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Muito além da
praça José Bonifácio:
as elites e os “outsiders”
em Cachoeira do Sul,
pela voz do Jornal do Povo.
1930-1945
Jeferson Selbach
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Muito além da
praça José Bonifácio:
as elites e os “outsiders”
em Cachoeira do Sul,
pela voz do Jornal do Povo.
1930-1945
Jeferson Selbach
Cachoeira do Sul
2007
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S464m SELBACH, Jeferson Francisco. Muito além da praça
José Bonifácio: as elites e os “outsiders” em Cachoeira
do Sul pela voz do Jornal do Povo, 1930-1945/Jeferson
Francisco Selbach. Cachoeira do Sul/RS: Ed. do Autor,
2007, 392p. il.
ISBN 978-85-905426-7-4
CDD 981 HISTÓRIA DO BRASIL
CDD 300 CIÊNCIAS SOCIAIS
CDD 710 PLANEJAMENTO URBANO
Direitos reservados a
Jeferson Francisco Selbach
Para Paula,
meu eterno amor
Capa:
Foto diurna e noturna da
rua Sete de Setembro,
no final dos anos 20,
depois das reformas.
De acordo com a Lei n.10.994, de 14/12/2004,
foi feito depósito legal na Biblioteca Nacional
Este livro foi autorizado para domínio público
e está disponível para download no site do MEC
FICHA DE CATALOGAÇÃO
Adaptação da tese de doutorado defendida no PPG de História da
Unisinos, em 2007, sob orientação de Dr. Eloísa Capovilla da Luz
Ramos, e co-orientação da dra. Rosemary Fritsch Brum
O pior crime para com
os nossos semelhantes
não é odiá-los,
mas demonstra-lhes indiferença:
é a essência da desumanidade.
Bernard Shaw,
Socialismo para milionários
Sumário
Apresentação ................................................... 11
Prólogo: nostalgia do tempo perdido ..................... 17
Parte I - Textos e contextos
1. Reflexões e inflexões
1.1. Os descaminhos do cotidiano ................................. 65
1.2. Autoridade e legitimidade da escrita ....................... 75
1.3. Jornal do Povo, para a elite .................................. 80
2. O vir-a-ser cachoeirense:
do espaço construído ao espaço habitado
2.1. Das disputas fronteiriças à formação da vila .............. 101
2.2. Independência e alterações urbanas ........................ 107
2.3. Os colonos plantam arroz irrigado
e colhem fortunas .............................................. 115
2.4. Metamorfose do espaço habitável ........................... 131
2.5. Refinamento de hábitos:
a prática cotidiana da elite cachoeirense .................. 166
3. A economia e a chegada dos novos bárbaros
3.1. Abundância e crise ............................................. 179
3.2 Os novos bárbaros estão chegando! ......................... 212
3.3. O entrincheiramento da elite
frente à invasão bárbara ...................................... 228
Parte II - Práticas cotidianas com verniz civilizador
4. Civilidade e convivência
4.1. Regramento de conduta como
fortalecimento e diferenciação da elite ....................255
4.2. Até que a morte os separe ................................... 272
5. Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
5.1. Lazer ao ar livre: entretenimento em público ............ 277
5.2. Ociosidade, alienação, elevação de espírito .............. 284
5.3. Diversão reservada só nos bailes e eventos sociais ...... 296
6. Transitando no espaço público
6.1. Praças ajardinadas: lócus da sociabilidade ................ 305
6.2. Trottoir do passante ........................................... 312
6.3. Nas ondas dos céus ............................................. 328
7. A classe perigosa deve ser contida
7.1. Influência nefasta dos outsiders ............................. 335
7.2. Canalhada ébria de vinho, tonta de fumaça ............... 346
7.3. Chame a polícia! ................................................354
7.4. Estado policiesco para manter
os “de baixo” afastados da elite ............................ 357
7.5. Tipos urbanos: a invenção da subalternidade miserável 366
Parte Final
Considerações finais ......................................... 377
Anexos ........................................................... 385
Apresentação
É com satisfação que apresento este livro, adaptação da Tese de Doutorado
em História, defendida na Unisinos pelo Jeferson Selbach. Tata-se de
pesquisador com percurso multidisciplinar. Sua graduação em Ciências
Sociais levou-me a conhecer sua capacidade de trabalho principalmente
durante o trabalho de conclusão ao qual tive o prazer de orientar. Seu
mestrado em Planejamento Urbano foi por vezes discutido comigo, quando
as dúvidas assolavam sua auto-confiança. O que é bastante esperado
nessa condição de estudos. Seu ingresso no PPG de História assinala o
momento em que passei a atuar efetivamente, após a qualificação do
projeto.
Em todas essas situações, demonstrou o afã e o perfil do pesquisador
arguto e disciplinado. Criou uma metodologia de busca, sistematização
e disponibilização de banco de dados que utilizou para a coleta de fontes
jornalísticas. Terror para qualquer historiador, essa metodologia facilita
enormemente o trabalho da escrita historiográfica, permitindo acessar
enorme volume de informações com um simples sistema de busca. O
princípio teórico dessa história por fragmentos, por certo é da genialidade
de Walter Benjamin, mas o candidato soube traduzi-la para o cenário da
construção narrativa do século XXI.
Historiador das cidades, já trabalhara sobre Novo Hamburgo (RS). No
Mestrado, à luz de narradores, mesclando literatura ensaística da fonte
jornalística, revelando um traço que é seu, Jeferson, a melancolia do
olhar sobre o urbano.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Apresentação, por Rosemary Fritsch Brum
12
13
Apresenta-nos Cachoeira do Sul, pela “voz” de um jornal local, o Jornal
do Povo. Aplica o mesmo método testado – e aprovado – no Mestrado.
Não contente, busca precioso acervos existentes nas instituições públicas
da cidade e eis as fotos, os mapas. E temos uma história visual de
Cachoeira do Sul. Lança estatísticas e traz o perfil sócio-demográfico
das elites, a par do quadro epidemiológico dos “bárbaros que estão
chegando” registrando como as elites e as camadas populares têm modos
diversos de representação pelas Ciências Sociais. Números que traduzem
inserções sociais diferenciadas e portanto valores distintos. Os
sobrenomes, pertencem aos primeiros.
Sua visão do social é dicotômica, mas não é estática. Se de um lado
contextualiza o pêndulo histórico que fez da cidade, a capital do arroz
no Brasil, seu momento de glória e afirmação simbólica para o presente
próximo da melancolia e de um certo saudosismo de cachoeirenses e
seus cronistas, não se fixa nisso. Se olhar simpatiza com aqueles deixados
à margem dessa crônica dominante sobre a cidade e seus locais de
freqüentação elitista. Embora os traga para a escrita historiográfica à
luz da visão conservadora do jornal, como afirma expressamente, essa
estratégia mal disfarça sua opção crítica.
Sua Tese é uma resposta a uma e apenas uma pergunta: saudades de
quem? Se a cidade pode abrir um leque de oportunidades econômicas
aos não-proprietários, durante décadas, ela não foi desfavorável para
todos, o tempo todo. A melancolia de Benjamin não se aplica, talvez
Proust retenha melhor essa sensibilidade de época.
A história da cidade de Cachoeira do Sul, que Jeferson nos apresenta
“abre novas páginas da história”, como um ex-professor meu costumava
dizer nas suas aulas de Teoria da História. O que estava distribuído e
relegado ao tempo, foi pacientemente tecido pela narrativa benjaminiana
aqui mostrada.
A nostalgia ontem e hoje, é relativa a uma historicidade que pertence
aos que socializados em determinado imaginário social, lamentam pela
cidade que acostumada a ver-se como microcosmos de uma civilidade
européia, sofisticada, vê-se estagnada economicamente. Enredada numa
vocação que não consegue mais cumprir.
Seu olhar de urbanista, aliado ao do sociólogo, conjugam-se para dar ao
historiador os argumentos, as balizas para fazer andar essa história urbana.
Em momento nenhum apelou para as soluções fáceis, macro-explicativas
e técnicas.
Percorreu o chão da História, o detalhe, o corte na rotina e na
cotidianidade que apontava para o novo compasso do tempo e do espaço
e das gentes.
Porto Alegre, março de 2007
Rosemary Fritsch Brum
Prólogo
nostalgia do
tempo perdido
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
Nos anos 1980-90, a imprensa de Cachoeira do Sul/RS, em especial o
Jornal do Povo (JP),
1
potencializou fortemente certa nostalgia ao passado
perdido, implicitamente os anos 20, período pelo qual a cidade passara
por transformações urbanas que modificaram profundamente as feições
da sua zona central, conseqüência do enriquecimento produzido pela
cultura do arroz irrigado, tempo tido pela elite local como pujante.
Foi essa nostalgia que me fez voltar os olhos para a Cachoeira dos anos
30-45, porque nas décadas subseqüentes a 20, a cidade recém-urbanizada
começou a sofrer fortemente o impacto da chegada dos imigrantes
subalternos, fruto do êxodo rural em curso. No curto período que
compreende a instauração do governo Vargas até o término da Segunda
Guerra Mundial, transformaram-se muitas das relações entre a elite
moradora da área central de Cachoeira e a população pobre que vinha
do campo e instalava-se nos subúrbios da cidade.
O episódio que ficou conhecido por Tira o Chapéu, publicado na Revista
Aquarela em 1957, exemplifica os limites explícitos que a elite
cachoeirense, mônada da brasileira, traçava para demarcar as diferenças
sociais na alvorada do século XX.
2
Em meados dos anos 1920, a praça
José Bonifácio, outrora praça do Pelourinho, zona central de Cachoeira
do Sul, acabou servindo de palco da brincadeira que acabou tragicamente.
Neste tempo, era clara a divisão entre elite “branca”, de origem lusa,
germânica ou mesmo ítala, e os subalternos, o povo ou a população pobre,
constituída principalmente por negros e mestiços. No logradouro central,
1
Utilizarei daqui pra frente, em alguns momentos, a abreviatura JP para designar o
Jornal do Povo, não só por questão de repetição mas porque comumente a comunidade
cachoeirense refere-se ao jornal dessa maneira.
2
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Tira o chapéu. Revista Aquarela, outubro de 1957.
o marco divisório para a prática do footing, passeio que se fazia a pé
para espairecer e aparecer, era a confluência das ruas Sete de Setembro,
ex-rua do Loreto, com a então 24 de Maio, ex-travessa do Ilha, denominada
também de rua Cantagalo, atual Silvio Scopel, face sul da praça. O espaço
da elite era à direita, a leste, e o da população pobre à esquerda, a
oeste. O sujeito “de cor” que tivesse a “petulância” de “entrar na seara
alheia” era prontamente retirado.
Um novo modelo de chapéu feminino havia sido lançado no Rio de Janeiro
e já causava frisson na capital gaúcha. Antes de ser vendido nas lojas
locais, o conhecido cachoeirense Balthazar Patrício de Bem, que tinha
residência bem em frente à praça, encomendou certa quantidade e
distribuiu-os em segredo para suas serviçais, todas mulheres negras, com
a condição de exibirem-no na praça do “belo sexo branco”, o que foi
feito.
3
Em resposta a iniciativa, a elite local protestou com gritos de
“não pode”, “abaixo os chapéus” e “fora, fora da praça”. Algumas noites
depois, a persistência das mulheres negras de usar o chapéu no espaço
destinado às brancas fez exaltar os ânimos. A Revista Aquarela descreveu
o fatídico momento da seguinte forma: “Toldaram-se os horizontes e a
chuva de pau desandou sobre a praça com violência, onde além da
madeira, correu o relho, o rabo de tatu e o facão, enquanto se viam
roupas cortadas, chapéus espedaçados e gente ferida”. A luta assumiu
aspecto de maior violência, sendo necessário intervenção policial.
Embora as diferenciações mostradas nesse episódio tenham-se tornado
mais implícitas nos anos seguintes, nem por isso desapareceram
completamente. Muitas, na verdade, assumiram novas roupagens, como
o sentimento de nostalgia desencadeado pelos descendentes dessa elite
cachoeirense. Os escritos jornalísticos dos anos 1980-90, em especial os
do Jornal do Povo, ao remeterem a narrativa ao tempo da segregação
social explícita que marcou o fazer urbano até a explosão da
subalternidade referida, reivindicavam tacitamente o desejo do seu
retorno, como pretendo mostrar daqui pra frente.
Quando conheci Cachoeira do Sul, no início de 2001, comumente ouvia
frases do tipo “nós éramos...” ou “naquele tempo é que era bom, era
diferente...”. Essa busca do passado idealizado é presentificada em muitas
rodas de conversa atuais. Posteriormente, descobri que esse saudosismo
dos “bons tempos”, de lembrar nostalgicamente o passado como o tempo
perfeito e idealizado, foi conseqüência do crescimento, na segunda
metade do século XX, em menor grau do que outras cidades, o que tirou
dela muito do prestígio econômico de outrora. Saltava aos olhos durante
as primeiras inserções na pesquisa ao jornal o fato de muitos textos –
reportagens, editoriais, crônicas ou mesmo as charges – explicitarem
incessantemente em seu conteúdo o tempo passado como “perfeito” e
“idealizado”.
4
Coincidentemente, remetiam-se a um período onde os
indivíduos sabiam o seu lugar na sociedade, onde os territórios espaciais
e simbólicos tinham zonas limítrofes bem demarcadas, de certa forma
segregadas, e onde a elite transitava com a liberdade de quem comanda
o espetáculo da rua.
Chamo de nostálgico esse retorno ao passado porque é feito de forma
distorcida, mitificada e seletiva, enxerga o ontem em acontecimentos
desconexos, resgatando somente partes do ocorrido, normalmente as
mais favoráveis, retirando essas partes de seu contexto original de tal
maneira que desvirtua a história do momento em questão. Esse olhar
nostálgico é feito efusivamente pelo Jornal do Povo, a quem intitulo
porta-voz da elite cachoeirense, tanto a dos anos 30-45, quanto sua
remanescente dos anos 80-90.
Comparo essa nostalgia da elite local, potencializada pela imprensa, ao
que Walter Benjamin denunciou de historicismo, olhar histórico que
carrega os despojos do passado dos vencedores no cortejo triunfal do
presente, espezinhando “os corpos dos que estão prostrados no chão”,
dos vencidos na batalha. É o olhar que traz consigo somente os bens
culturais dos dominadores ao contar a história, banindo os dos dominados.
Para Benjamin, realizar a contra-leitura seria olhar o passado de forma a
detectar as falhas que estruturam o presente, única maneira que
permitiria a “redenção”. Dar uma espécie de “salto de tigre em direção
3
O autor da brincadeira foi omitido na Revista Aquarela, mas a professora Ione Carlos,
do Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul/RS, revelou-me essa informação
em 2004.
4
Esta tese nasceu da idéia desenvolvida no projeto de pesquisa intitulado Jornal do
Povo 1929-2001: a influência do discurso jornalístico na construção da identidade de
Cachoeira do Sul/RS, desenvolvido em parceria com o filósofo Paulo Ricardo Tavares
da Silveira, desde 2001, em parte financiada pela ULBRA/Cachoeira do Sul. Por esta
razão, o banco de dados de notícias de jornal totalizou 8.017 fragmentos (1.633 páginas)
de 1929 a 2001.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
18
19
ao passado”, para buscar o “tempo-do-agora”, saturado de experiências
e orientado para a construção das condições de emergência do presente.
Ao detectar essas pequenas falhas que estruturam o sentido do passado,
o crítico que lança o olhar retrospectivo corrigiria decisivamente a
concepção historicista, nesse caso também a nostálgica.
5
O olhar nostálgico que impera no Jornal do Povo dos dias de hoje prende-
se, ao meu ver, a uma concepção distorcida da realidade porque remete-
se ao passado para nele buscar a parte valorizada, as lembranças de
determinado grupo social. Na leitura que faço do JP, procuro entender o
que esses nostálgicos buscam no passado e o porquê dessa busca. No
meu entender, resgatar os chamados tempos áureos no presente dá-se
em razão da inconformidade da presença dos “bárbaros” ou outsiders no
meio urbano, que na época a que se referem estava livre da sua presença.
Sem os pobres ou subalternos, a área central era higienizada e limpa.
Acredito que essa busca do tempo perdido esconde no íntimo sentimento
elitista, segregacionista e excludente, típico da sociedade dos anos 20-
40.
6
Em vários momentos dos anos 1980-90, a nostalgia aparece com muita
força nas páginas do Jornal do Povo. No início da década de 80, por
exemplo, a coluna Opinião elogiou a iniciativa de promover o carnaval
“anos 30”, através da enquete realizada com presidentes de clubes, como
José Noeli Lopes, da Sociedade União Cachoeirense (SUC), para quem
“reviver o passado é uma das coisas mais lidas que se pode fazer”.
7
A
coluna Panorama defendeu a feira-livre, algo que deveria ser preservado
“com muita carinho”, encarado com “mais ternura”, pois era a “fotografia
sempre presente do nosso passado”, quando “a vida era calma, pacata e
civilizada”, “gostosa de ser vivida”.
8
A mesma coluna desejava a volta do
passado glorioso, incentivando os cachoeirenses a mudar o dito popular
de “terra do já teve” para “terá de novo e muito mais”, respeitando o
passado mas sempre pensando no futuro, sem “contemplações amorfas
de um tempo que já está sepultado”.
9
A coluna social Helena, assinada por uma das proprietárias do jornal,
também contribuiu para este resgate, ao destacar os encontros das
senhoras cachoeirenses residentes no Rio de Janeiro, para relembrar “os
tempos vividos em Cachoeira do Sul, sua terra natal”.
10
Refutou a idéia
de que debutar estaria fora de moda, ultrapassado, démodé. Para ela,
seria a forma mais elegante de dar notícia para a sociedade de que a
jovem passou a constituir o grupo social: “sempre haverá debutantes,
enquanto houver sociedade e civilização. Enquanto houver poesia e amor”,
ponderou.
11
As matérias e editoriais do Jornal do Povo dos anos 90 acentuaram esse
apego ao passado. Em 1991, a reportagem Desemprego é a maior
preocupação dos cachoeirenses trouxe pesquisa de opinião pública
realizada com 347 cachoeirenses da zona urbana, apontando o desemprego
como o maior problema da cidade (82,4%). Segundo opinião expressa no
texto, Cachoeira sofria com “erros do passado, quando centrou sua
economia num comércio e indústria dependentes exclusivamente do setor
primário, liderado pela agricultura”.
12
No mesmo ano, a coluna Panorama
Geral destacou a opinião dos vereadores Natalício Morais, para quem
Cachoeira do Sul teve no passado representatividade política que nenhum
outro município de porte médio jamais alcançou, “só que os cachoeirenses
5
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: ___. Obras Escolhidas 1. Magia e
técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução Sérgio
Paulo Rouanet. 3
a
ed. São Paulo: Brasiliense, 1987. Ver ainda: PROUST, Marcel. Em
busca do tempo perdido. Rio de Janeiro: O Globo, 2003; RICKES, Simone Moschen. A
construção da memória e a condição da perda. In: Revista Horizontes, v.23, n.1, jan/
jun 2005, p.39-46 [disponível em http://www.saofrancisco.edu.br/edusf/revistas/
horizontes/ Horizontes-2005-1/horizontes-5.pdf – acessado em 10/1/2006]; POLLAK,
Michael. Memória, esquecimento, silêncio. In: Revista Estudos Históricos, v.2, n.3,
Rio de Janeiro: CPDOC/FGV, 1989, p.3-15 [disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/
revista/arq/43.pdf - acessado em 10/1/2006] e ENNE, Ana Lucia; TAVARES, Cristine.
Memória, identidade e discurso midiático: uma revisão bibliográfica [disponível em
http://www. castelobranco.br/pesquisa/vol1/docs/memoria2.doc - acessado em 18/
3/2006]. Interessante ainda a concepção de MORIN, Edgar KERN, Anne Brigitte. Terra-
Pátria. Tradução de Paulo Azevedo Neves da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2000, para
quem a nostalgia surge com muita força no fim do século XX, em razão da perda das
certezas no futuro.
6
Me aproprio, ao longo desta trabalho, do conceito de “estabelecidos” e “outsiders” de
ELIAS, Norbert. SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders. Sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Tradução Vera Ribeiro. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 2000
7
JP, 6/1/1980 Opinião. Carnaval “Anos 30”, p.2
8
JP, 20/5/1982 Panorama, p.4
9
JP, 3/3/1983 Panorama, p.3
10
JP, 22/7/1984 2º caderno. Helena. As cachoeirenses no Rio, p.3
11
JP, 30/6/1985 2° Caderno. Helena. Debutantes 85, p.3
12
JP, 25/8/1991 Desemprego é a maior preocupação dos cachoeirenses, p.8
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
20
21
não souberam tirar proveito”, e Henrique Möller, que culpou o fato da
cidade ter ficado ilhada em meios às rodovias federais.
13
Em junho de 1992, o jornal publicou Um Roteiro do passado ao presente,
destacando os sinais que “restam” do passado. No itinerário, a Aldeia,
núcleo primário do povoamento cachoeirense, a praça Itororó, local da
primeira hidráulica, o hospital, o cemitério das Irmandades, o prédio da
prefeitura municipal, construído para abrigar cadeia civil, Câmara
Municipal e Justiça, o Chateau d’Eau, a catedral Nossa Senhora da
Conceição, a praça Balthazar de Bem, o teatro que desabou, a rua Sete
de Setembro, cenário de vários prédios históricos, como a sede da União
dos Moços Católicos, Clube Comercial, Jornal do Povo, Banco da Província
e da Escola Superior de Artes Santa Cecília (ESASC), a praça José Bonifácio,
antiga praça do Pelourinho, que abrigou o Mercado Público, o cinema
Coliseu e a fonte das Águas Dançantes, a praça Honorato de Souza Santos,
local da estação férrea, os bairros Rio Branco e Santo Antônio, e o Parque
Municipal da Cultura, com museu, zoológico e jardim botânico.
14
Neste resgate nostálgico, as ruínas do Coliseu – o desabamento do telhado
ocorreu em 1985 – estariam encobrindo as glórias do passado. Poucos
cachoeirenses lembravam-se do tempo em que o prédio abrigara o cinema
“mais glamouroso” da região. A reportagem de 1994 resgatou parte de
sua história, desde a inauguração em 1938, com “toda a pompa que
merecia a então progressista cidade de Cachoeira do Sul”, a sua infra-
estrutura sofisticada, com projetores, microfones e eletrola importados,
o perfume borrifado pelo auditório, as poltronas de “estilo moderníssimo”,
as escadarias de mármore, os lustres, espelhos, galerias e palco, as
apresentações teatrais, como a de Procópio Ferreira, até a perda de
encanto nos anos 80.
15
Três charges de Roni Fortes, publicadas nos anos 90 no Jornal do Povo,
mostram a decadência do cinema Coliseu e da Casa da Aldeia. A primeira
[fig.1], em 1º de novembro de 1994, exigia o tombamento do cinema
antes que causasse algum acidente. A segunda [fig.2], de 1º de junho de
1998, leva a crer que o abandono da Casa da Aldeia seria devido ao
pouco interesse da população. Na terceira [fig.3], publicada em 10 de
fevereiro de 2001, insinua que a pretensa demolição do Coliseu não
apagaria suas lembranças.
13
JP, 12/11/1991 Panorama Geral. Verdades, p.6
14
JP, 4/6/1992 Um Roteiro do passado ao presente, p.7
15
JP, 19/11/1994 Ruína do Coliseu encobre a glória do passado, p.8
Outros dois ícones deste passado perdido foram o porto e o Rota 21. Em
1999, foi lançada a idéia de transformar o porto em centro de lazer e
cultura, semelhante à Usina do Gasômetro de Porto Alegre.
16
Já em 2000,
16
JP, 6/11/1999 Cultura no Paredão, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
22
23
Figuras 1, 2 e 3 -
Charges de Roni Fortes,
publicadas no Jornal do
Povo, sobre a
decadência do cinema
Coliseu e da Casa da
Aldeia. Fonte: Jornal do
Povo
o jornal fomentou o Rota 21, projeto importado de outras cidades que
chegou a ser considerado pelo JP a redenção de Cachoeira do Sul. A
proposta era uma espécie de agenda política-empresarial firmada por
segmentos da comunidade para atacar temas mais urgentes para
desenvolver o município e a região. O jornal considerou que os
cachoeirenses teriam de decidir entre “ficar presos a esperanças do
passado” ou “buscar novas soluções”.
17
O evento mais serviu para destacar
os nomes dos dirigentes empresariais do que qualquer outra coisa. Basta
ver a forma como foi organizado: coordenadorias temáticas elaboravam
propostas e posteriormente apresentavam para a “comunidade”, que
estaria, conforme o próprio jornal, “representada” no jantar realizado
na Sociedade Rio Branco.
18
Nos anos 90, o editorial Bom dia, leitor! foi usado em várias ocasiões
para explorar as mazelas cachoeirenses, quase sempre num misto de fim
definitivo, renascimento e resgate da pujança do passado, olhar histórico
impregnado da condição simplista que caracteriza o fazer da imprensa.
Em 1992, criticou a banalização do festejo farroupilha, que não ensinava
a história “do que foi realizado por nossos antepassados”, limitando-se à
cachaça, dança e comilança, relegado a segundo plano o aspecto cultural
da festa.
19
Em 1993, afirmou que o episódio da federalização das
faculdades cachoeirenses garantiriam o “resgate histórico de um erro de
interpretação do passado recente”.
20
A promoção do concurso Rainha do
Arroz do Rio Grande do Sul, em 1995, proporcionaria a Cachoeira do Sul
manter “elevado o moral” da comunidade, funcionando “como impulso”
para o município.
21
Em 1996, três episódios foram marcantes nesta rememoração mitificada.
A Praia Nova, área do antigo passo do Jacuí que foi dotada de infra-
estrutura, era exemplo da especialização humana: “Cachoeira do Sul,
pela antiguidade de sua existência e pelo subsídio deixado pelos
antepassados de alguns séculos, situa-se entre os núcleos humanos capazes
de liderar esta especialização. Por isso a liderança regional e sua
importância estadual”.
22
A não inclusão da BR 481 no plano viário do
Estado – “aglomeramento de erros e negligências do passado” – foi “duro
golpe para a intenção da comunidade cachoeirense em fazer funcionar o
porto do Jacuí”, transformando o município em “corredor da produção”.
23
O engavetamento do projeto da segunda subestação urbana da CEEE
mostrou como a cidade tinha perdido sua “força econômica”, era “lerda
no crescimento” e estava “parada no tempo”, um lugar onde “o futuro
não chegou”.
24
Numa das edições do projeto JP na Sala de Aula, o jornal
fez retrospecto do passado cachoeirense, iniciativa que considerou “ótimo
subsídio para estudos na sala de aula”.
25
Nos anos seguintes, o editorial abordou temas conflitantes, sempre na
perspectiva do passado mitificado. O fato de José Otávio Germano ter
sido nomeado Secretário de Transportes do Estado foi algo “absolutamente
inesperado e altamente positivo para Cachoeira”, ainda mais que o
município tivera simultaneamente o vice-governador do Rio Grande do
Sul e o chefe da Casa Civil do Presidente da República.
26
Essa condição
poderia transformar a cidade em “pólo de transportes no Rio Grande do
Sul”, trazendo “dias de otimismo fácil e de confiança absoluta”, “novas
pitadas de luz” que distanciariam “Cachoeira de uma de passado recente
e derrotista”.
27
Nesta perspectiva, reascendeu o debate em torno do
porto e da hidrovia, exaltando a figura do secretário, único que poderia
encontrar empresários que percebessem a “vantagem” de utilizar a
hidrovia, ao invés da rodovia, “trazer gente para ver o cais, propor sua
utilização, mostrar a boa vontade da cidade”. Para fazer o “casamento”
do “longo noivado” entre Cachoeira do Sul e o rio Jacuí era preciso
“padrinhos ricos e fortes”.
28
17
JP, 15/1/2000 Bom dia leitor. A rota e o Rota 21, p.2 e 11/4/2000 Bom dia, leitor!, p.2
18
JP, 11/4/2000 Cachoeira dá hoje passo decisivo para o futuro, p.1. Nas coordenadorias,
aparecem: Rosinha Cunha, Augusto de Lima, Sheila Boustany e Eládio Vieira da Cunha
(Motivação e Imagem); Homero Tatsch, Paulo Sanmartin, Antônio Trevisan (Economia);
Fábio Figueiredo, Cláudio Petrucci, George Schreiner e Glênio Altenbernd (Infra-
estrutura); Hilton De Franceschi (Política); Erli Calvet, Marta Caminha, Gilvan
Dockhorn, Angela Schuh, Nelson Schirmer, Samir Boustany, Lya Wilhelm, Rosita Bulsing
e Milton Kelling (Saúde e Educação). JP, 12/4/2000 Suplemento Especial Rota 21, p.4
19
JP, 17/9/1992 Bom dia, leitor! Uma semana para o comércio, p.2
20
JP, 24/9/1993 Bom dia, leitor! O caminho certo da incorporação, p.2
21
JP, 30/8/1995 Bom dia, leitor! Rainha do arroz, p.2
22
JP, 4/1/1996 Bom dia, leitor! A Praia da Cidade, p.2
23
JP, 18/1/1996 Bom dia, leitor! A estrada e o porto, p.2
24
JP, 6/9/1996 Bom dia, leitor! Energia e desenvolvimento, p.2
25
JP, 27/4/1996 Bom dia, leitor! A Cachoeira de dez anos na sala da aula, p.2
26
JP, 8/2/1997 Bom dia, leitor! O momento e a oportunidade, p.2 e 5/5/1998 Bom dia
leitor! Os vices de Cachoeira, p.2
27
JP, 5/3/1997 Bom dia, leitor! Transporte e iniciativa, p.2
28
JP, 28/10/1997 Bom dia, leitor! O porto e o Jacuí, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
24
25
Nesse sentido, algumas charges publicadas no JP contribuíram para
mitificar a situação. Numa delas [fig.4], publicada em 28 de julho de
1994, intitulada “progresso”, critica a concentração econômica no
comércio. Noutra [fig.5], de 29 de outubro de 1994, a figura de um canguru
pulando para trás representa o grupo empresarial que ensaiou instalar
unidade industrial na cidade, propósito nunca concretizado. Na terceira
[fig.6], de 28 de setembro de 1995, a crise do setor primário, atolado em
dívidas, leva o agricultor ao suicídio pelo enforcamento, utilizando como
trampolim sacos de arroz.
Figuras 7, 8 e 9
Charges de Roni Fortes,
publicadas no Jornal do Povo,
sobre a crise econômica
cachoeirense e o “estado de
espírito” da comunidade.
Fonte: Jornal do Povo
29
JP, 19/5/1999 Bom dia, leitor! O encontro de gerações, p.2 e 15/7/2000 Bom dia,
leitor! Volta ao passado, p.2
Figuras 4, 5 e 6
Charges de Roni Fortes,
publicadas no Jornal do Povo,
sobre a crise econômica
cachoeirense e o “estado de
espírito” da comunidade.
Fonte: Jornal do Povo
Este retorno ao passado era feito seguidas vezes e de várias maneiras:
publicação das memórias de cachoeirenses que participaram da “tarde
de lembranças e resgates de uma sociedade cachoeirense que não existe
mais”, organizada pelo Museu Municipal; bricolagem de imagens da cidade
presente e passada; projetos Memória, Grandes Temas e JP/Sesc na Sala
de Aula; coluna Páginas do Passado, etc. Para o jornal, essa era sua
missão: reportar fatos passados, recuperar o pensamento das lideranças
em épocas passadas, trazer para o presente o que os mais antigos viveram,
encontrar gerações, fazer um “feed back comunitário viável de
aproveitamento para o presente”. Rever o passado seria a “melhor
maneira de começar a trabalhar os problemas mais presentes”, pois o
passado ofereceria “referenciais e dados sobre os erros cometidos”. Os
erros históricos comporiam a base para o acerto.
29
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
26
27
Outras três charges procuraram refletir o “estado de espírito” da
comunidade, segundo a visão do jornal. Na primeira [fig.7], publicada
em 14 de julho de 1993, a pobreza seria sinal de que Cachoeira “ainda”
existia. Na segunda [fig.8], em 3 de agosto de 1993, a maior miséria
cachoeirense foi motivo de vitória sobre o município rival de Santa Cruz
do Sul. Na terceira e última [fig.9], de 17 de agosto de 1993, a rasura do
“en” no quadro deixa transparecer a decadência, ou o “fim” da cidade.
A rememoração mistificada do passado cachoeirense também aparece
de forma contundente entre cronistas. Geraldo Hasse foi exemplo por
relembrar facetas do cotidiano passado ao longo dos anos 80. A alma
cachoeirense seria fugidia, às vezes localizando-se num local, às vezes
noutro: habitara o estádio Joaquim Vidal até o Guarani parar de jogar;
alegrara o hipódromo do Amorim, o cinema Coliseu, a estação ferroviária,
até que todos esses espaços deixaram de ser usados. Parte desta alma
estaria “alojada entre as pedras irregulares que constituem o calçamento
de algumas ruas”, outra na praça José Bonifácio, nos sinos da igreja, nas
partidas de bocha e bolão dos clubes Náutico e Rio Branco, ou ainda no
“ruído surdo dos engenhos de arroz”. Se fosse possível inventariar
Cachoeira do Sul, a lista seria grande: Bar América, Café Frísia, a
bonbonnière na esquina da Sete de Setembro com a General Portinho, a
Casa das Sombrinhas, Casa Alaggio, Casa Augusto Wilhelm, União dos
Moços Católicos, Salão Maidana, Tipographia d’O Commercio, os plátanos
do bairro Rio Branco, os pardais que infestavam as ruas próximas ao
Engenho Roesch, os paralelepípedos das ruas tradicionais, a ponte do
Fandango, o barro que sustentava as olarias, o sino maior da igreja de
Santo Antônio, os cavalos no bairro Amorim, os freqüentadores habituais
do Bar Petersen, a Casa Matte, as paineiras da rua Major Ouriques.
30
Para
Hasse, muitos cachoeirenses sentiam saudades da antiga “Princesa do
Jacuí”, que deixara de ter circulando o jornal O Commercio ou o trem na
zona central da cidade. Muitos haviam se mudado para outras paragens,
como ele mesmo havia feito.
31
O retorno à terra natal propiciava ver a
própria fisionomia, “no rosto dos parentes, nos olhos dos amigos e também
nas envelhecidas casas, árvores, placas e letreiros que ocupam a invernada
mais distante de nossa memória”. Curtir a cidade não estando nela era a
forma de levá-la dentro de si.
32
Escreveu em 1985:
Sempre que fico um longo período sem rever a minha cidade, passo a ter a sensação de
ter virado outra pessoa. É como se eu fosse apenas uma lembrança de mim mesmo, uma
sombra, o negativo de uma fotografia cuja cópia em positivo se perdeu. É isso, voltar a
Cachoeira é remexer nas gavetas em busca de fotografias. Há gente que não precisa
disso. Eu, de vez em quando, preciso ciscar no passado para me ver melhor no presente.
Até dói um pouco, mas é saudável. É como livrar-se de uma doença. A gente se sente
mais forte. Mais vivo. Menos transitório.
33
A memória da cidade seria, para ele, o maior patrimônio da comunidade,
a primeira coisa a se defender, pois “nela repousa sua alma, sua
identidade, seu charme”. Por isso Cachoeira do Sul deveria assumir seu
passado e orientar seu destino, ou então “voltar a fazer parte de Rio
Pardo”.
34
Na coluna de artigos, foram publicados escritos de vários leitores em
tom nostálgico. Salita Abreu lembrou das bonecas de trapo confeccionadas
por “velhinhas da Cachoeira antiga”, que moravam na Sete de Setembro
“com entrada por um corredor estreito e comprido”, e faziam a alegria
das meninas da época que as compravam por 200$000 e 500$000 réis,
“conforme a roupagem”.
35
Carlos Dini, escreveu suas reminiscências sobre
as transformações na “Princesa do Jacuí”. O primitivo e demorado
transporte em balsas no Passo da Seringa contrapunha-se a ponte do
Fandango e o progresso do asfalto. Em nome do canal navegável acabou-
se com os banhos de praia na “bela ilha encascalhada”. A mudança da
estação ferroviária desafogou o tráfego da Júlio de Castilhos mas também
levou para longe a chegada dos trens Maria-Fumaça e os flertes que
rendiam futuros romances. O tradicional Mercado Público cedeu lugar à
fonte das águas dançantes. O surto de novas construções fez desaparecer
prédios de firmas tradicionais, como o Hotel do Comércio, Alaggio S.A.,
Hotel América, Foto Breitman. A televisão acabou com o cinema e,
conseqüentemente, com o tradicional footing nas noites de fim-de-
semana.
36
Carlos Bacchin lembrou dos “grenais” que ocorriam no início dos anos
60, quando o Bar América lotava de torcedores; das missas de domingo
pela manhã na igreja Santo Antônio, quando todos rezavam acompanhando
a prece do Padre Pessi e depois iam passear na praça José Bonifácio (“As
moças comentavam, ansiosas, as últimas novidades: tinham chegado na
30
JP, 30/11/1982 Geraldo Hasse. A alma da cidade, p.2 e 7/6/1983 Geraldo Hasse.
Inventário de Cachoeira, p.2
31
JP, 17/1/1984 Geraldo Hasse. E a princesa do Jacuí!, p.2
32
JP, 24/7/1984 Geraldo Hasse. O último dos moicanos, p.2
33
JP, 6/6/1985 Geraldo Hasse. Álbum de fotografias, p.2
34
JP, 20/6/1985 Geraldo Hasse. Memória curta de Cachoeira (I), p.2 e 25/6/1985 Geraldo
Hasse. Memória curta de Cachoeira (II), p.2
35
JP, 13/1/1980 A boneca de Azul. Salita Abreu, p.3
36
JP, 20/3/1980 Reminiscências transformações na princesa do Jacuí... Carlos Dini, p.4
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
28
29
cidade os rapazes do CPOR e outros oficias do Exército. Ótima
oportunidade para um bom casamento”); as sessões no cinema Coliseu
quase sempre lotadas; os bailes regados a cuba-livre e som da orquestra
Cassino de Sevilha; o “Expressinho” ligando Cachoeira do Sul a Porto
Alegre; a estrada sem asfalto que fazia o ônibus balançar “mais do que
sota-capataz dançando um vaneirão, em dia de fandango no Bonifácio
Gomes”.
37
Affonso Kury lembrou que recostava-se nas pilastras do Chateau d’Eau,
esperando horas a fio os ônibus a gasogênio. “Nada mudou. Essas estátuas
de mulheres gregas, semi-despidas, a despejar no lago bicas e jarras
d’água, me despertaram, na adolescência, pensamentos eróticos”.
38
Paulo
Gouveia recordou da “velha cancha do Amorim” transformada em
hipódromo, que entrou em decadência e que pretendia-se reativar,
“fazendo-o voltar à sua prometida e privilegiada situação”.
39
Dalila
Fonseca escreveu sobre a praça Honorato. Lembrou com saudades de
sua infância, quando ainda menina, debruçava-se sobre o muro da estação
ferroviária para ver e ouvir a chegada da Maria-fumaça.
40
Jorge Franco
escreveu sobre o futuro do passado de Cachoeira do Sul, cidade “bonita,
misteriosa e paradoxal”, onde as ruas tinham “seu ar de mistério” e
onde enorme massa de pessoas desejavam transformar a realidade, mas
o negativismo quase sempre estava “sentado num dos bancos da praça a
dizer que aqui nada dá certo”.
41
Entre 1993-94, Augusto César Mandagaran de Lima refletiu sobre a
Cachoeira que conhecera na infância, com o Mercado Público, a Fonte
das Águas Dançantes, as casas comerciais que se abriam para a calçada
através de portas altas e estreitas e que tinham um cheiro característico
de mercado como cereais, salames, azeitonas, bacalhau, misturados ao
odor de peixe fresco e verduras, e os passeios de domingo, de fatiota de
linho branco, gravata de nó duplo e pose para as gurias que passeavam
após a missa das 10 h. Sugeriu modificações na cidade, como chafarizes
a funcionar permanentemente na praça – “Tudo poderia ser uma
homenagem para o nosso passado, a nossa arquitetura perdida e trocada
pela atual amorfa e despersonalizada” – ou isenção de impostos sobre
imóveis considerados de valor histórico.
42
Comparou a sugestão de cobrir
os seios das ninfas do Chateau d’Eau, dada por alguns tempos depois da
inauguração, com a destruição ou modificação das fachadas históricas.
Ambas foram feitas em nome do progresso.
43
Numa crônica, lamentou o desaparecimento dos “valentes caudilhos”,
“corajosos que transformaram pequenas forjarias nas potentes indústrias
do nosso orgulho”. O espírito empreendedor que havia feito a Cachoeira
de sua infância perdera-se.
44
E noutra oportunidade, relatou a conversa
tida numa festa à beira da piscina, onde a nostalgia prendeu a atenção
de todos, pois as lembranças eram de uma Cachoeira “próspera, invejada
pela vizinhança”. Foi falado no Clube Comercial, cujo teto ameaçava
ruir pela quantidade de cupins. O assunto voltou-se para os bailes de
sábado,
quando as expectativas dos rapazes que se lançavam na sociedade local era a dos grandes
feitos, embora pontilhados dos embaraços naturais que premiam os iniciantes. Ficavam
parados à porta do Salão, junto ao degrau da pista. Agrupados, tímidos, com olhares
disfarçados para as ocupantes das mesas. Aguardavam um sinal incentivador ou um
rasgo de coragem para atravessar a pista e tirar para dançar aquela da escolha ou
predileção.
Não era nada fácil um imposição pessoal aos 15 ou 16 anos, quando metidos em “fatiotas”
e em ajustados colarinhos para gravatas de “nó duplo” deviam mostrar intimidade com
a audácia, a galanteria e mesmo com alguns passos de danças. As mãos eram o primeiro
embaraço. Ora estavam nos bolsos, ora gesticulando em apoio a teses intermináveis,
ignoradas por todos. Alguns, com estudada afetação brincavam com o isqueiro da moda,
enquanto o cigarro queimando na boca lançava fumaça sobre o rosto, em poses
“bogartianas” e disfarçadamente procuravam sua Lauren Bacall. A maioria buscava o
óbvio: as mais lindas, nem tão tímidas e de olhos profundos, ternos e sonhadores. Esta
era a busca de toda uma noite.
Após o Augusto Choaire e a Helaine Meneghello abrirem o baile, estavam todos convidados
a desempenhar o papel para o qual haviam sido convocados. A “Cassino Sevilha”, os
vestidos, os “ateliers de costuras”, os alfaiates, os barbeiros e os salões de beleza,
haviam sido o alvo das atenções de toda a semana. Faltava só o desempenho na iniciante
arte da dança e da conquista, conjugadas a uma boa conversa sobre amenidades ou
mesmo aquele prelibado romance.
37
JP, 3/9/1981 Panorama. Carlos Bacchin, p.4
38
JP, 29/8/1982 Segundo Caderno. Relembranças. Affonso Kury, p.1
39
JP, 5/9/1982 Terceiro Caderno. A velha cancha do Amorim. Paulo Gouveia, p.3
40
JP, 10/10/1982 Segundo Caderno. Minha cidade. Dalila Fonseca, p.7
41
JP, 27/6/1985 Panorama. Futuro do Passado. Jorge Franco, p.3
42
JP, 23/10/1993 Pequena crônica da cidade. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2
43
JP, 30/10/1993 Nossas ninfas. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2
44
JP, 20/11/1993 Pequena Crônica da cidade. Augusto César Mandagaran de Lima, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
30
31
Hoje isso não aconteceria, a juventude é mais rápida. Tudo que adquiriu em celeridade
perdeu em ternura. Dançava-se boleros, tangos, rumbas, sambas e mesmo valsas. Mas
isso não bastava. A procura era pela princesa mais bela e dos mais belos olhos. Eram
todos príncipes, pois estavam num dos melhores clubes que aquela juventude já havia
pisado. À porta ficavam, até o acaso, a decisão ou o descuido maldoso projetar para a
pista. Não tendo como disfarçar, tomavam a direção do alvo. Tudo então podia acontecer.
A aproximação a pretendida ignorava, mantendo conversa interminável com a
companheira do lado.
Havia ainda o olhar inquisitivo da mãe que sonhara com um Grão Duque D’Áustria para
a sua Sissi e não aquele assustado projeto de cavalheiro. O olhar do pai, então. Este
sonhara com um Rockefeller neto ou sobrinho e não aquele estudante sem qualquer
profissão. Ainda se estivesse fazendo concurso para o Banco do Brasil! Mas ali estando,
coisas desagradáveis podiam acontecer. A frente era cortada pelo zeloso e tardio
namorado, quando ela, todo sorriso, se erguia e deslizava enlaçada por outro. Ou então
a vitória da rapidez pertencia a um aspirante, em seu impecável uniforme, o que fazia
luzir os olhos dos guardiões e o cenho dos papais descontraiam como por encanto. Como
elas adoravam fardas! Aliás, comentava-se à época, que tenentes, em Cachoeira, não
eram transferidos solteiros. Eram a alegria das mamães e o alívio dos papais. Havia, no
entanto, os momentos em que tudo dava certo. Ela era linda, sabia eliminar os silêncios
constrangedores com a pergunta salvadora: - Que faculdade pretendes cursar? Medicina?
Direito? Engenharia? - Não, pretendo Arquitetura. Tudo estava salvo.
O assunto inevitável era a beleza do Clube, recém inaugurado, com suas salas de
recepção, de jogos, sua biblioteca e claro, o salão de bailes, com seus caríssimos
ornamentos, sancas e luzes indiretas. Rebuscado, mas ainda assim impressionante. O
Clube foi construído pela iniciativa de homens dedicados, com largueza de espírito,
que acreditavam em suas causas e principalmente nessa terra. Devoção, honestidade e
muito trabalho, estes os adjetivos para seus construtores. Éramos todos aprendizes de
uma cidadania consciente e responsável. Encontrávamos ali naquelas paredes, naqueles
tetos, os exemplos que expressavam a convicção e os anseios de muitos cachoeirenses
ilustres. Não precisávamos estudar longe para aprendermos de que argila eram feitos os
homens de verdade. Tínhamos em nossa cidade módulos bastante expressivos. Mais do
que isso, só era necessário um olhar profundo, terno, meigo, de um roçar de rosto ao
som de “Tender is the Night”, de uma mão que se demorasse mais quando a música
terminasse, um prelúdio de promessas que encheriam a noite e atravessariam dias,
semanas talvez.
A noite se tornava gloriosa, quando já na madrugada do domingo o restaurante era o
indicativo. A dois, entre lógicas “cubas-libres”, “filés com fritas” eram ordenados, para
a reposição do desgaste de tantos embates. Na saída, já à porta do grande hall,
aguardando o carro, ela se volta e com a estudada casualidade, que só a certeza permite,
pergunta: - Que filme passa no Coliseu? – “Ladrão de Casaca”, dizem que é muito bom!
A afirmação é sem muita convicção, mas guarda a chama tímida da esperança. - O lugar
ao meu lado vai estar vago. Não te atrases para a primeira sessão! O sorriso, menos
tímido, é o assentimento. O clarão do amanhecer anunciava o fim da noite, mas aqueles
olhos, mais profundos agora, anunciavam o início de muitas outras belas noites, nesse
nosso Comercial, ou naquele Coliseu de tantas promessas. Mas isso é assunto para outra
conversa.
45
Outra leitora, Elizabeth Feijó Marcuschi, poucos anos depois, em 1997,
lamentou algumas contradições vividas pela cidade: o aspecto de
abandono da Escola João Neves, outrora sinônimo de ensino público de
qualidade; o fechamento do cinema Coliseu, do qual só restava a fachada;
o número de lojas de R$ 1,99.
46
Na década de 90, as crônicas rememorando Cachoeira do Sul com nostalgia
aumentaram de freqüência, principalmente entre articulistas que
habitualmente publicavam seus escritos, como o engenheiro Chulipa
Möller, o empresário Paulo Sanmartin, os escritores Célia Maria Maciel e
Liberato Vieira da Cunha e a professora Vera Beatriz Machado de Freitas,
esses dois últimos ligados à família proprietária do jornal, além do mais
nostálgico de todos, o médico com pretensões intelectual, Carlos Eduardo
Florence, coincidentemente um dos colunistas mais lidos do jornal.
45
JP, 15/1/1994 Opinião. Pequena crônica da cidade. Augusto César Mandagaran de
Lima, p.2
46
JP, 28/2/1997 Artigo. Que encantos tem Cachoeira? Elizabeth Feijó Marcuschi, p.2
Figuras 10, 11, 12 e 13
Formadores de opinião habituais nas décadas
de 80 e 90: Célia Maria Maciel, Liberato Vieira
da Cunha, Chulipa Möller e Carlos Eduardo
Florence.
Fonte: Jornal do Povo
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
32
33
Para Chulipa Möller, era impossível evitar a comparação da Cachoeira do
passado com a do presente.
47
Em 1997, escreveu a crônica Bons tempos,
onde enumerou manchetes que estariam resgatando a auto-estima dos
cachoeirenses: conquista da Universidade Luterana do Brasil (ULBRA),
conclusão do porto, pavimentação da estrada da Ferreira e do aeroporto
e perspectiva de duplicação da Marcelo Gama. Todas elas estariam
indicando novos ventos a soprar em direção de Cachoeira, “afastando a
poeira de pessimismo que insistia em permanecer”.
48
O próprio cronista,
adepto desportista do basquete, construiu o ginásio de esportes auto-
denominado “Chulipão”, onde destinou espaço para o “Hall do Esporte”,
reunindo fotografias e currículos daqueles que construíram a história
esportiva cachoeirense, que divulgaram o nome da cidade além de suas
fronteiras.
49
Eventualmente, o engenheiro escrevia sobre a vida cultural da cidade,
mas sempre do ponto de vista da elite. Em 98, destacou a importância
da cultura para o resgate da auto-estima dos cachoeirenses. As
dificuldades enfrentadas pelos setores econômicos haviam esvaziado a
cultura, restringindo-a ao brilho pessoal e esforço isolado de poucos. A
criação da Associação Cachoeirense dos Amigos da Cultura (AMICUS)
poderia trazer de volta parte do encanto passado,
50
mesmo tratando-se
de entidade que direcionava seus interesses para a chamada alta-cultura
ou cultura erudita. Em 2000, ele próprio foi eleito presidente desta
associação.
51
Em algumas crônicas, Paulo Sanmartin destacou o passado glorioso de
Cachoeira, tempo em que todos tinham orgulho da cidade, “uma das
melhores do Estado”. Em sua memória, estavam marcados fatos como:
comemorações do centenário de Cachoeira, em 1959; poeira na estrada
para Porto Alegre; o Expresso Cachoeirenses que “não chegava nunca”;
as “tias” e “primas” que eram visitadas com freqüência.
52
Como
empresário, recordou em 2000 dos maiores empregadores de Cachoeira
do Sul, lista publicada pelo jornal sete anos antes. Das grandes empresas,
genuinamente cachoeirenses, poucas existiam.
53
Essa situação gerou o
quadro do êxodo de “conterrâneos que deixam nossa terra nas últimas
décadas em busca de trabalho, renda e realização profissional em outras
paragens”, “muitas vezes pessoas talentosas, que fazem falta à sua
comunidade”.
54
Era a recíproca duma cidade que, segundo ele, se havia
perdido não se sabia exatamente onde, que condenava os que faziam
sucesso.
55
Célia Maria Maciel cavoucava suas memórias recônditas de forma pastoral,
romanceada, poética e suave. Via Cachoeira como água de melissa, da
qual precisava beber de “quando em vez”, pois a água adocicada acalmava
Figuras 14, 15, 16 e 17
Formadores de opinião habituais nas
décadas de 80 e 90: Roni Fortes
(chargista), Paulo Sanmartin, Vera
Beatriz Machado de Freitas e Helena
Vieira da Cunha (colunista social).
Fonte: Jornal do Povo
47
JP, 7/8/1997 Chulipa Möller. Amigos velhos, p.2
48
JP, 15/5/1997 Fórum JP. Chulipa Möller. Bons tempos, p.2
49
JP, 19/3/1998 Chulipa Möller. Hall do Esporte, p.2
50
JP, 22/10/1998 Chulipa Möller. A feira, p.2
51
JP, 24/6/2000 Painel. Missão cumprida, p.4
52
JP, 22/10/1997 Paulo Sanmartin. Eu também lembro, p.2
53
JP, 19/4/2000 Paulo Sanmartin. Empresas, p.2
54
JP, 14/2/2001 Paulo Sanmartin. Êxodo de Cachoeira, p.2
55
JP, 10/5/1997 Opinião. Ética. Paulo Sanmartin, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
34
35
o tremor de suas mãos. Em ocasiões em que visitava a cidade, aproveitava
para passear pelos lugares que auxiliavam a rememorar seu passado
perdido: as escadas da escola João Neves; a casa onde residiu na rua
General Osório; a praça onde a mãe observava os termômetros na estação
meteorológica diariamente; o apogeu e glória do cinema Coliseu. Para a
escritora, o passado era pássaro que podia ser acalmado. “E o terei bonito,
a cada vez que voltar à Cachoeira”.
56
Vera Beatriz Machado de Freitas freqüentemente lembrava em seus textos
da Cachoeira do passado. Numa de suas primeiras crônicas, publicada
ainda em 1966, fez o contra-ponto entre o antigo e o novo. A cidade de
sua infância assemelhava-se a “grande família”, onde todos se conheciam
e colocavam cadeiras nas calçadas à noite para conversar, enquanto as
crianças brincavam despreocupadamente. Encantava-se com os peixes
coloridos do Chateau d’Eau e com as tradicionais matinês do cinema
Coliseu. Num tom de saudosismo, escreveu: “os anos foram passando,
Cachoeira foi crescendo e quase tudo mudou”.
57
Duas décadas depois, reforçou o caráter nostálgico de seus escritos ao
resgatar particularidades da cidade, minudências que explicitavam o
desejo de reviver seu passado perdido, na bela cidade de outrora. Mesmo
passando por dificuldades, Cachoeira era “faceira”, “orgulhosa” e “bela”,
“feiticeira” e “sedutora”, mostrava “face morena, enfeitada de rosado
insinuante, vestido roupagem luxuosa e atraente”, procurava criar
“beleza” e “aconchego”. Dentre as qualidades cachoeirenses estava o
“impenetrável” e “cauteloso” rio Jacuí, “símbolo real da própria cidade”,
cujas águas deveriam ser melhor aproveitadas, trazer “intenso
progresso”.
58
Nos anos 90, muitos de seus escritos tenderam para o passado
glorioso de Cachoeira ou para a exaltação das peculiaridades locais, dois
valores que mitificam o presente. Para ela, não era correto esquecer o
passado. Era preciso lembrar os fatos, as pessoas, os pedaços de história
que fizeram o “canto” e “encanto” dessa “terra dadivosa e terna”.
59
Neste sentido, a cidade não poderia ficar sem memória.
60
Os escritos de Liberato Vieira da Cunha eram menos idílicos e mais críticos.
Nem por isso as lembranças mais amargas deixaram de ser consideradas
com gosto “de arroz doce com canela em pó”.
61
Em 1988, escreveu sobre
o Chateau d’Eau, alçando-o a símbolo máximo de Cachoeira, comparando-
o ao Empire State Bulding de Nova Iorque, o Big Ben de Londres e o
Coliseu de Roma. Por ser marcante em sua infância, o monumento
cachoeirense remetia o escritor ao tempo da tranqüilidade, tinha “poder
calmante”, pois enquanto a cidade crescia e multiplicavam-se rostos
desconhecidos, o Chateau d’Eau mantinha-se como representação da
cidade pequena de seus tempos de criança, “sede” dos seus sonhos.
62
Dois outros textos de sua autoria apontam em direção semelhante. Em
96, na crônica intitulada Jardins de Abril, Liberato Vieira da Cunha
discorreu sobre o crescimento de Cachoeira em relação a outras cidades.
Para ele, era positivo o fato da cidade continuar pitoresca, no “sábio
ponto de equilíbrio em que as pessoas conhecem umas às outras e se
cumprimentam pelo nome”, no “sóbrio limite dentro do qual ainda é
possível, aos cavalheiros que se entregam ao hábito civilizado da
conversação nas mesas de café, estar em dia com os pequenos escândalos
municipais, sejam estes de ordem financeira, política ou romântica”, na
“sensata fronteira depois da qual existir deixa de ser branda convivência
para se transformar numa corrida ao trabalho, ao dinheiro, ao desamor,
ao analista de plantão”. Os poucos edifícios existentes não chegavam a
“roubar a vista do Jacuí” nem ameaçavam a “majestade das torres da
Matriz”. Enquanto outras cidades cresciam, Cachoeira do Sul continuava
com seu “encanto ancestral”.
63
Dois anos depois, em 98, escreveu A casa
desconstruída, onde apontou o espanto que teve ao ver demolida a casa
que vivera sua infância, modificações que turvavam suas memórias, que
“roubaram” o menino que nele ainda habitava.
64
56
JP, 10/1/1997 Água de Melissa. Célia Maria Maciel, p.2. Ver ainda JP, 27/7/1980 2º
Caderno. Minha mãe doceira. Célia Maria Maciel, p.3, 24/11/1985 2º Caderno. Nasce
um fantasma. Célia Maria Maciel, p.11 e 21/7/2000 Crônica. Célia Maria Maciel.
Maravilha, p.2
57
JP, 29/9/1966 Cachoeira da minha ternura. Vera Beatriz Machado de Freitas, p.2
58
JP, 8/1/1987 Palavra de cachoeirense. A Cachoeira de 86. Vera Beatriz Machado de
Freitas, p.4
59
JP, 21/5/1994 Ponto de vista. Vera Beatriz Machado de Freitas, p.7, 12/7/1997 Segundo
Caderno. Vera Beatriz. A caminho do Uruguai a memória de Cachoeira, p.7 e 18/4/
1998 Vera Beatriz. Alguém chega no outono, p.7
60
JP, 19/9/1998 Vera Beatriz. Cidade sem memória, p.7
61
JP, 18/9/1999 Crônica. Carlos Urbim. Doce Cachoeira, p.2
62
JP, 10/1/1988 2° Caderno. Château d’Eau. Liberato Vieira da Cunha, p.1
63
JP, 4/5/1996 Opinião. Jardins de Abril. Liberato Vieira da Cunha, p.2
64
JP, 7/2/1998 Artigo. A casa desconstruída. Liberato Vieira do Cunha, p.2. Em 2000,
Liberato Vieira da Cunha lançou o livro A companhia da solidão, seleção de 60 crônicas
escritas nos anos 90, com lirismo, humor e nostalgia, onde Cachoeira aparece em
importante papel. Ver JP, 7/10/2000 Segundo Caderno. A companhia da solidão, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
36
37
Mostra de como esse espírito nostálgico pairava no imaginário cotidiano
dos anos 90, eventualmente alguns cronistas habituais, como Eliseu Torres,
Ronaldo Tonet, Telmo Padilha, Luiz Antônio Caminha e Silvestre Silva
Santos, apontavam aspectos sobre o passado cachoeirense. Em 1993, os
dois primeiros articulistas criticaram esse retorno insistente ao passado.
Eliseu Torres escreveu sobre a necessidade de novos diagnósticos das
causas que estariam emperrando o progresso de Cachoeira, detendo-a
num “insuportável marasmo”. Ao invés dos tradicionalmente enunciados
ausência de liderança forte, de união ou de diversificação na produção,
propôs a suspensão da visão curta, estreita, insuficiente e mesquinha de
somente procurar a “grandeza perdida”, algo que estreitava os horizontes
locais. Segundo ele, os cachoeirenses temiam tudo o que era novo, sofriam
com o rompimento da mesmice, detestavam quando algo se movia, porque
tudo isso obrigava a levantar o olhar para o alto, para o futuro incerto e
não para o passado de glórias.
65
Ronaldo Tonet comparou os fuscas que o
então presidente da República, Itamar Franco, insistia em incentivar a
produção, com o apoio cachoeirense às promoções que resgatavam o
passado perdido, sempre apagando as más lembranças. Sua intenção era
criticar a federalização do ensino superior, com a incorporação da FUNVALE
pela UFSM, pois apoiava a vinda da ULBRA.
66
Luiz Antônio Caminha comparou esse sentimento que se havia enraizado
na mentalidade local e seria a razão explícita do “fracasso de Cachoeira
como comunidade”, como o daqueles que comiam galinha e arrotavam
peru ou, ainda mais grave, sequer comiam galinha. Para ele, a cidade
transpirava arrogância indevida e rançosa, “provavelmente herança gasta
de um passado de fausto que um dia viveu” e a mais “concreta e fatal
prova da decadência em que mergulhou há muito tempo”.
67
Na opinião
de Telmo Padilha, a decadência local era fruto da conivência, do
apadrinhamento e do “acompadramento” típicos de comunidades
menores, onde os “caciques” ou “lideranças” locais monopolizavam
ditatorialmente as decisões mais importantes, para conseguir “bons
acordos” e “trocas de favores”, sufocando aqueles que desejariam o
novo. O atraso era fruto desses oportunistas, “geradores” e
“mantenedores” da incompetência.
68
Citou o exemplo da falta de projetos
em infra-estrutura, únicos capazes de alavancar o futuro e “deixar para
trás o passado de derrotas e crises”.
69
Silvestre Silva Santos chegou a
profetizar a Cachoeira do futuro, quando inexistiriam os pessimistas,
porque tudo estaria ao alcance das vontades das pessoas.
70
Dentre os cronistas, o que melhor representa a atitude nostálgica é o
médico Carlos Eduardo Florence, com textos que remetem
sistematicamente ao passado perdido cachoeirense. Em certo período
durante 1993-94, publicou crônicas com títulos sugestivos, inspirados no
livro Cidades invisíveis de Ítalo Calvino: A cidade e as calçadas, A cidade
e as árvores, A cidade e a memória, A cidade e a depressão, A cidade e as
migrações.
71
Analisando algumas de suas publicações, nota-se
explicitamente a clara divisão entre passado valorizado e presente/futuro
depreciado, principalmente no que se refere aos aspectos urbanos. Como
ele mesmo escreveu, Cachoeira haveria de ser a “fênix ressurgindo das
cinzas”.
72
Coincidência ou não, o tempo passado que ele prestigia é o das grandes
transformações urbanas desencadeadas no fim dos anos 20, quando a
parte central da cidade recebeu melhorias para servir de palco à elite.
Compara as feições urbanas daquele período com as dos anos 80-90, que
julga de aspecto lúgubre e decadente. Quando sugere modificações,
pretende que se assemelhem às do passado. Numa de suas crônicas,
chegou a evocar a volta do intendente João Neves da Fontoura para que
a cidade passasse por novas e profundas transformações.
73
Num típico olhar de quem esquece as mazelas do passado e remete-se
somente aquilo que causa simpatia, Florence limita-se a retratar a
65
JP, 6/2/1993 Eliseu Torres. Calçadão, p.2
66
JP, 20/10/1993 Ronaldo Tonet Fuscas, p.2
67
JP, 12/4/1999 Luiz Antônio Caminha. Cachoeira do Sul tem coisas incompreensíveis,
p.2
68
JP, 3/2/1996 Opinião. Conivência e decadência. Telmo Padilha, p.2
69
JP, 28/5/1997 Fórum JP. Telmo Padilha. Me engana que eu gosto!, p.2
70
JP, 10/6/1995 Segundo Caderno. Crônicas. Loucuras Futuras. Silvestre Silva Santos,
p.4
71
CALVINO, Ítalo. As cidades Invisíveis. Tradução de Diogo Mainardi. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990. Ver JP, 27/11/1993 Carlos Eduardo Florence. A cidade e as calçadas,
p.2, 8/1/1994 Carlos Eduardo Florence. Opinião. A cidade e as árvores, p.2, 19/3/
1994, Carlos Eduardo Florence. A cidade e a memória, p.2, 30/4/1994 Carlos Eduardo
Florence. A cidade e a depressão, p.2 e 2/7/1994 Carlos Eduardo Florence. A cidade
e as migrações, p.2
72
JP, 23/9/1999 Carlos Eduardo Florence. Dias melhores virão, p.2
73
JP, 8/1/1994 Carlos Eduardo Florence. Opinião. A cidade e as árvores, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
38
39
Cachoeira de outrora com pinceladas homogeneizadas, revelando somente
parte da realidade passada e encobrindo a segregação espacial da época.
Em 98, afirmou textualmente que a memória era seletiva, “recorda-se
do agradável e do tempo que ainda tínhamos esperanças na cidade”.
74
As
ruas centrais dos anos 20-40, por exemplo, obedeciam traçado geométrico
civilizado; as calçadas do centro eram normatizadas, com piso
quadriculado em preto e branco, sinônimo de que a cidade “evoluía”.
75
A
administração pública mandava varrer essas ruas todas as manhãs e as
pessoas varriam suas próprias calçadas.
76
No coração da cidade, a praça
José Bonifácio ostentava pérgula, alamedas e recantos floridos, dando à
cidade ares modernos.
77
No quesito sonoridade, a cidade da sua infância podia ser lembrada pelo
apito dos engenhos ao meio-dia, “acalmando” a cidade; do badalar dos
sinos das igrejas, que podia ser “choroso” ou “festivo”, mas sempre
chamava para a “atemporalidade da vida”; dos tiros de canhões do
quartel, avisando sobre os “limites do pensamento”; do trotar das
ferraduras dos cavalos que puxavam as carroças dos padeiros cedo da
madrugada; do vento “Minuano” assobiando pelas ruas; do trem que
separava a cidade, “espantava os espíritos”, levava e trazia pessoas e
ligava Cachoeira com o mundo; da “encrenca” nas tardes de sábado; dos
“boleros” antes das sessões cinematográficas.
78
Para Florence, a Cachoeira
de “outros tempos” era importante no cenário estadual. O porto era
viável, chegando a ter mais de 30 barcos transportando produtos, e
escritores renomados visitavam a cidade, como Érico Veríssimo.
79
A fisionomia da Cachoeira do passado, valorizada pelo médico-cronista,
em muito se diferenciaria dos aspectos do presente, para ele
depreciativos. Dos trilhos ferroviários, por exemplo, formou-se corredor
ocupado ilegalmente, como “prova de improbidade e descaso com o bem
público”.
80
A Igreja Matriz que “centralizava a vida de Cachoeira”, como
“réquiem” da “individualidade” de cada fiel, foi reformada e fez
“Cachoeira perder sua identidade”.
81
O aumento populacional provocou
o crescimento desordenado, fazendo das novas ruas verdadeiro “labirinto
de incongruências”.
82
Caminhar pela zona central transmudou-se em
“aventura surrealista”, com buracos, lajotas soltas, paralelepípedos e
terra empilhados, lixo acumulado, troncos de árvores cortadas, camelôs,
cachorros, papéis no chão, tapumes trancando a passagem, “pivetes” e
“ladrões”, cadeiras nas calçadas, etc. Segundo Florence, este caos urbano
transformou Cachoeira num “lugar sofrível para viver”.
83
Nas ocasiões em que utiliza seus escritos para valorizar a cidade, Florence
refere-se a coisas herdadas do tempo em que a cidade provocava orgulho
em seus moradores. Resgata a arborização efetuada nos anos 20, “verde”
e “sombra” que seriam o “aspecto mais civilizado e de bem-estar” do
município: ipês, ciprestes, palmeiras, tipuanas, jacarandás, seringueiras,
plátanos, “árvores para qualquer tempo, qualquer afeto, qualquer
escolha”.
84
Para ele, nada seria mais civilizado do que essa flora
diversificada.
85
Também o Chateau d’Eau – o “mais importante ícone” da
cidade – deveria ser constantemente cuidado, com iluminação e
ajardinamento especiais, uma vez que atraía as pessoas quando ligavam-
se suas luzes e sua fonte, produzindo “magia” e “emoções”. Mantê-lo
ligado seria a coisa mais sensata em “qualquer lugar civilizado do
mundo”.
86
Outro aspecto de que a comunidade poderia se orgulhar era da cultura,
não a popular e multifacetada, decorrente do aumento populacional de
subalternos, mas da erudita, fortaleza inexpugnável da tradicional elite
cachoeirense. Foi o incentivo desse tipo de manifestação que rendeu-
lhe o apelido de “Dr. Cultura” nos meios elitistas. Em 1997, elogiou a
inauguração da Casa de Cultura, instalada na antiga residência de
Balthazar de Bem, em frente à praça José Bonifácio. Evocou suas
reminiscências de infância, quando era fascinado pelas fotografias,
74
JP, 17/9/1998 Carlos Eduardo Florence. Os sons da cidade, p.2
75
JP, 23/3/2000 Carlos Eduardo Florence. Asfalto na paisagem, p.2 e 27/11/1993 Carlos
Eduardo Florence. A cidade e as calçadas, p.2
76
JP, 8/2/2001 Carlos Eduardo Florence. Paisagem urbana, p.2
77
JP, 24/4/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. A praça da cidade, p.2
78
JP, 17/9/1998 Carlos Eduardo Florence. Os sons da cidade, p.2
79
JP, 25/3/1999 Carlos Eduardo Florence. Outros tempos, outras pessoas, p.2 e 13/7/
2000 Carlos Eduardo Florence. O dia em que Érico Veríssimo visitou Cachoeira, p.2
80
JP, 8/4/1999 Carlos Eduardo Florence. O caminho dos trens, p.2
81
JP, 30/7/1998 Carlos Eduardo Florence. A igreja que eu perdi, p.2
82
JP, 23/3/2000 Carlos Eduardo Florence. Asfalto na paisagem, p.2
83
JP, 27/11/1993 Carlos Eduardo Florence. A cidade e as calçadas, p.2, 25/1/2001
Carlos Eduardo Florence. Manual para procurar responsabilidade, p.2 e 8/2/2001
Carlos Eduardo Florence. Paisagem urbana, p.2
84
JP, 8/1/1994 Opinião. Carlos Eduardo Florence. A cidade e as árvores, p.2
85
JP, 24/4/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. A praça da cidade, p.2
86
JP, 29/5/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. O Chateau d’Eau, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
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41
prédios, ruas, eventos e pessoas da cidade, para enaltecer o local onde
seria guardada a história da comunidade, não de toda, mas de parte
dela.
87
No ano seguinte, incentivou o Clube de Cinema, iniciativa de
pequeno grupo que se propunha manter em funcionamento o Cine Astral,
grupo que o cronista chamou de “sonhadores” e “lutadores”, de pessoas
que acreditavam na existência de tempo para “transbordar cultura e
emoção”, que ofereciam “dotes culturais e democráticos para a maioria
da população”.
88
Na área das letras, Florence teceu comentários favoráveis a Liberato
Vieira da Cunha, no lançamento do livro Um visto para o interior – Viagens
a Cachoeira e outros mundos, porque o escritor havia colocado a cidade
no mapa cultural e literário brasileiro. Chamou a publicação de “manual
de sobrevivência”, capaz de recuperar a identidade cachoeirense, de
conscientizar a auto-estima local.
89
Ao Jornal do Povo denominou “espelho
de Cachoeira, às vezes claro, às vezes embaçado, mas totalmente
reflexivo da nossa vida e da nossa cultura”. No entender do cronista, a
história da cidade se fundia com a do jornal, unindo gerações, “memória
e futuro”.
90
Paradoxalmente, em várias ocasiões o cronista tece severas críticas à
cidade, posta de maneira generalizada, quando ele mesmo deprecia as
coisas presentes ao prestigiar o passado mitificado. Afirma que os
cachoeirenses (e aqui inclui todos, sem distinção) não valorizam o que é
seu. Segundo ele, a “autofagia social” – que tenta destruir tudo aquilo
que faz sucesso, que adora e cultua os fracassados – se tornou implícita
na cidade, vista no “pessimismo crônico” e na “falta de criatividade”.
Assim, Cachoeira seria duas em uma só: a “auto-destrutiva” e aquela
que “tenta fazer o seu caminho”.
91
Esta atitude depreciativa seria a
própria imagem da cidade que “vive, fala e respira depressão”,
“pessimismo doentio”, “mecanismo de auto-destruição patológico” que
estaria desintegrando e desanimando toda população.
92
Num mesmo sentido contraditório, Carlos Eduardo Florence critica a mania
de grandeza dos cachoeirenses, mas fomenta a volta do passado glorioso.
Escreveu sobre o “bonde errado” que a cidade teria pego, continuando
sua “longa jornada em busca da insensatez”.
93
Cachoeira seria a cidade
dos “êxodos” e das “migrações”, situação que teria criado dois tipos de
cidadãos: os que saíram em busca de oportunidades e os que resistiram.
Existem cidades cuja finalidade se esgota no fato de que ali se vive sem nenhuma forma
de identidade cultural que as defina e existem outras que transcendem o modo de vida
para uma marca, um orgulho, uma raiz. Isto é cachoeira. Não apenas se nasce aqui.
Crias um arquétipo que te marcarás por toda vida. Sempre serás o cachoeirense que se
civilizou antes das outras cidades, que sentas na praça, caminhas pela Moron e pela
Sete e tem fascinação pelo Chateau d’Eau, nem que seja como moldura para fotografias
de filhos, de netos, guardadas no afeto e na mente.
Agora todos estes ritos de ir embora, viver em outros lugares e continuar se sentindo e
sonhando com as nossas estrelas desenvolveram uma nova forma de cidade. A
descentralizada. Nestas margens do Jacuí temos o centro político cultural, o resto:
habitacional, comercial, industrial, universitária, de serviços espalhamos por este Brasil
afora. E hoje podemos dizer que Porto Alegre é a maior cidade cachoeirense do RS. Não
nos esgotamos num mapa urbano com limites definidos. E talvez por sermos planície e
pampa os horizontes são infinitos e as estradas também e daí fica tão fácil sair e procurar
outros trabalhos e outros sonhos.
Os que saíram de vez em quando voltam, fazem planos para o retorno definitivo e
caminham pelas nossas ruas em busca de si mesmos. Os que resistiram carregam e
mantêm o espírito da cidade e a sua preservação. E lançam um ultimato com prazos
definidos. Ou retornam todos e começamos de novo ou então embrulharemos o Chateau
d’Eau, as palmeiras, a Matriz, a Prefeitura e acabaremos de vez com inspirações, energias,
plenitudes e forças interiores. E daí prá frente fica só a saudade.
94
A nostalgia dos anos 80-90 não é algo inédito. Compartilha algumas
nuances com sentimento parecido dos anos 30-40. Já naquela época, as
práticas cotidianas da elite cachoeirense foram impregnadas de uma
mentalidade cujo resultado foi um conservadorismo que a imprensa local
potencializou intensamente. Tal atitude não era privilégio da elite
cachoeirense nem dos jornais locais. Os ideais do romantismo – que
procurava suporte nas coisas da natureza – mantinham relação ambígua
com o conservadorismo, na medida em que ambos redundavam na
mitificação e no reencantamento do mundo moderno, impregnado pelo
87
JP, 17/4/1997 Fórum JP. Carlos Eduardo Florence. A cidade e a Casa de Cultura, p.2
88
JP, 19/3/1998 Carlos Eduardo Florence. O Titanic e o Astral, p.2
89
JP, 28/9/1996 Carlos Eduardo Florence. A cidade e o escritor, p.2
90
JP, 10/7/1997 Carlos Eduardo Florence. Jornal do Povo, p.2
91
JP, 16/7/1998 Carlos Eduardo Florence. Antropofagia cachoeirense, p.2
92
JP, 30/4/1994 Opinião. Carlos Eduardo Florence. A cidade e a depressão, p.2
93
JP, 27/5/1999 Carlos Eduardo Florence. O bonde errado, p.2
94
JP, 2/7/1994 Opinião. A cidade e as migrações. Carlos Eduardo Florence, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
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racionalismo utilitarista.
95
O hábito sistemático de opor-se ao novo foi explicitado nas páginas do
Jornal do Povo. Em 1931, por exemplo, foi publicada nota intitulada Pela
moralidade, onde se anunciava o filme Vicio e beleza, em exibição no
cinema Coliseu. O jornal emitiu sua opinião conservadora, na expectativa
de estabelecer os parâmetros da moral e da boa conduta. Afirmou que se
tratava de “fita imoral, grosseiramente confeccionada, sem arte alguma,
que não deve interessar à população”.
96
Esse regramento social impunha
alguns procedimentos de praxe na época, como mandar publicar apedidos
declarando que nada se devia na praça ou sugerir que as professoras
ensinassem “preceitos elementares de conduta” para as crianças
respeitarem os jardins públicos.
97
Ingrediente típico do conservadorismo foi o racismo, evidente nas edições
do jornal em períodos diversos. Em 1931, a coluna Notas policiais
descreveu um fratricídio da seguinte maneira: “Depois de ter o referido
crioulo, se retirado, ali chegou A., perguntando onde ele achava o
negrão...”.
98
Posteriormente, o sentimento segregacionista da elite
tornou-se moderado, mas nem por isso desapareceu. Em 1945, a coluna
O público reclama noticiava a “maloca” montada por ciganos no Alto dos
Loretos. Segundo o texto, as famílias vizinhas aos ciganos acampados
procuraram a redação para reclamar providências no sentido de mudar o
acampamento dos “beduínos”, para outro lugar mais afastado da cidade.
O argumento utilizado foi da limpeza: “alegam os reclamantes que a
sujeira que se vem verificando naquele local, torna-se impossível
transitar-se por perto do abarracamento, tal o mau cheiro que exala”.
99
A nostalgia frutificou desse conservadorismo e permeou durante décadas
seguidas a vida da elite cachoeirense. Era, em certa medida, a recíproca
da crise do espaço público que se avizinhava com a chegada dos
subalternos. A nostalgia apareceu em muitos textos opinativos que
abordavam temas relativos à vida cotidiana. Em 1930, por exemplo, A.V.
escreveu sobre moços jovens que admiravam velharias e rendiam culto
às coisas antigas. Elogiou a atitude de conhecido seu que optou por plantar
mudas de arruda e de manjericão em casa, ao invés de roseiras finas,
porque era a vegetação preferida de seus avós. Para ele, feliz era o
tempo em que se chamava beijo de “bicota” e anel de “mamoria”.
100
Em 1934, Aurélio Lyra escreveu Recuerdos..., lamentando a perda de
peculiaridades que Cachoeira deixava para trás, como serenatas,
churrascos e carretas “compridas e morosas afinando as rodas lá para os
lados do matadouro”. Seu medo era que a cidade prosperasse em demasia,
mudando o cenário que lhe permitia reviver tempos de outrora.
Já ouço falar de avenidas, hotéis novos, clubes, etc.,– escreveu ele – e isso, de certa
forma, vem me atormentando. Eu quero rever a Cachoeira que deixei aí. Que haja
progresso, mas sem o sacrifício deste quadro que já vai ficando raro por estas alturas da
civilização. Eu quero encontrar em Cachoeira tudo o que me prendeu à sua vida: a terra
calma, e a gente boa.
101
Usando o pseudônimo “X” em 1937, um cronista fomentou esta nostalgia
do passado perdido ao desvelar liras à Cachoeira, “graciosa cidade
camponesa, banhada por um rio de águas morenas, encaixilhada no verde
das coxilhas e das várzeas”. O Jacuí, outrora rodeado por “lindas matas
que orlavam de um verde escuro suas margens” fora desfigurado pelo
“machado destruidor e progressista”. A cidade que conhecera na infância,
com o “índio, velho tocador de rabeca, a sua palhoça e o grande parreiral”,
havia sumido. A praça defronte à igreja matriz, que recordava como
profusamente arborizada com ipês, cedros, jacarandás, cinamomos e
cerejeiras, com “copas dando sombra e frescura à praça”, fora substituída
pelo cutelo urbanista, de “aspecto civilizado, moderno...” Próximo dela,
95
Ver FONSECA, Francisco. O conservadorismo patronal da grande imprensa brasileira.
In: Revista Opinião Pública. Campinas/SP: Unicamp, vol.9, no.2, out/2003, p.73-92
[disponível em http://www.scielo.br/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
62762003000200004&lng=pt&nrm=isso – acessado em 9/3/2006], ROMANO, Roberto.
Conservadorismo romântico, origem do totalitarismo. 2. ed. São Paulo: Unesp, 1997,
___. Reflexões sobre impostos e Raison d’État. In: Revista de Economia Mackenzie,
ano 2, n.2, 2003, p. 75-96 [disponível em http://www.mackenzie.com.br/
editoramackenzie/ revistas/economia/eco2n2/reveco2n2_art2. pdf – acessado em 9/
3/2006] e DUTRA, Eliana de Freitas. O Não Ser e o Ser Outro. Paulo Prado e seu
Retrato do Brasil. In:Revista Estudos Históricos, vol. 14, n. 26, Rio de Janeiro: FGV/
CPDOC, 2000, p.233-252 [disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/20.pdf
– acessado em 9/3/2006]
96
JP, 26/2/1931 Pela moralidade, p.3
97
JP, 21/1/1934 Despedida. Olivera Mesquita, p.1 e 17/1/1943 Notas locais, p.4
98
JP, 15/11/1931 Noticiário. Fratricídio, p.3
99
JP, 15/11/1945 O público reclama, p.4
100
JP, 21/12/1930 Velharias. AV, p.1
101
JP, 5/7/1934 Recuerdos... Aurelio Lyra, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
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lembrou do teatro municipal, cujas paredes estremeciam com as
companhias teatrais e líricas de renome, e que acabou desabando com
um grande temporal e foi transferido para o “barracão” próximo do
Mercado Público. Na Cachoeira de sua memória, não havia doentes ou
mendigos, não se morria “senão de morte natural e de moléstias antigas”.
As ruas não eras calçadas nem iluminadas, mas a “água não tinha micróbios
nem cloratos”, “os impostos não arrochavam o povo” e “a vida corria
sem tropeços eleitorais”.
102
A crônica publicada na semana seguinte
resumiu a percepção nostálgica do mesmo autor: “Decididamente,
Cachoeira está bonita, está moderna, mas... acabou-se o que era bom!”
103
Esse sentimento de nostalgia aparecia muitas vezes como oposição à
tendência mundial de exaltar os novos tempos como tempos das inovações
e do progresso, do desenvolvimento tecnológico e científico, visto
prioritariamente na acumulação de aquisições materiais e de
conhecimentos objetivos capazes de transformar a vida social e de
conferir-lhe maior significação e alcance no contexto da experiência
humana, na maioria das vezes sem o menor senso crítico que tal posição
acarretava.
104
A imprensa foi tida como cama de salto capaz de permitir
a concretização desses ideais, no que tange a sua capacidade de insuflar
no imaginário social a idéia ilusória e ingênua de progresso ou de nostalgia,
de acordo com as circunstâncias econômicas, sociais, políticas e culturais
da época.
105
Imbuído do espírito conservador, pano de fundo da nostalgia, o Jornal do
Povo criticou o progressismo num editorial de janeiro de 1932, julgando-
o como “gigantesca e tortuosa escada do mundo hodierno”, colossal
embarcação onde “os passageiros se espremem e se atropelam, ansiosos
por desembarcarem no porto das utopias”. Em outras palavras, multidão
atônita caminhando em trajeto tortuoso, num rumo oposto à verdade e
à justiça. Para o jornal, os progressistas abandonavam as virtudes da
tradição ao despirem-se “das vestes dos preceitos gravados naqueles
intangíveis e austeros templários, de onde culminavam e se difundiam os
mais puros princípios de sãs virtudes”. Além disso, arvoravam-se em
“representantes da sensatez coletiva”, ostentando perante “os olhos
dos bococos e inscientes”, a “falsa aparência de dignidade”, de forma
“hipócrita”. As aspirações de desenvolvimento eram “caprichosas” e
“egoístas”, enveredavam por caminhos “espinhosos” e “intermites”,
esqueciam os mais fracos, faziam-se surdas “ao clamor das turbas
esfarrapadas, alheia a desventura da pobreza”, indiferentes à “gratidão
dos favores recebidos”, irreverentes ao “respeito da velhice e do lar
alheios”, prepotentes “para com os fracos”, desdenhosas “para com os
modestamente trajados”.
106
Apesar desta posição conservadora, o jornal eventualmente abria espaços
em suas edições, nos anos 30-45, para cartas de leitores exaltando o
progresso de Cachoeira e o patriotismo dos munícipes. Cely Adel Guarani
de Bem escreveu que o município avançava em “magníficas arrancadas”
102
JP, 24/1/1937 Crônicas. X, p.1
103
JP, 31/1/1937 Crônicas. X, p.1
104
Como vozes dissonantes dessa tendência, Walter Benjamin e Theodor Adorno, já
alertavam para o fato de que os anseios progressistas redundavam numa confusão
entre progresso das técnicas e dos conhecimentos com progresso da humanidade em
si. O progresso material, das técnicas emancipacionistas e o dos saberes resultavam
em satisfações das necessidades humanas, tornando-se, assim, marcas indeléveis
do processo progressivo, mas o progresso moral da humanidade não seguia
imediatamente estas conquistas materiais. Este conceito de progresso humano
repousava na constituição social global e no sujeito consciente de si mesmo, únicas
armas capazes de afastar o desastre total que se avizinhava em fins dos anos 30. O
verdadeiro progresso consistiria na guerra contra o triunfo do nazi-fascismo, na
resistência ao constante perigo de regressão à barbárie que o totalitarismo
representava e na possibilidade de evitar a catástrofe integral. Nesta lógica, se pelo
progresso intelectual seria compreensível o discernimento entre o certo e o errado,
mas que o desenvolvimento moral não o acompanharia concomitantemente, a
inteligência humana, a técnica e as conquistas materiais poderiam ser postas a
“serviço das trevas”. Ver ADORNO, Theodor. Progresso. Tradução de Gabriel Cohn.
In: Revista Lua Nova, nº 27, 1992. BENJAMIN, Walter. A modernidade e os modernos,
tradução de Heindrun Mendes da Silva, Arlete de Brito e Tania Jatobá, série Estudos
Alemães, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas
I. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura.
op.cit., 1987. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas II, tradução de Rubens Rodrigues
Torres Filho de José Carlos Barbosa, 5ª edição, São Paulo: Brasiliense, 1995. BENJAMIN,
Walter. Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo,
tradução de José Martins Barbosa e Hemerson Alves Baptista, São Paulo: Brasiliense,
1989. BENJAMIN, Walter. Paris, capital do século XIX, In: KOTHE, Flávio (org.), Walter
Benjamin: sociologia, São Paulo: Ática, 1985
105
Interessante a análise de VENEU, Marcos Guedes. O flâneur e a vertigem, metrópole
e subjetividade na obra de João do Rio. In: Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
v.3, n.6, 1990, p.229-243, que mostra através de contos, reportagens, crônicas e
conferências de Paulo Barreto, sob pseudônimo João do Rio, acerca do progresso
metropolitano ameaçador.
106
JP, 21/1/1932 Editorial, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
46
47
e progredia sob “influxos de um labor inteligente e constante”. Como
“pedaço mágico de terra”, tinha “fertilidade”, “beleza” e “opulência”,
permitindo aos “heróis que a povoam” os “grandes empreendimentos”.
107
Para outro leitor, a cidade precisava submeter-se “pacientemente” aos
“sacrifícios impostos pelo progresso”.
108
O tenente-coronel Francisco
Pessoa Cavalcanti registrou suas impressões positivas, destacando os
“vales alcantilados e fertilíssimos”, o rio Jacuí e o saneamento urbano,
exemplos que mostravam, segundo ele, o progresso e a florescência da
cidade.
109
Para J.D.L., Cachoeira havia sido gerada no advento do
modernismo, não precisaria destruir nada, somente edificar.
110
Bidico
Turco chegou a escrever uma oração para abençoar os avanços materiais
do município:
Benditas sejas tu, pelas tuas casas, quietas que sorriem num riso claro de bondade;
pelas tuas igrejas erguidas que vivem num namoro eterno com o azulamento imaculado
do firmamento. Benditas sejas tu, pelas tuas avenidas amplas e ensombradas; pelas
tuas fábricas potentes que vomitam anelões azulados de fumaça denunciando o progresso
dos teus filhos. Benditas sejas tu, pelas tuas calçadas mudas e pensativas; pelas tuas
árvores verdes e bonitas que lembram as copas fartas aonde repousavam da jornada os
patriarcas bíblicos. Benditas sejas tu, Cachoeira progressista, pela glória de seres mãe
de Virgílio de Abreu, a personificação esplêndida da cultura e da inteligência. Cachoeira,
eu me orgulho de ser teu filho, porque a tua história é nimbada por uma auréola luminosa
de paz, de ordem e de labor. Recebe, pois, cá de meu carinho e do amor a reverência
profunda da minha saudação.
111
Em 1945, Wilson B. da Silva imprimiu na crônica Para ti, Cachoeira do Sul
lirismo verdadeiramente apaixonado pela cidade. A pequena Cachoeira
de outrora havia se transformado. A “aurora do progresso” dissipara as
“trevas do esquecimento” em que se encontrava. No lugar das “velhas
casas” foram construídos edifícios; indústrias e engenhos floresceram;
estradas foram alongadas; surgiram colégios, igrejas, quadras de esporte,
linhas aéreas e demais melhoramentos. Conquistas devidas aos “filhos
entusiastas”, que “tudo fizeram”, com sacrifícios e trabalho extasiado.
Para ele, isso não bastava: “Precisas ir mais para frente, em busca de
novos progressos”.
112
No mesmo ano, Fúlvio da Silveira Bastos escreveu
de forma semelhante. Sob o título Curvo-me, reverente..., destacou os
jardins, as praças, a mocidade exuberante, os salões sociais, o colorindo
das ruas nos fins de tarde, o intenso movimento no bairro comercial, as
fornalhas escaldante nas fábricas e a pujança dos arrozais que
desencadeavam vertiginosa onda de progresso e vida.
113
Paradoxalmente, conservadorismo e exaltação do progresso
apresentavam-se como faces da mesma moeda. Ambos traziam consigo
em comum a idéia de troca. Por um lado, se ela fora justa, não ocorreria
progresso, dada a permanência no mesmo patamar. Por outro, a
necessidade em manter a relação de troca desigual para conservar o
status quo dos estabelecidos. Na dinâmica capitalista, estas questões
foram colocadas de forma extraordinária. Na apropriação de poucos em
detrimento de muitos, residia este princípio, que longe de ser estático,
tornou-se extremamente dinâmico. Por esta razão, o conservadorismo e
o progresso da época resultaram em tipos semelhantes de dominação
social por parte da elite.
A partir do exposto, depreende-se que a nostalgia potencializada pela
imprensa cachoeirense, a partir da década de 80, tenha relação direta
com as condições sócio-econômicas da cidade. O crescimento em menor
medida de Cachoeira, quando comparado a outras cidades, fez com que
se perdessem valores considerados fundamentais para a elite local.
Contudo, acredito que o ímpeto nostálgico é fruto da perda do espaço
público por parte da elite, principalmente a zona central, onde
materializaram-se muitos dos ideais urbanos elitistas nos anos 20, época
em que os subalternos mantinham-se nos limites espaciais/simbólicos
que lhes eram impostos. Conforme o historiador Jacques Le Goff, o futuro
aparece, nesta perspectiva, de duas formas: o fim talvez definitivo ou
inserido num ciclo cuja morte é seguida de renascimento, visões históricas
que se traduzem sob forma de periodização e provocam querelas, em
especial a dos “antigos” versus a dos “modernos”.
114
Desta maneira, quem fomenta o olhar nostálgico, acaba criticando o
período em que vive, em nome de valores do passado, e critica o
progresso, realçando suas marcas mais derradeiras. Mesmo o desejo de
107
JP, 5/8/1937 Cachoeira, seu progresso e o patriotismo de sua gente. Cely Adel Guarani
de Bem, p.1
108
JP, 12/12/1937 A anunciadora “Voz de Cachoeira”, p.6
109
JP, 8/5/1938 Cachoeira impressões. Tent. Cel. Francisco Pessoa Cavalcanti, p.1
110
JP, 12/5/1940 Cachoeira! J.D.L., p.3
111
JP, 20/2/1938 Vida Social. Oração à Cachoeira. Bidico Turco, p.2
112
JP, 4/2/1945 Para ti, Cachoeira do Sul. Wilson B. da Silva, p.3
113
JP, 20/11/1945 Curvo-me, reverente... Fúlvio da Silveira Bastos, p.2
114
LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão. Campinas/SP:
Editora da Unicamp, 1990, p.422
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
48
49
progredir reveste-se da condição de resgatar a pujança que se tinha
anteriormente. A resposta da elite cachoeirense caminha no sentido de
acentuar o apelo mitificado ao passado, visto freqüentemente nas
publicações das crônicas, reportagens e editoriais evocando memórias,
os tempos áureos ou o passado glorioso, como foi mostrado anteriormente.
Frente a essa situação dos anos 80-90, a resposta da elite cachoeirense
foi justamente apegar-se aos feitos passados, como se eles pudessem
trazer de volta aquela época, considerada progressista, mesmo que num
sentido muito mais de competição com relação a outras cidades do que
comparando as épocas passadas. Por isto na Cachoeira do Sul dos dias de
hoje é muito presente essa questão da nostalgia, esse apego às glórias
de outrora. É nesse sentido que a elite parece acomodar-se, “deitar em
berço esplêndido”.
Cabe ressaltar que a nostalgia presente no discurso da imprensa é posta
de forma generalizada, como se fosse algo de toda comunidade. Embora
não discuta aqui a trajetória das pessoas que migraram do campo para a
cidade, é natural pensar que elas vieram em busca de melhores condições,
pensar quanto a cidade atraía, legítimo canto de sereia que prometia
uma vida melhor estruturada, maiores oportunidades de crescimento e
ganhos. Mesmo que tais promessas não foram cumpridas, o fluxo
migratório campo-cidade não se inverteu, tampouco as pessoas deixaram
de fugir do campo. Mas, através da imprensa cachoeirense, não é possível
saber o que pensavam esses migrantes, pela simples ausência da fala dos
subalternos nos jornais. Estudos apontam a existência de certa nostalgia
no campesinato brasileiro, representação idealizada tendo o passado como
“estável” frente às incertezas do futuro.
115
A diferença reside na busca
daquilo que se “perdeu”: para os subalternos, a estabilidade; para a
elite cachoeirense; o domínio simbólico do espaço urbano homogeneizado.
Mostra dessa diferença é o fato do jornal ser o porta-voz da chamada
crise, mas levar a crer que não passa por privações econômicas dela
decorrentes. Remete para fatos aos quais parece estar imune. O artigo O
nosso jornal,
116
assinado pelo diretor do Jornal do Povo, Eládio Vieira da
Cunha, exemplifica essa questão, ao mostrar o jornal numa imagem
progressista, diferente da imagem negativa e retrógrada de Cachoeira,
comumente evocada nas edições do jornal, tanto nas reportagens quanto
nos artigos opinativos. Ele usa abundantemente superlativos – instrumento
de amplificação das idéias, defensor dos interesses, vigoroso incentivador
de iniciativas, estimulador da cidadania, promotor de desenvolvimento,
sétimo maior diário do interior do Estado em número de exemplares e
qualidade gráfica e editorial – para marcar as diferenças entre o jornal e
a cidade. Em resumo, o JP seria vencedor numa cidade perdedora. Se
para o jornal a decadência da região passaria ao largo, a mesma lógica
pode ser aplicada aos demais membros da elite local. Desta forma, o
mote da nostalgia elitista não reside na perda da liderança econômica
do município, mas no fato do espaço público ter sido invadido pelos
outsiders.
É partindo dessa idéia de nostalgia e idealização do passado pela elite
cachoeirense e tomando em conta, entre outros, o episódio descrito
logo no início, que penso a cidade de Cachoeira do Sul para este trabalho.
De que cidade falam as elites do final do século XX quando se voltam
para o passado através das páginas do jornal? O que as reportagens,
editoriais e cronistas habituais rememoram? O que caracteriza esta cidade
(re)lembrada para despertar tal sentimento de forma generalizada entre
a elite cachoeirense? O que se fazia na época e se deixou de fazer
posteriormente a ponto de despertar tanta saudade? Considero que essa
reconstituição não parte exclusivamente das próprias memórias de quem
as escreveu, visto que muitos necessariamente não viveram naquele
período, mas estão baseadas em lembranças de quem conta a história
local. Essa nostalgia, portanto, não parece ser de toda comunidade
cachoeirense, mas de uma elite, leitora e dirigente do jornal, que sonha
com seu paraíso perdido e faz de suas memórias as memórias de todos os
cachoeirenses.
Para responder essas questões, nesta tese – Muito além da praça José
Bonifácio: as elites e os “outsiders” em Cachoeira do Sul pela voz do
Jornal do Povo, 1930-1945 – procuro ver a dinâmica da vida da elite
cachoeirense, considerando as transformações da diferenciação social
praticada por esse grupo, através de suas práticas cotidianas, no período
histórico entre as décadas 30 e 40, buscando compreender como o espaço
urbano central da sede do município constituiu-se em campo de
115
GARCIA, Afrânio. A sociologia rural no Brasil: entre escravos do passado e parceiros
do futuro. In: Sociologias. Porto Alegre: PPG Sociologia/UFRGS, n.10, 2003 p.154-
189 [disponível em http://www.scielo. br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-
45222003000200006&lng=pt&nrm=iso – acessado em 20/12/2006]
116
JP, 28/6/1997 Artigo. Eládio Vieira da Cunha. O nosso jornal, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
50
51
enfrentamento das forças locais, no momento em que abrigou ou excluiu
determinados tipos de habitantes. Procuro ver também qual a influência
dos fluxos migratórios locais na organização/desorganização desse espaço
e de que maneira as práticas urbanas do dia-a-dia da elite cachoeirense
foram se reafirmando/modificando em contato com esses “novos
bárbaros” ou outsiders.
Muito além da praça José Bonifácio porque esse logradouro pode ser
considerado, para a época, epicentro onde impunham-se as barreiras
sociais entre a elite moradora do centro e os outsiders que literalmente
invadiram o espaço urbano, gerando conflitos como o episódio narrado
logo no início desta introdução. A partir da praça, ampliavam-se tais
práticas discriminatórias. E para narrar o momento, o Jornal do Povo,
veículo porta-voz dos ideais elitistas, reafirmando continuamente, através
do texto impresso, aquilo que a parcela da população mais abastada
desejava estabelecer como verdadeiro e correto, portanto, como o que
deveria ser seguido por todos.
A praça José Bonifácio aparece como símbolo de lugar da elite no período
estudado, mas as práticas excludentes impregnavam muitas das relações
além dos limites espaciais do logradouro central, perpetuando-se em
praticamente toda área urbana, quiçá na suburbana, com intensidades
semelhantes. Por esta razão, a análise estende-se para a zona central,
saneada no fim dos anos 20, e, em raros momentos, avança até os
arredores da cidade, os subúrbios onde vivia a população subalterna.
De certa maneira, tento mostrar o enfrentamento simbólico entre a elite
cachoeirense e os subalternos que passaram a ocupar o espaço urbano
central nas décadas subseqüentes a 1929-30. Como esse novo quadro
sócio-econômico-espacial modificou a paisagem urbana, advindo daí novas
relações, urbanidade afetada pelo modo de agir diário. Essas modificações
no cotidiano da urbe acentuaram-se nas décadas seguintes. Nos anos 80-
90, a transição parece ter-se completado. Os tempos áureos do arroz
irrigado e dos investimentos recebidos pelas colônias circunvizinhas, época
em que poucos privilegiados viviam na zona urbana central, deram lugar
ao perfil econômico baseado na agricultura monocultora, somado a
diminuta capacidade de gerar emprego e renda para a massa populacional
que passou a habitar a zona urbana, características das cidades localizadas
fora dos eixos metropolitanos que acabaram por distanciar-se do empuxo
econômico decorrentes das grandes aglomerações informacionais, sociais,
culturais, políticas, econômicas, etc., no fim do século XX. Desta forma,
o que ocorreu em Cachoeira do Sul é algo muito parecido ao de outras
cidades que mantiveram esse perfil. Como não lembrar de cidades outrora
pujantes, como Pelotas e Rio Grande, só para ficar em dois exemplos
gaúchos? E o sonho daqueles que migraram para outras regiões, deixando
para trás a falta de perspectiva que essas cidades ofereciam? Saudades
da terra? Vontade de retorno algum dia? Retorno na velhice?
No período que circunscrevi, as mudanças político-econômicas brasileiras
resultaram na transformação paulatina do perfil populacional do
município. Até os anos 30, a população cachoeirense era
predominantemente rural. Em 1920, por exemplo, o município tinha 53
mil habitantes para uma população urbana estimada em pouco mais de
10 mil, algo em torno de 18%. Nos anos 40, a população urbana da sede
tinha simplesmente dobrado de tamanho, passando para 20 mil habitantes,
o que representava 24% do total de 83 mil, mesmo que na zona rural
ainda vivessem 63 mil pessoas (76%). Todavia, o intenso processo
migratório campo-cidade, visto neste interstício, desencadearia os
primeiros impactos no seio das relações sociais e no cotidiano da cidade,
alternando principalmente a convivência diária entre a elite e os
outsiders, abalos que se tornariam muito mais profundos, fulminantes e
avassaladores nas décadas seguintes. Mostra disso é o aumento
populacional verificado nos anos do pós-guerra. Se até 1950, a população
da sede cachoeirense manteve-se próxima dos 25%, 24 mil habitantes
para os mais de 95 mil em todo município, no início dos anos 60 a população
urbana saltou para 40 mil, 47% dos 84,5 mil habitantes. As décadas
seguintes veriam o agravamento do inchaço populacional, com a elevação
para 60 mil (64%) habitantes na zona urbana, de um total de 93,3 mil,
em 1980, e 70 mil na zona urbana (78%) de um total de 90 mil habitantes,
em 1990.
117
117
A diminuição de habitantes totais, em 1959, deveu-se a emancipação do distrito de
Agudo, de origem alemã. Nos anos 70-90, além das emancipações, muitos
cachoeirenses migraram para outras regiões. A mudança do perfil demográfico
cachoeirense acompanhou o do Rio Grande do Sul. Em 1950, a porcentagem da
população urbana do Estado era de 34,14%; em 1960, 44,89%; em 1970, 53,33%; em
1980, 67,53%; em 1991, 76,56%; em 2000, 81,65%. Fonte: CAMOZATO, Benjamin C.
(org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil,
Cachoeira de Sul: Município de Cachoeira, 1922. Anuário estatístico do Brasil 1936.
Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Anuário estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de
Janeiro: IBGE, v. 6, 1946. Anuário estatístico do Brasil 1950. Rio de Janeiro: IBGE, v.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
52
53
118
Parto dos princípios apontados por CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1.
artes de fazer. Tradução de Ephraim Alves. Petrópolis/RJ: Vozes, 1994 e ___. A
invenção do cotidiano: 2. morar, cozinhar. Petrópolis/RJ: Vozes, 1996, os quais
explorarei mais adiante.
Nesse contexto, levanto a seguinte tese: no interstício dos anos 30-40,
os outsiders, ao ocuparem o espaço urbano central de Cachoeira do Sul,
desorganizaram a ordem imposta na cidade pela elite, segundo a visão
do Jornal do Povo.
Para comprovar essa tese procuro responder aos questionamentos de
como o Jornal do Povo construiu uma dada imagem da cidade de Cachoeira
do Sul no período focado e das elites que nela habitavam? Como o JP
narrou a organização e a desorganização da cidade neste breve período
de tempo? De que forma a distinção social, explicitada nas páginas do
jornal, foi se refletindo nas práticas cotidianas da elite cachoeirense em
contato com os grupos subalternos que aos poucos migravam para a
cidade, ao longo do período aqui enfocado, entre os anos 1930 e 1945?
Entendo que os fluxos migratórios internos fortemente impulsionados
pelo êxodo rural, responsáveis pelo aumento da população no entorno
da sede do município de Cachoeira do Sul, permitiram/influenciaram na
desorganização/reorganização do espaço urbano central e essa dinâmica
organizacional, por conseguinte, provocou mutações/permanências nas
práticas cotidianas da elite cachoeirense.
Como nas primeiras duas décadas do século XX, principalmente nos anos
1925-28, o espaço urbano central da sede de Cachoeira do Sul foi pensado
e produzido pela elite agrária, comercial e, em parte, industrial, de
descendência principalmente portuguesa, alemã e italiana, sofrendo
intervenções profundas, com alterações em seus aspectos infra-estrutural
e estético, trabalhei com a hipótese de que nos anos seguintes, 1930-
1945, a elite estabelecida buscou, através de práticas cotidianas próprias,
cultivar certo “verniz civilizador”, na tentativa de marcar diferenças no
intuito de manter afastados de seu convívio os migrantes.
Durante essa fase, que coincide com a Era Vargas, a economia da região
continuou tendo no campo sua maior fonte de riqueza, principalmente
através da lavoura de arroz, pujança que permitiu o desenvolvimento de
casas comerciais e pequenas indústrias instaladas no município. Todavia,
em fins dos anos 20 e início dos 30, os atrativos de maiores ganhos no
trabalho industrial e de serviços na zona urbana cachoeirense, bem como
a incipiente mecanização do campo e a utilização de novos insumos
agrícolas – tudo isso tendo como pano de fundo a própria reorganização
das forças econômicas nacionais e internacionais devido ao crash da Bolsa
de Valores de Nova Iorque, em 1929 – intensificaram o êxodo rural,
desencadeando o inchaço da periferia urbana do município numa ocupação
tida por desordenada, processo que acabou subtraindo paulatinamente
da elite os espaços públicos da zona central, em contraposição à ocupação
da maioria subalterna. De forma residual, esse contexto exigiu mudanças
nas práticas cotidianas, num fluxo marcado pelo deslocamento da elite
para atividades em espaços privados e dos populares para efetuar a
ocupação do vácuo deixado no espaço público. Ao longo do trabalho busco
comprovar essas hipóteses.
Entendo como práticas cotidianas tudo aquilo que os indivíduos fazem
no espaço urbano em que vivem, que pode ser tanto aberto, como praças
e ruas, quanto de uso restrito, como clubes, lojas ou até residências.
Cotidianas porque são práticas do dia-a-dia, que se sucedem ou se
praticam habitualmente. Assim, envolvem infinidades de questões triviais,
como andar, falar, comer e vestir. Excluo destas práticas aquilo que os
indivíduos fazem na intimidade, sozinhos ou entre grupo muito restrito
de pessoas, normalmente de confiança, como familiares ou amigos
íntimos. Isto porque nas práticas cotidianas, os indivíduos se auto-
disciplinam mas também agem por vezes de forma incoerente, não
uniforme nem estaticamente, onde, ao contrário de padronização e
generalização daquilo que fazem usualmente, promovem rupturas que
modificam seus padrões de comportamento.
118
Na intimidade, os indivíduos podem comportar-se de formas diferentes
de quando em público, contraditórias muitas vezes, que não interessam-
me aqui analisar, a não ser em casos esporádicos que possam reforçar a
análise. A linha que divide algumas destas ações corriqueiras da vida
particular não é delimitada de forma precisa, exata, fazendo com que
11, 1951. Anuário estatístico do Brasil 1961. Rio de Janeiro : IBGE, v. 22, 1961.
Anuário estatístico do Brasil 1973. Rio de Janeiro: IBGE, v. 34, 1973. Anuário estatístico
do Brasil 1983. Rio de Janeiro: IBGE, v. 44, 1984. Anuário estatístico do Brasil 1986.
Rio de Janeiro: IBGE, v. 47, 1987. Anuário estatístico do Brasil 1995. Rio de Janeiro:
IBGE, v. 55, 1995. Em 1930 não foi feito censo nacional, por essa razão a inexistência
de dados concretos, somente estimativas.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
54
55
essas ações particulares possam ser tornadas públicas em certos
momentos. Além disso, as práticas cotidianas dos diversos grupos sociais
– sejam eles estabelecidos ou outsiders – não podem ser tidas de forma
generalizada, em que pese o fato delas permitirem certo reconhecimento
e fazerem que, por isso mesmo, os grupos construam sua auto-imagem e
procurem ser vistos como tal. Há determinadas práticas observadas para
que se produza a sensação de pertencimento, de fazer parte de
determinado grupo. Assim, incluo não só ações auto-disciplinadoras que
aproximam os indivíduos, que fazem com que entendam-se e vejam-se
como grupo, mas também os desacordos existentes internamente, que
promovem as rupturas que modificam comportamentos corriqueiros.
