas não curam.essa doença.
Aos 40 e poucos anos de vida, na flor da maturidade, da atividade produtiva, sem nenhum
vício, fui acometido duma atrofia espinhal progressiva de forma adulta e quando fui ter
consciência de sua gravidade já estava em cima de uma cadeira de rodas.
A doença ainda não tinha afetado a minha fala mas pelo histórico dela, é esperar pra ver.
IV
Diz o povo que Deus escreve certo por linhas tortas. Não me tornei pai adotivo por
necessidade, egoísmo, gesto altruístico, filantropia ou realização pessoal. Tinha um
casamento estável e duas lindas filhas, de 1 e 5 anos de idade. Mais um filho não fazia parte
dos meus planos familiares, principalmente, adotivo.
A minha ida ao hospital naquele dia, naquele ano de 1983, para visitar um amigo doente,
encontrar uma menina rejeitada num berçário, firmar um compromisso desnecessário com
uma enfermeira quase desconhecida e menos de 30 dias depois, uma mulher qualquer, que
não conheço o nome nem o sobrenome, despeja do seu ventre um menino que por capricho
do destino torna-se meu filho, não tem explicação racional, é coisa de Deus. Estava escrito.
Dez anos depois a minha primogênita teve a vida interrompida por uma leucemia com 16
anos de idade. O sofrimento foi grande e o baque maior. Só quem perdeu um ente querido
sabe o estrago e a dor de um luto, em especial, a perda de um filho.
Porém, o relógio do tempo não pára, a vida continua. A dor é substituída por uma
lembrança amiga. Eu e a mulher tínhamos, agora, o dever de cuidar de um filho adotivo de
10 anos de vida e uma filha um ano mais velha.
No ano de 2004, a segunda filha casou-se. Quem casa quer casa, hoje, ela cuida do marido e
dois enteados que herdou. Quem contrai obrigação, adquire mando e autoridade, o pai é
substituído pelo marido. Embora seja uma boa filha, a distância e os novos compromissos,
filha casada é visita.
V
Naquela manhã, quando esse filme passava na minha cabeça, em cima de uma cadeira de
rodas, é que pude comprovar quão significativa é a sabedoria popular. Se Deus desse ao
homem o seu saber, sua onisciência, o sofrimento do homem começaria no ventre materno
porque saberia a priori o seu fim. Para mim foi bom eu não saber o meu fim, pois não
aproveitaria como aproveitei sem presságios, a minha juventude e parte da minha
maturidade. O amanhã a Deus pertence.
Pude comprovar que ninguém procura o outro por acaso. E se Saulo me procurou naquele
hospital para ser seu pai é que ele tinha por desígnio ser as minhas mãos e as minhas pernas
nessa difícil caminhada. Seu vozeirão ainda ecoa dentro de mim:
“Eh velho, tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva, ânimo!”
“Você não está a mercê de ninguém! Eu sou suas pernas e seus braços, pra quê braços e
pernas mais fortes? Não está satisfeito com os meus cuidados?” – Estou chegando ao fim.
A doença percorre o meu corpo lentamente, mas não posso reclamar da providência que o
Criador tomou, enviando esse filho adotivo para cuidar de mim.
Sem eira nem beira, abrigado num sistema previdenciário oficial deficitário, com uma
merreca de aposentadoria, não adianta lastimar, Saulo é o senhor da razão:
“Eh velho, tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva, ânimo!”
Judite
R. Santana
I
Quando a conheci nos últimos anos da década de 70, ela já era uma mulher madura, deveria
ter uns 45 anos de idade. Altura mediana, forte sem ser gorda, de pele trigueira, cútis lisa,
sem marcas de expressão, olhos esverdeados, um sorriso solto e uma predisposição inata de
servir quem quer que lhe procurasse, não importava o dia e a hora. Ninguém do Jardim
Primavera, jamais lhe ouvira dizer: - não! – parecia que seu tempo era superior ao tempo
dos demais mortais. Ninguém nunca lhe vira doente ou com queixumes.
Os adultos e os mais velhos chamavam-na de “dona Judite”, a molecada de “tia Judite”, os
mais íntimos, de “mãe Judite”. Todos respeitavam-na. Não tinha filhos legítimos mas era a
mãe legitimada daquela meninada circunvizinha. Às vezes, sua casa estava alegre, em
polvorosa, com vários moleques, comendo e brincando. Quando havia necessidade, ralhava
com dureza de mãe e coração de avó:
-Pedrinho meu filho, você vai quebrar o espelho com essa bola! – era sua bronca
Pouco se sabia de sua origem. Sabia-se que tinha ficado viúva ainda nova, de um
funcionário graduado do governo federal e jamais quis contrair novas núpcias. Não foram
poucos os pretendentes que deram com a cara na porta, quando não sabiam distinguir o
interesse homem e mulher duma amizade.
II
Falava-se que era filha de uma rica e tradicional família do Rio Grande do Sul. Fazia 10
anos que se mudara para cidade de Itabuna, interior da Bahia. Quando chegou do Sul foi
morar com o marido (recém aposentado), no município de Camacan, na rua de Mascote,
centro da cidade, numa confortável e aprazível casa. Tinham sido atraídos pela fama do
cacau. Aposentado, o marido dela, o Sr. Júlio Medeiros, tinha comprado uma propriedade
rural nesse município, com a intenção de investir os recursos economizados na vida pública
e não ficar ocioso. Mas, não afeito às carraspanas do campo, morreu dois anos depois de
febre tifóide. Sozinha, vendeu os bens e mudou-se para Itabuna.
No final de cada ano letivo, ficava com a casa cheia de sobrinhos e sobrinhas que
costumeiramente, vinham passar as férias na casa da tia “baiana”, apelido carinhoso por ter
adotado a Bahia e não o Rio Grande do Sul, para viver e morrer. Quando cutucada,
justificava:
-Quem bebe a água dessa terra, fica presa por um cordão umbilical invisível. Vocês depois
de formados mudarão pra aqui de mala e cuia. Duvidam? – os sobrinhos ficavam calados.
III
Hoje, mais de três décadas depois, acho que dona Judite era uma santa. Não sou santófilo -
não sei se existe este termo, se não existe, estou adicionando à língua, afinal, isso não é
apanágio só de Guimarães Rosa, os pobres mortais também têm esse direito -, ou seja, não
acredito que alguém beatificado e canonizado, torne-se santo a oferecer graças e milagres,
mas acredito numa vida santa e testifico-lhe, depois de tanto tempo, que essa mulher teve
uma vida santa.
Era católica sem ser piegas. Ia à igreja quase todos os dias, mas sem farisaísmo, ia porque
gostava de viver em oração, não para demonstrar ao vizinho da frente ou de lado sua
religiosidade. Ia como se estivesse assegurando os ensinamentos proféticos que a fé sem a
obra é inócua.
Judite tinha uma missão. Não a missão de sua xará judia que decapitou a cabeça de
Holofernes para libertar Betúlia e por extensão seus irmãos de raça. Mas, a nossa Judite
teve a missão de matar a fome dos necessitados, minorar o sofrimento dos doentes, enxugar
as lágrimas dos desesperados, levar conforto ao idoso, sorriso à criança, companhia ao
solitário e ajudar alguém encontrar o seu caminho, usando a arma do amor.
Tinha uma vida discreta, sem ostentação, quando alguém lhe questionou por que não
fundava uma instituição para atender maior quantidade de pessoas, respondeu:
-Não sei lidar com essas coisas, além disso, teria que conviver com políticos que não
comungam com os mesmo ideais e que não são solidários com os menos favorecidos. Não
tenho vocação política. – o interlocutor insistiu:
-Dona Judite, é ficar em cima do muro e apoiar o vitorioso.
-Meu filho, não é preciso. Deus dá o frio conforme o cobertor. A minha solidariedade é do
tamanho do meu merecimento, se não faço mais pelo meu semelhante é que o meu
merecimento não condiz. Alguns abnegados usam esse disfarce político em nome da
caridade, porém, falta-me jeito, não tenho coragem...
IV
O dia despertou normal e alegre. Cedo ainda o sol já penetrava nas frestas das janelas e das
portas da maioria daquelas casas populares do Jardim Primavera. Judite não esquentava
cama, levantava-se todos os dias mais cedo do que suas duas auxiliares da labuta
doméstica. Não tinha marido e nem filhos para cuidar. Podia se dar ao desfrute de acordar
com sol a pino, mas por mais que desejasse gozar desse ócio não conseguia. E, se o hábito é
uma segunda natureza, Judite, chovesse ou fizesse sol, às 5 h, já estava em pé no trabalho
da casa.
Pela manhã, Judite socorreu uma vizinha, que deixou o seu filho mais novo aos seus
cuidados, enquanto ia ao hospital cuidar da saúde do mais velho. Era comum suas vizinhas,
principalmente as que tinham filhos menores, socorrerem-se dela. Doida por criança,
sublimava suas frustrações por não tê-los tido, emprestando seu colo aos filhos daquelas
mulheres que precisavam atender suas eventuais necessidades. Noutro dia:
-Comadre Judite, você fica com Marquinhos enquanto irei participar de uma entrevista de
emprego da CACAU & CHOCOLATE S.A.?
-Comadre Maria, não precisa pedir. Se eu não estiver, deixe-o com as meninas, quantas
vezes forem necessárias, já lhe disse! – ela não tinha problema, tinha solução.
O dia já entrava no crepúsculo vespertino, quando alguém toca a campainha de sua casa,
gritando socorro:
-Dona Judite!!!... - ela saiu dos fundos reclamando:
-O quê foi Paulinho? Quer me matar de susto, seu diabinho!...
-Mamãe mandou chamar a senhora. A casa de dona Flor está fumaça pura, parece que estar
pegando fogo!... – fez o moleque esperar somente o tempo de vestir uma calça e trocar as
sandálias por um sapato fechado – Vamos Paulinho! – saíram em debandada.
Havia mais fumaça do que fogo. Alguém já tinha ligado para o Corpo de Bombeiro. A casa
ainda continuava fechada e o pessoal atônito, receoso em invadi-la. Parecia que não havia
ninguém no imóvel, ledo engano... Quando o fogo começou colocar a língua de fora, eis
que surgem dona Judite e Paulinho. Ele, com um palmo de língua do lado de fora como um
cachorro cansado; ela, esbaforida, cansada, porém, num relance de olhos, juntou as energias
latentes que tinha e começou dar voz de comando:
-Vamos amigos!!! – e, num gesto felino pulou o muro.
O exemplo fica. Os indecisos começaram também, pular o muro da frente, o que separava a
casa da rua e sem muita dificuldade, adentraram no seu interior, seguindo os passos, o
exemplo e a voz de comando de dona Judite.
Porta e portão escancarados, sem muita organização, mas com excesso de solidariedade,
latas e baldes de água foram jogados no fogo que teimava em se arrefecer, em certos
cômodos, apresentava-se com mais entusiasmo. Porém a turba não deu moleza, minutos
depois, que pareceram infinitos, o mal estava debelado. A fumaça é que ainda resistia
deixar o ambiente.
Judite conhecia a casa de olhos vendados, não foi difícil descobrir donde vinham um choro
desesperado e uns gritos de socorro e, com ajuda de dois ou três voluntários, arrombaram a
porta de um dos quartos dos fundos da casa. Ainda não havia fogo, porém, a fumaça pouco
e pouco ia tomando conta do recinto e por mais desesperada que fosse a situação, teve
equilíbrio e discernimento para orientar os demais:
-Juca, leve o menino maior! Marly tome essa criança, deixe a outra comigo!... – assim, num
átimo de tempo, as tarefas foram distribuídas.
Na rua, as palmas e as vaias se confundiam, é que a chegada atrasada dos bombeiros
coincidiu com a aparição na porta de Judite, Juca e Marly, cada um trazendo nos braços
uma criança. Provocou no povo um sentimento simultâneo de alegria e revolta. Júbilo pela
salvação das crianças e revolta dos moradores pela demora dos soldados do fogo, homens
acostumados enfrentar e dominar grandes sinistros, tão necessários nesses infortúnios.
Como profissionais zelosos, fizeram ouvidos de mercador. Inundaram a casa de água,
eliminando os possíveis focos de fogo. A demora foi explicada: estavam em serviço,
tentando evitar um maluco se jogar de um edifício por ter perdido sua mulher. E, como só
havia uma viatura disponível no quartel, em circunstâncias sinistras simultâneas,
priorizavam atender os casos começados. Em seguida, com a chegada de uma ambulância,
socorreram às pessoas que mais fumaça tinham inalado e estavam com a respiração
comprometida, as mais sofridas eram uma criança de colo e dona Judite.
V
The day after, os fatos do sinistro foram esclarecidos: os donos da casa tinham ido ao centro
da cidade às 14 h. Ele, para atender o chamamento duma empresa distribuidora de produtos
alimentícios para um teste de motorista; ela, comprar um remédio de uso contínuo na
Farmácia do Povo. Como era costume, em viagens curtas e para protegê-los, deixavam seus
filhos com brinquedos, trancados no quarto dos fundos enquanto voltavam. Porém, naquele
dia, um curto circuito na velha instalação, tinha sido a causa daquela pirotecnia que com
ajuda de Deus e do povo, especialmente dona Judite, seus filhos não tinham morrido
sufocados de fumaça ou carbonizados.
Judite não tivera a mesma sorte, com um histórico de doenças respiratórias crônicas e ter
inalado muita fumaça, morreu um dia depois de hospitalizada, assistida por alguns parentes
e muitos amigos.
VI
A moribunda, entubada, com a respiração ofegante, ainda lúcida para perceber que na
vidraça do Centro de Terapia Intensiva, muitos rostos se sucediam e muitos gestos eram
feitos com desejos de sua cura. Não podia falar por causa dos aparelhos mas de quando em
vez acenava com os dedos abertos em V de vitória. Não a sua vitória, porém, a vitória de ter
salvo a vida de três criaturinhas de Deus.
VII
O pátio e os corredores do hospital Sta. Cruz estavam lotados de gente apreensiva com
notícias freqüentes do agravamento clínico de Judite, quando um preposto veio anunciar
que ela teria tido uma parada cardíaca irreversível em decorrência da agravante
insuficiência respiratória:
-Senhores, a paciente Judite Santos e Medeiros, teve uma parada cardiorespiratória e entrou
em óbito. A direção solicita que os parentes compareçam à secretaria. Nossas condolências
e boa noite!
VIII
O cortejo ia subindo a ladeira em direção ao cemitério com centenas de pessoas orando e
cantando cânticos de despedida quando alguém que não era do meu convívio se aproxima e
pergunta-me:
-Quem morreu?
-Um anjo!... – respondi-lhe abruptamente.
-Anjos não morrem, senhor! – respondeu-me.
-Tu tens razão garoto, anjos não morrem!...
Eutanásia
R. Santana
I
Tomamos um susto naquela tarde de fevereiro de 2006, ao entrarmos no quarto 106 do
hospital Dr. Caio Martins. Eu e Maria estávamos procurando um colega de longas eras, que
tinha tido um acidente vascular encefálico (AVE), vulgarmente, derrame cerebral. Lembro-
me que na soleira da porta comentei:
-Maria, o professor Carlos não está neste quarto! – ela, mais ativa e desprendida, entrou no
quarto, olhou para os internos e disse:
-Acho que o moço da recepção nos deu o número errado! – conjeturei:
-Ele pode ter tido alta médica... – uma enfermeira passava no momento:
-Moça, por favor, o professor Carlos Botelho já saiu do hospital?
-Não, ele está no 106 (apontou), na primeira cama, logo na entrada! – Maria, ainda sem
entender, perguntou-lhe:
-Mas... aquele velho é o professor Carlos Botelho?
-Sim.
Ficamos atônitos, voltamos ao quarto 106 e verificamos amiúde que um dos pacientes do
106 era realmente Carlos Botelho. Ele era um homem que antes da doença, aparentava
menos de cinqüenta anos, mas naquele estado, tinha envelhecido uns vinte anos. Os cabelos
e a barba encanecidos, as pálpebras caídas, as bochechas e o queixo fino, tipo Noel Rosa,
três dedos amputados por causa de uma trombose a posteriori ao acidente vascular cerebral,
magérrimo, com a perda de movimento de um dos braços e perda total da fala, usando
fraldas, enfim, um homem transformado e modificado em pouco tempo, pela doença e pelo
sofrimento.
II
-Alô, alô... gostaria de falar com quem? – do outro lado da linha, uma voz de mulher, não
familiar:
-Quero falar com o professor Ricardo, ele está? – ainda não a tinha reconhecido:
-Sou eu, quem gostaria de falar? – estava nervosa:
-É Cal, Ricardo! Não reconheceu a minha voz?... – desculpei-me:
-Você está com a voz de menina, como poderia adivinhar? Depois que você mudou para
apartamento novo ficou toda metida (risos), nunca mais deu o ar da graça!...
-Não é nada disso. Tenho que acompanhar o estudo dos filhos, trabalho um turno fora,
cuido dos trabalhos de casa e Carlos dá aula nos três turnos em dois colégios, é uma luta!...
-Desembuche Cal, qual a razão do seu nervosismo? – tergiversou, disse coisa com coisa,
depois foi ao assunto que a estava incomodando:
-Vocês saíram muito tarde, ontem à noite, do bar Carne na Brasa?
-Vocês quem?
-Você, Carlos, Antônio, Edu... – fui inepto:
-Cal, ontem não fui a nenhum bar e seu marido, têm umas duas semanas que não o
encontro! Ouvir um palavrão do outro lado da linha:
-Filho da puta, ele chegou ontem pela manhã, bêbedo e disse-me que estava com você e os
demais!... - não podia mais consertar, estava na casa do sem jeito. A emenda poderia ser
pior do que o soneto. Ela confiava em mim, não poderia confirmar a mentira de Carlos,
mesmo ele sendo um dos meus melhores colegas, apenas, remediei doutra forma:
-Cal, deixa Carlos arejar a cabeça, afinal, ele trabalha de segunda a sábado, senão, ele pode
ter um esgotamento nervoso.
-Eu entendo Ricardo, porém, ele não anda bem de saúde, fuma mais do que come e não
procura se cuidar. Já marquei médico e exames, ele faz por fazer, mas não segue nenhuma
prescrição médica, continua fumando e bebendo.
-Peço-lhe que não faça nenhuma admoestação. Com habilidade e carinho, insista para que
ele se cuide, afinal não é criança. Porém, tem gente que não gosta de pressão. Use seu
jeitinho feminino...
-Obrigado Ricardo, estava para estourar. Acho que seu conselho pode dar resultado,
tchau!...
III
Mais uma visita que me deixava arrasado psicologicamente. Cada dia, agravava o quadro
de saúde de Carlos. Seu pé esquerdo estava roxo e infeccioso pelas complicações da
trombose e os médicos já tinham esgotados todos os recursos do tratamento e o único
recurso seria amputá-lo para não afetar a perna.
Era um quadro deprimente. Mais depressivo e impotente, ficavam seus amigos e familiares.
Carlos pouco e pouco ia se tornando um espantalho de gente.
Embora o derrame cerebral tivesse atingido a região da fala (ele não falava, com muito
esforço grasnia alguns sons de corvo), ele chorava seu pranto, principalmente, para
reclamar a presença da mulher, ou quando chegava um colega querido, que ele o reconhecia
mas não podia falar, externar seus sentimentos de alegria e papear.
IV
Quinta-feira, janeiro de 2002, à tarde, Dr. Eugênio Santillo fazia no auditório do Edifício
Pedro Américo, uma palestra para os trabalhadores da saúde e da educação da região Sul da
Bahia, em Ilhéus, sobre os controversos temas da Bioética e do Biodireito: a eutanásia e
suas formas, a distanásia e o suicídio assistido.
Mais de uma hora de palestra, explicando esses assuntos, sob a ótica jurídica e ética. Dr.
Santillo encerra seu discurso, externando sua opinião pessoal: “...que o homem não tem
direito sobre a vida de terceiros, mas se lhe é dado o livre arbítrio de viver, que lhe dê o
livre arbítrio de morrer. Se alguém toma a priori essa decisão, que se acometido de uma
doença incurável e sofrida ou mesmo durante o processo de uma enfermidade crônica, os
profissionais da saúde e a família têm que eticamente cumprir o último desejo daquele que
sofre e quer ter uma morte breve e digna”.
Eu e Carlos tínhamos sido designados pela nossa escola como agentes multiplicadores do
evento. Nós teríamos que repassar para os demais colegas, todas as informações e os
conhecimentos vistos naquele seminário de “Educação e Saúde I”, ministrados naquela
semana de janeiro, por vários especialistas, conforme o assunto. Lembro-me que Carlos
ficou impressionado com a palestra de Dr. Eugênio Santillo, não sei se por premonição,
presságio, ou pela qualidade intelectual e oratória do palestrante.
-Bicho, tenho o mesmo pensamento desse médico. Se eu tiver uma doença incurável, quero
abreviar a minha morte.
-Carlos, é uma decisão difícil para família, notadamente, para os filhos e os pais.
-Bicho, eu não tenho mais pai e nem mãe. Já avisei a Cal, Gustavo e Priscila que não me
deixem sofrer. Se eu estiver lúcido, tomarei a iniciativa.
-Hum!... Você está com astral de moribundo. Vamos deixar essa conversa de eutanásia e
morte para quando chegar o dia. Pensamento positivo, ave agoureira!...
-Ave agoureira é a puta que te pariu. O meu pai morreu entrevado numa cama em meus
braços, sofri com ele. A morte assistida pode ser um conflito de consciência para os
parentes próximos e os agentes de saúde, todavia, é a única forma digna de morrer quando
o mal é de morte!...
-Você se esqueceu que tem pouco tempo que enterrei uma filha? – ele se arrependeu da
verborragia intempestiva –Oh Ricardo, desculpe-me, é que ainda me lembro do sofrimento
do meu velho. Mas sua labuta com Paola, deve ter sido mais sofrida. Enterrar filho é mais
dolorido porque está na contramão da natureza.
V
- Cal, sei que o momento é impróprio, mas gostaria de lhe falar em particular!... – falei-lhe
num momento de dor.
-Fique à vontade Ricardo, você é nosso amigo, Carlos muito lhe estima.
-Lembra-se que há uns quatro anos, eu e Carlos participamos de um seminário em Ilhéus?
-Claro, na época eu fique fula da vida por não ter ido com vocês.
-É... que... naquele seminário, Carlos estava com umas conversas esquisitas...
-Já sei, você quer falar da eutanásia?
-Sim. Carlos também lhe falou?
-Falou e olhe no que deu!
-Por favor, esqueça a nossa conversa. Acho que fui inconveniente tocar nesse assunto neste
momento. Ele está sofrendo tanto e, ele me disse naquela época que não queria...
