Download PDF
ads:
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
MESTRADO
CRIANÇAS DE CLASSES POPULARES E SUAS REPRESENTAÇÕES
SOBRE INFÂNCIA, FAMÍLIA, ESCOLA E RAÇA/ETNIA
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Cláudia Machado
Porto Alegre, dezembro de 2004.
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
CRIANÇAS DE CLASSES POPULARES E SUAS REPRESENTAÇÕES
SOBRE INFÂNCIA, FAMÍLIA, ESCOLA E RAÇA/ETNIA
Cláudia Machado
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Dr.ª. Nara Maria Guazzelli Bernardes
Porto Alegre, 2004.
ads:
PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
CRIANÇAS DE CLASSES POPULARES E SUAS REPRESENTAÇÕES
SOBRE INFÂNCIA, FAMÍLIA, ESCOLA E RAÇA/ETNIA
Cláudia Machado
Dissertação apresentada para apreciação e
parecer da banca examinadora
Membros da comissão examinadora:
Profª. Drª. Nara Maria Guazzelli Bernardes
Profª. Drª. Helena Beatriz Kochenborger Scarparo
Profª. Drª. Vera Maria Moreira Kude
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Araci, pelo seu amor e por ensinar-me o valor da infância.
À professora Nara Maria Guazzelli Bernardes, pela forma doce e confiante com que
acolheu minhas idéias, orientando-me com sabedoria e generosidade.
Às crianças, sujeitos desta pesquisa, e aos familiares, pelo carinho e disponibilidade.
À escola, campo de investigação desta pesquisa, pelo espaço concedido para sua
realização.
À minha sobrinha, Jaisa, pela criança linda que é.
À querida Márcia Machado Barcelos, solidária na concretização deste trabalho.
À minha irmã, Cristina, pelo exemplo de educadora.
À professora Jane Batista, incentivadora do Mestrado desde a sua gestação.
Ao professor Lino de Macedo, pelas sugestões e críticas durante o processo de
produção deste trabalho.
À Sílvia Leiria e Márcia Gomes, pela colaboração durante a realização das filmagens
e pela amizade.
À colega Jussara Loch, pela disponibilidade e pelos debates intensos.
A todos os colegas que comigo compartilharam o seu viver, pela confiança e
estímulo.
A todos os professores e professoras deste Programa, pelo enriquecimento de meus
estudos, em especial, ao Prof.º Dr.º Pergentino Stefano Pivato.
4
A CAPES, pela bolsa de estudos que tornou possível a realização desta pesquisa.
Enfim, a todos aqueles que de alguma forma me auxiliaram neste percurso.
5
“O rosto do próximo significa para mim uma responsabilidade
irrecusável que antecede a todo consentimento livre, a todo
pacto, a todo contrato.” (Emmanuel Levinas)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...................................................................................................10
1. CONCEITOS E CONDIÇÕES DA INFÂNCIA NO BRASIL.................................15
2. AS CRIANÇAS E O ESTUDO DE SUAS REPRESENTAÇÕES.........................34
3. CAMINHOS METODOLÓGICOS........................................................................44
3.1Campo de investigação e sujeitos......................................................................47
3.2 Procedimentos para coleta de dados................................................................50
3.3 Procedimentos para análise de dados..............................................................56
4. AS REPRESENTAÇÕES DAS CRIANÇAS.........................................................61
4.1 Infância...............................................................................................................61
4.2 Família................................................................................................................81
4.3 Escola ................................................................................................................97
4.4 Raça/etnia..........................................................................................................112
CONCLUSÃO..........................................................................................................127
REFERÊNCIAS........................................................................................................136
ANEXOS/APENDICES............................................................................................143
RESUMO
A partir de uma compreensão crítica da infância nas classes populares, em nosso
país, e com base em teorias das representações sociais, este trabalho problematiza
as representações de crianças, de classes populares, sobre infância, família, escola,
raça/etnia. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual os sujeitos, escolhidos
intencionalmente, foram vinte e quatro crianças, negras e não-negras, de classes
populares, com idade entre seis e oito anos, que freqüentavam uma escola na
periferia de Porto Alegre (RS). Os dados foram coletados por meio de desenhos,
entrevistas e observações e submetidos a uma análise de conteúdo. Os resultados
revelaram, entre outros, que a infância é caracterizada pelo brincar e estudar; a
família significa morar e trabalhar juntos; os trabalhos domésticos não são
considerados trabalho mas ajuda prestada aos adultos; a finalidade da escola
consiste em ensinar respeito e obediência aos adultos; estereótipos, preconceitos e
discriminações em relação aos negros são percebidos e/ou vivenciados pelas
crianças.
8
ABSTRACT
Based on a critical understanding on childhood from popular classes in our country
and on the theories of social representations, this work studies popular classes
children representations about childhood, family, school, race/ethnicity. A qualitative
research was carried out in which the subjects, intentionally chosen, were twenty-four
popular classes children, black and no black, on the age range from six to eight year-
old who attended a school on the suburbs of Porto Alegre (RS). The data were
collected through drawings, interviews and observations, and were submitted to a
Content Analysis. The results revealed, among other things, that childhood is
characterized by playing and studying; family life means working and to live together;
the domestic works are not considered work but help rendered the adults; the
purpose of the school consists of teaching respect and obedience to the adults;
stereotyped and discriminating behavior and prejudices against black people are
perceived and/or lived deeply by the children.
9
APRESENTAÇÃO
O interesse pela temática das representações de crianças das classes populares
tem origem na minha formação inicial e continuada e, também, no trabalho como
educadora que se situa no campo da Educação Popular.
Meus estudos na área de Educação foram iniciados no Curso de Magistério no
Instituto de Educação General Flores da Cunha, em Porto Alegre, em 1983, onde
tive a oportunidade de conhecer as idéias e os ideais de autores e autoras que
marcaram meu entendimento dos fenômenos educacionais, como por exemplo,
Paulo Freire, Jean Piaget, Emília Ferreiro, Ana Teberosky, Moacir Gadotti.
Posteriormente, iniciei minha formação no ensino superior no Curso de Artes
Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porém, à vontade de
aprofundar certas questões mais específicas sobre educação, fracasso escolar e
exclusão social levou-me a ingressar no Curso de Pedagogia das Faculdades Porto-
Alegrenses (FAPA), na Habilitação Supervisão Escolar. Enfrentei o desafio de
reformular uma visão ingênua sobre a escola e aprendi a fundamentar minhas ações
pedagógicas também em outros teóricos, além dos acima indicados, como por
exemplo, Lev Semenovich Vygotsky, Sara Pain, Gimeno Sacristán, Peter McLaren.
Aprendi a entender a escola como uma rede complexa de condições e situações que
11
ultrapassa a sala de aula. Durante o Curso de Especialização em Supervisão
Escolar (FAPA), aprofundei os estudos sobre a sociedade e sua relação com
educação. Destaco as reflexões realizadas sobre a concepção de currículo e a
crítica de Gimeno Sacristán (2000) à escola que legitima a ordem social existente e
não explicita as contradições e desajustes sociais, e também sobre a possibilidade
de inovação no processo de socialização promovida pela escolarização.
Tendo em vista que, desde o início de minha trajetória profissional, trabalho em
escolas situadas na periferia de Porto Alegre, que são freqüentadas pelas crianças
das classes populares, comumente denominadas “populações carentes”, integradas
por pessoas que foram submetidas a processo de reassentamento e que,
literalmente, constróem uma nova comunidade, essas aprendizagens fizeram-me
pensar sobre minha prática. Embora tenha assumido o compromisso de trabalhar
com crianças de classes populares, pouco conhecia sobre sua cultura, seus valores,
os significados que constróem sobre o mundo e as relações sociais. Desejava
construir um currículo que também levasse em conta a cultura de origem dos alunos
e das alunas e não apenas que se vinculasse à cultura dominante e demais saberes
escolares. Era preciso instaurar uma “pedagogia da escuta”, o que significava tentar
entender o mundo onde vivem nossos alunos.
Considero importante destacar que houve um momento em que a educação
assumiu um novo significado para mim: a implementação dos Ciclos de Formação
na rede de ensino municipal, em 1995, os quais representam uma maneira diferente
de organizar os tempos e os espaços na escola, visando o respeito às construções
de conhecimento dos alunos e, principalmente, à inclusão de todos. Não meramente
a inclusão que significa estar matriculado na escola, mas a inclusão entendida como
12
possibilidade de os alunos e as alunas participarem como sujeitos ativos no
processo de apropriação do conhecimento, sem rupturas nesse processo.
Para implementação da Proposta Político-Pedagógica para Organização do Ensino
e dos Espaços-Tempos na Escola Municipal, foi construída a Proposta por Ciclos de
Formação. Segundo o Documento Referência para a Escola Cidadã (SMED, 1995),
Princípio 31, a escola deve:
Construir o conhecimento numa perspectiva interdisciplinar, promovendo a socialização dos
saberes, superando rupturas nas diferentes áreas do conhecimento, percebendo o aluno de
maneira globalizante, buscando, estudando e implementando formas alternativas que
rompam com a estrutura atual.
Nesta perspectiva, o Currículo é entendido como um fenômeno histórico, “resultado
de forças sociais, políticas e pedagógicas que expressam a organização dos
saberes vinculados à construção de sujeitos sociais” (SMED, 2003, p. 8). É
concebido como um processo dinâmico, mutável, sujeito a inúmeras influências,
portanto aberto e flexível. Segundo o documento referido, esse currículo veicula
as concepções de pessoa, sociedade, conhecimento, cultura, poder e destinação
das classes populares às quais os indivíduos pertencem, portanto, “referidas sempre
a uma proposta político-pedagógica que explicita intenções e revela sempre graus
diferentes da consciência e do compromisso social” (SMED, 2003, p.8).
Segundo o Princípio 31, do Congresso Municipal Constituinte Escolar (SMED, 1995),
“um currículo que acolha a diversidade, que expresse e trabalhe estas diferenças,
garantindo a todos o seu lugar e valorização de suas especificidades, ao mesmo
tempo em que aproveita o contato com essas diferenças para questionar o seu
próprio modo de ser”. Para esta organização curricular é necessário repensar o
papel da escola, a sua função social, pensando que sujeito queremos formar, que
13
valores vamos eleger, que sociedade queremos construir. Para que possamos
compreender o que significa uma escola organizada por Ciclos de Formação é
necessário que analisemos o seu contexto.
No entanto, nem sempre esta proposta se concretiza, pois nem sempre as
professoras e professores acolhem a realidade dessas crianças, implementam
práticas de enfrentamento e superação dessas condições, o que pode produzir, no
seu interior, o analfabetismo, o fracasso escolar, a evasão, repetência ao invés de
desenvolver a alfabetização e a escolarização. A escola se distancia da idéia original
da proposta, pois não contribui para formar cidadãos, capazes de compreender as
relações existentes na sociedade e de procurar caminhos para reivindicar seus
direitos.
Nesta dissertação, portanto, estabeleci como objetivo principal conhecer, de
forma mais sistemática, algumas representações das crianças de classes populares.
Ao passar do mundo dos fatos observáveis para o mundo das representações,
busquei compreender o sentido que isso possui para os sujeitos que vivem
situações concretas de desigualdade social, tanto na escola como em sua
comunidade. Viso, também, compreender a escola como uma instituição que
proporciona os instrumentos básicos para que as crianças se apropriem da cultura
dominante, mas de forma que este processo amplie a sua compreensão do mundo
em que vivem, da sociedade e da cultura a que pertencem. Em nosso país,
principalmente, essa possibilidade é essencial, na medida em que um grande
contingente de crianças é excluído da infância e da escola.
A exposição que se segue está estruturada em uma apresentação e cinco
capítulos.
14
Na apresentação, descrevo a origem do interesse pela temática da pesquisa,
focalizando minha formação inicial e continuada e a trajetória como professora.
No primeiro capítulo, apresento a contextualização do problema da pesquisa e o
conceito e as condições de infância no Brasil. No segundo capítulo, a relação entre o
ser criança e o estudo das representações. O terceiro capítulo contém o método de
pesquisa, no qual são explicitados pressupostos epistemológicos e procedimentos
metodológicos da pesquisa qualitativa, utilizados para coletar e analisar o material
empírico. No quarto capítulo, apresento a análise e a reflexão elaboradas sobre as
representações das crianças das classes populares sobre infância, família, escola e
raça/etnia. No último capítulo, reflito criticamente sobre a caracterização da infância
nas classes populares, os aspectos que envolvem a escola inserida neste contexto,
observando de que forma as crianças compreendem a sua realidade.
1 CONCEITO E CONDIÇÕES DA INFÂNCIA NO BRASIL
Neste estudo, tenho como pressuposto que as representações de crianças de
classes populares devem ser entendidas em relação ao contexto sócio-cultural no
qual essas crianças estão inseridas e não como produtos de uma suposta natureza
infantil. No sentido de explicitar tal pressuposto, desenvolvo reflexões sobre as
concepções de infância na Europa e no Brasil, e também sobre condições da
infância nas classes populares, em nosso país.
A idéia de infância não existiu sempre e nem se expressa da mesma maneira, é um
conceito determinado historicamente pela modificação das formas de organização
da sociedade. O lugar da infância no mundo, portanto, foi construído ao longo da
história.
Na Europa, durante o período medieval, segundo Tânia Rechia (2001), o
processo de integração das crianças dava-se no cotidiano das comunidades, pois o
trabalho tinha um caráter coletivo, a educação efetivava-se pela aprendizagem junto
aos adultos. Não havia, naquela época, a idéia das crianças separadas dos adultos
para a escolarização. O trabalho, o lazer e as brincadeiras desenvolviam-se no
mesmo espaço.
16
A aprendizagem não ocorria na própria família, sendo habitual, a partir dos
sete anos, a entrega das crianças para uma família educadora que transmitiria uma
prática de trabalho, bem como seus valores morais. Os adultos acreditavam que a
afetividade poderia ser um obstáculo para a aquisição da autodisciplina e que uma
relação mais distante entre mestre e aprendiz facilitaria a educação. Esta espécie de
intercâmbio familiar acontecia, especialmente, na produção artesanal, os contratos
duravam cerca de sete anos, havia benefícios para o mestre (relação de
dependência, exploração de mão-de-obra) e também para o aprendiz, tendo em
vista a possibilidade de tornar-se artesão independente. Predominava o “aprender-
fazendo”, não existindo a escola como a conhecemos hoje.
O estudo clássico de Philippe Ariès (1981) mostra que, até o final do século
XIX, as crianças apareciam misturadas com os adultos na vida cotidiana; apenas ao
final daquele século surge uma tendência em separar o mundo dos adultos do
mundo das crianças.
Dois sentimentos da infância preponderaram neste período, um denominado
“paparicação” que decorria do prazer que as pessoas sentiam ao ver a maneira de
ser das crianças pequenas. Paparicá-las, dar-lhes atenção, era algo concebível e
desejável. Esse primeiro sentimento da infância, sobretudo ao final do século XVI e
no século XVII começa a marcar o lugar da infância na história. Outro sentimento da
infância, observado no século XVII, envolvia a preocupação com o disciplinamento
e a preservação dos costumes e também a percepção de que as crianças eram
frágeis criaturas de Deus. Esse segundo sentimento da infância viria dos
legisladores e dos religiosos, passando posteriormente para a vida familiar. No
século XVIII, um elemento novo foi agregado a esses dois sentimentos da infância, a
preocupação com a higiene e a saúde física.
17
Na família, a criança passou a ocupar o lugar central. As práticas de
educação e as instituições escolares tiveram papel relevante na construção desses
sentimentos, pois para disciplinar as crianças e preservar os costumes de uma
sociedade foi criada uma nova instituição: o colégio.
Isso não significa que os colégios tenham surgido conjuntamente com o segundo
sentimento de infância abordado anteriormente. no século XIII existiam colégios,
mas seu caráter era outro: eram asilos para estudantes pobres, ainda não tinham o
caráter de ensino. Somente no século XV, os colégios tornaram-se instituições de
ensino.
A etapa vivida no colégio corresponderia ao tempo de infância, agora mais
longo, em oposição ao tempo em que a vida da criança se fundia com a vida dos
adultos, sem transição, após os cinco ou sete anos. O tempo de infância vivido de
acordo com o ciclo escolar passou a sofrer separações, distinções. No século XVII,
começou a ser feita uma distinção entre crianças novas (5-7 anos) e crianças velhas
(10-11 anos). Por isso, as classes escolares deveriam ser separadas por idade.
No século XVIII, outra separação aconteceu: foram oferecidos dois tipos de ensino
de acordo com as classes sociais, um para o povo e outro para a burguesia e a
aristocracia. Mas havia algo que monopolizava a educação: apenas os homens
podiam estudar, as mulheres eram excluídas e sua escolarização iniciou-se com
atraso de cerca de dois séculos.
Mary Del Priore (2000) argumenta que os estudos de Ariès apresentam duas
teses que revolucionaram o tema da infância: a escolarização, iniciada na Europa,
no século XVI e a transformação da família com a emergência da vida privada.
Segundo a autora, “apesar de todas as críticas que essas teses receberam,
sobretudo quanto à percepção de um certo ‘evolucionismo’ na condição histórica da
18
criança, essa na Idade Média, não significaria muito para seus pais, passando a
condição de ‘reizinho do lar com a evolução da sociedade burguesa; as teses de
Ariès instigam o historiador brasileiro a procurar suas próprias respostas” (PRIORE,
2000, p. 10). No Brasil, tanto a escolarização quanto a emergência da vida privada
chegaram com grande atraso, quando comparado o país com outros países
ocidentais.
Embora, a partir do século XVII tenha ocorrido uma mudança de mentalidade
com relação à distinção entre adultos e crianças, os comportamentos tardaram mais
a se modificar. Pois, como afirma Elisabeth Badinter (1980), ainda havia uma
persistência do desprezo pela criança, esta era vista como um brinquedo para
distrair os adultos. No século XVIII, a criança pequena era denominada pouart,
termo derivado da palavra poupée (boneca), o que pode evidenciar que os pais
gostavam das crianças como se gosta de um brinquedo, muito mais pelo prazer que
proporcionam do que pelo seu próprio bem. Enquanto pequenas, as crianças eram
vistas como objetos divertidos e ingênuos. Quando crescem continuam sendo
consideradas objetos, são máquinas que precisam ser disciplinadas, com normas
rígidas e castigos severos. A autora aponta que tal concepção se torna possível
se a especificidade da criança for negada e se houver o pressuposto de que ela
deveria ser aquilo que se faria dela.
A esse respeito, Badinter (1980) observa que os teólogos do século XVI
censuravam as mães por sua ternura exagerada pelos filhos, enquanto que no final
do século XVIII, ocorria a censura inversa devido à falta de ternura das mães. A
ausência do sentimento de infância, antes desse período, não impedia que as
mulheres amamentassem seus filhos e os mantivessem junto a si pelo menos até os
oito ou dez anos. Contraditoriamente, no momento em que este sentimento da
19
infância começa a nascer, as mulheres abastadas e ricas recuaram em relação aos
deveres maternos, surgiu a idéia de que o bebê é objetivamente um estorvo para os
pais e ele era entregue aos cuidados de uma ama. Segundo o ideal mundano da
época, era deselegante demonstrar amor aos filhos em demasia e ocupar o precioso
tempo dos pais com eles. Uma explicação para o desinteresse pelos filhos era de
que estes “morriam como moscas”, mas o desinteresse pelas crianças é que fazia
com que morressem em tão grande número.
Não houve uma progressiva valorização da criança. Quanto à
institucionalização de espaços e práticas dirigidas aos cuidados e promoção da
infância, pode-se dizer que este movimento não se constituiu de maneira continua e
ascendente. Há momentos de maior ou menor valorização da criança, os
sentimentos em relação a ela estão determinados pelos valores e práticas de
determinada época.
No que tange ao Brasil, Priore (2000) destaca que tanto a escolarização
quanto a emergência da vida privada chegaram ao país com grande atraso, se o
compararmos aos outros países ocidentais, onde o capitalismo instalou-se nos
primórdios da Idade Média. No início da colonização, as escolas jesuítas eram
escassas e para poucos. De forma muito precária, o ensino público foi instalado
durante o governo de marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII.
Durante o século XIX, para os filhos dos pobres havia apenas o trabalho na lavoura,
enquanto para os filhos de uma pequena elite havia o ensino ministrado por
professores particulares. No final do século XX, o trabalho infantil continua sendo
visto como uma alternativa de complementação salarial para as famílias das classes
populares.
20
Neste sentido, Priore (2000, p. 11) alerta que “a historiografia internacional
pode servir de inspiração, mas não de bússola”. É necessário analisar de forma
crítica a sociedade brasileira para que sua própria história possa ser contada; trata-
se de uma sociedade que é injusta na distribuição de renda desde os tempos mais
remotos e cuja inserção das crianças inicia-se com a relação entre infância e
trabalho precoce.
Segundo Fábio Pestana Ramos (2000), as terras no Brasil passaram a ser
povoadas a partir de 1530, as embarcações lusitanas vinham com muitos homens
e pouquíssimas mulheres, mas as crianças estavam presentes. Os infantes
portugueses embarcavam a bordo na condição de grumetes, pagens ou órfãs do
Rei, enviados para se casarem com os súditos da Coroa.
Os grumetes eram obrigados a aceitar abusos sexuais por parte dos marujos
e a realizar os “trabalhos” mais “pesados” e perigosos. Numa embarcação composta
por 150 tripulantes, a média de homens empregados nas naus do século XVI, pelo
menos 27 crianças serviam como grumetes, com idade até 12 anos e com uma taxa
de mortalidade de 39% dos embarcados. Esses meninos recebiam de soldo
menos da metade que um marujo, embora realizassem as tarefas que eram
desempenhadas por um homem. Os poucos que sobreviviam podiam seguir carreira
na Marinha.
Pertencendo à mesma faixa etária, porém em situação bem diferente,
encontravam-se os pagens da nobreza, que realizavam tarefas mais leves e de
menos risco, como servir à mesa, arrumar os camarotes e providenciar tudo para o
conforto dos oficiais. Porém, tais vantagens não impediam que eles sofressem os
mesmos abusos como estupro e sevícias. Vinham de famílias portuguesas pobres,
21
setores médios urbanos ou da baixa nobreza; desse modo, inserir-se no contexto da
marinha era uma forma de buscar ascensão social.
As órfãs do Rei eram meninas pobres com idades entre 14 e 17 anos,
recolhidas nos orfanatos de Lisboa e Porto, com o objetivo de serem esposas dos
homens solteiros da baixa nobreza portuguesa, para evitar a prática de “amancebar-
se” com as nativas. Embarcavam cerca de 54 meninas, três vezes ao ano, que ao
contrário das passageiras não tinham alguém que zelasse por elas e sofriam
também todo tipo de violência. Seguindo a tradição medieval, que só punia o estupro
se as vítimas tivessem de 12 a 14 anos, essas meninas pobres poderiam ser
violadas pelos marinheiros a bordo e, em virtude do medo de serem depreciadas no
mercado matrimonial, ocultavam o fato. Segundo Ramos (2000, p. 49), “O menor
mal que podia sofrer após alguns meses no mar, quando tinha sorte, era o de sofrer
um grande trauma e deixar de ser criança, perder sua inocência para nunca mais
recuperá-la”.
Quanto às crianças indígenas, na então Colônia de Santa Cruz, havia os
jesuítas que submetiam-nas a processos de adestramento físico e mental. As
atitudes de valorização da infância, na Europa do século XVI e a elaboração
ideológica da devoção ao menino Jesus foram trazidas para a Colônia pela
Companhia de Jesus. Como os indígenas adultos estavam imersos em sua cultura,
parecia promissor conquistá-la através da cristianização das crianças. Uma das
formas de conquistar a alma indígena foi revelada pela carta do padre Nóbrega, em
1550, dirigida ao provincial de Portugal, na qual ponderava que talvez pelo medo os
índios se convertessem mais rápido do que pelo amor, em razão de seus
“abomináveis” costumes e de estarem fora da cristã. Almejando doutrinar a
humanidade e seguindo um regime de normas e disciplinas contidas no Ratio
22
Studiorum que educou e formou a juventude cristã e também submeteu as crianças,
ao longo dos séculos XVI e XVII, os jesuítas investiram na catequese da infância
indígena. Para os padres não se tratava apenas de aprender a doutrina da fé, mas
sim de perseverar nos bons costumes (Rafael CHAMBOULEYRON, 2000).
No que tange às crianças negras, o tráfico negreiro trouxe cerca de três
milhões e quinhentos mil escravos; predominavam os adultos e havia uma média de
duas crianças em cada dez cativos. Segundo José Roberto de Góes e Manolo
Florentino (2000), a criança escrava, por volta dos 12 anos, tornava-se adulta por
meio do adestramento. Meninos e meninas eram identificados por um sobrenome
que indicava sua ocupação, por exemplo: Chico Roça, João Pastor ou Ana Mucama.
Aos quatro anos, as crianças podiam desempenhar tarefas domésticas leves nas
fazendas e aos 14 anos realizavam tarefas de adulto. As crianças menores eram
menos valorizadas comercialmente, ao contrário daquelas que soubessem servir,
lavar, engomar, remendar roupas, reparar sapatos, trabalhar em madeira ou
pastorear. Entre os quatro e os onze anos, a criança ia paulatinamente tendo seu
tempo ocupado pelo trabalho e aprendia um ofício: ser escravo. O adestramento das
crianças se fazia pelo suplício, pequenas humilhações e grandes agravos, como
ficar de quatro e servir de besta para as crianças brancas, o que era considerada
uma “brincadeira”.
A concepção atual de infância é resultado de uma dupla atitude com relação à
criança: preservá-la da corrupção do meio, mantendo sua inocência, e também
fortalecê-la, desenvolvendo seu caráter e sua razão. As noções de inocência e de
razão não se opõem, elas são os elementos básicos que fundamentam o conceito
de criança como essência ou natureza, que persiste até hoje e que implica
considerar-se que todas as crianças são iguais, correspondendo a um ideal de
23
criança abstrato, mas que se concretiza na criança burguesa. A criança, geralmente,
é pensada em oposição ao adulto, em virtude de sua pouca idade ou maturidade.