Para entender como as práticas cotidianas da elite cachoeirense nos anos
30-45 foram afetadas pela organização, desorganização e reorganização
do espaço urbano central, que, por sua vez, tiveram relação visceral
com o aumento da população urbana da sede do município, parto do
princípio de que o arranjo físico dos espaços urbanos torna-se agente
ativo na realização de determinadas práticas. Neste raciocínio, a ordem
espacial é concebida como condição para que tais práticas se produzam
e que estas são, em certa medida, dependentes de dada distribuição ou
arrumação das coisas no espaço. Tal entendimento não é estanque ou
mecanicista, a ponto de se concluir que as formas espaciais podem explicar
completamente as maneiras de ser de determinada sociedade ou grupo
social. Nem o inverso, que o espaço seja simples reflexo da sociedade.
Entendo que o espaço urbano é, ao mesmo tempo, o terreno onde as
práticas cotidianas se exercem, a condição necessária para que elas
existam e o quadro que as delimita e lhes dá sentido.
119
Assim, num
duplo imperativo, as composições do espaço urbano afetam as práticas
cotidianas da mesma maneira em que estas afetam a organização física
do lugar.
A justificativa para este recorte histórico dá-se pelo entendimento de
que as tendências demográficas neste período, e por conseguinte suas
relações sócio-políticas-econômicas-culturais, contrastam em aspectos
importantes com os fenômenos até então vistos. Como divisor de águas,
o início dos anos 30 foi profundamente marcado pela crise econômica
norte-americana que influenciou praticamente todo mundo ocidental,
quiçá mundial, permitindo, inclusive, a ascensão de regimes totalitários
como o nazi-fascismo europeu e o populismo getulista no Brasil. Esta
reorganização mundial de forças afetou o crescimento demográfico, o
ritmo econômico e as transformações urbanas; conseqüentemente, as
práticas cotidianas sofreram mudanças profundas e radicais em alguns
aspectos; em outros, ganharam nova roupagem. Nas décadas seguintes,
foram gestadas algumas das características que se tornariam
predominantes no Brasil e no mundo, tais como urbanização e
industrialização intensas, com o aparecimento das periferias vistas como
problemáticas, do operariado, das políticas públicas, da miséria exposta,
da violência urbana, etc. Não que elas inexistissem antes de 1929, mas
sua intensidade seria sentida deste período em diante. Essas dicotomias
agravaram-se profundamente com o término da Segunda Guerra Mundial,
em 1945.
Em termos de tempo histórico, tais relações tiveram forte influência em
Cachoeira do Sul, dado o aumento populacional verificado no interstício
1930-1945. Este aumento deu-se pelo êxodo rural, agricultores autônomos
ou empregados das lavouras que migraram para a zona urbana, migrações
intra-distritais, moradores dos núcleos distritais sob jurisdição de
Cachoeira do Sul que se deslocaram para a sede do município, e intra-
municipais, habitantes de outros municípios que migraram para Cachoeira.
Pensar no contexto deste período remete para mudanças fundamentais
nele engendradas: de ambiente muito mais próximo do homogêneo,
pasteurizado, livre dos incômodos dos subalternos, ocupado
preferencialmente pela elite, principalmente com as reformas urbanas
de 1925-28, para ambiente heterogêneo, onde co-existe a multiplicidade
de formas espaciais urbanas e de práticas cotidianas que decorrem desta
diversidade, imagem e semelhança fisionômica dos outsiders, dos
migrantes subalternos que invadiram Cachoeira nas décadas subseqüentes
a 30-40.
Se até então a simultaneidade das práticas cotidianas e do próprio espaço
urbano cachoeirense ainda era muito delimitada, o que possibilitava
definir-se qual espaço ocupava a elite e qual os subalternos, a partir da
afluência migratória as imagens do urbano começaram a tornarem-se
119
Esses princípios são explorados detalhadamente por GOMES, Paulo César da Costa. A
condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
2002 e FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. Olhar periférico: informação, linguagem,
percepção ambiental. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1993, p. 71-
104
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
56
57
díspares, fazendo com que, de certa maneira, a elite passasse a repugnar
a convivência com os não-civilizados, revigorando a incapacidade de lidar
com o diferente e o estranho. Estudar a simultaneidade das práticas
cotidianas e do urbano no intervalo proposto é partir duma perspectiva
polifônica, onde a comunicação urbana é vista como conjunto heterogêneo
de significados e significantes, que cruzam-se entre si, relacionam-se,
sobrepõem-se, isolando-se e contrastando-se ao mesmo tempo e no
mesmo espaço. Compreender a cidade e as relações nela existentes
significa colher esses fragmentos, lançando pontes entre eles, caminho
possível para encontrar sua pluralidade de significados.
120
Seguindo esta lógica, estruturei o trabalho em sete capítulos e respectivos
sub-capítulos, além dessa introdução e das considerações finais. Os dois
primeiros capítulos são reflexões teóricas sobre o tema e históricas sobre
Cachoeira do Sul e sobre a imprensa, a principal das fontes que utilizei
ao longo deste trabalho. No terceiro capítulo, procurei analisar a
imbricada teia de inter-relações entre os aspectos econômicos, urbanos
e migratórios locais. Procurei ver a predominância de alguns aspectos
econômicos sobre os fluxos migratórios e como essa corrente campo-
cidade, intra-regional ou mesmo inter-estadual, influenciaram na
construção, reforma, organização e desorganização do espaço urbano
cachoeirense, especificamente sua zona central.
À luz dessas constatações, nos capítulos quatro a sete, procurei ler as
práticas cotidianas da elite cachoeirense no período em questão, em
especial as rupturas delas decorrentes e que foram significativas para o
dia-a-dia dos estabelecidos, em confronto com os outsiders. Estruturas
cotidianas que revelam-se no fazer diário, no transitar em público, no
passear nas ruas e praças, nas relações de civilidade e convivência, no
regramento social, no trato de questões como vida e morte, nos lazeres,
divertimentos e distrações, nos esportes ou deleites dos cafés e
confeitarias, nos cinemas e teatros, nos clubes e bailes, no carnaval, e
no trato com os “indesejáveis”, “subalternos” “incivilizados” e
“desordeiros”: mendigos, vagabundos, prostitutas, jogadores, beberrões,
menores delinqüentes, presidiários, mendigos, todos aqueles que a elite
tratava como resíduo social, espécie de subproduto da invasão da
subalternidade vista no período.
No conjunto da análise, utilizei como fontes de pesquisa alguns
documentos históricos referentes ao município, como livros de Aurélio
Porto, Ângela Schuh e Ione Sanmartin Carlos,
121
Tupinambá Pinto de
Azevedo, Liberato Vieira da Cunha, Geraldo Mário Rohde e João Carlos
Mor;
122
de edições reunindo dados locais, como o Grande Álbum de
Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, organizado por
Benjamin Camozato, o Álbum do Sindicato Arrozeiro, o Relatório da
Prefeitura Municipal de Cachoeira, na gestão de Cyro da Cunha Carlos,
as duas edições de Cachoeira Histórica e Informativa, de Vitorino Portela
e Manoel de Carvalho Portela, Aspectos Gerais de Cachoeira, de Fortunato
Pimentel,
123
o Álbum Comemorativo a passagem do primeiro centenário
de Cachoeira do Sul, o Guia Geral do Município de Cachoeira do Sul, de
José Pacheco de Abreu, a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, do
IBGE,
124
o Centenário de Cachoeira do Sul e parte da coleção da revista
Aquarela, relatos pitorescos, alegres e otimistas do passado cachoeirense,
publicados por Humberto Attilio Guidugli;
125
outros livros como a Fundação
120
Sobre a perspectiva polifônica, ver CANEVACCI, Massimo. A cidade polifônica. Ensaios
sobre a Antropologia da comunicação urbana. Tradução Cecília Prada. São Paulo:
Studio Nobel, 1993
121
PORTO, Aurélio. Cachoeira. Resumo Histórico. In: CAMOZATO, Benjamin C. (org.)
Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil, op.cit, 1922;
___. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS: Martins Livreiros,
1996 [edição original de 1934]; SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira
do Sul, Em busca de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1991
122
AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. Cachoeira do Sul, comarca: 150 anos de história.
Cachoeira do Sul: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul, 1985; CUNHA,
Liberato Vieira da. Um visto para o interior. Viagens a Cachoeira e meus outros
mundos. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1996, ROHDE, Geraldo Mário. Cachoeira do
Sul: uma perspectiva ambiental. Canoas: ULBRA, 1998 e MÓR, João Carlos Alves. A
minha Cachoeira. Porto Alegre: Martins Livreiros, 2001
123
CAMOZATO, Benjamin. Grande Álbum de Cachoeira no Centenário da Independência
do Brasil. op.cit., 1922; Álbum do Sindicato Arrozeiro, 1935, Relatório da Prefeitura
Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939, apresentado pelo Snr. Cyro
da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de prefeito, Porto Alegre: Livraria
do Globo, 1940; PORTELA, Vitorino. PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica
e Informativa. Cachoeira: Tipografia Portela, 1ª ed, 1940, 2
a
ed., 1943, e PIMENTEL,
Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. Porto Alegre: Tipografia Gundlach, 1941
124
Álbum Comemorativo a passagem do primeiro centenário de Cachoeira do Sul,
Cachoeira do Sul: Município de Cachoeira do Sul, 1959; ABREU, José Pacheco de.
Guia Geral do Município de Cachoeira do Sul. Cachoeira do Sul: Município de Cachoeira
do Sul, 1963; FERREIRA, Jurandyr Pires. Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, Rio
de Janeiro: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, vol. XXXIII, 1959
125
Humberto Attilio Guidugli (pseudônimo Eliseu) publicou O Centenário de Cachoeira
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
58
59
do Município de Cachoeira do Sul: documentos históricos, os 100 anos de
Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, o Cachoeira
em Jornal e o Levantamento histórico da industrialização de Cachoeira
do Sul,
126
ambos organizados pelo Museu Municipal de Cachoeira do Sul,
além de documentos avulsos organizados e cedidos pelo Arquivo Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul,
127
incluindo algumas leis municipais.
O maior peso da minha pesquisa foi na imprensa local, principalmente
no Jornal do Povo, que circula na região de Cachoeira do Sul
ininterruptamente desde 29 de junho de 1929. Selecionei 782 fragmentos
de notícias, entre reportagens, crônicas, apedidos, etc., no período de
1929 até 1948, para tentar enxergar como o jornal constrói uma imagem
de cidade e daqueles que nela habitam ou estão ligados de alguma
maneira, mesmo que essa imagem refira-se à parte que lê o jornal e, por
conseguinte, forma alguma opinião acerca do narrado, mas que, de alguma
forma, por força do poder simbólico que carrega, muitas vezes impregna
a visão de toda comunidade, ou mesmo passa a valer como se fosse de
todos; mas também, numa retroação, como a comunidade alimenta os
acontecimentos narrados no jornal.
128
Entendo que tal documento, como fonte historiográfica, permite
radiografar as práticas cotidianas, principalmente as rupturas ou
mudanças nos padrões de comportamento da elite da época. Com a missão
diária de forçar a atenção do leitor, “em mergulhar seu enfado na torrente
ininterrupta de acontecimentos confusos que faz a atualidade”, o jornal
acaba simplificando e desfigurando a realidade ao mediá-la.
129
Uma leitura
atenta dessa fonte, contrapondo-a às outras fontes históricas, permite
revelar o processo de doutrinação simbólica que se constrói através de
pressupostos impostos como óbvios e inevitáveis, não de forma arbitrária
mas tornados reconhecidos de forma natural.
130
Como documento que
enxerga e descreve a micro-história
131
espacial e temporal, o jornal abre
possibilidades de revelar em determinados momentos, nos fatos
aparentemente irrelevantes, os confrontos de idéias e a própria relação
de força existente no entrecruzamento do mundo social. Embora minha
finalidade não fosse fazer uma análise comparativa dos discursos
produzidos pela imprensa local, trabalhei também com alguns dados
organizados e disponibilizados pelo Arquivo Municipal do jornal local O
Commercio (1900-1966).
Outro material levantado foi parte do acervo iconográfico do Museu
Histórico Municipal e do Arquivo Histórico Municipal, constituído de fotos,
mapas, planos urbanos e outras representações gráficas do município.
Tais imagens do passado “evocam e transmitem a recordação dos
acontecimentos que merecem ser conservados porque o grupo vê um
fator de unificação nos monumentos da sua unidade passada ou, o que é
equivalente, porque retém do seu passado as confirmações da sua unidade
presente”.
132
do Sul em 1959. A revista Aquarela circulou entre o final dos anos 50 até início dos
anos 70, um pouco depois do falecimento de Humberto, em 23/2/1971. Parte da
coleção da revista encontra-se no Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul.
126
Fundação do Município de Cachoeira do Sul: documentos históricos. Cachoeira do
Sul: Museu Municipal de Cachoeira do Sul, 1987, 100 anos de Concórdia: a história
da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, Cachoeira do Sul: Gráfica Jacuí, 1996, Cachoeira
em jornal – catálogo, 1982 e Levantamento histórico da industrialização de Cachoeira
do Sul, Cachoeira do Sul: Museu Municipal e Arquivo Histórico de Cachoeira do Sul,
1983
127
Por exemplo: exposição do Arquivo Histórico Municipal HCB, 100 anos de história;
Código de Posturas Municipais, 1853; Livro de Atas do Grande Conselho do HCB,
1936-1968; Livro de Atas de Sessões da Câmara Municipal (1830-1864), entre outros.
128
O banco de dados completo, com todos fragmentos de notícias do Jornal do Povo,
entre 1929 e 2001, utilizados neste trabalho, pode ser acessado através do código
1.10, SELBACH, Jeferson F. Jornal do Povo, Cachoeira do Sul/RS, 1929-2001 (Banco
de dados). Cachoeira do Sul: Universidade Luterana do Brasil, 2004. In: Consórcio de
Informações Sociais, 2007. disponível em http://www.cis.org.br
129
RIOUX, Jean-Pierre. Entre história e jornalismo. In: CHAUVEAU, Agnes. TETÁRT,
Philippe. Questões para a história do presente. Tradução Ika Cohen. Bauru/SP: EDUSC,
1999, p.120-122.
130
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. 2
a
ed.
São Paulo: Edusp, 1998; BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução Fernando
Tomaz. 5
a
ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002
131
Ver, sobre a micro-história: BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989). A revolução
francesa da historiografia. Tradução Nilo Odalia. São Paulo: Fundação Editora da
UNESP, 1997
132
BOURDIEU, Pierre apud LE GOFF, Jacques. História e memória. op.cit., 1990, p.466.
Mapas e planos urbanos foram cedidos pelo Arquivo Histórico. As fotografias foram
cedidas tanto pelo Arquivo quanto pelo Museu. Sobre o uso de imagens na história,
ver ainda BENCOSTTA, Marcus Levy Albino. Imagem e história: as fotografias escolares
no estudo da escola primária curitibana (1903-1971). In: Edição eletrônica do XXII
Simpósio Nacional de História, João Pessoa/PB: UFPB, 2003, e FLORES, Élio Chaves.
Representações cômicas da República no contexto do Getulismo. In: Revista Brasileira
de História. v.21 n.40 São Paulo, 2001 [disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882001 000100007&lng=es&nrm=iso&tlng
=pt – acessado em 27/3/2005]
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Prólogo: nostalgia do tempo perdido
60
61
Além desses documentos históricos, utilizei como fonte de pesquisa dados
estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e da
Fundação de Economia e Estatística (FEE/RS), principalmente os
referentes aos deslocamentos populacionais e à economia da região de
Cachoeira do Sul.
Acima de tudo, parti da concepção de que nenhuma comunidade é uma
ilha, sendo necessário fazer emergir algumas de suas conexões, que
situações particulares podem mostrar a maneira como os indivíduos
produzem seu meio social, entendendo que os sistemas de relações que
organizam o mundo social são tão reais quantos os dados materiais.
Estudando o caso de Cachoeira do Sul, é possível depreender um pouco
desses efeitos que se mostram semelhantes no interior de sociedades
bastante afastadas no tempo e no espaço. Assim, Cachoeira do Sul é o
recorte espaço-temporal do estudo, mas é, ao mesmo tempo, espaço
que retrata, que exemplifica a situação por que passaram muitas outras
cidades congêneres, no Rio Grande do Sul, no Brasil e até em outras
partes do mundo.
Toda pesquisa é sempre uma construção coletiva daqueles que
colaboraram direta ou indiretamente. Para a consubstanciação deste
trabalho foi necessário o auxílio de várias pessoas e entidades: a começar
pelo meu irmão Carlos Henrique, a quem devo a indicação para trabalhar
na ULBRA e o abrigo em Cachoeira do Sul nos primeiros dois anos, junto
com sua família, Eliane, Carol e Filipe; a ULBRA que financiou o início
desta pesquisa, cedendo a Andressa Bordignon, monitora deveras
importante, além das outras que trabalharam comigo de forma voluntária:
Carina, Chana, Isabel, Liziane, Renata, Talita; não posso esquecer o Paulo
Ricardo, companheiro de pesquisa, nem as moças que fizeram parte do
Arquivo Histórico Municipal até meados de 2005, Eliane, Gorete, Lucinha,
Loveli, em especial, a entusiasta pela história cachoeirense Ione
Sanmartim Carlos, por tirar muito das minhas dúvidas, e as do Museu
Histórico Municipal, Mirian e Márcia; a orientação primorosa da Eloísa
Capovilla; as conversas com a Rosemary Brum, minha eterna debatedora
e co-orientadora, que me animou quando tudo parecia perdido; meus
familiares, minha mãe Penalva, meus irmãos Veverton e Graziela, sogros
Renualdo e Naura; e minha esposa Paula, que apesar da jovialidade,
conseguiu entender as privações materiais e espirituais necessárias para
concretizar este trabalho. A você, meu eterno amor...
Parte I
textos e contextos
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
62
1. Reflexões e inflexões
1.1. Os descaminhos do cotidiano
Existe uma diferença marcante entre a produção dos espaços urbanos,
os discursos que os precedem e o uso ou consumo que o público dá a
eles. Supostamente entregues à passividade e à disciplina, essas operações
dos usuários assumem o aspecto da indisciplina, uma vez que não aceitam
passivamente nem repelem de súbito o que lhes é imposto. Analisar o
cotidiano é, como objetivou Michel de Certeau, explicitar as combinatórias
de operações que compõem dada cultura, exumando os modelos de ação
característicos dos usuários, dos quais se esconde o estatuto de
dominados, entendendo-os de forma não passíveis nem dóceis.
1
O objetivo deste trabalho não foi exatamente pensar as práticas cotidianas
da população em geral, como fez Certeau, vendo como essa interage no
espaço pensado e construído por um pequeno grupo, mas foi ver, em
determinado período de tempo, como a elite da cidade de Cachoeira do
Sul construiu o espaço urbano para si, como produziu os discursos que
subsidiaram esta construção, como diferenciou-se através do fazer
cotidiano nesse espaço urbano e, acima de tudo, como lidou, repugnando
ou cedendo, com as interferências de outros usuários no espaço em que
predominava. De forma indireta ou mesmo residual, comparei
semelhanças e diferenças entre produção da linguagem e do espaço
urbano, das práticas cotidianas da elite local e do uso que os subalternos
fizeram desse espaço. Isto porque, no momento em que os discursos de
repulsa e cedência de determinadas práticas cotidianas, contrárias às
esperadas, foram colocados em público, principalmente através do veículo
de comunicação que assumiu seu papel de porta-voz da elite, como foi o
1
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994
Jornal do Povo nas décadas que se seguiram ao seu aparecimento, abriu-
se a possibilidade de tornar mais claro o embate simbólico, a interação
que o usuário subalterno fez do espaço urbano apropriado da elite.
Delimitei como recorte espacial a zona urbana central da sede do
município de Cachoeira do Sul. Não se trata de analisar da periferia ao
centro, em toda sua complexidade, mas de apontar o espaço que a elite
cachoeirense organizou e que foi, de certa forma, apropriado pelo público
subalterno, originário das zonas circunvizinhas, essencialmente agrícolas.
Circunscrevi para a análise a área central da cidade, compreendida entre
o entorno da praça Balthazar de Bem – já denominada em outros tempos
como praça do Prestes, da Igreja, da Matriz, da Conceição e Tamandaré
– a leste, onde se localizam a Prefeitura e a Igreja Nossa Senhora da
Conceição, e a antiga estação ferroviária do Largo do Colombo, atual
praça Honorato de Souza, que limitava a parte baixa da cidade pelos
trilhos do trem, a oeste. As delimitações norte-sul variaram em função
do desenvolvimento urbanístico, desde poucas quadras até bairros como
o elitista Rio Branco ou mesmo o Santo Antônio. A marcação desta fronteira
imaginária possibilita a verificação das relações de forças materiais e
simbólicas que se digladiaram dentro de seus limites. Pierre Bourdieu
sugere fronteira como produto de divisão a que se atribuiu maior ou
menor fundamento da realidade, segundo elementos que ela reúne,
tenham semelhanças mais ou menos numerosas e mais ou menos fortes.
A fronteira, como ato jurídico de delimitação, produz diferenciação
cultural do mesmo modo que é produto deste ato.
2
No caso de Cachoeira
do Sul, a fronteira proposta para esta análise foi limitada por leis que
estabeleceram determinados serviços urbanos e que criaram, por isto
mesmo, linhas limítrofes materiais e simbólicas.
A escolha desse espaço se dá em razão de que nele foram postos por
primeiro os equipamentos urbanos, tais como iluminação e luz elétrica,
serviços de água e esgoto, telefone, calçamento e pavimentação, teatro
e cinemas, praças arborizadas, ativo comércio, prédios imponentes,
estações rodoviária e ferroviária, etc., podendo-se afirmar que tratava-
se de local privilegiado, diferente dos demais, enfim, espaço elitista ou
moderno. Entendo espaço moderno como local que se constrói
modificando radicalmente as feições tradicionais, num confronto
permanente em que o novo e a novidade substituem o velho e
ultrapassado. Neste sentido, tem-se a contínua mudança e transformação
das coisas, com velocidade e ritmo avassaladores, fazendo do homem
moderno ser perplexo frente a tamanhas e intensas mutações. Estas
contínuas transformações são normalmente desencadeadas pela “elite
revolucionária”, conforme afirmou Marshall Berman ao estudá-las no
contexto europeu, que apresenta-se como destruidora daquilo que
representa o passado.
3
Em Cachoeira do Sul, João Neves da Fontoura,
intendente entre 1925 e 1928, consubstanciou tais ideais modernos, ao
promover reformas urbanas radicais na zona central da cidade,
identificando este espaço com a noção de progresso de sua época, que
via as transformações como processo de desenvolvimento ininterrupto e
linear, conceito atualmente estrito por não englobar demais interações
e conseqüências desencadeadas por intervenções urbanas modernizadoras
como essa.
2
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, especialmente capítulo V, A
identidade e a representação. Elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de
região, p.114-115
3
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade.
Tradução de Carlos Felipe Moisés, São Paulo: Companhia das Letras, 2002
Figura 18 – Mapa da sede de Cachoeira do Sul, início do século, feito por Joaquim Vidal.
No detalhe, a zona baixa ou central, com o Largo do Colombo (estação de trem) à
esquerda, a praça do José Bonifácio ao centro e o paço municipal e a igreja (praça
Balthazar de Bem) à direita. Fonte: Arquivo Público Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
66
67
Nessa lógica, denomino elite os que moravam neste espaço central, os
que, guardadas as devidas proporções, tiveram acesso ao que havia de
moderno em sua época, como vestuário, automóvel, trem, rádio, jornais,
telégrafo, telefone, luz elétrica, cinema, teatro, etc.
4
Essa elite
cachoeirense assemelha-se aqueles que Norbert Elias chamou de
“estabelecidos”, habitantes duma pequena cidade inglesa que cultuavam
carisma grupal distintivo, cerrando fileiras e estigmatizando os que não
pertenciam ao grupo, os que viviam do “lado de fora”, chamados de
outsiders, pessoas que consideravam de menor valor devido a falta de
virtudes humanas superiores. Neste contexto, procurou ver os estigmas
que os habitantes tradicionais lançavam sobre os forasteiros, como se
constituía a sociodinâmica dessa estigmatização. Ele estudou as múltiplas
tensões existentes entre os dois grupos, a natureza de sua
interdependência, através de fatos cotidianos, como a sociabilidade que
excluía os estrangeiros que não partilhavam dos valores e do modo de
vida vigentes, mantidos distantes e afastados dos locais de decisões
comunitárias, como clubes, igrejas ou mesmo praças. Essa auto-imagem
que o grupo estabelecido fazia de si tornava-se seu diferencial nas relações
de poder, precondição para que ocorresse a estigmatização social. A arma
para manter a superioridade social era impetrar aos outros a condição
ou rótulo de “valor humano inferior”.
5
Tento mostrar como esse estigma, visto por Elias, assemelha-se ao da
elite em relação aos “novos bárbaros”, na Cachoeira dos anos 30-45.
Algo muito próximo à imagem do caboclo indolente e atrasado
representado na literatura da época por Jeca Tatu, personagem de
Monteiro Lobato, que expressou muitas das questões centrais presentes
no pensamento social brasileiro na década de 1930 em diante.
6
Nesse
sentido, é semelhante a diferenciação produzida pela elite cachoeirense
em relação aos migrantes oriundos das zonas de colonização ou de outras
áreas agrícolas, na medida em que produz uma auto-imagem do moderno
em oposição ao atrasado.
Importa ressaltar que nem todos que habitavam a zona central de
Cachoeira tinham condições sócio-econômicas-culturais privilegiadas,
assim como nem todos que moravam em outras zonas urbanas ou rurais
eram subalternos. Fugindo do estigma que tal generalização desencadeia,
procurei ver as nuances que têm como palco a zona que delimitei. Por
essa causa, a análise debruçou-se, em determinadas ocasiões, para
espaços periféricos na razão em que serviam para contrapor algumas das
questões aqui discutidas. Além do mais, não reduzo a idéia de elite como
classe homogênea, que tem consciência absoluta de grupo e atua
mobilizada em determinado sentido. Embora agregue indivíduos em
posições semelhantes e que tenham provavelmente atitudes e interesses
semelhantes, tal relativismo anularia suas diferenças sociais.
7
4
TRUSZ, Alice Dubina. O papel da publicidade na informação e assimilação cotidianas
da modernidade na Porto Alegre dos anos 1920. In: Revista História Hoje, revista
eletrônica de História, v.1, n.3, ANPHU, março, 2004 [disponível em
www.anpuh.uepg.br/historia-hoje/vol1n3 – acessado em 10/3/2006], analisando o
papel da publicidade comercial na informação e estimulação cotidiana do processo
de modernização da sociedade porto-alegrense na década de 1920, mostra como a
cidade foi objeto de marcantes transformações de caráter urbanístico e,
simultaneamente, operou-se a diversificação da produção industrial, com o lançamento
de novos produtos no mercado, principalmente aqueles produzidos a partir da
adaptação para uso doméstico de novas fontes energéticas, como a eletricidade. Os
anúncios analisados divulgaram e promoveram comercialmente tais produtos,
apresentados como índices de civilidade.
5
ELIAS, Norbert. SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. op.cit., 2000, p.19
6
Ver LIMA, Nísia Trindade. Jeca Tatu e a Representação do Caipira Brasileiro. In: Anais
eletrônicos do XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, 27 a 31 de outubro de
1997. [disponível em http://www.anpuh. uepg.br/anpuh/complemento.htm - acessado
em 15/10/2005] e RODEGHERO, Carla Simone. Campo x cidade: o discurso católico
frente à modernização da agricultura no Rio Grande do Sul, In: Anos 90. Revista do
PPG em História. Porto Alegre/RS: UFRGS, n.7, julho de 1997, p.148-170, que analisa
os posicionamentos sobre campo e cidade, na década de 50, tendo como foco principal
a realização das Semanas Ruralistas pela Igreja Católica, no RS, que, segundo ela,
tinham como pressuposto a idéia de que a mudança tecnológica garantiria a
permanência das populações no campo, preservando aí o espaço de influência da
igreja. Sua análise revela o cruzamento dos discursos que constroem a relação campo-
cidade.
7
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, p.136. Tais processos de
diferenciação ocorrem de forma semelhante em todo Brasil. Ver, por exemplo, RENK,
Arlene. Etnicidade e itinerários de grupos étnicos no Sul do Brasil, que trabalha a
questão da etnicidade e da identidade étnica, no Oeste Catarinense, a partir de
dados levantados em diferentes momentos entre os anos de 1988 e 1997, junto a
grupos de raízes camponesas. Ela discute o campesinato, sob o prisma da diferenciação
étnica, tomando como ponto de partida o processo de colonização no oeste catarinense.
Este significou diferentes itinerários: aos brasileiros representou a expropriação das
terras, dos recursos materiais e foi o momento da construção de sua identidade étnica;
aos colonos de origem a aquisição das terras em Santa Catarina era uma estratégia de
reprodução social camponesa; e VÉRAS, Maura Pardini Bicudo. Territorialidade e
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
68
69
Procuro entender esse espaço social conforme Pierre Bourdieu, como
algo multidimensional construído na base de princípios de diferenciação
ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que atuam
no universo social e que conferem, ao detentor destas diferenciações,
força ou poder neste universo. Desta forma, os sujeitos são definidos
pelas suas “posições relativas” neste espaço. Segundo Bourdieu, “cada
um deles está acatonado numa posição ou numa classe precisa de posições
vizinhas”. E na medida em que estas propriedades são atuantes, o espaço
pode ser descrito como um “campo de forças”, “conjunto de relações de
força objetivas impostas a todos os que entram nesse campo e irredutíveis
às intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre
os agentes”, enfim, “espaço de relações”, tão real quanto o material,
relações essas regidas por determinado habitus, definido como
conhecimento adquirido, haver ou capital que indica a disposição
incorporada, quase postural, funcionamento sistemático do corpo
socializado, atitude perante os demais.
8
Parto do princípio de que o arranjo físico do espaço urbano influencia
determinadas práticas cotidianas, mas que há dinamicidade nesta relação
que desencadeia mudanças no fazer cotidiano e, por conseqüência, na
desorganização/reorganização do espaço. Considero, assim, espaço como
instância da sociedade, portanto de essência social, conforme definiu
Milton Santos. Como instância econômica-cultural-ideológica, o espaço
contém e é contido por várias instâncias. Não é formado tão somente
por coisas palpáveis, naturais ou construídas, mas engloba a sociedade
que atua neste espaço. Por um lado, a paisagem; por outro, o que dá
vida a ela. A dinamicidade das mudanças reside nesta imbricação entre
as instâncias, na medida em que as mudanças do fazer cotidiano implicam
em sua permanente alteração.
9
Paulo César da Costa Gomes entende que determinada ordem espacial
pode influenciar sobremodo as práticas, fazendo com que elas dependam,
num dado momento, da distribuição espacial. Assim, o espaço urbano é,
ao mesmo tempo, o terreno onde as práticas cotidianas se exercem, a
condição necessária para que elas existam e o quadro que as delimita e
lhes dá sentido. Numa ordem em que as formas espaciais explicam parte
das maneiras de ser de determinado grupo social e que estas maneiras
de ser, inversamente, afetam a composição do espaço.
10
Princípio semelhante é explorado por Lucrécia D’Aléssio Ferrara, para
quem a imagem urbana, visual e polissensorial, é representação construída
cotidianamente, a partir de informações inferidas da vivência de variáveis
contextuais consideradas como elementos de informação urbana. “Estas
variáveis contextuais urbanas são fontes de informação – explica ela – e
moldam comportamentos, ações, valores, usos, hábitos, crenças e
expectativas, ou seja, são fatores de uma percepção urbana que se sabe
situada, localizada, sem querer insinuar, com isto, qualquer perspectiva
determinista ou positivista no processo de percepção ambiental urbana”.
11
Como recorte temporal delimitei o período entre as décadas de 30 e 40.
Nos anos que antecedem este período, a zona urbana analisada recebeu
enormes melhorias na sua infra-estrutura, melhoramentos materiais que
não cessaram no período analisado nem posteriormente. Portanto, os
espaços urbanos construídos nos anos anteriores ao analisado permitiram
o reforço de determinadas práticas cotidianas elitistas, por conseqüência,
excludentes, como passear na praça bem vestido ou mesmo freqüentar
confeitarias. Todavia, em fins dos anos 20, o crescimento demográfico
urbano fora do comum desencadeou mudanças significativas. O número
de habitantes residentes na sede passou de 10 mil em 1920 para 20 mil
cidadania em tempos globais: imigrantes em São Paulo, que busca caracterizar a
presença estrangeira e a configuração de territórios dos grupos mais expressivos,
contribuindo para a compreensão da dinâmica urbana em seus componentes
socioculturais. Ela pretendeu entender a questão da alteridade na metrópole, a partir
das dimensões reais e da compreensão da vivência na cidade, com suas oposições,
conflitos e formas de sociabilidade. Ambos textos disponibilizados nos Anais eletrônico
do XXII Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu/MG, out/1997 [disponível em http://
www. anpuh.uepg.br/anpuh/complemento.htm – acessado em 15/10/2005]
8
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, em especial o capítulo III, A
gênese dos conceitos de habitus e de campo, p.61-62 e VI, Espaço social e gênese das
classes, p. 134-136
9
SANTOS, Milton. Espaço e Método. 3
a
ed. São Paulo: Nobel, 1992, p.1-2 e 46
10
GOMES, Paulo César da Costa. A condição urbana: ensaios de geopolítica da cidade.
op.cit., ___. Geografia fin de siècle, o discurso sobre a ordem espacial do mundo e
o fim das ilusões. In: CASTRO, GOMES e CORREA (org.) Explorações geográficas. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997, p.13-42, e ___. O espaço da modernidade. In:
Terra Livre 5. O espaço em questão. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros;
Marco Zero, 1988, p.47-67
11
FERRARA, Lucrecia D’Aléssio. Olhar periférico: informação, linguagem, percepção
ambiental. op.cit., 1993, p.71-104
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
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71
em 1940, 24 mil em 1950 e 40 mil em 1960. Desta forma, tais práticas
cotidianas sofreram interferências externas que as mudaram
profundamente, obrigando-as a adaptarem-se ou assumirem novas
roupagens. Interessei-me por este contexto de mudanças das práticas
cotidianas porque foi desencadeado a partir da chegada desses migrantes
pobres que trouxeram consigo novas relações de articulação interurbanas,
de natureza completamente diversa das até então conhecidas e cujo
ápice encontra-se no período em questão. Nos anos que se seguiram ao
pós-guerra, espécie de esfarelamento das práticas cotidianas elitistas
no espaço urbano redundou em verdadeiro encastelamento da elite em
espaços privados. Com novos atores se apropriando da cena cachoeirense,
transubstanciou-se não só o espaço público como as próprias práticas
cotidianas. O âmago destas transformações podem ser vistas justamente
no intervalo selecionado. Daí a razão da interrupção da análise em meados
da década de 40.
Ao aprofundar a análise nas práticas cotidianas da elite cachoeirense,
num dado momento histórico (1930/45) e numa delimitação espacial
(zona urbana central cachoeirense), não é possível imaginar que tais
práticas sejam disciplinadas a ponto de permitir generalização. Assim
como o uso que os consumidores subalternos fazem dos espaços produzidos
pela elite não é dado de forma passiva ou dócil, há a antidisciplina, para
usar a expressão de Certeau, no modo de proceder no seio da própria
elite. As maneiras de fazer determinadas práticas cotidianas assumem,
nesta lógica, duplo sentido. Por um lado, são regidos por estruturas
disciplinadoras, como queria Michel Foucault,
12
que fazem com que os
indivíduos, em ambientes sociais próximos, se auto-disciplinem através
de determinados dispositivos e procedimentos, “instrumentalidades
menores” que são capazes de transformar a multiplicidade humana em
sociedade “disciplinar”, através da organização dos “detalhes”. Por outro
lado, alguns destes procedimentos escapam à disciplina sem serem
excluídos do campo onde se exercem, levando a concluir que as práticas
cotidianas sugeridas por Certeau são vívidas e inquietantes.
13
Certeau
distingue as maneiras de fazer as práticas cotidianas, andar, falar, comer
ou vestir. “Esses estilos de ação – escreve ele – intervêm num campo que
os regula num primeiro nível, mas introduzem aí uma maneira de tirar
partido dele, que obedece a outras regras e constitui como que um
segundo nível imbricado no primeiro”.
14
Dito de outra forma, as práticas
cotidianas operam em dupla direção: a das regulações ou da auto-
disciplina de Foucault e a das distorções ou indisciplina que provocam as
rupturas.
Mesmo constatando que muitos espaços participam da geração de micro-
poderes onde a ordem disciplinar cotidiana tem lugar, que determinadas
formas espaciais ou arquitetônicas servem de mecanismos de
disciplinarização do fazer cotidiano elitista, há maior complexidade por
trás do caráter meramente produtivista dos espaços, surgidos nos “contra-
poderes” que resistem à disciplina. Desta forma, torna-se impossível
apreender a complexidade do processo de territorialização de
determinado grupo social sem conhecer estas múltiplas interações que
fazem do espaço algo não unidimensional, mas um labirinto com
complexas redes de ações recíprocas que permitem a apropriação
sucessiva de significações diversas, típico da dinâmica multiespectral da
modernidade. Ininterrupta migração e rearranjo de valores, formas,
funções e significados, celebrados cotidianamente através da permanente
organização, desorganização e reorganização do espaço urbano.
15
Delimitar espacial e temporalmente tal análise é partir da concepção de
que nenhuma comunidade é uma ilha, sendo necessário fazer emergir
suas conexões. É partir do entendimento que, conforme Roger Chartier,
situações particulares, em dado espaço e tempo histórico, são capazes
de revelar as maneiras como os indivíduos produzem e reproduzem seu
meio social, “por meio de suas alianças e seus confrontos, através das
dependências que os ligam ou dos conflitos que os opõem”.
16
É, também,
pensar nos “fenômenos reticulares” apontados por Norbert Elias, no
12
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994, trabalha
com a idéia de Michel Foucault de estruturas auto-disciplinadoras, mas não se limita
a ela. Sugere como contra-ponto, as rupturas cotidianas. FOUCAULT, Michel. Vigiar e
punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis/RJ: Vozes, 1987
13
Fora do poder panóptico, sobrevivem movimentos contraditórios que compensam-se
e combinam-se. Assim, nas práticas urbanas cotidianas, os indivíduos se auto-
disciplinam ao mesmo tempo que agem de forma incoerente, fora do padrão
normalizado. Desviar-se das regras é promover rupturas que possibilitam modificar
os padrões de comportamento.
14
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994, p.92
15
Ver GOMES, Paulo César da Costa. O espaço da modernidade. op.cit., 1988, p.47-67
16
CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. In: Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro: CPDOC, vol. 7, n. 13, 1994, p.101-102
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
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73
processo de individualização, na interação social inerente aos seres
humanos. “É justamente o fato das pessoas mudarem em relação umas
às outras e através de sua relação mútua, de estarem continuamente
moldando e remoldando em relação umas às outras, que caracteriza o
fenômeno reticular em geral”.
17
Um estudo de caso permite, ainda segundo Chartier, atingir o essencial,
“o esclarecimento das condições que tornam possível a emergência e
perpetuam a existência de uma tal forma social”. Para tanto, deve
distinguir funcionamentos diferentes da mesma forma social; mostrar
seus efeitos idênticos no interior das sociedades bastante afastadas no
tempo e no espaço; e contrastar as formas e os funcionamentos sociais.
18
Chartier aponta o caminho: “o objeto fundamental de uma história cujo
projeto é reconhecer a maneira como os atores sociais investem de sentido
suas práticas e seus discursos” reside na “tensão entre as capacidades
inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os constrangimentos, as
normas, as convenções que limitam o que lhes é possível pensar, enunciar
e fazer”. Ele resgata a idéia de Paul Ricoeur, de que os procedimentos
explicativos da história seguem ancorados “no modelo de compreensão
que, no cotidiano ou na ficção, permite dar conta das decisões e das
ações dos indivíduos”.
19
Isto significa dizer que esse trabalho também pode ser inscrito na
perspectiva da micro-história já que é só através dela que podemos
observar fenômenos ainda não observados. Conforme Giovanni Levi,
apesar da delimitação, a micro-história não micro-dimensiona seu objeto
de estudo pois pela observação microscópica temos possibilidades de
revelar fatores previamente não observados. Para ele, os fenômenos
previamente considerados como bastante descritos e compreendidos
assumem significados completamente novos, quando se altera a escala
de observação, resultando na possibilidade de utilizar tais resultados
para dele extrair generalizações mais amplas, mesmo que as observações
iniciais tenham sido realizadas em dimensões relativamente estreitas e
mais como experimentos do que como exemplos.
20
Nesse capítulo pretendo lançar um olhar interrogativo para a cidade e
perguntar como era essa Cachoeira do Sul dos anos 30-45? Como era a
zona urbana da cidade que chegou a ser considerada uma das principais
do Rio Grande do Sul? Para responder a estas perguntas, analiso o contexto
histórico da ocupação da Vila Nova de São João da Cachoeira, mostrando
que a região não era “terra de ninguém”, como afirmado por muitos,
mas que foi palco de disputas sanguinolentas entre portugueses e
espanhóis, a partir do século XVIII. Procuro ver as implicações políticas e
econômicas envoltas ao longo de sua história, sua importância estratégica
de ocupação fronteiriça e sua inclusão dentro da perspectiva nacional.
Ver as influências das migrações alemãs e italianas ao longo do século
XIX, impulsionando a economia de toda região: as casas comerciais, a
incipiente industrialização, a agricultura baseada no arroz, os engenhos
e tudo o mais que contribuiu para o desenvolvimento urbano da sede do
município até fins dos frementes anos 20. Faz-se mister, neste contexto
introdutório, abordar também o uso do jornal como fonte metodológica
que permite lançar um olhar ao passado, com os devidos filtros, uma vez
que é a principal fonte de pesquisa deste trabalho.
21
1.2. Autoridade da escrita e legitimidade
O uso do jornal, como fonte historiográfica, possibilita revelar, em
determinados momentos e nos fatos que publica, os confrontos de idéias
e a própria relação de força existente no entrecruzamento do mundo
social. Apesar de ter disposição multidimensional da escrita, num estilo
lingüístico que prima pela novidade, concisão e inteligibilidade, e layout
espacial onde as notícias são dispostas numa nítida falta de conexão,
num “caos de informações” que impede ao leitor incorporar à sua própria
experiência as informações noticiadas,
22
através do jornal é possível
17
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1994, p.28-29
18
CHARTIER, Roger. Prefácio do livro de ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte:
investigações sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Tradução
Pedro Süssekind. [tradução do prefácio André Telles]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001, p.9
19
CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. op.cit., 1994, p.103-
106
20
LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter. A escrita da história: novas
perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992, p.141
21
Analisei algumas das questões a seguir em SELBACH, Jeferson. Maîtres de plaisir
[construtores de imagens]. Cachoeira do Sul/RS: Ed. do Autor, 2006
22
Sobre a identidade construída pela imprensa, ver BOLLE, Willi. Fisiognomia da
Metrópole Moderna: representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: Editora
da Universidade de São Paulo, 1994, p.91, e BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III.
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Reflexões e inflexões
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resgatar pequenas pistas que revelam práticas cotidianas, objeto deste
estudo.
Como fonte histórica que não se limita a narrar os grandes feitos, o
jornal coloca-se no âmbito do deslocamento da produção histórica para
o pólo de tensão que privilegia os sujeitos em detrimento às estruturas,
como preconiza a Nova História Cultural,
23
levando sempre em
consideração a idéia de “indivíduo” e “sociedade” colocada por Norbert
Elias, para quem todas as mudanças têm origem, não na natureza dos
indivíduos isolados, mas na estrutura da vida conjunta de muitos. “A
história é sempre história de uma sociedade – escreve –, mas, sem a
menor dúvida, de uma sociedade de indivíduos”.
24
O historiador Carlo Ginzburg alerta para o fato de que o material narrativo
– aqui se inclui o jornal como fonte que narra determinados
acontecimentos a partir de certa visão – age durante todas as etapas da
pesquisa, criando interdições e possibilidades. Segundo ele, é rudimentar
a idéia de que as fontes, “se dignas de fé”, oferecem acesso imediato à
realidade ou a algum aspecto dela. Como “espelhos deformantes”, elas
não são janelas escancaradas nem muros intransponíveis. Analisar esta
distorção implica num elemento construtivo, que não é incompatível
com a prova. Para ele, “a projeção do desejo, sem o qual não há pesquisa,
não é incompatível com os desmentidos infligidos pelo princípio de
realidade”. Assim, o jornal é, como parte da realidade passada, sujeito
a contestações. Como fonte que não fala sozinha, se interrogada de
maneira apropriada, exige o preenchimento das lacunas. Trabalho para o
historiador que se move no âmbito do verossímil, nunca do certo ou
completamente verdadeiro, mas que preenche tacitamente tais lacunas
com o que lhe parece natural ou óbvio e, conseqüentemente, certo ou
verdadeiro.
25
Analisando a história da leitura, Roger Chartier entende ser necessário
levar em conta a existência de técnicas ou de modelos de leitura que
organizam as práticas da comunidade e o princípio de organização da
diferenciação.
26
Segundo ele, “o objeto fundamental de uma história
cujo projeto é reconhecer a maneira como os atores sociais investem de
sentido suas práticas e seus discursos” reside na “tensão entre as
capacidade inventivas dos indivíduos ou das comunidades e os
constrangimentos, as normas, as convenções que limitam o que lhes é
possível pensar, enunciar e fazer”. Na análise da construção deste “laço
social” entre produção e recepção, cabe ao leitor-receptor papel
importante. Em princípio, toda história da leitura supõe a liberdade do
leitor que desloca e subverte aquilo que lê, o que o livro, ou neste caso
o jornal, lhe pretende impor. Todavia, a liberdade leitora jamais é
absoluta: “ela é cercada por limitações derivadas das capacidades,
convenções e hábitos que caracterizam, em suas diferenças, as práticas
da leitura”. Mesmo entendendo que as representações coletivas
estruturam esquemas de percepção e de apreciação, a partir dos quais
os indivíduos classificam, julgam e agem, a linguagem é investida,
conforme define Chartier, de “significações plurais e móveis, construídas
nas negociações entre uma preposição e uma recepção, no encontro
entre as formas e motivos que lhes dão sua estrutura e as competências
ou expectativas dos públicos que dela se apoderam”.
27
Assumir tal postura
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, op.cit., 1989, p.106-107, ALVES
F., Aluízio. A América Latina na Folha e no Clarín - Um Estudo Sobre a Construção da
Identidade da América Latina nos Noticiários dos Jornais a Folha de São Paulo e o
Clarín de Buenos Aires. Tese de Doutorado [orientadora Lia Zanotta Machado], Brasília/
DF: Universidade de Brasília, 1997 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/
capesdw/resumo.html?idtese=19974553001010029P1 – acessado em 25/3/2005] e
DANTAS, Antônio Ribeiro. A representação da homossexualidade: a leitura da imprensa
escrita. Dissertação de Mestrado [orientadora Jacira Galvao Gondim Safieh], Natal/
RN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 1990 [disponível em http://
servicos.capes.gov.br/capesdw/ resumo.html?idtese=1990623001 011004P0 – acessado
em 25/3/2005]
23
Ver BURKE, Peter. A escola dos Annales – 1929-1989. A revolução francesa da
historiografia. op.cit., 1997, BOUTIER, Jean. JULIA, Dominique (org.) Passados
recompostos. Campos e canteiros da História. Tradução Marcella Mortara. Rio de
Janeiro: Editora UFRJ; Editora FGV, 1998 e D’ALLESSIO, Márcia Mansor. Os Annales no
Brasil. Algumas reflexões. In: Revista Anos 90. Revista do PPG em História. Porto
Alegre/RS: UFRGS, n.2, maio de 1994, p.127-142
24
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. op.cit., 1994, p.45
25
GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. Tradução Jônatas Batista
Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p.45 e 57-58. Ver ainda FERRARINI,
Sebastião Antônio. A imprensa e o arcebispo vermelho (1964-1984). Dissertação de
Mestrado [orientadora Leda Maria Pereira Rodrigues], São Paulo: Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo. PPG/História, 1989 [disponível em http://servicos.
capes.gov.br/ capesdw/resumo.html?idtese=1989933005010010P8 – acessado em 25/
3/2005]
26
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. Tradução de Reginaldo
de Moraes. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p.92
27
CHARTIER, Roger. A História hoje: dúvidas, desafios, propostas. op.cit., 1994, p.77 e
106
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implica numa constatação de que “as percepções do social não são de
forma alguma discursos neutros”. Para Chartier, na recepção da leitura,
o texto lido ganha sentido com o leitor: muda com ele, ordena-se conforme
seu código de percepção.
28
Já a autoridade da escrita repousa sobre certa adesão, conforme escreveu
Michel de Certeau, “acordo espiritual” que confere legitimidade ao
exercício do poder. O uso autorizado da palavra reside assim na
legitimidade daquele que a pronuncia, neste caso o jornal. Usar o jornal
como documento histórico é partir do princípio que ele permite revelar
a posição do grupo editor, que pode ser ou não pertencente a elite, no
momento que assume-se como seu porta-voz.
29
Por esta razão Certeau
afirma: “ler é peregrinar por um sistema imposto”.
30
O que não pode é
pretender impor-se o discurso daqueles que escrevem e lêem como
história de toda sociedade.
Apesar deste cuidado para fugir da generalização, não é possível negar
que quando o discurso elitista é veinculado pelo jornal, atinge os outsiders
ou subalternos em maior ou menor grau. Pierre Bourdieu denomina esta
relação produtor-receptor como processo de doutrinação simbólica,
trabalho de “gota-a-gota simbólico”, pois leva tempo para tornar-se
evidente e aceitável. As armas são o léxico comum, os eufemismos e os
pressupostos impostos como óbvios e inevitáveis. Ele entende ser
necessário analisar a produção e circulação desse discurso, descrevendo
de modo preciso seus procedimentos a partir do qual dada visão de mundo
é produzida, difundida e inculcada.
31
Neste sentido é que existem relações que servem como instrumento de
dominação, pois são poderes de construção da realidade que tendem a
estabelecer certa ordem em seu conhecimento. A cultura dominante,
segundo Bourdieu, contribui para a integração da classe dominante, para
a integração fictícia da sociedade no seu conjunto, desmobilizando as
classe dominadas, e para a legitimação da ordem estabelecida pelas
distinções hierárquicas.
32
Neste caso, o uso do jornal como veículo de
dominação da linguagem, pensamento e ação ocorre na medida em que
a opinião impressa em suas páginas, embora não seja consenso, legitima-
se não por ser a única linguagem mas por ser aquela que chega quase
com exclusividade aos leitores e pode, consequentemente, generalizar-
se para toda comunidade, mesmo a não-leitora.
É o sentido que Bourdieu dá para a competência dominante que opera
como capital lingüístico capaz de assegurar “lucro de distinção”, desde
que sejam continuamente preenchidas as condições necessárias para
impor essa competência como a única legítima. Assim, ao se buscar a
linguagem como fonte, deve-se tomar como objeto de estudo “a relação
capaz de unir sistemas estruturados de diferenças lingüísticas
sociologicamente pertinentes e sistemas igualmente estruturados de
diferenças sociais”. Em outras palavras, procurar ver o que se fala e
como se fala, em diferentes contextos sociais. Na perspectiva da
imprensa, a aceitabilidade social do que se publica toma o caminho da
resposta ou do silêncio do leitor.
33
Por esta razão, a leitura do jornal
como fonte permite privilegiar aspectos ou esquemas existentes abaixo
da transparência dos fenômenos.
34
Nessa complexa teia de transmissão de “verdades”, o jornal, como veículo
produtor e reprodutor da cultura dominante, ensina como pensar, falar e
agir em sociedade. Edgar Morin entende que a cultura de massa – na qual
o jornal se inclui – orienta, desenvolve e domestica certas virtudes
humanas, enquanto inibe e proíbe outras.
35
28
CHARTIER, Roger. Práticas Culturais. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.17
29
CERTEAU, Michel de. A cultura no plural. Tradução Enid Abreu Dobránszky. Campinas/
SP: Papirus, 1995, Ver prefácio de Luce Giard, p.7, 38, 126-127 e 157
30
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. op.cit., 1994, p.264
31
BOURDIEU, Pierre. Contrafogos: táticas para enfrentar a invasão neoliberal. Tradução
Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.42-44
32
Ver BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. op.cit., 2002, p.9-15 e ___. A economia das
trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. op.cit., 1998, especialmente a Introdução
de Sérgio Miceli, p.11, e Parte I, p.23-24
33
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas: o que falar o que dizer. op.cit.,
1998, p.37-38 e 41-44
34
BOURDIEU, Pierre. CHAMBOREDON, Jean-Claude. PASSERON, Jean-Claude. A profissão
de sociólogo: preliminares epistemológicas. Tradução de Guilherme Teixeira. 2
a
ed.
Petrópolis/RJ: Vozes, 1999
35
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Volume 1: neurose.
Tradução Maura Ribeiro Sardinha. 8
a
ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1990,
p.13-21 e MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: o espírito do tempo. Volume
2: necrose. Tradução Agenor Soares Santos. 2
a
ed. Rio de Janeiro: Forense-Universitária,
1986
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
78
79
Portanto, ler o jornal de ontem com olhos de hoje é fazer a releitura do
passado escrito pela casta local sobre ela mesma, sobre seus próprios
sonhos e desejos coletivos, materializados ou não, anseios estes que,
não raro, tornam-se comuns aos demais integrantes da comunidade. É
preciso desencantar esta ordem e realizar a contraleitura, quebrar em
pedaços o caleidoscópio que reflete de forma distorcida a imagem de
“ordem” da elite.
36
O Jornal do Povo de Cachoeira do Sul é exemplo do
que falo.
1.3. Jornal do Povo, para a elite
Peter Burke diz que vivemos numa sociedade do conhecimento, sob a
égide da economia da informação, mas que a confiabilidade das
comunicações tornadas públicas é questionada. Para ele, as notícias já
eram vistas como mercadorias desde o século XVII.
37
O jornalismo
ocidental, como atualmente é reconhecido pela sociedade, tem sua
gênese no mundo moderno europeu, especificamente na fase
mercantilista do capitalismo. Jürgen Habermas situa o aparecimento da
imprensa no século XVII, a partir da ampliação das correspondências
privadas trocadas entre comerciantes, sistematizadas e divulgadas através
de jornais manuscritos produzidos por escritórios locais que possibilitavam
este intercâmbio de informação. Foram tais escritórios ou agências
noticiosas que providenciaram maior tiragem de exemplares e que
ampliaram a divulgação das informações, a contra-gosto dos próprios
comerciantes. Habermas explica que os jornais, chamados de “jornais
políticos” por noticiarem assuntos públicos de interesse dos comerciantes
– tais como guerras, atos parlamentares, colheitas, impostos e comércio
internacional – não existiam para os comerciantes, mas, ao contrário, os
comerciantes é que existiam para os jornais. Os próprios comerciantes
eram conhecidos como “guardiões das novidades” devido à dependência
que tinham do noticiário público para seu intercâmbio privado de
informações. “A troca de informações – escreve ele – desenvolve-se não
só em relação às necessidades do intercâmbio de mercadorias: as próprias
notícias se tornam mercadorias”.
38
Nos séculos seguintes, a incipiente
imprensa européia tornou-se sistematicamente útil aos governos, fazendo
com que muitos jornais informativos noticiassem boletins oficiais.
A par destas modificações, passou a ser interesse do público-leitor assuntos
que davam o caráter da novidade ao jornal: vida social da corte, festas,
solenidades, nomeações, ou cataclismos, ocorrências policiais, além de
picuinhas e mexericos urbanos. Segundo Walter Benjamin, a introdução
da informação curta e brusca, concorrendo diretamente com o relato
comedido das notícias oficiais e dos editoriais políticos, proporcionavam
ao jornal o aspecto do sempre-novo mas sempre-igual. Na paginação,
inteligentemente variada, residia parte de seu encanto. Desta maneira,
as fontes precisavam ser constantemente renovadas, caracterizando os
jornais com “peculiar elegância barata”.
39
No Brasil, o desenvolvimento econômico agrário permitiu a elite buscar
certo “verniz civilizador”, através do refinamento de hábitos, usos e
costumes importados da Europa. Eram corriqueiras as viagens ou mesmo
o envio dos filhos para estudar no continente europeu, contribuindo para
o aprimoramento do “arcabouço cultural” nas principais cidades
brasileiras. Além do mais, quando Dom João VI chegou em terras
brasileiras, revogou a proibição das atividades editoriais, criando a
Imprensa Régia e mandando publicar a Gazeta do Rio de Janeiro, em
1808. Com a independência, em 1822, surgiram publicações ladeadas
por forças políticas que empregaram a imprensa na formação de opinião.
Por esta razão muitos políticos ligaram suas carreiras às atividades
jornalísticas. Francisco Rüdiger situa o nascimento da imprensa gaúcha
no contexto político que desembocaria na Revolução Farroupilha. O
primeiro folhetim publicado na capital Porto Alegre em 1827, O Diário de
Porto Alegre, foi uma tentativa do Imperador para conter o avanço das
idéias de contestação da oligarquia pastoril sul-riograndense. Como
resposta, surgiram muitos periódicos oposicionistas, verdadeiros pasquins,
com textos de “linguagem extremamente virulenta, não poupando idéias,
nem pessoas”.
40
36
PESAVENTO, Sandra Jatahy. O desfazer da ordem fetichizada: Walter Benjamin e o
imaginário social. In: Revista Cultura Vozes, n.5, volume 89, set-out, 1995, p.37
37
BURKE, Peter. Uma história do conhecimento: de Gutenberg a Diderot. Tradução
Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p.152
38
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: investigações quanto a
uma categoria da sociedade burguesa. Tradução Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1984, p.35
39
BENJAMIN, Walter. Paris do Segundo Império. A boêmia. In: ___. Obras Escolhidas III.
Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, op.cit., 1989, p.24
40
RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. Porto Alegre: Editora da
Universidade/UFRGS, 1993, p.11-30. Sobre a Gazeta do Rio de Janeiro. Ver ainda
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
80
81
No terceiro quartel do século XIX, após a Revolução Farroupilha, as facções
políticas gaúchas assumiram progressivamente a responsabilidade nas
redações, tornando os jornais legítimos porta-vozes dos partidos.
Exemplos como A Reforma (1869), O Conservador (1879), Diário de Pelotas
(1867), O Diário do Rio Grande (1848), O Echo do Sul (1856) e o ícone da
imprensa republicana, A Federação (1884), dirigido por Júlio de Castilhos,
líder do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). A mola propulsora
para o desenvolvimento da imprensa foi justamente a “complexificação
social”, dada através da educação pública desencadeada pelos
castilhistas. Os textos jornalísticos da imprensa assumiram forte cunho
doutrinário, com matérias opinativas sobre questões públicas, comentários
ideológicos e polêmicas com adversários. O número de leitores, limitado
pela baixa escolaridade e poder aquisitivo, faziam dos jornais veículos
de “formação doutrinária da opinião pública”. As publicações acabavam
dependendo de número mínimo de assinantes para manterem-se em
circulação. Sua viabilidade era problema político, não financeiro. As
tipografias, empresas que editavam os jornais, concorriam pelos favores
oficiais. O Estado exercia o controle através de auxílios e subsídios.
41
O golpe de Estado, desencadeado por Getúlio Vargas em 1930, modificou
a estrutura de sustentação dos jornais brasileiros. A abolição dos partidos
políticos obrigou-os à adaptação. Ou adotavam a linha “noticiosa” ou a
postura “oficialista”. Por esta razão, passaram a ser freqüentes
declarações de imparcialidade, seguidos do engajamento político, com
textos baseados em comentários opinativos. Tais manifestações de
neutralidade visavam demonstrar a subtração das conveniências
partidárias em prol dos interesses gerais da sociedade.
42
O aparecimento
de jornais em Cachoeira do Sul nasceu no contexto da amálgama entre
imprensa e política-partidária. Dos extintos que circularam na cidade:
Independente (1864), Cachoeirense (1879), O Pharol (1883), Clarim (1886),
A Idéia (1889), Liberdade (1890), XV de Novembro (1890), O Federalista
(1891), O Governo (1898), O Commercio (1900), Rio Grande (1904), OKU
(1905), O Cachoeirense (1915), Avenida (1914) A Palavra (1915), O
Parlamentarista (1916), Cachoeira Jornal (1928), A notícia (1928), entre
outros.
FACHADA, Tereza Maria Rolo. A Gazeta do Rio de Janeiro: subsídios para a historia da
cidade (1880-1821). Dissertação de Mestrado [orientadora Célia Freire D’Aquino
Fonseca], Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro, PPG/História,
1989 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?
idtese=19891031001017023P8 – acessado em 25/3/2005], onde analisa como o primeiro
jornal publicado no Brasil auxiliou na construção da imagem da capital federal.
41
ALVES, Francisco das Neves. O discurso político-partidário sul-rio-grandense sob o
prisma da imprensa rio-grandina (1868-1895). Rio Grande/RS: Editora da FURG, 2002,
p.126; PESAVENTO, Sandra Jatahy. O cotidiano da República. Elite e povo na virada
do século. 3
a
ed. Porto Alegre/RS: Editora da Universidade/UFRGS, 1995; ISAIA, Artur
Cesar. A imprensa liberal riograndense e o regime eleitoral do império. 1878-1889.
Dissertação de Mestrado [orientador Earle Diniz Moreira], Porto Alegre/RS: Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PPG/História, 1988 [disponível em http:/
/servicos.capes. gov.br/capesdw/resumo. html?idtese=1988542005019005P6 –
acessado em 25/3/2005]; JARDIM, Jorge Luiz Pastoriza. Comunicação e militância a
imprensa operaria no RS 1892-1923. Dissertação de Mestrado [orientador Sérgio
Capareli], Porto Alegre/RS: Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
PPG/História, 1990 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.
html?idtese=19901420050 19005P6 – acessado em 25/3/2005]
42
RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. op.cit., 1993, p.11-51. Ver
ainda: LOPES, Cleide. A Revolução de 30 e a imprensa paulista. Dissertação de Mestrado
[orientadora Estefania Knotz C. Fraga], São Paulo: Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, PPG/História, 1984 [disponível em http://servicos. capes.gov.br/cape
sdw/resumo.html?idtese=19881330050 10010P8 acessado em 25/3/2005]
Figuras 19, 20, 21 e 22
Frontispícios dos jornais A Idéia, O
Commercio, Oku e Avenida, alguns dos
que circularam em Cachoeira do Sul.
Fonte: Museu Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
82
83
Figuras 23 e 24
Tipografia de O
Commercio, que
editou jornal de
mesmo nome, em
1922.
Fonte: Museu
Histórico Municipal
de Cachoeira do Sul
De forma geral, os jornais locais ofereciam poucas matérias redacionais.
Publicavam-se anúncios de venda, correspondências recebidas, chegadas
e partidas de visitantes ou moradores ilustres, desavenças políticas,
participações sociais e outros acontecimentos comunitários. As notícias
estaduais ou nacionais eram transcritas de outros periódicos, utilizando-
se a técnica da “tesoura”, recortando a matéria de interesse, colando-a
no papel e encaminhando-a para a oficina tipográfica. A periodicidade
semanal ou bi-semanal revelava a própria precariedade econômica do
setor, que subsistia basicamente com a benesse da agremiação político-
partidária que o sustentasse, com receitas oriundas dos poucos anúncios
ou apedidos e dos assinantes ou “subscritores”, que recebiam o jornal e
só depois pagavam a assinatura. Dos jornais extintos, o que circulou por
mais tempo na cidade foi O Commercio, fundado em 1º de janeiro de
1900 por Henrique Möller Filho e apoiado pelo major Virgílio Carvalho de
Abreu. Nos cinco primeiros anos, era impresso bilíngüe (português e
alemão); circulava semanalmente até 1966, sempre às quartas-feiras.
43
Através do jornal, o major sustentou diversas campanhas políticas para o
Partido Republicano Liberal (PRL), do general Flores da Cunha. Por razões
desconhecidas, ele fundou em 29 de junho de 1929, junto com Mário
Godoy Ilha, o bi-semanário Jornal do Povo.
Desde seu surgimento, o Jornal do Povo adotou a postura “oficialista”,
com freqüentes declarações de imparcialidade e comentários opinativos
revelando o engajamento político. Na revolução de 30, o major Virgílio
Carvalho de Abreu solidarizou-se com Getúlio Vargas, então chefe do
Governo Provisório, ao estalar o movimento revolucionário. Cinco anos
depois, era presidente do Poder Legislativo Municipal. Seu sócio foi
nomeado prefeito por curto espaço de tempo, de 7 de abril a 8 de
dezembro de 1947.
44
43
Dados extraídos de Cachoeira em jornal – catálogo, op.cit., 1982. Ver também
CARVALHO, Mirela Vieira da Cunha. Às margens do Jacuí: literatura e imprensa em
Cachoeira do Sul (1879-1930). Dissertação de Mestrado, Porto Alegre/RS: Pontifícia
Universidade Católica, Faculdade de Letras, 1999, que estudou a imprensa e a
literatura em Cachoeira do Sul, durante o período de 1887 a 1930, através de 28
periódicos publicados no período, enfocando a produção literária, com preferência
pelo gênero poético.
44
JP, 4/7/1929 Aparecimento do JP, p.1, 17/10/1935 Cel. Virgilio Abreu, p.1, 9/5/1937
Coronel Virgilio de Abreu, p.1 e SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira
do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.43-49 e p.177-182. As principais
mudanças administrativas do Jornal do Povo, de 1929-1963, foram as seguintes: 1929,
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
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85
O editorial do primeiro número de 30 de junho de 1929 já trazia as
modificações pró-Vargas, afirmando que o aparecimento do novo jornal
corresponderia “a aspiração de ocupar um lugar, bem que obscuro, entre
os dignos órgãos da imprensa riograndense, que, em geral, se amoldaram
às exigências do estado evolucional a que chegou o nosso Estado,
manifestado no seu duplo aspecto: político e administrativo”. Desejosos
de fazer crer que o espírito combativo das paixões partidárias não mais
teria voz, que era chegada a hora da “ação construtiva” e da “devotada
cooperação política e administrativa”, escreveram que o jornal nascia
“do povo e para o povo”, não sendo, portanto, “jornal de partido”.
Adotando no nome o verbete “povo”, o jornal procurava passar a idéia
de conjunto, de indivíduos que falam a mesma língua, têm costumes e
hábitos idênticos, afinidade de interesses, história e tradições comuns,
portanto algo que uniria os desiguais da elite, os militantes de diferentes
agremiações, nas mesmas páginas impressas. Contrariando seu próprio
discurso de independência partidária, o editorial explicitava que seguiria
a “corrente liberal”, a mesma que o major Virgílio de Abreu levantava
no PRL local.
45
Assim, o JP defendeu ideais que se coadunavam com o
exigido pelo governo Vargas, que se instalara a partir do golpe de 1930.
Junto ao nome do Jornal do Povo, foi colocada a alcunha de
“independente”, numa clara pretensão de diferenciar-se dos jornais
partidários, como o próprio rival O Commercio. Nos editoriais,
freqüentemente vinculava expressões do tipo “ser fiel ao seu programa
de se bater em defesa da população cachoeirense”, de ser “jornal livre,
que tudo desvenda”, “que jamais falseou ao seu programa de periódico
inteiramente consagrado aos interesses gerais, para o que se fazia mister
colocar-se, à margem dos partidos políticos”. Apesar da repetição
sistemática, reafirmando preceitos de independência e liberdade, com
a ditadura getulista houve alinhamento oficial, mostrado em suas próprias
páginas: “apressou-se em ir, de pleno agrado, ao encontro do lema
desfraldado pelo sr. Getulio Vargas, ao assumir a suprema administração
do Estado, de mais administração e menos política”. Partindo do princípio
expresso pelo editorial – “a imprensa não é julgadora: é preparadora dos
julgamentos”, aquela que separa “do trigo o joio” – o Jornal do Povo
disse filiar-se à “confluência da corrente democrática com a corrente
getulista”.
46
Embora os editores desejassem passar a idéia de que estavam
acima das picuinhas político-partidárias, visando somente os interesses
da comunidade, algo que o jornal pretendeu construir desde seu
aparecimento, estas passagens mostram a que grupos servia.
Nos editoriais de aniversários, era indelével a marca do discurso favorável
a Getúlio Vargas. “Nascido para a Revolução de Outubro – escreveram os
editores no sexto aniversário – diz-lhe a consciência que a esse movimento
de reconstrução política e social prestou o concurso inalterável de sua
boa vontade”. Era comum declarações explícitas de apoio, com uso de
palavras denotando simpatia e proximidade com o grupo no poder. O JP
declarava com “satisfação” a cooperação, com seu “modesto concurso”,
na “grande obra iniciada pelo iminente chefe do governo brasileiro”. A
idéia que se quer passar é da unidade no discurso da imprensa em geral,
o verdadeiro papel seria de “orientadora serena”. Sem isso, se estaria
marchando a passos largos para a confusão, anarquia e caos.
47
O privilégio de espaço das reportagens e artigos sobre a publicidade
exemplifica o uso político do jornal. Em 1934, o grande número de
anúncios, aliado a impossibilidade de rodar mais de duas páginas, obrigou
os editores a preterir para o próximo número a publicação regular de
matéria paga. Como muitos outros jornais, conquistavam-se assinantes
de forma inusitada, distribuindo-se exemplares indistintamente na cidade
e região. Quem não devolvesse, passava a ser subscritor. Em caso de
inadimplência, ameaçava-se com a publicação dos nomes dos devedores.
48
Em 1937, a Constituição Federal brasileira legalizou a censura prévia aos
meios de comunicação. À imprensa coube a função de caráter público,
instrumento oficial da ideologia do Estado Novo. A nova Lei da Imprensa
obrigou os jornais a publicarem “comunicados” do governo, exigiu que
diretores Virgílio Carvalho de Abreu e Mário Godoy Ilha; 8/5/1937, falecimento do
Coronel Virgílio Carvalho de Abreu; 1945, proprietário Manoel de Carvalho Portella &
Cia., diretores Manoel de Carvalho Portella e Liberato Salzano Vieira da Cunha; 23/
5/1948, gerente Paulo Salzano Vieira da Cunha; 10/6/1951, falecimento de Manoel
de Carvalho Portella; 9/4/1957, falecimento de Liberato Salzano Vieira da Cunha;
1963, diretor Paulo Salzano Vieira da Cunha.
45
JP, 30/6/1929 Editorial, p.1
46
JP, 14/12/1930 Editorial, p.1, 8/1/1931 Poesia. Que é que há. ACB, p.2, 22/1/1931 E
foi assim que o Jornal do Povo, p.2 e 30/6/1931 Editorial. Terceiro ano, p.1
47
JP, 30/6/1935 Editorial. O nosso aniversário, p.1, 7/7/1935 O papel da imprensa.
Mucio Scolvola, p.1 e 30/6/1936 O nosso oitavo aniversário, p.1
48
JP, 1/1/1930 Jornal do povo, p.3 e 29/4/1934 Noticiário. “Jornal do Povo”, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
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todos os artigos opinativos fossem assinados e possibilitou a prisão dos
diretores. O artigo 1.222 prescreveu a censura prévia e facultou às
autoridades a proibição da circulação dos jornais que fizessem críticas
ao regime. Maria Helena Capelato, analisando jornais alinhados ao
getulismo, aponta o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) como
peça fundamental para controle e repressão dos atos e idéias, com amplos
poderes sobre os meios de comunicação e organização da propaganda
oficial. Segundo ela, Vargas “lançou mão de todos os recursos das novas
técnicas de persuasão que estavam sendo usadas em diversos países,
especialmente na Alemanha de Goebbels”. Criado em 1934, o
departamento respondia diretamente ao Ministério da Justiça, colocando
assim os meios de comunicação de massa diretamente ligados ao Poder
Executivo, modelo inspirado no Ministério de Propaganda da Alemanha
nazista. Entretanto, diferente do modelo alemão onde o rádio foi
prioritário, os esforços para calar vozes dissonantes no Brasil de Vargas
foram realizados de forma semelhante à Itália fascista de Mussolini,
através da imprensa periódica.
49
Mesmo no contexto da “política do silêncio” do Estado Novo, as
declarações parciais do Jornal do Povo estavam longe de ser impositivas.
Tratava-se de apoio explícito ao regime que sutilmente simpatizava com
o fascismo europeu. O próprio jornal elogiara o caráter fascista ainda no
início dos anos 30. No artigo Legionários da revolução, os redatores
valorizam o governo de Mussolini, afirmando que ele teria remodelado
“gloriosamente” a Itália, levando a crer tratar-se de atuação esplêndida,
deslumbrante ou mesmo magnífica. Além do mais, o apoio do JP ao
governo revolucionário de Vargas era posto de forma generalizada, como
se os ideais de 30 fossem compartilhados por toda população:
Cachoeira, que foi a primeira a pular na estrada, abrindo caminho a arremetida
fulminante contra o principal baluarte da devastação da República, sente-se no dever
imprescindível de enfileirar-se entre as forças que montam guarda vigilante à consecução
dos objetivos finais da jornada de 3 de outubro. É preciso portanto confessar, desde já,
que Cachoeira é partidária ardorosa da constituição eficiente dessa milícia cívica.
50
Assim, se o DIP projetava as estratégias de Getúlio Vargas e legitimava o
Estado Novo via meios de comunicação, esses ideais getulistas apareciam
em Cachoeira pela voz do Jornal do Povo, que os apresentava como algo
que estava no sangue da maioria dos cachoeirenses. Esse tipo de linguagem
adotada prestavam-se à eliminação das posições contrárias porque
justamente apresentavam-se como a fala do todo, não admitindo
contestações. Aquilo que Andréa Petry, analisando o papel desempenhado
pelo Correio do Povo durante o Estado Novo, chamou de “efeito ideológico
de uma unidade no discurso”.
51
No JP, estes preceitos seriam mantidos
décadas a fio, mesmo findo o primeiro período varguista em 45, embora
com outras conotações.
A contribuição política do jornal para o governo Vargas era de não
direcionar ataques a partidos específicos, a essa ou aquela facção. Sob
argumento de que visavam auxiliar na consolidação do prestígio do regime,
sustentavam em Cachoeira a estratégia política de Vargas de aglutinar
posições ambíguas para manter o poder. Para os editores do JP, a
estabilidade não dependia propriamente da vitória deste ou daquele
candidato, mas da maneira com que se conduzissem as forças
democráticas.
52
Em outras palavras, a construção do discurso único
corroborando com o regime autoritário instalado em 1937. Por conta
desse apoio explícito a Vargas, foi concedido ao JP o registro no DIP em
1941.
53
Em termos de linguagem jornalística, foi marcante o abandono gradual
do estilo liberal, caracterizado pela retórica pomposa, característica que
perdurou no JP pelo menos até o falecimento do major Virgílio Carvalho
de Abreu, em maio de 1937, visto sua ligação com o PRL local. Semelhante
a imprensa européia fascista, o jornal aos poucos passou a adotar a escrita
precisa, séria, direta e energética.
49
CAPELATO, Maria Helena R. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e
no peronismo. Campinas/SP: Papirus, 1998, p.69-75. Segundo ela, o DIP tinha como
função elucidar a opinião pública sobre as diretrizes doutrinárias do regime e estava
estruturado da seguinte forma: Divisão de Divulgação, Divisão de Radiodifusão, Divisão
de Cinema e Teatro, Divisão de Turismo, Divisão de Imprensa e Serviços Auxiliares.
Tal organização funcional revelava um alto grau de centralização. Além disso, os
cargos de confiança eram atribuídos diretamente por Getúlio Vargas.
50
JP, 5/3/1931 Legionários da revolução, p.1
51
PETRY, Andréa Helena. O papel desempenhado pelo Correio do Povo durante o Estado
Novo In: DREHER, Martin; RAMBO, Arthur; TRAMONTINI, Marcos Justos (org.). Imigração
& imprensa. Porto Alegre: EST, São Leopoldo: Instituto Histórico de São Leopoldo,
2004, p.427
52
JP, 30/6/1937 Mais um passo, p.1
53
JP, 9/2/1941 Noticiário. Concedido registro no D.I.P ao “Jornal do Povo”, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
88
89
Em outubro de 1944, o jornal foi adquirido por Manoel de Carvalho Portella
e Liberato Salzano Vieira da Cunha, jovens intelectuais ligados ao
catolicismo cooptados pelo regime varguista. Segundo Boris Fausto, os
dirigentes do Estado Novo procuraram desde cedo atrair setores letrados
a seu serviço. Como a Igreja Católica foi uma das bases de sustentação
do governo, era natural o apoio ao regime por parte de jovens como
Liberato Viera da Cunha, católico fervoroso, membro da União dos Moços
Católicos de Cachoeira do Sul, fundador e presidente do Centros de Ação
Católica, que fez carreira política no Partido Social Democrático (PSD).
54
Embora se afirmasse que o JP não era um jornal religioso, sua orientação
era verdadeiramente católica, imprimindo no feitio do jornal sua idéia e
atitude firme em defesa dos princípios católicos e dos costumes cristãos.
Freqüentemente, os editoriais evocavam a proteção divina: “O Jornal do
Povo, considerado a importância da missão do jornalismo, ao iniciar mais
um ano de trabalho, quer reafirmar à família cachoeirense que vai
continuar informando, informando tudo e informando só a verdade, com
a ajuda de Deus e a Virgem Medianeira”.
55
O anúncio publicado no JP do porto-alegrense Jornal do Dia, que teve
como redator-chefe, por determinado período, o próprio Liberato Vieira
da Cunha, afirmava textualmente que ajudar um jornal católico significava
defender a moralidade dos indivíduos e das famílias. Resgatando as
palavras de Pio XII, a imprensa podia trazer paz ou guerra: “Sempre tem
conseqüências o que diz o papel impresso. Pela imprensa se pode
profetizar o futuro de um povo ou de uma civilização”. Por isso não
podia faltar nos lares católicos um jornal católico: “Leia, assine e propague
o Jornal do Dia”, dizia o anúncio.
56
Como fundador e presidente do Centro de Ação Católica e como membro
do PSD, ligado à Liga Eleitoral Católica, Liberato Vieira da Cunha
trabalhava para que os postulados católicos fossem incorporados tanto
nas leis estaduais quanto na própria comunidade cachoeirense.
57
A mudança administrativa em 1944 não modificou o sentido político-
partidário do jornal; ao contrário, solidificou. Como escreveu a leitora
Carina Pessoa: “Nada sofreu o jornal com a mudança de redatores e
proprietários. Continuou a sua rota, traçada pelos fundadores, de bem
servir ao público cachoeirense, defendendo os interesses municipais, a
boa orientação política e administrativa e política geral, dentro dos
princípios de lealdade, justiça e tolerância”.
58
Os novos editores seriam
“dignos continuadores de Virgílio de Abreu”.
59
Liberato Vieira da Cunha
freqüentemente redigia artigos ardorosos pró-Vargas, preocupando-se
em ressaltar a personalidade do presidente:
E quando fizermos, em Cachoeira do Sul, um comício festejando a anistia ou festejando
alguma vitória democrática, não cometamos a injustiça que muitos patrícios nossos
estão cometendo: a de levarem, como líderes democráticos, as fotografias de Roosevelt
e Stalin, deixando no olvido [esquecido] a de Getúlio Vargas.
60
Mesmo com o armistício em 45 e a deposição de Vargas, Liberato Vieira
da Cunha foi fiel, passando a defender o sucessor Eurico Gaspar Dutra, a
quem chamou de “figura ímpar” que teria “larga folha de serviços
prestados ao país”, alguém que teria a capacidade de ampliar e completar
a “política de alta visão do grande Getúlio Vargas”, fazendo com que o
Brasil consolidasse seu “prestígio entre as grandes potências do mundo”.
61
Todos esses superlativos usados nos escritos denotam a vontade do diretor
do JP em valorizar não a gestão, mas a figura do presidente, indício do
paternalismo que caracterizou o período em questão.
54
FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2002, p.186-208. Liberato Salzano Viera da Cunha
(20/12/1920-7/4/1957) nasceu em Cachoeira do Sul, filho de Antônio Peixoto Vieira
da Cunha e Angelina Salzano Vieira da Cunha. Casou com Jenny Conceição Figueiredo
Vieira da Cunha. Era advogado e professor. Prefeito de Cachoeira (1947-1950),
deputado estadual (1950-1954) e Secretário de Educação e Cultura do Estado do Rio
Grande do Sul (1955-1957). Diretor do Jornal do Povo (1944-1957) e redator-chefe do
Jornal do Dia (católico). SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul,
Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.62-64
55
JP, 2/7/1950 Editorial. Mais um aniversário, p.2
56
JP, 17/1/1954 Anúncio, p.1
57
JP, 30/6/1946 “Jornal do Povo”. Carina Pessoa, p.17 e 10/1/1947 Política local, p.1
58
JP, 30/6/1946 “Jornal do Povo”. Carina Pessoa, p.17
59
JP, 30/6/1948 Uma visão retrospectiva. Carina Pessoa, p.10
60
JP, 19/4/1945 Getúlio Vargas. Liberato S.V. da Cunha, p.2
61
JP, 22/4/1945 Incoerência. Liberato S.V. da Cunha, p.2 e 4/10/1945 Partido Social
Democrático: força política em marcha para a vitória. Liberato Salzano Vieira da
Cunha, p.2. Sobre a imprensa no período, ver, por exemplo: DUARTE, Celina Rabelo.
Imprensa e redemocratização no Brasil: um estudo de duas conjunturas, 1945 e 1974-
1978. Dissertação de Mestrado [orientadora Maria Teresa S. R. de Souza] São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PPG/Ciências Sociais, 1987 [disponível
em http://servicos.capes.gov.br/capesdw/resumo.html?idtese=1987123300501000P0
- acessado em 25/3/2005]
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
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O uso político do jornal mostrava-se na forma como narrava
acontecimentos político-partidários. A instalação do diretório do PSD, ao
qual Liberato Vieira da Cunha pertencia, foi descrito em efusivas loas. A
solenidade teria sido “magnífica”, revestida de “grande brilhantismo”,
decorrido sob “intensa vibração cívica”. O número de pessoas
demonstrariam que o partido contaria com “a maioria do eleitorado
cachoeirense”.
62
O sentido populista que caracterizou o governo federal neste período
influenciou sobremaneira o Jornal do Povo. O editorial de 1º de julho de
1945 explicita essa conotação popular ao afirmar que viver o jornal era
viver “para o povo, sofrer com o povo, desejar com o povo”; como o
próprio nome dizia, o JP deveria ser “intérprete exato das aspirações e
do pensamento da população”, num jornalismo que batalhava pela
“verdade”, lutava pela “justiça”, defendia os “oprimidos”,
engrandecendo o Brasil; que o jornal lutava pelos “superiores e impessoais
interesses da coletividade cachoeirense”. O dever de informar tinha de
ser feito com “isenção e coragem, divulgando todas as notícias de
interesse geral”.
63
A necessidade de afirmar e reafirmar sistematicamente
essas questões escondia, em seu âmago, a verdadeira ideologia dos seus
editores.
Aos adversários políticos, o jornal reservava grandes espaços em suas
páginas para denegri-los. Exemplo disso foram os escritos do católico
Liberato Vieira da Cunha na tentativa de contribuir para soterrar a ameaça
comunista. As páginas do JP foram inundadas com textos repudiando a
propaganda pública de idéias que chamou de “russificadoras”. O comício
público pró-constituinte, organizado na praça José Bonifácio por
seguidores do comunista Luiz Carlos Prestes, foi dissolvido, naquilo que
Liberato Vieira da Cunha intitulou “vibrante manifestação de brasilidade”,
discurso que denotava a idéia de que a luta de Prestes era por tornar o
Brasil apêndice dos comunistas russos. Na ocasião, populares contrários
invadiram o local, pondo termo à reunião. Depois dirigiram-se ao largo
da Igreja Matriz, onde Liberato Vieira da Cunha, após fazer oração em
público, pronunciou “eloqüente discurso profligando a ação dos emissários
de Moscou, que pretendiam implantar no Brasil o credo desagregador da
Rússia Soviética”. O modo que o jornal descreve o momento revela a
tendência política adotada. A reportagem ressalta que, após as
manifestações, os populares visitaram a redação para darem “vivas ao
jornal e aos seus diretores que energicamente vem combatendo aqueles
que querem fazer da nossa terra um paraíso de adeptos do credo
moscovita”. Para Liberato Vieira da Cunha, foi uma formidável
manifestação de repúdio ao comunismo e aos que chamou de “lacaios de
Stalin”, “exploradores do povo”. Para ele, foi acontecimento de “puro
cristianismo, brasilidade e democracia”, que servia de exemplo ao Rio
Grande do Sul, ao Brasil e à Rússia. A edição do JP contando os pormenores
da manifestação comunista teria tido tamanha procura que ocasionara
filas na redação.
64
A visita do próprio Prestes a Cachoeira, em outubro de 1945, foi descrita
como acontecimento memorável, célebre, notável, digno de permanecer
na memória coletiva da cidade, não por seu enredo espetacular, mas
pelo modo como foi dissolvido. Ao discursar da sacada do Partido
Comunista (PC) local, teria sido “estrepitosamente acuado” por vaias e
gritos de “Abaixo Prestes”, “Morra o Comunismo”, “Viva o Brasil”. Um
momento, para o jornal, “de rara emoção que o repórter teve a felicidade
de viver”. O título da matéria revela o embate ideológico presente no
discurso do jornal: “Luiz Carlos Prestes e seus sequazes fugiram de
Cachoeira do Sul como verdadeiros gangsteres, dando tiros para trás”.
65
No ano seguinte, o outro editor, Manoel de Carvalho Portella, escreveu
ser preferível entregar os elementos “sangue-sugas” – assim se estaria
fazendo justiça – do que defenestrá-los publicamente através do jornal,
com palavras de “mata, esfola, dependura, fuzila”.
66
62
JP, 26/6/1945 Magníficas as solenidades da instalação do PSD, p.1,
63
JP, 1/7/1945 Jornal do Povo, p.1 e 29/6/1952 23º aniversário do Jornal do Povo, p.1
64
JP, 1/9/1945 Decisivo repúdio ao comunismo, p.1, 21/9/1945 Lição impressionante.
Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2, 23/9/1945 Edição extraordinária do “Jornal
do Povo”, p.1, 4/10/1945 Partido Social Democrático: força política em marcha para
a vitória. Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2. Ver AZEVEDO, Luiz Vitor Tavares de.
Carlos Lacerda e o discurso de oposição na tribuna da imprensa (1953-1955).
Dissertação de Mestrado [orientador Francisco Falcon], Rio de Janeiro: Universidade
Federal Fluminense, PPG/História, 1988 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/
capesdw/resumo.html?idtese= 1988331003010005P6 - acessado em 25/3/2005]
65
JP, 7/10/1945 Luiz Carlos Prestes e seus sequazes fugiram de Cachoeira do Sul como
verdadeiros gangsteres, dando tiros para trás, p.1
66
JP, 5/8/1946 Um por dia. Manoel de Carvalho Portella, p.2.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
92
93
Os ventos democráticos do pós-guerra possibilitaram que a imprensa não
mais forçosamente se alinhasse ao governo federal centralizador,
permitindo o abandono gradual do jornalismo noticioso e parcial que a
caracterizara desde seus primórdios. A destituição de Getúlio Vargas abriu
caminho para eleição e não mais nomeação dos prefeitos. Cyro da Cunha
Carlos governara o município a maior parte dos anos de guerra, assumindo
pela primeira vez em 29 de outubro de 1939 até 17 de novembro de 1945
e de 10 de março de 1946 a 7 de abril de 1947. Neste ínterim, assumiram
Alfeu Escobar e Jacinto Dias Filho. Após o último período de Cyro da
Cunha Carlos, o prefeito nomeado foi Mário Godoy Ilha até 1947.
67
Entretanto, muitos jornais do interior perpetuaram o uso político, como
o próprio Jornal do Povo. A circulação dos jornais é indício desse uso. A
iniciativa de aumentar a periodicidade tinha sido feita em maio de 1939,
quando intentava-se passar de bissemanal para diário. As expectativas
foram frustradas frente à crise mundial que se avizinhava.
68
Na virada de
1946 para 1947, a circulação passou a ser segundas, quartas, sextas e
domingos. Para os editores, a finalidade publicitária do jornal possibilitaria
a execução da “mais importante das finalidades da imprensa: a
colaboração no desenvolvimento do progresso das cidades, através do
noticiário e da defesa dos interesses das suas populações”. No ano
seguinte, foi anunciado o matutino diário, fazendo crer que o fato seria
motivo de orgulho para toda comunidade, embora pequena parcela fosse
leitora assídua: “Cachoeira do Sul poderá, doravante, orgulhar-se por
possuir o seu diário, acontecimento que irá contribuir, sem dúvida, para
elevar mais ainda o conceito e o nível cultural já atingidos pela nossa
terra, entre as principais cidades do Rio Grande do Sul”.
69
Todavia, o
aumento da circulação tinha como finalidade eleger o diretor do JP,
Liberato Vieira da Cunha, para prefeito.
Em 1947, Liberato Vieira da Cunha foi eleito prefeito de Cachoeira do
Sul pelo PSD, o que, de certa forma, representou a continuidade da
política local, visto que o prefeito eleito alinhara-se efusivamente a
Getúlio Vargas, quando de sua deposição em 1945. Parte da campanha
municipal de Liberato Vieira da Cunha foi baseada na xenofobia ao se
apresentar em grandes anúncios publicados em seu jornal como “o único
candidato cachoeirense”.
70
Elegeu-se com expressiva votação, tendo como
vice Frederico Gressler.
71
Após a vitória eleitoral, o JP, ainda sob sua responsabilidade, parou de
circular diariamente, com o argumento de que não podia manter durante
o dia a sua “máquina-composição pela absoluta falta de força motriz,
que não atinge o grau de calor necessário para o derretimento do
chumbo”.
72
Na verdade, garantida a eleição, não se justificava a circulação
diária deficitária.
73
Conseqüentemente, as críticas do jornal foram
direcionadas para atos falhos dos cachoeirenses e não para a administração
municipal. Exemplo foi a coluna assinada pelo articulista de pseudônimo
Roseteur, a flor com espinhos pronunciada de forma afrancesada.
74
Também sob o anonimato do pseudônimo Chinês, o diretor do JP Manoel
Carvalho Portella, assinou a coluna Pingos nos ii..., de 1947 até seu
falecimento em junho de 1951, quase sempre com críticas aos
cachoeirenses, poupando a administração municipal sob responsabilidade
do sócio.
75
67
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.46
68
JP, 7/5/1939 O Jornal do Povo passará, em breve, a nova fase, p.1
69
JP, 15/12/1946 Jornal do Povo, p.8, 1/1/1947 Nova fase. Manoel de Carvalho Portella
e Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2, 21/10/1947 Cachoeira já possui o seu jornal
diário. Sylvio Dutra de Albuquerque, p.1 e 2/12/1947 Jornal do Povo, p.1
70
JP, 15/11/1947 Anúncio. Partido Social Democrático. Para prefeito: o único candidato
cachoeirense. Liberato Salzano Vieira da Cunha (3/4 de página), p.1
71
JP, 20/11/1947 Expressiva vitória do Partido Social Democrático, p.1
72
JP, 2/12/1947 Jornal do Povo, p.1
73
JP, 31/8/1950 Diretor: Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.1
74
JP, 7/1/1948 O que há com tudo isso? Roseteur. A Praça de Santo Antônio, p.4, 11/1/
1948 O que há com as calçadas? Roseteur, p.4, 14/1/1948 O que há com os mocinhos?
Roseteur, p.4 e 16/1/1948 O que há com a morte? Roseteur, p.6
75
JP, 21/1/1948 Pingos nos ii... Chinês. E elas se pegaram, p.2, 25/1/1948 Pingos nos
ii... Chinês. Precisa-se de uma empregada, p.2, 26/1/1948 Pingos nos ii... Chinês.
Carnaval, p.3, 14/3/1948 Pingos nos ii... Chinês. Terreno para presídio, p.2, 12/4/
1948 Pingos nos ii... Chinês. Parafuso, p.2, 16/5/1948 Pingos nos ii... Chinês. Ecos da
destruição dos aparelhos do Aero, p.2, 21/5/1948 Pingos nos ii... Chinês. Com a
brusca caída da temperatura..., p.2, 7/6/1948 Pingos nos ii... Chinês. Saias cumpridas,
p.2, 13/6/1948 Pingos nos ii... Chinês. Com os fiscais de menores, p.2, 18/6/1948
Pingos nos ii... Chinês. Com os bondes, p.2, 23/6/1948 Pingos nos ii... Chinês. Começou
a fuzilaria, p.2, 31/8/1948 Pingos nos ii... Chinês. Bicicletas de aluguel, p.2, 3/10/
1948 Pingos nos ii... Chinês. Baile, p.2, 24/1/1950 Pingos nos ii... Chinês. Bem feito,
p.2, 26/1/1950 Pingos nos i... Chinês. Sirene de alarme, p.2, 7/2/1950 Pingos nos
ii... Chinês. Carnaval, p.2, 19/3/1950 Pingos nos ii... Chinês. Bixaredo, p.2, 28/3/
1950 Pingos nos ii... Chinês. Telefones, p.2, 23/4/1950 Pingos nos ii... Chinês.
Destoante, p.2, 7/5/1950 Pingos nos ii... Chinês. Triste espetáculo, p.2, 7/5/1950
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
94
95
Através das páginas do jornal, Liberato Vieira da Cunha alcançou vôos
maiores, como a eleição a deputado estadual em 1950, a reeleição em
1954 e o cargo de Secretário Estadual da Educação e Cultura em 1955.
Em todas oportunidades, usou das páginas do JP para divulgar suas idéias,
procurando sempre demonstrar que havia sido dinâmico gestor municipal.
O jornal era o seu cartão de visitas que mostrava a cidade bem
administrada, com estradas patroladas, escolas abertas e obras de
assistência social cuidando dos menos favorecidos, tudo isto
representando motivo para que o “eleitorado consciente de sua terra”
votasse nele, pois seria “intransigente defensor dos interesses coletivos”.
Na primeira eleição a Assembléia Legislativa, foi eleito com mais de 15
mil votos.
76
A atitude benevolente do JP com a administração municipal perdurou
somente até o fim do mandato do vice-prefeito, Frederico Gressler (1950-
1951). À visão romanceada e parcial, contrapôs-se um olhar menos ameno,
mais crítico e severo, quando foram eleitos Virgilino Jayme Zinn e
Henrique Fonseca Ghignatti (1952-1955). Indício da razão dessa mudança
de postura foi a publicação das leis, feitas exclusivamente no Jornal do
Povo, quando Liberato Vieira da Cunha era prefeito e quando assumiu
seu vice, Frederico Gressler. O monopólio durou até o início da
administração seguinte. De agosto a novembro de 1952, o prefeito Virgilino
Zinn publicou as leis somente no Livro de Registro de Leis da Prefeitura
Municipal. Depois, voltou a publicar no JP até maio de 1953, quando as
publicações oficiais foram feitas no jornal O Commercio durante dois
meses. Após, passou a ser alternado nos dois jornais.
A perda das benesses públicas obrigou o jornal a buscar anunciantes. Em
face do partidarismo, a maioria dos jornais do interior tinham número
limitado de leitores e, em conseqüência, dispunham de escassos recursos
advindos da publicidade. Data desta época as primeiras iniciativas de
explicar aos leitores que parte das despesas do JP era paga pelos
anunciantes que prestavam duplo serviço, fornecendo informações sobre
produtos que o leitor necessitava e pagando parte do jornal. Os anúncios
do próprio jornal ressaltavam a necessidade do leitor preferir os produtos
dos patrocinadores.
77
Com o falecimento de Manoel Carvalho Portella em 1951 e a morte num
acidente trágico de Liberato Vieira da Cunha em 1957,
78
o Jornal do Povo
passou às mãos do irmão Paulo Salzano Vieira da Cunha, gerente desde
1948. A troca acelerou a mudança de jornal político para noticioso, o
que exigiu novos investimentos tecnológicos, desenvolvimento do
departamento comercial e a guinada para a regionalização das notícias e
o envolvimento comunitário, sem por isso abandonar a parcialidade da
informação.
Seria a resposta frente ao avanço dos jornais da capital, que ampliavam
a concentração e o monopólio da informação, com a modernização da
redação e a prevalência da publicidade sobre a política. Conforme Rüdiger,
a imprensa porto-alegrense avançando rumo ao interior gaúcho graças
ao desenvolvimento dos meios de transporte, das novas técnicas de
distribuição dos exemplares e do recolhimento das notícias.
79
Para
sobreviver, o Jornal do Povo precisou acelerar o movimento de
reorganização, através de grandes investimentos que possibilitariam
aumento da circulação e regionalização da notícia. Ao invés de jornalismo
político-partidário-religioso, encontraria saída na tirania do departamento
comercial. Embora fosse essa a tendência do jornalismo na época, as
mudanças administrativas e redacionais foram, de certa forma,
postergadas pelo uso que Liberato Vieira da Cunha fez do JP.
Neste contexto ideológico, algo que perpassou e sobreviveu as mudanças
administrativas do Jornal do Povo foi o fato dos editores defenderem
veemente os ideais da elite. Ao longo de sua história, o jornal seria
reconhecido pelo discurso em favor dos interesses de uma minoria,
Pingos nos ii... Chinês. Correrias e descargas abertas, p.2, 25/6/1950 Pingos nos ii...
Chinês. Divórcio, p.2, 4/7/1950 Pingos nos ii... Chinês. Pouca vergonha, p.2, 9/7/
1950 Pingos nos ii... Chinês. Trem maluco, p.2 e 31/12/1950 Pingos nos ii... Chinês.
Adivinhação, p.2
76
JP, 31/8/1950 Diretor do JP: Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.1, 7/9/1950 Para
Deputado Estadual Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.4, 17/9/1950 Manifesto aos
meus conterrâneos. Liberato Salzano Vieira da Cunha, p.2 e 2/10/1950 Hoje a
proclamação dos resultados oficiais do pleito neste município, p.1
77
JP, 18/1/1951 Alguém paga parte deste jornal para você!, p.1, 15/7/1951 A partir do
dia 1º de Julho – primeiro do 23º ano de existência do Jornal do Povo – tencionávamos
introduzir algumas modificações na apresentação do Jornal, p.1 e 15/9/1953 Bom
dia, leitor! Fazer jornal, no interior..., p.1
78
JP, 10/6/1951 Manoel Carvalho Portella, p.1, 10/4/1957 Tremenda Catástrofe, p.3
79
RÜDIGER, Francisco Ricardo. Tendências do jornalismo. op.cit., 1993, p.55-69
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
96
97
moradora do centro urbano. Nos próximos capítulos, pretendo mostrar
como essa luta pôde ser vista nos mais diferentes aspectos: instalação
dos telefones automáticos, necessidade de maior força motriz, melhoria
da infra-estrutura rodoviária, ferroviária e fluvial, como a plena navegação
do rio Jacuí e o porto para escoar a produção dos rizicultores, exigência
da intervenção estatal para financiamento da produção de arroz,
promoção da Festa do Arroz, cujos festejos tiveram caráter
eminentemente elitista, como o concurso da escolha da rainha. Em críticas
como a falta de espaço na zona central que, devido ao crescimento
populacional, resultou na expansão dos subúrbios, exigindo terraplanagem
e encascalhamento das ruas, construção de pontilhões para o acesso e
infra-estrutura como água, esgoto e luz elétrica. Algo que, na visão do
JP, tornaria “muito feio” o município, além de acarretar aumento de
impostos. Por isso comumente denunciar a higiene das vilas, assunto
tratado como caso de polícia por conta da desordens e conflitos, exigir a
remoção de animais que estivessem sendo criados para consumo nos
domicílios, imputar aos moradores dos subúrbios a responsabilidade na
utilização de terrenos baldios e sangas para depósito de lixo, mesmo que
inexistisse a coleta nos subúrbios. Mesmo quando defendia melhorias
para os pobres, o jornal o fazia com um fundo elitista. Exemplo foi o
aspecto da saúde curativa, com a construção do novo hospital.
Essa interposição aparecia fortemente nas questões urbanas, manutenção
do espaço citadino frente ao êxodo dos subalternos, algo que desencadeou
reclames sobre os aspectos fisionômicos, como praças e construções, a
beleza arquitetônica da zona central. O JP defendeu ardorosamente,
nesses quinze anos analisados, a manutenção de serviços como varrição
das ruas, iluminação pública e ordenação do espaço. Fez distinção social
através da religião, tratando de forma diferente outras congregações,
preocupou-se com a estética das duas praças centrais, com as regras de
convívio e etiqueta, exigindo elegância dos freqüentadores, valorizou as
recepções oferecidas em ambientes privados, o empolamento
aristocrático dos eventos sociais, deu sobrevida e perpetuou a
diferenciação social através dos relacionamentos afetivos, condenou as
desonradas ao fazer campanha em nome da moralidade da sociedade
cachoeirense para combater a prática do aborto, exigiu reverência aos
mortos, mesmo noticiando os falecimentos de formas distintas, incentivou
o banho ao ar livre e os esportes praticados em público, como tênis,
vôlei, basquete, o jóquei e a patinação, o lazer em público nos cafés e
confeitarias, nos cinemas, teatros e recitais, nos clubes e sociedades,
distinguiu claramente os bailes e carnavais, criticou o entretenimento
dos subalternos, como os circos e parques de diversões, culpou os outsiders
pela desordem e turbulência, imputou aos moradores suburbanos pechas
de toda ordem.
Antes de empreender essa análise, porém, procuro entender os avanços
e recuos na ocupação e demarcação do território gaúcho. Campo onde
multiplicaram-se rebanhos bovinos em tal abundância que serviu de
alavanca no processo de ocupação luso-brasileira da futura Província
Cisplatina e da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em especial
de São João da Cachoeira. Ocupação essa feita através da distribuição
de grandes áreas cedidas aos que defendiam a faixa litorânea ou mesmo
de pequenos lotes a famílias açorianas para alimentar as tropas. Contexto
onde forjou-se o desenvolvimento do charque, produto que colocaria em
lados opostos estancieiros e charqueadores, e desencadearia o confronto
farroupilha. Ocupação também feita por imigrantes alemães e italianos,
que exploraram gêneros alimentícios destinados ao mercado interno,
algo que desencadeou profundas mudanças no desenvolvimento
econômico do sul do país, em especial para Cachoeira, com a introdução
da cultura rizícola, que serviu de base para a emergência da ordem urbano-
industrial no município, concentrado na sede, através de investimentos
privados e públicos. O marco das transformações urbanas seria alcançado
em fins dos anos 20, numa verdadeira revolução que fez da zona central
palco do confronto simbólico entre a elite, que buscava diferenciação
social através do refinamento dos hábitos praticados no dia-a-dia, e os
subalternos, que passaram a ocupar o espaço de forma fremente nos
anos 30 em diante.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Reflexões e inflexões
98
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2. O vir-a-ser cachoeirense:
do espaço construído
ao espaço habitado
2.1. Das disputas fronteiriças à formação da vila
A ocupação do Rio Grande do Sul – em especial o centro do Estado onde
se localiza Cachoeira do Sul – é fruto do desenrolar histórico iniciado a
partir do desejo de conquistar um quinhão das riquezas geradas pelas
minas andinas de Potosí, através do Rio da Prata, no início da presença
espanhola e portuguesa no sul das Américas, no século XVI e seguintes.
Os avanços e recuos na ocupação e demarcação territorial fizeram da
região austral verdadeira zona de litígio. O caráter fronteiriço que a
caracterizaria, de certa forma aberto e extremamente volátil e flexível,
resultaria num campo de enfrentamento de forças. Daí as inúmeras
batalhas, vorazes pelejas, atrozes combates e sanguinolentas lutas que
tiveram como palco as terras ao sul da Serra Geral, o que levou Aurélio
Porto a afirmar que Cachoeira nasceu da caserna, sentido adequado ao
enfatizar as disputas fronteiriças, mas errôneo ao dar a entender que
tratava-se de “terra de ninguém” antes da conquista portuguesa.
1
1
Afonso Aurélio Porto nasceu em Cachoeira do Sul, em 25/01/1879. Era funcionário
público e escrevia romances, poemas, peças teatrais, ensaios e estudos sobre a história
gaúcha e cachoeirense (por ex.: Município de Cachoeira – Histórico, 1910; Cachoeira,
o território, 1926; O trabalho alemão no Rio Grande do Sul, 1934; O colono alemão:
notas sobre a imprensa no Rio Grande do Sul, 1934; Primitivos habitantes do Rio
Grande do Sul, 1936; Antecedentes históricos do Rio Grande do Sul, 1937; História
das missões orientais do Uruguai, 1943). Foi redator do jornal O Rio Grande, órgão do
Partido Republicano, diretor do Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul e membro
fundador do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, entre outras funções.
Por esta aproximação com a política, recebeu o título de Coronel. Faleceu no Rio de
Janeiro, em 11/09/1945.
Fabrício Prado ressalta a característica de fronteira múltipla do território
meridional, ao mesmo tempo limite e ponto de contato, interação e
trocas recíprocas entre luso-brasileiros, castelhanos, índios e jesuítas,
onde autoridades, homens de negócio e contrabandistas confundiam-se
nos papéis sociais.
2
A ocupação do território austral foi feita através da
distribuição de sesmarias. O conseqüente desenvolvimento de praças de
negócio interessava sobremaneira aos negociantes do Rio de Janeiro,
que viam a região como possibilidade de abertura de novas oportunidades
de lucro.
3
Com a assinatura do Tratado de Madrid (1750), acordando que Sacramento
pertenceria doravante à Espanha e os territórios ocupados pelas missões
jesuíticas, até então sob domínio espanhol, passariam à Portugal, Gomes
Freire de Andrade foi destacado, em 1752, para pôr marcos que
estabelecessem os limites do domínio português, mas foi barrado em
Santa Tecla (Bagé/RS). Por esta razão, recuou até as margens do rio
Pardo, construindo o forte Jesus Maria José, que entraria para a história
oficial como domínio mais ocidental da Coroa Portuguesa na época. A
fortificação serviu para derrotar índios missioneiros revoltos, que
negavam-se a entregar as terras ocupadas nas missões jesuíticas, período
que ficou conhecido como Guerra Guaranítica (1754-1756). Nesta ocasião,
foram distribuídas sesmarias aos oficiais nas imediações da bacia do Jacuí.
Em 1759, guarda avançada do forte, composta por 110 soldados, foi
destacada para o Passo do Fandango (Cachoeira), estabelecendo depósito
de armas e munições.
4
Duas décadas depois, em 1778, o capitão de infantaria do regimento de
Estremos, Domingos Alves Branco Muniz Barreto, passou pela região e
ressaltou a quantidade de gados, bestas e cavalos da povoação de São
João da Cachoeira. Nas campinas da região, o gado era tanto que não
podia-se ferrar nem saber quem era o dono.
5
Foi neste contexto que o
povoado subiria na hierarquia administrativa. A gênese e a evolução usual
das cidades luso-brasileiras neste período seguiam determinada graduação
urbana: de povoado ascendiam à freguesia e posteriormente alcançavam
status municipal de Vila.
6
Dez anos antes, em 1769, o governador e
comandante militar, José Marcelino de Figueiredo, mandara aldear índios
aculturados que haviam sido instalados nas proximidades do Botucaraí
ao final da Guerra Guaranítica, nas proximidades do Passo do Fandango,
onde ergueram pequena capela no local chamado Aldeia, sob a invocação
de São Nicolau. Em 10 de julho de 1779, o povoado de São João da
Cachoeira foi elevado à categoria de freguesia de Nossa Senhora da
Conceição da Cachoeira, e o orago da capela foi mudado para Nossa
Senhora da Conceição.