-Por que razão devo esquecer? Comungo com suas preocupações. Carlos também deixou
claro para mim e os filhos como gostaria de morrer. Parece-me agora, que estava
vaticinando seu fim. Mas, pensa você que irei obedecer-lhe? Não! Não irei obedecer-lhe
por motivos de foro pessoal, porque temos uma história juntos, por convicção religiosa,
além disso não existe respaldo jurídico e por achar que cada um aqui tem uma missão. Se
temos que sofrer, que saibamos sofrer com dignidade. O nosso corpo é uma caixinha de
segredo. Quantas vezes a ciência médica já falhou? Enésimas vezes, então, meu caro
Ricardo, sempre haverá um luzinha no fim do túnel e a estamos enxergando, mas lhe
agradeço pelas preocupações, entendo como um desencargo de sua consciência.
Obrigada!...
-Cal, fico feliz por você pensar assim. Nunca fui a favor da eutanásia, temos que esgotar a
última gota de esperança. As pessoas que falam em eutanásia, pena de morte, aborto,
suicídio assistido e outros métodos de por fim â vida, não têm Deus no coração ou nunca
sofreram na pela ou têm uma mente criminosa. Acho que se Carlos, hoje ficasse bem de
saúde, não mais pensaria nessas teorias malucas. É aquela história: “pimenta no olho do
outro não arde.” – Cal entendeu as minhas preocupações e fiquei exultante de alegria
porque, ela e os filhos tinham idéias e convicções religiosas diferentes das dele.
VI
Maria insistiu para que fossemos visitar naquela tarde, último sábado de março de 2006, o
professor Carlos. Não lhe falei da conversa que tinha tido com Cal, estava com um pontinha
de vergonha por ter-lhe tocado naquele assunto, porém, ela tinha me assegurado que
entendia como um desencargo de consciência. Por isto, eu e Maria fomos ao hospital.
-Maria o professor Carlos foi transferido para o quarto 112, mas não se encontra lá, um
paciente informou-me que ele acaba de entrar em coma e subiu (a CTI ficava no andar
superior) para CTI. – Maria ficou arrasada. Nós já tínhamos sabido que além dos três dedos
que tinham sido amputados, os médicos tiveram que amputar boa parte do pé que necrosou.
Com sua ida para o Centro de Tratamento Intensivo-CTI, as coisas iam ficar mais difíceis.
-Ricardo, Cal está aí. Ela me disse que o problema da trombose agravou-se e depois da
amputação da parte do pé, ele teve febre e foi levado às pressas para CTI com suspeita
doutro derrame cerebral.
-Maria, acho que o nosso amigo Carlos vai pra cidade de pé junto, a coisa está feia...
-Deus é o dono da vida. Ele tem que se apegar ao Salmo 23 que diz:
“...Embora eu caminhe por um vale tenebroso,
nenhum mal temerei, pois junto a mim estás:
teu bastão e teu cajado me deixam tranqüilo...”
-A vida Maria, às vezes, não vale a pena ser vivida. Quando já não temos controle sobre as
nossas ações, os nossos desejos e temos que recorrer às pessoas até para realizar os nossos
desejos primários, é melhor que partamos...
VII
Um ano depois.
Tem gente que não acredita em milagre. Prefiro acreditar que existe. Como explicar a saída
de uma pessoa que vagou na sombra da morte por vários meses e um ano depois, está
praticamente saudável e quase sem nenhuma seqüela? Não tem explicação. É a mão do
Criador manifesta. É a prova inconteste que a ciência e os cientistas têm suas limitações.
Carlos, hoje, tem uma vida quase normal, afora alguma dificuldade na fala e nos reflexos
motores, ele está lúcido, lendo mais do que escrevendo e passeando de quando em vez com
a família.
Embora nunca tivesse partilhado com as idéias de Carlos sobre a eutanásia e em especial
com o discurso de Dr. Santillo que é uma autoridade médica com vários trabalhos
científicos publicados. A eutanásia, o suicídio assistido e outras formas de ajudar morrer, é
para quem perdeu a fé em Deus, a auto-estima e a vontade de viver. E, principalmente, para
àquelas pessoas de fácil verborréia e que nunca em seus braços um ente-querido seu esvaiu-
se para eternidade.
Quando me lembro da conversa que tive com Cal, coro de vergonha, só não me enrubesço
mais pelo fato dela ter me tranqüilizado que todos em sua casa conheciam o desejo de
Carlos.
Hoje, tenho medo e pena daquelas pessoas que com aura sapiente se arvora como dona da
verdade, simplificando esses assuntos para sociedade.
Afrodite
R. Santana
... Quando a mocidade passar, a sua beleza ir-se-iá com ela, então o Senhor
descobrirá que já não o aguardam triunfos, ou que só lhe restam vitórias medíocres
que a recordação do passado tornará mais amargas que destroçadas”
Diz a tradição popular que quem conta um conto, aumenta um ponto... Porém, prometo ao
leitor que ler este conto que procurarei ser um dos mais fiéis narradores dessa história. Não
sei se ela já foi contada por alguém, se foi, espero que ele tenha sido fiel aos fatos. Não me
incomodarei se seu estilo for mais rebuscado, mais inteligente, pois não sou um escritor
mas um sofrível escrevedor.
Afrodite, bem nascida, bem educada, era a filha caçula de ricos empresários. Sua mãe
descendia de uma família de abastados produtores de açúcar e álcool, dona de usinas e
imensos canaviais no interior de Pernambuco. Seu pai, de uma família de políticos e
empresários da construção civil paulista. Tinha ascendentes ingleses por parte de pai.
Afrodite, como uma deusa da mitologia grega, era linda. Uma morena alta, com formas e
expressões faciais bem definidas como se a natureza tivesse esbanjado por capricho, seu
estoque de beleza numa só pessoa. Sua beleza atraía e irritava...
Não era má. Era dócil, inteligente e solidária, sem ímpetos e ideais revolucionários. Nunca
pensou em mudar o mundo mas viver para amá-lo. Gostava de viver o amor e o prazer sem
ser fútil. Não perseguia o prazer e a beleza como fim último. Não era uma hedonista, não
era uma radical, o prazer e a beleza eram conseqüências. Enfim, era uma pessoa normal,
suas ações e reações eram circunstanciais.
Pela beleza, pelo viço e pela juventude, tinha sido perseguida por muitos mancebos da alta
aristocracia paulista. Desde a adolescência, recebia propostas de namoro, de casamento e
juras de amor eterno. Tinha a diplomacia no sangue, esgueirava-se dum e doutro sem deixar
seqüelas.
Casou-se aos 25 anos com um jovem multimilionário e antes de completar seu trigésimo
aniversário, teve três filhos, um homem e duas mulheres.
Seu marido era um engenheiro civil talentoso. Nunca foi empregado do governo. Não
gostava da atividade política partidária. Cultivava algumas relações de amizade e
comerciais com alguns políticos, por força de contratos que suas empresas tinham com o
governo estadual e federal. Contribuía financeiramente, com todos candidatos a cargos
eletivos, com potenciais condições eletivas não obstante o partido político dele ser da
direita ou da esquerda.
O esposo de Afrodite, o empresário, Arnaldo Sá, deixou este mundo aos 42 anos de vida,
vítima de um brutal acidente de automóvel, pela imperícia de um carreteiro, numa
ultrapassagem irresponsável, o abateu na contramão.
Na época do desenlace, da tragédia, Afrodite estava à beira dos 40 anos de idade, era mais
nova do que o marido uns dois anos. Ficou viúva ainda moça e rica. Nunca tinha enfrentado
uma tragédia, o mundo tinha desabado em sua cabeça com a morte do marido. Seu
casamento tinha sido por amor, embora sua família fosse menos rica do que a do esposo,
era rica e tradicional. Arnaldo tinha sido o seu primeiro macho, os outros tinham sido
namorados, pequenos affair e namoricos.
A perda do marido tinha transtornado e transformado a vida de Afrodite. Não que a tivesse
se transformada numa mulher dissoluta, namoradeira impudica, desregrada, mas tinha saído
da rotina do lar e do trabalho e passado a curtir noitadas de festas e bebedeiras.
Naquela manhã de setembro de 1993, ela tinha acordado de ressaca, mal humorada,
indisposta e cansada. Não tinha nascido para libertinagem e licenciosidade. A maioria de
suas colegas estavam afeitas àquela vida desregrada e achavam-na prazerosa. Ela não as
censurava e não as condenava, tinha aprendido desde cedo “...não julguem e vocês não
serão julgados..”, então, “...quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra...” ,
certamente, um dia, todos serão julgados pelo Criador do Universo.
Ao passar em frente ao espelho, levou um susto: sua mocidade e sua beleza escorriam na
calha do tempo!... O tempo era mau, impiedoso, inexorável, infinito e jamais volta. Segue
transformando, fazendo e refazendo. Alimenta sonhos, esperanças, constrói vitórias e
testemunha derrotas. O tempo é a espada de Deus...
-Espelho, espelho meu... ah, ah, ah!... Tu pensas que irei repetir a pergunta daquela
madrasta malvada da Branca de Neve dos irmãos Grimm? Estás enganado. Sei que não sou
mais bonita como dantes!
-Oh!... Tu ainda és moça e bela. O quê diriam as feias e as velhas? – perguntou o espelho.
-Espelho tu és insensível e cruel em teu juízo. Não vedes que eu sou uma cópia embotada
do passado. As feias nasceram feias, assim devem continuar e as velhas foram vítimas do
tempo, Deus deveria lhes ter dado a graça de morrerem jovens e... – foi abruptamente
interrompida pelo espelho.
-Senhora, estás blasfemando! Deus é eterno, não é imediato. Ele tem um plano para cada
um de nós. A matéria é movimento e envelhece, a alma não!...
-Tu, espelho, não vedes que o homem foi mais generoso contigo que Deus comigo. Tu
fostes trabalhado, lapidado e colocado numa linda moldura de mogno. Daqui uma centena
de anos, tu poderás refletir a beleza das damas que passarem por aqui, com a mesma
singeleza deste momento. Enquanto eu serei pó e à terra voltarei.
-Tu, madame, estás embebida de sentimentos e coisas efêmeras. A beleza e o prazer são
efêmeros. Fui lapidado e trabalhado pelo homem, porém, ele poderá me destruir e tirar o
meu brilho. O homem é mau e egoísta. Todavia, eu e tu jamais seremos destruídos em
nossa essência. O ser é transcendental e eterno – concluiu o espelho.
-Espelho não me venhas com este pensamento aristotélico. Fazes um retrospecto da história
e vedes que todos pintores e escultores perseguiram a perfeição em suas obras.
-Senhora, o homem ainda busca o prazer e a beleza como dantes. Acredito que, hoje, ainda
mais, existem novos recursos científicos. Os pitanguys, as academias de ginástica e beleza e
as enésimas fórmulas de cremes e ungüentos naturais não me deixam mentir – justificou o
espelho.
-Tu és um ingênuo. O tempo é inflexível, já vistes que coisa horrível são as mulheres que
querem se manter novas? O bisturi tira as rugas, muda as formas, suspende e siliconiza os
peitos mas, ele não lhes devolvem o viço, o mimo e o frescor da juventude e não lhes
cicatrizam as dores e angústias da alma, continuam velhas... ridículas!...
-Concordo contigo, sou testemunha do queixume delas. Quantas já passaram por aqui
tristes e revoltadas? Muitas. Se todas entendessem que sua essência é a mesma, o mundo
seria menos lamurioso.
-Espelho, depois nos veremos, bom dia!
-Bom dia, senhora!...
Afrodite passou usar os outros espelhos da casa. Quem iria acreditar nela que aquele
espelho falava? Ninguém. Porém, dois depois, rompeu o trato consigo mesmo e resolveu
confirmar se aquilo não teria sido produto de sua imaginação, voltou auscutá-lo e nada
melhor do que provocar-lhe:
-Não irei mais passar defronte de ti!... Há dois dias que não te procuro e quando volto, vejo
um fio de cabelo caindo na minha fronte. Parece-me que gostas de expor os meus defeitos...
-Senhora, não estou enxergando nenhum fio de cabelo branco. Aliás, tua cabeleireira é
cuidadosa e profissional. Uma boa pintura resolve o problema.
-Espelho, tu vês aquele retrato?
-Vejo. Não faço outra coisa... ele fica defronte a mim. Vejo que tu eras bem jovem,
deverias ter uns 20 anos de idade...
-Enganas-te. Ele foi tirado no dia que completei 25 anos – esclareceu Afrodite.
-Senhora, não diminuir a idade para te agradar. A pessoa tem a idade que aparenta. Naquele
retrato, tu aparentas 20 anos ou menos, por isto, prefiro ficar com esta idade.
-Espelho, aquele retrato tem quase duas décadas... já começa desbotar... ele começa dar
sinais de envelhecimento... e, tu me dizes que aparento ainda mais nova?...
-Senhora, percebi que a pintura começa desbotar mas o brilho dos olhos, as feições e a aura
que existe nele permanecem como no primeiro dia. Eu o estou vendo com os olhos do
coração e não com os olhos da crítica!...
-Espelho, em que fonte fostes buscar tanto romantismo? Ainda não percebestes que tudo
envelhece e se transforma e me dizes que o brilho, as feições e a aura refletidas naquele
pedaço de papel, são os mesmos de quase 20 anos atrás?...
-Senhora, não polemizemos! Talvez tu não alcançastes o meu pensamento ou talvez eu
tenha exagerado nas minhas digressões... – desculpou-se o Espelho.
-Ah!!!..
-Pensastes o quê? – perguntou o Espelho.
-Tu és abelhudo! Queres conhecer os meus íntimos desejos?...
-Não!!... Fui criado para refletir o que está fora do ser, dentro dele é uma caixinha de
segredo, só o eterno Criador tem esse poder – desabafou o Espelho.
-Espelho, percebo que és arrogante! Não entendes que posso te destruir? Não me leves à
loucura!...
-Dorian Gray assassinou o pintor Basil Hallward e esfaqueou o seu retrato numa relação de
sadismo, porém, não conseguiu destruir a beleza do quadro, morreu desfigurado e
irreconhecível... – disse o Espelho.
-Estás me ameaçando? – perguntou Afrodite.
-Não!... Quero dizer-te que quando me destruíres, os estilhaços de cristais desprendidos de
mim, te deixarás desfigurada e não poderei depois refletir tua bela imagem se eu for
restaurado.
-Espelho, tu és esperto, tens justificativa pra tudo. Dizes-me então como farei para
continuar jovem e bonita?
-Não existe um elixir da juventude. A beleza é um estado de espírito. O belo absoluto não
existe é um componente estético e subjetivo duma obra, enquanto isto, a natureza é bela e
eterna mesmo velha. Tu nunca conhecestes idosos de uma beleza genuína, plácida?
-Espelho, se eu morresse agora, aqui (apontou a cama), tu serás capaz de registrar, somente,
esse estado de espírito que referistes?
-Senhora, como poderei fazê-lo se tu gozas de uma saúde de anjo? Pensas em suicidar-se?...
-Não tenho coragem. Penso em abandonar a vida. Deitar-me naquela cama, saudável e
bonita e deixar-me morrer pouco e pouco, sem comer e beber até o último suspiro!
-Senhora, tu levarias muito tempo para morrer, enquanto tu ias definhando, perdendo o viço
e o mimo, nos últimos dias, estarias velha e feia!...
-Para que serve os amigos? Tu registrarias o meu melhor momento, a minha melhor
imagem. Os meus filhos te colocariam em um quadro de bronze, tu serás a lápide do meu
mausoléu!
-Senhora, não possuo livre arbítrio, o poder de escolher a melhor imagem, a última imagem
é a que fica. Acho que estarás feia e velha ao partir – o Espelho tentou persuadir-lhe da
idéia do suicídio passivo.
-Então, combinemos uma morte súbita. Prometes guardar a minha bela imagem? – insistiu
Afrodite.
-Senhora, sabes que não posso escolher. Porém, concedes-me o privilégio de guardar tua
bela imagem, agora, para isto, quero tua promessa de não me vedes mais. Quando fores
para vida eterna, te refletirei para sempre, não precisas abreviar tua morte!...
-Espelho, farei o teu pedido. Confio em ti. Não sei quanto tempo viverei e não mais te
verei. Quando eu morrer, mesmo velhinha e enrugada, providenciarei para que os meus
filhos te coloquem e te protejam em meu mausoléu, refletindo-me...
Não foi necessário Afrodite ficar velha e feia. Um ano depois foi sucumbida pela mesma
tragédia do marido. No retorno do Rio para São Paulo, pela rodovia presidente Dutra, foi
dilaceradamente morta por uma vil carreta.
Os seus filhos e parentes, cumpriram o seu último desejo: fixaram na principal parede de
mármore do seu mausoléu um lindo espelho que reflete de forma tridimensional sua linda
imagem. Todos acham que é uma obra encomendada de um pintor italiano – ela e o espelho
sabem que não...
Alguém já tentou roubar o quadro mas foi surpreendido por uma voz de mulher que fala:
-Deixe-o aí!!!...
O velho e o rio
R.Santana
I
Era um velho de compleição forte e alto. Moreno trigueiro, que os seus sessenta e tantos
anos de vida, mais na fazenda do que na cidade, tinham-no deixado moreno escuro. Tinha
por hábito ficar o dia todo dentro d´água quando estava na fazenda. Quando moleque, seus
pais faziam-no vestir a pulso, a contragosto, uma camisa comprida que lhe cobria o calção e
parte das coxas para lhe proteger do sol. Rapaz, morto os pais, sem irmãos, sem tutor, de
nariz empinado, sem conta a prestar a parente ou aderente, fazendeiro por acidente, passava
o tempo todo pescando e usava como vestimenta um folgado calção. Quando o sol estava
muito forte, saia da água e se estirava embaixo da primeira árvore frondosa que encontrava
à margem do rio e dormia o sono dos justos, assim envelheceu...
II
Preservara a propriedade da fazenda Bom Sossego, mista de cacau e gado, no município de
Itapé, cidade baiana, às margens do rio Salgado-Colônia e algumas casas de aluguel na
cidade de Itabuna e uma casa na praia dos milionários na cidade de Ilhéus. Há mais de 30
anos tinha herdado essa pequena fortuna. Não tinha se tornado mais rico mas não tinha se
tornado menos rico. Tinha tido o mérito de conservar e zelar pelos bens que os seus pais lhe
deixara, até um Jeep Willys, automóvel usado pela maioria dos fazendeiros, apropriado
para romper veredas e estradas de chão, xodó do seu pai, estava em condições de uso,
trancado numa garagem. Quando o velho morreu, Lucas Camões de Sá pulverizou o carro
de óleo e graxa, cobriu-o com uma grande lona e guardou-o na garagem da fazenda.
III
“Professor Lucas”(todos chamavam-no assim), não era professor. Tinha feito o curso
ginasial em Itabuna, no ginásio Divina Comédia, escola famosa pela organização, cobrança
pedagógica de sua direção e competência dos seus mestres e concluído o curso “científico”
em Salvador. Não quis ser doutor. Os pais ainda vivos, rogou-lhes por uma viagem aos
países europeus, em especial, França e Alemanha, onde morou e trabalhou mais de 5 anos
só retornando ao seu país, quando o seu pai estava à beira da morte e necessitava de sua
presença para cuidar dos negócios e da sua velha mãe.
Voltou mais simples do que quando tinha saído e afora os fumos intelectuais adquiridos lá
fora, era o mesmo Lucas que muita gente vira crescer, montando a cavalo e tangendo as
poucas cabeças de gado para o curral que o velho criava para o leite da fazenda. Porém,
voltou mais maduro e introspectivo. Ouvia mais do que falava, ultimamente, depois que a
mãe morreu, tinha fincado os pés na terra, de lá saía se urgia uma necessidade intransferível
que não pudesse ser delegada a um empregado, quando sua presença era reclamada.
IV
. Meus pais eram seus vizinhos de fazenda. As nossas terras não representavam um terço
das dele. Quando o conheci ele já era um senhor sexagenário de cabelos grisalhos, mas
exprimia uma vitalidade e uma jovialidade de um homem mais novo. Eu era um
adolescente. Pela proximidade das nossas terras e pelo fato do professor Lucas ser uma
referência intelectual naquela região de gente simples, fui me chegando e não muito tempo
depois era seu amigo e cúmplice de suas estripulias no manejo do gado, na pescaria e nos
banhos de rio. Mesmo mais novo meio século, não tinha a força e o fôlego para
acompanhá-lo nas lides diárias da fazenda.
De todas as atividades e ações empreendidas pelo professor Lucas, me deleitava de prazer
com as pescarias e os banhos no rio Salgado. Lá na beira do rio, tínhamos tempo para
discutir os mais variados assuntos, sem afetação e sem esnobismo. Embora fosse um
homem lido e viajado, explicava-me as coisas com clareza e simplicidade. Não me lembro
de nenhum momento que tenha perdido as estribeiras ou quisesse mostrar-se superior
intelectualmente ou culturalmente aos demais.
V
Janeiro de 1981, domingo de madrugada, céu sem chuva e muita neblina, era sinal de sol
escaldante ao longo do dia. Embora já tivéssemos acertado a viagem no dia anterior, o
professor Lucas risca com seu jipe lá em casa mais cedo do que o combinado, chamando-
me para pescaria. Não estava sozinho, dois camaradas estavam sentados nos bancos detrás.
Meus pais ainda esboçaram uma certa resistência deixar-me ir ao passeio, alegando que eu
não sabia nadar, foi necessário que o professor Lucas intercedesse em nome da velha
amizade familiar:
-Não se preocupem, eu também não sou bom nadador. Ficaremos em lugares de águas
rasas. João e Armando (apontou-os), são pescadores profissionais, qualquer incidente, eles
estarão apostos. – foi o bastante para que os meus pais me liberassem e eu me aboletasse no
banco da frente do jipe ao lado do professor.
Embora levássemos uma meia hora da minha casa até próximo do lugar onde íamos
acampar em decorrência do péssimo estado de conservação da estrada e tivéssemos de
deixar o carro e fôssemos a pé uns 500 m até à beira do rio Salgado, o esforço tinha valido à
pena. O lugar era paradisíaco. A mata se estendia, praticamente, até a margem do rio, com
árvores centenárias e copas enormes de sombreamento perene.
Colocamos os nossos apetrechos em cima de uma comprida pedra à beira d´ água, que
consistia uma verdadeira plataforma feita pela natureza, enquanto os camaradas se
distanciavam para o meio do rio com uma canoa. Eu e o professor Lucas sentamos na pedra
e lançamos os nossos anzóis.
VI
Professor Lucas tinha levado uma caixa de isopor com gelo e umas seis cervejas que ao
meio dia, o sol a pino, começou bebericar com os demais companheiros de passeio. Para
mim, ele tinha levado uns dois ou três refrigerantes que foram consumidos depois dos
banhos de rio e almoço.
Quando terminamos de comer a farofa, nos sentamos embaixo de uma jaqueira, que parecia
ser ponto preferido doutras pessoas ociosas que por ali passavam, pois ao pé do seu tronco,
o capim apresentava-se rasteiro e limpo num raio de 4 ou 5 metros, para jogar conversa
fora.