Busca-se identificar certas regularidades de comportamento que caracterizam a
criança como tal, embora a definição deste limite seja complexa, pois o fator idade é
associado a determinados papéis e desempenhos específicos. A classe social em
que a criança está inserida determina sua participação no processo produtivo, o
tempo de escolaridade, o processo de socialização no interior da família e da
comunidade, suas brincadeiras e atividades cotidianas. Essa inserção social se
diferencia de acordo a posição da criança e da família na estrutura sócio-econômica,
sendo inadequado supor a existência de uma população infantil homogênea
(KRAMER, 1992).
Deve-se partir do princípio de que, em virtude das condições econômicas,
sociais e culturais, as crianças têm modos de vida e práticas sociais diversificadas
quando comparadas entre si e diferentes graus de valorização da infância pelos
adultos.
Segundo Kramer (2000), o adulto estabelece uma imagem de criança como
um ser fraco e incompleto, atribuindo a tais características à natureza infantil, às
relações da criança com adulto, na medida em que este exerce sobre a criança uma
autoridade constante que é social e não natural, e que reproduz as formas de
autoridade de nossa sociedade. Da mesma forma, na escola, a criança é encarada
como se fosse a-histórica e como se seu papel social e seu desenvolvimento
independessem das condições de vida, da classe social e do meio cultural de sua
família. As crianças das classes populares são vistas como economicamente
desfavorecidas, exploradas, marginalizadas, sendo consideradas como “carentes”
na medida que não correspondem ao padrão estabelecido.
24
Para Manuel Jacinto Sarmento (2001), conhecer as crianças impõe conhecer
a concepção de infância existente. As histórias individuais de cada criança fazem
sentido quando são analisados os fatores estruturais que as condicionam, os quais
configuram o conjunto de relações que cada membro da sociedade continuamente
sofre, interpreta e refaz na sua interação com os outros. Ao mesmo tempo em que a
sociedade visa proteger as crianças dos perigos do mundo, teme a parcela delas
que não foi acolhida e poderá voltar-se contra a própria sociedade.
O estudo de Sergio Adorno (1993) sobre crianças pobres brasileiras e as
análises referentes aos indicadores sociais realizadas pelo Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE/2003), apresentam um panorama das condições de
vida de grande parcela de crianças e adolescentes, nas últimas décadas.
Segundo Adorno (1993), em 1989, 41% da população brasileira era formada
por crianças e adolescentes (0 a 17 anos), o que representava 59 milhões de
pessoas. Dessas crianças e desses adolescentes, 50% pertenciam a famílias cujo
rendimento mensal per capita era de, no máximo, meio salário mínimo; 55% viviam
em casas sem infra-estrutura de esgoto adequada, 43% sem água encanada, 46%
sem coleta de lixo, e 18% sem luz elétrica. Tais dados demonstram o quadro de
pobreza vivido por uma parcela significativa da população, o que é corroborado
pelos índices que relacionam o nível de nutrição das crianças com o grau de
escolaridade das mães: aproximadamente 50% das crianças, cujas mães tinham
menos de um ano de estudo, sofriam de algum nível de desnutrição.
O autor também problematiza a inserção de crianças brasileiras no mundo do
trabalho, a qual acontece precocemente devido à situação econômica insustentável
das famílias. Em 1980, 36,2% da força de trabalho no Brasil concentrava-se na faixa
etária de 10 a 14 anos, período em que seria “obrigatória” a presença das crianças
25
na escola; ao mesmo tempo 40,6% desse mesmo grupo etário representava a taxa
relativa aos trabalhadores não remunerados. Pode-se constatar, como o faz Adorno
(1993, p. 191), que “A pobreza deita com maior rigor seus efeitos sobre a parcela
jovem da população pobre”.
Segundo dados do IBGE (2003) sobre os Indicadores Sociais, a partir das
informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o Brasil tem
54 milhões de pessoas que vivem com menos de meio salário mínimo (R$ 100,00),
isso representa 31,8% dos cerca de 170 milhões de brasileiros. Segundo dados de
uma pesquisa sobre níveis de desigualdade da população nacional divulgada pelo
IBGE, desses 54 milhões, 49 milhões têm renda inferior a meio salário mínimo por
mês. Os 5 milhões restantes são pessoas que sobrevivem sem nenhum tipo de
renda. O relatório do IBGE foi divulgado em conjunto com um levantamento da
Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as desigualdades mundiais. Segundo
a ONU, 3 bilhões de pessoas vivem hoje com menos de US$ 2 por dia, a chamada
linha da pobreza. No seu relatório, a ONU afirma que a queda nas taxas de
natalidade do Brasil ajudou a melhorar a situação econômica do país e que o efeito
foi um crescimento de 0,7% do Produto Interno Bruto ( PIB) per capita por ano entre
1972 e 1994.
Segundo o IBGE, a região Nordeste é a que mais sofre com a pobreza: 51%
da população recebe até um salário mínimo por mês (R$ 200,00), enquanto no
Sudeste essa proporção é de 18%. Os dados mostram que a distribuição de renda
no país continua desigual. Em 2001, 40% da população mais pobre teve acesso a
apenas 10,1% do total de rendimento nacional, enquanto os 10% mais ricos
detiveram 46,1% da renda. No Nordeste, a desigualdade também é ligeiramente
maior que no Sudeste. Enquanto os nordestinos mais ricos ficaram com 48,6% da
26
renda, os mais pobres tiveram acesso a 10,2%. No Sudeste, 11% da renda ficou
para os mais pobres e 42,2% para os mais ricos. Segundo o IBGE, os dados entre o
Nordeste e o Sudeste são a constatação das profundas diferenças existentes no
Brasil quanto à distribuição quantitativa e qualitativa dos recursos da produção, da
tecnologia e, sobretudo, da qualidade de vida que tem acompanhado a evolução
histórica do país desde o final dos tempos coloniais.
O estudo mediu também condições de saneamento básico e educação como
fatores de desenvolvimento. No primeiro quesito, apenas 31,6% da população que
vive com meio salário mínimo consegue viver em casas atendidas por saneamento
básico. Na região Nordeste, pessoas de renda mais alta não necessariamente
gozam da estrutura. Entre as que ganham mais de dois salários mínimos, 23% não
tem condições adequadas de saneamento.
Por ser a família uma importante unidade de produção de bem-estar dos
seus componentes, os indicadores relacionados ao núcleo familiar podem servir
de subsídio para uma análise abrangente das condições socioeconômicas da
população. Um indicador relevante é, por exemplo, o rendimento auferido pelo
conjunto de membros de uma família. No Brasil, em 2001, 22,9% das famílias
tinham rendimento mensal per capita de até ½ salário mínimo. Essa proporção é
notadamente elevada no Nordeste, onde, em 2001, 42,2% das famílias viviam com
½ salário mínimo per capita. No Maranhão e Alagoas, mais de metade das famílias
vive com este rendimento.
A desigualdade de rendimentos no Brasil não apresentou sinais de melhora
nos últimos vinte anos. A comparação entre a renda média familiar per capita das
famílias que se encontram no último décimo da distribuição (as 10% “mais ricas”),
que em 2001 era em torno de R$ 1.770,00 (ou 13,4 salários mínimos), e as que se
27
encontram nos quatro primeiros décimos da distribuição (as 40% “mais pobres”), que
no mesmo período tiveram rendimento médio per capita de aproximadamente R$
80,00 (ou 0,45 salário mínimo), mostra que a renda dos primeiros é 22 vezes maior
que a dos últimos. Essas relações sofreram poucas mudanças desde a década
passada, indicando a permanência da desigualdade na distribuição de rendimentos.
Por fim, o referencial de renda familiar também pode ser aplicado à análise do
número médio de pessoas e de filhos nas famílias brasileiras nas últimas décadas.
Quanto menor o rendimento familiar, maior o número de pessoas e filhos na família,
tendência que se mantém inalterada em 2001. As famílias com rendimento familiar
per capita de até ¼ de salário mínimo têm, em média, 4,8 pessoas e 2,8 filhos. Já as
famílias com mais de 5 salários mínimos de renda familiar per capita apresentam
número médio de pessoas e filhos igual a 2,6 e 0,8, respectivamente.
Em quase uma década, a escolaridade da população em idade ativa
aumentou pouco mais de um ano. A Pesquisa Nacional por Mostra de Domicílios de
2002, divulgada pelo IBGE, também apresenta os indicadores básicos que
caracterizam o perfil educacional da população brasileira. A taxa de analfabetismo
caiu e o acesso à escola e a escolaridade da população melhoraram. Houve
avanços, mas permanecem as desigualdades regionais e àquelas ocasionadas por
fatores sócio-econômicos, além das relacionadas à rede de ensino freqüentada.
A taxa de escolarização das crianças mais pobres aumentou 19 pontos
percentuais em nove anos. Na faixa de 7 a 14 anos, o acesso à escola está
praticamente universalizado (96,5%), incluindo as áreas rurais, onde 94,7% das
crianças freqüentam alguma instituição de ensino. Porém, destacaria que 96,5% de
acesso ao ensino indica que cerca de 8 milhões de crianças no Brasil ainda
permanecem fora da escola. Na década de 90, as crianças de 7 a 14 anos que
28
estavam fora da escola pertenciam às famílias de menor rendimento. De 1992 para
2001, a taxa de escolarização das crianças que faziam parte dos 20% mais pobres
aumentou 19 pontos percentuais (de 74,5% passou para 93,7%). Entre as crianças
mais ricas, o aumento foi de 2 pontos percentuais (de 97,2% para 99,4%).
Nas demais faixas etárias, o avanço na taxa de escolarização foi menor,
principalmente entre as crianças de 0 a 6 anos (34,9%) e os jovens de 18 a 24 anos
(34%). Pouco mais de 1/3 delas freqüentam escola ou creche e o benefício é maior
nas populações de melhor condição social. A taxa de escolarização dos jovens de 15
a 17 anos passou de 59,7% em 1992 para 81,1% em 2001. Segundo o MEC, o
resultado reflete, em parte, o retorno dos jovens à escola nos cursos de Educação
de Jovens e Adultos.
No grupo das pessoas de 18 anos ou mais de idade, a taxa de escolarização
é maior para os jovens de 18 e 19 anos (51,4%) do que para as pessoas de 20 a 24
anos (26,2%) e 25 anos ou mais (5,2%). Apesar de a Educação de Jovens e Adultos
contribuir para o crescimento das taxas de freqüência escolar, mantém-se a
defasagem escolar: entre os estudantes de 18 a 24 anos, apenas ¼ deles estavam
no ensino superior, enquanto 25,0% freqüentavam o ensino fundamental e 42,5%, o
ensino médio. Ainda na faixa de 18 a 24 anos, os dados de 2001 revelam também
que, apesar da maior proporção de estudantes concentrar-se nas regiões Norte e
Nordeste, eles apresentam maior atraso no sincronismo idade/série. Enquanto no
Sul (12,9%) e no Sudeste (15,6%), os percentuais de estudantes no ensino
fundamental eram menores, no Norte e no Nordeste, eram 31,4% e 40,2%,
respectivamente. Entretanto, no ensino superior a situação se inverte: no Sul
(40,5%) e no Sudeste (34,2%) os percentuais de estudantes são maiores que no
Norte e no Nordeste, ambos em torno de 13%.
29
A análise do sincronismo idade/série freqüentada também revela atraso
escolar. A partir de 1997, foram criadas classes de aceleração de aprendizagem com
o objetivo de corrigir o atraso na progressão escolar, principalmente na faixa de 7 a
14 anos. Apesar da melhora verificada na última década, os dados de 2001 mostram
uma alta percentagem de estudantes de 7 a 14 anos que não freqüentam a série
adequada à sua idade, principalmente a partir dos 9 anos de idade. No Nordeste, as
taxas de defasagem escolar são superiores as do Sul. Na faixa compreendida entre
7 a 14 anos, a defasagem escolar no Sul oscila entre 4,1% e 57,3%, enquanto no
Nordeste, a variação é de 22,5% a 84,9%.
Em relação ao tipo de rede freqüentada, aos 7 anos de idade, a proporção de
alunos com defasagem na rede particular era maior (21%) do que na rede pública
(15,2%). A partir dos 8 anos, a tendência se inverte e à medida que aumenta a
idade, as diferenças entre as taxas de defasagem são maiores, com destaque para
as crianças de 12 anos, cuja defasagem na rede particular era de 27,9% e, na rede
pública de ensino, 65,4%.
Ainda sobre a rede de ensino, observa-se que, levando em conta os quintos
do rendimento familiar per capita, que representava a condição econômica da
família, a distribuição dos estudantes no ensino médio é menos desigual. no
ensino superior, onde apenas 1/3 dos alunos estudam em escolas públicas, 60%
pertenciam ao último quinto de rendimento familiar per capita.
Quanto à escolaridade da população de 7 anos ou mais de idade, houve
crescimento em relação a 1999 e os mais jovens apresentam um perfil de
escolaridade melhor. Entre a população de 25 anos ou mais de idade, a média de
escolaridade é de 6,0 séries, enquanto nas faixas de 18 e 19 anos e 20 a 24 anos,
7,7 e 7,9 séries, respectivamente. Entre as regiões, destacam-se o Sudeste e o Sul,
30
onde a escolaridade dos jovens de 18 e 19 anos chega a 8,5 anos de estudo, contra
6,2 no Nordeste. As diferenças vão além das regiões, que as mulheres têm níveis
de escolaridade mais altos que os homens.
Apesar da melhora nos indicadores, a escolaridade da população de 10 anos
ou mais de idade ainda é baixa, principalmente a economicamente ativa. No País, a
média de anos de estudo é de apenas 6,7 anos, e a média das mulheres (7,3 anos)
é melhor que a dos homens (6,3 anos). Mesmo com o avanço nas taxas de
freqüência escolar nota-se que, de 1992 para 2001, a escolaridade média da
população de 10 anos ou mais de idade aumentou pouco mais de um ano: de 4,9
para 6,1 anos de estudo. Indicadores demográficos melhoram em 2001, mas de
forma desigual entre as Grandes Regiões.
Os dados do IBGE mostram ainda que as desigualdades quanto à
escolaridade da população se diferenciam de acordo com o rendimento familiar.
Apenas 92% dos brasileiros de 15 a 19 anos das famílias mais pobres terminam o
primeiro ano do ensino fundamental, mas metade deles completa o quinto ano.
Em 2001, 15 milhões de brasileiros, ou 12,4% da população, ainda eram analfabetos
e pertenciam às famílias consideradas mais pobres. Entre as crianças até 6 anos,
apenas 34,9% freqüentam algum estabelecimento escolar. Dos adolescentes de 15
a 17 anos, faixa etária que corresponde ao ensino médio, 81% completaram os
estudos.
Nos últimos anos, a taxa de analfabetismo da população de 15 anos ou mais
de idade vem caindo no país, como se pode constatar nos dados da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios para o ano de 2001 (PNAD, 2002), que aponta
um índice de 12, 4%, inferior à taxa referente ao ano de 1992 (17,2 %). Mas o
contingente de analfabetos é muito expressivo, corresponde a 14, 9 milhões de
31
pessoas de 15 anos ou mais que declaram não saber ler e escrever, representando
uma das maiores taxas da América Latina.
Segundo o IBGE, quando se analisam os dados tendo como parâmetro a
renda familiar nota-se que as desigualdades de oportunidades entre os mais pobres
e os mais ricos se acentuam. Entre os brasileiros que têm 18 anos, apenas 34,8%
atingem 11 anos de estudo, correspondente ao ensino médio. Desse total, 11,9%
pertencem a famílias com rendimento de até meio salário mínimo, enquanto 74,6%
vêm de famílias que ganham mais de dois salários mínimos. No Nordeste, a
situação se agrava ainda mais. Somente 17,8% dos jovens com 18 anos conseguem
concluir o ensino médio.
Dos 54 milhões de miseráveis, 64,9% se declararam de cor negra ou parda.
Os restantes se declararam brancos. Os brancos também ganham mais e têm mais
acesso ao mercado de trabalho. Enquanto o rendimento médio do branco era de R$
757,00 em 2001, os negros e pardos ganhavam R$ 383,00 e R$ 375,00,
respectivamente. Entre as famílias com renda de até R$ 100,00 per capita em que o
responsável é uma mulher, 64% delas se dizem pardas ou negras. Nas famílias com
renda superior a dois salários mínimos per capita chefiadas por mulheres, apenas
22,1% delas são negras ou pardas.
As concepções de infância envolveram significações diversas no decorrer da
história. A situação das crianças de classes populares em nosso país se caracterizou
por exploração e abandono desde tempos mais remotos. Neste sentido, quando
pensamos em infância devemos situá-la historicamente e as representações de
crianças de classes populares devem ser entendidas em relação ao contexto em
que estão inseridas.
32
2 AS CRIANÇAS E O ESTUDO DE SUAS REPRESENTAÇÕES
De acordo com Charlot (2000), nascer é “penetrar” na condição humana,
entrar em uma história, a história singular de um sujeito pertencente à história
maior da humanidade. Nascer significa ter de aprender, num triplo processo de
“hominização” (tornar-se homem), de singularização (tornar-se um exemplar único
de homem), de socialização (tornar-se membro de uma comunidade), partilhando
seus valores, gostos e hábitos. Quando a criança nasce, entra em um conjunto de
relações e processos que constituem um sistema, no qual se diz quem ela é, como é
o mundo, quem são os outros. Estar no mundo significa que a criança se constrói e
é construída pelos outros, nunca de forma acabada. A criança se constrói como ser
humano em interação social, apropriando-se de uma humanidade que lhe é exterior
através da mediação do outro.
Walter Benjamin (1984) salienta que desde o nascimento, a criança percebe
a sua classe social, está inserida na história e, dependendo de seu contexto, será
vista e entendida de uma forma ou de outras. Ela se constitui como um sujeito sócio-
histórico, situada em um contexto, consumindo e produzindo cultura, construindo e
vivendo a sua própria história, a de sua família, a de sua comunidade.
33
Concordo com Maria Cecília Minayo (1994, p. 108) quando argumenta que
ouvir o que pensam, sentem e dizem as crianças constitui uma possibilidade de
investigação acerca da infância, uma vez que “as representações sociais se
manifestam em palavras sentimentos condutas e se institucionalizam, portanto,
podem e devem ser analisadas a partir da compreensão das estruturas e dos
comportamentos sociais, portanto, tanto o ‘senso comum’ como o ‘bom senso’, para
usar as expressões gramscianas, são sistemas de representações sociais empíricos
e observáveis, capazes de revelar a natureza contraditória da organização em que
os atores sociais estão inseridos”.
As representações que as crianças fazem de si mesmas e de outros objetos,
estruturando uma visão de mundo que vai sendo formada progressivamente,
resultam das interações e práticas cotidianas, nas quais elas apreendem
informações, imagens e valores. Conforme Alda Judith Mazzotti (2002, p. 95)
salienta, “as representações não são palavras ao vento; elas concretizam-se em
práticas e veiculam sentidos e valores”, fazendo com que aspectos relevantes da
realidade física e social possam ser interpretados.
O conceito de representação social, segundo Sergei Moscovici (1994),
nasceu na sociologia e na antropologia, sendo obra de Durkheim e de Lévi-Bruhl.
Nessas duas ciências ele serviu de elemento decisivo para elaboração de uma
teoria da religião, da magia e do pensamento mítico. Também contribuíram para a
teorização sobre representações sociais, Saussure (teoria da linguagem), Piaget
(teoria das representações infantis) e Vygotsky (teoria do desenvolvimento cultural).
O fenômeno das representações sociais, conforme esclarece Pedrinho
Guareschi (1994) diz respeito à construção de saberes sociais e, nessa medida, ele
envolve a cognição. O caráter simbólico e imaginativo desses saberes traz à tona a
34
dimensão dos afetos, porque quando sujeitos sociais empenham-se em entender e
dar sentido ao mundo, eles também o fazem com emoção, com sentimento e com
paixão. A construção de significação simbólica é, simultaneamente, um ato de
conhecimento e um ato afetivo. Tanto a cognição como os afetos, que estão
presentes nas representações sociais, encontram a sua base na realidade social. As
dimensões cognitivas, afetivas e sociais, portanto, estão presentes na própria noção
de representações sociais.
As representações sociais são produzidas nos lugares sociais, ou seja, nas
instituições, nas ruas, nos meios de comunicação de massa, nos canais informais de
comunicação social. Quando as pessoas se encontram para falar, argumentar,
discutir o cotidiano, ou quando elas estão expostas às instituições, aos meios de
comunicação, aos mitos e à herança histórico-cultural de suas sociedades, as
representações sociais são formadas (GUARESCHI, 1994).
Moscovici (1994) afirma que as representações, como categorias de
pensamento que expressam a realidade, que a explicam, justificando-a ou
questionando-a, estão presentes tanto no “mundo” como na “mente”. Trata-se de um
conhecimento prático, socialmente elaborado e partilhado, que possibilita às
pessoas compreenderem fatos e idéias do mundo em que vivem, agir com e sobre
as outras e a se situarem a respeito delas. Sua mediação privilegiada é a linguagem,
tomada como forma de conhecimento e interação social (MINAYO, 1994).
De acordo com Jodelet (1989), ao construir a representação de um objeto, o
sujeito expressa sua relação com ele servindo-se de elementos descritivos,
simbólicos e normativos que circulam em seu meio sócio-cultural. A partir dessa
perspectiva, entendo as representações sociais como formas pelas quais se
apreende acontecimentos e informações que fazem parte da vida cotidiana, como
35
uma produção única do sujeito criança, condicionada por suas vivências. Quanto à
relação entre pensamento e linguagem, Moscovici (2003, p.35) esclarece: “Nós
pensamos através de uma linguagem; nós organizamos nossos pensamentos, de
acordo com um sistema que está condicionado, tanto por nossas representações,
como por nossa cultura”. Charlot (2000, p. 43) enfatiza que, para se compreender as
representações, deve-se partir também da lógica do sujeito e não apenas da lógica
do social, tendo em vista, que este “.é um ser social que se apropria do social
sob uma forma específica, transformada em representações, comportamentos,
aspirações, práticas, etc”.
Tenho a convicção de que as crianças, assim como outros grupos sociais,
necessitam ser ouvidas sempre. Nós, educadoras e educadores, precisamos
conhecê-las e permitir que também nos conheçam. Aliás, como enfatizou Peter
McLaren (2000, p. 101), “as educadoras devem encarar o presente histórico com
coragem e sem recuo e assumirem um espaço narrativo em que as condições para
que os estudantes contem suas próprias histórias sejam criadas”, para que possam
escutar as histórias dos outros e sonhar juntos um mundo diferente. Para que
possam, educadores/as e alunos/as reconstruir suas representações, ampliando sua
forma de enxergar a realidade, mediante o compartilhar de suas diferentes
percepções, significando o que aparenta ser o silêncio ensurdecedor da vida cultural
na qual as identidades são mapeadas não apenas pela diversidade, mas pela
desigualdade.
Torna-se imprescindível que nós, pessoas integrantes da comunidade escolar,
alunos, familiares, funcionários e professoras/res, libertemo-nos dos discursos
preestabelecidos para começarmos a contar a nossa história. Na função de
educadoras/es devemos ser os mediadores entre a cultura dominante e a cultura
36
popular de nossos alunos, para que possam assumir suas vidas, sendo críticos em
relação a ambas as culturas, com vistas a recriarem uma cultura de libertação e
esperança. Precisamos ajudar os alunos a fazerem as relações necessárias entre o
que pensam e as formas sociais e culturais que existem.
Penso que é fundamental que nós, professores e professoras, estejamos
abertos a ouvir o que as crianças de classes populares têm a nos dizer, procurando
entender como estão inseridas em sua cultura, como agem, sentem, pensam e
constróem suas representações sociais, pois elas estão esperando uma
oportunidade para terem voz. Precisamos compreender que as diferenças não
significam deficiências.
A escola deve proporcionar os instrumentos básicos para que as crianças
apropriem-se da cultura dominante, mas o façam de forma crítica, que lhes permita
compreender o mundo e a realidade em que vivem, a sociedade e a classe social a
que pertencem. Para que isso ocorra, devemos conhecer a realidade, a cultura, os
sonhos e as expectativas dessas crianças; relacionar as representações que
possuem sobre si próprias, sua comunidade, a escola e problematizar as diferentes
visões de mundo que circulam na sociedade.
Considero que nós, professores e professoras, poderemos desenvolver
as competências para educar quando tivermos superado nossas próprias
representações de que ensinar é transmitir conhecimentos e de que o aluno é mero
receptor passivo. Segundo Pérez Gómez (2000), o professor aprende a ensinar e
ensina a aprender, intervém para facilitar e não para substituir a compreensão dos
alunos, ambos em um processo de reconstrução de seu conhecimento pela
compreensão de sua realidade. Como ressalta Lev Semenovich Vygotsky (1998), o
papel do educador está em mediar as situações de aprendizagem para que ocorra a
37
comunhão de sujeitos e idéias, o compartilhamento e a aprendizagem colaborativa
para que aconteça a apropriação que vai do social ao individual. O professor,
pesquisando junto com os alunos, problematiza e desafia-os a repensar sua
realidade.
A diversidade cultural de nossa sociedade é responsável pela criação de
novos espaços do conhecimento. Vêm delas a exigência de respostas traduzidas
num ensino mais significativo para o aluno, conforme enfatiza McLaren (2000). Isso
se torna possível com a realização de uma prática docente aberta para a realidade,
na qual se amplia o espaço de ensino e da aprendizagem, que deixa de ser restrito à
sala de aula e passa a considerar, também, a comunidade e conseqüentemente todo
o mundo.