7
Neste período, foi realizada a Relação de moradores que tem campos e
animais nesse Continente, a pedido do Vice-rei do Brasil. Helen Osório,
analisando os dados dessa fonte, mostra o perfil da freguesia de Nossa
Senhora da Conceição da Cachoeira em 1784. Dos 239 registros
encontrados, 60 (25,10%) eram da região cachoeirense. Destes, 52 (86,7%)
eram considerados somente criadores, proprietários de terras que
exclusivamente criavam animais, sem conjugar pecuária e agricultura,
2
PRADO, Fabrício Pereira. Colônia do Sacramento: a situação na fronteira platina no
século XVIII. In: Revista Horizontes Antropológicos. v.9 n.19 Porto Alegre, julho, 2003
[disponível em http://www.scielo.br/scielo .php?script=sci_arttext&pid=S0104-
71832003000100004&lng=pt&nrm=isso&tlng=pt#volta9 – acessado em 20/4/2006]
3
OSÓRIO, Helen. Comerciantes do Rio Grande de São Pedro: formação, recrutamento e
negócios de um grupo mercantil da América Portuguesa. In: Revista Brasileira de
História. v.20 n.39 São Paulo, 2000 [http://www.scielo.br/scielo.php?script
=sci_arttext&pid=S0102-1882000000100005&lng=pt&nrm=iso.htm& tlng=pt – acessado
em 19/4/2006]
4
JACQUES, João Cesimbra. Ensaio sobre os costumes do Rio Grande do Sul (1883), Porto
Alegre: Erus, s/d, p.40-41, PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira.
op.cit., 1941, p.5-16; SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul,
Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.19-20; PORTO, Aurélio. O trabalho alemão
no Rio Grande do Sul. op.cit., 1996, p.9 e MÜLLER, Alba Letícia et al. Aspectos da
constituição sócio-cultural do Rio Grande do Sul – Brasil [disponível em http://
grupomontivideo. Edu.uy/mesa4/Muller%20et% 20al.pdf – acessado em 30/3/2006]
5
BARRETO, Domingos Alves Branco Muniz. Observações relativas à agricultura, comércio
e navegação do continente do Rio Grande de São Pedro no Brasil - 1778. In: SANTOS,
Corcino M. O Rio Grande do Sul no século XVIII. São Paulo: Nacional; Brasília/DF:
UNB, 1984, p.181-182
6
MARX, Murillo. Cidade no Brasil, Terra de quem?, São Paulo: Nobel/ EdUsp, 1991,
p.141
7
AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. Cachoeira do Sul, comarca: 150 anos de História. op.cit.,
1985, p.9. A campanha para a construção da nova igreja seria lançada somente em
1792, pelo padre Matheus da Silveira e Souza. A pedra fundamental do novo templo
foi lançada em 6 de outubro de 1793. A construção levou mais duas décadas para ser
terminada e ficou a cargo das irmandades de Nossa Senhora da Conceição, a Padroeira,
e do Santíssimo Sacramento, em estilo colonial, com duas aprumadas torres, espaçosos
consistórios e sacristias, ampla capela-mór e altar de estilo renascentista. Desde
essa época, os mortos eram enterrados ao redor da igreja e mesmo dentro do templo,
de acordo com suas posses.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
102
103
perfil que a autora considera exceção na Província. Em relação à
distribuição das propriedades por sua extensão, a dimensão média das
terras na região cachoeirense era entre 1.090 e 10.891 hectares (38,4%)
e acima de 10.891 hectares (61%). Dos 60 proprietários, 36% eram grandes,
com 61% das terras; 56,2% eram médios, com 38,4% das terras; e 7,8%
eram pequenos, com 0,6% das terras. A extensão média das propriedades
era 9.386 hectares, perfil da maioria dos “somente criadores” da região.
O tamanho médio dos rebanhos, dos 52 criadores, era de 695 cabeças.
Em relação às outras localidades analisadas pela autora (Santo Amaro,
Serro Pelado e Encruzilhada), Cachoeira era a que tinha as maiores
propriedades. Dado sua condição de distrito fronteiriço e distante de
Porto Alegre e Rio Grande, os principais núcleos urbanos da época, era a
que melhor representava a imagem típica do Rio Grande do Sul colonial,
com grandes propriedades exclusivamente dedicadas à pecuária, que
ficariam conhecidas como “estâncias”. Diferente das demais regiões,
onde, segundo Osório, predominavam menores propriedades e maior
existência de produtores que combinavam criação de animais com
lavouras.
8
O domínio português na região era limitado espacialmente pelas vilas,
freguesias e povoados dispostos a oeste da linha imaginária acordada em
1777, entre os quais o de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira. Por
ser zona de passagem de contingentes oriundos das guerras de
demarcação, a freguesia de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira
pôde manter intenso mercado com a capital da Província, Porto Alegre,
e com a capital colonial, Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, a localização
fronteiriça, de certa forma aberta e litigiosa, maldiria os moradores. Em
carta enviada em 1808 a Dom Fernando José de Portugal, Manoel Antônio
de Magalhães descreveu a região cachoeirense como habitada por homens
que, por viverem separados de comunicação, estariam “mais aptos a
poderem sair ao campo fazer roubos de gados (a que chamam arreadas),
sendo estes homens havidos por desembaraçados, e resolutos campistas,
dignos de qualquer empresa”. Para ele, tratava-se de “pestes”,
“perturbadores da paz e sossego público”. Sugeria tirá-los da zona
fronteiriça, “não deixando estabelecidos em fronteiras homens que não
sejam conhecidos por quietos, sossegados e sem inclinação a se
enriquecerem pelo meio de arreadas”. Se isso fosse acatado, alertava
para que se tomasse o cuidado de conter os que ficassem de não estender
suas posses em “uma, duas e mais fazendas, que entretém com poucos
gados, e só com o destino de as poderem vender”.
9
A vinda da família real mudou as relações internacionais portuguesas
com relação ao continente latino-americano, como a concentração de
forças na área do Prata. Reflexo disto foi a criação pela Provisão Real da
vila de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo em 1809, na qual se incluía
a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira. É dessa época
o aparecimento das primeiras casas de alvenaria no incipiente núcleo
urbano.
10
O relativo desenvolvimento regional fez com que a freguesia de Nossa
Senhora da Conceição da Cachoeira fosse desmembrada da vila de Rio
Pardo em 26 de abril de 1819, passando à denominação de Vila Nova de
São João da Cachoeira.
11
O alvará assinado por Dom João VI, argumentava
que os moradores de Cachoeira sofriam incômodos e prejuízos para
demandar seus recursos em Rio Pardo, distante dez léguas, “sendo-lhes
necessário atravessar dois rios, a maior parte do ano invadeáveis, e deixar
8
OSÓRIO, Helen. “Estancieiros” e “lavradores”: Rio Grande do Sul, século XVIII. In:
Anos 90. Revista do PPG em História. Porto Alegre/RS: UFRGS, n.4, dezembro de
1995 (p.31-44). A linha de raciocínio estabelecida pela autora é justamente que este
conceito de “estancieiro” (criador de gado em grandes extensões de terras), que
marca a imagem do Rio Grande do Sul colonial, não é coerente com o perfil agrário
da época. Neste caso, Cachoeira era a exceção da região.
9
MAGALHÃES, Manoel Antônio de. Almanack da Vila de Porto Alegre. In: FREITAS, Décio.
O capitalismo pastoril. Porto Alegre/RS: Escola Superior de Teologia São Lourenço;
Caxias do Sul/RS: Universidade de Caxias do Sul, 1981, p. 145
10
Provisão de 7/1/1809, criando a vila de Nossa Senhora do Rosário de Rio Pardo, na
qual foi incluída a freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Cachoeira. A afirmação
sobre as primeiras casas de alvenaria foram retirados de GUIDUGLI, Humberto Attilio.
Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959. No Anexo I, relação dos proprietários
das primeiras casas de alvenaria no núcleo urbano de Cachoeira, no início do século
XIX
11
Ver Resolução Régia de 13/9/1815, criando a freguesia de São Sebastião de Bagé, que
é separa da de Cachoeira; Alvará de 26/4/1819, criando uma vila na freguesia da
Cachoeira, com a denominação de Vila Nova de São João da Cachoeira, com os mesmos
limites que tinha como freguesia, a qual é desmembrada do município de Rio Pardo.
Alvará de 26/8/1819, criando um Juiz de Fora do Cível, Crime e Órfãos para as vilas
de Rio Pardo e Cachoeira. Dados em BORGES FORTES, Amyr. WAGNER, João Baptista
Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre: Globo, 1963, p.177-181
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
104
105
por muito tempo ao desamparo as suas casas e negócios”. O território do
novo vilamento foi constituído nos mesmos limites da antiga freguesia.
12
A solenidade de levantamento do pelourinho, “com as insígnias
competentes que denotam a Jurisdição Real”, em 5 de agosto de 1820,
marcou oficialmente a criação da Vila Nova de São João da Cachoeira.
13
Neste mesmo ano, foram finalizadas as obras da capela-mór da igreja,
iniciadas em 1793.
14
O viajante francês Auguste de Saint-Hilaire descreve a incipiente
aglomeração urbana da Vila Nova de São João da Cachoeira em abril de
1821: “Esta vila, recém criada, é ainda pequena; a praça pública está
indicada por algumas casas esparsas. Entre a vila e o rio, sobre o declive
da colina, as miseráveis palhoças separadas umas das outras, cuja reunião
toma o nome de Aldeia. Estas choupanas são habitadas por índios”. Em
seu relato, ressalta a posição estratégica de entreposto comercial da
cidade, “primeiro povoado que se encontra na rota das missões e do
Paraguai”.
15
Outro viajante estrangeiro, Nicolau Dreys, descreveu a região
nesta época como “campinas férteis, avivadas de agradáveis habitações
e de estâncias onde se criam numerosas manadas de gado”. Entretanto,
para ele, o núcleo urbano da vila ainda mostrava-se pouco importante.
16
Com status municipal, o uso e a distribuição do solo urbano cachoeirense
passaram a ser preocupação, assim como a conseqüente organização
política, social e administrativa. Como uma típica cidade luso-brasileira,
a configuração urbana seguiria o traçado enxadrezado,
17
a partir da
estrada que ligava a parte sul de Cachoeira a Rio Pardo e ao Passo da
Praia no rio Jacuí, tendo como pontos principais a igreja, a sudeste, e a
praça do pelourinho, algumas quadras a noroeste.
2.2. Independência e alterações urbanas
Nos anos subseqüentes à independência do Brasil em 1822, grande parte
do território cachoeirense, então quinto município da Província do Rio
Grande do Sul, foi desmembrado, perdendo terras para Alegrete,
Livramento, Caçapava, São Gabriel, São Sepé e Santa Maria.
18
Na sede da Vila Nova de São João da Cachoeira, duas alterações
significativas marcariam a nova fase urbana: a demarcação da praça do
pelourinho, com “quatrocentos palmos de frente a norte”, em 1830,
19
e
a proibição de enterrar mortos no entorno da igreja e dentro do templo,
em 1831.
20
O premente desejo de afastar doença e morte dos olhos da
12
“Pelo Leste o Arroio Botucaraí até a sua entrada na Serra Geral, pela qual se divide;
pelo Norte até o lugar onde é atravessado pelo Arroio Toropi imediato à picada de
São Vicente, que limita a Vila de São Luiz da Leal Bragança; pelo Oeste o mesmo
Arroio Toropi até a sua reunião no Rio de Santa Maria, e até a entrada deste Rio no
Uruguai, pelo qual segue a divisa até encontrar o Rio Quarai, que também serve de
divisa até a Coxilha de Santa Ana, onde tem origem a sua maior vertente, seguindo a
dita coxilha, pela qual se divide; e pelo Sul até encontrar a primeira vertente do
Arroio Ponche, e por este abaixo entrando em o Rio Santa Maria, braço principal do
Ibicuí, até encontrar a barra do Jaguari, e por este acima servindo-lhe de divisa a sua
principal vertente, que nasce ao pé do marco Espanhol estabelecido na extinta
Demarcação de Limites, atravessando a Coxilha da dita Demarcação para entrar na
que divide águas a Jacuí, e Camaquã, seguindo por esta a primeira vertente do
Arroio Piquiri, que serve de divisa entrando no dito Jacuí até a barra do predito
Arroio Botucaraí, que fica servindo de limites a referida nova Vila, e à do Rio Pardo,
da qual ficará desde logo desmembrada a sobredita Freguesia com o Território da
mesma Vila nela criada, e Seu Termo”, In: PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de
Cachoeira. op.cit., 1941, p.7-8
13
Auto de Criação desta Vila Nova de São João da Cachoeira e levantamento do Pelourinho,
5 de agosto de 1820. Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal
14
Fonte: IG/001, 1818, 2r. IG/001, 1820, 9r e v. IG/001
15
SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul (1820 -1821). Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: EdUsp, 1974, p.338-353.
16
DREYS, Nicolau. Notícias descritivas da província do Rio Grande de São Pedro do Sul
(1781-1843). 4
a
ed. Porto Alegre: Nova Dimensão/ EDIPUCRS, 1990, p.124
17
MARX, Murillo. Cidade no Brasil, Terra de quem? op.cit., 1991
18
Ver Decreto Regencial s/n., de 25/10/1831, criando as vilas de Alegrete e Caçapava,
com territórios pertencentes ao município de Cachoeira; Lei n. 400, de 16/12/1857,
criando o município de Santa Maria da Bôca do Monte, no qual foi incluído parte de
Cachoeira; Lei n. 1.029, 29/4/1876, criando o município de São Sepé, com territórios
dos municípios de Caçapava e Cachoeira, In: BORGES FORTES, Amyr. WAGNER, João
Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande
do Sul. op.cit., 1963, p.177-181
19
Fonte: Ata da Câmara Municipal, 21/1/1830. CM/OF/A, 002, 28v. Ata da Câmara
Municipal, 1/2/1830. CM/OF/A, 002, 38 r. Ata da sessão da Câmara Municipal, 13/5/
1848. CM/OF/A, 004, 128 v. Ata da sessão da Câmara Municipal, 15/51848. CM/OF/A,
004, 129 r. Ata da sessão da Câmara Municipal, 23/5/1848. CM/S/SE/RE -006 -160 v.
Ata da sessão da Câmara Municipal, 1/8/1848. CM/S/SE/RE, 006, 168 r.
20
Em 15/4/1831, a Câmara proibiu o enterro nos cemitérios que ficavam no entorno da
Igreja e dentro do templo. Decidiu-se também oficiar-se às Irmandades do Sacramento
Nossa Senhora Rosário e Almas, para murar o cemitério na Praça da Aldeia. Fontes:
IM/EH/AS/RL, 001, 2r.; CM/OF/H, 002, 141r.; CM/OF/A, 002, 143r.; CM/OF/A, 002,
168r e v.; CM/OF, A, 002, 169v.; CM/S/RPL, 002, 11v e 15v. 30/1/1832; CM/S/SE/RE,
002, 73v
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
106
107
comunidade era uma necessidade devido aos contágios, principalmente
de cólera e tifo, nos idos do século XIX. Na época, oficiou-se a Irmandade
do Sacramento Nossa Senhora Rosário e Almas, para murar o cemitério
existente na Praça da Aldeia. Da escolha à construção do novo cemitério
da Irmandade do Rosário, levou-se alguns anos (1856-1863). Por esta
razão, os sepultamentos no local perduraram por mais duas décadas.
21
As chamadas “posturas municipais” também marcaram a organização da
vida urbana cachoeirense – tamanho dos lotes, alinhamento das
construções, traçado e abertura das vias públicas, regras de edificações,
normas de higiene, comportamento dos indivíduos e ordem pública. Nesta
época, a Assembléia Provincial da Vila de São João da Cachoeira regulava
o desenrolar da vida urbana local. As leis especificavam limites urbanos,
licença para edificações, largura e nivelamento das ruas, altura do pé-
direito das construções, calçamento dos passeios, acúmulo de materiais
nas ruas, concessão e alinhamento dos terrenos, planta da cidade e
registro dos lotes, denominação das ruas, locais para construção de
edifícios públicos e praças.
22
Nesta estruturação urbana, entre 1828-35, foram construídos o prédio
da Câmara, Júri e Cadeia
23
e o Teatro com salão e camarotes para 500
pessoas. O prédio do teatro era refinado, com pinturas no teto e cenário
requintado. A obra, iniciativa de Joaquim Corrêa de Oliveira e Jozé
Joaquim da Graça, contou com apoio pecuniário dos moradores mais
abastados.
24
Pelas imagens depreende-se a pujança dos dois prédios. O teatro tinha
fachada ornamentada, inclusive com estátua na parte frontal. O prédio
da Câmara, Júri e Cadeia era mais simples, mas nem por isso deixava de
se destacar no cenário.
21
Fonte: IM/EH/AS/RL, 001, 2r.; CM/OF/H, 002, 141r.; CM/OF/A, 002, 143r.; CM/OF/A,
002, 168r e v.; CM/OF, A, 002, 169v.; CM/S/RPL, 002, 11v e 15v. 30/1/1832; CM/S/
SE/RE, 002, 73v 12/8/1852; CM/S/SE/RE, 002 107 v e 108r, 13/8/1853; CM/S/RPL,
002, 21r 22/8/1853; CM/OF/TA, 002, 96r e v. 97r.; CM/S/SE/RE, 002 180v, 19/6/
1856; CM/OF/TA, 002, 121v, 122r e v.; CM/S/SE/RE, 002, 201v , 11/6/1857; CM/S/
SE, RE, 002 279 r e v., 17/01/1863. Em 17/1/1863, já se observava ser de grande
conveniência a mudança do cemitério para local mais distante e elevado para evitar
o desenvolvimento de certas enfermidades nos habitantes. Fonte: CM/S/SE-RE, 002,
279 r e v. , 17/01/1863.
22
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.138-142
23
Prédio da Câmara, Júri e Cadeia. Fonte: IM/EA/AS/RL, 001, 2r., 1831. Cadeia. Sessão
extraordinária de 20 de maio de 1831. CM/OF/A, 002, 144r., 20/5/1831. Sessão do
dia 7 de outubro de 1831. CM/OF/A, 002, 160v, 07/10/1831. Sessão do dia 12 de
outubro de 1831. CM/OF/A, 002, 163 r., 12/10/1831. Sessão Extraordinária de 5 de
junho de 1832. CM/OF/A, 002, 195 r. Cadeia. Manoel Antonio Galvão. Documento
avulso da Caixa de Documentos selecionados, 14/5/1833. Câmara e Cadeia. Edital.
Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 1834. Cadeia. José Mariani.
Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 15/01/1834. Cadeia. Edital.
Documento avulso da Caixa de Documentos selecionados, 14/5/1835.
24
GUIDUGLIO, Humberto Atílio. Teatro. Revista Aquarela, 1957
Figura 25 – Prédios do teatro e da Câmara, Júri e Cadeia, construídos entre 1831-33.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Apesar da expectativa da inauguração, a primeira sessão teatral foi
malograda, pois um dos atores adoeceu gravemente e somente foi
encenada um entremez, pequena cena jocosa em ato único. Na sessão
seguinte, foi representada a tragédia romana Virgínia, seguido de A Filha
teimosa com os livros. A narrativa documental da época descreve o
aristocrático ambiente:
os camarotes ornados só de senhoras, ornadas de grande riqueza, a platéia ocupada
pelas autoridades e pelo povo nobre, subiu o pano, deixando ver uma Sala Imperial
entapetada, no fundo da qual estava o retrato de Sua Majestade Imperial, debaixo do
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
108
109
precioso Dossel, e sobre um iluminado e rico trono, fazendo a guarda do retrato, os
tenentes José Gomes Porto, e Tristão da Cunha e Souza: a um lado estava o alferes
Antonio Xavier da Silva com o estandarte rico da Câmara abatido, e os flancos da sala
eram ornados pelos atores; apenas se viu esta cena, eis que da platéia o Juiz de paz
João Nunes da Silva, rompeu os Vivas à sua Majestade A Imperatriz, à constituição, à
Assembléia, aos Brasileiros. Logo depois os atores, acompanhados da orquestra entoaram
um hino dedicado ao consórcio da nossa Majestade Imperial, findo o qual um dos atores
recitou um elogio assaz elegante à Vossa majestade Imperial, à sua Majestade, a
Imperatriz, e à sua digna prole; e depois uma atriz recitou ao mesmo assunto um canto
e terminou com os vivas.
25
Em 1834, Arsène Isabele enxergou crescimento urbano em Cachoeira.
Chamou de “linda cidadezinha, recentemente construída, situada sobre
uma colina, à margem esquerda do Jacuí”. As casas eram brancas por
fora, feitas de tijolos e pedras “grés quartzoso argentífero, de grandes
grãos, contendo fragmentos volumosos de argila bolar avermelhada”. A
cobertura era de telhas vermelhas.
26
A prosperidade urbana cachoeirense, assim como nas demais comunidades
sul-brasileiras, foi interrompida durante a década do conflito Farroupilha,
que colocou estancieiros e charqueadores em lados opostos. Por um lado,
criadores de gado das estâncias dispostas na região fronteiriça tinham
fortes ligações com os castelhanos, levando e trazendo suas manadas
conforme oscilava o preço nos mercados da carne salgada. Os estancieiros
queixavam-se dos pesados impostos cobrados e pretendiam acabar ou
reduzir a taxação de gado na fronteira com o mundo platino,
estabelecendo livre circulação do rebanho que possuíam em ambos os
lados. Por outro lado, produtores do charque, localizados na área lacustre
da Província sul-rio-grandense, em cidades como Pelotas e Rio Grande,
alimentavam a população pobre e os escravos do Centro-Sul brasileiro,
tendo, por esta razão, grandes interesses com a capital imperial, Rio de
Janeiro. A livre circulação dos rebanhos nas fronteiras não interessava
aos charqueadores, pois diminuía seu poder de ditar preços e condições.
Além disso, para ambos os lados, a política do governo federal de cobrir
despesas das províncias deficitárias com fundos das superavitárias, como
a sul-riograndense, desagradava tanto estancieiros quanto charqueadores.
Neste contexto, os estancieiros, no comando de milícias armadas
particulares, deflagraram o conflito que duraria de 1835 a 1845.
27
A região de Cachoeira foi palco importante do conflito farrapo, dado sua
localização intermediária entre a planície pampeira, onde se localizavam
as estâncias e a criação do gado, a oeste, e a zona lacustre, onde eram
feitas as charqueadas, a leste. Com ocupação territorial feita
eminentemente através de grandes áreas destinadas a pecuária, a região
naturalmente tendeu para o apoio aos estancieiros rebelados. Três dias
após eclodir o conflito na capital Porto Alegre, em 20 de setembro de
1835, a Guarda Nacional aquartelada em Cachoeira rumou para Rio Pardo,
a fim de auxiliar forças revolucionárias contra legalistas que negavam-se
a reconhecer o novo governo republicano farrapo. Ao retornarem, foram
recebidos festivamente, incluindo a celebração do Te Deum na Igreja
Matriz. Entretanto, Cachoeira foi assolada por incursões armadas nos
anos seguintes, ora por forças legalistas, ora por revolucionários,
alternando-se entre governos leais ao Imperador (1836-37, 1840-45) e
sob regime republicano farroupilha (1835, 1838-39).
28
O fim do conflito possibilitou a viagem do Imperador Dom Pedro II ao sul.
Em 1846, ele passou por Cachoeira. Dois anos após sua visita, foi dado
início à construção da ponte de pedra no Passo Real do rio Botucaraí, a
primeira da província de São Pedro do Rio Grande do Sul construída neste
estilo, atestando o grau de desenvolvimento da economia local. Na época,
era o único acesso entre a fronteira oeste-sudoeste da Província e a
região de Porto Alegre, melhorando o trânsito por Cachoeira, de tropas
militares, tropeiros e comerciantes. A obra fora cogitada desde 1832,
mas ficou somente no projeto por causa do conflito farrapo. O engenheiro
responsável pela elaboração da planta foi João Martinho Buff. O custo da
25
Fonte: CM/OF/A, 002, 75v 76 r., 1830
26
ISABELLE, Arsène. Viagens ao Rio Grande do Sul (1833-1834). Porto Alegre: Museu
Julio de Castilhos, 1946, p.44-45
27
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. A revolução farroupilha. São Paulo: Brasiliense, 1985
[coleção Tudo é História] e FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. op.cit., 2002,
p.92-94
28
Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua
história. op.cit., 1991, p.26-27, PORTELA, Vitorino. PORTELA, Manoel de Carvalho.
Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1940, p.18-21 e Álbum Comemorativo a
passagem do primeiro centenário de Cachoeira do Sul. op.cit., 1959. Ver também
Atas de Sessões da Câmara da Vila Nova de São João da Cachoeira. Sessão
extraordinária de 24 de setembro de 1835. Fonte: CM/OF/A, 003, 149v. Sessão
extraordinária de 30 de setembro de 1835. CM/OF/A, 003, 150r. Sessão Extraordinária
de 1º de outubro de 1835. CM/OF/A, 003, 150v. Sessão Extraordinária de 3 de outubro
de 1835. CM/OF/A, 003, 150v. Sessão de 19 de outubro de 1835. CM/OF/A, 003, 157r
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O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
110
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obra atingiu 46:800$000 réis e foi construída pelo empreiteiro Manoel
Fialho de Vargas Filho. Já em 1849, a Câmara registrava denúncia de
abusos na cobrança da taxa de passagem (pedágio).
29
da Aldeia e rua dos Cachorros) e do Vigário (rua Santa Helena, rua 1
o
de
Março, rua Liberato Salzano Vieira da Cunha). No sentido sudoeste-
nordeste eram doze travessas paralelas: São João (rua Félix da Cunha),
Corpo da Guarda (rua São José, atual Conde de Porto Alegre), do Amorim
(rua Ferminiano, rua Gabriel Leon), Matriz (rua Mons. Armando Teixeira),
Tapera (rua Gal. Câmara), dos Soeiros (rua Catalan, rua Gal. Osório), dos
Pecados (rua Carombé, rua Ramiro Barcelos), da Lagoa (rua Inhanduy,
rua Gal. Portinho), do Ourives (rua Andrade Neves), do Ilha (rua Cantagalo,
rua 24 de Maio, rua Sílvio Scopel), Lava-pés (rua 7 de Abril, rua Milan
Krás) e do Matadouro (rua Major Ouriques). Pelo levantamento da época,
existiam em torno de 500 prédios construídos em aproximadamente 42
quadras.
30
29
Ver SCHUH, Ângela. RITZEL, Mirian. Princesa do Jacuí. Cachoeira do Sul: Museu
Municipal, s/d, e Livro de Atas das Sessões da Câmara Municipal e JP, 25/12/1983
Figuras 26 e 27
Ponte de pedra, construída em 1848.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira
do Sul
Apesar do conflito farrapo ter atingindo as rendas do município, fazendo
decrescer a arrecadação do erário, a sede municipal começou a receber
melhorias na segunda metade do século XIX. Em 1850, o mesmo engenheiro
da ponte de pedra, João Martinho Buff, elaborou o mapa da zona urbana
central. No sentido sudeste-noroeste, eram três ruas principais: Ladeira,
Igreja e Passo do Jacuí (ambas atual rua Moron), do Loreto (rua 7 de
Setembro, antes rua Direita) e dos Paulistas (rua 15 de Novembro); e
duas ruas secundárias: Santo Antônio (rua Saldanha Marinho, outrora rua
30
Fonte: Mapa de 1850 [original] e GUIDUGLI, Humberto Attilio, Acontecimentos em
Cachoeira do Sul, Revista Aquarela, 1957
Figura 28 – Planta da cidade da Cachoeira, em 1850, do engenheiro João Martinho Buff.
Na parte esquerda superior, a leste, em destaque o Pelourinho, atual praça José Bonifácio.
Na parte direita inferior, a oeste, o paço municipal e o rio Jacuí. Fonte: Arquivo Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
112
113
Datam desta época as primeiras iniciativas de aterrar as sangas, quando
a Câmara Municipal determinou que fossem realizadas obras nos valos da
Aldeia, da Bica, na estrada que ia até o arroio Amorin, e principalmente
nas sangas Micaela e Lava-pés. Em 1851, a Câmara autorizou o nivelamento
da praça em frente a igreja, serviço concluído no ano seguinte, permitindo
o uso do espaço para feiras livres.
31
Em 1856, Luiz Alves Leite de Oliveira
Bello, que fora vice-presidente da Província, descreveu a vila como
desprovida de bons edifícios mas com bom comércio e bastante populosa.
As ruas eram largas e cortadas em ângulos retos. A igreja era mais espaçosa
do que a Catedral de Porto Alegre, tendo cinco altares e duas capelas
fundas, além da Capela-Mor e de bons consistórios. Estava em construção
o edifício do Império do Espírito Santo próximo da igreja. A população
urbana girava em torno de 2,5 mil habitantes nesta época.
32
Pelo desenvolvimento do município, pela posição estratégica da região e
por dispor de terras devolutas, a Vila Nova de São João da Cachoeira
abrigaria levas de colonos de origem germânica a partir de 1857. Esse
contexto engendrou a elevação de Vila para a categoria de cidade, em
15 de dezembro de 1859, através da lei n. 443.
33
2.3. Os colonos plantam arroz irrigado, colhem fortunas
Diferente da imigração ocorrida no centro do país, que objetivava a
consecução de “braços livres” para a cafeicultura em substituição
gradativa da mão-de-obra escrava, a colonização na região sul do Brasil
teve como objetivo estratégico povoar zonas desocupadas através da
fixação de famílias em lotes cedidos pelo governo imperial, numa
exploração da suinocultura e agricultura voltada a produção de gêneros
destinados ao mercado interno. As áreas de assentamento dos imigrantes
localizavam-se a relativa distância dos centros urbanos, na Encosta da
Serra ou em suas proximidades, começando por São Leopoldo em 1824 e
seguindo em direção oeste. Intentava-se com isso, de certa maneira não
romper com a hegemonia política e econômica instituída.
34
As primeiras migrações oficiais de colonos alemães para a região
pertencente ao município de Cachoeira datam da segunda metade do
século XIX, embora o cadastro imobiliário já registrasse propriedades
urbanas de pessoas com sobrenome teuto: Hölz, Rachfitte, Jüntze,
Heintze, Pohlmann, Borowsky, Koch e Wagner.
35
Em 1857, o governo da
Província enviou o agrimensor Frederico Guilherme Waedlestäedt para
demarcar e medir lotes em terras devolutas na margem esquerda do rio
Jacuí – lugar denominado Agudo – e construir galpões para acomodar os
primeiros colonos.
36
Os imigrantes provinham da Pomerânea, Silésia,
31
12/8/1852; CM/S/SE/RE, 002 107 v e 108r, 13/8/1853; CM/S/RPL, 002, 21r 22/8/
1853; CM/OF/TA, 002, 96r e v. 97r.; CM/S/SE/RE, 002 180v, 19/6/1856; CM/OF/TA,
002, 121v, 122r e v.; CM/S/SE/RE, 002, 201v , 11/6/1857; CM/S/SE, RE, 002 279 r e
v., 17/01/1863, e SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em
busca de sua história. op.cit., p.124-127
32
OLIVEIRA BELLO, Luiz Alves Leite. Diário de uma viagem no interior da Província de
São Pedro em 1856 apud SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul,
Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.37
33
A Lei n. 443, de 15/12/1859, elevou à categoria de cidade as vilas de São Gabriel,
Cachoeira e Bagé. O Ato s/n., de 18/3/1872, subdividiu os termos da Província em
distritos especiais. O Ato s/n., de 22/4/1872, retificou a divisão do termo de Cachoeira
em distritos especiais. Dados extraídos de BORGES FORTES, Amyr. WAGNER, João
Baptista Santiago. História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande
do Sul. op.cit., 1963, p.177-183. Somente em 1944, o município passou a denominação
de Cachoeira do Sul, conforme Decreto-Lei nº 720, de 29 de dezembro. Dados
fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul.
34
Ver LANDO, Aldair Marli. BARROS, Eliane Cruxêm de. Capitalismo e colonização – os
alemães no Rio Grande do Sul. In: DACANAL, José Hildebrando (org.). RS: imigração
e colonização. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1980; SEHN, Pedro Selomar. ILHA, Adayr
da Silva. Aspectos históricos da ocupação e evolução da estrutura fundiária no Rio
Grande do Sul no período de 1940 a 1996. In: Revista Economia e Desenvolvimento,
nº 12, novembro/2000 [disponível em http://coralx.ufsm.br/eed/
e5_%20Artigo%20Pedro. PDF – acessado em 29/7/2006], MÜLLER, Alba Letícia et al.
Aspectos da constituição sócio-cultural do Rio Grande do Sul – Brasil, op.cit., e
DALMAZO, Renato Antonio. As relações de comércio do Rio Grande do Sul - do século
XIX a 1930. Porto Alegre/RS: FEE, 2004 [disponível em http://www.fee.tche.br/
sitefee/download/ documentos/documentos_fee_60.pdf - acessado em 16/1/2006]
35
Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul. 100 anos de Concórdia: a história da
Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996, p.16
36
Aurélio Porto afirma que os primeiros 119 colonos foram enganados pois pensavam
que iam desembarcar em Rio Pardo, com destino à colônia de Santa Cruz. Ao se
aproximarem do porto foram informados que, devido à cheia, deveriam seguir viagem
até um passo sobre o Jacuí, chamado Cerro Chato. Ao chegarem neste local, alguns
colonos se revoltaram, obrigando a tripulação do vapor a retirá-los à força e deixando-
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
114
115
Saxônia, Bohemia, Província do Reno e ducados de Holstein e de
Birkenfeld. Muitos eram ex-soldados da legião alemã chamados Brummer,
como o mais importante diretor da colônia, Barão von Kahlden, angariados
na Europa para a guerra contra o ditador argentino Dom Juan Manuel
Rosas. A colônia foi chamada de Santo Ângelo.
37
O médico alemão Robert
Avé Lallemant visitou a região em março de 1858, registrando que
“enquanto Rio Pardo retrograda, Cachoeira desenvolve-se cada vez mais”.
38
Além dos colonos alemães, a região de Cachoeira fez parte da migração
oficial de italianos em 1880, embora também registrasse no município
estrangeiros com sobrenome ítalo antes desse período: Calcagno,
Ambauer, Brandi, Scordillia, Aldronda, Curto, Montano, Alário.
39
Os
primeiros imigrantes desta etnia foram direcionados para a chamada
Quarta Colônia, atual Silveira Martins.
40
Estima-se que, no ano de 1872, a renda per capita dos municípios gaúchos
tenha ficado em 150 mil réis. Pelotas, Porto Alegre e Rio Grande lideravam,
sendo os únicos a ultrapassar a faixa dos 200 mil réis. Os 28 municípios
mais importantes economicamente tiveram renda superior a 67 mil contos
de réis. Cachoeira ocupava a décima-sétima posição, com renda de
1.562.359,74 réis, para uma população de 11,7 mil habitantes, ou 132,9
mil réis per capita.
41
A chegada dos imigrantes alemães e posteriormente dos italianos na
Quarta Colônia impulsionou a economia da região, principalmente através
da suinocultura e das culturas do feijão, milho, cana-de-açúcar, alfafa,
amendoim, linho e do arroz, esse que se tornaria posteriormente o
principal produto cachoeirense. Os alemães consideravam o arroz
indispensável como base da alimentação, junto com o feijão e a carne.
Embora fosse considerado cultura secundária, plantando-se o arroz do
seco, já em 1878 a zona de colonização alemã de Santo Ângelo, quinto
distrito de Cachoeira do Sul, liderava a exportação regional, com 2.050
sacos (102,5 toneladas). Nesta época, sete dos dezesseis engenhos de
descascar arroz existentes na metade sul do Estado localizavam-se na
região cachoeirense.
42
Na década seguinte, a zona colonial já tinha 825
habitantes e cultivara 4.912.830 braças quadradas.
43
Em 1885, a Câmara
Municipal de Cachoeira dividiu a colônia alemã de Santo Ângelo em
distritos, entre eles Agudo, Paraíso, Cerro Branco e Dona Francisca.
44
Muita da força da economia colonial alemã e italiana estava também no
comércio dos gêneros alimentícios, produzidos nas propriedades
familiares. O incremento da produção disseminou as “vendas”, como
ficaram conhecidas as casas comerciais que serviam de elo de ligação
entre o produtor rural e as grandes casas comerciais das cidades maiores.
os ali, sozinhos. Do passo para o lugar do barracão foram transportados em carretas.
PORTO, Aurélio. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. op.cit., 1996, p.169. William
Werlang aponta uma segunda versão, escrita por Edwald Bruhm em 1932 para os 75
anos de imigração , tentando amenizar a tragédia. Nela, não teria havido brigas
entre a tripulação e os colonos. WERLANG, William. História da Colônia Santo Ângelo.
Vol. 1 Santa Maria/RS: Pallotti, 1995, p.48-49
37
Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941,
p.17-18; OBERACKER Jr., Carlos Henrique. A colonização baseada no regime da pequena
propriedade agrícola. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. História Geral da Civilização
Brasileira. Tomo II. O Brasil Monárquico. 3
o
volume. Reações e Transações. 5
a
ed. São
Paulo: Difel, 1982, p.231 e WERLANG, William. História da Colônia Santo Ângelo.
op.cit., 1995. O primeiro diretor da colônia foi Floriano Zurowski, de outubro a
dezembro de 1857. O segundo foi o Barão von Kahlden, de 19/12/1857 a 1882, passando
a administrador até 1885. Com a saída do Barão, assumiu Cicinato Sampaio Ribeiro,
até 1889. Paulo Roberto Magnus administrou de 1890 a 1896
38
AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pela província do Rio Grande do Sul. Tradução Teodoro
Cabral. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EdUsp, 1980, p.178-179
39
Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal. Ver também http://
www.cachoeiradosul.rs.gov.br/ perfil/index.asp, acessado em 20/10/2005
40
No Anexo II, relação de compradores das terras da Quarta Colônia em 1880. Sobre a
colonização italiana na Quarta Colônia, ver ainda MORTARI, Elisangela Carlosso
Machado. Minorias transformadoras [disponível em http://reposcom.portcom
.intercom. org.br/bitstream/1904/18084/1/R1365-1.pdf - acessado em 16/1/2006]
41
MONASTERIO, Leonardo M. ZELL, Davi Coswig. Uma estimativa de renda per capita
municipal na província de São Pedro do Rio Grande do Sul em 1872. [disponível em
http://ich.ufpel.edu.br/economia/ monasteriozell2004.pdf - acessado em 16/1/2006]
e MONASTERIO, Leonardo M. Capital social e a região sul do Rio Grande do Sul. Tese
de doutorado [orientador José Gabriel Porcile Meirelle]. Curitiba/PR: Programa de
Pós-graduação de Desenvolvimento Econômico, Ciências Sociais Aplicadas, UFP, 2002
[disponível em http://www.unijui.tche.br/~dcre/monasteriotese.pdf - acessado dia
16/1/2006]
42
BALDUÍNO RAMBO, S. J. A imigração alemã. In: Enciclopédia Rio-grandense. O Rio
Grande antigo. V.1 Canoas/RS: La Salle, 1956, p.99
43
PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.17
44
A Lei n. 1.529, de 4/12/1885, elevou à categoria de freguesia a ex-colônia de Santo
Ângelo. Dados extraídos de BORGES FORTES, Amyr. WAGNER, João Baptista Santiago.
História administrativa, judiciária e eclesiástica do Rio Grande do Sul. op.cit., 1963,
p.177-183 e WERLANG, William. História da Colônia Santo Ângelo. op.cit., 1995,
p.69
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
116
117
Instaladas nas picadas e linhas, esses estabelecimentos compravam toda
a produção e a trocavam por produtos manufaturados, como tecidos,
louças, ferragens, sal, chapéus, e outros, para serem revendidos aos
colonos. Os “bodegueiros” regulavam o transporte, determinavam o preço
de compra e venda, adiantavam produtos manufaturados aos colonos
para posterior ressarcimento com produtos agrícolas. Aos poucos, os
próprios colonos passaram a instalar vendas nas cidades, muitas vezes
em sociedade com outros comerciantes, eliminando assim os
intermediários, razão pela qual as principais firmas comerciais em
Cachoeira do Sul, já no início do século XX, tinham sobrenome de origem
alemã e italiana.
45
A importância da região colonial para o comércio de gêneros alimentícios
pode ser medido pela construção do ramal ferroviário, ligando o rio Taquari
ao rio Pardo e ao município de Cachoeira, em 1883, e Santa Maria, em
1885. Nesta época, outras ferrovias foram construídas, ligando a capital
a Rio Grande, Bagé, Uruguaiana e Itaqui.
46
Em termos econômicos, o arroz despontaria como base de sustentação
do crescimento da região somente com a introdução das primeiras lavouras
irrigadas por gravidade, em fins do século XIX e, principalmente no início
do XX, com a utilização de irrigação mecanizada. O aumento da
produtividade, e conseqüentemente dos lucros, fez com que muitos
estancieiros luso-brasileiros diminuíssem seu preconceito com a lavoura
rizícola. Segundo Orlando Valverde, exploraram através de parcerias,
arrendamentos aos agricultores das colônias de imigração circunvizinhas,
que tinham seu sustento na pequena propriedade, ou ainda através de
colonos que aceitavam o trabalho temporário assalariado nas incipientes
lavouras de arroz.
47
As primeiras experiências com arroz irrigado por gravidade datam de
1892, quando Gaspar Barreto plantou pequena área na região
cachoeirense, auxiliado por Lotário de Vasconcelos, que fazia os serviços
de irrigação. Em 1894, Marcelino Gonçalves da Fonseca represou água do
arroio Capanezinho, local onde plantava cerca de dez quadras de arroz.
Em 1899, foi a vez de João Jorge Krieger plantar na margem direita do
arroio. Em 1887, João Frederico Pohlman instalou o primeiro engenho na
sede do município, à rua Sete de Setembro. Tratava-se de uma
“engenhoca, uma máquina a vapor para descascar arroz por meio de
monjolos”. No ano seguinte, Guilherme Franke instalou um engenho
hidráulico na rua Ramiro Barcelos. Mais tarde, Eurípides Mostardeiro,
Isidoro Neves da Fontoura, Frederico Dexheimer e a firma porto-alegrense
João Aydos & Cia ltda., instalaram o Engenho Central no Passo da Praia,
fim da atual rua Moron.
48
A técnica de irrigar lavouras de arroz não foi privilégio de Cachoeira do
Sul. Em Taquara e Pelotas, vários agricultores plantaram o arroz irrigado
nos anos 1903-05. Estas regiões dispunham de infra-estrutura propícia ao
progresso do cultivo do arroz, como as várzeas nas bacias fluviais do
Sinos e do Guaíba, que possibilitaram a irrigação, eliminando a ação
negativa do clima e garantindo rentabilidade e maiores lucros.
49
Todavia, o maior incremento ocorreu por conta da irrigação mecanizada
por meio de locomóveis, motores a vapor montados sobre rodas, e bombas
centrífugas. Os pioneiros da tecnologia de irrigação mecanizada em
Cachoeira do Sul foram Jorge Frank e João Jorge Krieger, da firma Frank,
Krieger & Cia. Eles utilizaram a técnica pela primeira vez em 1906,
plantando nas terras de Fidélis Prates e colhendo 10 mil sacos de arroz,
cerca de 500 toneladas.
50
Assim, numa região cuja economia baseava-se na agricultura, o arroz
seria o grande produto cachoeirense. Diferente de outras commodities
tradicionais, a orizicultura irrigada foi a primeira a surgir em bases
capitalistas, usando maior mão-de-obra assalariada, arrendamento de
terras, tecnologia e, principalmente, produzindo para o mercado ao invés
de limitar-se a exportar o excedente.
51
45
WERLANG, William. História da Colônia Santo Ângelo. op.cit., 1995
46
LOVE, Joseph. O Rio Grande do Sul como fator de instabilidade na República Velha.
In: FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. Tomo III. O Brasil
Republicano. 4
o
vol. Economia e Cultura (1930-1964). São Paulo: Difel, 1984, p.102
47
VALVERDE, Orlando. Estudos de geografia agrária brasileira. Petrópolis/RJ: Vozes,
1985, p.210
48
Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941
49
BALDUÍNO RAMBO, S. J. A imigração alemã. op.cit., 1956, p.99
50
Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941,
p.27-28 e Levantamento Histórico da industrialização de Cachoeira do Sul. op.cit.,
1983
51
MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre/RS:
Banrisul/Gazeta Mercantil RGS, 1998, p.57-62
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
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As imagens registradas por Achylles Figueiredo, em meados dos anos 20,
revelam essa diferença da produção rizícola, principalmente no quesito
tecnologia. Destacam-se o uso de trilhadeiras, locomóvel, secadores de
arroz e o uso da calha de água:
O desenvolvimento e a própria modernização da lavoura rizícola somente
foi possível graças a forte influência da política protecionista do Governo
Federal, elevando substancialmente as tarifas sobre o arroz importado
na virada do século XIX e primeiras décadas do século XX. O produto
fazia parte dos hábitos alimentares brasileiros e seu consumo fora
intensificado pelo processo de urbanização incipiente. Buscava-se a auto-
suficiência alimentar do arroz devido ao peso que ele passava a
representar na balança comercial de pagamentos. Argemiro Brum
enumerou fatores de desenvolvimento da cultura do arroz, entre os quais
destacou a alta rentabilidade dada pelo mercado consumidor urbano
ascendente e protegido pelas barreiras alfandegárias, a existência de
capital e trabalho e as condições naturais favoráveis.
52
Além desses
elementos, a região cachoeirense contava com transporte ferroviário
desde 1883, o que possibilitava escoar parte da produção quando a via
fluvial não permitia.
53
Neste contexto, o município de Cachoeira pôde despontar como um dos
principais a investir na cultura rizícola. Alguns fatores sustentaram a
expansão da lavoura orizícola em grande escala: consumo intensificado
pelo processo de urbanização em curso no país inteiro; forte política
protecionista do Governo Federal; existência de capital disponível entre
comerciantes e profissionais liberais, principalmente os provenientes das
áreas coloniais; mão-de-obra colonial através de trabalho temporário
assalariado; condições geográficas favoráveis; ineditismo em plantar arroz
irrigado, de 1892 em diante; e introdução do levante mecânico, por meio
de locomóveis, em 1906.
Pouco mais de dez anos depois das primeiras experiências com irrigação
através de locomóveis, o número de lavouras de arroz com levante
mecânico aumentou sobremaneira, ultrapassando mais de uma centena.
Em 1908, eram onze. Em 1911, o Esboço de Geographia Agrícola e
Industrial do Município de Cachoeira enumerou 67 lavouras de arroz
irrigado.
54
Em 1916, já eram 129. Em 1920, o arroz constituía a principal
52
BRUM, Argemiro Jacob. Modernização da agricultura (trigo e soja). Petrópolis/RJ:
Vozes, 1988, p.64-65
53
Em 7/3/1883 começou a funcionar a linha de trem Porto Alegre-Uruguaiana, passando
por Cachoeira. Fonte: GUIDUGLI, Humberto Attilio. Revista Aquarela, abril de 1957.
54
Esboço de Geographia Agrícola e Industrial do Município de Cachoeira, Organizado
pela Seção de Estatística, 1911. No Anexo III, relação das lavouras de arroz irrigado
em 1911
Figuras 29, 30, 31 e 32
Trilhadeira acionada
pelo motor Lanz,
trilhando arroz na
lavoura Santa Maria, de
Neves & Cia. Locomóvel
na colheita do arroz na
lavoura de Jorge Franke,
1916. Secadores de
arroz. Calha de água em
lavoura de arroz. Acervo
Achylles Figueiredo,
anos 20-30.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira
do Sul
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O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
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121
cultura do município, representando metade do valor da produção geral
de todos os cereais. As variedades que predominavam nas plantações
eram Carolina, Agulha e Japonês (introduzida em 1918).
55
O gráfico a seguir mostra a evolução da produção de arroz cachoeirense
com irrigação mecanizada, desde sua introdução em 1906 até 1940, em
mil toneladas:
Zilbermann, com tinturaria, construção de edifícios e fábrica de móveis;
Natan Breitmann e Ida Breitmann, no Stúdio Aurora; Jorge Kutz, com
tinturaria, livraria, agência de loteria estadual e lancheria; Samuel Behar,
na loja Primavera; David e Hertes Sklar, na fábrica de móveis A Novidade;
Clara Weisfeldt, a primeira médica na cidade; Isaac Saffer, com fabricação
de móveis; David Jalfino, com comércio de tecidos; Maurício Krimberg,
com comércio de gêneros diversos; além de outros sobrenomes como
Maltz, Faermann e Axelrud.
56
Dessa forma, num processo semelhante ao que ocorria na capital do
Estado, o dinamismo da acumulação de capital que serviu de base para a
emergência da ordem urbano-industrial em Cachoeira do Sul proveio de
setores coloniais e não do complexo da pecuária tradicional.
57
O acúmulo
da riqueza na região cachoeirense se daria por conta muito mais dos
alemães e italianos e demais migrantes do que propriamente pelos
estancieiros de origem luso-brasileira. A força da economia teria por
base a cadeia produção-comercialização-industrialização dos gêneros
alimentícios das pequenas e médias propriedades familiares: criação de
aves, porcos e gado confinado; plantio de vários produtos; casas
comerciais de propriedade dos colonos e seus descendentes; pequenas
indústrias artesanais. Os luso-brasileiros aceitavam a presença dos
imigrantes provenientes da zona colonial na medida em que esses
proporcionavam lucros, não só através da arrecadação de impostos mas
também pelas sociedades agrícolas contratadas, comerciais ou mesmo
industriais.
O pioneirismo da Charqueada do Paredão em Cachoeira é prova disso.
Fundada em 1878 por Jorge Claussen, ocupava-se na elaboração de carnes,
preparação de línguas em conserva, charque, extrato de carne e graxa
refinada. No primeiro ano abateu 9.860 rezes; dez anos depois abateu
perto de 50 mil.
58
Outro pioneiro da industrialização local foi Johanes
55
Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941,
p.27-28
Gráfico 1 - Produção de arroz em Cachoeira do Sul - 1906-1940. Fonte PIMENTEL,
Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. Porto Alegre: Tipografia Gundlach, 1941, p.18-
39
Concomitantemente, o aumento da área plantada passou a exigir, nas
décadas seguintes, a expansão da rede de transporte rodoviário e a
construção de barragens para facilitar a ligação fluvial com o porto de
Rio Grande, caminho que permitiria escoar a produção cachoeirense para
outros mercados consumidores. A liderança agrícola fez com que o
município se outorgasse, posteriormente, o título de Capital Nacional do
Arroz.
Neste fértil período, o território cachoeirense dividia-se em oito distritos,
além da sede: primeiro, Ferreira, São Lourenço e Três Vendas; segundo,
Cordilheira, Irapuá, Piquiri, Capané e Irapuazinho; terceiro, Barro
Vermelho, Sanga Funda, Santa Bárbara, Durasnal e Palmas; quarto,
Restinga Seca, Estação Jacuí e Pertile; quinto, Dona Francisca, Faxinal
do Soturno e São João do Polêsine; sexto, Agudo; sétimo, Cerro Branco e
Rincão dos Cabrais; oitavo, Paraíso, Cortado e Rincão da Porta.
Além dos alemães e italianos, árabes e judeus instalaram-se na sede do
município no início do século XX, principalmente no ramo comercial e
industrial: Bruno Jalfin, como engenheiro da Prefeitura Municipal; Boris
56
Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal. Ver também http://www.cachoeira
dosul.rs.gov.br/perfil/index.asp, acessado em 20/10/2005
57
PESAVENTO, Sandra. Um novo olhar sobre a cidade: a nova história cultural e as
representações do urbano. In: MAUCH, Cláudia [et al.]. Porto Alegre na virada do
século 19: cultura e sociedade. Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo: Ed. da
Universidade, UFRGS, Ed. Ulbra, Ed. Unisinos, 1994, p.137
58
Dados extraídos de PORTO, Aurélio. O trabalho alemão no Rio Grande do Sul. op.cit.,
1996, p.218 e Levantamento Histórico da industrialização de Cachoeira do Sul. op.cit.,
1983
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
122
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Heinrich Kaspar Gerdau, imigrado da Alemanha em 1860 para a colônia
de Santo Ângelo, vindo a fundar uma pequena ferraria em Cachoeira do
Sul conhecida como Fundição Jacuí. Em 1901, ele se transferiu para Porto
Alegre, onde adquiriu uma fábrica de pregos, origem do grupo siderúrgico
Gerdau.
59
Cenas como as das fotografias a seguir eram comuns nas ruas de Cachoeira:
o transporte das mercadoria vindas das colônias e empregados do Paredão
da Charqueada que, apesar da origem colonial alemã, utilizava a mão-
de-obra de ex-escravos.
A sede do município acabou concentrando parte do lucro gerado pelos
excedentes agrícolas de seus territórios, principalmente os da zona
colonial, por ser passagem natural para embarcar a produção agrícola,
entre elas a de arroz. Além disso, o maior direcionamento dos rendimentos
do capital colonial para a sede do município deu-se por conta dos
investimentos diretos dos descendentes de alemães e italianos,
principalmente através da abertura de casas comerciais, oficinas,
moinhos, construção de residências, organização de clubes, etc.,
acarretando excepcional crescimento da zona urbana. A diversidade de
etnias podia ser vista nos sobrenomes de moradores da zona urbana, no
centro e na zona alta, no final dos anos 20, como resgata João Carlos
Alves Mór, em A minha Cachoeira, seu livro de memórias sobre Cachoeira
do Sul.
60
Em instantâneo registrado em 1922 pode-se observar o
desenvolvimento de Cachoeira:
59
WERLANG, William. História da Colônia Santo Ângelo. op.cit., 1995, p.236. Outra
Fundição, criada em 1947 por João Batista Barros e sócios, seria denominada “Jacuí”.
Figuras 33 e 34
Empregados do Paredão da
Charqueada e transporte das
mercadoria.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
60
No Anexo IV, relação dos sobrenomes de lavoureiros, industriais, comerciantes e
moradores de Cachoeira, da zona urbana, no centro e na zona alta, no final dos anos
20. Fonte: MÓR, João Carlos Alves. A minha Cachoeira. op.cit., 2001.
Figura 35 – Vista parcial de Cachoeira do Sul em 1922. Fonte: Museu Histórico Municipal
de Cachoeira do Sul
No primeiro quartel do século XX, a indústria e o comércio em franca
expansão refletiram positivamente na ampliação da infra-estrutura
produtiva. A eletrificação iniciou em janeiro de 1912, com a instalação
de motores no Engenho Central, às margens do rio Jacuí. O excedente
era fornecido ao município. Em outubro do mesmo ano, a geração de
energia elétrica passou a ser feita pela Usina Municipal, localizada na
esquina das ruas Moron e Milan Krás, na parte baixa da praça José
Bonifácio, que utilizava máquinas a vapor e geradores de corrente
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
124
125
contínua. Em 1914, Carlos Boer passou a fornecer paralelamente energia
em usina própria, especificamente para a rua Júlio de Castilhos. Em
1918, o coronel Juan Ganzo Fernandez ganhou concorrência para instalar
usina particular, sendo-lhe cedido terreno na margem esquerda do rio
Jacuí. Três anos depois, a Companhia Telefônica Rio-Grandense assumiu
a concessão, instalando geradores de energia em engenhos de arroz da
cidade, “a fim de promover o fornecimento de energia por 24 horas
ininterruptas”. Em 1924, a concessão e a própria usina foram transferidas
para a Companhia Rio-Grandense de Usinas Elétricas.
61
Na telefonia, a situação não diferiu muito. Em 1908, Emílio Guardiola
instalou um centro telefônico nas imediações da igreja matriz.
62
Desde
os anos 10, o município contava com ligação entre a sede e os distritos.
Em 1914, o intendente Balthazar Patrício de Bem foi autorizado a
modificar o contrato com o concessionário, fazendo cessão de toda renda
das linhas municipais dos distritos coloniais, mediante obrigação de manter
serviço de comunicações ininterruptas. No ano seguinte, o vice-intendente
Francisco Fontoura Nogueira da Gama foi autorizado a conceder, por
prazo não excedente a vinte anos, sob concorrência pública, para empresa
ou indivíduo que se obrigassem a reformar o serviço telefônico local,
estabelecendo serviço de comunicações “aperfeiçoado” e “permanente”,
ramificando-o para todos distritos do município e com a condição de
gratuidade do serviço respectivo para todas repartições da administração
municipal. Em 1916, assinou contrato com a Companhia Telefônica Rio-
Grandense, concedendo subvenção anual de 1:800$000 réis.
63
Outros setores atestavam o desenvolvimento de Cachoeira:
estabelecimentos de crédito como o Banco da Província (1911), o Banco
Pelotense (1916), o Banco Nacional do Commercio (1917) e o Banco do
Brasil; instrução pública e privada com 125 instituições e mais de cinco
mil alunos em todo município; Hospital de Caridade (1910); cine-teatro
Coliseu Cachoeirense de Henrique Camassetto; Mercado Público na praça
central; bares, restaurantes, cafés como o Frísia e o Carioca; barbearias,
dentistas; banda musical Estrella Cachoeirense do maestro Miguel
Iponema; associações comerciais, recreativas, religiosas, esportivas e
beneficentes, entre eles a Associação Comercial (1917) que tinha na
diretoria nomes como Paulo Rosek, Haguel Botomé, Fábio Leitão, Júlio
Castagnino, Augusto Wilhelm, Pedro Breyer, João Pereira Lemes, Ernesto
Müller, Reinaldo Roesch, Antônio Ribeiro e Achylles Figueiredo.
64
61
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.106-111. Fonte citada do Jornal O Commercio, 10/01/1912, p.2 e
23/10/1912, p.1.
62
GUIDUGLI, Humberto Attilio, O Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit.,1959
63
Leis n.36, de 28 de setembro de 1914, n.44, de 24 de setembro de 1915, n.47, de 20
de outubro de 1916. Leis do Conselho Municipal promulgadas em 1916, orçamento
para o exercício de 1917. Dados cedidos pelo Arquivo Público Municipal de Cachoeira
do Sul.
Figuras 36 e 37
Casa Bandeira Branca e atelier
de modas Helena B. Lauer.
Fonte: CAMOZATO, Benjamin C.
(org.) Grande álbum de
Cachoeira no Centenário da
Independência do Brasil,
Cachoeira de Sul: Município de
Cachoeira, 1922
64
Além destes, o álbum contém fotos: esculturas de Torquato Ferrari; Escritório Olívio
H. Costa (secos e molhados, artigos para confeitaria); Granja Anna Maria, de Carlos
Pereira Krieger (criação de porcos Duroc-Jersey e cascos de burro, puros e mestiços,
vacas leiteiras, potrilhos e gado Jersey, Suisso e Hollandez); J. Ilha & Cia (armazém
de secos e molhados); além dos anúncios de J. Lima & Cia. (fazendas, barraca de
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
126
127
O Grande Álbum de Cachoeira, editado em 1922 por Benjamin Camozato,
reflete este desenvolvimento. Ele reuniu fotos que procuravam
representar a pujança cachoeirense. A cidade tinha importantes casas
comerciais, como no ramo de tecidos e fazendas, entre elas a Casa Fialho,
A Avenida, Casa da Bandeira Branca e Casa Ideal. A elite ascendente
mandava confeccionar as roupas em atelier de moda, como o de Helena
B. Lauer, o primeiro a se instalar na cidade, em 1904, na rua Sete de
Setembro. Os chapéus eram comprados da Alfaiataria e Chapelaria Santos
ou de Álvaro da Cunha. A Casa J. Bidone & Cia ltda. vendia arreios e
calçados e a Casa Viúva José Müller & Cia ltda. tinha ferragens. No ramo
de livraria, papelaria, miudezas e utensílios domésticos, tinha a Casa
Krahe, e a Casa Augusto Wilhelm, além da Typografia O Commercio, que
publicava o jornal semanal de mesmo nome.
No ramo industrial, destacavam-se os engenhos de arroz, como o Engenho
Brasil de Reinaldo Roesch, com produção diária de 800 sacos das marcas
Micado e Oriente, o Engenho Central de Ernesto Pertilli & Filho, com
capacidade de dois mil sacos diários, o Engenho Cachoeirense de Felippe
Roberto Matte, o de Antônio Cauduro & Cia ltda. e o de E. Stracke & Cia
ltda, além da Mernak & Cia. ltda., que fabricava bombas centrífugas e
locomóveis a vapor para uso na irrigação das lavouras de arroz, da Fábrica
de Máquinas e Fundição de Ferro e Metais de Germano Treptow, e a
Trilhadeiras Tigre de Ângelo Bozzetto em Faxinal do Soturno, então 6
o
distrito de Cachoeira.
Em outras áreas da indústria alimentícia se destacavam a torrefação de
café de Manoel Fialho de Vargas, os moinhos de trigo Vidal, as padarias e
fábricas de massas alimentícias de Nicolau Salzano, de João Dreyer (Nova),
Ritter & Cia. ltda. e de Mário Nostrani (Padaria do Comércio); a Fábrica
de Caramelos, de Paulo Breuer e Guilherme Spohr; a Alimentos Fabini,
que enlatava a polpa muscular bovina junto com glúten; as cervejarias e
fábricas de gasosa e soda, como a Moderna de Pedro Port & Cia., a Leonel
Friederich & Cia ltda., a Homrich de Rudolpho Homrich (fundada em
1883, fabricante das marcas Crystal, Preta e Dragão); a Fábrica de Licores
de Júlio Vahle. Nas demais áreas industriais destacavam-se as fábricas
de sabão de Arthur Goltz e a de Willy Tesch & Cia., A Industrial Madeireira
Wilhem S.A. de Emílio Wilhem, a oficina de carpintaria e marcenaria de
Alberto Gappmayer, a fábrica de móveis de Ernesto Hipp & Cia ltda., a
Serraria Gauss de Louis Gauss, a Fábrica de móveis-estofados Suzete de
Fogliatto Irmão & Cia. ltda., a Fábrica de Beldosas-Mosaico de Fernando
Rodrigues, as olarias de Antônio Ferreira Neves, de João Augusto Christoff,
e de Chrétien Hoogenstraaten & Cia ltda (Primor), a Fábrica de Louças
de Barro de José Herbstrith & Cia. ltda.; os curtumes Scheidt & Beskow,
Fontanari Irmãos & Cia., a Fábrica de sacos de aniagem e algodão de
Campos, Nunes & Cia., entre outras.
couros); Figueiredo & Neves (gasolina, querosene, peças para automóveis, fazendas,
miudezas, secos e molhados); João Minssen (seguros contra fogo). Fonte: CAMOZATO,
Benjamin. Grande álbum de Cachoeira no Centenário da Independência do Brasil.
op.cit., 1922. Dados complementares foram retirados do Levantamento histórico da
industrialização de Cachoeira do Sul, op.cit., 1983
Figuras 38 e 39
Interior da fundição Mernak &
Cia. ltda. e depósito do
Engenho Brasil, em 1922.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
e CAMOZATO, Benjamin C.
(org.) Grande álbum de
Cachoeira no Centenário da
Independência do Brasil,
Cachoeira de Sul: Município de
Cachoeira, 1922
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
128
129
Foi neste contexto que Cachoeira prosperou economicamente, devido
em grande parte ao sistema agropecuário colonial, gerador da expansão
do setor exportador gaúcho. A incipiente industrialização do Rio Grande
do Sul se consolidaria pela disponibilidade de matérias-primas, como a
banha, farinha de trigo, mandioca, vinho e o próprio arroz, oriundos da
região colonial. Soma-se o capital acumulado nas atividades comerciais
das principais praças e o estímulo dado pelo governo republicano em
todo país, desvalorizando a moeda, facilitando o crédito e protegendo
as tarifas alfandegárias, o que resultaria no surgimento deste grande
número de estabelecimentos industriais.
65
Essa intensa atividade econômica alterou profundamente o perfil da elite
cachoeirense. Aos de origem luso da pecuária tradicional praticada nas
grandes estâncias somaram-se os imigrantes da agropecuária colonial e
da manufatura; ambos grupos heterogêneos com atividades nas casas
comerciais. Embora oriundos de contextos diferentes, teriam em comum
o fato de se diferenciar dos demais habitantes não só pelas riquezas
adquiridas no período, mas por hábitos e costumes próprios, algo que os
caracterizaria como grupo distinto, construindo peculiar personalidade
e identidade. Ambos passariam a comungar práticas sociais distintivas
semelhantes, fortalecendo-se como grupo. Se não compartilhavam
afazeres diários comuns, tinham no fazer cotidiano seu fator de
identificação.
Algo de interesse comum a esta elite heterogênea foi a modificação do
espaço urbano, principalmente para os que enriqueceram devido ao
comércio e a indústria, pois era na cidade que desenvolviam-se tais
atividades econômicas, portanto era natural que desejassem melhorar o
ambiente em que atuavam. O enriquecimento da elite foi o fator direto
que permitiu a construção da infra-estrutura urbana, visto nos
equipamentos como água, luz e calçamento e na estética das construções,
materializado nos prédios comerciais e residências.
2.4. Metamorfose do espaço habitável
O desenvolvimento agrícola desencadeado pelos imigrantes (1857 e 1875)
e a própria elevação da Vila Nova de São João da Cachoeira à categoria
de cidade, em 1859, acarretaram significativas melhorias no último
quartel do século XIX, intensificando-se as obras de infra-estrutura
urbanas, direcionadas prioritariamente para a sede do município
cachoeirense. Até a proclamação da República, em 1889, tais melhorias
não tinham fundo eminentemente estético, no sentido de provocar
significativas rupturas no modo de ver e construir o espaço urbano.
Em 1858, houve a preocupação de denominar oficialmente as ruas. Aos
poucos, foi preciso organizar o espaço urbano, de forma condizente com
o desenvolvimento do município. O código de posturas de 1862, aprovado
pela Lei Provincial n.539, de 30 de abril de 1863, ordenava o arruamento,
o passeio e a construção de prédios, com altura mínima de pé direito,
simetria nas portas e janelas, além da exigência de cumeeiras e soleiras.
66
Em 1875, a torre da igreja ganhou relógio, adquirido por subscrição
iniciada por Polycarpo Pereira da Silva. Um ano antes, fora instalado
meridiano na praça em frente.
67
Na praça do pelourinho, foi dado início à construção do prédio para abrigar
o Mercado Público, a partir de 1881. O contrato especificava os materiais
que deveriam ser utilizados, como tijolo comuns de superior qualidade,
“bem queimados e com o comprimento de trinta centímetros”, paredes
rebocadas “com argamassa de um volume de cal para dois de areia e
caiadas com três mãos de cal”, escoamento das águas feito por meio de
65
Ver ARAÚJO, Nilton Clóvis Machado de. Origens e evolução espacial da indústria de
alimentos do Rio Grande do Sul. [disponível em http://www.fee.tche.br/sitefee/
download/eeg/1/mesa_10_araujo.pdf – acessado em 16/1/2006] e PESAVENTO, Sandra
Jatahy. RS: Agropecuária colonial e industrialização. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1983
66
Procedimentos organizado as construções urbanas e regulando os comportamentos de
ordem pública foram elaborados pela Câmara nos anos 1830, 1832, 1853, 1862 e
1895. Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de
sua história. op.cit., 1991, p.138-142. GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de
Cachoeira do Sul, op.cit., 1959, enumera algumas ruas que mudaram de denominação:
a Saldanha Marinho era conhecida por rua da Aldeia e dos Cachorros; a Sete de
Setembro era rua Direita e do Loreto; a Moron, era rua da Igreja; a Quinze de Novembro
era rua dos Paulistas; a 1
o
de Março era rua do Vigário; a General Câmara era rua da
Tapera; a Conde de Porto Alegre era rua Corpo da Guarda.
67
Sessão extraordinária, 18/12/1851. Fonte: CM/OF/A, 005 4r. Nivelamento da Praça:
Ata da sessão ordinária da Câmara Municipal, 2/3/1852. CM/OF/A, 005, 7v. Meridiano,
22/10/1874. IM/EA/AS/RL, 001, 8r. Relógio na igreja, 10/9/1875. IM/EA/SA/RL, 001,
8r. Feiras livres na praça, Registro de Posturas da Câmara Municipal, 22/8/1853. CM/
S/SE/RPL/002.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
130
131
calhas, bandeiras de grade de ferro próprias para envidraçar, portas de
louro, etc. A obra seria paga pela Câmara Municipal em três prestações:
9:500$000 réis quinze dias após a assinatura do contrato, 7:000$000 réis,
após cinco meses, se verificado que a obra estivesse “aproximadamente
em metade de sua construção, isto é, coberta com telhado”, 6:100$000
réis, ao final dos dez meses, depois de entregue e aceita a obra.
68
Em 1887, solucionou-se definitivamente o problema dos sepultamentos,
com a construção do cemitério no Alto dos Loretos, zona alta da cidade,
administrado pela municipalidade. Em 1890, a comissão administrativa
dos negócios do município solicitou o emprego de presos da cadeia para
remoção da ossada humana descoberta devido ao nivelamento da praça
da igreja.
69
Em 1892, foi promulgada a primeira Lei Orgânica do Município,
quando as atribuições de organização urbana passaram para a Intendência
Municipal. Em 1895, as posturas determinavam, entre outras coisas, novos
limites urbanos, licença prévia e planta para construir ou reformar, largura
mínima de 15 metros e traçado retilíneo para novas ruas, obrigação de
muros para residências localizadas nas principais vias, exigência do
calçamento com mínimo de 1,8 metro de largura com sarjetas
empedradas, etc.
70
A nova situação política brasileira a partir de 1889, com a proclamação
da República, deu novo sentido ao urbano, procurando prover as cidades
dos ares modernos, inspirada na Europa, em especial, Paris. As rendas
oriundas do setor produtivo, com grande ênfase para o colonial, incluiu
os descendentes de alemães, italianos, árabes e judeus entre a elite
local. O chamado aburguesamento da cidade de Cachoeira seria promovido
neste contexto, influenciado pela belle époque européia, tendência
seguida pelas principais capitais estaduais brasileiras, como Porto Alegre,
Curitiba, Salvador, Belo Horizonte e São Paulo, além da então capital
federal, Rio de Janeiro.
71
68
Contrato da Construção de um mercado na praça José Bonifácio, 5/12/1881. Fonte:
CM/OF/TA, 007, p. 20r.
Figuras 40 e 41 – Dois momentos do Mercado Público construído na praça do pelourinho
em 1881. Fonte: CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário
da Independência do Brasil, Cachoeira de Sul: Município de Cachoeira, 1922, e Museu
Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
69
Em 16/3/1887, foi definitivamente resolvida a mudança do cemitério para o Alto dos
Loretos. Fonte: IM/EA/AS/RL-001-10r. Ver ainda SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione
Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.89-95
70
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.138-142
71
Entendo aburguesar como dar modos, hábitos ou aspecto elitistas, tanto aos espaços
urbanos como às práticas cotidianas. Sobre transformações urbanas no Brasil ver, por
exemplo, MAUCH, Cláudia [et al.]. Porto Alegre na virada do século 19: cultura e
sociedade. Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo: Ed. Da Universidade, UFRGS, Ed.
Ulbra, Ed. Unisinos, 1994, SÁ, Cristina [et al.], Olhar urbano, olhar humano. São
Paulo: IBRASA, 1991, FERNANDES, Ana. GOMES, Marco Aurélio A. de Figueiras (org.).
Seminário de História Urbana. Salvador/BA: UFBA/Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo, ANPUR, 1992 e SOLLER, Maria Angélica. MATOS, Maria Izilda (orgs.). A
cidade em debate. São Paulo: Olho d’Água, 2004
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
132
133
A administração de Cachoeira pelo coronel Davi Soares de Barcellos (1893-
1904) foi marcada pela abertura e demarcação de ruas, bem como pelo
aterramento de sangas, de modo a expandir a ocupação, ganhando novos
lotes. A praça da igreja recebeu melhorias a partir de 1896, com a
demolição definitiva do adro, posterior calçamento, ajardinamento e
muramento.
72
João Neves da Fontoura, intendente entre os anos 1925-28, criticou em
suas memórias a administração de Davi Barcellos, imputando o
emperramento da administração pública ao partidarismo vigente na
época: “A maioria dos contribuintes se eximia de pagar impostos. Ou os
pagava quando queria. As listas de dívidas eram enormes”. Para ele,
Cachoeira era, nesse tempo, cidade estacionária, “vila triste e
desconfortável”, com lampiões de querosene pendurados nas esquinas,
parecendo “mortiços e bruxuleantes faróis cortando a escuridão das
noites, sobretudo as longas e chuvosas noites de inverno, que principiam
às cinco da tarde”. As comodidades eram coisa de “pessoas abonadas”.
Tal situação de atraso não seria exceção no Estado.
73
Embora na última
década do século XIX e nos primeiros anos do XX, muitas intervenções
urbanas tivessem sido concretizadas – quase sempre de maneira
esporádicas e limitadas à área central – a crítica de João Neves da Fontoura
foi muito mais no sentido de querer exaltar as transformações pela qual
a cidade passou nas administrações posteriores, como a de seu pai, coronel
Isidoro Neves da Fontoura (1908-1912), e a sua própria, na segunda metade
dos anos 20, ambas reformas também centradas essencialmente na zona
central, para servir de cenário à elite em ascensão.
O apogeu econômico cachoeirense, bastante visível no início do século
XX, oriundo da ascensão econômica colonial baseada principalmente na
cultura rizícola, foi prioritariamente destinado à transformação da zona
urbana central. Obras de nivelamento e denominação das principais ruas
e praças já vinham ocorrendo desde o último quartel do século XIX. Mas
nada comparado ao que seria feito nas duas primeiras décadas de 1900.
Um dos efeitos mais imediatos foi a construção do prédio destinado ao
Hospital de Caridade, próximo do cemitério da Irmandade do Rosário,
em 1903-1904. Com Viriato Gonçalves Vianna (1904-1906), a rua Júlio de
Castilhos, caminho de acesso aos que chegassem das regiões coloniais
circunvizinhas, foi nivelada. Cândido Alves Machado de Freitas (1906-
1908) arborizou e empedrou parte de suas calçadas, “a fim de evitar que
estas viessem a ser danificadas pela ação das águas pluviais que ali correm,
com impetuosidade, por se tratar de um terreno declivoso”.
74
Em 1906,
foram colocados bancos e construído o quiosque no centro do jardim da
praça da igreja, posteriormente colocado em frente ao Teatro Municipal,
que ficava ao lado do prédio da Intendência.
75
Os limites urbanos da sede foram dados pelas sangas, escavações
profundas no terreno, produzidas pelas chuvas ou por correntes de água
subterrâneas. Estes acidentes geográficos naturais limitaram durante
muito tempo a expansão urbana, fazendo com que a ocupação do solo
cachoeirense fosse contida pelo próprio curso das sangas. Na zona central
existia a sanga da Inês, a sudeste, que acabava diretamente no rio Jacuí,
e a sanga da Santa Josepha (também conhecida por Micaela, em sua
metade final), a nordeste, que seguia em direção até o arroio Amorim.
76
Assim como as sangas, durante muitas décadas, a estrada ferroviária
limitou o crescimento urbano da zona central a noroeste. Em
72
Correspondência Recebida. Intendência, 22/8/1896. Fonte: 2ª diretoria nº 1841, PG/
CE. Recibo, 30/11/1896. IM/RP/SF/D, 031. Recibo, 1/3/1897. IM/RP/SF/D, 034, nº
236. Recibo, 5/6/1897. Documento avulso, caixa de documentos selecionados, 05/6/
1897, nº 684, 61. M/S/SE/RE 011, p.114 r. Documentos avulsos, caixa 18/6/1898, nº
411, 11/11/1898, nº 824, 17/12/1898, nº 834 e 838. IM/RP/SF/D, 044, 6/5/1899. IM/
RP/SF/D, 041, nº 3. IM/RP/SF/D, 042, nº 287, 1899. IM/RP/SF/D, 042, nº 399, 1899.
IM/RP/SF/D, 042, nº 433, 1899. IM/RP/SF/D, 042, nº 449, 1899. IM/RP/SF/D, 042, nº
449, 1899. IM/RP/SF/D, 042, nº 500, 1899. IM/RP/SF/D, 044, nº 639. IM/RP/SF/D,
045, nº 185.
73
FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1
o
volume. Borges de Medeiros e seu tempo,
Porto Alegre/RS: Globo, 1958, p.149-164
74
Jornal Rio Grande, 28/9/1908, órgão do Partido Republicano em Cachoeira do Sul, p.1
In: SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua
história. op.cit., 1991, p.134
75
Jornal O Commercio, 9/5/1906, p.2,
76
Uma crença envolvendo as duas sangas centrais (Santa Josepha/Micaela e Inês) foi
relatada no jornal O Commercio, em 1918. Da história restou o mito popular de que
“quando as sangas se encontrarem, Cachoeira acabará”. Jornal O Commercio, de 14/
8/1918, das “Crônicas”, publicado no JP, 29/6/1979, Sangas, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
134
135
funcionamento desde 1883, os trilhos corriam no sentido nordeste-
sudoeste. A transposição de veículos se dava pela Júlio de Castilhos, rua
que ligava o centro ao Alto dos Loretos.
Na administração de coronel Isidoro Neves da Fontoura (1908-1912),
77
a
zona central sofreu importantes intervenções.
78
Deram-se início aos
trabalhos de iluminação elétrica da cidade e fornecimento de força motriz
durante o dia, do incipiente serviço de água e esgoto e de melhoria das
estradas e comunicações entre os distritos e a sede. Em 1910, parte da
Sete de Setembro, rua central da cidade, recebeu macadamização,
camada de brita socada com trator de rolo compressor cilíndrico. Como
mostram as fotografias:
Figuras 42 e 43
Macadamização e postes de luz na rua Sete de Setembro, no Centro, anos 10-12.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
77
O Coronel Isidoro Neves da Fontoura foi Membro do Clube Republicano de Cachoeira
(1882) e da Junta Governativa Municipal (1890-1892). Ascendeu como líder local em
Cachoeira na crise de hegemonia (1903-07) do Partido Republicano Riograndense (PRR),
após a morte de Júlio de Castilhos, em 1903, graças ao apoio do presidente do Estado,
Borges de Medeiros. Foi Intendente Municipal no período 1908-1912. No fim do
mandato, insurgiu-se contra Borges de Medeiros porque este havia indicado um
desafeto de Neves da Fontoura para a composição da chapa republicana para a
Assembléia. O Coronel recorreu à fraude eleitoral para obstaculizar a ascensão de
inimigos políticos, furando a chapa oficial ao distribuir cédulas eleitorais que suprimiam
o nome dos adversários. Acabou sendo punido, obrigado a renunciar e deixar o mandato
ao adversário. Este fato local fez com que o então jovem deputado estadual Getúlio
Vargas também renunciasse ao cargo na Assembléia, em solidariedade ao amigo João
Neves da Fontoura, filho de Isidoro, cf. AXT, Gunter. O governo Getúlio Vargas no Rio
Grande do Sul (1928-1930) e o setor financeiro regional. In: Revista Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n. 29, 2002, p.2 [disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/
arq/324.pdf – acessado em 30/3/2006] e ___. A emergência da liderança política de
Getúlio Vargas no Rio Grande do Sul coronelista e o seu Governo no Estado [disponível
em http://www.lasercom.jor.br/ getulio/leitura/Gunter_Axt.pdf – acessado em 30/
3/2006]
78
Na administração de Isidoro Neves da Fontoura começaram os trabalhos de nivelamento,
reforma de calhas e colocações de novos cordões e passeios na rua Sete de Setembro,
pagando o proprietário a quantia de 15$000 réis por metro de laje colocada, além
das obras de macadamização das ruas da cidade, utilizando-se, para tanto, de um
trator com compressor cilíndrico, cf. SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim.
Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.123-138
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
136
137
Na mesma época, foi construído o Largo do Colombo, contíguo à estação
ferroviária.
79
O instantâneo registra espetacular imagem do local. O
calçamento da rua, o alinhamento do meio-fio, os postes de iluminação
e as mudas de árvores plantadas nas calçadas, conjunto que materializa
o desejo de Cachoeira ter um espaço, ainda que circunscrito,
modernizado.
Muitas das residências foram construídas em estilo germânico. Podiam
ser vistos torres com acentuada inclinação das águas do telhado
(Zeltdach), sofisticados adornos metálicos de arremate (Membron),
consoles inspirados na sustentação de balcões ou beirados alsacianos
(Kopfbänder), reboco externo lembrando enxaimel, decoração nos
postigos inspirada na caixilharia bávara, sótão habitável com janelas ou
lucarnas no frontão, corte no vértice conforme telhado Krüppelwalmdach,
avarandados, arremates de falsas tesouras aparentes, ornamentos
metálicos lembrando suportes de cabos telefônicos e elétricos em
edificações européias, entre outros.
81
O prédio do Colégio Barão do Rio Branco, construído na rua Venâncio
Aires (atual Presidente Vargas), era exemplar, assim como a Igreja
Evangélica de Confissão Luterana, inaugurada em abril de 1934. Erguida
em estilo gótico na esquina da Venâncio Aires com a Deoclécio Pereira
(atual Isidoro Neves), tinha arcobotantes (escoras), janelas ogivais com
trabalho de vidro e forro com inspiração gótica flamejante e torre e
torreão.
82
A sede da Schützen-Verein Eintrach, fundada pelos teuto-
brasileiros em 1896, foi transferida para o bairro em 1914.
83
Duas fotografias dos anos 20 mostram o calçamento das ruas do bairro e
algumas casas ali construídas. Interessante é que as ruas foram projetadas
com largura maior que as do centro, o que permitiu calçadas também
mais largas. Além disso, os lotes maiores possibilitaram o recuo das
construções, tanto na parte frontal quanto nos lados, diferentes das
79
O Ato n.125, de 7/4/1912, nomeou a praça fronteira à estação férrea. Isidoro Neves
da Fontoura. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 002, 59r e 60r.
80
O bairro Rio Branco foi criado pelo Ato n. 125, de 7 de abril de 1912, na gestão de
Isidoro Neves da Fontoura. Foi constituído pelo desdobramento da cidade no sentido
Figura 44 – Largo do Colombo, contíguo à estação ferroviária, anos 10-12. Fonte: Museu
Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Neste período, a municipalidade desapropriou grande área na parte
nordeste da cidade, próximos da estação férrea, loteando e vendendo os
terrenos à elite, principalmente de origem teuta. A proprietária, herdeira
do General Gomes Portinho, morava na capital e nunca aproveitara o
lote. Chegou a mover ação judicial contra a prefeitura, alegando que
sofrera lesão enorme, mas acabou perdendo. A denominação de bairro
Rio Branco foi dada pelo próprio coronel Isidoro Neves da Fontoura.
80
norte, compreendido entre as ruas 7 de Abril (atual Milan Krás) e 7 de Setembro,
linha da Estrada de Ferro e demais terrenos pertencentes aos herdeiros do General
Portinho. O Cel. Isidoro Neves da Fontoura denominou as ruas de: Marechal Floriano,
continuação da rua Moron, a partir da rua 7 de abril; Comendador Fontoura,
continuação da rua 15 de Novembro; Ernesto Alves, rua paralela a Venancio Ayres, a
partir da rua 7 de Setembro; Marechal Deodoro, a rua paralela a Ernesto Alvese; e
Cristovão Colombo, a praça defronte à Estação Férrea Cachoeira. Ver também
FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1
o
volume. Borges de Medeiros e seu tempo,
op.cit., 1958, p.164-168
81
Informações do Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul. Exposição Residências
alemãs em Cachoeira do Sul.
82
JP, 26/4/1931 Comunidade Evangélica de Cachoeira, p.2 e GUIDUGLI, Humberto Attilio,
Fundação da Igreja Evangélica, Revista Aquarela, 1957
83
Jornal O Commercio, 17/4/1912, p.2 In: SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim.
Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.136 e 100 anos de
Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
138
139
portas-janela habituais do centro, cuja fachadas eram limítrofes às ruas.
O bairro Fialho (Santo Antônio), predominantemente de descendentes
italianos, teve ocupação semelhante. As peculiaridades em termos de
arquitetura e disposição das residências nos lotes caracterizariam os
moradores do centro antigo e os dos novos bairros adjacentes.
Nas administrações posteriores, muita das intervenções restringiram-se
à antiga praça do Pelourinho, rebatizada de praça José Bonifácio meio
século antes: construção e remodelação do galpão para abrigar o cinema,
pela empresa Figueiró; construção de chalés para abrigar os bares de
Luiz Leão, Manoel da Costa Junior, Joaquim Rosa e de Henrique Fey, este
último destinado “unicamente às retretas em domingos e dias feriados e
que doravante poderá ser utilizado para restaurante e vendas de bebidas”.
O contratante deveria envidraçar e embelezar o pavilhão da música, na
parte baixa, reconstruir e pintar a parte superior destinada à música,
reconstruir e conservar os canteiros do jardim, o caramanchão e o terraço.
Em contrapartida, teria direito a utilizar a parte alta para serviços de
restaurante, “quando a mesma não tiver de ser ocupada pela banda de
música que der retretas em dias determinados”. A partir de 1917, foram
concessionários: Carlos Klüsener, Alberto Trommer e Willy Trommer.
84
84
Ato nº 34, de 12/6/1913. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 002, 68 v. Ato nº 135, de 15/8/1912.
IM/GI/DA/ADLR, 002, 61v. Contrato que fazem a Intendência Municipal de Cachoeira
representada pelo Dr. Balthazar P. de Bem e o sr. Manoel da Costa Junior, como abaixo
se declara, 4/8/1914. IM/GI/AB/C, 003, 1v. Contrato que fazem a intendência Municipal
de Cachoeira representada pelo Dr. Balthazar de Bem e o sr. Manoel da Costa Junior,
como abaixo se declara, 11/8/1914. IM/GI/AB/C, 003, 2r. Contrato que fazem a
Intendência de Cachoeira representada pelo Dr. Balthazar P. de Bem e o sr. Francisco
Figuras 45 e 46
No bairro Rio Branco,
calçamento das ruas com
paralelepípedo e
residências, já nos anos
20.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira
do Sul
Figura 47 - Praça José Bonifácio, no início do século XX, antes das modificações. Fonte:
Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
140
141
Figuras 48, 49 e 50
Praça José Bonifácio, no início do
século XX, antes das modificações,
Bar Cachoeirense e Chalé Ponto Chic
ambos construídos na praça José
Bonifácio.
Fonte: Museu Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul
Neste período, assumiram o município: Alfredo Xavier da Cunha (09/
1912), Horácio Gonçalves Borges (10/1912), Balthazar Patrício de Bem
(1912-1916) e Francisco Fontoura Nogueira da Gama (1916-1920).
85
O Mercado Público localizado na praça foi reformado na administração
de Annibal Lopes Loureiro (1920-1924), pelo arquiteto porto-alegrense
José Mariné. Os termos do contrato, assinado em 1921, dispunham que
deveria ser feita a caiação do prédio, pintado com cor de cimento as
fachadas internas e externa, portas e portões, colocado vidros e bancas,
além de construídos sanitários, bebedouro para animais, “dotado de uma
coluna com uma torneira de mola e uma caneca de ferro presa com
corrente”, e fonte pública no centro do Mercado, “provida de duas
torneiras de mola, com base para colocação de baldes, uma caneca de
ferro com corrente, sifão para escoamento da água ligado ao poço”,
sendo o escoamento ligado na sarjeta da via pública.
86
As reformas atingiram também a praça em frente a igreja católica. Os
muros que cercavam a praça foram demolidos sob argumento de que
eram desnecessários porque vacas e cavalos não mais vagavam pelas
ruas da cidade. Parte do material foi aproveitada para murar o reservatório
de água da hidráulica municipal, construído nos anos 20 nas imediações
do Hospital de Caridade. As modificações foram consideradas de sensível
melhoramento do aspecto, por permitir que “os transeuntes, vejam,
mesmo de longe, as frentes das casas construídas nas diversas ruas da
de Almeida, como abaixo se declara, 12/8/1914. IM/GI/AB/C, 003, 2 v. Contrato de
Arrendamento que faz a Intendência Municipal como cidadão Henrique Fey, do Pavilhão
cito à Praça José Bonifácio, 20/12/1915, IM/GI/AB/C, 003, 12 v. Termo de transferência
de contrato feito por Henrique Fey a favor de Carlos Klüsener. 23/3/1917. IM/GI/AB/
C, 003 p. 24v e 25r. Termo de transferência de contrato feito por Carlos Klüsener a
favor de Alberto Trommer, 4/1/1918. IM/GI/AB/C, 003 37 V. Termo de Transferência
de Contrato que, perante a Intendência Municipal, faz Alberto Trommer a favor de
Willy Trommer como abaixo se declara, 13/9/1920. IM/GI/AB/C, 003, p.62r. Contrato
que faz o sr. Joaquim Rosa com a Intendência Municipal, como abaixo declara, 22/12/
1919. IM/GI/AB/C, 003 54r -
85
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.22-23 e 43
86
Contrato que fazem a Intendência Municipal de Cachoeira e o Sr. Jose Mariné para a
execução de diversos melhoramentos no Mercado Público, 28/7/1921. Fonte: IM/GI/
AB/C, 003, p.73v. Termo de transferência de contrato feito por Joaquim Rosa a favor
da firma Kern Homrich, como abaixo se declara, 12/1/1922. IM/GI/AB/C, 003, p.77
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
142
143
praça”.
87
Com a reforma, rebatizaram a praça de Almirante Tamandaré.
88
O início dos anos 20 foram marcados pela interferência direta dos Estados
na saúde da população, através do saneamento urbano e dos serviços de
higiene, ocorrendo nas principais cidades do país. Para Gilberto Hochman,
com o processo de industrialização e urbanização em curso, foi a resposta
para as epidemias de massa que atingiam indistintamente tanto imigrantes
do campo – pobres doentes – quanto moradores mais antigos – ricos
saudáveis. Era, de certa forma, a concretização do “paradigma da
interdependência”, cujos efeitos externos das adversidades individuais
alcançavam todos membros da comunidade, independente de terem ou
não contribuído para o surgimento da doença e sua disseminação,
impossibilitando o simples isolamento ou segregação espacial. A gripe
espanhola de 1918 – uma “gripe democrática” que tornou-se experiência
coletiva singular – teria sido o fator decisivo que desencadeou as demandas
do movimento de saneamento.
89
Madel Terezinha Luz esclarece que, devido principalmente às idéias dos
médicos-sanitaristas Oswaldo Cruz e Carlos Chagas, da capital federal
Rio de Janeiro, amparados no decreto-lei 3.987/1920, o Departamento
Nacional de Saúde Pública passou a ser responsável por ações de
saneamento tanto no meio urbano quanto rural, pela propaganda
sanitária, higiene infantil, industrial e profissional, pela supervisão em
hospitais públicos, e por separar suspeitos de portar doenças contagiosas
da população, requisitanto força policial caso fosse necessário.
90
Entretanto, segundo Beatriz Weber, a intervenção sanitarista no Rio
Grande do Sul foi peculiar devido ao ideário positivista assumido pela
administração republicana que perpetuou-se no poder até a década de
1930. Sem paralelo no restante do país, os princípios e práticas no Estado
não permitiram a organização sanitária tão fundamentada na medicina,
ocorrendo diversos conflitos entre perspectivas defendidas pelos médicos
e a do governo, especialmente no que se refere à liberdade profissional.
91
87
Jornal O Commercio, 19/1/1921, Jardim da Praça Conceição, p.3 e 8/11/1922, Pelos
Jardins, suplemento.
88
A praça em frente a igreja teve várias denominações, oficiais e populares: praça da
Matriz, da Igreja ou da Conceição, praça do Prestes (em homenagem ao primeiro
morador, João Prestes dos Santos), praça Almirante Tamandaré (de 1921 a 1925) e
praça Balthazar de Bem (intendente morto na localidade do Barro Vermelho, em
1924). JP, 4/6/1992 Um Roteiro do passado ao presente, p.7 A praça passou a atual
denominação com o decreto nº 196, de 16/3/1925, assinado por João Neves da
Fontoura. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 009, 147 V.
Figuras 51 e 52
Praça Almirante
Tamandaré, posterior
Balthazar de Bem,
murada. Ao fundo vê-se
o prédio do Teatro
Municipal, destruído nos
anos 50 para dar lugar a
uma escola. A parte
leste não foi murada.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira
do Sul
89
HOCHMAN, Gilberto. Regulando os efeitos da interdependência: sobre as relações
entre saúde pública e construção do Estado (Brasil 1910-1930). In: Revista Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v.6, n.11, 1993, p.40-61
90
LUZ, Madel Terezinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições
de saúde (1850-1930). Rio de Janeiro: Graal, 1982, p.95
91
WEBER, Beatriz Teixeira. Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a Faculdade
de Medicina de Porto Alegre. In: Revista História das Ciências da Saúde -
Manguinhos v.5 n.3 Rio de Janeiro nov/1998-fev/1999 [disponível em http://www.
scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59701999000100003&lng=es&nrm
=iso &tlng=pt – acessado em 1/4/2006]
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
144
145
Durante a gestão de Annibal Loureiro foram efetuadas várias reformas
sanitaristas. Em sua administração, as pipas d’águas que abasteciam a
população, recolhidas diretamente das fontes de água ou compradas em
latas de 28 litros pelo valor de 0$100 réis, foram substituídas pela água
encanada fornecida pela primeira hidráulica municipal. Até o advento
desta obra, em épocas de calor as pipas não eram suficientes para atender
a demanda da população que crescia, obrigando muitos pipeiros a racionar
a porção vendida, atitude que gerava conflito. Construída na praça Itororó
(rua Saldanha Marinho), em frente ao Hospital de Caridade, a hidráulica
foi inaugurada em dezembro de 1921.
92
A contratação dos estudos iniciais
do projeto foi feita em 1918, na administração de Francisco Fontoura
Nogueira da Gama. A Lei nº 78, de 26 de agosto de 1918, autorizou o
executivo a despender a importância de 20:000$000 réis, inclusive
buscando a verba através de empréstimos bancários, caso necessitasse,
a fim de contratar o renomado engenheiro Saturnino de Britto para o
estudo completo.
93
Embora o hospital cachoeirense tenha sido construído no início do século,
era muito comum a figura do médico da família que atendia nas residências
dos enfermos. Em janeiro de 1918, os médicos Balthazar de Bem, Sílvio
Scopel, Alberto Gradim e Milan Krás organizaram tabela de preços dos
serviços oferecidos: consulta no consultório, 5$000 réis; visitas a domicílio
de dia, 10$000; chamados a noite, depois de estar o médico acomodado,
30$000; chamados para a campanha (condução por conta do cliente),
por légua, de dia, 100$000; de noite, por légua, 150$000; injeções
hipodérmicas ou musculares, simples, no consultório, 5$000; em domicílio,
10$000; conferências médicas, para cada médico, 50$000 réis.
94
Nesta
92
GUIDUGLI, Humberto Attilio, Inauguração da Hidráulica Municipal, Revista Aquarela,
1957. Alguns pipeiros da época: Aristides, César Ribeiro, Custódio, Horácio, Antônio
Ribeiro, Zacarias, Pitan, Bernardino e Adelino. GUIDUGLI, Humberto Attilio. As pipas
da Cachoeira antiga, Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
93
Lei nº 78, de 26 de agosto de 1918. Fonte: IM/CM/AL/L – 005. Ver ainda ANDRADE,
Carlos Roberto Monteiro de. A cidade como um corpo são e belo: o pensamento
urbanístico do engenheiro Saturnino de Brito. In: FERNANDES, Ana. GOMES, Marco
Aurélio de Figueiras (org.) Seminário de História Urbana. op.cit., 1992, p.77-81, e
ANDRADE, Carlos Roberto Monteiro de. O plano de Saturnino de Brito para Santos e a
construção da cidade moderna no Brasil. In: Espaço & Debates. Revista de Estudos
Regionais e Urbanos. São Paulo: Núcleo de Estudos Regionais e Urbanos, 1991, p.55-
63
94
GUIDUGLI, Humberto Attilio, Preços de outrora!, Revista Aquarela, 1957
época, foi estimado em 10 mil o número de habitantes, morando em
aproximadamente 1,3 mil edificações na zona urbana central de
Cachoeira.
95
O hospital servia para as intervenções cirúrgicas mais
complexas. Mesmo assim, em meados de 1925, sob a presidência de
Ernesto Muller, a Diretoria do hospital aventava sobre a necessidade da
construção de novo prédio, sonho concretizado somente nas décadas
seguintes.
96
Ainda que ocorressem conflitos ideológicos na organização sanitária
estadual, o fato de Cachoeira ter realizado obras de saneamento e
abastecimento hidráulico, quase ao mesmo tempo dos grandes centros
urbanos do país, demonstra sua pujança econômica e seu destaque no
cenário regional e nacional. Através do Decreto nº 98, de 27 de setembro
de 1920, o intendente Annibal Loureiro desapropriou o terreno
pertencente a sucessão de Belmira Cândida Pereira, situado à rua D.
Luiza, com área total de 4.845 m², pelo valor de 2:000$000 réis.
97
A água
era captada para o lado da nascente do rio Jacuí, com primeiro recalque
em pré-filtros e segundo recalque num reservatório de cimento, sendo
distribuída pelas ruas Saldanha Marinho, Félix da Cunha e Sete de
Setembro, com ramais para as travessas Firminiano, Sete de Abril e
Venâncio Aires. A quantidade de líquido que podia ser fornecida, em 12
horas de funcionamento das bombas de recalque, atingia 2,17 mil litros.
A rede de distribuição ficou dividida em 4 zonas e 16 distritos, com o
desenvolvimento total de 20.285 metros de encanamentos. O custo total
da obra ficou em 172:314$278 réis.
98
95
GUIDUGLI, Humberto Attilio, Estatísticas da Cachoeira antiga, Revista Aquarela, 1957
96
Fonte: Hospital de Caridade e Beneficência, Amigo HCB; Exposição do Arquivo Histórico
Municipal HCB, 100 anos de história; Código de Posturas Municipais, 1853; PORTELA,
Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1940; Livro de Atas
do Grande Conselho do HCB, 1936-1968 (acervo HCB) e Jornal O Commercio, 5/2/
1918. Cf. o Livro de Atas de Sessões da Câmara Municipal (1830-1864), em 15/10/
1846, o vereador José Pereira da Silva Goulart propôs que a Câmara, em atendimento
ao artigo 69 da Lei Imperial de 1/10/1828, promovesse a criação de um Hospital de
Caridade na Vila da Cachoeira, com a denominação de “São João”, para criação de
expostos (crianças abandonadas), tratamento de doentes necessitados e vacinação,
tendo médico ou cirurgião à disposição.
97
Decreto nº 98, de 27 de setembro de 1920. Fonte: IM/GI/DA/ADLR - 007 - 76v e 77r.
98
Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros pelo engenheiro Ildefonso
Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em 15 de agosto
de 1923, referente aos trabalhos da Secretaria no ano de 1922. Fonte: IM/S/SE/Re-
025 - pág. XVI e XVII.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
146
147
As obras da segunda hidráulica foram iniciadas em 20 de setembro de
1923, por Francisco Fontoura Nogueira da Gama, prolongando-se durante
aproximadamente 18 meses.
99
Pelo contrato, o vencedor da licitação
receberia 11,5% sobre o custo do material e da mão de obra, para
administrar a obra.
100
O engenheiro carioca Saturnino de Britto projetou
o sistema para captar a água no rio Jacuí, próximo à cachoeira do
Fandango, levar até o tratamento e a filtragem, onde tornava-se potável,
sendo então direcionada para o Chateau d’Eau, construído em 1924-25,
no centro da praça fronteira à igreja. O reservatório recebeu a
denominação francesa por conta da influência européia vigente na época.
O projeto arquitetônico foi assinado pelo engenheiro Walter Jobim, que
cercou a escultura central com estátuas de ninfas, divindades do mar,
segurando cântaros que jorravam água. No topo do monumento, colocou
a escultura pagã de Netuno, semi-deus dos mares, de frente para a igreja.
As esculturas foram esculpidas na oficina de J. Vicente Friedrichs, em
Porto Alegre, sob a direção do professor Giuseppe Gaudenzi. “A finalidade
do Chateau d’Eau era de levar a água, por gravidade, ao reservatório R2
e regular ao mesmo tempo a pressão da água nas zonas mais elevadas”.
Ao redor do monumento, foram plantadas palmeiras imperiais.
101
Paralelamente, foram construídos 18,5 quilômetros de rede de esgotos
nas ruas principais, especificamente na área edificada do centro da
cidade. O sistema utilizado foi de separar rede pluvial e tratamento de
efluentes, que recolhia os dejetos e enviava-os a tanques de decantação,
separando-os em parte seca (lama sólida) e parte líquida, desembocando
no arroio Amorin e dali para o rio Jacuí, abaixo e longe do ponto de
captação da hidráulica.
102
99
O capitão Francisco Fontoura Nogueira da Gama foi intendente entre 1916 e 1920,
vice-intendente de Annibal Loureiro entre 1920-1924 e novamente intendente entre
1924 e 1925.
100
Fonte: Relatório apresentado ao Dr. A. A. Borges de Medeiros pelo Engenheiro Ildefonso
Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas, em 15 de agosto
de 1923, relativo aos trabalhos da Secretaria, no ano de 1922, IM/S/SE/Re, 025, p.
XVII e XVIII.
101
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.116. Ver ainda: Decreto nº 98, de 27/9/1920, IM/GI/DA/ADLR, 007,
76v e 77r., Relatório apresentado a A. A. Borges de Medeiros pelo engenheiro Ildefonso
Soares Pinto, Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em 15 de agosto
de 1923, referente aos trabalhos da secretaria no ano de 1922. IM/S/SE/Re, 025,
p.15-16
102
Relatório apresentado a A. A. Borges de Medeiros, por Sérgio Ulrich de Oliveira,
Secretário de Estado dos Negócios das Obras Públicas em setembro de 1926, referente
aos Serviços de Saneamento do estado executados durante o ano de 1925 e 1926, até
maio. IM/S/SE/Re., 025, p.56 a 63; Protocolo de Correspondência, 1924, 8v e 19r.
(janeiro a dez); IM/GI/AB/Re, 005 p.15, 1925. JP, 15/12/1959, Inauguração da fonte
luminosa, p.1 e 27/12/1959, Fonte luminosa, p.1
Figuras 53 e 54
Início das obras de
instalação da rede de
esgoto, vendo-se o
intendente, capitão
Francisco Fontoura
Nogueira da Gama, de
sobretudo, com uma
picareta na mão,
fevereiro de 1924, e
Chateau d’Eau.
Fonte: Museu
Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
148
149
Com o andamento das obras, foi aprovado o Regulamento Sanitário,
através do decreto municipal n.179, de 1
o
de julho de 1924, obrigando as
ligações domiciliares com a rede. Embora mais de 500 prédios tivessem
sido ligados à rede, dois terços dos domicílios continuava a utilizar os
serviços da carroça dos cubos, que recolhia os dejetos em recipientes e
depositava-os no prédio do Asseio Público, localizado na rua Conde de
Porto Alegre esquina Esperanto, distante aproximadamente 1 quilômetro
da zona urbanizada. A remoção de “matérias excrementícias através de
cubos removíveis” datam de 1909, na gestão de Isidoro Neves da Fontoura.
Sua implementação impôs, como medida profilática, o fechamento das
latrinas com fossas fixas. O recolhimento dos dejetos através do sistema
de cubas, utilizado em residências ainda não ligadas à rede de esgoto,
durou até meados dos anos 40.
103
O marco maior das transformações urbanas seria alcançado na gestão do
vice-intendente João Neves da Fontoura (1925-1928).
104
Com projeto de
Acylino Carvalho, sub-diretor de Obras Públicas do Estado, 42 quadras da
zona central, entre a praça da igreja e a estação ferroviária do Largo do
Colombo, receberiam melhorias, como passeios, meio-fios,
paralelepípedos nas ruas e até relógio público, montado em colunas de
degraus em mármore cor-de-rosa, na confluência das ruas do Loreto (Sete
de Setembro) e 24 de Maio (Silvio Scopel).
105
A condução de João Neves da Fontoura ao cargo de intendente deu-se
em circunstâncias excepcionais. Em 1924, o comando da municipalidade
estava a cargo de Francisco Fontoura Nogueira e Balthazar Patrício de
Bem,
106
companheiros seus de partido. Com a revolução, o vice-intendente
acompanhou o corpo expedicionário que pôs-se em movimento em 9 de
novembro, contra o 2
o
Batalhão de Engenharia de Cachoeira, liderado
pelo capitão Joaquim do Nascimento Távora, na localidade de Barro
Vermelho, vindo a falecer no dia seguinte, aos 47 anos de idade. João
Neves da Fontoura homenageou o companheiro de partido falecido, dando
seu nome à praça em frente da igreja matriz.
107
Em janeiro de 1925, o intendente Francisco Nogueira da Gama afastou-
se por problemas cardíacos. O Conselho Municipal reuniu-se para
103
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p.95-98 e 116-117
104
João Neves da Fontoura descende de João Carneiro da Fontoura, vindo de Portugal
em 1737, indo morar em Rio Grande. Seu avô era João Fontoura (bisneto de João
Carneiro) um coronel do Exército e proprietário da Fazenda das Palmas, distante 10
milhas (66 quilômetros) da sede do município de Cachoeira, hoje área pertencente a
São Sepé. Sua avó descendia de mineiros (Figueiredo Neves). Era filho do coronel
Isidoro Neves da Fontoura e Adalgisa Godoy da Fontoura. Nasceu no município em 16/
11/1887. Estudou na escola Cândida Fortes, no Ginásio Cachoeirense e, posteriormente,
no Colégio dos Jesuítas (ginásio de N. S. da Conceição), em São Leopoldo. Bacharelou-
se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito de Porto Alegre, foi
Promotor Público na capital gaúcha durante um ano; prefeito de Cachoeira, de 1925
a 1928; deputado estadual, de 1921 a 1928, e vice-presidente do Estado do Rio Grande
do Sul, eleito em 1927. Deputado federal pelo mesmo Estado, de 1928 a 1930 e de
1935 a 1937. Durante a Segunda Guerra Mundial, foi nomeado embaixador do Brasil
em Lisboa, cargo que exerceu desde 1943, tendo resignado a 30 de outubro de 1945.
Ministro de Estado das Relações Exteriores, no ano de 1946, chefiou a Delegação do
Brasil à Conferência de Paz, em Paris. Em 1948, foi o chefe da Delegação do Brasil à
IX Conferência Internacional Americana, reunida em Bogotá. Pela segunda vez João
Neves da Fontoura foi nomeado Ministro das Relações Exteriores, empossando-se no
cargo em 31 de janeiro de 1951 e exercendo a pasta até 19 de julho de 1953. Faleceu
no Rio de Janeiro, em 31 de março de 1963. Fonte: SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione
Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.54 e 59-62 e
http://www.biblio.com.br/ Templates/ biografias/joaonevesda fontoura.htm –
acessado em 2/12/2005.
105
Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua
história. op.cit., 1991, p. 97-98, 116-117 e 146-149
106
Balthazar Patrício de Bem foi sucessivamente vice-intendente, intendente e diretor
de Higiene Municipal, deputado da Assembléia Legislativa e diretor-médico do HCB,
além de colaborador dos jornais O Commercio, de Cachoeira do Sul, e A Federação,
de Porto Alegre. Sua morte é narrada com ares de heroísmo. Segundo dados oficiais,
na revolução de 1924, teria organizado um corpo expedicionário que entrou em
combate na localidade de Barro Vermelho. Faleceu no dia 10 de novembro, aos 47
anos de idade, em conseqüência de ferimento, quando à frente da força militar,
pretendia impedir o alastramento da sublevação do 3º Batalhão de Engenharia,
aquartelado em Cachoeira, que havia se revoltado, ameaçando, assim a causa da
legalidade. Cf. ata transcrita por Ione Sanmartin Carlos, no Cartório de Registro Civil,
“às doze horas, em caminho do Passo São Lourenço, faleceu o Balthazar Patrício de
Bem com 47 anos de idade, médico, casado com Dona Marina Mattos de Bem. Causa
da morte foi por hemorragia por ferida de arma de fogo penetrante na cavidade
peritoneal”. Existem divergências na versão do assassinato de Balthazar de Bem,
principalmente no que se refere a sua heroicidade de ter tomado frente na força
militar em combate no Bairro Vermelho. A versão não-oficial é de que ele teria ido à
zona de conflito por sua atividade médica e morrido por motivos banais. Como
habitualmente vestia terno branco, postou-se de pé para olhar o campo inimigo,
quando foi alvejado por um tiro efetuado por franco-atirador, sem estar em nenhum
combate direto.