Os camaradas bebiam mais do que falavam, talvez inibidos pela fama intelectual do senhor
Lucas, tido e havido como homem de letras e do imberbe estudante ginasial que naquela
época e naquele lugar era um fato raro. Porém, quando a conversa começou esquentar e a
bebida tinha feito sua função natural, pouco e pouco, eles começaram se soltar,
perguntando e emitindo os seus pontos de vista. Isto nos deixou mais confortável, não
queríamos ser tomados como pernósticos ou metidos à besta em nossas digressões
intelectuais.
Por isso, tomei a iniciativa em nome do meu professor, não queria assumir na minha idade,
preocupações comuns às pessoas adultas e ser rotulado de precoce:
-Professor, na minha escola, a professora de Ensino Religioso, acha o casamento uma união
indissolúvel; outro professor, uma instituição falida, qual é sua opinião? – ele parou como
se estivesse pensando...
-Gugu, eu não posso opinar sobre o casamento, nem devo, sou um solteiro por opção há
sessenta e três anos e alguns meses, ah, ah, ah!... – deu uma risada debochada que me
deixou desconsertado e arrependido por tê-lo provocado.
-Desculpe-me professor. Pensei que tivesse uma opinião formada sobre o assunto! – falei
um pouco enfezado.
-Calma rapaz, eu respondi-lhe que não tenho uma opinião particular, porém, não me custa
nada, junto com você e os demais amigos aqui, fazermos uma análise do casamento com
todas suas nuances. – contemporizou o professor.
-Professor, Maria é a minha terceira mulher. Comigo não tem isso, não deu certo, arrumo a
minha mala e dou um tchau!... – foi o testemunho de vida de João, o mais novo deles.
-Gugu, o casamento não é uma instituição falida. O casamento é uma necessidade social e
emocional. O homem não nasceu para viver sozinho. A mulher além de procriar, ser a
matriz genética, a mãe, é o lado esquerdo do homem, o lado da emoção, é uma simbiose
perfeita, o homem e a mulher se completam. Por isto, nunca será uma instituição falida, não
significa, entretanto, que seja indissolúvel, novos modelos de casamento, de convivência,
de relacionamento, surgirão em decorrência das transformações sociais e econômicas. –
Não estava satisfeito com a resposta do professor Lucas. Não tinha ficado claro, o final de
sua fala, principalmente, os “novos modelos de casamento”, por isto, tornei provocá-lo:
-Professor não entendi de sua fala: “os novos modelos de casamento”, significa mudança no
modelo de família? – perguntei.
-O casamento como uma união civil, religiosa, e a família patriarcal, na essência são
perenes, todavia, quanto à forma, haverá transformações. A ascensão econômica e
profissional da mulher, a educação e o aperfeiçoamento das leis, contribuirão para
casamentos menos atrelados, com domicílios diferentes, de menos dependência econômica,
mais vínculos afetivos duradouros, filhos menos dependentes e mais conscientes do papel
do pai e da mãe. – concluiu o professor Lucas.
-Professor, com papéis tão independentes, os casais não se tornariam mais promíscuos, de
princípios morais mais vulneráveis? – questionei.
-Meu rapazola, o sexo é uma necessidade animal. A paixão, o sentimento de posse, o
egoísmo e o sexo não são decisivos para fidelidade conjugal, os deveres e as obrigações. Só
o amor, sentimento da alma, produz consciência moral. O casamento por amor é uma rocha
que as intempéries do tempo, não destrói. – finalizou.
Os camaradas que nos acompanhavam, deixaram o local sorrateiramente. Embora não
desejássemos, o nosso papo estava descambando para chatice com conjecturas intelectuais.
Por isto, propus ao professor que voltássemos para beira do rio, que ele continuasse
pescando enquanto eu voltaria para dentro d´água:
-Professor, os seus amigos ficaram entediados com a nosso papo e nos deixaram quase às
escondidas, é melhor que voltemos ao rio e á pescaria!... – disse.-lhe.
-Gugu, a pessoa aprende quando a coisa tem significado. Vimos o que pensa João em
relação ao casamento. Sua experiência de vida lhe ensinou que casamento é amigação, é
amásio, é amancebo. Ele é muito pobre, não teve educação e suas necessidades têm
exigências mínimas, satisfeitas suas necessidades imediatas, primárias, tudo vai bem, o
resto é de somenos importância, é luxo, é invenção social, não existe em sua lógica de vida
simples que tem como aspiração maior: viver. Essa realidade é comum para Armando e
João. – contra-argumentei:
-A educação é a saída professor!
-Concordo, meu jovem Gugu!...
VII
João e Armando estavam com dois samburás cheios de pequenos camarões. O lastro da
canoa também tinha boa quantidade de traíras, tilápias, pacus, carpas e lambaris. João ainda
tinha fisgado uns dois ou três quilos de acari em um poço profundo de águas turvas e de
muitas locas de pedra. O professor não tinha pescado nada, soube depois que ele devolvia
ao rio toda vez que pescava um peixe. Armando ainda troçou:
-Professor Lucas é rico, compra o peixe e diz aos amigos que pescou!... – Era uma
brincadeira de Armando, professor Lucas usava como apetrechos, somente, vara e anzol,
quando pegava um peixe, devolvia ao rio. A pesca pra ele era uma terapia e um
passatempo. Além da pesca não representar uma fonte de sobrevivência para si, era a favor
da vida, da simples até a mais complexa, propositadamente, abstinha-se de ceifar a vida de
qualquer ser.
-Professor, qual a diferença que há entre não matar o peixe e devolvê-lo ferido? – perguntei.
-Acho que a vida é um dádiva do Criador. O homem é o único animal que tem consciência
da morte, os demais animais possuem apenas o instinto de sobrevivência.
-Mas não é judiação devolver o peixe com ferimento do anzol ao rio se o senhor é a favor
da vida? – voltei à pergunta.
-Devolvo-o ferido não morto. Se a causa do ferimento ficar registrada em sua memória, ele
não será fisgado doutras vezes por um outro anzol!... - brincou.
-Não existe sentido!...
-Gugu, a vida não tem muito sentido. Pescando ou fazendo outra coisa, estou dando tempo
ao tempo. O tempo é o senhor da razão, pois tudo soluciona, porém, ele é implacável. Nasci
nessas terras, percorri grande parte do mundo, hoje, idoso, sinto-me jovem de coração mas
os anos e o corpo dizem que estou velho. O tempo é como este rio, suas águas descem em
sentido ao mar e não mais retornam, um filósofo grego teve razão em dizer que “não
banhamos duas vezes no mesmo rio”. As perguntas seculares: “quem sou eu?”; “de onde
vim?” e “para onde vou?”, jamais serão respondidas. Quando me pergunto: “quem sou
eu?”, obtenho respostas psíquicas, físicas; as metafísicas, para essência do eu, do ser, não
tenho respostas. A mesma coisa ocorre quando formulo as outras duas perguntas. Conheço
a história do meu nascimento, todavia, não sei de onde vim nem para onde... – por favor
professor (eu o interrompi), as religiões têm suas versões!...
-Se cada religião tem uma versão, só uma versão é verdadeira ou nenhuma. Lembre-se que
as religiões estão embasadas na palavra, na fé. Muitos dogmas antigos e preceitos não têm
nenhum significado nos dias atuais. Por exemplo, ou você acredita na história da maçã, da
criação ou na reencarnação. Seria uma heresia pra qualquer prosélito dessas teorias
religiosas, admitir a evolução na origem dos seres vivos. A religião é necessária para
estabelecer o equilíbrio existencial e esperança de vida eter... – Professor (tornei
interromper-lhe), desculpe-me, do jeito que fala, a vida do ser humano e de outro animal
qualquer têm o mesmo significado. Acho sua fala uma digressão intelectual, um recurso de
oratória, então, quê fazer da vida? – perguntei-lhe.
-Viver. Não usei de recurso retórico. Não quis lhe impressionar nem tergiversar o meu
pensamento, quis lhe dizer que penso dessa maneira. Posso estar errado, mas é assim que
penso. Quando os meus pais morreram, muitos pensaram que eu ia dilapidar o patrimônio
de herança porque estava algum tempo perambulando e trabalhando no estrangeiro. Não o
fiz, por respeito a mim e aos meus pais. Não dilapidei, também, não acrescentei mais
patrimônio, preservei o patrimônio que herdei para na velhice não ser um peso para
sociedade e para o governo. Hoje, tenho a velhice garantida, não será necessário estender a
mão à caridade pública. Não dilapidei mas vivi bem todo esse tempo, fazendo do trabalho
um meio de vida não de morte.
VIII
A minha amizade com o professor Lucas durou até sua morte, 3 anos atrás, velhinho.
Morreu lúcido, com as mesmas convicções que me passou às margens do rio Salgado.
Fui visitá-lo várias vezes e mais amiúde prestes dele morrer. Fui surpreendido na
antevéspera da sua morte. Ele com a voz um pouco cansada, pegou em meu braço e
perguntou-me
-Gugu, lembra-se das nossas conversas lá no Salgado?
-Professor foram tantas... qual em especial? – lembrava-me, queria testá-lo.
-Sobre o sentido da vida!...
-Ah, lembro-me de cada palavra. Noutras palavras, que a vida é para ser vivida, que não
perscrutássemos seus mistérios. Não foi? – ele ficou olhando-me com ar paternal...
-Você é o filho que não tive. Nunca quis tê-los. Os filhos geralmente, são cópias apagadas
dos pais. Há um dito que o filho só puxa ao pai quando é cego, aí, ele puxa o pai pelo
braço!... – brincou.
-Considero-lhe como um pai. Se não fosse esnobação, roubaria a frase de Alexandre sobre
Aristóteles e o seu pai: “...se um me deu a vida; o outro, me deu a arte de viver”. Aprendi e
continuo aprendendo com o senhor!... – os olhos dele começaram marejar – Quê é isso?
Vamos mudar de assunto, o clima aqui está de despedida, de velório!... – brinquei.
-Olhe Gugu, estou chegando ao fim (quis protestar, mas ele não deixou), por isto, estou
deixando os meus negócios organizados. Como não tive filhos, você foi contemplado com
aquilo que mais gosto: a fazenda. Os outros imóveis e dinheiro irão para instituições
públicas sem fins lucrativos. Gerencie a fazenda (para ele, nós somos gerentes e não donos
de nada), até os finais dos seus dias. Aquilo é uma pontinha do paraíso. Se tiver de vender a
fazenda, venda-a para quem gosta de terra, não a venda para especulador de caráter
suspeito. – pegou-me de surpresa, estupefato, perguntei-lhe:
-E agora, amigo?...
-Viva!...:
O quarteto
R. Santana
I
Natal de 2001. A festa na mansão do casal de médicos Kleber e Cássia, já tinha passado do
horário da missa do Galo. Sua Santidade o papa João Paulo II, já tinha feito seu “urbe et
urbe” e seu “urbe et orbe” para Roma e para o mundo em vários idiomas. Na hora do
pronunciamento do papa, o pai de Cássia, o cirurgião Dr. Carlos Sollino, galhofeiro e
espirituoso, brinca:
-Esse João Paulo II é um velho supimpa, mesmo doente, manda seu recado no Natal para o
mundo. Fala o português melhor do que muitos nativos de Portugal e do Brasil.
A molecada e os jovens tiraram a roupa de festa e mergulharam na piscina. Os filhos do
casal, Juninho e Milena, nadavam como duas piabas. Juninho era mais afoito, mergulhava
fundo para beliscar o bumbum das garotas convidadas. Seus 10 anos de vida lhe davam
feições mais velhas. Loiro e alto como o pai, já era um incipiente dom Juan. Milena era a
cara da mãe e o temperamento do pai. Calada, racional, feições singulares e de poucos
amigos. Mais nova do que o irmão um ano, ajudava-lhe nos deveres da escola como gente
grande.
Depois da missa do papa, o jovem médico Marcos e sua jovem esposa Marly Assis
Menezes, arquiteta de nomeada, conclamaram para que todos fossem ao salão de festa, para
juntos, com os músicos e os cantores, celebrassem o aniversário natalício da dona da casa.
Marcos estava leve e solto, não era muito dado à bebida. Naquela noite, por conta da festa,
tinha tomado umas doses a mais de whisky, afora à exagerada alegria, estava sóbrio.
-Senhores, é notório o dito que atrás de um grande homem, tem uma grande mulher. Para
mim, esse dito é machista, coloca a mulher na retaguarda, detrás... Se os senhores
concordarem, diremos doravante: “um grande homem é ladeado por uma grande mulher”.
Isto significa senhores, que a mulher acompanha o seu homem lado a lado. Ela não é
superior e nem inferior ao homem, ela é partícipe dele. Kleber é o maior cirurgião plástico
desta cidade, quiçá do país, pois ao seu lado tem uma linda e grande mulher! – as ovações
foram entusiásticas.
Kleber agradeceu os elogios do amigo. Lembrou-lhe de episódios da velha amizade,
episódios que uniam os dois desde época de estudantes de medicina. Porém, quem merecia
todos os louros naquela noite era Cássia. Ela não estava ao lado dele, ela estava em sua
frente, alumiando seus passos e abrindo caminhos para ele passar. Além dela quebrar
arraigados e infundados preconceitos de “loira burra”. Finaliza:
-Ela, além de ser uma linda loira, é uma das mulheres mais inteligentes que conheci e uma
das mães mais carinhosas e dedicadas.
II
Eram mais que amigas, eram confidentes, irmãs, almas gêmeas. Naquela noite Marly tinha
ido fazer companhia à amiga, os maridos tinham ido a um congresso médico em Minas
Gerais sobre “Vídeo Cirurgia”. Prometeram retornar uma semana depois, após cumprir a
programação do folder, talvez dessem uma esticada ao Sul do país para aquisição de
algumas máquinas eletrônicas relacionadas ao curso. Souberam ainda na cidade de BH, que
iria ocorrer uma grande feira de informática e vídeos na capital paulista.
Cássia estava tensa. Marly não gostou do clima pesado na mansão dos médicos Kleber e
Cássia, para desanuviar o ambiente, brincou:
-Loira (tratamento íntimo), vamos tomar uns drinks em algum barzinho? Ainda é cedo.
-Ly (na intimidade), se você não se incomoda, prefiro ficar em casa, não seria uma boa
companhia, estou cheia de grilos!...
-Tinha notado assim que cheguei. Aliás Loira, tenho observado há algum tempo que você
anda triste, sorumbática, inclusive, comentei o assunto com Marcos.
-O quê disse ele? – perguntou Cássia.
-Ele acha que é tédio de prosperidade.
-Não entendi, Ly.
-Ele acha que as mulheres sempre estão reclamando, mesmo com prosperidade a olhos nus.
Aí ficam com uma cara de nojo, enfastiada. Enxergando chifre na cabeça de cavalo...
-Quê entende ele de sentimentos femininos? Bens e bem são diferentes. Os bens satisfazem
o ego, a ambição material e o bem satisfazem à alma. Gostaria de ter o bem que desejo e
não os bens que não me satisfazem.
-Hum!... Você foi ao fundo do baú Loira. Não gosto de filosofar. Desembuche! – forçou
Marly.
-Não sei se devo Ly, problemas de casal!...
-Loira, sou sua amiga há uns de 10 anos. Nunca me intrometi na vida conjugal de vocês. Se
você não confia em mim, é um caso a pensar. Agora, gostaria de ser partícipe de suas
aflições. Não lhe considero uma amiga, para mim, você é mais que uma amiga, é uma irmã!
-Desculpe-me Ly, lhe quero muito. Apenas, quis lhe poupar de situações pessoais
constrangedoras...
-Não quero que me poupe. Se você não dividir suas angústias comigo, acredito que sairei
daqui de moral arrasada!
-Por isso que não lhe queria participar nenhum conflito afetivo. Conheço-lhe, enquanto eu
sou razão, você é paixão. Pelo seu destempero, por essa cachoeira de sentimentos que
jorram dentro de si, se romper uma dessas comportas do seu coração, brigará com o diabo
por mim.
-Loira, acima de você só os meus filhos e Marcos sabe disso – Cássia se aproximou de
Marly e deu-lhe um beijo repetido nas faces.
-Eu estou lhe dizendo Marly: você é leal e intempestiva. Às vezes, isso não é legal, temos
que ser leal ou intempestiva conforme as circunstâncias. Nunca ambas ao mesmo tempo,
senão vamos fazer estragos nos corações daqueles que nos rodeiam.
-Ainda não me contou sua aflição, vai me dizer? Se não me vai dizer, mudemos de assunto,
o ambiente está carregado...
-Kleber tem uma amante! – desabafou Cássia.
-Kleber? Deixe-me rir: ah, ah, ah, ah!... É assim que você é razão? Kleber é um escravo do
trabalho e da família com exceção de Marcos que são carne e unha. Vivem juntos pra tudo
quanto é lugar. Quê maluquice é essa?
-Marly não existe maluquice. Você sabe quanto tempo não temos sexo? Somos jovens e
médicos, se fosse um problema de saúde, saberíamos procurar o caminho da solução, mas é
um problema de cabeça, de sentimentos, ele é generoso comigo por causa dos filhos,
porém, cada dia mais distante na cama – desabou e chorou.
Marly estava surpresa e estupefata. Enlaçou-a pela cintura e deu-lhe um beijo apaixonado
na boca. Correspondida, rolaram na cama...
III
.
-Não gostei Kleber dos seus elogios. Eu sou seu homem e sua mulher desde que éramos
estudantes de medicina. Lembra-se quando nos encontramos nos corredores da
universidade? Foi atração, paixão, amor e todos sentimentos eróticos juntos. Você nunca
fez um elogio público daqueles para mim - com gestos e trejeitos zombeteiros, repetiu a
frase do(a) amante: “...ela alumia os meus passos”.
-Endoideceu Marcos? A secretária ainda está aí - esbravejou Kleber.
-Não se preocupe senhor da moralidade, ela já foi.
-Desculpe-me, não me lembrava, ela me pediu para sair depois da última cliente. Não sou
senhor da moralidade. Amo-lhe como nunca amei ninguém. Mas irei sempre preservar os
meus filhos, a minha mulher e sua família de um escândalo. Se um dia descobrirem, acho
que me suicidarei, como irei encará-los? Esta é uma condição sine qua non, para
continuarmos juntos. - Sempre respeitei sua discrição. Eu fui o cupido do seu namoro com
Cássia para lhe dar um verniz familiar e profissional. Marly surgiu para completar o
quarteto e nossa farsa, nunca a amei!...
-Então, gostaria de entender o porquê desse ciúme? Você também a elogiou. Não obstante
nos amarmos, ela é uma mulher maravilhosa! Sei que ela tem sofrido com a minha ausência
sexual, mas não dá o braço a torcer, é uma mulher direita e uma mãe extremada!
-Kleber, você pensa que com Marly é diferente? Tenho medo.Ela é um vulcão, duma hora
pra outra, ela poderá expelir larvas para todos os lados. Por isto, não me mantenho tão
ausente...
-Acho que vou procurar seguir sua lição: vou dar mais atenção à minha mulher, ela poderá,
também, não agüentar e desabar e nos trará sérios problemas.
-Desde que você não falhe comigo!... - disse Marcos.
Os consultórios de ambos eram os ninhos do amor. Lá eles se encontravam sob os mais
variados pretextos depois do expediente. As secretárias eram dispensadas e eles ficavam a
sós. Numa certa feita, quase que eram flagrados quando uma delas esqueceu uma bolsa e
voltou para pegá-la. Daí em diante os cuidados redobraram.
IV
A amizade de Cássia e Marly tinha mudado a olhos vistos para melhor. Ultimamente, eram
vistas em shoppings, mercados, bares, lojas, à medida que eram desobrigadas de suas
atividades particulares, geralmente, domingos e feriados.Cássia já não andava macambúzia,
era só alegria. O mesmo se diria de Marly que sempre tinha sido desenvolta, estava ainda
mais desembaraçada.
Os maridos ainda comentaram a mudança e o apego das duas. Kleber contemporizou e
colocou água na fervura:
-Marcos, deixe de ser malicioso! O gato do que usa, cuida, elas sempre foram amigas e com
os filhos crescendo, ficam cada vez mais a sós, é natural que fiquem mais juntas e mais
dependentes entre si.
-Quem falou não estar mais aqui!..
V.
Kleber cumpriu o prometido: seu relacionamento conjugal ficou melhor. Marcos contribuiu
de bom alvitre. Ele terminou entendendo que felicidade também se partilha e para ele ser
feliz dependeria do bem estar dos demais ao seu redor.
Naquele dia, Kleber tinha chegado em casa mais cedo do que de costume. Ele e Cássia já
tinham tido um affair por telefone. Ela estranhou o repentino interesse do marido, porém,
não queria ser nenhuma estraga prazer, assim que foi possível, telefonou para amiga:
-Ly, Kleber telefonou-me nesse instante tecendo os maiores elogios, seduzindo-me. Será
que foi necessário trair-lhe para ele descobrir a mulher que tem? – Marly permanecia
calada... – E aí, não me ouviu? – Desculpe-me, é que estava pensando umas coisas...
-Quê coisas?...
-Marcos, ontem à noite, foi o melhor amante (depois de você, claro! – caiu na gargalhada),
será que eles desconfiaram de alguma coisa e estão com medo de nos perder?
-Acho que devemos ter mais cuidado com os nossos encontros. Eu quero que eles vão às
favas. Preocupo-me com os meus filhos e os seus. Se eles descobrem...
-Pára Loira! O céu anuncia chuva e você já fala em tempestade! Pode ser impressão nossa,
cada coisa tem seu tempo.
-O quê farei?
-Siga seu coração.
Kleber foi um amante perfeito. Fizeram amor sem censura. Cássia deixou todos pruridos
morais e preconceitos arraigados e se comportou sexualmente como nunca antes, uma puta.
Kleber estava atônito e maravilhado.
VI
Um ano depois do affair das duas mulheres. As duas famílias pareciam uma. Os filhos se
relacionavam tão bem que eram como irmãos siameses. Tinham os mesmos gostos,
praticavam os mesmos esportes e estudavam no mesmo colégio. Seus pais eram sócios
numa clínica. Suas mães também eram sócias em um escritório de arquitetura e engenharia
civil com mais dois profissionais da área.
Alguém já falou que quando o gato se esconde deixa o rabo de fora. Naquela tarde, às 16
horas, Dr. Kleber Andrade Santino, tinha pedido várias vezes à secretária para entrar em
contato com sua mulher e obter os números de identificação dos seus documentos. Ele
precisava preencher umas fichas de inscrição para mais um congresso médico sobre
tratamentos fitogenéticos e enviá-las, ainda àquela tarde, para Comissão Organizadora. O
congresso realizar-se-ia uma semana depois na cidade de Manaus. Eles tinham se inscritos
mais para curtir a natureza amazônica do que aperfeiçoamento profissional, já que tinham
especialidades díspares.
-Por favor, Srta. Verônica, na impossibilidade de localizar a Dra. Cássia por telefone,
transfira o restante dos meus compromissos para amanhã. Terei que preencher esses
documentos e enviá-los por e-mail. Se o Dr. Marcos aparecer aqui, diga-lhe que fui para
casa.
VII
-Ly, você não me avisou que viria, alguma novidade? – Cássia não a esperava.
-Nenhuma Loira! Estava com saudades de você. Não gostou da surpresa?...