Tomando como ponto de partida o contexto em que os/as alunos/as vivem,
torna-se possível reunir à prática valores e elementos da cultura, experiências e
conhecimentos do cotidiano. Disto decorre maior participação e engajamento dessas
crianças como alunos/as e cidadãos/ãs, na medida em que são problematizadas
questões sociais e políticas ao se trabalhar os conteúdos, objeto do conhecimento
escolar.
A relevância das representações é assinalada por Gómez (2000, p. 103)
quando afirma que “no âmbito social, tão importante são as representações
subjetivas dos fatos como os próprios fatos”. Assim, em sala de aula, sempre
estarão presentes uma dimensão objetiva (os fatos reais) e uma dimensão subjetiva
(o significado que estes fatos possuem para os alunos). É nesse ambiente que as
múltiplas realidades se relacionam mutuamente.
Dentre os estudos que, direta ou indiretamente, focalizam os significados que
as crianças constróem sobre dimensões relevantes da vida cotidiana, selecionei
38
alguns cujos resultados serão explorados de forma mais aprofundada durante a
análise dos dados desta pesquisa. Neste momento farei apenas uma breve
apresentação desses trabalhos com a finalidade de contextualizar o objeto de meu
estudo.
A pesquisa de Patrícia Cava (1997) com crianças entre 10 e 12 anos de
classes populares que freqüentavam uma escola estadual, situada na periferia da
cidade de Pelotas (RS), cujo objetivo era compreender as significações acerca do
aprender, apresenta importantes reflexões sobre a necessidade de “desnaturalizar”
os fenômenos dados como “naturais” no desenvolvimento da aprendizagem e o
lugar da infância na vida dessas crianças. Sobre as relações entre trabalho e
infância, Betina Hillesheim (2001) abordou o trabalho infantil na perspectiva das
crianças trabalhadoras em lavouras de fumo, investigando os sentidos que esses
dois temas adquirem para vinte cinco crianças e adolescentes da rede pública
estadual da Santa Cruz do Sul (RS). A pesquisa de Egon Rangel et al. (2001),
realizada com 72 jovens, entre 13 e 17 anos, que vivem em bairros de baixa renda
na cidade de São Paulo e estudam em escolas públicas, problematizou as
aprendizagens ocorridas na escola que são consideradas significativas.
Na pesquisa de Nara Bernardes (1989), foi focalizada a construção da
subjetividade, na dimensão da autonomia-submissão de meninos negros e não-
negros e de meninas negras e não-negras de classes populares que habitam a
periferia urbana da cidade de Porto Alegre. A pesquisa de Neuza Guareschi (1991)
investigou as representações de poder e autoridade nas relações familiares, na
escola e na vida adulta, de crianças de seis a sete anos de idade, das camadas
médias urbanas, na cidade de Porto Alegre. Em pesquisa recente, Neuza Guareschi
e outros problematizaram o processo de construção das identidades de meninos e
39
meninas, entre 15 e 18 anos, que freqüentavam as últimas séries do ensino
fundamental numa escola municipal da zona leste de Porto Alegre, localizada em
uma comunidade carente (GUARESCHI et al., 2003).
Sônia Sousa (2001) estudou os significado de infância e educação para pais
que cometeram violência física contra os filhos com idades de 0 a 12 anos
incompletos, residentes em Goiânia (GO). A pesquisa de Simone da Silveira (2001),
com trinta meninos institucionalizados que estiveram em situação de risco, com
idades entre 7 e 16 anos, na cidade de Porto Alegre (RS), aborda a significação de
família para essas crianças que não tiveram a garantia do direito à convivência
familiar.
A pesquisa de Iray Carone (2002) analisa a força psicológica do legado social
do branqueamento, a partir de recortes de notícias de jornal, artigos e comentários
da imprensa brasileira sobre a questão na década de noventa. Os estudos de Neuza
de Gusmão (1993) teve como objetivo verificar de que forma estigmas e estereótipos
se fazem presentes na vida de um grupo de crianças negras cuja faixa etária está
circunscrita entre 7 e 12 anos, moradoras de um bairro rural de Paraty (RJ). A
pesquisa realizada por Marilene Paré (1991), com crianças e adolescentes negros e
não negros, numa escola pública de Porto Alegre, focaliza o desenvolvimento da
auto-estima da criança negra e a problemática da discriminação racial na escola,
tanto por parte de colegas como de professores.
Em decorrência das considerações acima apresentadas e reafirmando o
compromisso com a proposta da Escola Cidadã, esta pesquisa problematiza as
representações das crianças de classes populares por meio da seguinte questão:
40
Como se configuram as representações de crianças de classes
populares sobre infância, família, escola, raça/etnia?
Segundo Luna Mochcovitch (1998, p. 67), a categoria de classes subalternas
é um legado de Gramsci: “Classes subalternas: expressão de que Gramsci se vale
para designar as classes sociais que são objeto da dominação econômica, política e
ideológica”. De modo semelhante, Luis Eduardo Wanderley (1980, p. 63) explica que
as classes populares são constituídas pelos que vivem “uma condição de exploração
e de dominação do capitalismo, sob suas múltiplas formas”. Classes Populares,
serão entendidas no plural, compreendendo, segundo o autor, o operariado
industrial, a classe trabalhadora em geral, os desempregados e subempregados, os
camponeses, os indígenas, os funcionários e alguns setores da pequena burguesia.
Ao utilizar o conceito de classes populares, nesta pesquisa assumo os sentidos
acima explicitados.
41
3 CAMINHOS METODOLÓGICOS
Esta pesquisa pode ser caracterizada como qualitativa porque o trabalho
empírico foi desenvolvido na situação em que o fenômeno ocorria, sem manipulação
de variáveis, a coleta é rica em dados descritivos, obedeceu a um plano de ações
aberto e flexível e focalizou a realidade educacional em sua complexidade e de
forma contextualizada (BOGDAN e BIKLEV, 1999).
Segundo Gregório Gómez, Javier Flores e Eduardo Jiménez (1996, p. 32), a
pesquisa qualitativa implica um enfoque interpretativo, isto significa que “os
pesquisadores qualitativos estudam a realidade em seu contexto natural, tentando
captar o sentido de, interpretando os fenômenos de acordo com os significados que
possuem para as pessoas implicadas”. Isto exige a utilização de grande variedade
de materiais, no caso desta pesquisa, as entrevistas, os desenhos e as imagens,
que visam descrever as situações e os significados para estes sujeitos sobre os
temas destacados.
Segundo S. J. Taylor e R. Bogdan (1986), a metodologia qualitativa se refere
à investigação que produz dados descritivos, utilizando as próprias palavras das
42
pessoas e a observação para extrair os significados. A partir da manifestação oral e
gráfica das crianças, este estudo visa descobertas, pois parte de pressupostos
teóricos sobre a infância, a família, a escola, a raça/etnia, mas durante todo o
processo existirá a busca a novos elementos e dimensões que se façam importantes
para a compreensão das representações.
Os autores explicam que as investigações qualitativas tratam de compreender
as pessoas dentro de um marco de referência delas mesmas, ou seja, é essencial
experimentar a realidade tal como outros a experimentam, compreender como vêem
os acontecimentos. Nesta pesquisa, foram focalizadas as representações de
crianças de classes populares, que vivem situações concretas, em que suas
percepções estão relacionadas às ações e interações que desenvolvem na família,
na escola e na comunidade, em lugares físicos e sociais específicos nos quais estão
inseridas.
Numa investigação qualitativa todas as perspectivas são valiosas, para S. J.
Taylor e R. Bogdan (1987, p. 21), não existe a busca da verdade e sim “a busca de
uma compreensão detalhada das perspectivas de outras pessoas”. Neste estudo, as
crianças tiveram oportunidade de expor seus pontos de vista, dando-se voz a quem
é pouco escutado. Visa-se o conhecimento direto do que essas crianças vivem e
pensam em sua vida cotidiana, observa-se como seu processo de socialização vem
acontecendo na família, na escola e quais as influências na sua forma de entender o
mundo.
Conforme Gómez (1998, p. 109), numa pesquisa qualitativa, “o investigador
mergulha num processo permanente de indagação e comparação, para captar
os significados latentes dos acontecimentos observáveis, para identificar as
características do contexto físico e psicossocial”, visando a estabelecer as relações
43
entre o contexto e os sujeitos. O enfoque interpretativo desta modalidade de
pesquisa exige que os acontecimentos sejam interpretados em relação à situação
que lhes confere significados. Para compreender os dados em sua integridade
e complexidade, o autor propõe os seguintes procedimentos metodológicos: a
entrevista, a triangulação, tendo como suporte os instrumentos de registro e relato
de dados.
A entrevista foi realizada com os diferentes segmentos ou grupos
diferenciados que participam na escola, neste caso o grupo de crianças do primeiro
ciclo, com o objetivo de captar as representações e indagar sobre as diferentes
visões sobre os temas abordados. A triangulação que tem por objetivo a comparação
dos registros e informações, ou seja, os desenhos, as imagens e as falas das
crianças, relaciona as diferentes interpretações sobre os acontecimentos para
entender a formação das representações e as possibilidades de aproximações ou
não sobre como pensa este grupo de crianças com os estudos teóricos
realizados.
Embora Gómez (1998) refira-se, mais especificamente, à investigação de
acontecimentos em sala de aula ou na escola, considero pertinente utilizar esses
procedimentos metodológicos para o estudo das representações sociais, uma vez
que estive “mergulhada” no ambiente da escola (devido ao fato de ser professora) e
pude indagar, observar, interrogar e comparar, com vistas a compreender os fatores
que se relacionavam às representações manifestadas pelas crianças. Pude buscar o
aprofundamento dos aspectos que nem sempre a primeira vista apareciam e que,
geralmente, permaneciam obscuros.
44
3.1 Campo de investigação e sujeitos
Os dados do presente estudo, foram coletados na Escola Municipal de Ensino
Fundamental Wenceslau Fontoura, que se localiza na zona leste de Porto Alegre, no
Bairro Rubem Berta. Com 70 professores e 18 funcionários, atendendo 1200 alunos
distribuídos em 39 turmas. A escola foi criada por decreto em abril de 1993,
funcionando precariamente em um prédio improvisado. O barracão que abrigou os
operários que construíram o Jardim Planetário se transformou em salas de aula
provisórias no loteamento. Este "prédio" beneficiou cerca de 500 crianças que
estavam sem escola, naquela época.
O Loteamento Wenceslau Fontoura, criado em 1992, onde se encontra a
escola, formou-se com o assentamento de famílias vindas da Vila Sertório,
conhecida como Vila Tripa e Vila Riacho Doce, que se localizavam ao longo de uma
avenida, próxima ao Aeroporto Salgado Filho, consideradas áreas de risco. Era
habitada principalmente por famílias que viviam da coleta de lixo e “biscateiros”.
Foram aproximadamente 146 famílias transferidas com algum planejamento, porém,
sem as condições de infra-estrutura completas e sem a possibilidade de estas
pessoas encontrarem alternativas de sobrevivência.
Em 1996, foi inaugurado o prédio oficial da escola que, naquela época,
funcionava como uma Escola Aberta. Para receber a formação do Ensino
Fundamental, as crianças passavam por etapas, por exemplo, a alfabetização podia
levar um tempo maior do que o convencional, dependendo do processo de
aprendizagem do aluno. O aluno permanecia em uma etapa até que pudesse
45
avançar para outra, o que poderia fazer com que esta formação ultrapassasse os
oito anos.
Em 1997, integrada na Proposta Político-Pedagógica da Escola Cidadã, da
Secretaria Municipal de Educação, esta escola substituiu o sistema de Escola Aberta
e organizou-se em Ciclos de Formação, o que lhe permite respeitar as
possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem de seus alunos, trabalhando de
forma a garantir o acesso ao conhecimento para todos, sem que haja rupturas neste
processo.
Desde 1997, eu trabalhava como professora do Primeiro Ciclo na escola e
não foi difícil aproximar-me das crianças com vistas à realização da pesquisa; ao
contrário, todas mostraram muita disponibilidade em participar.
Para compor o grupo de crianças que foram sujeitos da pesquisa foram
realizadas as seguintes ações:
1) No início de 2002, localizei doze turmas do Primeiro Ciclo, cujas professoras
manifestaram interesse em participar da pesquisa. Organizei uma lista das crianças
por turma, com os seguintes dados: turma, turno, nome completo, idade, data de
nascimento, sexo, raça/etnia e nível sócio-econômico.
2) Nos meses de setembro e outubro de 2002, durante as aulas e com a presença
das professoras, realizei a atividade do desenho do auto-retrato com todas
as crianças. Examinei aproximadamente trezentos desenhos, em relação aos
seguintes aspectos: se a criança demonstrou dificuldade em trabalhar com o tema,
se o desenho correspondeu ao que foi solicitado, quais as características
apresentadas pelo auto-retrato.
3) A partir dessa análise foram selecionadas cento e trinta crianças, de acordo com
os seguintes critérios:
46
Idade: correspondente ao Primeiro Ciclo, dos seis aos oito anos e onze meses.
Sexo: masculino e feminino.
Raça/etnia: negros e não-negros
Nível sócio-econômico: pobre, muito pobre, situação de miséria, de acordo com
indicação das professoras.
4) Destas 130 crianças foram selecionadas 24 crianças de a modo manter um
equilíbrio em relação à idade, gênero, raça/etnia e nível sócio-econômico, para
constituírem os sujeitos da pesquisa:
Crianças Sexo Masculino Sexo Feminino
Negras pobres duas duas
Não-negras pobres duas duas
Negras muito pobres duas duas
Não-negras muito pobres duas duas
Negras em situação de miséria duas duas
Não-negras em situação de miséria duas duas
Total doze doze
Nesta etapa, o quesito raça/etnia passou a ser verificado conforme a opinião
das crianças. Além disto, foi verificado junto às professoras a assiduidade desses
alunos e dessas alunas, uma vez que era necessário ter garantias de sua
permanência na escola durante o período de coleta dos dados.
47
3.2 Procedimentos para coleta de dados
Após obter permissão da direção e assinatura do termo de consentimento
(apêndice A) dos familiares, realizei as ações preliminares necessárias para compor
o conjunto de crianças que foram sujeitos da pesquisa e para a realizar a coleta de
dados, no período de março de 2002 a outubro de 2003, durante o período letivo e
no horário das aulas, uma vez que minha disponibilidade era de somente um turno
por semana. Contei com a colaboração das professoras para que as crianças
fossem liberadas das atividades escolares e, conforme indicação da direção, pude
utilizar um local silencioso, no qual não sofri interrupções.
Para coletar os dados referentes às representações sociais das crianças
foram utilizados os seguintes procedimentos: desenho, entrevista, filmagem da
atividade lúdica com as duas famílias de bonecos (uma negra e outra não-negra).
Cada encontro, sempre individual, durava em média quarenta minutos.
a) Desenho
Segundo Analice Dutra Pillar (1996), a teoria piagetiana postula que o
desenho para as crianças tem a função de representar os objetos, e tal
representação, de natureza simbólica, busca uma semelhança entre o desenho e
seu referente. As modificações no desenho visam a torná-lo mais representativo,
mais realista, somente na intenção da criança, porque, o desenho é um espelho
criativo da sua visão de mundo.
48
Os desenhos revelam sentimentos da criança em relação às experiências do
mundo real, mostram as formas de percepção e expressam seus valores. Gabriel
Junqueira (1994) ressalta que o desenho diz, revela, significa, comunica, traz
informações sobre essa criança, através dos signos ali registrados por ela. O
desenho é entendido como apropriação de um sistema de representação. Conceber
o desenho como sistema de representação é considerar sua apropriação pela
criança como uma criação de símbolos e de relações entre eles.
Para Pillar (1996), conforme estudos construtivistas, a representação gráfica,
a construção de conhecimento no desenho é decorrente da ação da criança sobre o
objeto. No desenho da criança, a palavra representação assume o significado de
recriação, de reconstrução do seu mundo no que tange às imagens, ao pensamento,
à imaginação, com o sentido de simbolização.
Foram coletados 96 desenhos (alguns dos quais são apresentados no anexo
A) focalizando as seguintes temáticas solicitadas aos sujeitos da pesquisa,: “Eu
(auto-retrato)”, “Minha Família”, “Eu na Escola”, “Negro e Não-negro”. Além do
material do desenho, foram considerados como material empírico o que foi dito pelas
crianças no momento em que o desenho estava sendo produzido.
Como afirma Márcia Gobbi (2002), os desenhos infantis em conjugação à
oralidade são formas privilegiadas de expressão da criança; quando aproximadas,
podem resultar em documentos aos quais podemos recorrer ao necessitarmos
saber mais e melhor acerca de seu mundo vivido, imaginado, construído, numa
atividade investigativa que procure contemplar a necessidade de conhecer parte de
suas histórias segundo seu ponto de vista.
Nesta pesquisa, utilizei os desenhos como um procedimento conjugado à
oralidade, na busca de informações sobre como estas crianças estão representando
temáticas relevantes de seu cotidiano.
49
b) Entrevista
A entrevista teve como objetivo captar as significações e impressões, mais ou
menos elaboradas, a partir da perspectiva da criança. Trata-se de uma entrevista
por tópicos (apêndice B), uma conversação, na qual verbalmente foram obtidas
as informações pertinentes. As vinte e quatro crianças (meninas e meninos em igual
número) foram entrevistadas individualmente e a duração variou, em média de trinta
a cinqüenta minutos. Num primeiro momento, as crianças relatavam um pouco sobre
si, a composição de sua família, as condições da casa onde moravam, a
escolaridade e a ocupação das pessoas. Num segundo momento, falavam sobre o
significado de ser criança, a diferença entre ser criança e ser adulto, a finalidade da
escola, sua positividade e negatividade, relação entre o que aprendem na escola e
sua vida, suas concepções sobre ser rico e ser pobre e perspectivas para o futuro.
As vinte e quatro entrevistas individuais foram gravadas em fitas magnéticas e,
posteriormente transcritas.
c) Atividade lúdica com família de bonecos
O brincar e o jogar são formas básicas de as crianças agirem. Os jogos e as
brincadeiras sempre existiram, independentes da época, espaço ou classe social e
são transmitidos de geração para geração. Brincar é fundamental para a criança,
pois é uma das formas principais das quais ela dispõe nesta fase da vida para
aprender; aprender sobre os objetos que estão à sua volta, aprender sobre as
50
pessoas e sobre si mesma. Através do jogo, da brincadeira ela vai aprender quais
são as regras que organizam as relações entre as pessoas de seu grupo e o papel
que cada uma desempenha. A criança aprende, por meio do jogo, quais são as
ações que se pode e as que não se pode fazer, de acordo com a cultura na qual
está inserida.
Para Tizuko Kishimoto (1993), o que nos permite compreender melhor o
cotidiano infantil é o lugar que a criança ocupa num contexto social específico e a
educação a que está submetida. A este respeito, Maria Angélica Algebaile (1997)
observa os múltiplos sentidos que a realidade física e social pode adquirir por meio
do jogo, em que a criança é capaz de resgatar uma compreensão do mundo,
construindo seu universo particular no interior de um universo maior, estabelecendo
uma relação com os outros e com as coisas.
Segundo Benjamin (1984), brincar significa libertação. O jogo e a brincadeira
são fontes de felicidade e prazer, prazer que se funda no exercício da liberdade e
por isso, representa conquista de quem pode sonhar, sentir, decidir, arquitetar,
aventurar e agir, esforçando-se por superar os desafios da brincadeira, recriando o
tempo, o lugar e os objetos em jogo. O lúdico, assim compreendido, pode remeter a
uma imagem de inutilidade da criança, transformando-a num objeto descartável e
manipulável. Entretanto, o lúdico tem um caráter de liberdade e subversão da ordem
que se contrapõe à lógica da produtividade, indica pistas para a definição de papéis
sociais e é cultura humana subjetiva (Marli Pires SANTOS, 1997).
Fazer de conta é o grande recurso que as crianças têm, também, para lidar
com os objetos, aquilo de que compõe o seu mundo e o modo como as pessoas se
relacionam com esses objetos físicos. Em seu brincar, a criança pode experimentar
comportamentos, ações e percepções sem medo de represálias ou fracassos.
51
Segundo Vygotsky (1998), a criança, por meio do lúdico, pode trabalhar não apenas
o mundo dos objetos que lhe é acessível diretamente, mas agir em relação ao
mundo adulto, construindo e reconstruindo, ludicamente, ações que os adultos
realizam na sociedade em que vivem. Brincando, a criança se apropria da realidade,
criando um espaço de aprendizagem, no qual expressa, de modo simbólico,
suas fantasias, desejos, medos, sentimentos, sexualidade e agressividade
(VYGOTSKY,1987).
Nesta pesquisa, utilizei o recurso da atividade lúdica de brincar com as
famílias de bonecos negros e não-negros a partir de um roteiro (apêndice C).
Mediante o brincar, as crianças puderam imaginar e expressar as representações,
os papéis sociais, as ações dos outros. Os principais aspectos dessa atividade que
foram observados e registrados são: como as crianças organizam os dois grupos de
bonecos; como esses grupos são nomeados (pai, mãe, irmãos, tia); quais os papéis
sociais que os adultos e as crianças desempenham; quais as diferenças que são
assinaladas entre gênero, negros e não-negros; como a autoridade é exercida e por
qual boneco; maneira de os adultos agirem em relação às crianças.
A atividade lúdica envolveu oito crianças, dois meninos negros e dois não-
negros, duas meninas negras e duas não negras. Essa atividade foi um recurso
complementar à entrevista, o qual facilitou a manifestação das representações
daquelas crianças para as quais as perguntas da entrevista não haviam sido
suficientes para fazê-las reagir ao que era solicitado. As atividades lúdicas foram
gravadas, individualmente, em fita de vídeo, cujos registros verbais e visuais, foram
transcritos, posteriormente.
52
3.3 Procedimentos para análise de dados
Os dados desta pesquisa foram analisados segundo as técnicas e
instrumentos de análise de conteúdo. Ainda que diferentes autores proponham
diversificadas descrições do processo de análise de conteúdo, optei pelo modo
como Moraes (1995) trabalha e segui a seguinte seqüência de passos: preparação
das informações, transformação do conteúdo em unidades, classificação das
unidades em categorias, descrição e interpretação.
Para a preparação das informações realizei uma leitura inicial de todo material
coletado, transcrição das vinte e quatro entrevistas, análise dos noventa e seis
desenhos e descrição das oito filmagens para verificar se realmente eram
representativos e pertinentes ao problema da pesquisa.
Após reler cuidadosamente todo o material com a finalidade de definir as
unidades de análise, trabalhei com as três modalidades de produção oral e gráfica:
desenhos e falas das crianças e, também, descrição das filmagens. Essas unidades
foram reescritas ou reelaboradas, para que pudessem ser entendidas fora do
contexto original em que se encontravam, para que tivessem um significado
completo em si mesmas.
Para identificar as unidades de análise dos desenhos foi elaborada uma lista
de aspectos a serem observados em cada um desses desenhos.
53
Para análise dos auto-retratos, utilizei os seguintes aspectos: se o desenho
da figura humana era claro, localização do desenho na folha, se todos elementos do
corpo estavam presentes, como os elementos do rosto estavam desenhados, se os
traços eram bem definidos, como os traços de etnia eram representados, se o rosto
era encoberto pela cor da pele, elementos fora do auto-retrato, o modo como foi feito
(com ou sem esmero).
Nos desenhos da família foram observados: quais componentes da família
foram desenhados e como foram representados, que componentes apareceram e
com que destaque, quais os componentes desenhados próximos à criança, que
componentes apareceram no centro da folha e em suas extremidades, que
componente foi desenhado primeiro, se a casa foi representada, se apareceram
elementos identificadores da situação sócio-econômica.
Para análise dos desenhos da escola observei como a escola era
representada (como uma casa ou pavilhão ou de outra forma), se existiam
elementos que caracterizam uma escola, se a figura da professora foi representada
e qual destaque ela possuía, como era representada a figura da criança na escola e
em que situação. No desenho sobre negros e não-negros foram observados os
seguintes aspectos: se conseguiu desenhar características étnicas, como uniu negro
e não-negro na folha (sexos opostos, demonstrando amizade, em conflito), se havia
demonstração de igualdade entre as duas figuras (forma de destaque das figuras,
traçado, tamanho), utilização de elementos externos que unissem ou separassem as
figuras (separação com um traço vertical na folha, colocação de uma casa para
separar as figuras), como denominou as figuras (de forma adequada, invertendo as
denominações, não denominou).
54
Na análise das entrevistas, sistematizei tópicos para organizar as falas das
crianças, inicialmente separadas em aspectos comuns e aspectos peculiares.
Para análise da infância, observei os seguintes aspectos: definição de ser
criança e ser adulto, diferença entre adultos e crianças, quais não consideravam
haver diferença, positividade de ser criança, negatividade de ser criança, formas de
castigos e punições impostas às crianças, justificativas para os castigos e punições,
quantas não justificam os castigos e punições, outras formas de comunicar às
crianças seus erros, o que mudariam em sua vida e porque, se diferença entre
criança pobre e rica e qual.
Para análise da família, observei os seguintes aspectos: como definiram
família, que componentes constituíam a família, quem representa a autoridade na
família e em casa, quem era o componente responsável pela educação das
crianças, quais componentes da família trabalham fora, escolaridade da família, qual
definição possuíam sobre trabalho, que componentes participavam da arrumação da
casa, se consideravam a arrumação da casa um trabalho e quem era responsável
por ela, quais as condições da casa, qual o trabalho da mãe, do pai ou do
responsável pela criança.
Para análise da escola utilizei os seguintes aspectos: definição de escola,
positividade e negatividade na escola, o que aprende na escola e qual a sua relação
com sua vida, qual a importância da escola, que atividades realiza na escola,
diferença entre escola de rico e pobre, perspectiva de profissão para o futuro.