107
A praça passou a atual denominação com o decreto n.196, de 16/3/1925. Fonte: IM/
GI/DA/ADLR, 009, 147V
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
150
151
conceder-lhe licença e dar posse no cargo de vice a João Neves da
Fontoura. Três meses depois, o intendente teve melhora súbita e retornou
ao posto, ali ficando por mais três meses. Em agosto, piorou e, desta
vez, o vice ficou definitivamente no mandato até fins de 1928.
108
Quando João Neves da Fontoura assumiu, as obras de água e esgoto em
andamento estavam sendo executadas pela empresa administrada por
Antônio Soares. O engenheiro responsável era Paulo Felizardo. A
deficiência dos empréstimos fizeram com que João Neves da Fontoura
recorresse ao governador Borges de Medeiros, que contraiu empréstimo
de cerca de US$ 10 milhões, distribuído a vários municípios, cabendo a
Cachoeira US$ 970 mil. Ele escreveu em suas memórias: “Principalmente
a ele é que tem de atribuir-se a transformação não só na fisionomia de
Cachoeira, a qual, de burgo triste e desconfortável, se converteu numa
das melhores cidades do Rio Grande”. Por essa razão, denominou a praça
do reservatório de água (R2) de Borges de Medeiros, inaugurando-a em
janeiro de 1927.
No tocante ao asseio público, João Neves colocaria carros motorizados
para recolher lixo, instituiria a cobrança de taxas para custeio das despesas
e exigiria que cada prédio tivesses seu vasilhame próprio. Em relação ao
abastecimento e saneamento, inauguraria a segunda hidráulica levando
água para a zona alta da cidade e concluiria a rede principal para
tratamento dos efluentes de esgoto sanitário, abrangendo a maior parte
da área edificada da zona central, com aproximadamente 535 prédios.
109
Nas fotografias da inauguração é possível perceber como muitas das obras
eram marcadas pela estética, além da função estrutural. No reservatório
R2, ao invés de simples caixa de concreto para servir de recipiente da
água, os engenheiros projetaram área de lazer na parte superior, com
balaústre de madeira, escadaria e parapeito feito de colunas, além dos
bancos e canteiros por toda área. O próprio ato inaugural rendia
cerimônias que valorizavam os administradores públicos perante a
população.
Figuras 55 e 56 – Inauguração do reservatório R2, em janeiro de 1927, e praça Borges de
Medeiros (ou praça da caixa d’água) em 1928. Fonte: Museu Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul
108
FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1
o
volume. Borges de Medeiros e seu tempo,
op.cit., 1958, p.250-251/323-339. Na intendência, João Neves da Fontoura abandonou
a advocacia. Como apoiou a revolta paulista, em 1932, foi exilado por dois anos.
109
Ver SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua
história. op.cit., 1991, p. 97-98, 116-117 e 146-149
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
152
153
Na parte baixa da cidade, a praça em frente a igreja matriz, que passou
a ser denominada Balthazar de Bem, permaneceu sem grandes
modificações estruturais após a inauguração do Chateau d’Eau, em 1925.
Entretanto, a escultura de Netuno, a mitológica figura greco-romana
que presidiria os mares, colocada no topo do reservatório, de frente
para o templo, foi considerada afronta entre pagãos e religiosos, gerando
certo descontentamento. A resposta dos católicos foi remodelar
completamente a fachada principal da igreja Nossa Senhora da Conceição.
A reforma foi iniciada somente em 1927. Em junho de 1929, foi inaugurado
o novo altar.
110
Para completar as obras, foram feitos apelos para que a comunidade
doasse verbas: “Urge completar a cúpula das torres, a fim de se poder
arriar os andaimes, pedimos o concurso devotado de todos os habitantes,
para essa obra de culto religioso e embelezamento da sede do nosso
município”. Foi sugerido aos moradores das zonas rurais, como colonos
ou criadores, o envio do “óbolo para as obras em espécie”.
111
Em
dezembro, foi inaugurada a estátua votado à Nossa Senhora da Conceição,
erigido no frontispício remodelado da igreja, entre as duas torres.
112
Com a estátua de Nossa Senhora da Conceição posta propositadamente
entre as torres da igreja, de frente para o Netuno do Chateau d’Eau,
surgiu a idéia-força, presente no imaginário popular, de que o bem e o
mal estariam em permanente confronto simbólico, devido à divindade
pagã estar afrontando, com seu tridente, o poder cristão, materializada
na imagem da padroeira do município. O fato de ambas estátuas estarem
de frente uma para a outra, praticamente na mesma altura, serviria
para justificar a desaceleração econômica do município e as conseqüentes
mazelas sociais, na segunda metade do século XX, espécie de força divina
castigando a cidade.
113
Figuras 57, 58 e 59
Igreja Matriz Nossa
Senhora da Conceição,
nos anos 1920, antes das
modificações da fachada
em estilo colonial. Vista
interna do altar, em estilo
renascentista, antes da
remodelação completa.
Remodelação da fachada,
com a colocação de
estátua entre as torres,
em 1927-29.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira
do Sul
110
Jornal O Commercio, 21/9/1927, p.1, 13/6/1928, p.3, 24/10/1928, p.1
111
JP, 4/7/1929 Apelo ao povo da cidade e do município, p.1, 19/9/1929 Inauguração de
um monumento, p.1, 15/12/1929 A pedido. Para as obras da matriz, p.2
112
JP, 19/12/1929, p.1, 26/12/1929, p.3. Ver ainda SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione
Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p.67-71.
113
Exploro essa idéia no artigo SELBACH, Jeferson Francisco, SILVEIRA, Paulo Ricardo
Tavares. Tridente divino: progresso e nostalgia se enfrentam na Capital do Arroz In:
Revista LOGOS, Canoas/RS: ULBRA, v.14, n.1, jun/2002, p.83-90
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
154
155
Em 1927, a praça Balthazar de Bem já se achava encanteirada, gramada
e com árvores e arbustos, além da canalização de água para o serviço de
irrigação e de “abundante iluminação elétrica, distribuída por oito
combustores de uma lâmpada e seis de cinco lâmpadas”. Foram
construídas duas pequenas fontes ornamentais, colocadas “treliças” de
ferro por detrás dos bancos que circundavam o largo central dos dois
jardins e pequenos postes de ferro galvanizado, unidos entre si com
correntes de ferro, para entrelaçar as trepadeiras, além de grandes vasos
e bancos de cimento e mudas de ligustrum para formar pequenas cercas
vivas. A rua ao redor da praça foi calçada com paralelepípedos e uma
bomba de gasolina foi instalada defronte à igreja.
114
Em poucos anos, a
deterioração exigiu reformas, pois reclamava-se que o Chateau d’Eau
destoava “chocantemente” com a praça ajardinada. Na administração
seguinte, do intendente José Carlos Barbosa (1928-1930), foi nomeada
comissão para promover a remodelação do monumento”.
115
Ainda na gestão João Neves da Fontoura, a mais visível das melhorias
urbanas realizadas foi o calçamento das ruas centrais com paralelepípedos
fornecidos pelas pedreiras do Estado, transportados para Cachoeira em
grandes chatas. A seção de obras da capital Porto Alegre, através do
prefeito Otávio Rocha, forneceu técnicos. O engenheiro Acelino Carvalho
supervisionou os serviços. Para o intendente cachoeirense, era necessário
muita paciência para presidir a transição de pequena cidade atrasada
para “o gozo dos melhoramentos com que foi dotada”. Com as ligações
domiciliares, foram instituídas exigências higiênicas das residências, como
quarto de banho, chuveiro e pia de cozinha. Quando a fiscalização
começou a notificar os moradores, verdadeira romaria de viúvas e pessoas
pobres acorreu ao gabinete de João Neves da Fontoura. Por essa razão,
instituiu a política do mandar fazer as obras e receber quando as pessoas
pudessem pagar, lançando em dívida ativa, esperando que, com a morte
dos proprietários, fosse possível resgatar as dívidas no inventário. O braço
direito do intendente era o delegado de polícia, Major Carlos Gama,
filho do ex-prefeito Francisco Nogueira da Gama. O secretário do
município era Emiliano Carpes, que assinava colunas no jornal Rio Grande,
órgão do partido, do qual João Neves da Fontoura era diretor. A Secretaria
de Obras estava a cargo do engenheiro Arno Bernhardt, auxiliado por
Joaquim Vidal. Na Contadoria estava Nestor Terra. Na Tesouraria,
Diamantino Carvalho, com auxílio de Ângelo Ricardi e João de Araújo
Bastos, “um velho propagandista, a quem me coube dar aquele modesto
emprego, o único que lhe tocou, depois de uma vida de fidelidade ao
Partido, que ele contribuíra para fundar”, escreveu João Neves da
Fontoura em suas memórias.
116
As obras tiveram tamanha importância que foram registradas em
fotografias, com destaque para a parte principal da rua Sete de Setembro,
no trecho em frente a praça José Bonifácio.
114
Jornal O Commercio, 9/11/1927 Praça Balthazar de Bem, p.1, 7/12/1927 Praça
Balthazar De Bem, p.1 e 23/3/1927 Bomba de Gasolina, p.4
115
Jornal O Commercio, 17/10/1929 Memorial ao Ex.mo. Sr. Presidente Getúlio Vargas,
p.1
116
FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1
o
volume. Borges de Medeiros e seu tempo,
op.cit., 1958, p.340
Figura 60
Calçamento da rua Sete de setembro, 1927.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
156
157
Figura 61 - Calçada da praça José Bonifácio, 1927. Fonte: Museu Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul
Para uma cidade que queria apresentar-se como moderna aos olhos
externos, tornava-se imprescindível o calçamento. Além de melhorar a
estética, aproximando sua feição urbana das capitais européias, a
intervenção nas ruas de Cachoeira, na segunda metade da década de 20,
teve como fator de impulso o crescimento do trânsito de veículos
automotores, que atingiam velocidades maiores do que as carroças e,
conseqüentemente, levantavam mais poeira.
117
O primeiro automóvel a circular pelas ruas de Cachoeira data de 1907,
de propriedade do rizicultor Eurípedes Mostardeiro. O Daymler, com dois
cilindros e 15 cavalos de potência, foi adquirido usado em Buenos Aires e
chegou ao município por via fluvial. Sua chegada causou frisson. Com
rodas altas e imbricado jogo de alavancas, saiu funcionando do porto no
passo da praia, atraindo atenção no trajeto, dada a fumaceira que
levantava do escapamento. O segundo automóvel a rodar em Cachoeira
foi da marca Umber, de propriedade do mecânico Albino Pohlmann, que
utilizou o veículo como táxi no ano de 1912.
118
A existência de carro de
praça em Cachoeira do Sul já nesta época, fez com que a distinção social
atingisse o modo de se transportar, pois não eram todos que podiam
pagar pelo valor cobrado. Além do mais, circulava desde 1909 a linha de
bonde, de Guilherme Döring, entre o porto (zona sul), a estação férrea
(noroeste do centro) e a parte alta da cidade.
119
Em 1919, Rodrigo Martinez colocou em circulação os auto-bondes que
faziam praticamente o mesmo trajeto. O preço da passagem era de 0$200
réis, valor correspondente a um exemplar avulso de jornal. As viagens
eram feitas a cada meia hora, desde manhã cedo até a hora em que
terminavam os espetáculos do cinema. O jornal O Commercio escreveu
que tratava-se de importante melhoramento, que resultaria em
considerável economia para a população, “que até aqui era obrigado a
fazer a pé, quando não se utilizam os carros e automóveis, veículos estes
que, pode-se dizer, somente são permitidos aos ricos, tal o seu preço”.
Na primeira viagem do auto-bonde, constatou-se que o veículo só poderia
transportar cerca de 18 a 20 passageiros, por seu motor não ter força
suficiente.
120
Esporadicamente, outros empreendedores passaram a oferecer transporte
nos anos 20. Roldão Barcelos da Costa tinha um ônibus com bancos
transversais e laterais abertas e fazia o itinerário Praça da Matriz-Alto
dos Loretos. Ele também transportava pessoas para o interior do
município. Em depoimento oral, sua filha afirmou que “o negócio não
dava lucro porque como todo mundo se conhecia em Cachoeira e eram
amigos, não pagavam passagem”.
121
Em 1925, João Noronha de Bem
117
Ainda nos anos 30, os residentes em ruas não calçadas, como na Júlio de Castilhos e
travessas e no bairro Rio Branco, reclamavam da poeira, solicitando sua irrigação.
Ver JP 19/2/1931 Noticiário. O pó das ruas, p.2
118
GUIDUGLI, Humberto Attilio, O 1
o
e o 2
o
automóveis que circularam nesta cidade,
Revista Aquarela, 1957
119
Ato nº 83, de 12/10/1909, IM/GI/ DA/ADLR, 002, 53v. O Conselho Municipal, em 17/
10/1909, através da Lei nº 22, dispensou a empresa de todos impostos pelo prazo de
cinco anos. Lei nº 22, de 17/10/1909. IM/CM/ AL/L, 002, p.87 v. Ato nº 85, de 20/11/
1909. IM/GI/DA/ ADLR, 002, 54r
120
Jornal O Commercio, 8/10/1919, p.2, 22/10/1919, p.3 e 29/10/1919, p.1. A Lei nº
95 e o Ato nº 490, ambos de 12/12/1919, isentaram de pagamento de impostos os
auto-bondes. Fonte: IM/CM/AL/L, 007 e IM/GI/DA/ADLR, 007, 30 r.
121
Depoimento oral fornecido à assessora técnica do Arquivo Histórico do Município de
Cachoeira do Sul, Ione Sanmartin Carlos, no dia 1º de agosto de 200l, às 18h. Nome:
Maria Costa Correa. Nascimento: 1913 [filha]. Nome: Gilda da Cunha Costa.
Nascimento: 1917 [sobrinha]
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
158
159
disponibilizou dois auto-bondes, “um com os bancos comodamente
acolchoados”, que conduziam passageiros entre os extremos norte e sul
de Cachoeira, entre os cemitérios Municipal e o da Irmandade, ao preço
de 1$600 réis a viagem de ida e volta. O jornal noticiou que o
“empreendimento tem sido muito bem acolhido pelo nosso público, tendo
os bondes boa freqüência de passageiros, notadamente aos domingos e à
noite”.
122
modernos, de segurança e perfeição que melhor correspondam ao
interesse público, instalados no sub-solo dos logradouros públicos, sem
prejuízo do trânsito de pedestres e do tráfego de veículos”.
125
Pelo decreto
n.256, de 16 de fevereiro de 1927, as bombas de gasolina só poderiam
ser instaladas com distância mínima de “três quadras edificadas, contadas
em linha reta, para cada rua”.
126
A primeira bomba de gasolina foi
inaugurada defronte à Bromberg & Cia, na rua Saldanha Marinho, vendendo
a marca Atlantic, em 21 de março de 1927. No dia seguinte, foi inaugurada
outra bomba, mas defronte à Igreja Matriz, na praça Balthazar de Bem.
127
Um mês depois, foi inaugurada o terceiro ponto de venda de gasolina, a
primeira da bandeira Standard Oil Co. of Brazil, na rua Júlio de Castilhos
esquina Juvêncio Soares, tendo como agente João Minssen.
128
122
Jornal O Commercio, 2/12/1925 e 7/12/1927, p.4
123
JP, 31/3/1949 O Transcurso do 25º aniversário de fundação da “Agência Ford” desta
cidade, p.1
124
Jornal O Commercio, 2/6/1920 Bombas de gasolina, p.3
125
Decreto n. 223, de 25 de janeiro de 1926, art.1
o
, Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, Actos
e Resoluções do Intendente, p.99, 100, 101,102 e 103. Ver também decreto n º 250,
de 18 de janeiro de 1927, publicado no Jornal O Commercio, em 19/1/1927, p.2.
126
Artigo 1
o
do Decreto nº 256, de 16 de fevereiro de 1927. Fonte: IM/G/DA/ADLR - 010
- 195 r.
127
Jornal O Commercio, 23/3/1927 Bomba de gasolina, p.4
128
Jornal O Commercio, 13/4/1927, Bomba de gasolina p.1
Figuras 62 – Ônibus com bancos transversais e laterais.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Em 31 de março de 1924, foi inaugurada a Agência Ford, sendo
concessionário Prudêncio Schirmer.
123
Com isso aumentou
consideravelmente o número de automóveis em circulação nas ruas
cachoeirenses, exigindo toda infra-estrutura de abastecimento de
gasolina, até então vendida em galão nas casas comerciais, como a de
Guilherme Preussler, na rua David Barcellos.
124
Em 1926, o intendente
João Neves da Fontoura instituiu a obrigatoriedade de instalar-se o
“sistema de fornecimento de gasolina a varejo por meio de aparelhos
Figuras 63 – Inauguração de bomba de gasolina.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
160
161
O ato de inauguração, realizado às 16 h 30 min do dia 9 de abril de 1927,
foi registrado na fotografia dado seu caráter festivo, com assistência de
muitos motoristas, representantes da imprensa local, comerciantes e
industriais. Foi oferecido na ocasião abundante chope aos presentes. Em
julho, o mesmo agente instalou uma segunda bomba da marca, na rua
Sete de Setembro.
129
Outra visibilidade dada pelo intendente João Neves da Fontoura foi no
re-ajardinamento das praças centrais. Na praça José Bonifácio, as
paineiras foram substituídas por novas mudas, sob o argumento que “mais
enchiam as ruas de folhas caídas do que de sombras”. O novo Horto
Municipal passou a fornecer mudas de flores e de árvores das mais variadas
espécies. A responsabilidade estava por conta do engenheiro-agrônomo
Guilherme Gaudenzi, cedido pelo município de Porto Alegre.
130
Em 1926,
a Intendência abriu concorrência para construção e exploração do teatro-
cinema, prédio que duraria poucos anos no local,
131
e para colocação de
piso mosaico tipo trottoir, na cor cimento, com desenhos semelhantes
aos usados em Porto Alegre, nos passeios.
132
No mesmo ano, houve remodelação em seus jardins, foi construído o
ringue de patinação, “de forma circular, com piso de cimento e circundado
por um parapeito de cimento armado, com várias entradas para a pista”
e bancos de cimento com assento de madeira, foi aberta a concorrência
para a construção de um bar, demolido o chalé Ponto Chic de Luiz Leão,
instalado uma bomba de gasolina por João Minssen, derrubadas as “velhas”
paineiras, construídas “elegantes balaustradas” e canteiros, plantadas
roseiras trepadeiras, instalados postes de ferro fundido e iluminação
elétrica, tudo isso para dar “ao conjunto geral da praça um cunho
característico de modernismo”.
133
Em 1928, foi construída a “elegante”
pérgula, passeio feito com duas séries de colunas paralelas para suportar
as tumbergias e roseiras-trepadeiras. Também o bebedouro de animais
foi transferido para a praça São João, no bairro Fialho.
134
A remodelação da praça José Bonifácio foi fartamente fotografada. Nas
imagens a seguir aparecem a testada sudoeste, com a derrubada das
paineiras no canteiro central, construção de balaustradas e canteiros e
instalação de postes de ferro fundido e bancos de concreto com assento
de madeira e da pérgula, construída no lado noroeste.
129
Acto nº 1194, de 22 de julho de 1927. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, p.212
130
FONTOURA, João Neves da. Memórias. 1
o
volume. Borges de Medeiros e seu tempo,
op.cit., 1958, p.245
131
Acto nº 1.105, 21/9/1926. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, p.167
132
Contrato que faz a Intendência Municipal de Cachoeira com o sr. Guilherme Paulo S.
Felizardo, para o fornecimento de mosaicos destinados ao calçamento de passeios da
Praça José Bonifácio, 17/6/1926. Fonte: IM/GI/AB/C, 004, p.24 v. Jornal O Commercio,
26/1/1927, Passeio da Praça José Bonifácio, p.2. Jornal O Commercio, 23/2/1927
Praça José Bonifácio, p.1.
133
Intendência Municipal. Edital de concorrência para a construção e exploração de um
bar na praça José Bonifácio, 18/4/1927. Jornal O Commercio, 20/4/1927, p.4 e 27/
04/1927, p.4. Jornal O Commercio, 4/5/1927 Ao redor da Praça José Bonifácio, p.4.
Acto nº 1.194, de 22/7/1927. Fonte: IM/GI/DA/ADLR, 010, p.212. Jornal O Commercio,
31/8/1927 Edital Intendência Municipal. Concorrência Pública, p.2, 26/10/1927 Ponto
Chic, p.4, 9/11/1927 Praça José Bonifácio, p.1, 9/11/1927 Iluminação Pública, p.3 e
30/11/1927 Praça José Bonifácio, p.1. Ver ainda JP, 29/11/1983 Museu faz mostra
sobre história do José Bonifácio, p.1
134
Jornal O Commercio, 7/11/1928 Jardins e praças Públicas, p.2
Figura 64 - Remodelação da praça José Bonifácio, em 1928.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
162
163
Figura 65 – Pérgula da praça José Bonifácio, em 1928.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Ainda na remodelação estética, João Neves da Fontoura mandou instalar,
em novembro de 1927, na parte central e no bairro Rio Branco, 228
postes de iluminação Nova Lux, fabricados em ferro fundido pela General
Eletric norte-americana. Os postes tinham globo opalino de 30 centímetros
de diâmetro e variavam de uma, três ou cinco lâmpadas, numa intensidade
luminosa de 33.185 velas. Até as melhorias, o centro da cidade tinha
luminosidade de 19.195 velas, concentradas em poucas ruas centrais. O
custo da obra foi de 116.748$598 réis, média de 297$828 réis por lâmpada
instalada. Os locais que receberam maior quantidade de postes foram,
respectivamente: praça José Bonifácio (49); rua Sete de Setembro (43);
praça Balthazar de Bem (37); rua Saldanha Marinho (36); rua Moron (16);
rua Venâncio Aires (13) e praça Borges de Medeiros (10). Os demais
logradouros receberam menos de 8 postes: Firminiano, General Câmara,
General Osório, Ramiro Barcellos, General Portinho, Major Ourique, 24
de maio, 7 de Abril, Deoclécio Pereira, Largo Colombo, Andrade Neves e
Ernesto Alves.
135
O aspecto estético da arquitetura e do espaço urbano da zona central,
em fins dos anos 20, aproximaram Cachoeira dos centros mais
desenvolvidos do Estado e do país. A fotografia noturna materializa o
desejo da elite civilizar a área urbana, aproximando-a do que havia de
mais moderno em termos de infra-estrutura para o uso da cidade à noite:
a iluminação. No lado esquerdo e no canteiro central predominavam os
postes com um globo. No lado direito, da praça José Bonifácio, foram
colocados postes de um e cinco globos, iluminando os bancos de concreto
dispostos na calçada de extraordinária largura. A predominância da luz
na zona central revela para quem fora feito tais melhorias. Se o centro
ficou bem iluminado, as demais áreas da cidade continuaram às escuras.
135
Jornal O Commercio, 9/11/1927 Iluminação Pública, p.3
Já a fotografia diurna registra o visual que aproximou a cidade deste
modernismo progressista. O calçamento de pedra na rua era impecável;
nas calçadas, o piso quadriculado destacava-se; o meio-fio retilíneo dava
mostras da padronização e organização desejáveis; a arborização
cuidadosamente disposta quebrava a frieza das pedras; os prédios,
mesmos os mais antigos, auxiliavam na harmonia do ambiente.
Figura 66 - Rua Sete de Setembro, tendo à direita a praça José Bonifácio, em tomada
noturna, no final dos anos 20. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
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165
Figuras 67 - Rua Sete de Setembro, tendo à direita a praça José Bonifácio, em tomada
diurna, no final dos anos 20. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Se a relativa pujança econômica do primeiro quartel do século XX, advinda
da cultura rizícola, propiciou a modificação do espaço urbano central do
município, paulatinamente, os novos-ricos buscariam sua diferenciação
social através do refinamento dos hábitos praticados no dia-a-dia.
Ironicamente, esse ambiente moderno, construído como palco para a
encenação da elite cachoeirense, serviria de arena do confronto simbólico
entre a elite e os subalternos que, nos anos 30-40, passaram a ocupá-lo
de forma fremente.
2.5. Refinamento de hábitos: a prática cotidiana da elite cachoeirense
Como visto, mesmo antes da grande intervenção urbana de 1925-28, a
zona central cachoeirense passara por modificações pontuais –
macadamização das ruas, colocação de postes de luz, ajardinamento e
bancos na praça. Na medida em que o ambiente urbano modernizava-se,
a elite moradora do centro procurava sua diferenciação social através de
determinadas alterações nas práticas cotidianas, na tentativa de mostrar
que eram possuidoras do tão desejado verniz civilizador.
Em solenidades públicas que promoviam, eram comuns festejos que
lembrassem a distinção entre os estabelecidos e os outsiders. Exemplo
foi o carnaval, apropriado pela elite desde 1900, data do início dos festejos
na cidade. Na época, a diversão ocorria principalmente na praça José
Bonifácio, através de desfiles de charretes floridas e blocos como o dos
Pirilampos e Os Diabos. Da mesma forma que nos demais dias do ano,
limites simbólicos dividiam as comemorações carnavalescas na praça,
mantendo elite e subalternos separados. Outro evento segregacionista
foi a Batalha das Flores, que consistia no desfile de carros organizados
na avenida das Paineiras, trecho da rua Sete de Setembro que ladeava a
praça José Bonifácio, onde moças e rapazes da elite, empunhando cestos
com pétalas de flores, divertiam-se jogando-as uns contra os outros. Na
revista Aquarela, Humberto Guidugli enumerou algumas das famílias que
participavam dessa diversão: Isidoro Neves da Fontoura, Balthazar de
Bem, Horácio Gonçalves Borges, Antunes de Araújo, Franklin Ferreira,
Luiz Pinheiro, Arlindo Leal, Virgílio de Abreu, David Soares de Barcelos,
Augusto Priebe, Jaques Bidone, Frederico Ortiz, Zimmer, Fialho, Rodolfo
Mota, Francisco Nogueira da Gama, Francisco Timóteo da Cunha e Nicolau
Rooss Homrich.
136
As fotografias de 1913 revelam o empolamento do
evento, com a ornamentação das carroças.
136
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
Figuras 68 e 69
Festa das Flores, em novembro
de 1913. Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
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O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
166
167
137
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Verso e reverso da vida, Revista Aquarela, novembro de
1957, n.2
138
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Cenas da vida da antiga Cachoeira, Revista Aquarela,
dezembro de 1963. n.14
139
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Moça beijada. Revista Aquarela, dezembro de 1963,
n.14, e O destino é quem decide. Revista Aquarela, abril de 1964, n.16
Nesse contexto de diferenciação social, era comum as moças da elite
selecionarem futuros pretendentes a partir do status social, não
permitindo aproximação ou contato dos que não possuíssem posição
elevada. Exemplo disso foi o caso publicado na Revista Aquarela,
reportando-se a época. Na ocasião, um visitante chamou a atenção do
belo sexo, por intermédio do qual ia infiltrando-se nos ambientes
elitizados. Sempre com o nome em foco, aparecia principalmente na
praça José Bonifácio, onde, “metido em seus trajes bem talhados,
encantava o mundo feminino”. Decorreram semanas até descobrir-se
tratar de embusteiro, quando passou a ser ignorado pelas mesmas donzelas
que tanto encantou.
137
Muitas moças da elite namoravam visando unicamente desbancar a rival,
demonstrando que por detrás do véu aristocrata, fervilhavam os ânimos
mais apaixonados.
138
Os rapazes não deixavam por menos. Aos sábados
de madrugada, grupos percorriam as casas das pretendentes para fazer
serenatas. Por várias vezes, os pais delas terminavam a homenagem
despejando “água que não se bebe” sobre os cantadores. Numa ocasião,
atrevido rapaz segurou à força senhorita da alta elite que fazia seu footing
na praça José Bonifácio, beijando-a prolongadamente. O ato causou
indignação e tumulto entre os freqüentadores. Em outra, senhor de idade
avançada, porém riquíssimo, namorava linda moça de 19 anos, sem
aprovação da família que chegou a trancá-la em casa, num quarto escuro.
A comunidade protestou e levou o caso ao conhecimento das autoridades.
Manifestações pró e contra foram feitas. Mais tarde ambos se casaram. A
solenidade foi realizada debaixo de extraordinária aclamação, tendo sido
despejado nas pessoas presentes “grande vidro do mais fino extrato de
Paris”.
139
Se algumas diferenças sociais podiam causar alvoroço ou constrangimento,
era na delicada questão da divisão racial que mostrava-se a verdadeira
fronteira da lógica civilizacional. Como bem atestam os episódios do
Tira o chapéu ocorrido na praça José Bonifácio – onde os ânimos se
conturbaram porque mulheres negras e pobres, vestindo fino chapéu,
avançaram no espaço da elite branca – ou num outro que envolveu
cançonetista negro que veio fazer espetáculo na cidade e, após a
apresentação, procurou o melhor hotel de Cachoeira, sendo negado-lhe
hospedagem dada sua etnia.
140
Nos eventos sociais promovidos em espaços restritos, exigia-se
comportamento adequado. Nos bailes, reuniam-se elementos da fina
sociedade. As matronas, em seus lugares estratégicos, dirigiam as moças
com o olhar, ora carrancudo ora suave, corrigindo eventuais falhas,
repreendendo modos, enquanto a orquestra recebia ordens para repetir
a mesma música a fim das danças tornarem ao seu verdadeiro
andamento.
141
Nos salões dos quartéis do Exército, antes da Revolução
de 30, promoviam-se festas e horas de arte, comparecendo famílias da
sociedade, cavalheiros, artistas amadores e musicistas.
142
Mas foi na formação de associações que mais refletiram-se tentativas
sistemáticas de construção de identidades próprias de cada grupo social,
mesmo considerando-os pertencentes à elite cachoeirense. No espaço
de trinta anos, vários clubes foram fundados em Cachoeira: Sociedade
Atiradores Concórdia (fundado como Schützen-Verein Eintrach, em 1896);
Societá Italiana Principe Umberto (1913), Tiro de Guerra n.254 (1916),
Sociedade União Cachoeirense (1920), Clube Comercial (1924) e Sociedade
Israelita Cachoeirense (1926).
143
As agremiações cachoeirenses que podiam ser consideradas
eminentemente aristocráticas eram, primeiramente, o Clube Comercial
e, residualmente, a Sociedade Atiradores Concórdia. Aceitava-se os teuto-
brasileiros nessa categoria muito mais por sua importância econômica
140
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Negou hospedagem. Revista Aquarela, outubro de 1957
141
GUIDUGLI, Humberto Attilio. O Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
142
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Belos tempos, Revista Aquarela, dezembro de 1968.
n.27
143
Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal. Ver também http://
www.cachoeiradosul.rs.gov.br/ perfil/index.asp, acessado em 20/10/2005, Museu
Histórico Municipal de Cachoeira do Sul. 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade
Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996. A Schützen-Verein Eintrach, mudou de nome
durante a I Guerra Mundial, para Sociedade Atiradores Concórdia. Em 1939, suprimiu
Atiradores, ficando Sociedade Concórdia. Na Segunda Guerra Mundial, em 1943, para
Sociedade Rio Branco.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
168
169
em Cachoeira. O processo de admissão ao quadro de sócios do Concórdia
dificultava o ingresso de todos aqueles que não tivessem descendência
germânica. A solicitação dava-se através de pedido escrito à Diretoria,
que colocava o nome em exposição pública durante quatro semanas.
Para o candidato ser aceito, tinha de obter a maioria dos votos dos demais,
através de escrutínio secreto.
144
No Clube Comercial, a casta tinha razão
de ser por agregar membros do alto comércio ou indústria locais, de
origem luso ou não. A sociedade italiana aparecia em segundo plano devido
a menor presença dos ítalo-brasileiros na cidade. Da mesma forma, o
Grêmio Náutico Tamandaré (1936) agregou praticantes do remo que já
tinham ligações com outros clubes. Somente após a Segunda Guerra
Mundial, quando os remadores incorporaram o patrimônio dos italianos,
é que o Náutico passou a promover eventos sociais de maior destaque,
sendo alçado à nata da sociedade cachoeirense.
145
Na busca pela diferenciação, os esportes assumiram papel preponderante,
na medida em que possibilitaram materializar a racionalidade do corpo
saudável, tão em voga no período.
146
Entre a elite cachoeirense, o tênis
teve grande preferência pois, além do aspecto físico, permitia a
“convivência em ambiente de elevada expressão social”.
147
Antes da
construção da primeira quadra da Sociedade Atiradores Concórdia em
1920, as partidas eram jogadas na cancha particular de Emílio Barz,
localizada na esquina das ruas Saldanha Marinho e Milan Krás (centro),
ou numa cancha improvisada nas imediações da rua Júlio de Castilhos,
esquina com Juvêncio Soares (entre o centro e a zona alta da cidade).
Em 1922, adeptos fundaram o Tênis Clube Cachoeira, posteriormente
transformado em departamento da Sociedade Atiradores Concórdia. No
ano seguinte, surgiu uma segunda agremiação, o Rio Branco Tênis Clube,
fundado por torcedores do Cachoeira Futebol Clube. A procura pelo
esporte trouxe a necessidade de construção de novas quadras. Em fins
dos anos 20, foi construída a quadra de tênis na parte dos fundos da
praça Borges de Medeiros.
148
Em menor grau, o ciclismo contou com adeptos desde fins do século XIX,
chegando a ser fundado um clube em 1896. Entre os aficionados,
constavam nomes das famílias Batista, Fetter, Guardiola, Guidugli,
Homrich, Lang, Leusin, Lübke, Muller, Pohlman, Riccardi, Sabseverino,
Schaurich, Treptov, Wolff, Xavier e Zimmer.
149
No mundo ocidental, o
ciclismo virou atração quando os fabricantes conseguiram alçá-lo à
condição de símbolo máximos da liberdade individual, dado sua grande
mobilidade, algo equivalente a voar e capaz de livrar o indivíduo da
preguiça e depressão.
150
A primeira prova ciclística foi realizada somente
em 1934, na Volta da Charqueada.
151
Junto com o ciclismo, a corrida
atlética conquistou muitos adeptos. O Clube Ginástico organizou o
Campeonato do Passo em 1903, que consistia em percorrer a pé, em
grupos de quatro integrantes, os dezesseis quilômetros da Volta da
Charqueada. Participaram da corrida Arnoldo Neujahr, Emílio Matte,
Francisco Schroeder, Osvaldo Rother, Henrique Lauer, Otávio Simões,
Ricardo Voigt Filho e Adolfo Schumacher.
152
Entre os alemães da Sociedade Atiradores Concórdia, o tiro e a ginástica
foram as principais das modalidades esportivas. O tiro ao alvo foi a razão
da denominação inicial: Schützen-Verein Eintracht. Na Primeira Guerra
Mundial, o Tiro de Guerra se apropriou das estandes de tiro e confiscou
as armas dos alemães. Com o término do conflito bélico, o esporte não
conseguiu reviver seus adeptos. A organização da Sociedade de Ginástica,
o Turnverein, é posterior, data de 1908. As modalidades praticadas eram
144
Ver 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit.,
1996, p.52
145
Ver Jornal O Commercio, 9/7/1913 Festa Inaugural Italiana Príncipe Umberto. Diversas
Notas, p.1, SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartin. Cachoeira do Sul, Em busca de
sua história. op.cit., 1991, p. 155-173 e 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade
Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996. No Anexo V, a relação nominal dos fundadores
e presidentes do Clube Comercial, e dos fundadores, das madrinhas no batismo dos
barcos e tripulação do Grêmio Náutico Tamandaré
146
SILVA, Ana Márcia. Elementos para compreender a modernidade do corpo numa
sociedade racional. In: Cadernos CEDES v.19 n.48 Campinas, agosto. 1999 [disponível
em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-326219990001
00002&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 20/3/2006]
147
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
op.cit., 1943, p.326
148
Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-
1996, op.cit., 1996, p.95-97
149
Segundo GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
150
JESUS, Gilmar Mascarenhas de. Construindo a cidade moderna: a introdução dos
esportes na vida urbana do Rio de Janeiro, 1998 [disponível em http://
www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/257.pdf – acessado em 20/3/2006]
151
JP, 28/1/1934 Vida desportiva. Ciclismo, p.2
152
Segundo GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
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170
171
exercícios de barra, paralelas, cavalos e argola, ginástica sueca, marchas
e evoluções rítmicas, salto em altura e distância, arremesso de bola,
disco e dardo, e corridas de 100 m e 400 m. Com a Segunda Guerra
Mundial, a ginástica e o atletismo deixaram de lado seu caráter
competitivo, sendo incorporados ao Atlético Rio Branco, que priorizava
esportes coletivos em detrimento ao praticado individualmente, como o
basquete e o vôlei. Além do tiro e da ginástica, destacava-se entre os de
origem germânica o bolão, praticado inicialmente em canchas de terra
batida, improvisadas ao lado de pequenas casas comerciais germânicas,
servindo de atrativo para a freguesia.
153
A prática do esporte estendeu-se em pouco tempo aos subalternos.
Aqueles que não faziam parte da alta sociedade cachoeirense, acabaram
por aderir ao futebol, que rapidamente rompeu círculos aristocráticos
para ganhar as ruas e tornar-se entretenimento popular de largo alcance.
Segundo Gilmar Mascarenhas de Jesus, a prática futebolísitca introduziu-
se na vida urbana brasileira justamente no momento em que se vivia a
conjuntura de acirramento das tensões raciais, ainda mais no Rio Grande
do Sul, onde o afluxo de imigrantes europeus foi particularmente maciço,
fazendo com que a situação do negro ganhasse contornos dramáticos,
terreno fértil para a ideologia anti-negro.
154
O futebol foi trazido para
Cachoeira pelos ingleses que assumiram o estabelecimento industrial
Charqueada do Paredão, em fins do século XIX. Nas décadas de 10-20,
surgiram os primeiros clubes, Cachoeira Futebol Clube e Sport Clube
Cachoeirense (transformado em Guarany Futebol Clube). Os jogos
ocorriam em campos fora da zona urbana central: bairro Fialho (Santo
Antônio), Coxilha do Fogo (Soares), Vila Tibiriçá (zona do meretrício),
Vila Militar, Castagnino, Chácara dos Portinho, Mauá, Tabajara, Alto dos
Loretos ou mesmo entre o centro e a zona alta, na rua Júlio de Castilhos.
A exceção era o campo próximo dos engenhos de arroz, mesmo assim,
fora da visão da elite.
155
Na busca pelo corpo saudável, ganhou força o hábito de banhar-se
publicamente, nada novo nem local. Na Europa, a partir da metade do
século XVIII, o banho de mar e nas estâncias termais viraram moda entre
a elite ao mudar radicalmente sua concepção, de ameaçador para algo
terapêutico, capaz de curar as moléstias, sendo prescritos por médicos e
higienistas. A nova ordem era fortificar e repor a energia que a vida
urbana exauria.
156
Pela grande distância do litoral, a elite cachoeirense adotou a moda dos
banhos terapêuticos no próprio rio. Desde o século XIX, famílias usavam
o rio para recreação. Muitas chegavam a passar a temporada acampadas,
principalmente próximo da cachoeira. Além das ninfas que se banhavam
quase diariamente, idosos com reumatismo procuravam as águas do Jacuí.
Suas margens eram consideradas local pitoresco e aprazível, com árvores
copadas fornecendo sombra perfeita para os piqueniques. Organizavam-
se bailes ao som de violas, violões, acordeonas e instrumentos de sopro
regidos pelos musicistas locais. Os pescadores forneciam piavas e dourados
para os veranistas intercalarem com os churrascos. Os adultos
aproveitavam a queda da água sentados em pedras retilíneas, enquanto
as crianças brincavam nas piscinas naturais, sob olhares maternos. Os
olhos masculinos ficavam atentos nas mulheres que se banhavam vestidas
de longos camisões.
Nos anos 1910-20, o veraneio nas margens do rio diminuiu, dando lugar à
temporada de praia. Uma das causas teria sido porque uma jovem da
alta sociedade acidentou-se na cascata em 1912, escorregando nas pedras
e sendo levada pelas corredeiras.
157
Todavia, a razão mais concreta foi a
construção de vários trechos ferroviários em todo Estado, em fins do
século XIX e início do XX, melhorando consideravelmente o acesso ao
litoral, permitindo que parte da elite se deslocasse para as praias. Da
estação de Cachoeira era possível ir de trem até Santo Amaro (atual
Amarópolis), seguir de vapor até Porto Alegre e de lá rumar para o litoral
norte, principalmente para praias como Cidreira e Tramandaí. Outra
possibilidade era seguir para Cacequi e de lá embarcar para Bagé, Rio
153
Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-
1996, op.cit., 1996, p.39-47 e 79-80
154
JESUS, Gilmar Mascarenhas de. O futebol da canela preta: o negro e a modernidade
em Porto Alegre. In: Revista Anos 90, Porto Alegre/RS: UFRGS/PPG História, n.11,
julho, 1999 [p.144-160]
155
JP, 22/12/2005, Entrevista com Sérgio Engel. Futebol dos anos dourados na zona
norte [disponível em http://www.jornaldopovo.com.br/default.php?arquivo=_
materia.php&intIdEdicao=898&intIdConteudo=5792 4 – acessado em 22/3/2006]
156
CORBIN, Alain. O território do vazio: A praia e o imaginário ocidental. São Paulo:
Cia. das Letras, 1989, p.81
157
JP, 24/1/1935 Praia de Banhos. Seutonio, p.1 e 27/1/1935 Praia de banho. Seutonio
II, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
172
173
Grande e Cassino, balneário pioneiro do sul do Brasil, estruturado em
1890. Inspirado nos balneários europeus, Cassino tornou-se espaço de
lazer das elites gaúchas. O hotel Cassino, administrado pela Companhia
Estrada de Ferro Rio Grande-Costa do Mar, dispunha de 136 quartos,
grandes salões de concertos, baile, bilhar, tiro ao alvo, ciclismo, atletismo,
hipismo, camarotes na praia e barracas para banhistas. Era comum
hóspedes divertirem-se com passeios na praia, serenatas, concertos
musicais e mesmo bailes organizados no verão.
158
Afora os espaços eminentemente públicos, os requintados ambientes
privados ganharam notoriedade com a pujança econômica e as reformas
urbanas dos anos 1910-20. No contexto desse crescimento e prestígio
social e político, os estabelecidos recebiam em suas residências ilustres
visitantes, como o poeta Olavo Bilac em 1916, ocasião entre tantas onde
podiam mostrar refinamento, conforme mostra a fotografia da época.
Recitais e concertos ocorriam em espaços variados, como no Clube
Comercial, na Sociedade Atiradores Concórdia ou mesmo em salões
particulares. As peças teatrais foram encenadas no prédio ao lado da
intendência somente até 1911, quando passaram para o galpão do cine-
teatro da praça José Bonifácio. Antes disso, o prédio de 1831 havia passado
por reformas, mas a parte frontal acabou desabando em fevereiro de
1906. Dois anos depois, a intendência efetuou alguns reparos. O prédio
acabou sendo doado para o Estado instalar o Colégio Elementar e o Fórum,
em 1913-14.
159
Havia também os cafés, reduto quase exclusivo aos do
sexo masculino, como o Carioca. Além de servirem a tradicional bebida,
atraíam assíduos freqüentadores por causa dos jogos como carteado e
roleta. O instantâneo batido nos anos 20 revela a predominância dos
homens, embora no lado esquerdo, quase despercebida, esteja sentado
uma mulher. Outra opção era o Bar Cachoeirense, localizado na praça,
que usava o espaço público para pôr suas mesas e cadeiras.
158
BARCELLOS, João. Cassino história e ambientes: a educação e a sua preservação. In:
Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental. Fundação Universidade de
Rio Grande, s/d [disponível em http:// www.sf.dfis.furg.br/mea/remea/congress/
artigos/comunicacao14.pdf – acessado em 20/3/2006]
159
Fonte: CM/OF/A, 002, 75v 76 r. CM/OF/A, 002, 75v 76 r, IM/RD/SF/D, 042, n.312, IM/
RD/SF/D, 043, n.841, IM/RD/SF/D, 043, n.826, IM/RD/SF/D, 043, n.838, IM/RD/SF/
D, 043, n.868, IM/RD/SF/D, 043, n.1091, IM/RD/SF/D, 043, n.938, IM/RD/SF/D, 043,
n.1086, IM/RD/SF/D - 043 - nº 1150, 1830. IM/D/S/SE/CR, 009. IM/S/SE/CR, 009, 23/
2/1908. IM/GI/AB/C, 001, 58 r e v, 28/3/1908, Livro de Lançamento de Contratos
celebrados com a Intendência Municipal, 1902 a 1914. IM/GI/AB/RE, 007, p.5, 1913.
IM/GI/AB/RE, 007, p.43, 1913. Jornal Rio Grande, 24/8/1913 Doação do Teatro
Municipal, p.2. e IM/GI/AB/Re, 002, p.20, Relatório apresentado pelo Intendente
Capitão Francisco Fontoura Nogueira da Gama ao Conselho Municipal em sessão
ordinária de 20 de setembro de 1917. Dados fornecidos pelo Arquivo Histórico Municipal
de Cachoeira do Sul. Ver também GUIDUGLIO, Humberto Atílio. Teatro. Revista
Aquarela, 1957
Figuras 70 e 71 – Cena interna do Café Carioca e Bar Cachoeirense, na avenida das
Paineiras, centro da cidade. Fonte: CAMOZATO, Benjamin. Grande álbum de Cachoeira
no Centenário da Independência do Brasil. Cachoeira: Município de Cachoeira, 1922 e
Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
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174
175
Figura 72 - Olavo Bilac em reunião na residência de João Neves da Fontoura, anos 20.
Fonte: CAMOZATO, Benjamin. Grande álbum de Cachoeira no Centenário da
Independência do Brasil. Cachoeira: Município de Cachoeira, 1922
O surgimento dos cinemas é desta época. Embora tenham sido pensados
para as massas, misturaram estabelecidos e outsiders. As primeiras salas
de Cachoeira datam dos anos 10, quando Pedro Fortunato Batista Alegri
e Vitório Livi abriram o Cinema Parque, funcionando ao ar livre num
terreno da zona central. Em 1911, os irmãos Pohlmann assumiram e
transferiram o negócio para a praça José Bonifácio, batizando-o de Cinema
Familiar. O novo galpão recebeu cobertura de lona, palco, camarotes e
cadeiras modernas. Em 1912, Felipe Moser juntou-se a Renoardo
Pohlmann, vendendo as instalações para a empresa Figueiró. Em 1913, o
novo proprietário passou a ser Manoel Costa Junior, que batizou o
estabelecimento de Coliseu Cachoeirense após reformar a fachada e o
palco e instalar dez ventiladores turbinados importados da Argentina.
Neste mesmo ano, Carlos Keil pôs em funcionamento, por curto período
de tempo, sala de projeção na esquina das ruas Sete de Setembro e
Major Ouriques.
160
No início da década de 20, Henrique Comassetto, da firma Comassetto &
Carvalho Ltda., adquiriu o Coliseu Cachoeirense, transformando-o
oficialmente em cine-teatro. Em 1926, a intendência exigiu a construção
de novas instalações em substituição ao “velho barracão” da praça José
Bonifácio. Como forma de pressionar, abriu nova concorrência para
exploração do cinema. Comassetto venceu mas não cumpriu o contratado.
Entre os anos 1927-28, dois outros cinemas funcionaram em Cachoeira,
mas logo fecharam suas portas. O primeiro deles, de propriedade de
Arthur Freitas e João Antonio Fortes, foi instalado no salão do Clube
União Familiar, no Alto dos Loretos, e vinha suprir o público da zona alta
da cidade. Estreou em 10 de outubro de 1927, com o filme O Rio
Envenenado, drama policial em seis atos, atraindo “numerosa assistência
de espectadores”.
161
Apesar de ser entretenimento destinado ao grande
público, o cinema cachoeirense não conseguiu manter-se somente com a
venda de ingressos aos moradores da periferia. Com exceção dos
trabalhadores dos engenhos de arroz, não existia na cidade grande massa
de operários, como nas capitais. Em menos de um mês, Heitor Gomes
Martins, Viera da Cunha e Costa Junior adquiriram a aparelhagem e
mudaram para o centro da cidade, em terreno na esquina das ruas
Saldanha Marinho com Andrade Neves, numa tentativa de aproximar-se
do público elitista. Por ser ao ar livre, algo incômodo para quem podia
pagar ingressos de maior valor, também teve vida efêmera.
162
160
Jornal Rio Grande, 28/9/1913 Melhoramentos no Coliseu, p.2. Dado fornecido pelo
Arquivo Histórico Municipal de Cachoeira do Sul.
161
Jornal O Commercio, 10/8/1927 Cine União, p.4 e 31/10/1927 Cine União, p.1
162
Jornal O Commercio, 23/1/1927 Cinema ao ar Livre, p.1 e 11/1/1928 Cine Brasil, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
O vir-a-ser cachoeirense: do espaço construído ao espaço habitado
176
177
A característica de distinção social, predominante entre as elites de
Cachoeira, começaram a sofrer profundas modificações nos anos que se
seguiram a 1930, devido ao considerável aumento do fluxo de migrantes
que, pouco-a-pouco, deixariam de respeitar os limites simbólicos impostos
na ocupação do espaço central, gerando protestos por parte da elite e
modificações em suas práticas cotidianas. Para compreensão desse
processo, analiso no próximo capítulo os aspectos econômicos e urbanos
de Cachoeira, sem perder de vista sua inserção no contexto externo.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
178
3. A economia
e a chegada
dos novos bárbaros
3.1. Abundância e crise
Porque as pessoas migram? O ditado em latim Ubi bene ibi patria (Onde
estás bem, aí está tua pátria) resume a questão do deslocamento
populacional de forma contundente. Herbert Klein estabelece como
impulso inicial da imigração a constatação da impossibilidade de
sobrevivência nos meios tradicionais nas comunidades de origem. Para
ele, a condição econômica constitui fator de expulsão mais importante,
sendo essencial entender as mudanças responsáveis pelo agravamento
da situação crítica que afeta a capacidade potencial que os dispostos a
migrar têm de enfrentar. Nos grandes deslocamentos populacionais
ocidentais nos séculos XVIII, XIX e XX importaria, predominantemente, o
acesso à terra e ao alimento, a variação da produtividade e o desequilíbrio
populacional, crescimento do número de membros da família não
acompanhada pari passu pela produtividade da terra.
1
A evolução populacional européia, conforme Neide Patarra, deu-se em
três etapas distintas. A primeira, com alto crescimento potencial, na
fase pré-industrial, onde as taxas de natalidade e de mortalidade
permanecem altas. A segunda, com crescimento transitório,
acompanhando o processo de industrialização de meados do século XVIII,
onde a taxa de mortalidade teve declínio sem contrapartida inicial da
diminuição da natalidade. A mortalidade decresceu lenta e
1
KLEIN, Herbert S. Migração internacional na história das Américas. In: FAUSTO, Boris
(org.). Fazer a América. 2
a
ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000,
p. 13-31
progressivamente, provocada por melhorias médico-sanitárias, como
vacinação, saneamento e alimentação. Em contrapartida, a natalidade,
que até então assegurava pequeno crescimento populacional, manteve-
se alta, gerando desequilíbrio populacional e colocando em marcha grande
número de pessoas, principalmente para as Américas, que atraíam o
excedente populacional europeu dada as oportunidades aventadas em
termos de abertura de fronteiras e ocupação territorial para a própria
manutenção das colônias. Nesta fase, que se prolongou até meados do
século XX, deram-se os ajustes específicos ao modo de vida urbano-
industrial. Na terceira etapa, houve declínio incipiente, quando a taxa
de natalidade caiu a ponto de tornar-se menor que a de mortalidade,
ocasionando declínio da população e, posteriormente, seu
envelhecimento.
2
O contexto populacional da América Latina concentrou sobremaneira as
etapas da chamada transição demográfica vista na Europa. Thomas Merrick
ressalta para o fato que a região passou de 110 milhões para 450 milhões
de habitantes em pouco mais de um século, crescimento ocorrido
prioritariamente nas zonas urbanas.
3
Até o primeiro quartel do século
XX, a expansão econômica produzida pelas exportações estimulou o
crescimento de cidades portuárias ou administrativas, mas a maior parte
da população latino-americana ainda encontrava-se no campo. A economia
de exportação gerou prosperidade, mas somente para a elite que
promoveu melhorias urbanas a fim de sobreviver às doenças. A América
Latina continuou sendo predominantemente rural até fins dos anos 20,
com somente 17% da população residindo em cidades com mais de 20 mil
habitantes.
4
A partir da década de 30, o mundo ocidental começou a sofrer profundas
modificações que resultaram na Segunda Guerra Mundial, conflito bélico
que marcaria os rumos da civilização humana. A América Latina sentiu os
reflexos dessas mudanças através das modificações estruturais políticas,
populacionais, econômicas e urbanas. No Brasil, o autoritarismo dos
coronéis se transmudaria em populismo, a economia de exportação
primária e importação de bens manufaturados da Primeira República
sofreria significativas mudanças com a incorporação paulatina de novas
tecnologias, obrigando verdadeiras multidões a deixarem o campo rumo
às cidades, provocando intensa desorganização no modo de viver de todos.
No qüinqüênio 1930-35, a população brasileira foi estimada em 40 milhões.
No Rio Grande do Sul eram 2,1 milhões, 180 mil somente na capital Porto
Alegre. O município de Cachoeira do Sul contava com aproximadamente
84 mil habitantes, 20 mil na zona urbana e vilas e 64 mil na zona rural
(76,2%), proporção próxima à gaúcha e à brasileira. O perfil rural
mostrava-se pelos 94% de municípios brasileiros com menos de 75 mil
habitantes.
5
Desta maneira, a reorganização mundial das forças sócio-político-
econômicas, a incipiente mecanização do campo, o aceno de melhores
condições de vida na cidade e a expectativa de emprego proporcionada
pela industrialização nos decênios seguintes, puseram em marcha milhões
de pessoas, resultando na necessidade de ampliação das fronteiras
agrícolas para áreas pouco povoadas ou na migração para centros urbanos
maiores, fazendo com que a população das cidades aumentasse
exponencialmente, gerando necessidades de melhorias nos serviços
urbanos e, conseqüentemente, transformando as relações sociais. Nas
décadas que se seguiram a 1930, o perfil demográfico se transformaria
gradativamente, com a prevalência do urbano sobre o rural. De quarta
parte de moradores urbanos passou à metade nos anos 50-60, tendência
2
PATARRA, Neide. Dinâmica populacional e urbanização no Brasil: o período pós-30. In:
FAUSTO, Boris. História Geral da Civilização Brasileira. op.cit., 1984, p.249-268.
Entende-se transição demográfica como as transformações populacionais que operam
ao mesmo tempo que as transformações globais (econômicas, sociais, políticas,
culturais) e que conduzem uma sociedade a outro modo de vida.
3
MERRICK, Thomas W. La poblácion de América Latina, 1930-1990. In: BETHELL, Leslie
(ed). História de América Latina. Economia y sociedad desde 1930. Barcelona: Grijalbo
Mondadori, 1993, p.165-215
4
BETHELL, Leslie (ed). História de América Latina. Economia y sociedad desde 1930.
op.cit., 1993, p.165
5
Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Anuário estatístico
do Brasil 1947. Rio de Janeiro: IBGE, v. 8, 1948. Anuário estatístico do Brasil 1937. Rio
de Janeiro: IBGE,v. 3, 1937. Anuário estatístico do Brasil 1938. Rio de Janeiro: IBGE,
v. 4, 1939. Anuário estatístico do Brasil 1939/1940. Rio de Janeiro: IBGE, v. 5, 1941.
Anuário estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, 1946. Anuário
estatístico do Brasil 1946. Rio de Janeiro: IBGE, v. 7, 1947. Anuário estatístico do
Brasil 1946. Rio de Janeiro: IBGE, v. 7, 1947
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
180
181
agravada nas décadas seguintes.
6
O processo de urbanização decorrente
dessas mudanças econômicas-demográficas mundiais marcaram a
sociedade brasileira, por conseqüência a gaúcha e a cachoeirense.
O carro-chefe que marca a mudança populacional brasileira, de
predominantemente rural para predominantemente urbana, foi o processo
de industrialização iniciado em fins do século XIX e nas duas primeiras
décadas do século XX, mas consolidado no primeiro governo de Getúlio
Vargas (1930-1945). Num primeiro momento, a industrialização deu-se
como forma de substituir as importações, a partir da formação e ampliação
do mercado interno. Esta etapa estendeu-se até meados dos anos 50,
quando a industrialização passou a fase da internacionalização do mercado
e aprofundamento do caráter monopólico da economia.
7
No período em questão, estabeleceram-se as condições necessárias para
a adoção do modelo econômico de desenvolvimento capitalista com forte
participação estatal. Tanto no cenário nacional quanto no internacional,
o Estado passou a definir diretrizes de investimento, financiar o
desenvolvimento de áreas de interesse público e mesmo assumir total
responsabilidade em alguns setores estratégicos, originando os monopólios
estatais. Subsidiada politicamente pelo golpe militar de 30, a
industrialização brasileira cresceu em ritmo acelerado, atraindo cada
vez mais migrantes para as cidades, dando origem ao nascimento de
grupos sociais antagônicos: a burguesia ou elite industrial e o proletariado
urbanos, além dos intermediários ligados às atividades periféricas da
economia agrícola exportadora, como comércio, transporte e bancos.
8
A industrialização do Rio Grande do Sul ocorreu de forma peculiar, voltada
essencialmente aos mercados locais, atendendo consumidores através
de diversificada produção. De certa forma, o dinamismo das exportações
agrícolas do Estado – também diversificada devido ao fornecimento de
gêneros alimentícios e matérias-primas provenientes das zonas de
colonização, exportadas para o centro do país – ditavam o volume
industrial produzido para o mercado regional. No cerne da industrialização
gaúcha estavam as manufaturas artesanais, de caráter doméstico ou
mesmo comercial. Foram essas manufaturas, de origem colonial em sua
maioria, que transformaram-se em pequenos e médios estabelecimentos
febris. Da mesma forma, o mercado de trabalho no Estado proveio
essencialmente da expansão demográfica da zona colonial, em atividades
manufatureiras operadas por pequenos proprietários, familiares e
eventuais empregados. Todavia, ao lado desses empreendimentos
menores, crescia a quantidade de estabelecimentos ocupando maior
número de operários assalariados, com processos de trabalho definidos
pela ampla utilização da maquinaria.
9
Cachoeira do Sul foi beneficiada pelo contexto econômico dos anos 30-
45, tendo crescimento industrial elevado, impulsionada que fora por
abastecer o mercado interno, em grande parte regional. O parque
industrial do município, no segunda metade dos anos 30, já contava com
substantivo número de fábricas, principalmente na produção de gêneros
alimentícios. Em 1937, dados oficiais apontam 160 fábricas ou oficinas
com capital de 3.200:000$000 réis e produção no valor de 9.200:000$000
réis, empregando 500 operários e consumindo 446 HP de força motriz.
Em 1938, o número de fábricas aumentou para 238, empregando 942
operários, utilizando força motriz de 1,3 mil HP e produzindo
29.000:000$000 réis. A tabela a seguir mostra os principais produtos
fabricados no município e os respectivos produtores, em 1937:
6
Fonte: CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no Centenário da
Independência do Brasil, op.cit., 1922. Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de
Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Anuário estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de Janeiro:
IBGE, v. 6, 1946. Anuário estatístico do Brasil 1950. Rio de Janeiro: IBGE, v. 11, 1951.
Anuário estatístico do Brasil 1961. Rio de Janeiro: IBGE, v. 22, 1961.
7
Esta divisão é dada por LOPES, Juarez Rubens B. Redistribuição regional-urbana da
população brasileira. In: Estudos CEBRAP 20, s/d. apud PATARRA, Neide. Dinâmica
populacional e urbanização no Brasil: o período pós-30. In: FAUSTO, Boris. História
Geral da Civilização Brasileira. op.cit., 1984, p.254-255
8
Ver BENETTI, Viviana. A corrente desenvolvimentista e o projeto político no Rio Grande
do Sul: 1950/1962. Dissertação de Mestrado [orientador Marcos Justo Tramontini],
São Leopoldo/RS: UNISINOS/PPG-História, 2002 [disponível em http://www1.capes.
gov.br/teses/pt/2002_mest_unisinos_viviana_benetti.PDF – acessado em 14/1/2006]
9
Ver HERRLEIN Jr., Ronaldo. Desenvolvimento industrial e mercado de trabalho no Rio
Grande do Sul: 1920-1950. In: Revista de Sociologia e Política. n.14 Curitiba jun. 2000
[disponível em www.scielo.br/scielo.php?s cript=sci_arttext&pid=S0104-
44782000000100006&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 16/1/2006], PESAVENTO,
Sandra Jatahy. RS: a economia & o poder nos anos 30. op.cit., 1983 e PESAVENTO,
Sandra Jatahy. História da indústria sul-rio-grandense. Guaíba/RS: Riocell, 1985
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
182
183
Tabela 1 – Movimento industrial do município de Cachoeira, em 1937. Fonte: PIMENTEL,
Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., p.101-103
A principal atividade industrial na zona urbana ligava-se às lavouras de
arroz, principal produto cachoeirense. Destacavam-se, o Grande Engenho
Central, de propriedade de Matte, Gaspary & Cia até 1937, quando foi
vendido para a Brasil Arroz Ltda, de Porto Alegre; o Engenho Brasil, de
Reinaldo Roesch & Cia, inaugurado em 1921, movido a força motriz de
um locomóvel Lanz de 115 cavalos, podendo descascar 800 sacos de arroz
por dia; o Engenho Cachoeirense, de Willy Tesch, destruído em incêndio
em fevereiro de 1948; o São João, de João Garibaldi Santos e João Radünz,
na rua da Aldeia; o Bacchin Lewis & Cia Ltda., inaugurado em novembro
de 1943 por Odino, Gentil e Euclides Bacchin, Álvaro Lewis e João Batista
Barros, na rua Otto Mernak (além de beneficiarem trigo e arroz,
fabricavam rações e calcário); e o engenho de Irmãos Trevisan S.A.,
instalado no final dos anos 40, na avenida Brasil.
10
As fotografias registram a atividade industrial do período, como os prédios
relativamente novos e o uso do maquinário, utilizados principalmente
no beneficiamento do arroz. Nos anos 30, o Grande Engenho Central
utilizava o motor Lanz, de 100 HP.
10
Levantamento Histórico da industrialização de Cachoeira do Sul. op.cit., 1983
Produto Principais firmas produtoras
Artefatos de
couro
Fontanari, Irmão & Cia e mais 15 produtores menores: Evaldo
Bender, Emilio Rohde, Arthur Plautz, Celeste Cassol, Teófilo Rohde,
Eduino Ruppenthal, Lindolfo Friedrichs e Ervino Hörbe, entre outros.
Aguardente Hugo Sório, Reinoldo Wachholtz, Vergilino Moreira, Carlos Milbradt,
Alexandre Rosato e Roberto Woll.
Banha e
Manteiga
Schiefelbein & Prade e mais 50 produtores menores: Orlindo Martini
Filho, Emilio Friedrich, José Burmann, Arthur Hintz, José Frantz,
Alexandre Cantarelli, Ernesto Procknow, Adolfo Pfuffer, Tancredo
Strassburguer e Emílio Stieler, entre outros.
Bebidas João Carlos Schroeder e outros 39 produtores menores: Slvio Scopel,
Zanconi & Giacomeli, Vergilino Morais, Luiz Sob, Teodoro Raddatz,
Otto Kirsch, Germano Lüdtke, Bernardo Bartz, Augusto Wachholtz,
Francisco Bevilaqua, João Schroeder, Arnoldo Halberstadt, Leopoldo
Heller, Bernardo Ehrhardt, Arnoldo Petzhold e Francisco Simon,
entre outros.
Café Ivo Beck & Cia., Artur Tesch, Vasconcelos & Cia., Emílio Nagel Filho,
Norberto Wolf, Alfredo Leipniz e outros 5 produtores menores
Calçados e
Tamancos
Fontanari, Irmão & Cia., Sperb, Kaempf & Cia. e mais 14 produtores
menores: Juvêncio Cardoso & Silva, José Kilian, Albano Stumpf,
Margarida Scherer, Wantuil de Araújo, Emilio Ludwig, João
Taglapetra, Emilio Schönfelde, Ervino Hoerbe, Teófilo Streck e Eva
Bittencourt, entre outros.
Conservas Osmar Bidone e mais 6 produtores menores
Fumo De Franceschi & Cia
Jóias Alfredo Diefenbach e mais 4 produtores menores
Móveis Wilhem & Rohde, David Sklar e mais 20 produtores menores: David
Sklar, Otto Strasburguer, Ricardo Lüdtke, João Frederico Bock, José
Hipp, Barchet & Cassol, Luz Emilio Fenner e Carlos Sthal, entre
outros.
Máquinas
agrícolas
Carlos Kerber (bombas centrífugas, trilhadeiras, secadores,
caldeiras) e Mernak & Cia. (locomóveis, caldeiras a vapor, bombas
centrífugas, descascadores, brunidores e prensas hidráulicas)
Perfumarias Artur A. Goltz (sabonetes)
Vinagre Valdemar Lau
Outros Ladrilhos (3), artefatos de tecidos (7), bijuterias (2), inseticidas (1),
chapéus para senhoras (4), caramelos (1), velas (1), fogos de artifício
(1), artefatos de ferro (4), tintas (1) e artefatos de papel (1)
Figuras 73 e 74
Destilaria Cachoeira Ltda. Grande Engenho Central.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
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185
Figuras 75 e 76
Motor Lanz, de 100 HP e parte
interna do Engenho Central,
anos 30.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
Nas ruas centrais da parte baixa da zona urbana cachoeirense concentrava-
se o comércio. Na Sete de Setembro, Saldanha Marinho, Moron e XV de
Novembro e mesmo na Júlio de Castilhos, que ligava as zonas baixa e
alta, localizavam-se agência de automóveis, alfaiatarias, armazéns de
frutas, bancas de jornais e revistas, barbearias, bares, bazar, bombas de
gasolina, cafeterias, engraxaterias, escritórios, estúdios de fotografia,
farmácias, ferragens, ferrarias, funerária, hotéis, joalherias, livrarias,
loja de rádios e “frigidaires”, lojas de calçado, de fazendas e tecidos, de
gêneros diversos, lotéricas, oficinas de máquinas de costura, oficinas
mecânicas, padarias, pensões, restaurantes, sapatarias, selarias,
tinturarias, tipografias, vidraçaria, entre outros ramos.
11
Nas fotografias a seguir aparecem dois estabelecimentos que ficavam
em frente a praça José Bonifácio: a Casa Filho, que vendia tecidos,
fazendas e miudezas em geral; e o açougue de Ernesto Krieguer, que
aparece de chapéu na imagem. Este estabelecimento mudou-se para o
compartimento n.5 do Mercado Público em abril de 1930, tendo sido
remodelado de acordo com as exigências da Seção de Higiene Municipal,
com a colocação de ladrilhos de mosaico e azulejos da altura de 2 metros.
11
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
op.cit., 1940, p.159-161
Com exceção dos engenhos, a zona central da cidade abrigava poucas
indústrias, que localizavam-se principalmente na avenida Brasil, na parte
alta da cidade, e na Júlio de Castilhos, rua que ligava a parte baixa da
cidade com a parte alta. Tal divisão industrial era reflexo da ocupação
urbana. Da parte alta da cidade até as proximidades da parte baixa,
incluindo aí o loteamento Santo Antônio, os moradores eram
predominantemente oriundos das zonas coloniais, do município ou de
outras partes do Estado. De forma natural, a diversificação industrial,
vista principalmente em pequenos empreendimentos, ocorreu no entorno
dessa região.
Figuras 77 e 78 – Casa Fialho e açougue de Ernesto
Krieguer, ambos em frente a praça José Bonifácio.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
186
187
Os profissionais liberais instalados no município igualmente atestava seu
desenvolvimento: dezessete médicos, com especialidades diversas, como
cirurgias, parteiros, doenças de crianças, de olhos, ouvidos, nariz,
garganta, de pele, tuberculose, moléstia de senhoras; treze dentistas,
entre cirurgiões e práticos licenciados, com especialidades em pontes,
dentaduras, extração de nervos e dentes com anestesia; quatro parteiras;
quatro engenheiros e construtores; doze advogados em causas criminais,
civis, comerciais.
12
A pujança da economia local mostrava-se nas seis agências de bancos,
todas localizadas na zona baixa: Banco do Brasil, Banco Nacional do
Comércio, Banco do Rio Grande do Sul, Banco da Província do Rio Grande
do Sul, Banco Agrícola Mercantil e Banco Pfaifer. As fotografias a seguir
mostram a fachada dos edifício do Banco Pelotense, posteriormente sede
do Banco do Rio Grande do Sul, e do Banco Agrícola Mercantil, ambos
erguidos em esquinas do final da rua Sete de Setembro, próximo da Estação
Ferroviária, no Largo do Colombo.
Figura 80 – Edifício do Banco Pelotense, posteriormente sede do Banco do Rio Grande do
Sul. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
A crescente industrialização e a relativa pujança econômica, vistas a
partir de 30, aumentaram a necessidade de prover o município com infra-
estrutura compatível, como rodovias, telefonia e energização elétrica.
No caso da força motriz gaúcha, a situação de abastecimento foi precária
até o Plano de Eletrificação do Rio Grande do Sul, concebido pelo governo
estadual de forma pioneira em 1945. Até então, a geração de energia no
Estado se dava prioritariamente pela queima do carvão (85%) e hidráulica
(15%), num verdadeiro “mosaico de usinas” devido as mais de 130
empresas que operavam (12,88% do total no Brasil) no início dos anos
30.
13
Gunter Axt, num estudo sobre a formação da empresa pública no setor
elétrico gaúcho, ressalta para o fato de que até a implantação do Estado
Novo, em 1937, a política do governo estadual para com o setor elétrico
foi ambígua, uma vez que sustentava discurso intervencionista e sensível
12
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
op.cit., 1940, p.152 e 266-274. Nos Anexos VI, a relação nominal de profissionais
liberais cachoeirenses em 1940.
13
MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. op.cit., p.119-121
Figura 79 – Edifício do Banco Agrícola Mercantil.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
188
189
à utilização dos potenciais hídricos, ao mesmo tempo que não apoiava os
municípios, maiores operadores públicos na época, não tinha nenhum
tipo de plano de investimentos no setor e chegava a obstruir, mediante a
negação de incentivos, projetos para construção de centrais hidrelétricas
pela iniciativa privada nacional.
14
Em Cachoeira, foi construída às margens
do rio, no final dos anos 30, a Usina Nova na Chácara Carvalho. Devido ao
racionamento imposto pela escassez de óleo diesel durante a guerra, ela
utilizava motor a gás e lenha como combustível.
15
Na telefonia, a precariedade foi semelhante. O sistema não mudou
praticamente nada desde os primeiros telefones instalados na primeira
década do século. Em 1938, o Jornal do Povo anunciava a assinatura de
contrato entre a concessionária e a municipalidade para instalação de
serviço telefônico automático. Mesmo com a pretensão, as críticas foram
ferrenhas, chegando a afirmar-se que a utilização de telefone em
Cachoeira era só em casos extremos: “Só se lança mão dele quando não
há, mesmo, outro jeito. Está se tornando parecido com aquelas bombas
de incêndio colocadas nos grandes prédios e de que só se lança mão em
caso de fogo”.
16
Apesar disso, acreditava-se que, em 1940, a Companhia
Telefônica Riograndense em muito contribuía para o “crescente
desenvolvimento do progresso do município”. Neste ano, a cidade possuía
340 telefones instalados, entre sede e distritos. A linha ligando Cachoeira
a Restinga Seca era de cobre tipo standard; entre Cachoeira e Caçapava
e São Sepé as linhas eram ligadas em circuito duplo.
17
As maiores preocupações não estavam na necessidade de maior força
motriz ou na precariedade dos serviços telefônicos, mas na melhoria das
precárias redes de tráfego rodoviário, ferroviário e fluvial. Em termos
de rodovias, a quase totalidade das estradas em solo cachoeirense eram
de terra. A construção e conservação de estradas ligando a sede aos
distritos do interior ou a municípios circunvizinhos, incluindo aí pontilhões,
bueiros e muros de arrimo, foram preocupação presente em várias
administrações. Freqüentemente, o Jornal do Povo publicava a coluna
Noticias do interior do município, trazendo principalmente o estado das
estradas, que tornavam-se intransitáveis após o período de chuvas. O
transporte de passageiros e cargas pelo interior era verdadeira
“aventura”.
18
As obras de conservação limitavam-se aos meses mais
quentes e secos.
O item “Estradas, pontes e pontilhões” ocupa boa parte do Relatório da
Intendência de 1930. O consenso da edilidade era de que melhorias nas
estradas, ligando a sede aos distritos, trariam aumento da riqueza
municipal, visto que seria possível escoar a produção da zona de
colonização alemã e italiana. Para tanto, foi adquirida a máquina
niveladora Adams-Caterpillar. Somado aos serviços de mão-de-obra, a
intendência gastou um total de 28:727$152 réis, sendo 6.616$750 réis
com a conservação das estradas, 4.457$500 réis com despesas
alfandegárias da máquina niveladora, 3.169$902 réis com materiais e
14:483$000 réis com seis meses de conservação da estrada Cachoeira-
Jacuí, visto que no segundo semestre a conservação desta estrada passou
para responsabilidade do governo estadual. Desta forma, o gasto total,
entre mão-de-obra e outras despesas, foi de 131:027$152 réis. No ano de
1929, para o 4
o
, 5
o
, 6
o
, 7
o
e 8
o
distritos, foram contratados 3.410
funcionários, por seis dias semanais, com gastos salariais na ordem de
102:300$000 réis, conforme tabela a seguir:
19
14
AXT, Gunter. A formação da empresa pública no setor elétrico gaúcho. In: Revista
Anos 90. Revista do PPG em História. Porto Alegre/RS: UFRGS, n.4, dezembro de
1995, p.77-86
15
JP, 25/12/1932 Noticiário. Pagamento efetuado pela Prefeitura, p.3. Ver ainda CORRÊA,
Maria Letícia. O setor de energia elétrica e a constituição do Estado no Brasil: o
Conselho Nacional de Águas e Energia Elétrica (1939-1954). Tese de Doutorado
[orientadora Sônia Regina de Mendonça], Rio de Janeiro: Universidade Federal
Fluminense, PPG-História, 2003 [disponível em http://servicos.capes.gov.br/capesdw
/resumo.html?idtese=200334631003010005P6 – acessado em 25/3/2005]. Neste
trabalho a autora analisou as diferentes alternativas para a promoção do
desenvolvimento do setor de energia elétrica, face à etapa da industrialização
brasileira daquele momento, como parte de uma discussão mais ampla acerca dos
rumos e da consolidação do capitalismo no Brasil.
16
JP, 8/9/1938 Noticiário. Telefones automáticos para a nossa cidade, p.3 e 12/3/1939
A companhia telefônica em Cachoeira do Sul, p.4
17
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
op.cit., 1940, p.126
18
JP, 30/6/1929 Noticias do interior do município. As estradas do inverno, p.6 e 15/12/
1932 Noticiário. A Ponte sobre o arroio Nicolau, p.5
19
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. Cachoeira: Officinas graphicas d’O
Commercio, 1930, p.27-38
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
190
191
Tabela 2 – Gastos com melhorias nas estradas do interior, em 1929. Fonte: Relatório
apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa, em sessão
ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.27-38
Os trabalhos eram organizados por capatazes e fiscalizados pelos sub-
intendentes de cada distrito, além do engenheiro da seção de obras. A
mão-de-obra utilizada na conservação das estradas das chamadas zonas
agrícolas era composta, em sua maioria, pelos próprios moradores das
localidades. A fórmula utilizada permitia que o contribuinte optasse em
pagar o valor estabelecido ou trabalhasse no serviço durante seis dias.
O preço cobrado inicialmente pela municipalidade era de 30$000 réis
por propriedade, independente do seu tamanho. Isso gerava distorção
de pagamento entre grandes e pequenas propriedades. Em 1929, a
intendência tentou modificar esse desequilíbrio. Nas zonas coloniais,
aumentou o valor para 42$000 réis e limitou o pagamento em trabalho
para quatro dias. A diferença, 14$000 réis, deveria ser paga em dinheiro,
para cobrir gastos nas estradas principais, nas pontes, bueiros e
pontilhões. Para os chamados distritos pastoris, a contribuição aumentou
para 100$000 réis para estâncias com mais de duas quadras de sesmarias.
20
Pelo cálculo, um estancieiro que possuísse 50 quadras pagava 100$000,
enquanto 25 contribuintes que possuíssem até duas quadras de sesmarias
cada um, pagariam um total de 250$000. A alteração gerou poucas
modificações em termos de arrecadação, visto que as propriedades nesses
distritos tinham poucas sub-divisões, redundando em prejuízos para a
municipalidade que se via obrigada a gastar mais com o melhoramento
das estradas onde predominavam as grandes propriedades, diferente das
propriedades coloniais, onde o predomínio era de pequenas propriedades
que, conseqüentemente, arrecadavam mais contribuições. Conforme o
demonstrativo da receita, foram arrecadados 122:772$000 réis na rubrica
“conservação de estradas”, um prejuízo de 8:255$152 réis no ano de
1929. Nos seis meses seguintes, de 1
o
de janeiro a 30 de agosto de 1930,
a receita aumentou para 145:023$000 réis e as despesas para 165:943$867
réis, gerando prejuízo de 20:920$867 réis.
A maior parte dos pontilhões, pequenas pontes com vãos menores a uma
dezena de metros, era construído em madeira de lei com parte em
alvenaria, normalmente a sustentação. O custo desse tipo de obra era
relativamente baixo, quando comparado a pontes maiores que exigiam
melhores estruturas. Para exemplificar, a reconstrução de sete pontilhões
na estrada de Restinga a Dona Francisca (4
o
distrito) consumiu 5:093$800
réis, ou 727$685 réis para cada uma delas; um pontilhão de quatro metros,
na localidade de Várzea do Meio (2
o
distrito), custou 1:500$000 réis,
semelhante a de outro pontilhão construído na estrada do Vale Vêneto,
sobre o Arroio Só (5
o
distrito). Já as pontes maiores custavam bem mais.
A ponte metálica construída em Faxinal do Soturno (5
o
distrito) consumiu
553:087$102 réis; a reconstrução da ponte do Piquiri (2
o
distrito),
18:800$000 réis.
Em vista dos valores elevados para construção de pontes, muitos passos
eram transpostos por barcas rebocadas por lanchas a vapor, gasolina ou
ainda por meio de cabos de aço, denominados “vai-vem”. Os serviços
eram arrendados a terceiros. Os passos de maior movimento de Cachoeira
eram o do Porto da cidade, Seringa e São Lourenço, todos no rio Jacuí.
Conforme explicações do relatório, os passos sem obrigação de pagamento
se davam por conta do pouco movimento. A tabela seguir enumera os
passos existentes, os respectivos arrendatários e o valor do arrendamento
anual:
20
Sesmaria é, originariamente, o lote de terra inculto ou abandonado, que os reis de
Portugal cediam a sesmeiros que se dispusessem a cultivá-lo. No Brasil, essa antiga
medida agrária é ainda hoje usada no Rio Grande do Sul, para áreas de campo de
criação. Uma légua de sesmaria de campo tem 3.000 braças, ou 6.600 metros.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
192
193
Tabela 3 – Passos, arrendatários e valor do arrendado anualmente, em
1929. Fonte: Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo
intendente José Carlos Barbosa, em sessão ordinária de 20 de setembro
de 1930. op.cit, 1930
O Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José
Carlos Barbosa, de setembro de 1930, é farto nas fotografias das estradas
do interior, principalmente com as pontes de madeira, decerto por serem
elas o item mais custoso na ligação das vias. Também destacam-se os
passos.
Figuras 83 e 84
Ponte sobre o Arroio da Divisa.
Ponte sobre o arroio Prochnow,
em 1930.
Fonte: Relatório apresentado ao
Conselho Municipal pelo
intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de
setembro de 1930. op.cit., 1930
21
JP, 1/5/1930 Discurso na inauguração de ponte, p.2
Figuras 81 e 82
Ponte sobre o Trombudo.
Passo do Cerro Chato, em 1930.
Fonte: Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos
Barbosa, em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930
A inauguração de obras no interior do município rendia eventos festivos,
com discurso de políticos e autoridades locais.
21
Isso explica em parte a
utilização de materiais com vida útil menor, opção que perdurou por
décadas. Nas duas fotografias a seguir é possível ver a festividade que
englobava uma inauguração.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
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195
Figuras 85 e 86 – Aspectos da inauguração das pontes do Sítio e do arroio dos Dottos, em
Vale Vêneto, em 1930. Fonte: Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo
intendente José Carlos Barbosa, em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit.,
1930
Quase dez anos depois, nos relatórios de 1938 e 1939, aparecem gastos
com serviço de remoção de terra, abertura de valetas e abaulamento do
leito das estradas, além dos reparos e construções de pontes, bueiros e
pontilhões. Mesmo com a aquisição da escavadora Gradebuilder para
remover terra e dois caminhões Chevrolet para o serviço de
encascalhamento e transporte de pessoal, foram gastos em obras, no
exercício de 1939, em torno de um quinto das despesas totais do
município, perfazendo 675:348$100 réis, nos aproximadamente 600
quilômetros de estradas existentes no interior cachoeirense, algo que se
justificava porque proporcionava circulação das riquezas entre as colônias
e a sede. Ao mesmo tempo, permitia a vinda cada vez maior dos
subalternos que literalmente invadiriam a Princesa do Jacuí a partir nos
anos 30.
22
A situação das rodovias cachoeirenses não diferia das demais do Estado.
Desde 1938, o Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem (DAER)
tinha como missão executar o Plano Rodoviário Estadual, que, até 1943
absorveu 22% das receitas tributárias do Rio Grande do Sul, colocando o
Estado na segunda posição do sistema de estradas no Brasil. Até então,
as estradas de rodagens gaúchas eram verdadeiramente “antigos caminhos
para carroças e cavalos, que, muito precariamente, eram usados por
caminhões”. Nesta época, o Rio Grande do Sul possuía 4.760 km de
estradas, dos quais apenas 193 km eram de “trânsito garantido”.
23
Reflexo desse contexto era a distância horária média para viajar. Entre a
sede de Cachoeira a outros municípios levava-se: 8 h 30 min para Porto
Alegre; 5 h 30 min para Júlio de Castilhos; 7 h para Encruzilhada; 14 h
para Passo Fundo; 8 h para Cruz Alta; 2 h 30 min para Candelária; 2 h 50
min para Rio Pardo; 7 h para Soledade; 3 h 30 min para Caçapava; 12 h
para Pelotas; 3 h 30 min para Santa Maria; 3 h para Santa Cruz; 3 h para
São Sepé e 12 h para Bagé.
24
22
Ver Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, D.D.
Interventor Federal, pelo Prefeito Municipal de Cachoeira, Sr. Reinaldo Roesch, e
correspondente à sua administração durante o exercício de 1938. Prefeitura Municipal
de Cachoeira/RS: Impresso nas oficinas gráficas do Jornal do Povo, 1939, p.11-13 e
Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939,
apresentado pelo Snr. Cyro da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de
prefeito. op.cit., 1940, p.87-89
23
MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. op.cit., 1998, p.160
24
PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.114
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
196
197
A necessidade de rodovias contrapunha-se pela precariedade das estradas
de ferro, construídas no Rio Grande do Sul no final do século XIX, e pelo
valor superior no frete via trem com relação ao transporte fluvial. Mesmo
com a depreciação das ferrovias e a falta de aprimoramento tecnológico,
como a substituição das “Marias-Fumaça” por novas locomotivas a vapor
ou diesel-elétricas, o transporte ferroviário era bastante utilizado. O
movimento da estação de Cachoeira, em 1940, foi de 2.837:705$800
réis, valor superior aos 2.182:250$000 réis arrecadados em impostos e
taxas municipais no mesmo ano. Além dela, existiam as estações de
Ferreira, Estiva e Restinga Seca, esta última já próximo da zona de
colonização alemã. Passavam diariamente e diuturnamente trens por
Cachoeira, de Porto Alegre em direção a Santa Maria e vice-versa, nos
horários das 2 h 47 min, 9 h 57 min, 13 h 17 min, 14 h 3 min e 23 h 22.
25
Embora existindo linhas férreas, os rizicultores sonharam, durante várias
décadas, com a plena navegação do rio Jacuí e com um porto moderno
que escoasse sua produção. Por seu perfil essencialmente agrícola, tais
anseios cachoeirenses eram postos como sendo de toda comunidade.
Reduzir o valor das tarifas da estrada de ferro aos preços dos fretes da
navegação fluvial era “velha aspiração do comércio e da indústria
cachoeirense”, um “dos mais palpitantes problemas” locais, como definiu
o Jornal do Povo, ao noticiar a resolução de tais dificuldades em abril de
1933.
26
Além da discrepância entre os valor tarifários do transporte ferroviário e
fluvial e a época das vazante, quando o rio apresentava seu menor volume
de água e ocasionava a paralisação de grande parte do escoamento da
produção rizícola local, os produtores tinham de lutar contra medidas
que julgavam infundadas, como o monopólio na navegação fluvial do
Jacuí, instituído em 1934 pelo Sindicato de Navegação Fluvial de Porto
Alegre, assim noticiada: “Essa associação de classe ao invés de vir em
auxílio de todos e principalmente dos mais fracos, fim e objetivo de
todas as instituições dessa natureza, veio dar um golpe de morte, nestes
últimos, pois conseguiu do Governo do Estado o privilégio da navegação
fluvial no Rio Grande”. Para o JP, o sindicato havia imposto cláusulas
“verdadeiramente proibitivas” em seus estatutos, impedindo a inscrição
dos pequenos barcos, que ficaram impossibilitados de navegar. No auge
da crise, 58 barcos ficaram amarrados no porto de Cachoeira. Para
combater os privilégios exclusivos dos porto-alegrenses, formou-se a
Sociedade Cooperativa Cachoeirense de Navegação Fluvial.
27
Em 1940,
operavam no rio Jacuí as companhias de navegação Becker, Mallmann,
Cachoeira, Soberba e Moderna.
28
Dois instantâneos registram os extremos a que se sujeitava quem dependia
da navegação fluvial. O assoreamento do rio, já nos anos 10, contrapunha-
se às enchentes periódicas, como a de maio de 1941, a mais intensa
delas.
25
PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.124, PORTELA,
Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit.,
1940, p.152-154
26
JP, 23/4/1933 Noticiário. Solucionado um problema de vital interesse para a indústria
arrozeira deste município, p.3
27
JP, 25/3/1934 Uma grave crise no seio da Navegação fluvial cachoeirense, p.4, 29/3/
1934 Sem solução ainda, a crise que atravessa a Navegação fluvial Cachoeirense, p.3
e 12/4/1934 S. Cooperativa Cachoeirense de Navegação Fluvial, p.2
28
PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.113-114 e 124
Figura 87 – Assoreamento do rio Jacuí, nos anos 10
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
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199
Figura 88 – Porto, quando da enchente de maio de 1941
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
O contexto de urbanização e industrialização brasileiros, visto a partir
dos anos 30, desencadeou condições propícias para que o Brasil
abandonasse seu perfil essencialmente agrícola. Todavia, na consolidação
do processo industrial, o setor agrícola continuou recebendo incentivos
e proteções governamentais, transformando a economia brasileira em
agrário-industrial.
29
Em Cachoeira, o arroz sempre constituíra a principal cultura do município,
representando metade do valor da produção geral de todos os cereais
durante o período e tendo grande peso posteriormente. As variedades
predominantes na lavoura arrozeira eram Carolina, Agulha e Japonês.
Em 1931, o Blue Rose substituiu o Agulha, por ter melhor preço, maior
rendimento e pequena quebra; sua desvantagem era o plantio tardio e a
exigência de maior fertilidade da terra. A baixa na produção em 1931
deu-se pela maior quantidade de grãos quebrados. A produção foi de 5,3
inteiros para cada 1 quebrado, no início dos anos 20, para 1,5 grão inteiro
para 1 quebrado, dez anos depois. Outra queda foi verificada em 1935;
de 48,6 mil toneladas para 30,5 mil (37,2%). A razão foi a praga do arroz
vermelho. Em estudo realizado naquele ano, o engenheiro agrícola
Bonifácio Bernardes previu “futuro pouco promissor” para a lavoura
arrozeira, devido a falta de amparo técnico oficial, com estações
experimentais de arroz, “verdadeiros” técnicos para fazer aclimação e
estudo, para que o agricultor tivesse sementes puras e selecionadas,
além de ensino de técnicas adequadas.
30
O gráfico a seguir mostra a evolução da produção nacional do arroz em
casca, entre 1920 e 1940, em mil toneladas:
29
BENETTI, Viviana. A corrente desenvolvimentista e o projeto político no Rio Grande
do Sul: 1950/1962. op.cit., 2002
30
Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941,
p.18-39. O arroz vermelho trazia prejuízos e tornava as terras impróprias para a
cultura do arroz; ocorria por conta das sementes de baixa qualidade. A porcentagem
do arroz vermelho era de no máximo 2 a 3 %; acima disso o produto deixava de ser
considerado como semente. O arroz deste tipo amadurecia mais rápido. Uma semente
produzia touceira de 20 a 30 hastes, cada haste uma espiga de 130 grãos em média.
O amadurecimento se dá da ponta pa o pé da espiga. A debulha dos grãos se dava com
a menor agitação e à medida que amadurecia. Quando o pé da espiga estivesse maduro,
metade dos grãos caíam na lavoura, na colheita e no transporte. O restante era
debulhado. Os que caíam germinavam na safra seguinte. Mais rústico e mais precoce
e menos exigentes de fertilidade e água, matavam os pés das variedades cultivadas
ao seu lado. Em três anos, a terra tinha de ser abandonada.
Gráfico 2 – Quantidade da produção nacional de arroz em casca 1920-1940. Fonte:
Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de 1950 a
1988. 2. ed. rev. e atual. do v. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de Janeiro,
IBGE, 1990
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
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201
Em decorrência da crise mundial de 1929, muitos rizicultores passaram a
exigir intervenção imediata e pronta do Estado, atuando diretamente no
financiamento da produção. Eles reivindicavam um instituto que
defendesse os interesses da lavoura arrozeira. Isto porque os altos e
baixos típicos da monocultura provocavam instabilidade no mercado,
necessitando de “assistência benévola do poder público”, nas palavras
do próprio editorial do Jornal do Povo, em mensagem ao Ministro da
Agricultura, Assis Brasil.
31
A União Central de Rizicultores, associação
que poderia unir os interesses a ponto de tornar os rizicultores mais
fortes para pleitear subsídios ou crédito agrícola para o principal ramo
cachoeirense, só foi fundada no final da década, em 1939, quando da
deflagração da guerra na Europa, coincidentemente quando a produção
local apresentou seus primeiros sinais de queda acentuada.
Foi a associação quem abraçou a idéia de promover a Festa do Arroz. A
primeira vez em que cogitou-se fazer a exposição para aproximar
exportadores e plantadores foi em 1933. Isto porque, além das questões
de promoção do nacionalismo, a alta do preço do arroz em 1931-32
animara os negócios. As transações efetuadas alcançavam somas há muito
não vistas. Havia semanas em que eram negociados 45 mil sacos do produto
descascado. Partindo da idéia que outras regiões gaúchas tinham suas
feiras para comemorar o término da safra, como Caxias do Sul com a
uva, a festa para o arroz tornava-se ótima oportunidade para propagar a
“principal fonte de riqueza e de vida” cachoeirense.
32
O poeta Lisboa
Estrazulas questionou: “E não traria grandes vantagens para todos os
outros ramos de negócio, estagnados, a afluência anual de forasteiros à
pérola do Jacuí?”
33
Combatida a praga do arroz vermelho e substituída a variedade na metade
final da década de 30, a produção cachoeirense voltou a crescer. Em
1938, a produção mundial foi estimada em 91,4 milhões de toneladas. O
Brasil ocupava a nona posição, com 1,53 milhão de toneladas. São Paulo
liderava com 516 mil, seguido do Rio Grande do Sul com 270 mil e Minas
Gerais com 258 mil. Neste contexto, a produção do município de Cachoeira
foi de 68 mil toneladas, um quarto (25%) da gaúcha. Das exportações de
arroz no Estado, no ano de 1939, 70% era do tipo Japonês (0$057 réis o
quilo) e 28% do Blue Rose (0$070 réis o quilo). O restante era das
variedades Agulha, Cangica, Pardo e Quirela. A estimativa, no final dos
anos 30, era de que 25 mil pessoas trabalhavam nas lavouras de arroz
cachoeirenses, sendo 15 mil efetivos. Um número considerável frente
aos 83 mil habitantes do município, 20 mil na zona urbana e 63 mil nas
zonas agrícolas. A capacidade de beneficiamento (descasque) dos
engenhos cachoeirenses era de 9 mil sacos, em torno de 450 toneladas,
em 24 horas, o que exigiria aproximadamente 157 dias ininterruptos para
processar a produção total, razão pela qual exportava-se parte da colheita
rizícola in natura, com perda de valor agregado (26$000 réis por tonelada
em relação ao Blue Rose). O valor do frete entre Cachoeira e Porto Alegre
era 1$700 réis o saco, via ferrovia, e entre 1$000 a 1$400 réis via fluvial.
Até a capital federal, Rio de Janeiro, o valor do frete, taxas e impostos
elevava a saca de arroz em quase 50%, descontentando muitos
produtores.
34
Com a intensificação do conflito bélico europeu, o preço dos produtos
agropecuários brasileiros tiveram relativa estabilização. No início dos
anos 40, a valorização da produção praticamente esgotou os excedentes
gaúchos. O arroz teve forte incremento nos volumes produzidos, passando
de 222,4 mil toneladas em 1937 para 392,7 mil toneladas em 1942 e
628,2 mil toneladas em 1946.
35
Foi na conjuntura da deflagração da guerra que Cachoeira do Sul organizou
sua primeira Festa do Arroz. O evento ocorreu entre os dias 9 e 16 de
março de 1941. Um ano antes havia ocorrido o I Congresso dos Rizicultores
do Rio Grande do Sul, evento organizado pela União Central dos
Rizicultores, entidade representativa dos lavoureiros. Dentre as
31
JP, 8/6/1930 Editorial. A lavoura de arroz, p.1, 1/1/1931 Mensagem ao dr. Assis Brasil
(ministro da agricultura), p.1 e 9/4/1931 A situação da lavoura do arroz, p.2
32
JP, 5/7/1931 Editorial. A realidade cachoeirense, p.1, 17/9/1931 Noticiário. A alta do
preço do arroz, p.3 e 4/9/1932 Noticiário. O Mercado de arroz, p.2
33
JP, 19/3/1933 A festa do arroz. Lisboa Estrazulas, p.2
34
Dados extraídos de PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941,
p.18-39. Segundo MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul.
op.cit., 1998, p.115, a economia rizícola passou por um novo ciclo de expansão iniciado
em 1933, com o valor dos embarques dobrando entre 1935-36. Ao mesmo tempo, o
charque apresentava queda no valor. Em Cachoeira do Sul, o estabelecimento
Charqueada do Paredão fechou no início dos anos 30.
35
Dados extraídos do Departamento Estadual de Estatística, conforme Relatório da
Diretoria do Banco do Rio Grande do Sul, correspondentes aos anos de 1938-47, apud
MÜLLER, Carlos Alves. A história econômica do Rio Grande do Sul. op.cit., 1998,
p.132
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
202
203
solicitações ao poder público (federal, estadual e municipal), destacaram-
se: fixação do preço mínimo para assegurar ao produtor lucro razoável;
aquisição por preço compensador do estoque de arroz; exclusão do arroz
no tabelamento oficial; fornecimento de crédito agrícola, redução dos
juros, dilatação dos prazos de pagamento e facilitação de empréstimos;
isenção de taxas e impostos; redução do preço dos fretes; assistência
técnica; entre outras. Nas sugestões de interesse geral dos rizicultores,
destacava-se a mecanização progressiva da lavoura. Naquele ano, a safra
teve produtividade média de 2,9 mil quilos por hectare, numa área
plantada em torno de 22 mil hectares.
36
Os festejos da I Festa do Arroz tiveram início com a programação oficial
acertada entre o interventor federal, Cel. Cordeiro de Farias, e o prefeito
municipal, Cyro da Cunha Carlos. O Jornal do Povo anunciou que “o
Interventor Oficial atendendo ao apelo que lhe dirigiu o Prefeito, em
nome da Comissão Central, permanecerá em Cachoeira durante o período
de festas, participando, pessoalmente, de todas as cerimônias”.
37
Deixando transparecer o caráter elitista da festa, o jornal dirigiu
“veemente apelo” para que as senhoritas comparecessem em trajes
camponeses. Algo notório para uma sociedade urbana que procurava
afastar-se, nos demais dias do ano, do estereótipo rural. Através da
máscara campestre, a elite justificaria seu interesse e participação no
evento.
38
Lia-se na reportagem que “a ostentação de trajes típicos do
campo daria ao ambiente da festa uma nota bizarra e interessante, numa
reunião em que se procura realçar a glória da lavoura”.
39
Na onda nacionalista que assolava a Europa e se refletia no Brasil, apelou-
se para que a comunidade em geral hasteasse em frente às residências e
estabelecimentos comerciais a bandeira nacional e que iluminasse e
ornamentasse as fachadas, principalmente na Sete de Setembro e Júlio
de Castilhos, as duas principais ruas da cidade por onde passaria o cortejo.
Desfilaram carros alegóricos das empresas Alaggio & Cia e Mernack &
Cia, assim como da Associação do Comércio e Indústria de Cachoeira e
do Club União Familiar, ambos confeccionadas pelos cenógrafos porto-
alegrenses Américo Azevedo e Luiz Borba e não por agricultores, a quem,
afinal, o evento dizia representar.
40
O JP considerou vitoriosa a realização
da festa, imputando elogiosamente a iniciativa ao grupo de cachoeirenses
“empreendedores” e “dinâmicos”. Esta atitude procurava mostrar falsa
unanimidade entre população e poderes públicos.
41
O articulista do jornal, Braz Camilo, ironizou a questão de forma simples:
“Come-se arroz, bebe-se arroz, dorme-se arroz, compra-se arroz, vende-
se arroz, enfim, só dá arroz na caixa. Para que não digam que eu não sou
patriota, já decretei lá em casa, seis dias de arroz. Quer isto dizer que
de hoje ao próximo sábado, nenhum outro alimento grosseiro maculará o
lustre alvinitante das brunidas panelas que ornam a minha farta
cozinha”.
42
A festa era o principal assunto da cidade que a imprensa,
obviamente, explorava.
Na programação oficial constaram: partida de futebol entre Brasil de
Cachoeira versus Internacional de Santa Maria e entre os porto-alegrenses
Internacional versus Rio Branco, retretas, concurso de vitrines, espetáculo
de teatro, recepção solene para o interventor federal no Estado,
inauguração de monólito comemorativo, missa e cerimônias religiosas,
homenagens diversas, discursos, brindes, distribuição de medalhas,
coroação das eleitas, bailes para convidados de honra nos clubes Comercial
e Concórdia, congresso rizícola, circuito automobilístico, visitas oficiais
e desfile de carros.
43
A visão elitista também impregnou o concurso da escolha da rainha da I
Festa do Arroz. A coroação de Luci Ribeiro, com as princesas Emérita
Carvalho Bernardes, Ruth Neves de Oliveira e Leda Duarte, todas elas
filhas da elite cachoeirense, foi registrada em fotografia, assim como a
parada militar evocando o nacionalismo do momento. Era possível ver
nas faixas slogans que exaltavam a nação, como palavras do tipo
36
Resumo das conclusões aprovadas pelo Congresso dos Rizicultores do Rio Grande do
Sul, realizado na cidade de Cachoeira do Sul, em 7 e 8 de março de 1940. In: PIMENTEL,
Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.41-44
37
JP, 9/3/1941 Festa do Arroz, p.6
38
Ver CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa:
Difel, 1990
39
JP, 13/3/1941 Festa do Arroz do Rio Grande do Sul. Festa campestre. Apelo às senhoritas
cachoeirenses, p.4
40
JP, 9/3/1941 Noticiário. Visitas, p.5
41
JP, 16/3/1941 Festa do Arroz, p.1
42
JP, 9/3/1941 Braz Camilo, p.1 e 16/3/1941 Braz Camilo, p.1
43
PIMENTEL, Fortunato. Aspectos Gerais de Cachoeira. op.cit., 1941, p.49-52, e SCHUH,
Ângela. CARLOS, Ione Sanmartim. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit.,
1991, p.189-200
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
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205
“grandeza” e “nobreza” para se referir ao acontecimento. Apesar do propagado sucesso, a segunda edição sairia somente 28 anos
depois, em 1968. Neste meio tempo, foi realizada uma das edições da
Festa do Trigo em Cachoeira, em 1956. Parte do motivo desse longo
intervalo foi imputado ao fato dos festejos terem dado vazão a impulsos
de desperdício de arroz por todos participantes, como jogar grãos uns
nos outros e depois pisotear. A grande enchente que atingiu o Estado,
poucos meses após a realização da festa, teria provocado no imaginário
popular a idéia de castigo divino, razão pela qual não se promoveu festejos
antes de fins dos anos 60. Em momento posterior, essa idéia de força
divina castigando a cidade serviu para justificar o menor crescimento
econômico em relação a outros centros.
O fim dos conflitos na Europa delineou novo perfil de divisão regional do
trabalho no Brasil, concentrando no entorno das capitais estaduais a
maioria das indústrias e, conseqüentemente, atraindo mão-de-obra dos
municípios do interior, essencialmente agrícolas. Isoladas no centro do
Estado, as indústrias cachoeirenses não conseguiriam alavancar seu
próprio desenvolvimento por causas endógenas, como as sistemáticas
crises na lavoura do arroz, e exógenas, como a precariedade em termos
de infra-estrutura cujos investimentos essenciais foram monopolizados
pelas áreas metropolitanas.
Esses investimentos públicos em obras de infra-estrutura, como as estradas
de rodagem e os serviços de fornecimento de energia e de telefonia,
foram realizados prioritariamente nas regiões metropolitanas, no Rio
Grande do Sul foi em Porto Alegre e Caxias do Sul, em detrimento aos
municípios do interior do Estado, agravando o quadro de concentração
de mão-de-obra e industrialização. Conseqüentemente, a economia
cachoeirense acabou limitada em seu perfil agrícola original, calcada
principalmente na lavoura rizícola, cultura que apresentaria sinais de
queda já na década de 50.
Segundo Cláudio Accurso, a estagnação ocorreu devido ao esgotamento
da base física, com mais de três quartos da área total ocupada por
estabelecimentos rurais. Contribuiu para esse quadro o aumento dos
custos de produção a taxas superiores aos do aumento da produtividade.
No caso do arroz, a irrigação artificial e a necessidade de adubação face
ao desgaste das terras foram os responsáveis pelo maior custo sem melhor
produtividade na mesma proporção, implicando a longo prazo numa
inviabilidade econômica. Além disso, o valor dos equipamentos agrícolas
Figuras 89 e 90 – Avani Cordeiro de Farias, esposa do Interventor, coroando a rainha da
I Festa do Arroz, Luci Ribeiro, e desfile em 1941. Fonte: Museu Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
206
207
necessários à mecanização da lavoura arrozeira não acompanhou o valor
da saca de arroz. Para agravar, a política de crédito agrícola subsidiado
para as lavouras de exportação ou substitutivas de importações no início
dos anos 50, como a de arroz e trigo, não foi suficiente para bancar o
aumento dos custo de produção e a diminuição de produtividade nas
décadas seguintes. Esta teria sido a razão fundamental do agravamento
do quadro da lavoura de arroz no Estado.
44
A criação do Instituto Rio-Grandense do Arroz (IRGA), órgão regulador da
produção no Estado, é fruto deste contexto. Seu surgimento deu-se a
partir do Sindicato Arrozeiro, representante dos produtores. Constituído
por força da Lei Estadual n.533, de 31/12/1948, tinha como objetivo
desenvolver atividades ligadas ao arroz, desde a seleção e o preparo das
sementes até estudos em laboratório que determinassem o grau de
fertilidade da terra, a qualidade da água, a identificação de pragas que
atacavam a gramínea, a correção do solo, a fim de proporcionar maior
rendimento e qualidade na produção.
45
O município de Cachoeira do Sul sentiu os reflexos da mudança de perfil
econômico quando a mecanização do campo entrou em ritmo frenético,
expulsando do campo grande parte do contingente populacional,
trabalhadores considerados desqualificados para as exigências das
cidades. Parte dos migrantes engrossaria as fileiras da marcha rumo à
ocupação do interior do Brasil, em curso desde fim dos anos 20, famílias
que partiam em busca de novas áreas plantáveis, como Uruguaiana, oeste
catarinense e paranaense, até ocuparem o centro-oeste e parte do norte
brasileiros.
46
Outra parte dos migrantes seriam inicialmente atraídos pelas
ofertas de emprego nas indústrias locais. Quando também elas passaram
a não comportar a mão-de-obra, o fluxo migratório direcionou-se para
zonas metropolitanas, como Porto Alegre e cidades circunvizinhas. O
quadro agravou-se no momento em que as indústrias locais diminuíram
seu ritmo produtivo, muitas cessando por completo suas atividades, face
à concorrência das indústrias localizadas nas áreas metropolitanas, que
podiam produzir com menores custos devido ao acesso à infra-estrutura,
como rodovias, energia elétrica e telecomunicação.
44
ACCURSO, Cláudio [et al]. Análise do insuficiente desenvolvimento econômico do Rio
Grande do Sul. In: Boletim da Comissão de Desenvolvimento Econômico, n.16, Porto
Alegre: Assembléia Legislativa, 1965, p.31-89 apud MÜLLER, Carlos Alves. A história
econômica do Rio Grande do Sul. op.cit, 1998, p.171-175
45
Fonte: ABREU, José Pacheco de. Guia Geral do Município de Cachoeira do Sul. op.cit.,
1963, p.55-64
46
Sobre essas migrações, ver, por exemplo, DIAS, Hugo Pina. Imigração rural no município
de Uruguaiana a partir da modernização da agricultura - caso das vilas de São Marcos
e Barragem Sanchuri. In: Revista Faculdade de Zootecnia, Veterinária e Agronomia
de Uruguaiana, v. 4, n. 1, p. 27-33, jan./dez. 1997 [disponível em http://
revistas.campus2. br/fzva/vol%204/05-4.pdf - acessado em 16/1/2006], GAZOLLA,
Marcio. Agricultura familiar, segurança alimentar e políticas públicas: Uma análise a
partir da produção para autoconsumo no território do Alto Uruguai/RS. Dissertação
de mestrado [orientador Sergio Schneider]. Porto Alegre/RS: PPG Desenvolvimento
Rural, Faculdade de Ciências Econômicas, UFRGS, 2004 [disponível em http://
www.ufrgs.br/pgdr/dissertacoes/mestr adopgdr/mpgdr_gazolla_n045.pdf - acessado
em 16/1/2006] e BAVARESCO, Paulo Ricardo. Ciclos econômicos regionais.
Modernização e empobrecimento no Extremo Oeste catarinense. Chapecó/SC: Argos,
2005
Figura 91 – Mecanização da lavoura de arroz de João Anceto de Moraes, em 1955.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
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A economia e a chegada dos novos bárbaros
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Figura 92 – Mecanização da lavoura de arroz de João Anceto de Moraes, em 1955.
Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
A resposta frente à crise foram leis municipais concedendo vantagens
fiscais para incentivar indústrias novas a se estabelecerem no município,
prática comum no fim dos anos 40 e início dos 50. Por exemplo, as leis
municipais n.33, de 30/11/1948, e n.39, de 14/5/1949, concederam
isenção de emolumentos referentes à licença para construção do engenho
de arroz de propriedade de Frederico Carlos Fritz e do prédio da Fundição
Barros Ltda., que também foi isentada de imposto predial durante dois
anos e do imposto de Indústrias e Profissões e de Licença, através das
leis municipais n.42, de 17/5/1949, e n.204, de 28/12/1951.
47
O modelo
de industrialização que acabou sobrevivendo foi o ladeado ou direcionado
para a agricultura, calcado quase exclusivamente na produção arrozeira.