-Claro! Espere um momento que irei delegar afazeres às empregadas, depois iremos para o
salão de ginástica, malhar e ouvir música.
No salão de ginástica havia uma parafernália de aparelhos, uma máquina de bronzeamento
artificial, som ambiente e outros recursos lúdicos, saunas, banheiros, toaletes etc. Um
professor de educação física vinha três vezes por semana em dias alternados para orientar
os exercícios.
VIII
-Dr. Kleber, que novidade é essa? – perguntou o porteiro – trabalho aqui há cinco anos, é a
primeira vez que o senhor volta para casa tão cedo!...
-José, hoje é um daqueles dias que você pede a Deus que termine. É como se o céu
estivesse fechado de nuvens negras e fosse cair uma grande tempestade... Entende-me?
-Doutor, qual é a alma vivente que não já sentiu essas sensações?... – José estava todo
intimidade...
-Por isso, joguei todos compromissos para quando a tempestade passar. Agora, quero ver
Dra. Cássia, ela está em casa?
-Ela e Dra. Marly!...
Kleber encontrou os empregados, limpando a piscina, cuidando do jardim, limpando a
garagem (subsolo), limpando a biblioteca, na cozinha, e nada de encontrar a dona da casa e
sua amiga... Quando estava prestes a subir para o pavimento dos quartos atrás da sua
mulher, encontrou uma mocinha limpando a sala de música que deu uma informação
precisa do paradeiro da dona casa e sua visita:
-Dr. Kleber, doutora Cássia está lá em cima, no salão de ginástica, com sua amiga e pediu-
me para não deixar ninguém incomodá-la, mas o senhor... - como quisesse se desculpar por
descumprir a ordem da patroa.
-Não se preocupe senhorita Adriana, vou ocupar sua patroa por pouco tempo.
Uma luzinha deu o alarme e os sensores da desconfiança de Kleber começaram piscar, o
seu sexto sentido vinha dando-lhe sinal há algum tempo sobre Cássia e Marly, achou tudo
estranho, desde quando tinha procurado sua esposa em quase toda mansão e ninguém lhe
dava uma informação precisa, salvo, “ela está com doutora Marly”, se não fosse a
informação da última empregada, ele ainda estaria a procurá-la, aqui e acolá sem encontrar
seu paradeiro.
Kleber subiu na ponta dos pés, com passos de bailarina, até o terraço que ficava no 3º.
Pavimento, a porta principal de acesso estava fechada por dentro. Não bateu na porta e nem
a chamou. Voltou, pegou a chave da porta de emergência e pé ante pé adentrou o salão de
ginástica...
O salão estava ermo, em princípio não havia ninguém, Kleber pensou em chamá-la, poderia
estar em algum sanitário, mas num átomo de tempo, ouviu uns sussurros, ele prendeu a
respiração, afinou o ouvido: “eu te amo...”, “não posso mais passar sem seus carinhos... “.
Kleber gelou! Pensou que delirava... que estava alucinado, fora de si, imaginando coisas...
mas pouco e pouco, foi assumindo seu autocontrole emocional e duma vez abriu a porta
donde saiam as vozes e, elas estavam lá!...
Deitadas sobre um tapete persa, nuas, beijando-se apaixonadamente, enlaçadas, Cássia e
Marly e Marly e Cássia...
- Suas vagabundas!!!... - Kleber desabou e chorou.
A vedete
R. Santana
I
Era a terceira ou quarta vez que tinha ido ao abrigo São Francisco no ano 2003. É uma
construção em forma de H, com dois prédios frontais de dois pavimentos cada um, ligados
por uma passarela de falsas colunas, encravado em um outeiro, ladeada de jardins e
palmeiras da Índia e cerca viva de espinheiro que não impede o vivente do abrigo se
deliciar com a linda visão da cidade de Vila Nova, embaixo.
Nos segundos andares ficam as salas administrativas, a lavanderia, o almoxarifado, a
farmácia, uma despensa, uma grande cozinha e os dormitórios das Irmãs Clarissas,
administradoras do abrigo.
Nos primeiros andares ficam apartamentos de cinco ou seis leitos cada, dos velhos
abrigados. Nos térreos, os dormitórios femininos, salão de festa, salão de ginástica (para as
pessoas válidas da instituição que quisessem usá-lo), a recepção e nos fundos dos prédios
uma grande piscina. Todo esse complexo ligado pela passarela, por disfarçáveis escadas,
rampas e passeios antiderrapantes.
Embora esse abrigo fosse entregue à Ordem Franciscana para administrá-lo, tinha sido
construído e doado por um grande empresário católico, homônimo de São Francisco.
Ali, encontrei uma sapeca menina de 82 anos bem vividos, chamada de Angelina Murad
que se esforçava para não envelhecer, ou melhor, se esforçava para não ter uma velhice
decrépita. E, duma forma ou doutra conseguia. Alta, viva, inteligente, de olhos esverdeados
e mesmo com a avançada idade, era esbelta, ainda tinha marcas duma juventude prazerosa
doutros tempos.
Ela não tinha complexos sociais. Enturmava-se com os velhos e os novos com a mesma
facilidade. Brincava, cantava, dançava com mais desenvoltura do que suas colegas anciãs
bem mais novas.
Ficamos amigos no primeiro encontro. Desde cedo, tratava-lhe sem cerimônia, embora
tivesse idade de ser seu neto. Compreendi logo que se a tratasse com
formalismo não teria o prazer de sua companhia, de sua conversa e jamais teria penetrado
em sua história.
II
Final da década de quarenta, Angelina Murad com 27 anos de idade, é uma das principais
estrelas do Teatro de Revista. Uma artista completa: canta, dança e domina musicalmente
alguns instrumentos, notadamente, o piano e o acordeão. De uma empatia carismática. É
assediada por empresários, diretores, colegas e por alguns figurões da elite da capital
federal.
Não faltavam propostas de casamento, de contratos milionários, de convites para atuar em
grandes musicais, convites para o incipiente cinema nacional e não faltavam também,
propostas só de interesse sexual. Ela atendia algumas propostas, driblava outras e respondia
com desdém quando era ferida em sua dignidade.
Muito dada, muito querida, todavia, jamais permitia que sua vida profissional interferisse
na pessoal. Quando ia pra cama com alguém, ia por bem querer, por prazer, por tesão,
independente dele ser rico ou pobre, dele ser o diretor do espetáculo ou o dono da
companhia ou um colega de atuação. Leiamos o seu depoimento:
“Meu nome de batismo é Emma Fenstermacher. A minha mãe era gaúcha e o meu pai
alemão de Colônia. No início do Século XX, depois da I Guerra Mundial, ele embarcou
num navio e veio atracar no porto de Santos, atraído pela fama de uma terra ignota. Levado
por notícias de seus conterrâneos radicados no Sul do país, abrigou-se logo depois no Rio
Grande do Sul, onde conheceu e casou-se com a minha mãe, um ano mais tarde.
Eu sou a mais velha de quatro irmãos, quando me dei por gente, meu pai já tinha comprado
uma modesta casa em Santa Rosa e era sócio de uma pequena estância. Não éramos ricos
mas, tínhamos escola e fartura na mesa.
Na minha adolescência, tive aulas de balé, canto e teatro. A minha mãe era uma cantora
caseira e meu pai um admirador das artes quaisquer que fossem.
Embora houvesse certo preconceito pela carreira artística, em particular, mulheres que
abraçavam essa carreira, os meus pais deram vazão à minha vocação de cantar e
representar.
Comecei participar desde cedo em minha terra de grupos de teatro, cantava em saraus da
família e de conhecidos e com o tempo passei cantar em festa de aniversário de criança e
adolescente com um pequeno cachê.
A Primeira Guerra Mundial trouxe o meu pai para o nosso país e a Segunda Guerra
Mundial o levou para sempre. Quando a guerra estourou, ele já tinha mais de 45 anos de
idade e quando Getúlio declarou guerra à Alemanha, o coração dele não suportou. Foi um
baque pra ele a idéia de dois povos que ele amava entrarem em conflito bélico. Não tinha
perdido o amor pela pátria de nascimento, entretanto, daria a vida pela pátria adotiva. O
Brasil era a terra da sua esposa e dos seus filhos que estavam acima de qualquer sentimento
e a morte de qualquer brasileiro em conflito lhe era insuportável, era o fim.
Com a morte do meu pai, eu e minha mãe viemos para o Rio de Janeiro, a Capital Federal,
em março de 1947. Os meus irmãos preferiram ficar trabalhando e dando continuidade aos
negócios do meu pai.
No início as coisas não foram fáceis, não conhecíamos ninguém, além disso, estávamos
num período de vacas magras, o país ainda sentia o trauma da guerra e a economia não
andava em bonança, afora os problemas políticos. Tive que bater em várias portas até
conseguir uma oportunidade de trabalho em uma casa noturna de pequena expressão
artística.
Depois de alguns meses de trabalho, fui convidada por Walter Santino, principal diretor de
teatro, para fazer uma ponta numa peça da obra de Henrik Ibsen, interpretando uma dona de
casa americana. O meu papel era de somenos importância mas desempenhei com tanta
graça e também a peça no conjunto, que ficamos em cartaz mais de um semestre e
propiciou-me vôos mais altos.
Participei de alguns filmes e espetáculos de pornochanchadas que foram tão ruins que
prefiro não citar os nomes. Não foram ruins pelo desempenho, eram rapazes e meninas de
talentos indiscutíveis, salvariam qualquer texto por pior que fosse, porém, não passavam de
espetáculos sexuais de apelação. Entretanto, era a coqueluche do momento, uma verdadeira
mina de ouro. As nossas pernas eram disputadíssimas pelas lentes dos fotógrafos. As
principais revistas do país exploravam e estampavam os ângulos mais picantes dos nossos
corpos.
Ganhei muito dinheiro. Comprei apartamento, ajudei meus irmãos e viajei outro tanto.
Fizemos espetáculos em Paris, Roma, Londres, várias cidades dos Estados Unidos, México
e Ottawa. Éramos recebidos com carinho e simpatia nas melhores casas noturnas.
Quando voltamos ao Brasil, o meu nome era uma marca nacional. Deixei de participar de
espetáculos vagabundos e investir numa carreira mais burilada. Não me faltava convite. As
principais empresas nacionais, pagavam-me a peso de ouro para veicular os seus produtos.
A televisão estava engatinhando no eixo Rio-São Paulo, fui sua garota propaganda por
algum tempo, mesmo depois que passei atuar em suas novelas...” – abruptamente, ela
interrompeu a fala. Fiquei preocupado, não tive outro jeito senão perguntar-lhe:
-O quê houve?
-Nada meu filho, é coisa da idade, vou descansar. Contar-lhe-ei o resto depois. Sim?
-Tudo bem.
III
Voltei lá na semana seguinte. A minha curiosidade era maior do que a minha ansiedade,
queria ouvir o resto da história de Emma, ou de Angelina. Acho que não daria para separar
Emma de Angelina porque a partir do Rio de Janeiro, elas eram xifópagas. A carioca estava
dentro da gaúcha e a gaúcha estava dentro da carioca à Aristóteles: “se um me deu a vida; o
outro, me deu a arte de viver”. Ela nasceu como Emma e amadureceu como Angelina.
Naquela semana era festa no abrigo São Francisco, Angelina estava mais solicitada bouquet
de noiva. Todos chamavam-na para dançar. Comigo ela dançou umas duas ou três vezes.
Dançava com uma leveza e uma simplicidade como ninguém. Ali no salão, dançando como
se não estivesse pregada ao chão, a Angelina se sobrepunha à Emma com clareza. Quem
não conhecia seu passado, ficaria boquiaberto com seu desempenho pela provecta idade.
Retornei lá duas semanas depois, não queria dar bandeira da minha ansiedade. A sabedoria
popular diz que: “o apressado come cru”. Tinha todo tempo do mundo, não diria o mesmo
de Angelina. Embora sua auto-estima fosse lá em cima, notava-se que ela definhava dia-a-
dia. Tinha algumas doenças da velhice, nada que se perdesse o sono, no entanto, notava-se
que alguma coisa lhe mexia na alma, como se os fantasmas do passado andassem lhe
perturbando e tivesse consciência de sua impotência.
Fui informado que Angelina tinha ido passar um final de semana na casa de um sobrinho-
neto. Não demonstrei preocupação pela ausência dela, afinal, ia ao abrigo muito antes de
conhecer Angelina Murad. Passei o dia cuidando de outras pessoas. Não havia festa nesse
dia, havia um movimento normal dos dias de visita que acabou absorvendo-me todo tempo,
quando deixei o abrigo, a noite ia chegando.
IV
Demorei um mês pra voltar ao abrigo. Atividades particulares absorviam-me prejudicando
a minha atividade voluntária que fazia aos hospitais e às casas de amparo à velhice e ao
menor nos finais de semana. Todavia, não me saía da cabeça o desejo de conhecer o
restante da história de Angelina. Não queria bisbilhotar sua vida por bisbilhotar, movido
pela curiosidade mexerica, mas queria passar para os outros o significado relativo da vida,
em particular, o lado relativo do sucesso. Não existe tempo bom que não se acabe e a
recíproca é verdadeira quando se diz: “depois da tempestade vem a bonança”. Não entendia
como uma pessoa tão famosa estava ultimando seus dias num abrigo, abandonada por
parentes e amigos.
Depois de tantas investidas, eu a encontrei disponível naquela tarde e parecia-me querer
jogar conversa fora e ter dado falta da minha ausência:
-O quê houve meu filho? Sumiu!... Enjoou desta velha? – não tive nem tempo de lhe
cumprimentar.
-Angelina (nada de tia ou avó), estava trabalhando esses dias. Não sou aposentado, ainda
não estou mamando nas tetas do governo como uma pessoa que está defronte a mim! –
brinquei.
-Ah, ah, ah, se eu tivesse eu tivesse de viver desse salário da aposentada, Alberto, eu estaria
vivendo de chorumelas... – lamentou.
-Bem, não vamos consertar o mundo. Deixa Deus com seu mundo e gambá com seu fedor,
hoje, quero matar a saudade que eu senti de você esses longos dias que não lhe vejo. –
enchi sua bola...
Fomos sentar em um banco de cimento que ficava no jardim. Um recanto aprazível,
cercado de orquídeas, margaridas, roseiras, violetas e alguns espécimes raras que não
conheço o nome ou a família.
Como sempre, ela respirava alegria. Não me lembro de tê-la encontrado macambúzia, triste.
Brincava dizendo que “tristeza não paga dívida e do mundo nada se leva”, por isto, não me
foi difícil, com jeito, empurrar-lhe para que contasse o resto da história:
-Angelina, você terminou sua vida artística na televisão? – joguei a isca.
-Não! Trabalhei em várias novelas quando era feita ao vivo. Porém, nunca gostei de novela.
É muito trabalhosa e não tem o olho no olho com no teatro, além da história ter
desdobramento por vários meses. Terminei no teatro, dançando, cantando e representando.
– insisti:
-Você começou trabalhar na televisão brasileira quando ela estava engatinhando e não me
falou como veio parar aqui no abrigo.
-Aqui, cheguei há 10 anos, por livre e espontânea vontade. Vim visitar uns parentes, gostei
da cidade e quis ficar perto deles, entretanto, sem morar em suas casas, o abrigo foi o
melhor lugar que encontrei pra ficar, porque é gente da minha idade e não fico solitária,
além de não ser peso pra parente ou aderente. – não era sua chegada ao abrigo que desejava
ouvir, queria ouvir os verdadeiros motivos que precederam sua chegada àquela casa, fui
direto ao assunto:
-Querida Angelina, você parou sua narração quando começou atuar em novelas, depois de
consagrada no cinema e no teatro, o quê ocorreu depois disso?
-Você tem razão, entre o início do meu trabalho de novela e a minha entrada aqui, existe
um hiato de uns 40 e tantos anos. Se tornar-me enfadonha na minha fala, interrompa-me.
Quê prazer lhe trará a história duma velha?
-Não fale assim! Velho é molambo... Você é um ícone da arte brasileira, além de ser uma
pessoa do bem. – fui-lhe sincero.
-obrigada, pena que lhe conheci depois de velha, senão, teria sido sua amante. – brincou.
Fiz-lhe gesto de assentimento. Ela continuou:
“... Casei-me com um colega de trabalho. O casamento foi feito na Catedral do Rio, com
tudo que tínhamos sonhado: buffet, Kadillac, viagem ao exterior, a mídia cobrindo cada
passo e cada palavra. Fomos para Barcelona, Roma, Paris e voltamos para casa. Sessenta
dias atravessando fronteiras. Júlio Galhardo, meu marido, foi de um cavalheirismo
indescritível. Ele parecia estar dentro de mim, do meu pensamento, adivinhava os meus
mais recônditos desejos. Se no namoro ele tinha sido um amante perfeito, depois de casado,
ele duplicou os carinhos e os cuidados. Foram sessenta dias inesquecíveis...
Quando retornamos, os assédios de emprego partiam de todos os lados. As principais
empresas de comunicação do país queriam fechar contrato conosco. Nossa vida era
próspera. Fizemos alguns investimentos em imóveis, títulos de capitalização do governo,
um haras e um sítio no município de Campos, interior do Rio de Janeiro.
Não tivemos filhos. Dois anos depois, fiz um tratamento com um especialista em fertilidade
humana, mas não vingou nenhuma gravidez. Júlio começou ficar arredio, taciturno,
ciumento e deu pra beber. No início era uma cervejinha ou uma pinga na hora do almoço,
com o passar dos dias, ele foi relaxando, chegando bêbado e atrasado nos estúdios de
gravação, nos ensaios e algumas vezes, teve de ser substituído nas peças teatrais.
Desempregado e cachaceiro, ele passou viver às minhas custas.
O nosso mundo ia ruindo, as cenas de ciúmes que Júlio fazia em público, foram decisivas
para que os meus contratos não fossem renovados. As propostas contratuais não condiziam
em termos salariais e profissionais. Além disso, já estava com mais de 35 anos de idade, os
produtores, os diretores teatrais, de televisão e de rádio, lançavam novos brotos no
mercado.
Júlio passou por vários manicômios. Tornou-se um alcoólatra e com o alcoolismo outras
doenças vieram no bojo: estados psicóticos, depressão, convulsões, confusão mental,
delirium tremus e por aí afora. Saía bem do hospital, mas pouco tempo depois, voltava
beber e repetia-se tudo de novo. Levou essa vida quase oito anos, vindo falecer com 43
anos de idade.
Vendi o sítio, o haras e lancei mão de algumas economias que tinha na poupança. Cada
internação de Júlio ia um bom dinheirinho. Se ele tivesse levado mais quatro o cinco anos
para morrer, teria me deixado na miséria.
Com dificuldade, pude manter e comprar depois alguns imóveis. Hoje, tenho uma
aposentadoria mínima e os aluguéis dos meus apartamentos completam a minha
subsistência.
Quando ele morreu, eu já era uma balzaquiana, porém, não faltaram propostas de
casamento e amigação. Não quis mais envolvimento emocional duradouro. Namorei muito,
agora, cada qual no seu cada qual. Não me atraía mais juntar as escovas de dente. Viver a
dois é saber administrar as diferenças e não me achava mais em condições de enfrentar um
novo casamento.
A juventude e o sucesso são passageiros. Lembra-me uma parábola com a base do vértice
voltado para cima. Se alguém escalasse um dos lados dessa parábola, o topo seria o sucesso
auge, o estado aprazível, o nirvana e a descida, a decadência, que é irreversível, ninguém se
mantém no topo eternamente, o problema consiste que desejamos a subida mas, nunca
estamos preparados para descida, para o ostracismo.
Fiz papel de tia, de mãe, de avó e outros papéis de somenos importância. Quando eu senti
que o trabalho artístico não tinha mais significado para mim que não me dava mais prazer
fazê-lo, que o trabalho me era dado como para ajudar uma artista velha, eu sumi do meio e
homiziei-me voluntariamente para este abrigo Espero que os meus ossos sejam enterrados
nesta cidade.
Ela tinha falado um tempão, não a interrompi para não atrapalhar seu raciocínio, embora ela
fosse de uma lucidez invejável para sua idade, ás vezes, ela tergiversava noutros fatos que
não tinham nenhuma relação com o seu depoimento e voltava com a maior facilidade ao fio
da meada. Por isso, fiz-lhe algumas perguntas antes que deixássemos o jardim:
-Por quê razão não deixou Júlio quando ele começou beber desregradamente? – provoquei.
- Você é jovem, desconhece naturalmente que os compromissos morais são mais fortes que
o amor. Tínhamos jurado estar juntos na saúde ou na doença, na alegria ou na dor, na
miséria ou na bonança. Como iria abandoná-lo na doença. O alcoólatra é um doente.
Casamos por amor, ele não me era infiel, portanto, eu tinha obrigação moral de não deixá-
lo à deriva. – justificou.
-Bem, eu pensei em seu bem estar, em sua carreira, todavia, você poderia ter dividido esse
peso com seus colegas de trabalho. Afinal, não tem uma casa beneficente de ajuda aos
artistas, algum hospital público, montepio, previdência pública? - tentei desculpar a minha
insensibilidade.
-Nessa época, esses serviços gratuitos eram precários. Os colegas, a maioria é imprestável,
cada um está preocupado com o seu próprio umbigo, ás vezes, o apoio e a ajuda chegam de
pessoas que jamais se imaginou. Nunca pense dividir seus problemas com o outro, pois o
outro é um problema. – sua lucidez era admirável.
-Angelina, observa-se que você passeou ao longo desses anos por várias escolas
filosóficas!... – brinquei.
-Meu filho, estudei as primeiras letras com os meus pais, aprendi o suficiente na escola e
me doutorei na universidade do mundo. Aprende-se muito com as experiências do dia-a-
dia. A vida é um aprendizado e a sapiência chega com a velhice.
-Minha amiga, acho que o pessoal está preocupado com o nosso sumiço! Vamos entrar?...
V
Três anos depois. A minha amizade com Angelina se estreitava a cada dia. Tornei-me seu
confidente escolhido. Quando tinha problema de saúde ou alguma dificuldade, era o
primeiro a saber, elegeu-me seu porto seguro em detrimento dos seus parentes. Acredito
que se devia ao fato da minha presença constante e a assistência que lhe dava.
Sentia-me honrado de sua amizade, mas não me sentia satisfeito sua cisma com seus
parentes, embora tivesse consciência de não ter contribuído para essa animosidade sutil,
intimamente, dava-lhe razão, pois eles, esporadicamente, iam visitá-la.
Natal de 2006, nós tínhamos programado participar da festa de confraternização que o
abrigo São Francisco promove todos os anos com a presença de parentes dos internos, de
amigos e funcionários da instituição. Uma festa alegre, com representação teatral, canto,
dança e outras brincadeiras, com a prata de casa e alguns artistas convidados. Começava-se
cedo, considerando que a maioria dos velhinhos, vai para cama assim que cai a noite.
Naquele dia achei Angelina fraquinha, sem muito interesse pelo que estava ocorrendo ao
seu redor. Tive que lhe dar uma injeção de ânimo:
-Quê houve Angelina? Seus sobrinhos lá fora e você aqui esquentando a cama!... –
brinquei.