Para a análise da descrição das filmagens da atividade lúdica utilizei os
seguintes aspectos: qual boneco/a considerou mais bonito/a, como organizou
livremente os bonecos, como organizou quando solicitado que formasse famílias,
qual a ocupação dos bonecos, se havia diferença entre negro e não-negro e como
55
demonstraria isso, que boneco/a mandava mais, como era exercida a autoridade
pelos adultos, de qual boneco/a teria medo, representação de uma atividade escolar,
organizaria os bonecos em pobres e ricos, representação de uma situação que
evidencie a característica sócio-econômica.
A seguir, realizei a categorização, que consistiu em agrupar dados,
considerando a parte comum existente entre eles. Nesta pesquisa optei por
categorias temáticas: infância, família, escola, raça/etnia, seguindo os critérios
próprios da análise do conteúdo, ou seja, a validade, homogeneidade, exclusividade
e objetividade que precisam ser construídos ao longo da análise.
A descrição, numa abordagem qualitativa, exigiu a elaboração de um texto-
síntese que expressou o conjunto de significados presentes nas diversas unidades
de análise. Os meninos e as meninas foram analisados e descritos como grupo, e
foram destacados, quando pertinentes, aspectos relacionados ao gênero e à
raça/etnia, com vistas a dar visibilidade à singularidade dos sujeitos sempre que isto
podia enriquecer a análise.
Para a compreensão mais aprofundada das representações expressas nas
descrições realizei a interpretação dos dados relacionando-os com a fundamentação
teórica explicitada neste trabalho. Além disto, dialoguei com os resultados de
estudos realizados sobre esses temas. No processo de triangulação, mencionado
anteriormente, ocorreu a comparação de significados, cotejando as diferentes
perspectivas dos diversos sujeitos, procedendo ao diálogo entre os estudos e as
vivências das crianças, sujeitos desta pesquisa, o que permitiu relativizar minhas
próprias concepções e admitir a possibilidade de interpretações distintas.
56
4 AS REPRESENTAÇÕES DAS CRIANÇAS
Neste capitulo serão apresentadas as representações expressas pelas crianças
sobre as seguintes temáticas: infância, família, escola, raça/etnia.
4.1 Infância
Como sustentei anteriormente, tenho como pressuposto que a infância não pode
ser reduzida a uma fase biológica da vida, mas envolve uma construção cultural e
histórica e, portanto, compreendo que apenas abstrações e conceitos não podem dar
conta de sua variabilidade. Segundo Marisa Lajolo (1997), as palavras infância, infante
e demais cognatos, em sua origem latina, recobrem um campo semântico estreitamente
ligado à idéia de ausência de fala. Construiu-se a partir dos prefixos e radicais
lingüísticos que compõem a palavra: in é um prefixo que indica negação; fonte é
particípio presente do verbo latino fare que significa falar, dizer. Para tentar superar
57
essa lógica da ausência de fala, busquei descobrir o que significa a infância para as
crianças, sujeitos desta pesquisa, a partir de suas vivências e de seu cotidiano.
As vinte e quatro crianças realizaram o desenho do auto-retrato mostrando
satisfação, das quais dezenove localizaram sua figura bem no centro da folha,
ocupando quase todo o espaço, indicando todas as partes do corpo e todos os
elementos do rosto. Quinze crianças representaram-se com um sorriso. Expressaram
tranqüilidade ao se retratarem e ao comentarem seus desenhos, dos quais sete foram
realizados com esmero.
Observei, mediante a análise dos desenhos, das entrevistas e das filmagens,
que as crianças perceberam que uma diferença entre o mundo infantil e o mundo
adulto. Com exceção de uma, as crianças definiram o ser criança pelo brincar. Onze
dessas crianças acrescentaram a participação na arrumação da casa, sete o estudar,
seis a falta de autonomia, três a pouca estatura e/ou pouca idade e duas os cuidados
que necessitam. Para alguns sujeitos, o tempo do brinquedo e o tempo da escola, ainda
marcam o lugar da infância.
A criança que não definiu o ser criança pelo brincar, o fez pelas modalidades do
brincar: “A diferença entre as crianças e os adultos, é que as primeiras brincam com
objetos e os outros não, as brincadeira de adulto é contar piada e rir quando assistem
filmes engraçados”. Para esta menina, criança é um ser que nasce querendo fazer o
que as outras pessoas com mais idade já fazem.
Uma menina complementou sua definição, dizendo que ser criança é aprender a
ser amada: “Eu amo a minha mãe e minhas irmãs e todas as pessoas que moram na
minha casa me amam”.
58
Outra menina caracterizou o ser criança pelo prazer: “Eu gosto também, quando
está bem de dia, de tarde, quando tem sol forte e eu vou com a minha irmã para a
pracinha”.
As crianças também expressaram o desejo de estar com outras crianças:
“Crianças gostam de visitar outras crianças”.
Todas informaram que participam da arrumação da casa, porém não consideram
que esta atividade é um trabalho, ma uma obrigação e ajuda aos adultos, pois, segundo
elas, sua realização não cansa. Uma menina comentou: “As crianças têm direitos: ir a
escola e ajudar a mãe em casa”.
Outra menina explicou que quando sai de casa, deixa seu quarto em ordem.
Segundo outra menina, as crianças têm que obedecer aos adultos, pois não
escolha.
Um menino complementa: “O brincar acontece após (as crianças) realizarem as
tarefas domésticas”.
Neste grupo de crianças, constatei que nenhuma realiza atividade remunerada
em casa e ou na rua.
Nas palavras de José de Souza Martins (1993, p. 14), a criança no Brasil está
vivendo um tempo sem infância, “o tempo de ser criança está sendo ocupado
amplamente pelo tempo do adulto, da exploração, da violência”. No entanto esta
situação não se evidencia nesta pesquisa. Esses resultados, ao contrário são
semelhantes aos encontrados na pesquisa realizada por Patrícia Cava (1997), com
crianças entre 10 e 12 anos, de classes populares, que conclui que entre “louças e
roupas”, entre “vendas e cuidados com as crianças”, o brincar, o ir a escola ainda
marcam o lugar da infância na vida destas crianças.
59
Sobre o trabalho e a infância, Betina Hillesheim (2001) constatou que, para
meninos e meninas de classes populares, estas esferas não são incompatíveis, sendo
que o trabalho marca espaços e tempos de suas vidas: tempo de trabalhar, de estudar,
de brincar. O trabalho é incorporado à vida das crianças, como prática educativa.
Verificou que as crianças trazem a idéia de compatibilização entre trabalho e infância,
na qual o trabalho aparece como elemento importante para sua formação. Em
consonância com esses significados, nesta pesquisa, as crianças percebem como
ajuda aos adultos a sua participação na arrumação da casa, como uma forma de
colaboração à família à qual pertencem, sendo este um elemento importante para sua
educação.
A esse respeito, Esmeralda B. B. de Moura (2000), em estudo sobre crianças
operárias do início do século XX, na cidade de São Paulo, explica que o trabalho não
eliminava o lado lúdico da infância e da adolescência, pois eram freqüentes
brincadeiras das crianças e dos adolescentes no ambiente de trabalho; no entanto, o
emprego indiscriminado desses jovens em funções para as quais não estavam
preparados envolvia riscos e, o raro, aconteciam acidentes graves e fatais.
Diferentemente do que apareceu nesta pesquisa, o envolvimento em atividades
domésticas constitui uma forma de aprendizagem e aproxima o mundo infantil do adulto
através do trabalho. Nenhuma criança reclamou ou mostrou desprazer pela realização
dessas atividades, pelo contrário sentiam-se valorizadas por poderem contribuir.
Quanto ao trabalho infantil, o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF, 1997) relaciona sete tipos principais de trabalho infantil: serviços domésticos;
trabalho escravo e trabalho forçado; exploração sexual com fins comerciais; trabalho
em indústrias e lavoura; trabalho de rua; trabalho para a família; trabalho das meninas.
60
Na maior parte das vezes, as crianças trabalham devido a três fatores básicos: a
exploração da pobreza, a carência da educação e as expectativas da tradição. As
condições nas quais as crianças realizam trabalhos são muito variadas, podendo ser
registradas ao longo de uma linha que inclui desde o trabalho benéfico, que contribui
para o crescimento da criança, sem atrapalhar sua educação, lazer ou descanso, até
aquele trabalho destrutivo ou que implica exploração. Entre estes dois extremos,
encontra-se uma imensa gama de atividades, que podem ou não interferir
negativamente no desenvolvimento da criança.
Por sua vez, Tânia Dauster (1992) salienta que o trabalho infantil não se explica
somente através de uma instância econômica. Aliás, este poderia ser interpretado como
uma escolha e decisão, sendo entendido, até determinado ponto, como uma orientação
natural dos pais. Em seu estudo, em uma favela carioca, constatou que o trabalho
precoce é regra constituindo-se em um princípio de socialização. Dessa maneira, para
a autora, o trabalho infantil é representado, pelas camadas populares, como natural,
sendo que a necessidade é definida como reciprocidade e valor para organização
familiar. Aos pais caberia suprir o alimento e moradia, aos filhos caberia trabalhar ou
“ajudar”, como forma de retribuição. Esta visão sobre o trabalho infantil permite
entendê-lo de uma outra forma, que não pela opressão e exploração às quais ele é
geralmente associado.
Assemelha-se aos significados descritos por Nara Bernardes (1989) sobre
trabalho doméstico de meninas e meninos da periferia de Porto Alegre, segundo as
quais é entendido como dever das crianças e ajuda para os adultos. A pesquisa
apontou a inserção de todos os meninos e meninas nas tarefas domésticas, de forma
rotineira ou, em alguns casos, mais ou menos eventual. Os sentimentos explicitados a
61
respeito destas tarefas foram tanto positivos (forma de ocupar o tempo e evitar o tédio),
como de desprazer (o trabalho é visto como cansativo, monótono e limitando o fazer
lúdico). Os meninos costumam resistir mais à sua execução, sendo que as meninas
assumem com mais facilidade a obrigação de fazê-lo. Além disto, a associação entre
tarefas domésticas e trabalho é ambígua, sendo que, para muitos, a mulher que
trabalha em casa não trabalha. De modo similar, Laura S. Duque-Arrazola (1997)
mostra que o trabalho doméstico é entendido como obrigação e, portanto, não conta
como trabalho.
Nesta pesquisa, dezenove crianças relataram que se ocupam com a arrumação
da casa: passar o pano no chão, lavar o banheiro, varrer a casa, arrumar as camas,
lavar a louça, tirar o pó, lavar a roupa. Tanto meninas como meninos dizem realizar as
mesmas tarefas, no entanto, a fala de um menino explicita como acontece a distinção
de gênero: “Quem trabalha em casa sou eu e o meu irmão, juntamos o lixo e
limpamos o pátio. As minhas irmãs preparam os alimentos e realizam a arrumação da
casa”. Somente uma menina coloca que os guris trabalham tanto quanto as gurias,
porém quem manda nas crianças é o irmão mais velho. Algumas falas de meninos,
também deram conta a questão da divisão do trabalho considerando o gênero: “Lá em
casa quem trabalha é a minha irmã, ela tem 11 anos, o trabalho dela é lavar a louça,
limpar a casa, passar o pano no chão. Eu lavo a louça quando a minha irmã não está
em casa. Quem manda em casa é a minha mãe, ela manda nas crianças”. Sobre a
divisão do trabalho no universo doméstico, Zahidé Machado Neto (1980, p. 678)
enfatiza que “o critério sexo muito raramente é alterado de modo a fugir dos
estereótipos classificatórios dos ‘trabalhos de homem’ e ‘trabalho de mulher’ ”.
62
Discutindo sobre sexuação do doméstico e o trabalho cotidiano das crianças e
adolescentes, Laura Duque-Arrazola (1997, p.368), em uma pesquisa com meninos e
meninas de bairros populares em Recife, argumenta:
(...) a partir dos 5 anos, o cotidiano doméstico marca para eles e elas
uma nova temporalidade sexuada, não cronológica, mas de práticas-
tempos-responsabilidades-liberdades que significam, para meninos e
meninas, diferenciações cada vez mais reveladoras da natural
desigualdade’ entre homens e mulheres e seus poderes diferenciados.
Concluiu que, em especial as atividades de lazer das meninas são empobrecidas
devido as muitas tarefas a realizar, ao reduzido tempo destinado ao lazer e aos
estreitos limites onde podem circular que são os espaços de suas próprias casas ou
das vizinhas.
Jane Felipe (2000) lembra que Rousseau, Michelet e Froebel defendiam uma
educação diferenciada, de acordo com o sexo. Uma das justificativas para as
diferenças entre os sexos e as desigualdades entre homens e mulheres era o instinto. A
idéia de uma essência feminina era utilizada para impor às mulheres e meninas um
aprisionamento à sua condição de futuras mães ou donas-de-casa, na medida em que
não haveria felicidade fora do casamento e da família. Embora, atualmente, grande
parte das mulheres exerça uma atividade profissional fora de casa, o trabalho
doméstico ainda é considerado sua atribuição. Como relata uma menina: “Meu pai e
minha mãe trabalham fora, aqui em casa ela faz comida e arruma a casa, fora de casa
faz faxina”. Esta mesma menina respondeu que como perspectiva de profissão para o
futuro ela deseja “arrumar” a casa dos outros. Todas as crianças, independente do
gênero, quando se referem à arrumação da casa, dirigem esta ajuda para a mãe, com
expressões do tipo: “limpo a casa para a minha mãe” ou “ajudo a minha mãe em casa”.
63
Conforme a pesquisa de Bernardes et al (1995), as crianças de classes
populares percebem o trabalho remunerado da mulher como uma colaboração prestada
ao homem, em função de este ser o principal provedor da casa. O sentido da “ajuda”,
fortemente marcado, desqualifica o trabalho infantil e o trabalho feminino. Do mesmo
modo, as crianças deste estudo, embora participem da arrumação da casa, não se
vêem como trabalhadores iguais aos adultos, mas como alguém que está “ajudando”.
Concordo com Dauster (1992) quando afirma que a condição de trabalhador
configura a construção social da realidade, assim como a identidade das crianças de
classes populares.
Quanto à idade em que as crianças e os adolescentes iniciaram as atividades do
trabalho doméstico, na pesquisa realizada por Hillesheim (2001), as respostas variaram
de 5 a 11 anos, sendo que na fala de uma menina apareceu a idéia de algo com que a
criança vai se habituando desde cedo, no convívio com a mãe. No entanto, as falas das
crianças também revelaram a incorporação de uma concepção moderna e hegemônica
de infância, ou seja, de que crianças não devem trabalhar. Embora não seja esta a
realidade vivida pelas crianças da pesquisa percebo que esses valores da sociedade
moderna se fazem presentes em seu meio, conforme ilustra a fala de um menino: “As
crianças não trabalham, mas limpam a casa”. Ou de uma menina: “Adulto trabalha,
criança não trabalha, mas varre a casa, arruma a casa, mas não fora de casa”.
Somente um menino assinalou o aspecto da cooperação, um trabalho em que
cada um faz a sua parte; talvez, não por acaso, esta família seja chefiada por mulher,
sem a presença do pai na criação dos filhos. A esse respeito, Maria Luísa Heilborn
(1997) apontou a ajuda implicada nas relações familiares, nas classes populares, pelo
princípio da reciprocidade. Nessa organização, as crianças são chamadas a contribuir
64
com algum desempenho, o que contrasta com outros padrões de relacionamento
familiar, sobretudo os que possuem uma representação da infância comprometida com
a idéia de uma etapa particularmente exigente de atenção e prerrogativas. Assim,
conforme Lúcia Rabello de Castro (1996), a criança é excluída de atividades de
relevância social como o trabalho. Este ideal, representado pela família burguesa,
ênfase a valores como ordem, respeito e afeto mútuo, e naturaliza certas práticas
que definiriam a infância, como por exemplo, ir para escola, brincar, não ter
responsabilidades, morar com a família.
Uma das meninas abordou um outro aspecto em relação ao trabalho infantil:
o cuidado com os irmãos menores. Sua família é composta pela mãe e sete filhos, a
ocupação da mãe é descrita como “lavar a louça e fazer um monte de coisas na casa
de outra pessoa”. Esta menina de oito anos relatou, que, após a saída da mãe para o
trabalho, ela realizava as atividades de arrumação da casa e acrescentou: “Eu queria
muito ser gente grande e cuidar das crianças e dos bebês, porque eles são lindos.
em casa tem um bebê, dou mamadeira, troco as fraldas, dou comida e brinco com ele,
faço ‘cosquinha’. Depois do almoço, quando o bebê dorme posso brincar, de noite vejo
a novela”. Mesmo que ela tenha o compromisso dos cuidados com o bebê, ainda
acredita que é preciso ser “gente grande” para assumir tal responsabilidade.
Para as crianças deste estudo, o trabalho remunerado é um valor a ser
conquistado, como expressou a fala de um menino: “Os adultos são mais inteligentes,
trabalham e ganham dinheiro. Nenhuma criança trabalha fora de casa”. Neste contexto,
inteligência não deve ser entendida simplesmente como uma habilidade ou elogio, mas
como a capacidade de gerar sustento para sua família, o que garante proteção e
permanência juntos. “Ganhar dinheiro” assume um significado de responsabilidade pela
65
sobrevivência dos que estão próximos e, talvez, a afirmação “nenhuma criança trabalha
fora de casa”, mostre que, na sua opinião, as crianças ainda não estão capacitadas
para tanto.
As crianças definem o “ser adulto” pelo trabalhar fora para ganhar dinheiro, pelos
conhecimentos que possui, pela autonomia e pela possibilidade de casar. Todas
concordam que quem manda são os adultos. Segundo uma menina, os adultos
conversam entre si, estabelecem combinações e isto se justifica porque são mais
velhos que as crianças.
Sobre o trabalho exercido pelos adultos, uma menina comentou “As crianças não
precisam se sacrificar tanto como nossos pais se sacrificam para botar comida para
dentro de casa, eles se sacrificam mais que a gente”.
Para as crianças desta pesquisa, a vida de adulto é ser pai, ser mãe e cuidar dos
filhos. Como fica claro nesta fala: “Meu pai traz um monte de coisas para nós, pão, leite,
arroz, feijão, para nós comermos”. Adulto é aquele que sustenta a família e a casa e
exerce a autoridade, determinando o que deve ser feito.
Mas há sempre uma forma de exceção, como mostrou um menino em seu relato:
“Os adultos não mandam nas crianças, as crianças se governam, meu irmão mais velho
mandou meu pai embora”. Neste caso, ao sair da casa, o pai perdeu o poder e sua
autoridade foi substituída pela do filho mais velho.
Apenas três crianças consideraram que não diferença entre ser adulto ou ser
criança, a não ser pelo fato que os primeiros podem realizar coisas que as crianças
ainda não podem. A igualdade refere-se a que ambos possuem direitos e obrigações
determinadas pela idade.
66
Sobre as características das crianças ricas, os sujeitos da pesquisa colocaram
que elas possuem muitos brinquedos, moram em casa e permanecem dentro delas,
não precisam pedir esmolas na sinaleira porque tem família, um pai, uma mãe e irmãos.
Quanto às condições das crianças pobres assinalaram que elas não têm casa, não têm
objetos, moram embaixo das pontes, dos túneis, na rua. Crianças que pedem esmolas
na sinaleira são pobres e precisam pedir esmolas porque os pais morreram, segundo
manifestação de quatro crianças. Uma menina destacou que é preciso cuidar das
crianças pobres, senão elas morrem de fome, pois a criança rica não dá comida para as
pobres.
Três crianças afirmaram não haver diferenças entre crianças pobres e ricas,
porque todas são crianças. Segundo suas palavras: “Ambas são crianças, o que faz
diferença é seu nível socioeconômico, pois a criança pobre não tem dinheiro para
comprar o mínimo que necessita para viver. Não diferenças entre as crianças ricas
ou pobres, mas as vidas não são iguais, uma é mais pobre e a outra é mais rica. A
diferença entre as crianças ricas e as crianças pobres é o valor das roupas que usam,
pois ambas podem realizar as mesmas coisas”.
Três crianças não responderam se há diferenças entre crianças ricas e pobres.
Para treze crianças, a positividade de ser criança é a possibilidade de brincar,
para duas, é a possibilidade de estudar, para quatro ambas estão associadas. Duas
colocam como positivo o passear com a família e três, a participação na arrumação da
casa.
Para doze crianças, a negatividade de ser criança é a punição física dos adultos,
seis crianças não justificam a punição pela conduta. Para uma menina, bater nas
crianças não é correto, deveriam conversar e não falar palavrões para os filhos. Um
67
menino afirmou que apenas a punição verbal seria suficiente, pois não considera
correto agredir as crianças fisicamente. Enfatizou que quando for pai não vai bater em
seu filho, vai cuidar dele e dar carinho. Na opinião de uma menina, adultos que são
bonzinhos e outros não, os adultos que são maus deveriam tentar mudar o seu
comportamento, valorizando a criança que vive na casa deles: “Quando a pessoa
grande xinga a pessoa pequena, antes devia pensar em tudo que fez desde o começo
da história para aquela criança pequena até o final e deveria pedir desculpas, com outra
criança deveria fazer a mesma coisa, não fazer coisas ruins e tentar mudar o passado
dele e fazer coisas boas para as crianças”.
Para Bernardes (1989) a imagem que as crianças possuem sobre o ser criança
está, de certa forma, identificada com o ser adulto, caracterizando-se de duas formas:
positivamente, a competência e capacidade nas esferas do lúdico e do amor;
negativamente, há incompletude em domínios relevantes do mundo do adulto.
Durante as filmagens, ao representar como os adultos exercem sua autoridade,
todas as oito crianças o demonstraram através da punição física. Uma menina
justificou: “As crianças devem ser mandadas pelos adultos, pois devem ser educadas.
Quando a criança não obedece à mãe fica braba, coloca de castigo ou bate. Quando a
criança é colocada sentada, sem ver televisão e sai do castigo, a mãe a coloca no
banheiro e tranca a porta. Quando a criança apanha não deve chorar, pois isso deixa a
mãe mais braba. Quando a gente apanha dói e a gente aprende que tem de obedecer a
todos os adultos da casa. Quatro crianças consideraram importante conversar sobre
seus erros, no entanto, somente dois meninos admitiram que quando forem adultos não
aplicarão punições físicas nas crianças”.
68
Para outra menina, maltratar as crianças é algo que os adultos não deveriam
fazer, pois parecem uns “bichos”, na sua opinião “os adultos vêem as crianças na rua e
não fazem nada, ficam olhando, falam e não fazem nada”, referindo-se às
crianças que se encontram em situação de rua.
Para essas oito crianças, a punição física é uma forma de educar, mas elas não
a consideram a mais adequada, pois seria mais conveniente conversar e, segundo uma
menina, dizer: “Me obedece porque eu sou mais velho”.
Sônia M. G. Souza (2001), em pesquisa sobre os significados de infância e
educação de pais que cometeram violência física contra os filhos cujas idades eram de
zero a doze anos, residentes em Goiânia (GO), concluiu que, de uma forma geral, a
violência de pais contra filhos expressa a ausência de um modelo democrático, tanto no
interior da família quanto fora dela. Segundo a autora, não é possível pensar em
relações harmônicas e iguais dentro da família, enquanto a sociedade valoriza os
aspectos hierárquicos e desiguais entre as pessoas. É importante observar que os pais
dificilmente assumem que agiram de forma violenta com os filhos. Justificam sua ação
como defesa ou pela convicção de que esse é o modelo correto de educação, cabendo-
lhes, como pais, disciplinar os filhos.
Esta maneira de pensar, de alguma forma foi assimilada pelas crianças, pois
três delas justificaram que a punição é conseqüência da conduta. Uma menina colocou
que os adultos agridem as crianças porque elas incomodam muito, as crianças maiores
batem nas menores e os adultos batem em ambas. Um menino explica os motivos do
castigo que recebeu: “eu apanho porque faço bagunça, os adultos também se agridem,
mas não sei os motivos”. Outro generaliza: “têm crianças que teimam muito”. Uma
menina compara uma vizinha que agride fisicamente suas filhas sem motivo, enquanto
69
sua mãe apenas puxa as orelhas ou bate com o chinelo, justificando: “mas quando
estamos errados, quem faz coisa errada merece apanhar”.
Contestando as justificativas para a punição física, Souza (2001) ressalta que,
nas últimas décadas, alguns países como a Suécia em 1979, a Finlândia em 1983, a
Dinamarca em 1985, a Noruega em 1987, a Austrália em 1989 e o Chipre em1994
criaram uma legislação que proíbe o disciplinamento corporal. O autor considera que
experiências como estas e o exemplo da cultura indígena deveriam inspirar a busca de
um novo modelo para a educação das crianças, um modelo baseado no amor e no
respeito.
Maria Amélia Azevedo e Viviane Guerra (1989, p. 35) discutem as conexões
entre violência estrutural e violência interpessoal:
A violência estrutural, inerente ao modo de produção das sociedades
desiguais em geral e da sociedade capitalista em particular, não é a
única forma de ‘fabricar crianças vítimas’. A seu lado, e por vezes, mas
não necessariamente em interseção com ela, coexiste a violência
inerente às relações interpessoais adulto-criança.
Está se tratando com dois tipos de relações. Por um lado, as de classe social,
decorrentes do modo de produção capitalista, cuja natureza é contraditória. Por outro
lado, as relações entre diferentes que gerações não participam deste antagonismo, pois
nem toda dominação tem este caráter. Se a violência é inerente a um determinado tipo
de relação, isto significa que ela é necessária e não contingente. No primeiro caso, a
violência é exercida compulsória e coletivamente. No segundo, ela é contingente,
porque nem todos os adultos a praticam contra crianças, logo não pode ser inerente a
esta modalidade de relação.
70
É importante lembrar, segundo Heleieth Saffioti (1997), que a categoria adulto
não domina de forma coletiva a categoria social criança, o que revela profundas
diferenças entre as relações sociais. Na relação de classe, a desigualdade é
permanente, ao passo que na relação adulto/criança ela é apenas temporária, como
também se inverte. Efetivamente, via de regra, o adulto tem autoridade sobre a criança,
mas quando ele envelhece e se torna seu dependente físico, psíquica ou
economicamente, passa a obedecer à ex-criança, agora um adulto.