De forma geral e sistemática, o período subseqüente a 30-45 foi marcado
por essa concentração espacial e industrial em torno das áreas
metropolitanas, principalmente das capitais estaduais nas mais diversas
regiões brasileiras. Convergência industrial que seria responsável pelo
aumento do fluxo migratório intra-municipais. Durante as décadas
seguintes, as migrações internas forneceram a mão-de-obra necessária
para as indústrias, num típico modelo de desenvolvimento econômico
espacialmente densificado nas metrópoles. Residualmente, tal fluxo
debilitou determinadas regiões, inviabilizando as pequenas fábricas locais,
através da penetração de produtos fabris das zonas industriais
concentradas nas capitais metropolitanas, principalmente as da região
Centro-Sul.
A economia cachoeirense acabaria intensificando o processo de migração
e urbanização já em curso, conjuntura econômica responsável pelos
grandes deslocamentos populacionais nas décadas subseqüentes,
fenômeno ocorrido não só no município mas em todo país, onde o caráter
de população rural seria substituído pelo predomínio da população urbana.
No cenário de divisão do trabalho industrial do pós-guerra, Cachoeira do
Sul assumiria definitivamente seu perfil agrícola, razão pela qual declinou
seu prestígio econômico em relação aos demais municípios industrializados
do Estado.
O deslocamento da população de cidades como Cachoeira contribuíram
para a explosão demográfica na capital e em seu entorno, como Canoas,
Cachoeirinha, Sapucaia do Sul e Novo Hamburgo, naquilo que ficaria
conhecido como Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA).
48
47
Lei Municipal n.33, de 30/11/1948, n.39, de 14/5/1949, n.42, de 17/5/1949, n.204,
de 28/12/1951. Ver ainda Lei Municipal n.206, de 28/12/1951, n.254, de 22/10/
1952, n.255, de 22/10/1952, n.770, de 13/8/1959, n.918, de 29/11/1961 e n.946, de
10/7/1962, anunciada em ABREU, José Pacheco de. Guia Geral do Município de
Cachoeira do Sul. op.cit., 1963, p.66,
48
Sobre as transformações ocorridas em Novo Hamburgo, cidade de origem germânica
próxima a Porto Alegre, ver minha dissertação de mestrado: SELBACH, Jeferson
Francisco. Novo Hamburgo 1927-1997: os espaços de sociabilidade na gangorra da
modernidade. [orientadora Sandra Jatahy Pesavento], Porto Alegre/RS: Universidade
Federal do Rio Grande do Sul/PROPUR, 1999 e adaptação: SELBACH, Jeferson Francisco.
Pegadas urbanas: Novo Hamburgo como palco do flâneur. Cachoeira do Sul/RS: Ed.
do Autor, 2006. Ver também, BATISTA, Sheille Soares de Freitas. Buscando a cidade e
construindo viveres relações entre campo e cidade. Dissertação de Mestrado
[orientadora Heloísa Helena P. Cardoso], Uberlândia/MG: Universidade Federal de
Uberlândia, PPG-História, 2003 [disponível em http://www1.capes.gov.br/teses/pt/
2003_mest_ufu _sheile_soares_de_freitas_batista.pdf – acessado em 12/10/2005],
que discutiu as tensões que se estabeleceram na vida de pessoas saídas do meio rural
para a cidade de Uberlândia, analisando as vivências, incorporações, lutas, valores e
experiências que se formulam ao longo da trajetória desses migrantes, vendo as
tramas da disputa social por pertencimento à cidade e os territórios que foram sendo
construídos pela população pobre local.
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A economia e a chegada dos novos bárbaros
210
211
3.2. Os novos bárbaros estão chegando!
Em que medida o ritmo das mudanças econômicas e populacionais, que
afetaram Cachoeira do Sul nas décadas de 30 e 40, influenciaram as
modificações do espaço urbano cachoeirense, não só suas alterações
físicas mas os discursos que as acompanharam? De que forma o Jornal do
Povo constitui-se no “espelho deformante” que narrou o urbano
cachoeirense de forma distorcida, sob a visão da elite local?
49
O núcleo urbano inicial, surgido no fim do século XVIII, não passava de
poucas quadras circunvizinhas ao templo católico e a praça do pelourinho.
No século seguinte, sua forma era praticamente idêntica; aumentara
longitudinalmente de tamanho, resultado da vinda para a cidade dos
descendentes de imigrantes alemães e italianos, muitos dos quais
instalados na zona alta da cidade ou nos bairros Rio Branco e Santo
Antônio, mas também de negros alforriados em 1888 e demais subalternos,
nas cercanias do centro, como na vila Barcelos.
A pujança agrícola advinda das regiões coloniais, em especial as lavouras
de arroz irrigado nos anos 1900-1920, possibilitou consideráveis melhorias
no espaço urbano. Entretanto, tais intervenções não foram pensadas para
o aumento populacional em curso, principalmente de subalternos
provenientes do campo. Junto com as modificações urbanas viria a
sobrecarga dos serviços e da própria infra-estrutura, resposta que o poder
público tardou em dar. No contexto da ocupação desordenada, os
subalternos pouco-a-pouco assentavam-se nas vilas, pesando cada vez
mais no orçamento municipal, incorrendo na desproporção paulatina entre
montante arrecadado e despesas com manutenções diversas, fazendo
aumentar o peso da dívida do município, rolada desde seus primeiros
amorfoseamentos, esgoelando as possibilidades da administração pública.
As reformas concretizadas em fins dos anos 20 fizeram com que Cachoeira
iniciasse a década de 30 com uma fisionomia diferente, progressista para
os padrões da época, algo como se industrialização e urbanização
completassem a interligação com os fluxos irresistíveis da modernidade.
50
Assim como em diversas cidades brasileiras, as feições renovadas na
Primeira República limitavam-se às áreas centrais, espaço
prioritariamente elitista. Sem mola propulsora interna, o progresso
materializava-se na forma simbólica dessas transformações urbanas.
51
Tais reformas lançaram as bases do urbanismo moderno “à moda” da
periferia, com obras de saneamento básico e embelezamento paisagístico,
mas com a exclusão da população subalterna desse processo, numa
verdadeira segregação territorial, o que resultaria, após os anos 30, num
rearranjo fortemente caracterizado pela desigualdade regional.
52
Ao mesmo tempo, o movimento sanitarista das primeiras décadas legou
ao período varguista estrutura administrativa com amplos poderes de
intervenção sobre a população, transformando a saúde em bem coletivo,
evidenciando os problemas da dependência mútua e ampliando o senso
de responsabilidade ou consciência social.
53
A adoção de medidas
preventivas e próprio desenvolvimento econômico seriam chaves para a
mudança no padrão epidemiológico brasileiro.
54
Em Cachoeira, as obras de saneamento e abastecimento de água da década
de 20 foram feitas somente em pouco mais de 40 quadras do centro.
Contudo, foi considerada pela imprensa local como “modelo digno de
imitar-se”, face ao aparelhamento de serviços como água, esgotos e
calçamento e a “perfeição com que foram executadas essas obras”.
55
49
Ver GINZBURG, Carlo. Relações de força: história, retórica, prova. op.cit., 2002
50
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Urbes industrializada: o modernismo e a paulicéia
como ícone da brasilidade. In: Revista Brasileira de História. v.21 n.42 São Paulo 2001
[disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882
001000300009&lng=es&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 12/10/2005]
51
MORSE, Richard M. As cidades “periféricas” como arenas culturais: Rússia, Áustria,
América Latina. In: Revista Estudos Históricos, v.8, n.16, Rio de Janeiro, 19995, p.205-
225 [disponível em http://www.cpdoc.fgv. br/revista/arq/174.pdf – acessado em 13/
1/2006]
52
MARICATO, Ermínia. Urbanismo na periferia do mundo globalizado. metrópoles
brasileiras. In: Revista São Paulo em Perspectiva. v.14 n.4 São Paulo out./dez. 2000
[disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392
000000400004&lng=en&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 12/10/2005]
53
HOCHMAN, Gilberto. Regulando os efeitos da interdependência: sobre as relações
entre saúde pública e construção do Estado (Brasil 1910-1930). op.cit., 1993, p.40-
61
54
PRATA, Pedro Reginaldo. A transição epidemiológica no Brasil. In: Cadernos de Saúde
Pública. v.8, n.2, Rio de Janeiro abr./jun, 1992 [disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X1992000200008 – acessado em 10/3/
2006]
55
JP, 18/7/1929 A Cachoeira atual, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
212
213
Apesar do saneamento, a saúde pública da área central sentia os efeitos
do processo de “ruralização” em curso, com a fixação na periferia urbana
de pessoas advindas das áreas rurais, trazendo consigo hábitos do campo
e adaptando-os para a cidade,
56
demonstrando como rural e urbano
caracterizavam-se por pólos opostos do mesmo continuum.
57
Os dados estatísticos da saúde pública, divulgados em princípios da década
de 30 no Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente
José Carlos Barbosa, apontam crescimento populacional na ordem de
1,5 mil pessoas/ano (2.008 nascimentos para 531 óbitos), para o ano de
1929 em todos os oito distritos do município. No 1
o
distrito, que abrangia
a zona central, o índice ficou em torno de 296 pessoas/ano (575
nascimentos para 279 óbitos). A diferença entre esses dois índices (48,52%
de óbitos no 1
o
distrito e 26,53% para o município em geral) são resultados
da própria situação insalubre da área urbana, visto que, dos 531 óbitos
totais, 481 ocorreram em residências, somente 50 fora de casa;
semelhante situação ocorria entre os nascidos, em sua maioria através
de parteiras que realizavam o serviço nas casas das próprias famílias.
58
Tais números, entretanto, mostram enormes melhorias em termos de
saúde pública, quando comparados aos dois primeiros decênios. Os dados
comparativos de 1919 e 1929 corroboram com esse quadro. O número de
óbitos em 1919, somente na cidade, foi de 353, contra 279 em 1929,
fazendo a mortalidade diminuir de 33,2 por mil/habitantes para 15,5. As
maiores causas mortis, em 1919, foram: tuberculose (30), entero-colite
(26) meningite (21), gastro-enterite (14), câncer (13), broncopneumonia
(13), febre tifóide (12), gripe epidêmica (11) e produzidas por causas
exteriores (11). Dez anos depois, em 1929, os cachoeirenses morreram
de: tuberculose (28), afecções produzidas por causas exteriores (20),
doenças mal definidas (17), gastro-enterite (15), sincope (11),
arteriosclerose (11), miocardite (10), meningite (10), atrepsia (10) e
pneumonia (9). O maior número de mortos em ambos não teve declaração
de causa, ocorreram sem assistência médica: 103 em 1919 e 33 em 1929.
O número de falecimentos entre crianças até 2 anos de idade também
decresceu de 158 (44,75% de 353), em 1919, para 82 (29,64% de 279).
59
Alguns anos depois, em 1937, o Boletim Demográfico Sanitário apontou
1.660 nascimentos contra 576 falecimentos, 135 destes de crianças entre
0 e 1 ano, número considerado baixo na época, mas que ainda refletia a
precária condição urbana de Cachoeira.
60
A tabela com dados extraídos do relatório apresentado ao Conselho
Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa, mostra as doenças que
acometeram os cachoeirenses:
56
De acordo com FERRAZ, Sônia Terra. Pertinência da adoção da filosofia de cidades
saudáveis no Brasil. [disponível em http://www.redeamericas.org.br/br/Site/doc/
pertinencia.html – acessado em 1/10/2004], “ruralização” significa a permanência
de hábitos rurais entre aqueles que migram para o meio urbano. Segundo ela, a
combinação de urbanização com pobreza leva a uma acumulação de problemas nas
cidades, delineando um perfil epidemiológico particular no qual as doenças próprias
do subdesenvolvimento convivem com um padrão epidemiológico de países
desenvolvidos tais como altos índices de violência, stress, câncer, consumo de drogas
e poluição ambiental.
57
COGGIOLA, Osvaldo. Buenos Aires, Cidade, Política, Cultura. In: Revista Brasileira de
História. v.17 n.34 São Paulo 1997 [disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0102-01881997000200005&lng=pt&nrm=iso –
acessado em 12/10/2005]. Ver também CAIADO, Aurílio Sérgio Costa; SANTOS, Sarah
Maria Monteiro dos. Fim da dicotomia rural-urbano? Um olhar sobre os processos
socioespaciais. In: Revista São Paulo em Perspectiva. v.17 n.3-4 São Paulo jul/dez 2003
[disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-
88392003000300012 – acessado em 12/10/2005], que discutem processos socioespaciais
em curso em municípios do Estado de São Paulo, tais como a conurbação,
metropolização e a expansão da ocupação urbana em áreas oficialmente definidas
como rurais, para mostrar a fragilidade da dicotomia urbano-rural.
58
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.17 e JP, 13/4/1930
A margem do relatório. Saúde publica, p.1. Dos 2.008 nascimentos, 214 (10,65%)
eram filhos ilegítimos.
59
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.10-13. Em 1936, as
principais causa de óbitos no Rio Grande do Sul foram: total 4.834; Tuberculose do
aparelho respiratório 19,13%; Diarréia e enterite (abaixo de 2 anos) 12,26%; Doenças
do aparelho circulatório 9,45%; Doenças do aparelho respiratório, exceto tuberculose
8,70% ;Causas não especificadas ou mal definidas 8,52%; doenças do sistema nervoso
e dos órgãos dos sentidos 5,44%; Doenças do aparelho urinário e do aparelho genital
5,13%; Doenças do aparelho digestivo 4,79%; Câncer e outros tumores malignos 4,46%;
Morte violenta ou acidental 2,42%. Fonte: Anuário estatístico do Brasil 1937. Rio de
Janeiro: IBGE, v. 3, 1937
60
JP, 29/4/1937 Delegacia de Saúde. Boletim demógrafo sanitário, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
214
215
Tabela 4 – Comparativo de mortes na cidade de Cachoeira do Sul, em 1919 e 1929,
discriminadas por moléstia. Fonte: Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo
intendente José Carlos Barbosa, em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit.,
1930
Mesmo com a diferença entre nascimentos e falecimentos ser menor na
sede de Cachoeira do Sul, o crescimento populacional dava-se pelas
migrações que modificavam a fisionomia da cidade e sobrecarregavam
os serviços urbanos. Nesta reorganização e ampliação da infra-estrutura,
o fluxo migratório acentuado potencializou o olhar crítico sobre o
crescimento. A falta de espaço na zona central, delimitado pelas sangas,
aliado ao crescimento populacional, resultou na expansão dos subúrbios,
dado pela divisão de chácaras e terrenos de maior extensão em lotes
menores com vendas em prestações mensais. As incipientes aglomerações
urbanas exigiam que a prefeitura fizesse nessas novas áreas terraplanagem
e encascalhamento das ruas, além da construção de pontilhões para o
acesso, mas a escassez de recursos dificultava dotá-las de infra-estrutura
como água, esgoto e luz elétrica.
61
Esse modelo de desenvolvimento
acarretaria nas décadas subseqüentes o chamado contra-desenvolvimento
social, responsável por formas perversas de miséria, constituindo-se em
enclaves rurais no mundo urbano, com modos de sobreviver desumanos.
62
Duas imagens registradas na época mostram o cenário desse crescimento
desestruturado. A pinguela ligando o bairro Santo Antônio ao centro da
cidade é marca do período. Na década seguinte, crescia a noroeste do
centro a vila Marina.
61
JP, 11/10/1931 Noticiário. Zonas Sub-urbanas, p.3, 3/5/1934 Noticiário. Uma medida
inadiável, p.3 e 17/12/1942 Notas locais, p.4
Figuras 93 e 94
Pinguela ligando o centro da
cidade ao bairro Santo Antônio,
em meados dos anos 40. Vila
Marina, subúrbio a noroeste do
centro, em 1953.
Fonte: Museu Histórico Municipal
de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
216
217
Como veículo ideológico da elite, o Jornal do Povo responsabilizava a
prefeitura pelos efeitos de crescimento suburbano. Segundo editorial de
1932, tornara “muito feio” o município. A razão imputada teria sido o
aumento de impostos das construções prediais.
63
Em 1938, foi anunciada
a venda de uma chácara, localizada na zona urbana, com mais de um
hectare de terra, com “finíssimo arvoredo, chalet tipo bangalow, com 7
peças”, e instalações elétrica e sanitária, ao preço de 22.000$000 réis.
64
O anúncio demonstra que a zona urbana era entremeada por espaços
tipicamente rurais, característica local que perdurou nas décadas
seguintes.
Exemplo da dificuldade de trânsito entre periferia e centro, devido às
sangas, foi a vila Barcelos, primeiro subúrbio cachoeirense. Até meados
da década de 50, a única forma de transitar dela a zona central era
através da rua Andrade Neves. As primeiras leis editadas para conectá-la
através de outras ruas datam de 1953.
65
Também, somente nesta época
que foi estendida até o local linha de ônibus e dado início à ampliação da
rede hidráulica.
66
Em tempos de chuva muitas das sangas transbordavam, causando enormes
prejuízos, cobrindo de lama ruas e calçadas. Nas vilas e bairros da
periferia, a falta de canalizações da água pluvial, sem valetas e
entrecortada por sangas, abriam verdadeiros sulcos nas ruas. A ampliação
da população suburbana e a falta de infra-estrutura correspondente fariam
com que hábitos deletérios dos moradores fossem mantidos. Muitas das
sangas, canalizadas ou não, eram utilizadas como depósitos de lixo
doméstico. Como conseqüência, provocavam entupimento no escoamento
da água, agravado nos dias de chuvas torrenciais. No discurso do jornal
nota-se a imputação da responsabilidade aos moradores, que deveriam
proceder de maneira diferente, e não a falta das mínimas condições.
Entremente ao discurso carregado da imprensa cachoeirense,
relacionando a chegada dos outsiders com problemas urbanos, o fluxo
de construção e ampliação dos subúrbios também podia ser visto como
indício de progresso, mas somente no momento em que a modernização
progressista da elite atingia os moradores pobres das cercanias da cidade.
Em 1946, um leitor escreveu no JP que era possível notar Cachoeira
progredindo em todos seus recantos. Na zona suburbana, as “ruazinhas
pedregosas, enjoadas e tortas” tinham ganho novo aspecto com o
emparelhamento e o arruamento.
67
Em que pese a construção de todo o complexo sanitário nos anos 20, a
questão sanitária e o abastecimento de água tornavam-se relevantes
dada a febre tifóide e outras epidemias comuns na primeira metade do
século XX.
68
Contudo, o acesso à água para quem morava fora da zona
central dava-se exclusivamente por poços de baixa profundidade, o que
implicava na escassez em muitas épocas do ano e mesmo na contaminação
por conta da proximidade dos dejetos de esgoto.
A ampliação da rede para além do centro somente foi feita quando o
Estado pôs em prática o Plano Estadual de Estadualização dos Serviços
de Água e Esgoto, durante o governo Valter Jobim (1947-1951), na
pretensão de assumir os serviços nos municípios.
69
Em 1949, a rede foi
prolongada até o fim da avenida Brasil, na zona alta.
70
O percentual de
prédios servidos por água encanada era crítico. Mais da metade, 55%,
62
MARTINS, José de Souza. O futuro da Sociologia Rural e sua contribuição para a
qualidade de vida rural. In: Revista Estudos Avançados, v.15, n.43, São Paulo, set-
dez, 2001 [disponível em http://www.scielo.br /scielo.php?pid=S0103-
40142001000300004&script=sci_arttext&tlng=en – acessado em 15/1/2006].
63
JP, 18/12/1932 Editorial. Orientação Urbanista, p.1
64
JP, 20/1/1938 Imóveis à venda. Chácaras, p.1
65
A Lei Municipal n.306, de 30/5/1953, autorizou a permuta de terreno necessário à
ligação da Estrada do Passo Novo com a Vila Barcelos. Publicada no jornal O Commercio,
3/6/1953, p.4. A Lei Municipal n.343, de 27/10/1953, abriu crédito especial de Cr$
1.500,00 para a construção de uma pinguela sobre a Sanga das Pedras ligando a Vila
Barcelos com a chamada Rua do Carvão. Publicada no jornal O Commercio, 4/11/
1953, p.4
66
Contrato de concessão para a exploração exclusiva do serviço de transporte coletivo
de passageiros em auto-ônibus no perímetro urbano da cidade, que fazem a Prefeitura
Municipal de Cachoeira do Sul e João Carlos Schmidt, de acordo com o Edital de
concorrência pública n.5, de 13/8/1947. A ampliação da linha se deu através de
requerimento protocolado sob n.512, em 23/2/1951. Jornal O Commercio, 14/7/
1954 Ampliação da rede hidráulica, p.1
67
JP, 30/6/1946 Cachoeira progride. Cachoeirense, p.15
68
Ver LUZ, Madel Terezinha. A saúde e as instituições médicas no Brasil, In: GUIMARÃES,
Reinaldo (org.). Saúde e medicina no Brasil: contribuição para um debate. 4
a
ed. Rio
de Janeiro: Graal, 1984, p.157-174
69
JP, 8/1/1952 Água para os bairros, p.2
70
A Lei Municipal n.68, de 19/7/1949, autorizou uma contribuição do Estado, para
completar o prolongamento da rede de água até o término da Avenida Brasil. Fonte:
JP, 19/7/1949, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
218
219
não tinha ligação. Via de regra, os prédios abastecidos com água pública
não eram casas de moradia, mas estabelecimentos comerciais e
industriais. Como não existiam verbas específicas para ampliar a rede,
proliferou o uso de bicas públicas na periferia.
71
O esgoto teve semelhante
trajetória. Não havia nos subúrbios sistema cloacal nem pluvial, somente
a exigência de fossas sépticas, fazendo com que, na maioria das vezes,
os resíduos residenciais corressem a céu aberto.
O péssimo estado de higiene das vilas era tratado, sistematicamente,
como caso de polícia. Em janeiro de 1930, o Jornal do Povo noticiou a
denúncia da seção de higiene para que o intendente tomasse providência
e mandasse desocupar todos os casebres e chalés de determinada rua na
periferia da cidade, sob a justificativa que, além do péssimo estado de
higiene, estaria oferecendo sério perigo à saúde dos seus habitantes,
pessoas pobres. Por trás da denúncia estava o fato de freqüentemente
ocorrerem no local desordens e conflitos.
72
No final deste mesmo ano e em outras oportunidades nos anos seguintes,
fiscais da seção de higiene municipal percorriam toda cidade, visitando
pátios e quintais para verificar o estado de limpeza e determinar as
medidas necessárias, como remoção de lixo e de animais que estivessem
sendo criados para consumo nos domicílios.
73
A irregularidade na coleta
do lixo dos subúrbios – feita pelas carroças dos cubos – incentivava os
moradores a fazer dos terrenos baldios ou das sangas seus depósitos.
74
Era comum animais mortos putrificarem nas vias públicas até o cheiro
insuportável fazer os próprios moradores enterrá-los.
75
Este contexto
demonstra o quanto o poder público local fazia-se portador dos ideais da
elite moradora da área central, que exigia padrões de limpeza
semelhantes ao do centro sem contra-partida.
A escassez de gasolina nos anos de guerra agravou a situação da higiene
pública. Com os veículos automotores estacionados, a circulação de
veículos de tração animal aumentou consideravelmente, proliferando a
quantidade de insetos no meio urbano.
76
O comércio informal também
sofreu revés com medidas higiênicas desde os anos 30. A venda de gelados,
sorvetes e refrescos passou a ser permitida somente nas casas que
tivessem maquinário adequado. Foi proibida a venda de pastéis, doces
ou biscoitos em balaios, cestas ou outros recipientes que não estivessem
de acordo com o regulamento.
77
As medidas atingiram carrocinhas frutas
e legumes e os terrenos das zonas urbanas e suburbanas em que se
cultivavam gêneros alimentícios.
78
Na mesma medida em que agravavam-se os problemas higiênicos, de
saneamento e abastecimento de água, aumentava a preocupação com o
aspecto curativo, através da construção de novo hospital que pudesse
abrigar os enfermos. Até então, era comum o oferecimento de préstimos
em saúde através de anúncios publicados no jornal, destacando as
qualificações do profissional: “Dr. Milan Krás. Médico, operador e parteiro,
ex-assistente das clínicas de Berlim e Viena”; “Dr. David F. de Barcellos.
Formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Com prática dos
Hospitais de Paris”; “Sophia Schimidt. Parteira diplomada”.
79
Os anúncios
publicados no jornal visavam atingir o público leitor, que era quem podia
pagar pela saúde.
Para o enfermos sem condições econômicas, anualmente a municipalidade
repassava subvenções ao hospital para que fossem atendidos
gratuitamente. Em 1929, a verba foi de 16:000$000 réis. Entretanto,
esses recursos não eram exclusivos aos pobres. Dos 419 hospitalizados
neste ano, 152 fizeram operações cirúrgicas, sendo 116 de “1
a
classe” e
36 “praticadas em doentes pobres”. A desproporção reflete o tratamento
segregacionista do período. Enquanto a elite contava com saúde de maior
complexidade, pagos com recursos da própria comunidade através dos
repasses do poder público, aos subalternos eram aviadas receitas médicas,
4.360 somente em 1929. Assim, intervenções complexas limitavam-se
71
JP, 29/6/1952 Revelação impressionante: 55% do prédio da cidade não são servidos
pela rede de água, p.1 e 3/4/1952 Instalação de bicas públicas nas zonas urbanas não
servidas pela rede de água, p.1
72
JP, 19/1/1930 Seção de higiene, p.3
73
21/12/1930 Noticiário. Visitas domiciliares, p.3, 28/3/1937 Noticiário. Visitas
domiciliares, p.3
74
Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939,
apresentado pelo Snr. Cyro da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de
prefeito. op.cit., 1940, p.86
75
JP, 13/9/1951 Um por dia. Protesto de proprietários a rua 7 de Setembro sobre o
serviço de recolhimento de lixo, p.1
76
JP, 13/5/1943 Noticiário. Fiscalização de pátios e quintais, p.3
77
JP, 9/10/1932 Noticiário. Higiene Municipal, p.3
78
JP, 25/3/1934 Quitandeiros. João da rua, p.1
79
JP, 22/12/1932 Anúncio, p.1, 25/12/1932 Anúncio, p.11, 17/9/1932 Anúncio, p.3 e 5/
9/1929 Noticiário. intervenção cirúrgica, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
220
221
aos que pudessem pagar, enquanto curava-se os doentes pobres com
medicamentos.
80
O crescente êxodo dos subalternos desencadeou reclames sobre a infra-
estrutura hospitalar. Através do Jornal do Povo, justificavam-se as
péssimas condições do hospital da cidade, que estariam piores do que as
dos distritos. Com poucas acomodações disponíveis, falta de laboratórios
e indispensável aparelhamento cirúrgico, dizia-se que o estabelecimento
não preenchia suas finalidades, “estando muito aquém do que exige uma
cidade adiantada e próspera como a nossa”.
81
Mesmo que, de tempos em tempos o hospital recebesse melhorias, como
a aquisição de camas hospitalares automáticas em 1932, que permitiam
mudar a posição do doente sem tocar nele,
82
não fazia frente ao aumento
dos atendimentos, principalmente dos subalternos. Em 1936 foram
internadas no hospital 595 pessoas para 303 operações de alta cirurgia,
215 intervenções menores, 2.005 curativos e 3.015 injeções diversas,
“tendo sido aviadas 96 receitas para pensionistas e 3.126 para os pobres”.
83
Também foram regulamentadas as profissões da área da saúde, como
médico, dentista, farmacêutico, parteiro e enfermeiro, e o comércio de
medicamentos, passando a ser autorizado exclusivamente em farmácias
e drogarias.
84
Assim como várias outras cidades no país, Cachoeira do Sul
iniciava seu processo de medicalização social através da substituição de
chás e ervas caseiras por remédios industrializados.
85
Tanto na construção dos grandes blocos hospitalares quanto nas reformas
subseqüentes, a comunidade era chamada a contribuir periodicamente.
Para a construção do novo prédio, a elite organizou um garden-party. A
festa ao ar livre nos jardins das praças constituía-se na outra ponta do
problema da saúde, permitindo a elite pousar de benemérita frente aos
empobrecidos.
Nesse contexto foi lançada a campanha em prol da construção do hospital
modelo, “condizente com as necessidades da população cachoeirense”.
Em 1936, Luiz Diefenbach doou um terreno no Bairro Rio Branco, a fim
de Cachoeira do Sul ter “um hospital à altura de suas condições de cidade
culta e progressista”. Mas o local escolhido foi a praça Itororó, em frente
ao prédio já existente, em terreno doado pela municipalidade.
86
A sessão da Assembléia Geral de 11 de dezembro de 1936, onde foi eleito
o primeiro grande conselho do hospital, constituiu como membros Arnoldo
Fürstenau, Achylles Figueiredo, Alvino Dickow, Attilio Mainieri, Camilo
Ache, Edwino Schneider, Erwino Wilhelm, Frederico Gressler, Ivo Becker,
Julio Castagnino, João Minssen, Maximiliano De Franceschi e Filhos,
Nicolau Salzano, Orlando Carlos, Reinaldo Roesch, Theobaldo Burmeister,
Cyro da Cunha Carlos e Ernesto Strohschoen. Em 16 de dezembro de
1937, foi lavrado contrato com a firma Schuetz Matheis, de Santa Cruz,
para construção do novo edifício. Os auxílios recebidos eram os mais
diversos: oferta de sacos de arroz por proprietários de empresas
arrozeiras, promoção de chás de caridade e doações pessoais. A Companhia
Rio-Grandense de Usinas Elétricas converteu a dívida que o hospital tinha
em doação.
87
A pedra fundamental foi lançada em 9 de janeiro de 1938.
88
Em 4 de dezembro do mesmo ano, foi festejado o levantamento da
cumeeira do Hospital de Caridade e Beneficência (HCB). Em 19 de maio
de 1940, Monsenhor Armando Teixeira, vigário da Paróquia, celebrou a
missa e Orlando da Cunha Carlos fez o discurso inaugural.
89
80
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.15
81
JP, 16/7/1936 Cachoeira vai ter um hospital, p.1 e 6/12/1934 Hospital de caridade,
p.1
82
JP, 28/8/1932 Noticiário. Hospital de Caridade, p.3
83
JP, 14/1/1937 Hospital de caridade, p.1
84
JP, 9/1/1938 Noticiário. Delegacia de Saúde, p.3
85
Ver, neste contexto, TEMPORÃO, José Gomes. A propaganda de medicamentos e o
mito da saúde. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p.68. Para ele, no processo de estruturação
da indústria farmacêutica no Brasil, a função educativa através da publicidade e
propaganda, ajudou a construir um consumidor de medicamento, através dos anúncios
alienantes e biologicistas, numa estrutura determinada pela falsa consciência urbana
sobre saúde, medicina e terapêutica.
86
JP, 18/1/1931 Garden-party em beneficio do hospital de caridade, p.1, 26/5/1935
Ditador de Cachoeira. Foi um sonho, nada mais. O. M., p.1, 16/7/1936 Cachoeira vai
ter um hospital, p.1. Ver também Decreto-Lei nº 2, de 3/7/1940, através do qual a
prefeitura fez doação do terreno que abrangia a antiga praça Itororó, limitado pela
rua 7 de Setembro, Felix da Cunha, Saldanha Marinho e travessa Tuiuti. Fonte: Arquivo
Histórico Municipal.
87
Fonte: Hospital de Caridade e Beneficência, Amigo HCB, e Exposição do Arquivo
Histórico Municipal HCB, 100 anos de história
88
JP 13/1/1938 O lançamento da pedra fundamental do Hospital de Caridade, p.1 e
jornal O Commercio, 12/1/1938, p.1-4
89
Fonte: Hospital de Caridade e Beneficência, Amigo HCB, e Exposição do Arquivo
Histórico Municipal HCB, 100 anos de história
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
222
223
Apesar da contribuição da comunidade em geral, na inauguração destacou-
se o esforço do seleto grupo de “abnegados” cachoeirenses, entre eles
Edwino Schneider, “pela fé inabalável que sempre manteve no bom
resultado desse grandioso empreendimento, e pelo seu dinâmico trabalho,
na execução do mesmo”. Os demais contribuintes ganharam destaque
de forma genérica: do “humilde operário” ao “mais rico habitante do
município”.
90
Era a forma natural de computar as conquistas a poucos
quando muitos auxiliaram em sua consubstanciação.
Para o término da obra, para Cachoeira poder contar “com um dos mais
modernos e completos hospitais do país”, era necessário que a comunidade
continuasse acorrendo em auxílio. A reportagem do JP destacava a falta
de recursos para ser ultimada a construção e serem pagos os compromissos
assumidos pela Diretoria. Muitas pessoas que haviam subscritos parcelas
de doações em prazos determinado não cumpriram com suas obrigações,
ocasionando sérios embaraços aos realizadores da “grandiosa obra”. A
diretoria viu-se obrigada a contrair empréstimos e assumir os encargos.
91
A inauguração das novas instalações, limpas e dentro das mais “modernas
exigências da higiene”, suscitou dúvidas quanto ao atendimento da
população carente. O hospital garantiu que manteria a terceira classe
para os pobres, gratuitamente, e que a qualidade dos serviços seria a
mesma. Em reportagem, os responsáveis esclareceram: “Não se pode
confundir luxo com higiene. Pode, pois, estar tranqüila a classe pobre de
Cachoeira. Dentro em breve, poderá receber assistência gratuita, em
hospital dotado do que há de mais moderno em matéria de higiene e
conforto”.
92
Em tese, os deserdados não mais passariam pelas provações
a que estavam acostumados, visto que o atendimento até então era
prioritariamente destinado aos que podiam pagar.
A construção do novo edifício do hospital foi considerado símbolo do
dinamismo e da “capacidade realizadora” cachoeirense, algo que
destacaria o município entre os demais do Estado e do país.
93
As imagens
dos dois prédios ajudam a entender toda essa euforia da época. O antigo
prédio – destinado ao isolamento dos portadores de moléstias infecciosas
– era minúsculo frente ao novo, com quatro andares.
90
JP, 11/1/1940 Hospital de Caridade, p.2
91
JP 25/7/1940 Hospital de Caridade, p.1. Ver também jornal O Commercio, 22/5/
1940, p.1
92
JP, 13/4/1939 Hospital de Caridade. Um esclarecimento necessário, p.1
93
JP, 14/4/1940 O que nos falta, p.1
Figura 95
Fachada do antigo hospital,
em fotografia atual
Fonte: Hospital de Caridade
e Beneficência, Amigo HCB
Figuras 96
Fachada do novo prédio do Hospital de Caridade,
construído na praça Itororó, em fotografia dos anos 60.
Fonte: Exposição do Arquivo Histórico Municipal HCB, 100 anos de História
Iniciado o funcionamento no novo prédio, o problema a ser atacado era
da desproporção entre o montante arrecadado e as despesas com
manutenção que aumentaram gradativamente à medida que mais doentes
pobres acorriam à casa de saúde. O cronista Braz Camilo alertou para o
fato de que muitos doentes que podiam pagar diárias, acabavam ficando
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
224
225
em suas casas, ou em hotéis e pensões.
94
Essa atitude ajudava a
desequilibrar o orçamento. Além disso, a infra-estrutura exemplar atraia
doentes pobres de municípios vizinhos, pesando ainda mais no
desequilíbrio financeiro e exigindo novas ampliações, postergadas face à
escassez provocada pela guerra. A comunidade auxiliava na medida do
possível e do necessário, mas tendo o assistencialismo – doar
eventualmente aos pobres e não diminuir a pobreza através de
mecanismos eficazes – como idéia subjacente. Para adquirir a ambulância
motorizada em 1941, senhoras da sociedade organizaram um espetáculo
cinematográfico no Cine-Teatro Coliseu. No intervalo da sessão Não se
amam por encomenda, com Anabela e Robert Young, foram sorteados
prêmios.
95
Assim, se a construção do novo prédio do Hospital de Caridade deveria
garantir boas condições hospitalares para várias décadas, seriam
consideradas novamente precárias em pouco tempo porque o “modelar
hospital”, dada sua estrutura exemplar, atraia doentes de outros
municípios, tornando-se pequeno para abrigar a todos. Nesse primeiro
qüinqüênio, a maioria dos hospitais do Estado localizavam-se no interior,
mas tinham limitado número de leitos. Em 1945, o Rio Grande do Sul
tinha 389 estabelecimentos hospitalares, 87% (345) deles no interior,
com 12 mil (69%) leitos. Desta forma, o hospital cachoeirense tornava-se
referência para a região, atraindo mais e mais pessoas, resultando na
necessidade de sua ampliação. Eventualmente, o Estado auxiliava. Em
1946, doou 300 mil cruzeiros para terminar as obras da ala esquerda do
edifício.
96
O município viu agravar a crise hospitalar nos anos subseqüentes, exigindo
que o poder público municipal repassasse cada vez mais verbas ao hospital,
por conta da assistência prestada aos pobres, sempre consideradas aquém
do necessário dado o êxodo rural em curso. Para fazer frente ao perfil
epidemiológico decorrente da rápida urbanização, o poder público
responderia com a ampliação sistemática dos serviços hospitalares,
processo que ficaria conhecido como “medicalização social” ao alinhar
campanhismo e curativismo com centralização e concentração do poder
institucional. A Era Vargas marcaria os programas e serviços de auxílios e
de atenção médica durante a décadas subseqüentes, devido às práticas
clientelistas típicas do regime populista.
97
Da mesma forma que o hospital, os cemitérios passaram a grande
preocupação devido ao aumento populacional. Até os anos 50, a prefeitura
autorizava arrendamentos perpétuos de túmulo no Cemitério Municipal,
na zona alta. Várias leis municipais foram editadas nesse sentido.
98
As
autorizações foram suspensas quando o número de defuntos pobres
enterrados na zona urbana aumentou de tal maneira que o espaço dos
cemitérios não comportaria mais ninguém. A solução foi deixar o corpo
decompor-se por certo período e depois utilizar a mesma cova para outro
caixão.
Ainda no período de 30-45, era mais comum a participação da comunidade
na morte dos indivíduos, embora não houvesse grandes preocupações
comunitárias com relação aos defuntos, dado o número de habitantes
ser relativamente pequeno.
99
A diferença nos atos fúnebres atingia os
grupos sociais com a mesma intensidade que na vida cotidiana. Enquanto
a elite era enterrada com pompas – nos anúncios fúnebres da época se
colocava, na relação das covas, o nome das pessoas que enviaram os
buquês – os subalternos seguiam para sua última morada na carroça
fúnebre da municipalidade, vulgarmente conhecida por “Maria Creola”.
100
94
JP, 13/7/1941 Braz Camilo, p.1
95
JP, 25/9/1941 Noticiário. Cachoeira terá uma ambulância automóvel, p.3
96
Fonte: A.E.B. 24 Serviço de Estatística da Educação e Saúde. Tabela extraída de:
Anuário estatístico do Brasil 1948. Rio de Janeiro: IBGE, v. 9, 1949. Ver JP, 20/6/1946
O governo do Estado doou 300 mil cruzeiros para o Hospital de Caridade de Cachoeira
do Sul, p.1
97
LUZ, Madel, Notas sobre as políticas de saúde no Brasil de transição democrática –
anos 80, In: Physis, Revista de Saúde Coletiva; Rio de Janeiro: UERJ, 1991 e LUZ,
Madel Terezinha. Medicina e ordem política brasileira: políticas e instituições de
saúde (1850-1930). op.cit., 1982
98
Ver Lei Municipal n.60, de 14/7/1949, n.79, de 20/10/1949, n.81, de 25/10/1949,
n.89, de 29/11/1949, n.108 e n.109, de 25/5/1950, n.118 e n.119, de 4/6/1950,
n.120 e n.121, de 4/6/1950, n.126 e n.127, de 20/6/1950, n.129, de 20/6/1950.
Toda essas leis foram publicadas no Jornal do Povo. A última das leis concedendo
carneira perpétua foi a de n.780, em 18/9/1959, publicada no jornal O Commercio,
em 30/9/1959, p.7
99
Ver ELIAS, Norbert. A solidão dos moriubundos. Envelhecer e morrer. Tradução Plínio
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001, p.23-36
100
JP, 3/11/1929 Reclamações, p.3, 6/5/1934 Relação das covas dos bouques, p.3 e 6/
12/1942 Noticiário. Campanha em prol do enterro de pobres, p.5
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
226
227
3.3. O entrincheiramento da elite frente à invasão bárbara
No interstício dos anos 30-45, a elite preocupou-se especialmente em
manter as conquistas frente à invasão dos outsiders, que traziam consigo
hábitos rurais não condizentes com a urbanidade tão desejada. O Jornal
do Povo foi o porta-voz desses anseios, ao exigir sistematicamente a
manutenção dos espaços públicos.
A insalubridade da água e a própria falta do precioso líquido nas torneiras
cachoeirenses motivava, de tempos em tempos, reclames da elite através
do jornal. Nos anos 30, noticiava-se o fornecimento de água suja e
barrenta. As más condições da água geravam complicações gastro-
intestinais nos consumidores. O Delegado de Saúde em 1934, Henrique
Barros, justificou na época que para limpar os filtros da hidráulica era
preciso cortar o abastecimento por vários dias, “o que viria trazer uma
série de complicações para a população”.
101
O editorial do JP de julho de
1931 trazia que Cachoeira estava “rouca de gritar” pelas águas que corriam
debaixo de seus pés, “mas o seu grande recurso tem sido só desapertar
para a esquerda, ficando cada vez mais em dívida com a prefeitura”.
102
Existiam, no início da década de 30, 954 domicílio ligados à rede de
água, de um total de 1.562, mas apenas 346 possuíam hidrômetro. De
acordo com o relatório do intendente, essa era a principal causa do
aumento desproporcional do consumo de água, comparando-se a três
anos antes, em mais de 50%, aumento esse não acompanhado pelo
montante arrecadado, pouco mais da metade, 24,8%. As despesas com
os serviços de água, no ano de 1929, somaram 150:705$758 réis, divididas
em pagamento de funcionários administrativos (18:582$788 réis),
operários (22:217$750 réis), energia elétrica (95:059$020 réis) e
lubrificantes e sulfato de alumínio (14:846$200 réis). Além disso, em
torno de 25% do total de lançamentos anuais era valores não pagos por
usuários, inscritos na dívida ativa.
103
Por conta disso, a prefeitura mandou
cortar, em 1931, o fornecimento de água de diversos prédios que estavam
em atraso no pagamento das taxas de saneamento.
104
A tabela com dados
extraídos do relatório mostra a diferença entre o consumo, lançamento,
arrecadação e dívida ativa:
101
JP, 29/11/1931 Noticiário. Com a Hidráulica Municipal, p.3, 21/12/1934 A água da
Hidráulica Municipal, p.1, 8/12/1935 A água da hidráulica Municipal, p.3 e 6/12/
1931 Noticiário, p.3. A Lei Municipal n.º 68, de 19/7/1949, autorizou contribuição ao
Estado, para completar o prolongamento da rede de água até o término da Avenida
Brasil.
102
JP, 26/7/1931 Editorial, p.1
103
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.27-29
104
JP, 6/12/1931 Noticiário, p.3
105
JP, 6/1/1938 Problemas da cidade, p.1
106
JP, 5/12/1954 Falta de água na cidade, p.1 e 14/12/1954 Já foi restabelecido o
fornecimento de água à cidade, p.1. Ver ainda ARAGÃO, Walter Morales. Formas da
Ação Político Administrativa do Estado Capitalista: o saneamento urbano no Rio
Grande do Sul. Dissertação de Mestrado [orientadora Eva Machado Barbosa Samios],
Porto Alegre/RS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul/PROPUR, 2000
Tabela 5 – Consumo de água encanada e valor arrecadado com o serviço, nos anos 1926-
1930. Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930
Já em fins de 30 o jornal apontava a necessidade de construção de outro
depósito de decantamento da água, pois os existentes não estariam sendo
suficientes.
105
O problema do abastecimento hidráulico cachoeirense
agravava-se em face do aumento populacional na área urbana. O peso da
dívida municipal, contraída nos anos 20 quando da construção da primeira
e segunda hidráulica, nas administrações de Annibal Loureiro e João Neves
da Fontoura, postergaram a solução dessa questão para os anos 50, quando
os serviços de abastecimento passara definitivamente para o Estado,
através do órgão Serviços Industriais do Estado (SIE), ligado ao
Departamento de Saneamento da Secretaria de Obras Públicas do
Estado.
106
Paralelamente aos problemas de abastecimento de água, o aumento do
número de construções sobrecarregou o sistema de esgotos. Desde os
anos 20, sua ampliação foi paulatina, concentrada nas ruas de maior
fluxo. As reclamações que aparecem na imprensa, contudo, restringem-
se às áreas urbanizadas do centro ou em suas proximidades. Em épocas
de calor intenso, o cheiro era insuportável. Já com fortes chuvas, os
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
228
229
bueiros entupidos alagavam, fazendo emergir detritos das “águas
servidas” que invadiam passeios e residências.
107
A cobrança dos serviços de esgoto na zona central data dos anos 30,
quando o município passou a exigir pagamento mesmo daqueles domicílios
não ligados à rede, conforme disposto no Regulamento dos Serviços de
Hygiene e Assistência Pública, promulgado em 1926. Era uma forma de
exercer pressão para que todos se adequassem às exigências estabelecidas
de instalações sanitárias. Os prédios não dotados dessas melhorias, quando
desabitados, não poderia ser novamente ocupados sem que fosse
providenciado o serviço.
108
No ano de 1929, foram feitas 153 vistorias em
prédios, com 21 desinfecções e 5 intimações para limpeza.
109
Os serviços de asseio público no centro, que consistia na coleta diária
dos cubos por carroça puxada à tração animal, sobreviveram até o Estado
assumir os serviços de água e esgoto. Para o articulista Jota de Lima, da
coluna Fatos em foco, o processo de recolhimento dos detritos em carroças
transitando nas vias públicas não coadunava com a “movimentada
metrópole de vida trepidante”. A passagem dos cubos causava “ânsia de
vômito” e “falta de apetite”. Era algo vergonhoso para Cachoeira possuir
serviços dessa espécie, “humilhante” e “nauseoso”, “degradante” tanto
para sua população quanto para os forasteiros. Era “vexatório” para os
que recolhiam e para as famílias que usavam o serviço.
110
Na zona central, terrenos baldios passaram a ser motivo de preocupação,
pelo capinzal que crescia e porque muitos moradores simplesmente
depositavam lixo nesses locais, trazendo conseqüências desagradáveis
para a vizinhança.
111
No recolhimento do lixo eram empregadas duas
carroças. A grande distância entre a coleta e o depósito impossibilitavam
que elas atendessem com pontualidade toda o perímetro urbano,
ocasionando críticas da imprensa: “Assim, há ruas onde o lixo só é retirado
de quando em quando e, outras, onde não é retirado nunca, revelando
no tour que mesmo nos pontos centrais esse serviço é feito com a
irregularidade que já se tornou praxe”.
112
Em 1938, a edilidade substituiu
as carroças do lixo por um caminhão com carroceria apropriada, adquirido
na Agência Chevrolet,
113
mas a substituição foi somente para a área
saneada.
Mesmo no Mercado Público, em plena praça José Bonifácio, formavam-
se verdadeiras montanhas dos resíduos ali comercializados, por causa do
recolhimento ser semanal. Em algumas ocasiões, o lixo acabava
misturando-se com o esgoto cloacal. Tais situações ameaçava o título
que Cachoeira do Sul tanto se orgulhava: de cidade limpa e bem
saneada.
114
Na preocupação com a higiene urbana, a varrição das ruas foi aspecto
indispensável. O edital da Prefeitura Municipal de 29 de dezembro de
1930 delimitava a área central como aquela que deveria ser varrida:
Varrer diariamente as ruas Saldanha Marinho, 7 de Setembro e Moron e respectivas
travessas calçadas, largo Colombo, bairro Rio Branco e praças Baltazar de Bem e José
Bonifácio. Conservar estas ruas em perfeito estado de limpeza, capinando as ervas
daninhas todas as vezes que isso se tornar necessário. Varrer duas vezes por mês as ruas
Júlio de Castilhos, 15 de novembro e 1
o
de marco, e respectivas travessas.
115
O vencedor da concorrência foi Manoel da Fontoura Xavier, que assinou
contrato pelo prazo de três anos para fazer o serviço de remoção do lixo
e matérias fecais da zona urbana da cidade.
116
A falta de iluminação pública foi outro dos problemas urbanos que afligiu
a elite cachoeirense, beneficiária dos serviços. A potência instalada em
107
JP, 12/12/1950 Qual é a sua reclamação? Um esgoto furado, p.4 e 4/9/1952 Um
açude na rua Júlio de Castilhos, p.1
108
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.29
109
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.15
110
JP, 29/10/1953 Fatos em foco. Jota de Lima, p.2. Embora a Lei Municipal n.287
tenha extinto o serviço de asseio público em 28/11/1952, os serviços cessaram somente
em 1/1/1954. Fonte: JP, 4/12/1952, p.3
111
JP, 23/12/1934 Noticiário. Com a higiene, p.5
112
JP, 2/12/1934 Limpeza Pública, p.1
113
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, D.D.
Interventor Federal, pelo Prefeito Municipal de Cachoeira, Sr. Reinaldo Roesch, e
correspondente à sua administração durante o exercício de 1938. op.cit., 1939, p.12
114
JP, 4/2/1951 Efes & Erres. Izar de Santandré. Lixo, p.3 e 5/12/1956 Escutando &
Comentando, p.2
115
JP, 29/12/1930 Edital Prefeitura Municipal. Concorrência pública. Limpeza de ruas,
p.1. Ver também JP, 26/12/1929 Limpeza das ruas, p.3
116
JP, 26/2/1931 Noticiário. Remoção do lixo, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
230
231
1929 era de 640 HP, servindo tanto para iluminação pública quanto para
suprir residências, casas comerciais e indústrias. Somente a despesa com
iluminação das ruas da cidade atingiu a cifra de 37:122$840 réis, em
torno de 96% do valor pago pela municipalidade à Companhia Rio
Grandense de Usinas Elétricas. A diferença, 1:517$180 réis (4%), foi para
pagar as contas dos prédios públicos do município. Além disso, foram
gastos 18:644$017 réis em materiais para concerto ou extensão da rede
e 2:860$949 réis com o pagamento do encarregado por acender e apagar
as luzes, totalizando 60:144$986 réis, ou 3,36% dos 1.786:343$018 réis
arrecadados em receitas ordinárias no período.
117
Por motivos de economia, durante muito tempo as luzes dos postes foram
apagadas após as 3 h da madrugada, atitude que, para o JP, “favorecia a
ação dos gatunos que, nos últimos dias, protegidos por ela, infestaram a
cidade”.
118
Nesta época, a concessionária sistematicamente negava-se a
ampliar a rede elétrica e instalar novos postes, mesmo com os moradores
pagando pelo serviço.
119
Em fins de 1934, o horário de escuridão aumentou,
devido ao desligamento da iluminação à 1 h da madrugada. O jornal
noticiou da seguinte forma: “Os cidadãos, (e não precisam ser
retardatários para andarem aquela hora na rua em época de verão) que
são surpreendidos fora de casa depois da uma hora são obrigados a saírem
riscando fósforos pelas esquinas para darem com suas moradas”.
120
Nos
anos 38-39, a rede de cabos de chumbos foi substituída por cabos arados,
visto que o sistema até então utilizado freqüentemente apresentava
defeitos e gerava sobrecarga de energia.
121
Em 1939, foi anunciada iluminação em tempo integral, mas durou somente
até 1942, quando os blecautes passaram a ser constante sob justificativa
da guerra, precaução contra possíveis ataques aéreos inimigos. Começava
117
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.38-39
118
JP, 28/7/1929 Iluminação publica, p.3
119
JP, 27/11/1930 Noticiário. Iluminação publica, p.3
120
JP, 13/12/1934 Noticiário. Iluminação pública, p.3
121
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, D.D.
Interventor Federal, pelo Prefeito Municipal de Cachoeira, Sr. Reinaldo Roesch, e
correspondente à sua administração durante o exercício de 1938. op.cit., 1939, p.12
e Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939,
apresentado pelo Snr. Cyro da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de
prefeito. op.cit., 1940, p.86
com o sinal de alarme aéreo pelas sirenes, seguido do badalar de sinos e
apitos. Logo a seguir, a cidade mergulhada na mais completa escuridão,
durante aproximadamente 40 min, quando novo sinal fazia a cidade voltar
ao seu estado habitual. O articulista Braz Camilo ironizou a situação: “O
que me chateou foi esse exercício de defesa passiva. Há dias que vinha
me preparando, e, quando chegou a ocasião, também não vi níquel.
Escuridão completa. Se isso é blecaute, há tempo que estou nocaute”.
122
Para quem morava nas vilas e mesmo próximo das principais artérias,
essa falta de luz era a regra. Como nessas zonas os moradores eram, em
sua maioria, empregados do comércio e da indústria, a escuridão das
ruas ameaçava o ir-e-vir diário.
123
A questão dos custos administrativos que o município tinha que carregar
servia para justificar a falta de ampliação da infra-estrutura urbana. Das
reclamações mais correntes, expressas nas páginas da imprensa,
despontava o peso da dívida do município, face às obras de melhoramento
realizadas nas administrações passadas. Em editorial intitulado A dor
dos melhoramentos, em agosto de 1931, o Jornal do Povo escreveu que
o peso da dívida seria tamanho a ponto de espremer “todos os líquidos,
choráveis, e, por isso, apresenta agora o aspecto de uma laranja
chupada”.
124
A cidade estaria em “estado de abatimento e de opressão”,
com “ar morno, parado e pesado” a envolver.
125
O município de Cachoeira estava envolto num dilema: se pagava as
prestações de juros e amortizações com a pontualidade exigida pelos
contratos, ficava reduzida à situação do “saco vazio, não podendo parar
em pé”; se não pagasse com pontualidade, não conseguiria restaurar a
122
JP, 6/4/1939 Noticiário, p.3, 22/10/1942 Cachoeira teve, ante-ontem, o seu primeiro
exercício de “black-out”, p.2 e 22/10/1942 Braz Camilo, p.1
123
Em 1954, a usina local foi encampada pelo Governo do Estado. Entretanto, não cessou
o racionamento em residências, comércio e indústrias, nem mesmo com a integração
ao sistema elétrico estadual, em 1961. A questão da luz era freqüente nas páginas
dos jornais. A fisionomia da cidade às escuras representava aspectos lúgubres.
Reclamava-se por causa dos bicos de luz quebrados ou queimados e pela falta de
lâmpadas nos postes das mais diversas zonas da cidade. Segundo o JP, havia contenda
entre prefeitura e a Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE), para saber quem
era responsável pela reposição e concerto.
124
JP, 9/8/1931 Editorial. A dor dos melhoramentos, p.1
125
JP, 7/4/1932 O aspecto econômico-financeiro de Cachoeira, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
232
233
saúde e as finanças.
126
Setembrino Melo escreveu que a enorme despesa
de conservação das monumentais obras de calçamento, água e esgotos
haviam matado Cachoeira e que novos gastos só se “as gentis damas da
nossa alta e culta sociedade, de picareta em punho, saíssem para as
praças e ruas, a tratar do seu aformosamento”.
127
No balanço contábil referente ao exercício de 1929, as receitas do
município somaram 4.140:343$018 réis, incluindo nesse valor o
empréstimo feito no Banco do Rio Grande do Sul, na importância de
2.000:000$000 réis, quase 50% do valor da arrecadação anual. As despesas
no mesmo período foram de 2.879:370$466 réis, afora o pagamento dos
juros da dívida, na ordem de 1.261:616$936 réis. A dívida total do
município beirava a casa dos 9.983:871$960 réis, equivalente a cinco
anos de arrecadação, assim distribuídos:
128
Em 1938, o peso das dívidas ainda era tamanho que obrigou o prefeito
Reinaldo Roesch a solicitar suspensão do pagamento de juros e
amortizações dos empréstimos pelo período de quatro anos ao Interventor
Federal no Estado, General Daltro Filho. A receita orçada foi de
1.800:100$000 réis para uma despesa orçada em 2.697:797$500 réis ou,
caso fosse aceito a moratória, 1.898:801$700 réis. Outra medida adotada
foi o controle fiscal e a reorganização do órgão arrecadador. Desta forma,
a arrecadação municipal no exercício de 1938 foi recorde, 2.372:662$150
réis. As despesas, excluído os serviços de juros e amortizações dos
empréstimos, também subiram para 2.197:788$550 réis.
129
No ano
seguinte, a receita total arrecadada foi de 2.823:002$000 réis para uma
despesa de 2.675:390$300 réis, excluídas as dotações orçamentárias de
874:631$000 réis para pagamento dos juros das dívidas externa
(595:178$600 réis) e interna (279:452$400 réis).
130
A par das dívidas, o crescimento desmedido da cidade ressuscitou o
discurso de ordenação do espaço urbano.
131
Até a primeira metade do
século XX, as posturas municipais delineavam o rumo que a cidade deveria
seguir. O Código de Posturas Urbanas do Município fora decretado e
promulgado através da Lei n.222, de 19/9/1926. Através da Lei n.302,
de 2/1/1929, o intendente José Carlos Barbosa o reformou
parcialmente.
132
Para muitos da elite, a evolução urbana frenética do município nos anos
30 não poderia ser feito sem harmonia. Aurélio Lyra escreveu no jornal
em 1934 que era preciso separar as zonas comerciais e residenciais,
controlando as novas edificações nos locais mais adequados. A praça
deveria ser o centro de diversões, com cafés, cinema e alamedas
126
JP, 13/10/1932 Nova Mentalidade – Novos Moldes II, p.1
127
JP, 2/6/1935 Administração de Cachoeira. Setembrino Melo, p.1
128
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa,
em sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. op.cit., 1930, p.40 e 55
129
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, D.D.
Interventor Federal, pelo Prefeito Municipal de Cachoeira, Sr. Reinaldo Roesch, e
correspondente à sua administração durante o exercício de 1938. op.cit., 1939, p.1-
10
130
Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939,
apresentado pelo Snr. Cyro da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de
prefeito. op.cit., 1940, p.5-10
131
Ver AZEVEDO, Ricardo Marques de. Uma Idéia de Metrópole no Século XIX. In: Revista
Brasileira de História. v.18 n.35 São Paulo 1998 [disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid= S0102-01881998000100007&lng=es&nrm=iso –
acessado em 16/1/2006]
132
Lei n.222, de 19/9/1926 e Lei n.302, de 2/1/1929
Tabela 6 – Balanço Geral dos Empréstimos Municipais em 28 de fevereiro de 1930. Fonte:
Relatório apresentado ao Conselho Municipal pelo intendente José Carlos Barbosa, em
sessão ordinária de 20 de setembro de 1930. Cachoeira: Officinas graphicas d’O
Commercio, 1930, p.40 e 55
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
234
235
preparadas para “conduzir os pedestres ou automobilistas que acorressem,
na hora habitual das diversões, até a porta principal de um edifício de
fachada bem iluminada, com sirenes tocando, rodeados de grupos que
palestram, criaria assim o núcleo de diversões da cidade”. Os hotéis
deveriam instalar-se no Rio Branco, não só pelo charme do bairro, mas
pela tranqüilidade, calçamento, arborização: “aí se acha o lugar que
está desejando a pessoa que acabou de trabalhar ou divertir-se, na zona
central da cidade, para repousar, para receber uma visita, para viver”.
Para tanto, sugeria que a municipalidade tomasse a iniciativa e
desapropriasse os lotes que fossem necessários, mesmo que a época fosse
de contenção de gastos e as dívidas abocanhassem parte das receitas
municipais.
133
O problema da falta de ordenamento perdurou nas décadas seguintes,
produzindo edificações muitas vezes sem a menor orientação, situação
que engendrou o desejo de aplicação do plano diretor, sob a justificativa
que somente “dentro de uma previsão de urbanismo uma cidade pode se
desenvolver segundo a melhor harmonia e de acordo com as maiores
facilidades”.
134
Em 1948, chegou a ser cogitada a elaboração do plano
diretor,
135
iniciativa não levada adiante antes da criação oficial do Conselho
Municipal do Plano de Urbanismo (CMPU), em 28 de maio de 1957.
136
O
zoneamento da cidade seria somente na década de 60, tardiamente para
fazer frente ao inchaço populacional visto de forma fremente nos anos
55-60,
137
quando o número de habitantes na zona urbana da sede passou
de 23.286, num total de 96.633 nas zonas sub-urbana, rural e nos distritos,
em 1945-50, para mais de 39 mil no qüinqüênio 1955-60.
138
Na questão da ordenação propriamente dita, destacava-se o aspecto
estético das construções de residências e casas comerciais. Na virada
dos anos 20 a 30, a questão do crescimento urbano cachoeirense estava
sendo debatida com bastante alvoroço. Casas velhas, de fisionomia
esdrúxulas e fora do alinhamento eram chamadas de pardieiro, afronta à
beleza urbana local.
139
Para um leitor, era doloroso ver na cidade “casas velhíssimas”,
“enfeiando” as ruas, causando “má impressão” aos visitantes. A fama de
Cachoeira, segundo ele, era de uma das mais belas cidades do interior
gaúcho, embora a existência de velhas edificações destoassem o visual.
Se a praça Baltazar de Bem tinha belos jardins, havia casas seculares em
seu redor para enfear; o próprio edifício do Fórum, na testada oeste da
praça, parecia mais um pardieiro e não o local da justiça. Em seu
entendimento, melhorias poderiam, inclusive, fazer com que muitas
pessoas se mudassem para Cachoeira, se não fosse pelo aspecto precário
de várias edificações centrais: “muita gente se mudaria para cá se
houvesse edifícios em condições de serem habitados e não se visse mais
casas em ruínas, o que daria novo aspecto a cidade, diferente do que se
nota em todas as ruas”.
140
O aspecto de habitações no entorno da praça
Balthazar de Bem foi criticado também por outro leitor. No seu entender,
três casas abandonadas, “uma delas sem janelas, onde a ratazana passeia
impunemente e em cujos fundos demora toda a sorte de imundícies”,
geravam triste contraste com a “encantadora” praça.
141
O decréscimo do número de edificações passou a ser preocupação
discutida através da imprensa como forma de pressionar o poder público
a subvencionar a reformulação estética tão desejada na arquitetura local.
A reportagem publicada no Jornal do Povo, em 21 de julho de 1929, deu
a entender que o número de novas construções na zona urbana havia
133
JP, 21/6/1934 A cidade. Aurélio Lyra, p.1
134
JP, 1/1/1939 O urbanismo em Cachoeira do Sul, p.12 e 21/1/1943 Notas locais, p.4
135
JP, 8/2/1948 Em elaboração o “Plano Diretor da Cidade”, p.1 e 20/5/1952 Posturas.
Lauro Schirmer, p.2
136
A Lei Municipal n.602, de 28/5/1957, criou o Conselho Municipal do Plano de Urbanismo
C.M.P.U. Fonte: JP, 1/6/1957, p.2
137
A Lei Municipal n.1059, de 17/8/1964, criou o Plano Diretor da cidade de Cachoeira
do Sul. Fonte: JP, 20/8/1964, p.3 e 5. A Lei Municipal n.1084, de 19/11/1964, criou
a Comissão de História para regular a nomenclatura de ruas e logradouros públicos.
Fonte: JP, 22/11/1964, p.7. Ver também JP, 25/10/1964 Plano diretor. João Minssen,
p.6
138
JP, 12/12/1950 96.633 habitantes é o que acusa o resultado final do Censo de 1950
com referência ao Município de Cachoeira, p.1, 6/1/1954 2.338 registros de
nascimentos nesta cidade em 1953 - número de óbitos: 539, p.4, 18/3/1955 Cachoeira
conta 100.730 habitantes, p.1, 29/11/1960 Cachoeira do Sul cresceu em 70%, p.1,
14/3/1961 Cachoeira deixou de ser o terceiro município do R.G.S, p.1 e 17/8/1961
Decrescem os nascimentos neste município, p.3. As emancipações dos distritos de
Faxinal do Soturno (Dona Francisca), Restinga Seca e Agudo, ocorridas no ano de
1958, suprimiram do cálculo demográfico 38.198 habitantes, fazendo com que o
município de Cachoeira do Sul deixasse de ser o terceiro mais populoso do Estado,
com 84.512 habitantes.
139
JP, 11/7/1929 Pardieiro, p.1 e 13/10/1929 Alinhamento predial, p.2
140
JP, 14/5/1931 Pela cidade. AV, p.1
141
JP, 11/2/1932 Pela Urbs. Contrastes. Petrônio, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
236
237
diminuído em razão do alto valor das taxas de construção cobradas pela
prefeitura.
142
Em outra reportagem, publicada na semana seguinte, em 4
de agosto, o jornal defendeu a redução dos impostos e taxas que recaiam
sobre prédios urbanos, atitude que poderia incrementar e estimular novas
edificações: “naturalmente que, menos onerados, os construtores, ao
invés de irem fazer seus prédios nos arrabaldes, procurariam os terrenos
centrais, que, infelizmente, nos sobejam dando a cidade uma aparência
triste e feia, de longos muros que se seguem a longos muros”. Entretanto,
o próprio jornal alertou para os construtores levianos, que conseguiam
do município isenções e regalias mas construíam ao “bel prazer, com
prejuízo aos interesses coletivos”, que faziam o contrário do contratado,
que apresentavam “plantas orçadas em grandes somas” mas construíam
“simples galpões anti-estéticos”.
143
Para um leitor que escreveu em fins de 1929, a evolução cachoeirense
fora diferente de outras localidades. A iniciativa pública precedera a
iniciativa privada. Se nos demais centros, o poder público iniciava obras
apenas quando havia progresso econômico privado, que exigiria o
desenvolvimento de infra-estrutura urbana, em Cachoeira, deu-se o
contrário. Por esta razão o choque entre a cidade “civilizada” no espaço
público mas “amorfa” nas construções privadas. Segundo ele, “Cachoeira,
engana ao que chega, dá-lhe a idéia de um centro de trabalho ativo e
intenso, mas, na verdade, os nossos capitalistas só sabem plantar arroz
e, por isso, os que poderiam ser aproveitados à frente de um grande
estabelecimento fabril, se estiolam, vegetando eternamente à sombra
dos balcões”. O município assemelhava-se a “moça rica sem dinheiro”
que qualquer “velha endinheirada põe no barro”.
144
Para o jornal, o maior responsável por esse estado de coisas era a própria
administração municipal. O aspecto de ruínas ostentado por muitas
habitações, algumas inclusive incendiadas, gerava a impressão de
decadência para a cidade.
145
Neste contexto, os loteamentos davam mostra de que a cidade crescia
também em tamanho. Se a vila Barcelos fora local escolhido para moradia
de operários e pessoas pobres, que não podiam pagar os alugueis elevados
das casas do centro, o loteamento denominado Soares, localizado nas
proximidades do Rio Branco, estação ferroviária e rua Júlio de Castilhos,
tinha os lotes “mais futurosos da cidade”. O anúncio publicado em 1933
explorava essa vantagem. Segundo o vendedor do loteamento, Ari Pilar
Soares, o prolongamento da rua 1º de Março ligaria a Soares com o Rio
Branco, valorizando ainda mais os terrenos daquela zona.
146
Nas construções da zona central, anúncios de grandes investimentos
privados eram comemorados pela imprensa: o do grande hotel, com “vasto
salão para refeições” e 60 quartos com “todos os requisitos necessários”;
o da reforma de antigo hotel, “dotando-o de todas as instalações
modernas, para o maior conforto de seus hóspedes”; o do belo edifício
em estilo moderno; o da nova construção no Rio Branco.
147
O aristocrático
bairro, ocupado principalmente pela elite de origem teuta, era
considerado a parte mais linda da cidade, dada às novas e imponentes
edificações. A proibição de construir prédios abaixo de determinado valor,
o traçado largo e retilíneo das ruas, a farta arborização, a iluminação, os
encanamentos de água e esgoto, faziam do bairro modelo para os demais
munícipes, ponto preferido para passeio dos habitantes de outras partes
da cidade.
148
Muitos anúncios de venda de imóveis passaram a se adequar às novas
exigências, como a colocação da expressão “requintes de higiene” no
corpo do texto.
149
Imagens de construções modernas, como as da fotografia
142
JP, 21/7/1929 Por que decresce a edificação urbana?, p.1
143
JP, 4/8/1929 Edificação urbana, p.1
144
JP, 8/9/1929 A iniciativa particular. S., p.1
145
JP, 18/2/1932 A nossa cidade, p.1
146
JP, 15/5/1930 Vila Barcelos, p.2 e 14/12/1933 Anúncio. Os terrenos da “Vila
Soares”.p.3 Nas décadas seguintes, os lotes seguiriam sendo vendidos no bairro pela
família Soares. Ver, por exemplo, a Lei Municipal n.277, de 17/11/1952, que autorizou
o cancelamento de Fabrício Pillar Soares, como “vendedor de terrenos”, e a devolução
da importância indevidamente cobrada pelo município. Fonte: Livro de Registro de
Leis da Prefeitura Municipal, 1952; a Lei Municipal n.324, de 21/7/1953, que autorizou
a aquisição de um imóvel de Fabrício Pillar Soares, no bairro Juvêncio Soares, destinado
a construção de uma praça. Fonte: JP, 23/7/1953, p.4; e a Lei Municipal n.340, de
27/10/1953, que concedeu isenção de impostos ao casal Ari Pillar Soares, mediante
doação de faixa de terras necessárias ao prolongamento da Travessa Domiciana. Fonte:
JP, 1/11/1953, p. 2
147
JP, 6/10/1929 Um grande hotel nesta cidade, p.3, 31/10/1929 Moderno hotel, p.3,
22/1/1933 Noticiário. Novo Prédio, p.3 e 3/11/1929 Nova construção, p.3,
148
JP, 14/11/1929 Do meu canto. Justa pretensão, p.1
149
JP, 7/6/1931 Anúncios econômicos, p.3 e 17/9/1931 Anúncios econômicos, p.4
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
238
239
a seguir, demonstram esse desejo da elite pela mudança fisionômica da
área urbana.
Com a diminuição dos impostos municipais para construção, ainda na
administração de Aldomiro Franco (1932-1937), aumentou o número de
novas edificações.
150
Os reflexos da iniciativa foram descritos no jornal:
“O movimento construtivo é intenso. Edifícios novos e de estilo moderno
erguem-se a cada passo, como a mostrar que a cidade, por seus filhos,
busca, na renovação dos prédios, ostentar uma eterna mocidade”.
151
Mesmo assim, problema que tornou-se grave foi de residências para alugar.
Muitos dos que chegavam para instalar-se em Cachoeira, encontravam
dificuldade em termos de moradia. A febre das construções tinha limitado-
se a residências para moradias dos próprios proprietários e não como
fonte de renda. A justificativa alegada era que a renda auferida no aluguel
do imóvel não cobriam os altos custos da construção, agravado pela
incidência do imposto predial e taxas de água e esgoto, cobertas pelo
locatário.
152
Em 1938, o prefeito Reinaldo Roesch (1938-1939) baixou novo decreto
isentando do pagamento de décimas urbanas, por até 10 anos, prédios
que fossem construídos com dois ou mais andares. O número de licenças
solicitas para construção subiu de 132, em 1937, para 173, em 1938.
153
No ano seguinte, o número de licenças baixou para 127, sendo 46 para
prédios de alvenaria, 47 para prédios de madeira, 26 para reformas em
geral, 5 para reparos e 3 para demolições. A justificativa para a diminuição
do número de obras foi devido ao baixo valor do arroz, principal fonte de
renda do município.
154
O número de edificações em Cachoeira teve outro aumento no início da
década de 40. Se no período de junho de 1938 a junho de 1939, totalizou
206, no período seguinte, de junho de 1939 a junho de 1940, aumentou
para 295. Os prédios existentes na cidade somavam 3.723, praticamente
o triplo do verificado em meados dos anos 10, embora grande parte desse
crescimento ter verificado-se nas vilas que surgiam na cidade e ampliavam
150
JP, 22/10/1933 O movimento construtivo nesta cidade, p.1
151
JP, 30/3/1939 Caveira de burro, p.1
152
JP, 25/11/1937 Problemas da cidade. Casas de aluguel, p.1
153
Relatório apresentado ao Exmo. Sr. Coronel Oswaldo Cordeiro de Farias, D.D.
Interventor Federal, pelo Prefeito Municipal de Cachoeira, Sr. Reinaldo Roesch, e
correspondente à sua administração durante o exercício de 1938. op.cit., 1939, p.12
154
Relatório da Prefeitura Municipal de Cachoeira, relativo ao exercício de 1939,
apresentado pelo Snr. Cyro da Cunha Carlos, sub-prefeito da sede no exercício de
prefeito. op.cit., 1940, p.86-87
Figuras 97 e 98 – Residências do bairro Rio Branco e prédio da Agência Ford. Fonte:
Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
240
241
a malha urbana.
155
Mesmo assim, o problema das casas destinadas a aluguel
não foi resolvido. Se o preço dos imóveis para venda estava baixa, o
mesmo não ocorria com os imóveis destinados para locação, considerados
“estratosféricos”.
156
Em janeiro de 1941, o engenheiro Nelson Aveline escreveu no Jornal do
Povo sua opinião a respeito das construções prediais. Para ele, o progresso
da cidade era avaliado pelo número de construções em andamento: “Há
momentos em que as construções prediais assumem aspectos de
verdadeiros surtos de progresso, representados pelo movimento das novas
construções que surgem por todos os cantos, enriquecendo o patrimônio
urbano, fechando os espaços baldios nas quadras e embelezando as ruas”.
Por trás desses surtos progressistas estaria a expansão econômica local
que, em época de carência, fazia com que as cidades estacionassem,
“retardando seu desenvolvimento normal, à espera das épocas de
prosperidade”.
157
O aspecto estético da arquitetura predial crescia em importância em
épocas festivas, como na I Festa do Arroz, quando a prefeitura pediu aos
proprietários de imóveis que caiassem as fachadas para causar “aspecto
agradável” aos visitantes.
158
Era considerada moderna aquelas residências
particulares que tivessem divisão interna adequada aos novos tempos,
com peças maiores e melhor distribuídas, luz direta nos quartos e que
atendesse aos preceitos de higiene.
159
Nos anos do pós-guerra, a concepção estética brasileira passou a ter o
mote das construções norte-americanas, vista principalmente através
do desejo de erguerem-se edifícios com vários andares. A comunidade
em geral e a imprensa em especial tentaram aproximar Cachoeira do Sul
do modelo downtown, com arranha-céus yankees. Um exemplo foi o
edifício do Clube Comercial, cogitado desde 1944. Sua pedra angular foi
lançada em julho de 1948, na esquina das ruas Sete de Setembro com
General Portinho. Na ocasião, o JP publicou esboço da planta de
construção, visando atrair mais pessoas para as festas em prol de seu
erguimento.
160
Justificando a nova tendência de destruir antigas residências particulares
para construir nos lotes novos os imponentes prédios, o diretor-articulista
do JP, Manoel Carvalho Portella, vulgo Chinês, ironizou, em 1947, a simples
reforma das fachadas ao invés da substituição completa: “na cidade de
Caxoeira, na Conchinchina, os velhos prédios que depõem contra a
estética urbanística, podem ser reformados, ainda que estes pardieiros
estejam localizados bem no coração da supradita cidade. Essas coisas
são injustificáveis, em todo o caso, isso é lá com eles”.
161
A construção de prédios maiores, materializando as transformações
arquitetônicas tão desejadas na zona central, ocorreria somente na
década de 50 e principalmente com edifícios públicos: Fórum, Correios e
Telégrafos, Exatoria Estadual, Rodoviária e pavilhão na escola João Neves
da Fontoura. Cogitou-se, inclusive, a construção da Biblioteca Pública
no lugar do prédio do Mercado Público, no centro da Praça José
Bonifácio.
162
Os clubes sociais acompanharam essa tendência, ampliando
suas instalações. Assim como o Clube Comercial, a Sociedade Rio Branco
construiu sua nova sede, agregando restaurante, salão de bailes, pista
de bolão e cancha coberta.
163
As novas construções despertaram manifestação de religiosos, para quem
caberia às igrejas “o primeiro lugar em matéria de gosto artístico nas
155
JP, 18/8/1940 Cachoeira progride!, p.1
156
JP 28/4/1940 Braz Camilo. Casa para alugar, aqui, é um caso sério, p.1
157
JP, 9/1/1941 À margem das construções prediais. Eng. Nelson Aveline, p.1
158
JP, 20/2/1941 Anúncio: Prefeitura Municipal de Cachoeira, p.1
159
JP, 8/10/1944 Diversas. Moderna casa de apartamentos, p.5. Ver ainda VALADARES,
Jorge de Campos. Qualidade do espaço e habitação humana. In: Revista Ciências,
Saúde Coletiva, v.5, n.1, Rio de Janeiro, 2000 [disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232000000100008 – acessado em 15/1/
2006, que discorre sobre a evolução da habitação humana como tarefa de construir,
habitar e compreender o mundo.
160
JP, 27/7/1944 Noticiário. Construção de novo edifício para o Clube Comercial, p.3 e
30/6/1948 O grande e imponente edifício do Clube Comercial, p.10
161
JP, 16/10/1947 Pingos nos ii... Chinês, p.2
162
JP, 30/7/1950 Uma lacuna inadiável de Cachoeira do Sul. Pe. Abílio Sponchiado, p.2,
7/11/1950 Entrega do novo edifício do Fórum, p.1, 15/11/1950 Serão inaugurados
hoje os novos edifícios do Fórum, Exatoria Estadual e Pavilhão da E. João Neves da
Fontoura, p.1, Jornal O Commercio, 8/11/1950, Fórum, p.1, JP, 4/12/1954 Em
construção as dependências da futura Rodoviária, p.1, 1/11/1955 Inaugurada a nova
Rodoviária, p.1
163
JP, 1/7/1951 A nova imponente sede da Sociedade Rio Branco será a concretização de
uma esperança por muitos acalentada, p.3. Ver também 100 anos de Concórdia: a
história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
242
243
construções”.
164
Essa idéia esteve subjacente em todo processo de
mudança da arquitetura local.
Desde o final dos anos 20, o prédio da Igreja Matriz passava por reformas
sistemáticas, pois era tido como obra de embelezamento para todo
município, razão pela qual comumente solicitava-se o “concurso devotado
de todos os habitantes”. A reforma de 1928-29 atingiu a cúpula das torres
e a colocação de uma estátua de Nossa Senhora da Conceição, padroeira
da cidade, erigida no frontispício remodelado da igreja, sobre o corpo
avançado da fachada. Através de apedido publicado no jornal, a paróquia
apelou para que os cachoeirenses contribuíssem conforme suas
possibilidades:
Pedimos aos moradores de fora, da campanha, que nos enviem, sempre que puderem,
um óbolo para as obras, sendo que os que não dispuserem de dinheiro podem fazer os
seus donativos em espécie. Isto facilitará o auxilio dos colonos que aqui fazem negocio
e também dos pequenos lavradores ou criadores deste grande e rico município.
165
Em janeiro de 1930, a comissão de remodelação da Igreja Matriz resolveu
organizar festas mensais em beneficio das obras em andamento,
patrocinadas por senhoras da elite cachoeirense.
166
Através de cartas publicadas no jornal, fiéis discorriam sobre a
necessidade do restauro arquitetônico. Paulo de Hipona escreveu que a
Matriz constituía “nota dissonante” no “dinamismo progressista” da
cidade. Era necessário, segundo ele, reformar o interior e completar as
obras no exterior, para que a igreja acompanhasse o progresso do
município.
167
Outro fiel, Patrício Albuquerque, escreveu que o templo
católico não estava mais à altura do desenvolvimento da povoação, sendo
necessário a mesma “unção religiosa” dos antepassados, “erigindo, no
mesmo local”, “a Matriz digna de Cachoeira dos nossos dias”.
168
Além das obras da Matriz, a igreja católica havia erguido, tempos antes,
no Alto dos Loretos, zona alta da cidade, a capela São José, entre 1913-
1915.
169
O prédio passou por grandes reformas no início da década de
40.
170
Mais próximo do centro, no Santo Antônio, foram construídos na
década de 30 a igreja e o convento dos ppredemptoristas, com projetos
assinados pelo arquiteto José Lutzemberg. Grande parte das doações
destas duas igrejas veio da comunidade italiana.
171
164
JP, 1/4/1952 Cachoeira e suas igrejas. Frei Solitário, p.2
165
JP, 4/7/1929 Apelo ao povo da cidade e do município, p.1, 19/9/1929 Inauguração de
um monumento, p.1 e 15/12/1929 Apedido. Para as obras da matriz, p.2
166
JP, 5/1/1930 Obras da matriz, p.3
167
JP, 4/10/1936 A nossa velha matriz. Paulo de Hipona, p.1
168
JP, 26/9/1937 Cachoeira e a sua nova Igreja Matriz. Patrício Albuquerque, p.1
169
Sobre a fundação da igreja São José, ver: Jornal O Commercio, 10/9/1913 Capela de
São José, p.2, 25/8/1915 Capella de São José, p.2, 13/10/1915 Capella de São José,
p.2, 3/11/1915 Balancete de despesas e receitas da Capella de São José, p.3, 22/12/
1915 Pequena Loteria em benefício da Capella de São José, p.2, 8/3/1916 Festa de
São José, p.2, 22/3/1916, Culto Catholico, p.2, 5/4/1916, Donativos ultimamente
feitos à Capella de São José, p.3, 24/5/1916 Erecção da Via Sacra, p.2 e Bênção da
Capella. Livro Tombo da Paróquia Nossa Sra. da Conceição da Cachoeira, 24/2/1915,
p.6v. No Anexo VII, a relação nominal dos doadores para a construção da igreja São
José, em 1915
170
Jornal O Commercio, 17/8/1938 Ampliação e Reforma da Igreja de São José, p.1, 21/
2/1940 Ampliação e Reforma da Igreja de São José, p.4, 6/4/1938 Igreja de São José,
p.2, 28/2/1940 Igreja de São José, p.4, 27/3/1940 Obras da Igreja de São José, p.3,
6/3/1940 Pró-ampliação e reforma da Igreja de São José, p.1, 24/4/1940 Pró-
ampliação e reforma de um templo, p.1, 8/5/1940 Mais contribuições em prol da
Igreja de São José, p.1, 15/5/1940 Igreja de São José, p.1, 5/6/1940 Pró obras da
Igreja de São José, p.2, 26/6/1940 Em prol do levantamento da Cumieira da Igreja
de São José, p.1, 24/7/1940 Legionários de São José, p.1, 31/7/1940 Em prol da
Igreja de São José, p.1, 14/8/1940 Para melhoramentos da Igreja de São José, p.2,
4/9/1940 Legionários de São José, p.2, 18/9/1940 Legionários de São José, p.1, 5/2/
1941 Remodelação e ampliação da Igreja São José, p.1, 9/7/1941 Igreja de São José,
p.2 ,23/7/1941 Imagem de São José, p.1, 12/11/1941 Igreja de São José, p.3. Dados
da exposição “Fundação da Capela de São José”, Arquivo Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul. No Anexo VIII, relação nominal dos doadores para reformas na
igreja São José, entre 1938 e 1941.
171
Sobre a igreja Santo Antônio, ver: JP, 28/1/1934 A Igreja de Santo Antônio, p.1, 7/6/
1936 Festival em honra de Santo Antonio, p.3, 11/6/1936 Festa de Santo Antonio,
p.3, 21/6/1936 Igreja de S. Antonio, p.2, 10/9/1936, A nossa igreja de Santo Antonio,
p.2, 27/9/1936, Vitrais para a Igreja de Santo Antônio, p.4, 14/2/1937 Catecismo,
p.2, 28/2/1937, Piso da Nova Igreja, p.2, 4/3/1937 Dia do Mosaico pró Igreja de
Santo Antônio, p.2 e 21/3/1937 Programa da Semana Santa, p.2 e Jornal O Commercio,
27/3/1940 A Igreja de Santo Antonio. Um púlpito oferecido á Igreja de Santo Antonio,
p.1. Jornal O Commercio, 10/4/1940, Púlpito à Igreja de Santo Antonio, p.3. Dados
da exposição “Fundação da Capela de São José”, Arquivo Histórico Municipal de
Cachoeira do Sul. No anexo IX, relação nominal dos doadores do púlpito para a igreja
de Santo Antonio, em 1940
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
244
245
Figuras 99 e 100
Plantas originais da igreja
católica Santo Antônio,
assinadas pelo arquiteto
José Lutzemberg em 1926.
Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do
Sul
Na vila Barcelos, habitada pelos mais pobres, a capela de Santa Terezinha
foi erguida em 1940, tendo os moradores doado o terreno e administrado
a construção, que ficou sob responsabilidade de Baptista Carvalho.
172
No aspecto de manter a ordem estabelecida pela elite, as praças eram
importantes trincheiras, visto serem consideradas espaços de sociabilidade
por excelência. Por esta razão, na manutenção do espaço urbano, a elite
cachoeirense não descuidou delas. A atenção dos moradores estava focada
nas duas praças centrais: Balthazar de Bem e José Bonifácio.
Na primeira delas ficava o Chateau d’Eau, que viria a tornar-se símbolo
de Cachoeira, verdadeiro cartão-postal da cidade. Em 1933, foram
construídos passeios em concreto, “a fim de evitar as erosões produzidas
no terreno pelas águas pluviais, o que ocasionava uma despesa avultada
de conservação contínua”, terminadas a instalação da nova rede de
iluminação pública subterrânea, com “elegantes” e “modernos” postes
de ferro.
173
Em 1935, pequeno busto foi construído em homenagem ao centenário de
Antônio Vicente da Fontoura. Anos antes, em 1929, já havia sido construído
memorial a Getúlio Vargas. Ambas homenagens tinham função didática,
eram convites à imaginação do passante, na medida em que atiçavam
seletivamente a lembrança.
174
Na praça José Bonifácio, a grande preocupação da edilidade foi com a
vegetação que crescia nos canteiros. Para a elite cachoeirense, as flores
tinham de ter cuidado especial pois eram, afinal, “o prazer e a alegria
da vida”, como escreveu um leitor no Jornal do Povo em 1933. Havia
necessidade de afastar as vacas que procuravam a praça à noite para
pastar por entre os canteiros floridos, “comendo com um grande apetite
animalesco a folhagem e os mais tenros rebentos das roseiras, dos
172
JP 10/7/1940 Capella de Santa Therezinha, p.1, 10/7/1940 Balancete da receita e
despeza das obras de construcção da Capella de Santa Theresinha na Villa Barcellos.
Doações, p.2, Jornal O Commercio, 11/9/1940 Capella de Sta. Therezinha, p.4, 18/
9/1940 Capella de S. Therezinha, p.1 e 16/10/1940 Capella de Santa Therezinha,
p.4. No Anexo X, a relação nominal dos doadores para a construção da capela de
Santa Terezinha, na vila Barcelos, em 1940
173
JP, 15/1/1933 Noticiário. “Chateau d’Eau”, p.3
174
JP, 17/10/1929 Memorial ao Ex.mo. Sr. Presidente Getúlio Vargas, p.1 e 22/9/1935
Busto existente na Praça Dr. Balthazar de Bem, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
246
247
jasmineiros, das azaléas, etc.”
175
Para os articulistas habituais do jornal,
as praças deveriam ser cuidadas pelas próprias famílias que dela faziam
uso.
176
Essa preocupação estética com a José Bonifácio desencadeou a polêmica,
que perpassou praticamente as décadas de 20-30, envolvendo a demolição
do chamado “velho barracão” e construção de novo prédio para abrigar
o cinema Coliseu Cachoeirense. Ainda na gestão de João Neves da
Fontoura, foi aberta concorrência para exploração do cinema, prevendo
a construção de um novo prédio,
177
mas permaneceu “no plano aéreo e
irreal dos projetos e das hipóteses”. O vencedor foi Henrique Comassetto,
proprietário do Coliseu desde 1921. Com o término do contrato, a empresa
Comassetto & Carvalho Ltda., reavivou a idéia da construção do novo
cinema, a fim de renovar a concessão. Caso contrário, a prefeitura
demoliria o “velho barracão” da praça. Por esta razão, em meados de
1931, foi feito novo anúncio. Dois anos depois, em outubro de 1933, em
resposta ao ofício enviado pelo administrador do Coliseu Cachoeirense,
o Conselho Consultivo do município abriu concorrência para construção
do novo cinema na praça José Bonifácio, no mesmo lugar do antigo prédio.
Para o Jornal do Povo, o barracão de tábuas e zinco destoava e imprimia
“flagrante contraste” na “harmonia e no bom gosto dos melhoramentos
levados a efeito durante o período da administração João Neves”.
178
Pelo edital de concorrência pública, publicado em março de 1934, o
novo teatro-cinema deveria ser construído na praça José Bonifácio, com
30,5 metros de frente e 60 metros de fundo, num total de 1,83 mil m².
179
Embora a firma Comassetto & Carvalho tivesse ganho a concorrência,
postergou a construção até fins de 1937. Em fevereiro de 1938, o novo
prédio, construído na rua Sete de Setembro ao invés de na praça, foi
inaugurado com a exibição do filme Cidade do Pecado, com Jeanette Mc.
Donald e Clark Gable.
180
175
JP, 25/6/1933 As nossas praças públicas, p.1
176
JP, 26/5/1935 Ditador de Cachoeira . Foi um sonho, nada mais O.M., p.1
177
No Ato nº 1105, de 21/9/1926, João Neves da Fontoura determinou ao Secretario do
Município que abrisse concorrência para a construção e exploração de um Teatro
Cinema nos terrenos situados na Praça José Bonifácio, pertencentes à Municipalidade.
Fonte: IM/GI/DA/ADLR-010, 1926, p.167
178
JP, 30/6/1931 Noticiário. Novo teatro, p.7, 15/10/1933 Noticiário. Uma velha aspiração
que, parece, vai se tornar realidade, p.3, 1/1/1934 Cachoeira terá, ainda este ano,
um novo cinema, p.3 e 22/2/1934 Noticiário. Um novo cinema, p.3
179
JP, 4/3/1934 Edital. Concorrência para a construção de um Teatro-Cinema, p.4, 17/
6/1934 Projeto da Construção do Cine Teatro, p.3 e 3/5/1936, Ainda o Novo teatro,
p.3
180
JP, 26/5/1935 Ditador de Cachoeira. Foi um sonho, nada mais, p.1, JP, 17/10/1937
Que nome deverá ser dado ao novo cinema?, p.5, 12/12/1937 Ainda não foi escolhido
o nome para o novo cinema, p.1 e 17/2/1938 Cachoeira terá hoje em diante, um dos
melhores Cine-teatros do Estado, p.2
Figuras 101 e 102
Cine-teatro Coliseu
Cachoeirense, construído na
praça José Bonifácio, no ano de
1911, e posteriormente
transferido para a rua Sete de
Setembro, em estilo art decó, já
deteriorado, nos anos 90.
Fonte: Museu Histórico Municipal
de Cachoeira do Sul
No início da década de 40, foram construídos na praça José Bonifácio o
coreto para a Banda Musical do maestro Horn, as canchas para basquete
e voleibol, “possivelmente das melhores do Estado”, e o novo quiosque-
bar, explorado por Alberto Tromer, com “belíssimo aspecto pela exigência
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
248
249
de suas linhas, o que equivale dizer que muito contribuirá para o
embelezamento do mais central e mais bonito logradouro público da
cidade”. Neste conturbado período, o antigo cinema foi substituído pela
seção recreativa para crianças, com diversos aparelhos infantis, o café A
Carioca foi remodelado e o terreno ao redor do Mercado foi aplainado
com cascalho e terra, para servir de estacionamento.
181
Todas essas questões dizem respeito ao próprio crescimento urbano em
curso e são imagens que metaforizam positivamente a modernidade,
“como fruto e casa de chegada do progresso”, estabelecendo pontes
entre o moderno e o urbano.
182
Como escreveu um articulista do Jornal do Povo, em fins de 1930, “hoje,
Cachoeira é outra, está mudada, nova e com outra gente”. Ou o olhar do
visitante que viu a “beleza estética da cidade, aparelhada, como as
principais cidades do mundo de tudo que é necessário ao conforto, à
salubridade, ao aperfeiçoamento físico e moral de um povo”.
183
Para o
poeta cachoeirense Lisboa Estrazulas, a cidade tinha “movimento
urbano”, “bons automóveis, cafés, restaurantes chiques, boa luz, bom
calçamento”.
184
Para outro leitor, Cachoeira era “alegre como um salão
de baile e acolhedora como um jardim”. A impressão, ao vê-la, era de
que havia chegado-se a grande cidade. Era como os “maridos que se
orgulham, intimamente, de que as suas mulheres sejam elegantes e
181
Jornal O Commercio, 6/3/1940 Construído um coreto para a Banda Musical, p.1 e 14/
8/1940 Embelezamento da Praça José Bonifácio, p.1. JP, 5/7/1942 Reabertura do
café “A Carioca”, p.5, 13/12/1942 Vida desportiva. Canchas para basquete e voleibol,
p.2, 4/2/1943 Inaugurado o Estádio de Basquet-ball, p.2, JP, 7/2/1943 Edital de
Concorrência Pública para a construção e exploração de um quiosque e bar na Praça
José Bonifácio, p.3 e 14/3/1943 Noticiário. Será iniciada dentro de breve tempo a
construção do quiosque bar da Praça José Bonifácio, p.3. Termo de abertura de
proposta para construção de um Quiosque à Praça José Bonifácio, 16/2/1943. Fonte:
PM/D, 003, p.8
182
SCHPUN, Monica Raisa. Luzes e sombras da cidade (São Paulo na obra de Mário de
Andrade). In: Revista Brasileira de História. v.23 n.46 São Paulo, 2003 [disponível em
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-01882003000200002&
lng=es&nrm=iso&tlng=pt – acessado em 12/10/2005]
183
JP, 23/11/1930 Recordações. De tudo me recordo com saudades... AV, p.1 e 19/1/
1930 O Rio Grande visto por um yankee, p.1
184
JP, 16/7/1931 Sol – engenheiro-mór. Lisboa Estrazulas, p.1
cobiçadas, enquanto, de público, se lastimam das despesas que elas lhes
acarretam”.
185
Tentei até aqui elucidar os elementos que caracterizaram os processos
de formação econômico-urbana de Cachoeira, em especial sua sede.
Procurei entender a dinâmica da construção desse espaço central; como
aumentaram os reclames dado o êxodo populacional de subalternos, ora
em curso. A partir desta radiografia urbana, de sua constituição e
conformação, procuro remontar daqui pra frente o cotidiano
cachoeirense, reconstituindo-o historicamente, tentando ver a cidade
como resultado das relações de poder entre os sujeitos da história,
186
entre estabelecidos e outsiders.
Nestes últimos capítulos, persigo as rupturas ou mudanças nos padrões
de comportamento vistas nas práticas cotidianas da elite local, no período
em questão. Procuro entender os fluxos e refluxos originados pela
dinâmica das modificações urbanas, especialmente no que se refere às
práticas cotidianas da elite cachoeirense. Procuro mostrar que, com a
colisão entre grupos heterogêneos, este ambiente coletivo que propiciava
práticas cotidianas que buscavam apresentar o “verniz civilizador” tão
desejado pela elite local, ambiente que significava segurança familiar,
dado seu pequeno círculo social, passou a sofrer modificações profundas
e avassaladoras.
185
JP, 6/8/1931 Cachoeira, cidade-coxilha, p.1
186
SCHAAF, Mariza, GOUVÊA, Regina. Significados da urbanização: traços e fontes do
historiador. In: SÁ, Cristina [et al.], Olhar urbano, olhar humano. op.cit., 1991, p.57
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A economia e a chegada dos novos bárbaros
250
251
Parte II
práticas cotidianas
com verniz civilizador
4. Civilidade e
convivência
4.1. Regramento de conduta como fortalecimento e diferenciação
da elite
A convivência da elite com os subalternos no espaço urbano cachoeirense
mostrava-se de forma peculiar no regramento social imposto
simbolicamente pela e para a nata da sociedade cachoeirense dos anos
30-45. Conforme Norbert Elias, o “processo civilizador” do comportamento
dá-se na busca de unidade de determinado grupo social. Seguir ou não as
regras adotadas é o que permite pertencer ou não ao grupo. As regras
formam a auto-imagem que permitem estabelecer as diferenças dos de
dentro e dos de fora, dos de cima e dos de baixo. Para Elias, “o fato de
uma dada classe em uma fase ou outra do desenvolvimento social formar
o centro de um processo e, desta forma, fornecer modelos para outras
classes, e de que estes modelos sejam difundidos e aceitos por elas já
pressupõe uma situação social e uma estrutura especial de sociedade
como um todo, em virtude da qual a um círculo é cometida a função de
criar modelos e a outro de difundi-los e assimilá-los”. Ele mostra em
detalhes algumas destas mudanças na integração social que detonaram
as mudanças de comportamento, tais como usar garfo e faca, assoar o
nariz, escarrar, etc.
1
Assim, a razão da elite estabelecer determinadas regras de
comportamento ou etiqueta ocorre pela vontade de diferenciar-se da
plebe. Só assim, assenta e mantém certo distanciamento. Por outro lado,
é muito forte a vontade popular de aproximar-se cada vez mais desta
1
ELIAS, Norbert. O processo civilizador volume 1: uma história dos costumes. Tradução
Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994, p.124
elite, o que o faz por meio da assimilação das regras de comportamento.
É o perpétuo movimento de estabelecer regras para distanciar e assimilar
regras para pertencer. Na medida em que determinadas regras de
comportamento são assimiladas, outras regras são criadas para
restabelecer e impor novamente as diferenças sociais. Todavia, este
processo civilizador não segue movimento mecanicista nem autômato.
Pode que as regras não sejam assimiladas por completo, por questões
econômicas e culturais, ou assimiladas de forma distorcida, adaptadas,
permitindo à elite reafirmá-las, resgatando o aspecto tradicional das
regras ou mudando sua roupagem, reconfigurando-as. Pode ainda que as
regras de comportamento impostas sejam repelidas de súbito, repudiadas
inteiramente, como forma a estabelecer identidade grupal dos que não
fazem do grupo que busca diferenciação social.
Nos anos 30-40, as regras da fina flor da sociedade cachoeirense eram
influenciadas e identificavam-se, em certa medida, com o cosmopolitismo
porto-alegrense e o da capital federal, Rio de Janeiro. Estes, por sua
vez, também frutos da belle époque européia, em especial a parisiense.
2
A Crônica da moda, escrita por B.L. em 1939, assinala bem essa questão
ao registrar que Cachoeira, “graças ao seu desenvolvimento”, progredia
em termos de moda feminina: “o belo sexo da elite cachoeirense
acompanha a moda dos grandes centros”. O texto lembrava que o chapéu
completava os trajes chiques da época, tornando-se indispensável em
qualquer ocasião. De tamanho pequeno se fosse à noite ou com o vestido
soirée” e de aba média com “tailleur”.
3
A nota Gesto gentil, publicada
em 1931, expõe condição idêntica. O Bureau Pelotense de Informações
ofertou, na época, a senhorita Nair Corrêa, rainha cachoeirense da
Primavera, com uma “Petite Renarde”, enfeite feminino para toaletes,
“o chic da moda”.
4
O uso de expressões francesas em ambos textos denota
a forte influência européia
As reformas urbanas, tidas como a “regeneração da cidade”, tinham
semelhante gênese e comungavam com ideais parecidos, legando
prodigiosas novidades para a elite, na medida em que construíram ou
melhoraram significativamente o espaço público da zona central.
Calçamento de ruas e passeios, ajardinamento das praças, iluminação
pública e aterramento de esgoto, isso tudo significou mudanças no fazer
e proceder no urbano.
As regras de civilidade em Cachoeira foram forjadas neste contexto. Em
1935, por exemplo, a coluna Vida Social publicou periodicamente regras
de etiqueta, de como sorrir, passar pelas portas, dar gorjetas, usar
maquiagem, portar-se no teatro, nos cafés ou em jantares dançantes,
montar a cavalo, receber convidados, comer e palitar os dentes, discursar
ou fazer brindes à mesa, pagar honorários, usar o telefone, aspectos das
cartas, como escrevê-las e perfurá-las, qual tipo de papel e caligrafia a
usar, etc.
5
Tais regras deveriam ser observadas nos encontros desta elite,
principalmente os festivos. Em 1929, o chique da cidade era a Confeitaria
Central, na rua Sete de Setembro. O anúncio publicitário destacava a
elegância do estabelecimento: “V.S. quer passar algumas horas distraído,
ouvindo boa música num lugar confortável e chique? Vá todos os dias na
Confeitaria Central. Rua Sete de Setembro n.141”.
6
Nesta época era
comum festejar o Dia da Flor, quando senhoras da “melhor sociedade”
vendiam flores por todos os recantos da cidade, em benefício de alguma
obra assistencial, como a remodelação da Igreja Matriz.
7
Desde os anos 20, a recepção oferecida em ambientes privados estava
em voga. A festa íntima realizada na residência de Balthazar de Bem, em
1922, já dava mostras do quanto esses encontros seriam importantes
para a elite cachoeirense. O fato da festa ter sido registrada em fotografias
demonstra a estirpe dos convidados. O vestuário do “belo sexo” é outro
indício forte de como a elite local estava em plena sintonia com o que
havia de mais chique na moda européia.
2
Ver PAULILO, André Luiz. Os artífices da metrópole: anotações sobre a transformação
da vida urbana carioca depois da Belle Époque. In: Revista Educação e Sociedade.
Vol.25 n.87 Campinas/SP: CEDES, Maio/Ago 2004 [disponível em http://
www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-73302004000 200010 –
acessado em 13/03/2006]
3
JP, 26/3/1939 Crônica da moda. B.L., p.2
4
JP, 15/10/1931 Noticiário. Gesto gentil, p.3
5
JP, Coluna Vida Social, p.2, edições das seguintes datas: 1/8/1935, 8/8/1935, 11/8/
1935, 15/8/1935, 22/8/1935, 25/8/1935, 29/8/1935, 8/9/1935, 12/8/1935, 19/9/
1935, 22/9/1935, 3/10/1935, 10/10/1935, 13/10/1935, 17/10/1935, 24/11/1935,
28/11/1935, 5/12/1935 e 8/12/1935
6
JP, 22/8/1929 Anúncio, p.3
7
JP, 7/7/1929 Noticiário: o dia da flor, p.2
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Civilidade e convivência
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257
Figura 103 – Instantâneo da festa íntima na residência de Balthazar de Bem, pose do
belo sexo, em 1922. CAMOZATO, Benjamin C. (org.) Grande álbum de Cachoeira no
Centenário da Independência do Brasil, op.cit., 1922
Nas chamadas “reuniões íntimas” eram servidos “gelados” e “doces finos”,
ao som de jazz, como o Melodia de Ouro, dirigido pelo maestro Henrique
Horn, que fazia “sucesso de arromba”, ou o Treme-Terra, sob a direção
de Darci Schaurich e Darci Carvalho. O que havia de “chic em Cachoeira”
comparecia. Os jantares eram considerados “opíparos” (esplêndidos),
compostos de finos “acepipes” (petiscos). E mesmo que os aniversários
não tivessem organização prévia, o grande número de pessoas que
aparecia para felicitar o aniversariante já permitia fazer-se de improviso
animadíssimo “sarau dançante” que prolongava-se “até altas horas da
noite entre as mais expansivas demonstrações de alegria”. Em muitas
festas, os amigos “assaltavam” a residência do aniversariante que
oferecia, logo em seguida, “fina mesa de chá” no clube ou sociedade.
8
Esse empolamento aristocrático nos eventos sociais foi, inclusive, uma
das formas encontradas para dar sobrevida e perpetuar a diferenciação
social, atitude considerada necessária e mesmo desejada pela elite local
frente à desorganização provocada pelo intenso fluxo de subalternos
chegados na zona urbana. Nos anos subseqüentes à guerra, as
confraternizações sociais da elite não seriam descritas de maneira
diferente. Em 1945, o colunista Ruy Porto relatou a festa de quinze anos
de Mafalda Schneider, filha de Edwino e Corina Cunha Schneider. A
recepção dos convidados na entrada, os salões engalanados, a mocidade
de “rara beleza” nos sofás, gabinetes, copas, “grupos alegres de senhoritas
e rapazes” aguardando o início do baile, a banda de jazz. Sob acordes de
valsa, o pai deu início aos festejos, dançando com a aniversariante. Para
o comentarista social, ele irradiava alegria e orgulho por ver “coroado
de êxito todos os seus esforços entregando agora à sociedade cachoeirense
mais um fino ornamento”. Esta concepção denota o quanto aquele
momento deveria ser sublime para a jovem, mas que também ela era
coisificada, tratada como objeto de propriedade do pai, que a adornava
a seu modo, entregando-a para a sociedade e, posteriormente, para o
marido.
9
Como passaporte para o pertencimento à minoria cachoeirense, essas
regras de civilidade necessitavam ser observadas também nos
relacionamentos afetivos, nas ligações sentimentais de gênero, entre
homens e mulheres. A começar pela separação social, fruto dum
segregacionismo racial implícito. Em 1929, por exemplo, um homem negro
e bem vestido chamava a atenção de senhoritas brancas. De certa
maneira, o jornal incita os homens a insurgirem-se contra o que denomina
“atentado”. Em nota publicada, informa sobre “rumores” de que os
homens não compreendam a “nobreza de certos sentimentos”. Prevê
ainda que o “D. Juan” termine “a beleza de seu romance” na cadeia. De
forma natural, conclui que a sociedade era assim mesmo, não admitia
“almas brancas, a não ser em corpos brancos”.
10
Nessa sociedade exclusivista, onde os cavalheiros trajavam branco, as
damas deveriam ser tratadas com galhardia e os hóspedes com
acolhimento.
11
Atitudes cotidianas motivavam debates. O articulista E.R.
criticou aquilo que designou de “demonstração de incivilidade” quando
8
JP, 2/2/1933 O lado cor-de-rosa da vida, p.2, 21/5/1933 Vida social. Aniversário
festejado, p.2, 16/3/1933 Vida Social. Aniversário festejado, p.2, 22/6/1933 Vida
Social. Aniversários festejados, p.2 e 24/12/1936, Vida Social. Recepção, p.2
9
JP, 30/12/1945 Inesquecível festa social. Ruy Porto, p.2
10
JP, 28/7/1929 Um homem negro, p.1
11
JP, 8/11/1931 Noticiário. Confeitaria Central, p.3 e 22/6/1933 Bilhetes urbanos. A
Zizi. Marinha Noronha, p.1
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Civilidade e convivência
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homens ocupavam o passeio para fazer palestras, obrigando senhoras e
senhoritas a fazer a volta ou mesmo descer da calçada. Segundo ele, a
não ser que fosse adotada a praxe das capitais, de se andar pelo lado
direito, indistintamente, as “boas maneiras” asseguravam o lado da
parede ao “belo sexo”.
12
Braz Camilo polemizou sobre a melhor forma de
saudação e despedida pessoais, que variavam conforme a situação.
Chamou de pastrana a senhorita que despediu-se com um “passe bem”,
recebendo, como resposta para tal atitude desavergonhada, um “e vice-
versa”.
13
A pretensa elegância e gentileza que os homens deveriam ter com o sexo
feminino escondia, em seu âmago, relações de profunda desigualdade. É
o sentido que Pierre Bourdieu dá para a história das mulheres, vista como
a história de uma relação de dominação, entre mulheres (dominados) e
o olhar histórico (dominantes) que, de certa forma, alicerça a dominação
masculina. Para ele, “a relação de dominação exerce-se essencialmente
através da violência simbólica, através da imposição de princípios de
visão e divisão incorporados, naturalizados, que são aplicados às mulheres
e, em particular, ao corpo feminino”. Desta maneira, a violência simbólica,
campo da relação de dominação, reside na perspectiva de como enxergar
a mulher e o corpo feminino, em sua fragilidade, no trabalho afeito às
coisas leves, como o doméstico.
14
Uma história feminina em que os direitos
de igualdade foram forjados numa lenta e prolongada enunciação.
15
Na imprensa cachoeirense, o papel feminino no relacionamento era posto
de maneira pontual. A mulher solteira que sustentasse a casa era
considerada grande “abacaxi”, pois o pretenso noivo, como futura “cabeça
do casal”, teria de assumir a responsabilidade pela família da esposa.