-Beto, eu estou mole, sem desejo de nada, por mim ficaria o dia todo aqui estirada... –
estava visivelmente deprimida, buli no seu ego:
-Quer que eu espalhe que a artista mais esperada está nessa chochice! – ela riu.
-Você não tem jeito. Levanta até defunto com seu bom astral, porém, não fique cheio de si,
na sua idade, eu também fazia cobra cuspir, quando você descer a ladeira do ocaso, queria
estar presente para testemunhar o velho chocho e sorumbático que você vai ficar!... – eu
tinha conseguido animá-la.
A festa foi um sucesso. Um conjunto de forró da região tinha sido convidado e foi a
coqueluche de todos. Angelina foi convidada para recitar um soneto de J.G. de Araújo
Jorge. Houve canto, dança, humor, jogos de prendas, presentes e declarações sentimentais.
Fui pego de surpresa quando Angelina após ter declamado o soneto de J.G.de Araújo Jorge,
fez uma confissão pública de amor materno por mim: “... os meus parentes de sangue me
são caros mas, Alberto Silva Santos, o meu Beto, é o filho que não parir porém, é o filho
que escolhi”. Não me envergonho dizer que as lágrimas me vieram aos olhos, não esperava
dela uma confissão dessa natureza, ela não era dada às fáceis manifestações sentimentais.
Eu passava no abrigo todos os dias, à tarde, para vê-la quando saía do trabalho. Sua de
decrepitude era vista a olhos nus. Naquela manhã de 10 de janeiro de 2007, o abrigo
telefonou-me, urgia a minha presença, Angelina estava prostrada na cama com graves
problemas respiratórios. Atendi de imediato o chamado do abrigo, juntos providenciamos
sua internação hospitalar.
Fiquei o dia todo ao seu lado. Na madrugada do dia subseqüente, ela faleceu em meus
braços.
Mandei colocar em sua tumba a inscrição:
“Jaz aqui uma mulher que não me deu à luz, mas ensinou-me a arte de viver.”
A dama de preto
R. Santana
I
O senhor Manduca era o seu fiel escudeiro. Percorriam um raio de mais de 30 km quase
todos os dias. Não trocavam confidências, eram conversas amenas, agradáveis, do dia-a-
dia. Ele nunca perguntou-lhe o que ela fazia naqueles becos, naqueles cortiços, naqueles
prédios velhos, naqueles cafofos, naqueles bairros pobres e naquelas habitações miseráveis.
Apenas cumpria suas ordens e mais nada. Ao longo desses 3 anos que se conheciam, a
rotina era a mesma: ela parava o carro no estacionamento do Jacarandá Shopping Plaza,
fazia algumas compras, do feijão ao remédio, de quando em vez, algumas roupas, deixava o
seu carro estacionado, entrava no táxi de Manduca e chispava para algum endereço.
Tinham se conhecido naquele estacionamento por conta do acaso. Manduca tinha ido levar
uma senhora ao shopping e na saída, foi parado por aquela jovem que lhe estendeu um
endereço:
-Boa noite, o senhor conhece esse endereço? – perguntou-lhe.
-Conheço o bairro, lá não será difícil localizar a rua! – respondeu-lhe.
Ela era uma linda morena, esguia sem ser comprida, de formas proporcionais,
sistematicamente usava roupas, calçados e acessórios pretos, por isto, o epíteto que lhe dera
Manduca: “a dama de preto”. Apresentara-se como Paula, só Paula, sem nome de família e
sem sobrenome. Ele nunca perguntou-lhe onde morava, onde trabalhava, o que fazia e de
quem descendia, se casada ou solteira. Para Manduca interessava-lhe a féria do dia.
Aposentado, comprou um táxi para ajudar no sustento da mulher e de um filho adulto
deficiente. Não era íntimo de Paula mas no decorrer desse tempo, pouco e pouco ia
surgindo uma amizade e um respeito paternos. Não conhecia os propósitos da filantropia de
Paula, dos seus mistérios, dos disfarces que ela usava para não ser reconhecida nem
agradecida. Ultimamente, lhe aprazia mais as horas que passava ao seu lado, ser testemunha
das ações filantrópicas daquela mulher, do que o pagamento pelas viagens do táxi. Não
ligava mais o taxímetro, fazia uma estimativa, tirava a média por baixo e fechava a fatura
todo final de semana.
II
Pela terceira vez eles entravam no Jardim das Papoulas, embrião de um bairro pobre da
terra soteropolitana. Um bairro onde o poder público quase ainda não tinha chegado, de
ruas estreitas e grandes ladeiras. Era um acinte à natureza chamar aquele antro de
promiscuidade e pobreza, de moradores miseráveis de jardim. O nome papoula era uma
alusão tosca da planta que fornece ópio e bonitas flores. O nome oficial era bairro do
Pequeno Rio, uma homenagem dos edis da cidade a um grande ribeirão que corta uma mata
que fica na extremidade sul daquele bairro e é o point dos seus moradores.
Os moradores não gostaram do nome oficial do bairro. No Brasil, é comum leis e decretos
de cima para baixo nascerem mortos, pois são engendrados e paridos nos gabinetes dos
políticos sem ouvir os setores interessados. Por isto, Correios e prefeitura tiveram de
engolir o nome que o povo batizou. No início as correspondências oficiais vinham com a
ressalva: “Pequeno Rio - Jardim das Papoulas”, porém, o comércio privado e seus
moradores insistiram no apodo Jardim das Papoulas que os legisladores que sucederam os
antigos, acharam por bem fazer uma ementa: “... doravante o nome Pequeno Rio será
substituído oficialmente por Jardim das Papoulas, atendendo aos interesses daquela
comunidade... Sala de sessões da Câmara... Salvador...”, os seus moradores pouco se
lixaram para essa retardatária mudança...
Manduca parou a táxi no final de uma rua onde uma escada de alvenaria incrustada num
barranco dava acesso a uma chapada com várias casas e barracos. Ele e Paula subiram a
escada levando várias sacolas de mantimentos e remédios. Era a terceira vez que Paula
assistia àquelas pessoas, naquela tarde, o endereço escolhido, foi de uma família que tinha
sobre um catre um filho desmilinguido e doente.
-Dona, já não tinha nada pra comer. A senhora foi enviada por Deus!... – disse a dona da
casa.
-Passou a febre do menino? – perguntou-lhe Paula.
-Já. Levei ele ao posto médico. O ex-patrão de meu companheiro comprou os remédios. –
esclareceu a mulher.
-Não quero que falte nada ao menino, lembre-se que você prometeu-me como afilhado!... –
cobrou-lhe Paula.
-Prometi-lhe e vou cumprir D. Paula. Estou deixando arranjar um emprego. Fiz o curso
médio. Por amor vim parar nesse lugar. Sou devota de Stº. Expedito, padroeiro das causas
impossíveis, irei dar volta por cima se Deus quiser!.. – prometeu-lhe a mãe do menino.
-Não se aflija Clara, estou deixando que haja um tempinho para encaminhar com o padre
daqui o dia desse batizado. Quanto às despesas, deixe-as comigo. – garantiu-lhe Paula.
III
À saída do Jardim das Papoulas, Paula e Manduca se deram conta que o dia tinha
escurecido. Paula ocupada com o menino e sua mãe, não tinha percebido que o tempo tinha
passado rapidamente e naquele ermo de casas e ruas mal iluminadas, cedo ainda, assim que
o Sol se escondia, era uma ousadia estranhos transitarem ali àquela hora, por isto, cuidaram
de retornar o mais rápido possível.
O táxi tinha ficado embaixo, em frente dum barraco, uns 20 metros distantes da escada.
Quando retornaram, a rua exibia uma iluminação lusco-fosca, não se via uma alma viva, de
repente, surge um mulato escuro, saído do nada, de arma em punho, determinando:
-Passe o dinheiro e a chave do carro, coroa!!! – gritou com Manduca.
-Pode levar o carro e esses relógios. Não temos dinheiro!... – intercedeu Paula.
-Não lhe perguntei sua vadia, se não tem dinheiro, vai ter que me dar outra coisa que gosto
muito e têm dias que não sei o que é mulher – Paula tremia como vara verde. Se mantinha
de pé com grande esforço. Manduca o tempo todo na mira do malfeitor. Embora não fosse
covarde, as circunstâncias lhes eram adversas. O mulato além de novo, era alto e forte,
Manduca não daria para meia missa, o meliante o arrebentaria
num safanão, ele era o senhor absoluto da situação mas o adágio popular diz que quando
Deus tarda, Ele vem no meio do caminho:
-Irmão, deixe o pessoal em paz!... – o elemento por pouco não disparou a arma do susto...
-Não se meta! Essa vadia vai ser minha e quem atravessar no caminho, deixo-o furado
como uma tábua de pirulito, vá para o inferno seu negro nojento! – o negro não se mexeu.
Com voz calma, parcimonioso nos gestos, tentou apaziguar os ânimos, não se incomodando
com os insultos:
-Zé Maria, essa dama não é vadia, é uma moça da sociedade e vai ser a madrinha do meu
filho com Clara, então irmão, vamos deixar eles saírem numa boa!... – cutucou o diabo com
vara curta. Numa destreza felina, Zé Maria deu-lhe um tapa com o revólver que o negro
saiu cambaleando e sangrando pelo nariz. A reação foi cinematográfica, veloz como um
raio, o negro puxou uma faca e gritou: “olha Zé!...”, quanto este virou-se, uma faca lançada
com destreza e velocidade, penetrava-lhe no abdome, um palmo acima do umbigo; outra,
lhe foi cravada no peito, em milésimo de segundo. O meliante, antes de cair, ainda atirou a
esmo. O negro com frieza inglesa, limpou o nariz que continuava sangrando e falou-lhes:
-Fiquei na casa do sem jeito. Se não fosse ele, seríamos nós! Quem beija a boca do meu
filho a minha endossa. Eu não deixaria que ele fizesse nenhuma maldade com a Senhora,
comadre, nem que tivesse de tombar neste chão. Agora, fujam daqui, a polícia não tarda
chegar!...
IV
O fato deu na página policial do jornal “A VOZ”, no rádio, na televisão, sem muito
estardalhaço. Era mais um crime atribuído à queima de arquivo, briga de quadrilha, calote
de droga etc. Todavia, o redator da matéria do principal jornal, chamava à atenção das
autoridades, que a vítima José Maria Sodré, não tinha passagem pela polícia como viciado
ou narcotraficante, não obstante ser malquisto por muitos moradores de Jardim das
Papoulas, por ter um gênio irascível e briguento.
O negro Zé Maria não tinha envolvimento com droga. Tinha fama de mulherengo e meia
dúzia de filhos com mulheres diferentes. Era briguento, principalmente, quando entornava
na garganta uns goles de cachaça. Afora isso, era prestativo e solidário com a comunidade.
Carapina requisitado em grandes construções de casas e prédios. O seu sepultamento foi
acompanhado por uma enorme quantidade de gente. Conjeturava-se que sua morte tinha
sido obra de algum marido traído.
V
A “dama de preto” desapareceu do bairro e da vida de Manduca. No dia do crime, ele a
tinha trazido de volta para o estacionamento como fazia todos os dias. Manduca ainda
esteve no shopping várias vezes na esperança de encontrá-la mas debalde. Fez o mesmo
trajeto uns 20 dias. Não entendia Paula ter desaparecido sem deixar rastro, afinal, ambos
não tinham cometido nenhum crime, exceto não ter comunicado o fato à polícia. Mas como
iriam explicar a história de um negro que saiu da nada e lhes salvou a vida? E, como ele iria
falar de Paula, dessa mulher misteriosa se
ele não conhecia sua identidade? Será que ela se chama Paula, Maria, Joana, Patrícia ou
nenhum desses prenomes? Tinha-a apelidado por “dama de preto” pois era o seu traje
preferido. Lembrou-se que o cabelo não parecia original mas uma sofisticada peruca. Não
sabia e não tivera interesse nem de gravar a placa do carro dela, não era adivinho do que
viria ocorrer, interessava-lhe somente ganhar seu dinheiro, enfim, estava atado de pés e
mãos. Uma semana depois do sinistro, recebeu por um moleque, um envelope recheado de
dinheiro com um bilhete feito de recorte de letras: “...pelo serviço prestado, obrigada.
Confio na sua discrição”. Quando lembrou do moleque, era tarde...
Pensou em voltar ao bairro do Jardim das Papoulas, localizar o negro, o moleque e sua mãe,
porém, seria uma empreitada arriscada. Seria identificado e alvo de vingança dos parentes
da vítima, do criminoso e seus comparsas. Resolveu deixar que as coisas seguissem seu
curso e a polícia desse o desfecho.
VI
Um mês depois, Manduca papeava com os colegas, quando uma viatura da polícia civil
pára e do carro alguém pergunta-lhes:
-Os senhores conhecem Armando Nonato dos Santos? – os taxistas ficaram um olhando
para o outro, absortos, exceto Manduca, que saindo do meio deles apresentou-se:
-Sou eu!...
Foi levado â delegacia. Ele soube lá que num telefonema anônimo, a polícia ficou sabendo
detalhes do crime, a exemplo do dia, da placa do carro e a quantidade de pessoas no local.
-Senhor, qual foi sua participação nesse crime? Perguntou-lhe o delegado.
-Nenhuma doutor!
- O senhor foi visto no lugar do crime, acompanhado duma mulher e mais um elemento
além da vítima!
-Fui levar uma passageira lá, quando ia voltar...
-O senhor conhece essa mulher?
-Não!
- O senhor está mentindo! Os senhores foram vistos várias vezes naquele bairro. Temos
testemunhas... – Manduca ficou perturbado por uns instantes, mas retornou à normalidade
com fleuma de quem não tem culpa.
-Doutor, eu não sou mentiroso. Na minha idade, não tenho nada para esconder. Realmente,
fui lá algumas vezes com aquela senhora. Ela pedia-me para estacionar o carro, pegava os
alimentos, remédios, às vezes, roupas e desaparecia por algum tempo naqueles becos e ruas.
E, eu permanecia no meu carro esperando ela voltar. – esclareceu Manduca ao delegado.
-Do jeito que o Senhor fala, essa mulher é a reencarnação da madre Tereza de Calcutá ou
de irmã Dulce! – ironizou o delegado.
-Senhor, já lhe contei tudo que sei. Para mim, essa jovem senhora é uma pessoa do bem.
Não sei detalhes de sua vida, o que faz e onde mora. Sei que se chama Paula, foi o nome
que me deu. Depois do que ocorreu, tenho dúvidas se é Paula!...
-Para mim, o senhor foi omisso e conivente com o crime. Vou provar sua culpabilidade e
quero ver a justiça deixá-lo mofando por um bom tempo atrás das grades – Manduca estava
com vontade de gritar.
-Perdão doutor, não fui omisso nem conivente. Fiquei com medo de uma retaliação. Fui
chamado e aqui estou, dizendo tudo que sei, entretanto, não posso incriminar ninguém ou
ser falso testemunho.
O delegado encaminhou o inquérito à justiça, incriminando o Sr. Armando Nonato dos
Santos, por conivência, omissão e obstrução de provas pelo crime de morte de José Maria
Sodré, vulgo Zé Maria. O Ministério Público o indiciou e a Juíza de 3ª. entrância, da 2ª.
Vara de Criminal da Comarca de Salvador, aceitou. Por ser réu primário, sem flagrante
delito, ter endereço fixo, seu advogado por habeas corpus, solicitou da justiça que seu
cliente respondesse o processo em liberdade.
Na saída do presídio, quando o criminalista Dr. Mardson Abreu Jr. foi ao seu encontro,
Manduca expressou sua incompreensão com o delegado:
-Ele me tratou como um marginal. Queria que eu desse conta da minha cliente e do
criminoso. È justo isso, doutor!? – esbravejou.
-Ab hoc et ab hac senhor!
-Não entendi nada, doutor!
-Senhor, é uma expressão em latim para dizer que alguém atirou a esmo, a torto e a
direito... isto é, o delegado não sabendo quem é o verdadeiro culpado ou culpados, lançou-
lhe acusações gratuitas, convencido de que o senhor sabe do paradeiro dos demais. –
explicou-lhe o advogado.
-Acredite em mim, doutor! Juro por Cristo que é o Juiz dos juízes que não conheço essa
gente das Papoulas. Até a mulher que sempre pegava o meu táxi, não sei sua identidade. Se
encontrá-la por aí, acho que a reconhecerei, mas não sei o seu nome o que faz, onde mora, a
família... conversávamos amenidades e quando perguntei-lhe porque não fazia aquele
trabalho às claras para que servisse de exemplo, ela foi taxativa: “... não quero louros nem
estátuas se não quiser me prestar serviço, procuro outro”. – justificou Manduca.
-Como advogado, sua palavra para mim tem fé de ofício, tenho o dever e a obrigação de
sustentar no tribunal ou onde quer que valha, mas como pessoa, comungo com o delegado,
sua história parece um conto de fada!... - disse-lhe Dr. Mardson.
VII
A audiência em juízo foi agendada para um mês depois. Manduca andava inquieto,
estressado, preocupado, como iria depor na justiça fatos que não podia prová-los. Para sua
mulher, tinha escamoteado a verdade, não lhe dissera que a “dama de preto”, fazia aquele
trabalho há uns 3 anos, seria o mesmo que cutucar onça com vara curta. Ela iria lhe encher
o saco com suas ciumeiras. Com sua imaginação fértil, seria capaz de criar histórias da
carochinha, do arco da velha, de amor e infidelidade conjugal.
Faltando uns quatro ou cinco dias para a audiência, ao cair da tarde, Manduca preparando-
se par ir embora, enquanto conversava com um colega de trabalho, alguém prendeu uma
mensagem no limpador de pára-brisa dianteiro do seu carro, onde se lia: “... estou
acompanhando seu processo. Fique despreocupado que os honorários do seu
advogado, serão pagos por mim. Por motivos profissionais e pessoais não
poderei me apresentar como partícipe desse infortúnio, mas prometo-lhe que o
verdadeiro criminoso vai apresentar-se”.
Manduca leu e releu o bilhete. Paula, Maria, Joana, Josefa ou o diabo que valha, era mais
arteira e ardilosa do que imaginara. A polícia não conseguira localizá-la, não obstante ela
não ter praticado nenhum crime, afora a obrigação moral que ela teria de se apresentar à
polícia e ter relatado todos os fatos para inocentá-lo
O fórum estava movimentado. Era a primeira audiência. O juiz iria ouvir Manduca. Ele já
tinha decorado tudo que iria responder. Não acrescentaria um til nem tiraria uma vírgula do
que foi dito na delegacia. Também, não faria nenhuma referência ao bilhete recebido.
Simpatizava com o trabalho filantrópico de Paula, ademais ele e ela não tinham nada com a
história do crime, tudo não tinha passado duma fatalidade, ele e ela não eram réus de joça
nenhuma, mas vítimas da marginalidade que joga solto no país do Oiapoque ao Chuí. Não
compreendia o interesse das autoridades em apurar esse crime de marginais. Teve a
oportunidade de conversar com o seu advogado:
-Doutor a polícia e a justiça empenhando-se tanto em descobrir quem matou esse marginal?
– questionou Manduca.
-Soube que a vítima trabalhava e era o protegido dum ricaço da construção civil. Deve estar
custeando os advogados. Aliás, deve ser muito rico, pois a família contratou dois eminentes
criminalistas.- esclareceu-lhe Dr. Mardson.
-Bem logo vi que debaixo desse angu tem caroço!... – brincou Manduca.
O movimento de advogados, oficiais de justiça e promotores era grande, quando surge no
corredor uma jovem morena, alta de cabelos castanhos e traje bege, sapato alto, tudo nas
esticas, ladeada por uma moça mais jovem e um rapaz, com algumas pastas nas mãos,
quando alguém anuncia:
A juíza chegou! – foi o suficiente para que alguns puxa-sacos fossem ao seu encontro e sua
ante-sala ficasse mais movimentada.
Manduca ficou, praticamente, sozinho num canto, até o seu advogado engrossou o séqüito.
Porém, quase que teria um faniquito quando a meritíssima Dra. Fabiana Maria Machado
adentra no recinto:
-Boa tarde senhores! – a juíza saúda a todos e vai direto pra sala de audiência,
acompanhada do seu séqüito, Manduca a observa de soslaio, o suficiente para que o seu
coração disparasse com uma boa dosagem de adrenalina: “não é possível, é Paula... Não
pode ser!!!”. Ficou absorto, sem uma gota de sangue, por pouco não desabou, porém,
chamou à atenção de um preposto que estava no computador:
-Senhor, estar sentindo alguma coisa?...
-Foi um ligeiro mal estar, acredito que pela emoção de ser ouvido daqui a pouco!... –
contemporizou Manduca.
VIII
Manduca foi ouvido. A juíza fez algumas perguntas que ele já tinha as respostas. Os
promotores e os advogados fizeram algumas intervenções. O quadro do crime era o mesmo.
A polícia ainda não tinha encontrado o criminoso. A família clamava por justiça. Manduca
não tirava da cabeça que a juíza era Paula. A voz a identificava. Quanto ao resto, os
empecilhos em reconhecê-la decorriam por conta dos disfarces. A juíza não estava de roupa
preta, não estava de óculos escuros, usava sapatos altos e não tênis, não estava de peruca de
comprida e grossa cabeleira e estava ali à luz do dia e não ao seu escurecer como sempre
fazia quando lhe encontrava, além da autoridade que ostentava, que não se podia levantar
suspeição sem provas contundentes.
A juíza lhe deixou mais confuso, não lhe olhava de soslaio, por baixo, mas tête-à-tête, como
para provocá-lo, um desafio à sua memória visual.
IX
Um mês depois, um negro chamado João Silva, comparece ao distrito policial
acompanhado de sua esposa Clara e seu advogado, apresentando-se como responsável pela
morte de Zé Maria. O delegado recalcitrante, resistiu em acreditar, achando que ele estava
fazendo o papel de boi de piranha, não querendo tomar seu depoimento. Foi necessário uma
ameaça velada do advogado:
-Meu caro Xavier, você é meu amigo, não quero tomar nenhuma outra providência, salvo,
se for necessário. O meu cliente será um prato apetitoso para imprensa baiana que há longo
tempo corre atrás dessa “mulher de preto”, doida pra desvendar esse mistério. Meu cliente
irá até faturar com esse “furo”!... – foi o bastante para que o delegado o levasse a sério, não
queria passar um atestado de negligência e inaptidão no exercício da função ao secretário e
ao governador.
Uma semana depois o delegado e o Secretário de Segurança Pública, reuniram a imprensa
com o desfecho do crime e um sucinto relatório: “o criminoso tinha se apresentado,
alegando legítima defesa, inclusive com um histórico médico, datado do dia do crime, que
numa queda ele tinha fraturado o nariz, forte lesão no rosto e quebrado dois incisivos. Além
do atestado com a mesma data do dia do crime, tinham sido feitos exames datiloscópicos e
as impressões digitais do criminoso confesso, eram as mesmas encontradas nas duas facas
cravadas na vítima. Para que não houvesse dúvida, tinha sido encontrado um pedaço de
papel sujo de sangue no local do crime que tinha o mesmo DNA do confesso criminoso”.