Assim, uma troca de papéis, em virtude da troca de posições, a serem
desempenhadas pelas distintas gerações. Mais do que isso, a autoridade do adulto
sobre a criança e sobre o idoso pode ser exercida com muito carinho e sem nenhuma
violência. Portanto, esta não é inerente a essa modalidade de relação social. Entre as
classes, porém, a violência é necessária, seja para preservar a hegemonia de uma,
seja para subverter o ordenamento social, estabelecendo-se um novo status quo
(SAFFIOTI,1997).
Não se pode estabelecer como único o referencial das classes sociais para
analisar a violência perpetuada por adultos contra as crianças, sem levar em conta as
relações de gênero e étnico-raciais. O gênero e a raça-etnia são tão fundantes das
relações sociais quanto a classe. Francis Imbert (2001) enfatiza que, sobre a fragilidade
natural das crianças, estabelece-se uma naturalização de desigualdades estritamente
sócio-históricas, mediante o paradigma adulto/criança, que forma as relações
ideológicas ocultas a historicidade.
As relações intergeracionais são relações assimétricas, no entanto, o conceito de
assimetria não revela nada além da diferença, não determina a natureza da relação. As
classes sociais condicionam muitas dimensões da vida dos indivíduos, porém deixam
71
lugar para a atuação do gênero e da raça/etnia. Segundo Saffioti (1997), admite-se
o isolamento dessas três contradições fundamentais da sociedade brasileira
exclusivamente para fins analíticos e dentro de limites, uma vez que, no plano histórico
elas se realizam de forma imbricada.
Neste grupo, entre os aspectos negativos de ser criança quatro crianças
consideraram um aspecto negativo de ser criança as brigas na escola. Um menino
contou, por exemplo, que levou um soco no rosto quando estava na escola. Quatro a
impossibilidade devido a pouca idade associadas às brigas em casa.
Sobre os significados de estudar um menino comentou: “é fazer o que a
professora manda”. É interessante mencionar a pesquisa de Hilda Maria R. Alevato
(1999), que mostra como às imagens dos professores da rede pública sobre os alunos,
construída com base em referenciais míticos de um aluno ideal, silencioso, obediente.
De modo semelhante, Eloísa Helena Costa e Carlos Minayo Gomez (1999, p. 161)
argumentam:
As instituições educativas sempre foram pensadas como instâncias
formadoras, onde os papéis estão bem definidos. A escola é o lugar da
competência, da ordem, da disciplina, não do conflito, não da
resistência, não da contradição.
Nesta pesquisa as crianças revelaram que, dentro da escola,
comportamentos autoritários, repressores, agressivos, como por exemplo, na seguinte
fala de uma menina: “tem que fazer o tema senão a professora xinga”. Outras crianças
relataram que quando a professora considera a conversa entre os/as alunos/as
excessiva, ela os afasta trocando de lugar, quando insistem em não obedecer são
encaminhados à direção e mandados para casa com bilhete para mãe. Parece implícito
que a escola espera que a mãe possa disciplinar a criança para que, então, ela retorne
72
mais obediente para a escola. Não se pode esquecer que se trata nesta pesquisa, de
crianças com idade de seis, sete e no máximo oito anos.
Sobre as impossibilidades das crianças devido à pouca idade, elas estão
relacionadas ao controle que os pais exercem sobre os lugares que as crianças devem
ou não freqüentar. Uma menina relatou que lugares para adultos, como o som
que sua mãe freqüenta e ao qual ela também gostaria de ir mas não pode, pois ainda é
pequena.
Houve três respostas diferentes, colocadas por meninas, sobre a negatividade
de ser criança: não ter com quem brincar, ficar em casa sozinha e as dificuldades em
realizar o que ainda não se sabe. Uma menina colocou como aspecto negativo de ser
criança a impossibilidade de estudar.
No que tange à negatividade, destaco as ponderações de uma menina sobre as
brigas em casa: “O meu pai, sempre na sexta-feira, sai e bebe cerveja com os amigos.
Quando ele chega em casa, as crianças têm de ir para casa da vizinha, pois o meu pai
quase arrebenta a casa inteira. Eu acho isso muito chato, pois ele sempre bate na
minha mãe. Não é certo ele bater na minha mãe e nem nas crianças, quando ele bate
deixa roxo (hematomas)”. Outro menino relatou que os irmãos brigam entre si, como
por exemplo, um irmão que bateu a cabeça da irmã na janela provocando sangramento
e deu um soco na garganta dela; diz não saber o motivo da agressão.
Para duas meninas as vivências de violência em casa são tão significativas que
elas a apontam como o aspecto que desejariam mudar em sua vida.
Sobre as possibilidades de efetuar mudanças em sua vida, dezessete crianças
declararam estar satisfeitas. Um menino explicou que ser criança é poder brincar, andar
73
a cavalo, conversar com os amigos, combinar o futebol, considerando uma perda de
tempo quando dorme, pois julga-se uma criança feliz.
Uma menina justificou: “Eu não mudaria a minha vida, porque eu acho que não
há nada fora do lugar”.
Outras quatro crianças desejariam que os adultos não mentissem mais, que não
houvesse violência contra os animais, que pudessem reformar a casa ou possuir mais
brinquedos. Um menino desejaria construir uma casa para sua família e compraria um
“monte de coisas” como um sofá, uma televisão, uma estante, uma mesa, umas
cadeiras e uma cama.
Destaco a mudança que um menino realizaria em sua vida: deseja ser adulto
para trabalhar mais, levar as crianças para brincar. Ele enfatizou: “queria ter sido adulto
desde que nasci”. A esse respeito, Jeanne Marie Gagnebin (1997, p. 99) pondera:
Se pudéssemos ter nascido adultos, isto é, em plena posse do uso
de nossa razão, então a luta da razão contra os vários preconceitos que
a ofuscam não seria tão árdua; reta filosofia e felicidade humana
cresceriam mais rapidamente e com mais liberdade.
Apesar da passagem do pensamento medieval para o pensamento da
renascença e do racionalismo, a infância continua sendo concebida como um lugar de
perdição e confusão, como o território primordial e essencial do erro, do preconceito e
da crença cega. Segundo a autora, talvez porque a “in-fância” não seja a humanidade
completa e acabada, nos revelando o que de mais verdadeiro no ser humano: a sua
incompletude.
74
4.2 Família
A família segundo o conceito de Cristina Bruschini e Sandra Ridente (1994,
p. 32), são “unidades dinâmicas de relações sociais, no interior das quais ocorre a
reprodução biológica, a produção doméstica, o consumo, a socialização e a
transmissão de valores”, sendo que no cotidiano da vida familiar surgem novas idéias,
novos hábitos, que questionam a sociedade e criam condições para sua lenta e
gradativa transformação. Entre as inúmeras funções da família estas autoras destacam:
a função produtora, que embora não tenha sido perdida ao longo do tempo, assume
novas feições e faz com que o grupo torne-se sobretudo uma unidade de produção, de
soma de rendimentos e de consumo; a função socializadora, que se expressa na
formação da personalidade dos indivíduos que nascem no grupo e nele são educados;
a função ideológica, que se caracteriza pela transmissão de hábitos, costumes, valores
e padrões de comportamento.
Nesta pesquisa, em resposta à questão “se toda criança pertence a uma família”,
os meninos e as meninas foram unânimes: todas possuem uma. O importante é
pertencer a uma família para este grupo de crianças, no entanto, reconhecem que nem
todas as famílias são iguais e que dispõem de diferentes condições para prover as
necessidades das crianças. Sarti (2003, p. 52) lembra que “A família não é apenas o elo
afetivo mais forte dos pobres, o núcleo de sua sobrevivência material e espiritual, o
instrumento do qual viabilizam seu modo de vida, mas é o próprio substrato de sua
identidade social”, referindo-se à sua identidade de ser social como referência simbólica
que estrutura sua explicação do mundo.
75
Segundo Cenise Monte Vicente (2000), o bebê ao ser concebido, pertence a
uma rede familiar, que compreende o pai e a mãe e seus respectivos grupos familiares.
De acordo com a cultura em que está inserido, também está estabelecido quem são
os outros e o universo de escolhas a que estará sujeito. Não se trata de naturalizar o
processo, uma vez que, nas sociedades humanas variam as formas de parentesco,
casamento, residência, vida doméstica. A definição de parentesco, defendida pela
antropologia, segundo Eunice Durham (1983, p. 22), é a seguinte: “estruturas formais
que consistem de arranjos e combinações de três relações básicas: as de
descendência, de consangüinidade e de afinidades”. A criança inicia sua história
inserida na história de sua família.
Este grupo de crianças definiu a família como o momento em que os pais casam,
adquirem uma casa e têm filhos, sendo que a principal função da vida do adulto é ser
pai e mãe, cuidar dos filhos. Para estas crianças, família significa morar e trabalhar
juntos, as pessoas que realizam atividades juntas, numa relação que se constrói com
muito amor, tendo como base a ajuda mútua, numa expressão de carinho nos
momentos difíceis. A família também se define pelos cuidados com as crianças.
Na pesquisa de Simone Conceição da Silveira (2000), com trinta meninos
institucionalizados que estiveram em situação de risco, com idades entre 7 e 16 anos,
na cidade de Porto Alegre, a partir da solicitação que individualmente desenhassem sua
família, a autora constatou que na maior parte das representações apareceu à imagem
da família tradicional, ou seja, o modelo de família nuclear. Esta configuração apareceu
em 76% das representações gráficas da amostra. Ocorreu, também, a predominância
do baixo número de filhos presentes em cada família, resultado que a autora considera
contraditório no contexto da “pobreza”, onde, geralmente, as famílias são bastante
76
numerosas. A autora constatou, então, a presença da estrutura familiar desejada e
idealizada por estas crianças, que apesar de passarem por uma ruptura (temporária ou
definitiva) dos vínculos familiares, idealizam e valorizam o que gostariam de ter.
Nesta pesquisa encontramos dezesseis famílias constituídas por pai, mãe e
filhos, sete por mães e filhos, e um menino órfão de mãe que mora com a avó materna.
Diferentemente do que apareceu na pesquisa de Silveira (2002), a representação da
família aproximou-se de sua vivência, pois dezessete crianças desenharam suas
famílias com a presença da figura do pai e da mãe acompanhados de seus filhos, um
menino desenhou o padrasto e colocou a indicação pai, mas durante a entrevista se
referiu a ele como padrasto, neste caso chamado como “tio”. Mesmo quando aparecem
as figuras do pai e da mãe, encontramos em seis desenhos os tios, as tias, os primos,
as primas, as avós e os cunhados, sendo que neste caso não consideraram o critério
“coabitação” para definir a família. Em dois desenhos não aparecem as figuras do pai e
da mãe, como foi o caso de uma menina que desenhou a avó materna, o avô materno,
uma tia e um tio, não aparecendo ela e a mãe.
Quanto ao número de filhos nas famílias, encontramos o seguinte resultado: uma
família com um único filho; nove famílias com dois filhos; quatro com três filhos; seis
com quatro filhos; duas com seis filhos, uma com sete e uma com nove filhos. O
número de filhos e/ou filhas também foi mantido no desenho, mesmo quando mais de
três, com exceção de quatro, como foi o caso do menino que desenhou somente o pai,
a si mesmo e ao irmão, não representando a mãe e as irmãs, um menino e uma menina
não desenharam nenhuma das crianças e outra menina que alegou serem muitas e de
quatro irmãs só representou duas.
77
Os limites ultrapassam a família nuclear, com o reconhecimento que outras
pessoas também fazem parte da família, pois moram juntas ou se ajudam no cuidado
das crianças, conforme explicitado neste relato: “Tem famílias que o pai e a mãe
trabalham fora e as crianças não tem com quem ficar, às vezes um parente é pago
(para cuidar das crianças). Quando uma criança passa muito tempo com outra pessoa
passa a pensar que aquela é a sua mãe ou seu pai. Os pais de verdade não têm muito
tempo para ficar com os filhos, eu sei porque meu pai e minha mãe não têm muito
tempo para ficar comigo, ficam mais de noite. Meus pais não ficam muito tempo comigo
porque eles têm muitas contas para pagar e sem trabalho eles não têm como pagar.
Meu pai é pedreiro e minha mãe faxineira”.
A família nas classes populares é um sistema de obrigações morais,
fundamentado no “princípio de reciprocidade” (Marcel Mauss, 1974), segundo o qual a
família significa aqueles em que se pode confiar e conseqüentemente ajudar e ser
ajudado. Nesta pesquisa foi constatado que em famílias desfeitas, por morte ou
separação, uma reorganização dos papéis, na qual sempre temos presente alguém
que as crianças chamam de “pai” e de “mãe”, mesmo que não existam os laços de
parentesco. Assim como mesmo aqueles homens que não contribuem financeiramente,
não são considerados importantes, pois representam a autoridade masculina e estão
presentes em três dos desenhos da família, embora não estejam morando com as
crianças.
Em nosso país, devido à precariedade no atendimento público na educação
infantil, a adaptação à vida cotidiana é mediada pela família, como aparece na fala
desta menina: “Os velhos ajudam a cuidar das crianças”. Com relação à família
podemos constatar que esta se organiza como uma “rede de parentesco” (Sarti, 2000),
78
que ultrapassa os limites da casa, pois encontramos dois casos de mulheres separadas
que são amparadas pela mãe e pelo pai. situações onde várias famílias dividem o
mesmo “pátio” e, conseqüentemente, o cuidado dos filhos, suas preocupações e
dificuldades, acontecendo uma ampliação do que se entende como família. Eis o relato
de uma menina: “Minha família é o meu pai, minha mãe, meu irmão e o filho da outra
mulher que a minha mãe cuida”.
O afastamento dos filhos tem como justificativa o trabalho, os “pais de verdade”
são os que garantem o sustento familiar. Mesmo reconhecendo a importância do
trabalho, uma menina coloca: “A maioria das pessoas não trabalha, porque não
arrumam emprego. Os filhos pequenos até gostam quando os pais não trabalham, pois
podem ficar mais tempo com eles. Dos pais que trabalham são em coisas bem simples,
claro que tem os que trabalham em coisas importantes, outros em armazéns ou
como empregadas domésticas. Quando andamos na rua encontramos pessoas
desempregadas”. Outra menina também se refere ao trabalho e aponta: “Alguns adultos
não trabalham porque as pessoas não têm dinheiro para pagar eles”. Neste caso, as
pessoas se relacionam aos que possuem formas de viabilizar emprego para quem
precisa. Não trabalhar é uma circunstância que ultrapassa o desejo de quem procura o
emprego, estar desocupado não é uma opção.
Nesta pesquisa, em vinte e três famílias, o pai trabalha fora e em dezenove
famílias a mãe também. A literatura sobre os pobres urbanos demonstrou a
heterogeneidade dos moradores de periferia no que se refere a sua inserção no
mercado de trabalho; no entanto, uma uniformidade de seus baixos rendimentos e
qualificação. Os baixos rendimentos e “desqualificação” aparecem no trabalho dos pais
(pedreiros, “seguranças” em firmas, manobristas em garagem, auxiliar de fretista,
79
lixeiro), sendo que um dos pais não está trabalhando no momento, e das mães
(faxineiras, “cuidando” de crianças, atendentes de creche comunitária, auxiliar de
serviços gerais em um hospital, auxiliar de cozinha em uma escola, “separadora” de lixo
no galpão de reciclagem), sendo que cinco mães não trabalham fora de casa.
Sobre a ocupação dos pais as crianças a relacionam com a escolaridade dos
mesmos, como justifica esta menina, “minha mãe trabalha no galpão de reciclagem do
lixo e meu pai é pedreiro, acho que eles nunca estudaram”. Sobre a escolaridade dos
componentes da família, o resultado foi o seguinte: os homens apresentam-se com
escolaridade entre a 3.ª e 4.ª série do Ensino Fundamental e as mulheres entre a 2.ª e
7.ª série. Sobre a escolaridade dos pais, dez crianças não souberam informar. Uma
menina coloca que seu pai freqüentou a escola mas não sabe ler.
As crianças que informaram sobre a escolaridade dos familiares demonstraram
que este era um valor importante, como fica expresso em suas falas: “Meus tios
estudaram, não sei até que série, todos sabem ler, meu irmão estudou, A minha mãe
trabalha de lavar a louça, ela estudava quando era pequena”. Mesmo que esta
escolaridade não tenha permitido uma melhor colocação no mercado de trabalho, ela é
explicitada, como no relato de uma menina: “Meu irmão junta lixo, estudou até a 6.ª
série e minha mãe trabalha em fazer faxina, estudou até a 4.ª série”. Quando ninguém
trabalha fora na casa, uma menina argumenta que “a gente vive vivendo”, sobre quem
provem a parte financeira.
Ainda sobre o trabalho e a relação com a família, disse uma menina: “Ser chefe
de família é trabalhar e ganhar dinheiro”. A esse respeito, Sarti (2003) aponta que a
identidade masculina, na família e fora dela, associa-se diretamente ao trabalho, não
apenas nas classes populares, sendo condição de sua autonomia moral. Porém, nas
80
classes populares, a identidade de trabalhador confunde-se com a de pobre. O valor
moral atribuído ao trabalho compensa as desigualdades sociais, na medida em que é
construído dentro de outro referencial simbólico, de uma afirmação positiva “eu sou
trabalhador” e não somente o “ser pobre” que o desqualifica socialmente.
Como afirma Sarti (2003, p. 83), “A honra, entre os pobres, não estando
associada à posição social, vincula-se à virtude moral, como afirmação de si em face do
olhar dos outros, sendo o trabalho um dos instrumentos fundamentais dessa afirmação
pessoal e social”, porém não basta ser trabalhador, é necessário ter uma família. A
autora argumenta que a moral do homem trabalhador articula-se à moral do provedor,
imbricando-se para definir a autoridade masculina no sentido do trabalho à família.
Na atividade lúdica com os bonecos, uma menina descreveu a família assim: “A
mamãe faz comida, varre a casa, lava a louça. Os homens trabalham para ganhar
dinheiro. Em casa, enquanto as mulheres trabalham, os homens ficam assistindo
televisão. As crianças brincam na rua, andam de balanço e jogam vôlei”. Mesmo que
esta não seja a realidade vivida pela maioria das crianças da pesquisa, ela retrata muito
bem a forma de pensar os diferentes significados que o trabalho do homem e da mulher
assumem, levando em conta as diferenças de gênero. O papel de provedor cabe ao
homem, a organização e manutenção da casa cabem a mulher, e às crianças resta
brincar. Segundo Sarti (2003), esta concepção diferenciada do trabalho, quando
realizado por homens, mulheres ou crianças, também está presente no mercado de
trabalho, que parte da lógica familiar, na qual o homem é o trabalhador principal e
provedor, enquanto mulheres e jovens são trabalhadores secundários.
Os resultados deste estudo, assemelha-se aos resultados encontrados por
Neuza Maria de Fátima Guareschi (1991), em pesquisa sobre as representações do
81
poder e da autoridade com crianças pertencentes às camadas médias, cuja idade se
situa entre seis e sete anos, na cidade de Porto Alegre. As crianças percebem de forma
definida a distribuição dos papéis da mãe e do pai; nas atribuições do papel da mãe,
está o encargo das responsabilidades domésticas e nas atribuições do papel do pai, o
sustento econômico da família. Segundo a autora, fica evidente que através do
desempenho de papéis são delimitados os espaços de atuação do pai e da mãe: o
espaço público como o ocupado predominantemente pelos homens e o espaço privado
(doméstico) como o reservado às mulheres.
Para este grupo de crianças, o pai é percebido como o que garante o sustento
da casa, existindo uma dependência econômica da família em relação ao homem, o
que concede a ele maior poder e o que forma desde cedo, nas pessoas, a lógica da
relação entre os grupos sociais numa sociedade de classes, dominada por aqueles que
possuem o poder econômico (GUARESCHI, 1991). Sobre quem manda em casa, onze
crianças disseram ser a mãe, três o pai, e cinco o pai e a mãe em conjunto. Porém,
durante a filmagem, na questão sobre quem manda todas as crianças responderam: os
homens. No entanto, o fato de o homem ser identificado com a figura de autoridade,
não significa que a mulher seja privada de autoridade.
Como observou Sarti (2003, p. 63), “A casa é identificada com a mulher e a
família com o homem. Casa e família, como homem e mulher, constituem um par
complementar, mas hierárquico”, esta divisão permite perceber as diferentes funções da
autoridade na família. Ao homem caberia a mediação da família com o mundo externo,
responsável pela respeitabilidade familiar, à mulher cabendo a autoridade de manter a
unidade do grupo, pois é ela quem cuida de todos e organiza para que tudo esteja em
82
seu lugar. Do ponto de vista das vivências das crianças, um menino esclarece: “as
mulheres mandam mais nas crianças e os homens mandam em todos”.
Destacaria a afirmação de uma menina sobre quem manda, quando ela
respondeu: “Ninguém tem mais poder do que os outros”. A este respeito, coloca
Guacira Lopes Louro (2003), que homens e mulheres, através das mais diferentes
práticas sociais, constituem relações em que há, constantemente, negociações,
avanços, recuos, consentimentos, revoltas e alianças.
Pesquisa de Adriane Boff (1998) sobre as relações entre homens e mulheres de
classes populares, na cidade de Porto Alegre, mostra na questão da moradia, gênero e
solidão, a complexidade das relações de poder. Os freqüentadores do programa “Adeus
à solidão”, da Rádio Farroupilha de Porto Alegre, foram os sujeitos da pesquisa. Todos
procuravam através do programa um/a parceiro/a para acabar com sua solidão, mas
percebemos que não se trata somente de alguém em termos de complementaridade,
pois as uniões de homens e mulheres envolvem muitas vezes a possibilidade de
resgate do poder perdido. Quanto às mulheres, que procuram o programa, estão na
faixa de idade de 25 a 60 anos, são possuidoras de uma casa, a maioria mora com
os/as filhos/as, os/as netos/as ou a mãe, em grupos familiares que ocupam a mesma
residência. Mesmo as que declaram morar sozinhas, dividem o seu espaço com algum
parente. Por outro lado, grande parte da população masculina, com idades entre 50 e
70 anos, mora efetivamente sozinha distante da família. Os homens alugam
solitariamente algum cômodo no centro da cidade ou na periferia, e outros moram em
sítios como caseiros.
Na grande maioria dos casos de dissolução conjugal, as mulheres, segundo
informação tanto de homens como de mulheres, ficam com a casa, e os homens são
83
desalojados. Se a casa não ficar com a mulher e os filhos logo após o rompimento do
casal, tal fato pode ocorrer mais tarde pois, segundo os depoimentos, a casa é um
direito da esposa-mãe.
Nesse sentido, podemos comparar este estudo com observações feitas por
outros pesquisadores sobre grupos populares em diferentes cidades do Brasil. Por
exemplo, apesar de Sarti (2003) estar tratando de uma população paulista, feminina e
casada, é interessante lembrar seus argumentos com respeito ao projeto de casa
própria ligado à idéia de casamento. Parry Scott (1990), tendo como objeto de
investigação a questão do gênero diferenciando as representações sobre moradia,
informa que, segundo a observação em um bairro de Recife onde realizou a pesquisa, a
maioria dos homens jovens ou adultos estabelece uma “residência solitária”, ao
contrário das mulheres que, em caso de separação, ficam com os filhos e com a casa.
Parece, portanto, que os sistemas de moradia tendem a ser recortados pela
classe social e gênero. Se o rompimento conjugal leva a mulher a ficar com a casa e
com os filhos, o homem somente encontra de modo acessível, outra moradia, quando
tem irmã ou mãe com quem contar. Caso contrário, resta-lhe casar novamente ou
estabelecer residência solitária. A desvantagem masculina é de que, geralmente, o
homem fica velho e sozinho. De acordo com algumas pesquisas, a idéia do trabalho em
conjunto do casal, como justificativa para o casamento, foi combatida, visto que a
complementaridade dos papéis sexuais não é domínio exclusivo da relação marido-
mulher.
Considerando esta perspectiva, os homens que freqüentam o namoro no rádio
encontram redobrada dificuldade frente às pretendentes, com respeito à possibilidade
de um novo casamento: primeiro, porque o sustento e organização do lar de suas
84
pretendentes não dependem do homem-marido; segundo, porque na trajetória conjugal
dessas mulheres, seus ex-parceiros despontam com uma imagem de “farra” (bebida e
mulherada) e insuficiência quanto a prover um lar. Numa relação de frustração no
desempenho do papel de provedor, a teia de solidariedade ligada à filiação exclui o
marido, em favor da relação mãe-filho/a na organização doméstica. Com o passar dos
anos, a mulher no processo de envelhecimento não sofre as mesmas desvantagens
que o homem. A hierarquia de poder é assim invertida na velhice do casal; muito mais
do que o homem a mulher conta com o abrigo da casa e de seus filhos. Nesse sentido,
a casa perdura como um espaço que privilegia a mulher na velhice.
Observando de que forma as relações de poder e autoridade se modificam
durante o decorrer da vida, tomarei, como exemplo, o relato de uma menina de nove
anos, sobre como é sua família. Esta menina define a família pelo apoio nos momentos
difíceis, considerando quem a constitui a mãe, o pai, os filhos e todo o resto dos
parentes. O pai foi retirado de casa pela mãe, pois bebia e batia muito nela e nos filhos.
A mãe casou-se de novo, hoje o pai mora nos fundos do terreno em um cômodo que
divide com o filho mais velho de catorze anos. A casa do pai, nos fundos, tem tudo
separado; porém, às vezes, ele almoça com a família. Quem manda na casa é a mãe e,
segundo a menina, agora está tudo em paz. Mesmo com à figura do pai bem presente
este não exerce o papel de provedor, cabendo a autoridade a figura da mãe. Coube a
ele o lugar nos fundos da casa que um dia foi sua. Segundo Silveira (2002), a
presença ativa da mulher no cuidado da casa e dos filhos, e também no sustento da
família, conduz a uma inversão de papéis se pensarmos que vivemos em uma
sociedade ainda patriarcal que, tradicionalmente, define como função masculina a de
prover o sustento da casa.