16
As jovens tidas por feias e que descuidavam das aparências, dificilmente
arranjariam casamento, visto que na apresentação visual residia a atração
dos rapazes.
17
Era bastante comum homens publicarem anúncios
procurando moças para casamento. O cronista Juvenal relatou o desfecho
duma destas situações. O cidadão, após anunciar suas pretensões, recebeu
correspondência nos seguintes termos:
Cachoeira, 4.9.36. Sr. Cupido. Consoante seu anúncio no Jornal do Povo e julgando-me
em condições de satisfazer os requisitos exigidos pelo mesmo, pretendo casar-me,
apresento-me dando o seguinte perfil e dados: residência própria, com garagem,
atualmente nesta cidade; fortuna em dinheiro e jóias, para mais de oitocentos contos
de réis (800:000$000); moça, airosa (modéstia à parte), cor clara, cabelos e olhos negros,
sinalsinho preto acima da covinha da face, regular cultura espiritual e física. Quanto à
1ª qualidade, a de ser bela, só vendo pra crer; e a respeito da 2ª qualidade, a de ser
estúpida, isto não resta a menor dúvida, porque, apesar de bem jovem, sou viúva, em
segunda núpcias, e aqui estou para lhe fazer uma contra-proposta de casamento. Para
consumação do ato, basta que o anunciante preencha os seguintes requisitos: que além
de jovem, esbelto, belo, cor clara, cabelos e olhos castanhos, tenha cultura espiritual
e física; quanto á espiritual não exijo que seja muito aprimorada, porque, como diz o
ditado: “quanto mais burro, mais peixe”, que além dos 800:000$000 mensais, deva
possuir um bom auto, afim de que a vida afetiva e efetiva do lar, tenha o seu
prolongamento ao ar livre. Como não exibiu fotografia, pode o proponente aparecer em
carne e osso e contratar com o original, no Alto dos Loretos, travessa da Avenida Brasil,
casa térrea, uma porta e duas janelas na frente, três janelas e jardim de amor perfeito
ao lado. Jeannette
12
JP, 14/4/1938 Luz! Mais luz! E.R., p.1
13
JP, 14/4/1940 Braz Camilo, p.1
14
Segundo Bourdieu, o fundamento da dominação masculina é que ela se reproduz a
partir da incorporação da legitimidade do princípio da dominação nas percepções
femininas. Ver BOURDIEU, Pierre. Observações sobre a história das mulheres. In:
DUBY, G., PERROT, Michelle. As mulheres e a história. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1995, p.57-59; BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1999 e CHARTIER, Roger. Pierre Bourdieu e a história. Debate com José Sérgio
Leite Lopes. In: Revista Topoi, Rio de Janeiro: PPG História Social/UFRJ, mar. 2002,
pp. 139-182 [disponível em http://www.ifcs.ufrj.br/~ppghis/pdf/topoi4a5.pdf –
acessado em 17/3/2006]. Ver ainda VELOSO, Renato. Relações de gênero: notas
introdutórias. In: Enfoques On-line. Revista eletrônica dos alunos do programa de
Pós-graduação em Sociologia. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro/
PPGSA, v.1, n.1, dez/2002. [disponível em http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br/pdfs/
julho2003.pdf – acessado em 17/3/2006], GALSTER, Ingrid. Cinqüenta anos depois
de O segundo sexo, a quantas anda o feminismo na França? Uma entrevista com
Michelle Perrot. In: Revista Estudos Femininos. Vol. 11, n.2, Florianópolis/SC, jul-
dez, 2003. [disponível em htpp://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex
&pid=S0104-026X2003000200010 - acessado em 18/4/2005]
15
Ver BRUM, Rosemary Fritsch. Uma cidades que se conta. Imigrantes italianos e
narrativas no espaço social da cidade de Porto Alegre (1920-1937). Tese de Doutorado
[orientadora Nuncia Santoro Constantino], Porto Alegre/RS: Pontifícia Universidade
Católica/RS, PPG-História, 2003, onde objetivou o olhar perspectivo, o estranhamento
do estrangeiro; e BRUM, Rosemary Fritsch. Mulheres imigrantes: a lenta enunciação
dos direitos. In: SELBACH, Jeferson (org.). Mulheres: história e direitos. Cachoeira
do Sul/RS: Ed. do Autor, 2005, p.33-46, onde aprofunda a análise das italianas chegadas
nas primeiras décadas do século XX, em Porto Alegre, e sua condição histórica de
exercício dos direitos que acompanham a condição democrática.
16
JP, 3/4/1938 Bilhetes urbanos. E.R., p.1
17
JP, 24/3/1938 É obséquio tirar o chapéu E.R., p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Civilidade e convivência
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261
O perfil da mulher que respondeu ao anúncio é de alguém pertencente a
círculos sociais distintos, com bens particulares, apesar de jovem,
medianamente culta mas bem apessoada. E de personalidade forte, a
ponto de fazer contra-proposta, impondo alguns pré-requisitos, como
beleza física e boas condições sócio-econômicas. Como cupido, o cronista
narrou a resposta do pretenso noivo, que desconsiderava a oferta,
afirmando que o “negócio” não poderia concretizar-se, sob o argumento
de que “seu delicado paladar repele, instintivamente, manjares que já
foram servidos e tocados por defuntos”. O fato da pretendente ser viúva
traria a ele outra desvantagem. Como nunca casara, teria de enfrentar
“adversária extremamente experiente nas pugnas matrimoniais”. Para
terminar, sugeriu a ela que procurasse as agências Prudêncio Schirmer
ou Werlang, a fim de obter o tão desejado automóvel para pôr em sua
garagem vazia.
18
Mostra da profunda desigualdade estabelecida simbolicamente entre as
comunhões afetivas era a idéia de que, para os casados, a vida conjugal
matava a paixão. O anúncio do estúdio fotográfico Aurora, em 1933,
retrata parte desta questão ao tentar vender seus serviços. A melhor
recordação do casamento seria o retrato.
19
De forma semelhante, Braz
Camilo apontou em crônica escrita em 1941, o arrefecimento do
casamento, a perda de energia e entusiasmo dos enlaçados. Num certo
baile, em ambiente de grande animação, com todos querendo “penetrar
nos umbrais do ano novo dançando”, a moça triste e solitária não
despregava os olhos de certo homem. O amigo deste, notando o fato,
comentou com ele que o gesto pedia apresentação, ouvindo como
resposta: “Não pede, é minha mulher”.
20
Nos processos judiciais
envolvendo litígios conjugais prevalecia essa discriminação. Em 1931, o
juiz da Comarca, Dionisio Marques, julgou improcedente a ação de
desquite proposta por Miguelina de Moraes Lima contra seu marido Ataliba
Chaves de Lima, procedendo a reconvenção oposta por este, para decretar
o desquite e mandar que a criação e educação dos filhos do casal ficasse
a cargo do marido.
21
Essa prevalência masculina podia ser encoberta, em certa medida, por
nuances específicas, como o romantismo atribuído a geração dos homens
nas décadas de 20-40. O papel masculino, nesse sentido, aproximava-se
da melancolia e saudosismo pela amada, amor muitas vezes não
correspondido. Em momentos como esse, em que o coração derretia-se
no mais desconsolador dos prantos, em que a garganta apertava, afirmava-
se que o sujeito podia optar em tomar estricnina para envenenar-se,
comprar uma vitrola para ouvir música deprimentes ou escalar o amigo
para discorrer em lástimas.
22
Assim como em outras cidades brasileiras,
era comum as serenatas dos “vagabundos líricos”, “poetas anônimos da
rua”, que erravam na noite com violão em punho, entoando “descantes
amorosos para dulcinéias desdenhosas”.
23
Todavia, para além do confronto de atribuições sociais nessas relações
de gêneros, o papel feminino da mulher cachoeirense até os anos 40
ultrapassa o estereótipo da fragilidade, meiguice e simpatia feminina,
em contraposição ao imbatível, indócil, rude ou mesmo melancólico do
macho. No seio do universo feminino residiam conflitantes relações
sociais, nada implícitas.
24
Nas décadas de 30-40, quando o município
balizava a região através da administração de seus vários distritos, a
cachoeirense era notícia no jornal num duplo aspecto: pertencente à
elite, onde descreviam-se seus refinamentos, ou subalterna, onde os
defeitos morais eram explorados.
25
As que participassem dos concursos de beleza eram consideradas pela
imprensa como senhoritas de “fina educação, de traquejo social, dotadas
de elegância”.
26
A miss cachoeirense de 1930, Alzira Torres, foi descrita
como “linda e meiga”, que fez-se “queridíssima de todas as suas
companheiras de torneio”, dos quais tornou-se “dedicada e adorável
amiguinha”. Como orgulho da elite, portanto de toda comunidade na
visão do Jornal do Povo, destacava-se a inserção no mundo social da “tão
nobre e encantadora miss”, “bela expressão das altas qualidades
18
JP, 10/9/1936 Instantâneo. “Endereço errado” Juvenal, p.1
19
JP, 22/1/1933 Anuncio econômico. Noivos!, p.3
20
JP, 1/1/1941 Braz Camilo. O Baile, p.1
21
JP, 10/12/1931 Noticiário. Desquite Decretado, p.3
22
JP, 15/8/1929 Spleen, p.1
23
JP, 18/8/1929 Na vida intensa da cidade. Dentro da noite, p.3
24
Ver CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e violência simbólica. In: DUBY, G.
PERROT, Michelle. As mulheres e a história. op.cit., 1995, p.37-44
25
Desenvolvi essa idéia em SELBACH, Jeferson. Mulheres cachoeirenses: elite e
subalternas se diferenciam. In: ___ (org.). Mulheres: história e direitos. op.cit.,
2005, p.5-32
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Civilidade e convivência
262
263
espirituais da alma feminina riograndense”.
27
Antes da partida para o
concurso regional, fez “concorridíssimo bota-fora” em sua homenagem,
sendo-lhe oferecidos inúmeros ramalhetes na ocasião, gestos que
procuravam reforçar a idéia de que tratavam-se de pessoas civilizadas e
especiais.
28
Esta visão elitista impregnava outros concursos, como o da escolha da
rainha da I Festa do Arroz, realizado em 1941 e a Festa do Trigo de 1956,
onde todas candidatas tinham que ser filhas de plantadores ou de
proprietários de moinho; ou ainda como em épocas carnavalescas, quando
a escolha da rainha do carnaval recaía entre associadas dos clubes
tradicionais: Clube do Comércio, Rio Branco, Grêmio Náutico e Clube
União Familiar.
29
As descrições da época refletem o simbolismo de que se revestia a
cerimônia. No carnaval de 1932 do Clube Comercial, a rainha Maria
Antonieta de Carvalho foi conduzida com suas aias ao trono armado no
fundo do salão do baile.
30
A pompa perdurou nos anos seguintes. Em
1952, Ila Lara fez um tour, levando “folia desde a mais fina e aristocrática
sociedade, até ao mais humilde salão”, como Cordão de Ouro e Filhos do
Morro,
31
ato que desejava mostrar a inexistência de diferenças sociais
sob o reinado do Momo.
Entretanto, os espaços de animação carnavalesca eram espacialmente
bem delimitados. A elite festejava nos clubes enquanto os demais
acompanhavam blocos populares nas ruas. O desequilíbrio social mostrava-
se na organização da festa. Os simplórios desfiles nas ruas não eram
páreos para a decoração e os trajes refinados nos clubes. Como veículo
de comunicação da e para a elite, o jornal apontava as diferenças. Nos
clubes, a folia era animada; nas ruas, o desfile não tinha sucesso. Muitos
cronistas usavam do sarcasmo para estigmatizar as folionas subalternas.
Em 1948, o diretor do JP, Manoel de Carvalho Portella, assinando a coluna
Pingos nos ii... com o pseudônimo de Chinês, ironizou as carnavalescas:
Estamos nas vésperas de carnaval. Vocês não observaram uma coisa? Os jornais
diariamente aparecem cheios de anúncios com os seguintes dizeres: ‘precisa-se de uma
empregada – Tratar rua tal n.º tal’. Gente boba mesmo. Então não sabem que as ‘morenas’
querem é rosetar...
32
A ironia reflete as marcas infames imputadas às mulheres subalternas
pelas famílias da elite cachoeirense da época, que as tratavam com
menosprezo e desconsideração a ponto de afirmar que, mesmo em eventos
populares como o carnaval, elas não deviam descuidar dos empregadores.
Ao mesmo tempo, colocava-as em posição de despudoradas, ao utilizar o
termo “rosetar”, que significa divertir-se à larga com pessoa do sexo
oposto. Agravado pelo fato do juízo de valores vir do próprio diretor do
jornal, demonstrando de quem a imprensa cachoeirense, em especial o
Jornal do Povo, era porta-voz.
33
De forma quase unânime, as qualidade morais daquelas que concorriam
a miss ou rainha contavam pontos nos júris, compostos por pessoas que
pudessem refletir o desejado perfil social elitista de seu tempo. Mesmo
as rainhas dos carnavais dos clubes e sociedades, escolhida entre aquelas
mais animadas, não podiam ser despudoradas. Outro aspecto era a própria
beleza, vista na época principalmente pela cor do cabelo, dos olhos e o
tom da tez. Estes três quesitos demarcavam o território do estigma do
corpo feminino. Numa época em que as vestes da elite escondiam a
maior parte do corpo, ter pele, cabelos e coróides naturalmente da cor
desejada, além da chamada educação civilizada, podia garantir destaque
e possibilitar virar modelo para as demais, razão pela qual o concurso de
miss era tão concorrido e educava-se desde cedo para ele, através dos
concursos de beleza infantil.
34
Muitas textos opinativos do jornal nesta época, escritos em sua maioria
por homens, demarcavam o modelo de mulher em voga, frágil por
natureza e que, por isso mesmo, deveria colocar-se atrás do homem,
pondo em segundo plano seus interesses pessoais. Em 1933, Marlus
defendeu de forma irônica o nudismo feminino pois fortalecia a saúde do
corpo. Só para as mulheres porque elas seriam fracas por excelência,
“um murro bem dado pode achatá-las”, escreveu textualmente. As da
26
JP, 17/4/1930 Concurso de beleza, p.1
27
JP, 25/5/1930 Concurso de beleza, p.2
28
JP, 8/5/1930 Noticiário. O embarque de miss Cachoeira, p.3
29
SCHUH, Ângela. CARLOS, Ione Sanmartin. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história.
op.cit., 1991, p. 189-200
30
JP, 11/2/1932 Carnaval. Os bailes realizados estiveram brilhantes., p.2,
31
JP, 2/3/1952 Carnaval nas Sociedades locais, p.4
32
JP, 19/2/1953 Carnaval animado nos clubes mas ausente na rua, p.3
33
JP, 25/1/1948 Pingos nos ii... Chinês. Precisa-se de uma empregada, p.2
34
JP, 17/4/1930 Concurso de beleza, p.1, 25/5/1930 Concurso de beleza, p.2 e 14/7/
1932 Noticiário. Concurso de Beleza Infantil, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Civilidade e convivência
264
265
elite carregavam o estigma da futilidade, como gastar todo tempo que
dispunham para andarem bem vestidas, visto que a escolha do figurino
demandava várias horas, desde a compra da fazenda e aviamentos até as
horas e horas gastas nas modistas ou no toalete. Se andassem nuas,
aproveitariam melhor o tempo cuidando dos maridos, pais, irmãos ou
dos filhos, que usavam as roupas “sempre em petição de miséria”. A
iniciativa faria, inclusive, com que as despesas do lar diminuíssem
consideravelmente.
35
Para corroborar com este ponto de vista masculino,
o Jornal do Povo reproduziu carta publicada originalmente no Correio do
Sul, de Bagé/RS, assinada por Romeu Bomba, intitulada Eterno feminino.
Para ele, “rímel, rouge, crayon, cutex, pós de arroz e Magic, e perfumes,
e mais outras baboseiras” serviam para as mulheres enganarem os homens.
Tudo isso trazia o infortúnio para o lar, agravado pela carestia dos anos
30.
36
De certa forma, os textos antecipam o sentimento de perda de prioridade
que os homens veriam agravado nas décadas seguintes. A imagem de
desperdício e futilidade femininas foi a resposta masculina para a
ampliação do espaço econômico-social pelas mulheres. Um destes espaços
ocupados era o próprio “guiar automóveis”, reduto tipicamente masculino.
O cronista Juvenal inventou a lei autorizando somente mulheres
balzaquianas a dirigir, pela razão que “só depois dos 30 é que a mulher
pode gozar, em toda plenitude, de sua liberdade de locomoção”.
37
Outro
espaço masculino, invadido pelas mulheres, foi a política. O voto feminino
foi tido como “contra-senso”, visto que homens e mulheres juntos eram
concebidos somente em eventos de menor importância, como banquetes,
bailes e piqueniques. A atração feminina poderia acarretar em flerte
eleitoral, algo “imoral” e que poderia acarretar as “piores
conseqüências”, verdadeiro “desastre social”.
38
Já o mundo feminino subalterno era retratado principalmente em suas
questões vexatórias. Não podiam ser consideradas decentes as mentirosas,
fofoqueiras, aventureiras, vulgares, que mandavam fazer vestidos e não
pagavam a costureira. Moças de família não promoviam reuniões de
homens nem faziam escândalos em público, como brigas a tapas, dentadas
e puxões de cabelo ou falar impropérios.
39
A imoralidade, que valia tanto para as da elite quanto para as subalternas,
era freqüentemente combatida nas páginas do jornal. A crônica Meias
curtas, assinada por C. em 1933, polemiza acerca da “audácia” de algumas
mulheres em usar meias soquetes, que chegavam apenas à altura do
tornozelo e deixavam a mostra a “epiderme das perna femininas”. O
autor defende seu uso, argumentando ironicamente que haveria de chegar
o tempo em que a moda faria as mulheres não usarem meias, sequer as
curtas.
40
Amores não correspondidos poderiam levar as moças atentarem contra a
própria vida, algo comum na medida em que publicamente entendia-se
que as adversidades eram reparáveis mas intimamente a comunidade
fechada condenava as “desonradas”.
41
Nos anos 30-40, eram freqüentes
os casamentos na delegacia. O autor da desonra podia escolher entre ser
trancafiado pelo crime de “defloramento” – de ter roubado a honra da
moça sob promessas de casamento, antes do enlace definitivo – ou assumir
o casamento. Nesse caso, o delegado ficava responsável por fazer os
arranjos necessários, como ultimar os papéis para o casório. Realizaram-
se no ano de 1933 nada menos que 54 casamentos nestes moldes.
42
Podia que o autor do crime oferecesse algo para a desvirginada desistir
do processo, como dinheiro ou objetos de seu interesse, ou mandasse
publicar no jornal apedido declarando “a bem da verdade e por ser de
alta justiça, que a senhorita é uma moça honesta e virtuosa, nada se
podendo dizer que afete a sua honra”.
43
Embora não decisivo, o
35
JP, 11/5/1933 Porque sou pelo nudismo das mulheres. Marlus, p.1 e 25/6/1933
Geladeira, p.1
36
JP, 17/5/1934 Eterno feminino. Romeu Bomba, p.1
37
JP, 3/12/1936 Instantâneos. Juvenal. Proibição, p.1
38
JP, 18/10/1931 O voto feminino, p.1 e 30/3/1933 Edital de qualificação. Cartório
eleitoral da 9ª zona, Cachoeira, p.3. No Anexo XI, relação nominal das eleitoras de
Cachoeira, cartório eleitoral da 9ª zona, em 1933, com número do título.
39
JP, 17/4/1930 Suposições, p.1, 31/7/1938 Ocorrências policiais, p.3 e 21/1/1948
Pingos nos ii... Chinês, p.2
40
JP, 23/3/1933 Meias curtas. Crônica Social. C., p.1
41
JP, 10/10/1929 Quis morrer, p.3
42
JP, 23/8/1931 Os delitos repugnantes, p.2, 11/5/1933 Noticiário. Concessão de habeas-
corpus, p.3, 14/1/1934 Seção livre. Declaração necessária, p.3, 18/1/1934 Noticiário.
Casamentos na polícia, p.3, 12/8/1934 Vida forense. Crime de estupro, p.3, 9/9/
1934 Noticiário. Crime de defloramento, p.3 e 15/5/1938 Ocorrências Policiais. Queixa
e casamento, p.3
43
JP, 1/5/1930 Polícia, p.3 e 1/10/1931 Seção livre. Declaração, p.2
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Civilidade e convivência
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267
rompimento do hímen representava prova importante da consumação do
ato carnal. Para Boris Fausto, a sociedade simbolizava a honra feminina
na membrana vaginal, distinguindo as mulheres puras e impuras. Como
seu maior capital, cabia às mulheres manter intacto o “selo”. Os homens
temiam expor-se ao ridículo casando com moças chamadas popularmente
de “furadas”.
44
As desonradas podiam optar pela via criminosa, como abortar, motivadas
por variadas razões: vaidade, dificuldades da vida ou para encobrir os
“desvios da vida honesta”. Já em 1929, o Jornal do Povo desencadeou
campanha em nome da moralidade da sociedade cachoeirense para
combater a prática do aborto, que matava o “fruto da união pecaminosa”,
“ato que a moral condena, a sociedade reprova e a que a lei pune
severamente”.
45
A forma como a questão era tratada, na imprensa ou no
meio social requintado, refletia o estado de espírito da época. O filho
indesejado significava desviar-se da vida digna, honesta, desviar-se dos
preceitos religiosos, portanto, condenada a morrer em estado de pecado,
ter reprovação divina e privação definitiva da comunhão com Deus. Para
as subalternas, a exigência de seguir tais preceitos não chegava a ser
rigorosa. Mas para as moças da elite, que viviam num ambiente onde os
atos eram determinados por regras simbólicas muito mais perversas,
deixar de segui-los era atentar contra a moral e os bons costumes, podendo
ser, inclusive, excluídas do convívio social.
Tais atitudes refletem a postura machista da época mas também
possibilitam o entendimento de que o padrão elitista tão desejado não
era seguido à risca por todas mulheres. Quebrar os votos de castidade
significava mais do que se deixar encantar pelas promessas do amado;
era a própria revolução sexual em curso, que se intensificaria com o
término da guerra, através do uso de antibióticos para controlar doenças
sexualmente transmissíveis, como sífilis, da integração da mulher no
mercado de trabalho, das políticas de planejamento familiar, com o uso
da pílula em resposta à explosão populacional.
De certa forma, eram tentativas de romper com a força da tradição
moral religiosa que aprisionava tanto homens quanto mulheres, embora
os varões acabassem não valorizando as normas de forma tão contumaz,
sem muita obstinação e afinco. Mesmo numa época em que os bígamos
eram presos e julgados, comumente homens casados em outras cidades
passavam-se por solteiros e namoravam mulheres cachoeirenses.
46
Essa moral religiosa sustentava sua legitimidade nas estatísticas,
principalmente da quantidade de fiéis e do número de espaços religiosos.
Os números do IBGE, referentes a década de 20, mostram que 93,5% do
total de templos no Brasil eram católicos. Entre catedrais, matrizes,
basílicas, igrejas, capelas, oratórios e santuários, havia um total de
11.271. Minas Gerais era o Estado com maior número (2.496), seguido de
São Paulo (1.731), Rio Grande do Sul (937), Bahia (927) e Pernambuco
(664). Em relação aos adeptos, somente no ano de 1933 foram batizados
no catolicismo 1.159.470 fiéis. Até a década de 40, a média de batizados
no Brasil ficou em torno de 1,4 milhões/ano, número representativo para
uma população estimada em 41 milhões.
47
Em Cachoeira, o catolicismo influenciava a vida de boa parte das pessoas,
a elite em especial. Nossa Senhora da Conceição foi escolhida como
padroeira da cidade. Sua estátua foi posta no frontispício da Igreja Matriz.
Eram freqüentes os apelos para obras e reformas dos templos católicos.
48
Acontecimentos religiosos atraíam milhares de fiéis, como a chegada do
coração do padre Roque Gonçalves.
49
O Jornal do Povo propagava os ideais
do catolicismo, ainda mais sob direção de Liberato Salano Vieira da Cunha.
Como escreveu a leitora Carina Pessoa: “sem ser um jornal religioso, a
sua orientação é verdadeiramente católica, imprimindo no feitio do jornal
44
FAUSTO, Bóris. Crimes e Cotidiano. A Criminalidade em São Paulo (1880-1924). São
Paulo: Brasiliense, 1984. O crime aparece no Código Penal de 1890 (art. 267) como
“defloramento” e no Código Penal de 1940, como “sedução” (art. 217).
45
JP, 19/9/1929 Abortos criminosos, p.2 e 29/7/1934 Noticiário. Infanticídio, p.3
46
JP, 24/6/1934 Noticiário. Vida forense. Crime de bigamia, p.3 e 22/4/1934 Declaração.
Rubem Leitão Schutz, p.5
47
Fonte: Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Tabelas:
Culto Católico em 1933, Culto Protestante em 1922, Movimento religioso no culto
Católico em 1933. Serviço de Estatística Demográfica, Moral e Politica. Anuário
estatístico do Brasil 1941/45. Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, 1946. Tabela Média anual
dos batizados no culto católico romano, segundo as unidades da federação em 1943.
48
JP, 4/7/1929 Apelo ao povo da cidade e do município, p.1, 19/9/1929 Inauguração de
um monumento, p.1, 15/12/1929 A pedido. Para as obras da matriz, p.2 e 20/6/1935
Lenda de Cachoeira. Lisboa Estrazulas, p.1
49
JP, 25/2/1940 Constitui em grande acontecimento religioso a chegada a Cachoeira do
coração do padre Roque Gonçalves, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
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268
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a sua idéia, a sua atitude firme, de defesa dos princípios da nossa Igreja
Católica e dos nossos costumes cristãos”.
50
Apesar da maioria dos cachoeirenses declararem-se católicos, outras
religiões ou seitas encontraram terreno fértil na cidade para desenvolver
suas atividades. No Brasil, as 734 sedes de igrejas evangélicas recenseadas
nos anos 20 representavam pouco mais de 6,5% das católicas. Os
protestantes concentravam-se principalmente em São Paulo (155), Rio
Grande do Sul (109), Rio de Janeiro (75), Minas Gerais (75) e Bahia (59).
O censo de 1939 dividiu as congregações em católicas e acatólicas.
Respectivamente: 3.376 e 343 no Brasil, e 310 e 88 no Rio Grande do Sul.
O número de templos acatólicos apontado neste recenseamento aumentou
consideravelmente, subindo para 1.626 (1.228 protestantes e 398 outros),
no Brasil, e 373 (299 protestantes e 74 outros) no Rio Grande do Sul. Na
metade da década, o número de pessoas que se declararam protestantes
foi de 167.457 no Brasil e 30.663 (18,31%) no Rio Grande do Sul (atrás
apenas de Santa Catarina com 32.606).
51
O tratamento da imprensa cachoeirense às outras congregações religiosas
diferiu daquele dispensado ao catolicismo. Assim como para os negros,
loucos e prostitutas, os “mandigueiros”, “macumbeiros”, “pais-de-santo”
ou “médiuns” eram estigmatizados pelo senso comum e pelos saberes
propalados pelas elites brasileiras, envolvendo, em uma só trama, sujeitos
que tinham em comum a pobreza, a exclusão e a desqualificação, que
representavam o inverso da “alva segurança nômica propalada pela
religião institucionalizada e pelos saberes oficiais”.
52
Num misto de
aceitação e repulsa, estava em xeque a capacidade de convencimento
de algo não palpável: a fé.
Nos anos 30, a visita de cartomantes era comumente noticiada através
de anúncios no JP – “Madame Helba. Cartomante internacional. Hospedada
no Hotel Rosa recebe visita dos interessados e atende chamados á casa
de famílias. Faz estudos grafológicos sobre a vida política, comercial e
particular. Poucos dias nesta localidade.” – ou em pequenas notas: “Uma
quiromante famosa. Já de há dias que nesta cidade está a famosa
quiromante européia Madame Kitty, podendo ser procurada no Hotel do
Comércio”.
53
Notícias contrárias ganhavam maior destaque, como a da mulher numa
localidade do interior cachoeirense, publicada em 1931. Por ela ter sido
“atuada” por “espírito mau”, em plena estação local, levou “sopapos”
do “pai santo” que a acompanhava e que ordenou: “Espírito malvado,
deixa em paz esta matéria que não te pertence”.
54
Os que diziam curar
as doenças do corpo e do espírito por meio de “mandingas” e “orações”,
ganhavam a alcunha de “vigaristas”, sendo normalmente presos pela
polícia. Num destes casos, dentre o considerável número daqueles que
procuravam o curandeiro, achavam-se pessoas conhecidas do meio
social.
55
Muitos fiéis católicos buscavam os mesmos benefícios espirituais, mas
em espaços legitimados, como no túmulo da escrava Josefa, erguido em
1928 pelo devoto Francisco Bifano, após ter passado 16 anos angariando
fundos. Embora não reconhecida como santa, católicos fervorosos
ajoelhavam-se para pedir fortuna, ventura, saúde, paz ou mesmo fé. De
forma elogiosa, o jornal defendia o “povo anônimo” que orava perante o
túmulo da escrava Josefa, subindo “ao céu o balbucio fervoroso das
preces, queixas e pedidos, suplicas e lamentações”.
56
Além dos relacionamentos sociais e afetivos, as regras de civilidade, que
serviam como condição de identificação para o pertencimento à minoria
cachoeirense, abrangiam, no contexto da fé, a vida pós-morte.
50
JP, 30/6/1946 “Jornal do Povo”. Carina Pessoa, p.17. ver também JP, 9/4/1957
Cachoeira do Sul veste luto. Altamir Ceratti, p.2
51
Fonte: Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936. Tabela:
Culto Protestante em 1922. Anuário estatístico do Brasil 1938. Rio de Janeiro: IBGE,
v. 4, 1939. Tabela distribuição e natureza das congregações religiosa arroladas em
1936 e Classificação dos edifícios em 1936. Anuário estatístico do Brasil 1938. Rio de
Janeiro: IBGE, v. 4, 1939. Tabela Culto protestante em 1935. Igrejas, pessoas filiadas
e movimento religioso, segundo as Unidades Federadas.
52
ISAIA, Artur César. Ordenar progredindo: a obra dos intelectuais de umbanda no Brasil
da primeira metade do século XX. In: Revista Anos 90, Porto Alegre/RS: UFRGS/PPG
História, n.11, julho, 1999
53
JP, 30/4/1933 Anuncio: Madame Helba. Cartomante internacional, p.2 e 24/5/1934
Noticiário. Uma quiromante famosa, p.3
54
JP, 24/9/1931 Notícias do interior do Município. Estação Pertile. Espíritas e
macumbeiros, p.4
55
JP, 4/6/1933 Prisão de um vigarista, p.3
56
JP, 8/8/1929 Na vida intensa da cidade. Misticismo, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Civilidade e convivência
270
271
4.2. Até que a morte os separe
A desigualdade social, impressa nas relações cotidianas dos vivos, mostrava
sua forma derradeira nas alamedas dos cemitérios. Exemplo marcante
era o dia 2 de novembro, data especialmente destinada a reverenciar os
mortos, como se eles tivessem autorização para retornar da pátria
espiritual e visitar aqueles que deixaram para trás. As regras simbólicas
exigiam reverenciar com dignidade os antepassados, não só ir ao sepulcro
para acender velas, orar e chorar copiosamente, mas fazer silêncio em
torno dos mortos, falar com voz abafada para não perturbar a paz dos
que se foram. Para Norbert Elias, essa é uma das formas de distanciar os
vivos dos mortos. “São os vivos que exigem reverência pelos mortos, e
têm suas razões. – escreveu ele – Essas incluem seu medo da morte e dos
mortos; mas muitas vezes também servem como meio de aumentar o
poder dos vivos”.
57
Na cachoeira dos anos 1920-40, o dia consagrado aos ancestrais fora
sempre concorrido. A visitação em massa servia para santificar os que
partiram. O movimento de veículos intensificava-se grandemente, a ponto
da inspetoria de tráfego freqüentemente estabelecer medidas para não
ocorrer acidentes.
58
Em 1936, o Jornal do Povo denunciou que o dia de
finados mais parecia encontro dedicando aos vivos. A rua central do
Cemitério Municipal transformara-se em praça pública, onde “grupos de
dandys, de mãos nos bolsos e chapéus empurrados para a nuca, faziam
despreocupadamente o footing, atirando olhares indiferentes para as
inscrições nos túmulos”. Alguns se agrupavam nas sepulturas,
“papagueavam entre gargalhadas”. As moças, sentadas nos degraus dos
mausoléus, observavam os rapazes caminhar no mormaço. Podiam ser
vistos “namorados de barracas armadas” entre sorrisos, cochichos e
olhares de “peixe morto”. Algumas senhoras orando ajoelhadas ao pé
das sepulturas lembrava que aquilo não era um garden-party e que devia-
se dar respeito à memória daqueles cujos restos ali repousavam. Mas o
passeio despreocupado continuava e o namoro não sofria interrupção.
“Naquele Finados, o amor reinou sobre a morte”, sentenciou o jornal.
59
Neste clima de fomento do respeito às coisas sagradas, a forma de narrar
a relação vida e morte também marcava a diferenciação social. Para
57
ELIAS, Norbert. A solidão dos moriubundos. Envelhecer e morrer. op.cit., 2001, p.40
58
JP, 3/11/1929 Dia de Finados, p.3
59
JP, 5/11/1936 Instantâneos. Finados, p.1
quem fosse da elite cachoeirense, as notícias relativas aos falecidos eram
verdadeiros necrológios, recheados de elogios. Para dignificar os defuntos
nobres, os redatores do jornal não poupavam expressões encomiásticas.
Numa necrologia de 1930, o sujeito com temperamento impetuoso e
severo foi tido como alguém que “escondia um rigoroso sentimento de
justiça para todas as suas ações e um grande e boníssimo coração”, que,
caso errasse, “procurava logo corrigir o erro, não consentindo que, por
sua culpa, resultasse qualquer prejuízo as partes”.
60
Senhora conhecida
na cidade foi descrita como portadora de “gênio bondoso” e “apreciáveis
virtudes”, além de ser “esposa amantíssima e mãe extremosa”, que
“exemplarmente, fez o bem indistintamente durante toda sua vida”.
61
Em outra nota, o ardoroso federalista foi chamado de “homem laborioso
e progressista, dotado de uma lúcida inteligência natural”, que possuía
“apreciável qualidades de caráter e coração”.
62
Em nota de falecimento
publicada em 1935, Leandro Barbosa, de tradicional família cachoeirense,
foi dado como “estimado e conceituado cidadão”, que soubera “prolongar
os conceitos em que eram tidos os seus progenitores”.
63
No mesmo ano,
Ottilia Preussler, esposa do comerciante Germano Preussler, foi
considerada virtuosa e “boa mãe”, com afabilidade e “bondade no
coração”.
64
Mesmo nos anos 40, a morte de pessoas da elite produzia notícias
laudatórias. Em novembro de 1943, o afogamento de Iolanda Ramondini
Santos, “distinta” senhorita da sociedade cachoeirense, foi considerado
lastimável.
Elemento de grande destaque em Cachoeira, onde desfrutava de inúmeras
simpatias e ralações sociais, sua morte foi motivo do mais intenso pesar.
Contava a desventura jovem apenas 18 anos de idade e pertencia a uma
das mais conhecidas e relacionadas famílias de Cachoeira. Sua atuação
nos meios sociais desta cidade a fizeram imensamente conhecida e
estimada no extenso círculo de suas relações. Possuidora de elevados
dotes e de um fino trato, suas atividades na vida social cachoeirense
criaram-lhe um lugar de alto relevo em nosso meio, onde era um dos
60
JP, 25/12/1930 Necrologia, p.3
61
JP, 1/1/1931 Necrologia, p.5,
62
JP, 11/1/1931 Necrologia, p.1
63
JP, 23/6/1935 Leandro Barbosa, p.2
64
JP, 14/4/1935 Noticiário. D. Ottilia Preussler, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Civilidade e convivência
272
273
65
JP, 25/11/1943 Trágico desaparecimento de uma jovem, p.2
66
JP, 2/7/1944 Miguel Scheidt, p.2
67
JP, 5/7/1931 Noticiário. Morte subida, p.3 e 9/7/1931 Morreu de frio, p.3
68
JP, 24/10/1929 Noticiário. A epidemia dos suicídios, p.3
69
JP, 20/10/1929 A epidemia de suicídios, p.2, 1/1/1930 Suicídio, p.3, 3/4/1930 Suicídio,
p.3, 3/9/1931 Noticiário. Tentativa de suicídio, p.3, 2/10/1932 Noticiário. Suicídio,
p.3, 21/12/1934 Noticiário. Suicídio, p.3, 21/3/1935 Noticiário. Suicídio, p.3
70
JP, 27/11/1930 Noticiário. Suicídio, p.3, 27/4/1931 Noticiário. Suicídio, p.3 e 9/7/
1931 Noticiário. Honorato quis morrer, p.3
mais finos ornamentos. As reuniões de cunho festivo emprestava o encanto
de sua bela voz, e nos empreendimentos de caráter beneficente, Iolanda
tinha um lugar de destaque pela dedicação com que se votava a essas
atividades. Cachoeira sentiu de um modo particularmente profundo morte
dessa distinta jovem e por ocasião de seus funerais testemunhou
vivamente esses sentimentos.
65
Em narrativa semelhante, a morte de Miguel Scheidt, que conquistou
grande destaque nos meios rizícolas locais, também “ecoou dolorosamente
em Cachoeira”. Assim que espalhou-se a constristadora notícia, grande
número de pessoas acorreram à casa mortuária para “prestar as
derradeiras homenagens ao extinto”, bem como “apresentar condolências
à família enlutada”.
66
Em se tratando de desconhecidos, as notas de falecimento eram menos
pomposas, como a de Januário Moreira, 29 anos, “solteiro, cor mista”,
que faleceu subitamente, vítima de apoplexia cerebral, ou a da “preta
Maria Cândida”, encontrada morta em conseqüência do frio.
67
Esse
desleixo informativo com os subalternos fazia parte do contexto da
imprensa, uma vez que o jornal era produto da e para a elite. Nada mais
natural que vinculasse a morte daqueles que pertenciam a ela de forma
elogiosa. Além do mais, a brevidade das notas de falecimento dos
desconhecidos demonstra a pouca importância que eles tinham no seio
desta sociedade excludente.
Os outsiders ganhavam maior espaço editorial na medida em que faziam
algo inédito, como atentar contra a própria vida. Em fins dos anos 20 e
início dos 30, a quantidade de suicídios foi considerada tamanha a ponto
de ser chamada de epidemia. Aqueles que tirassem sua própria vida não
recebiam missa pois os padres estavam impedidos de fazê-la pelos rituais
canônicos da época. Todavia, isso não impedia que muitos se matassem,
principalmente jovens moças desventuradas.
Em fins de 1929, o Jornal do Povo anunciou que não mais noticiaria os
casos registrados, argumentando que “para que a descrição de um ou
outro caso não possa, por suas circunstâncias dramáticas, arrastar, sob
qualquer contrariedade banal, algum espírito fraco e impressionável a
prática de um ato transloucado, enchendo de dor e de luto as pessoas
que lhe são caras”.
68
Estranhamente, a regra valeu somente para casos
ocorridos entre famílias tradicionais, para aqueles conhecidos na
sociedade cachoeirense. São escassas as notícias sobre suicidas de
avantajada condição social. Não que inexistissem. Muito mais em respeito
aos que conviviam socialmente com editores e redatores. Mesmo na
questão do atentado contra a própria vida, impregnavam-se os valores
de legitimação social da elite, embora de forma contrária a usual, pela
ausência da anunciação.
Os motivos dos suicidas eram os mais variados: desonra, amores mal
correspondidos, oposição de familiares contra casamento, etc. O meio
mais utilizado era a ingestão de veneno, normalmente aquele que
estivesse ao alcance, como cianureto e arsênico, produtos vendidos
livremente nos armazéns locais.
69
Assim como nos obituários, os suicídios de cachoeirenses desconhecidos
eram retratados sem grandes pompas. Normalmente, eram postas
somente as iniciais do nome ou utilizada a expressão “de tal” após o
primeiro nome, de certa forma um desdém com relação a estirpe do
sujeito. O “pardo Honorato de tal” discutiu com sua mulher, saiu para a
rua e embriagou-se até morrer. A serviçal G.M., 15 anos, “de cor mista”,
suicidou-se porque seu amante resolvera ir no baile solteiro. M.M.S., 22
anos, “de cor preta”, tirou a vida porque foi “desprezada pelo homem
que amava”. Ambos ingeriram fortes doses de cianureto.
70
São constantes
nessas descrições a caracterização da cor da pele: “pardo” por tratar-se
de pessoas mulata, “mista” pela descendência diversa e “preta” por ser
negra.
Poucas vezes o Jornal do Povo descrevia detalhadamente os atos
transloucados. Fez isso quando tratava-se de bela jovem de 19 anos, que
entrou num restaurante localizado na Sete de Setembro, principal artéria
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Civilidade e convivência
274
275
71
JP, 9/4/1931 Noticiário. Suicídio impressionante, p.3
72
JP, 26/2/1939 Noticiário. Suicídios, p.3
73
JP, 29/11/1942 Duas pessoas suicidaram-se, p.5
da cidade, no anoitecer de uma segunda-feira de 1931, e pediu uma
garrafa de gasosa. Sem que o garçom percebesse, ela adicionou cianureto
e ingeriu a mistura em seguida. Disse ao garçom que era a última gasosa
que bebia e lhe entregou algumas cartas que continham o motivo do ato:
a jovem apaixonara-se por um rapaz que não retribui-lhe o amor. “Perdidas
as esperanças para conquistá-lo e não podendo viver sem meu eleito,
tomei a firme resolução de me suicidar”, teria escrito a jovem.
71
Mesmo anunciando que seguia a orientação de não fazer publicidade
desses acontecimentos, eventualmente o jornal noticiava casos de
suicídio. Em 1939, deu destaque a três atentados ocorridos num período
de poucos dias, sob alegação de que o delegado de polícia, através do
jornal, solicitava às casas comerciais que restringissem a venda dos
venenos comumente utilizados,
72
como se fosse possível antever a vontade
dos compradores em se matar. Em 1942, noticiou dois casos, citando o
nome de ambos suicidas. No primeiro, um rapaz andou por várias casas
comerciais procurando comprar uma corda. “Não muito – pediu ele – três
metros, apenas para me enforcar”. Ninguém levou-o à sério, até
encontrarem seu corpo balançando num galpão. No segundo, outro rapaz
despedira-se calmamente dos amigos, entrou no bar, pediu aperitivo e
água tônica, adicionou cianureto, solicitou ainda lápis a uma das pessoas
que se achavam perto e misturou o veneno. Após, ingeriu e debruçou-se
sobre a mesa. Posteriormente descobriram que não estava dormindo,
mas morto.
73
Desta forma, os acontecimentos diários imbricavam-se tanto na vida
quanto na morte, no trânsito da rua e no caminhar nas calçadas, nas
regras de civilidade e convivência, no conservadorismo dos
relacionamentos, entre homens e mulheres, na moral religiosa, nos amores
não correspondidos e nos filhos indesejados. Nesta dinâmica que limitava
os espaços de atuação, colocando cada um no seu devido lugar, de acordo
com sua condição social, as práticas cotidianas excludentes coligiam
aspectos diversos, como o lazer diário ou o próprio ambiente hostil que
afetava o dia-a-dia da elite cachoeirense, por mais que lutasse para
manter longe esses espectros.
5. Deleite:
gozo íntimo,
prazer pleno
5.1. Lazer ao ar livre: entretenimento em público
No entretenimento da elite cachoeirense, em suas atividades de lazer
dos anos 30-45, residia a tentativa de manutenção de tradições e valores
tipicamente burgueses. Isto revelava-se no modo como os membros da
fina flor local ocupavam seus momentos de ociosidade: festas sociais ou
bailes, diversões noturnas como o cinema, eventos culturais como teatro
ou concertos musicais, distrações que podia mudar conforme o período
do ano – carnaval, festas são-joaninas e reveillon –, conforme os locais –
piqueniques em balneários, banhos no rio Jacuí – ou dar-se no dia-a-dia –
cafés, confeitarias, hipódromo, em esportes como natação ou tênis.
O lazer da elite cachoeirense, na primeira metade do século XX, não foi
produto exclusivo da urbanização e da industrialização, até porque o
ritmo de crescimento da Princesa do Jacuí não podia ser comparado ao
frenesi das cidades maiores, como Porto Alegre ou São Paulo, onde a
produção em série e a maquinaria romperam abruptamente com o modo
de vida cotidiano – não tanto da elite, mas em especial, dos subalternos,
embora as mediações entre os diferentes grupos sociais tenham produzido
efeitos comuns a ambos – descolando o trabalho do tempo natural,
controlado artificialmente o trabalho, subordinando-o a lógica e
racionalidade próprias.
Em Cachoeira, a dinâmica industrial não apartou completamente os
espaços produtivos das sociabilidades decorrentes das relações
trabalhistas. Suas pequenas dimensões urbanas aproximavam trabalho e
vida cotidiana. Embora caminhasse em mediano ritmo de industrialização,
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
276
permitia com que as pessoas compartilhassem relações diárias mais
intensamente. Além disso, o lazer – que nesse sentido deveria ser a
antítese das rotinas – tornava-se complemento das atividades diárias.
Como visto por Norbert Elias, o entretenimento implicava igualmente
em determinado controle e auto-controle social, auxiliando na formação
de comportamentos, normas e condutas sociais, ainda mais tratando-se
de minoria prestigiada. As escolhas do tempo livre formariam pólos de
tensões no seio da sociedade, semelhante ao trânsito e a sociabilidade.
O autocontrole dos impulsos desenvolveria a “segunda natureza” dos
indivíduos, compondo o processo civilizador dos costumes, com práticas
cotidianas que buscavam o verniz civilizador.
1
Por ser área eminentemente elitista, ainda não invadida maciçamente
pelos outsiders, a zona urbana central de Cachoeira possibilitava maior
freqüência dos momentos de diversão em público dos estabelecidos da
alta sociedade, reafirmando a estanque divisão imposta pelas fronteiras
simbólicas.
A mais pública dessas diversões era o banho ao ar livre. A moda dos
banhos de mar em Cidreira e Tramandaí ou no balneário Cassino durou
até fins de 1929, quando a crise econômica mundial imputou limites
para os gastos com superficialidades, como as longas viagens ao litoral.
Por conta disso, após duas décadas de ostracismo, os banhos no Jacuí
voltaram a moda entre a alta sociedade nos verões da décadas de 30. O
ambiente era o porto, na ponta sudeste do núcleo central. O trajeto era
curto. Seguia-se pela rua da Igreja, descendo na rua da Ladeira até o
Passo do Jacuí (ambas atualmente denominadas rua Moron). Os banhistas
utilizavam a ilha existente defronte o porto. Segunda opção eram as
pedras na cachoeira do Fandango, algumas centenas de metros acima.
Ambas alternativas desapareceram com a construção da barragem em
1957. Costumava-se ir normalmente nos finais de tarde, a partir das 18
horas até o anoitecer.
Com o aumento da freqüência de famílias tradicionais, novas regras de
civilidade passaram a ser exigidas, principalmente com relação ao
vestuário. Os trajes de banho dos moradores da periferia foram
considerados inadequados para os padrões moralistas da época. A imprensa
passou a exigir fiscalização rígida das autoridades policiais, de modo a
proibir a permanência de quem não usasse vestuário “próprio” e
“decente”. Para reforçar o pedido, noticiava atitudes de banhistas
atrevidos, que estariam atirando-se na água completamente despidos.
2
No verão de 1933, Clemente Cunha, da Capatazia do Porto, atendeu o
apelo, proibindo terminantemente os banhos no rio sem roupas
convenientes. Quem transgredisse a norma seria conduzido para a Cadeia
Civil pela Patrulha do Esquadrão Provisório.
3
Em 1935, o Jornal do Povo abriu espaço para divulgar o concurso do maiô
mais elegante. Os leitores podiam recortar os cupons, responder a
pergunta “Qual o maillot mais elegante do balneário Jacuí? O da
senhorita...”, e enviá-los à redação. O júri era composto pelo advogado
Ari Pilar, pelo capitão Oliveira Mesquita e pelas senhoritas Jací Camargo
Carlos e Georgina Galvão.
4
Até pequeno debate moralista foi ensaiado
nas páginas do jornal. L. escreveu sobre a necessidade de aparecerem
novos modelos, com maior graça e harmonia. P. redargüiu, pondo em
dúvida o que admirar: a beleza do traje, a graça e a delicadeza do conjunto
ou a cor que as faces revelavam quando a moças retiravam o roupão e
jogavam-se na água?
5
Para Seutonio, debaixo dos maiôs escondia-se a
“beleza plástica” dos “lindos corpos de ninfas” do “belo sexo”, numa
demonstração de “progresso” e “civilidade”.
6
1
ELIAS, Norbert. A busca da excitação. Lisboa: DIFEL, 1985. Ver ainda MIRANDA, Célio
Roberto Turino de. Na trilha de Macunaíma. Ensaio para uma política pública de
lazer. Dissertação de Mestrado, [orientador Marcos Tognon], Campinas/SP: PPG História,
Universidade Estadual de Campinas, 2004 [disponível em http://libdigi.unicamp.br/
document/?code=vtls000316330 – acessado em 20/3/2006], que procurou as influência
do lazer e do chamado “tempo livre” na formação das identidades e comportamentos
sociais; e MAFFEI Jr., João. Valores, lazer e recreação na sociedade contemporânea.
Dissertação de Mestrado [orientadora Elaine Ferreira], Florianópolis/SC: PPG
Engenharia de Produção, UFSC, 2004 [disponível em http://teses.eps.ufsc.br/defesa/
pdf/16710.pdf – acessado em 20/3/2006]
2
JP, 24/1/1932 Noticiário. Banhos no Rio Jacuí, p.3 e 7/1/1943 Notas locais, p.4
3
JP, 14/12/1933 Anúncio. Capatazia do Porto. Aviso. Clemente Cunha. Capataz do Porto,
p.1
4
JP, 24/1/1935. Cupons. “Qual o “maillot” mais elegante do balneário Jacuí, p.1 e 24/
1/1935 Noticiário. O mais belo “maillot” do balneário Jacuí, p.3
5
JP, 27/1/1935 O mais belo “maillot” L., p.1 e 3/2/1935 Banhos e banhistas. P., p.2
6
JP, 24/1/1935 Praia de Banhos. Seutonio, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
278
279
A questão do vestuário inadequado e do próprio debate desencadeado
pelo concurso de maiôs foi a materialização do confronto simbólico entre
valores morais de pudicícia e castidade, herdados da tradição cristã, e
os anseios do helenismo moderno, que tinham no nu e no sensualismo
sua possível liberdade. A moral e bons costumes exigidos pelo catolicismo
conservador colidiam frontalmente com a idéia-força buscada no banho
ao ar livre, em ambiente natural, considerado salutar na medida em que
reaproximava homens e mulheres urbanos à natureza, ao puro e à
simplicidade primitiva, tornando a vida mais saudável. Buscar as coisas
que a natureza oferecia não significava admitir a origem do naturalismo.
A moral religiosa impedia o afloramento da nova imagem formada a partir
da antiga Grécia, do “mundo pagão, naturalmente sensualizado,
sublimemente estético e filosoficamente hedonista”, que propunha
comportamento mais licencioso e identificado com a “forma
esteticamente deleitante de existência”, em detrimento dos valores
tradicionais. Verdadeira “revisão moral em nome da beleza” das “formas
humanas, trazidas à tona em nome uma nova imitação dos gregos”.
7
Essa busca pelo natural ganhava destaque nos textos opinativos publicados
no jornal. Oliveira Mesquita, na crônica Viva a praia, escrita em 1935,
imputou à “doçura incomparável da vida ao ar livre” o que chamou de
“milagre” que teria transformado a “vida pacata” e “burguesa” da
“provinciana” Cachoeira, a ponto de fazer com que os elementos “mais
representativos no meio social” fossem tomar banho na praia do Jacuí.
Atribuindo adjetivos progressistas aos membros da sociedade –
requintados, elegantes e modernizados – procurou mostrar que estar em
contato com a natureza significava fugir da “humana hipocrisia” e dos
“falsos preconceitos”. Diametralmente oposto a moral religiosa, buscou
na divindade argumentos para subsidiar esse retorno ao natural. Estar
em contato com a natureza era estar em contato com Deus: “Eu entendo
que a natureza é a obra mais perfeita de Deus. – escreveu ele – E por
amor a Deus é que eu adoro a natureza. Deus que quer saúde nos corpos
e alegria nas almas!” Para justificar os banhos de rio, resgatou os ideais
mens sana in corpore sano (mente saudável em corpo saudável, ou, em
suas próprias palavras: “num corpo enfermo somente uma alma enferma
pode habitar”). Em casa só ficariam idosos e doentes. E para quem não
tinha condução própria ou não podia pagar auto de praça, recomendou ir
caminhando, exercício que traria “benefícios para a respiração” e
produziria maior “fluxo de idéias”.
8
O fluxo da elite reavivaria a praia, transformando-a no tão sonhado
balneário cachoeirense. Para garantir a segurança dos banhistas, aumentou
as exigências de obras de infra-estrutura no local, tais como rampas de
acesso para veículos, bóias acima dos trechos rasos e até bancos e abrigos.
9
Apesar das melhorias feitas no balneário, a elite pouco-a-pouco abandonou
os banhos no porto e na cachoeira do Fandango como lazer público, indo
procurar locais mais afastados e restritos, onde não precisasse conviver
com os subalternos. Capão Grande é exemplo dessa procura por
exclusividade, já no início dos anos 40. Localizado nas margens do Jacuí,
mas distante vários quilômetros da zona urbana, serviu inicialmente como
local de piqueniques; posteriormente foi transformado em condomínio
fechado.
10
Além disso, nos anos 50, a construção de melhores estradas de
rodagem estaduais diminuiu o tempo de viagem até o litoral atlântico,
passando a ser opção preferencial para quem dispusesse de recursos, e a
construção de eclusas ao longo do Jacuí tirou muito de sua atratividade,
tornando-o barrento e caudaloso.
No contexto de lazer ao ar livre dos anos 1930-40, os esportes praticados
em público também estiveram em alta entre a fina sociedade
cachoeirense. Como parte integrante do processo de mercantilização
burguesa, o desportismo foi elevado à condição de fator de regeneração
sócio-cultural.
11
Os próprios banhos em locais públicos possibilitaram a
ascensão do esporte aquático, em especial a natação. As notícias do
Jornal do Povo de 1933-35 dão conta que boa parte dos que buscavam as
margens do rio Jacuí praticavam o nado, considerado como “o melhor
7
MACÁRIO, Paula Gomes. Neo-Gregos da Belle Époque brasileira. Dissertação de Mestrado
[orientador Luiz Carlos da Silva Dantas. Campinas/SP: PPG Teoria e História Literária/
Universidade Estadual de Campinas, 2005 [disponível em http://libdigi.unicamp.br/
document/?code=vtls000362460 – acessado em 20/3/2006]
8
JP, 24/1/1935 Viva a praia. Oliveira Mesquita, p.1. Ver também, JP, 24/1/1935 Praia
de Banhos. Seutonio, p.1
9
JP, 24/1/1935 Noticiário. Praia balneária, p.3
10
JP, 1/1/1941 Um desconhecido perece afogado no rio Jacuí, p.2, 4/1/1940 A polícia
precisa controlar os balneários do Jacuí, p.1 e 16/1/1941 Noticiário. Um “pic-nic” no
Capão Grande, p.3
11
JESUS, Gilmar Mascarenhas de. Construindo a cidade moderna: a introdução dos
esportes na vida urbana do Rio de Janeiro, op.cit., 1998
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
280
281
meio do indivíduo criar forças novas e vitalizadoras, enriquecendo de ar
os pulmões e enrijecendo os músculos, numa ginástica elegante e
preciosa”.
12
Não faltaram reclames por conta da “natural falta de conforto
existente nas ribanceiras do rio” e exigência de melhorias por parte do
poder público municipal, para tornar o local apropriado à prática
desportiva.
13
Outro esporte que teve grande aceitação em Cachoeira foi
o remo, através do Grêmio Náutico Tamandaré, fundado em 1936.
14
O tênis foi o esporte preferido pela elite, jogado desde o início do século.
As fotografias das quadras da praça Borges de Medeiros dão a idéia dessa
aristocracia no esporte. Enquanto os adultos divertiam-se jogando, as
crianças ocupavam o espaço ao lado das quadras ou brincavam no jardim
construído em cima do reservatório de água, com canteiros floridos,
bancos e balaústre.
Na década de 30, o Jornal do Povo noticiava o “benéfico” e “notável”
desenvolvimento do “aristocrático” e “chic” esporte, que além de
“elegante” era “salutar” e “agradável”.
15
Em 1934, a inauguração de
novas quadras na Sociedade Rio Branco foi descrita da seguinte forma:
“os cavalheiros, devidamente uniformizados com chapéu de pano branco,
camisa com gola aberta e listrada de azul e branco, calças e sapatos
brancos, misturavam-se às senhoras, com suas saias igualmente brancas,
em partidas muito disputadas”.
16
O auge do tênis cachoeirense foi nos
anos 40.
17
Muitos desportistas participaram de campeonatos estaduais e
nacionais, sagrando-se campeões em alguns desses eventos. Ernesto
Petersen ganhou os certames estaduais de 1941, 1943 e 1946, e o vice-
campeonato brasileiro em 1947. No ano seguinte, disputou na Europa a
Copa Devis.
18
O vôlei e o basquete também foram bastante apreciados. Nos anos 30,
eram freqüentes as disputas entre os times de basquete do Atlético
Concórdia e o Riachuelo, formado por oficiais da Guarnição Federal. Na
década seguinte, surgiu a equipe do Atlético Flamengo, do Colégio Roque
Gonçalves. Com a reforma da praça José Bonifácio em 1942-43, quando
foi construída a cancha poliesportiva,
19
as partidas de basquete passaram
a ser disputadas nas noites de sábados e domingos entre rubro-negros e
rio-branquenses, mais conhecidos por “alemães”, dada a origem do clube.
A torcida do Atlético Flamengo ocupava a maior parte das arquibancadas,
deixando pequeno espaço à direita da quadra para os rivais.
20
Ainda em relação ao lazer desportivo, o jóquei-clube foi espaço
freqüentado pela alta sociedade, principalmente os homens por causa
das apostas nos cavalos. O auge do turfe local foi nas décadas de 30-40.
As canchas cachoeirenses ficavam no Alto do Amorin mas o restaurante
do clube localizava-se na área central, na Sete de Setembro n.1145,
12
JP, 24/1/1935 Viva a praia. Oliveira Mesquita, p.1
13
JP, 17/12/1933 Noticiário. Praia balnear, p.5
14
JP, 18/2/2006 GNT completa 70 anos [disponível em http://www.jornaldopovo.com.br/
default.php?arquivo =_materia.php&intIdEdicao=948&intIdConteudo=59917 – acessado
em 23/3/2006]
15
JP, 1/6/1933 Tênis F.F., p.1 e 22/6/1933 Tênis trei fimaças, p.1
16
Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-
1996, op.cit., 1996, p.98
17
JP, 18/7/1943 Notas tenistas, p.2. No Anexo XII, adeptos do tênis nos anos 1920-40
18
Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-
1996, op.cit., 1996, p.96-102
19
JP, 13/12/1942 Vida desportiva. Canchas para basquete e voleibol, p.2 e 4/2/1943
Inaugurado o Estádio de Basquet-ball, p.2
20
Dados extraídos de 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-
1996, op.cit., 1996, p.128-132
Figuras 104 e 105 – Quadra de tênis e
espaço de descanso, ambos
construídos na praça Borges de
Medeiros. Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
282
283
tendo como gerente Hans Kulitz. As festas de abertura de temporada
eram bastante disputadas.
21
Para as mulheres, o elegante era patinar. Data de 27 dezembro de 1932
a inauguração do “Cachoeira Rink Club”, embora a pista tenha ficado
fechada para reformas até nova inauguração, em 7 de janeiro de 1933.
Os ingressos custavam 0$500 réis para o “belo sexo” e 1$000 réis para o
“sexo forte”. A hora de patinação tinha o preço de 1$500 réis,
indistintamente.
22
O cronista Oliveira Mesquita descreveu o local da
seguinte forma: “Todas as noites o Rink Cachoeirense fica repleto de
assistentes e patinadores, tornando-se um ponto chique forçado para o
encontro do que de belo existe no mundo feminino desta terra”.
23
5.2. Ociosidade, alienação, elevação de espírito
Afora os banhos e os diversos esportes ao ar livre, o lazer em público da
elite cachoeirense podia dar-se em espaços comerciais distintos, como
cafés, reduto preferencialmente dos homens, e confeitarias, destinadas
às famílias. Para muitas das cidades brasileiras na época, que seguiam o
modelo europeu de urbanidade e tinham como imã a vida nos bulevares
parisienses, era imprescindível possuir cafeterias para intelectuais,
literatos, jornalistas, homens de negócio, fofoqueiros de plantão, e
confeitarias para as famílias distintas.
24
Na Cachoeira dos anos 30, era de bom tom passar o dolce far niente,
ouvindo “boa música” distraidamente na elegante Confeitaria Central,
ainda mais depois que o proprietário, Olívio Costa, reformou e ampliou o
salão em 1931.
25
Os cavalheiros podiam optar entre os cafés Frísia, Paulista
ou ainda o Carioca, localizado na praça José Bonifácio, que anunciava no
jornal afirmando ser uma “casa de primeira ordem” que vendia café
torrado e moído “à vista do freguês”. Nos fundos do estabelecimento,
havia carteado e roleta.
26
O cronista Oliveira Mesquita escreveu sobre a
grande freqüência dos cafés, “sempre cheios de gente a parolar
alegremente”. O editorial do Jornal do Povo deu destaque para aqueles
que viviam com as “mãos na cava do colete”, ao “som das vitrolas” dos
cafés, jogando no bicho e resistindo “galhardamente, à ação deflacionista
das tournées artísticas músico-literárias”.
27
A fotografia mostra o
predomínio masculino entre os freqüentadores do Café Paulista, nos anos
20.
21
JP, 9/10/1932 Vida Esportiva. Hípico. “Festa da Primavera”, p.2, 15/3/1934 Anuncio.
Restaurante do Jockey-club, p.4, 29/11/1934 Vida desportiva. Hípico Jokey-club as
corridas de domingo, p.2 e 11/8/1940 Braz Camilo. Carreiras na cancha do Amorim,
p.1
22
JP, 29/12/1932 Noticiário. Cachoeira Rink Club, p.3 e 8/1/1933 Noticiário. Cachoeira
Rink Club, p.3
23
JP, 13/4/1933 Nótulas. Oliveira Mesquita, p.1
24
Sobre cafés e confeitarias, ver PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cultura de massas
e representações femininas na paulicéia dos anos 20. In: Rev. bras. Hist. v.19 n.38
São Paulo, 1999 [disponível em http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&
pid=S0102-01881999000200007&lng=pt&nrm=iso&tl-ng=pt – acessado em 23/3/2006];
EWALD, Ariane [et al.] Crônicas Folhetinescas: subjetividade, modernidade e
circulação da notícia. In: Seminário História e Imprensa, IFCH/UERJ, jun. 2003.
[disponível em http:// www.coc.fiocruz.br/psi/pdf /artigo-cronicaspdf.pdf. –
acessado em 23/3/2006]; SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. João do Rio, Repórter
da Pobreza na Cidade In: Em Questão, Porto Alegre, v. 10, n.1, p.81-93, jan./jun,
2004 [disponível em http://www6.ufrgs.br/emquestao/doc/EmQuestaoV10_N1_2004_
art05.pdf – acessado em 23/3/2006]; VENÂNCIO, Gisele. Presentes de papel: cultura
escrita e sociabilidade na correspondência de Oliveira Vianna. In: Estudos Históricos,
Rio de Janeiro, n. 28, 2001 [disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/ arq/
308.pdf – acessado em 23/3/2006]; HOFF, Maurício; HOFF, Mariane Zanchetta. Café e
Cafeterias: Turismo Cultural [disponível em http://www.pg.cdr.unc.br/revistavirtual
/numeroonze/Caf%C3%A9%20e%20 Cafeterias.pdf. – acessado em 23/3/2006]
25
JP, 22/8/1929 Anúncio Confeitaria Central, p.3 e 5/11/1931 Noticiário. Confeitaria
Central, p.3
26
JP, 17/9/1931 Anúncio. Café Carioca, p.3
27
JP, 9/8/1931 Editorial. A dor dos melhoramentos, p.1, 13/4/1933 Nótulas. Oliveira
Mesquita, p.1 e 24/11/1935 Como se portar nos cafés, p.2
Figura 106 –
Cena interna do
Café Paulista, nos
anos 20. Fonte:
Museu Histórico
Municipal de
Cachoeira do Sul
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
284
285
Em julho de 1942, o Café Carioca passou por reformas conforme exigências
da higiene sanitária. Entretanto, o prédio pegou fogo alguns meses depois
e o estabelecimento nunca mais foi reaberto.
28
A preferência do público
recaiu para o “luxuoso” Café Frísia, de propriedade de Ivo Becker. Suas
instalações eram modelares para a época: paredes artisticamente
decoradas, com pinturas relativas ao produto servido, e grande balcão
oval, para os que preferiam tomar o café mais rapidamente. Servia em
média 3,9 mil xícaras diariamente.
Apesar dos cafés continuarem sendo
reduto dos fazendeiros, industrialistas, políticos, funcionários públicos e
demais representantes do sexo forte, eventualmente podiam ser vistas
“distintas damas” e “belas e graciosas senhoritas” conversando nas
“elegantes mesinhas”.
29
O Café Frísia foi considerado espaço de sociabilidade ímpar, onde
tratavam-se assuntos pessoais e relativo à vida cotidiana cachoeirense,
enquanto se apreciava o cafezinho; a Bolsa local, devido aos negócios
que ali se fechavam; a “petit trianon”, o panteão da cidade. Se a imprensa
queria farejar reportagens ou mesmo auscultar a opinião da elite sobre
determinado assunto, dirigia-se para o estabelecimento. Lá saiam “cobras
e lagartos”.
30
Esses mexericos urbanos é que proporcionavam ao jornal o
aspecto da novidade. Faziam parte da gênese da própria atividade
jornalística européia.
31
Na enquete realizada em fevereiro de 1945, sobre
a situação de Getúlio Vargas na presidência, foram ouvidos vários
freqüentadores: Carlos Paranhos de Araújo, ex-deputado classista e
representante da lavoura e pecuária, Antônio Ramos, diretor comercial
da Sociedade de Criadores e Inventores, Carlos Möller, do jornal O
Commercio, Fernandes Barbosa, poeta, Evaldo Quadrado, funcionário
do Banco do Brasil, os advogados Mário Ilha, Francisco Pinos Lobato e
Aristides Moreira, os comerciário Miguel Dutra e Agripino Nunes, o
acadêmico Edyr Lima, o prefeito Ciro da Cunha Carlos, José Joaquim de
Carvalho, presidente do Conselho de Administração da Cooperativa
Cachoeirense Rizícola Ltda., o médico Lauro Rangel e o político Floriano
Neves da Fontoura, entre outros.
32
A fama do Café Frísia era tamanha que, em julho de 1946, uma comissão
composta por “elementos de destaque” procurou o Jornal do Povo para
reclamar contra o aumento do cafezinho, de Cr$ 0,30 para Cr$ 0,40,
movimento que ficou conhecido como “greve pacífica”. Os reclamantes
argumentavam que, além de mais caro que as demais casas congêneres,
as xícaras de cafezinho do Frísia serviam metade do estabelecido
oficialmente. A casa concorrente, Ao papito, servia o dobro de café por
Cr$ 0,30, fazendo com que o do Frísia custasse, nessa lógica, Cr$ 0,80.
Os proprietários contra-argumentaram, justificando que, para
continuarem servindo o café com qualidade, necessitavam repassar o
aumento do atacado para o varejo. O jornal explorou o fato em tom
irônico e espalhafatoso, afirmando entregar o caso ao julgamento popular,
num jornalismo tipicamente sensacionalista, que acabava por promover
comercialmente o produto objeto do debate, algo tornado usual no JP
posteriormente. Quem quisesse, poderia participar da pesquisa,
depositando sua opinião na urna instalada no próprio Frísia. Os que
colocassem nome e endereço ganhariam gratuitamente 10 cafezinhos.
33
O resultado apurado no plebiscito apontou divisão entre os consumidores,
embora tenha vencido o menor preço com a mesma qualidade: 168 votos
para café bom a Cr$ 0,30; 130 votos para café bom a Cr$ 0,40 e 18 votos
para café ruim a Cr$ 0,30. Inicialmente, o proprietário ignorou o resultado,
fazendo com que os “grevistas” continuassem não freqüentando o
estabelecimento. Chegaram a fixar cartazes com o seguintes dizeres: “A
28
JP, 5/7/1942 Reabertura do café “A Carioca”, p.5. GUIDUGLI, Humberto Atílio. Café
Carioca. Revista Aquarela, n.8, set. 1957
29
JP, 11/11/1945 Sociedade Café, p.5
30
Interessante a análise de BURKE, Peter. A cidade pré-industrial como centro de
informação e comunicação. In: Revista Estudos Históricos, v.8, n.16, Rio de Janeiro,
1995, p.193-203, que mostra como as cidades dispõe de locais próprios para a difusão
da informação e comunicação.
31
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do
capitalismo. op.cit., 1989, p.24
32
JP, 27/2/1945 Auscultando a opinião pública cachoeirense sobre o agitado monumento
político Nacional, p.4. Segundo GUIDUGLI, Humberto Atílio. Casa dos Escravos. Revista
Aquarela, n.7, dez. 1958, o local do Café Frísia servia, em 1885, como alojamento
para os escravos que seriam comercializados.
33
JP, 2/7/1946 Greve pacífica contra o “Café Frísia”, p.1, 4/7/1946 A pedido. Entregue
ao julgamento popular o caso do aumento do cafezinho Frísia para 0,40, p.4 e 4/7/
1946 Continua a greve contra a alta do Café Frísia, p.1. De acordo com cálculo
estatístico da Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul
[www.fee.tche.br - acessado em 23/3/2006], o valor do cafezinho de Cr$ 0,40
corresponderia atualmente a R$ 0,41
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
286
287
vontade do povo foi desrespeitada. Não tome café aqui. Não entre neste
café”.
34
Na semana seguinte, o cafezinho voltou a ser vendido ao preço
de Cr$ 0,30. No comunicado publicado no jornal, os proprietários
justificaram a redução considerando que o cafezinho vendido no balcão
era “eficiente veículo de propaganda”, sendo possível, desta forma, o
sub-faturamento.
35
A concorrência aproveitou a ocasião para anunciar
que venderia a xícara do cafezinho Ao papito ao preço que os
freqüentadores quisessem pagar.
36
O valor do cafezinho podia parecer insignificante no contexto das despesas
dos indivíduos. Entretanto, nos centavos gastos diariamente residia o
fundamento da seleção entre os espaços público e privado. E mesmo
sendo de uso comum a todos, a exigência implícita do consumo nos cafés
e confeitarias servia para selecionar os freqüentadores.
Como lazer cotidiano dos moradores da zona urbana central de Cachoeira,
o cinema seguia lógica semelhante, com a diferença de que os valores do
ingresso possibilitaram acesso de maior número de subalternos
misturando-se com a elite. Depois de vários empreendedores tentarem
manter salas de cinema nos anos 10-20, o Coliseu Cachoeirense seguiu
sozinho no mercado na praça José Bonifácio, exibindo filmes como A lei
dos fortes, com Thomas Meigan, Amor e natureza, impróprio para
senhoritas e menores por mostrar o amor em todos os termos e em todos
os animais, ou Ben-hur, que lotou a platéia por quatro noites
consecutivas.
37
A imagem do cinema lotado, em 1922, demonstra a atração que esse
entretenimento tinha. Como atividade para as massas, colocava no mesmo
espaço elite e subalternos, embora também a posição dos lugares
determinasse a classe social que pertencia o espectador.
Figura 107 – Cine-teatro Coliseu, na praça José Bonifácio, em 1922. Fonte: Museu Histórico
Municipal de Cachoeira do Sul
Em agosto de 1931, estreou o cinema falado, com a exibição do filme O
presídio. O público foi tamanho que muitos voltaram dos guichês da
bilheteria sem ingressos.
38
O Jornal do Povo foi todo elogios: “Estamos,
pois, de parabéns, por termos alcançado mais esse sucesso no progresso
da nossa Cachoeira, pelo que muito ficamos a dever ao esforço, boa
vontade e dedicação dos estimados proprietários do Coliseu”;
“Decididamente, estamos com sorte, e Cachoeira se poderá ufanar de
ter assistido às melhores exibições do Estado”.
39
De certa forma, o cinema foi um dos primeiros entretenimentos mundiais
direcionados às massas, que permitiu o convívio indistintamente entre
as diversas classes, embora nas grandes cidades existissem cinemas
luxuosos e freqüentados pela elite nas zonas centrais e os com valor de
ingresso menor para atrair os subalternos nas periferias. Além disso, a
diversão cinematográfica era mais visível, diferente dos café e
confeitarias, onde o prazer residia na própria sociabilidade: diálogos,
música ou no ambiente fines. Frente à tela cinematográfica, a experiência
34
JP, 9/7/1946 Continua a greve contra o “Café Frísia”, p.1
35
JP, 14/7/1946 Cafezinho “Frísia” voltou a CR$ 0,30, p.1
36
JP, 6/11/1946 O café Baependi e a casa “Ao papito” venderão cafezinho, a partir de
hoje, pelo preço que os freqüentadores quiserem pagar, p.1
37
JP, 8/8/1929 Domingo outro filme digno do nosso culto publico, p.2, 12/9/1929 Amanhã
no Coliseu. Única exibição, p.3 e 19/7/1931 Teatros e cinemas. Ben-hur, p.3
38
JP, 6/8/1931 Teatros e cinemas. Coliseu cachoeirense, p.3
39
JP, 9/8/1931 Maus costumes, p.1 e 20/9/1931 Maus costumes,p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
288
289
do sujeito atingia seu ápice. Nesse sentido, a crônica de M., Em louvor
ao cinema, publicada no Jornal do Povo em 1933, é emblemática: o cinema
satisfaria “o espírito sempre ávido de coisas novas e interessantes”;
permitiria “apreciar tudo o que de grande, belo e maravilhoso existe ou
se desenrola no mundo da arte e da ciência, dos nossos tempos”; dilataria
os conhecimentos, enriqueceria a inteligência; encheria os olhos de
alegria, com cenas emocionantes que mostravam “o lado real da vida e
também o mentiroso das coisas”; e mais importante, na opinião do
cronista, “o cinema emancipou o mundo”.
40
Esta perspectiva de que o cinema poderia propiciar a emancipação dos
espectadores foi nevrálgica para a Europa nos anos 30-40. O fascismo
demonstrou ao mundo o poder da imagem cinematográfica. Através de
imenso aparto midiático, o Terceiro Reich exerceria enorme fascínio sobre
as massas, substituindo a crítica pela publicidade e propaganda, vinculadas
principalmente pelo cinema. Segundo Willi Bollle, foi Walter Benjamin
quem expôs essas mazelas em seu artigo Teorias do fascismo alemão,
mostrando que os recursos técnicos – entre eles o cinema –, apropriados
pelas destrutivas forças nazistas, não promoveram justiça social ou
econômica. Pelo contrário, a técnica tornou-se antiemancipatória. Na
tentativa de encobrir contradições sociais, desviar conflitos e compensar
as reivindicações não atendidas pela criação de ilusões, o fascismo
utilizaria os filmes para domesticar as massas. No fazer do dia-a-dia
residia a alienação. Com o olhar fixo nas telas, o sujeito assumiria o
papel do herói para exaurir a vontade de se rebelar. Numa atitude de
receptividade e apatia, o espetáculo imagético hipnotizaria o espectador,
suprimindo-lhe a participação ativa, a experimentação do mundo real e
a própria capacidade de analisar criticamente o mundo em redor.
41
A importância do cinema no Brasil desta época, pode ser visto na medida
em que Getúlio Vargas assumia o nacional-socialismo como ideais a
perseguir. Durante o regime, o cinema fez parte de amplo projeto político-
pedagógico propagandista. A criação do Departamento de Propaganda e
Difusão Cultural, em 1934, mostra como a política autoritária européia
influenciou o Brasil. As produções cinematográficas nacionais foram
beneficiadas no período, tornando os diretores verdadeiros bastião do
governo revolucionário, ideólogos do nacionalismo brasileiro. Todavia,
enquanto na Europa nazi-fascista o controle estatal era completo –
produção, distribuição, exibição de filmes nacionais e barreiras contra
estrangeiros – no caso brasileiro, não foram tomadas medidas tão radicais.
Desde cedo Vargas adotara a “política da boa vizinhança”, permitindo
que tanto produções norte-americanas quanto alemãs ou italianas fossem
exibidas nas salas de cinema brasileiras.
42
Mesmo assim, filmes considerados inadequados eram censurados sob
justificativas pífias. Cúmplice do regime, como a maior parte da imprensa
brasileira, o Jornal do Povo reproduzia os argumentos usados pela censura.
Em nota publicada no dia 29 de março de 1934, repreendeu os filmes
exibidos pelo Coliseu Cachoeirense, afirmando que “embora o enredo de
algumas fitas possuam um fundo moral elas se desenrolam, muitas vezes,
num entrecho trágico, emocionante e nevrotício, mesmo porque a maioria
dos filmes são adaptações de obras literárias modernas onde piram um
excessivo cerebralismo, capaz de perturbações psíquicas de certa ordem
aos espectadores”.
43
Até o Brasil declarar guerra contra o Eixo, películas nazistas dividiam
espaço com norte-americanas, principalmente nas salas do sul do país,
como o Coliseu Cachoeirense. Em 1934, o filme de propaganda nazista A
Alemanha Desperta atraiu grande massa popular, ocupando totalmente
as cadeiras.
44
Na mesma temporada, Mocidade Heróica causou frisson,
recebendo inclusive crítica favorável pela imprensa cachoeirense: “As
cenas deste filme põem-nos em contato com o prolongo da luta,
40
JP, 26/1/1933 Em louvor ao cinema M., p.1
41
BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: representação da história em Walter
Benjamin. op.cit, 1994, p.209-238 e BENJAMIN, Walter. Teorias do fascismo alemão.
Sobre a coletânea Guerra e Guerreiros, editada por Ernst Jünger. In: ___. Obras
Escolhidas I. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da
cultura. op.cit., p.61-72
42
Ver ALMEIDA, Cláudio Aguiar. O cinema brasileiro no Estado Novo: diálogo com a
Itália, Alemanha e URSS. In: Revista de Sociologia e Política, Universidade Federal do
Paraná, n.12, jun.1999 [disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/238/
23801207.pdf – acessado em 23/3/2006]
43
JP, 29/3/1934 Promotoria Pública. Censura cinematográfica, p.3
44
JP, 22/2/1934 Impressões de um filme, p.1
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290
291
finalmente, vitorioso de Adolf Hitler mostra-nos o mocidade alemã
entusiasmada por um alto e inabalável ideal, traçado pelo próprio Führer.
Eles sabem lutar pela liberdade da pátria, sabem morrer no auge da
juventude, na canção sagrada nos lábios e um sorriso satisfeito nos
olhos”.
45
Em cartaz também filmes norte-americanos, como Viúvas de
Havana, Aí vem a Marinha, Sinfonia inacabada e Cleópatra.
46
No contexto desta importância que o lazer cinematográfico assumiu nos
anos 30, reacendeu o debate local em torno das exigências de novas
instalações. Através das páginas dos jornais, as promessas eram
reafirmadas de tempos em tempos. Em 1933, o Conselho Constitutivo
Municipal abriu concorrência para construção do novo cine-teatro, mais
“amplo, moderno e confortável”, conforme convinha à cidade. Henrique
Comassetto, mais uma vez, anunciou a contratação de engenheiro para
participar da disputa.
47
O articulista O.M. definiu a situação de maneira
sagaz, na crônica Ditador de Cachoeira. Foi um sonho, nada mais: “Cerquei
o Comassetto de todas as garantias e, num ‘upa’ levantou-se o novo
prédio, amplo, elegante, dotado de todos os requisitos para uma casa do
gênero”.
48
O novo prédio foi construído somente em 1937-38, em estilo
art déco na rua Sete de Setembro. Sua inauguração foi comemorada: ao
invés de “cadeiras incômodas” e “quebradas”, “pulgas” ou “goteiras”, o
novo prédio que revelava “gosto fino” e “delicado”.
49
O novo ambiente exigiu, em contra-partida, que as regras de civilidade
da elite fossem cumpridas à risca. Na opinião expressa pelo próprio Jornal
do Povo, era preciso que a população se colocasse à altura do novo cinema,
adotando praxes comuns nas grandes cidades: tirar o chapéu enquanto
assistia sessões cinematográficas, principalmente entre as mulheres, dado
o tamanho e altura da indumentária; barrar a entrada dos subalternos
que se apresentassem embriagados ou sem asseio, que não observassem
os “preceitos da decência”; não fumasse nem comesse amendoins
torrados, ou ainda não reservasse lugares.
50
Para o cronista E.R., não era
crível nem lógico que aqueles que chegavam cedo ao cinema, fossem
preteridos na escolha da poltrona, por conta dos que ficavam refestelados
em casa ou faziam footing na praça. “Todos os cidadãos são iguais perante
a lei e portanto todos os espectadores tem os mesmos direitos e quem
chega cedo tem direito à compensação pela longa espera”, escreveu
ele.
51
Tais exigências da elite nem sempre eram cumpridas automaticamente
pelos subalternos. A solução, muitas vezes, residia no emprego da
autoridade policial. Em 1941, por exemplo, a Delegacia de Polícia publicou
aviso informando que retiraria do cinema todo espectador que se portasse
de modo inconveniente, perturbando a sessão e faltando com o respeito
às famílias.
52
A partir da entrada do Brasil na guerra, a americanização tomou conta
do mercado cinematográfico brasileiro, principalmente na distribuição
dos filmes para os cinemas de todo país. Da mesma forma como o nazi-
fascismo, Hollywood foi posta a serviço da máquina de guerra, com
produções que explicitavam o caráter libertador que os norte-americanos
desejavam mostrar. Além disso, com a maioria dos filmes estrangeiros
entrando no país procedendo dos EUA, ao uso propagandístico dos filmes
somou-se a finalidade lucrativa. As distribuidoras estrangeiras elevaram
o valor cobrado pela locação das fitas bem antes do término do conflito
bélico, atitude que afetou principalmente os custos dos cinemas do
interior. Enquanto nas capitais as fitas rodavam primeiro nos cinemas
centrais, com ingressos a preços maiores, e depois eram distribuídas nos
arrabaldes a preços populares, cidades como Cachoeira, com um único
cinema, acabavam sendo prejudicadas. Os valores contratuais superavam
45
JP, 14/6/1934 Teatros e cinemas. Mocidade heróica, p.2 e 21/6/1934 Anúncio. Mocidade
heróica, p.2
46
JP, 7/4/1935 Cinema. M., p.1
47
JP, 30/6/1931 Noticiário. Novo teatro, p.7, 15/10/1933 Noticiário. Uma velha aspiração
que, parece, vai se tornar realidade, p.3, 1/1/1934 Cachoeira terá, ainda este ano,
um novo cinema, p.3, 22/2/1934 Noticiário. Um novo cinema, p.3 e 4/3/1934 Edital.
Concorrência para a construção de um teatro-cinema, p.4
48
JP, 26/5/1935 Ditador de Cachoeira. Foi um sonho, nada mais. A construção do teatro
cachoeirense, O.M., p.1
49
JP, 17/2/1938 Cachoeira terá hoje em diante, um dos melhores Cine-teatros do Estado,
p.2
50
JP, 20/2/1938 É obséquio tirar o chapéu, p.3 e 3/4/1938 Noticiário. Será policiado o
cinema local, p.3
51
JP, 17/4/1938 É proibido reservar lugares. E.R., p.1
52
JP, 15/6/1941 Noticiário. Abusos no cinema, p.5
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
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292
293
Cr$ 2.000,00 por filme. No caso de produções de sucesso, as distribuidoras
exigiam ainda comissão na bilheteria. Em 1944, o Coliseu cobrava entre
Cr$ 3,00 a Cr$ 4,00, sendo necessários mais de 500 espectadores por
sessão para cobrir as despesas.
53
Em questão de entretenimento urbano, o cinema aguçou a divisão entre
cultura da elite e cultura das massas. Lazeres como teatros e recitais –
mesmo aproximando-se do cinema na medida em que público e privado
interagiam dentro de certas fronteiras simbólicas – foram tidos como
divertimentos preferencialmente da alta sociedade.
54
Uma reportagem
de 1933 explicita essa divisão ao opinar que, em relação à “velha arte
dramática”, “o gosto das elites acha-se bastante estragado pela
tumultuada invasão das manufaturas cinematográficas, com as quais os
yankees alagaram a nascente civilização brasileira”.
55
Nesses dois tipos
de distração, a seleção dos freqüentadores dava-se pelo ambiente
reservado, pelo gosto apurado, pelo prazer requintado que excluía os
subalternos incapazes de impressionar-se com tais experiências. Entre
os anos 20 e os anos 40, Cachoeira esteve no mapa das grandes companhias
teatrais, como a de Jaime Costa (1930), Ribeiro-Cancela (1941) e Procópio
Ferreira (1943).
56
Já os recitais e concertos ocorriam em espaços variados, como no Clube
Comercial, na Sociedade Atiradores Concórdia ou mesmo em salões
particulares. Os textos jornalísticos marcavam de forma ímpar a quem
destinavam-se tais eventos artísticos. Termos como “culto povo
cachoeirense”, “sociedade culta”, “alta cultura da nossa sociedade” ou
“fina sociedade” delimitavam os freqüentadores. O recital de piano de
Noemy Rosa Teixeira “deliciara a fina flor” cachoeirense; Cachoeira teve
o “prazer de ouvir” o concerto de Raul Laranjeira no “confortável” e
“elegante” salão do Clube Comercial; a “assistência seleta” aplaudiu de
forma “vibrante” a pianista Odete Faria.
57
O interesse neste tipo de
espetáculo era tamanho a ponto de existir uma escola de música, que
revelou muitas jovens provenientes de distintas famílias.
58
Nos anos 40,
a Gruta do Leite, localizada no andar térreo do edifício Oscar Wild, na
rua Sete de Setembro, realizava operetas. A orquestra tinha onze
componentes e atraía todas as noite grande número de “cavalheiros,
senhoras e senhoritas”.
59
Exceção para eventos teatrais, eram as peças ou espetáculos considerados
sem valor cultural, em que predominavam recursos cediços e graças
vulgares. Os circos e parques de diversões, armados nas praças da
periferia, foram alçados ao mesmo patamar, como lazeres eminentemente
populares. A imprensa tratava esses eventos de maneira diferenciada,
alternando entre a simples publicação da notícia sem nenhuma pompa,
normalmente em pequena nota publicada na coluna Noticiário, ou com
críticas mordazes. Os freqüentadores também eram denominados de
maneira diferente da chamada “sociedade culta”, dos estabelecidos que
iam a recitais e concertos. Ao circo comparecia “verdadeira multidão de
pessoas apreciadoras desse gênero de espetáculos”, o “público” não
regateava aplausos aos artistas, as “acomodações” ficavam
completamente tomadas, o espetáculo agradou ao “numeroso público
que acorreu àquela noite à popular casa de diversões”.
60
53
JP, 27/1/1944 A programação do cine-teatro Coliseu, p.3
54
Ver a análise de SEVCENKO, Nicolau. Orfeu estático na metrópole. São Paulo, sociedade
e cultura nos frementes anos 20. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, sobre o
impacto das tecnologias mecânicas nos processos de lazer urbano.
55
JP, 16/2/1933 Uma alta expressão artística, p.1
56
JP, 3/11/1929 Teatro, p.2, 7/11/1929 Teatros e cinemas, p.2, 12/6/1930 Noticiário.
Companhia Jaime Costa, p.2, 5/1/1941 Artes e artistas. Campanha Ribeiro-Cancela,
p.2 e 23/9/1943 Artes e artistas. Companhia de comédias Procópio Ferreira, p.3
57
JP, 15/8/1929 Teatros e cinemas. Recital de piano, p.3, 19/9/1929 Teatro e cinemas,
p.3, 31/5/1931 Notas de arte. Concerto de Raul Laranjeira, p.2, 28/1/1932 Recital
de Piano. Odete Faria, p.1, 1/9/1932 Noticiário. Noite Brasileira, p.3 e 9/3/1933
Noticiário. Teatros e cinemas, p.3
58
JP, 23/7/1931 Maria Moritz, p.2 e 15/10/1931 Festas e Diversões. Escola de Música,
p.2. Ver, neste contexto, NOGUEIRA, Isabel Porto (org.). História iconográfica do
Conservatório de Música da Ufpel. Porto Alegre/RS: Palotti, 2005
59
GUIDUGLIO, Humberto Atílio. Concertos-operetas. Revista Aquarela, n.7, dez.1958
60
JP, 15/5/1930 Noticiário. Circo Riograndense, p.3, 26/1/1933 Noticiário. Circo Palermo,
p.3, 1/10/1933 Noticiário. Circo Alegria, p.5, 7/1/1937 Noticiário. Grande parque
de diversões Bertani, p.3, 30/11/1939 Um fracasso em Cachoeira do Sul do homem
que “anda mancando e canta chorando”, p.1, 28/11/1940 Noticiário. Circo-teatro
Palácio, p.3, 12/1/1941 Parque-teatro Internacional, p.3 e 4/5/1941 O recital de
Ubirajara Moreira, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
294
295
5.3. Diversão reservada só nos bailes e eventos sociais
As diversões mais reservadas da alta sociedade ocorriam nos clubes e
sociedades, acessíveis somente para seleto público, cujo pertencimento
passava necessariamente pela estirpe pessoal. Nessa ascendência do
sujeito residia a possibilidade dele fazer parte ou não da elite. Os clubes
e sociedades caracterizavam-se como “espaços de representação da elite
urbana”, espaços de sociabilidade e de lazer, de “ver e ser visto” e da
própria representação política. Além da manutenção da sociabilidade,
tinham o encargo na educação moral da elite, dada através da imposição
de regras de conduta e convivência sociais, vistas nos estatutos e no
exemplo dos próprios sócios.
61
Como nos recitais e concertos, a imprensa anunciava os eventos sociais
do Comercial e do Concórdia com termos elogiosos. Os acontecimentos
eram “de alta sociabilidade e clara distinção”, reunindo o que existia de
“mais representativo” em Cachoeira. Os sócios pertenciam ao “mundo
elegante de Cachoeira”. Eventos tradicionalmente populares, como a
festa são-joanina e o carnaval, ganhavam ares pomposos quando
organizados pela elite. O São João de 1931, no Clube Comercial, foi tido
como o dos “mais expressivos índices de agrado e brilhantismo”. A
decoração foi criada “sob um rigoroso critério de bom gosto e arte”,
aliados a “sobriedade de linhas” e “graça do colorido”. A diferenciação
social incorporava as novas tecnologias da época, como o “jogo de luzes”.
Aumentou o número de componentes no conjunto orquestral e ao
repertório foram acrescidas músicas recebidas dos centros mais avançados
do país, Rio de Janeiro e São Paulo. As danças tiveram início pontualmente
às 21 h 30 min, obedecendo a roteiro cuidadosamente elaborado.
Pequenos cartazes indicaram as marcas dançadas de acordo com o
programa. O traje servia para barrar indesejáveis. Assim como o preço
dos ingressos, o alto valor gasto com as roupas exclusivas selecionava os
freqüentadores.
62
Esse evento dava mostras da grandiosidade que os associados do Clube
Comercial queriam aparentar. Durante toda década de 30, oportunizou
momentos ímpares de distinção social. Em 1933, foi desdobrado em duas
noites. A exigência era traje mandado confeccionar em pelúcia, somente
o casaco para cavalheiros, mas completo para senhoras e senhoritas.
63
No ano seguinte, o traje exigido foi de passeio, mas aguardava-se “noitada
deslumbrante”, por tratar-se das “criaturas mais finas” das altas rodas
sociais cachoeirenses e por ser verdadeiro acontecimento “charment”.
64
Além dos bailes de São João, outro evento popular apropriado pela elite
foi o carnaval. Data de 1900 o início dos festejos na cidade, quando a
diversão ocorria principalmente na praça José Bonifácio, através de
desfiles de charretes floridas e blocos.
65
Na década de 20-30, os ambientes
fechados e exclusivos passaram à preferência da alta sociedade, tendo
em vista as crescentes dificuldades em manter afastados os populares.
De forma semelhante aos demais bailes, o carnaval ganhou ares
aristocráticos quando feito pela alta sociedade. Nos clubes e sociedades,
a elite cachoeirense organizava blocos próprios, dançava, declamava
“versos jocosos, de acordo com a época carnavalesca”, bebia cerveja
gelada e licores, além dos doces servidos à vontade. A orquestra, puxada
por exímio gaiteiro, fazia a “delícia do assalto”. Na “festa batuta”, o
“mundo social cachoeirense” comparecia “no esplendor máximo de sua
alegria e de sua beleza”.
66
Na era do rádio, cantava-se as marchinhas
carnavalescas ditadas pela capital federal, Rio de Janeiro. Em 1934, o
concurso carioca premiou o samba Linda Lourinha, levando-o para todo
país.
67
Assim como as rádios e os jornais, as canções do carnaval eram
usadas para legitimar o governo federal.
61
RAMOS, Eloisa Helena Capovilla da Luz. O teatro da sociabilidade: um estudo dos
clubes sociais como espaços de representação das elites urbanas alemãs e teuto-
brasileiras: São Leopoldo, 1850/1930. Tese de Doutorado [orientador René Gertz],
Porto Alegre: UFRGS/PPG História, 2v., 2000, mostrou como os clubes sociais de São
Leopoldo/RS, em especial o a Sociedade Orpheu, podiam se apresentar como espaços
de representação da elite urbana de origem alemã e teuto-brasileira, como espaços
de sociabilidade e de lazer, de “ver e ser visto” e da representação política.
62
JP, 14/6/1931 Festas e diversões. O baile de São João, p.3
63
JP, 22/6/1933 Festas e diversões. Club Comercial, p.2
64
17/6/1934 Festa e diversões. Club Comercial. Baile de São João, p.2, 21/6/1934
Festa e divisões. Club Comercial, p.2 e 24/6/1934 Festas e diversões. Club comercial,
p.2
65
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
66
JP, 11/2/1932 Carnaval. Os bailes realizados estiveram brilhantes, p.2 e 19/2/1933
Festa e diversões. Bloco carnavalesco, p.2
67
JP, 8/2/1934 Pródromos do carnaval. Bloco dos Bens Unidos, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
296
297
A plebe divertia-se na praça José Bonifácio, que acabou virando ponto
de atração dos que queriam jogar confetes, serpentinas e lança-perfumes,
mas não tinham livre-acesso aos clubes e sociedades. Diferente dos salões,
o carnaval de rua era tratado de forma depreciativa. Para o jornal, os
festejos eram “sem nenhum entusiasmo”. No carnaval de 1932, em
oposição aos “brilhantes” festejos dos clubes, os divertimentos ao ar
livre “correram friamente e sem entusiasmo, apesar da grande massa
popular”. No desfile dos blocos, poucos automóveis com alguns
fantasiados. No ano seguinte, a chuva torrencial impediu animação nos
dois primeiros dias.
68
O carnaval de rua de 1939 foi considerado pelo
Jornal do Povo como de “muita gente e pouca animação”. O Rei Momo
tivera “recepção fria por parte dos foliões cachoeirenses”.
69
Da mesma
forma os de 1940-41. Apesar da “grande concorrência”, não demonstravam
“a menor animação” quando comparados aos festejos realizados nas
sociedades locais. Somente os cordões e blocos se faziam notar: Filhas
do Trabalho, Floresta Aurora, O nome vem depois e Caruru.
70
O lamento do esvaziamento do carnaval de rua, levado a cabo através da
imprensa nacional desde meados dos anos 20, traz subjacente o
sentimento nostálgico por parte da elite, que perdera, em todo país, a
prerrogativa de festejar o reinado de Momo em espaços abertos,
obrigando-se a ir para os salões. O tratamento depreciativo atesta a
democratização do carnaval nos espaços públicos centrais, cada vez mais
apropriados pelos subalternos.
71
O estado policialesco, instaurado com a Revolução de 30, agravou em
parte o declínio do carnaval de rua. Para pacificar os foliões “de baixo”,
Vargas impôs uma série de normatizações carnavalescas. Nos carnavais
de rua, batalhas de confetes e banhos com fantasia, ensaios ou bailes
públicos, passeatas de blocos, cordões, ranchos ou qualquer outro tipo
68
JP, 12/2/1931 Carnaval, p.2 e 11/2/1932 Carnaval. Os bailes realizados estiveram
brilhantes, p.2
69
JP, 23/2/1939 O carnaval de Cachoeira na Praça José Bonifácio, p.2
70
JP, 14/1/1940 O Comercial iniciou ontem, oficialmente, o carnaval, p.2 e 27/2/1941
Carnaval. Carnaval de rua, p.2
71
Cf. SCHPUN, Monica Raisa. Luzes e sombras da cidade (São Paulo na obra de Mário de
Andrade). op.cit., 2003
de agrupamento, só poderiam realizar-se mediante autorização prévia
da delegacia especial de costumes e depois de pagos os emolumentos
previstos em lei. O poder constituído desautorizava qualquer canção sem
que a respectiva letra tivesse sido previamente analisada e proibia o uso
de fantasias atentórias à moral ou parecidas com uniformes adotados
pelas classes armadas. O uso da máscara somente era permitido nos dias
de festa e os mascarados estariam sujeitos à fiscalização policial. Grupos
carnavalescos de que fizessem parte indivíduos maltrapilhos, empunhando
latas, fragmentos de madeira ou outros objeto, seriam dissolvidos e seus
componentes levados à delegacia.
72
Por estas razões, o texto jornalístico da época é marcado pela depreciação
e pela segurança. Quando a imprensa local noticiava o carnaval de rua,
era comum informar que a ordem social mantinha-se em limites
aceitáveis. Numa festa considerada, por excelência, do inverso, a inversão
não poderia ser completa.
73
Para não ultrapassar os limites aceitáveis,
conter a massa popular e evitar confusão, era possível e exigido o controle
policial sobre os subalternos. Exército e Brigada faziam o patrulhamento
preventivo. Durante os três dias consagrados à pandega e à alegria, deveria
reinar sempre a “mais perfeita” e “mais completa ordem”, não ocorrer
“nenhum acidente de monta”.
74
72
Ver CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Sob a máscara do nacionalismo. Autoritarismo e
anti-semitismo na Era Vargas (1930-1945). In: Estudios Interdisciplinarios de America
Latina Y El Caribe. Facultad de Humanidades Lester y Sally Entin Escuela de Historia
Instituto de Historia y Cultura de América Latina. School of History, Universidad de
Tel Aviv, Ramat Aviv, vl.1, n.1, Enero/Junio, 1990 [disponível em http:// www.tau.ac.il/
eial/I_1/carneiro.htm#note55 – acessado em 29/3/2006]
73
Sobre a inversão no período do carnaval, ver FERRARA, Lucrécia D’Aléssio. Olhar
Periférico: Informação, Linguagem, Percepção Ambiental, op.cit., 1993, p.210,
BALANDIER, Georges. O Poder em Cena. Tradução de Luiz Caldas de Moura, Brasília/
DF: Universidade de Brasília, 1982, que entende o carnaval como tempo de se liberar
pela imitação e pelo divertimento, se abrir aos ataques e às críticas por meio de
transposições toleráveis e se entregar parodicamente ao movimento a fim de com
ele aumentar sua ordem. Por esta razão, a festa do inverso se opõe às demonstrações
políticas de civismo e às ritualizações religiosas; e DA MATTA, Roberto. Carnavais,
malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema brasileiro. 6
a
ed. Rio de Janeiro:
Rocco, 1997
74
JP, 2/3/1933 Os festejos carnavalescos. Como foi comemorando em Cachoeira a fugaz
passagem dos dias consagrados a Momo, p.2
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299
Durante os anos de guerra, a apatia do carnaval de rua contrapunha-se
ao esplendor dos clubes. Enquanto nas ruas a diversão definhava, o Clube
Comercial atraíam inúmeros foliões. Em 1941, o clube promoveu quatro
bailes que encerravam ao amanhecer. Neste ano, o salão foi decorado
pelo escultor Torquato Ferrari e a festa foi animada por jazz. Em 1944, o
carnaval foi comemorado exclusivamente nos salões das sociedades
locais.
75
Nos anos 30-45, outros dois bailes, eminentemente aristocráticos, foram
destaque nos meios sociais locais. A Festa da Primavera de 1931,
promovida pelo Comercial, contou com senhoritas que eram “tudo que
havia de gentil na sociedade cachoeirense”, que trajavam-se
“elegantemente”, representando flores. Nas mesas, ofereciam-se flores,
doces e finos licores.
76
O de 1933 foi realizado em duas noites, logo após
a sessão cinematográfica. Sua proximidade aumentava o “entusiasmo do
mundo elegante” cachoeirense, gerava “intensa expectativa social nas
altas rodas”, por tratar-se do “mais fino” e “elegante da estação”.
77
O
segundo baile fremente era o reveillon. Embora muitas sociedades
promovessem alguma festividade na virada do ano, o do Clube Comercial
recebia as descrições mais favoráveis, ressaltando-se sempre a
“numerosíssima afluência de associados”, os “memoráveis bailes”, o
“grande êxito”, o “maior brilhantismo”, entre outros adjetivos.
78
Na mesma medida em que valorizava eventos sociais da elite, o Jornal
do Povo ridicularizava os dos outsiders, como notícias de desordens e
conflitos nos bailes dos subúrbios.
79
Mas era na depreciação da linguagem
dos subalternos que residia o maior desdém. A elaboração do convite sui
generis, mandado publicar em abril de 1934 por Silvio Faria Correa,
exemplifica esse desprezo:
Tendo arrumado um arrasta pé de arranca pé de picigueiro com raiz e tudo pro dia de
São João, cunvidemo uns portadô desse pra festa cum a famia e os parente. Chamamo
as atenção dos supricante pro regulamento da festa, cuim todos adjetivos qualificativos
do mesmo.
Regulamento:
1º - dentro da sala é pruibido dá tiro de revórve calibre 44, purque pode assustá as
moça.
2º - não pode tá reunido mais de treis véia no salão pra evitá que saia frége, pra modi
as falação da vida aieia;
3º - não si aguenta cachorro na sala, imbora di istimação, prá não largá purga nem bicho
de pé;
4º - a moça que negá o estrivo pro moço que fô tirá ela tem que dá espricação pro
mestre da sala sobre os motivo do cunsiguinte;
5º - não se pódi pisá em calo di gente véia;
6º - o mestre da sala podi mandá pará a gaita quando entendê;
7º - não se aguenta tosá cola de matuto dus convidado;
8º - uns covidado tem direito a bala e rosquinha de ovo, porém, de galinha. Café cum
leite é considerado extraordinário. U que quizé tem que paga;
9º - sujeito fumando não pode toma mate com as moças. Cum as véia pode oma inté
relinchá;
10º - quem cuspi no chão tem que espaiá cum o pé o guspe. Não se admite guspida de
guascaço “tipo pato”;
11º - u cunvidado que provocá baderna sai da sala e não entra mais inquanto não isfriá
a maceta;
12º - u indivídu que se metê a querê apagá lampião da sala, cum tiro o cum facão, é
expurço;
§ único: - sendo véio e tendo fia bunita nu baile pode vortá pra sala dispois de se
acomodá;
13º - véia que tivé falando dos outro não tem direito a rosquinha de ovo.
14º - uns direito cumprem esse ao pé da letra o pur bem o a pau em caso de percisão;
N.B. – tem potreto seguro pros cavalo, girau prus arreio e maniadô prus cunvidado.
80
Dessa forma, a figura do caipira – habitante do interior, do campo ou da
roça, sujeito atrasado, de pouca instrução, de convívio e modos rústicos
e canhestros, de fala imbricada e estereotipada, indolente em suas
interpretações, no centro do país o caboclo, no sul os migrantes oriundos
das zonas de colonização ou de outras áreas agrícolas – foi utilizada para
75
JP, 27/2/1941 Carnaval. Os bailes nos Clubes, p.2 e 24/2/1944 O rei da folia imperou
nos salões, p.2
76
17/9/1931 Festas e Diversões. Festa da Primavera, p.3
77
JP, 10/9/1933 Club Comercial. Festa da Primavera, p.2 e 17/8/1933 A primavera ai
vem... O. M., p.2
78
JP, 9/12/1934 Natal e ano Novo. Os dois grandes bailes do clube Comercial, p.1, 3/1/
1937 A noitada de 31 no comercial, p.2, 25/12/1940 Festas e Diversões. O “Reveillon”
de fim de ano no Clube Comercial, p.2, 4/1/1942 Festas e Diversões. Os bailes de fim
de ano nas sociedades, p.2 e 29/12/1940 Festas e Diversões. Sociedade Concórdia,
p.2
79
JP, 13/9/1934 Noticiário. Desordens e conflito em um baile na Vila Barcelos, p.3
80
JP, 26/4/1934 Convite, p.4
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Deleite: gozo íntimo, prazer pleno
300
301
produzir a auto-imagem da moderna elite em oposição aos subalternos.
A década de 30 foi rica no debate em torno da identidade nacional, com
ênfase na mudança social e na modernização. Na literatura nacional,
Jeca-Tatu, de Monteiro Lobato, personificou essa imagem.
81
Em Cachoeira, a organização do baile caipira no Clube Comercial, em
julho de 1939, é conseqüência deste contexto.
82
Os bailes da roça,
promovido nos anos 1932-35 pela Sociedade Atiradores Concórdia, tiveram
sentido inverso, na medida em que procuravam dignificar as origens
agrárias dos teuto-brasileiros.
83
Muitos dos eventos sociais dos clubes e sociedades tiveram explícitas
conotações políticas. Em outubro de 1931, foi comemorada a passagem
do primeiro aniversário da revolução de Vargas. A elite promoveu
“suntuoso baile” no Clube Comercial, com muito “luxo” e “elegância”
ao som dos grupos “Alegria” e “Bambas”. Conforme a narração do jornal,
a sociedade cachoeirense gozou “horas de encantos” e sentiu a
“sublimidade de um ambiente absolutamente distinto”.
84
Já o “povo”
participou do popular quermesse na praça José Bonifácio, onde foram
vendidas flores e objetos doados, com renda em benefícios à obra da
igreja.
85
Essa conotação caridosa acompanhava muitas das festas
organizadas pela elite. A renda auferida no baile da primavera de 1939 –
copa, tômbola e demais jogos de azar – foi revertida para o hospital.
Eram comuns festas especificamente para beneficiar alguma obra
comunitária.
86
O uso de eventos sociais com finalidades políticas também esteve presente
na Sociedade Atiradores Concórdia. Comumente, o clube de origem
germânica utilizava os encontros dos associados para tais fins. Em 1934,
por exemplo, foram convidados todos os alemães e teuto-brasileiros
residentes na cidade. O festejo começou com vivas para o Brasil e Getúlio
Vargas, seguido da execução do hino nacional pela orquestra e da
declamação do hino fascista alemão por Iris Dicklhuber, que foi “muito
aplaudida”. Arthur Decker fez o discurso oficial, tecendo elogios a Adolf
Hitler, o “Führer do povo alemão e reconstrutor na Nova Germânia”.
Suas palavras eram cobertas por “prolongada salva de palmas”.
87
A eclosão do conflito bélico na Europa, em 1939, fez com que a palavra
“Atiradores” fosse suprimida, ficando somente Sociedade Concórdia, na
tentativa de antecipar possíveis represálias, como em 1917, quando a
sociedade sofreu intervenção do Tiro de Guerra, os encontros foram
suspensos, os estatutos e o próprio nome foram traduzidos para a língua
portuguesa e as armas usadas no tiro ao alvo foram apreendidas. Todavia,
a simples alteração da denominação não foi suficiente para convencer as
autoridades de que os associados tinham perdido o encanto pelo nazismo.
Com a entrada do Brasil na guerra, em 1942, a sociedade ficou fechada
entre os meses de fevereiro e abril. A sede e alguns monumentos foram
depredados. Eurico Nestor Wilhelm foi substituído no cargo de presidente
por João Garibaldi dos Santos, designado pelo delegado de polícia. A
partir da Assembléia Geral realizada no início de 1943, a sociedade passou
a sofrer ingerência direta do Clube Comercial. Mostra disso foi a realização
da reunião na sede comercialina e o surgimento do conselho fiscal com
função de opinar, propor medidas e exigir informações da diretoria. O
prefeito municipal, o juiz de direito da comarca e o comandante da
guarnição militar foram designados sócios honorários. O juiz Alfeu Escobar
ocupou a presidência nos primeiros três meses, designando o comerciante
João de Oliveira Santa Fé para substituí-lo. Por conveniência, a
denominação da sociedade mudou para Rio Branco, a mesma do bairro
onde estava instalada a sede. Essa mudança foi uma tentativa de
abrasileirar a sociedade, desvinculando sua imagem com tendências nazi-
81
LIMA, Nísia Trindade. Jeca Tatu e a Representação do Caipira Brasileiro. op.cit., 1997
82
JP, 6/7/1939 O baile caipira do Comercial mexeu com a cidade, p.1
83
100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996,
p.187
84
JP, 15/10/1931 Festas e Diversões. Suntuoso baile, p.2
85
JP, 25/10/1931 Comemoração do 1º aniversário da vitória da Revolução de Outubro.
Quermesse, p.2
86
JP, 22/10/1939 A grande festa da Primavera do Clube Comercial, p.2, 10/7/1932
Noticiário. Festa em benefício do Hospital de Caridade, p.3 e 18/12/1932 Festas e
Diversões. Colcha de Retalhos, p.2
87
JP, 6/5/1934 Colônia alemã. Uma festa na sociedade Concórdia, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
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302
303
fascistas. Com a intervenção, diminuiu a freqüência dos associados. Em
abril de 1943, a moção de fusão com o Aeroclube de Cachoeirense foi
abortada por falta de quorum. Com o término do conflito europeu, em
maio de 1945, a sociedade voltou a ter autonomia e presidente com
sobrenome alemão: Osmar Tesch. Mesmo assim, o clima nacionalista do
pós-guerra definitivamente enterrou os objetivos iniciais da antiga
Schützen-Verein Eintracht, de servir de ponto de reunião dos que falavam
o idioma alemão e de cultuar valores e tradições germânicas.
88
Desta forma, os clubes e sociedades, a mais reservada das diversões da
alta sociedade, acessíveis somente para pessoas seletas, serviam para
fazer política, a mais pública das atividades humanas. A mesma tentativa
de manter tradições e valores burgueses estava presente na ocupação
dos demais momentos ociosos da elite cachoeirense – festas sociais, bailes,
cinema, teatro, concertos musicais, carnaval, São João, reveillon,
piqueniques, banhos de rio, cafés, confeitarias, hipódromo, natação e
tênis – embora implicitamente, de forma tácita e alegórica. Semelhante
aos acontecimentos diários – trânsito, rua, calçadas, regras de civilidade,
conservadorismo, moral religiosa, amores – os lazeres cotidianos
colocavam cada um em seu devido lugar, de acordo com as condições
sociais.
88
JP, 2/4/1942 Noticiário. Reaberta a Sociedade Concórdia, p.3. SCHUH, Ângela. CARLOS,
Ione Sanmartin. Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. op.cit., 1991, p. 157 e
100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-1996, op.cit., 1996,
p.66 e 207
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
304
6.Transitando
no espaço público
6.1. Praças ajardinadas: lócus da sociabilidade
O centro da vivência pública é a cidade, em especial a rua, local onde as
coisas acontecem. Nela, a personalidade coletiva revela-se através de
usos, hábitos e valores dos mais variados indivíduos, nos sinais gritantes
da vida pessoal desmedida e da vida pública esvaziada, expresso nas
coisas cotidianas. Na rua, mostra-se a diversidade de civilidade, polidez,
urbanidade e cortesia dos estranhos que nela se encontram. A colisão
cada vez maior de grupos sociais heterogêneos no ambiente coletivo
potencializou a alteração do agir, fazendo do individualismo o novo estilo
de vida em público. Para Richard Sennet, esse quadro foi a resposta para
a vida fora da segurança da família e do pequeno círculo de convivência
de outrora.
1
Até os anos 30, o espaço urbano central da sede de Cachoeira do Sul era
preferencialmente elitista, o que não excluía a presença dos subalternos.
Pelo contrário, os membros dos grupos sociais sabiam dos limites
simbólicos que lhes eram impostos. O aumento populacional, visto no
crescente fluxo de migrantes, desequilibraria esses limites.
No trânsito do espaço público, as praças cachoeirenses tornaram-se
importante espaço da sociabilidade local por abrigar a mais diversas
atividades, como os atos patrióticos durante a Segunda Guerra Mundial.
Em 1942, o Jornal do Povo incitou seus leitores a participar do protesto
contra o afundamento de navios brasileiros por submarinos alemães. Na
1
SENNET, Richard. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade. São Paulo:
Cia. das Letras, 1988
narrativa do jornal, vários oradores, “escolhidos entre os elementos de
maiores destaque intelectual de Cachoeira”, iriam esclarecer o público
através de palavras “vibrantes de fé em nossos destinos” e profligariam
com “veemência e elevação de espírito, os atos desnacionalizados
daqueles súditos no eixo que, residindo ao Brasil, se esquecem dos seus
deveres de lealdade para com o nosso país e se entregam às atividades
contrárias aos mais altos interesses nacionais”. Autoridades civis,
militares, eclesiásticas, docentes e discentes, o “povo em geral”, de
Cachoeira e dos distritos, todos foram convidados a prestigiar a
manifestação cívica. Para o jornal, a atenção dispensada às palavras dos
oradores seria “uma forma de cada cidadão cumprir com o seu inalienável
dever de se por a par dos graves acontecimentos que estão se
desenrolando em torno do nosso país”.
2
O uso destas expressões revelava
o patriotismo nacionalista do momento.
Três anos depois, em junho de 1944, com o desembarque das tropas
anglo-americanas na Normandia, costa litorânea da França ocupada pelos
nazistas, foi a vez da praça Balthazar de Bem servir de palco para que a
massa popular se reunisse para aplaudir os oradores do comício cívico. O
comércio e as repartições encerraram o expediente às 15 horas. Alunos
dos principais estabelecimentos de ensino da cidade compareceram ao
evento. O juiz municipal, Constantino Rodrigues de Freitas, abriu a série
de discursos no microfone da Voz do Povo, seguido do promotor público,
José Oscar da Costa Cabral, e do então líder estudantil, Liberato Salzano
Vieira da Cunha. Em seguida, o préstito puxado pela Banda Municipal,
acompanhado de políticos, autoridades militares, alunos, desportistas e
“grande massa popular”, atravessou a zona urbana central em direção
oeste, até o Largo Colombo, retornando até a praça José Bonifácio, onde
novos discursos foram proferidos por Floriano Neves da Fontoura, Aristides
Moreira e Orlando Carlos. Para o JP, “todos os oradores, que foram
vivamente aclamados, exaltaram o valor dos povos das Nações Unidas,
em luta contra o inimigo comum da civilização”.
3
As praças também serviam de palco para confrontos implícitos, muitas
vezes obscurecidos pelo verniz civilizador presente nos discursos da
imprensa. O Jornal do Povo contribuiu para a construção desta visão
elitista, na medida em que destacava eventos tidos por “civilizados” e
abria espaços para reclamações dos aspectos ditos “desagradáveis” das
praças. No início dos anos 30, cobriu as comemorações do 107
o
aniversário
da colonização alemã no Estado. Na ocasião, o préstimo saiu da Sociedade
Concórdia, acompanhado por banda de música, para a praça José
Bonifácio, onde populares e políticos aguardavam. Era comum registrar
eventos deste tipo em instantâneos fotográficos e oradores proferirem
loas em termos encomiásticos, elogiosos, aos homenageados.
4
Em várias outras ocasiões a elite procurava aproximar-se do natural,
com visão romântica da beleza da natureza, na busca de sua essência
intocada, um romantismo na contramão da modernidade – como definiram
Michel Löwy e Robert Sayre – uma vez que reage contra o racionalismo
moderno através do reencantamento do mundo.
5
Freqüentemente, a imprensa noticiava garden-party, que ocorriam nas
praças em benefício de obras de caridade, com teatro ao ar livre, tendas
para venda de gelados, doces, frios, bebidas, rifas, banda musical e jazz,
escolha da senhorinha mais bela e simpática, iluminação, ornamentação
característica e várias surpresas patrocinadas por elementos de destaque
da sociedade, cujos nomes eram publicados no jornal.
6
Esses encontros
eram reservados somente àqueles que pudessem pagar os convites. Em
1942, o Cock-Tail Clube realizou encontro nesses moldes na praça Borges
de Medeiros. O traje feminino exigido para a ocasião foi a de chita,
tecido de algodão estampado a cores, tendo sido premiada aquela que
compareceu com o vestido mais original. A copa ficou a serviço de
2
JP, 12/3/1942 Grande manifestação cívica nesta cidade, p.2
3
JP, 8/6/1944 Grande regozijo popular em Cachoeira pela invasão da Europa, p.2.
4
JP, 26/7/1931 Noticiário. 107ª aniversário da colonização alemã no Rio Grande do Sul,
p.3
5
LÖWY, Michel. SAYRE, Robert. Revolta e melancolia – o romantismo na contramão da
modernidade. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.
PHILIPPOV, Renata. Edgar Allan poe e Charles Baudelaire: trajetórias e maturidade
estética e poética. Orientação Maria Cecília Queiroz de Moraes Pinto. São Paulo: USP/
PPG Língua e Literatura Francesa, 2004 [disponível em http://www.teses. usp.br/
teses/disponiveis/8/8146/tde-18072005-113116/publico/Tese_-_Renata_Philippov1
.pdf – acessado em 8/3/2006], explora essa visão dos autores, explicando que haveria
três formas principais de se buscar o reencantamento do mundo: o caminho da religião,
a exaltação da noite e a recriação do mito.
6
JP, 14/12/1933 Pró-charistas, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
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307
Valdemar Duarte, que serviu comes e bebes no recinto do jardim, e a
orquestra do maestro Henrique Horn abrilhantou a reunião.
7
Outro
exemplo da tentativa de aproximação ao natural era o dia da flor, onde
senhoras e senhoritas da “melhor sociedade” espalhavam-se por todos
os recantos da cidade, vendendo flores, em benefício de obras
assistenciais ou remodelação das igrejas.
8
Nesta ótica romântica elitista, os jardins públicos constituíam-se em seu
lócus principal. Os jardins públicos deveriam dar a sensação de ordem e
respeito, mesmo em meio ao urbano impactado pelo processo de
desorganização já avançado nos anos 40. A coluna Notas locais, de 17 de
janeiro de 1943, refletiu essa visão ao criticar o desleixo com que as
flores e folhagens das praças estavam sendo tratados. O texto culpava
implicitamente os subalternos, os novos freqüentadores que deveriam
saber como se comportar sem precisar de avisos como “Não pisem na
grama” ou “As flores também têm alma”. A solução sugerida foi de incutir
neles “os preceitos elementares de conduta”.
9
Dias antes, o mesmo espaço
editorial foi utilizado para protestar contra menores que caçavam pardais
na praça José Bonifácio, com bodoques ou mesmo pedradas. O jornal
entendia que para a ordem reinar era necessário que manifestações de
“vadiagem” e “mau gosto” como essas terminassem. Também chamou a
atenção para a desarmonia provocada pelo alto falante instalado na praça,
que irradiava “som estridente e irritante como o afiar das unhas”, “roncos
de fera mortalmente ferida”.
10
As notas reforçam o aspecto natural que
se queria imprimir ao espaço.
O muro que cercou a praça durante muitas décadas fazia parte desta
busca da naturalidade pelo cuidado com a estética. Numa comunidade
vinculada aos hábitos campeiros, onde era natural criar cavalos e vacas
na periferia da zona urbana, os animais soltos constituíram-se num dos
grandes problemas a ser enfrentado pela elite para continuar com seu
espaço público sadio. No primeiro quartel do século XX, tais dificuldades
eram tangenciadas devido ao baixo número de subalternos freqüentando
os espaços tipicamente elitistas, como a zona central da cidade. Não
chegava a ser calamidade pública, até porque cada um sabia seu lugar e,
de certa maneira, o controle social ainda era grande. Os animais que
vagavam soltos eram, em sua maioria, cavalos e vacas pertencentes a
moradores da periferia, que os usavam para puxar carroças e para tirar
leite. O máximo que estes animais faziam era estragar os jardins das
residências do centro. As duas praças centrais tinham sido muradas por
causa deles. Na maioria das vezes eles eram recolhidos e devolvidos aos
que comprovassem ser proprietários.
11
Contudo, a intensificação da vinda de subalternos à cidade, a partir de
30, trouxe certa turbulência. O problema de animais vagando foi se
agravando pouco-a-pouco, principalmente nas épocas primaveris, quando
as flores desabrochavam e o aspecto elitista mostrava-se inconteste. Na
visão romântica do editorial do JP de 1933, elas não podiam ser
descuidadas, pois eram o “prazer” e a “alegria da vida”. Os animais, que
tentavam “aspirar o aroma das flores” e quedavam-se “extasiados à sua
vista”, regalando-se, “à farta e pacatamente, comendo com um grande
apetite animalesco a folhagem e os mais tenros rebentos das roseiras,
dos jasmineiros, das azaléas, etc.”, deveriam ser mantidos afastados.
12
Em dezembro de 1933, atendendo ao abaixo-assinado dos moradores, o
delegado de polícia, Cecílio Menezes, proibiu que proprietários deixassem
soltos cavalos e vacas na Vila Soares, sendo aplicada multa aos infratores.
13
No restante da zona urbana, a prefeitura limitava-se a repetir avisos
solicitando aos proprietários dos animais que os mantivessem presos. Por
conta disso, os moradores reclamavam pelo jornal, que podia publicar
pequenas notas na coluna Noticiário
14
ou deixar o tema para o sarcasmo
de articulistas anônimos:
7
JP, 22/1/1942 Festas e Diversões. Garden Party na praça Borges de Medeiros, p.2
8
JP, 7/7/1929 Noticiário: o dia da flor, p.2
9
JP, 17/1/1943 Notas locais, p.4
10
JP, 3/1/1943 Notas locais, p.4
11
JP, 17/10/1929 Animais soltos, p.3, 3/11/1929 Noticiário. Animais soltos,p.3, 12/12/
1929 Animais soltos, p.3, 21/12/1930 Noticiário. Animal encontrado, p.3
12
JP, 25/6/1933 As nossas praças públicas, p.1
13
JP, 24/12/1933 Noticiário. Animais soltos, p.5
14
JP, 17/5/1934 Noticiário. Animais soltos, p.3 e 3/3/1935 Noticiário. Animais soltos,
p.3
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Transitando no espaço público
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309
As vacas e terneiros, que à noite, e, às vezes de dia, perambulam, livremente, como se
fossem gente, pelas ruas do bairro aristocrata. Não resta dúvida. A queixa é justa e ela
aí vai direitinha aos zelosos fiscais da municipalidade, que, por certo, delicadamente,
conseguirão demover aqueles animais do abuso de andarem ‘enfeitando’ de esterco as
delicadas lajes do Rio Branco.
15
O aumento populacional urbano, intensificado no entre-guerras, também
desencadeou aquele que se tornaria o maior dos problemas em termos
de zoonose: os animais domésticos, principalmente os cachorros. A partir
dos anos 30, a questão passou a ser tratada pela imprensa como caso de
saúde pública. A razão fundamental para tanto empenho foi a proliferação
sem precedentes de cães, ocorrida por conta da fixação de migrantes
vindos do meio rural, que traziam consigo hábitos próprios, como ter a
companhia de “guapecas”. O crescimento exagerado da prole dava-se
porque antes os cães estavam separados uns dos outros por grandes
extensões de terras, confinados nas propriedades rurais. A concentração
populacional na zona urbana resultou na conseqüente concentração do
número de animais num espaço limitado, facilitando assim o acasalamento
canino. Além disso, na zona rural o cão tinha função de guarda. Na zona
urbana, tornava-se muitas vezes inútil porque, numa comunidade ainda
pequena, de certa forma segura, não se justificava o sustento diário do
animal doméstico.
Neste contexto, de forma exagerada para chamar a atenção ao fato,
Cachoeira foi considerada a “capital incontestada do mundo canino” já
em 1929. A resposta foi a exigência de um posto anti-rábico, órgão
responsável pela matança de cães sem dono, que andavam livremente
pelas ruas da cidade. Com sua instalação, a imprensa passou a exigir
ações sistemáticas: “Vagueiam eles às dezenas nas ruas da cidade. São
de todos os pelos, raças e tamanhos, numa imensa variação que vai do
familiar peludo ao vira-lata legitimo. É necessário a metódica matança
desses animais causadores de tantos males, e por muitas causas que não
só a transmissão do vírus rábico”. Falando indiretamente aos subalternos,
considerados responsáveis pela proliferação canina, o Jornal do Povo
alertava para a necessidade de açaimar e prender os cães, mantendo-os
em “boa higiene” e “isolados da coletividade”, evitando assim maiores
contágios. Os únicos que deveriam sobreviver eram os “animais
verdadeiramente notáveis pelas suas qualidades e estimáveis pelo valor”,
conforme definiu o próprio jornal.
16
No início da década de 30 e nos anos posteriores, notícias davam conta
da necessidade premente de eliminar-se os cães vadios. Para isso, a
prefeitura usava bolas de veneno ou, quando circos instalavam-se na
cidade, recolhia os cães para alimentar os leões. As despesas com
tratamento dos que fossem mordidos por “cachorros loucos” também
corriam por conta do poder público, que transferia os doentes para o
Instituto Pasteur, na capital Porto Alegre. Em julho de 1935, foram
registrados em torno de dez casos de pessoas mordidas por cães
hidrófobos.
17
Nos anos 40, o problema das matilhas de cães vagando soltos nas ruas ou
mesmo dos cachorros presos nas residências desencadeou um segundo
reclame: a perturbação do sossego público, principalmente durantes as
madrugadas. O articulista Braz Camilo ironizou a situação, afirmando
que o cachorro do vizinho sabia a hora exata em que ele se recolhia,
latindo, a partir daí, noite adentro.
18
Matias Pascoal, em artigo escrito
em 1943, chamou Cachoeira de “paraíso canino”, visto que nas “horas
mortas da noite” ouvia “cães e cadelas, soltos, na rua, a ladrar”,
atrapalhando o sono dos que trabalhavam o dia inteiro. Segundo ele, a
rua Sete de Setembro havia transformado-se num verdadeiro “far west”,
com cães latindo, correndo, uivando, mordendo, numa “algazarra
infernal”.
19
Além disso, muitas vezes a cachorrada invadia propriedades,
danificando hortas e jardins em busca de comida.
20
Em editorial de 1945,
o jornal reforçou a ironia da situação problemática. A expressão “vida de
cachorro” teria perdido seu significado em Cachoeira do Sul, diante da
quantidade de cães perambulando calmamente pelas ruas, praças e
jardins da cidade, “deitando-se comodamente nos passeios públicos e
aferrando-se valentemente as pernas de quem possa ousar perturba-lhes
o repouso”, ou ainda revirando e esparramando os lixos.
21
15
JP, 30/5/1935 O “Ditador” em apuros. O.M, p.1
16
JP, 27/10/1929 Medidas preventivas, p.1
17
JP, 7/12/1933 Noticiário. Cães hidrófobos, p.3, 26/5/1935 Ditador de Cachoeira. Foi
um sonho, nada mais, p.1 e 18/7/1935 Noticiário. Mordidos por cães hidrófobos, p.3
18
JP, 14/4/1940 Braz Camilo, p.1
19
JP, 24/1/1943 Paraíso canino. Matias Pascoal, p.1
20
JP, 26/2/1942 Noticiário. Cães vadios, p.3
21
JP, 23/1/1945 Estas e Outras, p.3
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Transitando no espaço público
310
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Mesmo iniciativas de se acabar com os cães vadios, como a distribuição
de “bolas” pela prefeitura, podiam gerar contendas. Uma porque a pessoa
encarregada do serviço acabava jogando o veneno nos pátios das
residências, matando animais presos. Outra porque muitos cães mortos
putrificavam na própria via pública, durante dias.
22
Essa simbiose entre urbano e rural, vista de forma peculiar na questão
canina, teve outros reflexos. Por exemplo, a queima de casca de arroz
pela antiga usina elétrica produzia fuligem que cobria habitações, jardins
e pátios, “poeira negra que achando portas e janelas penetra nas casas
estragando e empoeirando tudo”.
23
A barraca de couro próximo ao centro
fazia exalar mau cheiro. Ou ainda padarias, que mantinham estrebarias
em seus pátios, produziam cheiro insuportável das cavalariças e atraíam
moscas e mosquitos, “cujo inevitável contato com as massas alimentícias
poderá produzir casos graves de moléstias infecciosas”, conforme alertou
o jornal.
24
6.2. Trottoir do passante
Na Cachoeira da primeira metade do século XX, a rua era espaço do ver
e ser visto. Nela praticava-se o footing, encontravam-se os conhecidos,
estabeleciam-se e fortificavam-se muitas das relações sociais. Também
nela, revelava-se o caráter perverso da coletividade. O Código de Posturas
de 1926 determinava algumas destas regras de civilidade, como a proibição
de queimar fogos de buscapés, soltar bombas ou foguetes, dar salvas
com “roqueiras” ou instrumentos similares e tiros com armas de fogo,
atirar pedras com bodoques ou fundas, soltar pandorgas ou “cometas”,
riscar as paredes das casas ou muros e cortar galhos das árvores plantadas
nas ruas ou praças para seu “aformoseamento” (art. 158). Os
contraventores estariam sujeitos a multa, apreensão dos objetos e até
pena de “prisão correcional”. Em caso de menores de idade, os
responsáveis responderiam pelos danos causados e pelas penalidades (art.
159).
25
Tais proibições não impediam reclamações contra “petizes” jogando
futebol em plena rua, danificando as vidraças das casas e prejudicando o
trânsito, nem soltando pandorgas que enrolavam-se nos fios e provocavam
curtos-circuitos na rede de energia.
26
Fogos de artifício também
freqüentavam a coluna dos reclames. Muitas vezes, o foguetório não
tinha o intuito de festejar mas de provocar susto entre as famílias que
passeavam.
27
Outra reclamação era no sentido dos caminhões, que traziam
arroz para os engenhos, respeitarem o toque de silêncio, evitando
descargas abertas e buzinações durante a madrugada.
28
Nas calçadas, a questão da civilidade mostrava-se de forma derradeira.
Numa cidade onde a maioria dos prédios foi construída sem recuo, a
calçada tornou-se linha divisória entre espaço público e privado. Como
exemplo, a falta de varanda frontal criou o hábito de colocar cadeiras
nas calçadas das residências, principalmente em noites quentes. Outro
era o de parar para conversar em pequenos grupos, trancando a passagem
dos transeuntes. Alguns proprietários de estabelecimentos chegavam a
colar cartazes pedindo que não se fizesse ponto de palestra em frente às
vitrinas, para não atrapalhar as vendas.
29
O problema de espaço de
passagem era agravado pela estreiteza na largura dos passeios públicos,
construídos sem perspectiva futura de ampliação, visto que foram
projetados para os poucos transeuntes do século XIX.
Nos anos 20-30, a movimentação de pessoas e veículos estava concentrada
nas proximidades da praça José Bonifácio, no trecho envolvendo as ruas
Andrade Neves e Sete de Setembro. O congestionamento dava-se pela
quantidade de pessoas aglomeradas nos canteiros e calçadas da artéria
principal. Os motoristas trafegavam em diminuta velocidade, não em
respeito aos pedestres, mas para verem e serem vistos. A elite realizava
o footing, passeio à pé para espairecer, principalmente nas noites de
calor, quando as famílias sentavam-se nos bancos da avenida e as crianças
22
JP, 20/6/1943 Noticiário. Distribuição de “bolas” aos cães vadios, p.3
23
JP, 23/6/1930 Noticiário. Uma reclamação, p.3
24
JP, 17/4/1932 Noticiário. Com a higiene, p.3, 13/12/1936 Uma reclamação justa, p.3
25
A Lei n.302, de 2/1/1929, alterou alguns artigos do Código de Posturas Urbanas de
Cachoeira do Sul, promulgado pela Lei n.222, de 19/9/1926
26
JP, 15/11/1936 Os moradores da rua 15 reclamam, p.3, 22/10/1942 Noticiário.
Reclamações, p.3
27
JP, 3/11/1929 Reclamações, p.3 e 1/6/1944 Noticiário. Abuso com fogos de artifício,
p.3
28
JP, 3/4/1930 Justa reclamação, p.1
29
JP, 14/4/1938 Calçadas e Cadeiras. Braz Camilo, p.2 e 14/4/1938 Luz! Mais luz! E.R.,
p.1
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Transitando no espaço público
312
313
brincavam na rua. Como as principais ruas do centro da cidade foram
projetadas e abertas no tempo das carroças, em que era inimaginável
intenso fluxo de veículos, ainda mais automotores, as reclamações sobre
possíveis desastres envolvendo carros e pedestres passaram a fazer parte
do cotidiano cachoeirense na mesma medida em que aumentou o número
de automóveis circulando.
30
O instantâneo do fim dos anos 20 mostra esse quadro de trânsito intenso
de automóveis na rua principal, a Sete de Setembro. No horário das 12 h
23 min, em torno de dez veículos seguem no sentido bairro-centro. Vários
pedestres aguardam oportunidade para atravessarem a rua. A inércia do
guarda de trânsito é indício da prevalência do automóvel sobre os
passantes.
Em 1931, leitor do Jornal do Povo escreveu alertando para o fato de que
o crescimento urbano implicava na necessidade de noções de tráfego
para a população: “Não com todas as exigências do circulez-monsieur,
de Paris – ressaltou ele –, mas sobre a maneira de se andar nas ruas, para
evitar os acidentes de veículos”. Era comum crianças brincarem
livremente nas ruas, pulando corda ou jogando peteca, “calma e
descuidadamente como se estivessem em um pátio fechado e como se
não houvesse na rua trânsito de veículos”.
31
Havia também o basbaque,
sujeito que ficava atônito, bestificado, postado na passagem dos
transeuntes, contemplando algo que lhe parecesse grandioso,
prejudicando o trânsito e sendo alvo da chacota alheia. Muitos dos que
vinham de localidades menores eram tidos por basbaques que
hipnotizavam-se pela agitação e ritmo frenético da urbe cachoeirense.
32
Em matéria de trânsito, a maior problemática de Cachoeira foi reflexo
do embate urbano versus rural, envolvendo automóveis, carroças e
caminhões. As vias públicas locais serviram de passagem de grande parte
dos produtos agrícolas, dos hortifrutigranjeiros puxado a cavalo ao arroz
transportado em caminhões. Em 23 de abril de 1934, o prefeito Aldomiro
Franco publicou o Decreto n.49, proibindo trânsito de carretas nas
principais ruas da cidade, alegando grandes despesas com serviço de
calçamento e melhoramento das ruas devido aos estragos provocados
pelo excesso de peso. Os infratores ficaram sujeitos a multas de 20$000
a 200$000 réis, além da obrigação de reparar danos causados. Em sua
administração, transferiu para o bairro Fialho (Santo Antônio) o bebedouro
público utilizado pelos animais dos carroceiros.
33
Administrações anteriores já haviam promovido ordenações neste sentido.
Através do decreto n.268, de 16 de janeiro de 1928, o intendente Carlos
Leal Nogueira da Gama estabeleceu certas regras: veículos não poderiam
parar a menos de cinco metros dos cruzamentos de ruas (art. 1
o
); não
poderiam descer algumas das quadras das ruas 24 de maio e 7 de Setembro
(art. 2
o
); não poderiam subir a rua Saldanha Marinho, no trecho entre a
rua Venâncio Aires e o trilho da via férrea (art. 3
o
); não poderiam fazer a
30
JP, 15/8/1929 Sugerindo, p.1
31
JP, 13/9/1931 Tráfego e descuido, p.1
32
JP, 7/4/1938 Luz e Basbaques. E.R., p.1
33
JP, 13/10/1929 Obras municipais, p.2 e Decreto n.49, de 23 de abril de 1934, proibindo
o trânsito de carretas na cidade. Fonte: JP, 26/4/1934, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
314
315
Figura 108 – Trânsito intenso na rua Sete de Setembro, fim dos anos 20. Fonte: Museu
Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
volta contornando o relógio público instalado defronte a Praça José
Bonifácio (art. 4
o
).
34
Todavia, era forte o apego pelo veículo particular e revelava-se na
percepção apurada de intelectuais, como o poeta Lisboa Estrazulas, que
escreveu em homenagem ao automóvel, intitulada Baratinha sem gosto:
Pobre baratinha.
Morreu a minha baratinha azul-marinho, aquela mesmo que passava pela casa de Você.
Aquela mesmo que eu desejei um dia fosse estraçalhada pelo Chevrolet seis cilindros
que Você guiava.
Quanta saudade em meu coração.
Quantas recordações!
Rendo a ti, minha baratinha amiga, o meu preito de saudade, companheira fiel de dois
anos de convívio diário.
Não mais a tua chapa – 292 - trará na minha passagem palpites aos jogadores do “bicho”.
Não mais o creoulinho da Casa J. Lima virá trazer-me o palpite do sonho promissor com
a baratinha.
Não mais a tua buzina alegre e estridente anunciará a Você a minha volta ao lar, depois
das longas e fatigantes jornadas.
Não mais me servirás de pouso na várzea do Botucaraí ou no tenebroso Santa Bárbara,
nas noites gélidas de inverno.
Adeus, minha habitação ambulante!
Não me chamarão mais o “moço da baratinha”.
Não te pedirão mais os amigos para os passeios aos domingos e para excursões ao Amorim.
Não servirás mais de cama ao Azuil para a sesta, a hora do cafezinho no Comercial,
depois do almoço.
Não serás mais enfeitada pelo Ghignatti com cascas de laranja e latas de lixo.
É triste, é doloroso, tudo isto./ Mas, no teu suicídio, há uma coisa com que eu não pude
ainda me conformar.
Com o teu acentuado espírito de mulher.
Há mulheres belas, cheias de mocidade, graça e encantos que, havendo no mundo
tantos homens inteligentes, fortes, bonitos e sadios, se entregam, de alma, corpo e
coração, a um homem horrível, doente, reumático, asmático, pobre, feio, esquelético
e burro, por um fenômeno de atração irresistível e inexplicável.
Tu foste assim, minha baratinha.
Com tanto automóvel bonito e de luxo na praça e na cidade: o do Caburet, o do Kunert,
o do Caloca Barros e outros, campeões de estética e beleza de linhas, procuraste morrer
estraçalhada por um miserável calhambeque.
Depois não querem acreditar no destino.
35
Em que pese esta paixão ao veículo particular, a imprensa freqüentemente
denunciava os pecados dos motoristas. Em 1929, a coluna dos reclames
do Jornal do Povo considerou que o chofer do carro n.10, guiando na
velocidade em torno de 10 km/h, queria “bater recordes de velocidade”,
“desabalando” pelas ruas da cidade “em carreira vertiginosa”.
36
No ano
seguinte, o noticiário destacava o fato de que o excesso de velocidade
no centro da cidade provocava pequenos acidentes e solicitava
providências da inspetoria de veículos.
37
O articulista Petrônio questionou
o hábito de motoristas usarem a frente das residências como garagens
de seus automóveis, mesmo nas ruas de maior movimento, como a Sete
de Setembro: “à mingua de melhor garagens, os proprietários chegam a
deixar todas as noites e mesmo durante o dia, até dois automóveis,
defronte de suas casas”. Era a solução encontrada para residências
construídas no tempo em que veículos particulares não faziam parte do
cotidiano urbano. Mas o hábito, segundo ele, prejudicava aqueles que
usavam o automóvel para vir ao centro da cidade e não encontravam
vagas disponíveis para estacionar.
38
Em edital publicado em março de
1933, a prefeitura alertava para a exigência de somente adultos e
portadores de caderneta conduzirem veículos.
39
Afora as exigências, as ruas continuaram revelando desfaçatez daqueles
que postavam-se ao volante, sendo pistas de corridas para alguns
motoristas. Por esta razão, os desastres continuaram acontecendo com
freqüência. Muitos dos “cinesíforos” não respeitavam a pouca sinalização,
não buzinavam nos cruzamentos e andavam na contra-mão com a descarga
aberta.
40
Além disso, em 1937 a Diretoria do Tráfego, responsável local
pelas orientações e fiscalização, proibiu os motoristas de andar com faróis
dos carros acessos à noite nas ruas iluminadas. A intensidade produzida
oferecia riscos ao tráfego, na medida em que podia ofuscar transeuntes
e outros choferes.
41
34
Decreto nº 268, de 16 de janeiro de 1928, publicado no Jornal O Commercio, em 18 de
janeiro de 1928, p.1.
35
JP, 17/12/1931 Baratinha sem gosto. Lisboa Estrazulas, p.1
36
JP, 1/8/1929 Quis bater o recorde, p.2
37
JP, 27/11/1930 Noticiário. Velocidade excessiva, p.3
38
JP, 24/1/1932 Pela Urbs. Garagens no meio da rua. Petrônio, p.1
39
JP, 12/3/1933 Edital. Sub-prefeitura, p.2
40
JP, 30/5/1935 O “Ditador” em apuros O. M, p.1 e 8/12/1940 Noticiário. Um esmoleiro
foi de encontro a um automóvel, p.5
41
JP, 20/6/1937 Noticiário. É preciso apagar os faróis dos motociclistas, p.3
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Transitando no espaço público
316
317
Não obstante as críticas do jornal, comparando a outros Estados, a situação
gaúcha era privilegiada. Dados do IBGE dos anos 1937-38 mostram que o
número de mortos e feridos em acidentes de trânsito no Rio Grande do
Sul foi baixo. Em 1938, ocorreram em todo Brasil 16.951 acidentes no
trânsito, 73% envolvendo homens, num total de 1.083 mortes (6,38%). As
capitais com maior número foram: Niterói/RJ (5.723), Rio de Janeiro/DF
(3.658), São Luiz/MA (2.015), Belo Horizonte/MG (1.322), São Paulo/SP
(913), Recife/PE (842), Curitiba/PR (560), Porto Alegre/RS (555) e Vitória/
ES (551). O quadro muda significativamente quando considerados somente
os acidentes envolvendo mortes: São Paulo/SP (416), Rio de Janeiro/DF
(382), Salvador/BA (96), Niterói/RJ (44), Recife/PE (31), Aracaju/SE (17)
e Porto Alegre/RS (15).
42
Neste ano, os seguros de automóveis atingiram
a cifra de 361.093$000 réis, sendo pagos 4.497$000 réis de sinistros,
entre companhias nacionais e estrangeiras.
43
A falta de regramento sistemático e padronizado durou até entrar em
vigor, em todo Brasil, o Código Nacional de Trânsito, em 30 de abril de
1941, criado através do Decreto-lei n.2.994, promulgado três meses antes.
Seus 147 artigos versavam sobre questões como mão de direção,
velocidade, sinais, equipamentos, estacionamento, licenças, matrículas,
multas e apreensões. Entre as regulamentações, passou a ser obrigatório
o motorista adotar a direita como mão da direção e ultrapassagem pela
esquerda, dar preferência a cortejos, bombeiros, ambulâncias e polícia.
A velocidade máxima permitida passou a ser, para caminhões, de 30 km/
h na cidade e 50 km/h na zona rural; para ônibus, de 30 km/h na cidade,
50 km/h nas grandes avenidas e 60 km/h na zona rural; para carros de
passeio, de 40 km/h na cidade, 60 km/h nas grandes avenidas e 80 km/
h na zona rural. Ficava proibido fazer competições ou andar com
velocidade muito reduzida para não atrapalhar o trânsito. Todos veículos
deveriam ter equipamentos obrigatórios como sistema de freios
independentes, espelho retrovisor, buzina, limpadores de pára-brisas,
faróis dianteiros, sinaleiras traseiras e pára-choques. A carteira de
habilitação passou a ser expedida somente para quem fosse maior de 18
anos, soubesse ler e apresentasse folha corrida limpa. As multas variavam
de 10$000 a 500$000 réis e seriam cobradas em dobro no caso de
reincidência. Em caso de embriaguez, imprudência ou acidentes de
trânsito envolvendo mortos ou feridos, poderia ser apreendido tanto o
veículo quanto a carteira do motorista.
44
A quantidade de veículos automotores cresceu extraordinariamente em
todo Brasil, principalmente nas cidades mais desenvolvidas. A frota
nacional de automóveis em 1927 era pouco menos de 90 mil, número que
praticamente não se alterou até 1946. Somente o término da guerra na
Europa propiciaria a aquisição de veículos particulares, fazendo com que
o número pulasse para 500 mil automóveis em circulação no país em fins
da década de 50.
45
Nas inspetoria de todo país, em 1937, trabalhavam
2.308 servidores, entre inspetores, comandantes, sub-inspetores, sub-
comandantes, fiscais, chefes de turmas, guardas e pessoal administrativo,
1.723 deles (74,65%) lotados nos três principais Estados. São Paulo era o
que tinha maior número, 798, sendo 707 somente de guardas, seguido
pelo Rio de Janeiro/DF, 486 no total e 439 guardas, e Rio Grande do Sul,
228 total e 194 guardas.
46
Cachoeira do Sul seguiu a tendência brasileira. A Agência Ford, do
concessionário Prudêncio Schirmer, estava instalada na cidade desde
1924.
47
O término da guerra marcou o início da fase de ouro nas vendas
de automóveis, não só particulares. O poder público também passou a
adquirir novos veículos. Em 1948, a prefeitura municipal abriu crédito
para a aquisição de algumas unidades. Só a unidade local da Companhia
Rio-grandense de Usinas Elétricas tinha seis veículos nesta época.
48
A
firma Allaggio demonstrou essa pujança com o desfile de 36 veículos
42
Fonte: Anuário estatístico do Brasil 1938. Rio de Janeiro: IBGE, v. 4, 1939
43
Fonte: Tabela extraída de: Anuário Estatístico do Brasil, 1939/40. Rio de Janeiro:
IBGE, v. 5, 1941
44
PORTELA, Vitorino. PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
Cachoeira: Tipografia Portela, 1940 (1
a
ed.), 1943 (2
a
ed.), p.167
45
Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de
1550 a 1988. 2. ed. rev. e atual. do v. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de
Janeiro: IBGE, 1990
46
Fonte: Serviço de Estatística Demográfica, Moral e Política. Anuário estatístico do
Brasil 1939/1940. Rio de Janeiro: IBGE, v. 5, 1941
47
JP, 31/3/1949 O Transcurso do 25º aniversário de fundação da “Agência Ford” desta
cidade, p.1
48
A Lei Municipal n.7, de 19/6/1948, abriu crédito especial para a aquisição de unidades
automotoras. Fonte: JP, 20/6/1948, p.4. A Lei Municipal n.47, de 7/6/1949, concedeu
isenção do imposto de licença dos seis veículos, pertencentes à Cia. Rio-grandense
de Usinas Elétricas, nesta cidade. Fonte: JP, 7/6/1949, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
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319
Studebacker em caravana, nas principais ruas da cidade, vindos
diretamente de São Paulo.
49
Em julho de 1949, a Seção de Trânsito da Delegacia de Polícia local chamou
os proprietários para emplacarem nada menos que 43 veículos. Eram
eles: Alfredo Geraldo Penna, Antônio Marques Ribeiro, Ari Cechela, Ariosto
Oscar Cunha, Armindo Goltz, Arnoldo Ricardo Schmidt, Arthur Guilherme
Wrasse, Arthur Schmidt, Augusto Júlio Mernak, Balduino Wilhelm,
Bertholdo Sauereressig, Carlos Fonseca Ghignatti, Carlos Müller Sobrinho,
Cláudio Oscar Wild, David Unfer, Edwino Germano Rohde, Euclides
Domingos Bacchin, Florêncio Lidio Corrêa, Gabriel Ferreira de Moraes,
Herbert Port, Irmão Engel, João De Franceschi, José Félix Garcia, José
Ferreira, José Joaquim de Carvalho, José Peixoto de Melo, Joubert
Masseron Giacobbo, Júlio Nunes, Lourenço Edmundo Pohl, Luiz
Maximiliano Cerentini, Luiz Vieira da Cunha, Miguel Carvalho Bernardes,
Osmar Germano Gehrke, Reinaldo Feldmann, Reinaldo Roberto Dill,
Reinaldo Roesch S/A (2), Roberto Mauss, Rubem Schlesner, Saboaria
Progresso ltda., Schu & Cia. ltda., Sílvio Luchesi, Virgilino Jaime Zinn e
Wili Goltz.
50
No contexto da circulação, o crescimento urbano fez aumentar a exigência
de melhorias no transporte público, para servir de elo de ligação entre
as vilas e o centro da cidade. Em todo país, a frota de ônibus cresceria
exponencialmente.
51
Nos anos 30, circulavam em torno de 2 mil coletivos.
No auge da guerra, esse número aumentou para 6.773. Após 1946 os
números superaram 25 mil em pouco tempo.
52
Nas décadas seguintes ao aparecimento dos primeiros auto-bondes em
Cachoeira, em 1919, o número de empresas explorando os serviços
cresceu. Em meados de 1928, a firma J. Budiansky & Cia colocou dois
auto-bondes no trajeto entre os extremos norte e sul de Cachoeira, entre
os cemitérios Municipal e o da Irmandade, fazendo viagens regulares a
cada dez minutos.
53
Dois anos depois, em 1930, José König passou a
transportar passageiros por 0$400 réis ida e volta, valor considerado
“baratíssimo”, entre a praça Balthazar de Bem e a avenida Brasil. Na
mesma época, Martim Comassetto fazia o mesmo trajeto com dois auto-
bondes. Em 31, ele inaugurou uma linha saindo do Café Carioca, passando
pelas ruas Sete de Setembro, Conde de Porto Alegre, indo até o Alto do
Amorim, passando pelo Prado, até os trilhos do desvio da Charqueada,
ao preço de 1$000 réis para adultos e 0$500 réis para crianças, diariamente
às 14 h 30 min, 18 h e 19 h 30 min.
54
Em março de 1934, a prefeitura concedeu, por cinco anos, direitos
exclusivos para Theodoro Costa explorar o serviço de transporte de
passageiros em auto-ônibus de Cachoeira. O contrato obrigava-o a manter
em atividade quatro veículos “em bom estado de conservação e limpeza,
de modo a oferecer todo o conforto possível às pessoas que se utilizarem
desses carros”. O contrato seria rescindido caso aparecesse outros
interessados com número igual ou superior de carros, oferecendo melhores
vantagens aos passageiros, “em preço, comodidade e regularidade do
serviço”.
55
Durante a concessão da empresa Costa, seguidas reclamações do serviço
chegavam na redação do Jornal do Povo, principalmente pela falta de
horário, “coisa que nunca houve”, e ao tempo de espera pelo ônibus. Em
1943, agregaram-se reclamações sobre a má-vontade de choferes e
condutores no atendimento aos passageiros. Se o usuário estivesse distante
poucos metros do local da parada, já era motivo para o ônibus “passar
de largo”. Caso corresse para alcançá-lo, os motoristas aceleravam
“propositadamente sua marcha”. Raramente buzinavam nas esquinas,
atitude recomendada na época. A vontade de desembarcar não era tarefa
49
JP, 16/6/1948 Frota Studebacker, p.1
50
JP, 14/7/1949 Aviso aos srs. proprietários de autos particulares que se acham sem
placas, p.3
51
Ver PACHECO, Regina. Mudança tecnológica, transformações urbanas e institucionais:
do bonde ao ônibus. In: FERNANDES, Ana. GOMES, Marco Aurélio (org.) Seminário de
História Urbana. Salvador/BA: UFBA, ANPUR, 1992, p.205-213, que mostra a trajetória
do transporte coletivo decorrente da intensa urbanização dos anos 30-40.
52
Fonte: Estatísticas históricas do Brasil: séries econômicas, demográficas e sociais de
1550 a 1988. 2. ed. rev. e atual. do v. 3 de Séries estatísticas retrospectivas. Rio de
Janeiro: IBGE, 1990 e Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores
(ANFAVEA), Assessoria de Planejamento Econômico e Estatístico. Tabela extraída de
Anuário estatístico do Brasil 1990. Rio de Janeiro: IBGE, v.50, 1990
53
Jornal O Commercio, 20/6/1928, p.1, 27/6/1928 e 25/7/1928, p.4
54
Jornal O Commercio, 20/8/1930, p.1 e 21/8/1930, p.3 e JP, 26/11/1931, p.3 e 29/
11/1931, p.3
55
Livro de Contratos n º 1, 16v e 17r.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
320
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fácil: “o passageiro aperta no botão, mas a campainha ou sinal luminoso
não funciona. Por isso, terá que descer na outra esquina. E ainda está
sujeito a apanhar do cobrador, se reclamar”. Como os sinais quase sempre
não funcionavam, somente aos gritos é que se conseguia, algumas vezes,
fazê-los parar. Os motoristas davam a impressão que haviam sido
“escolhidos a dedo pela sua falta de educação e má vontade para com os
passageiros”. Eles corriam, mas não para andar no horário, que variava
conforme a vontade do “chauffeuer”. O tempo de espera na parada
passava de meia hora. Quando aparecia ônibus, vinha lotado. O
proprietário da empresa, Teodoro Costa, detinha concessão em outra
cidade. Em Cachoeira, cuidava “somente em receber os lucros,
possivelmente gordos”. Enquanto isso, os ônibus estavam se delinqüindo,
“caindo aos pedaços, verdadeiras carangueijolas que são ao mesmo tempo
um atentado contra o bom gosto e um perigo constante para os
passageiros”. A falta de combustível e o encarecimento do material de
reposição, provocado pela guerra, ocasionou escassez de ônibus, falta
de horário e desconforto, o que levou Theodoro Costa a repassar para
Lourenço Anversa a concessão dos serviços de transporte público
cachoeirense. A notícia de novo ônibus em 1945, confortável e luxuoso
para 33 passageiros, foi recebida com júbilo.
56
Em julho de 1947, a prefeitura declarou utilidade pública para os serviços
de transporte coletivo urbanos, abrindo nova concorrência no mês
seguinte. Pelo edital, a concessionária deveria oferecer serviços que
atendessem plenamente as necessidades da população, mantendo em
tráfego o número de veículos que se fizessem necessários e “sempre
dentro das mais estritas condições de segurança, conforto e asseio”. Na
apreciação e julgamento das propostas seriam consideradas como
relevantes as melhores condições oferecidas de comodidades, segurança,
estética e asseio dos veículos, bem como o preço das passagens e
eficiência dos serviços e, principalmente, o prazo de início com maior
número de veículos. Em setembro, foram abertas as propostas de Arlindo
Gentil Ravanello e de João Carlos Schmidt, da empresa Marabá, que
acabou garantindo em dezembro a concessão por cinco anos.
57
Para o Jornal do Povo, a nova empresa não trouxe grandes melhorias. O
diretor Manoel de Carvalho Portella chegou a escrever, em 1948, que era
um crime manter em tráfego os “dois velhíssimos ônibus”, “verdadeira
afronta à pessoa física do passageiro e um ornamento pouco agradável
para andar aí pela rua perdendo os pedaços e na iminência de se
desmanchar de uma hora para outra”.
58
O articulista Bitencourt da Silva denunciou a super-lotação que tornava
a viagem de ônibus verdadeiro martírio. Parando em vários esquinas,
chegava a levar quase 40 minutos da zona baixa até a zona alta. Outro
aspecto que apontou foi a conservação dos veículos. Em pleno inverno,
as janelas dos ônibus estavam sem vidro, os molamentos dos bancos
apresentavam péssimo estado e os motores enguiçavam nos momentos
mais precisos. Esse caos no serviço de ônibus não condizia com o aspecto
progressista que se queria imprimir em Cachoeira.
59
Além do transporte coletivo interno, Cachoeira do Sul desde cedo tivera
número razoável de linhas intermunicipais. No fim dos anos 30, 14
empresas exploravam as rotas a sul e norte da sede, todas elas com
ônibus Chevrolet Gigante, de 85 HP, 23 assentos, na cor marrom claro.
Para sul, transpondo o rio Jacuí, operavam as empresas Gonçalves (para
a localidade de Mário Gonçalves), Cruzeiro (Encruzilhada), Cruzeiro do
Sul (Santaninha), Brasil (Cerro do Irapuá), Corrêa (São Sepé), Farroupilha
e Fronteira (ambas para Caçapava). A empresa Gonçalves, de Mário
Gonçalves da Silva, saía todas quintas-feiras de Cachoeira, às 4 h 45 min.
Seu itinerário era: Sanga das Pedras, Sebastião Peixoto, Mário L. de
Oliveira, Antônio de Oliveira, Alcino Machado de Oliveira e Mário
56
JP, 13/6/1943 Com a Empresa de ônibus, p.3, 23/12/1943 Com a empresa Costa, p.2,
30/3/1944, Com o serviço de ônibus, p.2, 5/7/1945 Diversas. Novo ônibus para a
cidade, p.3 e 24/3/1946, Linha de ônibus para a “descida do Amorim”, p.3
57
Fonte: Decreto-lei nº 62, de 11/7/1947. Ver JP, 13/7/1947, Transporte Coletivo, p.2,
Edital de concorrência pública nº 5 para a concessão do serviço de transporte coletivo
de passageiros em auto-ônibus, Termo de Abertura de propostas para concessão do
Serviço de transporte coletivo de passageiros, em auto-ônibus, no perímetro urbano
da cidade. Fonte: PM/D, 003, p.40, 12/09/1947, e Contrato de concessão para a
exploração exclusiva do serviço de transporte coletivo de passageiros em auto-ônibus
no perímetro urbano da cidade, que fazem a Prefeitura Municipal de Cachoeira do
Sul e João Carlos Schmidt, de acordo com o Edital de concorrência pública n º 5, de
13/8/1947.
58
JP, 4/7/1948 É um crime manter em tráfego o ônibus Manoel de Carvalho Portella, p.3
59
JP, 22/6/1950 Deficiente o nosso serviço de ônibus. Bitencourt da Silva, p.2
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Transitando no espaço público
322
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Gonçalves. A passagem mais cara custava 20$000 réis. A Cruzeiro, de
Octaviano Silveira, fazia a linha Encruzilhada, toda quarta-feira, às 7 h,
voltando na segunda, às 6 h, pelo valor de 30$000 réis. Passava por Capané,
Sanga das Pedras, Dr, Oscar, Filinho, Aurélio Borges, Piquiri-Naldo, Coxilha
Grande, Passo da China e Pinheiro. A Cruzeiro do Sul, de Albrandino José
de Moraes, ia até Santaninha todas quintas-feiras, às 7 h 30 min, pelo
valor de 30$000 réis. Voltava somente nas segundas às 6 h. Seu trajeto
era: Passo da Seringa, Luiz Figueiró, Lélo Garcia, Taquara, Irapuazinho,
Serrinha, João D. da Silva, Água Doce e Santaninha. A Brasil, de Crispim
Brasil, saía aos sábados, 8 h, com volta às segundas, 8 h, fazendo o
mesmo trajeto que a Cruzeiro do Sul, até Irapuazinho, de onde seguia
para o Cerro do Irapuá, pelo valor de 25$000 réis. A empresa Corrêa, de
Arthur Corrêa da Silva, ia até São Sepé, nas segundas e quintas-feiras, às
8 h, voltando nas terças e sextas-feiras, mesmo horário. Em seu trajeto:
Ferreira, São Lourenço, Luiz Trindade, Santa Bárbara, Apulio-Osório, Vva.
Cota, Luiz Curto e Augusto Móri. Valor, 35$000 réis. A Farroupilha, de
João A. Lima, saía diariamente de Cachoeira às 7 h 30 min, passava por
São Lourenço, Sanga Funda, Sotero Almeida, Barro Vermelho, David
Trindade, Palmas, Janguinho, Pedro Lima e Jorge E. Zemôr, chegando em
Caçapava às 11 h 40 min. O valor máximo da passagem era de 35$000
réis. A empresa Fronteira, de Júlio de Castilhos Gervásio, explorava a
mesma rota, cobrando o mesmo valor, com saídas nas segundas e quintas,
às 8 h, e retorno nas terças e sextas, mesmo horário.
60
Para norte, na região colonial, operavam as empresas Candelária (para a
localidade de mesmo nome), Sobradinho (até a Colônia de Segredo),
Serro Branco (Cerro Branco), Boêmia (Agudo e Boêmia), Sempre Avante
(Rincão da Porta), Cortado e São João (ambas até Cortado). A empresa
Candelária, de Filter, Irmãos & Cia., fazia a linha por 25$000 réis, com
saídas nas segundas e quartas, às 7 h, e retorno nos mesmos dias, às 15
h. Passava pela Ponte da Pedra, Várzea Botucaraí, Arthur Richter, Pinheiro
e Granja Rhode. A empresa Sobradinho, de Kenner & Cia., transportava
passageiros até Arroio do Tigre, passando por Passo do Moura, Ferraria
Jardim, Armando Betat, Enforcados, Três Vendas, Guilherme Deicke, Serro
Branco, Serraria Scheidt, Várzea Grande, Sobradinho, Arroio do Tigre,
Vila São Paulo e chegando a Colônia Segredo, por 28$000 réis, todas
terças e sextas, às 9 h, voltando segundas e quintas, às 7 h. João Armindo
Pohl, da Serro Branco, era outra empresa que desviava na localidade de
Três Vendas, para seguir até Serro Branco, mas por Pedro Fontoura, Sanga
Funda, Capão do Veado, Lely Lauro, Guilherme Deick, Manoel de Oliveira,
Ramal de Candelária e Carlos Streick, pelo valor de 12$000 réis. Ele
vinha para Cachoeira diariamente às 7 h e retornava para Serro Branco
às 15 h 30 min. A empresa Boêmia, de José Frantz, fazia trajeto parecido,
só que em Três Vendas desviava para José Carlos, Barriga, Contenda,
Rincão da Porta, Rincão do Pinhal, Pinhal, Serro Chato, Vila do Agudo,
Porto do Agudo, Picada do Rio e Boêmia, pelo valor máximo de 20$000
réis, todas terças e sábados, às 13 h 30 min, com retorno segundas e
sextas, às 7 h. A Sempre Avante, de Max Francisco Guilherme Mucker, saí
de Rincão da Porta até Cachoeira, terças, quartas e sextas, às 6 h, voltando
no mesmo dia, às 16. Passava por Contenda, Mangueirinha, Barriga, José
Carlos, Três Vendas, Enforcados, Armando Betat, Ferraria Jardim e Passou
do Moura. A maior passagem custava 8$000. As empresas Cortado, de
João Gentil de Arrial, e São João, de João Miguel Sanmartim, saíam da
localidade de Cortado, respectivamente, às segundas, às 6 h 30 min no
verão e 8 h no inverno, e quartas, às 9 h, voltando nas terças, às 9 h no
verão e 10 h no inverno, e quintas, às 9 h. O valor da passagem para
ambas era 9$000 réis. O itinerário era: Cortado, Jacob Lovato, Taboão,
Miguel Fontoura, Armando Betat, Ferraria Jardim, Passou do Moura e
Cachoeira.
61
Por conta desta organização intermunicipal, para as demais
localidades do Estado, como Porto Alegre, Santa Maria ou Rio Pardo, era
necessário pegar o trem ou ir de avião.
Nas décadas subseqüentes, a evolução do transporte público automotor
somado a melhoria das estradas de rodagem acabaram refletindo no modo
de viajar. No pós-guerra, o impulso maior na região foi a construção da
barragem-ponte do Fandango sobre o Jacuí e a melhoria gradual de várias
estradas de rodagem, principalmente a BR-290 (Argentina-Uruguaiana-
Porto Alegre). Por conta dessas melhorias, aumentou sobremaneira o
número de linhas intermunicipais saindo ou passando por Cachoeira.
60
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa,
1
a
ed., Cachoeira: Tipografia Portela, 1940, p.168-181
61
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa,
1
a
ed., Cachoeira: Tipografia Portela, 1940, p.168-181
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324
325
Foi nesse contexto de melhorias rodoviárias que o trem perdeu
paulatinamente espaço e preferência do público. A tendência nacional
em utilizar estradas de rodagem fez com que as vias férreas fossem sendo
depreciadas gradativamente. As novas formas de locomoção modernas,
como o próprio automóvel e o caminhão, confrontavam com o trem,
considerado ultrapassado, vagaroso e antiquado. O próprio fluxo de trens
agravou a situação. A oferta de horários não mudou após os anos 30. Em
1940, havia dois horários diários, tanto para Santa Maria, com o diurno
alternando entre 9h 57min e 14h 30min e o noturno das 23h 22min, quanto
para Porto Alegre, com o diurno às 13 h 17 min e o noturno às 2h 47min.
Em 1963, os horários mudaram para 9h 10 min e 22h 30min, para Porto
Alegre, e 13h 24min e 2h 30min, para Santa Maria. Em ambos, aos sábados
não corria o noturno Porto Alegre-Santa Maria e aos domingos não corria
o noturno Santa Maria-Porto Alegre.
62
Para agravar, muitos cachoeirenses se incomodavam com a passagem da
linha ferroviária dentro da zona urbana. Eram históricos os
atropelamentos, em sua maioria, de degradados, como “o preto Adão
Hipólito Ouriques, de sessenta anos presumíveis, de idade” que teve a
perna fraturada em 1935, a “Petronilha Fé Silveira, de cor preta, de
mais ou menos 55 anos de idade”, que teve o crânio fraturado em 1944,
tendo sido encontrado junto ao local do incidente um frasco de cachaça,
“presumindo-se que a embriagues foi a causa do desastre”, e o “Ferro
Velho”, ancião que endireitava barbatanas de guarda-chuvas, atropelado
em 1947, entre outros tantos.
63
Aqueles com melhores condições econômicas incomodavam-se devido
aos abalroamentos entre veículos que cruzavam as passagens de nível e
a composição dos trens.
64
Figuras 109 e 110 – Estação ferroviária na zona central da cidade, anos 20-30. Fonte:
Museu Histórico Municipal de Cachoeira do Sul
62
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa,
1
a
ed., Cachoeira: Tipografia Portela, 1940, p.154 e ABREU, José Pacheco de. Guia
Geral do Município de Cachoeira do Sul. Cachoeira do Sul: Município de Cachoeira do
Sul, 1963, p.16
63
JP, 10/11/1938 Noticiário. O tráfego na rua Júlio de Castilhos, p.3, 8/6/1944 Noticiário.
Morreu nas rodas de uma locomotiva, p.3, 6/10/1947 Pingos nos ii... Chinês. Ferro
Velho, p.2, 5/5/1953 O ancião surdo foi jogado longe ao cruzar os trilhos, p.1, 20/
12/1964 Ancião morto por trem na passagem dos trilhos à Rua Júlio de Castilhos. p.3
e 7/10/1965 Fatos & Comentários. Acidente. p.1
64
JP, 23/4/1947 Cuidado com os trens, p.4 e 28/7/1957 Escutando & Comentando.
Altamir Ceratti, p.8
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
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Eram constantes as reclamações sobre o impedimento do trânsito pelos
comboios ferroviários que cortavam a rua Júlio de Castilhos, às vezes
trancando a passagem entre as zonas alta e baixa, por mais vários minutos.
Para o diretor do JP, Manoel Carvalho Portella, era insustentável a atitude
de certos maquinistas. “Os malvados gostam mesmo de ver a bicha
formada e de escutar o buzinar de automóveis. Fazem de propósito e
criminosamente, pois andam para lá e para cá com os trens e quando a
cauda dos mesmos vai querendo desimpedir a passagem eles param ou
dão marcha ré”.
65
A solução da contenda só foi resolvida no início dos
anos 70, quando a linha ferroviária recebeu novo traçado, por fora dos
limites da área urbana central, através da vila Oliveira, e foi construída
nova estação.
66
6.3. Nas ondas dos céus
Em termos de circulação, outra prova de status econômico de Cachoeira
do Sul foi a ponte aérea Cachoeira do Sul-Porto Alegre. A primeira empresa
que cogitou operar na linha foi a Viação Aérea Rio-grandense (Varig), em
1931, com vôos ligando as cidades de Porto Alegre, Santa Maria e Santa
Cruz do Sul. Estava incluída nesta linha Cachoeira do Sul, mas a prefeitura
não respondeu ao ofício da empresa, solicitando informações para a
escolha do campo de pouso, ficando assim excluída do serviço.
67
Foi
somente em outubro de 1938 que o Estado, por intermédio da prefeitura,
adquiriu área no Passo da Areia, pertencente a Inácio Felix de Loreto,
para construção da pista de decolagem e aterrissagem.
68
O término da guerra trouxe a expansão do transporte aéreo em todo
mundo. Muitos dos aviões usados no conflito bélico foram adaptados
para vôos domésticos. Em janeiro de 1945, a Varig instalou uma agência
na cidade, fazendo vôos regulares entre Porto Alegre, São Gabriel,
Alegrete e Uruguaiana. Cachoeira era ponto de parada facultativo, nas
terças e sextas-feiras. A escala oficial ocorreu no ano seguinte, com aviões
modelo Eléctra, de nove passageiros. O Jornal do Povo escreveu matéria
elogiando a iniciativa: “Esses modernos e seguros aparelhos, estão
equipados do mais completo aparelhamento, que facilitará suas viagens,
mesmo em dias de chuva ou de pouca visibilidade, com a maior segurança
e conforto”.
69
Em 1947, a S.A. Viação Aérea Gaúcha (Savag) aterrissou o Lodestar que
faria a linha Porto Alegre, Cachoeira, Passo Fundo, Santa Maria, Santo
Ângelo, Bagé e Pelotas. Neste ano, a Varig voava às terças e quintas.
Anos depois, entraram em operação os aviões Douglas C-47 de 28
passageiros. No auge da aviação doméstica, as duas empresas chegaram
a oferecer vôos com escala na cidade de forma concomitante, às segundas,
quartas e sextas-feiras. No aeroporto local passavam em média 700
passageiros semanalmente.
70
Entretanto, o estado de abandono do
aeroporto, com pista de pouso precária e táxis atolando na estrada de
acesso em dias chuvosos, e a melhoria do transporte rodoviário fizeram
com que os vôos desaparecessem em pouco tempo. Em que pese o fato
do poder público municipal ter concedido incentivos e ampliado a pista
65
JP, 9/7/1950 Pingos nos ii... Chinês. Trem maluco, p.2. Ver ainda JP, 10/11/1938
Noticiário. O tráfego na rua Júlio de Castilhos, p.3 e 17/9/1961 Volta-se a tratar do
problema de localização da Gare Ferroviária. p.1
66
JP, 18/2/1971 Cachoeira terá a maior estação ferroviária do interior do RGS, p.1, 24/
5/1973 Andreazza inaugura variante e nova estação de passageiros da RFFSA, p.1,
17/11/1974 Figueras conta o quente. Saul Torres, p.1 e 22/12/1974 Compra da área
da RFFSA é nova vitória de Pedro Germano, p.1. A Lei Municipal n.1.652, de 19/2/
1974, autorizou o Poder Executivo a adquirir por compra uma faixa de terras de
propriedade da Rede Ferroviária Federal. S. A. A Lei Municipal n.1.675, de 7/2/1974,
autorizou o Poder Executivo a adquirir uma área de terrenos da Rede Ferroviária
Federal S/A, compreendendo o antigo recinto da Estação Ferroviária local, trecho
entre a rua Júlio de Castilhos e a Rua Isidoro Neves da Fontoura, com todas as
benfeitorias nela existentes inclusive prédios de alvenaria, muros, cercas, etc. Ver
ainda MELLO, Luiz Fernando da Silva. O espaço do imaginário e o imaginário do
espaço: a ferrovia em Santa Maria, RS. Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
PROPUR: Dissertação de Mestrado [orientadora Sandra Jatahy Pesavento], 2002, onde
analisa a formação da cultura do espaço social santa-mariense como centro ferroviário,
correlacionando políticas de transporte ferroviário, produção do espaço social e
imaginário social.
67
JP, 8/3/1931 Noticiário. Viação aérea, p.3,
68
JP, 9/10/1938 Aeroclube Cachoeirense, p.5
69
JP 16/1/1945 Viajaremos de Cachoeira do Sul a Porto Alegre pelos ares, p.4 e 31/7/
1946 Os aviões da Varig passarão, em breve, a escalar oficialmente nesta cidade, p.1
70
JP, 13/1/1947 A visita do primeiro avião da S.A. Viação Aérea Gaúcha a Cachoeira do
Sul, p.4, 22/1/1947 Varig anuncia. Horário de verão, p.3, 26/1/1950 A Varig amplia o
tráfego aéreo entre Cachoeira e Porto Alegre, p.1, 2/7/1950 Anúncio Varig, p.19, 25/
9/1951 S.A.V.A.G. Sociedade Anônima Viação Aérea Gaúcha, p.1, 25/11/1951 Péssimo
Cartão de Apresentação da Cidade o Aeroporto Local, p.1 e 20/3/1952 Avião toda
semana, menos às terças-feiras, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
328
329
de pouso, a construção de estradas ligando as cidades do interior à Porto
Alegre tornou a rota área cachoeirense anti-econômica.
71
diretoria ficou assim constituída: presidente, João G. Santos, vice-
presidente, T. C. Burmeister, primeiro-secretário, Floriano Neves da
Fontoura, segundo-secretário, Diamantino Carvalho da Fontoura;
primeiro-tesoureiro, Arthur Rodolfo Rossarola e segundo-tesoureiro, Mário
Pardo Cabeda. Menos de dois anos depois de fundado, foram iniciados os
trabalhos de construção dos hangares, concluídos em julho de 43, data
em que começou o curso de pilotagem. O custo da obra foi de Cr$
50.132,60. Em 1945, os aviões cachoeirenses chegavam a voar, em média,
7 hora por dia.
72
Em maio de 1948, um tufão destruiu o hangar do aeroclube, inutilizando
completamente seis aeronaves. No mês seguinte, o festival montado no
cinema Coliseu angariou fundos para a reconstrução. Como o prefeito
municipal e diretor do Jornal do Povo na época, Liberato Salzano Viera
da Cunha, era aficionado pela aviação, lia-se na reportagem do jornal
que a iniciativa do aeroclube local merecia toda colaboração da população
cachoeirense, “pois visa unicamente o reerguimento material de sua
escola de aviação civil, escola essa que tem dado e continua moços
capacitados a pilotar as aeronaves brasileiras para desenvolver o nosso
comércio, promover um maior intercâmbio de fraternidade nos estados
e países vizinhos, preparando-se ao mesmo tempo para defender a pátria
em qualquer emergência”.
73
O auxílio também chegou de fora. A Diretoria
de Aeronáutica Civil doou dois aviões Paulistinha.
74
Aproveitando a re-inauguração dos hangares, o JP promoveu enquete
para a escolha dos nomes de batismo das duas novas aeronaves, não sem
antes sugerir General Gomes Portinho, herói cachoeirense, e 24 de Abril,
data significativa para o aeroclube. Lançou também edição especial,
com várias páginas ilustradas. A inauguração dos novos hangares, em 24
de abril de 1949, foi festiva, com “cuidadoso e magnífico programa de
71
JP, 27/10/1953 Reparação da estrada do aeroporto local, p.1 e 2/7/1955 Bom dia,
leitor!, p.1. A Lei Municipal n.551, de 1/8/1956, concedeu isenção de impostos à
Sociedade Anônima Empresa de Viação Riograndense (VARIG). Fonte: JP, 7/8/1956,
p. 4. As lei municipais n.535, de 17/4/1956, n.553, de 12/10/1956, e n.563, de 28/
11/1956, autorizaram aquisições e permutas de imóveis do município para ampliação
da pista de pouso do aeroporto local. Fonte: JP, 13/10/1956, p.4 e JP. 30/11/1956.
p.4. Por elas, o prefeito Arnoldo Paulo Fürstenau ficou autorizado a despender a
quantia de Cr$ 200.000,00. De acordo com cálculo estatístico da Fundação de Economia
e Estatística do Rio Grande do Sul [www.fee.tche.br - acessado em 6/1/2006], esse
valor corresponderia atualmente a R$ 56.329,80
72
JP, 13/6/1940 Cogita-se a fundação do Aeroclube desta cidade, p.1, 24/4/1941 Fundado
o Aeroclube Cachoeirense, p.1, 17/1/1943 Aeroclube de Cachoeira, p.3, 25/4/1943
Empossada a nova diretoria do Aeroclube local, p.2 e 14/1/1945 Aero-clube de
Cachoeira do Sul legítimo motivo de orgulho cívico para a cidade, p.6
73
JP, 16/5/1948 Manchete: Destruído por um violento tufão o Hangar, p.2, 16/5/1948
Pingos nos ii Chinês. Ecos da destruição dos aparelhos do Aero, p.2 e 2/6/1948 Realiza-
se hoje à noite, no Cine-teatro Coliseu, o festival Pró-Aero Clube, p.1
74
JP, 20/2/1949 Mais uma Unidade para o Aeroclube de Cachoeira, p.1
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
330
331
Figura 111 – Aviões no aeroporto, anos 40-50. Fonte: Museu Histórico Municipal de Cachoeira
do Sul
Outros aviões que circulavam nos céus cachoeirenses foram os
particulares, normalmente monomotores de pequeno porte utilizados
na agricultura. Em junho de 1940, foi cogitado fundar o aeroclube local,
a exemplo do que vinha ocorrendo em todo Brasil. Em abril de 1941, foi
realizada a primeira assembléia “composta dos elementos representativos
da sociedade local”, para deliberar sobre o assunto. Assinaram a ata
como sócios remidos o prefeito Ciro da Cunha Carlos, João G. Santos, T.
C. Burmeister, Reinaldo Roesch, Ivo Becker & Cia., Edwino Schneider,
Orlando da Cunha Carlos, Nicolau Salzano e Aquiles L. Figueiredo. A
festas” que durou três dias. Teve chegada do Cônsul Geral do Uruguai e
Delegado Geral da Aeronáutica Civil do Uruguai no Estado, Miguel Veieyte;
recepção a aviadores uruguaios e mineiros; missa campal com bênção
nos dois aviões novos; baile no Clube Comercial; vôos acrobáticos e de
turismo. As aeronaves foram batizadas de Princesa do Jacuí e Gal. José
Gomes Portinho.
75
Poucos meses depois, foi empossada a nova diretoria, composta em sua
maioria por membros reeleitos: Teobaldo Burmeister (presidente), Nilson
Figueiredo (primeiro vice), Assis Severo (segundo vice), Edyr Lima
(secretário), Italo Patta (secretário executivo), Osmar Tesch (tesoureiro).
No Conselho Fiscal ficaram Índio de Bem, Antônio de Santis Fontoura e
Carlos Kerber. No Conselho Técnico: Saul Freitas Felix, Luiz Costa Sobrinho
e Augusto Francisco König. Na diretoria social: Mario Schirmer. As
autoridades também foram lembradas: Tet. Brigadeiro Armando
Trompowski de Almeida (Ministro de Aeronáutica), Walter Jobim
(Governador do Estado), César Grillo (Diretor Geral da DAC), Eugenio
Seiffert (Chefe da Divisão Aero Desportiva da DAC), Roberto Pimentel
(Chefe da Divisão de Operações da DAC), Joaquim Pedro Salgado Filho
(Presidente da Companhia Nacional de Aviação) e o próprio Liberato
Salzano Vieira da Cunha (prefeito municipal).
76
Na listagem dos aspectos de comunicação cachoeirense após os anos 30,
a instalação de duas estações de rádio representou importante conquista.
Embora tratando-se de área da comunicação, as rádios possibilitariam
ampliar a circulação das idéias e entender a cidade em relação aos
processos de comunicação subjacentes e sua vinculação à trama urbana.
77
Em 1930, eram poucas as estações no Brasil inteiro. Os Estados que mais
tinham era São Paulo, com 10 na capital e 14 no interior, e o Distrito
Federal, no Rio de Janeiro, com 12. O Rio Grande do Sul tinha duas: a
Gaúcha (PRC-2) de Porto Alegre e a Difusora Rádio Cultura (PRH-4) de
75
JP, 10/4/1949 A Inauguração do novo hangar do Aeroclube de Cachoeira do Sul, p.1 e
3/5/1949 Inauguração do Novo hangar do Aeroclube, p.1
76
JP, 26/6/1949 Empossada a Nova Diretoria do Aeroclube de Cachoeira do Sul, p.6
77
Ver CANCLINI, Néstor García. Cidades e cidadãos imaginados pelos meios de
comunicação. In: Revista Opinião Pública, v.8 n.1 Campinas, maio, 2002 [disponível
em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-627620020001000
03&lng=pt&nrm=iso – acessado em 12/10/2005]
Pelotas.
78
Com a instauração do governo Vargas, o número de estações
de rádio subiu vertiginosamente. Em 1937, já somavam 59, sendo 55
particulares, 13 no Distrito Federal, 25 nas capitais e 21 no interior. No
Rio Grande do Sul, em 1935, foram colocadas no ar as rádios Farroupilha
(PRH-2) e a Difusora Porto-alegrense (PRF-9), ambas na capital. O total
transmitido naquele ano foi de 44.479 horas, 20.103 de transmissões de
discos, 11.432 de música, 6.248 de propaganda comercial, 1.427 de
notícias jornalísticas, além de outros como cursos, representações, humor,
conferências, palestras, solenidades, transmissões para crianças e
assuntos médico-sanitários.
79
As estações possíveis de sintonizar em Cachoeira do Sul eram a Farroupilha
e a Difusora. Em 1937, chegou a ser improvisada uma estação transmissora
apelidada de Rádio Club Cachoeirense. Além disso, a Casa Elétrica montou
na praça José Bonifácio possantes alto-falantes, iniciativa chamada de
“a voz do poste”. No ano seguinte, foi tentada a compra da sub-estação
da Difusora Porto-alegrense por um grupo de cachoeirenses, batizada
antecipadamente de Princesa do Jacuí.
80
Apesar da vontade, a região
ganharia sua estação local somente na segunda metade da década de 40,
período de grande crescimento do número de rádios no país, passando
de 60 para 223. Adotando o nome da própria cidade, a rádio Cachoeira
do Sul (ZYF-4) foi inaugurada em setembro de 1946. Segundo o Jornal do
Povo, a nova transmissora lançaria aos céus “a incoercível atividade, o
idealismo pujante e a fé inabalável do povo cachoeirense”, seria a “voz
maior e mais alta, a sintetizar as vozes todas do homem e da vida
cachoeirense”.
81
A estação funcionava 15 horas diárias na época, desde
as 8 h da manhã, algo notável para um avanço que motivara “pilhérias”
e “gargalhadas” na cidade, tal a descrença que fosse possível seu
sustento.
82
A partir daí, cresceria mais ainda o número de estações em
78
Fonte: Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936.
79
Fonte: Anuário estatístico do Brasil 1937. Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, 1937 e Anuário
estatístico do Brasil, 1938. Rio de Janeiro: IBGE, v. 4, 1939.
80
JP, 7/7/1935 Pelo rádio. F, p.3 e 20/9/1936 Noticiário, p.3
81
JP, 22/4/1945 Cachoeira possuirá uma estação de rádio, p.1, 16/7/1946 A 7 de Setembro
será inaugurada a Rádio Cachoeira do Sul, p.2 e 28/9/1948 A Z.Y.F.4 pertence à
história da cidade, à sua vida e ao seu coração, p.2
82
JP, 18/3/1952 ZYF-4 em Abril. Uma série sensacional de programas, p.4 e 28/9/1950
Uma grande data cachoeirense. Bitencourt da Silva, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Transitando no espaço público
332
333
todo país, principalmente nas cidades do interior.
83
Todas essas relações demonstram o quanto o cotidiano cachoeirense era
atravessado por fluxos e refluxos muitas vezes contraditórios entre si.
Para uma sociedade até então habituada aos lugares privilegiados na
sociedade, a vinda dos subalternos produzia seus reflexos. O espaço
urbano, outrora espaço preferencialmente elitista, acabaria tendo de
abrigar outros freqüentadores que não os já estabelecidos. Os outsiders
chegavam e traziam consigo novos hábitos e valores que acabavam por
reconfigurar muito das relações sociais.
Essas práticas cotidianas excludentes revelavam-se de maneira atroz,
desumana e impiedosa quando as hostilidades afetavam o dia-a-dia da
elite cachoeirense: nos espectros do jogo em antros como carteado e
salão de sinuca, da prostituição, da delinqüência, do vandalismo e
gangues, dos conflitos, da criminalidade, da falta policiamento da cidade,
dos furtos, invasão de propriedades e depredações materiais, dos gatunos
e amigos do alheio, das ocorrências como duelos ou ingresso de
indesejáveis, da fuga de presos, da miséria, dos desordeiros e vagabundos,
da vadiagem e mendicância, de menores sem ocupação que perambulavam
pelas ruas da cidade, de crianças enjeitadas, de esmoleiros e mendigos,
das drogas lícitas e ilícitas, do abuso do álcool ou do espancamento de
mulheres.
83
Fonte: Serviço de Estatística da Educação e Cultura. Tabela extraída de: Anuário
estatístico do Brasil 1954. Rio de Janeiro: IBGE, v.15, 1954. Serviço de Estatística da
Educação e Cultura. Tabela extraída de: Anuário estatístico do Brasil 1958. Rio de
Janeiro: IBGE, v. 19, 1959
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
334
7. A classe perigosa
deve ser contida
7.1. Influência nefasta dos outsiders
O confronto entre estabelecidos e outsiders ficou evidente no interstício
entre o crash norte-americano de 1929 e o término da Segunda Guerra
Mundial em 1945. A mudança do perfil demográfico provocada pelo êxodo
rural afetaria mortalmente o pequeno círculo social cachoeirense, até
então sinônimo de segurança pessoal e coletiva. O mar de rosas da elite
desmanchou-se frente às conturbações subalternas, provocadas pelos
personagens ou acontecimentos obscuros que feriam o verniz civilizador
tão desejado pelos moradores do centro urbano
Na visão das elites citadinas, os deserdados do sistema e os problemas
que traziam tinham de ser afastados, mantidos fora do cotidiano da
sociedade. Eles representavam a outra face da moeda que desejava-se
encobrir. Eram a faceta da insegurança, do crime, da barbárie, da perdição
ameaçadora. Como visto por Sandra Pesavento, era a cidade dos que se
encontravam na contramão da ordem, dos excluídos e marginalizados,
dos pobres, dos bêbados e das prostitutas, dos vadios e vagabundos,
personagens comuns, do dia-a-dia, que não tinham rosto nem voz, que
só apareciam nos registros policiais ou nos noticiários depreciativos dos
periódicos, quando quebravam a rotina da vida urbana da elite.
1
1
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. Lugares malditos: a cidade do “outro” no Sul brasileiro
(Porto Alegre, passagem do século XIX ao século XX). In: Revista Brasileira de História.
vol.19 n.37 São Paulo Set/1999 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=
sci_arttext&pid=S0102-01881999000100010&lng=pt& nrm=iso&tlng=pt – acessado em
12/10/2005]
Essa inquietação com relação à pobreza urbana foi a substituta natural
do medo que as elites tinham diante dos escravos até o século XIX. Maria
Patto ressalta para o fato de que esta disseminação da representação
social negativa, de cunho racista, colocando os integrantes das classes
subalternas em situação de inferioridade, fez parte da ideologia nascida
no primeiro período republicano brasileiro. O crescente número de órgãos
públicos de controle sanitário conferiu maior autoridade à medicina,
passando a desempenhar fundamental papel na disciplinarização da vida
urbana. Embora menos sutil do que as questões sanitárias disciplinadora
dos médicos, onde as obras de infra-estrutura serviram para manter longe
possíveis epidemias oriundos da crescente urbanização, o uso da força e
da violência policial serviu igualmente para conter o crescente “caos
urbano”.
2
Como na medicina sanitarista, a higienização social do crime encontrou
guarida no cientificismo, atitude segundo a qual a ciência daria a conhecer
as coisas como são, resolveria todos os reais problemas da humanidade e
seria suficiente para satisfazer todas as necessidades legítimas da
inteligência humana, onde os métodos científicos deveriam ser
estendidos, sem exceção, a todos os domínios da vida humana. Olívia
Cunha ressalta para os termos utilizados na época para definir e justificar
as necessidades de repressão da criminalidade: higiene ou profilaxia
social, purificação das coletividades e da nação, “livrando-as do vírus
nefasto de agentes de toda a espécie, que pretendem a subversão da
ordem pública”.
3
Tais conceitos raciais foram transpostos para a questão
social de maneira ímpar.
O último quartel do século XIX e as primeiras décadas do XX foram fartas
nesse sentido, permitindo o surgimento de modelos explicativos para
justificar “cientificamente” práticas discriminatórias e racistas, como o
da “eugenia” que visava o “melhoramento da raça humana” através da
seleção hereditária,
4
ou a da “criminologia”, que objetivava mostrar que
os delinqüentes tinham disposições inatas para o crime.
5
A teoria do
“criminoso nato” ou da “patologia criminal” foi criticada desde cedo. No
Brasil, a recepção das teorias criminológicas européias seria eclética e
conciliadora. Segundo Marcos Alvarez, censurando exageros de ambas as
partes, o crime e o criminoso eram pensados como problemas complexos
demais para serem observados de um ponto de vista único. Deveriam ser
estudados tanto os aspectos biológicos quanto o meio social.
6
No Rio Grande do Sul, essa abertura conceitual foi ainda mais forte,
dado o ideário positivista assumido pela administração republicana
gaúcha, que se perpetuou no poder até a década de 1930. Como nas
questões sanitárias – não tão fundamentadas na medicina, dando margem
à conflitos entre princípios e práticas a serem adotadas pelo governo
gaúcho – na higienização social do crime o debate apresentou variações.
7
O médico-legista Sebastião Leão, por exemplo, apresentou amplo relatório
sobre o sistema carcerário gaúcho em 1897, procurando dar mostras da
diversidade nas personalidades dos encarcerados e dos motivos que
levaram a praticar os crimes. Sua conclusão foi que “não é o atavismo,
mas o meio social que faz o criminoso”.
8
Na diluição das variações conceituais, o objetivo por trás tanto da teoria
do “criminoso nato” quanto do “meio social” era controlar socialmente
o crime e o criminoso. Como ressalta Marcos Alvarez, para quem a
criminologia no Brasil foi tentativa de estabelecer determinada política
2
PATTO, Maria Helena Souza. Estado, ciência e política na Primeira República: a
desqualificação dos pobres. In: Estudos Avançados. vol.13. n.35. São Paulo. Jan/
abril, 1999. [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S0103-40141999000100017 – acessado em 31/3/2006]
3
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Os domínios da experiência, da ciência e da lei: os
manuais da Polícia Civil do Distrito Federal, 1930-1942. In: Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, vol. 12, n. 22, 1998 [disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/
248.pdf – acessado em 1/4/2006]
4
Para MACIEL, Maria Eunice de S. A eugenia no Brasil. In: Revista Anos 90, Porto Alegre/
RS: PPG/História da UFRGS, n.11, jul/1999, p.121-143, a proposta da eugenia ganhou
vulto no Brasil porque seus pressupostos forneceram explicação para a situação de
“atraso” e indicaram o caminho para a superação, através da “melhoria da raça”.
5
Ver ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e
negros em perspectiva comparativa. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n. 18,
1996 [disponível em http://www.cpdoc. fgv.br /revista/arq/196.pdf – acessado em
31/3/2006]
6
ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os
desiguais. In: Dados v.45 n.4 Rio de Janeiro 2002 [disponível em http://www.scielo.br/
scielo.php?script=sci_arttext&pid =S0011-52582002000400005&lng=pt&nrm=isso –
acessado em 1/4/2006]
7
WEBER, Beatriz Teixeira. Positivismo e ciência médica no Rio Grande do Sul: a Faculdade
de Medicina de Porto Alegre. op.cit. 1999
8
LEÃO, Sebastião. Relatório do dr. Sebastião Leão, Médico Legista. 1897
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
336
337
“científica” de combate à criminalidade e representou a possibilidade
de compreender as transformações pelas quais passava a sociedade, de
implementar estratégias específicas de controle social necessários à
contenção da criminalidade local e de estabelecer formas diferenciadas
de tratamento jurídico-penal para determinados segmentos da
população.
9
Esse debate marcou a intelectualidade até meados dos anos 30, quando
iniciou o processo de institucionalização dos problemas sociais em todo
país. Desde o fim da década de 20, estudos norte-americanos apontavam
para o preconceito social e cultural que comprometia a neutralidade dos
julgamentos e a universalidade na aplicação das leis penais. Todavia,
Sérgio Adorno alerta para o fato de que o peso dessas teorias na cultura
política brasileira pode ser avaliado pela sobrevivência, tanto no senso
comum como na mentalidade dos governantes e autoridades encarregadas
de formular e implementar políticas públicas penais, de alguns de seus
pressupostos, sobretudo aqueles que sustentavam maior “potencial
criminógeno” entre negros do que entre brancos, ou entre os subalternos
e a elite.
10
Neste contexto, a atitude social discriminatória, fruto das teorias
criminalísticas e eugenistas, perpetuou-se na prática cotidiana
cachoeirense durante os anos 30-40, principalmente porque ambas
redundavam na continuidade da exclusão dos subalternos através das
suas re-significações.
Através da imprensa, a influência nefasta dos subalternos sentia-se desde
a sutileza dos pequenos atos considerados incivilizados até crimes
hediondos. Sutil como nos reclames contra o comportamento de “certos
cidadãos” que punham os pés enlameados nos bancos da praça José
Bonifácio: “Ora, é claro que se após vier alguém ocupar o banco, encontrá-
lo-á cheio de terra, e se esse alguém andar vestido de branco, já se sabe
de que modo ele se levantará dali”.
11
Os “certos cidadãos” a que se
refere a nota eram moradores dos subúrbios, que andavam normalmente
com os sapatos sujos por falta de calçamento, e contrapunham-se ao
branco dos vestidos das mulheres da elite. Bárbaros como o infanticídio
praticado pela “mulher desnaturada” que após dar a luz a criança, “fruto
de uma união pecaminosa”, degolou-a com faca.
12
No decurso das décadas de 1930-40, comumente as notícias e artigos
opinativos publicadas nos jornais desvalorizavam os de “baixo”. Duas
reclamações contra tiros de revólver disparados à noite, publicadas no
decurso de dez anos (1929 e 1938), utilizaram adjetivos semelhantes
para culpar os autores anônimos, deixando transparecer a crença de que
a falta de
serviço e a mendicância eram sinônimos de vagabundagem e
preguiça. Tratavam-se de indivíduos “desocupados” e “desordeiros” que
viviam de “esbórnias”.
13
Outras duas notícias, publicadas em 1929 e 1931,
utilizam vocabulário em tom moralista para denunciar o furto de flores
em jardins públicos e residências ou mesmo de galinhas, espigas de milho
e frutas diversas. A população “ordeira” teve seu ritmo de “ordem e
tranqüilidade” quebrados por agrupamento de “indesejáveis” que
danificou plantações, invadiu propriedades e arrombou cercas. O Jornal
do Povo chegou a repreender os leitores, afirmando que era “dever da
população” evitar que isso continuasse ocorrendo.
14
A admoestação em caráter disciplinar foi utilizada na mesma época para
analisar a situação do jovem larápio, funcionário da Viação Férrea: “é
incompreensível que um jovem, no começo da vida, com uma carreira
relativamente brilhante nos serviços da estrada, jogue fora seu passado,
seduzido por meia dúzia de pares de sapato”. Incompreensível, no
entendimento do redator, não só porque seguidamente os funcionários
restituíam objetos perdidos ou esquecidos, mas principalmente porque
tratava-se de alguém que tinha emprego fixo, que trabalhava, não era
portanto nenhum vadio. A advertência não teve o intuito de alcançar o
comparsa do ferroviário. Por ser ele “negro, alheio aos serviços da
estrada”, um errante sem ocupação, a atitude era, de certo modo,
esperada.
15
9
ALVAREZ, Marcos César. A criminologia no Brasil ou como tratar desigualmente os
desiguais. op.cit., 2002
10
ADORNO, Sérgio. Racismo, criminalidade violenta e justiça penal: réus brancos e
negros em perspectiva comparativa. op.cit., 1996 cita Sellin (1928)
11
JP, 21/4/1935 Noticiário. Uma reclamação justa, p.3
12
JP, 29/7/1934 Noticiário. Infanticídio, p.3
13
JP, 5/9/1929 Noticiário. Falta de policiamento, p.3 e 17/3/1938 Noticiário. Tiros de
revólver à noite, p.3
14
JP, 24/10/1929 Furto nos jardins públicos, p.3 e 18/1/1931 Furtos, invasão de
propriedades, etc., p.4
15
JP, 18/1/1931 Os furtos na estação dessa cidade, p.4
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
338
339
Essa discriminação racial aparece de forma contundente num relato de
furto de relógio, ocorrido em 1941. O homem, de “cor preta, baixo, com
uma cicatriz no rosto”, foi até a joalheria Schenkel, na rua Sete de
Setembro, para comprar relógios de pulso para revender. A esposa do
proprietário do estabelecimento atendeu o “indivíduo”, que escolheu
quatro relógios de pulso. Quando a atendente entregou os pacotes, o
pretenso comprador pediu que lhe mostrasse ainda um óculos. Ela foi
indagar ao seu marido o valor; quando voltou, o “meliante” tinha sumido
com os relógios.
16
A descrição da fisionomia desse criminoso – “preto”,
“baixo”, com “cicatriz no rosto” – e o tom ingênuo que envolve a história
– a atendente empacota a mercadoria, entrega ao sujeito que lhe distrai
e foge em seguida – são nítidos resquícios da influência criminológica
que imputava o caráter maldoso aos traços do indivíduo e a sua conduta.
O tom moralista-religioso convinha perfeitamente para narrar os chamados
crimes passionais, delitos causados por alguma espécie de envolvimento
afetivo. Para indicar a má índole, o caráter ordinário ou modo incorreto
de ser dos subalternos, eram utilizados termos de pouco apreço, que
acabavam entrando no léxico cotidiano e passavam despercebidos ao
leitor comum. Em 1931, o indivíduo utilizou da racha de lenha para
espancar “brutalmente sua amasiada”, mostrando que apesar dela ter
apanhado, tratava-se de mulher que vivia de forma dissoluta, desregrada,
devassa.
17
O jornal explorava essa “vida fácil”, na tentativa de mostrar como não
deveria ser o proceder feminino. E expunha os envolvidos com a publicação
dos seus nomes. Exemplos dessa condição eram freqüentes, como o caso
do cabo da guarda municipal, Ernesto Fontoura, que dirigiu-se ao Alto
dos Loretos, onde esperava encontrar “certa mulher, com quem mantinha
relações”, e, ao chegar na casa, surpreendeu-a na companhia de outro
homem, de nome Ariovaldo Machado.
18
Ou da desavença ocorrida na
“célebre” avenida Cavalheiro, subúrbios da cidade, na “espelunca” de
João Parafuso, alcunha de João Vieira, entre o “pardo Alcides de tal”,
que esfaqueou a mulher de nome Percilia Nunes, “solteira, de 26 anos de
idade”, por motivo fútil, durante um baile. O agressor foi posto em
liberdade no dia seguinte a sua prisão.
19
Entre os crimes passionais, eram comum notícias de “defloramento”,
20
com base no artigo 267 do Código Penal de 1890, considerado a existência
de “cópula” com mulher virgem, menor de idade, entre 16 e 21 anos,
com o “deflorador” tendo empregado sedução, engano ou fraude. A pena
variava entre um a quatro anos de prisão. O código de 1940 atenuou o
delito, passando o termo para “sedução” (art. 217). Permaneceu a questão
da virgindade, do se aproveitar da “inexperiência” ou “justificável
confiança da vítima”, mas diminuiu a idade para entre 14 e 18 anos, com
ou sem ruptura himenal, incorporando os novos conceitos legais de que a
falta da membrana vaginal não era característica decisiva para comprovar
o crime. A lei procurou manter a integridade sexual da mulher,
principalmente com relação a sua virtude moral, embora a perícia médico-
legal fizesse o exame de corpo delito para fornecer indícios
imprescindíveis de modo a balizar o processo. A graduação se dava na
seguinte maneira: atentado ao pudor, caso não ocorresse cópula carnal,
sedução através do rompimento do hímen, estupro quando a mulher não
havia consentido, ou ainda falso testemunho, quando não ficava provado
o crime, e de vítima a mulher passava a ré.
21
A virtude moral, questão-chave nos procedimentos jurídicos, atingia a
discussão pública levada pela imprensa. O Jornal do Povo publicou, em
1931, carta de esclarecimento sobre defloramento ocorrido, onde
explicitamente condenam-se as atitudes da mãe da menor ofendida.
16
JP, 9/1/1941 Noticiário. Furto de relógio, p.3
17
JP, 14/5/1931 Noticiário. Brutal espancamento, p.3
18
JP, 25/5/1933 Noticiário. Conflito e ferimento, p.3
19
JP, 19/7/1931 Noticiário. Na avenida Cavalheiro, p.3
20
JP, 1/5/1930 Polícia, p.3, 23/8/1931 Os delitos repugnantes, p.2, 1/10/1931 Seção
livre. Declaração, p.2, 11/5/1933 Noticiário. Concessão de habeas-corpus, p.3, 14/
1/1934 Seção livre. Declaração necessária, p.3, 18/1/1934 Noticiário. Casamentos
na polícia, p.3, 12/8/1934 Vida forense. Crime de estupro, p.3, 9/9/1934 Noticiário.
Crime de defloramento, p.3 e 15/5/1938 Ocorrências Policiais. Queixa e casamento,
p.3
21
SCREMIN, João Valério. A Influência da medicina-legal em processos crimes de
defloramento na cidade de Piracicaba e região (1900-1930). In: Revista Histórica on-
line. São Paulo: Arquivo do Estado de São Paulo, mar/2006 [disponível em http://
www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/materia03 /texto03.pdf – acessado
em 3/4/2006]. A conjunção carnal com menores de idade ou mentalmente alienadas
era considerado “uso de violência”. Retirar mulher honesta do seu lar, através da
sedução ou mesmo empregando violência, era considerado crime de rapto. As esposas
não poderiam acusar o marido de usar a violência para conjunção carnal, visto que
entendia-se ser direito marital consumar o ato sexual.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
340
341
Segundo o autor da carta, a progenitora costumava realizar reuniões
dançantes aos sábados, em sua residência, recebendo rapazes que
cortejavam suas filhas. Era público e notório que a menor, de nome Alice,
passeava nessas ocasiões com a companhia masculina. O autor procurou
avisar dos “maus resultados que adviriam de tão imprudente
procedimento”. Posteriormente, a moça foi deflorada e a mãe ingressou
em juízo, acordando indenização de 1:500$000 réis, decisão tida por
injusta pelo réu. O fruto da relação acabou nascendo em Santa Maria, de
onde também foi trazida certa prostituta, “conhecida horizontal dos
cabarés”, para se passar por genitora do bebê.
22
O tom sensacionalista que o JP narrava os crimes passionais motivou
certo leitor a tecer comentários reprovadores. Em carta enviada à redação
em 1933, denunciou a exploração das tragédias oriundas desses delitos,
atitude que abria “cancha larga ao saracoteio dos comentários
romanescos”. Culpou o redator João Abreu, que usava da “vocação
desportiva” para o “vezo de dar tom de tragédia aos comentários com
que borda os sangrentos crimes passionais”.
23
No quesito das virtudes, os dois códigos penais, de 1890 e de 1940,
tratavam de forma diferente as mulheres desonradas, de “vida pública”,
consideradas prostitutas. Exemplo marcante é o fato do crime de adultério
excluir casos em que os maridos fossem flagrados em comunhão carnal
com prostitutas. O mesmo não ocorria quando a esposa flagrada com o
amante fosse assassinada pelo marido. Não era considerado crime por
tratar-se de “defesa da honra”. A criminalização da sexualidade atingia
somente a plebe não-proletarizada, visto que a moral burguesa definia
os desvios dos subalternos como delitos a serem expurgados da sociedade.
Nem na intimidade erótica os de baixo estavam livres dos eficazes e
onipresentes olhos médico-policiais. Em nome da ciência e da lei,
procurava-se disciplinar tudo e todos, colocando-os em permanente
suspeita.
24
A exigência de transferir os prostíbulos mais “baixos” para os subúrbios
fez parte da higienização social cachoeirense. No início dos anos 30, o
baixo meretrício localizava-se nas imediações da zona central, na rua
Riachuelo, Aldeia, a poucas quadras a nordeste da igreja. Duas casas
disputavam a preferência dos freqüentadores, preferencialmente
marinheiros e praças da guarnição federal. Uma delas, conhecida como
“Jacaré”, foi a primeira a receber as “enérgicas providências das
autoridades locais”, resultando na diminuição da freguesia. A outra era
denominada pelo metafórico adjetivo “Buraco Quente”, analogia figurada
que lembrava os objetivos do local. Essa casa ganhou notoriedade na
imprensa pelas violentas brigas, principalmente entre marinheiros que
viviam em constantes rixas entre si, mas que uniam-se “fraternalmente”
contra os intrusos. Na mesma medida em que a Aldeia era considerada a
zona perigosa de Cachoeira, a casa “Buraco Quente” era a ameaça da
Aldeia.
25
As contendas não davam-se exclusivamente entre clientes. Numa atitude
preconceituosa, a imprensa descreve as prostitutas como mulheres
“endiabradas”, endemoniadas, que tinham procedimentos vis e
provocavam desordens de toda monta. Em 1936, a reportagem do JP
relata a briga entre uma prostituta e um homem, deixando subtendido a
quem cabia o papel de vítima. A matéria caracteriza logo de início a
meretriz chamada-a de Virgínia “de tal”, termo tipicamente empregado
para expressar profundo desdém e denegrir os subalternos cujos
sobrenomes desconhecia ou preferia não publicar. Nesta caracterização,
a messalina é alçada à condição de rainha do “bas-fonds” cachoeirense,
da zona licenciosa habitada pela escória social, pela ralé da cidade,
alguém capaz de substituir a “celebrizada” Maria Espingarda. Em seguida,
a reportagem recorda seu passado depravado, afirmando que rara era a
vez em que alguém não registrava queixa na delegacia contra ela. Por
fim, descreve a cena numa perspectiva sectária. Saturnino “de tal” estava
tocando violino no botequim de João Jorge da Silva, vulgo Barão, quando
a agressora chegou acompanhada por outras duas mulheres, Olivia Alves
da Silva e Maria Farias. Em certo momento, Virgínia pediu ao violinista
que lhe pagasse um copo de vinho, mas quando foi atendida a “endiabrada
22
JP, 6/9/1931 Os crimes repugnantes. Carta de esclarecimento. Defloramento de uma
menor, p.3
23
JP, 11/6/1933 Crimes passionais. Cartas avulsas, p.2
24
MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade Criminalizada: Prostituição, Lenocínio e Outros
Delitos - São Paulo 1870/1920. In: Revista Brasileira de História. v.18 n.35 São
Paulo, 1998 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext
&pid=S0102-01881998000100012&lng=pt&nrm=iso&tln g=pt – acessado em 1/4/2006]
25
JP, 19/10/1933 A aldeia em polvorosa. Grave conflito, p.2, 10/5/1934 Noticiário.
Grande distúrbio na Aldeia, p.3 e 30/6/1938 O “Buraco Quente”, teatro de mais uma
cena de sangue, p.10
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A classe perigosa deve ser contida
342
343
jogou copo, vinho e tudo no chão”, pedindo que lhe pagasse outro.
Saturnino se “escusou”, afirmando não ser “pato”. Eis que a prostituta
agarra o violino e quebra-o na cabeça do homem que lhe negara outro
copo de vinho, dando-lhe, por fim, uma bofetada.
26
A preocupação maior com a zona do baixo meretrício centrava-se na
osmose resultante do cruzamento dos trajetos, feitos cotidianamente,
pelos freqüentadores dos prostíbulos. O incômodo era porque os “de
baixo” adentravam na área central remodelada para os cidadãos ditos
civilizados, educados e bem vestidos, que seguiam as regras de civilidade
e urbanidade com compostura digna. O trajeto herético dos que saíam
da zona burlava a lógica elitista de impor muralhas entre a “boa” e a
“má” sociedade. Eram os indivíduos “desocupados” e “desordeiros”,
“indesejáveis” que danificavam o patrimônio particular e público, que
quebravam o ritmo de “ordem e tranqüilidade” tão desejado pela elite
citadina, moradora da zona saneada.
Como aponta Fabio Bezerra de Sousa, horda selvagem, movida a bebidas
alcoólicas, que saía dos lupanares fazendo blague, assaltando real e
simbolicamente a cidade higienizada, adentrando nela sem pedir licença,
quebrando a lógica e a hierarquia dos espaços que as elites tentavam
instituir com as reformas no centro. Saíam da zona, lócus das “práticas
despudoradas”, e cruzavam as fronteiras das sóbrias e civilizadas ruas
centrais ou áreas habitadas pela elite, “levando consigo marcas da
libertinagem e vícios que nos lupanares adquiriam”. Perturbavam o
“tranqüilo sono de cidadãos morigerados”, punham em risco a “decantada
moral da sociedade”, que tinha lugares próprios para ser reproduzida. A
imprensa serviu de porta-voz para denunciar esse “despautério que
misturava promiscuidade com decência”, freqüentemente reivindicando
a ação da polícia para manter os bons costumes ou reclamando da própria
inoperância policial. Eram tensões que marcavam as relações sociais na
cartografia urbana.
27
O crescimento urbano empurrou pouco-a-pouco as novas casas de
tolerância para a vila Carvalho, em direção às carreiras de cavalos. Mesmo
que o baixo meretrício cachoeirense tenha sido de certa forma afastado
dos olhos da elite, não era o único local a oferecer prazer. No início da
década de 30, muitas casas localizavam-se dentro dos limites do núcleo
urbano principal. Os “de cima” igualmente freqüentavam bordéis, mas
denominavam esses locais de “pensões”, embora existisse a diferenciação
entre prostíbulos e pensões familiares.
O anúncio da Pensão Nova de Joana Grehs, publicado no guia Cachoeira
Histórica e Informativa de 1940, mostra a tentativa de diferenciar
prostíbulos e pensões familiares, ressaltando a questão da ordem,
disciplina e higiene:
26
JP, 23/7/1936 Noticiário. Desordem, p.3
27
BEZERRA DE SOUSA, Fabio Gutemberg Ramos. Cotidiano popular e tensões nos
prostíbulos (Campina Grande – 1930-1945). In: Revista História Hoje, revista eletrônica
de História, v.1, n.3, ANPHU, março, 2004 [disponível em http://www.anpuh.uepg.br/
historia-hoje/vol1n3/cotidiano.htm – acessado em 10/1/2006]
Figura 112 - Anúncio da Pensão Nova de Joana Grehs. Fonte: PORTELA, Vitorino; PORTELA,
Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa. op.cit., 1940
O público era selecionado a partir de preços maiores cobrados pelas
prostitutas. A elite aceitava a prostituição como o mal necessário que
servia para manter unidos os laços familiares. Mas para a prática sexual
tranqüila era necessário segurança. Chegou-se a cogitar na transferência
de toda prostituição para local próprio, longe do centro. Não para a zona
do baixo meretrício na Aldeia, tendo em vista os freqüentes conflitos
sangrentos que lá ocorriam. Assim como em outros quesitos, a devassidão
exigia distinta segregação social em guetos próprios.
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A classe perigosa deve ser contida
344
345
A polícia também vigiava as pensões, mas intervenções ocorriam somente
em caso de conflitos considerados graves. Como tratavam-se de
freqüentadores em melhor posição social, as notícias do jornal não
exploravam detalhadamente os fatos. Limitavam-se a mostrar as
prostitutas como culpadas pelos males decorridos da atividade sexual.
Esse contexto obrigava-as a submeterem-se às vontades dos
freqüentadores, pois preferiam relevar e continuar trabalhando, ao invés
de serem banidas do mercado. O caso da cafetina da Pensão Royal, na
rua 24 de Maio, exemplifica essa situação. Envolvida em conflitos no ano
de 1933, foi intimada a deixar seu negócio no prazo de seis dias, sob
pena de ser expulsa do município.
28
Outro exemplo é o de Conceição
Peres, presa em 1934 por instalar casa de meretrício no prédio Sotéa, na
rua Saldanha Marinho, centro da cidade. No depoimento, disse ter sido
“aconselhada por terceiros”, sendo posta em liberdade dias depois.
29
É
bem possível que a sugestão tenha partido de pessoas conhecidas na
comunidade, resultando, em contra-partida, na sua soltura.
7.2. Canalhada ébria de vinho, tonta de fumaça
Assim como na prostituição, outras ocorrências policiais motivavam
advertências disciplinadoras vinculadas através da imprensa. Conforme
Beatriz Marocco, esse tipo de censura apresentava em comum o “olhar
normalizador do exame”, maneira parcial de observar e apresentar a
realidade, comumente dominada pela intenção prévia de “enfocar certos
indivíduos” e tornar seus comportamentos “virtualmente perigosos e
transparentes para salientá-los entre a população em geral”. Para narrar
os acontecimentos dos subalternos, o repórter dispensava a fala dos
envolvidos, não identificava-os pelo nome para confundi-los com o grupo
social ao qual faziam parte (ou que lhes era imputado fazer parte),
realizando assim um trabalho superficial de coleta de informações, nas
mais das vezes de forma alheia. Distanciava-se da verdade ao procurar
informações mais do caráter dos envolvidos, através dos vizinhos, do
que investigar os fatos. Interessava muito mais “incluir” quem não se
comportasse como devia e “visibilizar” os espaços emblemáticos em que
estes indivíduos poderiam ser encontrados, amplificando o tomo de
ameaça que os subalternos representavam para a elite citadina.
30
É neste contexto que o moralismo simulado da elite abundava nas páginas
do Jornal do Povo, através da aversão às desavenças, aos crimes em
menor ou maior grau, aos furtos, ao alcoolismo ou ao vício da jogatina.
Em todos esses casos, procedia-se a diferenciação explícita entre elite e
subalternos, vista exatamente na forma de narrar. A responsabilidade
imputada aos que pertenciam aos altos círculos sociais dava-se de maneira
branda, afabilidade característica que demonstrava aceitação social.
Em 1931, a notícia do enjeitado traduz essa justificação de crimes
praticados pelos de melhor condição social. A narrativa induz o leitor a
compreender as razões que levaram a mãe a abandonar a criança na
porta de uma casa. Primeiro porque coloca a iniciativa como “moda”
que estaria “pegando”. Depois porque descreve a situação de maneira
cortês: “uma forte pancada na porta da entrada despertou as pessoas da
residência. Indo verificar o que ocorria, encontraram no corredor da
entrada da casa, deitado sobre um travesseiro, uma linda criança do
sexo masculino, envolta em roupas finas. Num papel de embrulho, escrito
com boa letra e correção, eram feitas diversas recomendações quanto a
alimentação da criança, pedindo-se que a registrassem com o nome de
Jesus”. O fato do bilhete ter sido escrito com caligrafia e gramática
corretas demonstra que não se tratava de uma mãe qualquer, era alguém
28
JP, 5/10/1933 Noticiário grave conflito numa casa de prostituição, p.3
29
JP, 4/1/1934 Noticiário. Pela policia, p.3
30
MAROCCO, Beatriz. Prostitutas, jogadores, pobres, delinqüentes e vagabundos nos
discursos jornalísticos Porto Alegre – século XIX. In: INTERCOM – Sociedade Brasileira
de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. XXVI Congresso Brasileiro de Ciências
da Comunicação. Belo Horizonte/MG. set/2003 [disponível em http://
reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/4412/1/NP2MAROCCO.pdf –
acessado em 5/4/2006]. Ver também RIBEIRO, Santuza Cambraia Naves. Modéstia à
parte, meus senhores, eu sou da vila! A cidade fragmentada de Noel Rosa. In: Revista
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 16, 1995, p. 251-268. [disponível em
http://www.cpdoc.fgv.br/revista/arq/177.pdf – acessado em 5/4/2006],
MORETZSOHN, Sylvia. Imprensa e criminologia: O papel do jornalismo nas políticas
de exclusão social [disponível em http://bocc.ubi.pt/pag/moretzsohn-sylvia-
imprensa-criminologia.pdf – acessado em 7/4/2006] e GORITA, Marcos Alan. Notícias
do crime, relatos de insegurança. Os discursos da violência na cidade do Rio de
Janeiro (1995-2000). Dissertação de Mestrado [Orientador Michel Misse], Rio de
Janeiro: IFCS/PPG Sociologia e Antropologia/UFRJ, 2003 [disponível em http://
www.necvu.ifcs.ufrj.br/arquivos/MarcosAlan. pdf – acessado em 5/4/2006]
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
346
347
que sabia ler e escrever, algo não tão comum na época. Por fim, o desfecho
do caso é feliz: “o casal, que não tem filhos, ficou com a criança para
criá-la e educá-la”.
31
Na jogatina, eventualmente havia reclames dos males que atingiam tanto
elite quanto subalternos. Numa crônica escrita em 1931, o leitor denuncia
a ocorrência de jogo nos clubes da alta sociedade e nos antros. Em ambos,
“a burguesia e a canalhada vive ébria de vinho, tonta de fumaça”. Ele
adjetiva o hábito com características religiosas e orgânicas. Os homens
“sem escrúpulos”, “refinados jogadores profissionais”, estariam
maculando e corrompendo a sociedade, desrespeitando a lei, arrastando
a juventude “sonhadora” e “inexperiente” para o “pano verde”, atraída
que era pelo “barulho das fichas”, deslumbrada ante a “policromia das
cartas do baralho”, que se deixava conduzir pela “mão criminosa dos
exploradores”, através do “abismo tenebroso do jogo”, a “lepra do corpo”
e o “verme do cadáver”, “cancro incurável” que comia a honra e o dinheiro
do indivíduo, atirando-o no “lodo de todas as depravações”.
32
Todavia, esse tipo de opinião era exceção. Entre a elite, o jogo era aceito
por fazer parte da vida social. Na organização dos bailes beneficentes
em prol de alguma entidade comunitária, a obtenção de renda dava-se
através de passatempos como a tômbola, espécie de loto em que era
preciso completar o cartão para ganhar e cujos prêmios eram dados em
objetos e não em dinheiro.
33
Nos cafés, predominava o carteado. Em
plena praça José Bonifácio, o Café Carioca tinha mesas para jogar cartas
e roleta como a jaburu, onde figuras de bichos substituíam os números.
34
Muitos desses estabelecimentos, como o Café Paulista, também
disponibilizavam a carambola, semelhante ao bilhar francês, jogado em
mesa revestida de feltro verde, sem caçapas, com uma bola vermelha e
duas brancas. Um dos mais famosos locais era o Café Raio X, na Sete de
Setembro, de propriedade do major Bertoldo Moser.
35
Em fins dos anos
30, a preferência passou ao snooker inglês, jogado com oito bolas sobre
mesa de seis caçapas.
36
Eventualmente chegavam a Cachoeira variedades
de passatempos para o entretenimento da elite, como correntes de
prosperidade ou felicidade.
37
O organizador da revista Aquarela, Humberto Atílio Guidugli, relata
pitoresco fato, ocorrido como conseqüência do jogo. Em certa época,
vários homens passaram a registrar queixas na delegacia, alegando terem
sido vítimas de assaltantes mascarados. Após inúmeras diligências sem
sucesso, o delegado desconfiou que os saques eram imaginários e as
supostas vítimas eram apostadores malsucedidos. Mandou publicar aviso
informando que prenderia quem desse parte dos encapuzados. Nunca
mais alguém cogitou sobre os assaltos.
38
Dentre as possibilidades de ganhos através de apostas, o jogo do bicho
foi o mais difundido e aceito por todos, transitando num universo dualista,
entre “vício” e “jogo inocente”. Na visão antropológica de Roberto Da
Matta, apostar nos bichos significaria colocar às avessas o sentido da
modernização em curso, “resistir” ao processo civilizatório dado pela
via econômica modernizante, não conformando-se com os padrões
derivados da experiência européia, tomados como universais e
exemplares. A proliferação mítico-imaginária do jogo do bicho seria “trans-
moderna”, na medida em que “canibalizaria” os valores, crenças e
axiomas básicos do sistema, como o enriquecimento individual não pelo
trabalho (desvalorizado na sociedade escravocrata) e a própria relação
com a natureza através dos bichos. Desmistificar o capitalismo selvagem
para restituir, em seu lugar, o capitalismo “dos” selvagens.
39
Por esta
razão sua rápida popularização.
31
JP, 30/4/1931 Noticiário. Mais um enjeitado, p.3
32
JP, 25/1/1931 O jogo, O. p.1
33
JP, 22/10/1939 A grande festa da Primavera do Clube Comercial, p.2
34
GUIDUGLI, Humberto Atílio. Café Carioca. Revista Aquarela, n.8, set. 1957
35
GUIDUGLI, Humberto Atílio. Bilhar e Assalto à mão armada. Revista Aquarela, n.7,
dez. 1958
36
JP, 14/8/1938 Noticiário. Um salão de snooker, p.3
37
JP, 11/8/1935 Cadeia da felicidade, p.1
38
GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul, op.cit., 1959
39
GEIGER, Amir. Resenha do livro de DA MATTA, Roberto e SOÁREZ, Elena. Águias, Burros
e Borboletas: Um Estudo Antropológico do Jogo do Bicho. In: Revista Mana v.7 n.2 Rio
de Janeiro out. 2001 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-93132001 000200011&lng=pt&nrm=isso – acessado em 6/4/2006].
Ver ainda DA MATTA, Roberto. Individualidade e liminaridade: considerações sobre
os ritos de passagem e a modernidade. In: Revista Mana v.6 n.1 Rio de Janeiro abr/
2000 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-
931320000 00100001&lng=pt&nrm=isso – acessado em 6/4/2006] e CAVALCANTI, Maria
Laura Viveiros de Castro. Os sentidos no espetáculo. In: Revista de
Antropologia. v.45 n.1 São Paulo 2002 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
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349
O duplo universo – jogo inofensivo mas condenável – fica implícito na
imprensa. Em editorial de 1931, o Jornal do Povo destacou o interesse
local pelas apostas: “joga-se prodigiosamente no bicho”.
40
No mesmo
ano, Lisboa Estrazulas poetizou a loteria:
Onze e meia da manhã.
Os Bancos cerrando as portas.
Algumas casas de comércio também.
Relógios marcando dez e meia.
Empregados se dirigindo aos “pirões” e outros ainda em plena atividade.
As malas do correio perderam o trem.
Muitos viajantes também.
Uns protestam.
Outros acham uma beleza o novo horário.
As cozinheiras é que não acham.
E alegam: que o leiteiro só trás o leite, pelo horário moderno, às oito horas; que o
padeiro só trás o pão às sete.
Os dorminhocos dão em grito.
Grand Confusion.
Os vendedores de “bicho” avisam o pessoal que o joguinho hoje, amanhã, etc. até 31 de
março, passa a fechar ao meio dia.
Desvantagens.
E os amantes de “fezinha” protestam.
É uma maçada!
Mas eu não acho.
Há, logicamente, a lei das compensações.
Se o joguinho tem de ser feito mais cedo, em compensação, uma hora mais cedo já se
sabe o “bicho” e a centena que saiu...
41
A culpabilidade seria invocada quando subalternos envolviam-se com o
jogo, transmudando-se para hábito muito mais visto pela ótica do vício,
do defeito grave, da inclinação para o mal, do desregramento habitual,
em que o jogador tinha conduta censurável e condenável, portanto era
costume prejudicial que deveria ser combatido. Eventuais contendas entre
indivíduos reles, geradas a partir do envolvimento no jogo do bicho,
assumiam tom irônico quando narradas pela imprensa, dada a aceitação
natural da elite pelas apostas. Num episódio, o grupo de menores caçoou
de um dos integrantes porque ele estava recolhendo talões do jogo: “Em
dado momento, porém, João Ramiro Brito, que vinha suportando tudo
pacientemente, resolveu reagir, virando bicho”.
42
De maneira geral, na jogatina eram atribuídas maiores responsabilidades
aos outsiders, normalmente associados a atitudes que acabavam em
graves conflitos criminais, a lugares que predispunham ao crime e à
violência desmedidos, como os “antros”, lugar de perdição, corrupção,
vícios, típicos da malandragem.
43
A crítica com relação ao jogo do osso
ou tava – de origem gaúcha, que consistia em se atirar ao ar a tava, osso
do jarrete da rês vacum que tem um lado chato e outro redondo, vencendo
aquele que fizesse tombar a parte chata, sinônimo de sorte, para baixo
– exemplifica essa diferença de aceitação/repugna social. Sobressai nas
queixas a questão do prejuízo à força de trabalho. Os que se divertiam
com o passatempo eram considerados “indivíduos sem ocupação lícita”,
que recusavam trabalho “honrado” que demandassem “esforços”, não
contribuíam ao bem comum; prejudicavam o “trabalho normal das
empresas agrícolas” e desviavam os trabalhadores honestos para o vício.
O caráter maléfico é visto na descrição generalista desses indivíduos:
“vivem agrupados nas portas das vendas, chapéu na nuca, revólver na
cintura, esperando a ocasião propícia de ganharem alguns mil réis, muitas
vezes às custas da ingenuidade dos incautos”. Além disso, a amálgama
entre jogo e bebida justificaria sua extinção. No abuso da bebida residia
o pretexto para “provocar um fervo”.
44
Mesmo em eventos populares, onde a aposta equivalia a mera diversão e
entretenimento, a repulsa ao jogo irrompe drasticamente, como mal a
ser extirpado da sociedade. Em 1943, o funcionamento do parque Marajá,
na praça São João, despertou reclames por parte do “respeitável público”,
para quem as diversões travestiam-se de “ponto de reunião” do “povinho
miúdo”, que jogava de forma imprudente e ingênua nos “jaburus”, “7
?script=sci_arttext&pid=S0034-77012002000100002&lng=pt&nrm=isso – acessado em
6/4/2006]
40
JP, 9/8/1931 Editorial. A dor dos melhoramentos, p.1
41
JP, 8/10/1931 Grand Confusion. Horário novo. Lisboa Estrazulas, p.1
42
JP, 24/12/1936 Um conflito entre menores. Por causa do “bicho”, um deles virou a
bicho, p.5
43
Ver, por exemplo, a descrição de Porto Alegre, em PESAVENTO, Sandra Jatahy. A
cidade maldita. In: SOUZA, Célia Ferraz de. PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.). Imagens
urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. Porto Alegre/RS:
Editora da Universidade/UFRGS, 1997, p.25-38
44
JP, 13/10/1929 O jogo do osso, p.3 e 17/10/1929 Jogo de osso, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
350
351
baianos” e outros jogos que serviam para subtrair os “magros níqueis,
produto muitas vezes, quem sabe, de dias e dias de trabalho”. As
reclamações através do jornal escondem a disputa pelo espaço, tendo
como argumento a questão da moral e dos bons costumes. O redator
apela para ditos populares – “dizem que o castigo do viciado é o próprio
vício” – e ressalta a necessidade preventiva de não deixar os
“imprevidentes” enveredarem pela senda da perdição. Sua conclusão é
de que o local tornou-se “autêntica zona conflagrada”, “ajuntamento
de homens e mulheres”, interditada às famílias.
45
Semelhantes questões que envolviam a narrativa da jogatina estavam
presentes no caso do alcoolismo. Para a elite, beber era entrosar-se
socialmente. Para os subalternos, ingerir álcool era vício repugnante. A
forma como aparece na imprensa reflete essa situação discriminatória,
a começar pelas próprias palavras utilizadas: “bebida” e “álcool”.
Dependendo dos atores, o ato de beber podia ser narrado de forma
virtuosa ou prejudicial; bebendo na coluna social ou embriagando-se nas
crônicas policiais.
A aceitação social da bebida diluía-se no cotidiano da elite. Desde o
anúncio do café – “Amplo e confortável salão. Bebidas, café e doces” –
até crônicas irônicas – “o homem, coitado, anexar a sua parca
alimentação, peixe, presunto, geteaux, queijos estrangeiros e beber seu
vinhozinho de boa marca no almoço e no jantar” – passando por eventos
corriqueiros, como os garden-party em benefício de alguma obra
comunitária, onde tendas vendiam “gelados e doces, frios e bebidas,
rifas, etc.”, ou a “cerveja gelada” e os “finos licores” servidos nos bailes.
46
Defesa semelhante para o lança-perfume, cloreto de etila perfumado,
vendido em recipientes de vidro ou metal. A substância era mantida sob
pressão para ser lançada em jato. Sua inalação produzia êxtase e alegria.
Em 1937, o governo federal proibiu o uso.
47
Numa crônica de 1938, o
cachoeirense E.R. fala em contemporizar a situação: “Seria aconselhável
que esta proibição se tornasse efetiva desde já, para que os srs.
fornecedores e vendedores, fizessem a devida redução na aquisição do
novo stock, evitando-se, assim, que à última hora, apelassem para a
possibilidade de prejuízos, forçando o relaxamento da proibição, em
detrimento dos benefícios que ela teria ao nosso organismo”.
48
De forma inversa, a elite repugnava sistematicamente o vício da
embriaguez entre os subalternos. O uso do álcool era associado com
brigas, confusões, desordem e, conseqüentemente, prisão. Três notícias
dos anos 30 exemplificam essa relação. Em 1931, alguns indivíduos, “já
meio alcoolizados”, pediram a certo senhor que “cedesse as filhas para
fazerem um baile”. Diante da negativa, acabou sendo agredido a
bofetadas, junto com sua esposa.
49
Num piquenique realizado em 1933,
ocorreram desordens “motivadas pelo estado quase completo de
embriaguez a que chegaram muitos dos presentes e as quais culminaram
com o bárbaro espancamento de uma mulher”.
50
Em 1938, o casal Arlindo
Chaves e Jurema da Silva resolveram fazer uma “festança”, mas perderam
a “linha” e “entraram demais pela bebida”, obrigando a polícia a intervir
e prendê-los, fazendo-os aguardar a “cura” no xadrez.
51
O sentido
depreciativo podia aparecer em outros momentos, de formas distintas,
na notícia da prisão de contrabandista de aguardente ou mesmo nos
detalhes de acidentes fatais: “próximo à Vila Barcelos, subúrbios desta
cidade, a locomotiva colheu em suas rodas uma mulher que veio a falecer
pouco depois. Trata-se de Petronilha Fé Silveira, de cor preta, de mais
ou menos 55 anos de idade. Próximo à vítima, que teve crânio fraturado,
foi encontrado um frasco de cachaça presumindo-se que a embriaguez
foi a causa do desastre”.
52
45
JP, 22/8/1943 O público reclama contra o Parque Marajá, p.2
46
JP, 17/9/1931 Anúncio. Café Carioca, p.3 e 11/5/1933 Porque sou pelo nudismo das
mulheres. Marlus, p.1, 14/12/1933 Pró-charistas, p.2, 19/2/1933 Festa e diversões.
Bloco carnavalesco, p.2 e 17/9/1931 Festas e Diversões. Festa da Primavera, p.3
47
Ver COUTINHO, Eduardo Granja. Um culto pagão na imprensa carioca. In: V Encontro
dos Núcleos de Pesquisa da Intercom. Comunicação e Cultura das Minorias [disponível
em http://reposcom.portcom.intercom.org.br/bitstream/1904/18083/1/R1345-1.pdf
– acessado em 7/4/2006]
48
JP, 12/2/1931 Carnaval, p.2 e 10/3/1938 O Lança-perfume. E.R., p.1
49
JP, 4/10/1931 Notícias do Interior do Município. Desordem e Bofetadas, p.4
50
JP, 16/3/1933 Noticiário. Desordens e prisões, p.3
51
JP, 13/1/1938 Ocorrências policiais. Foram terminar na cadeia, p.3
52
JP, 25/4/1935 Noticiário Apreensão de contrabando de aguardente e morte de um dos
contrabandistas, p.3 e 8/6/1944 Noticiário. Morreu nas rodas de uma locomotiva,
p.3
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A classe perigosa deve ser contida
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353
7.3. Chame a polícia!
Os resquícios dos pressupostos discriminatórios da criminalidade inata e
do atavismo social – vistos nas narrativas dos diversos crimes, furtos,
alcoolismo, jogatina e prostituição – atingiram também os subalternos
menores de idade, a chamada “infância pobre”, tanto no senso comum
quanto nas políticas públicas. Analisando os modelos institucionais e
ideológicos da assistência à infância no Brasil, James Wadsworth destaca
a incongruência do discurso sobre “família” do início do século XX, que
excluiu os subalternos, justificando assim intervenções do Estado no
mundo familiar dos menos favorecidos, para proteger-se das ameaças
que representavam para a “família brasileira”.
53
Segundo Salete Oliveira,
esse paradoxo surgiu com a República, em 1889, que associou a
menoridade ao conceito de marginalidade em situações de delito, vendo
o abandono infanto-juvenil como prenúncio do risco ao crime, tratando-
o como caso de polícia. A promulgação do Código de Menores em 1927
consolidou a prática de prevenção ligada ao ideário de periculosidade,
passando da simples repressão para o afastamento dos focos de contágio,
resquício do atavismo, retirando as crianças das ruas para se submeterem
a medidas preventivas e corretivas, sob responsabilidade de instituições
públicas. Por esta razão, a preocupação paulatina com políticas sociais
primitivas no tratamento dos menores delinqüentes.
54
A mentalidade predominante nos anos 30-40, de que o abandono moral e
material dos menores subalternos era caminho natural para a
criminalidade, podia ser observada no modo de falar da imprensa
cachoeirense. A começar pela idéia de que o ambiente predominava sobre
o caráter do indivíduo. Em 1929, a coluna Telescópio chamou atenção
para o fato de que as pensões – verdadeiros antros onde só ia gente de
“baixa categoria” – estavam sendo freqüentadas por menores que lá iam
para beber. A mocidade, “esperanças da Pátria”, “sentinelas avançadas”,
acotovelava-se com “malandros renitentes”, pervertendo-se por
“contágio”.
55
Um desses locais de “perdição de menores” era o recreio
Thaufik, onde “criminosamente” exploravam-se menores, “despertando-
lhes o gosto pelo jogo e pela bebida”.
56
Como se imitassem os exemplos dos adultos delinqüentes, os menores
envolviam-se em brigas e praticavam molecagens. Comumente
publicavam-se notícias denunciando conflitos entre jovens. A descrição
era extremamente semelhante a dos maiores de idade, incluindo
conotações sobre trabalho: “sem ocupação”, “perturbando o serviço dos
que trabalham”, “desrespeitando a família”.
57
Por analogia, o jornal
imputava à periculosidade infanto-juvenil caráter semelhante aos animais
vadios que perambulavam nas ruas centrais: “moleques de todos os
tamanhos que infestam a cidade, fazendo toda sorte de depredações”.
58
As conseqüências a que estavam sujeitos os menores também não diferia
muito das dos adultos infratores. A situação de perigo levava à prática
das detenções sistemáticas, colocando os menores muitas vezes nas
mesmas acomodações que os presos maiores de idade.
59
Essa exigência
da privação de liberdade era inclusive dada como solução para o problema.
Em meados de 1935, O.M. sugeriu ironicamente que se desmanchasse o
barracão do cinema Coliseu, aproveitando o madeiramento para erguer
uma oficina de arte e ofício que serviria para encerrar todos os “menores
vagabundos” de Cachoeira.
60
No final do mesmo ano, o delegado de polícia,
Cecílio Menezes, prendeu diversos menores que perambulavam nas ruas
após as 22 h 30 min.
61
Atitude semelhante tinha sido adotada dois anos
antes, coincidentemente na mesma época natalina. Menores pegos
perambulando à noite foram recolhidos à cadeia, saindo somente depois
de pagarem a carceragem.
62
53
WADSWORTH, James E. Moncorvo Filho e o problema da infância: modelos institucionais
e ideológicos da assistência à infância no Brasil. In: Revista Brasileira de
História. v.19 n.37 São Paulo. set/1999 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0102-01881999000100006&lng=pt&nrm=isso – acessado
em 7/4/2006]
54
OLIVEIRA, Salete Magda de. A moral reformadora e a prisão de mentalidades:
adolescentes sob o discurso penalizador. In: São Paulo Perspectiva. vol.13 n.4. São
Paulo. out/dez/1999 [disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-88391999000400008 – acessado em 7/4/2006]
55
JP, 30/6/1929 Telescópio Menores, p.1
56
JP, 25/1/1931 Perdição de menores. O recreio Thaufik e similares, p.1
57
JP, 17/11/1929 Conflito entre menores, p.3 e 15/11/1931 Grave conflito entre cinco
jovens, dos quais três saem feridos, p.2
58
JP, 28/1/1938 Noticiário. Depredações, p.3
59
SPOSA, Karyna B. Pedagogia do medo: adolescentes infratores e as propostas de
redução da idade penal [disponível em http://www.ilanud.org.br/artigo.pdf. –
acessado em 7/4/2006]
60
JP, 26/5/1935 Ditador de Cachoeira. Foi um sonho, nada mais O.M., p.1
61
JP, 22/12/1935 Noticiário. Menores vagabundos, p.5
62
JP, 24/12/1933 Noticiário. Vadiagem, p.5
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A classe perigosa deve ser contida
354
355
Soluções alternativas chegaram a ser cogitadas nesta época, como o
escotismo, organização de origem inglesa que visava educar o
comportamento infanto-juvenil, baseado em valores éticos, comunitários,
de responsabilidade civil e aprimoramento da personalidade individual
através de práticas coletivas, ligadas principalmente à natureza.
63
Duas
cartas do sub-chefe do quartel dos escoteiros cachoeirenses, João Perroci,
publicadas no JP em 1936, ressaltam as pretensas possibilidades
redentoras que a prática do escotismo podia propiciar aos “meninos
desamparados que se criam na vagabundagem das ruas, aprendendo desde
pouca idade, todos os vícios que mais tarde os levarão para a ruína”.
64
Numa delas, lastima a atitude de menores subalternos que “dirigiram
palavras obscenas”, “arremessando pedras” em escoteiros que recém
tinham recebido a “benção sagrada” e jurado “obediência e fidelidade,
ante o Altar da Pátria”.
65
Essa atitude de revolta era fruto do embate
simbólico existente entre elite e subalternos, desde a menoridade.
Nos anos 40, os menores ainda eram tidos como problema a ser resolvido,
principalmente pela polícia. As reclamações eram diversas, desde
pequenas molecagens como perturbar o sossego público com algazarras
e pisotear os canteiros e jardins das praças até quebrar vidros de veículos
ou roubar pequenos objetos, como sinaleiras, lâmpadas e distintivos,
tirando ventis e distorcer parafusos. Muitos passaram a visitar as
residências abastadas, batendo de porta em porta para pedir alimentos
e agasalhos, ou simplesmente pegando as mercadorias que padeiros,
leiteiros e verdureiros deixavam de manhã cedo. O jornal não cessava de
exigir medidas energéticas, levar “ao conhecimento das autoridades
municipais” para solicitar “providências cabíveis”.
66
Em 1941, o delegado Muniz Reis atendeu os reclames, chamados também
de “justa reclamação”, que solicitavam “providências para a repressão”
das molecagens. Ele intimou os menores infratores a comparecer na
delegacia, “fazendo-lhes preleções sobre a maneira de como se devem
portar na rua e avisando-os das penalidades a que estariam sujeitos se
continuassem na prática dessas molecagens”.
67
Neste mesmo ano, foi
inaugurada a primeira escola destinada especialmente para a “infância
pobre”, no Alto dos Loretos. O prédio do Grupo Escolar Cândida Fortes
Brandão foi construído para abrigar 150 alunos. Em menos de um ano,
atingiu a quantia de 400 alunos, situação que resultou na suspensão da
distribuição da sopa escolar.
68
Outra iniciativa partiu das senhoras da
alta sociedade cachoeirense. Foi o Natal da criança pobre, realizado
dias depois do término oficial da comemoração natalina, em 1
o
de janeiro
de 1941, no Estádio Municipal, com distribuição de presentes, doces,
picolés e sanduíches, para que as crianças pudessem agüentar o “longo”
e “interessante” programa de festejos.
69
O tom das notícias imputava a delinqüência especificamente aos meninos,
porque as menores de idade abandonadas acabavam, desde cedo,
entrando para a prostituição, ocupação que, de certa forma, tiravam-
nas das ruas.
7.4. Estado policiesco para manter os “de baixo” afastados da elite
Todas essas questões envolvendo tanto a delinqüência infanto-juvenil
quanto a adulta – atos incivilizados, mendicância como sinônimo de
vagabundagem, discriminação racial, crimes passionais, mulheres de vida
fácil, defloramentos, virtudes que absolviam, prostituição, zona baixa e
pensões, jogatina, alcoolismo – tinham a ver com o Estado policialesco,
instaurado para conter os “de baixo”, mantê-los afastados do dia-a-dia
do círculo social da elite. Na análise de Michel Foucault, policiar diria
respeito à bem governar. Além de fiscalizar, inspecionar e tomar medidas
preventivas contra as enfermidades urbanas, a segurança pública incluiria
a manutenção da ordem vigente. Reprimir e eliminar os perigos urbanos
63
Interessante, neste contexto, o artigo de ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. Educação
escolar e higienização da infância. In: Cadernos CEDES v.23 n.59 Campinas abr. 2003
[disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-32622
003000100004&lng=es&nrm=isso – acessado em 7/4/2006], analisando o modelo de
educação sanitária formulado no interior da ampla campanha de regeneração física,
intelectual e moral na São Paulo dos anos 20.
64
JP, 5/11/1936 Escoteiro. João Perroci, sub-chefe secretário do Quartel, p.1
65
JP, 3/12/1936 É de lastimar. João Petrucci, sub-chefe secretário do Quartel, p.4
66
JP, 24/11/1940 Noticiário. Roubo e depredações nos automóveis que estacionam nas
mediações da Praça José Bonifácio, p.5, 15/12/1940 Depredações em automóveis,
p.5, 16/9/1943 Noticiário. Menores vadios, p.3 e 21/11/1943 Queixas e reclamações.
Menores delinqüentes. S.A.M., p.2
67
JP, 11/5/1941 Noticiário. A molecagem da rua Júlio de Castilhos, p.5
68
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
op.cit., 1943, p.320
69
JP, 1/1/1941 Natal da criança pobre, p.11
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A classe perigosa deve ser contida
356
357
seriam atribuições dos órgãos de segurança. A melhor forma de realizar
essa repressão e eliminação dava-se pela demonstração da força.
70
As características predominantes da polícia brasileira nos anos 30-45 são
oriundas da organização administrativa judiciária-policial do século XIX.
Segundo Maria Bonelli, a estruturação hierárquica para a função de polícia
judicial e investigativa de cunho civil data de 1841, com a centralização
política do Império, onde foram criadas as funções de “chefe de polícia”,
“delegado de polícia” e “subdelegado”. O objetivo maior foi limitar o
poder das oligarquias regionais através da maior presença da autoridade
central, sujeita ao controle do imperador. Desse objetivo nasceu sua
primeira característica: a politização da polícia ou o uso político do
aparato policial, dada a vulnerabilidade política do cargo. A segunda
função predominante foi a repressão de cunho social, visto na tentativa
de manter a ordem entre estabelecidos e outsiders, entre a elite que
possuía mandato moral e os subalternos – negros libertos e mestiços que
pouco-a-pouco direcionavam-se para as áreas urbanas
predominantemente elitistas – verdadeiros alvos da ação policial. Em
que pese iniciativas esporádicas de especialização policial dentro da
perspectiva científica criminal, no início do século XX, na tentativa de
profissionalizar o uso político da estrutura policial, e o próprio
direcionamento do poder policial para os políticos regionais, a revolução
de 30 intensificou as distinções de caráter clientelístico e perseguição
política, de uso abusivo da força e da partidarização. A começar pela
criação da Secretaria de Segurança e Justiça em dezembro de 1930,
concentrando o poder policial no governo federal. O auge da politização
e repressão centralizada foi o período ditatorial instaurado com o Estado
Novo, em 1937.
71
Em Cachoeira, a ebulição do período aparece nas páginas da imprensa.
Entre 1929-37, são freqüentes as notícias opinativas sobre o aumento da
criminalidade, principalmente na zona urbana central. De início, o Jornal
do Povo atribuiu muito da insegurança à extinção da guarda municipal,
quando os serviços de policiamento passaram para a responsabilidade de
destacamentos da Brigada Militar, entre 1928 e 1934. Em vários momentos,
fez-se o desarmamento da população subalterna, sob a justificativa que
era preciso diminuir a criminalidade ou mesmo os acidentes com armas
de fogo. Somente poderia andar armado quem tivesse licença da
autoridade competente e nos casos previstos em lei, como autoridades
civis e militares quando em objeto de serviço. Mostra desse desarmamento
seletivo eram os espaços onde ocorriam, como as “carreiras”, assim
chamadas as corridas de cavalos localizadas nos subúrbios.
72
As notícias das ocorrências delituosas mostravam certo exagero. A “ação
dos gatunos” ou “atividades dos amigos do alheio” desenvolviam-se em
ritmo “febril”, “numa alarmante seqüência de arrombamentos e furtos”.
73
Um “avultado” roubo levou a crer que Cachoeira havia sido “invadida”
por “bando de criminosos”.
74
Os “gatunos” aproveitavam-se da
ingenuidade dos “pacatos” cidadãos, principalmente no verão, quando
muitos deixavam as janelas das casas abertas.
75
A tônica se mostra na
manchete: “Os gatunos reabriram a temporada”.
76
Em 1934, o esquadrão da Brigada Militar foi recolhido ao quartel de Santa
Maria, ficando o policiamento a cargo da polícia civil, com três
investigadores, e da chamada guarda noturna, com cinco guardas. Para o
70
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, 7
a
ed., Rio de Janeiro: Graal, 1988 e ___.
Vigiar e punir: nascimento da prisão. op.cit., 1987. Ver também RAGO, Luzia
Margareth. As marcas da pantera: Michel Foucault na historiografia brasileira
contemporânea. In: Revista Anos 90. Porto Alegre/RS: PPG História UFRGS, n.1, mai/
1993, p.121-143
71
Segundo BONELLI, Maria da Glória. Os delegados de polícia entre o profissionalismo e
a política no Brasil, 1842-2000. [disponível em http://www.uoregon.edu/~caguirre/
bonelli_2.pdf – acessado em 4/4/2006], na década de 1910, teve início o processo de
especialização do aparato da polícia civil, com o desenvolvimento de técnicas de
investigação e identificação criminal - como a datiloscopia, o retrato falado, o uso
da fotografia e a perícia – o registro civil da população além da emissão dos
passaportes, os serviços médico-legais, a inspeção e fiscalização de veículos, a
fiscalização e censura das diversões públicas, e a assistência policial para os
acidentados nas ruas, os desabrigados e desocupados. Embora a polícia ganhasse
maior definição, seguia sem a crucial autonomia, centralizada e nomeada pelo
governo, sujeita à demissão, à prática das remoções e das transferências por razões
externas aos da prestação do serviço policial, características que permaneceram
durante o período getulista.
72
JP, 28/7/1929 Policiamento da cidade, p.3, 28/7/1929 Segurança pública, p.1, 15/8/
1929 Conflitos e ferimentos, p.2, 1/6/1930 Noticiário,p.3, 21/8/1932 Noticiário.
Policiamento da Cidade, p.3, 28/8/1932 Noticiário. Desarmamento, p.3 e 10/5/1934
Noticiário. Acidente por arma de fogo, p.3
73
JP, 5/2/1933 Noticiário. Ação dos gatunos, p.3
74
JP, 9/5/1933 Um avultado roubo no Restaurante Comercial, p.3
75
JP, 25/1/1934 Noticiário. Os gatunos em ação, p.3
76
JP, 28/3/1937 Os gatunos reabriram a temporada, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
358
359
Jornal do Povo, foi verdadeira calamidade: “Fica assim, Cachoeira, cidade
populosa e de perímetro urbano grande, à mercê da ação dos gatunos e
desordeiros, diante da impotência da polícia, em face da falta de
elementos, para combate decisivo”.
77
No ano seguinte, elogiava a
diminuição da chamada “curva da criminalidade”, graças ao “zelo
administrativo” do delegado de polícia.
78
Indício da intensificação do estado policial a partir de 1930 foi a explosão
de litigiosidade. Analisando o orçamento judiciário no Rio Grande do Sul
no período, Günter Axt mostra como o número de processos aumentou
acima das médias anteriores. Na década de 1940, foram registrados no
Tribunal de Justiça do Estado média de 1.562 processos anuais, aumento
de quase 60% em relação à média da década anterior, que havia sido de
700/ano, na década de 20, e 927/ano, na década de 30, média puxada
para cima em função dos últimos quatro anos que registraram forte
aumento no volume processual. O incremento da atividade econômica, o
aumento do número de habitantes e as transformações havidas no direito
processual civil e criminal teriam contribuído para a mudança do quadro
litigioso, alteração que não refletiu em aumento substancial do orçamento
judiciário.
79
A criminalidade cachoeirense mostrava-se nos índices. Mais de 70
processos criminais estavam em andamento em 1932.
80
No período de
junho de 1936 a fevereiro de 1938, sob incumbência do juiz Erasto Roxo
de Araújo Correa, o movimento forense local foi intenso: 71 sentenças
cíveis, 83 sentenças criminais e 207 sentenças relativas a órfãos. Os
números alçavam a comarca a uma das de maior movimento do Estado.
81
Em relação ao crime, as estatísticas de 1943 mostram quadro peculiar:
31 furtos (3
o
lugar do Estado) mas nenhum roubo; 14 crimes de sedução
(4
o
lugar), 8 estupros e 4 raptos.
82
Dois anos depois, em 1945, o quadro
da litigiosidade apontava diversidade: 55 lesões corporais leves; 10 lesões
corporais graves; 2 estelionatos; 4 danos; 13 furtos; 3 furtos qualificados;
1 acidente com arma de fogo; 3 portes ilegais de arma de fogo; 2
homicídios; 2 rixas; 30 seduções; 10 suicídios; 5 estupros; 2 raptos
consensuais; 2 apropriações indébitas; 2 ameaças; 1 receptação; 2 maus
tratos; 2 violações de domicílios; 7 mortes por acidente; 1 calúnia; 1
esbulho possessório; 5 desacatos à autoridade; 1 resistência à prisão; 13
acidentes no trabalho; 5 acidentes no tráfego; 4 mortes por afogamento;
2 tentativas de homicídio; 2 adulterações de documentos; 2 injúrias e 1
posse sexual mediante fraude.
83
Conseqüência do Estado policial, o encarceramento surgiu com objetivo
de domesticar os corpos. Para Foucault, as casas de correção teriam
como finalidade regenerar os detentos, acabar com sua decadência moral,
não tanto pelo clausura, mas por tirá-los de circulação, da vista da
população ordeira. Além disso, o preso serviria de exemplo para os demais
e o cárcere desenraizaria o sujeito, fazendo ele esquecer a família e a
comunidade.
84
Do início do século XX até os anos 30-40, o número de detentos e casas
de correção no Brasil aumentou sobremaneira. O número de condenados
em 1907 totalizava 3.734, aumento de 15,5% (580) com relação ao ano
anterior. Os Estados com maior número de presos eram São Paulo (632),
Pernambuco (566) e Rio Grande do Sul (490).
85
Em 1922, metade das
1.287 cadeias do país estavam em São Paulo (212), Minas Gerais (178),
Bahia (139), Ceará (75) e Rio Grande do Sul (71).
86
77
JP, 15/4/1934 A cidade sem policiamento. Um guarda noturno agredido, p.2
78
JP, 12/12/1935 Editorial. A criminalidade em Cachoeira, p.1
79
AXT, Gunter. Interpretações sobre a história do orçamento judiciário no Rio Grande
do Sul (1874-1990) [disponível em http://www.tj.rs.gov.br/institu/memorial/
RevistaJH/vol3n5/10-Gunter_Axt.pdf – acessado em 4/4/2006]. Segundo dados do
IBGE, entre 1907 e 1912, a média processual no Brasil ficou em torno de 7,2 mil
processos, incluindo varas civis, órfãos e ausentes, provedoria e resíduos, feitos da
fazenda municipal e da saúde pública, comerciais e criminais. Fonte: Tabela III, número
de processos julgados pelos Juizes de Direito (1907 a 1911-1912) Anuário estatístico
do Brasil 1908-1912. Rio de Janeiro: Diretoria Geral de Estatística, v. 1-3, 1916-1927.
80
JP, 22/5/1932 A criminalidade em Cachoeira, p.1
81
JP, 6/4/1938 A Comarca de Cachoeira é, indiscutivelmente, uma das comarcas de
mais movimento do Estado, p.3
82
AZEVEDO, Tupinambá Pinto de. Cachoeira do Sul, comarca: 150 anos de História.
op.cit., 1985, p.51
83
JP, 30/6/1946 Delegacia de polícia de Cachoeira do Sul, p.3-4
84
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. op.cit., 1987. Ver ainda
BRUNI, José Carlos. Foucault: o silêncio dos sujeitos. In: Revista Tempo Social. São
Paulo: Sociologia/USP, 1989, p.199-207
85
Fonte: Tabela I, Movimento carcerário, segundo as Unidades Políticas. 2. Número de
condenados 1907. Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2, 1936
86
Fonte: Tabela Repressão I, Movimento carcerário, segundo as Unidades Políticas1.
Prisões existentes 1922. Anuário estatístico do Brasil 1936. Rio de Janeiro: IBGE, v. 2,
1936
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A classe perigosa deve ser contida
360
361
Nos quarto ano da revolução de 30, o número de condenados presos
subiu para 6.212, sendo 98,4% na justiça comum (6.113) e 93,5% (5.808)
homens. São Paulo liderava com 1.103 apenados, seguido de Minas Gerais
(966), Pernambuco (885), Distrito Federal (683) e Rio Grande do Sul (411).
87
As infrações cometidas classificavam-se, pela ordem, em: homicídio ou
tentativa (3.832), roubo (645), furto (391), violência carnal (279), lesões
corporais (238), latrocínio (79), entre outras (748). No Rio Grande do
Sul, o quadro mudavam um pouco. A maioria estava presa por homicídio
ou tentativa (313), violência carnal (30), roubo (24), latrocínio (20) e
furto (6), entre outras (18). Ninguém estava preso por lesão corporal,
mas a violência carnal assumia a segunda posição e os latrocidas
representavam 25,6% de todos detentos do país.
88
Na segunda metade dos anos 30, o movimento carcerário seguiu tendência
de crescimento. O aumento do número de cadeias, de 1.287 em 1922
para 1.457 em 1936, foi menor quando comparado ao de ocorrências e
detentos. São Paulo ainda liderava na quantidade de prisões (249), seguido
de Minas Gerais (214), Bahia (150), Rio Grande do Sul (85), Pernambuco
(83) e Ceará (76).
89
Em 1937, o número de crimes em todo país atingiu a
marca de 13.008.
90
No ano seguinte, ocorreram em Porto Alegre 1.939
crimes, sendo 813 furtos, 423 lesões corporais, 213 violências carnais,
116 roubos, 28 homicídios, 14 estelionatos, 11 tentativas de homicídios
e 321 não especificados.
91
No início dos anos 40, triplicou a quantidade
de crimes verificada em todo país, chegando a 42.772. Somente em Porto
Alegre, ocorreram 3.992 crimes: 236 homicídios (aumento de 842% com
relação a 1938), 1.145 lesões corporais (270% a mais), 902 violências
carnais, 490 furtos (diminuição de 40%), 85 roubos, 30 tentativas de
homicídios, 28 estelionatos, 7 falsificações de moeda e 1.069 não
especificados.
92
Para a imprensa, as prisões tinham significado especial, ao serem capazes
de mostrar que o governo tinha competência, pois mantinha secionado
os perigos da sociedade, mesmo que a população carcerária não fosse a
grande responsável pela maioria dos crimes.
93
O discurso da imprensa cachoeirense auxiliava na legitimação do
encarceramento dos subalternos, inclusive com descrições detalhadas
do modus operandis da polícia que buscavam certo perfil dos criminosos.
A notícia publicada em 1930, relatando a chegada de indivíduo de “cara
discutível”, retrata esta situação. No “afã de precaver a cidade contra o
ingresso de indesejáveis”, a polícia local destacou na ocasião dois guardas
para vigiarem a estação ferroviária, porta natural de entrada e saída da
cidade. A idéia era policiar o desembarque de passageiros de “procedência
suspeita”. Na ocasião descrita, o indivíduo foi seguido até rondar
determinada pensão. Como os guardas estavam de sobreaviso, efetuaram
a prisão e levaram o suspeito para ser interrogado na delegacia. O caso
foi desvendado depois da intimação da prostituta que estava escondida
na pensão. Tratava-se de “proxeneta”, cafetão que vinha explorando
com “cinismo revoltante” a “infeliz mulher”. Quando ela não obtinha o
dinheiro exigido, era maltratada e espancada pelo “repugnante
explorador”.
94
O tamanho da cidade e sua própria localização afastadas dos demais
centros urbanos – acessível somente por trem ou estradas de terra –
consolidava o estado de vigilância montado pela polícia. Os larápios vindos
de fora tinham dificuldades em praticar crimes, visto as dificuldades da
87
Fonte: Tabela I, Movimento carcerário, segundo as Unidades Federadas. Número de
condenados existentes em 30 de junho de 1934. Anuário estatístico do Brasil 1937.
Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, 1937
88
Fonte: Tabela I, Movimento carcerário, segundo as Unidades Federadas. Número de
condenados existentes em 30 de junho de 1934; c) Agrupamento seguido de infrações.
Anuário estatístico do Brasil 1937. Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, 1937
89
Fonte: Tabela I, Movimento carcerário, segundo as Unidades Federadas. Prisões
existentes 1936. Anuário estatístico do Brasil 1937. Rio de Janeiro: IBGE, v. 3, 1937
90
Fonte: Tabela Crimes e contravenções. IV delinqüência verificada nas capitais 1937.
Anuário estatístico do Brasil 1938. Rio de Janeiro: IBGE, v. 4, 1939
91
Fonte: Tabela Crimes e contravenções. IV delinqüência verificada nos municípios das
capitais 1938. discriminação dos delitos, segundo a natureza. Sistema Regional e
Seção de Sistematização, da Secretaria Geral do IBGE. Anuário estatístico do Brasil
1939/1940. Rio de Janeiro: IBGE, v. 5, 1941
92
Fonte: Tabelas Situação cultural delinqüência e suicídios. II. crimes verificados, segundo
as unidades da federação 1942. Repressão I reclusos nas penitenciárias do país 1943.
Movimento e características individuais. Motivos determinantes da condenação.
Sistema Regional e Serviço de Inquéritos, da Secretaria Geral do IBGE. Anuário
estatístico do Brasil 1941/1945. Rio de Janeiro: IBGE, v. 6, 1946
93
SEQUEIRA, Vânia Conselheiro. Porque o carcereiro não deixa as portas da prisão abertas?
In: Revista Interações. São Paulo: Universidade de São Marcos, n.18, v.IX, jul-dez/
2004, p.61-74 [disponível em http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/354/35401
804.pdf – acessado em 10/4/2006]
94
JP, 4/5/1930 O ingresso de indesejáveis,p.3
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362
363
fuga. A revista Aquarela relata um destes exemplos, ocorridos em 1922.
Diversas pessoas jogavam nos fundos do Café Paulista, quando um dos
apostadores, que havia perdido muito dinheiro no jogo, de arma em
punho, anunciou o assaltou ao proprietário Manoel Costa Júnior. Após
passar “a mão na gaita”, fugiu pela frente do estabelecimento. Em pouco
tempo, a polícia descobriu que ele encontrava-se hospedado no Hotel
Central, indo até lá. Arrombada a porta do quarto, houve intensa troca
de tiro, até que a polícia conseguiu prender o meliante debaixo da cama.
95
Freqüentemente, o Jornal do Povo publicava com ênfase o recolhimento
de subalternos ao xadrez. Em 1933, elogiou o delegado por ter prendido
cerca de 30 indivíduos, entre “desordeiros”, “vagabundos” e “ladrões
contumazes”, colocando-os em atividades comunitárias – “ocupação de
real proveito para a coletividade” – como limpar ruas e reparar estradas
do interior.
96
Nesta época era comum congregações religiosas tentarem “salvar” os
“perdidos”, através de iniciativas que buscavam reformar os
encarcerados, dando-lhes “assistência moral”. Em 1933, a Igreja Metodista
organizou a comemoração do “Dia das Mães” na cadeia, com distribuição
de brindes e “conforto moral”. Para o articulista Ravengar, os discursos
proferidos na ocasião marcaram nova etapa de progresso aos
encarcerados, principalmente o feito pelo Promotor Público: “Quem o
ouviu, como eu, acompanhando o efeito produzido na fisionomia de cada
detento, pode, certamente, aquilatar do valor da cerimônia e ficou
convencido de que, quanto menos, o Capitão Oliveira Mesquita conseguiu
dos presos esse resultado grandemente educador: levá-los à reflexão,
levantar-lhes as vistas para o bem”.
97
Com objetivo semelhante, as irmãs da ordem católica de Nossa Senhora
das Lágrimas realizaram, em 1935, festa em comemoração da ressurreição
cristã na Páscoa, no “recinto lúgubre do cárcere”. O evento foi descrito
pelo monsenhor Wilmar Falcão Jalbarino de forma a exaltar as
possibilidade de redenção:
Em regozijo pelo dia mais feliz dos miserandos encarcerados que, pela primeira vez na
vida tiveram a felicidade inaudita de receberem por intermédio da Sagrada Comunhão,
o Senhor do Universo, esse mesmo Redentor que por amor as criaturas sacrificou-se em
Holocausto para redimir as culpas da humanidade, para poderem, assim, num
determinado dia, gozarem de uma das inúmeras moradas que, após a terrenal, está
reservada a todos aqueles que souberem observar, estritamente, as suas santas leis. E é
por tudo isso que os humildes encarcerados dessa progressiva e moderna cidade, de
coração palpitante, prenhe de encantamento e a transbordar de gratidão, num nobre
gesto de reconhecimento sincero, comovidos ao extremo, agradecem com alma vibrante
a caridade que certas almas lhes prodigalizaram.
98
Apesar das tentativas de salvação através da moral religiosa, a cidade
viu crescer o número de detentos, sem infra-estrutura correspondente.
O cronista O.M. ironizou a falta de veículo apropriado para a condução
de presos. Sonhou com a aquisição duma “viúva alegre”.
99
Em 1939, o
Jornal do Povo denunciou a falta de estrutura da cadeia civil,
principalmente com relação à super-lotação: “Encontram-se ali para mais
de 30 presos. Como se sabe, o presídio cachoeirense não pode conservar-
se longo tempo com tão avultado número de presos”.
100
Nos anos
seguintes, intensificaram as notícias de fugas de presos, como a do
motorista Sabino Machado Pedroso, “de cor preta, solteiro, de 28 anos
de idade”, que respondia processo por crime de furto.
101
Embora tenha aumentado o número de crimes e mesmo a população
carcerária, com a entrada do Brasil na guerra, muito das críticas relativas
a segurança foram amainadas. As agressividades internas voltaram-se
para fora e a própria questão da exigência de melhorias sociais diluíram-
se frente ao “inimigo externo”. Assim como os desfiles triunfais usados
pelo nazismo na Europa para desviar o foco das atenções internas, as
manifestações cívicas por todo Brasil serviram para enaltecer virtudes
nacionalistas, generalizando os brasileiros numa vala comum, como se
não existissem graves conflitos sociais internos. No Rio Grande do Sul,
em especial Cachoeira, as manifestações nacionalistas precisaram ser
justificadas de maneira singular, tendo em vista o grande número de
descendentes de alemães e italianos. Isso pôde ser visto no comício de
95
GUIDUGLI, Humberto Atílio. Assalto à mão armada. Revista Aquarela, n.7, dez/1958
96
JP, 12/3/1933 Noticiário. Pela polícia, p.3
97
JP, 18/5/1933 Pelo encarcerado. Ravengar, p.2
98
JP, 5/5/1935 Uma festa religiosa na cadeia Civil. Mons. Wilmar Falcão Jalbarino, p.1
99
JP, 26/5/1935 Ditador de Cachoeira. Foi um sonho, nada mais. O.M., p.1
100
JP, 6/4/1939 A cadeia civil desta cidade está superlotada, p.3
101
JP, 29/8/1940 Dois presos evadiram-se da cadeia civil desta cidade, p.3 e 24/2/1944
Noticiário. Evasão de preso da cadeia civil, p.3
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365
março de 1942, onde o Jornal do Povo contemporizou a influência nazi-
fascista entre as comunidades ítalo-germânicas, ressaltando suas
contribuições.
102
Paralelamente, as iniciativas de defesa no período belicoso serviam para
aproximar o clima do front, criando áurea de medo e união entre a
população. Exemplos como a organização de comissão anti-aérea,
exercício de blecaute, construção de abrigos e trincheiras, ou até aspectos
considerados sobrenaturais, como a criança cachoeirense que nasceu
com um “V” na fronte, sinal que simbolizaria a vitória dos aliados contra
o eixo.
103
O primeiro exercício de blecaute em Cachoeira ocorreu às 20 h
30 min do dia 20 de outubro de 1942, quando foi dado o sinal para o
escurecimento total da zona urbana e suburbana, através de sirenes,
sinos das igrejas e apitos das fábricas.
104
O articulista Braz Camilo ironizou
o exercício, comparando-o a qualquer outra noite na cidade: “Há dias
que vinha me preparando, e, quando chegou a ocasião, também não vi
níquel. Escuridão completa. Se isso é blecaute, há tempo que estou
nocaute...”
105
7.5. Tipos urbanos: a invenção da subalternidade miserável
Aos subalternos incivilizados e desordeiros, mendigos, vagabundos, pardos
e negros, prostitutas das zonas e pensões, mulheres defloradas ou
desvirtuadas, jogadores contumazes, alcoólatras e beberrões, menores
delinqüentes, apenados e encarcerados evadidos, enfim, a toda espécie
de rafa, aqueles que a elite refugava do convívio social, somava-se os
tipos miseráveis ou diferentes, que perambulavam pelas ruas de
Cachoeira.
Esses personagens urbanos eram comuns desde fins do século passado.
Numa visão alegre e otimista do passado cachoeirense, em várias edições
da revista Aquarela, Humberto Guidugli relembrou alguns desses tipos
esdrúxulos que dividiam espaço com a elite cachoeirense, antes das
transformações urbanas dos anos 20. Um deles era Jacinto Bastos, “preto
como a noite mais escura”, baixo, manco, mais de 60 anos, fisionomia
tétrica, principalmente quando ria, e defeituoso nas costas. Tinha sido
escravo de uma família cachoeirense. Quando caminhava, gesticulava e
gingava espantosamente, enquanto emitia sons cavernosos, dando a
impressão de verdadeiro urso, motivo do seu apelido “Jacinto Urso”. Na
calada da noite, subia nos telhados das casas e soltava gritos estridentes
e em seguida sumia, deixando todos amedrontados. Por conta dessas
brincadeiras, às vezes fazia “descanso reparador” atrás das grades do
“xilindró”.
106
Outro era o “Negro Osório”, profissão ferreiro, que “bebia tanto que seu
rosto preto ficava lustroso e mais aveludado”. Bon vivant, apesar do
pouco crédito nos armazéns, freqüentemente abandonava o emprego e
ia passear em outras cidades durante meses. Ao voltar, apresentava-se
como bacharel, vestindo-se sempre a rigor. Numa ocasião, entrou num
clube fardado de capitão. Sentou-se à mesa e pediu conhaque, iniciando
palestra divertida que chamou atenção de todos. Um dos que faziam
parte da conversa era coronel do exército que achava-se em trajes civis
e conhecia o sujeito. Começou a puxar assunto militar, “rindo com
diplomacia das aperturas das respostas dadas pelo Ludendorf africano”.
Terminada a cena, deu voz de prisão, fazendo com que o falso “capitão”
fugisse pela janela.
107
Na edição do Centenário de Cachoeira do Sul, Braz Camilo recordou do
Bonifácio, maltrapilho que vivia na praça central e freqüentemente falava
sozinho ou perguntava exaltado: “quem manda aqui, hein vagabundo?”,
respondendo na mesma entonação: “Sou eu, o galo velho”. Se dizia
parente de João Neves da Fontoura, a quem chamava de “sem-vergonha”.
Não afastava-se das circunvizinhanças da praça. Era assíduo freqüentador
dos botecos. A gurizada, escondida, chamava-o de “lombo-sujo” ou outros
apelidos escarnecedores, que deixavam-no embravecido. Morreu numa
noite de frio, num dos bancos da praça.
108
102
JP, 19/3/1942 O comício de Cachoeira, p.1
103
JP, 4/10/1942 Reuniu-se, ontem, a Comissão de defesa passiva de Cachoeira, p.2,
10/9/1942 Nasceu com um V na fronte, p.3 e 11/10/1942 No dia 20, terá lugar o
primeiro exercício de “black-out”em Cachoeira, p.2
104
JP, 22/10/1942 Cachoeira teve, anteontem, o seu primeiro exercício de “black-out”,
p.2
105
JP, 22/10/1942 Braz Camilo. Blecaute, p.1
106
GUIDUGLI, Humberto Atílio. Jacinto urso. Revista Aquarela, n.8, mar/1959
107
GUIDUGLI, Humberto Atílio. Assalto à mão armada. Revista Aquarela, n.7, dez/1958
108
CAMILO, Braz. Tipos velhos In: GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira
do Sul, op.cit., 1959, p.15
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A classe perigosa deve ser contida
366
367
Como complemento do saneamento e das transformações urbanas da
zona central, efetuadas no primeiro quartel do século XX, foi preciso
retirar de cena aqueles que não combinavam com a nova paisagem
desejada pela elite. Logo nas primeiras edições em 1929, o Jornal do
Povo abriu espaço para noticiar os miseráveis urbanos, quase sempre
com adjetivos pejorativos e detalhes fisionômicos, na tentativa de traçar
o caráter dos desvalidos e exigir solução das autoridades. Assim como
em outras notícias impugnando os indesejáveis, o jornal iniciava com a
descrição irônica do sujeito, procurando dar tom valorativo da sua ação,
mas tentando mostrar justamente o contrário, com intenção depreciativa
e sarcástica. Exemplo da situação foi a notícia do homem, “de cor preta”,
que dormia ao relento – “tranqüilamente, sem ser incomodado” – na
calçada fronteiriça da usina elétrica, em plena praça José Bonifácio:
“Cerca das 22 h, o grande boêmio se recolhe ao seu ‘aposento’, sobraçando
alguns trapos velhos que lhe servem de travesseiro e coberta. Deita-se e
ali amanhece, completamente sossegado, satisfeito e feliz, rindo-se às
vezes dos que passam tiritando de frio, mesmo encapotados, nestas noites
invernosas”. Por fim, o jornal apelava para a conotação caridosa – “O
infeliz homem não encontrou até hoje quem o abrigasse” – implicitamente
exigindo a solução: “Aí está um caso que bem merece uma providencia
das almas bem formadas”.
109
Nessa mesma época, o JP publicou a prosa de S., intitulada Tipos de rua.
Começava exaltando os miseráveis – “Ó que seja vagabundo!” – para, em
seguida, ligar sua ociosidade à filosofia “fácil” e “barata”, inspirada pela
“intimidade” com a “branquinha”, designação popular da cachaça,
sinalizando o alcoolismo do sujeito. No transcorrer do texto, a questão
da bebida é retomada. O errante vaga sem rumo pela cidade, noite e
dia. Os pontos de seu itinerário eram as “vendas”, onde procurava
“inspiração engarrafada”. Tal atitude afrontava os preceitos morais do
trabalho: “todos os demais bípedes não passam de perversos vagabundos
que enchem a terra com o exemplo humilhante do trabalho. Poderá haver
coisa pior, mais degradante, do que trabalhar?” Ironicamente, o prosista
ressalta a inversão dos princípios que regiam o desocupado: “Vagabundo,
deve, portanto, ser aquele que trabalha, que foge a regra divina da
bem-aventurança paradisíaca, pois que o mundo deve ser, depois do
batismo, a mesma e luminosa mansão edénica a quem nem faltam as
mesmas Evas com a suas macas”. Semelhante inversão de valores ocorria
quando os passantes achincalhavam sua vã filosofia, quando conversava
sozinho “com seus botões” e mostrava “conhecimento profundo da miséria
humana”. Eles não sabiam apreciar a “beleza de suas idéias”, a “grandeza
de seus pensamentos”. Anatematizava, excomungava, execrava e
condenava na mesma medida que os curiosos desdenhavam-lhe. A
caracterização física e o temperamento também serviam para traçar o
perfil do errante. Numa pequena mostra do embate entre moral cristã e
capitalismo, a barba representava “pretensões nazarenas”, pois crescia
“como selva bravia onde o machado e a foice não entram”.
110
A retirada dos subalternos da área saneada e urbanizada do centro é
vista pela imprensa, porta-voz da elite, como necessidade premente.
Para o JP, exemplos como de José Maria da Silva, esmoleiro, tido por
leproso que andava a cavalo mendigando pelas ruas centrais da cidade,
deveriam ser solucionados urgentemente, pois tratavam-se de casos de
higiene pública. O polêmico caso teria despertado a opinião pública, ou,
em outras palavras, a opinião daqueles que concordavam com as
colocações do jornal. Várias pessoas teriam elogiado a denúncia, algumas
indicando outros enfermos que também estariam “atentando contra a
saúde pública”. O caso encerrou quando os funcionários da Higiene
Municipal procuraram o dito leproso, verificando que não sofria de mal
algum. A perda dos dedos, possível sinal da doença contagiosa, teria sido
motivada por acidente de trabalho.
111
Alguns articulistas exploravam o lado trágico da vida errante, numa
tentativa de justificar a atitude dos necessitados e despertar a filantropia.
Coincidentemente, utilizavam iniciais para poder eximirem-se das críticas
por defender os que esmolavam. O.M., em crônica intitulada Nótulas,
publicada em 1933, apelou para a piedade que deveria ter-se frente ao
“doloroso quadro” oferecido pelo aleijado Manoel dos Santos aos que
passavam na Sete de Setembro, principal artéria da cidade, no trecho
entre o Hotel América e a Casa Allaggio. A narrativa traz à lembrança
drama quase lírico, onde os sentimentos íntimos são explicitados através
109
JP, 14/7/1929 Noticiário: Um homem que dorme ao relento, p.1
110
JP, 11/8/1929 Na vida intensa da cidade. Tipos de rua. S., p.4
111
JP, 25/8/1929 Um caso. Esmoleiro José Maria da Silva, p.3, 5/9/1929 Esmoleiro
leproso, p.1 e 8/9/1929 Noticiário. Um esmoleiro leproso, p.3
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
368
369
da compaixão: “O infeliz é posto ali na calçada pela manhã e somente
retirado á noite. Vive de esmolas que lha dão. Comer, nem sempre come.
As moscas varejeiras são a sua única companhia. As vezes, um cão,
igualmente desgraçado, mas talvez possuindo coração melhor do que os
humanos, fica horas inteiras ao seu lado, como uma mancha de sombra
junto a outra sombra...” Por fim, vale-se do conselho cristão – “amai-vos
uns aos outros” – para tentar despertar a complacência alheia. Entretanto,
na solução que aponta, subjaz a finalidade de retirar de cena o indigente,
levando-o para longe das vistas dos transeuntes.
112
O desfecho do caso foi tratado de forma sarcástica pelo jornal. Mafalda
Schneider, então com 4 anos de idade, presenteou o estropiado com uma
cadeira de rodas, acessório que lhe permitiu continuar mendigando no
local. Embora o jornal tenha elogiado a iniciativa – “todos os dias ao
passar pelo coitado enchia-se de pesar ao vê-lo tão infeliz, sem poder
andar, sem quase poder mexer-se, chumbado o dia inteiro aquelas duras
pedras da calçada, na dolorosa expectativa de ganhar tostões para matar
a fome” – indiretamente menosprezou o presente, afirmando que o “pobre
Manoel dos Santos” ganhara seu “trono”.
113
Em outra oportunidade, o mesmo articulista escreveu A tragédia da vida,
onde discorreu sobre Aparício, tuberculoso que pedia esmolas de porta
em porta. Da mesma forma, narrou a cena tétrica, em que o “infeliz
rapaz” padecia de sofrimento, sentado num dos bancos da praça José
Bonifácio. A descrição novamente evoca o lirismo dramático: “Lívido,
escarrando sangue, o desditoso parecia ver chegado o seu instante final,
o instante feliz e abençoado em que a morte o viesse buscar pondo um
fecho derradeiro nos seus padecimentos”. Mas, assim como dois anos
antes, a narrativa esconde o objetivo maior do autor, de atentar para o
possível contágio da doença: “atraídas por aquele espetáculo de dor e
de miséria, achavam-se várias crianças que, desconhecendo o perigo do
contágio do terrível morbus, contemplavam o infeliz, dirigindo-lhe
perguntas sobre perguntas... Destino triste o de certas criaturas! Isto
não é sonho... é realidade pura, meus senhores!”.
114
Esse sentimento fraterno para com os desvalidos eventualmente
desencadeava ações por parte da elite, muito mais numa perspectiva de
mostrar-se caridosa frente aos demais membros da sociedade do que
imbuída de índole generosa, embora a imprensa quisesse demonstrar a
presteza do ágape cristão. Para muitas senhoras burguesas, a caridade
possibilitava a salvação dos pecados mundanos. Na falta do que fazer,
doavam parte do seu tempo para auxiliar pobres e enfermos. A organização
do “Dia do mendigo”, em junho de 1931, é exemplar nesse sentido por
colocar a iniciativa como sendo a “verdadeira caridade”, na medida em
que socorria, na estação “hibernal”, os “verdadeiros pobres e
necessitados”, “velhos e crianças” que não podiam trabalhar e não
dispunham de recursos para adquirir agasalhos, passando “dias e noites
enregelados”, sofrendo as “conseqüências de suas enfermidades”. A
pretensa generosidade cai por terra quando, em outra página do jornal
ou mesmo na edição seguinte, são listados os nomes dos que doaram
algo para os festejos.
115
No cotidiano, a situação de mendicância situava-se no plano dos problemas
a serem solucionados. Assim como no caso da chamada “infância pobre”,
que associou a menoridade ao conceito de marginalidade em situações
de delito e o abandono infanto-juvenil como prenúncio do crime, a
vadiagem também era pensada como caso de polícia. Em 1934, em matéria
sobre o “problema da mendicância” em Cachoeira, o jornal alerta para o
aumento “contínuo” e “alarmante” do número de pedintes, mesmo a
cidade não tendo instituição oficial de amparo à pobreza desvalida. Raro
era o sábado – “dia conveniado para se fazer caridade” – que não se
formasse verdadeiro “cortejo de pedintes” percorrendo as principais ruas
da cidade, muitos desses menores de idade, crianças que, pelo fato de
esmolarem, “por incumbência de seus pais”, acabariam formando caráter
em ambiente “nocivo ao desenvolvimento de suas faculdades morais”,
tornando-se “inúteis” e “prejudiciais” para a sociedade.
116
Nos anos 30, era comum os indigentes considerados “alienados” serem
retirados de circulação e enviados para o hospício São Pedro, em Porto
Alegre.
117
Aqueles que eram tidos por meros vadios, também podiam ter
112
JP, 30/4/1933 Nótulas. O.M., p.1
113
JP, 28/12/1933 O pobre Manoel dos Santos ganhou um trono, p.2
114
JP, 9/6/1935 A tragédia da vida. O.M., p.1
115
JP, 18/6/1931 Dia do mendigo, p.1, 18/6/1931 Noticiário. O dia do mendigo, p.3 e
25/6/1931 Noticiário. O dia do mendigo, p.3
116
JP, 18/1/1934 O problema da mendicância em Cachoeira, p.1
117
JP, 28/4/1935 Noticiário. Alienados, p.2
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
370
371
sua liberdade cerceada, mas em cárcere comum, junto com bandidos,
assaltantes e ladrões. Em 1938, o delegado de polícia, capitão Waldomiro
Carvalho Bernardes, declarou “guerra à vagabundolândia”.
118
Na mesma época, de forma embrionária, começaram a aparecer algumas
soluções alternativas para acabar com o chamado “triste espetáculo da
mendicância”, como a construção de residências próprias para os
mendigos.
119
Essa mudança de atitude deu-se nacionalmente, em parte
como resposta pelo aumento populacional causado pelo incipiente êxodo
rural e pela própria época de guerra, que se avizinhava na Europa, e que
acabou por provocar carestia de gêneros alimentícios principalmente
entre os subalternos. Segundo Cezar Honorato, além dessas razões
estruturais, a expressiva mudança com relação ao cuidado com os
miseráveis fez parte da própria essência do Estado Novo, que primou
pela reforma administrativa, estatizando muito das relações sociais,
fazendo com que o poder público passasse a corrigir, acomodar ou reprimir
tais demandas. Embora o governo federal tenha lançado mão inicialmente
do discurso humanista cristão e alguns técnicos tenham sido oriundos da
militância católica, o varguismo estabeleceu a assistência social como
profissão, para atuar de forma neutra, científica e apolítica, não tratando-
se, portanto, de trabalho caritativo nem missionário. Ao incorporar grande
parcelas da população na condição de subalternidade, Getúlio Vargas
consolidava a imagem de “pai dos pobres”.
120
No início da década de 40, a imprensa cachoeirense engajou-se nessa
nova concepção, através da maior abertura editorial para justificar o
auxílio dos desvalidos. Se ser mendigo era negócio em várias cidade, em
Cachoeira o pobre era mesmo pobre ou “honestamente pobre”, pois
verdadeiramente levava uma vida de cão.
121
Nesse contexto de provar a inocência dos subalternos, o Jornal do Povo
publicou, em julho de 1941, longa descrição dos tipos populares ou “figuras
vulgares” cachoeirenses. Perambulavam pelas ruas centrais a “filósofa”
Virgilina, os bizarros Pedro Lord e Lindor, que discursavam alternando
sanidade e normalidade. O texto relembra antigos moribundos: Rita dos
Cachos; o “preto” Miguel do Balaio, que só saía à noite; Tio Estevão, que
transitava diariamente pelas ruas cantando para “afugentar as tristezas”
e acabou servindo de inspiração teatral para Companhia Ribeiro Cancela;
Capitão Zuavo, “crioulo velho” veterano da Guerra do Paraguai, que
costumava passear pelas ruas, ostentando imponente farda, repetindo
que “Caçapava morre seca e não se entrega!”; Cangica, que ficava violento
quando alguém chacoteava-lhe; João Rabequinha, “índio velho” que,
aos sábados, percorria as ruas da cidade tocando rabeca acompanhado
por bando de cachorros, e aos domingos, fazia visitas, levando uvas do
seu parreiral; ou mesmo Bonifácio, vagabundo difamado porque, quando
embriagado, tornava público particularidades da vida íntima das famílias
tradicionais, descrevendo pormenores dos incidentes e desfiando imenso
“rosário de desaforos” e “podres”. Numa visão distorcida, o jornal colocou
esses personagens como aqueles que “contribuíram para fazer desaparecer
a monotonia das ruas” de Cachoeira, esquecendo do tratamento dado
anos antes.
122
Na esteira da preocupação social com os desvalidos, o governo federal
fundou a Legião Brasileira de Assistência (LBA). Inicialmente, órgão
destinava-se a amparar as famílias dos pracinhas que lutavam na Itália,
mas rapidamente foi transformada na “grande agência de atendimento
às necessidades dos miseráveis e desvalidos”.
123
A sucursal cachoeirense
118
JP, 12/5/1938 Ocorrências policiais. Guerra à vagabundolândia, p.3
119
JP, 15/5/1938 Noticiário. Está em vias de ser resolvido o problema da mendicância
na cidade, p.3
120
HONORATO, Cezar, Estado Novo e cidadania: a assistência social em discussão. In:
Revista Anos 90, Porto Alegre/RS: PPG História UFRGS, n.8, dez/1997, p.14-29
121
JP, 17/12/1939 Em Cachoeira, hoje em dia, nem ser mendigo é negócio, p.6
122
JP, 27/7/1941 Os tipos populares de Cachoeira, p.3
123
HONORATO, Cezar, Estado Novo e cidadania: a assistência social em discussão. op.cit.,
1997, p.26. Segundo ele, o New Deal do presidente norte-americano Roosevelt foi a
grande inspiração para a América Latina, em especial para o Brasil, como forma de
enfrentamento da crise de 1929. até então, a participação do Estado brasileiro no
atendimento às demandas sociais, particularmente aos excluídos, variava de pouca,
como na educação, a nenhuma, como na saúde, habitação, alimentação, emprego e
assistência social. De certo modo, a emergência da pacificação social foi uma resposta
conservadora para os problemas oriundos do processo de urbanização e curso, na
medida em que distribuía “migalhas sociais” e fazia com que trabalhadores e não-
trabalhadores acreditassem no caráter democrático e igualitário do capitalismo (dupla
alienação). Mesmo longe do pleno reconhecimento do direito à plena cidadania, as
mudanças do Estado Novo, no que se refere ao enfrentamento da miserabilidade e
das demandas sociais, passaram a fazer parte da realidade política brasileira como
um todo, desde então.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
A classe perigosa deve ser contida
372
373
124
PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira Histórica e Informativa.
op.cit., 1943, p.314
125
JP, 10/1/1943 Notas locais, p.4
126
JP, 19/3/1944 A esquina das almas perdidas, p.6 e 22/1/1947 Diversas. Uma esmola
por amor de Deus..., p.3. De acordo com cálculo da Fundação de Economia e
Estatística do Rio Grande do Sul [www.fee.tche.br - acessado em 12/4/2006], Cr$
5,00 em janeiro de 1945 corresponderiam atualmente a R$ 6,13
foi fundada em 11 de novembro de 1942, sob a presidência de Eni Barreto
Carlos e staff constituído por membros oriundos da Associação do Comércio
e Indústria de Cachoeira: Ivo Becker (secretário), João Carlos Xavier
(tesoureiro), Jaime Machado, Araci Machado Alves, Moisés Lima e Carlos
Müller Sobrinho (vogais).
124
Para o jornal, a iniciativa representava alçar
Cachoeira ao patamar de cidade “adiantada”,
125
mais por retirar os
indigentes das ruas centrais do que qualquer outra coisa, atitude reforçada
com a posterior organização da Secretaria de Assistência (SCAN), resposta
municipal para o aumento da mendicância.
As críticas foram direcionadas para o fato de que muitos dos subalternos
fichados na repartição acabavam mendigando nas ruas após receberem
auxílio. Em março de 1944, o jornal publicou matéria intitulada A Esquina
das Almas Perdidas, denunciando “pardieiro” existente na esquina das
ruas Quinze de Novembro com General Osório, em pleno centro da cidade,
onde estariam vivendo 9 mulheres, 13 crianças e 4 homens, em completa
miserabilidade, “dormindo no chão, tendo como coberta a luz das estrelas,
que se escoa através dos buracos de um teto prestes a desabar, e donde
as tábuas do forro, executando equilibrísticas ginásticas, se balançam
como verdadeiras espadas de Demócles”. Segundo a reportagem, somente
um dos moradores tinha emprego. As crianças é que “salvavam” a situação,
pechinchando pelas ruas da cidade. A SCAN atendia um dos moradores,
repassando-lhe em torno de “cinco cruzeiros semanalmente”, quantia
insuficiente para comprar pão e leite diariamente para os 26 indigentes.
126
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
374
Parte final
Considerações finais
Defendi, até aqui, a tese de que nos anos 1930-45, os outsiders, ao
ocuparem o espaço urbano central de Cachoeira do Sul, em especial o
espaço compreendido no entorno da praça José Bonifácio, desorganizaram
a ordem imposta na cidade pela elite, segundo a visão do Jornal do Povo.
Objetivei mostrar como o JP construiu uma dada imagem da cidade de
Cachoeira do Sul no período focado e das elites que nela habitavam e
como esse veículo de comunicação narrou a organização e a
desorganização da cidade neste breve período de tempo. Nessa trajetória
destaquei como a elite local construiu esse espaço urbano para si,
principalmente na metade final da década de 20 como diferenciou-se,
através do fazer cotidiano e como lidou com as interferências dos
outsiders. Verifiquei, assim, de que forma a distinção social foi se
refletindo nas práticas cotidianas da elite cachoeirense em contato com
os grupos subalternos que pouco-a-pouco migravam para a cidade, ao
longo dos anos 1930-45. Procurei, desse modo, entender as práticas
cotidianas da elite local e a apropriação que os subalternos fizeram desse
espaço porque isso possibilitou levantar parte do véu que encobria o
embate simbólico existente nessas relações, tornando mais claro perceber
a sociodinâmica da estigmatização que a elite lançou sobre os migrantes
subalternos ou outsiders.
Partindo da idéia de nostalgia e idealização do passado pela elite
cachoeirense nos anos 80-90, fui em busca da cidade que as elites falavam
quando se voltavam para o passado através das páginas do jornal, do
ambiente rememorado pelas reportagens, editoriais e pelos cronistas
habituais, do que caracterizava a cidade de Cachoeira do Sul (re)lembrada
para despertar tal sentimento de forma generalizada entre a elite
cachoeirense, do que se fazia na época e deixou-se de fazer
posteriormente, a ponto de despertar tanta saudade.
Para entender essas questões, analisei inicialmente as duas primeiras
décadas do surgimento do Jornal do Povo, as implicações político-
partidárias deste porta-voz da elite cachoeirense que, ao adotar a postura
“oficialista” durante o período Vargas, reproduziu para a sociedade local
a ideologia própria do momento histórico em questão, como os discursos
em favor dos interesses da minoria moradora do centro urbano, em
detrimento aos subalternos que invadiam a cidade, com críticas
sistemáticas, discurso esse visto nos mais diferentes aspectos.
Em seguida, analisei a ocupação luso-brasileira do território gaúcho, em
especial o cachoeirense, feita através das sesmarias doadas aos que
defendiam o território com armas em punho ou mesmo de pequenos
lotes a famílias açorianas para alimentar as tropas. Também a ocupação
posterior dos imigrantes alemães e italianos, dentre outras etnias, que
exploraram gêneros alimentícios destinados ao mercado interno, algo
que desencadeou profundas mudanças no desenvolvimento econômico
do sul do país. Foram eles que desenvolveram a cultura rizícola na região,
possibilitando a emergência da ordem urbano-industrial no município,
concentrado na sede, através de investimentos privados e públicos. A
transformação urbana em fins dos anos 20, possibilitada pela pujança
agrícola, desencadeou verdadeira revolução que fez da zona central palco
do confronto simbólico entre aqueles que pertenciam a elite, que
buscavam diferenciação social através do refinamento dos hábitos
praticados no dia-a-dia, e os subalternos, que passaram a ocupar o espaço
de forma fremente nos anos 30 em diante.
Seguindo esse raciocínio, analisei os aspectos econômicos envoltos na
Cachoeira das décadas de 30-40, momento em que o perfil demográfico
se transformou gradativamente, com a prevalência do urbano sobre o
rural, potencializado pelo processo de industrialização em curso, iniciado
em fins do século XIX e nas duas primeiras décadas do século XX, mas
consolidado durante o Estado Novo e nos anos subseqüentes.
Industrialização essa voltada essencialmente aos mercados locais,
atendendo consumidores através de diversificada produção, que cresceu
em ritmo acelerado, atraindo cada vez mais migrantes para as cidades.
Foi nesse contexto que Cachoeira do Sul acabou beneficiada, tendo
crescimento econômico elevado, impulsionada que fora por abastecer o
mercado interno, em grande parte regional, e viu muitas fábricas,
principalmente na produção de gêneros alimentícios, em especial o arroz,
instalarem-se em seus limites. A industrialização gerou impacto na
ampliação do comércio e serviços, além de desencadear necessidades
em termos de infra-estrutura.
O ritmo dessas mudanças econômicas e populacionais afetaram Cachoeira
do Sul nas décadas seguintes e influenciaram sobremaneira as
modificações do espaço urbano cachoeirense. Com as reformas
concretizadas em fins dos anos 20, Cachoeira se tornaria sinônimo de
cidade progressista para os padrões da época, como se industrialização e
urbanização completassem a idéia de modernidade nesse tempo.
Entretanto, tais reformas excluíram a população subalterna do processo,
segregando-os territorialmente, incorrendo na desigualdade espacial.
Tendo como porta-voz o Jornal do Povo, a elite local exigiu telefones,
força motriz, rodovias, ferrovias, navegação plena no rio Jacuí e porto
para escoar a produção dos rizicultores, intervenção estatal para
financiamento da produção de arroz; promoveu a Festa do Arroz, cujos
festejos tiveram caráter eminentemente elitista, como o concurso da
escolha da rainha; criticou o crescimento populacional e a conseqüente
falta de espaço para abrigar os migrantes subalternos, resultando na
expansão dos subúrbios, algo que teria enfeado o município e feito
aumentar impostos; viu-se obrigada a ampliar os serviços de saúde
curativa, com a ampliação do hospital para abrigar doentes pobres, e
preventiva, tratada como caso de polícia por envolver desordens e
conflitos; lutou pela manutenção do espaço urbano central frente a
invasão dos “bárbaros”, com reclames sobre os aspectos fisionômicos
das praças e arquitetura predial; defendeu a varrição das ruas, iluminação
pública e ordenação do espaço.
Auxiliando na consolidação da infra-estrutura citadina central, os editores
do Jornal do Povo defenderem veementemente ideais elitistas, também
em seus aspectos cotidianos: na forma diferenciada em tratar as
congregações religiosas; nas regras de convívio e etiqueta ao exigir
elegância dos freqüentadores do espaço público, em especial das praças;
na valorização das recepções oferecidas em ambientes privados; no
empolamento aristocrático dos eventos sociais; na sobrevida e
perpetuação da diferenciação social através dos relacionamentos afetivos;
nas campanhas em nome da moralidade, condenando atos desonrosos;
na exigência de reverência aos mortos; na distinção da forma de noticiar
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Considerações finais
378
379
falecimentos. Nessa valoração das atividades cotidianas elitistas, o jornal
incentivou banhos ao ar livre e esportes praticados em público, lazer nos
cafés e confeitarias, cinemas, teatros e recitais, clubes e sociedades,
bailes e carnavais. Ao mesmo tempo, criticou o entretenimento dos
subalternos, como circos e parques de diversões, culpando-os pela
desordem e turbulência.
Foi narrando os outsiders que o Jornal do Povo mostrou sua face mais
elitista. Imputou aos deserdados os problemas que tinham de ser mantidos
fora do cotidiano da sociedade dita civilizada, pois representavam
insegurança, crime, barbárie e perdição, portanto ameaçavam. Os
subalternos não tiveram rosto ou voz na imprensa. Foram notícia ao
quebrarem a rotina da vida urbana da elite. Apareceram no jornal de
forma desvalorizada. A prostituição incomodava pela proximidade dos
prostíbulos e pensões com a área sanada. A mendicância foi vista como
sinônimo de vagabundagem. Condenou-se os atos incivilizados na mesma
medida em que se praticou a discriminação racial. Ocorrências policiais
motivaram advertências disciplinadoras vinculadas através da imprensa.
O moralismo simulado da elite abundou nas páginas do JP através da
aversão às desavenças, aos crimes em menor ou maior grau, aos furtos,
ao alcoolismo ou ao vício da jogatina. Esses pressupostos discriminatórios
atingiram indistintamente a “infância pobre”, pois viu-se no abandono
moral e material dos menores subalternos o caminho natural para a
criminalidade. O Estado policialesco foi instaurado para conter os “de
baixo”, mantê-los afastados do dia-a-dia do círculo social da elite. Mesmo
os tipos miseráveis ou diferentes, que perambulavam pelas ruas de
Cachoeira, sofreram desse desdém. Eles não combinavam com a paisagem
desejada pela elite. Portanto, foram defenestrados pelo Jornal do Povo,
com adjetivos pejorativos e detalhes fisionômicos, na tentativa de traçar
o caráter dos desvalidos e exigir solução das autoridades.
Foi desta forma que tentei mostrar o impacto dos outsiders na ocupação
do espaço urbano central cachoeirense, incorrendo, segundo o Jornal do
Povo, na desorganização da ordem imposta pela elite local. Entendo que
essa “invasão bárbara” foi tão avassaladora para a elite que esse período
permaneceu na memória das gerações seguintes.
Nos anos 1980-90, a nostalgia que acabou potencializada em Cachoeira
do Sul – através de crônicas, charges, reportagens e demais matérias
publicadas no jornal – fora posto como algo generalizado para toda
coletividade e não somente de determinada parcela da população, como
era de fato.
Como mostrei no Prólogo, através da análise textual do JP, a nostalgia
dos anos 80-90 não cessa de remeter-se a uma suposta crise econômica
local, no sentido de perda da posição cachoeirense em relação às demais
cidade do Estado, crescimento menor que o esperado e que causaria,
como conseqüência, certa frustração entre os da elite, senão aqueles
estabelecidos dos anos 30-45, mas ainda assim uma elite local, seja ela
cultural ou informacional.
Entendo que o impulso maior da nostalgia, potencializada através da
imprensa, não seja diretamente a chamada crise econômica e hierárquica
de Cachoeira. Ponho em dúvida o fato dos formadores de opinião insistirem
em buscar o passado perdido por quererem maior crescimento econômico,
a volta dos tempos áureos, conseqüência dum altruísmo, desprendimento,
abnegação, filantropia, amor ao próximo, nem porque o retorno da
abastança econômica permitiria justiça social, melhorando a vida dos
moradores da periferia para amansá-los, para que não provoquem a
violência que tanto amedronta a elite. Uma em razão do individualismo
moderno; outra porque o crescimento econômico atrairia migrantes para
a região, provocando inchaço populacional, desencadeando problemas
urbanos como a violência.
Na minha opinião, no recôndito desse sentimento nostálgico está a perda
do espaço público, ocupado preferencialmente pela elite, espaço outrora
pasteurizado, livre dos incômodos dos subalternos. O que incomoda esses
nostálgicos é a diversidade urbana, imagem não-homogênea que distancia-
se da cidade dos anos 20, imagem que tomou forma mais aproximada da
fisionomia dos outsiders, dos migrantes subalternos que invadiram
Cachoeira nas décadas subseqüentes a 1930, imagem da cidade com
problemas comuns a outras tantas médias e grandes aglomerações. Os
questionamentos desses nostálgicos dos anos 80-90 apontam para esse
urbano perdido no passado. Foi em razão disso que procurei entender a
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Considerações finais
380
381
diluição do espaço público nos anos subseqüentes a 30-45, quando tais
imagens do urbano começaram a tornarem-se díspares e,
conseqüentemente, a elite repugnou a convivência com os não-civilizados.
De uma forma geral, é a incapacidade que muitos têm de lidar com o
diferente, o estranho, aquele que não age conforme o esperado, conforme
a chamada maneira “civilizada”. Muito dessa incapacidade de lidar com
imagens díspares, conflitantes e paradoxais pode ter razão no isolamento
geográfico com relação a outros centros urbanos, devido ao pouco fluxo
de passagem de pessoas estrangeiras. Assim, os nostálgicos de Cachoeira
do Sul teriam reduzida a capacidade de aceitar a diversidade, num típico
conservadorismo retrógrado, que impede maiores liberdades de
movimento, arejar as mentalidades, oxigenar atitudes e opiniões.
Diferente dos grandes centros urbanizados, das metrópoles que
possibilitam aos indivíduos serem libertos para agir, embora dentro de
certos limites e restrições.
Neste sentido, o Jornal do Povo sintetiza o espírito dos nostálgicos
cachoeirenses, através da incapacidade de lidar com pensamentos
contrários aos seus, num discurso que se diz democrático, mas que esconde
a unicidade de opinião, numa realidade diária de jornalismo
sensacionalista e mexeriqueiro, que alimenta exaustivamente picuinhas
pessoais.
Como porta-voz da elite, o jornal reproduz o chamado olhar historicizante,
na medida em que enxerga o passado de maneira distorcida, que reproduz
em suas páginas concepções que dão a idéia de retorno mitificado a um
certo passado, dito de glórias, mas que na verdade escondem sentimentos
excludentes, visto exaltar um momento em que cada um sabia seu lugar
na sociedade e respeitava certos limites simbólicos. Aqui reside a diferença
de olhar o passado. Tentei dar um salto em direção ao passado para
entendê-lo com relação ao presente. Por essa razão revelar a perspectiva
histórica da elite, que enxerga no passado somente uma tentativa de
retorno do tempo em que dominava o espaço público.
Me apropio aqui da análise do historiador Jacques Le Goff sobre a memória
coletiva e sua relação com a história, quando diz que é possível entender
o quanto no resgate do passado da comunidade confrontam-se versões
diferentes, algumas mais impositivas, outras mais recessivas, todas
lutando pelo poder de enunciação da verdade histórica, pela própria
sobrevivência e promoção da sua identidade. Segundo ele, entender o
passado não é somente algo que se conquista diariamente, mas algo que
serve como instrumento e objeto de poder. Nesse sentido, a prioridade
daqueles que se debruçam sobre a história deve ser lutar pela
democratização da memória social, com objetividade científica.
1
Em
outras palavras, trabalhar de forma que esta [re]memorização sirva para
libertar e não para tornar a comunidade ainda mais servil.
1
LE GOFF, Jacques. História e memória. op.cit, 1990
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Considerações finais
382
383
Anexos
I. Proprietários das primeiras casas de alvenaria no núcleo urbano de
Cachoeira, no início do século XIX
Antônio Gomes Pereira, Benjamin Grearez, Cristiano Fioravante, Domingo
José da Rosa, Francisca Laurinda da Cunha, Francisco Zenkner, Henrique
Keil, Franklin da Silva Ferreira, Herminia Godoy Ilha, Jaques Bidone,
João Nascimento da Silva, João T. Pohlmann, José Martins Beltrão Júnior,
Juvêncio Inácio Soares, Max Lubke, Miguel Dias de Moura, Pedro Gaspary
e Rita Joaquina de Alencastro.
Fonte: GUIDUGLI, Humberto Attilio. Centenário de Cachoeira do Sul,
1959
II. Relação de compradores das terras da Quarta Colônia em 1880
Antônio Bandiera, Antônio Caprioli, Antônio Motter, Bortolo Marzutti,
Bortolo Sichel, Constancio Pavanatto, Francisco Furlan, Francisco
Wollmann Júnior, Henrique Ceschini, Henrique Lorenzatti, Jacob
Tonellotto, Jacob Unfer Junior, João Arcari, João Fardin, João Luchese,
João Pradella, João Sartori, Lourenço Caprioli, Moderat Biscaglia, Nicolau
Furlan, Paschoal Zafanello, Patrício Unfer, Pedro Cimando, Pedro Negri,
Poliferino Fuzer e Victorio Chiste.
Fonte: NEUMANN, Pedro Selvino. O impacto da fragmentação e do formato
das terras nos sistemas familiares de produção. Tese de Doutorado
[orientador Carlos Loch], Florianópolis/SC: Universidade Federal de Santa
Catarina. PPG-Engenharia de Produção, 2003 [disponível em http://
teses.eps.ufsc.br/defesa/pdf/4824. pdf, acessado em 3/1/2006].
III. Relação das lavouras de arroz irrigado em 1911
Alberto Klatte, André Kochenborger, Arlindo Leal, Baptista, Oliveira &
Cia., Barros & Filho, Benjamin Peixoto, Carlos Gehrke, Carlos Grahl, Carlos
Karsburg, Carlos Pötter, Carlos Pötter & Filho, Carlos Raadatz, Danzmann
& Lara, Dutra & Rocha, E. Mostardeiro, Eduardo Streck, Emílio Mückler,
Ernesto Pertille, Fernando Borowsky, Fidelis Prates, Freytag & Cia.,
Germano Böck I, Germano Böck II, Germano Seehaber, Gustavo Bülow &
Cia., H. Cesquini & Cia., H. Friedrich, J. Fortes & Cia., J. Weber & Filho,
J.M. Carvalho Bernardes, Jacob Scheidt, João Hatschbach, João Sthal,
Jorge Franke, José Maria de Almeida, Karsburg & Braatz, Leitão, Franke
& Cia., Libindo Quoos, Loureiro & Cia., Luiz Finger, Luiz Köhler, Luiz
Massierer, Manoel José de Moraes, Manoel José de Morais, Max Lubke,
Schaurich & Cia., Mostardeiro & Cia., Müller, Diefenbach & Wilhelm, Neves
& Torres, Nunes & Preussler, Pedro Kruge, Pötter & Ferreira, Preussler &
Pötter, Preussler & Schultz, Reinaldo Drews, Reys & Irmãos Moraes, Ricardo
Müller, Roberto Danzmann, Silva & Gama, Stumpf & Rohde, Vargas &
Lara, Vicente Pigatto, Virgilio Carvalho & Filho, Virgílio Carvalho & Irmão,
Wollmann & Cia. e Xavier & Moura
Fonte: Esboço de Geographia Agrícola e Industrial do Município de
Cachoeira, Organizado pela Seção de Estatística, 1911
IV. Sobrenomes de lavoureiros, industriais, comerciantes e moradores
de Cachoeira, da zona urbana, no centro e na zona alta, no final dos
anos 20
Ache, Allagio, Alves, Bacchin, Barbosa, Barcelos, Bartmann, Barz, Batomé,
Bauer, Beskow, Bidone, Böck, Bopp, Borowsky, Braatz, Braum, Breitmann,
Breyer, Bülow, Burmeister, Calderaro, Camassetto, Carvalho da Fonseca,
Castagnino, Cauduro, Cazarotto, Cesquini, Coelho Leal, Costa, Cruz Lima,
Cunha, Cunha Carlos, Cury, Cutz, Danzmann, Dauzacher, De Franceschi,
Decker, Dickow, Diefenbach, Drews, Eggers, Engel, Fabini, Falkenbach,
Feldmann, Ferreira, Fialho, Figueiredo, Finger, Fischer, Flasch, Fontoura,
Franke, Freytag, Friederich, Friedrich, Galiza, Gama de Bem, Gappmayer,
Gaspary, Gazzaneo, Gehrke, Ghignatti, Goltz, Grahl, Gregory, Hatschbach,
Hausen, Heinen, Homrich, Ilha, Jungbluth, Kämpf, Karsburg, Kern, Klatte,
Kochenborger, Köhler, Krahe, Krieger, Kruge, Lara, Lauer, Lemos,
Libonatti, Lima, Linn, Lisboa, Livi, Lopes, Lubke, Lucas, Luz de Carvalho,
Massierer, Matte, Meneghello, Mernak, Minssen, Möller, Moraes, Motta,
Moura, Mückler, Müller, Neves da Fontoura, Nogueira da Gama, Oliveira,
Paschoal, Patta, Pereira da Silva, Pertille, Pertilli, Pigatto, Pohlmann,
Port, Pötter, Preussler, Quambusch, Quoos, Raadatz, Ramos Chaves,
Rangel, Ribeiro, Riccardi, Ritter, Rodrigues, Roesch, Rohde, Rosek, Rother,
Rudolph, Sampaio, Santos, Saueressig, Scarparo, Schaurich, Scheidt,
Schenkel, Schneider, Schott, Schroeder, Schultz, Schwab, Scopel,
Seehaber, Seibel, Sesti, Simões, Skolaude, Smidt, Soares, Sperb, Sthal,
Stracke, Strassburger, Streck, Stringhini, Stumpf, Tesch, Tischler,
Traunfellner, Trommer, Valli, Valli, Vicco, Vieira, Weber, Werlang,
Wiebbeling, Wilhelm, Willig, Wolff, Wollmann, Zanetti e Zilberman.
Fonte: MÓR, João Carlos Alves. A minha Cachoeira. Porto Alegre: Martins
Livreiros, 2001
V. Relação nominal dos fundadores e presidentes do Clube Comercial,
dos fundadores, das madrinhas no batismo dos barcos e tripulação do
Grêmio Náutico Tamandaré
Fundadores do Clube Comercial: José Carlos Barbosa, Manoel Fialho de
Vargas, Aracy Machado Alves, Nelson da Fonseca Vieira, José Gomes de
Oliveira, Octacílio Ribas, Pedro Pinheiro, Mário Ilha, Waldemir Gama,
Francisco Cintra, Jacinto Dias, Aldomiro Franco e João Minssen.
Presidentes do Clube Comercial, até 1945: José Carlos Barbosa, Aracy
Machado Alves, Mário Godoy Ilha, Cyro da Cunha Carlos, Reinaldo Roesch,
Ary Pillar Soares, Vicente Oscar Valli, Aristides Moreira, Pedro Emílio
Breyer, Orlando da Cunha Carlos, Carlos Fonseca Ghignatti, João Santos,
Rodrigo Martinez Filho e Fabrício Pillar Soares.
Fundadores do Grêmio Náutico Tamandaré: Adail Machado de Oliveira,
Mário Ghignatti, Manoel Abreu, Decalssê Bastos, Mena Meirelles, Dante
Machado de Oliveira, Rodolfo Gonçalves, Edgar Amaro, Jayme Porto e
Sebastião Alario.
Madrinhas no batismo dos barcos, em 21/11/1937, do Grêmio Náutico
Tamandaré: Ione Maria Becker (filha de Ivo Becker), Odyr Franco (filha
de Aldomiro Franco) e Yone Roesch (filha de Reinaldo Roesch). Como
madrinha do estandarte da associação, foi escolhida Irene Ilha (filha de
Mário Ilha). A tripulação foi constituída por: Armindo Gerhardt, Sylvio
Silva, Otelo Zinn, Victor Gremmich e Sigefredo Carvalho Ferreira.
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Anexos
386
387
Fonte: Jornal O Commercio, 9/7/1913 Festa Inaugural Italiana Príncipe
Umberto. Diversas Notas, p.1, SCHUH, Ângela & CARLOS, Ione Sanmartin.
Cachoeira do Sul, Em busca de sua história. Porto Alegre: Martins Livreiro,
1991, p. 155-173 e 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio
Branco, 1896-1996, Cachoeira do Sul: Gráfica Jacuí, 1996.
VI. Relação nominal de profissionais liberais cachoeirenses em 1940
Médicos: A. M. Albuquerque, Ângelo Carlos, Artur Decker, Emanuel
Pedrosa, Ervin Wolfenbüttel, Erwin Hirtz, Guimarães Fernandes, Henrique
Barros, Honorato de Souza Santos, Irineu Vasconcelos, J. Kovacs, José
Félix Garcia, Milan Krás, Nelson Rocha, Rubem de Azevedo Costa e
Menegotti, Sílvio Scopel e Tito Osório Torres.
Dentistas: Aluízio Becker, Carlos Noll, Carlos Pereira Krieger, Ernesto
Matte, Ervino Leusin, Fernando Hügel, Guilherme Preuss, João Brandt,
José M. de Fretas, Manoel Barcelos Gomes, Mário Barbosa, Pedro Paulo
Fernandes Barbosa e Rodolfo Osvaldo Scheffel.
Parteiras: Ana Luiza Reichert, Alma Becke, Maria Basso e Verônica
Preussler.
Engenheiros e construtores: A. A. Simões Pires Jr., Dahne, Conceição &
Cia., Julio Rieth e R. Jagnow Filho.
Advogados: Antônio José Ribeiro da Silva, Ari Pilar Soares, Aristides
Moreira, David Barcelos Neto, Fabrício Pilar Soares, Glicério Alves
Vespasiano Pinheiro, Jaime Machado, José Lobato Figueiró, Mario Godoi
lha, Orlando Carlos, S. German e Sílvio Dutra de Albuquerque,
Fonte: PORTELA, Vitorino; PORTELA, Manoel de Carvalho. Cachoeira
Histórica e Informativa. Cachoeira: Tipografia Portela, 1940, p.152 e
266-274.
VII. Relação nominal dos doadores para a construção da igreja São
José, em 1915
Alvaro Xavier da Cunha, Ambrosino Cidade, Ambrosino Porto Monteiro,
Anathaniel Gomes Lisboa, Antonio Manoel de Lima, Arnoldo Fischer
Sobrinho, Arnoldo Tischler, Avelino Cavalheiro, Clarinda Dias Lopes,
Clotilde Fonseca, Cyro C. Carlos, Dinarte Magalhães, Dioclecio Benvenuti,
Emilio Pohlmann, Francisco Bifano, Francisco R. Pereira, Gasparina
Oliveira de Loreto, Graciolina Alves, Hermínia F Porto, Iracema Lara,
Irtilia Vieira, João Antônio Möller, João Correia, João L Pinheiro, Joaquim
F. Siqueira, José Herbstrith, José Oliveira, Julio Lindner, Juvenal Simões,
Leopoldina Herbstrith, Leopoldo Souza, Luiza Nouals Machado, Manoel
Prates, Marciano Bonifácio e Silva, Marfizia Amelia Pinheiro, Maria Aldina
de Azambuja Figueiró, Maria Antonieta G.de Castro, Maria Arminda Motta
Barreto, Maria Barreto Costa, Maria Candida Fialho de Castro, Maria
Gabriela Barreto, Maria Piedade Leão, Miguel Ribeiro Freire, Miloca Albino,
Octavio Simões, Orico B. Benvenuti, Ottília Almeida, Pedro Cunha, Pedro
Gaspary, Pedro P. Fortes, Perminia Barreto, Roberto Danzmann, Roberto
Pohlmann e Thereza Araújo.
Fonte: Jornal O Commércio, 17/2/1915 Offertas para a Capella de São
José, p.3 e 5/5/1915 Capella de São José, p.3
VII. Relação nominal dos doadores para reformas na igreja São José,
entre 1938 e 1941
Nas reformas subseqüentes, constam: Acelino Marques Cunda, Achylles
Figueiredo, Adalberto Sacarello Ferreira, Adelina Lindmeyer Barreto,
Afonso Doebber, Albina Fontoura, Alvarino Cunha, Amalia B. Rosa, Antero
Sarmento, Antonio Bordignon, Antonio Cauduro, Antonio Larger, Aracy
Alves, Arthur Moreira, Belizarda Jardim, Berta de Abreu Lima, Celina
Gonçalves, Charbel Kemmel, Dinah Néri, Donatila Ilha Martins, Eduardina
Quites Camboim, Einaldo Ernino, Eugenio Simões, Feliciano da Rosa,
Fernando Nunes de Souza, Fioravanti Trevisan, Frontino Cunha, Georgina
Antunes, Guilhermina Becker, Henrique Müller de Barros, Herminia Vieira
da Cunha, Ignacia Amelia Oliveira, Ilza Lehmann Vasconcellos, Imerio
Ceratti, Isoar Moreira, Jacob Casarotto, João Dinarte dos Santos, João
Fontanari, João Francisco da Silveira Santos, João Thomaz Scott, José
Curi, José Garibaldi E. Simões, José Trajano da Rosa, Julia Pessolano
Pereira, Juvencio Soares, Lourival Andrade Leite, Luiz Botari, Luiz
Scortegagna, Mafalda Cunha Schneider, Maria Isaltina Rebello, Maria
Leonor Souza, Maria Pereira, Mathias Velho, Miloca Tischler, Notaridia
Felix Salzano, Odemira Oliveira da Fontoura, Odino Bachin & Cia., Olimpia
Borges Costa, Pedro Paulo Fernandes Barbosa, Prenda Freitas Araújo,
Querida Pereira, Rosa Fogliatto, Ruth Py Bello, Salvador Figueiredo de
Brum, Severino Fuentefria, Silvia Gama de Bem, Sinhá Herbstrith, Thereza
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Anexos
388
389
da Rosa Springler, Virginia Cunha, Virginia Py Sarmento e Waldemar Cunha.
Fonte: Jornal O Commercio, 17/8/1938 Ampliação e Reforma da Igreja
de São José, p.1, 21/2/1940 Ampliação e Reforma da Igreja de São José,
p.4, 6/4/1938 Igreja de São José, p.2, 28/2/1940 Igreja de São José,
p.4, 27/3/1940 Obras da Igreja de São José, p.3, 6/3/1940 Pró-ampliação
e reforma da Igreja de São José, p.1, 24/4/1940 Pró-ampliação e reforma
de um templo, p.1, 8/5/1940 Mais contribuições em prol da Igreja de
São José, p.1, 15/5/1940 Igreja de São José, p.1, 5/6/1940 Pró obras da
Igreja de São José, p.2, 26/6/1940 Em prol do levantamento da Cumieira
da Igreja de São José, p.1, 24/7/1940 Legionários de São José, p.1, 31/
7/1940 Em prol da Igreja de São José, p.1, 14/8/1940 Para melhoramentos
da Igreja de São José, p.2, 4/9/1940 Legionários de São José, p.2, 18/9/
1940 Legionários de São José, p.1, 5/2/1941 Remodelação e ampliação
da Igreja São José, p.1, 9/7/1941 Igreja de São José, p.2 ,23/7/1941
Imagem de São José, p.1, 12/11/1941 Igreja de São José, p.3. Dados da
exposição “Fundação da Capela de São José”, Arquivo Histórico Municipal
de Cachoeira do Sul
IX. Relação nominal dos doadores do púlpito para a igreja de Santo
Antonio, em 1940
De 100$000 réis: Antonio Cauduro, Antonio Penna, Attilio Mainieri,
Catharina Polito, Firma Trevisan, Henrique Comassetto, Irmãos Franceschi,
João Fontanari, Maria Libonatti, Maximiliano De Franceschi, Nicolau
Alaggio, Pedro Paulo Penna e Rosa Maria Calderaro,
De 50$000 réis: Augusto Rosa, Ignez Bonugli, Nicolau Salzano, Odino Bachin
& Cia. e Raphael Dini,
De 30$000 réis: Aristides Germani Filhos e Marietta Ceschini;
De 20$000 réis: Caetano Vidal, Darcy Paschoal, José Salerno, Lilinha P.
Pezzi, Maria Caronello Alaggio, Pasqual Gazzaneo, Santa Costa, Thereza
Sorio, Vicentina Sorio e Vva. Raphael Cetrato;
De 10$000 réis: A Alaggio, Braz Patta, Aldo Penna, Arthur Meneghello,
Catharina De Franceschi, Dorvalino Fontanari, Etelvina Biffano, Herminia
Carro Thomaz, Imerio Ceratti, Irine Livi, Alvarino Paschoal, Lia Livi Ilha,
Luiza Alaggio Albuquerque, Marrone, Luiz Casarotto, Miguel Faccin,
Norberto Penna, Pedro Stringuini, Raphael Naro, Theodoro Piccoli e Vva.
Assunpta Guidugli,
De 5$000 réis: Adelia Costa Serafim Riccardi, Albino De Santio, Amelio
Riccardi, Angela M. Riccardi, Angelino Riccardi, Caetano Patta, Celeste
Cantarelli, E. Gabriel, Elvira Pedreschi Elesbão, Ferrucio Livi, Hugo
Stringuini, Ida Livi, João Darrol, José Bonugli, Aveno, Maria Fogliatto,
Pedro Bordignon, Raul Comassetto e Rosa Fogliatto;
De 2$000 réis: José Ferrarri e Luiz Casarotto Sobrinho;
Fonte: Jornal O Commercio, 10/4/1940, Púlpito à Igreja de Santo Antonio,
p.3. Dados da exposição “Fundação da Capela de São José”, Arquivo
Histórico Municipal de Cachoeira do Sul.
X. Relação nominal dos doadores para a construção da capela de Santa
Terezinha, na vila Barcelos, em 1940
Aracy Alves, Aristides Moreira, Diamantino Carvalho, Herbert Port, Leão
Silveira, Nicolau Allaggio, Odemira Fontoura, Sinhá Herbstrith e Theobaldo
Bumeister.
Fonte: JP 10/7/1940 Capella de Santa Therezinha, p.1, 10/7/1940
Balancete da receita e despeza das obras de construcção da Capella de
Santa Theresinha na Villa Barcellos. Doações, p.2, Jornal O Commercio,
11/9/1940 Capella de Sta. Therezinha, p.4, 18/9/1940 Capella de S.
Therezinha, p.1 e 16/10/1940 Capella de Santa Therezinha, p.4
XI. Relação nominal das eleitoras de Cachoeira, cartório eleitoral da
9ª zona, em 1933, com número do título
3420 - Rosa Grigoletto Trevisan, 3421 - Laurinda Ilha Diaz, 3424 - Vicencia
Pedroso Pinheiro, 3425 - Maria Antônia C. Bernardes, 3427 - Margarida
Gomes Bastos, 3432 - Luiza G. Schaurich Wilhelm, 3433 - Albina Gomes
de Lima, 3435 - Izaltina Souza Oliveira, 3437 - Natale Olindo Unfer, 3440
- Lidia Fontoura Teixeira, 3442 - Lucy Tromer Krieger, 3443 - Rosa Barbosa
Cavalheiro, 3444 - Fancisca de A. Lau, 3446 - Heloisa Rosa Cavalheiro,
3447 - Maria C. Campos Bastos, 3448 - Dora Moura Martins, 3453 - Herminia
Porto da Fontoura, 3455 - Ranchel Pivetta Cantarelli, 3465 - Liticia Mozer,
3481 - Angela Bernardes, 3482 - Ana Maria D’anunciação, 3483 - Clementina
P. Brandes, 3484 - Clarinda D’Araujo Porto, 3485 - Ema Camilo, 3482 -
Muito além da praça José Bonifácio - Jeferson Selbach
Anexos
390
391
Luiza R. Werberich Ehle, 3493 - Luiza Stilla, 3514 - Natalia Simões de
Bem, 3517 - Clarinda dos Santos Silva, 3526 - Carolina Ferreira da Cunha,
3528 - Ana Filomena Friedrich, 3530 - Selma Elise Knack Rother, 3536 -
Dora Carvalho de Abreu, 3540 - Virginia de Lima Beresford, 3541 - Zilda
dos Santos Celestino, 3544 - Judith dos Santos Gonçalves, 3554 - Octacilia
Moura Voigt, 3555 - Geniy C. Pagano, 3556 - Elisabetha M. Tonelotto,
3557 - Antonia Thomaz da Silva Card., 3558 - Verginia da Silva Garcia,
3562 - Pulciana Felix Vieira, 3569 - Luiza Roos Teixeira, 3571 - Ottilia
Zinn Fischer, 3572 - Ozelina Pertile Bopp, 3573 - Olinda Fontoura Motta,
3580 - Mercedes Carvalho de A. Leitão, 3587 - Maria de Araújo Santos,
3599 - Genezia Fernandes Corrêa, 3601 - Belmira L. Fontoura, 3603 -
Mercedes Neves de Oliveira, 3604 - Julieta Carvalho, 3608 - Josepha dos
Santos, 3511 - Maria da C.C. Luchese, 3612 - Heloisa Leal Gama de Bem,
3614 - Gabriella Xavier da Fontoura, 3625 - Nina Xavier Gaspary, 3639 -
Olga Fontoura Motta, 3650 - Marietta Viela Santos, 3653 - Maria José S.
Neves, 3660 - Helenita D’ávila Mahfuz, 3662 - Hermas Gonçalves, 3663 -
Laura B. N. Fontoura, 3668 - Juventina Baptista, 3670 - Erna Maria Schultz,
3675 - Maria Carvalho e 3679 - Inocencia Fontoura Borges
Fonte: JP 30/3/1933 Edital de qualificação. Cartório eleitoral da 9ª zona,
Cachoeira, p.3
XII. Adeptos do tênis nos anos 1920-40
Carlos Noll, Danilo Wilhelm, Dolly Tesch, Edwino Rohde, Edwino Schneider,
Elfriede Würdemann, Emílio Barz, Ernesto Petersen, Ernesto Strohschoen,
Helma Zimmer, Hermínia Simon Muller (Nenê Muller), Júlio Petersen,
Júlio Simon, Konrad Zimmer, Luiza Muller, Luiza Petersen, Lycério Ilha,
Omar Bergmann, Osmar Tesch, Reinaldo Treptow e Rudolph Homrich.
Fonte: 100 anos de Concórdia: a história da Sociedade Rio Branco, 1896-
1996, Cachoeira do Sul: Gráfica Jacuí, 1996, p.96-102
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392
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