O delegado e seu superior hierárquico jogaram uma pá de cal na fantasia de que havia uma
mulher misteriosa, com o epíteto de: “a dama de preto”. Houve sim, uma mulher e um
taxista de meia idade que estavam acuados, sob a mira do revólver de Zé Maria, que estava
extorquindo o homem e ameaçava molestar sexualmente a mulher, quando o criminoso
confesso tentou intervir para que o pior não ocorresse, foi pego de surpresa com um safanão
de revólver na cara e reagiu.
X
Um ano depois o júri inocentou o criminoso, embasado no princípio da legítima defesa. O
testemunho da Manduca e de outro morador que apresentou-se a posteriori quando os fatos
adquiriram notoriedade pela imprensa, foram decisivos. As provas técnicas e a má
reputação do rufião deram o remate.
Manduca voltou trabalhar sem sobressaltos. Sua mulher jamais soube de suas andanças com
uma mulher desconhecida e misteriosa. Hoje, rejeitava o pensamento de juíza ser Paula. A
imprensa escrita e televisada não falaram mais no assunto. Seu advogado foi regiamente
pago. Agora entendia Paula, se ela fosse encontrada, as aves de rapina e os urubus que
sobrevivem da desgraça alheia, jogariam no poço todo bem que ela tinha espalhado para
colocá-la na fogueira da suspeição do mal que ela não tinha feito.
Certo dia, uma jovem senhora de preto, de supetão, diz-lhe:
-Há pedras no caminho dos que fazem!...
-Senhora, o caminho também tem muitas flores que perfumam nossa passagem!..
.
As gêmeas
R. Santana
I
As duas meninas-moça, as duas meninas-mulher, confirmavam os princípios de Richard
Dawkin tão decisivos no estudo do genótipo, no estudo do meio e no fenótipo de uma
pessoa: nas suas atitudes, no seu comportamento e nas suas características físicas.
Ana Francisca e Ana Clara, eram gêmeas. Eram iguaizinhas na aparência física desde que
nasceram e seus pais completaram a obra da natureza na aparência psicológica, dando-lhes
uma educação igual, fazendo-lhes os mesmos gostos, as mesmas vontades, proporcionando-
lhes os mesmos vestuários e as mesmas coisas. Se uma delas recebia uma boneca, a outra
recebia uma boneca igual. Construindo assim, atitudes e comportamentos semelhantes.
Uma delas, a Ana Francisca, mais racional, ensaiou ainda mocinha, contundentes protestos
de rejeição às fórmulas prontas dos seus pais, mas com o tempo, entendeu que era mais
proveitoso concordar com o desejo deles do que afrontá-los. Contanto que Ana Francisca
dava aos seus brinquedos um destino mais utilitário, enquanto Ana Clara dava-lhes um
sentido lúdico, de entretenimento.
Jovens adultas, Ana Francisca estava concluindo o estágio do curso de medicina; Ana
Clara, já tinha concluído curso de Assistente Social. As duas trabalhavam no mesmo
hospital. Os pais não tinham evitado ao longo do tempo que uma fosse mais reflexiva e
introspectiva; mais kantiana, enquanto a outra, fosse mais dada socialmente e tivesse
desenvolvido uma inteligência emocional à teoria Goleman. Ana Clara era
indubitavelmente, mais tragável e simpática no dia-a-dia. Todavia, ambas tinham almas
generosas.
II
Alfredo Almeida Botelho e Kátia, depois de 5 anos de casados, dois abortos involuntários e
Kátia submetida aos recursos modernos da medicina sem sucesso aparente, tinham perdido
a esperança de terem filhos por concepção natural. Já pensavam numa concepção in vitro,
numa adoção, quando surgiu a gravidez de Kátia. Católicos fervorosos, se pegaram aos
santos Francisco e Clara. Se o rebento fosse macho, receberia o prenome de Francisco e
fêmea, de Clara. Mas diz o povo que o “homem faz e Deus desfaz”, ao invés de um filho ou
uma filha, Kátia teve duas lindas meninas e para agradecer a graça em dobro, as duas
também foram homenageadas por Ana, mãe de Nossa Senhora.
Alfredo e Kátia eram médicos pediatras. Tinham embasamento científico, cultura médica,
porém, entendiam que quando a ciência falha, a saída é puxar o saco do pessoal lá de cima
e a resposta foi pródiga, pediram um filho e mandaram duas lindas meninas.
Nascidas de 7 meses, com saúde fragilizada, ficaram um tempo considerável na encubação,
com cuidados redobrados dos pais e dos médicos. Passado o susto, saídas do hospital, com
os esforços do pai e da mãe, as recém-nascidas adquiriram uma saúde de ferro ao longo da
vida já na primeira infância.
III
José Carlos Alves dos Santos, Carlão para os amigos, não descendia de família de tradição
e fortuna. Era filho de mãe professora e pai caminhoneiro.e o irmão mais velho de quatro,
todavia, aos 27 anos já era reconhecido como um dos mais promissores profissionais do
direito da área cível de Aracaju. Não tinha dinheiro, mas tinha talento, determinação e
ousadia profissionais. Ele tinha certeza que o resto seria conseqüência e sorte.
Dançarino de mancheia, na noite de reveillon de 1985, conheceu e encantou-se por uma
jovem que dançava na boate “Night Club Caju”, à avenida Santos Dumont, orla da praia de
Atalaia, na capital sergipana.
Foi um amor à primeira vista. Ana Francisca brincava com um grupo de amigos quando
tropeçou em Carlão e despejou-lhe na roupa, a taça de champagne que trazia nas mãos.
-Desculpe-me Senhor, não bebi o suficiente para me embebedar, fui empurrada por alguém
que lhe amarrotou a roupa de bebida. – Desculpou-se Ana Francisca – Carlão não
perturbou-se. Tirou o lenço do bolso e à medida que secava a roupa, não tirava os olhos da
jovem que de certa forma, começou sentir-se incomodada. Na fleuma que lhe era peculiar,
falou:
-Não lhe desculpo! - quando ela ameaçou reagir, ele completa: - Onde já se viu uma linda
mulher pedir desculpa do que não fez?... Só lhe desculpo se não me chamar de “senhor”! –
brincou Carlão – Ana Francisca estava admirada com a presença de espírito dele. Não o
conhecia, mas gostou de sua tirada, do seu jeito moleque e conquistador.
-Desculpe-me é hábito lá de casa. Meus pais tiveram uma educação calvinista, embora
sejam católicos, são muito cerimoniosos e formais. Acho difícil depois de adulta romper
com esses preceitos que fui criada. Ademais, é praxe no cotidiano o tratamento de “senhor”
e “senhora”, para pessoas que não são da nossa intimidade, não obstante que sejam velhas
ou moças. – justificou-se Ana Francisca.
-Fique à vontade!... Sou José Carlos Alves dos Santos, Carlão para os amigos e os menos
amigos. Espero que a senhorita me trate de Carlão, além de fazer jus ao meu tamanho, é
vulgo. – Carlão tinha uma lábia fácil e uma disposição enorme de fazer amizades, era
sociável por natureza.
-Sou Ana (as duas omitiam Francisca e Clara), formando em medicina, trabalho no hospital
do estado, às suas ordens!... – apresentou-se.
A festa continuou noite adentro. Os dois dançaram quase que exclusivos. Uma vez ou outra
trocaram de parceiros. Pareciam velhos amigos, conhecidos de longas eras. Carlão era só
alegria. Brincava, rodopiava Ana no salão com leveza e habilidade. Ao alvorecer, somente
os dois, encontravam-se lépidos e soltos no meio do salão. Os demais perambulavam sem
norte na casa ou se prostravam nos cantos, cansados e bêbados.
Ambos estavam de carro, ambos estavam acompanhados de amigos e tinham o
compromisso de levá-los de volta. As despedidas foram rápidas e convencionais, não
tinham tido tempo para vínculos afetivos. Carlão tinha impressionado Ana Francisca mais
pela retórica, pelo papo fluente do que pela beleza física. Porém, para Francisca, o físico era
de somenos importância, ela era muito cabeça para ficar presa ao aparente. Também não
existia nenhum mal, nenhuma regra contrária, nenhum crime, juntar o útil à beleza, afinal,
quem é refratário ao belo? Ninguém.
Carlão não era racional no querer, no gostar, no amor. O cheiro, o cabelo, o corpo, a
boniteza, o cafuné, o dengo, o requebro e os salamaleques eram os traços
necessários de uma mulher para Carlão ficar de quatro, caído de paixão e amor. E, Ana
Francisca e Ana Clara tinham sido sobejamente premiadas pela beleza, pela natureza.
IV
Depois que as duas jogaram conversa fora e Ana Clara queixando-se da rabugice dos seus
pais na noite de reveillon, que bem logo os ponteiros dos relógios anunciavam a virada de
ano, os seus pais tinham deixado-a com as amigas e tinham ido dormir. Enquanto Ana
Francisca lhe contava que seu reveillon tinha sido alegre e cheio de novidade e que tinha
amarrotado a roupa dum rapaz sem desejar, mas que no final, tinham ficado ótimos amigos
e completava:
-Dançamos a noite toda. Ele me cantando e eu deixando ser cantada, brincando que estava
acreditando.
-Mas não rolou nada entre vocês? – perguntou-lhe Ana Clara.
-Sim. Muito affair, boa música, muitas palavras ao ouvido, muito champagne, muitas
promessas não cumpridas e troca de e-mail e celular na despedida. – respondeu-lhe Ana
Francisca.
-Ah, ele vai lhe ligar e passar mensagens!...
-Para mim não, ele vai ligar pra você! – disse-lhe Ana Francisca.
-O quê? Você deu-lhe o número do meu celular e o meu e-mail como seus? Isto é
falsificação ideológica!!! – esbravejou Ana Clara.
-Calma! Ele é um bom rapaz, advogado, não é bonito mas é agradável, talvez, dê namoro
com você. Vamos pregar-lhe uma peça: As gêmeas! Explico-lhe: iremos usar a mesma
identidade, um dia sai você; outro dia, saio eu. Ele jamais irá descobrir, basta que tenhamos
cuidado. Se você não gostar dele, tacitamente, daremos um fim à brincadeira – propôs-lhe
Francisca.
-Francisca, você é inconseqüente com as coisas do coração, leva na troça, não acredita em
paixão, em amor... E, se o feitiço virar sobre o feiticeiro (vaticinou), nos apaixonando?
Uma de nós, irá sofrer emocionalmente. Será que você tem estrutura? Gente cabeça é quem
mais sofre e se desmorona facilmente. Pascal deixou isso claro: “...o coração tem razões
que a própria razão desconhece...”, acho que não devemos brincar com os sentimentos dos
outros, não conte comigo. – resistiu Ana Clara.
-Mana, quero somente brincar um pouco com Carlão. Você não o conhece, ele é muito
articulado e inteligente, talvez não telefone, nenhuma de nós, vai se machucar. Quero ver
até onde vai sua perspicácia, se ele vai descobrir que não somos as mesmas e... – não
completou de falar o celular de Ana Clara tocou:
- Princesa, pensei que ainda estivesse dormindo... – Ana clara fecha o celular com a mão e
diz: - é pra você, é ele! – Ana Francisca não se perturba: - atenda maninha, você soube
todos os detalhes da festa não vai tropeçar. – Clara ficou atarantada, sua irmã era
determinada. Quando ela queria algo, perseguia o objetivo com afinco, às vezes, tornava-se
inoportuna. Clara resolveu num átimo de tempo e pela curiosidade que Carlão começava-
lhe despertar, entrou no jogo:
-Perdi o sono. Cochilei quando cheguei, mas o suficiente para repor as energias do
organismo. E você não dormiu? – contra-atacou Clara.
-Não, e sabe quem foi a culpada? – Clara fez uma pausa propositada. Começava gostar da
brincadeira. Não se sentia culpada pela farsa representação, Ana Francisca que tinha
inventado essa brincadeira, que cobrasse dela!
-Acho que não houve a culpada, mas as culpadas!...
-Não, não houve mais de uma, na minha cabeça, só uma mulher bonita e inteligente, mexeu
com a minha cabeça... – provocou Carlão.
-Ah, ah, ah... desculpe-me, pensei que a champagne tinha tirado o seu sono!.. – brincou
Clara.
-Não brinque com esse coração ferido, doido para lhe reencontrar. Acredito que em seus
braços, ele irá recuperar essas horas que passou longe desses olhos verdes! – Carlão jogou
um flerte.
-Parece-me que conheci ontem um notável galanteador. Ontem, eu atribuía seus galanteios
ao efeito do álcool. Hoje, mesmo pelo celular, percebe-se sobriedade e sobra sedução.
Termino convencida e correndo para os seus braços, qual a mulher que não gosta de
elogios? Porém, você se esqueceu de uma coisa: sou médica e protejo-me das doenças do
coração. – Clara estava se saindo tão bem que Francisca comentou com certa ironia:
-Você não queria participar da farsa, da brincadeira, me chamou de inconseqüente, agora,
está representando tão bem que tenho muito que aprender com a minha conseqüente irmã!...
-Eu não sou inteligente quanto você mas não sou uma toupeira, trambique é de fácil
aprendizagem! – Clara estava nervosa.
-Não precisa ofender, quis somente brincar com esse dom Juan tupiniquim, testar sua
percepção, seu discernimento. Se você não quiser brincar, irei dar um basta! – Francisca
estava uma pilha.
-Desculpe-me. Agora, estou curiosa, selemos nosso acordo. - puxou sua mão e colocou-a
sobre a sua.
V
O namoro com as duas foi estabelecido. Carlão saia com uma hoje, a outra, amanhã, parecia
que não se dava conta do embuste. Uma tinha o cuidado de passar para outra todos os
detalhes do encontro. Um mês já se tinha transcorrido, nenhuma das duas, quis apresentar
Carlão aos pais. A saída era do hospital e os pretextos aos pais eram horas extras no
trabalho.
Como o feitiço vira pro feiticeiro, Francisca estava apaixonada e começava esboçar pontas
de ciúme. Já não queria participar do revezamento e num desses dias, abriu o jogo pra
Clara:
-Maninha, o jogo terminou. Não podemos continuar com essa encenação. Ontem, tive que
me fazer de estressada, de brava, para não despertar a desconfiança de Carlão, quando
convidou-me para beber e contou-lhe:
-Eu não gosto de beber, já lhe disse!
-Mas... ainda ontem, tomamos umas duas cervejas e... – não completou.
-Eu? Ontem, eu estava de plantão!!! – Neste momento, percebi a gafe, o desastre e a
besteira que tinha feito e de imediato emendei:
-Engano-me, bebemos... – foi a vez de Carlão.
-Bebemos? Eu não bebi nada. Falei “tomamos umas duas cervejas”, por força do hábito, eu
estava com mal estar, fiz lhe acompanhar à mesa.
-Chega Carlão! Não fique esmiuçando detalhes de ontem. Quer me confundir? – Carlão
tinha medo de magoar a namorada, por isto, contemporizou:
-Tudo bem querida, deixemos esses detalhes de somenos importância pra lá. Porém, sugiro-
lhe que diminua seu ritmo de trabalho, seu estresse é visível.
Clara ouviu tudo calada. Já tinha percebido os sinais de inquietação de Francisca. Carlão
tinha razão: ela estava estressada. O ciúme e a paixão estavam incomodando-lhe dividi-lo.
A brincadeira inicial começava fazer os seus estragos. A renúncia, agora, seria sofrida para
qualquer uma delas. Descobrir para Carlão que tinha sido usado, não seria de bom alvitre.
Embora ingênuo no querer, puro de sentimentos, Carlão, depois que soubesse, com certeza,
iria se sentir enganado, ultrajado, ludibriado, ter sido o joguete na trama das duas...
Com o ultimato da irmã, Clara não teve saída senão, dizer-lhe que também estava
apaixonada por Carlão e, tinha a intenção de lhe contar tudo se necessário fosse para não
perdê-lo:
-O jogo Francisca, para mim terminou. Irei contar tudo a Carlão, se necessário, e terminar
com esse festival de mentiras e embustes, quero doravante um relacionamento sério,
comprometido com a verdade. Como para você, tudo desde o início é divertimento, sua
saída, agora, será prazerosa e um descarrego de consciência, não será necessário
continuarmos fingindo.
-As coisas não são tão fáceis assim. Estou mais comprometida do que você pensa. Lembra-
se do dia dos namorados? Fomos pra cama, estou sem menstruação há uns 40 dias, acho
que estou grávida! – blefou Francisca.
-É mentira!!! Só acredito com os resultados dos exames médicos em mãos. Mesmo assim,
irei lutar por Carlão, você empurrou-me para os seus braços, assegurando-me eu que fizesse
bom proveito, enquanto brincávamos de dupla identidade!... – Clara estava descontrolada.
-Irmã deixe de histerismo. Falei-lhe: “acho que estou grávida”, não lhe disse que estou
grávida. Porém, não estou a fim de abrir mão dele, vamos disputá-lo, quem tiver a unha
maior que suba na parede. – Francisca não se intimidou com o nervoso da irmã.
-Alguém disse que religião, política e mulher não se discute se abraça. Não irei usar de
manobra, de golpe baixo para tê-lo. Não vou lhe acusar e não vou reduzir a minha culpa
nesse episódio. Vou chamá-lo aqui em casa, apresentá-lo aos meus pais e deixar que ele
descubra o resto por si. – Clara, não ficou na ameaça. Naquele mesmo dia, convidou Carlão
à sua casa, apresentou-lhe aos seus pais (os seus pais nada sabiam), falou da irmã gêmea e
prometeu-lhe apresentá-la assim que pintasse uma oportunidade.
À noite, quando Francisca chegou do trabalho, encontrou a casa em polvorosa. Seus pais,
parentes e empregados, todos comentando sobre o namorado da irmã e a boa impressão que
o rapaz lhes causara. Racional, dissimulada, demonstrou interesse em conhecê-lo, esperava
ter a mesma boa impressão do rapaz, desejava também, que a irmã fosse feliz com esse
novo amor.
Alegando mal estar, sintoma de uma velha enxaqueca, recolheu-se mais cedo aos seus
aposentos sem o seu breackfast noturno. Todavia, ela urdia intimamente, estratégias para
enfrentar a teimosia de Clara e os rumos inesperados do triângulo amoroso.
Relutava admitir sua paixão por Carlão. Não pensou nas conseqüências que poderiam advir
quando Clara foi chamada para participar da brincadeira de dupla identidade. No início, não
nutria nenhum sentimento especial pelo rapaz, mas os sustos e as emoções na atuação dos
papéis mais a convivência com Carlão, tinham feito de Francisca, uma mulher apaixonada.
Não vislumbrava partilhar com outra esses sentimentos, mesmo Clara, a metade do seu ser.
Passava da meia noite, Francisca com os olhos pregados no teto, quando Clara adentra no
quarto, sorrateiramente, pé ante pé para não despertar a irmã, quando no escuro do
ambiente, é tomada de susto com a interpelação intempestiva de Francisca:
-Você abriu o jogo pra Carlão? – ainda atarantada, não refeita da surpresa, procurando o
interruptor da luz, Clara responde:
-Não! Mas assumi o meu namoro. Deixei de representar e mentir, quero as coisas às claras
doravante. Se você se afastar habilmente da cena, ele jamais irá desconfiar que foi usado e
ludibriado nos seus sentimentos.
-Existe um detalhe: ele lhe namora em mim. Ele namora Ana Clara como se fosse Ana
Francisca, quando ele conhecer sua verdadeira identidade que você não é a mulher que
primeiro o conheceu no reveillon, que é uma impostora, uma santinha do pau oco, o seu
castelo de cartas e fantasias, desmoronará num sopro!... – ameaçou-lhe Francisca.
-Não sou isenta de culpa, fui conivente com sua farsa e me arrependo. Estou convencida
que irei pagar um preço, prefiro assim do que presa nas teias da mentira, da desonestidade,
da falsidade. Se ele ciente de suas armadilhas, dos seus artifícios e do jogo que estabeleceu
para brincar de faz-de-conta, lhe preferir, eu me afastarei porque vocês se merecem –
concluiu Clara. – Francisca compreendeu que sua irmã tinha sido envolvida nesse caso por
sua insistência, inclusive, garantiu-lhe que não sentia nenhum sentimento por Carlão,
apenas uma simpatia social e o ardil seria uma forma diferente de rejeitar os seus galanteios
e livrar-se dele em pouco tempo. Por isto, propôs-lhe:
-Quero lhe pedir que me deixe explicar tudo que fizemos antes dele vir aqui. Não irei
mascarar os fatos. Ele ficará com a opção de decidir se ficará comigo ou com você.
-Com a condição dessa oportunidade não se repetir qualquer que seja o pretexto. Concorda?
– condicionou Clara.
-Concordo!...
VI
Estrada da praia dos Coqueiros, motel “Life & Beatfull”, km 20, cidade de Aracaju. Lugar
paradisíaco perto do mar. Às 18:40 h, um táxi adentra esse estabelecimento levando um
casal jovem no banco traseiro. Os dois iam tão enlaçados, disfarçados, que as câmaras da
portaria, identificaram com nitidez, somente, o motorista e seu táxi. O taxista tinha sido
instruído para tomar as providências:
-Uma suíte presidencial! – pediu.
-Número 20, à esquerda, vista para o mar! – orientou o recepcionista. – Ainda no interior do
automóvel, Carlão adverte o taxista:
-Juca, estaremos lhe esperando às 23 horas!
-Não se preocupe doutor, pontualidade inglesa! – tranqüilizou-lhe o motorista..
Ela nunca tinha freqüentado esse motel, estava atenta para os mínimos detalhes. Já tinha
ouvido falar das suas instalações, da sua funcionalidade, da sua beleza, do seu luxo, através
de algumas amigas, mas in loco, ficara mais deslumbrada.com o seu conforto. Agora, sabia
porque Carlão insistira tanto que fossem pra lá. Ele que a despertou daquele momento de
deslumbre:
-Ana, o quê achou?
-Em relação ao motel que fomos à semana passada, este é de padrão internacional!...
-Quer que eu acredite que você nunca esteve aqui com outros homens, se este motel é o
principal point do sexo da elite aracajuana?! – perguntou-lhe irritado.
-Não estou lhe reconhecendo... O que você sabe do meu passado? Não sou puta pra ter
vários homens! Sou uma moça normal, não sou santa já estive em outros motéis com o meu
ex-noivo, você é o meu segundo namorado, trouxe-me aqui para humilhar-me? – pegou a
bolsa e ameaçou sair.