85
Nesta pesquisa, quando perguntadas sobre que profissão homens e mulheres
podem exercer, as crianças responderam que os homens trabalhariam como
segurança, pedreiro, policial e as mulheres como cozinheiras, empregadas domésticas,
faxineiras, babás, atriz de novela. Com exceção do modelo transmitido pela mídia,
todas as profissões se relacionam com o cotidiano observado pelas crianças, onde os
homens ocupam trabalhos relacionados à proteção e construção, e as mulheres, aos
cuidados das crianças e arrumação da casa, onde os papéis exercidos em casa se
transferem para o domínio do trabalho.
Assemelham-se essas respostas sobre perspectiva de profissão para o futuro.
Sobre que profissões desejariam ter no futuro, os meninos responderam: pedreiro,
caminhoneiro (igual ao meu pai), motorista de ônibus, segurança, jogador de futebol,
policial, consertar bicicletas, fretista, motorista de escavadeira, e dois meninos ainda
não sabem. As meninas responderam: trabalhar numa creche, faxineira, médica,
enfermeira, professora, pediatra, veterinária, cantora, dançarina, e uma menina não
respondeu.
Sobre que atividades a família realiza está a arrumação da casa, conversas,
festas, as refeições, ir à pracinha, visitar os parentes, assistir televisão, passear no
parque, no zoológico, no supermercado e no centro da cidade. Também na família a
diferenciação entre o mundo adulto e o infantil, os adultos vão ao cinema e ao bar, as
crianças ficam em casa e brincam. Nas palavras de um menino: “as crianças brincam e
os adultos conversam ou de noite todo mundo se reuni para conversar sobre o que
realizaram durante o dia”.
Na realização do desenho da família, treze crianças organizaram uma fila.
Somente três crianças representaram uma situação: um parque de diversão, um
86
aniversário e uma festa de Natal. No restante, acompanhavam o desenho da família:
árvores, nuvens no céu, um sol ou somente a linha do chão. Ao se retratarem na família
sete crianças se colocaram ao lado do pai, cinco ao lado da mãe, cinco entre os irmãos,
três entre a mãe e o pai e uma ao lado da avó. Das oito crianças que não moram com o
pai, somente três o retrataram no desenho, destas uma menina que não conheceu o
pai.
Somente quatro crianças, duas meninas e dois meninos, desenharam a família
associada à figura de uma casa. Porém, nas entrevistas expressam detalhes sobre
suas moradias. Segundo suas opiniões, todos possuem uma casa grande, mas
observam “todos tem a sua cama, eu tenho um quarto meu, mas a minha avó dorme
comigo ou eu durmo junto com a minha mãe e o meu pai, meu irmão dorme em baixo e
meu irmão grande em cima do beliche”. Vê-se que é importante para estas crianças
determinar o seu espaço no restante da família.
A moradia também pode ser um símbolo de status, o material com que foram
construídas também assume importância, com observações como: “minha casa é de
material” “ou minha casa é de tijolo”. Assemelha-se ao que foi observado por Cláudia
Fonseca (2000), em pesquisa com moradores da periferia de Porto Alegre para os
quais a casa “de material”, isto é de alvenaria é um sinal de prestígio, de
“modernidade”, não existindo moradores de casa de madeira que não aspirem trocá-la
por uma casa de alvenaria.
Um menino considera sua casa grande, porque tem muitos objetos que o pai
recolhe dos locais onde trabalha, por exemplo, geladeira, armário, fogão, televisão.
Demonstram preocupação pela boa aparência e cuidados com suas melhorias, quando
comentam: “meu pai está arrumando a minha casa, para deixar ela de dois pisos,
87
minha casa é bem grande, ela demora a ser arrumada”, sendo que a casa tem dois
quartos banheiro e cozinha. Ou simplesmente respondem “minha casa é uma casa”.
Este grupo de crianças define o ser rico pelo seu poder aquisitivo e bens que
possui, como por exemplo, alimentos e dinheiro, uma casa grande, uma fazenda, várias
propriedades e pelo ter trabalho. Com relação às atitudes, definem o ser rico pelo
exibicionismo, pelo egoísmo e pela maldade com os pobres, por exemplo, não dar
dinheiro ou um pouco de comida, como fica expresso no relato desta menina, de oito
anos: “Gente rica quando a gente pede algo na casa deles, eles não dão, não dão nem
um centavinho, nem um dinheirinho para ajudar. Rico é a pessoa que não ajuda os
pobres, é egoísta, que ajuda eles mesmos e não ajuda os outros”. Segundo seus
relatos, os ricos podem comprar tudo que desejam e caracterizam o rico em oposição
ao pobre, pelo não andar na condução coletiva, pois têm possibilidade de comprar
carro, ou pelo ter tudo que uma pessoa pobre não pode ter. Por outro lado, um menino
destacou que os ricos ajudam os pobres doando dinheiro.
Em relação aos pobres, o definem pela via negativa, pelo não ter dinheiro, não
ter uma casa e não poder comprar alimentos. Sobre as atitudes os pobres são humildes
e se ajudam mutuamente, eis o relato de uma menina: “Ser pobre é não ser egoísta, os
pobres se ajudam. Quando falta água todo mundo um pouco, aonde que eu moro
todo mundo se ajuda um pouquinho, se o meu pai tiver água ele para os vizinhos do
lado. Até os vizinhos que são pobres se ajudam”. Uma menina colocou que os pobres
gastam tudo o que ganham, por isso não adquirem nada, os ricos conseguem
“poupar” seu dinheiro. Duas meninas não conseguiram responder sobre a diferença
entre ricos e pobres.
88
Quinze crianças justificaram que os pobres vivem na rua e pedem esmola
porque não arrumam empregos. Segundo Sarti (2003, p. 129), “mendigos são vistos
como os que pedem esmolas, recebem de graça sem a dignidade de dar algo em troca,
colocando-se assim no lugar de ‘pobres mesmo’. Ao contrário dos que legitimamente
recebem: no trabalho”.
Vinte crianças consideraram-se pobres. Eis algumas justificativas:
“Eu sou pobre, minha casa é pequena, sem comida, sem café da manhã, venho
para escola para comer.”
“Ser rico é ter um monte de dinheiro, acho que estou mais para pobre, pois tenho
pouco dinheiro.”
“Eu sou pobre, mas não preciso pedir dinheiro na rua porque minha mãe tem
dinheiro.”
“Se eu fosse rica eu queria ter muito dinheiro, ter uma boneca Barbie, um quarto
só meu e uma piscina de chão. Os ricos têm mais coisas que os pobres.”
Três crianças consideraram-se ricas e justificaram assim:
“Acho que estou mais para rico. Os ricos têm que ser amigos dos pobres, ajudar
os pobres a se alimentar.”
“Meu pai é rico, pois tem dois carros, uma casa e uma família.”
“Nós somos ricos porque nós trabalhamos.”
89
4.3 ESCOLA
Hannah Arendt (2003, p. 223) explica que “a essência da educação é a
natalidade, o fato de que seres nascem para o mundo”, pois nascer é estar em
processo de chegar a ser, em processo de devir, em que o nascido articula sua
identidade, do nascimento a morte, em uma cadeia de inícios, de ações e novidades,
sendo capaz de ação. A educação é, essencialmente, ação e criação de uma radical
novidade.
A autora desenvolve suas idéias sobre a natureza da condição humana e
estabelece uma distinção entre labor, trabalho e ação. O labor é uma atividade que
corresponde aos processos biológicos do corpo, por meio dele os seres humanos
produzem tudo o que necessitam para alimentar seu organismo vivo, seu corpo, ele
abarca toda a existência humana. O trabalho trata da fabricação de um ou vários
objetos, quando o objeto está terminado, ele chega ao seu término. O fim do labor é a
morte do organismo. O trabalho ao contrário, nada tem a ver com o fim da existência
humana. A diferença mais significativa é que o labor produz bens de consumo e o
trabalho cria objetos de uso e sua utilização não causa seu desaparecimento.
A ação é a atividade, através da qual revelamos nossa única e singular
identidade, por meio do discurso e da palavra, ante os demais na esfera pública,
assentada na pluralidade. Pela ação mostramos quem somos. A ação, pois, em estreita
relação com o discurso, com o poder da palavra, da linguagem, é a forma como nos
inserimos no mundo. É como um segundo nascimento, a capacidade de começar, de
90
iniciar, de colocar algo em movimento. Para privar o homem da ação, basta deixá-lo
sozinho, privá-lo de sua distinção frente aos outros homens. Privá-lo de sua liberdade,
impedindo que os homens tenham tanto vida pública como privada, negando-lhes sua
capacidade de ação (ARENDT, 2001).
O processo educativo tem sido entendido como um processo de fabricação, ou
seja, como trabalho em lugar de ação. A educação como fabricação, segundo Fernando
Bárcena e Joan-Carlos Mèlich (2000), apoiados nas idéias de Arendt, caracteriza-se por
cinco aspectos fundamentais:
1. A educação é uma ação violenta;
2. A educação é uma relação de meios/fins;
3. A educação é um processo que se acaba no tempo;
4. A educação tem um começo e um fim determinado desde o princípio;
5. A educação é um processo reversível.
A educação é uma ação violenta, desde o momento em que o homem fabrica
aparece um elemento de violência, de violação do mundo, uma manipulação da
natureza, pois o objeto produzido é um produto que o ser humano tirou do seu lugar
natural. A educação é uma relação de meios/fins, a fabricação funciona segundo a
lógica da racionalidade instrumental, isto é, a coisa fabricada é um produto final e em
duplo sentido de que o processo de produção termina algo, e é meio para produzir
este fim. A educação é um processo que se acaba no tempo. Se a educação é
fabricação não acompanhará toda a vida do ser humano, finaliza então a identidade
dela de construir-se. A educação tem um começo e um fim determinado desde o
princípio. A partir de um modelo de ser humano, inicia-se um processo de manipulação
91
ou de repressão para conseguir um novo ser humano. A educação, do ponto de vista da
fabricação, é um processo reversível. Pode-se voltar atrás, é possível refazer o que
se tinha feito, o objeto fabricado pode ser substituído por outro objeto fabricado, uma
vez que são idênticos.
Não há vida humana sem ação e sem discurso. Com a palavra e com a ação nos
incluímos na existência humana. Este é como um segundo nascimento. Atuar significa
tomar a iniciativa, começar. Desde o momento do nascer, o ser humano se presta à
ação. Porém, o verdadeiro nascimento significa a novidade, a imprevisibilidade e a
irreversibilidade. Das três atividades humanas a que possui maior relação com a
natividade é a ação, pois segundo a Arendt (2001, p. 17), “o novo começo inerente a
cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado
possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir”.
O controle e a evolução final do processo são fundamentais em toda ação
pedagógica. Porém, entender assim a educação significa compreendê-la como trabalho
e não como ação a surpresa. A figura que melhor expressa a ação é a natalidade ou
o nascimento. Precisamente por esta capacidade radical de imprevisto e inovação o ser
humano é insubstituível, único e não se repete.
Por exemplo, o funcionário não é nada mais que uma peça da trama social. O
funcionário é o sujeito do processo de fabricação. Ao mesmo tempo, o objeto deste
processo é a criação de novos e devotos funcionários que se integram no tecido social.
Este parece ser o grande objetivo da educação-fabricação. A ação não é um meio para
alcançar um fim. Não uma utilidade teológica, intencional na ação. Este é o que faz
diferente a ação educativa da fabricação de um objeto. Característica comum à ação e
ao discurso é a presença do outro. Essa necessária relação com os outros provoca que
92
o ator social nunca possa ser meramente um agente, alguém ativo que realiza a ação,
senão, ao mesmo tempo um paciente, o que recebe a ação (BÁRCENA; MÈLICH,
2000).
Como foi apontado, a essência da educação é a natalidade, o acontecimento
que se expressa no nascimento. E tal acontecimento constitui-se em uma experiência
que obriga a pensar, que que pensar e exige capacidade de compreensão. Arendt
(2001) afirma que toda crise questiona precisamente a crença, o acúmulo de
convicções e de respostas mais consolidadas. A atitude conservadora, no sentido de
Arendt (2001), indica responsabilidade na preservação do elemento da novidade que
existe em todo recém-chegado. Nossa esperança, segundo a autora, sempre está no
novo que cada geração traz consigo. E porque podemos efetivar nossa esperança
nesta novidade, corremos o risco permanente de destruí-lo se tratamos de controlá-lo,
dizendo como os recém chegados devem ser. O filho não é uma propriedade dos pais,
uma coisa com a qual os seus progenitores podem fazer o que quiserem. Ao contrário,
entre pai/mãe e filho/filha existe uma relação de transcendência. Existe, portanto
exterioridade de um diante do outro e também pluralidade. Assim a pluralidade é a lei
que rege a Terra, nosso mundo e nosso mundo educacional.
Com inspiração nessas idéias de Arendt (2001), pode-se compreender a
educação como possibilidade sempre intacta de um novo começo, que se constitui em
uma ação ética. Uma ética que não se reduz ao comportamento, ao gesto repetido, e
sim um gesto que tem a força da inovação, a liberdade que evoca a criação de um
mundo novo de possibilidades, de um novo começo, da natividade. Foi especialmente
importante conhecer a visão das crianças sobre a escola para desvelar o que acontece
93
no cotidiano, explicitando práticas que, geralmente, nos parecem tão banais, mas que
estão repletas de significados.
Somente na realização do desenho da escola, que foi iniciado com a seguinte
proposta “Eu na escola”, surgiram questionamentos por parte das crianças. Elas
perguntavam “Como assim?”. A mim parecia tão clara e óbvia a proposta, que me
faltaram subsídios para responder. Eu então permanecia em silêncio ou pedia para que
fizessem como achavam que devia ser. Algumas crianças ficavam paradas olhando-me,
como que esperando a minha indicação sobre o como deviam fazer.
Antes de o desenho da escola ser esboçado nas folhas brancas, havia um
momento de expectativa, uma elaboração mental sobre o que representar e a espera
de uma indicação, o que não aconteceu nos desenhos anteriormente solicitados.
Quando terminavam, repetiam as perguntas que me causavam um certo desconforto:
“Está certo?” ou “É assim?”, eu respondia com um leve sorriso, talvez a aprovação que
as crianças esperavam para só, então, entregarem o desenho.
Segundo Gómez (2000), o processo de socialização e o processo de aquisição
das conquistas sociais, por parte das novas gerações, costuma se denominar processo
de educação, sendo um fator decisivo da hominização e humanização do homem. Na
história da humanidade, inicialmente, os processos de socialização das novas gerações
aconteciam de forma direta nas células primárias de convivência, como a família. Com
o desenvolvimento histórico das comunidades humanas e a complexidade de suas
relações, surgiu a necessidade de uma socialização secundária, que conduziu aos
94
sistemas de escolarização obrigatória para todas as camadas da população nas
sociedades contemporâneas industrializadas.
A partir dos desenhos, foi observado que onze crianças representaram a escola
como uma casa, cinco como um pavilhão, cinco como uma sala de aula, três como uma
praça. Somente três crianças desenharam a escola com esmero e oito utilizaram cor.
Vinte crianças a desenharam com elementos que caracterizam uma escola: material
didático, quadro-negro, classes individuais, livros. Vinte crianças desenharam a escola
sem a figura da professora. Somente quatro crianças representaram os/as alunos/as
com desenho tosco. Os lugares onde as crianças foram colocadas no desenho da
escola, foram diversificados, dez na sala de aula, sete em frente ao prédio, cinco na
pracinha, uma na janela olhando para fora, uma no lado de fora do portão. Uma menina
não representou a escola, apesar da minha insistência.
As crianças definiram a escola como sendo o lugar onde se estuda, onde se
ensina o que elas ainda não sabem e que não aprenderiam em suas casas, onde se
aprende a ler e escrever, aprende-se a não brigar com os colegas, onde estudar é fazer
o que a professora manda. As crianças percebem de duas formas a função da escola,
de um lado a aquisição de conhecimentos e de outro a interiorização das normas.
Nas palavras de Goméz (2000, p. 14-15), “o objetivo básico da socialização
dos/as alunos/as na escola é prepará-los para sua incorporação no mundo do trabalho”,
envolvendo o desenvolvimento de conhecimentos, idéias, habilidades e capacidades
formais, bem como o desenvolvimento de formas de comportamento, que ele coloca
como a segunda função do processo de socialização, a formação do cidadão/ã para
95
sua intervenção na vida pública. Cabe à escola prepará-los para se incorporarem à vida
adulta e pública, de modo que a dinâmica e o equilíbrio, nas instituições possam ser
mantidos.
As crianças vão assimilando teorias e condutas, não pela transmissão de
idéias e conhecimentos, mas também pelas interações sociais que ocorrem na escola,
como foi dito nestes relatos:
“Eu aprendi várias coisas, a ler, a escrever, que não pode brigar, a gente vem
para o colégio só para aprender.”
“Não se pode incomodar a professora,”
“A professora é quem manda na aula, para ser obedecida ela coloca de castigo,
chama a mãe na escola, tira o recreio.”
Durante sua passagem pela escola vão se configurando representações sobre
como pensar e agir que ultrapassam os limites da escola, induzindo uma forma de ser
que apresenta semelhança entre a vida social da escola e as relações no mundo do
trabalho.
Sobre a função da escola em relação às crianças, Mariano Enguita (1989,
p. 158) argumenta que “A escola não apenas pretende modelar suas dimensões
cognitivas, mas também seu caráter, sua relação com seu corpo, suas relações
mútuas”, mantendo as crianças em constante interação e sob os cuidados e vigilância
dos professores e das professoras, conforme ilustra este relato do início da aula, feito
por uma menina: “Para que os alunos obedeçam a professora pede: ‘Deixa de bagunça,
96
peguem os cadernos e vamos fazer as continhas de vezes e eu vou resolver junto com
vocês’. Caso o aluno diga que não vai fazer nada, ele leva um bilhete para casa. Caso
o aluno jogue o caderno no chão, a professora manda juntar. Se ficar conversando a
aula toda, a professora manda para direção”. A professora determina o que e como
devem ser feitas as atividades, se acontecer de uma criança não obedecer, ela é
excluída do grupo.
O controle sobre as crianças parece ser primordial para o sucesso da
aprendizagem, como justifica um menino: “Acontece dos alunos ficarem brabos e não
obedecerem, então a professora conversa, depois xingão. Os alunos podem
conversar durante a aula em um tom baixo, desde que não atrapalhem, quem
determina o volume ideal é a professora. Quando os alunos não param de conversar a
professora os separa, pode falar um pouquinho e não quando a professora está
explicando. Quem não escuta não aprende o que é para fazer”.
Segundo Michel Foucault (2000, p. 25):
(...) em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser
recolocados em uma certa “economia do corpo”: ainda que não
recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam
métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata
do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua
repartição e de sua submissão.
Determinadas atitudes, por parte das professoras na escola, visam à docilidade e
à submissão das crianças. Eis o que relatou uma menina de seis anos: “Tem uma
professora que eu não gostei muito, ela me botou de castigo, não é certo colocar uma
pessoa de castigo. eu sentei e fiquei quieta, até a hora do almoço, eu pensei que ela
97
ia me deixar brincar um pouco, mas não deixou”. A criança sentou e ficou quieta,
considerando que não é certo castigar alguém desta maneira. Talvez esta criança
tenha aprendido o que afirmou um menino: “Quem manda na sala de aula é o
professor, as crianças estão aprendendo a ler, a escrever e a se comportar. Quando o
aluno não obedece ao professor, ele manda ficar quieto e coloca alguns de castigo”. A
autoridade da professora é exercida através do controle físico da criança, com a
imposição da imobilidade para que consiga a obediência ao que é solicitado.
Para doze crianças, a positividade da escola - o brincar é considerado o mais
importante. Depois indicaram a sala de aula, a alimentação, as aulas de educação
física. Para uma menina, a própria existência da escola foi apontada como positivo, pois
é “o lugar adequado para aprender”.
A negatividade da escola consiste em realizar as tarefas difíceis, ocorrem brigas
no recreio, realização de atividades impostas pela professora e recebem castigos. Nove
crianças não se manifestaram sobre a negatividade da escola.
Para este grupo de crianças, o aspecto mais importante da escola é aprender a
ler e escrever. Destacaram a importância de as pessoas saberem ler e a crença de que
todos os adultos são alfabetizados. No entanto, quando perguntadas sobre a relação da
escola com a sua vida, relacionaram suas respostas à questão do comportamento: “se
aprende a não brigar por qualquer motivo”. Concluíram que as crianças saem da escola
e não fazem mais o que desejam e sim o que os adultos determinam. Considerar a
importância de aprender a ler e escrever não significa ter clareza do sentido que a
escola possui em suas vidas. Justificaram que aprenderam muitas coisas na escola, no
entanto, não sabem bem sua utilidade, como ficou explicitado nestes relatos: não sei
onde vou usar isso (conhecimentos aprendidos na escola) ou “considero importante
aprender a ler, porém não sei qual a sua utilidade”. Para quatro crianças, não
relação entre o que aprendem na escola e sua vida.
98
Egon Rangel et al (2001) realizaram uma pesquisa com 72 jovens, entre 13 e 17
anos, que vivem em bairros de baixa renda na cidade de São Paulo e estudam em
escolas públicas, sobre a seguinte questão: “De tudo o que aprendi e vivi, o que
foi importante aprender? Quem me ensinou?”. Nas respostas, raras vezes, a
aprendizagem apareceu associada à escola ou aos conhecimentos das disciplinas
escolares, pois o conjunto de valores a que eles se referiam como importantes para
suas vidas estava relacionado a uma “educação” que aparentemente não tem lugar na
escola. Os conhecimentos mais valorizados por esses jovens são essencialmente
éticos-morais e a maior parte dos comentários a respeito dos saberes tipicamente
escolares refere-se ao “modo” como eles são trabalhados.
Tais resultados assemelham-se, em parte, à descrição das crianças sobre o que
aprendem na escola: copiar do quadro-negro, preencher folhas, pintar desenhos
reproduzidos, resolver operações matemáticas, escrever com letra cursiva e de
imprensa, desenhar, utilizar o relógio, colocar os dias da semana. A dificuldade das
crianças em relacionar o que aprendem na escola com a sua vida resulta da
impossibilidade de encontrarem “sentido” para aquilo que as professoras ensinam e
relacionarem com o contexto em que vivem.
Uma menina explicou que considera importante o que se aprende na escola para
que as pessoas não fiquem burras e considera que as crianças que pedem esmolas
nas ruas nunca a freqüentaram, sendo a escola é “o lugar onde se aprende a ser
alguém na vida”. Segundo Regina Leite Garcia (2001), a ascensão social via
escolaridade é uma ilusão, porém uma ilusão fecunda. Embora a escolaridade não
garanta a melhoria de vida, a luta coletiva pelo direito à escola potencializa as classes
99
populares para conquista de uma cidadania ativa, para a autonomia, promovendo
avanços no sentido da democratização da sociedade.
Um bom nível de escolaridade pode contribuir para a melhoria das condições de
vida das classes populares, embora não o garanta para todas as pessoas. A escola
pode ser um espaço de potencialização das classes populares, quando, por exemplo,
alfabetiza todos e todas, e não apenas alguns e algumas. Garcia (2001) também chama
atenção para as contradições entre a escola e as classes populares “que o preço do
acesso à leitura e à escrita não seja perder-se de sua cultura de origem pela imposição
de uma cultura que desqualifica a sua cultura”, de uma variedade lingüística tornada
língua padrão e que desvaloriza as variedades lingüísticas usada pelos alunos de
classes populares.
De acordo com Victor Valla (1999), construiu-se uma ideologia no sentido de
discriminar os pobres, com a criação da falsa idéia de que a única via para o
conhecimento é a escola e que, portanto, quem passou pela escola e obteve
sucesso é possuidor do saber. Segundo o autor, uma das formas mais sutis e terríveis
de exercício do poder seria a distinção entre os que nunca foram à escola, os que
tiveram sucesso na escola e os que nela fracassaram. O fato de ter freqüentado a
escola torna-se uma boa justificativa para os privilégios das classes dominantes.
O discurso da escola é de que a ela cabe a socialização do conhecimento, ou
seja, na escola estaria “guardado” o conhecimento, o que significa que tudo que não é
aprendido na escola não tem valor, seria não-conhecimento, favorecendo a falsa idéia
de que só existe um conhecimento válido, e este seria o adquirido na escola. Assim, um
100
outro tipo de conhecimento adquirido no cotidiano de suas vidas, como no trabalho,
nenhum valor tem e não possui mérito nenhum (GARCIA, 2001).
A esse respeito, Miguel Arroyo (2002, p. 62) argumenta:
O fato dos setores populares fazerem tantos esforços e sacrifícios por
entrar e nela permanecer, por tentar por anos sobreviver, trabalhar e ir à
escola, indica que eles acreditam na outra viabilidade, a de uma
humanização.
Segundo o autor, há um sonho, o de recuperar nos filhos a humanidade não tida,
a recuperação de uma humanidade roubada. Esta idéia de recuperação da humanidade
foi expressa pelas crianças em suas falas: Quando a gente começa a ficar com mais
idade, e saí da escola e nunca mais volta, ficam as lembranças da escola e de
quando a gente era pequena, é uma lembrança muito boa; As pessoas têm muita
responsabilidade para cuidar de tantas crianças, eles (professores/as) aprendem
quando são crianças, depois vem para escola para poder ensinar para as outras
crianças que ainda são ‘pequenas’, como um dia eles foram”.
As próprias crianças apontaram que o que realmente permanece de nossas
vivências na escola são as lembranças. Se forem experiências de sucesso com certeza
serão boas, mas se forem de incontáveis fracassos, nem tanto. Quando fazem
referência à responsabilidade dos/as professores/as em ensinar o que aprenderam
quando eram crianças, não se referem somente aos conhecimentos formais. Ainda
lembra Arroyo (2002), que fala sobre o ofício de mestre como possibilidade de fazer da
escola um espaço e tempo de direitos, de humanização e não de mercantilização, que
quando a própria escola e suas estruturas terminam excluindo, acabou desumanizando
os já excluídos e desumanizados fora da escola.
101
As crianças percebem diferenças entre a escola de pobre e a escola de rico:
“A escola de rico é mais bonita, a escola de pobre é um pouco feia.”
“A escola de pobres tem menos coisas que uma de rico tem. A escola de rico tem
asfalto dentro da escola para quando chover não molhar os pés. Tem cobertura ao
redor.”
“Crianças pobres e ricas não estudam na mesma escola, pois colégio de rico é
pago, a escola paga não é igual à escola de pobre.”
“Na minha opinião tudo deveria ser tudo igual, do bom e do melhor, igual à
escola de rico tem.”
“O rico tem uma escola boa. “
“A escola de rico é nova, apresenta boas condições, possui bens materiais e
infra-estrutura, enquanto na escola de pobre tudo é muito simples. “
A qualidade da escola aparece associada à possibilidade da formação
profissional futura, como revela o depoimento de uma menina, de seis anos sobre a
possibilidade de ser veterinária: “Às vezes eu acho que posso ser e às vezes eu acho
que não posso, eu acho que preciso estudar muito, eu vou me esforçar muito para
alcançar meu sonho de criança, o rico tem uma escola boa e fica falando para o pobre,
então o pobre fica morrendo de vontade de ter uma escola boa, mas infelizmente ele
não tem”. Segundo esta menina, quando a criança rica cresce tem acesso a bens
materiais que o pobre deseja e não terá condições de adquirir porque é pobre, não
tornando-se viável economicamente. Um menino de seis anos esclareceu: “Ser pobre é
a mãe não ter dinheiro para colocar o filho na escola, tem crianças que não freqüentam
a escola”.
102
Sociólogos mostraram que os alunos das classes populares têm dificuldades na
escola, portanto, mais reprovações entre eles do que entre os alunos oriundos de meios
favorecidos, conforme destaque de Charlot (2001). Para o autor, os estudos evidenciam
que a relação com o(os) saber(es) e com a escola não é a mesma nas diferentes
classes sociais. Essa relação também é afetada pelas diferenças entre sexos, a origem
cultural ou qualquer outra diferença social. contudo “êxitos paradoxais”, pois alguns
alunos de famílias mais desfavorecidas economicamente têm êxito na escola, apesar
de tudo, e, inversamente, alguns alunos de famílias favorecidas fracassam na escola.
Para Charlot (2001), trata-se de compreender como se constrói uma relação de saber
que, ao mesmo tempo, tem a marca da origem social mas não é determinada pela
mesma.
4.4 Raça/etnia
Relações de classe social, gênero e raça/etnia condicionam o processo de
socialização das crianças na família e na comunidade, suas brincadeiras e atividades
cotidianas, produzem modos de vida, práticas sociais e representações diversificadas,
constituem identidades.
Considero a construção das identidades como um processo psicológico
produzido por relações entre o sujeito e os outros, cujos condicionantes são históricos,
culturais, sociais e biológicos. Essas identidades possibilitam ao ser humano perceber-
se e reconhecer-se como pertencente a determinados segmentos sociais, econômicos
e culturais. As expectativas familiares e de outros grupos sociais em relação às
condutas, aos sentimentos, às percepções das crianças, as maneiras diferenciadas
como as pessoas agem e reagem a elas, de acordo com suas características
103
econômicas, sociais e culturais, são condições relevantes nesse processo. Tal processo
envolve não só recepção passiva, mas também resposta ativa às situações conflituosas
e as identidades apresentam configurações múltiplas numa mesma sociedade. Ao se
defrontarem com expectativas sociais e culturais que são divergentes, opostas, as
pessoas são capazes de aceitar, de adaptar-se ou de negar, de transformar, são,
portanto, capazes de acomodações e resistências em diferentes planos (subjetivo,
intersubjetivo e coletivo). A construção de identidades se faz de acordo com diferentes
modelos, ideais, imagens que diferentes classes sociais, raças/etnias, gêneros,
religiões, gerações, etc. produzem em determinados espaços e tempos.
No que tange à identidade racial, Edith Piza (1998) explica que esta pode
confirmar ou negar a visão que o sujeito tem do outro, através de dados observados em
sua realidade, tais como aparência, objetos, lugares e formas de agir. Expressões
ouvidas no cotidiano, tais como “a situação está preta”, “o cabelo dela é ruim”, apesar
de parecerem naturais, foram socialmente construídas a partir do que é estabelecido
como ser negro e ser branco em nossa sociedade e das posições sociais destinadas a
cada um. A compreensão dos preconceitos e dos estereótipos de raça/etnia são
fundamentais para se conhecer como se a construção das identidades de crianças
na rede de conflitos e contradições que estão articulados numa sociedade constituída
por relações de desigualdade. Uma das formas de estudá-los consiste na investigação
das representações sobre ser negro ou ser branco.
Considero relevante esclarecer que, no processo de coleta de dados, utilizei
sempre as denominações negro e não-negro tendo em vista o interesse da pesquisa
em ampliar as possibilidades da identificação étnico-racial. Contudo, as crianças
sempre identificaram o não-negro com o branco e operaram com a dicotomia negro ou
branco. Em decorrência, optei pela denominação que as crianças utilizaram.
Nos desenhos do auto-retrato, vinte e uma crianças representaram traços
característicos de ser negro ou ser branco. Todas as crianças negras (doze) o fizeram:
onze utilizaram a cor marrom para colorir sua pele e uma a cor preta. Algumas destas
crianças desenharam-se sem boca ou encobriram os traços do rosto. Aparece,
portanto, o desejo de salientar a característica da cor da pele, mediante a utilização de
duas cores - marrom e preta - o que pode indicar uma associação entre estas cores e
104
denominação de “morenos” ou “negros” muito utilizada em nosso país para identificar
afro-descendentes. Ao mesmo tempo aparecem evidências de silenciamento ou de
ocultamento. Entendo que a ideologia hegemônica não funciona de forma absoluta,
uma vez que possibilidades de resistências, porém, parece que, para algumas
crianças, o elemento racial/étnico cor da pele é sentido como uma camisa de força,
fazendo com que se percebam amordaçadas no contexto da sociedade, embora talvez
não o sejam no âmbito mais próximo da comunidade em que vivem. Nos desenhos das
outras três crianças tais características ficaram ambíguas, embora tendessem a se
aproximar mais das características do ser branco.
Para análise dos desenhos relativos ao ser negro/a ou ser branco/a utilizei como
referência o estudo de Gusmão (1993) sobre socialização e recalque em crianças
negras cuja faixa etária era de sete a doze anos, moradoras de um bairro rural de
Paraty (RJ). Tendo em vista que na pesquisa que realizei estavam envolvidas crianças
negras e brancas habitantes da periferia urbana fiz as adaptações necessárias às
características destes sujeitos.
Os desenhos revelaram que, dentre 24 crianças, quinze crianças negras ou
brancas não conseguiram desenhar pessoas com características negras, mas o fizeram
no caso de pessoas com características brancas. Segundo Gusmão (1993), parece ser
representativo do processo de “tornar-se gente”, assumir o ser branco como modelo de
identificação e mesmo as crianças negras conseguem fixar a imagem do branco. O
processo de embranquecimento evidencia as dificuldades das crianças negras em
aceitarem sua “cor”, aceitação que envolve reconhecer o passado histórico, a cultura e
os valores de uma cultura que não é valorizada pelo branco. A violência do
embranquecimento exige, de modo implícito, que o sujeito negro renegue o próprio ser,
ao assumir ideais do sujeito branco e recusar a presença do corpo negro.
Dezoito crianças desenharam pessoas negras unidas a pessoas brancas, de
sexos opostos (homem negro e mulher branca, homem branco e mulher negra), o que
também parece ser consistente com a ideologia de embranquecimento, a possibilidade
da miscigenação ou união inter-racial. Do ponto de vista da criança negra, a
miscigenação tem sido considerada uma via para que o negro possa participar do
“mundo dos brancos”. Referindo-se ao fato de que diante de um casal formado por um
105
homem branco e uma mulher negra, ou o inverso é comum pensar-se que a pessoa
negra finalmente fará parte da “cultura branca”, Gusmão (1998) argumenta que a
negação do ser negro está presente em função do projeto branco.
O desenho de uma menina não-negra (seis anos) mostrou a imagem de uma
mulher branca (visivelmente grávida) e um homem negro, separados por um enorme
coração cortado por uma flecha, tendo abaixo dois carrinhos com bebês, com as
inscrições de “branco” e “negro”. Todos estão sorrindo. A miscigenação, que tem sido
colocada pela ideologia hegemônica como representativa de uma “democracia racial”,
foi criticada por Antônio Cândido (1982) que a considera uma “hipocrisia oficial” ao
postular a idéia de relações sociais sem conflitos.
De modo semelhante, Iray Carone (2002), ao investigar, na cidade de São Paulo,
a força psicológica do legado social do branqueamento, entendido como resultado da
intensa miscigenação ocorrida entre negros e brancos desde o período colonial,
responsável pelo aumento numérico proporcional de mestiços em relação ao
crescimento dos grupos de negros e brancos, argumenta que é necessária uma nova
interpretação da realidade racial brasileira descolada da visão luso-tropicalista de
Gilberto Freire. Segundo essa visão, a miscigenação entre negros e brancos tem sido
exaltada como um embrião da “democracia racial” brasileira e base de nossa identidade
nacional, “povo mestiço”, “moreno”. A autora enfatiza que a miscegenação foi parte da
escravidão colonial. O cruzamento racial não foi um processo natural, mas determinado
pela violência e exploração do português contra o africano sob cativeiro. Nesta
perspectiva, o branqueamento pode ser explicado como uma pressão cultural exercida
pela hegemonia branca, sobretudo após a Abolição da Escravatura, “para que o negro
negasse a si mesmo, no seu corpo e na sua mente, como uma espécie de condição
para se ‘integrar na nova ordem social” (CARONE, 2002, p. 14), para ser aceito e ter
mobilidade social. Essa ideologia, forjada pelas elites brancas de meados do século
dezenove e começos do século vinte, sofreu importantes alterações de função e de
sentido no imaginário social. De acordo com Carone (2002), se nos períodos pré e pós-
abolicionistas ela parecia corresponder às necessidades e preocupações das elites
brancas, hoje ganhou outras conotações, é um tipo de discurso que atribui aos negros o
106
desejo de “branquear” ou de alcançar os privilégios da branquitude por inveja, imitação
e falta de identidade étnica positiva.
Diferentemente do que ocorreu no desenho do auto-retrato, os desenhos sobre
pessoas negras ou brancas mostraram ambigüidades porque, provavelmente, se
tratava de confrontar o negro e o branco, lado a lado. Catorze crianças desenharam a
pessoa branca com características de negra e a pessoa negra com características de
branca (por exemplo, cabelo, pele, traços do rosto) ou as denominaram inversamente.
Isto parece traduzir idéias de miscigenação e/ou de ausência de diferença, como se
não houvesse características próprias a essas pessoas. Pode ser entendido, também,
como o desejo de “sermos todos iguais”, por parte das crianças brancas, ao negarem
seus traços e por parte das negras, por adotarem um “modelo branco” positivamente
valorizado.
Somente um menino branco situou as figuras em um contexto explícito de
preconceito e estereótipo, no qual a pessoa branca aparece sorridente em um canto da
folha e a pessoa negra no lado oposto, com expressão facial de maldade. Esta imagem
pode estar relacionada ao estereótipo de que ser negro é ser delinqüente.
Um menino negro desenhou as pessoas brancas ou negras unidas por meio de
outros elementos do espaço físico, neste caso uma rampa de skate. Mais uma vez,
parece ser a tentativa da pessoa negra mostrar-se em igualdade de condições, na
expectativa de romper as barreiras da discriminação. Ao postular-se como igual,
contudo, anula a diferença, eliminando com ela a possibilidade de construir uma
identidade negra, tarefa eminentemente política, que exige como condição
imprescindível a contestação do modelo branco hegemônico.
Conforme as verbalizações das crianças negras, descritas abaixo e obtidas na
atividade lúdica com bonecos negros ou brancos, as representações são mais
ambíguas no que tange às diferenças e mais nítidas no que diz respeito às
desigualdades.
As diferenças focalizam o corpo (cabelo e cor da pele) e as relações de poder na
família:
“Não diferença entre negros e brancos, é o mesmo corpo, mesmo sangue,
não é o mesmo cabelo.”
107
“Não há diferença entre negros e brancos, a diferença é a cor da pele.”
“O homem branco manda mais, nos filhos e na mulher.”
As desigualdades referem-se às ocupações, cabendo ao negro as de menor
prestígio social ou remuneração:
“A profissão é diferente, aqui a boneca branca é babá e a negra é faxineira.”
“O homem branco é segurança e o negro é pedreiro.”
“Profissão de negros e brancos não são as mesmas. Como o negro é pobre tem
que trabalhar mais, já os brancos ricos não trabalham.”
“Não há diferença nenhuma, porém não são tratados iguais, não sei explicar.”
Aparece também a negação do racismo e dos conflitos: “nunca ouvi falar em
racismo, acho importante os brancos serem amigos dos negros”.
No que tange ao racismo, Piza (1998) enfatiza que no discurso dos brancos está
presente a invisibilidade, a distância e o silenciamento sobre a existência do outro,
como quem não vê, não sabe, não conhece e não convive. A identificação das suas
próprias vantagens por serem brancos e o reconhecimento do papel dos indivíduos
brancos na manutenção do sistema racista pode gerar um desconforto que leva as
pessoas a convencerem a si próprias de que o racismo realmente não existe ou, se
existe, é responsabilidade de suas vítimas.
Na esfera do trabalho, Neuza Maria Mendes de Gusmão (1993) destaca que, em
relação à população negra, uma discriminação que tem origem étnica que vincula
os/a negros/as aos trabalhos mais desvalorizados e que se traduzem em menores
salários. Essa discriminação assume vários contornos, muitas vezes manifesta-se de
maneira sutil, outras vezes de modo bem explícito.
As representações das crianças brancas ressaltam a igualdade de direitos, o
preconceito e a negação dos conflitos:
“Diferença não tem, pois todos possuem os mesmos direitos.”
“O que acontece é que quase todos os negros são tratados de forma diferente
porque tem muitas pessoas no mundo que não gostam de pessoas negras.”
“Desprezam os negros, mas todas as pessoas têm que ter os mesmos direitos. O
branco tem direito a ter um emprego fixo e o negro não tem direito a isto.”
108
“Racismo é quando uma pessoa negra não gosta de uma pessoa branca, ou
vice-versa.”
“Os brancos são ricos e os negros são pobres, não sei explicar o porquê, mas
todos são amigos.”
Esses resultados são semelhantes aos encontrados por Neusa Guareschi e
outros (2003), em pesquisa sobre o processo de construção das identidades de
meninos e meninas, com idade entre 15 e 18 anos, que freqüentavam uma escola
municipal de Porto Alegre (RS), localizada em uma comunidade de classes populares:
os sujeitos ora afirmam que existe uma igualdade racial no lugar onde vivem,
produzindo uma descaracterização das diferenças raciais; ora relatam situações
discriminatórias entre eles/as. Esta ambigüidade é explicada da seguinte forma: “a
população brasileira sofreu um processo de assimilação do ‘embranquecimento’ como o
instituído como normal, ou seja, pessoas sujeitam-se a essa idéia, ao mesmo tempo em
que alguns movimentos lutam no sentido da busca do reconhecimento de suas
identidades raciais” (p. 149).
Para explicar o racismo, uma menina branca (6 anos), na atividade lúdica,
descreveu a seguinte situação:
“Por exemplo, uma criança negra está passando na rua e uma pessoa branca a
acha nojenta porque é negra. O que mais encontramos no mundo é pessoas brancas
que não gostam de pessoas negras. É muito difícil, é raro, pessoas negras que não
gostam de brancas. Os brancos não gostam dos negros porque escutam falar mal dos
negros. Tem pessoas brancas e negras que são boas e ruins. Desde pequenas as
crianças vão aprendendo o racismo, porque ouvem falar coisas más sobre os
negros.”
Salientou também a influência da família na produção de preconceitos e
estereótipos:
“Na minha família é assim, é difícil ver uma pessoa branca que não goste de
uma pessoa negra. É fácil perceber na rua que os negros são mais pobres que os
brancos. As pessoas não dão emprego porque a pessoa é negra. Os negros são pobres
e os brancos pertencem à alta sociedade, todo mundo vem ensinado isso desde
pequeno. Na minha família, os negros e brancos podem ser misturados e uma pessoa
109
branca pode ser amiga de uma pessoa ‘escurinha’. existem outras famílias que
ensinam as crianças brancas a não ter amizade de negros, quem ensina são os pais,
pois colocaram a criança no mundo e passam mais tempo com ela.”
Outra menina branca (seis anos), na atividade lúdica, também expressou sua
representação sobre o racismo, narrando uma pequena história:
“Sobre a diferença entre crianças brancas e negras, vou contar uma história: um
bebê branco fugiu de casa e foi encontrado pela menina negra. Pode acontecer que
quando a menina for levar o bebê para sua família, ela receba uma recompensa ou um
brinquedo. Mas, se a menina negra for esperta, ela deixa o bebê e sai de cantinho para
não ser vista, pois o branco pode desconfiar que foi ela que roubou o bebê branco. O
branco poderia pensar que a negra seqüestrou o bebê branco.”
Apenas uma menina branca (seis anos), na entrevista, reconheceu
explicitamente as diferenças entre pessoas negras e brancas e suas conseqüências:
“há diferença entre brancos e negros, os negros devem ficar com as negras e os
brancos com as brancas.“
Uma menina negra (oito anos), na atividade lúdica, enfatizou a predominância da
desigualdade racial/étnica sobre a desigualdade de gênero nas relações de poder:
“quem manda mais são os brancos e depois os negros, tanto faz ser homem ou mulher.
Os brancos mandam nos negros. As crianças brancas são quem mandam mais”.
Também na atividade lúdica, outra menina branca (seis anos), identificou
uma relação entre a desigualdade étnica/ racial e o gênero no que tange ao trabalho:
“Na hora de arrumar emprego, a mulher branca tem mais oportunidade do que a
mulher negra. A mulher branca trabalharia em empresas, lojas com produtos caros, por
exemplo, a loja C&A, onde passam pessoas com bastante dinheiro. A mulher negra
trabalharia como garçonete, em um mercado, lugares que gente pobre freqüenta. O
negro arrumaria um emprego bem simples e vai para casa feliz, se ele é branco vai
para casa pensando que poderia arrumar algo melhor.”
No que diz respeito ao sentimento de medo relacionado ao ser negro ou ser
branco, quatro crianças negras associaram tal sentimento ao boneco branco que
representava o adulto e três crianças brancas, ao boneco negro.
As crianças negras explicaram o medo do boneco branco da seguinte forma:
110
“A minha professora falou que os negros são mais fortes que os brancos, mas
não tenho visto muito isto.”
“Tenho medo dele porque tem cara de brabo.”
“Ele corre atrás de nós (crianças).”
“O menino branco, pois não são da mesma cor.”
“Os negros brigam com os brancos, pois eles provocam. Os brancos falam (na
escola) que os negros são ‘maloqueiros’. Entre os adultos os brancos têm ciúmes dos
negros, pois eles (negros) arrumam namorados.”
As justificativas das crianças brancas para o medo em relação ao boneco negro
foram:
“Os negros são pobres.”
“Ele tem cara de mau.”
“Em especial não teria medo de nenhum, mas teria medo de uma pessoa
grande, mais velha. Mas, o que me deu um pouco mais de medo foi o boneco negro
(adulto), se eu estivesse no lugar do bebê branco, devido ao seu tamanho, pois ele
poderia bater na criança.”
Somente uma menina branca (seis anos) associou o sentimento de mede a
ambos os bonecos, salientando a desigualdade entre adultos e crianças: “São dos pais
(mostrando os bonecos adultos masculinos negro e branco), porque os homens batem
com mais força nas crianças, o pai é mais zangado”. Assim, parece que o medo mostra-
se mais pertinente do à relação adulto-criança do que às características étnico-raciais
das pessoas.
No que tange ao nível sócio-econômico, contudo, nítida associação entre ser
branco e riqueza ou ser negro e pobreza. Na atividade lúdica com as famílias de
bonecos, as oito crianças identificaram os bonecos negros como pobres e expressaram
suas representações sobre características da riqueza e da probreza:
“Ser rico é ter uma ‘casona’, é ter empregada doméstica. Mandar a empregada
lavar a louça, varrer e limpar a casa.”
“Ser pobre é não ter comida, não ter fogão, com uma casa caindo aos pedaços,
cachorro com pulga, pedir dinheiro na rua.”
“Já vi pobres pedindo dinheiro na rua, lá no centro.”
111
“Os brancos são ricos e os negros são pobres, não sei explicar o porquê.”
“É fácil perceber na rua que os negros são mais pobres que os brancos. As
pessoas não dão emprego porque a pessoa é negra.”
“Os negros são pobres e os brancos pertencem à alta sociedade, todo mundo
vem ensinando isso desde de pequeno.”
Mesmo um menino negro (seis anos) que colocou bonecos negros ou brancos
em ambos os grupos de ricos e pobres, ao explicar essa distribuição afirmou a
associação da riqueza com ser branco e o desejo de ser rico: “Os ricos têm mais
dinheiro, casa mais bonita do que a gente. Acho que sou mais para rico. Os ricos têm
que ser amigos dos pobres, ajudar os pobres a se alimentar”.
Esses resultados indicam que os estereótipos e os preconceitos em relação às
pessoas negras, em nossa sociedade, mantém-se como condicionantes das
representações das crianças negras ou brancas sobre o ser negro e o ser branco. Ao
mesmo tempo, as representações das crianças sobre as diferenças e desigualdades
entre pessoas negras e pessoas brancas revelam a permanência da ideologia do
branqueamento e da negação do conflito.
Corroboram o argumento de Neuza Maria Mendes de Gusmão (1993), segundo
o qual o recalcamento ideológico está presente na prática etnocidiária da sociedade
branca que impede o negro de construir-se como sujeito e nega-lhe uma personalidade
singular e particular que lhe permita assumir-se como negro. O reflexo desse processo
é que muitas crianças negras constituem suas identidades, negando sua cor, suas
raízes, sua riqueza cultural. O padrão branco hegemônico preconiza uma
homogeneização velada que é imposta explícita ou sutilmente, privilegiando
determinadas manifestações culturais, concepções estéticas, determinados saberes e
comportamentos em detrimento de outros.
CONCLUSÃO
Todos os nossos projetos precisam ser concluídos, embora considere que a
sua conclusão não signifique o final das idéias e reflexões ali contidas, mas uma
abordagem reflexiva dos caminhos percorridos pela pesquisa que ora se conclui.
Apontando novas direções que podem ser concebidas no ato mesmo de concluir a
relação entre minha escrita e o projeto desenvolvido durante mais de dois anos.
Quando iniciei a pesquisa, eu achava que sabia muito sobre crianças, pois
trabalhava há mais de dez anos com elas. No entanto, percebi como eu as escutava
pouco. Mesmo quando elas me falavam eu sempre passava tudo pelo filtro da visão
adulta, em geral, redutora de significados. Como pesquisadora eu não era mais “a
professora” destas crianças e podia simplesmente ouvir o que tinham a dizer, sem
ter que, obrigatoriamente, responder com algum conceito brilhante. Ao chegar na
sala de aula para buscá-las para os encontros, inúmeras outras crianças gritavam
“Me leva hoje?”, com a certeza de que, se o tempo me permitisse, eu teria ouvido a
todas. Jamais esquecerei a satisfação das escolhidas para pesquisa, como vinham
felizes e falantes pelos corredores da escola, seguravam minha mão ou me
abraçavam, como explicavam para os outros colegas que a pesquisa era para
113
descobrir a opinião das crianças sobre vários assuntos e que, no final, eu escreveria
um livro.
Quando estávamos a sós e o trabalho realmente começava, havia como que
uma transformação, carinhas felizes ficavam sérias ao responder sobre si mesmas,
sobre a família, sobre a escola, sobre a raça/etnia. Emocionavam-se e me
emocionavam ao relatar o seu cotidiano, nada simples, pleno de complexidades e
tramas, elas que para mim eram somente crianças. Um grande companheiro durante
os encontros foi o silêncio, que nada tinha de constrangedor, era uma pausa amiga,
para organizarmos nossas idéias e emoções e, às vezes, era acompanhado de um
“não quero falar sobre isso”, pelo menos agora, talvez em outro momento.
Ao descrever aqui as representações das crianças, com certeza não pude
descrever a riqueza de suas expressões e gestos, de suas falas explicitadas pelo
corpo, de mãozinhas que se esfregavam nervosas, das inúmeras vezes que
olhavam a porta pensando que alguém nos escutava, de como apagavam seus
desenhos e refaziam diversas vezes, de como a cadeira parecia incômoda, de suas
lágrimas contidas e principalmente, de seus sorrisos e abraços nas despedidas.
Para as crianças, a infância se diferencia do mundo adulto pelo trabalho e
pelo brincar. O trabalho de arrumação da casa é visto, fundamentalmente como
“ajuda”, “obrigação”, diferenciado-se do trabalho remunerado exercido pelo adulto.
Tais nomeações, segundo Hillesheim (2001), delimitam uma hierarquia de valor
relacionada a questões etárias, de gênero e classe social: crianças (que ajudam)
são menos valorizadas que adultos (que trabalham), meninas e mulheres (trabalham
no cuidado das crianças e da casa) são menos valorizadas do que os meninos e
homens (que trabalham em atividades fora de casa).