-Um momento, você e sua irmã já representaram bastante, pensam que sou idiota? Faz
tempo que descobri o jogo sujo de vocês duas, mas não estava nem aí, queria continuar
trepando as duas, o resto que se foda!... Vocês pensam que eu engoli a recepção
programada dos seus pais, como se nada soubessem? É uma família de pilantras! Não vai
sair daqui antes do táxi voltar nem que tenha de lhe dar uns tapas e lhe ensinar não fazer
mais ninguém de idiota!... – Carlão estava transtornado. Ela estava surpresa e mais
transtornada, tinha marcado o encontro de ambos, justamente, para colocar os pontos nos ii,
confessar-lhe um “mea culpa” e dá-lhe a opção de escolha. Embora estivesse apaixonada,
como sua irmã, aceitaria o resultado do desfecho qualquer que fosse.
Carlão continuava irônico, debochado e desrespeitoso. Já tinha tomado quase todo o whisky
(aos goles) do frigobar. Quase à força a despiu e para ela não apanhar, submeteu-se ao sexo
selvagem do parceiro:
-A outra prostituta não lhe contou? Ontem foi o seu dia! E quando você falou que fizemos
sexo “semana passada”, descobrir que você não era ela e ela não era você. Embora tenha
descoberto a farsa sua e dela faz algum tempo, pelos lapsos dos detalhes que vocês
deixavam escapar nas suas conversas, irei reivindicar o Oscar do cinema americano pelo
brilhante desempenho artístico de vocês. Quantas vezes fiquei aturdido: quem era quem que
estava trepando? – ele estava uma arara!
-Já se vingou (chorosa), deixe-me ir embora!!! – gritou.
-Depois, sua vagabunda!...
VII
No outro dia cedo, os jornais, as televisões, as rádios destacavam a morte inesperada e
prematura do atuante advogado, o jovem José Carlos Alves dos Santos, conhecido pelos
amigos e inimigos por Carlão. Ressaltavam suas qualidades, seu porte atlético, seu jeito
brincalhão e, entrelinhas, levantava suspeição de morte por envenenamento dum composto
arsênico ou overdose de cocaína dissolvida na bebida por uma acompanhante prostituta de
identidade até então desconhecida pela polícia, que o acompanhava, naquela noite, no motel
“Life & Beatfull”.
A página policial do Diário Popular informava que um conhecido taxista (omitia o nome
por questão de segurança e para não atrapalhar as investigações), da praça Fausto Cardoso,
centro da cidade, tinha ido levar o casal ao motel e estava à disposição da polícia para
identificá-la.
Amigos e parentes lamentavam o destino da jovem viúva e dois filhos menores que o
advogado deixara. A viúva, filha duma tradicional família sergipana e procuradora do
estado de Sergipe, pranteada, sob a dor da perda do jovem esposo, jurava que descobriria o
escroque autor do nefasto crime.
VIII
I
Juca foi pontual. Chegou ao motel às 23 h, conforme exigência do seu cliente. Carlão era
seu cliente desde solteiro quando ainda não tinha carro. Casado e bem sucedido, deixava
seu carro numa garagem coletiva perto do seu escritório e usava o táxi de Juca para suas
aventuras extraconjugais. Juca era discreto, confiável, conhecia os hábitos do seu cliente e
dentre as exigências de Carlão, a pontualidade, não iniciar papo com sua acompanhante e
não telefonar para sua residência, sob nenhum pretexto, eram exigências condicionadas por
um contrato de intimidade e confiança. Ele, Carlão, era quem dava as derivadas de local,
horário, chegada, saída, dia, etc.
-Suíte nº. 20! – estacionou o carro na garagem e esperou que o casal descesse. Quinze ou 20
minutos depois, cansado de esperar e estranhando a demora, procurou o pessoal da portaria:
-A acompanhante pagou a conta, solicitou um táxi e avisou que seu parceiro iria lhe esperar
enquanto se refazia do pileque! – informou-lhe o atendente.
-Olhe rapaz, conheço esse cliente faz tempo e jamais ele bebeu pra ficar grogue e não ter
condições de pegar o táxi, salvo se ele pegou no sono. Peço-lhe que mande chamá-lo.
Minutos depois, surge o gerente mais um preposto, apavorados, dizendo-lhe que seria
necessário chamar a polícia e uma ambulância, que encontraram-no em estado suspeito,
parecia estar morto....
Foi um discreto corre-corre. O gerente cismava não chamar os demais clientes à atenção. A
polícia chegou. Todos os procedimentos foram feitos. Gerente, funcionários de plantão e
taxista foram intimados registrar ocorrência e os primeiros esclarecimentos.
A família avisada.
IX
Os pais das gêmeas tomaram conhecimento pela imprensa e por Clara. Não lamentaram a
morte de Carlão. Não perdoavam o logro e o papelão que tinham sido submetidos pelo
namorado da filha. Ela apresentara-se como um homem solteiro, desimpedido. Depois
aparece na imprensa, o retrato do calhorda de 38 anos de idade, morto por suspeita de
envenenamento, deixando uma jovem esposa e dois filhos menores.
Clara foi chamada para prestar esclarecimento. A polícia tinha recebido um telefonema,
apontando-a como uma das mulheres que se relacionava com a vítima. Convidada, não se
encaixava na descrição do taxista e na prova de reconhecimento com outras mulheres
sequer foi citada. Recebeu as desculpas da polícia e terminou como mais uma das vítimas
do falecido rufião.
X
Um mês depois.
Francisca e Clara liam no Diário Popular: “ADVOGADO NÃO FOI ENVENENADO, pág.
10”. O matutino trazia uma longa matéria com a conclusão da polícia, embasada em laudos
médicos, informando que o advogado José Carlos Alves dos Santos, tinha sido vítima de
infarto fulminante pela ingestão de remédio de estímulo erótico e excesso de bebida. E,
atribuía-se à fuga da amante, uma reação de medo para não ser incriminada pela família da
vítima.
Completava a nota que sua amante deveria ser uma pessoa esclarecida, de vida mundana
experiente, pois tinha eliminado todos os vestígios de sua passagem e que as câmaras do
motel, tinham imagens dela de costas e frontais com fartos cabelos sobre o rosto.e usava
óculos escuros. E, se a vítima tinha tido uma morte acidental, encerravam-se as
investigações e o processo seria remetido ao Ministério Público e à Justiça para fins de
direito.
-Clara, perdoe-me por tudo que lhe fiz passar por causa daquele calhorda. Eu estava a fim
de abrir mão dele para lhe poupar de algum sofrimento. Porém, o diabo lhe carregou na
hora certa!... – penitenciou-se Francisca.
-Não se preocupe Francisca, tudo passa.. Porém, não esqueçamos que a mentira é nociva
mesmo na mais ingênua situação, pois uma mentira puxa outra mentira e à medida que
mentimos, mais comprometidas ficamos!...
Clara e Francisca se abraçaram e juraram arrependimento.
Traição dupla
R. Santana
I
O prédio fica na rua do Comércio em Salvador. É um edifício de 20 andares. No subsolo
fica a garagem. Servido por quatro elevadores: um privativo, do presidente e vice-
presidente; outro dos gerentes e diretores; um de serviço e o último, dos demais
funcionários, clientes e visitantes. É um suntuoso e moderno edifício, com fachada em
pastilha verde sumo e numa das paredes frontais a sigla em cerâmica cor de ouro e alto
relevo o nome do holding AMM (Antunes Mascarenhas de Morais Ltda.), Edifício Izabel
Antunes, nome da primeira mulher do Dr. Alfredo Mascarenhas Antunes. No Edifício
Izabel D´Ávila Antunes concentram-se todos os escritórios do holding: a diretoria, a vice-
presidência executiva, as assessorias, o departamento de engenharia, o departamento de
marketing, o departamento de contabilidade, departamento financeiro, departamento de
segurança e por último, o departamento de recursos humanos.
O holding de 16 empresas, ocupa seis andares do edifício Izabel Antunes, o restante do
prédio, é locado para médicos, dentistas, advogados, lojas, escritórios de prestação de
serviço e firmas de representação.
Alfredo Mascarenhas Antunes não gosta de empresas de varejo, ele gosta de lidar com
fazendas de cacau, pecuária, empresas de construção civil, corretoras de imóveis,
metalúrgicas, ultimamente, tinha investido em empresas de rádio, de televisão, de jornal e
empresa de publicidade, como sócio majoritário, com o objetivo de divulgar suas outras
atividades empresariais. II
Dr. Moacir D´ Ávila Antunes é o irmão mais velho dos seis filhos que Dr. Alfredo tivera
com sua primeira mulher, Izabel D´ Ávila Antunes. Estava com 42 anos de vida. Sua
diferença de idade para os outros era pequena, seus pais tiveram o cuidado de ter os filhos
cedo para desobrigar-se dessa atividade familiar depois de velhos. Dr. Alfredo costumava
dizer à mulher: “depois de velho, quero ter dor de cabeça somente com os netos. Cuidar de
filho adolescente depois de certa idade, é sacrificar a si e ao filho, pois o velho não terá
pique para acompanhá-lo em sua educação e em suas atividade juvenis.”.
Dr. Moacir é o mais boçal dos seis irmãos. Grosso, temperamental, intempestivo e
arrogante. Quando algum empregado cometia qualquer deslize funcional, um dano, é
demitido e tinha que ressarcir o prejuízo. Não admitia falha.
III
Quando D. Izabel morreu, o casal Antunes não tinha quase nada. Dr. Alfredo trabalhava em
uma empresa de engenharia. Eles moravam numa modesta casa alugada. Um carro com 3
anos de uso era o patrimônio da família, por isto, não foi necessário que se fizesse nenhuma
ação de inventário. O filho mais novo do casal estava com 4 anos de idade e o mais velho
com 9 anos. Dr. Alfredo foi o pai e a mãe na condução moral e intelectual dos filhos.
Aos 33 anos, viúvo, com os filhos na escola, demitido, Dr. Alfredo começa uma pequena
empresa de assessoria e serviço de engenharia civil, no início dos anos de 1960. Os
primeiros anos empresariais foram difíceis, todavia, vencidos pela determinação e força de
trabalho de Dr. Alfredo. Embora tivesse uma visão e um faro comerciais, adquiriu dentro de
pouco tempo credibilidade e uma vasta clientela, embasado em princípios éticos
profissionais e empresariais
Hoje, aos 66 anos de vida e mais de 30 de experiência empresarial, tinha planejado
transferir para os filhos, na hora oportuna, a direção das empresas e gozar no litoral ou
numa região bucólica desse país continental,os seus últimos dias de vida.
IV
Não gostava e não era afeito à ociosidade. Filho de uma professora e de um modesto
funcionário público federal, tinha desde cedo, aprendido valorizar e economizar tudo que
lhe caía às mãos, sem ser sovina ou miserável, mesmo assim, na faculdade de engenharia,
tinha ganho o apodo de “tio patinhas”, de certo modo injusto, Alfredo Antunes não fazia
conta de migalhas, de economia de palito de fósforo. Entretanto, ele se esforçava em ganhar
mais do que gastar. Depois de formado, era o esteio da casa, sempre preocupado que os pais
gozassem na velhice uma vida confortável até o último suspiro. Embora tivesse mais
irmãos e irmãs, era o xodó dos velhos pelo carinho que lhes devotava. Na falta dos pais,
tomou as rédeas da família, ajudou todos se formarem e ao invés de ciúmes de irmãos,
adquiriu o respeito e o amor deles.
Hoje, com exceção de uma irmã médica, todos trabalham em suas empresas, com salários
dignos, proporcionais ao cargo e à competência. Alfredo Antunes aprendeu, jovem ainda,
que as coisas dadas não têm o mesmo valor daquilo que é conquistado com trabalho e
sacrifício.
V
-Querido, seu pai pode descobrir o nosso romance. O quê faremos?
-É impossível! Tomo todas providências. Agendo um dia antes os nosso encontros,
cuidando dos detalhes. Ademais, o velho só tem olhos para o trabalho. Por isto, você o
chifrou... – concluiu cinicamente Moacir.
-Não... não achincalhe seu pai. Ele é um homem bom, você que me seduziu!...
-Eu?... - Madalena Azevedo Sá (cláusula contratual o impedia de usar o nome do marido),
estava abobalhada com o cinismo do amante. Ele que a tinha seduzido. Quantas vezes, na
mesa, no almoço ou na janta, ele ficava-lhe futucando com a ponta do pé, inclusive com sua
mulher ao lado. Uma vez, quase eram flagrados pelo velho Alfredo. Se não fosse a frieza de
Moacir, sua capacidade de dissimular, sua presença de espírito, o namoro deles teria
acabado no começo.
-Moacir, sua falta de escrúpulo é capaz de qualquer coisa. Acho que devemos parar por
aqui...
-Você está doida nega? Lembre-se do nosso acordo. Estou providenciando para que daqui a
seis meses fujamos para bem longe daqui. Já providenciei os passaportes e já possuo uma
fortuna lá fora – eles tinham combinado fugir para o exterior e lá fixar residência.
-É muito tempo.Tenho medo do seu pai ... Sua mulher anda desconfiada, poderá nos
descobrir.
-Oh nega, você está delirando? A minha mulher é uma tonta, enquanto ela tiver cartão de
crédito para gastar nas butiques e shoppings, ela não enxergará um palmo diante do nariz!...
– Madalena esgotou todos os argumentos. Patrícia era uma dondoca, fútil, só pensava em
moda e empavonar-se. Naquela cabecinha só tinha titica de galinha, Moacir tinha razão,
não iria mais estragar seus momentos de volúpia sexual pensando em Patrícia e Alfredo,
que se danem!...
VI
-Dr. Alfredo, o Sr. Chaves estar esperando há algum tempo. Quê lhe direi?
-Faça-o entrar - foi a resposta do Dr. Alfredo. Parecia que Dr. Alfredo o estava esperando.
Fato incomum ser recebido pelo patrão sem antes passar por um ror de perguntas.
-Chaves às suas ordens doutor!... – Dr. Alfredo mediu-o de cima abaixo. Era um homem
jovem, alto, descontraído, de porte atlético e parecia estar de bem com a vida. Fora indicado
por colega e amigo desde os tempos de faculdade de engenharia. Pela aparência jovem e
descontraída daquele profissional, começou perguntar a si, se aquele jovem seria capaz de
desempenhar àquela missão que exigia, coragem, perspicácia, sutileza e sigilo profissional.
-Pensei que fosse mais velho!...
-Doutor, a idade nem sempre é sinônimo de conhecimento e experiência. Na minha
profissão, a confiança, a discrição, a coragem, a inteligência e os princípios éticos são os
estofos necessários para um profissional da investigação – parece que o tinha convencido.
-Desculpe-me Sr. Chaves! Na minha idade e na minha posição, aprendi que para sobreviver
tenho que cismar e desconfiar. O Senhor foi indicado por um colega de longas eras, espero
que faça jus à nossa antiqüíssima amizade.
-Espero também não decepcionar Dr. Pedro Mafra. Se trabalhar para o senhor, é o segundo
trabalho que faço por indicação dele. Acho que estou qualificado para missão de
arapongagem, porém, cabe-lhe a palavra final.
-Sr. Chaves, não estou certo da minha decisão. Na minha idade, os escrúpulos são mais
exigentes. Fico preocupado em fazer injustiças e ao mesmo tempo fazer o papel de um
velho enciumado. Por outro lado, não quero ser um velho cabrão, usado por uma mulher
que não é digna do meu amor e da minha confiança, não quero ser alvo de galhofas de
quem quer que seja
Casei-me na juventude com uma mulher que me deu 6 filhos. Eu a amava como nunca amei
ninguém. Quando ela morreu, o céu desabou sobre mim. Deus é que me deu força de
trabalho e equilíbrio para criá-los, senão teria derrocado. Depois dos filhos grandes, casei-
me contratualmente com uma moça uns vinte e poucos anos mais nova. Não tem lhe faltado
nada... Mas, sinto que ela está me traindo e tenha certeza: para mim todo dispêndio
financeiro que tiver com o seu trabalho, estando enganado, representa um lucro, um
desencargo de consciência e procurarei compensar-lhe da minha vileza.
Não poupe dinheiro e esforços. Doravante, um preposto meu entrará em contato com o
senhor para lhe suprir de dinheiro para as despesas. O senhor não lhe fará nenhuma
confidência nem lhe confiará nenhum recado. Em caso excepcional (deu-lhe um número),
entre em contato comigo, não deixe recado em caixa postal. O senhor terá todo tempo do
mundo, se eu estiver certo, quero no final um relatório anexado às provas. Passe bem! –
estirou-lhe a mão.
-Passe bem, Senhor! – fez uma mesura e foi embora sem mais palavra.
VII
Embora Dr. Alfredo não fosse ciumento e o trabalho lhe absorvesse, pouco tempo restava-
lhe para essas observações de corações apaixonados e desocupados, começou estranhar
certas atitudes no comportamento da mulher. Ela estava mais reflexiva, inquieta e deu pra
sair quase todos os dias à tarde com os mais variados e fúteis pretextos. Um dia ia para o
médico, noutro ao salão de beleza, depois visitar uma amiga... Dr. Alfredo achava que a
mulher tinha se cansado da vida ociosa que levava. Suas saídas eram uma maneira de
preencher o tempo preguiçoso.
No início do casamento, pensou em lhe dar um emprego numa das suas empresas ou
trabalhar com ele no holding, pois ela foi tirada de lá para sua casa, mas pensou que
enfrentaria o ciúme e a incompreensão dos filhos, não obstante sua formação superior em
administração de empresa com cursos de pós-graduação em várias áreas e dela ter tido um
desempenho profissional excepcional enquanto sua funcionária.
VIII
-Meu pai, Marcos insiste em não querer vender 15 % das empresas de comunicação para
um grupo do Sul do país que já lida nessa área – o velho pigarreou, pensou no que ia dizer e
respondeu:
-Moacir, há dois meses você deu em cima de Maria Izabel que cuida da construtora
Antunes para vender 40% da empresa para um grupo estrangeiro, agora, você perturba
Marcos... Quais são os seus verdadeiros interesses? – perguntou Dr. Alfredo com um certo
descontrole na voz.
-Meu pai, quero apenas expandir os negócios com novas parcerias e injetar dinheiro nas
empresas mais deficitárias!...
-Não existe nenhuma empresa deficitária. Além disso, eu sou o dono delas, teria que ser
consultado em primeiro lugar se desejasse fatiá-las. Vocês são funcionários executivos e
não têm procuração para vendê-las. Quando eu fechar os olhos, faça o que lhe der na telha
de sua parte, quanto aos seus irmãos, sei que as empresas permanecerão com a família que
é e será o meu desejo: passá-las de filhos para netos! – Moacir saiu da sala espumando e
bufando de raiva!...
IX
-Meu pai estava fulo da vida com a proposta que fiz aos meus irmãos para vender parte de
duas empresas! – desabafou Moacir, enquanto enlaçava Madalena e lhe tascava um beijo na
face.
-Você está subestimando seu pai e seus irmãos e qualquer hora vai ser flagrado com a mão
na cumbuca e aí meu querido, adeus nossos projetos...
-Não se preocupe, está tudo sob controle. Os nossos passaportes estão rubricados pra
viagem, falta somente confirmar dia e o retorno. Quando voltarmos a tempestade já passou,
irei abrir uma empresa com o dinheiro que tenho. A Patrícia e os meninos eu me entendo
com uma boa mesada – “o cinismo dele é irritante” - pensou Madalena.
X
-Diga Sr. Chaves! – ordenou Dr. Alfredo – Depois de 90 dias de trabalho diuturno, mais dia
do que noite. O jovem detetive tinha entrado em contato com o Dr. Alfredo Mascarenhas
Antunes, naquela manhã, meiado de dezembro de 2002, para entregar-lhe todo o material
investigativo. Todo esse tempo tinha falado com um velho funcionário de confiança de Dr.
Alfredo para lhe pedir dinheiro para atender às necessidades pessoais e as despesas de
operação.
Nunca recebia valores em cheque, era dinheiro vivo!... O preposto indicado por Dr.
Alfredo, parecia uma pessoa discretíssima. Não perguntava, não dizia, o máximo era:
“quanto o Senhor precisa?...”, “o patrão mandou x dinheiro”.
-Terminei o trabalho. Gostaria de entregá-lo pessoalmente...
-Entregue-o ao Sr. Francisco, ele é de minha estrita confiança.
-Eu sei, mas preciso passar uns “slides” e explicar-lhe cada detalhe. Perdoe-me, não sei se o
Sr. Francisco seria capaz de passá-los, acho-o muito econômico nas palavras e na
inteligência. Sei que é mais fiel do que um cão! Porém... – interrompeu-o Dr. Alfredo:
-Estou indo, hoje, para Bruxelas. Voltarei daqui a quinze dias... só queria que me adiantasse
umas coisas: as minhas suspeitas têm fundamento e com quem?...
-Tem todo fundamento do mundo doutor! E, lamento informar-lhe, com uma pessoa ligada
ao senhor... porém... perdão... não faço relatório por celular!...
-Eu que lhe peço desculpa, é que o vexame me deixa imprudente. Todavia, peço-lhe que me
arranje extra-oficial, três ou quatro policiais civis e um oficial de cartório, quero lhes dar
um flagra... pagar-lhes-ei a peso de ouro, só não quero violência. Depois de ver o material,
armaremos o alçapão! Continue trabalhando, pode surgir novos fatos, quanto mais, melhor.
Bom dia! – despediu-se Dr. Alfredo.
XI
Foi fácil para o detetive Chaves arrumar pessoas corajosas e fiéis. Ele tinha muitos contatos
na polícia e na justiça. Não sabia qual o esquema que seu patrão engendraria. Tinha certeza
que não seria nada que se relacionasse com violência física, ainda bem, pois um dos
cúmplices da traição era o seu próprio filho. Como seria sua reação quando soubesse da
safadeza e da ladroeira de Moacir? Não tinha resposta.
Chaves intensificou o trabalho com a viagem de Dr. Alfredo. Ele estava com razão, na sua
ausência, os amantes tornaram-se mais relaxados. Andavam abraçados em lugares públicos,
beijavam-se sem cerimônias nas despedidas e entravam em motéis à luz das tardes.
Confirmava-se o velho ditado que: “quando o gato sai de casa, os ratos passeiam”.
XII
Dr. Alfredo passou uns 30 dias correndo a Bélgica e vários países da Europa, farejando
bons negócios. Mantinha a mesma rotina: telefonava para os filhos e a mulher todos os dias.
Tinha levado consigo, dois diretores ladinos, de estrita confiança, de suas empresas e sua
secretária particular, que era experta em inglês, francês e alemão. Com este estafe, não foi
difícil fechar vários contratos comerciais.
À noite, no hotel, ficava a matutar: “quem estaria lhe traindo com Madalena?” - por mais
que pensasse não encontrava resposta. Suas relações de amizade e a da mulher eram todas
conhecidas. Achava que o detetive estava cometendo um engano ou mais de um. Se alguém
o estava traindo com Madalena, com certeza não privava de sua amizade e do seu meio.
Aventava a hipótese de que o detetive estivesse seguindo a mulher errada, o que causar-lhe-
ia um prejuízo imensurável, depois de gasto tanto dinheiro...
XIII
-Doutor Alfredo, boa tarde!
-Senhor Chaves, como anda o trabalho? Acredito que progrediu muito nesses dias?...
-Mais do que no ano passado!... - brincou Chaves.
-O senhor tem razão, passei a virada de ano no exterior pela primeiro vez e agora é que
estou me dando conta que estamos na metade do mês de janeiro de 2003...
-O senhor quer ver o material? Acredito que já temos mais do que o necessário! – justificou
Chaves.
-Amanhã às 15:00. Diga-me onde o motorista lhe pega?
-Não será necessário. Ficarei na porta da empresa, assim que o senhor sair, eu lhe
acompanho.
-Então, amanhã às 15:00!...
XIV
Num apartamento luxuoso, Dr. Alfredo acomoda-se no sofá em frente a um telão, enquanto
o Sr. Chaves prepara os “Slides”, o aparelho DVD, o vídeo-cassete, os disquetes, os CDs,
câmeras, máquinas fotográficas digitais... enfim, uma parafernália de tecnologia moderna
com o produto de mais 90 dias de investigação. Quando tudo estava conectado e arrumado,
Sr. Chaves com o controle-remoto nas mãos, antes de começar, faz-lhe umas considerações:
-Desculpe-me doutor, acho que deveríamos assistir esse material com acompanhamento
médico. Para mim é de somenos importância, não tenho nenhum envolvimento afetivo com
os atores da trama. Para o Senhor será um duro golpe!...
-Senhor Chaves, estou com 66 anos de idade. Já sofri muitos desencantos e decepções.
Todo ano faço check-up completo. O meu coração é de adolescente. Se eu estiver
enganado, você e Francisco me levam para o hospital. Além de vocês dois, têm quatro
brutamontes que são os meus seguranças que possuem resistência de me levar no colo,
correndo ate o hospital. se isso for necessário. – galhofou Dr. Alfredo.
O telão foi ligado, a primeira cena foi Moacir beijando apaixonadamente Madalena. Daí em
diante as imagens eram mais contundentes: entrando em motéis, namorando no carro,
agarrados em cantos de muro, abraçados em via pública e por aí afora... Dr. Alfredo estava
lívido embora não tivesse perdido a fleuma. As imagens, mesmo tiradas de longe, eram
nítidas e não deixavam dúvidas da dupla traição. Quando o Dr. Alfredo se preparava para
levantar, o detetive pediu-lhe que ficasse mais:
-Doutor, um momento, o mais perigoso está por vir. São as conversas por telefone de sua
esposa e do seu filho planejando atentar contra sua vida!
As conversas eram obscenas. Relatos eróticos do que tinham feito e estavam com vontade
de fazer. Achincalhamento do velho. Dinheiro que Moacir tinha transferido para alguns
paraísos fiscais, e por último, planejavam livrar-se dele com uma boa dose de arsênico na
bebida em hora e momento oportunos.
Ele, calmamente levantou-se, deu um abraço no jovem detetive e parabenizou – lhe:
-Bravo!!! Você me surpreendeu pela idade. Jovem, não pensei que fosse tão capaz
profissionalmente. Aliás, o seu trabalho começa agora, amanhã cedo telefone para
Francisco, ele lhe indicará um restaurante. Quero o pessoal que eu lhe pedi lá para um
jantar e muita conversa. Ah!... Arranje um profissional em efeitos especiais. Quero gente de
inteira e total confiança. Quero que todos tenham pinta de executivo para não despertar
suspeita. Se eles não tiverem roupas adequadas, compre-as e mande a fatura para Francisco.
XV
Às 20 horas, dia e local combinados, lá estavam os pseudo-executivos, comendo iguarias
nunca vistas e bebidas importadas como gente grande. No início da conversa com Dr.
Alfredo, todos estavam inibidos e sem jeito, mas à medida que o whisky e o vinho subiam
lhes à cabeça, iam ficando mais soltos e mais espontâneos.
-Senhores, estou sendo ameaçado de morte, roubado e traído. Não quero violência. Quero
ressarcir o meu prejuízo com inteligência. Os senhores só usarão de violência em legítima
defesa. Os nossos amigos policiais aqui são peritos em artes marciais, não terão necessidade
de armas de fogo.
O Senhor Chaves tem os planos por escrito. Ele irá marcar uma reunião em sua casa para
discussão de cada detalhe. Não lhes faltará nenhum recurso material. Se alguém quiser dar
a priori o seu preço para fazer esse trabalho, fique à vontade!...
-Doutor, não temos uma idéia bem formada do que iremos fazer. Se não for necessário o
uso da violência, queremos um salário mínimo por hora de trabalho – era o que Dr. Alfredo
queria ouvir.
-Já lhes falei que não sou acostumado resolver os meus problemas com violência. Nós
vamos mexer com gente poderosa que na justiça seria um litígio sem fim com os recursos
que existem. Iremos usar a inteligência encenando papéis violentos!... Os senhores vão
participar como atores, cada um desempenhando o seu papel.
O valor que os senhores pediram é justo, entretanto, será difícil para mim calcular quantas
horas iremos gastar. Se tudo ocorrer como nós planejamos, será uma ação rápida,
entretanto, há os imprevistos... Então vou lhes propor uma oferta: multiplique o salário
mínimo por cem, é o valor que vou lhes pagar!...
-Cem vezes o salário mínimo?... – perguntou um policial.
-Cem vezes e mais um automóvel de presente pra cada um – confirmou o empresário.
Todos ficaram embasbacados!...
XVI
-Querida, vou passar uns dois dias na fazenda!... - telefonou Dr. Alfredo.
-Amor, você agora deu pra viajar sozinho?... – cobrou Madalena.
-Viagem de negócio. Irei fechar negócio com a fazenda do vizinho.
-E, não posso ir com você?...
-Não, é uma viagem de negócio, não quero lhe enfadar!...
-Tchau!
-Até depois de amanhã! – despediu-se Madalena.
Doutor Alfredo comunicou que ia viajar aos filhos e à mulher. Francisco era o único que
sabia da estratégia do patrão e o acompanhou até um hotel de luxo afastado da cidade e
dava-lhe o apoio logístico necessário para que tudo transcorresse como tinha sido
planejado.
Madalena, com a viagem do marido, aceitou o convite de Moacir e foram passar a noite
num luxuosíssimo motel.
XVII
-Senhora entre no carro, sem alarde, precisamos conversar! – Madalena estremeceu. Era a
primeira vez que enfrentava uma situação perigosa. Tinha dispensado os seguranças.
Sempre os dispensava quando se encontrava com Moacir.
-Não tenho dinheiro e nem jóias, o quê os Senhores querem comigo?
-Senhora, não somos ladrões. Somos da polícia, queremos que a Senhora assista umas fitas
e umas gravações. Se cooperar conosco, será imediatamente liberada.
-Deixem-me telefonar para o meu marido!
-Não se preocupe! Haverá tempo...
Enquanto Madalena era levada, mais quatro homens, de arma em punho, fechavam a saída
de Moacir no motel, entraram em seu carro sem despertar suspeita e começaram fazer um
trajeto em direção contrária ao centro da cidade.
Moacir era um homem forte, cheio de músculos, cultuava o corpo e era um assíduo
freqüentador de academias. Tinha aversão aos exercícios individuais, gostava de participar
em grupo, por isso, não tinha personal-trainer e academia particular.
Diferente do pai, não tinha coragem para enfrentar nenhuma situação de risco de morte. Sua
coragem era escudada em alguém. Quando estava acompanhado de seguranças, tinha um
comportamento temerário e ousado. Mas naquele momento dava dó, o homem era
pusilânime, medroso, covarde.
- Por favor, não me matem!... – quase choramingando.
-Não somos assassinos, somos policiais, talvez... tenhamos que lhe prender!
-Eu?... Sou um empresário, quê crime cometi?
-Sonegação de imposto, desvio de dinheiro para paraísos fiscais... –interrompeu
abruptamente Moacir.
-Os senhores não têm provas e que é de o mandado de prisão do juiz?
-Leia senhor, o mandado de prisão (deu-lhe o mandado), porém, antes de lhe apresentar às
autoridades, iremos passar em um lugar...
-Quero telefonar para o meu advogado!
-Por favor senhor, não abuse da nossa paciência!... – Moacir encostou-se quieto no
canto do carro, parecendo um menino procurando o cola da mãe.
XVIII
Madalena assistia estupefata as imagens do telão. Cenas dela com Moacir que não mais lhe
vinham à cabeça e fatos mais recentes, inclusive, sua estada no motel no dia anterior. Ainda
não tinha atinado qual o interesse daqueles homens em sua vida privada. Achava absurda a
hipótese deles terem sido contratados pelo marido para flagrar-lhe. Achava-o desligado e
não era de ciúmes. Só havia um jeito de descobrir:
-Os senhores querem mostrar essas cenas ao meu marido em troca de recompensa ou
extorquir-me?
-Não somos bandidos! – responderam secamente.
-Então, os senhores não me torturem! O quê querem de mim?
-Que coopere conosco!...
-Como?... – Madalena estava aparentando autocontrole.
-Ajudando-nos incriminar o seu amante!
-Não vou trair o homem que amo! - Madalena estava cada vez mais irritada.
-Já traiu seu marido que dizia amá-lo! E, estava com seu amante perpetrando sua morte.–
ela subiu nos tamancos!
-Isso é uma injúria!... Os senhores não têm provas. Embora eu tenha me casado
contratualmente, com cláusulas milionárias, jamais pensaria em matar o homem que me
deu nome e condições, em troca de quê?
-De ter o homem que ama e muito dinheiro! –responderam-lhe os homens.
-Vou processá-los por injúria e difamação!...
Foi a gota d`água. Os homens contratados por Dr. Alfredo colocaram os CDs no aparelho
de som com horas de conversa telefônica, gravada por ordem judicial, dela com o amante,
articulando explicitamente, matar o marido e quando a poeira baixasse irem morar juntos e
desvencilhar-se de igual modo de Patrícia. As contas em paraísos fiscais, dinheiro roubado
em conluio com o amante das empresas de Dr. Alfredo...
Ela estava arrasada. O ímpeto inicial, o autocontrole e o nariz empinado caíram por terra
diante da robustez das provas. Ela estava abobalhada. O marido era um artista da
dissimulação, tinha descoberto seu romance com o filho dele e em nenhum momento
deixou transparecer alguma ponta de ciúme.
Agora, entendia suas viagens prescindindo de sua companhia. Tudo planejado para que, ela
e Moacir se afogassem no prazer e na dissolução sem limite, enquanto eram espionados por
seus homens filmando cada cena da traição. Não lhe culpava, teria feito o mesmo em seu
lugar e condições.
Maria Madalena tinha sido perdoada. Ela tinha tido a ventura de conhecer Cristo e ser
purificada. Ela, Madalena, tinha tido a desventura de encontrar um Alfredo, maquiavélico,
vingativo e que tinha atirado-lhe uma porção de pedras. Sabia que dali, sairia direto pra
cadeia, exceto, cooperasse com os seus homens. Não sabia ainda que tipo de cooperação
eles queriam. Deveria ser algo em troca, Alfredo era um excelente negociador. Era frio,
desprovido de sentimentos de compaixão e pena na hora de comprar ou vender. O seu latão
é ouro, o ouro do outro é latão!...
Amava Moacir, mas reconhecia que esse amor tinha lhe trazido infelicidade. Desde o início
do seu casamento que lhe fazia investidas para possuí-la. No início resistiu e chegou até
ameaçá-lo em contar ao seu pai, mas ele sabia, quando queria, seduzir uma mulher, todavia,
tinha dúvida quanto ao seu caráter.Será que tinha fibra para enfrentar o pai e o mundo para
lhe preservar daquelas circunstâncias nefastas? Como poderia saber se ele não estava ali?
Quando foi surpreendida pela voz de um dos prepostos de Alfredo:
-Senhora, já tem uma posição?:
-Tem alguma saída?
-Se conseguir provar sua inocência. Senão apodrecerá na cadeia!...
-Terei de fazer o quê? - tinha se rendido. Levaram-na para uma sala contígua a fim de
prepará-la para entrada em cena de novos elementos da trama.
XIX
Moacir tremia de medo. Desde que fora forçado passar para o fundo do carro e
entregar a direção a um desconhecido quase não tinha conversado. Estava
espremido por dois brutamontes que por pouco não lhe deixavam respirar. Já
tinham rodado mais de mais de uma hora, em ruas e avenidas. Algumas ruas ele
conhecia, mas naquele momento, estavam num ponto muito longe do centro da
cidade que não lhe dava a menor noção do lugar.
Os quatro desconhecidos também eram econômicos nas falas. O carona da frente ia
orientando o motorista que embora demonstrasse experiência doutras viagens, ainda tinha
dúvidas do itinerário.
XX
Entrara num prédio pela garagem, sempre ladeado pelos brutamontes. Um deles portava
uma arma por baixo do paletó que de vez em quando lhe cutucava as costelas. O tempo e as
conversas tinham lhe dado certa serenidade. Tinha consciência que não poderia dar um
passo em falso, cometer alguma imprudência, por isto, manteve-se o tempo todo discreto,
sem chamar à atenção de transeuntes ou de moradores vizinhos. Já dentro do apartamento é
que todos se juntaram, inclusive, com o retorno de Madalena ao grupo. Um deles (o
detetive), que parecia coordenar os demais, começou falar:
-Os senhores já se conhecem (referindo-se a Moacir e Madalena), não será necessário
apresentações, estou certo?... – perguntou-lhes o detetive.
-Ela é esposa do meu pai! – respondeu Moacir.
-E sua amante... – cutucou o detetive.
-É um assunto particular que não é da alçada dos senhores. Não é certo o nosso seqüestro,
não considero isso uma prisão, aqui não é nenhum fórum ou delegacia. Se temos que
prestar conta de alguma coisa, que prestemos às autoridades conforme os dispositivos
jurídicos vigentes. – com a presença de Madalena, Moacir tinha se travestido de coragem e
argumento.
-Não somos seqüestradores. Os senhores serão entregues às autoridades. Porém, quem nos
contratou, deseja evitar um escândalo público, desde que cheguemos definir um acordo a
contento dos envolvidos. – esclareceu-lhe o detetive.
-Estar cheirando à chantagem! Eu não cometi nenhum crime para ter medo da justiça.
Talvez, Tenha cometido algum pecado que terei que prestar conta quando morrer... –
Moacir estava senhor de si, já com uma pontinha de deboche!...
-Recebemos orientação para que o Senhor devolva tudo que roubou das empresas do seu
pai e se quiser assuma sua amante - o detetive apontou para Madalena.
-Ela não é minha amante. Amo minha mulher. Jamais iria deixar minha mulher por
qualquer leviana, prostituta... – foi interrompido por Madalena, chamando-o de canalha,
escroque, leviana e prostituta era quem lhe botou no mundo... e, se não fosse a intervenção
deles, segurando-a, ela o teria agredido...numa crise de choro, sentou-se no sofá e caiu em
prantos.
-O senhor nega que tenha um caso com esta senhora e não roubou o seu pai? – insistiu o
detetive.
-Não! Não vou roubar o que é meu e da minha família.
-Dona Madalena nos forneceu os seus bancos em paraísos fiscais e o número de suas
contas, faltam os códigos e senhas que estão em seu poder!
-Ela está mentindo. É uma pára-quedista, casou-se com o velho com intuito de surripiar e
roubar a família. Estou entendendo... foi ela que armou todo esse imbróglio?... – Moacir
estava possesso.
Madalena estava mantida à força no sofá pelos policiais. Jamais imaginou que Moacir fosse
tão canalha. Tinha fornecido os números de suas contas com a promessa de que Dr. Alfredo
queria, somente, vê-los longe do país, que fossem começar nova vida com o dinheiro
roubado lá fora, esquecido e longe da família.
-Sr. Moacir, vou lhe pedir que sente-se um momento e veja e ouça o material que
investigamos durante três meses – Moacir acomodou–se numa cadeira ao lado de um
preposto.
O DVD foi ligado. No telão começou passar as imagens da espionagem do detetive Chaves.
Moacir era o mais descontraído. Madalena, de quanto em vez, por intuição feminina, olhava
para os lados procurando alguém. Parecia que seu sexto sentido avisava-lhe que estava
sendo seguida. Ele era despreocupação total. As imagens da noite anterior, apresentavam
um Moacir galanteador e romântico.
Terminada as imagens, o pessoal passou as conversas dele com sua amante. A proposta
dele pra matar o pai, o ajuntamento depois e como se livrar de sua mulher... Não havia
margem pra contra-argumentação, principalmente, quando lhe mostraram que toda
investigação e grampo telefônico tinham sido feito legalmente – uma façanha do oficial de
justiça contratado.
-E aí Sr.Mo...- o detetive não completou a pergunta. Num gesto felino, Moacir saca da arma
e desfere dois tiros à queima-roupa em Madalena. Quando contido, a desgraça era
irremediável...
-Ela está morta!... - falou um dos homens.
Moacir estava lívido. Começou chorar e maldizer o momento de tê-la conhecido. Estava
completamente aturdido. Além dos outros crimes, tinha cometido um crime de morte. A
priori, não tinha esperança de ter o respaldo da família e dos amigos. Estava perdido...
Quando fazia essas conjecturas, surge do nada seu pai:
-Prendam esse ladrão criminoso! – ordenou rispidamente Dr. Alfredo.
-Meu pai me perdoe!... Foi ela que armou todo esse esquema para me incriminar... –
suplicou Moacir.
-Nós fomos suas vítimas. Além de roubar à família, às empresas, estava planejando matar a
mim e sua mulher.
-Eu devolvo tudo que roubei mas não me deixe ser preso!... - era o que Dr. Alfredo queria
ouvir. Seu plano parecia estar chegando ao fim. Teria que ter cuidado e valorizar os termos,
se vacilasse, poderia colocar tudo a perder, seu filho era perspicaz mesmo com toda pressão
psicológica:
-Pensei que o senhor devolveria o dinheiro sem necessidade de cometer um assassinato.
Agora, a situação torna-se quase insustentável... – O corpo de Madalena já tinha sido
levado para uma sala contígua e coberto com um lençol. Enquanto o pai e o filho
conversavam, Chaves entrou na sala para pedir orientação ao patrão:.
-Doutor, o quê faremos com o corpo?
-Entregue-o à polícia!
-Não!... Não posso ser preso. Preciso de sua ajuda papai... ajude-me! – suplicou Moacir.
-Não me chame de pai! Quase que seria eu que estaria estirado em algum lugar. O senhor e
sua amante estavam planejando matar-me... porém... há uma condição de lhe ajudar?...
-Farei tudo que o senhor quiser... – Moacir estava apavorado.
-Desejo somente aquilo que o senhor roubou de mim e de seus irmãos. Quanto o senhor tem
nos paraísos fiscais?
-Dez milhões de dólares!...
-Assine essas procurações! –apontou para um calhamaço de documentos.
-O senhor quer ressarcir esse dinheiro?
-Não, não quero problema com a Polícia Federal e a Receita. O senhor vai vender sua parte
nas empresas.
-Mas, vale bem mais!
-Então, se explique com a Polícia Federal, a Receita e a justiça criminal!... - Dr. Alfredo
ameaçou sair.
-Tudo bem, com o dinheiro que tenho começarei nova vida lá fora. Porém, preciso chegar
aos Estados Unidos!...
-Meu avião vai lhe levar até à Argentina. Da Argentina o Senhor tome o seu destino. O
mais rápido possível. Tenho que comunicar o crime à polícia, senão, será mais um crime
por ocultação de cadáver...
XXI
Dois dias depois Dr. Alfredo comunicou à polícia o desaparecimento de sua querida esposa.
A Secretaria de Segurança Pública da Bahia, colocou o melhor de sua inteligência
investigativa à disposição desse caso. Além disso, várias buscas foram feitas pela polícia
militar e civil com base em denúncias anônimas e algumas pessoas suspeitas foram presas.
Um mês depois, a polícia civil, recebeu um pacote contendo CDs de imagem e de voz, com
a discussão dos amantes, a imagem do crime e a arma que vitimou Madalena Azevedo Sá.
As imagens bem editadas, não apareciam os outros atores da trama, somente, Moacir
D`Ávila Antunes com a arma na mão e Madalena com a cara de susto como que pedindo
socorro, noutra imagem, ela caída ensangüentada.
XXII
No município de Dourados na zona do planalto do estado do Mato Grosso do Sul, na bacia
do Rio Paraná, perto da fronteira do Paraguai, não muito distante da Serra do Maracaju, há
uma fazenda agrícola e de gado, chamada Araraquara, que não chama à atenção de quem
por lá passa. É uma sesmaria de terra, mas em processo de construção. A holding Antunes
Mascarenhas de Morais Ltda., adquiriu essas terras por bagatela, com o objetivo de
desenvolver projetos de agricultura e pecuária. Gado já se contava às centenas, enquanto
agricultura está em fase embrionária, tratores e máquinas trabalham diuturnamente a terra
para plantio de trigo, soja, feijão e milho.
Aqui e acolá encontrava-se grupo de homens construindo casas para trabalhadores e sedes
para os administradores. Dentre pouco tempo, a fazenda Araraquara será uma das mais
modernas e produtivas daquela região e já começa ganhar fama, com exceção do pessoal
que trabalha no escritório na cidade de Dourados, que os donos são estrangeiros.
Nesse clima eufórico de trabalho, chega à fazenda, uma morena de cabelos castanhos,
curtos e trajes de senhora, acompanhada por um homem aparentemente mais novo, com
ordem da direção da holding A M M para hospedá-los por tempo indeterminado, o casal de
irmãos, Chaves e Madalena ou melhor, o casal de irmãos, Roberto e Clara.
Após 30 dias de vida bucólica Clara se apaixona por um engenheiro paraguaio que
trabalhava na fazenda. Casa-se no religioso e no civil, com a nova identidade em Dourados
e vai morar em Assunção com seu novo marido.
XXIII
San Carlos de Bariloche um ano depois: um casal brasileiro percorre sem pressa os
principais pontos turísticos daquela cidade e redondezas. Ela, uma morena quarentona com
quase todas as curvas perfeitas que a natureza lhes dotou e uma plástica ainda de fazer
inveja; ele, mais maduro, mas rijo, vendendo saúde, não aparentava a idade que tinha...
Já tinham praticado esqui, “snoboard” nas montanhas de Tronador e Cerro Catedral e
“raffting”, mas o que mais lhes impressionaram foram as belezas dos lagos Nahuel e Huapi.
Eles pareciam ter anos de convivência pelo chamego e amizade.
-Alfredo, eles não são filhos de Moacir. Ele é estéril!... – explicou-lhe Patrícia.
-Então os meus netos são meus filhos?...
-Querido, os três têm sua marca. Se não confia em mim, pode fazer um DNA!!! – Patrícia
estava irritada.
-Calma querida, é que você nunca me falou!...
-Não era necessário. Neto é filho duas vezes. Além disso querido, quem faz filho na mulher
dos outros, perde o filho e o feitio...
Moacir teve a desventura de ser flagrado pela polícia federal da Grã Bretanha, com uma
mala levando 500 mil dólares não declarados das ilhas Caymans e encontra-se, hoje,
abandonado e esquecido numa penitenciária inglesa.
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