114
As crianças representam o brincar como sendo o mais positivo de ser criança,
elas brincam e os adultos trabalham, o trabalho significando um valor a ser
conquistado. A concepção moderna e hegemônica de infância, segundo a qual as
crianças não devem trabalhar, amplamente divulgada na mídia, fundamenta-se no
modelo burguês de família, naturaliza a idéia de que criança deve ir a escola e
brincar, não devendo assumir responsabilidades. Oculta ou dissimula a infância das
crianças de classes populares, as quais realizam a arrumação da casa, cuidam dos
irmãos menores, preparam a comida, trabalham fora para ajudar suas famílias no
orçamento doméstico.
O ser criança também está associado à falta de autonomia, às obrigações
determinadas pela idade, aos cuidados que necessitam e ao freqüentar a escola.
Para as crianças sujeitos desta pesquisa, os adultos se casam, têm filhos e
sacrificam-se no sustento de sua família. Consideram que não é natural possuir tudo
dentro de casa, valorizam o esforço dos pais para conseguir os alimentos e
melhorias na moradia. Consideram também que todas as crianças têm família,
porém, nem todas as famílias dispõem de iguais condições econômicas.
A positividade de ser criança centra-se em brincar, estudar, passear com a
família, participar da arrumação da casa. Não incluem cinema, compras no
shopping, aula de natação ou balé, mas sonham com a boneca Barbie, ser cantora e
uma “piscina de chão”. Quanto à negatividade, apontam a punição física dos
adultos, que não consideram certo e sugerem a conversa como forma de refletir
sobre seus erros. Esperam que os adultos mudem seus comportamentos a esse
respeito e possam exercer sua autoridade com carinho e sem nenhuma violência.
Acreditam que os adultos devam valorizar as crianças como alguém que coopera na
família. Surpreende-me que embora, vivam em condições sócio-econômicas de
115
extrema pobreza, não a consideram um aspecto negativo. Parecem, até certo ponto,
conformadas e reconhecem que crianças que correm maiores riscos como as
que estão em situação de rua.
Assegurar uma infância feliz para as crianças é investir no futuro, no entanto,
esta é uma meta que está bem distante. Infelizmente, em nosso país, não
conseguimos nem mesmo garantir uma sobrevivência com dignidade para a maioria
das crianças. Porém, todos sabemos que as crianças precisam de proteção e
cuidados especiais, que necessitam confiar que o mundo dos adultos cuidará delas
e as ajudará a desenvolver e realizar seu potencial.
Com relação à família, as configurações são diversas e os limites ultrapassam
a família nuclear. Reconhecem que outras pessoas também fazem parte dela,
quando moram juntas ou ajudam no cuidado das crianças. Ser da família significa
morar, trabalhar e estar juntos, numa relação que se constrói com muito amor, tendo
como base a ajuda mútua. Para essas crianças chefe de família é quem trabalha
para ganhar dinheiro, função esta que cabe ao homem de acordo com a ideologia do
provedor.
Com relação à escola, as crianças entendem que significa o lugar onde elas
estudam e são ensinadas a respeito do que ainda não sabem, considerando este o
lugar mais adequado para que isto ocorra. Estudar também é entendido como fazer
tudo que a professora manda. Nas representações, portanto, a escola é o lugar para
aquisição de conhecimento e interiorização das normas sociais e culturais, sendo
que o mais importante é aprender a ler e escrever.
Quanto à positividade da escola, apontam o brincar, a sala de aula, a
alimentação e a possibilidade de fazer novos amigos. No que tange à negatividade,
indicam a realização de tarefas difíceis, as brigas no recreio, as atividades impostas
116
e os castigos. Destacam que o que realmente permanece da vivência na escola são
as lembranças dos momentos felizes e das dificuldades encontradas. Com que
clareza, em poucas palavras, revelam que o fundamental da escola é permitir e
oportunizar uma aprendizagem repleta de prazer e alegria. Isso é importante para
que nós professores e professoras não esqueçamos de que as crianças têm o direito
de serem felizes também na escola, pois esta não é algo considerado dissociado de
suas vidas.
Na rigidez dos horários e regras, na tentativa de transmitir tantos
conhecimentos, perdemos o que de mais rico poderia acontecer ali, a troca de um
saber sistematizado com um saber cheio de esperança num futuro melhor. Há,
na escola comportamentos autoritários, repressores e agressivos, por parte dos
adultos. Utilizamos os castigos e punições para os desafios que as crianças nos
propõem como o ser diferente, como o não seguir a norma, como fazer o que é
imposto a sua maneira.
Com relação ao ser negro e ao ser não-negro, as representações das
crianças expressam muito a ideologia referente à inferioridade do negro em nossa
sociedade. As crianças tentam mascarar as desigualdades formando pares de dois
sexos, mostram a ideologia do embranquecimento que postula a possibilidade de
miscigenação. Dizem desconhecer o que seja o racismo, mas descrevem inúmeras
situações nas quais ele está presente. Demonstram saber que as representações
sobre raça/etnia são culturais, pois reconhecem que são inculcadas pela família,
pela escola e pela mídia. Sugerem que os adultos deveriam ensinar a amizade entre
as pessoas negras e não-negras para as crianças, como possibilidade de mudar as
relações que hoje existem.
117
Nossa sociedade se organiza em classes antagônicas, nas quais o conceito
de infância e o papel da criança são diferentes. A representação de uma infância
universal foi construída e disseminada pelas classes dominantes gera um padrão de
criança de acordo com determinados critérios de idade e dependência do adulto, os
quais são característicos do papel social específico que a criança deve assumir no
âmbito dessas classes.
A presente pesquisa sobre as representações de crianças de classes
populares mostra evidências da exclusão social e econômica que essas crianças
sofrem, dadas as condições precárias de vida, conseqüência das desigualdades
existentes na sociedade capitalista. Para o adulto, a criança é um ser
economicamente não produtivo que ele deve alimentar e proteger, a ausência de
atividade remunerada da criança pode significar perda de ganho direto.
Segundo Kramer (1992), tal significação econômica da infância fundamenta o
valor atribuído à criança nos vários domínios da realidade social, não há, pois um
valor único não existindo uma forma universalmente ideal de relação entre criança e
adulto. Tratar da criança em abstrato, sem levar em consideração as diferentes
condições de vida é dissimular a significação social da infância. As desigualdades
sociais reais que existem entre as crianças são deixadas à margem pela escola ou à
margem do que supostamente deveriam aprender na escola.
Infelizmente, a escola pouco ou nada tem feito para reverter esse quadro,
pois ao invés de descrever seriamente as especificidades dos meios populares
desfavorecidos, têm comparado suas atitudes, sua linguagem com as dominantes.
A escola precisa é compreender que as diferenças não são deficiências. As
experiências que as crianças trazem para o ambiente escolar devem ser o
instrumento para novas aprendizagens.
118
A exploração do sistema capitalista, expressa-se nas taxas de mortalidade
infantil, nas condições de habitação, de saúde, de escolarização a que são
submetidas as classes populares. Se o fracasso escolar e a segregação resultam da
divisão da sociedade em classes, devemos, enquanto educadoras/es, aproveitar os
aspectos positivos das desvantagens, valorizando a cultura de origem da criança e
permitindo que ela possa compreender a dominação que sofre e questioná-la,
instrumentalizando-a para transformar essa sociedade desigual que a torna
“carente”.
Quando analisava os desenhos, lembrava-me do que explicava Paulo Freire
(1997), a explicação do mundo de que o ser humano faz parte é a compreensão de
sua própria presença no mundo, a leitura do mundo precede sempre a leitura da
palavra. O diálogo desafia as crianças de classes populares a pensar a sua história
social, produz a necessidade de nós professoras/es superarmos certos saberes para
compreendermos o contexto em que vivem.
As aspirações que as crianças expressaram podem ser consideradas
limitadas e modestas, no entanto, o que elas desejam é o mínimo, ou melhor o
básico: uma casa para morar, o direito de brincar, o direito de estudar, o respeito por
suas idéias, a vivência do amor e do carinho que nos constituem como seres
humanos.
Nesses dois anos de pesquisa aprendi que é urgente uma reconciliação, o
restabelecimento de um laço. Nos reconciliarmos com nossa infância, revendo a
criança que fomos e que está em nós, em algum lugar, perceber onde ela está
adormecida em nós. Restabelecer a paz, restaurar as boas relações entre o mundo
dos adultos e o mundo infantil. Trabalhar e viver para que tenhamos um mundo
melhor, mais justo e humano, para termos como conseqüência uma infância melhor.
119
Quando as crianças revelam que consideram negativo na infância a
impossibilidade de ter acesso ao conhecimento, a falta de alguém com quem brincar
(estar), a permanência em casa sozinhas (solidão) e a dificuldade em realizar o que
ainda não sabem, na minha interpretação, elaboram uma síntese, mesmo que
parcial da negatividade da existência humana, a nossa incompletude. Aliás, como
enfatizou Sawaia (1993, p. 80), “O encontro entre representação e ideologia é um
processo desfetichizador de mão dupla, que transforma o estudo da produção do
conhecimento em veículo de crítica à dominação, no plano do sujeito individual”,
pois ambos, em relação, abrem caminho para novos conceitos capazes de
desvendar a trama do processo pelo qual o conformismo e a resistência são
consolidados no plano individual.
Ao concluir esta dissertação penso que no seguimento desta pesquisa, poder-
se-ia focalizar as representações das famílias, dos/as educadores/as, investigando
os diferentes significados que construíram sobre infância, família, escola, raça/etnia.
Pesquisar possibilitou-me achar algumas respostas, mas com certeza suscitou muito
mais perguntas, num processo infindável da compreensão do ser humano.
120
REFERÊNCIAS
ADORNO, Sérgio. A experiência precoce da punição. In: MARTINS, José de Souza
( Coord.). O massacre dos inocentes. São Paulo: Hucitec, 1993.
ALGEBAILE, Maria Angélica Pampolha. Entrelaçamento de vozes infantis. In:
KRAMER, Sônia; LEITE, Maria Isabel (Orgs.). Infância: fios e desafios da
pesquisa. São Paulo: Papirus, 1997.
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
_____. Entre o passado e o futuro. 5.ed. São Paulo: Perspectiva, 2003.
ARIÉS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro:
Guanabara, 1981.
ARROYO, Miguel. Ofício de mestre. Petrópolis: Vozes, 2002.
AZEVEDO, Maria Amélia; GUERRA, Viviane N. A. A violência doméstica na
infância e na adolescência. São Paulo: Robe, 1989.
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São
Paulo: Círculo do Livro, 1980.
BARBOSA, Irene M. F. Socialização e revelações raciais. São Paulo: FFLCH/USP,
1983.
BÁRCENA, Fernando; MÈLICH, Joan-Carlos. La educación como acontecimento
ético – natalidad, narración y hospitalidad. Buenos Aires: Paidós, 2000.
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo:
Summus, 1984.
BENTO, Maria Aparecida S. Resgatando a minha bisavó: discriminação racial e
resistência nas vozes de trabalhadores negros. São Paulo, 2002. Dissertação de
Mestrado. Pontífice Universidade Católica de São Paulo.
BERNARDES, Nara Guazzelli et al. Ser mulher, ser homem: significações
constuídas por crianças de classes populares. In: JACQUES, M. G. C. Et al (Org.).
Relações sociais e ética. Porto Alegre: ABRAPSO – SUL, 1995.
121
BERNARDES, Nara Guazzelli. Crianças oprimidas e submissão. 347 f. Porto
Alegre, 1989. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação,
Universidade Federal do Rio Grande do Su, Porto Alegre.l.
BOFF, Adriane. O namoro está no ar: um olhar sobre os afetos em grupos
populares. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 1998.
BOGDAN, Robert C. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à
teoria e aos métodos. Porto: Porto, 1999.
BOGDAN, R. e TAYLOR, S. J. Introduccion a los métodos cualitativos de
investigacion – La búsqueda de significados. Barcelona: Paidos, 1986.
BRUSCHINI, Maria Cristina. A estrutura familiar e trabalho na grande São Paulo.
Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 72, 1994.
BRUSCHINI, Maria Cristina; RIDENTI, Sandra. Família, casa e trabalho. Cadernos
de Pesquisa, São Paulo, n. 88, p. 30 - 36,1994.
CÂNDIDO, Antonio. Independência e morte. Folha de São Paulo, São Paulo,
7/9/1982,n.128, p.12.
CARONE, Iray. Breve histórico de uma pesquisa psicossocial sobre a questão racial
brasileira. In: CARONE, Iray e BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia
social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002.
CASTRO, Lúcia Rabello de. O lugar da infância na modernidade. Psicologia:
Reflexão e Crítica, v. 9, n. 2, 1996.
CAVA, Patrícia Pereira. O aprender: significações construídas por crianças de
classes populares. Porto Alegre, 1997. 171 f. Dissertação (Mestrado em Educação)
- Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
CHAMBOULEYRON, Rafael. Jesuítas e as crianças no Brasil quinhentista. In:
PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
2000.
CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber. Porto Alegre: ARTMED, 2000.
_____. Os jovens e o saber. Porto Alegre: ARTMED, 2001.
COSTA Eloísa Helena de Campos; GOMEZ, Carlos Minayo. Superar a cultura da
violência: um desafio para a escola. In: TEVES, Nilda; RANGEL, Mary.
Representação social e educação. São Paulo: Papirus, 1999.
DAUSTER, Tânia. Uma infância de curta duração: trabalho e escola. São Paulo:
Cadernos de Pesquisa, n. 82, p. 31 - 36,1992.
122
DUQUE-ARRAZOLA, Laura Susana. O cotidiano sexuado de meninos e meninas
em situação de pobreza. In: MADEIRA, Felícia R. Quem mandou nascer mulher?
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1997.
DURHAM, Eunice R. et al. Perspectivas antropológicas da mulher 3. Rio de
Janeiro: Zahar, 1993.
ENGUITA, Mariano F. A face oculta da escola. Porto Alegre: ARTMED, 1989.
FELIPE, Jane. Infância, gênero e sexualidade. Educação e Realidade, v. 4, n. 1,
jan/jul. 2000.
FONSECA, Cláudia. Família, fofoca e honra. Porto Alegre: Ed. da
Universidade/UFRGS, 2000.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 25. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1997.
FUNDO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A INFÂNCIA (UNICEF). Crianças em perigo:
eliminando o trabalho infantil que envolve situações de risco e exploração. In:
Situação Mundial da Infância. São Paulo: UNICEF, 1997.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva, 1997.
GARCIA, Regina Leite (Org.). Novos olhares sobre a alfabetização. São Paulo:
Cortez, 2001.
GOBBI, Márcia. Desenho infantil e oralidade. In: Por uma cultura da infância:
metodologia de pesquisa com crianças. FARIA, Ana Lúcia Goulart; DEMARTINI,
Zélia de Brito Fabri; PRADO, Patrícia Dias (Orgs.). São Paulo: Autores Associados,
2002.
GÓES, José Roberto; FLORENTINO, Manolo. Crianças escravas, crianças dos
escravos. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São
Paulo: Contexto, 2000.
GÓMEZ, A. I. Pérez; SACRISTÁN, J. Gimeno. Compreender e transformar o
ensino. Porto Alegre: ARTMED, 1998.
GÓMEZ, Rodríguez Gregorio; FLORES, Javier Gil; JIMÉNEZ, Eduardo Garcia.
Metodologia de la investigación cualitativa. Málaga: Ediciones Aljibe, 1996.
GUARESCHI, Pedrinho A. “Sem dinheiro não há salvação”: ancorando o bem e o
mal. In: GUARESCHI, Pedrinho A.; JOVCHELOVITC, Sandra. (Orgs.) Textos em
representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994.
GUARESCHI, Neuza Maria de Fátima. A criança e a representação social do
poder e autoridade: negação da infância e afirmação da vida adulta. 1991.
123
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Pontíficia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre.
______. et al. O cotidiano de meninas e meninos na favela: problematizando as
Políticas de Identidade. In: ______. ; BRUSCHI, Michel E. (Org.) Psicologia Social
nos Estudos Culturais. Petrópolis: Vozes, 2003. p. 129-158.
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes de. Socialização e recalque: A criança negra no
rural. Cadernos CEDES. São Paulo: CEDES, p. 49 – 84, 1993.
HEILBORN, Maria Luisa. Gênero e condição Feminina: uma abordagem
antropológica. In: UNICEF. Mulher e políticas públicas. Brasília: IBAM/UNICEF,
1997.
HILLESHEIM, Betina. Trabalho e infância na vida de meninos e meninas
trabalhadores(as) em lavouras de fumo. Porto Alegre, 2001. 144 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia) – Pontífice Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
IMBERT, Francis. A questão da ética no campo educativo. Petrópolis: Vozes,
2001.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios. v. 23. Rio de Janeiro: IBGE, 2002.
______.Síntese de Indicadores Sociais. 2002. Rio de Janeiro: IBGE, 2003.
JODELET, Denise. Représentation sociales: phénomènes, concept et théorie. In:
FARR, R.; MOSCOVICI, S. Psicologie sociale. Paris: Presses Universitaires, 1988.
JUNQUEIRA FILHO, Gabriel de A. Interdisciplinaridade na pré-escola. São Paulo:
Pioneira,1994.
KISHIMOTO, Tizuko Morchida. Jogos tradicionais infantis: o jogo, a criança e a
educação. Petrópolis: Vozes, 1993.
KRAMER, Sônia. Infância, cultura e educação. In: PAIVA, A.; EVANGELISTA, A.;
PAULINO, G.; VERSIANI, Z. (Org.). No fim do século: a diversidade. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
_____. A infância pré-escolar no Brasil: a arte do disfarce. São Paulo: Cortez,
1992.
LAJOLO, Marisa. Infância de papel e tinta. In: FREITAS, M. C. de (Org.). História
social da infância no Brasil. São Paulo: Cortez, 1997.
LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes,
2003.
MACHADO NETO, Zahidé. Meninos trabalhadores. Cadernos de Pesquisa. São
Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 31, p. 7 - 22, 1979.
124
MACLAREN, Peter. Multiculturalismo crítico. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo
Freire, 2000.
MARTINS, José de S. (Coord.) O massacre dos inocentes: a criança sem
infância no Brasil. São Paulo: ZPU, 1986.
MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. São Paulo: EDUSP/EPU, 1974.
MAZZOTTI, Alda Judith Alves. Repensando algumas questões sobre o trabalho
infanto-juvenil. Revista Brasileira de Educação. ANPEd, n. 19, p. 87-98, jan-abr,
2002.
MINAYO, Maria Cecília de S. O conceito de representações sociais dentro da
sociologia clássica. In: GUARESCHI, Pedrinho A.; JOVCHELOVITC, Sandra. (Orgs.)
Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994.
MOCHCOVITCH, Luna Galano. Gramsci e a escola. São Paulo: Ática, 1988.
MORAES, Roque. Análise de Conteúdo: Possibilidades e Limites. In: Paradigmas e
metodologias de pesquisa em educação. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 7-32, 1995.
MOSCOVICI, Serge. Representações sociais: Investigação em psicologia
social. Petrópolis: Vozes, 2003.
MOSCOVICI, Serge. Prefácio. In: GUARESCHI, Pedrinho A.; JOVCHELOVITC,
Sandra. (Orgs.) Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994.
MOURA, Esmeralda B. B. Crianças operárias na récem-industrializada São Paulo.
In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo:
Contexto, 2000.
PARÉ, Marilena. O desenvolvimento da criança negra. In: TRIUMPHO, Vera et al.
Rio Grande do Sul aspectos da negritude. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991.
PEREIRA, João Baptista Borges. A criança negra: identidade étnica e socialização.
In: Cadernos de Pesquisa. Fundação Carlos Chagas, n. 63, 1987.
PILLAR, Analice Dutra. Desenho e construção de conhecimento na criança.
Porto Alegre: ARTEMED, 1996.
PIZA, Edith. Os caminhos das águas: personagens femininas negras escritas
por mulheres brancas. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1998.
PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto,
2000.
RANGEL, Egon et al. O jovem, a escola e o saber: uma preocupação social no
Brasil. In: CHARLOT, Bernard. Da relação com o saber. Porto Alegre: ARTMED,
2001.
125
RAMOS, Fábio Pestana. A história trágico-marítima das crianças nas embarcações
portuguesas do século XVI. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das crianças no
Brasil. São Paulo: Contexto, 2000.
RECHIA, Tânia Maria. Concepção de infância: percurso histórico. São Paulo:
Línguas e Letras. n. 2, 2001.
SAFFIOTI, Heleich I. B. No fio da navalha: violência contra crianças e adolescentes.
In: MADEIRA, Felícia Reicher (Org.). Quem mandou nascer mulher. Rio de
Janeiro: Record, 1997.
SANTOS, Santa Marli Pires. Brinquedoteca. Petrópolis: Vozes, 1997.
SARMENTO, Manuel Jacinto. Conferência: Infância, exclusão social e educação
como utopia realizável. Fórum Mundial de Educação. Porto Alegre, 2001.
SARTI, Cynthia Andersen. A família como ordem moral. Cadernos de Pesquisa.
São Paulo, n. 91, p. 46 -53 1994.
_____. A família como espelho – um estudo sobre a moral dos pobres. São Paulo:
Cortez, 2003.
SAWAIA, Bader Bunhan. Representação e ideologia: O encontro desfetichizador. In:
SPINK, Mary Jane. O conhecimento no cotidiano – As representações sociais
na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense, 1993.
SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO (SMED). Documento com os princípios
aprovados no Congresso Municipal Constituinte Escolar. Porto Alegre, 1995, n/p.
______. Caderno Pedagógico. n. 9. 3.ed. Porto Alegre, 2003.
SCOTT, Parry R. O homem na matrifocalidade: gênero, percepção e experiências do
domínio doméstico. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n.73, 1990.
SILVEIRA, Simone Conceição da. Família é para todos? A perspectiva de meninos
institucionalizados. In: KALOUSTIAN, Sílvio M. Família brasileira a base de tudo. 4
ed. São Paulo: Cortez, 2000.
SOUSA, Sônia M. Gomes (Coord.). O significado de infância, educação e
violência física contra filhos. Goiânia: UCG, 2001.
VALLA, Victor Vincent. Analfabetismo: A crise da compreensão é nossa. Rio de
janeiro: Grupalfa, 1999.
VICENTE, Cenise Monte. O direito à convivência familiar e comunitária. In:
KALOUSTIAN, Sílvio M. Família brasileira a base de tudo. 4. ed. São Paulo:
Cortez, 2000.
VYGOTSKY, Lev Semenovich. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins
Fontes,1987.
126
_____. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
WANDERLEY, Luis Eduardo. Educação popular e processo de democratização. In:
BRANDÃO, Carlos Rodrigues (Org.). A questão política da educação popular.
São Paulo: Brasiliense, 1980.
ANEXO A
Desenhos das crianças:
Auto-retrato
Minha família
Eu na escola
Negro e não-negro
APENDICE B
Roteiro Entrevista
Nome.
Idade.
Sexo.
Concepção de família.
Moradores da casa.
Composição da família.
Condições da casa.
Ocupação e escolaridade das pessoas da família.
Concepção de criança.
Diferença entre ser criança e ser adulto.
Positividade de ser criança.
Negatividade de ser criança.
Finalidade da escola.
Positividade da escola.
Negatividade da escola.
Relação escola/vida.
O que gosta da vida de criança.
Mudanças que realizaria em sua vida.
Concepção de rico.
Concepção de pobre.
Diferença entre criança pobre e criança rica.
Perspectiva de profissão no futuro.
APENDICE C
Roteiro Atividade Lúdica
Qual o teu nome?
Qual a tua idade?
Agora eu vou te dar este brinquedo e fazer algumas perguntas.
O que tu dirias que recebeu?
Qual destes bonecos/as é o mais bonito/a? Por quê?
Como tu organizarias estes bonecos?
Que outra maneira podia organizar?
Que outra forma podia organizar?
O que poderias formar com estes grupos?
Agora me diz o que cada um faz em casa?
As crianças o que fazem?
E as crianças que vão para a escola também são cuidadas pelos adultos?
As crianças que vão para a escola o que fazem quando chegam em casa?
As crianças trabalham? (tarefas de arrumação da casa)
Agora tu vais me dizer uma profissão para cada boneca:
Tu achas que tem alguma diferença entre homens não-negros e negros?
Qual a diferença entre negros e não-negros?
Concordas com o racismo? O que tu achas do racismo?
Na nossa sociedade tu percebes alguma diferença entre negros e não-negros?
Sobre a profissão tem diferença?
As profissões são diferentes?
Quais as profissões de negros e não-negros?
Quem destes bonecos manda mais?
Organiza uma fila de quem manda mais até quem manda menos.
Quem não faz nada, não produz, então, não pode ter opinião?
Porque tu achas que os homens mandam mais que as mulheres?
Neste grupo quem menos manda?
Qual a diferença entre ser criança e ser adulto?
Quem manda nas crianças?
Porque as crianças não podem se mandar, se governar?
Porque as crianças pequenas não podem se governar?
130
As crianças obedecem aos adultos?
Como os adultos fazem para ser obedecidos?
Os homens e as mulheres exercem esta autoridade sobre as crianças?
O homem ou a mulher exerce mais autoridade sobre as crianças?
Mas na organização da fila, os homens exercem autoridade sobre as mulheres,
como ela é exercida?
De qual boneco/a tu terias medo? Por quê?
Qual boneco/a tu gostarias de ser no futuro?
Agora representa uma situação, a que tu quiseres.
Representa agora uma escola.
O que aprendes na escola?
Quem manda na sala de aula?
Os/as alunos/as obedecem à professora?
Como a professora faz para ser obedecida?
Organizar os/as bonecos/as em pobres e ricos?
O que significa ser pobre e ser rico?
Tu és rico/a ou pobre?
Existe diferença entre crianças pobres e ricas?
Esta obra está licenciada sob uma
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/br/">Licença
Creative Commons.
131
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo