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Filha de funcionário público, nas veias da
autora corre o sangue da racionalidade
burocrática. Mas a racionalidade burocrática
no sentido weberiano, onde os movimentos
irracionais são muitas vezes importantes
instrumentos de transformação.
Gilda foi minha Chefe de Gabinete por duas
vezes, quando pude reconhecer a sua
competência. Esta mesma competência foi
testada e reconhecida em sua passagem pela
Secretaria do Governo de São Paulo e
Ministério da Fazenda. Mas confesso que
fiquei surpreso com suas qualidades de
pesquisadora, analista e escritora. A
combinação do saber fazer com a capacidade
de refletir sobre a realidade é uma
característica rara. E, se não bastasse, seu
texto é extremamente agradável e claro, sem
no entanto perder em sagacidade (com
picantes toques de ironia) e profundidade.
A autora analisa um dos períodos menos
discutidos da nossa história recente, ou seja,
os momentos finais do regime autoritário e o
início da transição democrática. Apresenta
também um atraente perfil da burocracia
econômica que atuou nas esferas de decisão
desde a década de 50. Analisa criticamente os
dois períodos pelos olhos daqueles que
operavam a máquina burocrática, o que sem
dúvida é inédito. Para desenvolver seu
trabalho, consultou arquivos pessoais,
públicos e fontes privilegiadas, recolhendo
um conjunto de informações a que poucas
pessoas poderiam ter acesso. Por tudo isso,
tenho certeza de que este livro representa uma
grande contribuição à discussão do processo
de transformação da sociedade brasileira que
está em curso, e do qual a autora continuará
sendo agente e analista.
Paulo Renato Souza
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UROCRACIA
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LITES BUROCRÁTICAS NO BRASIL
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UROCRACIA
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LITES BUROCRÁTICAS NO BRASIL
GILDA PORTUGAL GOUVÊA
COPYRIGHT © BY GILDA FIGUEIREDO PORTUGAL GOUVÊA, 1994
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
G719 Gouvêa, Gilda Figueiredo Portugal
Burocracia e elites burocráticas no Brasil / Gilda
Portugal Gouvêa. - São Paulo : Paulicéia, 1994. 320 p.
ISBN 85-85391-40-5
1 . Burocracia. 2. Administração pública - Brasil.
3. Estado. 4. Sociologia política. 5. Brasil – Política econômica.
REVISÃO: LILIAN JENKINO
IMPRESSÃO: PROL EDITORA GRÁFICA
CAPA: ETTORE BOTTIM
F
OTO DA CAPA: HILTON RIBEIRO
1994
EDITORA PAULICÉIA
RUA CAYOWAÁ.1253
05018-001
SÃO PAULO SP
T
ELEFAX: (O11) 871-1255
À memória de meu pai, Américo Portugal
Gouvêa, que sempre foi um servidor público.
Com ele aprendi as lições da ordem, da
disciplina, da honestidade e da fidelidade.
À minha filha Tininha. Com ela estou
aprendendo a alegria e a criatividade da
desordem, o amor à vida e o otimismo no futuro.
6
S
UMÁRIO
Prefácio - Luiz Carlos Bresser Pereira 8
Apresentação 13
Parte I – Introdução
Capítulo I: A Definição do Problema de Pesquisa 17
Capítulo II: O Desenvolvimento da Pesquisa 23
Capítulo III: Principais Desafios Conceituais e Empíricos 27
Parte II - A Burocracia Econômica no Brasil: formação e transformação
Introdução: O Surgimento do Estado Moderno no Brasil 56
Capítulo I: A Construção Institucional do Sistema Financeiro Nacional e
a Formação de Sua Burocracia 60
A) O Banco do Brasil 64
B) O Ministério da Fazenda 69
C) O Departamento Administrativo do Serviço Público-Dasp 71
D) A Superintendência da Moeda e do Crédito-Sumoc 78
E) O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico-BNDE 84
F) A Assessoria Econômica da Presidência da República
do Segundo Governo Vargas 85
G) A Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste-Sudene 89
Capítulo II: A Caminho de um Novo Perfil Institucional
para as Finanças Públicas: o(s) projeto(s) de reforma bancária 96
Capítulo III: O Perfil Institucional das Finanças Públicas
após 1964 e o Espaço de Poder da Burocracia 108
Parte III - A Burocracia em Ação: espaço de poder, objetivos e lógica de ação
Capítulo I: A Questão da Reforma do Estado 120
Capítulo II: A Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas: seu perfil 133
Capítulo III: A Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas:
o diagnóstico e as medidas propostas 141
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
7
A) A crise e o processo de tomada de consciência 141
B) A comissão: composição, estrutura e relatórios parciais 150
C) As diretrizes do Conselho Monetário Nacional, o diagnóstico
e as propostas finais da Comissão 157
Capítulo IV: O Encaminhamento das Medidas 166
A) Os fatos I: uma vitória parcial e temporária 167
B) Os fatos II: os primeiros meses de Governo da Nova República 170
Capítulo V: As Reações às Propostas da Comissão para o Reordenamento
das Finanças Públicas 177
A) A posição corporativista do Banco do Brasil
B) Os interesses privados sem consenso 185
C) A posição dos políticos 189
D) A visão autoritária 199
E) Burocratas e a defesa "interesse público" 202
Capítulo VI: A Reforma Começa a Ser Implantada uma vitória da burocracia? 205
Conclusões e Desdobramentos 211
Bibliografia 216
Anexo I: Pessoas entrevistadas e Depoimentos 221
Anexo II: Nomes dos principais membros da Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas 222
Anexo III: Conselhos, comissões e grupos executivos criados entre 1930 e 1964 223
8
P
REFÁCIO
Luiz Carlos Bresser Pereira
Quando um livro consegue oferecer, ao mesmo tempo, uma contribuição
teórica e um conjunto de novas informações empíricas relevantes, que ampliam
significativamente nosso conhecimento sobre o tema, estamos diante de um
trabalho científico plenamente realizado. Com Burocracia e Elite Burocráticas
no Brasil, Gilda Portugal Gouvêa realiza essa dupla façanha, e nos permite
uma compreensão inovadora e oportuna a respeito da alta burocracia estatal
brasileira. Adicionalmente, ela logra esse resultado através de um estilo claro e
agradável de se ler, não se deixando levar, em nenhum momento, pela tentação
das citações excessivas e pela busca de demonstrar erudição. Seu trabalho é o
resultado maduro de um amplo conhecimento da teoria sociológica, de uma
ampla pesquisa de campo, e de uma experiência íntima com o setor público
brasileiro.
Seu tema de pesquisa é a reforma do sistema financeiro nacional
realizada entre 1983 e 1987 pela alta burocracia do Estado brasileiro. Constitui
a terceira parte do livro. A questão teórica que procura responder é a da auto-
nomia relativa da burocracia, e, mais amplamente,da natureza deste estamento
ou desta classe social. Este é problema central da primeira parte do trabalho. A
segunda parte, em que Gilda resume a formação e as transformações da
burocracia econômica no Brasil, é uma introdução necessária para a pesquisa
sobre a ação da burocracia na reforma do sistema financeiro do país.
Esta reforma inicia-se no Brasil em 1983, desencadeada pela crise da
divida externa e mais amplamente pela crise do Estado brasileiro. Nesse ano, o
governo brasileiro aprova, junto ao Fundo Monetário Internacional, um
programa de estabilização que logra equilibrar o balanço de pagamentos, mas
fracassa em controlar a inflação. Uma das explicações para esse fracasso estava
na profunda inadequação institucional do sistema financeiro nacional, dada a
conta movimento do Banco do Brasil, que transformava essa instituição em um
segundo Banco Central, e dados os superpoderes do Conselho Monetário
Nacional, que através de um esdrúxulo “orçamento monetário nacional, tornava
o verdadeiro orçamento da República incapaz de controlar as finanças do país.
Naquele momento, em 1983, a burocracia estatal sabia que a causa
principal dos elevados déficits públicos, que estavam na base da inflação
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
9
brasileira, não era institucional, mas política. Estava claro para ela, porém, que
a reforma do sistema financeiro seria um instrumento fundamental para a
reforma do sistema financeiro seria um instrumento fundamental para as
autoridades econômicas enfrentarem as pressões políticas. E se engaja na
reforma com todas as suas forças.
Esta tarefa é realizada em uma conjuntura desfavorável. A burocracia
está sendo enfraquecida por uma série de crises: por uma crise política do
regime militar, que, no início do 1985, resulta na transição para um regime
democrático; por uma crise ideológica do Estado, através do qual o avanço
neoliberal priva de legitimidade a intervenção estatal; por uma crise fiscal do
Estado, que se vê imobilizado quando sua poupança pública se torna negativa,
de forma que, a partir desse momento, qualquer ação adicional sua só pode ser
financiada pelo déficit público; e por uma crise do modo de intervenção do
Estado – a estratégia de industrialização substitutiva de importações – crise que
nos anos 80 transformou o Estado de agente principal em obstáculo ao
desenvolvimento do país. E no entanto, como Gilda demonstra com toda
clareza essa forma é obstinada e vitoriosamente levada a cabo pelo Comor–
Comitê de Acompanhamento da Execução dos Orçamentos Públicos, criado em
1983, e pela Comissão de Reordenamento das Finanças Públicas, criada em
1984. O líder do grande grupo de burocratas que se envolve nesse trabalho é
Maílson da Nóbrega, então secretário geral do Ministério da Fazenda, e que
voltaria ao mesmo cargo na minha gestão, em 1987, para completar o trabalho.
Em 1988, quando se torna ele próprio o Ministro da Fazenda, a reforma já
estava realizada.
Por que esta reforma foi vitoriosa, apesar das circunstâncias difíceis em
que foi realizada? Gilda tem uma resposta clara para esta pergunta na última
parte do seu livro – uma resposta que lhe foi possível verificar nas inúmeras
entrevistas que realizou com os principais responsáveis pelas reformas. A
reforma era nacional. Correspondia a uma necessidade lógica e evidente de
reordenação do sistema institucional que presidia a administração das finanças
públicas do país. O sistema a ser reformado não era apenas autoritário e
discricionário. Era também irracional, conseqüência de anos e anos de decisões
arbitrárias de autoridades econômicas que administravam um Estado
financeiramente rico. Quando o Estado entra em crise fiscal, quando o déficit
público é claramente quantificado e se revela muito alto, quando a poupança
pública se torna negativa, quando o crédito público desaparece, quando a
inflação se revela persistente r cada vez mais alta, já não há mais espaço para a
desordem fiscal, nem no plano real, muito menos no plano institucional. Neste
quadro, a alta burocracia do Ministério da Fazenda, imbuída da missão
racionalizadora que lhe é própria – afinal o burocrata é, por definição, o
profissional que administra a propriedade pública ou privada segundo critérios
de eficiência –, compreendeu que a reforma era necessária e urgente. Ela podia
não ter poder para resolver a desordem fiscal real – o déficit público crescente –
, mas considerava-se capacitada a praticamente sozinha realizar a reforma que
garantiria ordem institucional às finanças públicas. Esta convicção de
racionalidade deu-lhe a força necessária para levar a cabo a reforma.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
10
Ao realizar essa tarefa, portanto, a burocracia revelou uma significativa
autonomia em relação ao resto da sociedade. A reforma não era demanda da
sociedade, mas exigência da própria burocracia. Na sociedade, pelo contrário,
embora existissem alguns apoios, havia antes resistências, já que o objetivo da
reforma era conseguir um controle mais afetivo do gasto público. É verdade que
a autonomia da burocracia revelada na pesquisa não foi dramática, já que a
reforma, embora importante, era limitada a apenas um aspecto da administração
federal. Mas não há dúvida que tivemos, no episódio, mais uma demonstração
clara de como uma burocracia imbuída com uma missão racionalizadora,
convencida de que está defendendo o interesse público, pode lograr uma
autonomia suficiente em relação ao resto da sociedade e realizar sua missão.
A “defesa do interesse público”, a idéia de que o burocrata estatal é um
servidor público, está profundamente embutida no etos burocrático, como a
idéia da concorrência e do lucro são parte integrante do etos burguês. É claro
que os desvios são recentes, que as práticas de privatização da coisa pública, de
rent-seeking, são recorrentes. Mas isto ocorre quando a burocracia está
desorientada. Quando, diante da crise da sociedade, não logra definir com
clareza quais sejam, naquele momento, as ações consistentes com a razão e o
interesse público. Os burocratas estatais brasileiros estavam enfrentando muitas
dúvidas nesse campo, dada a crise generalizada do Estado. Mas em relação à
reforma financeira, tinham clareza, e por isso tornaram-se poderosos. Gilda
observa muito bem:
“Para eles o interesse público deveria ser buscado na sociedade, e eles,
como funcionários públicos, seriam seus defensores. Consideravam
sua atuação como apolítica e apartidária; portanto, se
autoproclamavam como o grupo mais competente para conduzir essa
vontade da sociedade. Ao adotar essa atitude declaravam uma
autonomia que não correspondia à realidade do seu espaço de atuação,
pois este vinha condicionado não só por limites estruturais como
também pelo fato da sociedade manifestar interesses diversos, muitos
dos quais contraditórios. Em outras palavras, ou o ‘interesse público’
passaria a ser definido pelos próprios burocratas, e então eles tentariam
impor à sociedade, o que lhes daria um perigoso poder sem controles,
ou não haveria possibilidade de definir o que seria o ‘interesse
público’ no emaranhado de interesses contraditórios que emanariam da
sociedade.”
Não obstante este fato, em relação à discussão teórica sobre a autonomia
relativa da burocracia, que já foi objeto de um extenso debate teórico e
ideológico no transcorrer deste século, a resposta de Gilda não é clara. Ela faz
uma extraordinária análise do problema. Procurando, sempre, não elevar demais
o grau de abstração em que a questão é discutida.
A autonomia relativa da burocracia, sua capacidade de associar-se em
termos relativamente iguais com a burguesia nas sociedades capitalistas
modernas, inclusive no Brasil, é, portanto, um tema central do livro, inclusive
em sua segunda parte, empírica. Já na primeira parte este é o tema dominante. É
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
11
um tema tratado com grande competência e equilíbrio, mas, aproveitando de
minha qualidade de amigo mais velho que foi convidado a escrever o prefácio,
quero manifestar alguma discordância em meio ao acordo geral.
No início do trabalho ela parece disposta a escapar ao problema, quando
afirma, com Dahrendorf, que “não há nenhuma palavra em nenhuma língua
moderna para descrever este grupo que não é grupo, esta classe que não é
classe, este estrato que não é estrato”. Sua disposição de evitar o tema se
fortalece a partir da observação de Luciano Martins quanto aos “efeitos
paralisantes de abordagens doutrinárias”.
Gilda, entretanto, não resiste, como não poderia resistir a um tema tão
importante. Um tema que para a intelectualidade burocrática de esquerda
sempre foi tabu. Para a esquerda burocrática, a burocracia – ou a nova classe
média, ou a classe média assalariada – não podia ser uma classe, porque, pelo
menos em princípio, quem faria a revolução socialista seria o proletariado. Na
prática, não se fez qualquer revolução socialista. O que houve foram, nos países
comunistas, revoluções estatistas conduzidas por uma burocracia estatal, que,
por uma série de fatores históricos, desvinculou-se de sua condição original de
esquerda e desviou-se de seu papel histórico de classe associada à burguesia,
para pretender a exclusividade do poder através da revolução.
Gilda não resistiu ao tema, mas também preferiu enfrentá-lo de maneira
indireta, recusando ou evitando discutir o problema em um plano de abstração
mais alto. Sua pesquisa é mais uma indicação poderosa da autonomia relativa
da burocracia, e, portanto, do fato de que a burocracia (Weber), ou nova classe
média (Mills), ou classe dos gerentes (Burnham), ou tecnoburocracia (Bresser),
ou classe média assalariada (grupo do Capitalisme Monopoliste d’etat),
burocracia estatal e privada, civil e militar, ocupando a cúpula das organizações
burocráticas (alta burocracia) ou sua base, são todas formas de indicar um único
fenômeno: um antigo estamento que se transformou em uma importante nova
classe social no capitalismo contemporâneo – uma classe que tem a propriedade
coletiva da organização, que se apropria do excedente através de ordenados,
que tem como princípio legitimante a racionalidade instrumental ou a
eficiência, e que usa como estratégia de sobrevivência a associação com os
capitalistas em low profile, sempre militantemente negando sua própria
condição de classe.
Weber, citado por Gilda, dizia que no momento (início do século XX)
“a ditadura do funcionário e não do trabalhador está a caminho”. Weber acertou
em alguns casos, mas errou no geral. A burocracia ou tecnoburocracia não visa
destruir a burguesia, substituindo-se a ela, mas obter um lugar ao lado dela, em
termos de poder e de apropriação do excedente. Gilda, citando um dos meus
trabalhos, afirma que concedi excessiva autonomia à burocracia, quando
sua posição na estrutura social não está garantida, mesmo pertencendo a um
Estado produtor e tendo interesses próprios, capacidade técnica e operacional
distintivas, coesão interna. Esta posição só se define a partir de um dado modo
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
12
de desenvolvimento das relações entre as classes em situações concretas e não
no nível de abstração em que este debate se desenvolve.”
Não há dúvida que a posição social da burocracia não está garantida. O
que está garantido em um mundo capitalista-tecnoburocrático em contínua
mudança, onde o progresso técnico, pelo qual a tecnoburocracia se
responsabiliza, é o grande fator de mudança? O importante, nesta passagem,
como aliás em todo o livro, é que Gilda soube compreender a unicidade da
burocracia, sua lógica e interesses próprios, no plano em que ela escolheu para
trabalhar: o plano das relações de classe concretas ao invés do plano das
grandes abstrações.
Para Gilda, que percebe, embora prefira não admitir abertamente, o
caráter de classe da burocracia, a existência de relações de produção
burocráticas ou organizacionais. Da mesma forma que existem relações de
produção capitalistas, está clara. Não tem dúvida, portanto, de opor teórica-
mente o capitalismo à burocracia ao mesmo tempo que os associa. Usando
Weber ela afirma: “o capitalismo precisa desta racionalidade (burocrática) para
desenvolver-se. Assim, há uma relação de interdependência por interesses
recíprocos, pois capitalismo e burocracia ‘casam-se’ pela racionalidade.” A
formulação não pode ser mais clara. A classe capitalista e a classe burocrática,
o capital e a organização se associam em torno das idéias de desenvolvimento.
Gilda, no entanto, um pouco mais adiante afirma que, tendo feito a opção
metodológica de abandonar qualquer tentativa apriorística de definir um espaço
“reservado” à burocracia nas sociedades capitalistas, rejeita em conseqüência “a
idéia de que a burocracia se constitui em uma classe ou num estamento social”.
Dessa forma, procura escapar ao problema, do qual, entretanto, não escapa. Na
verdade, seu texto é a melhor discussão teórica sobre o problema que li nos
últimos anos. A burocracia é um fenômeno decisivo de nosso tempo, que Gilda
reconhece e analisa com o respeito necessário. Não esconde a burocracia, não
tece sobre ela loas desnecessárias, nem a transforma na culpada de todos os
nossos males, como o fizeram recentemente seus críticos neoliberais.
Gilda prefere ser realista. A burocracia é um fenômeno central do
capitalismo misto contemporâneo, do capitalismo controlado pelo mercado,
pelas grandes organizações burocráticas e pelo Estado. Se o mercado auto-
regulado de pequenas empresas (firmas) fosse suficiente para garantir a
coordenação da economia, nem Estado nem grandes organizações burocráticas
seriam necessárias, não haveria uma burocracia, nem a associação desta com a
burguesia. Mas não é esta a história do nosso tempo, da qual Gilda foi capaz,
com enorme maestria, de descrever e contar um episódio específico, mas
paradigmático: o de uma burocracia acuada por uma crise do Estado no Brasil
dos anos 80, mas que, não obstante, conseguiu levar adiante uma importante
reforma institucional que, através da concentração das atividades de controle da
moeda exclusivamente no Banco Central, através da unificação dos orçamentos
públicos, através da criação da Secretaria do Tesouro, através da eliminação das
atividades de fomento do Banco Central, garantiu ao Estado brasileiro uma
racionalidade institucional muito maior no campo de sua gestão financeira.
13
A
PRESENTAÇÃO
Crise ou falência do Estado, corrupção, uso inadequado dos bens
públicos: estes assuntos deixaram de ser temas de debates exclusivamente
acadêmicos e já fazem parte do cotidiano das conversas das pessoas que
assistem ao noticiário na televisão brasileira. Neste debate, há dois vilões quase
incontestáveis: os políticos e a burocracia pública.
O presente estudo pretende desfazer alguns equívocos e avançar o
conhecimento quanto a um destes segmentos: a burocracia pública. Como seria
impossível, num único trabalho, estender a análise a todas as burocracias
públicas, escolhemos uma delas: a burocracia da área econômica, ligada
principalmente à definição de padrões institucionais que regulam os gastos
públicos. E dentro dela escolhemos o segmento que pode ser considerado “de
elite”, ou seja, um grupo de indivíduos que ocupou funções nas altas escalas de
prestígio, mas que sempre teve suas carreiras ligadas à administração pública.
Esta escolha da área econômica não foi casual e deveu-se a dois fatores.
O primeiro pode ser considerado de ordem substantiva, pois a partir de uma
vivência junto a diversos órgãos governamentais, nossa atenção foi atraída pela
aparente confusão que reinava na definição do que gastar, do como gastar, do
onde gastar e do como controlar os gastos. Dizemos que a confusão é aparente,
pois na realidade baseia-se numa lógica nascida em um sistema de decisão
política que garante grande espaço para acomodar interesses bastante
diversificados e cujos controles são frouxos, formalistas e pouco eficientes.
Esta situação chega a tal ponto, que, quando um governante assume, e
sinceramente dá a ordem “é proibido gastar”
1
, é quase certo que não a verá
cumprida, a não ser que consiga numa luta a médio prazo alterar “o sistema de
decisão política que mantém a estrutura do gasto público”
2
.
No Brasil, esta estrutura está assentada sobre um conjunto de
instituições e de regras que mantém um verdadeiro e permanente “sistema de
1
Esta frase foi dita por Tancredo Neves em seu último discurso, quando já eleito, ao apresentar
os membros da equipe que o acompanharia no Governo.
2
A frase é do então Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso. O Estado de S.Paulo,
18/11/1993, p.B2.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
14
vazamentos”
3
que, ao longo dos anos, foi se definindo para atender aos
interesses que vão do clientelismo ao corporativismo. Os “verdadeiros”
interesses, aqueles da acumulação capitalista, que muitos entendem como sendo
os únicos que determinam a lógica deste processo, muitas vezes não conseguem
dar conta, enquanto instrumento analítico, de um emaranhado de “outros
interesses” que se apresentaram ao longo do tempo, e que constituem ainda hoje
uma parte importante do nosso sistema de decisão política.
A segunda razão foi de ordem prática. Durante um ano, trabalhamos no
Ministério da Fazenda (maio de l987 a abril de l988), e neste período, não só
adensamos nossa sensibilidade sobre a questão, como tivemos a oportunidade
de reunir um conjunto de informações e conhecer pessoas que nos deram acesso
a um outro conjunto, incluindo arquivos pessoais.
Finalmente, é importante ressaltar que este trabalho foi originalmente
apresentado como Tese de Doutorado ao Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da Unicamp em junho de 1994, e algumas poucas alterações,
necessárias para efeito de publicação, foram realizadas com relação ao texto
original.
Os agradecimentos são muitos. Os dois primeiros são institucionais: à
Fapesp – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, que
financiou nosso curso de Pós-Graduação na Universidade de Cornell – USA e
ao Nepp – Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp, onde
encontramos o ambiente e o suporte indispensáveis para desenvolver este
trabalho, além de muitos amigos entre colegas e funcionários.
Agradecemos também aos colegas e aos funcionários do Departamento
de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
A confiança e a paciente presença da professora Argelina, orientadora e
amiga, foram indispensáveis diante desta doutoranda retardatária. Nossos
agradecimentos também à amiga e professora Sonia Miriam Draibe, pelo apoio
firme e pela constante cobrança, sem os quais este trabalho não teria um fim
antes do século XXI.
À minha mãe, Zenaide Figueiredo Portugal Gouvêa, e a meus irmãos
Silvia e Marcelo Figueiredo Portugal Gouvêa. Aos meus amigos: Aldo Duran
Gil, Ana Maria Affonso Ferreira Bianchi, Andréa Calabi, Ângela Napolitano,
Aparecida Néri de Souza, D. Cândida Graeff, Cibele Macchi, Deusely Graeff,
Eduardo Graeff, Eduardo Jorge Pereira, Egydio Bianchi, Elisabeth de Morais
Ferrari, Fernando Henrique Cardoso, Geraldo Giovanni, Jorge Tapia, José
Pastore, José Roberto Ruz Perez, Joseph Kahl, Juarez Brandão Lopes, Lourdes
Sola, Luciano Martins, Luiz Carlos Bresser Pereira, Maílson Ferreira da
Nóbrega, Marcelo Costa Souza, Maria Aparecida Coracini de Godoy Marques,
Maria Elvira Salles Mazzucchelli, Marta Arretche, Nairo de Sousa Vargas,
Ortencia Loureiro Martins Freitas, Paulo Renato Costa Souza, Pedro Luis
Barros Silva, Roberto Mario Perosa Junior, Ruth Cardoso, Sergio Vieira da
3
Conhecidos popularmente por “ralos”, “buracos”, etc.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
15
Motta, Silvia Vespoli Godoy, Sonia Moreira, Sonia Maria da Silva, Tom Davis
e Vilmar Faria. Cada um deles teve uma presença carinhosa neste longo
caminho que percorri. Luisa Maria Caetano e Beronildo de Oliveira forneceram
um inestimável apoio para que eu pudesse resolver um grande número de
problemas do cotidiano.
À Icléia Alves Cury, minha querida amiga, que cuidou da revisão do
texto final, com sua qualificada competência, além de muito afeto.
16
P
ARTE I
I
NTRODUÇÃO
17
C
APÍTULO I
A DEFINIÇÃO DO PROBLEMA DE PESQUISA
A visão que a sociedade tem da burocracia, seja de seu espaço de poder
(entendido como acesso a determinados recursos políticos), seja do papel que
desempenha no interior do aparelho de Estado, a transforma num objeto de
paixões e numa "carta" importante no jogo ideológico. As posições oscilam
entre atribuir à burocracia um papel preponderante no processo decisório ou
então negar-lhe qualquer participação relevante, pois seria apenas a executora
de decisões definidas em outras esferas de poder. Este debate aparece no
discurso, vitorioso na "mídia", daqueles que acusam os burocratas de
responsáveis pelo mau funcionamento do aparelho de Estado, pois, como
teriam um grande poder, seriam capazes de conduzir as decisões atendendo a
interesses próprios. Apontam como características da burocracia o apego
exagerado às rotinas
4
, a ineficiência, a montagem de procedimentos
complicados, a intromissão em áreas reservadas à atividade privada, o seu
número exagerado, a corrupção e o fisiologismo. Oszlak (1984) destaca que
muitas vezes alguns destes mitos se transformam em realidade, mas a sua
manifestação em sociedades concretas nem sempre traz consigo a explicação do
fenômeno e muito menos afasta o caráter ideológico do uso que dele se faz.
O debate aparece também na análise daqueles que consideram a
burocracia muito eficiente apenas no atendimento dos interesses dos
dominadores (classe dominante, elite, burguesia, etc.). Por este trilho também
caminham aqueles que entendem que quando um Estado é dominado por
interesses privados, sua burocracia se transforma numa extensão destes
interesses. Finalmente entram no debate os próprios burocratas, mostrando não
só como sua ação é isenta, útil e indispensável ao funcionamento do Estado,
mas também como são os verdadeiros responsáveis pela "defesa do interesse
público".
Colocada em outro nível de abstração, esta discussão também aparece
no plano teórico, seja nas versões instrumentalistas — que encaram o fenômeno
burocrático numa sociedade capitalista como mais uma manifestação da luta de
classes, onde a burocracia cumpriria o papel de executora dos interesses das
4
Ver COLE, Robert F. Social Reform frustrated by bureaucratic routine: Public Policy, USA,
v. 27, n
o
3, p. 273-299.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
18
classes dominantes
5
—, seja nas versões autonomistas — que encaram a
burocracia como uma casta detentora de interesses, prestígio e espaço de poder
próprios
6
. Fugindo destes extremos, mas ainda baseadas nos mesmos princípios
lógicos, temos a visão de que a burocracia seria agente do Estado moderador
que atua "entre as classes" em beneficio dos despossuídos ou a visão liberal que
a considera agente de um Estado cujos poderes são delegados pela sociedade.
Na tentativa de superação destes princípios teóricos, aparecem as concepções
que encaram o fenômeno burocrático como um fato social diferenciado e
complexo, que coloca seus agentes em relações contraditórias "tanto que sua
posição na estrutura de dominação política pode variar significativamente" de
sociedade para sociedade (OSZLAK 1984, p. 256-258).
Ninguém melhor que Dahrendorf conseguiu resumir toda esta
dificuldade, teórica e empírica, em trabalhar com a questão da burocracia,
quando afirmou que "não há nenhuma palavra em nenhuma língua moderna
para descrever este grupo que não é grupo, esta classe que não é classe, este
estrato que não é estrato" (DAHRENDORF 1982, p. 56). Eis aqui o objetivo do
presente trabalho: enfrentar este desafio, sem nenhuma pretensão de resolvê-lo
a nível teórico, mas com o propósito de avançar o seu desvendamento empírico.
Analisar o espaço de poder da burocracia do setor Governo da arca
econômica e descrever sua lógica de ação no interior do Estado brasileiro será o
nosso caminho. Outros já andaram por esta trilha
7
, mas a nossa proposta é olhar
este processo a partir da própria burocracia, ou seja, através dos recursos
políticos a que teve acesso e da sua lógica de ação. A burocracia que iremos
observar pode ser encarada como uma elite, pois sua trajetória de carreira nos
órgãos públicos conduziu-a aos altos cargos de assessoria ou de direção da
política econômica. Apesar de ser uma elite, supomos que detém muitas das
características de outros segmentos de funcionários governamentais que fizeram
toda sua carreira ligados aos órgãos públicos. Sabemos que tal afirmação requer
um estudo específico, porém não o faremos no âmbito deste trabalho.
Estamos entendendo este espaço de poder não só como o conjunto de
recursos políticos a que estes burocratas tiveram acesso, mas também como o
5
Os efeitos paralisantes de abordagens doutrinárias estão expostos com maestria por Luciano
Martins, quando discute a questão do Estado. MARTINS 1985, p. 15 a 28.
6
Na análise da burocracia brasileira, o trabalho de Raymundo Faoro é o que mais se destaca na
tradição "autonomista". Algumas de suas interpretações são apropriadas inadequadamente,
como a que segue: "É possível que a burocracia brasileira tenha assumido gradativamente a
consciência de que formava um grupo de status e tenha passado a agir como tal, procurando
de um lado fortalecer o Estado, já que seu status social derivaria principalmente do status do
Estado, e de outro lado buscando fortalecer seu status funcional a partir de uma tecnicização
do aparato governamental" (BAYER 1975, p. 71). Mesmo que este fato seja empiricamente
comprovado, ele não explica o espaço de poder da burocracia (recursos políticos à sua
disposição), pois o que a burocracia pensa de si própria não define necessariamente seu papel.
7
GRAHAM 1968, LEFF 1977, DALAND 1973, SANTOS 1982, DRAIBE 1985, LEOPOLDI
1991, MARTINS 1985, SCHNEIDER 1991, SOLA 1982, ABRANCHES 1977, BOSHI E
DINIZ 1978, GOODIN e WILENSKI 1984.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
19
resultado de uma prática (ações concretas) que tinha um alvo
8
. Partimos de três
premissas: a primeira de que este poder se define numa tensão entre limites e
interesses que se localizam tanto dentro quanto fora do aparelho de Estado — a
presença de "anéis burocráticos"
9
que ligam interesses privados e públicos
também se enquadra nestes limites; a segunda de que, apesar destes limites, a
burocracia possuiu uma lógica própria de ação que define sua capacidade e
possibilidade de atingir seus objetivos; e a terceira de que a compreensão deste
processo só pode ser atingida na análise de situações concretas.
Aqui, um parênteses. É importante deixar claro que, ao escolhermos este
caminho e ao afirmarmos não ser este um trabalho de construção teórica,
estamos optando por não tratar de discussões importantes e que são objeto de
muitas controvérsias. A principal delas é sobre o caráter de classe da
burocracia. Há trabalhos, hoje considerados clássicos, sobre a questão. Na
defesa da tese de que a burocracia é a "nova" classe que se apresenta nas
sociedades capitalistas modernas, além da burguesia e do proletariado, temos os
trabalhos de Luiz Carlos Bresser Pereira (BRESSER 1980). A não-discussão
desta questão faz parte da idéia, esta com inevitáveis conseqüências teóricas, de
que se avança mais no conhecimento da realidade através da análise de
situações concretas. Esta opção evidencia também um certo modo de pensar no
trato de questões neste nível de abstração. Mesmo assim, arriscamos no
Capítulo III uma justificativa substantiva para não tratarmos deste debate no
presente trabalho.
A proposição geral, e que aqui deve ser tomada como hipótese de
trabalho, seria de que um segmento da burocracia da área econômica do setor
Governo no Brasil teve, em determinados momentos, espaço de poder,
objetivos definidos e lógica de ação estabelecida, o que lhes garantiu uma certa
autonomia de ação.
10
Esta autonomia, entretanto, esbarrava em restrições
ditadas por condicionantes estruturais concretos que definiram limites tanto no
8
A "abordagem da escolha pública" é uma corrente interpretativa que também caminha por
esta trilha, ao colocar o burocrata como agente social que apresenta um comportamento de
busca racional de determinadas metas só que definidas em função de seus interesses
privados. Sobre este tipo de análise ver TULLOCK, GORDON, The Politics of
Bureaucracy, WA, DC, Public Affairs Press, 1965. Outra concepção interessante é aquela
apresentada por LOUREIR0 1992, p. 48, que se baseia na noção de campo, entendido
como "o espaço social onde pessoas, grupos e instituições se constituem pelas relações de
concorrência e poder que estabelecem entre si". Preferimos trabalhar com a idéia de espaço
de poder definido pelos recursos políticos disponíveis, pois tratando-se a burocracia pública
de um segmento permanente, a variação do acesso a estes recursos poderá caracterizar
melhor seu papel em momento s específicos. Mas fica o registro de que a noção de campos
sociais também poderia sugerir um percurso interpretativo muito criativo.
9
Na expressão de CARDOSO 1975.
10
Um dos primeiros estudos que lemos e que despertou muito nosso interesse sobre um certo
"vácuo parcial de poder" onde certas burocracias atuam foi o de HEADY, FERREL
Administração Pública – Uma Perspectiva Comparada. Rio de Janeiro, Zahar, 1970,
Capítulo II.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
20
seu espaço de poder quanto na consecução de seus objetivos (alvos), e que
interferiram na sua lógica de ação. Mas como estes condicionantes estruturais
não foram os únicos determinantes de sua ação, pois a burocracia atuou num
quadro de conflito de interesses, houve espaço para o exercício de seu poder
11
.
Quando ocorre a luta entre segmentos da burocracia ligados a interesses
divergentes, estes conflitos podem se dar tanto "para fora" do aparelho de
Estado, quanto "para dentro".
Como objetivos secundários deste trabalho, pretendemos examinar, em
primeiro lugar, em que momento este poder teve condições de se exercer com
mais força e qual a lógica de ação de cada momento — se na fase de
formulação, institucionalização, decisão e implementação — e de como atua na
negociação. Em segundo lugar, pretendemos verificar a hipótese da
"oligarquização" desta burocracia, ou seja, a permanência de um grupo com
poder e lógica próprios, independentemente das mudanças que ocorreram nas
coligações políticas de poder. Este grupo (que poderia ser identificado também
em outras áreas do setor Governo) constrói em tomo de si um sistema de
autoproteção, diferente dos interesses corporativos. O fato de ocorrer conflitos
intra e entre grupos, não diminuiu sua força e muitas vezes estes conflitos se
resolveram com a vitória daqueles que conseguiram estabelecer boas relações
para fora do grupo (seja como Legislativo, com outras áreas do Executivo ou
com a sociedade). Estas lutas acabaram abrindo espaços de liberdade a
interesses externos, mas nunca aponto de tomara burocracia antropofágica, ou
seja, houve uma permanente tentativa de proteger, mesmo aqueles que estavam
momentaneamente fora de posições de mando. Em terceiro lugar, pretendemos
examinar quais as modificações tanto no espaço de poder quanto na lógica de
ação, conforme se esteja num momento de legitimação autoritária ou
democrática.
O espaço de poder e a lógica de ação de uma burocracia que atua numa
formação social como a brasileira, onde, a partir de 1930, o Estado passa a ter o
papel de promotor de um projeto de desenvolvimento, do qual é também ator, a
transformam em protagonista de um processo sui generis. Isto porque são
agentes de um aparelho composto por instituições e organismos com
"capacidade própria", e da mesma maneira que tem um espaço seu na
elaboração e execução de políticas, tem também espaço e lógica específicos nos
momentos de crise e redesenho do perfil institucional deste Estado. Na história
brasileira recente, o primeiro momento corresponde à fase de fortalecimento do
Estado, que "assume" o projeto de desenvolvimento industrial (1930 a 1961) e
que se expande seguindo uma lógica semelhante à do setor privado, ou seja, a
11
Estamos entendendo poder como a capacidade que uma classe social ou um grupo tem de
atuar sobre a vontade alheia para realizar seus interesses específicos, através de instrumentos
de sanção e coerção que afetam outras classes sociais ou grupos. Um grupo pode ter apenas
influência, quando atua sobre a vontade alheia sem os instrumentos de sanção e coerção: este
pode ser o caso da burocracia, em muitas situações concretas. Além disto, devemos
considerar o conceito de dominação, mais geral, que se reporta à estrutura da sociedade e que
pressupõe a idéia de subordinação de um grupo em relação ao outro. Por último, há a questão
da legitimidade, que envolve o consentimento de quem obedece sobre quem manda.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
21
introdução da grande unidade de produção (1964 a 1979). O segundo momento
é a fase do esgotamento deste modelo de desenvolvimento, quando entra
prioritariamente na agenda a questão da reforma do Estado e aí a burocracia
aparece com um papel específico.
Nosso estudo se concentrará neste segundo momento. A transição do
Governo do general João Figueiredo para o do presidente José Sarney nos
oferece um cenário privilegiado para esta análise. A crise fiscal, que
recomendava um ajuste, e a transição de um regime autoritário para um regime
democrático, colocaram fortemente na pauta dos dois Governos a questão da
reforma do Estado ou pelo menos de um reordenamento institucional. Neste
processo a burocracia do setor Governo teve momentos de ampliação potencial
de seu espaço de atuação (se esta ampliação ocorreu também em termos de
poder veremos no trabalho), independente do fato de se ter atingido ou não um
novo desenho institucional. Este seria mais um sinal contraditório do quadro
sócio-político brasileiro a ser acrescentado à série de inovações apontadas por
Fiori como "verdadeira marcha forçada de transformação política" ocorrida
durante a chamada "década perdida" (FIORI 1993, p. 13). E discute a tese de
que esta burocracia estaria "enfraquecida" no final do período autoritário e que,
portanto, não foi capaz de atuar na tentativa de ajuste fiscal que a crise passou a
exigir (BRESSER PEREIRA 1993a).
Outra situação que o momento suscita é a mudança do discurso
ideológico. Se anteriormente o que predominava neste discurso era a "defesa de
um projeto de desenvolvimento integrado" ou "dos interesses da Nação" na fase
da transição para um regime democrático, agora o que domina é o discurso em
defesa da "transparência" e da participação da "sociedade" nas decisões de
Governo e o da "defesa do interesse público".
Um balanço da principal bibliografia que trabalha com o tema será
apresentado adiante, com ênfase para os autores que analisam a situação
brasileira.
A partir de algumas opções entre os vários dilemas teóricos e empíricos
que estes trabalhos colocam, vamos observar o poder da burocracia e sua lógica
de ação através da sua presença no processo de decisão em uma situação
exemplar: a formação e atuação da Comissão para o Reordenamento das
Finanças Públicas. Esta Comissão, criada formalmente por um voto do
Conselho Monetário Nacional em agosto de 1984, detonou um processo que
resultou na criação da Secretaria do Tesouro em 1986, definiu os princípios
básicos da Constituição de 1988 e ainda não terminou.
Para não isolarmos nosso objeto de estudo das "contaminações" das
estruturas econômicas, sociais e políticas mais amplas
12
, sentimos necessidade
12
Seria o mesmo que falar no poder da burocracia no Império, sem se referir à escravidão,
como destaca CARDOSO 1975, p. 172: "... no artigo sobre Atores Políticos do Império de
Olavo Brasil de Lima Júnior e Lúcia Maria Gomes Klein, in Dados (7) 1970 ... os autores
vêem como é óbvio ... o Partido Liberal como representante da oligarquia latifundiária e o
Partido Conservador como representante dos interesses da burocracia ... visando alargar e
corrigir a tese de Faoro sobre o papel predominante da burocracia na política do Império ...
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
22
de elaborar uma breve reconstrução histórica, baseada em fontes secundárias e
em alguns depoimentos
13
, para buscar as "margens de liberdade" que a
burocracia teve a partir de 1930, com maior atenção para os anos 60, 70 e 80
(Parte II, Capítulos I, II e III), tempo de entrada no serviço público dos
burocratas que são os agentes das medidas examinadas no estudo de caso (Parte
III, Capítulos I a V).
Nesta reconstrução, além dos marcos estruturais, pretendemos recuperar
brevemente as histórias do Banco do Brasil, do Departamento de Administração
do Serviço Público – Dasp, da Superintendência da Moeda e do Crédito –
Sumoc, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE e do
Banco Central, cujas burocracias alimentaram os quadros permanentes do
Ministério da Fazenda, da Secretaria do Planejamento da Presidência da
República e da Sudene. Mas com um objetivo muito específico: tentar captar a
lógica de ação desta burocracia a partir de sua atuação na formação ou em
alguns momentos da história destas instituições.
sugerem que deve-se procurar as raízes de classe da burocracia ... Mas como explicar a
política do Império sem considerar como fundamental a questão da escravidão? Não
porque (a ordem econômica) determine nada, nem pela origem de classe da burocracia, mas
porque a ordem econômica deve ser vista como elemento condicionante, pois a ordem
econômica e política do Império é impensável sem a escravidão. Isto posto, pode-se pensar
na margem de liberdade que os atores políticos tiveram no Império, o papel da burocracia,
etc..."
13
Depoimentos existentes nos arquivos do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas do Rio de
Janeiro.
23
C
APÍTULO II
O
DESENVOLVIMENTO DA PESQUISA
Três decisões de ordem metodológica foram importantes para o
desenvolvimento do presente estudo e acabaram por estabelecer os limites de
seu alcance analítico. Em primeiro lugar, para definirmos o espaço de poder da
burocracia objeto deste estudo, optamos pela identificação dos recursos
políticos que estavam à sua disposição nos momentos analisados, recursos estes
que eram um dos resultados possíveis dentro dos constrangimentos estruturais e
das alianças disponíveis em um determinado contexto. Neste caso, partimos do
estudo do aparelho institucional ou das propostas de mudança no seu desenho,
que para nós foram tratados como resultados observáveis deste espaço de
poder, e onde percebemos que a burocracia atua com grande desenvoltura.
Assim sendo, por exemplo, a criação da Sumoc, do Banco Central e
principalmente o encaminhamento das propostas da Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas serão observados como manifestações
deste espaço de poder.
Em segundo lugar, para entendermos a lógica de ação da burocracia,
tendo como referência estes resultados no quadro institucional, partimos de
depoimentos e entrevistas dos próprios burocratas. E encontramos algumas
barreiras que não tivemos condições práticas de superar, o que limitou o
alcance analítico do estudo. Não tivemos condições, por exemplo, de contrapor
aos depoimentos da burocracia ligada à formação da Sumoc e do Banco
Central, evidências empíricas de outras fontes que pudessem determinar
contornos ao que declaravam ter sido sua prática. No caso da Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas, avançamos bem mais nesta direção,
contrapondo às entrevistas documentos da época, além do acompanhamento das
discussões pela imprensa e depoimentos de pessoas que trabalharam no
Governo, mas que não pertencem à máquina. Mesmo neste caso, permaneceu
um certo desconforto de estarmos excessivamente dependentes do material
obtido nas entrevistas. Acreditamos, entretanto, que apesar destas limitações foi
possível captar parte da lógica que conduziu a ação desta burocracia. Neste
aspecto, concorre a nosso favor o fato de que não pretendemos avaliar políticas
e muito menos seus resultados, e sim concluir sobre a lógica de ação da
burocracia, para o que bons depoimentos e boas histórias de vida são
fundamentais.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
24
Em terceiro lugar, por estarmos observando uma parte da burocracia
ligada à área econômica do Governo, não pudemos fugir da aventura de lidar
com temas muito distantes de nossa formação acadêmica e mesmo profissional.
E ao abordar estes temas, tivemos que tentar entendê-los, não só para poder
perceber a movimentação da burocracia nos debates que se travavam, como
também para fornecer informações mínimas àqueles que, como nós, não são
economistas. Os resultados foram modestos, e talvez, se dominássemos o
assunto, pudéssemos escrever menos e explicar mais. Decidimos, muitas vezes,
recorrer a longas citações, com receio de, ao tentar "traduzi-las", cometer erros
ou omitir elementos que prejudicassem ainda mais a compreensão. Esperamos
que nosso esforço tenha sido suficiente para o entendimento dos temas
abordados.
O levantamento de informações desenvolveu-se em duas etapas. A
primeira, durante os anos de 1991 e 1992, através de sete entrevistas com
pessoas que haviam participado durante a década de 80 de órgãos
governamentais federais da área econômica em funções de decisão
14
. A
característica comum destas pessoas é que todas elas, com exceção de uma, não
faziam parte do quadro permanente da administração pública federal. Haviam
participado do Governo a convite do Presidente da República, de algum
ministro ou dirigente de órgão, sendo que alguns deles "sobreviveram" a uma
ou até duas trocas equipe. Todos já haviam deixado seus postos no momento da
entrevista, sendo que alguns ocupavam cargos em administrações estaduais,
outros estavam na Universidade (de onde haviam saído para desempenhar as
funções públicas) ou tinham ido para a empresa privada.
Nestas entrevistas, através do exame dos obstáculos políticos, bem como
dos elementos facilitadores, tanto no que se refere a instituições quanto a
agentes implementadores, foram levantadas informações sobre as políticas
fiscal, de liberalização comercial e de privatização. A análise destas políticas
não faz parte deste trabalho, mas pudemos aproveitar parte das entrevistas para
examinar a questão do papel desempenhado pelos agentes implementadores. No
correr deste trabalho, pudemos reunir depoimentos que se juntaram à nossa
experiência pessoal como ocupante de cargos públicos a níveis estadual e
federal durante a mesma década.
A segunda etapa da pesquisa, agora já com um projeto definido,
desenvolveu-se durante os anos de 1992 e 1993. Nesta fase, realizamos quinze
entrevistas com Ministros da Fazenda e Planejamento, Presidentes do Banco
Central, funcionários de carreira do Banco Central, do Banco do Brasil, do
Ministério da Fazenda e da Secretaria do Planejamento da Presidência da
República. A grande maioria deles havia participado da Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas, instituída pelo Voto 283/84, de 21 de
agosto de 1984, do Conselho Monetário Nacional: dos 106 membros da
14
Para realizarmos estas entrevistas, aproveitamos a oportunidade oferecida pela professora
Lourdes Sola, a quem agradecemos. Elas foram realizadas para um trabalho que a
professora estava desenvolvendo para a Cepal, do qual participamos.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
25
Comissão, entrevistamos treze. Destes, alguns ainda estavam na ativa, muitos
ocupando cargos no primeiro escalão do Governo Itamar Franco. Alguns já
estavam aposentados, e outros estavam trabalhando na iniciativa privada, em
organismos internacionais ou na Universidade. Uma ressalva é importante neste
momento. Apesar de muitos dos entrevistados serem funcionários do Banco do
Brasil e do Banco Central, vamos considerá-los como pertencendo ao setor
Governo, pois praticamente todos eles (com exceção de um) saíram do Banco
do Brasil ou do Banco Central e foram trabalhar em algum ministério da área
econômica, não tendo retomado para seus locais de origem. Assim, apesar de
seus salários serem pagos pela fonte, o que faz diferença, pois receberiam muito
menos nos ministérios, não estão mais ligados à lógica organizacional interna
do Banco Central ou Banco do Brasil.
Nesta etapa da pesquisa, as entrevistas foram feitas através de perguntas
abertas, centradas no seu percurso pessoal e profissional, na sua visão do papel
do Estado e de seu papel como funcionários públicos, na sua avaliação das
relações da administração centralizada com o Poder Legislativo, Partidos
Políticos e grupos de interesse, e finalmente na sua visão do papel da sua
"corporação" (Banco Central, Banco do Brasil, Receita Federal, etc.), quando
fosse o caso. As entrevistas foram gravadas, e, com algumas exceções, a
riqueza de detalhes e a franqueza das informações foram garantidas pelo fato de
estarmos tratando de acontecimentos que pertenciam ao passado, além de que
fomos considerada "da casa" por ter trabalhado na área por um certo período.
Outro fator que facilitou nossa tarefa foi a rapidez com que muitos deles se
comunicavam entre si, "anunciando" a nossa chegada (o que nos fez descobrir
que constituíam "um grupo"), e que resultou, não raras vezes, em encontrarmos
material escrito e de arquivo preparados de antemão para ilustrara entrevista.
Na realidade, tivemos que nos precaver, tal o entusiasmo que tomou conta de
parte dos entrevistados, ao perceberem que finalmente "sua” história ia ser
contada.
Pesquisamos também os arquivos do Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio
Vargas do Rio de Janeiro – CPDOC-FGV, para levantar, entre os documentos
da série História Oral, os depoimentos de dirigentes da política econômica nas
décadas de 50, 60, 70 e 80, além daqueles depoimentos de alguns burocratas
"históricos". Pesquisamos ainda os "arquivos" do Ministério da Fazenda. Estes
arquivos estão espalhados em um depósito no subsolo do edifício central.
Muitas pastas tiveram seus papéis espalhados pelas prateleiras, estando em total
desordem. Assim, pôde-se observar documentos originais misturados com
folhetos de propaganda, rascunhos sem especificação, etc. Pudemos pesquisar
apenas o material que estava separado em pastas com classificação. A poeira
toma conta de todo o "arquivo" e a impressão que se tem é de que o próximo
destino daquele material será, na melhor das hipóteses, a sua venda para reciclar
papel.
Além das entrevistas e da pesquisa de arquivos, acompanhamos os
debates que se desenrolaram durante os anos de 1984 e 1985, pelos seguintes
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
26
jornais: Gazeta Mercantil, O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, O Globo,
Jornal do Brasil, Jornal de Brasília e Correio Brasiliense.
Tivemos acesso ao arquivo pessoal do Dr. Mailson da Nóbrega e do Dr.
Andrea Sandro Calabi, sendo que o primeiro continha muitos dos documentos
originais produzidos pela Comissão para o Reordenamento das Finanças
Públicas, além de todos os relatórios, parte dos debates pelos jornais e um farto
material sobre os posicionamentos de órgãos e pessoas a respeito das propostas
de reordenamento das finanças públicas. Finalmente, realizamos entrevistas
com outras pessoas que durante os Governos Figueiredo e Sarney ocuparam
cargos na área econômica da administração pública federal, mas que nunca
pertenceram aos quadros de carreira do Estado, a fim de reavaliar nossas
conclusões.
27
C
APÍTULO III
P
RINCIPAIS DESAFIOS CONCEITUAIS E EMPÍRICOS
As reflexões aqui expostas partiram de preocupações que se
desenvolveram em diferentes níveis de abstração. A dificuldade em delimitar
um objeto de estudo, em definir um quadro de referências para observá-lo e em
apresentar resultados que avancem na tarefa de "desvendar o real", nos faz
sentir saudades da fase em que esta tarefa já vinha sendo em grande parte
resolvida, ao adotar-se um arcabouço teórico nascido numa das "grandes
doutrinas". Mas a inquietação toma o lugar das saudades, quando nos
convencemos, como aponta Martins (1985), dos efeitos inibitórios destas
interpretações e nos pomos a campo para prosseguir na construção do
conhecimento.
Entretanto, a descoberta da motivação não resolve o problema. A
dificuldade em olhar a questão da burocracia começa ao percebermos que, não
são só os condicionantes estruturais, nem só os interesses de grupo, nem só os
traços fundadores que compõem o tipo ideal weberiano, nem só o
corporativismo, nem só o contexto, mas tudo ao mesmo tempo, e muita coisa
mais, delimita o espaço de poder da burocracia, bem como molda sua lógica de
ação. Como a literatura tem enfrentado a questão?
A maioria das análises que compõem o arquivo teórico do tema centra-
se numa destas variáveis. Um balanço da literatura brasileira nos faz concordar
com Oszlak, que em meados da década de 80 dizia que havia um déficit de
compreensão da dinâmica interna da burocracia nos estudos dos cientistas
políticos e um déficit de contextualização nos estudos dos administradores
(OSZLAK 1984). E acrescentaríamos que há falta de conhecimento político e
sociológico da burocracia: quem é esta burocracia, de que grupo social se
origina, o que a motiva, como utiliza os recursos que tem disponíveis, como se
move em situações de conflito, que espaço de poder pode deter, como constrói
este espaço?
15
No caso dos trabalhos brasileiros, existe uma outra lacuna, pois quando
se fala em burocracia pública confunde-se muitas vezes a do "setor empresa"
com a do "setor governo" (na terminologia adotada por MARTINS 1985, que
15
Dentre os vários trabalhos presentes na literatura norte-americana e que faz uma análise do
background social, educacional, das carreiras e das atitudes da burocracia nas sociedades
modernas está o de ABERBACH, Joel D e outros .Bureaucrats and Politicians in Western
Democracy. Cambridge, Mass., Harvard University Press, 1981.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
28
sempre se preocupou com a distinção). Tratar como iguais quanto ao seu espaço
de poder e quanto à sua lógica de ação, ou principalmente minimizar o papel da
burocracia do setor Governo, tem sido comum nos estudos brasileiros. A
primeira é apontada como tendo um papel importante como agente na definição
das políticas gerais, e afirmamos que a segunda parece ter um papel importante
na definição do desenho institucional do Estado e portanto nas propostas de
reforma
16
.
Ao lado da tendência de minimizar o papel da burocracia do setor
governo está a idéia de considerá-la a depositária de um conjunto de
características negativas, desde a incompetência, até os traços cartoriais e
carreiristas, o que parece não resistir à comprovação empírica. Caminha nesta
direção a análise de Wanderley Guilherme dos Santos, que considera que há
uma divisão entre uma parte do aparelho de estado centralizado onde estas
características apareceriam com força, e a outra parte descentralizada (empresas
e autarquias), que por ter sido criada dentro de padrões onde a competência e a
eficiência eram fundamentais, foi protegida da "lógica cartorial". E acrescenta:
"A obrigação de obter resultados eficientes na operação do setor público
descentralizado, que transforma os responsáveis pelas diversas unidades deste
setor em atores políticos relevantes" (SANTOS 1982, p. 73).
Temos consciência de que não conseguiremos fugir muito dos dilemas
que a literatura apresenta, pois, além das dificuldades apontadas, este não será
um trabalho de construção teórica. Mas é importante ressaltar que
desenvolvemos o estudo tendo consciência de que cada vez que nos
aprofundamos numa destas dimensões, as outras aparecem perturbando o
raciocínio. Realmente uma boa dose de sincretismo (não de síntese) teórico
seja, talvez, "a única forma de aproximação conceitual capaz de captar a
complexidade da burocracia estatal" (OSZLAK 1984).
Max Weber salvou o termo burocracia de uma conotação negativa que
carregava desde sua origem no século XVIII
17
ao considerar o fenômeno
burocrático como a manifestação da forma de dominação racional legítima, que
caracteriza o estado moderno. Para ele, a burocracia tem no estado moderno o
terreno propício para o seu desenvolvimento, pois torna-se a principal agente
16
Na realidade, o presente trabalho vai tratar de uma burocracia que transita entre o setor
centralizado (Governo) e o setor descentralizado (empresa), pois os nossos entrevistados
estão em sua maioria funcionalmente vinculados ao Banco Central e Banco do Brasil. Esta
vinculação, que faz muita diferença em termos salariais, pois ganham muito mais do que
seus colegas ligados às carreiras dos ministérios, praticamente desaparece quando vamos
analisar sua atuação, pois estão afastados há muito tempo de seus órgãos de origem e
colocados à disposição dos ministérios. Além disto, todas as situações que vamos
examinar, referem-se a políticas que foram elaboradas e conduzidas em órgãos da
administração centralizada.
17
"Vincent de Gournay, um economista fisiocrático, usou o termo pela primeira vez no
Século XVIII, referindo-se criticamente ao corpo de funcionários da administração estatal,
responsáveis pela execução das medidas centralizadoras ditadas pela monarquia absoluta".
BOBBIO, Norberto e outros. Dicionário de Política. 4a edição, EDUNB, Brasília, 1992, p.
124.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
29
das ações racionais e, portanto, da legalidade deste estado. Mostra que é no
Estado moderno que se observa a expansão qualitativa e quantitativa das
funções administrativas, o que permite a existência de atividades regulares
distribuídas de forma mais ou menos fixas; é nele, também, que se dá o
desenvolvimento de um sistema de racionalidade legal que estabelece o
princípio da autoridade, o poder de dar ordens e que define as normas
coercitivas. Outra pré-condição para o predomínio da dominação burocrático-
legal nas sociedades modernas destacada por Weber é a presença de uma
economia monetária que permite a remuneração dos serviços, calculada em
relação ao tipo de função exercida e não em relação à produção. Finalmente,
destaca que este processo é conduzido por um conjunto de pessoas com
qualificações e treinamento específicos, definidos por um regulamento geral
que estabelece normas de relações impessoais entre governantes e governados
baseados no princípio da autoridade hierárquica, e que são selecionados a partir
de critérios baseados em seus conhecimentos técnicos e dos regulamentos,
aferidos por exames especializados.
O desdobramento de cada um destes conceitos fornece material mais do
que suficiente aos estudos dos administradores para entender as funcionalidades
e disfuncionalidades dos aparelhos burocráticos em sociedades concretas, com
todas as limitações de uma abordagem estática e conservadora. Na realidade,
estes estudos tentam utilizar categorias técnicas e descritivas para caracterizar
relações de poder, e esta é sua falha. Mas são muitas vezes úteis na sua tarefa
descritiva e na análise das lógicas de ação de burocracias concretas, e deles
vamos nos valer.
O que poucos percebem, como aponta Beetham (1985, p. 63), é que
estas categorias foram trabalhadas por Weber justamente para afastá-lo da
noção conservadora de burocracia, segundo a qual ela representaria uma força
neutra, fundada nos valores universais da sociedade, colocada acima dos
interesses particulares ou de classe e detentora de uma sabedoria e de um
conjunto de características específicas que garantiria esta neutralidade
18
.
18
"The conception of bureaucracy held by the `conservative' wing of the Verein was typefied
by Gustav Schmoller, the historian of Prussian administration. Schmoller's view was that
bureaucracy stood, alongside the monarchy, as a neutral force above the competing
particular interests of party and class, embodying the universal interest of society as a
whole, and endowed with a political special wisdom. This conception was a recurring one
in German thought, its best known exponent being the philosopher Hegel. Dieter
Lindenlaub argues that Schmoller's view was not in fact taken from Hegel, but derived
directely from his own historical researches... Whatever the source, his conclusions were
similar. Essencially, bureaucracy was conceived as an independent political force, endowed
with the qualities of wisdom and desinterestedness, and hence supremely fitted to direct the
affairs of society. Among the older generation of the Verein, the magnificent achievements
of German and Austrian bureaucracies formed a constant refrain. Their opposition to
political democratization lay in the fear that the independent government of monarch and
bureaucracy would be replaced by government based upon the particular interests of party
and class." BEETHAM 1984, p. 63-64.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
30
A crítica de Weber à visão conservadora fica evidente quando, numa
abordagem dinâmica, analisa os conflitos relacionados com o tipo de
dominação burocrático legal nas sociedades capitalistas modernas. Em primeiro
lugar, aponta que os detentores do poder da força concentram também os meios
de administração e de gestão dos aparelhos de dominação legal nestas
sociedades, o que pode acarretar tanto as disputas entre a justiça formal e a
justiça substantiva, quanto aquelas entre a liderança política e o aparelho
burocrático (detentor que é do conhecimento técnico e da informação). Deste
conflito, e não de nenhuma característica intrínseca à burocracia, é que surge
para Weber sua tendência de exceder suas funções, e tornar-se uma força à
parte dentro da sociedade, capaz de influenciar seus rumos: "passa a constituir
um grupo de poder dentro do Estado, e um estrato social com status específico
dentro da sociedade como um todo". Longe de considerar este traço como
fazendo parte da essência da burocracia, como os conservadores pensavam,
Weber apontava esta tendência empiricamente comprovada, como uma
aberração, desde que ela envolvia a usurpação das funções, estas sim, inerentes
aos políticos (BEETHAM 1985, p. 65). E esta tendência parecia se acentuar nas
sociedades avançadas, o que fazia Weber ser pessimista em relação ao futuro do
pensamento racional-legal representado pela burocracia.
Outra característica da dominação burocrático-legal apontada por Weber
e que o afasta da noção dos conservadores, é que ela garante o "nivelamento das
diferenças sociais", pois se baseia em regras gerais que são iguais para todos. É
este o terreno onde se desenvolvem os conflitos que se inserem nas tensas
relações entre burocracia e democracia de massas, ou seja, as formas de
controle para limitar a tendência à autonomia da burocracia (formação de uma
casta privilegiada, que tem sua base social nos grupos de poder que controlam a
organização da sociedade) e a dificuldade em garantir a igualdade de todos
perante as normas (por diferenças de ordem econômica e de status dos
membros da sociedade). Quando a dominação burocrático-legal não é suficiente
para garantir a legitimidade, Weber indica que o sistema muitas vezes se apóia
em recursos carismáticos ou patrimoniais.
A questão da autonomia que a burocracia pode atingir nas sociedades
capitalistas modernas está também associada para Weber à idéia de sua grande
"permanência" e de seu "irresistível avanço" nestas sociedades, o que lhe daria
às vezes um poder que poderia ameaçar a própria democracia - o funcionalismo
assalariado do moderno Estado burocrático seria o substituto do estamento
feudal: "No momento, a ditadura do funcionário e não a do trabalhador está a
caminho" (WEBER 1979, p. 67).
A necessidade de "alargar" o conceito de autonomia da burocracia
adotado por algumas interpretações de Weber, ultrapassando a idéia de que esta
autonomia não se basearia apenas nas suas qualidades técnicas e de
especialização, já havia sido apontada por Carlos Estevam Martins quando
afirmou que o "poder burocrático" não podia ser confundido com o "poder
tecnocrático" (MARTINS 1974, p. 32). Mas foi Raymundo Faoro (1958) quem
mais se aprofundou na análise da burocracia (estudando o caso brasileiro),
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
31
seguindo a tradição weberiana e levando em conta as relações de poder que se
manifestam nesta forma específica de dominação. Voltaremos a este tema
adiante.
Antes de entrarmos na discussão sobre os limites desta autonomia,
convém destacar dois outros debates importantes que aparecem com freqüência
nos estudos sobre o tema. O principal é o que afirma a existência de um "modo
tecnoburocrático ou estatal de produção". Esta análise inovadora parte da idéia
de que haveria, num determinado momento do desenvolvimento do capitalismo,
uma passagem que transformaria os funcionários no sentido weberiano em
tecnoburocratas
19
. Esta passagem estaria garantida pelo novo papel de produtor
de bens que o Estado capitalista moderno passa a desempenhar, e a
tecnoburocracia se transformaria na controladora da propriedade coletiva dos
bens deste Estado, através de seu saber técnico, operacional e do monopólio da
informação (BRESSER PEREIRA 1980). O surgimento de uma terceira classe,
os tecnoburocratas, que ao lado das outras duas — burguesia e proletariado —
estabeleceriam seus padrões de relacionamento dependendo do momento
capitalista e das peculiaridades de cada sociedade, seria possível pois esta abor-
dagem teórica confere ao Estado uma grande autonomia: "O Estado é um meca-
nismo regulador da sociedade tão importante quanto o mercado e, portanto,
autônomo em relação ao mercado" (BRESSER PEREIRA I993b, p. 45).
O outro debate parte de uma abordagem antropológica, e identifica o
surgimento das burocracias como subculturas autônomas, com uma base social
consolidada a tal ponto que seria capaz de transformá-la em agentes em
condições de ter participação com sentido coletivo. Esta avaliação conduz à
possibilidade de afirmar que a "constituição desta coletividade, dado o alto grau
de diferenciação social e integração interna que poderia atingir, viria a
determinar uma reformulação na estrutura de classes nas sociedades
industriais", ou seja, que esta burocracia constituiria uma classe autônoma, em
condições de colocar-se "em contraposição às demais classes, frações e setores
de classe da sociedade com as quais disputaria, em aliança com umas e conflito
com outras, o privilégio de redefinir e reordenar o sistema de relações de
dominação e apropriação em função de seus interesses específicos de classe"
(GEIGER, citado por MARTINS 1974, p. 44).
As duas visões, que concedem uma excessiva autonomia à burocracia,
se fragilizam por confundirem traços constitutivos e diferenciadores de uma
categoria social com a estrutura social de uma dada sociedade. Em outras
palavras, sua posição na estrutura social não está garantida, mesmo pertencendo
19
Há vários tratamentos conceituais para o termo técnicos: tecnocrata, tecnoburocrata,
"technopols". Cada um deles guarda um significado que tem relação com o grau de poder
que se atribui a esta categoria, já que o conhecimento e a especialização são suas
características constitutivas. Assim, o tecnocrata é entendido como o funcionário que
procura soluções racionais baseadas em diagnósticos imparciais e um profundo
conhecimento da matéria, e que se considera ou pretende ser reconhecido como o detentor
da posição verdadeira; o "technopol" é o termo que Williamson 1992 usa para denominar
os agentes encarregados do ajuste do aparelho de Estado nos anos 80 e 90 em diversos
países da América Latina.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
32
a um Estado produtor, e tendo interesses próprios, capacidades técnica e
operacional distintivas, coesão interna. Esta posição só se define a partir de um
dado modo de desenvolvimento das relações entre as classes em situações
concretas e não no nível de abstração em que este debate se desenvolve. Um
Estado produtor pode tanto gerar uma burocracia autônoma, porque os grupos
de poder que compõem sua estrutura de dominação não consideram suas
qualificações técnicas como uma ameaça, ou, ao contrário, pode gerar uma
burocracia dependente porque atrelada aos interesses de um projeto político
definido como prioritário pela estrutura de dominação.
Tanto a percepção da burocracia como agente de um estado produtor de
bens quanto a visão antropológica podem ser úteis na sua qualificação como
categoria social, mas não são suficientes para antecipar seu papel na estrutura
social.
Mas onde encontraríamos os limites da autonomia da burocracia? Weber
se preocupa mais com os perigos da irreversibilidade do processo burocrático
nas sociedades modernas, e não com seus limites. Isto porque falta também na
sua construção teórica uma análise da estrutura de dominação política que
estabeleça, em formações sociais concretas, os limites das relações entre as
classes. Para entendermos estes limites precisamos recorrer a outras abordagens
teóricas.
Clauss Offe nos oferece um bom caminho: para ele, nas sociedades
capitalistas modernas o Estado e o aparelho burocrático nem estão a serviço
nem são instrumentos que uma classe utiliza contra as outras. Sua estrutura e
atividades "consistem na imposição e na garantia duradoura de regras que
institucionalizam as relações de classe específicas de uma sociedade capitalista.
O Estado (e a burocracia) não defendem os interesses particulares de uma
classe, mas sim os interesses comuns de todos os membros de uma sociedade
capitalista de classes" (OFFE e RONGE 1984, p. 122-123). Como a sociedade
capitalista está dividida em classes, estes interesses comuns têm que surgir da
tensa relação entre interesses contraditórios que se explicitam na esfera do
Estado.
O Estado, para Offe, é a forma institucional do poder público, forma
esta que se define na sua relação com a produção material. Nesta relação,
aponta quatro determinações funcionais: a privatização da produção, a
dependência dos impostos, a acumulação como ponto de referência e a
legitimação democrática
20
.
20
Privatização da produção: o poder político está impedido de organizar a produção material
segundo seus próprios critérios, e, mesmo quando o faz, tem por objetivo colocar à
disposição da produção privada, a custos baixos, bens de infra-estrutura, transportes, etc.
Dependência de impostos: o poder público depende através do sistema tributário do volume
da acumulação privada. A acumulação como ponto de referência: como o poder estatal
depende do processo de acumulação capitalista, o seu interesse é manter as condições
políticas que favoreçam o processo privado de acumulação. A legitimação democrática:
através do sistema de governo parlamentar-democrático eleito em sufrágio universal
procura-se assegurar de forma politicamente duradoura a delimitação da esfera privada e
pública, além da esfera de liberdade econômica (OFFE e RONGE 1984, p. 123-125).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
33
O aspecto dinâmico da política estatal, ou a "política do Estado
capitalista", define-se, para o autor, pela compatibilização destas quatro
determinações estruturais. Mas como alcançar uma harmonia entre elas? Ainda
respondendo de forma abstrata, ela pode ser atingida através da generalização
da forma mercadoria em todos os níveis e por todos os cidadãos: este é "o ponto
de referência mais geral, em relação ao qual podemos analisar as estratégias
individuais das políticas do Estado" (OFFE e RONGE 1984, p. 126). Mas
acontece que esta harmonia dificilmente existe em sociedades concretas, pois o
desenvolvimento capitalista apresenta uma "tendência permanente à paralisação
da ‘viabilidade de mercado’ e ... à interrupção das relações de troca" (OFFE e
RONGE 1984, p. 126). No momento em que o mercado não consegue ser o
elemento harmonizador, acrescenta Offe, o Estado intervém para manter a
forma mercadoria: assim, "esta estratégia mais geral do Estado capitalista não
visa em absoluto a uma proteção especial a um certo interesse de classes, mas
sim ao interesse geral de todas as classes" (OFFE e RONGE 1984, p. 128).
Como as sociedades modernas se caracterizam pela racionalidade, onde cada
segmento quer maximizar o atendimento de seus interesses, este papel
harmonizador do Estado vai variar muito quer se esteja num momento de
abundância ou de escassez dos recursos disponíveis.
Em resumo, na visão weberiana a burocracia, como agente das ações
racionais nas sociedades capitalistas modernas, é a base da legalidade do
Estado, pois o capitalismo precisa desta racionalidade para desenvolver-se.
Assim, há uma relação de interdependência por interesses recíprocos, pois
capitalismo e burocracia "casam-se" pela racionalidade. Por outro lado, na
interpretação de Offe, a burocracia deve ser entendida como agente (e como
parte) dos interesses comuns dos diferentes membros de uma sociedade
capitalista de classes. Se a primeira abordagem conduz o estudo empírico para a
análise mais descritiva da "racionalidade", de seus conflitos, contradições e
possíveis pactos de superação, a segunda nos conduz na direção do
desvendamento das relações de poder, das suas formas de organização e da
ação do Estado, em diferentes "situações capitalistas" (MARTINS 1985, p. 25-
26). Mas não podemos e não devemos abandonar nenhuma das duas
abordagens, pois acabam sendo complementares.
Para desvendar as relações de poder e suas formas de organização,
Poulantzas nos recomenda, no caso da burocracia, que a encaremos como uma
categoria social com uma unidade própria, conseqüência da organização do
Estado e de sua autonomia relativa nas formações capitalistas
21
. Chama a
atenção, no entanto, para que não se trate esta unidade da burocracia como se
tivesse uma posição acima das classes, pois ela, como qualquer outro grupo,
sofre as conseqüências das contradições e divisões presentes no bloco de poder
21
Sobre a autonomia relativa do Estado nas formações capitalistas, Poulantzas diz que a
autonomia constitutiva do Estado capitalista nos "remete à materialidade deste Estado em
sua separação relativa das relações de produção, e à especificidade das classes e da luta de
classes ... que esta separação implica" (POULANTZAS 1979, p. 153).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
34
(POULANTZAS 1979, p. 187). E acrescentaríamos que é justamente esta
situação de permanente conflito que lhe abre um espaço privilegiado para o
exercício de um poder específico e que desafia o pesquisador a avançar no seu
conhecimento
22
.
No que este raciocínio abstrato pode nos ajudar a compreender o espaço
de poder da burocracia e sua lógica de ação no caso brasileiro? Em primeiro
lugar, ele serve para definir nosso ponto de partida, que pretendemos manter
apenas como uma base referencial, já que não temos a pretensão de trabalhar no
nível de abstração em que ele se desenvolve. Em segundo lugar, porque ele nos
remete aos principais "dilemas" que a produção teórica brasileira sobre o
assunto tem se debatido nos últimos vinte anos. E finalmente, porque sem ele
não ousaríamos trabalhar com as "palavras-chave" de nosso problema de
pesquisa que são "espaço de poder” e "lógica de ação".
Afastando qualquer pretensão de alcançar todas as análises já
desenvolvidas sobre o fenômeno burocrático pelos autores que analisaram o
caso brasileiro, escolhemos algumas discussões que a nosso ver melhor
dialogam com nossa preocupação principal: olharemos seu espaço de poder não
somente através dos recursos políticos disponíveis como também através dos
graus de autonomia com que consegue atuar. A análise do conceito de anéis
burocráticos, das situações de insulamento burocrático, da feudalização, da
questão do corporativismo e da "defesa do interesse público" nos ajudará a
compreender a lógica de ação da burocracia.
Ao privilegiar estes debates, deixamos de lado um outro bastante
atraente em suas qualidades descritivas, mas que acaba perdendo em poder
explicativo, por não contemplar as relações de poder e por tratar a burocracia
com uma autonomia "em estado puro" que ela não possui, como já assinalamos
anteriormente. Entre estes trabalhos, destacamos dois: o de Graham (1968) e o
de Schneider (1991), ambos autores americanos, que desenvolveram amplas
pesquisas sobre a questão da organização burocrática no Brasil.
O estudo de Graham se propõe a responder por que as sucessivas
reformas administrativas que tentaram institucionalizar conceitos e técnicas
"modernas" no Brasil tiveram tão pouco êxito em atingir seus objetivos,
prevalecendo uma situação dominada pela "patronagem", pelo favoritismo, pelo
nepotismo e pela ineficiência. Para responder a esta questão, tratada como sua
variável dependente, o autor elege três variáveis independentes e conclui que: a
estrutura política que está na base da organização do serviço público no Brasil é
uma das grandes responsáveis por estes resultados; o emprego de normas que
governam o comportamento administrativo e que estão em conflito com as
demandas do sistema político e social contribuem com sua parte; e, finalmente,
22
A politização das burocracias que as situações de conflito acarretam, nos obriga a pensar na
questão da democracia, como chama atenção CARDOSO, pois esta politização pode
constituir-se numa ameaça conforme já havia levantado Max Weber: "É necessário
encontrar-se um contrapeso à impostura tecnocrática da única solução possível que muitas
vezes reveste o discurso de uma burocracia que se considera neutra e acima das classes"
(CARDOSO 1975, p. 184).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
35
o emprego de técnicas de gerenciamento que não levam em conta os requisitos
de funcionamento do sistema preexistente e nem os recursos humanos
disponíveis explicam a ineficiência. Na sua tentativa formalista de escolher
variáveis e definir nominalmente conceitos, o autor abandona a análise do
Estado, não leva em conta a estrutura de classes da sociedade brasileira e muito
menos as relações de poder. Assim procede, mantendo fidelidade à idéia de
que, para explicar o funcionamento de uma dada realidade ou suas anomias,
podemos eleger variáveis aleatoriamente e atribuir a cada uma delas um
determinado peso explicativo. As variáveis escolhidas pelo autor, apesar de
comprometerem seu alcance interpretativo, são, entretanto, bons exemplos
descritivos de como a busca de procedimentos universalistas e de leis que
regulam os empregos públicos no Brasil não foram capazes de alterar
profundamente as práticas clientelísticas oriundas de uma matriz personalista
que atravessa a sociedade de cima a baixo desde os tempos coloniais.
O estudo de Schneider se propõe a analisar como as carreiras e os
objetivos individuais dos burocratas brasileiros interagem com os limites
macroestruturais tanto econômicos quanto políticos e porque, apesar destes
burocratas atuarem num Estado insuficientemente organizado e
institucionalizado, acabam obtendo tanto sucesso na definição de políticas,
como é o caso da industrialização.
Schneider constrói uma tipologia composta por quatro categorias sociais
de burocratas: os militares, os políticos, os técnicos-políticos e os técnicos. Os
militares seriam os oficiais que ocupam cargos na administração pública,
excluídas as Forças Armadas. Os políticos seriam os burocratas que participam
(ou participaram em algum momento) do processo eleitoral e ocupam cargos
importantes na administração governamental. E, finalmente, as duas categorias
que mais se aproximam de nosso objeto de estudo: os técnicos-políticos e os
técnicos.
Os técnicos-políticos seriam os altos funcionários recrutados fora da
classe política e dos quadros dos "burocratas de carreira", oriundos das
melhores universidades do Brasil e do exterior, que recebem altos salários e
movimentam-se de uma agência para a outra (quase sempre empresas estatais)
com grande facilidade. São técnicos, mas têm uma visão dos processos
econômicos e políticos razoavelmente formada, orientada por princípios
nacional-desenvolvimentistas e capitalistas e, apesar de terem entrado para o
setor público durante o regime autoritário, sabem que não se deve negligenciar
o quadro político (a correlação de forças) em nenhum momento. Estes
burocratas são os mesmos que Nunes destaca como sendo aqueles que os
militares proclamavam, erradamente, que tinham sido "libertados dos políticos
clientelistas e dos patrões" (NUNES 1978, p. 53-78). Estes técnicos foram
selecionados principalmente no início do regime militar, e tiveram seu auge
entre 1968 e 1974, na fase em que o Congresso deixou de ter importância como
poder legislativo, já que a interferência dos deputados e senadores mais
próximos ao governo central nunca deixou de ser sentida. Aliás, como aponta
Nunes, esta anulação do Congresso acabou provocando um deslocamento da
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
36
ação dos políticos para dentro do executivo, inclusive com a seleção de alguns
para desempenhar funções na máquina administrativa, como mostra Schneider.
A quarta categoria social de burocrata analisada por Schneider são os
técnicos, que para ele seriam os menos importantes. Entram para a carreira
pública por concurso, e apenas uns poucos atingem posições de confiança ou
decisão. A importância que acabam tendo, para o autor, é o fato de marcarem
sua atuação pela racionalidade técnica nos estreitos limites da área em que
atuam (um projeto ou um programa), sendo que quando são chamados para um
cargo de confiança, sua indicação é acompanhada pela comunicação de que a
escolha se baseou na certeza de que ele continuará atuando como técnico (o que
está totalmente de acordo com suas expectativas). Outra característica do
técnico é o seu baixo grau de circulação entre agências (em geral do setor
Governo) e isto se deve principalmente, segundo as conclusões de pesquisa do
autor, pela sua aversão ao risco. Não são articuladores nem atuam em coalizões,
mas têm uma importante contribuição na formação das agendas e no
fornecimento de informações para os decisores.
Nenhuma das categorias construídas por Schneider se enquadra no tipo
de burocrata ou de ação burocrática que pretendemos analisar no presente
trabalho. E não se trata apenas de fornecer traços distintivos para criar um
quinto tipo. Trata-se de uma diferença substantiva, que acaba tendo como
resultado não um novo "tipo", mas sim uma outra pergunta. A pergunta seria:
quais os recursos políticos que uma determinada burocracia tem à sua
disposição numa dada situação e quais os limites "impostos" pela estrutura de
dominação imperante numa conjuntura concreta? A descrição dos tipos e de
suas carreiras - 'e tornar claro "de quem estamos falando", mas não são
condições. suficientes para respondermos em que espaço de poder transitavam
(ou que recursos políticos tinham à sua disposição) e são condições necessárias,
mas não suficientes, para entendermos a lógica que orientava suas ações.
Privilegiar o debate sobre os graus de autonomia que a burocracia
atinge em formações sociais concretas já significa uma opção teórica e
metodológica. Significa que estamos entendendo que o espaço de poder se
define num momento específico das relações entre sociedade, economia e
Estado e que se refere a uma sociedade específica. Com isto já abandonamos
qualquer tentativa apriorista de definir um espaço "reservado" à burocracia nas
sociedades capitalistas. E significa também que, apesar de rejeitarmos a idéia de
que a burocracia se constitui numa classe ou num estamento social, precisamos
estudá-la com um grau de "isolamento" que possibilite entendermos, através de
sua lógica de ação, a dinâmica das relações de poder que atravessam o Estado,
numa dada sociedade capitalista.
Ao apontar os principais equívocos nas explicações sobre as relações
entre sociedade, economia e Estado, presentes na interpretação teórica corrente,
Vianna afirma que alguns autores brasileiros que trabalham com o tema
conseguiram evitar, e com sucesso, a dicotomia apontada na introdução deste
trabalho, que coloca de um lado autonomistas e de outro instrumentalistas (ou
então o Estado como sendo um aparelho controlado pelo estamento burocrático
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
37
ou como sendo o comitê executivo das classes dominantes, nas palavras de
CARDOSO 1975, p. 165). Vianna sugere que ao estudar-se formações sociais
capitalistas concretas, não se tome Estado e sociedade, ou Estado e classes
dominantes, como duas entidades distintas que se confrontam, mas sim
observe-se quais as estruturas que os solidariza e, concomitantemente, quais os
movimentos que os separa (VIANNA 1987, p. 60-61). Aqui está a dificuldade,
mas talvez um caminho bastante criativo para analisar o espaço de poder da
burocracia.
Luciano Martins foi um dos autores que mais diretamente enfrentou a
questão da autonomia relativa da burocracia. O eixo de sua análise está na idéia
de que, no caso brasileiro, em muitos momentos, os "núcleos de decisão" se
distanciaram do "locus formal do poder". Este "afastamento" é que cria
condições para colocar à disposição dos agentes que se situavam nos "elos
intermediários" (a elite da burocracia pública da área econômica, no nosso
caso) os recursos políticos que lhe permitiram atuar com resultados (na
definição, por exemplo, da política industrial entre os anos 30 e 50). Isto ocorre
porque na nossa “situação capitalista" — tardia e dependente —, a organização
do poder e do Estado se dá com a velocidade de quem deve correr atrás do
prejuízo, o que cria condições para que Estado e a sua burocracia tenham um
papel estruturante, muito antes que se manifeste qualquer "tendência à
paralisação da viabilidade de mercado" como apontava Offe. Draibe acrescenta
que a força fundadora do Estado no Brasil está na incapacidade hegemônica dos
vários setores oligárquicos e urbano-industriais dominantes, o que lhe dá e à sua
burocracia um caráter especial (DRAIBE 1985).
Muitas são as conseqüências deste quadro sobre o papel que o Estado e
seus agentes passam a desempenhar no cenário brasileiro: "... Nestas condições,
parece claro que o Estado não pode limitar-se às funções tradicionais do Estado
capitalista, ou seja, a de garante dos requisitos sociais necessários à produção e
reprodução do sistema. Melhor dito: sendo outros estes requisitos sociais, outra
é a natureza do papel de garante destes requisitos. Assim, o Estado não apenas
passa a desempenhar o papel decisivo na organização (por via administrativa)
da acumulação, como tem também que gerir o relacionamento com o ‘centro’
capitalista, mediar a ação dos grupos estrangeiros na produção local e ainda
legitimar o exercício desenvolto que desses novos poderes de intervenção faz a
burocracia estatal em beneficio próprio. Em decorrência ... a questão clássica do
‘controle de classe’ exercido sobre o aparelho de Estado cede lugar a uma
problemática muito mais complexa e que aparece sob a forma de uma ambi-
valente (e às vezes contraditória) convergência de interesses entre a burocracia
estatal e a classe propriamente capitalista" (MARTINS 1984, p. 25-26).
Para Luciano Martins, o que permite ao Estado e à sua burocracia
converter-se em "agente histórico de transformação", não é sua autonomia
relativa face à classe dominante, "mas sim a autonomia da dimensão política
face às demais instâncias da estrutura social" (MARTINS 1985, p. 27), que tem
origem num dado modo de desenvolvimento das relações entre estas instâncias,
caracterizado por uma profunda desarticulação social. Esta desarticulação é
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
38
produzida por uma dissociação entre as relações de produção e de reprodução:
"não é dos conflitos travados entre burguesia e proletariado ... que nasce o
impulso para o processo histórico de mudança nas relações econômicas de
produção", mas são as condições criadas pela crise de 1929 que vão permitir
que a industrialização ganhe dinamismo, impulsionada pelo próprio Estado que
passa a "decidir" sobre seu rumo e seu ritmo. Assim, o Estado que surge a partir
de 1930 é, para Martins, não só promotor, como ator da industrialização. E por
isso sua burocracia cresce e tem um papel relevante.
Além disto, é um Estado populista "que se interpõe aos interesses de
classe enquanto mediador, com conseqüências sobre suas relações com os
vários segmentos da sociedade" (MARTINS 1985, p. 34)
23
. Um dos principais
desdobramentos deste quadro é o padrão de relações paternalistas onde o
Estado se apresenta como provedor, os políticos como pedintes e a sociedade
como credora. Como resultado desta matriz formadora, em que as decisões
partem do Estado e não são um resultado de pressões políticas da sociedade,
não é de estranhar que a burocracia tenha um espaço privilegiado de ação, mas
que tenha também uma visão peculiar de suas relações com os políticos e com a
sociedade, como pretendemos mostrar no presente trabalho.
Esta posição sui generis que assume o Estado brasileiro e o papel que
desempenham seus agentes, levou Faoro a afirmar a existência de um estamento
burocrático no país como parte de uma "estratificação aristocrática, com
privilégios e posição definidos pelo (próprio) Estado... com estrutura própria,
que, embora condicionada pelas forças sociais e econômicas, eleva-se acima da
nação... (transforma-se) em árbitro da nação, das suas classes, regulando
materialmente a economia, funcionando como proprietário da soberania"
(FAORO 1958, p. 261-3). Se aceito este grau de autonomia do estamento
burocrático, estreitam-se os caminhos para buscar seus limites e nesta busca os
desdobramentos da abordagem de Faoro não nos ajudam muito.
O que um Estado que assim se apresenta projeta sobre sua burocracia?
Em primeiro lugar, com seu crescente papel na constituição de um sistema
industrial no país, este Estado "cria e reproduz uma burocracia dotada de
interesses próprios" interesses estes que "se realizam através do
intervencionismo estatal" (MARTINS 1985, p. 34). Em outras palavras, a
burocracia passa a ter na defesa da intervenção do Estado um de seus cimentos
unificadores. E como este Estado se apresenta também (principalmente a partir
de 1930), com "um executivo forte, com um aparelho burocrático-
administrativo moderno e complexo que passou a operar através de um corpo
cada vez maior e mais sofisticado de funcionários..." (DRAIBE 1985, p. 21),
durante sua expansão (principalmente na década de 60), sua burocracia tem
condições de se fortalecer, se diferenciar e se tomar peça importante na
formulação e operação de políticas.
23
Ver também BOGGS,Carls.The New Populism and the limits of structural reform. Theory
and Society, USA, v. 12, n4 3, may 1983.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
39
Mas será apenas na formulação e operação de políticas? Parece que não,
pois esta "peculiar forma de Estado" com um "aparelho especial" dotado de um
conjunto de instituições e organismos com 'capacidade própria" e "lógica
específica", cria também uma burocracia "especial", que chega a opostos: ou
pretende "dirigir" o Estado (como aponta HOCHMANN 1990, no caso da
Previdência), ou pretende pensar criticamente o próprio papel intervencionista
deste Estado, propondo-se até a "perder" poder para manter seu espaço
institucional garantido, como veremos no presente trabalho.
O importante estudo de Hochmann sobre a unificação dos Institutos de
Previdência no Brasil é um dos muitos exemplos de um momento de uma
destas burocracias especiais. Ele mostra a vitória de um grupo de técnicos, não
só na nova concepção que passou a comandar a Previdência Social no país a
partir da unificação dos institutos de pensão em 1966, como também na disputa
pelo comando dos principais postos-chave do novo sistema: "A Previdência
Social brasileira passou a ser administrada por um grupo de técnicos oriundos
do IAPI, agora ‘Cardeais da Previdência Social’, que tinha projetos,
perspectivas e concepções desenvolvidos ao longo de 30 anos de uma bem
sucedida carreira pública" (HOCHMANN 1990, p. 2). Na pesquisa que realizou
e nas entrevistas que fez com estes técnicos, o autor destaca — e impressiona
— com o discurso que estes técnicos tinham sobre o papel da Previdência e
sobre o seu papel como burocratas: "A Previdência é uma forma de organização
estatal prevista em lei e, sedo o Governo o povo politicamente organizado,
caberia a ele (Governo) a administração da Previdência" (HOCHMANN 1990,
p. 3). E prosseguem os técnicos: "A unificação significa a realização da
racionalidade técnica e administrativa e estabelece a igualdade entre os
cidadãos. Contra os interesses de vários grupos, sobrepõe o interesse coletivo...
que tem apenas um representante — o Estado e seus agentes —os burocratas"
(HOCHMANN 1990, p. 6). Mesmo considerando-se este caso como extremo,
fica o registro de até onde pode chegar, quando vitorioso, o discurso de uma
burocracia que se "autoproclama como representante do interesse geral" ou do
"interesse público”. Nesta passagem, coincidem o discurso dos agentes
burocráticos com a análise feita por Faoro e citada anteriormente. Mas há uma
longa distância a percorrer entre o que os burocratas pensam que representam e
os limites concretos de sua autonomia em uma determinada situação.
A partir da condição de "pensar o próprio Estado", começa a delinear-se,
a nosso ver, um desdobramento que a análise sobre o caso brasileiro ainda não
contemplou. O papel significativo que a burocracia do setor Governo passa a
ter, quando se apresenta a necessidade de propor o redesenho institucional do
próprio Estado. Este papel adquire ainda mais significado, quando se percebe
que é exercido por um grupo que tem a certeza de que são eles os defensores do
"interesse público" e que devem prestar contas de sua atuação apenas à
"sociedade", denominação genérica que dão à única forma de controle que
consideram legítima, que se origina na parte da sociedade que tem organização
suficiente para consolidar pressões. Em outras palavras, parece que para eles
esta parte "visível" da sociedade é a porta-voz do "interesse público”, visto
como um conjunto de regras éticas, políticas e econômicas que não estão
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
40
sujeitas a diferenças de classe ou de qualquer outro tipo, por isso totalizantes.
Assim nasce uma forma peculiar de entender o "interesse público" que tem
importante papel na montagem da lógica de ação desta burocracia.
Estas regras éticas, políticas e econômicas que constroem o "interesse
público" para a burocracia se modificam de uma conjuntura histórica para
outra. Assim, na década de 50, as regras deviam respeitar os princípios da
eficiência e favorecer o desenvolvimento econômico do país; durante o regime
militar, no período do "milagre", os princípios eram da ordem e da estabilidade
voltadas para o crescimento econômico; no momento de iniciar o ajuste,
período que analisaremos neste estudo, quais seriam as regras éticas, políticas e
econômicas que formariam o "interesse público”?
Este caminho analítico pode se tomar perigoso se não pensarmos nos
graus de liberdade e nos limites da atuação de qualquer burocracia (limites da
sua autonomia). Aqui, aparece mais uma vez aquela dificuldade teórica
apontada no início deste capítulo, ou seja, quando parece que estamos
encontrando um caminho, aparece uma outra dimensão para perturbar o
raciocínio. É este o preço que se paga por não dar um tratamento estático e
nominalista aos conceitos.
Martins examina os graus de liberdade a partir das relações entre
burocracia estatal e classe capitalista, evitando, com o que concordamos, o
debate sobre o caráter estamental ou de classe da burocracia. O que ele propõe é
que se abandone a discussão neste nível de abstração e se parta para a análise de
um contexto específico, que para ele é onde se situa a arena própria para definir
tanto os graus de liberdade quanto os limites da autonomia.
Neste contexto específico, conclui, através do estudo de três agências (o
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico – BNDE como exemplo de
órgão da administração indireta, o Conselho de Desenvolvimento Industrial –
CDI como órgão da administração direta e a Carteira de Comércio Exterior do
Banco do Brasil – Cacex como órgão híbrido), que a autonomia de suas
burocracias depende fundamentalmente do tipo de inserção que as agências têm
no aparelho de Estado
24
. E mostra que ela será maior quanto mais distante do
setor Governo estiver a agência. Este é o caso das empresas estatais. Isto se
pela sua natureza e pelo volume de recursos que elas manuseiam (baseados na
privatização da produção e na acumulação como ponto de referência). E
acrescenta: "... Não é tanto a delegação de atribuições pelo poder político que
confere graus distintos de importância a cada uma dessas agências, mas os
recursos de poder que conseguem reunir e maximizar através de suas próprias
ações e a partir das faculdades conferidas pela natureza de suas respectivas
inserções no aparelho de Estado. São essas condições específicas que se
traduzem concretamente em maior ou menor volume de recursos políticos e
financeiros e em distintos graus de liberdade de ação. Nesse particular parece
24
Sobre o assunto ver também ABRANCHES, Sérgio H. The Divided Leviatan: State and
Economic Policy Formation in Authoritarian Brazil. PhD Thesis, Cornell University, 1978,
mimeo, principalmente o Capítulo 1. Estuda três agências: o CDI, o Consider (Siderurgia) e
a Cacex.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
41
também claro o descompasso entre as condições existentes na órbita da
máquina burocrática tradicional e as que se criam na órbita da nova burocracia
quase-empresarial. É o situar-se fora do setor Governo que constitui a variável
importante e que possibilita a essas agências desenvolverem comportamentos
mais ou menos autônomos e mais ou menos criativos" (MARTINS 1985, p.
192)
25
.
Nosso estudo não tem pretensões comparativas, mas é importante
retermos o conceito de autonomia do aparelho burocrático brasileiro contido
nas conclusões do trabalho de Martins, para depois fazermos o nosso
contraponto:
1. a autonomia da burocracia depende, para Martins, da autonomia
da agência ou órgão a que pertence, que por sua vez se define
pelo tipo de inserção no aparelho de Estado;
2. a "qualidade" desta inserção varia conforme o volume de
recursos econômicos que estão à sua disposição, que por sua vez
varia de acordo com a prioridade que o seu "produto" tem no
mercado;
3. os recursos de poder (políticos e financeiros) destas agências e
de sua burocracia vêm mais do sucesso de sua próprias ações do
que do poder político central;
4. quanto mais distante estas agências estiverem do setor Governo,
maior será sua autonomia e a de sua burocracia.
O seu estudo sobre um órgão do setor Governo (o Conselho de
Desenvolvimento Industrial-CDI) nos fornece os demais elementos para a
construção do seu conceito de autonomia. Martins aponta cinco razões para que
um órgão do setor Governo tenha pouca autonomia de ação
26
: em primeiro
lugar, "a extrema segmentação do aparelho de Estado" toma praticamente
impossível a pretensão de centralizar a implementação de qualquer política e
diminui a autonomia de cada órgão e de sua burocracia. Em segundo lugar, os
órgãos de regulação e controle (em geral situados no setor Governo) e que não
decidem sobre volume de recursos e nem sobre sua fonte, administrando apenas
recursos de natureza institucional (ou seja, incentivos legais, organizacionais e
fiscais), têm sua autonomia limitada. Ao contrário, "os organismos oficiais que
alocam recursos financeiros (do setor empresa) decidem não só a partir de suas
próprias prioridades, como seus critérios de aplicação consideram fatores tais
como a taxa de retorno do investimento, a rentabilidade imediata, as garantias e
os riscos, (que são) critérios quase bancários" (MARTINS 1985, p. 136). Em
terceiro lugar, surgem duas lógicas no interior do aparelho de Estado (no caso
brasileiro) — a empresarial e a do Governo. Para a burocracia da primeira, seu
25
Sobre o papel da empresa estatal ver DAIN, Sulamis. Empresa Estatal e Capitalismo
Contemporâneo, Campinas, Edunicamp-Ícone, 1986.
26
Uma descrição detalhada do que foi o CDI e a análise de sua atuação estão em MARTINS
1985.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
42
gol é o lucro e o equilíbrio financeiro da sua agência. Para a burocracia da
segunda, estas preocupações não existem, e assim não há problema em aprovar
investimentos para uma empresa em situação econômica precária, desde que ela
seja ligada a um setor considerado prioritário do ponto de vista da política
industrial geral.
Em resumo, a autonomia da burocracia do setor Governo seria pequena
por causa da segmentação do aparelho de Estado, das características peculiares
de administração das prioridades, pelo fato de não gerar recursos, por causa de
uma lógica que tem instrumentos de controle pouco eficientes na administração
destes recursos e, conseqüentemente, por ser uma burocracia "sem força", o que
a aproxima do seu conceito negativo de "criadora de problemas, ineficiente e
ritualista".
Não há como discordar das reflexões de Martins sobre a autonomia
relativa (porque circunscrita a uma "situação capitalista") que as agências do
"setor empresa" e sua burocracia atingem num Estado em expansão como o
brasileiro. Mas suas conclusões sobre a falta de autonomia dos órgãos e da
burocracia do setor Governo dão margem a alguns questionamentos.
Será que a fragmentação do aparelho burocrático necessariamente
diminui a sua autonomia? Parece que não, pois mesmo quando esta
fragmentação atinge a organização institucional do Estado, com a multiplicação
e duplicação de agências, como é o caso brasileiro, há uma "solidariedade"
horizontal entre burocratas, que no setor Governo parece ser ainda mais forte
que nas empresas públicas, como veremos no presente trabalho. E seu ponto
forte é seu ponto fraco, pois tende a ser mais forte justamente pela fragilidade
que certos órgãos do setor Governo apresentam, o que obriga que se
aproximem, no mínimo para autoproteção. Neste caso, o que define a
autonomia da burocracia não é somente o tipo de inserção do órgão no aparelho
de Estado, mas sim a dinâmica da solidariedade que constrói a partir da sua
ação concreta e que acaba colocando à sua disposição recursos políticos
específicos (além do conteúdo e amplitude das matérias sobre as quais devem
opinar, como veremos adiante). Esta tese favorece a idéia de uma
"oligarquização" de um segmento da burocracia, ou seja, a permanência de um
grupo com poder e lógica próprios "atravessando" as agências,
independentemente das mudanças organizacionais ou mesmo daquelas que
ocorrem nas coligações políticas do poder.
Esta "oligarquização" serve de escudo para enfrentar conjunturas
políticas distintas e alarga ainda mais seu espaço de poder, quanto maior for a
instabilidade política. No caso brasileiro, com as constantes crises
institucionais, a burocracia do setor Governo encontrou terreno propício para
ampliar seus laços de solidariedade. Mesmo durante o regime militar, em que
houve maior estabilidade quanto aos mandatos presidenciais, a instabilidade no
mando da política econômica manteve a necessidade da burocracia "proteger-
se".
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
43
Seguindo este raciocínio, e é isto que pretendemos mostrar, o que
importa não é tanto examinar a autonomia da agência a que esta burocracia está
ligada num determinado momento, pois mesmo "grupos informais", com
rotatividade entre agências, chegam a reunir recursos políticos suficientes para
atuar com certa autonomia. Esta característica cria condições para o exercício
de "um papel criativo como formulador e executor de políticas", traço que
Martins havia reservado apenas para as burocracias ligadas ao setor empresa
(MARTINS 1985).
Mas como ela conseguiria reunir estes recursos políticos
independentemente da agência ou órgão a que está ligada? Ao contrário das
empresas públicas, não é necessariamente o volume de recursos econômicos
que está à sua disposição que irá aumentar-lhe o espaço de poder, mas sim a sua
capacidade de atuar na definição das regras do jogo institucional e na definição
de políticas gerais
27
. É claro que se a esta capacidade for acrescido o acesso a
decisões sobre o volume e o destino de recursos, seu poder crescerá. Na
realidade, estas burocracias combinam papéis regulatórios com papéis mais
gerais de integração e compatibilização de diversas arenas de decisão
28
.
Os recursos de poder (políticos e às vezes financeiros) desta burocracia,
e eventualmente dos órgãos ou agências a que estão vinculados, vêm também
da sua qualificação técnica, do conhecimento dos regulamentos, das
informações que detêm, como gostaria Weber, mas não só. Eles vêm
principalmente das ligações que conseguem estabelecer com o poder central,
com outros segmentos burocráticos, com a sociedade, e com o Legislativo.
Como esta relação envolve muitas vezes interesses contraditórios, esta
burocracia "faz opções", o que cria mais espaço para o exercício do seu poder.
O que influencia para que estas opções sejam feitas é um aspecto que
debatemos no estudo de caso.
Desenvolvemos nossa análise fugindo da abordagem daqueles que
reduzem a questão da ação de atores coletivos à identificação dos beneficiários
de uma dada política. Temos também em mente que, se por um lado as
contradições de interesse abrem espaço para uma prática específica, por outro
27
Ao enfatizarmos estes dois papéis da burocracia, não estamos nos esquecendo de sua
importante função na elaboração e condução das rotinas. Mas no presente trabalho não
vamos tratar deste aspecto, apesar de termos nos beneficiado dele na coleta de informações.
28
BOSCHI e DINIZ 1978 distinguiram os órgãos regulatórios e os órgãos de planejamento:
"Os primeiros cobririam parte do processo e teriam funções mais tópicas, deliberando sobre
um número restrito de instrumentos econômicos. Os demais cumpririam um papel mais
abrangente de integrar e compatibilizar as diversas instâncias decisórias ao longo de todo
processo de formulação de políticas. Seu contato com o setor privado é mais distante e sua
própria ação de selecionar interesses coloca obstáculos a este relacionamento. ...Os
regulatórios dão mais espaço para a satisfação de demandas de grupos específicos. Estes
órgãos regulatórios são o locus privilegiado de acesso ao setor privado, pois, como estão
situados em instâncias inferiores da administração, são fragmentados e variados o
suficiente para lidar com os interesses corporativos do empresariado". VIANNA 1987,
p. 43.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
44
definem os limites deste espaço, bem como do seu sucesso na implementação
das políticas.
Draibe, na sua análise do papel da burocracia econômica na elaboração
e consecução de políticas de desenvolvimento, no caso brasileiro, destaca a
dificuldade que os técnicos e burocratas têm para estabelecer "a partir de si e no
âmbito do aparelho econômico, a unidade da política econômica e social e,
portanto, de exercer um papel dirigente..."; mas chama a atenção para sua
grande força como formuladores e como ocupantes de um papel estratégico nos
processos decisórios. E justifica: "A força dos técnicos vem da incapacidade
dos interesses econômicos se imporem... (entre outras razões por causa da sua
fragmentação e heterogeneidade)... Trazidos para dentro do Estado, esta
incapacidade se renova; os distintos interesses se defrontam em cada uma das
arenas, e as alianças que se estabelecem em cada órgão são efêmeras pois
construídas em torno de projetos ou medidas isoladas. Este é o espaço da ação
mais independente e politizada da burocracia. Dada a interpenetração das
políticas e seu grau de complexidade, o conhecimento especializado e,
principalmente, o domínio pelo técnico do conteúdo das decisões e de suas
repercussões, capacitam-no a operar como pivô nos sistemas de forças e nas
alianças entre grupos de interesses e nas articulações interburocráticas em torno
de alvos comuns" (DRAIBE 1985, p. 53). Se a autora destaca este papel da
burocracia na definição e implementação de políticas de desenvolvimento na
etapa da industrialização, o que resultou na construção de estruturas
centralizadas do Estado, nós vamos emprestar o raciocínio, para examiná-lo na
etapa (final da década de 70 e principalmente na primeira metade da década de
80) em que a crise coloca de maneira imperiosa a necessidade de pensar-se num
reordenamento institucional do Estado. Procuramos identificar também no
presente trabalho quais são os "alvos comuns" que os técnicos conseguem
identificar nas suas articulações interburocráticas.
Neste momento de crise, e talvez ainda em parte como herança da fase
anterior, a dispersão dos interesses, aliada à fragmentação das políticas, vai
isolar um espaço específico onde se localizará o que passaremos a chamar de
"políticas gerais" e onde um segmento da burocracia defenderá sua forma
peculiar de entender o "interesse público”, aqui entendido como um conjunto
de princípios que ela adota como "verdadeiros" e "totalizantes".
Outra vez, um ponto levantado por Luciano Martins nos auxilia na
discussão do espaço de poder da burocracia e principalmente nos introduz à
questão de sua lógica de ação: a convivência no aparelho de Estado brasileiro
de "duas lógicas", uma "quase bancária" que seria a das empresas estatais e
outra que se define por critérios vários, em que nem sempre prevalece a
preocupação de rentabilidade econômica, mas sim a defesa da intervenção do
Estado ou a defesa do "interesse público”.
Mas o que contribui para o surgimento destas diferentes lógicas? Esta
discussão nos faz voltar ao debate sobre o papel do Estado. Pode parecer
estranho introduzirmos um tema de tal amplitude para encontrarmos uma saída
para a compreensão dos critérios que a burocracia do setor Governo adota para
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
45
fazer suas "opções" e de como consegue reunir os recursos de poder necessários
para agir, lembrando sempre que toda lógica pressupõe um alvo.
Mas para nossos propósitos não precisamos ir muito longe. Em primeiro
lugar, a partir de 1930, trata-se de um Estado construído numa situação
capitalista em que se coloca como promotor do processo de desenvolvimento e
como ator ou produtor de bens, numa sociedade cujos interesses privados são
fragmentados e incapazes de criar uma hegemonia
29
. Mas não deixa de ser um
Estado provedor de recursos via impostos ou emissões, o que pode ser muito
útil para a lógica "quase bancária" das empresas públicas em momentos de
dificuldade. Em segundo lugar, e por conseqüência, é um Estado que se
expande e se diferencia, expandindo e diferenciando também a "envergadura
estrutural das burocracias" (MARTINS 1974, p. 33), principalmente através do
crescimento e diversificação das empresas públicas e dos órgãos da
administração direta encarregados da definição de políticas e do controle. Em
terceiro lugar, e como efeito das duas características anteriores, aumentam as
situações de interações burocráticas entre o setor público ligado às empresas e o
setor privado (MARTINS 1974, p. 34), mais do que dentro do próprio setor
público onde os órgãos da administração direta tendem a se isolar por
dificuldades de exercer seu papel controlador. Em quarto lugar, criam-se as
clausuras corporativas, como veremos adiante.
E finalmente, como corolário destas quatro afirmações anteriores, e que
na realidade é o centro do presente estudo, quando este Estado entra em crise,
surge no setor Governo uma burocracia com traços de autonomia muito
especiais e com uma lógica de ação que encontra na defesa do "interesse
público" seu alvo comum
30
.
Antes de iniciarmos nossa caminhada pela história da burocracia
brasileira, mais especificamente da burocracia econômica ligada à definição de
29
Octavio Ianni, em sua análise sobre o papel do planejamento estatal no Brasil, analisa o
crescimento tanto quantitativo quanto de poder da burocracia nos momentos de crise
econômica e política (IANNI, 1971). Faremos comentários sobre sua abordagem na Parte II
deste trabalho.
30
Muito antes que nós, Carlos Estevam Martins havia levantado esta questão, apesar de falar
em termos genéricos sobre o poder burocrático e não especificamente sobre o caso
brasileiro: "Mais importante... é o engrandecimento do poder burocrático que decorre do
sistema de apoio múltiplo que funciona não só no seio de uma dada burocracia (articulando
entre si, numa única teia de compromissos recíprocos, funcionários de diferentes serviços,
setores e escalões), como também entre representantes de burocracias pertencentes a
organizações distintas e, muitas vezes, rivais. Esse travejamento formado por
entendimentos, conluios e trocas informais de respaldos e ajudas de todo gênero constitui o
substituto moderno dos laços de origem social e de parentesco, que constituíam a base de
poder das burocracias estatais vinculadas à classe dominante nos países e nos períodos em
que prevaleceram critérios menos universalistas de recrutamento para o serviço público...
Com a abolição parcial das restrições baseadas no critério de classe, os burocratas
modernos têm tratado de compensar a debilidade resultante de sua heterogeneidade social
por meio da formação de sistemas de aliança que outra vez os reagrupa como portadores de
um interesse próprio, relativamente definido, contraposto ou de alguma forma distinto dos
que caracterizam os seus reais ou supostos adversários" (MARTINS 1974, p. 34-35).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
46
políticas gerais e às propostas institucionais para um redesenho do Estado,
torna-se necessária a discussão do tratamento que alguns conceitos têm
recebido na literatura sobre o tema.
A proximidade com as esferas de poder onde são definidas as políticas
gerais pode dar a uma parte da burocracia do setor Governo, seja da área
econômica ou seja da área social, a oportunidade para isolar-se das pressões
diretas dos interesses que têm origem no setor privado. Este isolamento não
quer dizer que as pressões não existam, mas como estão muito fragmentadas,
porque são fragmentados os interesses, e estão por conseguinte voltados para
formulações que dizem respeito a um setor determinado, elas se tornam mais
difusas e de difícil operação. As situações autoritárias, em que a ação do
Congresso passa a ser limitada institucionalmente, é outro momento que
favorece este isolamento.
Os graus de isolamento ou de interferência dos interesses privados, do
Legislativo e dos políticos na lógica de ação da burocracia, são tratados pela
literatura brasileira através de três principais construções teóricas: os anéis
burocráticos, o insulamento burocrático e a feudalização.
O conceito de anéis burocráticos começou a ser desenvolvido em 1971
por Fernando Henrique Cardoso. A partir do mecanismo político que chamou
de "inércia burocrática"
31
, a burocracia desempenhava uma de suas funções que
era a de "prover favores". Assim, criava-se entre Estado e interesses privados
uma "teia de cumplicidades pessoais" que mobilizava os interesses dos grupos,
e isto ocorreria principalmente nos setores mais dinâmicos da economia. Mas
não só, pois existiria uma teia de cumplicidade mais difusa, orientada também
por relações e lealdades pessoais "que tornavam cúmplices desde o vereador, o
deputado, o funcionário de uma repartição fiscal, o industrial, o comerciante ou
o banqueiro, até o ministro, quando não o próprio presidente. A partir deste
‘sistema’ as decisões eram tomadas e implementadas. A burocracia funcionava,
portanto, como parte de um sistema mais amplo e segmentado: não existindo
eficazmente partidos de classe, sindicatos e associações de grupos e classes, os
interesses organizavam-se em círculos múltiplos, em anéis, que cortavam
perpendicularmente e de forma multifacética a pirâmide social, ligando em
vários subsistemas de interesse e cumplicidade segmentos do governo, da
burocracia, das empresas, dos sindicatos, etc." (CARDOSO 1993, p. 150-
151)
32
.
31
O termo "inércia burocrática" foi utilizado por Cardoso a partir de um estudo feito por
Robert T. Daland, Estratégia e Estilo do Planejamento Brasileiro, Rio de Janeiro, Lidador,
1969, onde o autor define quais seriam as funções da burocracia brasileira, a saber: prover
um canal de mobilidade ascendente para a classe média educada, prover rendas para aquela
classe média que serve de apoio ao regime, prover um baixo nível de certos serviços e dar a
oportunidade de iniciativas privadas baseadas nos poderes inerentes a certos grupos.
CARDOSO 1993, p. 150.
32
Ao fazer esta análise, o autor estava se reportando ao período pré-1964.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
47
Alguns anos mais tarde, o autor qualificava mais seu conceito de anéis
burocráticos, descrevendo dois tipos de organizações presentes na cena
brasileira
33
, ambas burocráticas, mas inseridas em contextos de dominação de
nível, complexidade e sentido distintos: "Uma, a grande empresa privada, (que)
insere-se num contexto nitidamente supranacional... Outra, a burocracia
pública... (que) tenderia a definir-se nos marcos da Nação. Entretanto, assim
como a burocracia pública divide-se em facções políticas, no sentido mais
amplo (ou seja, que se propõem fins e implementam medidas para alcançá-los
em função dos setores de classe e grupos a que se ligam), é preciso pensar o
sistema político em termos de anéis que cortam horizontalmente as duas
estruturas burocráticas fundamentais, a pública e a privada. Dessa forma, partes
das empresas públicas, ou melhor, da burocracia destas empresas e seus
dirigentes, podem ser captados pelo sistema de interesses das empresas
privadas. O mesmo pode ocorrer com diversos setores do Estado (ministérios,
divisões, grupos executivos, etc.). Inversamente, parte do setor controlado pela
empresa privada (inclusive seus órgãos de classe como os sindicatos,
federações, etc.) pode aliar-se com segmentos da burocracia estatal, tornando
um anel de pressão e assim por diante. Está claro que o jogo político destes
anéis encontra limites tanto nos interesses objetivos (de poder e econômicos)
dos respectivos eixos fundamentais de ordenação estrutural, como no fato
decisivo de que o Estado, embora fragmentado, aparece como um bloco (diante
da questão principal): as alianças variáveis são possíveis na cúpula à condição
de que não ponham em risco o caráter fundamental do estado, como um estado
de desenvolvimento capitalista" (CARDOSO 1975, p. 182-183).
Mas como descobrir a presença destes anéis burocráticos, em situações
que a fragmentação dos interesses não cria uma pressão capaz de atuar sobre o
espaço de definição das políticas gerais, como aquelas que vamos privilegiar no
presente estudo e que se voltam para a própria questão do reordenamento
institucional do Estado? Ou então, como descobrir estes anéis num momento
que nem a "sociedade", nem os empresários, nem a classe política, nem os
partidos sabiam o que queriam (ou o que fazer) do (ou com) o Estado?
34
Tentemos caminhar com outro conceito, o de insulamento burocrático,
para depois voltarmos à idéia dos "anéis". A existência no Estado brasileiro de
"ilhas de racionalidade e de especialização técnica" (NUNES 1985), que
aparecem entendidas como um antídoto à nossa histórica tendência clientelista e
como um meio eficaz de controle das pressões da sociedade, acaba dando
origem a uma maneira específica de encarar a lógica de ação da burocracia
pública do setor Governo. O fenômeno do "insulamento burocrático" corre nas
águas desta tradição analítica.
33
Agora o conceito já se expande para servir de base à sua análise do período pós- 1964.
34
A simples leitura dos jornais, seja na década de 80, seja no momento que estamos
escrevendo este trabalho (1993), oferece material mais do que suficiente para alimentar esta
afirmação.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
48
O termo "insulamento burocrático" surge na linguagem da teoria
organizacional contemporânea
35
como sendo "o processo de proteção do núcleo
técnico do Estado, contra a interferência oriunda do público ou de outras
organizações intermediárias ... (a este) núcleo técnico é atribuída a realização de
objetivos específicos" (NUNES 1985, p. 363). Esta proteção que é construída
em torno de uma agência ou de um conjunto de burocratas varia conforme o
grau de isolamento que se consegue atingir. O oposto de uma situação
"insulada", afirma a mesma literatura, é uma situação de "engolfamento" em
que existe um alto grau de penetração de interesses sociais e políticos.
Outra característica da situação de insulamento é que ela pode ser
temporária, pois pode deixar de existir quando seus objetivos forem atingidos.
O que esta análise não avança, e por isso sua utilidade é parcial, é a questão dos
recursos políticos necessários para isolar uma agência ou um conjunto de
burocratas e principalmente a quem interessa ou quem promove este isolamento
ou a criação das "ilhas de racionalidade" técnica. E isto acontece, pois há uma
preocupação formalista por trás do conceito de insulamento, que pode ser útil
(como outros conceitos com o mesmo tratamento) apenas na tarefa descritiva.
O tratamento que Nunes dá ao conceito de insulamento burocrático
permite que tomemos como insulados mesmo uma agência ou um conjunto de
burocratas que estejam atuando dentro de anéis burocráticos. A combinação
destes dois conceitos, aparentemente opostos, é possível, pois, nestas situações,
as agências ou os burocratas se "isolariam" dentro de um anel, ou seja,
interesses públicos e privados se fechariam a outras interferências para
proteger-se. Vale o raciocínio, restando a necessidade de sua confirmação
empírica.
As idéias defeudalização” e privatização” do Estado também fazem
contraponto com nossas tentativas explicativas. Estas situações surgiriam a
partir da excessiva segmentação do aparelho de Estado, resposta institucional
que se deu, no caso brasileiro, à diversificação dos interesses públicos e
privados, que levaram à criação de "feudos", onde as alianças entre setores
empresariais e distintos setores da burocracia "informam a lógica de ação dos
funcionários do Governo" (MARTINS 1985, p. 192). Este processo de
"feudalização" levado a seu limite resulta na "privatização" do Estado, onde
"introduz-se como regra a decisão particular, ficando o critério racional legal
quase que inteiramente descartado; o cume da burocracia se transforma em
braço executivo dos interesses que deveria regular e a corrupção velada (um
bom emprego quando sair do Governo) ou aberta (comissão) corre solta; como
as decisões são privadas, os conflitos interburocráticos ficam quase que
insanáveis e as orientações gerais são violadas a cada momento" (CARDOSO
DE MELLO 1988). Nestas condições, o Estado perde "sua capacidade de
articular interesses, a política econômica (fica) imobilizada e as decisões não
parecem ter outra lógica que não a dos interesses ‘localizados’. O Estado perde
35
O termo foi introduzido por SCHCPOL, T. Bringing the State Back. Strategies of Analysis
in Current Research, 1987.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
49
seu caráter abstrato de representante do interesse geral e apenas assume o
aspecto concreto de aparelho" (CARDOSO DE MELLO 1988).
Poderíamos dizer que os conceitos de “feudalização” e “privatização”
seriam a versão radical (porque chega às raízes) dos conceitos de anéis
burocráticos e de insulamento (este na sua versão que engloba a idéia dos
anéis). Isto porque está por trás dos quatro conceitos a idéia de que interesses
privados e públicos se combinam, com maior autonomia para ambos no caso
dos anéis e do insulamento, e com autonomia quase nula para os interesses
públicos no caso da feudalização e da privatização.
Negar que há uma combinação de interesses públicos e privados na
definição de políticas num estado capitalista, seria negar sua própria condição
de Estado capitalista. Mas será que estes conceitos reúnem os elementos
suficientes para definir a lógica de ação de burocracias concretas? O presente
estudo vai tentar demonstrar que não.
Vamos introduzir mais um conceito neste nosso complicado "modelo"
explicativo: o corporativismo.
O corporativismo é entendido pela literatura sobre o tema como parte de
um conjunto de idéias que tem na eliminação do conflito, via criação de uma
sociedade solidária, o seu fundamento. Mas na situação capitalista brasileira, o
corporativismo representou uma soma de interesses tanto do Estado, de perfil
populista, que o utilizava para se relacionar com a sociedade, quanto dos
sindicatos de trabalhadores ou empresários que procuravam reunir recursos
econômicos, políticos e sociais para penetrar o Estado
36
. Nesta visão
corporativista, "o Estado é uma organização com interesses estabelecidos, um
ator principal, lado a lado com os grupos. Uma vez que o Estado tem que se
relacionar com outros grupos sociais e ao mesmo tempo manter seu monopólio
sobre a autoridade, muitas vezes ele fornece incentivos e (outras vezes)
limitações à ação dos grupos" (NUNES 1985, p. 366).
Caminha nesta direção também a análise de Vianna, quando afirma que
"a discussão atual sobre o corporativismo veio impor uma redefinição teórica
do termo. Despojando-o das conotações ideológicas que o tornam concebível
como uma alternativa macrossocietal para o liberalismo clássico, alguns autores
passaram a tratar o conceito a partir de suas implicações enquanto estrutura de
vinculação entre Estado e sociedade, própria ao capitalismo moderno, e variável
conforme determinações específicas de cada formação social. Ou ligada ao
nazi-fascismo ou a sistemas políticos em sociedade de desenvolvimento
industrial tardio, onde funcionaria como padrão de convivência harmônica entre
Estado e sociedade e centrada na questão do bem comum" (VIANNA 1987, p.
73). Ou então, acrescentaríamos, funcionaria também em situações de conflito
36
Para fins de raciocínio, não interessa aqui que esta organização da sociedade via sindicatos
não atingiu, no caso do Brasil, uma uniformidade em todos os segmentos produtivos ou de
serviços, mas sim reter que a parte que se organizou, participou dentro deste padrão de
relações
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
50
ou de ameaça de conflito, quando os grupos que se formam dentro e fora do
próprio Estado, também precisam se qualificar a fim de participar do jogo do
poder e se apresentar com alguma força nas disputas que se travam dentro desta
arena
37
.
A literatura brasileira que trabalha com a questão do corporativismo,
com as exceções para confirmar a regra, sofre do mesmo mal que os estudos
dos administradores apontados anteriormente, não incorporando a discussão
acima em nenhuma de suas dimensões. Preocupa-se em demasia com a
descrição das instituições e dos processos formais sem cuidar das relações de
poder e da dinâmica da sociedade. Em outras palavras, constrói um arcabouço
teórico baseado nestes processos formais e se esquece de observar como eles se
manifestam em situações concretas
38
.
Para nossos propósitos analíticos esta visão formalista ajuda na
descrição, mas tem seus limites, pois este enfoque não considera as
contradições e os conflitos que ocorrem na arena do poder, e assim não
consegue captar um momento "ótimo" para se observar a ampliação ou
consolidação de um espaço de ação da burocracia, quando estabelece suas
alianças (ou se isola) para superar a situação. Muitas vezes é este também o
momento da constituição de um outro tipo de corporativismo, este nascido da
necessidade de autoproteção, o que vamos mostrar no presente estudo.
Mas qual a origem destas contradições e conflitos no caso da burocracia
pública? Mais uma vez precisamos perguntar: seriam contradições de classe?
Poulantzas afirma que sim, não porque ela (burocracia) constitua uma classe,
mas porque a luta de classes ou setores de classes que se desenvolvem nas
sociedades capitalistas afetam forçosamente a burocracia, o que pode provocar
divisões em suas fileiras. Estas contradições, no entanto, não precisam
necessariamente ter origem na relação geral de forças, mas podem também
surgir de reivindicações que nascem no interior do próprio grupo quanto à sua
participação na "divisão do trabalho dentro do próprio Estado"
39
Aqui estaria
aberto o caminho para a criação e cristalização dos interesses de cada
burocracia ou corporação.
37
Ver também O'DONNELL, G. Sobre Corporativismo e a Questão do Estado. Cadernos
DCP, n. 3, Belo Horizonte, 1975, e, do mesmo autor, Modernization and Bureaucratic-
Authoritarianism. Berkeley, Institute of International Studies, University of California,
1973; LEHMBRUCH, Gerhard. Concertation and the Structure of Corporatist Networks in
GOLDTHORPE, John (Ed.). Order and Conflict in Contemporary Capitalism. Oxford,
Clarendon Press, 1988, p. 60-80.
38
Não só a literatura carrega este vício: a visão que muitas vezes se tem da realidade
brasileira, quando se observa de um lado as instituições formais a sinalizar numa direção, e
de outro a realidade política, econômica e social a se comportar de maneira oposta, pode
levar o analista a pensar que se trata de um país esquizofrênico. Avaliação semelhante já
foi feita por NUNES 1985, p. 370.
39
Ver também DINIZ, Eli. O Status do Funcionário no Órgão e o Envolvimento na
Organização. Tese. T/416s (FGV).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
51
Quando a contradição de classes se manifesta com mais clareza (o que
não ocorre em situações autoritárias onde a repressão é a arma de controle), as
"lutas (tendem a colocar) permanentemente em cheque a unidade do pessoal do
Estado" com um questionamento da sua posição em defesa da fração
hegemônica. Sua manifestação toma em geral a forma de disputas entre
membros de uma agência (ou órgão) contra a outra (POULANTZAS 1979, p.
187-188). E é neste momento que se fortalecem os laços internos de uma
agência ou órgão, e que se consolidam seus interesses. A idéia de um tipo de
corporativismo voltado para a autodefesa que vamos adotar no presente
trabalho surge neste contexto. Vale anotar que não consideramos a fase de
transição entre o regime autoritário e o regime democrático no caso do Brasil na
década de 80 como um momento da manifestação de uma contradição de classe
no sentido que Poulantzas dá ao termo. Diríamos que foi um momento de
reagrupamento dos interesses, que levou ao afloramento de muitos conflitos, e é
neste contexto que vale o raciocínio do autor para o nosso caso.
Mas qual seria o cimento interno para a unidade do "pessoal do Estado"?
E como ficam as disputas interburocráticas? Poulantzas afirma que a ideologia
dominante que o Estado reproduz é que desempenha este papel unificador: é a
ideologia "do Estado neutro, representante da vontade e do interesse geral,
árbitro entre as classes em luta ... (é) a administração e a justiça por sobre as
classes ... a administração como motor da eficácia e do bem estar geral"
(POULANTZAS 1979, p. 189). Estes "temas ideológicos" podem também
produzir sentimentos de justiça social ou de defesa dos menos favorecidos. As
idéias de democratização crescente (a supremacia das bases), tanto do próprio
aparelho de Estado quanto de suas decisões, são muito caras a esta visão
ideológica: "Reivindicam uma descolonização do Estado com relação aos
grandes interesses econômicos, o que significa, aos seus olhos, uma volta a uma
virgindade do Estado, supostamente possível, que lhes permitiria assumir seu
próprio papel de direção política" (POULANTZAS 1979, p. 190)
40
.
Na análise de situações concretas, dificilmente este confronto de
interesses aparece com tal clareza, pois este tipo de "cimento ideológico" tende
a se manifestar muito mais para burocracias que atuam em agências que lidam
diretamente com a população ou para aquelas que trabalham com as áreas de
saúde e educação
41
. Para burocracias envolvidas com a definição de políticas
gerais, funcionaria não como um "cimento", mas como um importante
componente do discurso desta elite, como veremos no nosso estudo de caso.
40
Ver também COVRE, Maria de Lourdes Manzini. Uma discussão teórica: ideologia
neocapitalista e processo de burocratização.RAE, v. 20, n41, p. 43-62, jan/mar 1980.
41
Sobre este tema ver o interessante estudo de Raquel Raichelis: Legitimidade Popular e
Poder Público. Cortez, 1988. Nele, a autora analisa o papel contraditório que o assistente
social que trabalha em órgãos públicos desempenha, e os mecanismos utilizados para
interferir nos processos decisórios que envolvem "níveis e espaços de negociação ditados
pela dinâmica da conjuntura política e da correlação de forças presente entre as classes
sociais".
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
52
Há quem afirme que o espírito de missão que passou a existir em nossa
burocracia depois da reforma administrativa de Maurício Nabuco, em 1936,
transformou-se num acentuado espírito corporativo (MARTINS 1992, p. 3).
Deixando para depois a discussão de se um substituiu o outro, pois o nosso
estudo parece indicar que os dois convivem e até competem nas relações
interburocráticas, vamos resumir o que estamos entendendo por
corporativismo.
No caso brasileiro, desempenhando seu papel de agente de um Estado
que se apresenta como ator e produtor dentro de um projeto de
desenvolvimento, a burocracia se fortalece na mesma proporção e velocidade
com que se fortalecem as agências a que está ligada. Ou seja, tanto agências
como agentes não fazem parte de uma ficção, mas estão referidos a uma
legitimidade conferida por este Estado.
O Banco do Brasil, cuja trajetória analisaremos nos capítulos seguintes,
pode ser um bom exemplo desta situação. Seus funcionários, na tentativa de se
defenderem nas situações de conflito, seja porque temiam as ameaças que
vinham "de fora" do aparelho de Estado, seja porque temiam aquelas que
vinham de dentro do próprio Estado, construíram uma pauta de reivindicações
para a manutenção do que consideravam conquistas, como também para a
ampliação destas conquistas. Ter ou não ter condições políticas de fazer com
que estas reivindicações fossem aceitas, iria depender de sua capacidade de se
equipar adequadamente nas suas relações, tanto para dentro do centro de
decisão do próprio aparelho de Estado quanto para fora deste centro de decisão
(por exemplo, com o Congresso ou com outros grupos da sociedade). O
presente estudo analisa uma destas situações.
Os momentos de implantação de novas medidas ou de mudanças nas
políticas existentes parecem ser altamente propícios ao surgimento e
cristalização destas reivindicações. Paradoxalmente, tanto os momentos
autoritários quanto os momentos de ampliação do jogo democrático parecem
favorecer o crescimento do "cimento" corporativista. No momento autoritário,
porque se a agência e seus agentes tiverem sua pauta bem organizada e uma
tática bem definida, terão que se articular com uma cadeia de relações mais
simples e menos numerosa, já que autoritarismo e centralização caminham
juntos
42
. Em outras palavras, onde menos pessoas e instâncias estão envolvidas
na decisão, maior o sucesso de quem j á tem suas "armas" preparadas. Nas
situações de ampliação do jogo democrático, apesar de a rede de relações se
tornar mais complexa, as mesmas armas recebem o reforço de um novo
equipamento: como estamos falando de agências e agentes com legitimidade (e
não parte de uma ficção)
43
, o apoio da "opinião pública" que tem como porta-
42
Sobre o assunto, ver REIS, Elisa Pereira L. Bureaucracy and the Demise of Authoritarism
in Brazil. Rio de Janeiro, Iuperj, Série Estudos, n° 43, nov. 1985.
43
Não vamos aqui discutir como se forma esta legitimidade, mas pode-se observar que certas
categorias profissionais, talvez por desempenharem funções importantes para uma
determinada parte da população, quando apresentam suas reivindicações cestas são
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
53
voz a classe política, além de outros grupos da sociedade (como a imprensa, por
exemplo), passam a atuar como força de pressão para encurtar os caminhos,
agora mais sinuosos.
Em resumo, nossa tese é a seguinte: a burocracia pública, agente por
excelência das ações racionais nos Estados capitalistas modernos, estabelece
uma relação de interdependência com os demais grupos desta sociedade, pois
seus interesses últimos são comuns, ou seja, a manutenção da acumulação
privada da qual depende.
Mas o desenvolvimento destas relações é contraditório e conflituoso,
pois o poder não se exerce de forma monolítica, apresentando divisões que
consolidam interesses diferentes. Além disso, estas relações se modificam de
uma situação capitalista para outra e, dentro da mesma situação capitalista, de
uma conjuntura para outra. Por esta razão, os espaços de poder da burocracia
existem e podem se alargar ou se estreitar, e para cada situação encontraremos
uma lógica de ação específica.
Pelo fato de haver contradições e conflitos, podemos também falar em
autonomia relativa da burocracia, que não corresponde a um espaço reservado,
mas que permite seu estudo com um certo grau de "isolamento". Mas esta
autonomia é algo que não pode ser definido abstratamente, mas apenas através
de uma análise que leve em conta o contexto e a conjuntura. Esta autonomia
relativa (além das qualificações no sentido weberiano) é um dos fatores que lhe
garante presença nos momentos de formulação, institucionalização,
implementação e decisão das políticas.
No caso brasileiro, surge a partir de 1930 um Estado com características
especiais, que se apresenta como ator e produtor de um projeto de
desenvolvimento numa formação social de interesses fragmentados, e que
pretende conduzir seus atos através de um padrão populista de relação com a
sociedade.
Assim, a burocracia brasileira, que mesmo antes de 1930 já carregava
uma tradição clientelista de relação com os grupos sociais, tem também um
papel especial a desempenhar. Como agente de um Estado que é produtor, e
que, portanto, cria empresas para atuar em competição ou complementaridade
com as empresas privadas, a burocracia constrói uma lógica que visa o lucro e
políticas gerais ligadas a um projeto de desenvolvimento nacional de sentido
estatizante. Como agente de um Estado que é ator, ela cria uma lógica voltada
para políticas capazes de enfrentar o conflito entre os vários grupos com
interesses fragmentados, participando de "anéis burocráticos". Como agente de
um Estado populista e clientelista, ela se defende através de solidariedades
grupais (hipótese da oligarquização), ou em suas corporações, das ameaças
vindas da classe política, do Legislativo e da "sociedade". E, finalmente, como
consideradas justas, recebem a solidariedade da opinião pública. Há indícios de que foi este
o caso do Banco do Brasil, considerado "um patrimônio nacional" pela imprensa à época
do nosso estudo de caso
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
54
agente de um Estado em crise, ela se autoproclama representante do interesse
público, e se equipa com recursos políticos para enfrentar toda sorte de
"inimigos" (grupos privados, políticos, Legislativo, corporações do próprio
aparelho do Estado, etc.). Sua atuação terá um maior ou menor destaque
conforme seja chamada pelos ocupantes temporários dos cargos do Governo ou
pelas lideranças do Legislativo.
As situações não-democráticas tendem a propiciar momentos de maior
autonomia à burocracia, alimentando sua pretensão de representante dos
interesses públicos, com traços autoritários. As situações democráticas tendem
a romper seu "casulo" e colocá-la frente a frente com políticos, com o
Legislativo, com os grupos de pressão da sociedade, com as corporações
internas do próprio Estado. Mas mesmo nestes momentos não abandona sua
postura de auto-representante dos interesses públicos, e pode chegar a se
fortalecer, por ser a única com propostas técnicas claras e consistentes, diante
de grupos equipados apenas com propostas abstratas e sem receitas
operacionais. Por estas características, seu espaço tende a aumentar, quanto
maior for a crise e quanto maior for o conflito entre os grupos que disputam o
poder político do estado. Muitas vezes esta possibilidade de ter maior espaço é
cortada, temporariamente, pelos grupos vitoriosos, que desconfiam de sua
lealdade e mesmo da consistência de suas propostas técnicas.
Um último comentário: como escapar de um sincretismo teórico que
caminha em círculos?
Nossa proposta parte da idéia de que a construção de um objeto de
estudo — no caso a burocracia — exige um trabalho de montagem de um
modelo, onde as categorias analíticas se movimentam sem manter um lugar
fixo, e daí sua dificuldade. Assim, não se pode falar numa categoria
"dependente" — por exemplo, a autonomia da burocracia pois esta mesma
categoria pode deixar de ser o fenômeno a ser explicado para se transformar
num dos fatores explicativos, quando se altera o contexto. O mesmo pode
acontecer se tomarmos a sua lógica de ação, que pode tanto explicar a maior ou
menor autonomia de um segmento burocrático, quanto pode ser explicada por
ela.
E como sair deste raciocínio circular? A única forma parece ser; como já
afirmamos anteriormente, a análise de contextos e conjunturas específicos, em
que devem-se privilegiar as relações de poder, bem como uma abordagem
sociológica da trajetória dos atores e de suas características constitutivas. Nesta
análise, não devemos temer o movimento das variáveis dentro dos limites
impostos por um quadro que se define num outro nível de abstração — no caso,
o modo capitalista de produção.
55
P
ARTE II
A
BUROCRACIA ECONÔMICA NO BRASIL:
FORMAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO
56
I
NTRODUÇÃO
O SURGIMENTO DO ESTADO MODERNO NO BRASIL
Max Weber talvez tivesse se admirado tanto quanto se admirou ao
visitar os Estados Unidos em 1904, se pudesse ter acompanhado a formação do
Estado moderno e da sua burocracia no Brasil, a partir dos anos 30. Só que por
razões muito diferentes. Podemos estabelecer alguns contrapontos, desde que
mantidas as devidas proporções, pois enquanto engatinhávamos no nosso
processo de industrialização, de urbanização e na consolidação do capitalismo,
os americanos do norte já estavam entrando em seus ciclos de crise, após os
primeiros sinais de esgotamento e prenúncio de mudanças de um modelo de
desenvolvimento que havia amadurecido no século anterior.
Nos Estados Unidos ele observou uma democracia onde a máquina
política era fundamental para o funcionamento das relações entre governantes e
governados, entre a população e o Estado: "Percebeu ... que a máquina política
era indispensável na democracia de massas moderna, a menos que imperasse
uma democracia sem líderes e uma confusão de línguas. A máquina política
significava a administração da política pelos profissionais, pela disciplinada
organização partidária ... (o que não elimina a possibilidade de que) tal
democracia possa suscitar o aparecimento da tribuna popular cesarista ... no
papel do presidente forte. E a totalidade do processo (tendia) para uma
crescente eficiência racional, e com isso para máquinas burocráticas, (tanto as)
partidárias, (quanto as) federais ou as municipais" (GERTH e MILLS 1982, p.
31).
Chamou-lhe também a atenção o outro lado da moeda, ou seja, o quanto
a burocracia podia ameaçar a democracia: "A democracia deve opor-se à
burocracia como tendência para uma casta de mandarins, distanciada das
pessoas comuns pelo treinamento especializado, certificados de exames e
ocupação de cargos". Mas também o quanto, paradoxalmente, estas mesmas
características da burocracia poderiam ser uma garantia democrática: "O âmbito
das funções administrativas, o fim da fronteira aberta e a limitação das
oportunidades, toma o sistema de despojos. (onde os cargos públicos são vistos
como um despojo dos seguidores do partido que sobe ao poder) com seu
desperdício público, irregularidades e falta de eficiência técnica, cada vez mais
impossível" (GERTH e MILLS 1982, p. 32).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
57
No Brasil ele encontraria uma situação também admirável, só que por
seus paradoxos. Encontraria uma democracia que se formava com a exclusão da
grande maioria da população, e com a presença de uma classe média urbana e
de trabalhadores industriais, mas sem máquina política ou partidos organizados
para fazer a ponte entre sociedade e Estado. Procuravam-se líderes e havia uma
enorme confusão de "línguas". Falava-se a língua dos coronéis, comandantes de
pólos oligárquicos em cada região do país, ao mesmo tempo que nascia uma
nova língua urbana, industrializante, racional: aqui "a capacidade de renovação
dos dirigentes políticos, num regime em que a tradição, a idade, a experiência
pessoal contavam muito, tomava-se cada vez mais restrita. Pior que a fraca
renovação dos quadros, era a esclerosação da mentalidade política. O
sistemático e asfixiante domínio dos valores e interesses rurais tomava difícil a
compreensão do processo de expansão econômica do país, criando cisões
profundas dentro da própria alta burguesia enriquecida na agricultura, no
comércio ou na indústria nascente. O mal fundamental destas organizações
políticas oligárquicas residia na identificação imediata dos interesses do Estado
com os seus próprios, a ponto que o Estado passava a empobrecer-se nas suas
funções políticas" (CUNHA 1963, p. 23). Assim, as novas massas urbanas não
encontravam um idioma de comunicação com as elites dirigentes.
A questão colocada, na situação brasileira, era como fazer para quebrar
a identificação dos interesses do Estado com os de cada segmento oligárquico,
situação que imperava no país deste os tempos das capitanias hereditárias
44
.
Para isso precisava-se criar uma língua de um Estado que queria afastar-
se dos interesses imediatos e sobrepor-se ao conjunto da sociedade, e que, para
tanto, procurava centralizar as decisões, mas que enfrentava problemas por não
possuir os instrumentos adequados. Era um Estado que havia se formado para
proteger a livre expansão dos senhores rurais, até o momento em que as
condições econômicas e sociais permitiram esta expansão. Mas quando foi
chamado para resolver os conflitos abertos entre as oligarquias, mostrou-se
ineficiente. E como suas lideranças estavam fracas e "envelhecidas", não foi
muito difícil decretar sua falência no início dos anos 30.
Para quebrar esta "ineficiência" e construir um "novo" Estado, as
oligarquias do Centro-Sul, que queriam industrializar-se, passaram a falar a
língua do fortalecimento do governo central, com a centralização jurídico-
44
Quatro matrizes fundadoras são muito importantes para entendermos a formação da
burocracia no Brasil. Em primeiro lugar, o fato de que o país atraiu seus conquistadores
como colônia de exploração extrativa e não como mercado consumidor. Quando a cana-de-
açúcar penetra e se transforma na base da economia colonial, os grupos de interesse se
diferenciam, mas com a exclusão da maioria da população, que era escrava. Em segundo
lugar, o absolutismo português que centralizava as decisões. Em terceiro lugar, um sistema
baseado no poder local, que, como conseqüência das duas situações anteriores, criou um
embrião de administração privada. Finalmente, um sistema personalizado de relações que
deu origem a lealdades fortes com traços de obediência subserviente num primeiro
momento, e que mais tarde se transforma nas práticas clientelísticas, tão resistentes às
várias tentativas de controlá-las até nossos dias.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
58
política, com a unificação dos códigos judiciários e com a unificação do
aparelho repressivo
45
.
Com o "novo" Estado, tentava-se introduzir a língua da Nação, da
igualdade dos cidadãos, do interesse geral, da unificação do aparelho social e da
proteção ao trabalhador industrial, para contrapor-se à língua particularista dos
coronéis.
Nascia também a língua do voto universal e secreto, contra o voto de
"cabresto" que imperava na sua estrutura rural. Passava-se a falar a língua de
uma democracia representativa, mas (e aí Weber se surpreenderia novamente)
poucos dos que tinham participação política pareciam dar importância, se fosse
necessário recorrer a uma ditadura "conciliadora" com os militares no comando,
caso sentissem que estava ameaçada a ordem econômica e social.
O Estado que surgia era um Estado administrativo, que procurava falar a
língua racional-legal, com a montagem de aparelhos modernos, com a
implantação de carreiras em bases meritocráticas, com a classificação de
cargos. Era um Estado que criava uma burocracia, procurando incorporar
pessoas da nova classe média urbana, burocracia esta que crescia
quantitativamente, na medida em que crescia a pressa em recuperar o tempo
perdido. Mas era um Estado que não resistia às pressões clientelísticas, e que,
para impor o seu poder de dominação, usava, sem medo, estratagemas
informais como a criação de uma estrutura administrativa paralela ou de
inúmeros cargos "extranumerários" para atender aos crescentes pedidos de
emprego, repetindo práticas que vinham da fase em que predominava a forma
de dominação tradicional, como diria Weber
46
.
45
A centralização de poder nas mãos do Governo Central, no caso do Brasil, teve que
conviver até 1930 com um poder local que nasceu com as capitanias hereditárias. A falta de
hierarquização das relações burocráticas que o sistema das capitanias gerava (comandada,
paradoxalmente, por uma centralização das decisões importantes nas mãos da coroa
portuguesa) abriu espaço para o arbítrio do setor privado. Nas palavras de Faoro, em vez de
surgir um campo para o crescimento das liberdades dos poderes locais, "cria-se ao contrário
um governo sem lei e sem obediência, à margem do controle, inculcando ao setor público a
discriminação, a violência e o desrespeito ao direito. Privatismo e arbítrio se confundem
numa conduta burla à autoridade (central), perdida esta na ineficiência" (FAORO 1973, p.
177). Este espaço ao privatismo tem sua origem não só na desorganização do poder, mas
também no fato de que o sistema de Capitanias Hereditárias, que foi o embrião da
organização burocrática brasileira, tem sua base na doação de parte do território ao
donatário que devia explorá-lo, juntamente com os colonizadores, com seus próprios
recursos. Como o Governo Geral não conseguiu, num primeiro momento, quebrar esta
estrutura, sua capacidade de ação coordenadora diminuiu bastante. Durante os Séculos
XVII e XVIII, foram muitas as tentativas de fortalecer o poder central, mas foi somente no
século XIX, com a vinda da família real em 1808, a Independência em 1822 e finalmente a
República em 1889, que as oligarquias locais passaram a dividir o poder de Governo com
um poder central.
46
Extranumerário foi o nome moderno dado aos filhos da folha, como eram chamados nos
anos de 1500 e 1600 os cargos burocráticos do "terceiro escalão" no Brasil, que eram
ocupados por portugueses continentais, principalmente aqueles que a Coroa decidia
recompensar por algum serviço prestado: "A frase algum cargo da justiça ou do tesouro
era a resposta usual da Coroa para qualquer requerente que apresentasse uma folha de
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
59
Este Estado, quando transformou-se também em promotor de um
projeto de desenvolvimento, procurou falar a língua do controle e da
administração das funções macroeconômicas, da centralização e normatização
das principais áreas da produção industrial e da defesa das riquezas nacionais.
Montou um complexo sistema de regulação econômica, com controle
centralizado da política monetária através do câmbio, dos juros, da moeda, do
crédito e dos salários.
Mas era um Estado que nascia envolvido em conflitos não resolvidos. A
antiga autonomia regional, que no passado indicava uma relação frouxamente
hierárquica com o poder central, passava por um momento de desestruturação,
pois algumas oligarquias estaduais foram incapazes de acompanhar o processo
de expansão econômica e com isso criaram situações de conflito entre os seus
interesses e os da "nova" agricultura enriquecida, do comércio e da indústria
nascente. A solução encontrada pelas oligarquias dos estados mais
desenvolvidos foi fortalecer o Governo Federal, tanto política quanto
econômica e administrativamente, para que este fosse capaz de se impor junto
àquelas oligarquias "descompassadas" com a nova realidade. E o Estado que
nascia apresentava-se com propostas de intervenção direta na vida econômica, a
começar pelo comércio internacional, principalmente no que se refere ao café, o
mais importante produto de exportação.
E não eram apenas os interesses das elites dirigentes que entravam em
conflito, pois o país mudava como um todo: a população aumentava e uma
parcela dela ascendia na escala social, econômica e cultural, transformando-se
numa força urbana com potencial de reivindicar uma participação maior no
processo de mudanças pelo qual o país passava.
Em resumo, era um Estado que se consolidava de maneira muito
especial, pois não tinha apenas a função principal de manter as condições do
processo de acumulação capitalista, mas que se autodefinia como um Estado
que pretendia atuar no sistema de produção e também que queria promover a
industrialização. E que para fazer tudo isto, era um Estado intervencionista, que
não se importava muito se iria usar a via democrática ou a ditadura, as formas
racionais de se organizar administrativamente ou adotaria, ao mesmo tempo,
regras particularistas e clientelistas. Também era um Estado com um
considerável grau de autonomia, causada pela fragmentação dos interesses que
dificultava a formação de uma hegemonia; era um Estado autônomo e
centralizador, que criava sua própria ideologia, não se importando muito em
serviço cheia de méritos ou explorações militares como razão para recebera recompensa.
Tais cargos eram somente dados diretamente a candidatos em perspectiva, mas eram
também oferecidos a viúvas ou órfãos como dote. Obviamente, estes pequenos cargos
constituíam um patrimônio real, um recurso que possibilitava à Coroa assegurar lealdades e
recompensar bons serviços. Sua função, portanto, não era meramente burocrática. Neste
nível da administração, o pluralismo (ter mais de um cargo) era comum, bem como o uso
de representantes para preenchê-lo" (SCWARTZ 1973, p. 57).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
60
incorporar a da sociedade civil. E a sua burocracia, como não poderia deixar de
ser, começava a aprender todos estes idiomas, numa aparente Torre de Babel.
A centralização forçou a construção de mecanismos institucionais que
deviam ser capazes de colocar em funcionamento novas práticas políticas em
várias áreas da administração pública. À primeira vista, a centralização "parecia
favorecer a nascente burguesia industrial, talvez com prejuízo da burguesia
rural do café ... mas quando estas perceberam que só o Governo Nacional
poderia atender os seus interesses abençoaram (até) a ditadura ... que era uma
ditadura liberal, preocupada em manter a tranqüilidade social no País,
especialmente face ao advento político de novas classes sociais" (CUNHA
1963, p. 31).
Este novo Estado, que nasceu forte sob a bênção de todos, começou a
equipar-se para exercer o seu papel. E começou a preparar a sua burocracia,
incorporando todos os "idiomas" já apontados, para exercer o papel de agente
deste processo.
Mas será que o que "pensavam" os vários grupos de interesse sobre o
papel deste Estado, era o mesmo que este Estado, e sua burocracia, começavam
apensar sobre si próprios? Pelo menos no que diz respeito a alguns segmentos
deste aparato institucional, parece que não: os primeiros "pensavam" que esta
presença grande do Estado seria provisória e se dissolveria assim que
chegassem a um acordo sobre suas divergências. Mas o próprio Estado
"pensava" que tinha vindo para ficar e sua burocracia preparava-se para exercer
seu papel, adquirindo uma competência técnica específica e criando interesses
próprios. Estes interesses da burocracia muitas vezes eram penetrados pelos
interesses privados (os quais em certos momentos se mostrou muito receptiva),
mas nunca a ponto de perder sua identidade como agente, portadora que era da
tarefa de defender os interesses do Estado como funcionários públicos.
A construção institucional de um dos braços de um Estado que queria
ser forte, oferece um cenário privilegiado para observar-se o espaço de poder
que ocupou a burocracia pública e a lógica de ação que adotou para atingir seus
objetivos.
Uma radiografia do perfil institucional de uma parte deste “novo”
Estado — seu sistema financeiro —, bem como da formação dos interesses e
dos recursos técnicos e políticos de um segmento de sua burocracia — mais
especificamente aquela ligada à montagem institucional do aparelho econômico
deste mesmo sistema —, pode oferecer um bom caminho analítico para
entendermos o espaço de poder e a lógica de ação destes funcionários públicos.
61
C
APÍTULO I
A CONSTRUÇÃO INSTITUCIONAL DO SISTEMA FINANCEIRO
N
ACIONAL E A FORMAÇÃO DA SUA BUROCRACIA
A idéia de analisarmos a trajetória de alguns técnicos, bem como o perfil
institucional e o papel desempenhado por alguns órgãos da administração
pública a partir de 1930, deve ser tomada como ponto de referência e não como
uma tentativa de apresentarmos novidades sobre sua importância e seu
desempenho, aliás o que Já foi feito por outros estudos em maior profundidade.
Ponto de referência, pois pretendemos estabelecer a partir desta volta no tempo
algumas comparações com a "nova burocracia" que começa a surgir a partir de
1964 e que será objeto do estudo de caso apresentado na Parte III.
Entre 1930 e 1964, algumas agências e órgãos governamentais serviram
de base privilegiada para a formação de pelo menos duas gerações de
burocratas que passaram a ter presença obrigatória na formulação e execução da
política econômica de diversos Governos, na gestão das finanças públicas e
principalmente no seu desenho (ou re-desenho) institucional: o Banco do
Brasil, desde sempre; o próprio Ministério da Fazenda, através da Seção de
Estudos Econômicos, criada em 1934, e de vários conselhos, comissões e
grupos executivos dos quais participou; o Departamento de Administração do
Serviço Público - Dasp, criado em 1937; a Superintendência da Moeda e do
Crédito - Sumoc, criada em 1945; a Assessoria Econômica da Presidência da
República, criada no segundo Governo Vargas, o Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico – BNDE, criado em 1952, e a Superintendência
para o Desenvolvimento do Nordeste – Sudene, criada em 1959.
O surgimento de uma preocupação com a implantação de critérios
universais no preenchimento dos quadros da administração direta, acrescido da
atenção que começou a ser dada à formação de profissionais competentes,
começou no Banco do Brasil, através dos seus concursos para o preenchimento
de seu quadro de funcionários, desde 1906. E após 1930, com a criação do
Dasp, esta preocupação consolidou-se como base da política de pessoal do
Estado brasileiro, comas exceções que trataremos adiante. Assim surgiu uma
burocracia de carreira nas várias áreas da administração pública, inclusive na
área econômica. Neste caso, era um grupo de engenheiros-administradores e
mais tarde de economistas, que passaram a ocupar cargos nas Assessorias do
Presidente da República, nos diversos conselhos criados no período, e
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
62
principalmente no próprio Dasp, na Sumoc, no BNDE, na Sudene e
principalmente no Banco do Brasil.
Os técnicos que circularam entre as várias agências, conselhos,
comissões e grupos executivos tinham um compromisso comum, que
acompanhava a trajetória de um Estado com as características já expostas: seu
compromisso era com o desenvolvimento econômico através da
industrialização pela substituição de importações, com ênfase principal nas
indústrias de base. Foi isto que constatou LEFF em uma pesquisa que
desenvolveu entre 1963 e 1964 com a alta burocracia econômica, burocracia
esta que havia iniciado sua carreira nos anos 30, com atuação destacada nos
anos 40 (LEU 1977, p. 132).
Entretanto, mesmo sem perder de vista tal compromisso, estes técnicos
divergiam quanto à condução do processo: davam ênfases diferentes à questão
do nacionalismo e ao tratamento que se daria ao controle da inflação —
considerada para uns como mal necessário em qualquer projeto de
desenvolvimento e para outros como um mal a ser atacado com prioridade em
qualquer circunstância. E, finalmente, divergiam quanto à maior ou menor
intervenção do Estado para dar um impulso ao projeto de desenvolvimento
industrial e ao crescimento econômico, com ênfases diferentes sobre o papel do
planejamento econômico neste processo
47
.
Independente da orientação teórica a que se filiavam, é importante reter
que havia um grupo de técnicos que começou a interferir ida vida econômica
brasileira a partir de meados dos anos 40, e que influiu nos dois Governos de
Vargas, no Governo Café Filho, no Governo Juscelino Kubistchek, no Governo
Jânio Quadros, no Governo João Goulart e na primeira fase do regime militar.
Este grupo teve grande permanência e, apesar de suas grandes diferenças de
pensamento
48
, conviveu até 1964, sendo que alguns deles, que não se opuseram
ao golpe militar, continuaram atuando após 1964. Na realidade, pode-se dizer
que a maioria deles pertenceu ao primeiro grupo que começou a estudar
economia no Brasil, com cursos também no exterior, tendo como líderes e
incentivadores Eugênio Gudin, Luís Simões Lopes, Octávio Gouvêa de Bulhões
e Celso Furtado. E este conhecimento técnico foi um recurso político
importante para definir seu espaço de poder, bem como sua adesão ao projeto
nacional-desenvolvimentista que comandou o período. Faziam parte deste
grupo, dentre outros, Garrido Torres, Casemiro Ribeiro, Dênio Nogueira,
Cleanto de Paiva Leite, Rômulo de Almeida, Jesus Soares Pereira, Roberto
Campos, Glycon de Paiva, Sidney Lattini, Emane Galvêas e Paulo Poock.
47
Quanto a esta última questão, havia o grupo de Gudin-Bulhões que pregava a presença
mínima do Estado em qualquer projeto de desenvolvimento e o grupo Roberto Campos-
Lucas Lopes, que defendia a ação planejadora do Estado no processo de industrialização.
Mas estas várias tendências serão discutidas em detalhes adiante.
48
Formando dois subgrupos: os monetaristas e os estruturalistas, como veremos a seguir.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
63
Antes de passarmos à análise destas agências como espaços
institucionais de crescimento de uma parte da burocracia, devemos anotar que o
período marca o surgimento de um outro segmento burocrático, do qual não
vamos tratar no presente trabalho. Trata-se do "executivo" das empresas
públicas, responsável pela criação de duas lógicas diferentes no interior do
aparelho de Estado brasileiro, a lógica da administração direta e a lógica
"empresarial", como já discutimos na primeira parte. A criação da Companhia
Siderúrgica Nacional, em 1941, e da empresa Vale do Rio Doce, em 1946, foi
mais um sinal claro de um Estado que se apresentava como "produtor" e "ator"
do processo de desenvolvimento, ou seja, como aponta Luciano Martins, um
Estado que tinha um projeto de desenvolvimento ligado a um projeto político
definido. E seus agentes também vão carregar a marca destes traços fundadores.
Todas as empresas criadas durante o longo período que vai até o Governo
Kubitschek, passam a alocar um contingente de funcionários provenientes das
novas classes médias urbanas, que tinham dificuldade de colocação
profissional, principalmente nos Estados do Centro e do Nordeste: "Não se
tratava de estratos gestados pelo próprio Estado, mas de segmentos sociais
gerados na sociedade, por uma dada estrutura de classes, a qual, por sua vez,
era rígida demais para reabsorver segmentos que iam se diversificando"
(MARTINS 1985, p. 59). Estas empresas foram fundadas, dentro do quadro
específico do Estado brasileiro, "tendo a idéia de nação como referência" o que
dava "à empresa governamental a condição de res publica". Uma das principais
conseqüências desta situação foi o surgimento de um tipo específico de
"administrador público que introjeta no seu comportamento a idéia de Estado
referida à nação" (MARTINS 1985, p. 59), administradores públicos que
atuaram dentro de um projeto econômico e político determinado
49
.
Estes primeiros funcionários das empresas eram burocratas (os ligados
às atividades administrativas) e técnicos (os ligados à produção) cujo alvo,
requisito básico para definir um espaço de poder, era também o
desenvolvimento industrial do país, de preferência, dentro de um regime
democrático. Suas diferenças com os funcionários da administração direta
apareciam na forma de atuar
50
.
49
Na década de 60, o número de empresas estatais chegou a quase 600, e é quando surge,
para Luciano Martins, um novo tipo sociológico ligado a elas, o "executivo do Estado".
Qual a lógica desta nova burocracia "empresarial"? Para Martins, ela não é mais conduzida
por uma vontade política como foi sua antecessora, mas é o produto da racionalidade da
grande empresa capitalista, ocupando a estranha posição de agente da estatização sem uma
ideologia estatizante (MARTINS 1985, p. 68-69).
50
Dentre os órgãos que vamos analisar, estão alguns que seguem mais a lógica empresarial
do que a lógica do Governo, na terminologia adotada por Luciano Martins (1985). Mas no
nosso caso estamos considerando não a ação destes órgãos, mas tomando-os apenas como
base institucional da origem de uma parte da burocracia, pois sua atuação será examinada
no espaço institucional da administração direta.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
64
A) O BANCO DO BRASIL
Até 1930, a organização institucional do Estado, no que se refere ao seu
sistema financeiro, concentrava-se no Banco do Brasil e no Ministério da
Fazenda. O Banco do Brasil foi criado em 1808
51
, mas em 1828 encerrou suas
atividades
52
. Em 1853 foi criado novamente, tendo funcionado até 1902.
Finalmente em 1905 reiniciou suas atividades como "banco do governo", papel
que, com várias alterações, exerce até hoje.
A promíscua relação entre Governo (que gastava mais do que
arrecadava) e Banco do Brasil (que acabava pagando a diferença), que tantos
desajustes continua provocando nas contas públicas nacionais, esteve presente
desde a fundação do Banco
53
. A lógica do funcionamento do nosso modesto
sistema financeiro até o fim da Primeira República era a seguinte: o Tesouro
gerava déficits e o Banco do Brasil lançava mão da expansão primária de
moeda para cobri-los. Como veremos no nosso estudo de caso, esta prática
perdurou, com mecanismos muito mais sofisticados, mesmo após a criação do
Banco Central em 1965. Ela, aliás, faz parte de uma lógica mais geral que
parece ser constitutiva do Estado no Brasil
54
.
51
Dom "Dom Rodrigo Sousa Coutinho, um ilustrado típico, sugeriu a fundação do Banco do
Brasil... (em decorrência da transmigração da monarquia) ... o qual teria por objetivo
facilitar os meios e os recursos de que as rendas reais e as públicas necessitarem para
ocorrer às despesas do Estado". Alvará de 12 de outubro de 1808. BELOCH e ABREU
1984, p. 272.
52
"A volta de dom João VI a Portugal em 1821, levando consigo as reservas metálicas do
banco, legou uma situação financeira alarmante para o herdeiro do trono ... em 1828 o
banco estava contabilmente falido e o reconhecimento de sua falência implicava
reconhecera insolvabilidade do Tesouro Nacional". BELOCH e ABREU 1984, p. 272.
53
A partir da criação do Banco do Brasil, passou a existir papel-moeda no país sob a forma
de "notas do Banco do Brasil", sendo, portanto, a instituição encarregada da emissão. Mas
o desequilíbrio entre o lastro em metais preciosos mais as jóias da Coroa (ali depositados
como garantia) e os valores vindos da receita tributária logo se fez sentir. Além disso, o
Banco foi concebido muito mais como uma instituição para financiar as despesas
governamentais, aliás crescentes com a vinda dos 15.000 portugueses que acompanharam
D. João VI fugindo do bloqueio continental imposto por Napoleão, e não para desenvolver
as atividades econômicas. A primeira demonstração de que se havia criado um banco fora
do controle da sociedade foi quando D. João VI voltou para Portugal em 1821, e com ele
foram-se "todos os metais existentes no banco" e ficaram "os bilhetes que Sua Alteza e os
membros da Corte possuíam" (PELAÉZ e SUZIGAN 1976, p. 43). E isto foi feito sem
nenhuma consulta, por decisão única e exclusiva de Sua Majestade. Desta maneira,
chegou-se à Independência com o Banco do Brasil falido e a inflação nascendo.
54
Em artigo publicado no j ornal Folha de S. Paulo, em novembro de 1993, o jornalista Luís
Nassif cita Manoel Bomfim, um autor que nó início do século falava sobre a dívida
pública: "tudo estaria no melhor dos mundos se o Estado não tivesse dívidas, se
apresentasse um orçamento equilibrado e fosse bastante forte para manter a ordem, isto é,
impedir que os infelizes se queixem. É por isso também que, nas horas de dificuldades
econômicas, quando estas atingem o Estado, os estadistas financeiros cuidam em atender,
apenas, a este ou aquele sintoma ... que interessam especialmente ao Estado, e tratam de
salvar-lhe os interesses, mesmo contra as sociedades em geral" (BOMFIM 1903, in NAS
SIF 1993).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
65
A própria história da dívida pública interna brasileira é um reflexo desta
lógica. Ela teve seu primeiro marco institucional com uma lei de novembro de
1827 que dispôs sobre o reconhecimento da dívida já existente, criou uma
legislação específica para administrá-la e instituiu a Caixa de Amortização
(mais tarde incorporada ao Banco do Brasil) com a finalidade de pagar
(inclusive os juros) qualquer dívida fundamentada em lei. E a nossa prática
financeira parece ter sido sempre protetora dos inadimplentes
55
.
Entre 1857 e 1905, a história das instituições monetárias no, Brasil, e
principalmente do Banco do Brasil, girou em torno de duas questões: as crises
crônicas na relação emissão-fundos, pois as pressões para o financiamento
agrícola muitas vezes resultava em créditos que ultrapassavam a capacidade
financeira do Banco do Brasil, e a questão da unidade ou da pluralidade de
bancos emissores. Durante estes quase cinqüenta anos, houve momentos em
que venceu a tese da unidade emissora e outros em que autorizou-se outros
bancos a emitir. Houve também momentos que o Banco do Brasil foi socorrido
por outros bancos que acabaram assumindo sua administração e houve
momentos em que chegou a fundir-se com outras instituições para não
desaparecer novamente.
As relações entre Governo e Banco do Brasil foram contraditórias até os
primeiros anos do século XX, mas pelos relatos e análise dos historiadores do
período
56
, apesar de ameaçado várias vezes
57
, o Banco do Brasil acabou sendo
protegido de possíveis falências num misto de competência da sua
administração e de "socorro" do Governo. Esta política acabou criando
obstáculos ao desenvolvimento do sistema financeiro privado: "O Governo
brasileiro elaborou uma estrutura financeira que impedia a generalização dos
pânicos bancários — uma vez que o Banco do Brasil detinha uma parcela
considerável dos serviços bancários e o Governo (a partir de 1905) não
permitiria sua falência — à custa de severas restrições à ... função
intermediadora do sistema bancário privado na canalização de saldos cambiais
para as demais atividades econômicas destinadas ao mercado interno. O rápido
desenvolvimento do sistema bancário foi um dos aspectos mais significativos
do progresso mundial durante o século XIX ... nos países que se beneficiavam
com o crescimento do comércio internacional, mas o Brasil impediu ... esse
desenvolvimento" (PELAÉZ e SUZIGAN 1976, p. 107).
55
No seu início, as emissões da dívida eram efetuadas exclusivamente para atender as
despesas públicas, sendo que os títulos eram oferecidos ao investidor final.
56
Nossa retrospectiva do período foi toda construída a partir do trabalho de PELAÉZ e
SUZIGAN 1976.
57
Joaquim Maninho, Ministro da Fazenda de Campos Sales de 1897 a 1902, foi o
responsável pelo primeiro saneamento monetário da república. Era um homem muito
enérgico e chegou a deixar o Banco do Brasil quebrar, sendo recriado em 1905.
Depois de Murtinho veio Leopoldo Bulhões (1902-1906 e 1909-1910) que já pegou as
finanças mais equilibradas e que lutou pela estabilidade do mil réis e pelo fortalecimento
do Banco do Brasil.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
66
Na verdade, o desenvolvimento institucional do sistema financeiro
brasileiro até 1930, como já havia ocorrido durante o século anterior, foi o de
uma evolução por cortes, caracterizados por crises que praticamente colocavam
o sistema em colapso e eram enfrentadas através de medidas "saneadoras", mas
sempre com um marco institucional bastante nítido: a presença do Banco do
Brasil como principal instituição financeira de todo o sistema (incluindo o
sistema privado).
Em 1905 surgiu então o Banco do Brasil atual, e definiu-se seu perfil de
"banco do Governo": o Tesouro comprou as ações suficientes para ter seu
controle direto, ficando o Presidente da República encarregado de nomear o
Presidente do Banco e um de seus quatro diretores, mais precisamente o diretor
da Carteira de Câmbio
58
.
Em 1906 foi criada a Caixa de Conversão do Banco do Brasil, com o
objetivo de promover a estabilidade da taxa de câmbio, tendo em vista a
política de valorização do café. Em 1914, o início da Primeira Guerra Mundial
teve conseqüências imediatas sobre o comércio exterior mundial, provocando
uma forte queda nos preços dos produtos brasileiros de exportação,
principalmente o café: "Em agosto de 1914, a taxa cambial subiu acima da taxa
de estabilização, esgotando os depósitos da Caixa de Conversão e provocando
seu fechamento" (KOPROWSKI 1978, p. 10). A necessidade de diversificar a
produção do país, provocada pela guerra, colocou novamente o Banco do Brasil
em posição de destaque, levando à criação da Caixa de Câmbio:
"Diversificando-se a produção e exportação de produtos como carne frigorífica,
açúcar refinado, tecidos, arroz, feijão, milho, algodão, madeira, etc., o Banco
serviu de intermediário na alocação do papel-moeda emitido durante a guerra,
elevando o meio circulante de 899 mil contos em 1913 para 1729 mil contos em
1918" (KOPROWSKI 1978, p. 10)
59
. Esta nova atuação do Banco só foi
possível porque em 1916 seus estatutos foram alterados, permitindo daí em
diante as operações de redesconto de títulos comerciais e letras do Tesouro,
reinaugurando-se assim a prática de emitir dinheiro para cobrir o déficit do
Governo
60
.
58
O interesse pelo Banco do Brasil por parte do Governo neste período, estava fortemente
centrado na política protecionista do café: "o banco praticamente detinha o monopólio
cambial-80% das autorizações cambiais e 75% dos certificados-ouro eram por ele
negociados; para que isso se tornasse possível, foram criadas agências nas principais praças
ligadas ao comércio exterior, chegando-se a sete filiais em 1915" (Manaus, Belém, Santos,
Campos, Salvador, Recife e Fortaleza) (KOPROWSKI 1978, p. 9).
59
"Por decreto de 28 de agosto de 1915, o governo forneceu 50 mil contos ao Banco para
`acudir as necessidades da indústria, do comércio e da lavoura, por motivo de crise
excepcional' ... Em 11 de novembro de 1915, o Governo Federal aprovou um contrato com
o Banco do Brasil, pelo qual lhe emprestaria outros 50 mil contos para um programa de
assistência à produção nacional" (KOPROWSKI 1978, p. 10).
60
"Para executar a nova política governamental, o Banco do Brasil aumentou o número de
agências de 7 para 42 entre 1916 e 1919" (as novas agências eram: São Paulo, Curitiba,
Porto Alegre,João Pessoa, Três Corações, Uberaba, Ilhéus, Nata1, Pamaíba, Juiz de Fora,
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
67
Em 1926 o Governo de Arthur Bernardes realizou uma reforma
monetária importante, criando a Caixa de Estabilização e estabelecendo uma
nova paridade do ouro com o mil réis. Foram seus ministros Sampaio Vidal
(1922-1925), que era um "inflacionário", segundo o Dr. Octávio Gouvêa de
Bulhões (DEPOIMENTO, p. 28), depois foi Anibal Freire (1925-1926), e
depois Getúlio Vargas (1926-1928).
Em 1930 foi dado ao Banco do Brasil o monopólio sobre as operações
de câmbio e criada a Carteira de Emissão e Redesconto (que já havia existido
entre 1920 e 1923). Em 1932 foi criada a Caixa de Mobilização Bancária e em
1936/1937 a Carteira de Crédito Agrícola e Industrial. Em 1941 foi criada a
Carteira de Exportação e Importação (Cexim) substituída em 1953 pela Carteira
de Comércio Exterior (Cacex).
Nas águas da história do Banco do Brasil criou-se um espaço
institucional cada vez mais poderoso. Este processo foi conduzido pela
crescente utilização que o governo dele fazia, quer para atender favores dos
grupos no poder, quer para alavancar políticas governamentais — como a do
café, garantindo o principal produto de exportação durante as décadas de 30 e
40, ou a do crédito subsidiado aos agricultores para abastecer o mercado interno
e baratear o custo da mão-de-obra —, quer ainda por sua atuação "anticíclica"
nos momentos de crise.
Em 1942 os estatutos do Banco do Brasil foram reformulados para
adequarem-se à nova Lei das Sociedades Anônimas, e ficou consagrada uma
dualidade de papéis, que durante os 45 anos seguintes provocou tanta
controvérsia: passou a atuar como autoridade monetária e como banco
comercial. No primeiro papel, estava encarregado das emissões, da arrecadação
das rendas federais, dos pagamentos autorizados pelo governo, das antecipações
ao governo, além de atuar como agente federal nas operações de câmbio. No
segundo papel, captava recursos e financiava as atividades produtivas.
Na sua dupla (e contraditória) função de autoridade monetária e de
banco comercial, criou uma burocracia com recursos políticos próprios,
portadora de uma valorização social específica baseada no seu mérito (eram
selecionados por concurso), na sua importância, competência e permanência. E
esta burocracia acabou criando um forte laço de solidariedade para a defesa de
seus interesses, interesses estes que se fortaleciam cada vez que a instituição se
via "ameaçada" ou que seu espaço de poder era questionado.., E isto aconteceu
várias vezes, como veremos adiante.
Outra característica desta burocracia que surgia ligada ao Banco do
Brasil, principalmente a partir da década de 1930, era seu ideário voltado para a
defesa dos interesses do Banco que assumiam como "sua casa" e seu orgulho de
Carangola, Cataguases, Pelotas, Barretos, Ponta Grossa, Varginha, Jaú, Belo Horizonte,
Rio Grande, Bagé, Livramento, Mossoró, Bauru, João Pessoa, Maceió, Florianópolis,
Corumbá, Aracajú, São Luís, Vitória, Ribeirão Preto, Joinville, Carrocim, São Feliz, Feira
de Santana e Cachoeira) (KOPROWSKI 1978, p. 10).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
68
serem reconhecidos como "funcionários do Banco do Brasil". Na defesa dos
interesses do Banco, chocavam-se muitas vezes com pressões dos interesses
clientelistas e particularistas, sinal da permanência de padrões de relações entre
Estado e sociedade que o "novo estado" não havia conseguido quebrar. E
criavam, com essa resistência, sua concepção de defesa do "interesse público",
representado aqui pelo respeito ao papel que havia sido atribuído pelo Governo
ao Banco do Brasil, o qual tendiam a não questionar, e pela sua adesão a um
projeto de desenvolvimento econômico com forte presença estatal que conduzia
as ações. Esta sua posição era bastante reforçada pelo prestígio social que
gozavam pelo fato de serem funcionários do Banco do Brasil, carreira que
haviam conquistado por concurso e que representava para a grande maioria uma
nítida ascensão social. Entretanto, como pretendemos mostrar, em muitos
momentos estes interesses se "confundiam" com os interesses da própria
corporação Banco do Brasil, momentos estes em que alguns funcionários
passaram a questionar a posição de seus colegas, por considerarem que estes
estavam colocando os interesses do banco acima do "interesse público”.
Como ilustração da carreira de um destes técnicos que entrou para o
serviço público através de um concurso do Banco do Brasil na década de 40, e
que teve esta trajetória de carreira e de ideário descrita acima, temos o Dr.
Casemiro Antonio Ribeiro que teve papel importante nos trabalhos da Sumoc, a
partir de 1953, onde ocupou o cargo de Chefe da Divisão de Estudos
Monetários. Sua atuação foi também marcante em dois momentos decisivos da
construção institucional do sistema que regeria as finanças públicas nacionais:
na discussão da Lei Bancária, apresentada pelo Governo João Goulart para
aprovação no Congresso em 1962-63 e na criação do Banco Central em 1965,
do qual foi diretor. Dr. Casemiro nasceu em Joinville, Santa Catarina, em 1922.
A família mudou-se para Porto Alegre quando tinha seis meses e lá ficou até os
13 anos, quando foi trazido para o Rio de Janeiro. Aos 19 anos (1941) fez
concurso para o Banco do Brasil, onde tomou posse em maio de 1942. Como
foi muito bem classificado no concurso, permaneceu no Rio, tendo sido
designado para a Seção de Estatística e Estudos Econômicos que ficava na
direção geral do banco e que preparava as estatísticas e os relatórios gerais para
a diretoria. Depois de algum tempo, para levantar dados, começou a freqüentar
o Ministério da Fazenda, onde conheceu o Dr. Octávio Gouvêa de Bulhões que
era o chefe da Seção de Estudos Econômicos e que mais tarde o convidaria para
trabalhar na Sumoc. O Dr. Bulhões também indicou-o, em 1950, para fazer
estágio no Banco da Inglaterra e um curso na London School, com o Professor
Lionel Robinson, prática comum na época, para que os técnicos que se
formavam se atualizassem sobre a organização do sistema financeiro
Internacional. No seu regresso, foi alocado na Carteira de Exportação e
Importação do Banco do Brasil – Cexim, onde tinha acabado de assumir como
diretor o Dr. Simões Lopes e para onde tinha sido transferido do Itamaraty o
Dr. Roberto Campos. Na discussão que faremos mais adiante, apresentaremos
seu depoimento sobre alguns destes momentos de sua trajetória profissional,
que servirão para qualificar atitudes que consideramos típicas destes
funcionários de carreira.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
69
Além do Dr. Casemiro, foram desta geração de funcionários que
começaram suas carreiras no Banco do Brasil: Aldo Batista Franco, José Nunes
Guimarães e Emane Galvêas, dentre outros.
B)
O MINISTÉRIO DA FAZENDA
Outra agência, comparativamente muito menor e com um espaço de
poder (recursos políticos) muito mais limitado do que o Banco do Brasil, surgiu
em 1934, e que teve um papel importante na formação da primeira geração de
burocratas da área financeira do "novo Estado", foi a Divisão de Estudos
Econômicos e Financeiros do Ministério da Fazenda. Criada por Sousa Costa
quando assumiu o Ministério, foi uma tentativa de se avançar na coleta e
análise de informações que, desde 1931, começavam a ser reunidas pela
Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos dos Estados e Municípios. Esta
Comissão levantava dados sobre a economia e as finanças das diferentes
unidades da federação. Dois importantes profissionais, que tiveram papel
destacado na liderança de um grupo de burocratas nas suas passagens pela
administração pública nas décadas de 40, 50 e 60, bem como na criação dos
cursos de economia no país, iniciaram sua carreira pública nestes órgãos:
Eugênio Gudin, na Comissão de Estudos Financeiros e Econômicos dos
Estados e Municípios (encarregado do Estado do Ceará), e Octávio Gouvêa de
Bulhões, na Divisão de Estudos Econômicos e Financeiros do Ministério da
Fazenda
61
. Foi desde então que Gudin e Bulhões começaram a influir na
formação de um grupo de funcionários que passaram a ter sua preocupação
voltada para um conhecimento especializado e para o aperfeiçoamento técnico
das ações do Governo: "Nesta época era muito difícil obter-se informações e
utilizava-se um processo de adivinhação que funcionava até bem. Verificava-
se, por exemplo, o consumo de energia elétrica, o Imposto de Consumo, e esses
indicadores permitiam aferir o volume da produção. Com isso íamos
aprendendo muito" (BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 39). Esta tentativa
praticamente pioneira de sistematizar informações teve papel importante para
esta geração que se formou na ação.
A trajetória dos técnicos, alocados (porque pertenciam a outras
agências) ou permanentes, do Ministério da Fazenda foi fortemente marcada
por sua presença em outros órgãos que gravitavam em sua órbita, sob a forma
institucional de Conselhos e de Comissões Técnicas. Estes órgãos destacaram-
se tanto como espaço de poder, onde concentravam-se recursos políticos,
61
O primeiro emprego público do Dr. Bulhões foi no Telégrafo. Em 1926 entrou para o
Imposto de Renda, que era um serviço autônomo. O seu criador, Francisco Tito de Sousa
Reis, tinha a liberdade de contratar quem quisesse. Este serviço deveria cadastrar as
empresas e pensar numa fórmula para as pessoas declararem a sua renda. Só mais tarde,
depois de 1930, é que o Imposto de Renda passou para o Ministério da Fazenda
(BULHÕES 1990, Depoimento, p. 9-10).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
70
quanto como também transformaram-se em "escolas práticas de formação
econômica diferenciada para engenheiros, advogados e outros altos
funcionários que se envolviam comas atividades de regulamentação e controle
de diversos setores econômicos..." (LOUREIRO 1992, p. 51). A saída
institucional de criar Conselhos e Comissões Técnicas, de aparência
democrática, pois ampliava a participação, paradoxalmente, acabou
transformando-se numa forma de manter a centralização das decisões,
transferindo muitas vezes para esta "estrutura paralela" o poder que os
governantes queriam garantir independentemente de outras interferências (do
Legislativo, da própria máquina do Estado ou mesmo da opinião pública).
Assim, a burocracia que participou destes grupos, não só aprofundou seus
conhecimentos, como ampliou seus recursos políticos, participando de uma
experiência em que se acentuava o papel de um Estado centralizador e que
utilizava percursos institucionais informais (porque estranhos à estrutura formal
e permanente) para atingir seus objetivos (ver Anexo III).
O exemplo de um burocrata que teve sua formação profissional
fortemente marcada por sua atuação em um destes Conselhos, é o de Jesus
Soares Pereira, que atuou no Conselho Federal de Comércio Exterior. Dr. Jesus
nasceu em Assaré, no Ceará, em 1910
62
. Filho de um telegrafista e de uma
professora primária, aprendeu a ler com sua mãe, de quem ficou órfão aos seis
anos. Viveu em várias cidades do Ceará durante a infância, tendo feito seus
primeiros estudos sem freqüentar escola, onde ingressou apenas aos 13 anos. A
grande seca que assolou o Nordeste em 1919 impressionou-o muito e despertou
seu interesse pela literatura regional sobre o assunto. Dos 15 aos 21 anos
trabalhou como telegrafista em Fortaleza para pagar seus estudos no Liceu do
Ceará. Em 1931 mudou-se para o Rio de Janeiro para prestar o exame
vestibular para a Escola Politécnica, atual faculdade de Engenharia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, mas suas enormes dificuldades
financeiras impediram-no de cumprir este objetivo. Em 1931 ingressou no
serviço público através de um convite de um amigo que fizera nos grupos
positivistas que vinha freqüentando. Assim entrou para o Ministério da
Agricultura, para um modesto cargo na diretoria de contabilidade, sendo
transferido em 1933 para o Departamento Nacional de Produção Mineral. No
mesmo ano prestou concurso público tendo sido aprovado em primeiro lugar e
foi designado para trabalhar na Secretaria de Estado da Agricultura. Em 1937,
logo após a implantação do Estado Novo, o Conselho Federal de Comércio
Exterior teve suas atribuições ampliadas e passou a ser um órgão deliberativo, o
que promoveu o crescimento do seu corpo técnico, e para lá foi o Dr. Jesus.
Nesta época, o Dr. Jesus já havia adotado uma posição nacionalista e defendia a
participação do Estado nos setores básicos da economia, especialmente no setor
de energia elétrica. Participou também do corpo técnico da Comissão Especial
de Estudos do Problema Siderúrgico, cujo parecer final defendeu
enfaticamente, e que apontou para uma solução nacionalista e com forte
presença do Estado na política do setor. As sugestões da Comissão se
62
Biografia retirada de BELOCH e ABREU 1984, p. 2685.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
71
concretizaram com a criação da Companhia Siderúrgica Nacional em 1941.
Com participação em vários outros eventos, trabalhou no Conselho Federal de
Comércio Exterior até o fim do Estado Novo. Sua avaliação deste período: "O
Conselho foi a máquina deliberativa e até mesmo legislativa do Estado Novo. O
verdadeiro órgão criador de legislação econômica do país. Para mim, uma
grande escola técnica... A minha grande escola ativa no trato dos problemas
econômicos nacionais" (PEREIRA in LOUREIRO 1992, p. 51). Dr. Jesus teve
posição destacada durante o segundo Governo Vargas, na Assessoria
Econômica da Presidência da República, como veremos adiante.
Através do Banco do Brasil, do Ministério da Fazenda e dos diversos
Conselhos e Comissões, foi se formando a "ossatura material" que presidiu a
organização das instituições econômico-financeiras do Estado após 1930 e que
representou a arregimentação de um grupo de pessoas em torno dos diversos
órgãos que foram criados ao longo do período. E eram técnicos que foram
adquirindo competência técnica na prática pois só teriam acesso aos
conhecimentos teóricos nas décadas seguintes, principalmente através dos
cursos da Fundação Getúlio Vargas e das viagens ao exterior que foram
propiciadas por sua inserção profissional nestes órgãos.
C)
O DEPARTAMENTO ADMINISTRAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DASP
O primeiro esforço para instituir uma burocracia pública de carreira na
administração direta (posto que o Banco do Brasil já possuía a sua) veio em
1936 com a criação do Conselho Federal do Serviço Público Civil, que
preparou o terreno para uma proposta de mais fôlego: o Departamento
Administrativo do Serviço Público – Dasp. A partir daí, entrou-se numa fase de
expansão da burocracia, quando o clientelismo, marca das relações entre Estado
e sociedade no Brasil desde a fase colonial, e que trouxe consigo o
personalismo e o uso da autoridade pessoal como matrizes formadoras da nossa
burocracia, começou a ser atacado na prática, através de propostas que tinham
no "universalismo de procedimentos" a sua base conceituai. Mas as
dificuldades foram muitas.
Em 1938, com a criação do Dasp, tentou-se institucionalizar também um
novo tratamento à elaboração e ao controle do orçamento. A criação do Dasp
foi sem dúvida o sinal do nascimento de um espírito reformador no âmbito da
administração pública, espírito este que transformou parte da burocracia federal
em portadora da capacidade e da consciência de propor desenhos (ou
redesenhos) institucionais que definiram a estrutura (e em alguns casos o
funcionamento) do aparelho de Estado.
O Dasp nasceu por uma decisão constitucional, pois a Carta Magna de
1937 previa no seu Artigo 67 que fosse criado um Departamento
Administrativo que seria responsável pela organização dos órgãos do Governo,
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
72
pelo aperfeiçoamento do aparelho governamental, pela elaboração
orçamentária, e pela assessoria direta ao Presidente da República.
Decreto-Lei 579 de 30 de julho de 1938 que criou o Dasp definiu seus
principais objetivos seguindo estas diretrizes constitucionais:
1. realizar os estudos pormenorizados das repartições,
departamentos e estabelecimentos públicos, com o fim de
determinar, econômica e eficientemente, as modificações a
serem feitas na sua distribuição e agrupamento, nas suas
dotações orçamentárias, nas suas condições e processos de
trabalho, nas relações entre os órgãos e nas relações com o
público;
2. organizar anualmente, de acordo com as instruções do Presidente
da República, a proposta orçamentária a ser enviada à Câmara
dos Deputados;
3. fiscalizar, por delegação do Presidente da República, a execução
orçamentária;
4. relacionar os candidatos e organizar os concursos para os cargos
públicos federais do Poder Executivo;
5. promover a readaptação e o aperfeiçoamento dos funcionários
civis da União;
6. auxiliar o Presidente da República no exame dos projetos de lei
submetidos à sanção;
7. fixar os padrões e especificações do material para uso nos
serviços públicos.
A estrutura que se montou para levar adiante o cumprimento destes
objetivos foi fortemente orientada pelos ensinamentos da teoria administrativa
americana
63
, segundo a qual deveria haver uma separação clara entre política e
administração. A política deveria ficar circunscrita ao Poder Legislativo, e ao
Poder Executivo caberia montar um departamento de administração geral para
dar apoio ao Chefe do Poder, o Presidente da República. Este departamento
deveria ter uma grande eficiência organizacional; ele deveria ser um órgão
normativo, de coordenação e de controle e serviria de modelo para os demais
órgãos que se estruturassem abaixo dele.
Dentre os vários obstáculos que as várias propostas tiveram que
enfrentar na tentativa de implantar estes procedimentos "universalistas", um
deles estava na constante dissociação entre o que seus mentores pretendiam que
fosse a "administração pública" e o quadro social e econômico existente no
país. Um dos exemplos de como pretendia-se resolver "por decreto" problemas
que estavam enraizados profundamente na sociedade, foi que uma das muitas
funções do Dasp seria realizar concursos de ingresso para o funcionalismo
63
W. F. Willoughby foi um dos principais formuladores da teoria administrativa americana.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
73
público, pré-requisito básico para qualquer sistema administrativo baseado em
procedimentos universalistas. Mas a ideologia que comandava as relações entre
sociedade e Estado era clientelista e empreguista, e daí que o número de
funcionários "extranumerários", contratados sem concurso e por indicações
pessoais, foi sempre superior aos "estatutários". E isto porque, entre 1930 e
1945, com o Estado assumindo seu novo papel de ator e promotor do
desenvolvimento, expandiu-se muito a administração federal, e esta expansão
se fez "à margem da estrutura administrativa tradicional, substituída por órgãos
da denominada administração indireta ou autárquica, o que lhes dava maior
espaço à utilização política" (CUNHA 1963, p. 92).
O Dasp sofreu várias reestruturações, sendo a principal delas no
Governo Dutra, quando as suas funções foram "drasticamente reduzidas e
(transformaram-no) em um órgão de estudo e orientação administrativa ... na
prática, a 'reestruturação democrática' do Dasp favoreceu a distribuição política
de empregos, independentemente do sistema de méritos e concursos" (DRAIBE
1985, p. 298).
O outro obstáculo que o Dasp enfrentou foi no que se refere à questão
orçamentária. Como vimos, a dívida pública interna sempre foi o grande
fantasma do sistema financeiro no Brasil. A falta de pontualidade no pagamento
dos juros e do principal, a falta crônica de verbas no orçamento, os rendimentos
reais negativos proporcionados pelos papéis do governo desde sempre (situação
provocada pelo perene processo inflacionário) e, na década de 40, a falta de um
eficiente mercado secundário, capaz de "gerar liquidez para os papéis da
União", levaram a dívida mobiliária a um ponto que o Tesouro passou a captar
recursos via títulos de forma compulsória
64
. E o Dasp (assim como nenhum
outro órgão) não conseguiu montar um sistema de controle que ao menos
pudesse ser utilizado como referencial da situação das contas públicas.
Mas com todas estas dificuldades, a conclusão dos analistas do período
é de que a base da estrutura administrativa do Estado brasileiro que nasceu em
1930, bem como o ideário que a norteou, teve no Dasp um de seus principais
fundamentos. Entretanto seria justo dizer que os resultados da ação do Dasp
foram muito mais visíveis na formação de uma mentalidade entre os novos
servidores públicos do que na estruturação organizacional do Estado, onde o
espírito centralizador levou à criação de renovadas estruturas paralelas via
conselhos técnicos, comissões, grupos executivos que se sucediam, deixando a
estrutura formal com um papel acessório. Esta mentalidade se fortaleceu nos
64
Nos anos 50 foram criadas as Obrigações do Reaparelhamento Econômico e em 1964, as
Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional. As ORTNs, como ficaram conhecidas,
foram lançadas inicialmente de forma compulsória e como forma alternativa ao pagamento
de tributos federais, mas pouco a pouco foram ganhando a adesão voluntária do público,
tendo sido até 1970 um importante instrumento de política fiscal para financiar déficits do
Tesouro Nacional.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
74
anos seguintes, o que acabou credenciando nossa burocracia para desempenhar
um importante papel no desenho e no (re)desenho institucional do Estado
65
.
Na criação desta nova mentalidade e para se dedicar à formação dos
quadros da administração pública, o primeiro Presidente do Dasp, Luís Simões
Lopes, propôs ao Presidente Getúlio Vargas que fosse criada uma instituição
para se aprofundar no estudo e para se dedicar ao ensino dos problemas da
administração pública. Através de um decreto promulgado no dia 14 de julho de
1944, foi criada a Fundação Getúlio Vargas. A fim de que "a entidade ficasse a
salvo das interferências da política, sem no entanto subordinar-se à procura do
lucro, foi escolhida a forma de fundação, com objetivos de interesse público,
mas com personalidade jurídica de direito privado" (BELOCH e ALVES 1984,
p. 1407). Ligado à Fundação Getúlio Vargas e a partir do seu Núcleo de
Economia, por iniciativa de Eugênio Gudin, foi criado o Ibre – Instituto
Brasileiro de Economia, que passou a se preocupar com a construção e
acompanhamento de índices econômicos básicos: balanço de pagamentos,
índice de preços e renda nacional. Tanto na área de ensino quanto no trabalho
técnico, o núcleo inicial do Ibre reuniu um grupo de pessoas, incluindo o Dr.
Octávio Gouvêa de Bulhões, que, além de ter tido presença marcante na
definição e direção da política econômica, durante os anos seguintes passou a
atuar no treinamento de profissionais que ocupariam vários cargos da área
econômica
66
. A entrada do Dr. Octávio Gouvêa de Bulhões no Ibre representou
o início da trajetória de toda uma geração de economistas. Importante reter a
idéia de que estes economistas receberam, desde o início, uma formação
voltada prioritariamente para atuar no setor público.
Uma ilustração interessante da mentalidade que se pretendia criar em
torno destes novos órgãos é a trajetória de um "daspiano", o Dr. Cleanto de
Paiva Leite, que iniciou sua carreira no Dasp e chegou a Diretor do BNDE na
década de 50. Nascido na Paraíba (futura cidade de João Pessoa) em 1921,
terminou seu curso ginasial no próprio estado e depois transferiu-se para
Recife. Lá completou o curso secundário e iniciou o curso de Direito em 1942,
na Faculdade de Direito de Recife. No último ano do curso, transferiu-se para a
Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, onde fazia as matérias, mas a nota era
enviada para Recife, pois não se admitia transferência no ultimo ano. Assim
diplomou-se pela Faculdade de Direito de Recife. Tanto seu pai quanto sua mãe
eram professores primários, e seu pai faleceu quando tinha apenas 12 anos.
Sendo o mais velho de uma família de cinco filhos homens, logo que se mudou
65
Uma análise das disputas "intraburocráticas" entre os técnicos do Dasp e do Ministério da
Fazenda por poder e "posições de prestígio" durante o Governo Dutra está em DRAIBE
1985, p. 301-304.
66
Alguns nomes que atuaram na formação de uma mentalidade técnica através do Núcleo de
Economia da FGV, que depois deu origem ao IBRE: José Nunes Guimarães, Eduardo
Lopes Rodrigues, Antonio Dias Leite, João Mesquita Lara, Luís Dodsworth Martins, Arísio
Viana, Guilherme Pegurier, Octávio G ouvêa de Bulhões, Isaac Kerstenetsky, Julien
Chacel, Alexandre Kafka. (BULHÕES 1990, p. 66).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
75
sozinho para Recife e começou a trabalhar no Diário de Pernambuco, conheceu
vários intelectuais ligados ao grupo de Gilberto Freire: “Essa convivência com
pessoas... deformação européia, teve uma importância muito grande na minha
formação” (LEITE, DEPOIMENTO, p. 1).
Enquanto fazia o curso de Direito, foi nomeado bibliotecário da
Biblioteca Pública da Paraíba, e passou a dividir seu tempo entre João Pessoa e
Recife. Como não tinha nenhuma formação de bibliotecário, começou a se
informar sobre o assunto, através de uma série de artigos que saíram na Revista
do Serviço Público sobre organização de bibliotecas
67
: “Ao mesmo tempo que
lia os artigos sobre bibliotecas,ia acompanhando todo trabalho do Dasp sobre
... organização e métodos, administração de pessoal, sistema de seleção do
serviço público, etc.... Quando foi criado o Departamento do Serviço Público
da Paraíba - o `daspinho' - aparentemente eu era a pessoa mais familiarizada
com o Dasp ... e com a temática da ... modernização da administração pública
brasileira... Então, durante alguns meses fui secretário do `daspinho', e escrevi
as primeiras 82 exposições de motivos do diretor geral ... para o ... interventor
federal, Rui Carneiro" (LEITE, DEPOIMENTO, p. 18).
Foi esta formação "autodidata" que acabou levando o Dr. Cleanto para o
Rio de Janeiro: "...houve uma missão do Dasp do Rio de Janeiro que foi à
Paraíba dar assistência ao ‘daspinho’, da qual fazia parte o Dr. Isnard Garcia
de Freitas, que muitos anos depois foi Diretor-Geral do Dasp. ... (ele) ficou
surpreendido de encontrar na Paraíba uma pessoa que ... estava muito
familiarizada com os estudos do Dasp. Dois meses depois, já no Rio, ele me
estimulou a prestar um concurso para o Dasp. ... e acabei pegando um Ita para
o Rio de Janeiro ... para fazer aprova para a função de assessor de
organização e métodos no Dasp " (LEITE, DEPOIMENTO, p. 20). Nesse
concurso eram 60 candidatos e Dr. Cleanto foi aprovado em segundo lugar na
prova de conhecimentos, mas foi reprovado no exame de saúde, pois era
estrábico. Após fazer um requerimento pedindo a revisão desta decisão e tendo
conseguido que o próprio médico realizasse gratuitamente uma cirurgia
corretiva, ingressou no Dasp.
Este episódio serve para ilustrar um pouco como era o processo de
seleção do Dasp naqueles anos 40:
"Aquilo para mim foi uma enorme frustração ... (então) eu me meti na
Biblioteca Nacional, tirei livros de oftalmologia, livros sobre seleção de
pessoal, níveis de saúde para seleção de pessoal, etc., e redigi um recurso
contra a decisão que me havia reprovado .., e poucos dias depois ... fui
chamado pelo médico da divisão de seleção que havia me reprovado. Quando
me apresentei, ele perguntou:
- Quem redigiu este recurso para o senhor?
- Ninguém redigiu, eu redigi.
67
Os artigos eram da professora Vanda Ferraz, de São Paulo.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
76
- Mas com todos estes conhecimentos médicos e até de oftalmologia e
níveis de seleção, níveis de visão para efeito de várias profissões, foi o
senhor quem fez?
- Foi, fui eu que fiz.
- Mas este problema de estrabismo, redução de visão por estrabismo, é
fácil de resolver, com uma pequena operação. Porque o senhor nunca
operou?
- Eu nunca operei porque não tenho dinheiro. - Então eu vou fazer a sua
operação.
No dia seguinte, eu fui à Fundação Gafrée Guinle para que ele me
examinasse, e durante o exame, a enfermeira entrou e disse que a
pessoa que iria ser operada naquele dia não viria mais, e ele me
perguntou se eu queria operar imediatamente e eu disse que sim. E ele
me disse que então eu tirasse a camisa. E fui operado imediatamente.
Depois da cirurgia, ele me disse para comprar uns óculos escuros e daí
a três dias voltar ali. Eu saí, tomei o bonde, comprei os óculos, e fui
para a pensão do Largo da Glória onde eu morava. Fiquei deitado ... e
a dona da pensão me levou uma sopa ... e três dias depois eu voltei. Ele
me examinou, tinha corrigido o estrabismo, fui aprovado, e então iniciei
minha carreira no Dasp”
68
.
Em 1943 fez novo concurso no Dasp, para ser promovido a técnico de
administração. Em 1944, viajou ao Paraguai em uma missão técnica do Dasp
para a organização das finanças e da administração pública daquele país.
Durante estes primeiros anos de Rio de Janeiro, apesar da grande efervescência
política provocada pelo fim da guerra e pelo fim do Estado Novo, ficou distante
das discussões e não tomou nenhuma posição. Em 1945, é escolhido pelo Dasp
para se especializar em administração pública
69
, a partir de um convite do
Conselho Britânico. Assim, no dia 5 de novembro de 1945, desembarcou em
Liverpool, e quando chegou a Londres é que ficou sabendo da deposição de
Getúlio Vargas. Deveria ficar em Londres por um ano, mas em janeiro de 1946,
o embaixador Ciro Freitas Vale, que representava o Brasil na recém-criada
Organização das Nações Unidas, convidou o Dr. Cleanto para compor a missão
técnica brasileira que participou da implantação da ONU. Deste trabalho, aos
26 anos, é convidado para um emprego permanente na ONU, e transferiu-se
então para Nova York. Licenciou-se do Dasp, e permaneceu como funcionário
68
LEITE, Depoimento em 1/7/1983, p. 22, resumido por mim.
69
Vários são os exemplos de técnicos que saíram do Nordeste, entraram no Dasp por
concurso, fizeram curso no exterior e tornaram-se pessoas influentes na administração
pública federal. Poderíamos citar: José Guilherme de Aragão, entrou para o Dasp em 1946,
doutorou-se pela Sorbonne em 1954, foi Diretor geral do Dasp em 1956, em 1959 foi
responsável junto com Celso Furtado pela elaboração dos estatutos da Sudene, e foi
Secretário Geral do Ministério da Educação em 1979/80.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
77
da ONU (pertencendo ao staff da organização, e não mais membro da delegação
brasileira) até 1951. Durante estes cinco anos fora do Brasil, acompanhou a
política do final do Estado Novo e o Governo Dutra, apenas no que se refere às
relações internacionais. Mas formou sobre Getúlio Vargas uma imagem
positiva, como alguém que criou um órgão como o Dasp, que foi capaz de tirar
um menino pobre da Paraíba, e dar a oportunidade para que, apenas com seu
esforço pessoal, tivesse uma formação especializada e uma ampla experiência
internacional, antes de chegar aos 30 anos.
Em 1951 regressou ao Brasil, “para reintegrar-se ao país pois não
tinha intenção de tornar-me um burocrata internacional para sempre". Ao
reapresentar-se ao Dasp, seu ex-chefe, Moacir Briggs, tinha sido nomeado
subchefe da Casa Civil do recém-eleito Presidente Getúlio Vargas que o
convidou para fazer parte da assessoria direta do novo presidente
70
. Passou a
integrar também a recém-criada Assessoria Econômica da Presidência da
República, que estava sendo montada por Rômulo de Almeida. Na realidade,
logo ao chegar ao país assumiu as funções de oficial de gabinete, quando
passou a despachar semanalmente com o Presidente Getúlio Vargas: “Foi
quando transformei-me num getulista... fui adquirindo uma grande admiração
por ele, uma grande confiança nele ... fui percebendo que ele era um homem
que tinha realmente uma visão de como os grandes objetivos nacionais
preponderavam sobre quaisquer problemas pessoais, de facção política ou
regionais". E esta característica do Dr. Getúlio explica, para o Dr. Cleanto, o
desfecho da crise de 1954 e sua morte: "a avaliação que eu posso fazer do
Getúlio, dos últimos meses do governo, e isto para mim explica o agosto de 54
... curiosamente ... o Getúlio tinha perdido o gosto pelo poder. Aquilo que no
primeiro período, no Estado Novo, era a qualité maitrise do Getúlio, o gosto do
poder; não o poder pelo poder ... mas o poder pela oportunidade ou pela
capacidade que o poder dá de fazer coisas em beneficio do país.... Por que ele
perdeu o gosto pelo poder? ... alguns fatores familiares, talvez, a descoberta de
negócios que se faziam à sombra no Catete, isso pode ter contribuído" (LEITE,
DEPOIMENTO, p. 100-101).
Em 1953, o Dr. Cleanto foi nomeado diretor do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico, onde permaneceu até 1962, estando licenciado
entre 1956 e 1958, quando foi chefe de gabinete do Ministro da Viação e Obras
Públicas, Dr. Lúcio Martins Meira. Como Diretor do BNDE, participou da
preparação e do acompanhamento do Plano de Metas do Presidente Kubitschek,
quando era Presidente do Banco e Secretário Executivo do Conselho de
Desenvolvimento Econômico, o Dr. Lucas Lopes.
Em 1959, o Ministro da Fazenda, Lucas Lopes e o Presidente do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico, Roberto Campos, concluíram um
acordo com o Fundo Monetário Internacional que previa um programa de cortes
nas despesas públicas, que foi recusado pelo Presidente Kubistchek. Este fato
70
Depois de algum tempo trabalhando na Casa Civil, fica sabendo através do seu titular, o
embaixador Lourival Fontes, que havia sido muito procurado em Nova York, para ocupar o
cargo de Subchefe da Casa Civil, mas não havia sido encontrado.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
78
provocou a renúncia de ambos, mas Dr. Cleanto permaneceu na diretoria do
Banco, pois concordava com o Presidente que seria impossível fazer cortes
naquele momento: "Acho que não pode haver desenvolvimento econômico sem
um pouco de inflação ... o problema é definir-se quanto de inflação é tolerável
... Por quê? Porque todo programa de desenvolvimento inclui a injeção de
recursos em projetos de longa maturação. Então, enquanto estes projetos não
estão maduros, não estão produzindo, por exemplo, energia elétrica, transporte
ferroviário, portos, navios, etc. ... a massa monetária que foi injetada na
economia está sendo usada para bens de consumo, e haverá um aumento da
demanda. De modo que todo programa de desenvolvimento econômico traz
embutido em si uma certa taxa inflacionária, porque os recursos estarão
temporariamente dirigidos para uma demanda que ainda não está sendo
atendida pelos projetos nos quais os recursos estão sendo investidos" (LEITE,
DEPOIMENTO, p. 196). Esta posição do Dr. Cleanto explica seu convívio
harmonioso com o Dr. Rômulo de Almeida e com o Dr. Jesus Soares Pereira na
Assessoria Econômica da Presidência da República, como veremos adiante.
D)
A SUPERINTENDÊNCIA DA MOEDA E DO CRÉDITO SUMOC
A necessidade de criar um centro de deliberação sobre a política
financeira vinha nas águas da formação de um estado forte no Brasil após 1930.
A expansão do sistema bancário, da metade dos anos quarenta ao
começo dos anos sessenta, se por um lado foi fundamental ao desenvolvimento
do capitalismo brasileiro, por outro passou a exigir alguma ordenação. Este
processo rápido, e com pouca fiscalização, levou ao crescimento de um sistema
quase sem regras, cujo resultado foi o encarecimento do dinheiro, a inflação e o
surgimento de um grande número de instituições financeiras privadas que não
tinham condições mínimas de funcionamento, criando grande intranqüilidade
no mercado
71
.
A falta de um órgão que conseguisse reunir poderes efetivos de
coordenação geral e regulação (tanto para dentro quanto para fora do Governo),
a grande autonomia que alcançava o Tesouro como autoridade incumbida das
emissões e o Banco do Brasil encarregado dos empréstimos e financiamentos,
impedia a execução de qualquer política de controle financeiro, além de criar
71
Durante esse período, era comum o surgimento de boatos (só que não às sextas-feiras como
passou a acontecer na década de 80, quando as Bolsas de Valores e o mercado paralelo do
dólar passaram a ser os seus alvos preferidos) que provocavam uma grande "corrida" aos
bancos por parte dos correntistas. Estes boatos de que um determinado banco estava com
problemas de caixa, causava um grande pânico, dos grandes aos pequenos clientes, já que
as garantias de que recebessem seu dinheiro no caso da falência do banco eram remotas ou
então de longo prazo. E com a corrida dos correntistas, o banco poderia mesmo ter
problemas.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
79
constantes atritos entre o presidente do Banco do Brasil e o Ministro da
Fazenda
72
.
A Sumoc, autarquia com fortes laços com o Banco do Brasil, criada por
Decreto em 1945, no fim do Estado Novo e quando era Ministro da Fazenda
Arthur da Sousa Costa, foi o caminho institucional encontrado. Neste período, o
déficit orçamentário, as emissões de papel moeda e os desequilíbrios na balança
comercial fizeram com que se chamasse Octávio Gouvêa de Bulhões como
assessor, um homem conhecido por suas posições monetaristas. Este primeiro
órgão, embrião do Banco Central, surgiu também como um dos resultados das
resoluções assumidas no acordo de Bretton Woods e da necessidade,
identificada por seus idealizadores, de ser ter uma "moeda estável"
73
.
A Sumoc foi suficiente, por algum tempo, para estabelecer as regras que
dotaram o país das condições mínimas para um diálogo operacional com os
recém-criados organismos internacionais (FMI, BIRD e GATT), não tendo o
mesmo sucesso na estabilização da moeda. E isto porque não lhe foi atribuído o
papel primordial de controle da expansão da base monetária: "Na prática a
Sumoc ficou como mero órgão de fiscalização, de inspetoria e de estudos
econômicos, ou um pouco mais que isso, encarregada da autorização de cartas
patentes de bancos e instituições financeiras ... Os depósitos compulsórios que
deveriam ir para uma caixa especial da Sumoc, jamais foram. ... Do ponto de
vista financeiro, a Sumoc virou um apêndice financeiro do Banco do Brasil. E
houve ... uma resistência muito grande do próprio funcionalismo do Banco do
Brasil em não deixar a Sumoc se desenvolver ... A orientação geral, nunca
72
A discussão em torno da necessidade de uma reforma bancária que resultasse na criação de
um Banco Central ortodoxo e na eliminação das características de autoridade monetária do
Banco do Brasil era anterior. Em 1931, o diretor do Banco da Inglaterra, Otto Niemayer,
durante a gestão do Ministro da Fazenda José Maria Alkimim, veio ao país para opinar
sobre a reforma financeira e defendeu a necessidade de um ‘banco central de reserva’
independente e ortodoxo. "Em seu relatório afirmou que para organizar um Banco Central
havia duas alternativas: ou transformar o atual Banco do Brasil em Banco Central, ou a
fundação de uma instituição inteiramente nova que assumiria o privilégio da emissão. Se
não teve sucesso aqui, teve na Argentina, onde assessorou o jovem Raul Prebish na criação
do Banco Central em 1935." JORNAL DO BRASIL, 16/9/84.
73
Há muita controvérsia quanto à Reunião de Bretton Woods, principalmente no que se
refere à interpretação que se deu ao papel que deveria desempenhar o FMI. Muitos
consideram que a performance do FMI tem sido marcada por uma distorção violenta dos
objetivos para os quais foi criado. Para estes analistas, tanto o FMI quanto o Banco
Mundial foram criados para promover o pleno emprego: "A grande temática da
Conferência de Bretton Woods era como evitar o desemprego, como assegurar o pleno
emprego no período que iria se seguir ao armistício. A guerra estava por terminar, e logo
depois da guerra se temia que houvesse una desemprego generalizado, não só nos países
industrializados, como também nos países que eram fornecedores de matérias-primas para
os programas de armamento e programas bélicos ... A concepção inicial do FMI era de
que ele deveria contribuir para corrigir as crises temporárias de balanço de pagamento
dos países, de modo que não houvesse crise de desemprego. Entretanto, curiosamente, a
política que tem sido adotada pelo Fundo Monetário é exatamente recomendar aos países
programas recessivos, programas de desemprego" (LEITE, DEPOIMENTO, p. 194).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
80
escrita, foi no sentido de que a Sumoc não devia dar o pulo para o Banco
Central" (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 14).
Assim, os limites institucionais da Sumoc não lhe permitiram tornar-se o
órgão central para o comando da política monetária. Mas ela foi uma das
fábricas de criação de um espaço de poder e de uma lógica de ação para um
grupo da burocracia, que iria atuar com grande presença nos momentos
seguintes. Lá começou a ser gestada a nova configuração institucional que
comandou as finanças públicas nas décadas subseqüentes.
Apesar da criação da Sumoc, o Banco do Brasil continuava com seu
papel de caixa, alargando, com as novas medidas, sua capacidade de
financiamento, pois passou também a ser o depositário do compulsório das
instituições privadas. A bem da verdade, o depósito compulsório, criado com a
intenção de retirar dinheiro de circulação nos momentos de surtos inflacionários
e também para garantir o sistema financeiro nos seus momentos de
dificuldades, serviu, nestes primeiros momentos, a propósitos não esperados
que acabaram fortalecendo ainda mais o Banco do Brasil: "Os bancos
depositavam na Sumoc, cujo caixa era o Banco do Brasil. O Banco do Brasil
estava dispensado de recolher à Sumoc, pois tinha apenas um recolhimento
simbólico, que ficava com ele também ... (Ocorria) assim a seguinte
perversidade: quando se aumentava o compulsório (como parte de uma
política antiinflacionária), aumentava o caixa do Banco do Brasil, que
emprestava ... alimentando a inflação”- (RIBEIRO,DEPOIMENTO, p. 10).
Octávio Gouvêa de Bulhões foi o idealizador da Sumoc, e sustentou-a
por quase uma década, criando em torno dela uma burocracia técnica que pode
ser considerada uma das matrizes formadoras e inspiradoras de outras gerações
de profissionais responsáveis pelo gerenciamento e pelo desenho institucional
do sistema financeiro do país. Os principais nomes da Sumoc foram: Casemiro
Ribeiro, Abreu Coutinho, Aldo Batista Franco, Dênio Nogueira, Celso Silva,
Herculano Borges da Fonseca, Sidney Lattini, Guilherme Pegurier, Paulo
Pereira Lira, Eduardo Silveira Gomes, Basílio Martins, José Garrido Torres e
Emane Galvêas
74
. Estes burocratas, quase todos funcionários concursados que
começaram suas carreiras no Banco do Brasil, não só tiveram uma sólida
formação operacional na Sumoc, como foram enviados para cursos e estágios
de aperfeiçoamento nos Estados Unidos e na Europa. E sua atuação futura teve
a marca desta experiência na Sumoc.
O depoimento de Octávio Gouvêa de Bulhões é bastante esclarecedor
sobre o espírito que conduziu os primeiros anos da Sumoc. As dificuldades em
retirar poder do Banco do Brasil, apontada pela maioria dos analistas, parece
74
Destes, Casemiro Ribeiro chegou a diretor do BNDE e do Banco Central, Dênio Nogueira
foi o primeiro Presidente do Banco Central em 1965, Paulo Pereira Lira foi Presidente do
Banco Central de 1974 a 1979, José Garrido Torres foi Presidente do BNDE de 1964 a
1967 e Superintendente da Sumoc em 1967, Emane Galvêas foi Ministro da Fazenda do
Governo Figueiredo e figura central do estudo de caso que desenvolveremos a seguir.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
81
não ser responsável pelo desenho institucional da nova Superintendência,
segundo seu criador:
“A Sumoc sempre teve o espírito de preparar as coisas, não de executar...
o objetivo era ajudar a discutir os problemas e principalmente combinar
a política fiscal com a política monetária ... procurando dar uma grande
força à atuação indireta do Estado no domínio econômico... A Sumoc
preparava e os outros executavam ... as tarifas eram definidas pela
Fazenda, o câmbio pelo Banco do Brasil, e assim por diante”
(BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 94).
"... O projeto de criação da Sumoc resultou de uma tendência de controle
monetário advinda de longa experiência. Resultou de conversações
freqüentes entre os funcionários do Banco do Brasil
75
, do Ministério da
Fazenda
76
e de alguns empresários
77
. E sobretudo da orientação do
professor Eugênio Gudin ... que considerava inoportuno criar um banco
central, mas que se podia fazer alguma coisa no caminho da sua criação
... (Inoportuno porque) com um déficit (grande) do tesouro e sem
perspectivas de equilíbrio orçamentário, um banco central seria inútil...
E (além disso), na época não existiam pessoas adequadas para lidar com
um banco central" (BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 54).
Mas ele reconhece que os objetivos da nova instituição eram de longo
prazo:
"a Sumoc ... (preparou) as bases de uma política para se transformar em
banco central, mas precisava principalmente treinar pessoal, porque um
banco central sem pessoal competente não funciona direito. E podemos
dizer que tivemos bom êxito a esse respeito, porque os funcionários do
Banco do Brasil que foram para a Sumoc já eram pessoas experientes, já
tinham estudado economia, e com isso conseguiu-se preparar um corpo
de pessoas capazes de enfrentar os problemas de um banco central, como
veio a ocorrer depois de 1964 " (BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 93).
A formação de uma geração de profissionais foi assim uma das grandes
preocupações dos criadores da Sumoc. Mas eles também eram bons
observadores do quadro político, e a decisão de criá-la no fim do Estado Novo,
aproveitando os últimos momentos da situação autoritária, parece não ter sido
acidental:
"... É possível que se o projeto da Sumoc tivesse tido que passar pelo
Congresso, ou seja, se tivesse sido formulado depois do fim do Estado
Novo, não teria sido viabilizado” (BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 55).
75
Principalmente José Vieira Machado, que foi o primeiro diretor executivo da Sumoc.
76
Principalmente técnicos da Seção de Estudos Econômicos, como José Nunes Guimarães,
Eduardo Lopes Rodrigues e Aluísio de Lima Campos.
77
Euvaldo Lodi e Roberto Simonsen, entre outros.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
82
Apesar da avaliação do Dr. Bulhões, tudo parece indicar que a opção de
colocar o órgão, que pode ser considerado o embrião do Banco Central, ligado
ao Banco do Brasil, usando seus funcionários e ocupando suas dependências,
foi resultado de pressões e uma tentativa de evitar maiores traumas à instituição
que até então era o principal órgão monetário do país. Estes fatos representaram
mais uma vitória da "corporação" Banco do Brasil, cujas conseqüências
continuaram a ser sentidas até os anos 80.
Mas não foi só o Banco do Brasil que pressionou para a criação de um
órgão com poderes restritos. Uma das principais reações à criação da Sumoc
veio dos bancos privados, por causa do depósito compulsório que foram
obrigados a fazer no Banco do Brasil (suprimidos durante o Governo Café
Filho, quando era Ministro da Fazenda, José Maria Whitaker, um banqueiro) e
da desconfiança que tinham de que estes depósitos seriam usados para cobrir o
déficit orçamentário do Governo, caso ficassem depositados num órgão do
Poder Executivo.
Até este momento, o poder institucional do Banco do Brasil era
fortemente discricionário em relação às finanças públicas, e este era o fato mais
importante. O espírito que definia quais os critérios para a emissão de papel-
moeda estava fortemente assentado na idéia de que esta deveria ser uma das
fontes de recursos do Tesouro (caracterizada como "operação de crédito real")
feita através da Carteira de Redesconto do Banco do Brasil. Esta idéia produzia
várias distorções, sendo a principal delas o fato que os empréstimos concedidos
pelas instituições financeiras públicas com recursos do Tesouro, via expansão
monetária, não eram considerados como despesa pública (NÓBREGA 1984).
Isto criou não só um "mau hábito", como também colaborou para o descontrole
das contas públicas.
Como apontam alguns depoimentos de burocratas da época, o
descontrole tinha não só raízes na estrutura do sistema, como também na total
ausência de informações consolidadas sobre as contas do Governo. Apenas
durante o segundo Governo Vargas, o economista Alexandre Kafka, da
Fundação Getúlio Vargas, apresentou para o Ministério da Fazenda uma
proposta de elaboração de um Balancete Consolidado das Autoridades
Monetárias. Esta proposta chegou até a Sumoc, onde já havia uma equipe da
qual participava o Dr. Casemiro Ribeiro, que se entusiasmou pela idéia: "Já que
não se conseguia separar o dinheiro que estava misturado (no próprio
sistema), pois não se deixava criar o Banco Central, queríamos separar pelo
menos as contas". O Balancete proposto tinha uma coluna de passivo, onde
registravam-se os recursos monetários obtidos via emissão e os recursos não
monetários, obtidos por outras vias. Na outra coluna, colocava-se o destino
destes recursos: redesconto aos bancos, empréstimo ao Tesouro, etc.
78
78
O Balancete Consolidado das Autoridades Monetárias foi, até a década de 80, um
instrumento importante para o acompanhamento das emissões. A partir da Lei 4.595, de
1964, inclui-se informações sobre o Banco Central, inclusive com uma coluna registrando
as aplicações dos fundos de fomento por ele administrados.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
83
Montava-se assim uma estatística que indicava o canal de transmissão da
expansão monetária, tomando possível a comparação de um mês com o outro.
Podia-se observar meses em que havia expansão de moeda e outros em que
havia retração; "isto que é o óbvio ululante, no Brasil foi muito importante e
também provocou uma grande repercussão, pois nos impediram de publicar os
dados sob a justificativa de que a situação ‘ficava perigosamente claro’' e
ficava muito mal para o Governo Vargas" (RIBEIRO, DEPOI MENTO, p.
25)
79
. Este é mais um exemplo da burocracia atuando como construtora
institucional, aqui, no que se refere à consolidação das informações.
A trajetória de um dos membros da Sumoc, Dr. Dênio Chagas Nogueira
e que foi o primeiro presidente do Banco Central em 1965, também nos oferece
um perfil característico dos burocratas da área econômica de sua geração. Dr.
Dênio nasceu no Rio de Janeiro em 1920. Formou-se em economia pela
Faculdade Nacional de Ciências Econômicas da Universidade do Brasil e fez
seu curso de Pós-Graduação na School of Graduate Students, da Universidade
de Michigan, EUA, com uma bolsa de estudos concedida pelo Instituto Brasil-
Estados Unidos; lá, especializou-se em estudos sobre moeda. Antes de ir para
os EUA, fez, em 1940, concurso para o cargo de estatístico do Ministério da
Educação. Em 1950, de volta dos Estados Unidos, conseguiu sua transferência
para o Conselho Nacional de Economia, então dirigido por Octávio Gouvêa de
Bulhões: "Após retornar dos Estados Unidos ... encontrava-me extremamente
frustrado por não ter conseguido minha transferência do Ministério da
Educação para o da Fazenda. Até que um dia cruzei com o Lopes Rodrigues na
Avenida Rio Branco, e ele me aconselhou a procurar o professor Bulhões, que
chefiava a Seção de Estudos Econômicos do Ministério da Fazenda, e mostrar-
lhe o meu trabalho sobre política monetária ... Naquela época estava se
organizando o Conselho Nacional de Economia, instituído pela Constituição de
1946, como órgão de consulta dos poderes Executivo e Legislativo, em
substituição ao Conselho Federal de Comércio Exterior... e o professor
Bulhões, que já havia sido nomeado um de seus membros, ao tomar
conhecimento do meu trabalho convidou-me para ir para lá .... para a Divisão
de Finanças" (NOGUEIRA in BULHÕES 1990, p. 258). A partir daí passou a
integrar também o grupo de consultores da Sumoc.
Um bom exemplo do espírito que alimentava os burocratas da "escola"
Sumoc, e que mais tarde vai se refletir na proposta de reforma bancária que
começa a ser discutida no final da década de 50, pode ser extraído do
depoimento do Dr. Dênío sobre um episódio ocorrido em 1959, quando
participou do plano de estabilização tentado por Juscelino Kubitschek como
Consultor Econômico da Sumoc, enquanto era Ministro o Dr. Lucas Lopes e
Superintendente da Sumoc o Dr. Garrido Torres. Em uma reunião da qual
participavam o Ministro e toda sua equipe econômica (Roberto Campos
inclusive), e da qual era o mais jovem (tinha 39 anos) perguntou — para
espanto de todos — se a construção de Brasília seria paralisada ou não: "O
Ministro me olhou como se eu estivesse dizendo um impropério. Não me
79
Do depoimento não consta quem no Governo impediu a publicação do Balancete.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
84
respondeu. E eu então disse ... Mas Ministro, nós estamos pedindo ao povo em
geral que aperte o cinto. Ora, se o próprio Governo não dá o exemplo,
apertando o seu próprio cinto, como pode exigir que o povo faça isto, sem
nenhuma compensação? Sem pelo menos reduzir o ritmo da construção,
nenhum plano de estabilização pode dar certo. O Ministro não me respondeu,
mas em outra ocasião que eu insisti no assunto, ele perdeu a paciência e disse:
‘Olha aqui, menino. Vai você lá falar com o Juscelino, para ver se ele pára
Brasília. Eu quero ver o que vai acontecer com você’. É evidente que o plano
foi um fracasso" (NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p. 34).
E)
O BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO BNDE
As discussões sobre qual o papel que se reservaria à iniciativa privada e
ao Estado, que remontam à década de 30, tomaram novo impulso no início dos
anos 50. A principal arena onde este debate se travou foi na Comissão Mista
Brasil-Estados Unidos
80
, e a criação do Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico vem nas suas águas. Sua criação fazia parte de um projeto mais
amplo que tinha por objetivo acelerar o crescimento da economia nacional.
Desde a Missão Cooke em 1942, levantava-se a necessidade de existir um
organismo governamental especializado no financiamento de longo prazo à
indústria. Durante os trabalhos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos,
prevaleceu a tese que defendia a criação de um organismo de características
novas, capaz de cuidar tanto da administração técnica quanto da administração
financeira de um amplo e complexo conjunto de projetos de investimento:
"Abandonou-se a idéia da utilização pura e simples de alguma agência
existente, adaptando-a no que fosse necessário ao desempenho do novo
encargo, como por exemplo a Carteira de Crédito Industrial do Banco do
Brasil" (BELOCH e ABREU 1984, p. 283). Desta forma, a decisão foi criar o
BNDE em 1952, que ficou responsável pela gestão do Fundo de
Reaparelhamento Econômico, criado um pouco antes, e que deveria garantir os
créditos em moeda estrangeira necessários como contrapartida ao
financiamento externo para os novos projetos de desenvolvimento. Os recursos
externos acertados na Comissão Mista acabaram não vindo e assim "os
primeiros cinco anos foram um fracasso econômico mas serviram para criar
internamente quadros intermediários que iriam constituir a ossatura interior
para a sobrevivência da instituição" (MARTINS 1985, p. 93). Pouco a pouco a
competência profissional e técnica fez com que o Banco conseguisse recursos
para o financiamento de vários projetos.
Desde sua criação, o BNDE teve uma grande preocupação com a
qualificação tanto administrativa quanto técnica de seus funcionários: o
ingresso era feito por concurso e criou-se um sistema de méritos para
80
Ver VIANA 1980.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
85
promoção. Além disso, foram instituídos internamente vários cursos e
programas de treinamento gerencial, bem como fazia parte desta política o
envio de funcionários para completar sua formação no exterior.
Como afirma Luciano Martins em seu estudo sobre o BNDE, "o
recrutamento, formação e reprodução dos (seus) recursos humanos, na medida
em que é pensado em moldes típicos de grandes empresas capitalistas, revelam
o contraste com as regras que orientam a burocracia do setor Governo ... dando
a estes burocratas um status que os coloca muito acima dos que se situam no
setor Governo ... e que deviam controlá-los. Os burocratas do Banco tinham:
reajustes periódicos, gratificações quadrimestrais, sistema complementar de
aposentadoria, reembolso médico-hospitalar e de medicamentos e sistema de
promoção com avaliação de desempenho, (além do) aperfeiçoamento
profissional (inclusive no exterior)" (MARTINS 1985, p. 100). Com este perfil
de carreira, aproximavam-se da situação dos funcionários do Banco do Brasil,
se bem que o reconhecimento do seu status elevado era menos disseminado na
sociedade, bem como sua lógica de ação não estava dominada pela defesa da
corporação, como ocorria no Banco do Brasil. Criaram um ideário baseado na
concepção de que sua vocação era favorecer o projeto de desenvolvimento do
país, e para isto deveriam propor políticas e interferir na sua implementação.
Como raramente um técnico do BNDE deixava a instituição para
participar de órgãos da administração direta, o que acontecia freqüentemente
com os funcionários do Banco do Brasil, sua influência sobre as ações dos
órgãos aparecia quando participavam dos conselhos, comissões e grupos
executivos ao lado de outros técnicos
81
. Mas, justamente por adotarem uma
outra lógica de ação, como aponta Martins, encontravam barreiras para influir
nos contornos institucionais que extrapolassem a sua área específica. Mas a
presença do Banco na década de 50
82
foi muito importante como "estímulo (à)
produção teórica sobre a economia brasileira e seu desempenho" (VIANA
1981, p. 304). Seus estudos desenvolvidos em colaboração com a Cepal e a
Fundação Getúlio Vargas compuseram os Diagnósticos sobre a Economia
Brasileira feitos para o período 1953-1961. Estes relatórios serviram de base de
dados e de reflexão sobre os problemas estruturais da economia brasileira para
toda esta geração de burocratas.
F)
A ASSESSORIA ECONÔMICA DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
DO SEGUNDO GOVERNO VARGAS
A Assessoria Econômica da Presidência da República, criada no início
do segundo Governo Vargas, foi um outro espaço institucional de afirmação de
um grupo de burocratas. Na sua concepção original, a Assessoria deveria estar
voltada principalmente para a elaboração de uma política de energia (baseada
81
Ver VIANA 1981.
82
Um estudo detalhado sobre o BNDE no período é apresentado por VIANA 1981.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
86
no petróleo, no carvão mineral e na eletricidade) que fosse capaz de dar um
novo arranque ao processo de industrialização. Também fazia parte de suas
atribuições fazer um balanço da situação econômica do país e propor as
reformulações necessárias a uma nova etapa de crescimento (no que foi
auxiliada pelos técnicos do BNDE, como já nos referimos anteriormente). Os
primeiros estudos e propostas para a implantação da indústria automobilística
no Brasil partiram desta Assessoria.
Esta Assessoria transformou-se em um importante órgão, com vistas a
dar um contorno programático e institucional à política econômica do governo
segundo Governo Vargas. Sua criação partia da experiência do Cabinet
Secretariat da Inglaterra, ou seja, da idéia de que o Chefe do Executivo deveria
ter assessores diretos ao seu lado, não vinculados à hierarquia administrativa
dos ministérios. Mas, mais do que isto, ela representou mais um esforço de
introdução do técnico e do especialista na área econômica da administração
pública federal. A partir de mais este núcleo, surgiu uma geração de
profissionais que criou escola e formou novos técnicos, mas também que se
dividiu nas propostas de soluções. Na Assessoria concentrou-se, na sua maioria,
o grupo orientado pelo pensamento da Cepal, aqui representado pela liderança
de Rômulo de Almeida e Jesus Soares Pereira. A Assessoria reuniu em torno de
si um conjunto de especialistas, selecionados por critérios políticos e por
critérios técnicos. Diz o Dr. Cleanto de Paiva Leite: “A minha escolha foi
técnica e profissional, pois estava fora e jamais participei de nenhuma
atividade política no Brasil ... devo ter sido lembrado pelo Dr. Simões Lopes
que conheci na ONU” (LEITE, DEPOIMENTO, p. 56). Na realidade, o
percurso pessoal do Dr. Cleanto, como já vimos anteriormente, confirma esta
sua afirmação. Mas os critérios técnicos pressupunham também uma afinidade
de idéias: "Ele (Presidente) sabia que estas pessoas estavam ideologicamente
alinhadas com os seus grandes objetivos: nacionalismo, desenvolvimento
econômico, posição do Brasil no plano internaciona” (LEITE,
DEPOIMENTO, p. 65). Faziam parte da Assessoria Econômica, além de
Rômulo de Almeida e de Jesus Soares Pereira: João Neiva de Figueiredo,
Ignácio Rangel, Tomás Pompeu Acioli Borges, Otolmi Stranch, Mário da Silva
Pinto, Saldanha da Gama, dentre outros.
A trajetória do Dr. Rômulo de Almeida e do Dr. Jesus Soares Pereira, a
quem já nos referimos por sua atuação na Comissão de Comércio Exterior, são
bons exemplos dos caminhos percorridos por outra parte da burocracia com
posição política e ideológica diversa daqueles que gravitavam em torno da FGV
e do Dr. Octávio Gouvêa de Bulhões.
Rômulo Barreto de Almeida
83
nasceu em Salvador, Bahia, em 1914.
Como estudante, combateu o Governo Provisório de Getúlio Vargas instalado
após a Revolução de 1930. Bacharelou-se pela Faculdade de Direito da Bahia
em 1933. Em 1941, foi diretor do Departamento de Geografia e Estatística do
Território do Acre. Entre 1942 e 1943, foi professor substituto da Faculdade de
83
Biografia extraída de BELOCH e ABREU 1984.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
87
Ciências Econômicas e Administrativas do Rio de Janeiro. Nesses anos,
também foi assistente técnico do Ministério do Trabalho, trabalhando em
planejamento econômico. Em 1946, prestou assessoria à Comissão de
Investigação Econômica e Social da Assembléia Nacional Constituinte, quando
já havia abraçado as convicções do nacional-desenvolvimentismo, que
comandaram sua atuação desde então. Entretanto, esta sua posição não
coincidia totalmente com a de outros partidários de uma política voltada para o
crescimento econômico acima de tudo, pois sua visão do papel que o Estado
deveria desempenhar neste processo era bem menos intervencionista, como
ficou demonstrado no episódio da criação da Petrobrás que veremos adiante.
De 1948 a 1949, Dr. Rômulo participou da Comissão Mista Brasileiro-
Americana de Estudos Econômicos, trabalhando como economista do
Departamento Nacional de Indústria e Comércio. Em 1950, atuou como
economista da Confederação Nacional da Indústria, e iniciou sua carreira
político-partidária, filiando-se ao PTB. No ano seguinte, foi designado oficial-
de-gabinete do Gabinete Civil da Presidência da República, e, a pedido de
Vargas, organizou a Assessoria Econômica da Presidência da República.
Em dezembro de 1951, Vargas enviou ao Congresso o projeto de
criação da Sociedade por Ações Petróleo Brasileiro (Petrobrás). Tal projeto
incluía uma mensagem elaborada pela Assessoria Econômica, coordenada pelo
Dr. Rômulo, contendo uma avaliação do potencial petrolífero do país e dos
problemas a serem enfrentados. O projeto foi criticado amplamente, tendo sido
avaliado por alguns grupos como "entreguista", pois favorecia as empresas
transnacionais na exploração do petróleo brasileiro. Foi também criticado, pois
não colocava a idéia do monopólio estatal do petróleo, que Rômulo de Almeida
sempre combateu. O debate estendeu-se a amplos setores sociais, dando origem
à campanha do "petróleo é nosso". A tese do monopólio saiu, entretanto,
vitoriosa, e, em outubro de 1953, foi aprovado o projeto da criação da
Petrobrás.
Em 1953, Dr. Rômulo foi indicado consultor econômico da Sumoc.
Ainda nesse ano, foi presidente do Banco do Nordeste do Brasil. Com o
suicídio de Vargas, demitiu-se de seu cargo. Foi deputado federal pela Bahia
(eleito na legenda do PTB), nos anos de 1955 e 1957. Em abril de 1955, deixou
a Câmara para assumir a Secretaria da Fazenda do Estado da Bahia. Em 1957,
criou e presidiu o Fundo de Desenvolvimento Agroindustrial da Bahia e foi
nomeado vice-presidente da Rede Ferroviária Federal. Reassumiu seu mandato
na Câmara, em julho de 1957, exercendo-o até dezembro. De 1957 a 1959,
reorganizou o Instituto de Economia e Finanças da Bahia, e nesse último ano,
foi secretário sem pasta para Assuntos do Nordeste em seu estado. Representou
também a Bahia na Sudene. Foi diretor da Companhia de Ferro e Aço de
Vitória, e de 1961 a 1966 foi representante do Brasil junto à Comissão
Internacional da Aliança para o Progresso. Nas eleições de 1974, foi convidado
pelo MDB a concorrer ao Senado, convite que recusou, mas permaneceu
colaborando com o partido. Em 1978, lançou sua candidatura, apoiado pelo
MDB, colocando-se contra a desestatização proposta pelo regime militar, sendo
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
88
derrotado nas eleições. Com a extinção do bipartidarismo e a reformulação
partidária em 1979, vinculou-se à corrente trabalhista de Leonel Brizola.
Quando Brizola perdeu a sigla do PTB para Ivete Vargas, Dr. Rômulo filiou-se
ao PMDB, presidindo a seção baiana; foi candidato a vice-governador de seu
Estado nas eleições de 1982.
Nos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte de 1946, Dr.
Rômulo trabalhou juntamente com Dr. Jesus Soares Pereira.
A trajetória do Dr. Jesus Soares Pereira que já começamos a descrever
anteriormente, cruza-se com a do Dr. Rômulo na assessoria da Constituinte,
onde tiveram como companheiros Américo Barbosa de Oliveira e Tomás
Pompeu Acioli Borges. Nestes trabalhos, participou da elaboração do projeto da
criação da Rede Ferroviária Federal. Em 1947, foi convidado para trabalhar no
Centro de Análise da Conjuntura Econômica da Fundação Getúlio Vargas,
quando entrou em contato mais direto com o grupo que, orientado pelo
pensamento do Dr. Gudin e do Dr. Bulhões, considerava as idéias nacional-
desenvolvimentistas como inadequadas para o Brasil.
Na Assessoria Econômica da Presidência da República durante o
Governo Vargas, "ele foi a figura mais destacada ... na preparação do projeto ...
autorizando a criação da Petrobrás e vinculando pela primeira vez o imposto
único sobre combustíveis e lubrificantes ao programa do petróleo. Segundo o
próprio Dr. Jesus, como medida tática, o projeto deixou de lado a discussão em
torno da proibição do capital estrangeiro na empresa estatal ... pois Vargas
aconselhara a adoção de uma linha moderada para facilitar a aprovação da
proposta pelo Congresso..." (BELOCH e ABREU 1984, p. 2686). Mas esta
cautela levou, segundo Dr. Jesus, a graves defeitos na Lei 2.004 que criou a
Petrobrás, como o fato dela "não haver permitido a participação da (nova)
empresa na indústria de equipamentos, o que entregou este setor aos capitais
estrangeiros" (BELOCH e ABREU 1984, p. 2686).
Em 1953, Dr. Jesus assumiu a chefia da Assessoria Econômica,
substituindo Rômulo de Almeida que foi indicado Presidente do Banco do
Nordeste. Depois da morte de Vargas, retornou ao Ministério da Agricultura e,
em seguida, foi nomeado representante do Banco do Nordeste no Rio de
Janeiro, onde prestou assessoria a vários governos na criação de empresas
regionais de energia elétrica. No Governo de Kubitschek, coordenou a
Assessoria Técnica do Ministério da Viação e Obras Públicas na gestão de
Lúcio Meira. No Governo João Goulart, foi indicado diretor da Companhia
Siderúrgica Nacional e estava na lista dos primeiros cem brasileiros que tiveram
seus direitos políticos cassados pelo golpe militar. A partir daí exilou-se no
Chile, onde dirigiu o Departamento de Recursos Naturais para a América Latina
da Cepal. Retornou ao Brasil em 1971 e organizou a publicação Brasil em
Dados, lançada pela Editora Índice. Faleceu em 1974.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
89
G) A SUPERINTENDÊNCIA DO DESENVOLVIMENTO DO NORDESTE SUDENE
A história da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste
confunde-se nos seus primeiros anos de funcionamento com a trajetória do Dr.
Celso Monteiro Furtado
84
. Ele nasceu em Pombal, na Paraíba, em 1920, e no
seu Estado fez os estudos primários e secundários. Em seguida foi para o Rio de
Janeiro, estudar na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Ainda
como estudante, fez concurso público e ingressou no Dasp como técnico de
administração. Em 1944 foi para a Força Expedicionária Brasileira lutando na
Itália e depois estudando durante algum tempo na Europa. Formou-se em
Direito após a volta e reassumiu seu cargo no Dasp, onde permaneceu até 1946.
Em 1948 concluiu o Doutorado em Paris. Em 1949 ingressou na Cepal, com
sede em Santiago do Chile, ocupando a Chefia da Divisão de Desenvolvimento
Econômico.
A partir de um convênio entre a Cepal e o BNDE em 1953, Furtado
formou o Grupo Misto de Estudos BNDE-Cepal. O trabalho deste grupo, que
era uma aplicação das teorias da Cepal ao Brasil, serviram de base à elaboração
do Plano de Metas do Governo de Juscelino Kubitschek. Depois de viagens e
cursos dados no exterior, foi convidado em 1958 por Cleanto de Paiva Leite,
outro funcionário que ingressou no serviço público através de um concurso para
o Dasp, para ser diretor do BNDE, cargo que aceitou sob a condição de poder
dedicar-se às questões do Nordeste. Quando estava no BNDE, Dr. Cleanto
convidou-o para substituí-lo no Grupo de Trabalho para o Desenvolvimento do
Nordeste - GTDN, que havia sido criado pelo Governo Juscelino Kubitschek
em 1956, para realizar estudos sobre a economia nordestina, com o objetivo de
formular políticas que promovessem o crescimento econômico da região.
O presidente Kubitschek pediu ao Dr. Celso Furtado, em janeiro de
1959, que elaborasse um plano de política econômica para o Nordeste, que
enfrentava mais uma de suas graves crises provocada pela seca. Em um mês
redigiu o documento "Uma política para o desenvolvimento do Nordeste", que
propunha: reformulação das diretrizes de aproveitamento dos solos e das águas,
abertura imediata de frentes de colonização, incentivos à industrialização com
propostas a curto prazo para o fornecimento de energia elétrica. Propunha
também reduzir a agricultura de subsistência e ampliar o número de
assalariados, aumentar as relações entre as unidades produtivas e o mercado e
determinar o tamanho da unidade típica de produção. Para realizar este plano,
era proposta a criação de um órgão que se encarregasse de sua execução. O
presidente concordou com este encaminhamento, e em fevereiro de 1959 foi
enviado ao Congresso Nacional um projeto de lei que propunha a criação da
Sudene.
A reação à criação da Sudene e à indicação de Celso Furtado para ser
seu primeiro superintendente foi muito grande. Temiam os líderes políticos do
84
Os dados de sua biografia foram retirados de BELOCH e ABREU 198, p. 1414 -1417.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
90
Nordeste que o novo órgão pudesse representar uma ameaça ao seu poder,
exercido ainda de maneira muito próxima ao sistema dos coronéis do século
XIX: "O anteprojeto de lei dispondo sobre sua criação teve difícil tramitação no
Congresso. Havia inclusive resistência à nomeação de Celso Furtado ... visto
que segundo os líderes nordestinos o cargo deveria ser ocupado por um
elemento dos grupos políticos dominantes na região, e não por um técnico.
Temendo ainda que a Sudene promovesse reformas estruturais profundas,
capazes de alterar o quadro de poder, diversos parlamentares procuraram
modificar o plano, de modo a preservar as tradicionais áreas de influência
política" (BELOCH e ALVES 1984, p. 1415).
Furtado empenhou-se numa verdadeira campanha política para a
aprovação do projeto de lei. Organizou um grande seminário em Garanhuns no
Estado de Pernambuco, com o patrocínio da Confederação Nacional da
Indústria CNI e do Serviço Social da Indústria SESI. Dele participaram 400
pessoas, entre políticos, administradores, industriais e técnicos, e com este,
entre outros eventos, mobilizaram a opinião pública do país. Finalmente a
criação da Sudene foi aprovada pela Câmara dos Deputados em maio de 1959,
sendo levada ao Senado, e sancionada no dia 13 de dezembro do mesmo ano. O
novo órgão ficou ligado diretamente à Presidência da República, e deveria
centralizar todos os investimentos federais que se fizesse na região.
A Sudene passou a definir seus programas através de um Plano Diretor
de Desenvolvimento Econômico e Social do Nordeste que era submetido à
Câmara a cada dois anos. O primeiro destes planos, concluído em maio de
1960, também foi fortemente combatido pelas lideranças políticas do Nordeste.
Ele previa: investimentos significativos em transportes, aumento da capacidade
de energia elétrica, um programa de aproveitamento massivo de mão-de-obra
assalariada, e, o item que provocava mais polêmica, a reestruturação da
economia rural. Propunha também incentivos à instalação de indústrias,
colonização do Maranhão e a criação de uma reserva alimentar de emergência,
para aliviar a fome das populações atingidas pela seca. Outro ponto bastante
polêmico era o que autorizava a Sudene a criar ou incorporar sociedades de
economia mista para executar obras consideradas prioritárias para o
desenvolvimento do plano regional.
O Plano foi aprovado pela Câmara em agosto de 1961, mas
profundamente alterado pelo Senado, onde os representantes do Nordeste,
reunidos, representavam 1 /3 dos senadores. As emendas do Senado foram
rejeitadas pela Câmara, e o plano foi finalmente transformado em lei em
dezembro de 1961.
Com a posse de Jânio Quadros, a quem havia ajudado na campanha,
Furtado foi convidado para permanecer na Sudene e o cargo de superintendente
equiparado ao de Ministro de Estado. Durante os sete meses do Governo Jânio
Quadros, Furtado ampliou os recursos à disposição da Sudene, através da
aprovação de um sistema de incentivos fiscais para canalizar recursos para a
região, e usando também recursos da Aliança para o Progresso, plano de
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
91
cooperação multilateral apresentado pelo Governo do presidente americano,
John Kennedy, para desenvolver a América Latina.
Com a renúncia de Jânio Quadros e a introdução do Parlamentarismo
com João Goulart, Furtado permaneceu como superintendente da Sudene,
celebrando os primeiros acordos com o governo americano através da United
States Agency for International Development (Usaid), num total de 131 milhões
de dólares. Antes mesmo de ser reimplantado o Presidencialismo em janeiro de
1962, Celso Furtado foi nomeado Ministro Extraordinário do Planejamento e
encarregado por Goulart de apresentar em 60 dias um plano de política
econômica, que veio a público em dezembro de 1961, com o nome de Plano
Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social.
O Governo João Goulart, na sua fase Presidencialista, teve no Plano
Trienal a base de suas propostas de política econômica. Celso Furtado
continuou no cargo de Ministro do Planejamento, e San Tiago Dantas assumiu
o Ministério da Fazenda. A análise do Plano Trienal nos oferece também um
bom momento para examinarmos a ação da burocracia.
Nas suas linhas gerais, o Plano Trienal tinha dois objetivos: primeiro,
controlar a inflação que tinha chegado a 52% ao ano, através de medidas
contidas numa proposta de retomada dos altos índices de crescimento
econômico da década de 50. Para atingir estes objetivos, pregava a realização
dai chamadas reformas de base, que consistiam em dois tipos de ação: em
primeiro lugar, propunha-se a racionalização da ação do Governo,
implementando uma reforma administrativa e uma reforma bancária. Em
segundo lugar, propunha eliminar os entraves básicos ao crescimento da
produção, através da reforma fiscal e da reforma agrária. As propostas de
racionalização das ações do Governo, parte das quais elaborada por Casemiro
Ribeiro, monetarista da escola de Bulhões, concentrava muitas das ações
apresentadas pelo Plano, o que levou Ignácio Rangel a afirmar que o Plano
Trienal consagrou a aliança dos monetaristas e dos estruturalistas numa
proposta de Governo. Isto teria acontecido porque, ainda segundo Rangel,
nenhuma das duas correntes tinha no momento condições políticas para levar a
cabo suas propostas originais (MIRANDA 1979, p. 68 e 82).
Na realidade, a proposta apresentada na ocasião pelo professor Ignácio
Rangel sobre moeda, banco, crédito e reforma bancária foi preterida em favor
da proposta do Dr. Casemiro, apesar do primeiro ter posições muito mais
próximas da análise estruturalista: "Talvez (isto tenha acontecido) porque a
peça do professor Rangel não era uma coisa pragmática, e talvez não
coubessem considerações teóricas numa proposta de Governo” (RIBEIRO,
DEPOIMENTO, p. 17). Desta maneira não houve uma ruptura na proposta do
Plano Trienal em relação ao que vinha sendo discutido no círculo de influência
de Eugênio Gudin e Octávio Gouvêa de Bulhões no que diz respeito à política
monetária: "... o Celso, eu acho, ficou no constrangimento de quem está na
oposição... criticando os monetaristas ... aí um dia lhe dão o poder e ele ... um
sujeito equilibrado, de bom senso, foi procurar os monetaristas ... que aliás
foram os que o ajudaram, pois a turma que criou problemas para ele foi a
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
92
turma estruturalista. O que estava no programa era o básico, elementar. O
resto é detalhe, é sofisticação. O que facilitou o diagnóstico daquela época (e
isto serve para outras épocas) é que quando você tem uma situação de total
descalabro, o diagnóstico é óbvio ... E o remédio também. Depois que você
obteve uma certa estabilização, aí as discussões são tremendas ... mas à
medida que se agrava a situação monetária, vão desaparecendo as querelas
monetaristas ... Quando você está na guerra do dia-a-dia ... é muito bonito
você ouvir dizer (de alguém que teoricamente pensa como você, mas não está
na guerra) `libera o câmbio'. Mas (o quadro muda) quando você está lá na
trincheira ... eu sempre repito uma expressão que um americano me disse uma
vez `o problema da guerra de trincheira é que você mais freqüentemente recebe
tiro de dentro da trincheira do que de fora”. Este era o caso do ministro Celso
Furtado" (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 18).
Em sua tese de mestrado, José Carlos Rocha Miranda relaciona uma
série de propostas que aproximavam o Plano Trienal das idéias de Bulhões e
também de Roberto Campos. Em primeiro lugar, aponta que "tinha-se como
meta geral relativa ao setor público a implantação da reforma administrativa
(montagem do sistema de planejamento) e (a reforma) bancária, visando,
basicamente, conferir o máximo de racionalidade à ação do Governo... o intuito
era o de fornecer ao Estado as armas necessárias à maior eficácia das políticas
fiscal, monetária e orçamentária, como posteriormente, foram concretizadas
pelo Paeg (do primeiro governo militar)". Em segundo lugar, "o raciocínio
implícito na decisão do reajustamento das tarifas dos serviços públicos, seria o
mesmo que Roberto Campos explicitaria no Paeg ... ou seja, (que) os serviços
básicos não gerariam poupança suficiente nem para manter suas instalações,
sendo, em conseqüência, uma fonte permanente de pressão inflacionária". Além
do que, no caso da energia elétrica por exemplo, a idéia de Bulhões-Campos era
manter as tarifas ajustadas para que a iniciativa privada se sentisse atraída a
investir em áreas ainda não atingidas pelo serviço e para assumir, a médio
prazo, o setor como um todo. Em terceiro lugar, "as medidas de redução do
dispêndio público, captação dos recursos do setor privado no mercado de
capitais e maior mobilização de recursos monetários, destinados a combater os
desequilíbrios inflacionários provenientes do setor público, pareciam apontar
mais no sentido da formulação de uma política monetária global saneadora de
todos os males do que de uma política monetária que respondesse às exigências
da continuidade do desenvolvimento econômico". E, finalmente, o plano
considerava "a política de crédito do governo como um dado fiscal sobre o qual
as autoridades monetárias tinham (até então) ação limitada. Para ampliá-la,
propunha a reforma bancária e a possibilidade de conversão dos depósitos
compulsórios dos bancos e os decorrentes das operações cambiais em
obrigações do Tesouro Nacional ... Tal preocupação iria explicitar-se com toda
clareza no Paeg. A reforma bancária e a emissão de obrigações do Tesouro com
cláusula de correção monetária diminuiriam o papel passivo das autoridades
monetárias frente ao déficit público. O processo de emissões ficaria
sistematizado, sendo vedado pelo Paeg o crédito em conta corrente ao Tesouro
Nacional" (MIRANDA 1979, p. 74-80).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
93
É interessante notar que, no momento do aparecimento de um espaço de
poder para os estruturalistas, quem consegue impor suas idéias são os
monetaristas, e mesmo assim sem sucesso, pois as contradições das forças
políticas acabaram anulando a possibilidade de sua implantação: "Em termos de
pensamento oficial, a maior abertura alcançada no Brasil foi ... a malograda
tentativa do Trienal para conciliar, ao menos ao nível da intenção, algumas
teses de origem cepalina, preocupadas com o caráter excludente e desigual do
desenvolvimento brasileiro, e os tradicionais ensinamentos da escola
monetarista. ... A nível da própria teoria econômica, ficou impossível para o
Trienal conciliar política de estabilização, por um lado, e política fiscal
redistributiva e reformas de base por outro" (MIRANDA 1979, p. 143-144).
Apresentado o Plano Trienal, tomou-se um conjunto de medidas
coerentes com a idéia de estabilizar a moeda: "A primeira delas foi a execução
de uma lei de reforma fiscal votada pelo Congresso (em 1962). Em seguida,
com a finalidade de uniformizar as taxas cambiais - condição para se chegar a
um equilíbrio no balanço de pagamentos externo e exigência do Fundo
Monetário Nacional - aboliram-se os subsídios às importações de trigo e de
petróleo, que provocavam efeitos inflacionários no déficit público. Em março
de 1963, (o Ministro da Fazenda) San Tiago Dantas viajou a Washington a fim
de discutir um plano de ajuda do governo norte-americano ao Brasil e a
renegociação das dívidas do país. Como resultado, obteve-se um empréstimo de
398,5 milhões de dólares, dos quais 84 milhões teriam imediata utilização. A
liberação do restante ficou na dependência do cumprimento por parte do
Governo brasileiro, de um programa de reformas sociais e estabilização
econômica ... A concessão de novos empréstimos e financiamentos estaria
sujeita à execução de medidas antiinflacionárias específicas, que seriam
avaliadas por uma comissão do FMI". (BELOCH e ALVES 1984, p. 1416-
1417). As medidas adotadas não surtiram efeitos: em abril desvalorizou-se o
câmbio em 30%, a inflação mantinha-se acima do previsto no Plano Trienal e a
política salarial idealizada para conter o crescimento da inflação criava uma
grande área de conflito entre o Ministro da Fazenda e as Centrais Sindicais, o
que fez com que o Ministro acabasse cedendo às pressões. Quando a missão do
FMI chegou em maio de 1963, a crise estava aguda e a inflação continuava a
subir. Neste momento, as propostas do Plano Trienal já se mostravam
inoperantes, e a missão deixou o país com uma avaliação negativa, criando um
impasse na renegociação da dívida. Furtado e San Tiago Dantas foram
afastados do Ministério em junho, e Carvalho Pinto assumiu a pasta da
Fazenda.
Após deixar o Ministério, Furtado voltou a trabalhar na Sudene,
coordenando a execução do II Plano Diretor, onde permaneceu até o golpe
militar de 31 de março de 1964. O economista Celso Furtado foi incluído na
primeira lista de cassados pelo regime militar. Refugiou-se na Embaixada do
México, residiu na França, Inglaterra, Estados Unidos, retornando ao Brasil
algumas vezes. Foi anistiado em agosto de 1979, mas continuou residindo em
Paris, com visitas periódicas ao Brasil. Em 1985, assumiu o cargo de Ministro
da Cultura do Governo de José Sarney.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
94
No que se refere à ação da burocracia, tanto a Assessoria Econômica do
segundo Governo Vargas quanto a Sudene e a experiência do Ministério do
Planejamento, quando era Ministro o Dr. Celso Furtado, representaram o
espaço de desenvolvimento de um outro perfil de burocratas, que apesar de
terem tido percursos profissionais semelhantes a outros técnicos que lidavam
com as questões econômicas do Governo, formaram uma visão sobre a política
econômica, sobre o papel do Estado e sobre sua prática como servidores
públicos diferente dos outros companheiros de caminho. Resumidamente, esta
Furtado e Raul Prebish seus mentores intelectuais. Para estes, o
desenvolvimento da América Latina só poderia ocorrer através de profundas
transformações na sua estrutura econômica, começando pela reforma agrária e
atingindo as relações internacionais através de grandes modificações no
comércio exterior dos países. Este projeto de desenvolvimento econômico
deveria estar fortemente apoiado em um programa de industrialização baseado
na produção para o mercado interno, única maneira dos países desenvolverem-
se mantendo um equilíbrio na distribuição das riquezas. E ele só poderia ser
conduzido pelo Estado, que não deveria poupar investimentos nas áreas
consideradas prioritárias. O pensamento cepalino (chamado de estruturalista)
opunha-se ao pensamento que se originou na dupla Eugênio Gudin-Octávio
Gouvêa de Bulhões, chamado de monetarista.
As diferenças entre as duas formas de pensamento estavam tanto no
diagnóstico das causas da inflação quanto nas propostas para superá-la e para
conduzir o país rumo ao desenvolvimento econômico. Para os estruturalistas, as
causas básicas da inflação estavam nos desequilíbrios estruturais da economia
e, portanto, só seriam atacadas com as reformas de base e com um plano geral
de investimentos voltados para áreas estratégicas. Assim, considerava inócuas
quaisquer medidas que significassem cortes nos planos de investimentos
públicos nos setores considerados chaves, pois estes cortes não atacavam a
causa do processo inflacionário. Para os monetaristas, a inflação seria atacada
pela restrição ao crédito, pelo maior controle dos gastos públicos, pelo aumento
de impostos, pelo controle dos reajustes salariais e pela eliminação dos
subsídios, mesmo que para isso fosse necessário atravessar um período
recessivo.
Um dos representantes do "grupo" de Bulhões, avalia que a divisão entre
o pensamento estruturalista e monetarista foi mais política do que econômica
85
:
"O que se verificou, com o passar do tempo, é que os dois tinham razão em
parte, e que é impossível você ter uma noção global do processo inflacionário
sem considerar os dois aspectos: o estrutural ou não-monetário e o monetário.
O fato é que qualquer uma das duas linguagens isoladas é incompleta. O
fenômeno real não é puramente estrutural, nem completamente monetário e
85
Os adjetivos dados aos dois grupos realmente denotam que havia mais do que desavenças
teóricas a dividi-los. O grupo de Bulhões foi sempre chamado de conservador, direitista e
reacionário pelo lado contrário. E o grupo de Furtado, chamado de comunista e esquerdista.
Como veremos pelos depoimentos, porém, havia muitas idéias estruturalistas no grupo de
Bulhões, como havia muitas idéias monetaristas no grupo de Furtado.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
95
financeiro. São as duas coisas que compõem o problema da inflação: ora
predominam certos fatores estruturais, ora a causa maior é o desregramento
monetário" (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 197).
Mas o que se percebe, a partir deste breve relato sobre alguns dos
espaços institucionais de crescimento de uma parte da burocracia ligada à área
econômica, independente de sua orientação teórico política, é que esta
burocracia tinha alguns traços constitutivos marcantes. Em primeiro lugar, seu
espaço de poder era proveniente de recursos políticos que nasciam do fato de
serem agentes de um Estado que foi constituído para ser forte, porque
apresentava-se como ator e produtor de um projeto de desenvolvimento. Neste
sentido, "o interesse público” que defendiam se confundia com o interesse
deste Estado. Em segundo lugar, algumas das agências a que pertenciam,
principalmente o Banco do Brasil, garantia-lhes um status de prestígio e criava
fortes laços de solidariedade para manter este seu espaço institucional e suas
vantagens funcionais. Em terceiro lugar, era-lhes garantida a possibilidade de
adquirirem uma formação técnica e um conhecimento especializado, inclusive
com experiências internacionais, além do que seu ingresso no serviço público
dava-se por mérito e não por apadrinhamento. Este conhecimento especializado
transformava-se em novos recursos políticos, alargando seu espaço de poder.
Em quarto lugar, eram chamados a atuar e influir na definição do perfil
institucional deste Estado que estava em construção, e para isto foram treinados
e formados na tradição administrativa que partia da separação entre a ação
puramente técnica e organizacional e a ação política. Entretanto, esta isenção
pregada na teoria era constantemente abalada por um intenso clima de debates
de idéias e de tendências político-ideológicas que caracterizaram o período, o
que os levava muitas vezes a assumir posições. Estes burocratas conviveram em
um ambiente político-institucional que colocou-os frente a frente com questões
teórico-ideológicas diante das quais dificilmente puderam fugir. Liberalismo
econômico, socialismo, estatização, nacionalismo, intervencionismo, dentre
outros, eram temas que estavam presentes no debate do dia-a-dia, e por mais
isentos que pretendessem ficar, recebiam uma quantidade de informações sobre
estes assuntos, que acabavam influindo na sua lógica de ação. Situação muito
diversa daquela que encontraremos formando o cenário da burocracia que
ingressou no serviço público após o golpe de 1964, como veremos no estudo de
caso.
Finalmente, o conhecimento especializado destes técnicos, bem como o
papel que eram chamados a desempenhar, voltavam-se principalmente para a
construção de instrumentos de controle que possibilitassem a este Estado atuar
como condutor do processo de desenvolvimento econômico, o que tendia a
ampliar seu espaço de poder. Muitos destes instrumentos, criados em estruturas
paralelas, não chegaram a ter estabilidade institucional, mas este fato não
prejudicou a atuação de parte deste segmento burocrático. Ao contrário, talvez
por não sofrerem pressões corporativistas já que seus órgãos não criavam raízes
(com exceção do Banco do Brasil e do BNDE), tiveram mais liberdade de ação.
96
C
APÍTULO II
A CAMINHO DE UM NOVO PERFIL
I
NSTITUCIONAL PARA AS FINANÇAS PÚBLICAS:
O(S) PROJETO(S) DE REFORMA BANCÁRIA
Focalizando nossa lente de observação para aumentar sua precisão,
tomemos a definição institucional de uma parte do aparelho estatal da área
econômica, ou seja, seu sistema financeiro. Mais precisamente, vamos
acompanhar o percurso das propostas de reforma bancária que foram
apresentadas pelo Legislativo e pelo Executivo até chegarmos à Lei 4.595, de
1965, que criou o Banco Central do Brasil.
Após a criação da Sumoc, em 1947, apresentou-se o primeiro projeto de
reforma bancária durante o Governo Dutra, quando era Ministro da Fazenda,
Correia e Castro. Este projeto, que propunha a criação de um Banco Central e
de um Conselho Monetário Nacional, arrastou-se até 1962, quando Daniel
Faraco, o mesmo relator de 1947, apresentou um substitutivo que causou muita
discussão, o que demonstra que o assunto havia chegado a um ponto onde
interesses contraditórios entravam em cena.
O relato de Ary Minella (MINELLA 1988), em um estudo sobre a
Reforma Bancária de 1964, e o depoimento de Dênio Nogueira, Casemiro
Ribeiro e Cleanto de Paiva Leite, que discutiremos a seguir, são bastante
ilustrativos do debate que antecedeu à criação do Banco Central.
Casemiro Ribeiro relata que durante o regime parlamentarista houve
uma tentativa do Poder Executivo de apressar a criação de um órgão
centralizador da política monetária, quando era primeiro-ministro o Dr.
Brochado da Rocha, entre julho e outubro de 1962. Preparou-se uma Lei
Delegada que chegou a ser publicada no Diário Oficial, mas que não chegou a
entrar em vigor, "transformando a Sumoc em Banco Central, mas sem o nome,
‘para não assustar’, conforme palavras do primeiro-ministro". Assim a Sumoc
passaria a ter patrimônio próprio, desvinculava-se do Banco do Brasil,
incorporava a Carteira de Redescontos (depósitos compulsórios) e a Caixa de
Amortização (função emissora). E a lei definia que numa segunda etapa
também seria transferida a Carteira de Câmbio do Banco do Brasil, para que a
Sumoc assumisse as funções internacionais. Assim, estaria criado o Banco
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
97
Central, sem chamar Banco Central. Mas a lei não saiu do papel com o fim do
regime parlamentarista.
As discussões em tomo do substitutivo à proposta formulada durante o
Governo Dutra, apresentado pelo Deputado Daniel Faraco em 1962, trouxeram
à luz do dia os interesses que vinham se aglutinando durante quinze anos e que
até então não haviam se manifestado com clareza. E quais eram estes
interesses?
O Congresso, desde a primeira proposta, sempre resistiu à criação de um
Banco Central. Entretanto, o Congresso era apenas o porta-voz de uma pressão
vinda de duas fontes. A primeira delas tinha origem no Banco do Brasil, que
sempre viu, desde o tempo da criação da Sumoc, com enormes resistências o
aparecimento de qualquer outro órgão que pudesse diminuir ou controlar o seu
poder, até então bastante grande: "Seus funcionários engrossaram o grupo
contrário à criação do Banco Central, temerosos de perderem o prestígio de
que desfrutavam ... eram assessores de ministros, às vezes chegavam a
ministros, almejavam uma carreira mais ampla do que apenas a de
funcionários do Banco do Brasil. Sua oposição era provocada por estes
interesses, que considero legítimos. No entanto, a defesa de um interesse
clientelista não deveria prevalecer sobre o interesse nacional" (DÊNIO
NOGUEIRA in BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 258).
Mas estas não eram as únicas razões. Na realidade os funcionários
queriam manter o papel de agente financeiro do Tesouro, este sim garantia de
que teriam prestígio e uma carreira assegurada. Tinham para isto aliados entre
os políticos com base de apoio eleitoral no Banco do Brasil e que internamente
eram aliados do diretor da Carteira de Redescontos do Banco
86
, quase sempre
ocupado por um político. Entretanto, j á apareciam alguns funcionários do
Banco, como Casemiro Ribeiro, que participavam da idéia de que estávamos
muito atrasados na criação de um banco central, e que procuravam, na época,
alertar "a casa", para o fato de que havia uma incompatibilidade ética insanável
entre ser um banco com características comerciais, com participação nas
emissões de moeda
87
, ser o guardião das reservas voluntárias
88
e ao mesmo
86
O poder de emissão era do Tesouro, através da Caixa de Amortização do Banco do Brasil.
A Carteira de Redescontos (que fornecia redescontos seletivos e de liquidez) mais a
Carteira de Mobilização Bancária do Banco do Brasil (que socorria os bancos privados em
crises de liquidez) eram as únicas que estavam autorizadas a colocar estes ativos em
circulação.
87
Fábio Villares de Oliveira explica qual era a participação do Banco do Brasil no
mecanismo de emissões: "Quando o Tesouro Nacional estava em déficit, isto é, quando o
total de cheques emitidos por conta do Tesouro Nacional ultrapassava seus depósitos junto
ao Banco do Brasil, este, automaticamente, lhe concedia um empréstimo. Via de regra, tais
operações exigiam, num segundo momento, a disponibilidade de maior quantia de papel-
moeda no Banco do Brasil, correspondente a uma determinada fração de seus empréstimos
pois, muito provavelmente, no momento da compensação, ele se tomava devedor junto aos
demais bancos. Este fato obrigaria o Banco do Brasil a descontar alguns títulos junto à
Carteira de Redescontos. Esta, por seu turno, contraía um empréstimo com a Caixa de
Amortização pelo papel-moeda emitido, pois, a prerrogativa de emissão pertencia ao
Tesouro ... No entanto, seria possível conceber que este papel-moeda adicional deixasse de
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
98
tempo ser encarregado da fiscalização do funcionamento do sistema bancário
privado.
Havia outras pressões contra a Reforma Bancária e a criação de um
Banco Central que foram identificadas na época como provenientes do setor
industrial e comercial, mais precisamente de São Paulo: "A atividade
econômica urbana - comércio e indústria - habituou-se ao longo dos anos a
viver à custa da expansão monetária, e conseqüentemente da inflação. Falar
em controle de crédito para indivíduos que dependem de sua expansão para o
dia-a-dia das operações que realizam é realmente assustador. Por isso, as
empresas reunidas em órgãos como a Fiesp ou a Associação Comercial
opunham-se à reforma bancária e manifestavam grande animosidade em
relação ao controle de crédito, que é uma das funções do Banco Central ... Da
parte dos banqueiros também havia reação ... mas eles tinham menos força
política do que aparentavam. Na verdade eles refletiam uma pressão que vinha
do setor empresarial" (DÊNIO NOGUEIRA in BULHÕES, DEPOIMENTO, p.
259-260).
O substitutivo do deputado Daniel Faraco (que era funcionário do Banco
do Brasil) se fundamentava nas idéias defendidas por Eugênio Gudin e Octávio
Gouvêa de Bulhões. Defendiam que para o Brasil dos anos 60 nenhuma política
econômica deveria basear-se na expansão monetária para financiar programas
de desenvolvimento industrial, seja no que diz respeito à produção interna, seja
no que diz respeito ao comércio internacional. Assim, nenhuma política
circular no momento de vencimento dos contratos de dívida. Ocorre, contudo, que este não
era o caso, pois o que realmente acontecia era que o Banco do Brasil deixava de cumprir
seus compromissos junto à Caixa de Redescontos. Quando esta atingia o limite legal de
suas operações (o Decreto Lei 4.792/42 determinava que 25% do papelmoeda em
circulação fosse lastreado em ouro ou divisas), o Executivo solicitava ao Congresso a
promulgação de uma Lei de Encampação, pela qual se anulavam os débitos existentes nos
vários sentidos, o que tornava a emissão `puramente fiduciária', e além disso, possibilitava
à Caixa de Redescontos reiniciar suas operações". OLIVEIRA 1985, p. 9
88
Como depositário das reservas voluntárias e ao mesmo tempo banco comercial, o Banco do
Brasil tinha à sua disposição um outro mecanismo que atuava sobre as emissões: "Quando
um banco expande seus empréstimos, é de se supor que haja diminuição de suas reservas e,
por via de conseqüência, crescimento das disponibilidades dos demais bancos. A contração
de reservas, portanto, impõe um limite à expansão das operações ativas destas instituições,
tomadas individualmente. Todavia, tal raciocínio não se aplicava ao Banco do Brasil, pois,
devido às peculiaridades supracitadas, suas reservas raramente definhavam, ou seja,
quando estava em débito, bastava ao Banco do Brasil realizar uma operação contábil
creditando os recursos transferidos na conta de reservas voluntárias da instituição
beneficiada, conta esta existente no próprio Banco do Brasil. Tanto ele, quanto a outra
instituição podiam, assim, num segundo momento, expandir suas aplicações. O único
limite passível de ser imposto ao Banco do Brasil seria o estabelecimento de tetos para suas
aplicações. Embora isto tenha ocorrido, seu cumprimento tornava-se praticamente
impossível devido tanto à sua multiplicidade de funções quanto, e principalmente, ao fato
do órgão normativo das autoridades monetárias (a Sumoc) ser composto, em sua maioria,
por funcionários do Banco do Brasil, algo que em princípio dificultava a adoção de
qualquer medida que viesse a prejudicá-lo". OLIVEIRA 1985, p. 10. O grifo é nosso.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
99
econômica deveria basear-se no subsídio à produção. O subsídio poderia ser útil
como um auxílio dado às empresas privadas por um curto período de tempo, e
neste caso seria preferível em vez do próprio Estado assumir a iniciativa do
empreendimento. O Estado deveria cuidar da estabilidade monetária e de uma
política tributária que incentivasse os empreendimentos e taxasse fortemente os
gastos supérfluos: a intervenção do Estado deveria ter um sentido de
coordenação e disciplina monetária e não de execução das atividades
econômicas. A entrada de capital estrangeiro deveria ser livre, colocando-se o
mínimo possível de normas regulatórias, tanto restritivas quanto de incentivo. O
grande problema da economia brasileira era a inflação, pois a convivência com
ela eliminava o aspecto dinâmico da economia: com a inflação vivia-se em
função do passado para enfrentar o presente e não sobrava energia para pensar
no futuro. Para combatê-la devia-se definir uma política de austeridade,
traduzida na redução dos investimentos públicos e na restrição e controle do
crédito.
Do debate que se travou no Congresso entre 1961 e 1964, destacaremos
apenas alguns aspectos que mais se relacionam com nossos propósitos. O
substitutivo mantinha a idéia de criação do Conselho. Monetário Nacional
(CMN) como órgão normativo e com poder decisório e de um Banco Central
que seria o órgão executivo das decisões do Conselho. Além disso, propunha a
criação de um Banco Rural para financiar a agricultura e a pecuária. O
Conselho Monetário Nacional seria composto por cinco membros (Ministro da
Fazenda e Presidentes dos Bancos Central, do Brasil, Rural e de
Desenvolvimento Econômico) e criaria um Conselho Consultivo composto por
nove membros (três representantes dos banqueiros, três das confederações
comercial, industrial e rural e os Ministros da Agricultura, Indústria e Comércio
e Minas e Energia). O projeto recebeu 118 emendas, algumas das quais
sinalizando as tendências opostas que estavam em luta na arena política: o
grupo "privatizante"
89
, favorável à independência do Banco Central através da
sua estruturação sob a forma de uma empresa de economia mista e sua
desvinculação normativa do CMN, e o grupo "estatizante"
90
, favorável à
transformação do Banco do Brasil em Banco Central, com a expropriação das
ações privadas mediante indenização e com a eliminação de qualquer
representação não-governamental no CMN. Entre estes extremos havia
propostas para aumentar a representação de classe no CMN incluindo nela os
trabalhadores bancários e a criação de mecanismos para garantir o caráter social
do crédito, além de sua seletividade a favor dos projetos definidos como
prioritários pelo Governo por intermédio do CMN.
O Governo João Goulart procurou retardar a votação do projeto do
deputado Daniel Faraco, dada a diversidade das propostas surgidas nas
emendas, e criou um Grupo de Trabalho para elaborar sugestões sobre a
Reforma Bancária e apresentar ao Presidente. O Grupo de Trabalho era
presidido por Miguel Calmon que era Ministro da Fazenda e tinha na sua
89
A expressão é de Ary Minella.
90
Idem.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
100
composição burocratas da Sumoc e do Banco do Brasil, alguns deles ligados a
Octávio Gouvêa de Bulhões, que prepararam um projeto que criava um banco
central independente. Segundo um de seus membros, Dênio Chagas Nogueira,
"o presidente João Goulart havia levantado a bandeira das reformas de base,
entre as quais se incluía a reforma bancária ... Estávamos ainda no regime
parlamentarista e o ministro Miguel Calmon, que era banqueiro, interpretou a
reforma bancária como sendo a criação do Banco Central ... Ele convocou
uma comissão ... (e) em pouco tempo preparamos um projeto que criava um
banco central independente ... O projeto foi submetido ao ministro Calmon, e
como estávamos no parlamentarismo, foi encaminhado ao Congresso pelo
primeiro-ministro sem passar pelas mãos do presidente João Goulart" (DÊNIO
NOGUEIRA in BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 260-261).
O Projeto Miguel Calmon criava o Conselho Monetário Nacional,
transformava a própria Sumoc em autarquia com personalidade jurídica e
patrimônio próprio. O CMN seria composto pelo Ministro da Fazenda, Ministro
Extraordinário do Planejamento, diretor presidente da Sumoc, presidentes do
Banco do Brasil e BNDE e três membros nomeados pelo Presidente com
aprovação pelo Senado, com mandato de três anos. Quanto à seletividade do
crédito, a exposição de motivos defendia a atuação dos bancos oficiais naquelas
áreas não totalmente cobertas pelos bancos privados como o financiamento às
exportações e o crédito rural, mas esta ação deveria ter um caráter temporário e
de incentivo para que a iniciativa privada assumisse integralmente estes
investimentos num futuro próximo.
Com a volta ao regime presidencialista, os funcionários do Banco do
Brasil prepararam uma outra proposta, que ficou conhecida como Projeto Nei
Galeão (então presidente do Banco do Brasil) e enviaram ao Congresso. Este
projeto praticamente consolidava a Legislação já existente, mantendo o Banco
do Brasil com todos os poderes de autoridade monetária. O resultado foi que o
Governo Goulart apresentou em menos de seis meses dois projetos de lei.
A proposta Miguel Calmon foi considerada pela Confederação Nacional
dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito – Contac, como uma "vitória das
forças reacionárias ligadas a interesses do capitalismo internacional". Mas, este
projeto de lei representava na realidade mais uma manifestação das idéias da
burocracia da Sumoc ligada a Octávio Gouvêa de Bulhões. E no momento
seguinte, após a queda de Miguel Calmon e a subida de San Tiago Dantas, mais
uma vez estas idéias se firmaram no Plano Trienal, coordenado pelo Ministro
do Planejamento, Celso Furtado, como vimos no capítulo anterior.
A parte do Plano Trienal referente à reforma bancária foi elaborada por
mais um burocrata da "escola" de Bulhões, o Dr. Casemiro Ribeiro. Pela sua
proposta, criava-se um Banco Central e um Conselho Monetário Nacional com
funções muito próximas do que ficou definido na Lei 4.595, promulgada após o
golpe militar, durante o Governo Castelo Branco.
Um pouco antes da deposição de João Goulart, os apoiadores do Projeto
Nei Galeão — principalmente do Banco do Brasil e da Contac — conseguiram
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
101
que o Congresso aprovasse um regime de urgência para a votação do projeto. E
era esta a situação quando assumiu o primeiro governo militar do presidente
Castelo Branco.
Entrava-se numa nova fase. Nesta nova fase, desenhou-se um novo
perfil institucional das finanças públicas no Brasil em que problemas foram
superados e outros problemas surgiram, como veremos em nosso estudo de
caso. Estes novos problemas não foram só a conseqüência de um regime
autoritário que privilegiou a centralização das decisões, mas também a
manifestação de velhos traços da nossa tradição institucional clientelista e
corporativista. E nesta fase nasceu também uma "nova burocracia", que teve
diferentes recursos políticos para definir seu espaço de poder e sua lógica de
ação.
Neste período que se inaugurava, parte do pensamento hegemônico
pode ser extraído do depoimento do Dr. Dênio Nogueira. Entre 1961-1962, Dr.
Dênio tomou-se membro do Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais - Ipes,
organização de empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo, estruturado no
decorrer do ano 1961 e fundada oficialmente em 1962. O Ipes tinha como
objetivo "defender a liberdade pessoal e da empresa, ameaçada pelo plano de
socialização dormente (sic) no seio do governo João Goulart", por meio de um
"aperfeiçoamento da consciência cívica e democrática do povo". No Ipes
conheceu o economista Delfim Netto, que era da seção de São Paulo do
Instituto. Em 1964, tanto o Ipes quanto o Dr. Dênio, participaram ativamente da
preparação do golpe militar.
Dr. Dênio sempre manifestou-se contrário a todas as formas de
subsídios e de controle ao investimento estrangeiro, criticando duramente tanto
apolítica nacionalista do período Vargas quanto a política desenvolvimentista
do período Kubistchek. Na defesa de suas posições apresentava argumentações
bastante reveladoras: "Eu considero que a esquerda é muito mais de direita do
que a direita é de direita. Por exemplo, toda esta política de industrialização,
substitutiva de importações, para mim não há nada mais de direita do que isto.
E dizem que eu sou de direita. Porque fui do Ipes. Mas eu sou contra o subsídio
ao empresário! Não há porque subsidiar! O que há é a taxa de câmbio que
deve estar no seu nível adequado e a tarifa deve protegera indústria nascente.
Mas uma proteção razoável ... Ainda há poucos dias eu li no jornal que a
goiabada paga 105% de direito alfandegário! É uma loucura total! Primeiro
que eu acho que não há no mundo quem produza goiabada, a não ser o Brasil.
Proteger a goiabada! Quer dizer, isto é dar a uma empresa o direito de nos
assaltar, a nós, consumidores. E dizem que eu sou de direita e eles de
esquerda. Eu acho que é o contrário. Eu não quero ser assaltado, porque eu
não quero concentrar a renda em meia dúzia de pessoas. Acho que o país se
desenvolve na medida em que a renda se distribui. E a esquerda é a favor da
concentração de renda ... E quando me comparo ao Celso Furtado, eu sou de
extrema esquerda. Porque eu considero o Celso Furtado de extrema direita,
ainda que politicamente ele possa ser de esquerda. Mas as soluções
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
102
econômicas que ele sugere ao país, são de extrema direita...” (NOGUEIRA,
DEPOIMENTO, p. 55-56).
Durante o primeiro ano do Governo Castelo Branco, quando Octávio
Gouvêa de Bulhões assumiu o Ministério da Fazenda e Roberto Campos o do
Planejamento, a primeira providência que tomaram, assim que o Congresso
retomou seus trabalhos normais, foi brecar a tramitação do Projeto Nei Galeão
que estava em regime de urgência. Para isso, Dr. Bulhões chamou Dênio
Nogueira, que viria em seguida a ocupar a diretoria executiva da Sumoc e mais
tarde seria o primeiro presidente do Banco Central.
Dr. Dênio negociou no Congresso que o projeto andasse mais
lentamente e, em maio de 1964, foi apresentado um substitutivo ao Projeto Nei
Galeão, que passou a ser discutido na Comissão de Finanças da Câmara e teve
como relator pela Comissão de Constituição e Justiça o deputado Ulysses
Guimarães. No seu relatório "ele acabava com toda a resistência do Banco do
Brasil”, mostrando com argumentos “fantasticamente inteligentes o quanto era
antidemocrático manter o atual poder do Banco do Brasil” (NOGUEIRA,
DEPOIMENTO, p. 60). Aí começou a nascer o Banco Central.
Para garantir a independência do Banco Central, a sistemática criada na
lei proposta, foi a seguinte: o Presidente da República, por indicação do
Ministro da Fazenda, nomearia seis pessoas que tivessem notório saber em
matéria econômica, com mandatos de seis anos para que seus mandatos fossem
superior ao do próprio Presidente da República. Esta sugestão foi feita pelo
presidente Castelo Branco, segundo depoimento do Dr. Dênio Nogueira. Estas
seis pessoas seriam nomeadas membros do Conselho Monetário Nacional cuja
criação era proposta. Dentre elas, o Conselho nomearia quatro para diretores
executivos do Banco Central, inclusive seu presidente: "Escolhemos esta
solução para vencer certas dificuldades e para dar maior estabilidade o Banco
Central. Assim, se houvesse um problema de choques pessoais entre os
diretores o indivíduo poderia ser substituído na diretoria ou na presidência por
outro membro do Conselho com mandato, e voltar a ser membro do Conselho
Monetário" (NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p. 124). Os outros dois que não
eram diretores, participariam de uma espécie de conselho de administração
com poder de voto nas reuniões do Banco Central: "Isto dava ao Banco
Central uma força muito grande, porque nós, os seis, nos reuníamos,
discutíamos as questões que deveriam ser submetidas ao Conselho Monetário,
tomávamos as nossas decisões, registradas em ata, e então, quando o Banco
Central levava a questão ao Conselho Monetário, levava deforma monolítica "
(NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p. 70).
O Conselho Monetário teria onze membros, dos quais três seriam
ministros, mas apenas um teria direito a voto (o da Fazenda, sendo que o do
Planejamento-que na época era Roberto Campos - e o Ministro da Indústria e
Comércio não votavam, a não ser se estivessem substituindo o Ministro da
Fazenda na Presidência do Conselho). Dos nove membros restantes, seis seriam
defendidos por um mandato de seis anos. Os membros que não tinham mandato
eram o Ministro da Fazenda, os presidentes do Banco do Brasil, do BNDE e do
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
103
Banco Central. Dentre os que tinham mandato, quatro eram diretores do Banco
Central: "Estávamos garantindo a independência do Banco Central através dos
mandatos de seus membros no Conselho Monetário Nacional” (NOGUEIRA,
DEPOIMENTO, p.64). Na opinião do Dr. Dênio, o Conselho Monetário
Nacional foi criado pela Lei 4.595, para vencer as resistências do Banco do
Brasil e de seus funcionários: "Naquele momento, se nós tivéssemos criado um
Banco Central sem Conselho Monetário, para lá dar um acento ao presidente
do Banco do Brasil, muito provavelmente não se teria conseguido criar o
Banco Central ... Quando me referi, há pouco, que o deputado Ulysses
Guimarães teve grande influência na criação do Banco Central, esta foi
exatamente para deter a pressão que vinha dos funcionários do Banco do
Brasil” (NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p. 72).
Entretanto, o que se assistiu após a promulgação da Lei 4.595
91
, foi que
mais uma vez, como já havia acontecido na organização da Sumoc, o Banco do
Brasil recuperou (se é que perdeu) seu poder em um prazo relativamente
pequeno. A referida lei, após as negociações com o Congresso, criou na
realidade um sistema híbrido, que acabou restabelecendo o poder do Banco do
Brasil, através de instrumentos que lhe deram novamente funções de autoridade
monetária. Nos relatos que faremos adiante, estes instrumentos serão expostos
em detalhes.
No que se refere ao Banco Central, a lei introduziu um outro tipo de
mecanismo, que provocou muita discussão posteriormente. Sob o argumento de
que parte dos recursos de médio e longo prazos, para a agropecuária e
agroindústria, provinham de financiamentos internacionais, representando,
portanto, operações cambiais, considerou-se recomendável que estes fundos
fossem administrados pelo Banco Central, criando-se uma carteira de fomento.
Em resumo, com a Lei 4.595 surgiram novos paradoxos que podem ser
acrescentados à lista que apresentamos na Introdução desta Parte II, pois o
Banco do Brasil continuou sendo autoridade monetária e o Banco Central foi
criado com funções de fomento (dentre outras).
Outro instrumento incluído na reforma, e que dava grande poder ao
Conselho Monetário Nacional e, na prática ao Ministro da Fazenda, foi o
Orçamento Monetário. Este orçamento, com outros nomes, já havia sido
utilizado por outros Governos, a começar por Getúlio Vargas. Na realidade, o
orçamento monetário era muito mais uma operação contábil do que um
orçamento, e por isso não estava sujeito à aprovação do Congresso Nacional e
nem à fiscalização do Tribunal de Contas. Instrumento bastante eficaz,
portanto, a quem tanto temia a ação clientelista dos políticos, pois talvez tenha-
se imaginado que, através dele, os implementadores da política econômica
poderiam decidir sobre os gastos alheios a pressões "estranhas".
91
A discussão que faremos a seguir refere-se apenas aos aspectos da Lei 4.595 mais
diretamente ligados às relações institucionais entre Tesouro, Banco Central e Banco do
Brasil e principalmente seus efeitos sobre o controle dos gastos públicos. A referida lei
abrange inúmeros outros aspectos que provocaram uma transformação de grande
profundidade no sistema financeiro do país, mas que escapam ao nosso escopo de estudo.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
104
Na concepção de Bulhões e Campos, o orçamento monetário seria
utilizado como um instrumento de política econômica sob o comando do
Conselho Monetário Nacional, para controlar as emissões e a expansão da base
monetária. Mas, como veremos em detalhes no estudo de caso, no decorrer do
tempo, sua finalidade foi alterada, da mesma forma que foi alterado o desenho
institucional das finanças públicas e a composição do Conselho Monetário:
"Este orçamento monetário, posteriormente, foi utilizado pelo ministro Delfim
Netto para expandir as operações de incentivos e de subsídios concedidos à
indústria ... e, portanto, foi utilizado para expandir a base monetária e
conseqüentemente aumentar a inflação" (NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p.
140). Mas a responsabilidade do uso que se fez do orçamento monetário não
pode ser creditada apenas ao ministro Delfim Netto. Em 1978, analistas
econômicos de oposição ao regime militar, como Maria da Conceição Tavares,
já haviam percebido a perversidade do orçamento monetário: "O orçamento
monetário, que deveria refletir a situação predominantemente deficitária ou
superavitária das diversas entidades econômicas (empresas, orçamento fiscal,
conta com o exterior) acaba se,transformando numa ‘caixa preta’, onde
estouram pressões de toda ordem. Explicando melhor: as empresas e o
Governo, interna e externamente contraem débitos e avançam posições
financeiras sem que as situações credoras e devedoras destes agentes, ao
contrário do que poderiam imaginar os cultores da boa lógica, reflitam déficits
ou superávits nas transações reais. De há muito, o crescimento da dívida
externa, da dívida pública interna e da própria dívida das empresas deixou de
ser um indicador seguro da necessidade real de recursos e se tornou, pelo
contrário uma pura manifestação especulativa, de natureza estritamente
financeira. Assim, não se sabe mais o que representa o orçamento monetário,
salvo o registro de um infernal jogo contábil que na verdade não significa nada"
(TAVARES in BELLUZZO e COUTINHO 1983, p. 136).
O encaminhamento das discussões protagonizadas pelo Dr. Dênio
Nogueira com lideranças do Congresso Nacional, é bastante reveladora. Foi
aconselhado por pessoas que tinham conhecimento da composição do
Congresso, que não precisaria conversar com um grande número de
parlamentares, mas apenas com alguns que eram considerados conhecedores da
matéria econômica: "Disseram-me que o deputado Herbert Levy era o papa ...
fui conversar com ele que me disse: ‘Eu voto no Banco Central se você criar o
Banco Rural’. Aí virei-me para ele: ‘Mas Deputado, este banco rural já existe,
é o Banco do Brasil. Não há razão para criar um outro banco rural. Veja o
número de agências que o Banco do Brasil possui. Para se ter um banco rural
vamos ter que criar agências nos mesmos lugares ... em vez de criar um banco
rural vamos criar mais ‘guichês’ para o crédito rural. Eu prometo isto’. E ele
respondeu-me: ‘Ah, não! Esse negócio de promessa eu estou cheio. Não confio
no Executivo’. E perguntei-lhe: ‘Como então o senhor quer que eu faça?’ E ele
respondeu: ‘Escreve isto na lei, que dentro de noventa dias a contar da data da
publicação sua promessa será cumprida’. Por isso que na lei de criação do
Banco Central há um artigo que não tem nada a ver com o Banco, que diz que
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
105
dentro de noventa dias ... o Executivo submeterá ao Legislativo uma lei
institucionalizando o crédito rural (NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p. 65). Foi
por causa desta negociação que o Banco Central, logo após ser criado, passou a
exercer funções de fomento, através da sua Carteira de Redesconto, que recebia
recursos para passar aos bancos que o empregariam no crédito rural. Assim o
projeto de lei foi aprovado na Câmara. Ao passar para o Senado, o senador
Daniel Krieger (que era produtor rural) liderou a votação de uma emenda que
retirava a correção monetária dos empréstimos aos agricultores. O Dr. Dênio
opôs-se à medida e sugeriu ao presidente Castelo que acatou sua proposta que
vetasse este artigo: "Ninguém poderia, como presidente do Banco Central,
admitir qualquer tipo de subsídio através da correção monetária. Tudo pode
ser subsidiado, desde que se diga quem vai pagar o custo do subsídio, pois o
seu custo não pode ser jogado para o país como um todo" (NOGUEIRA,
DEPOIMENTO, p. 69).
O projeto que foi aprovado, e que se converteu na Lei 4.595, já na sua
promulgação a 31 de dezembro de 1964, introduziu modificações que seus
mentores não gostariam, principalmente no que se refere ao papel do Banco do
Brasil e à independência do Banco Central: "(mas) para que fosse aprovado no
Congresso, que era cheio de funcionários do Banco do Brasil, foram feitas
algumas transigências que o Dr. Bulhões não gostou, garantindo ao Banco do
Brasil certos privilégios”- (SIMONSEN in BULHÕES, DEPOIMENTO, p.
221).
Uma modificação introduzida foi a manutenção dos depósitos
voluntários das instituições privadas, além da compensação de cheques no
Banco do Brasil. Mas a medida mais importante, e que na época ninguém
percebeu a repercussão que teria no futuro, foi a criação da Conta Movimento
92
,
através da qual o Banco Central supria recursos para o Banco do Brasil, que
apresentaria a conta de seus gastos. Na sua origem, esta era uma conta conjunta,
que deveria ser liquidada semanalmente. Mas não foi isto que aconteceu, como
veremos adiante. Depósitos voluntários mais Conta Movimento, mantiveram, a
médio prazo, o Banco do Brasil como autoridade monetária.
Outra modificação introduzida foi quanto ao mandato dos diretores do
Banco Central. Para os autores da proposta, a característica fundamental de um
banco central independente é o mandato fixo de seus diretores. Esta idéia
encontrava-se no projeto original; correspondendo na realidade ao mandato fixo
dos seis membros do Conselho Monetário Nacional, nomeados pelo Presidente
da República depois de aprovados pelo Senado Federal: “Imaginávamos
naquela época que o regime militar iria durar apenas até o final do Governo
Castelo, e então propúnhamos que os nomes fossem submetidos ao Congresso”
(RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 32). Entre estes, escolhiam-se os quatro
diretores do Banco Central, um dos quais seria o presidente. O único presidente
que respeitou esta idéia foi Castelo Branco, pois já no Governo Costa e Silva os
92
Encontramos, inclusive em documentos oficiais, tanto a expressão Conta de Movimento
quanto Conta Movimento. Resolvemos adotar a expressão Conta Movimento.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
106
diretores com mandato foram "convidados" a se demitirem e com o Ato
Institucional n° 5, em 1968, acabaram-se os mandatos.
Finalmente, outra modificação que indicou estar se criando um sistema
híbrido, foi a abertura de uma carteira de fomento no Banco Central. Esta
medida foi tomada por pressões do Congresso Nacional que queria ver criado
um Banco Rural (como vimos anteriormente) e por receio dos mentores do
Banco Central de que o Banco do Brasil conseguisse o que vinha tentando, ou
seja, a liberação da cláusula de correção monetária de seus empréstimos:
Ainda que reconheça que o meu propósito tenha sido alterado,
transformando-se (com o tempo) o Banco Central em um órgão de concessão
de vantagens políticas, portanto, de expansão monetária, até que me mostrem
que haveria uma solução melhor naquele momento, continuo convencido de
que tomei a decisão correta. E não me arrependo de o ter feito” (NOGUEIRA
in BULHÕES, DEPOIMENTO, p. 266). Assim, ao Banco Central foi acrescida
a estranha função de fomento, que para ser retirada vinte anos depois, sofreu
forte resistência por parte dos técnicos da área correspondente no Banco
Central, como veremos no estudo de caso.
Mas as alterações não chegaram a desvirtuar os objetivos defendidos
pelos seus criadores, pelo menos a curto prazo. Em resumo, dentro da proposta
da dupla Bulhões-Campos, estava embutida a idéia de que "... ao Estado caberia
o papel primordial de conduzir a modernização (do setor financeiro) de cima
para baixo... como ponto de partida para a reformulação global de todo sistema
econômico" (VIANNA 1987, p. 89). E também estava nos seus planos
fortalecer o Ministério da Fazenda, através da atuação do Conselho Monetário
Nacional, que ficaria encarregado das decisões que envolvessem: a concessão
de créditos, a política cambial e de comércio exterior, as autorizações para
emissões e a fiscalização das instituições financeiras privadas (executada pelo
Banco Central). A idéia era proteger o sistema financeiro das incursões tanto
internas do próprio Estado - via Banco do Brasil ou via Ministérios
"gastadores" quanto das "pressões reivindicatórias, eleitorais ou outras de
qualquer natureza que pudessem pôr em risco a eficiência do sistema"
(VIANNA 1987, p. 105). Tratava-se, portanto, de uma tentativa de criar uma
organização institucional imune às pressões dos grupos de interesse, que ficaria
inclusive com pouco poder na composição do Conselho Monetário Nacional,
que na proposta original garantia apenas duas cadeiras a representantes
privados. O que veremos é que o Conselho Monetário se transformaria, com o
tempo, no principal órgão de instrumentação política de um regime forte e
centralizador
93
.
A participação do Dr. Dênio Nogueira como membro de uma equipe
que tentava implantar uma política de estabilização durante o primeiro governo
militar também ilustra o jogo de interesses que atuava na definição do desenho
institucional das finanças públicas no país naquele período: “Naquela época
93
“Quem quiser saber a agenda das decisões econômicas, bem como a agenda política que
nortearam a atuação dos governos entre 1964 e 1984, basta consultar as atas e os arquivos
do Conselho Monetário Nacional.” (Entrevista n° 4)
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
107
havia uma espécie de slogan, que vinha de São Paulo que dizia que nós
matávamos os pobres de fome e os ricos de raiva ... As pressões eram imensas
... Nós éramos chamados `a trindade maldita', eu, o Roberto Campos e o
Bulhões. As pressões vinham de São Paulo, de Minas, do Rio. De São Paulo,
recebemos uma pressão imensa quando era Secretário da Fazenda o Delfim
Netto, mas reagimos e nos recusamos a emitir papel moeda para socorrer o
Banco do Estado de São Paulo” (NOGUEIRA, DEPOIMENTO, p. 74).
As medidas tomadas durante os primeiros anos do regime militar
tiveram um grande alcance e faziam parte de um projeto mais amplo de política
econômica do Governo, projeto este que vinha sendo elaborado há muito tempo
pelos economistas Octávio Gouvêa de Bulhões e Roberto Campos. Esta
política, que não será objeto de análise neste trabalho — pois nosso objetivo
prende-se apenas a uma das partes da proposta, ou seja, o seu aparelho
institucional — era considerada conservadora e recessiva por seus opositores,
além de empregar fundamentalmente medidas monetárias para o programa de
estabilização. Mas o debate que se travou nos anos seguintes é bastante
ilustrativo para mostrar tanto do lado dos "monetaristas" sua visão sobre a
organização institucional do Estado quanto do lado dos seus opositores que,
estando fora do Governo, pareciam se distanciar cada vez mais de propostas
que os aproximassem da operação das instituições.
A burocracia encarregada de conduzir esta nova organização
institucional deveria também se enquadrar neste padrão. E ela foi escolhida no
Banco do Brasil, entre funcionários de carreira.
108
C
APÍTULO III
O PERFIL INSTITUCIONAL DAS FINANÇAS PÚBLICAS
A
PÓS 1964 E O ESPAÇO DE PODER DA BUROCRACIA
Com o golpe de 1964, o "grupo" estruturalista foi derrotado, e as novas
gerações de técnicos que chegaram a Brasília, principalmente após a criação do
Banco Central, não foram mais expostas àquela dualidade de pensamento, pois
a orientação monetarista imprimiu as diretrizes da política econômica pelas
duas décadas seguintes. Na realidade, pouco a pouco, a burocracia ligada aos
órgãos do Governo da área econômica foi perdendo o seu elemento político
unificador que era o projeto nacional-desenvolvimentista (mesmo dentro de
posições pró ou contra), e este espírito passa a ser substituído exclusivamente
por um componente supostamente neutro, ou seja, o conhecimento técnico. Esta
lógica se baseia na crença de que a solução dos problemas depende de medidas
que partam de um diagnóstico imparcial e de recomendações que se
fundamentem num profundo e detalhado conhecimento da matéria, elaborado
portanto por especialistas. Dentro desta lógica, o único critério valorativo que
se admite, é a defesa do “interesse público”.
Este "desligamento" de um projeto político mais amplo não significa
que desapareceram todas as contradições que poderiam provocar divisões entre
os técnicos. Eles foram expostos a outras divisões, estas dentro do grupo
monetarista. Poderíamos falar em dois grupos, um liderado por Octávio Gouvêa
de Bulhões e Mario Henrique Simonsen e seus "discípulos" (Dênio Nogueira,
Casemiro Ribeiro, Roberto Campos, João Batista de Abreu, dentre outros) e a
outra liderada por Delfim Netto. A apreciação do grupo de Bulhões sobre a
atuação do ministro Delfim Netto e sua equipe não é das mais elogiosas, como
veremos adiante. Consideravam que o ministro recebeu, quando assumiu pela
primeira vez o Ministério no Governo Costa e Silva, a casa em ordem, e por
isso teve condições de implantar uma política de crescimento econômico. E
mesmo neste período, apesar de não ser ainda muito visível, começou a adotar
atitudes que comprometiam o equilíbrio das contas públicas e criavam um
cenário para o crescimento da inflação. As críticas do grupo de Bulhões se
acentuam durante sua gestão no Governo Figueiredo. Neste período eles o
responsabilizam por fazer vistas grossas ao total desarranjo das contas públicas,
pelo uso do orçamento monetário para subsidiar todo tipo de investimentos, e
pelo crescimento acentuado da inflação.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
109
A apreciação do grupo que assumiu a direção da política econômica
durante o Governo Castelo Branco, pode ser assim resumida: “É triste dizer,
mas foram precisos dois regimes não-democráticos para criar primeiro a
Sumoc e depois o Banco Central” (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 23). Com
esta afirmação, o Dr. Casemiro Ribeiro inicia seu relato de como chegou-se à
Lei 4.595, de 31 de dezembro de 1964. Este processo, que se iniciou com a
criação da Sumoc no final do Estado Novo, foi conduzido nos dois momentos
pelo Dr. Octávío Gouvêa de Bulhões: “Não quero provar a tese do `bom
ditador´ ... (que) é muito perigosa. Quero (apenas dizer) que houve alguém que
soube aproveitar os poderes excepcionais para se fazer o que não se conseguia
fazer... em 1964, o Brasil era o único pais importante do mundo que ainda não
tinha um Banco Central” (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 24).
O comentário do Dr. Casemiro revela um traço comum, que atravessa o
tempo, desta burocracia que se forma para atuar num Estado com as
características do brasileiro. Como já vimos, ela é uma burocracia a quem é
atribuída a função de atuar na formulação, regulação e produção de um projeto
de desenvolvimento, e que para isso cria interesses próprios e uma ideologia
própria. E faz parte desta ideologia a separação do processo político — e,
portanto, dos meios empregados pelos diferentes regimes – do processo de
construção institucional do aparelho de Estado. Este último deve responder
unicamente ao “interesse público”, do qual esta burocracia se considera
portadora e guardiã. Seria injusto dizer que a ela pouco importa se o regime é
democrático ou ditatorial, pois sempre se declara favorável ao regime
democrático, como veremos nas entrevistas do capítulo seguinte. Mas
arriscaríamos dizer que ela atua com total desenvoltura em um regime
autoritário que acelere o processo de construção institucional para atender ao
que entende por “interesse público”, e sente-se desconfortável em um regime
democrático que seja portador de medidas que retardem este processo:
Pensávamos que o regime militar iria durar pouco, e por isso corremos tanto
com a formação do Banco Central ... achamos que era preciso andar correndo,
porque você precisa primeiro limpar a casa para depois fazer o
desenvolvimento” (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 71-72).
Logo após o golpe militar, em 1964, Casemiro Ribeiro foi convidado
pelo Dr. Octávio Gouvêa de Bulhões que seria Ministro da Fazenda do
presidente Castelo Branco, para o cargo de diretor da Carteira de Redescontos
do Banco do Brasil, onde permaneceu até a criação do Banco Central. Foi então
que assumiu uma das diretorias, e conseguiu levar para a nova instituição não
só a função desempenhada pela Carteira, como todo o pessoal que com ele
trabalhava no Banco do Brasil.
A descrição que segue pode ser tomada como um ótimo exemplo de
uma experiência de "insulamento burocrático" que se deu, não dentro de uma
agência (que no caso ainda não existia), mas com um conjunto de burocratas,
sob a liderança de um deles que assumia com o poder advindo de um cargo
importante. Quando foi criado o Banco Central, em 1965, toda a Inspetoria da
antiga Carteira de Redescontos do Banco do Brasil transferiu-se juntamente
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
110
com seu diretor (que era Casemiro Ribeiro), para o Banco Central: “Eram umas
cem pessoas, indispensáveis ... você não faz uma inspetoria de uma hora para
outra. E com gente bancária boa ... para quem o aspecto ético é muito
importante ... esta inspetoria não era só gente apenas competente, era gente
altamente confiável, que foi selecionada com o passar do tempo ... Ali eles têm
que ser juiz e inspetor...". No começo estas pessoas ficaram preocupadas, pois
temiam perder todas as vantagens que o Banco do Brasil lhes fornecia, e o
Banco Central ainda não existia. Mas foram todos, "com a promessa de que eu
iria conseguir a regulamentação da sua transferência". Houve muita pressão,
tanto interna do Banco do Brasil ameaçando quem aceitasse a transferência,
quanto de membros do Governo acusando alguns dos técnicos de terem sido
colaboradores do Governo Goulart: "Era extremamente importante que o novo
Banco Central contasse com aquela gente da velha guarda do Banco do Brasil,
(alguns) inspetores com 25 anos de experiência em inspeção ... porque não
adianta colocar pessoas com um alto QI, títulos universitários, e jogá-los às
feras ... até que aprendessem teriam sido muito bem enrolados" (RIBEIRO,
DEPOIMENTO, p. 50).
Dentre os muitos casos que o Dr. Casemiro Ribeiro conta, um é muito
ilustrativo:
“Fui procurado num dia de 1964 por um almirante (que falava também em
nome de um general) que foi fundamental na revolução e travamos o seguinte
diálogo:
O senhor é o Dr. Casemiro, diretor da Carteira de Redesconto?
Eu estou muito decepcionado com o senhor.
– Eu não atino porque. V. Excia. poderia ser mais claro?
– Eu me refiro ao meu muito bom amigo, fulano (um italiano), que é melhor do
que muito brasileiro. O senhor está criando dificuldades para o moço. O
problema é que ele é nosso amigo e está sendo perseguido pelos subversivos:
estão provocando uma corrida bancária no seu banco. Isto é muito grave, pode
haver uma corrida geral e inverter a tendência da revolução. Vai dar uma
contra revolução. Ele vai aí porque precisa de 500 milhões ... pois estourou sua
compensação. Aliás, o rapaz da compensação, o Julinho, foi muito
compreensivo. Olha, eu quero recomendar este rapaz.
Ele não o expulsou da compensação, ficou com os cheques.
– V. Excia.. já terminou? O fulano de tal já esteve aqui e eu lhe disse que não
lhe dou um tostão, porque a ficha do banco dele é das piores que temos aqui. O
seu amigo cometeu todas as irregularidades que nós conhecemos ... e inventou
falcatruas que nós não conhecíamos. Aprendemos com ele. Seu amigo tem uma
certa criatividade...
– Mas isto aí são as más-línguas.
– Não há más-línguas ... sete ou oito anos, inspeções com inspetores diferentes
constataram tudo ... Posso lhe passar cópia xerox do processo. Enquanto eu
estiver aqui, ele não recebe nem um tostão.
– Vou falar com o Dr. Bulhões. Ele aliás esteve na minha casa hoje
– disse o almirante.
O Dr. Casemiro procurou o ministro Bulhões após esta conversa, que lhe disse:
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
111
– Casemiro, queria salvar um banquinho aí. Você acha que vale a pena salvar?
– Não vale. Este é o primeiro na lista dos corruptos.
– Então fica por sua conta, Casemiro. Eu não quero perder tempo com isso.
Você faz, fecha.
O Dr. Casemiro voltou ao almirante:
– Almirante, vamos mandar fechar o banco. Uma coisa o senhor pode dar lição
para mim, em matéria de disciplina. Banco entendo mais eu que o senhor. E
justamente como a revolução foi feita para combater a corrupção, eu não
posso fazer uma coisa que há 26 anos sei que é errada ... o senhor foi induzido
na sua boa fé .., mas eu não posso, não tenho desculpa ... a responsabilidade é
minha, a assinatura é minha... assim, nem que o ministro Bulhões pedisse ... se
ele pedisse, eu tinha que me demitir. ... Quanto ao funcionário que segurou os
cheques, ele vai ser argüido, e se ficar provado que agiu de má-fé, será
punido...
94
(RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 51-52).
O processo de criação do Banco Central e as medidas tomadas a seguir
descrevem uma saída institucional e principalmente uma conduta operacional
no encaminhamento de decisões (mesmo aquelas definidas em leis) que
demonstram a extrema engenhosidade da burocracia e dos decisores da nossa
política econômica. Mas a mesma astúcia demonstrada na inovação das
soluções não foi acompanhada de uma previsão sobre suas conseqüências a
médio prazo.
Um bom exemplo desta engenhosidade foi o chamado orçamento
monetário. Como já dissemos anteriormente, ele não era propriamente um
orçamento, mas sim uma previsão da variação anual dos saldos das contas de
recursos e aplicações das autoridades monetárias, compatível com uma
"desejada" expansão dos meios de pagamento, definida pelo Conselho
Monetário Nacional
95
. Mas a expressão ganhou uma materialidade tão grande,
que passou a ser utilizada pelo Governo, por seus técnicos e mesmo por vários
economistas, quando se referiam a "uma operação financiada por recursos
fornecidos pelo orçamento monetário", como se o orçamento monetário — que
é uma equação contábil — gerasse recursos. Na realidade, tirar recursos do
orçamento monetário significava dizer que os recursos não-monetários não
davam lastro suficiente para financiar todas as operações ativas, e que, portanto,
era necessário o apelo à emissão de títulos para financiara dívida ou à emissão
de moeda para sustentar uma nova operação.
Assim, a partir de 1964 e até 1985, o Orçamento Geral da União que
aparecia e era publicado demonstrando equilíbrio entre receita e despesa
deixava de incluir um grande número de despesas, quer de ordem fiscal, quer de
ordem financeira. A ausência de mecanismos que garantissem uma
contabilidade conjunta de todas as despesas, se por um lado garantia um grande
94
Diálogo resumido por mim.
95
O orçamento "monetário foi uma idealização de um jovem economista do Banco do Brasil,
Edésio Ferreira Fernandes, já falecido." (Entrevista n° 2)
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
112
poder ao Ministro da Fazenda e ao Conselho Monetário Nacional, por outro
mergulhava as contas públicas numa enorme confusão.
Para se ter uma idéia (a descrição detalhada deste processo será feita na
Parte III), apenas em 1983, para tentar consolidar minimamente estas contas,
criou-se o Comor – Comitê Interministerial de Acompanhamento da Execução
dos Orçamentos Públicos, presidido pelos Secretários Gerais do Planejamento e
da Fazenda, e que se reunia numa grande mesa, onde sentavam os
"representantes de cada uma das contas": "Cada uma destas contas —- estatais,
estados, municípios, previdência, etc. — tinha o seu funcionário competente,
que era quem tinha as informações financeiras. A consolidação financeira do
setor público no Brasil começou a ser feita nesta mesa, tanto que as maiores
mesas que existem nos Ministérios da Fazenda e do Planejamento até hoje são
as das Secretarias Gerais. Precisaram ser reformadas para caber todos os
representantes". (Entrevista n° 4)
A criação da Conta Movimento
96
e seu desempenho no tempo é um
outro exemplo típico de engenhosidade e principalmente de efeitos não
esperados da ação desta burocracia. E no momento que "a criatura se voltou
contra o criador", não bastava apenas criatividade, mas sim recursos políticos
para contrapor aos interesses que nasceram a partir de uma solução técnica
aparentemente "neutra". E é neste momento que as características facilitadoras,
bem como as limitações e as contradições da ação desta burocracia tomaram-se
claras. E mais: a narrativa que apresentaremos a seguir, apesar de referir-se à
trajetória de um conjunto específico de medidas, retrata o percurso de um
segmento burocrático com identidade, espaço de poder e lógica de ação
próprios.
Do ponto de vista operacional, os efeitos perversos da Conta Movimento
poderiam ter sido evitados a qualquer momento, se ela não tivesse se
transformado numa poderosa fonte de recursos com possibilidade de amplo uso
96
Tomaremos a Conta Movimento, não porque ela seja o único (e talvez nem mesmo o
principal) instrumento adotado no período pós- 1964, com conseqüências sobre o perfil
institucional das finanças públicas no Brasil, principalmente quando se pensa em adotar
políticas de ajuste. Ela está sendo tomada como exemplo, porque oferece uma oportunidade
para observar-se a cadeia de relações e de interesses que se formam dentro do aparelho de
Estado, e onde a burocracia encontra seu espaço de poder e constrói sua lógica de ação. Na
realidade, a Conta Movimento foi apenas mais um artifício encontrado para esconder o
endividamento do Tesouro que vinha, como vimos, desde os tempos coloniais. Na década
de 40, o nome que se dava a estas operações era "encampação de papel-moeda": "O
endividamento normalmente se iniciava com uma solicitação de recursos por parte do
Tesouro Nacional ao Banco do Brasil, onde supostamente teria saldo. Para cobrir a
diferença entre o total requerido e o crédito existente, o Banco recorria à Carteira de
Redesconto que, por sua vez, requisitava uma correspondente emissão à Caixa de
Amortização do Tesouro Nacional. A operação ... consistia num artifício contábil pelo qual
cancelava-se parte do débito do Tesouro junto ao Banco do Brasil, bem como parte
equivalente do débito do banco com a Carteira de Redesconto. Os desacertos da política
orçamentária do governo federal, ficavam, através das encampações, sem registro na
Carteira de Redesconto e no Banco do Brasil, embora evidentemente agravassem pressões
inflacionárias..." (BELOCH e ABREU 1984, p. 276).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
113
político e de ampliação de poder do Banco do Brasil. Bastava que fossem
impostos tetos (e que estes fossem cumpridos) ao Banco do Brasil para que este
não recorresse à Conta Movimento. Ou então, que a "quantidade adicional de
moeda fosse retirada através do acionamento dos mecanismos clássicos de
controle monetário" (OLIVEIRA 1985, p. 15).
Mas o que era a Conta Movimento? Em 1965, para disciplinar as
relações do Banco do Brasil e do Banco Central a partir da Lei 4.595, de 31 de
dezembro de 1964, foram elaborados, em comum acordo, vários documentos
que ficaram conhecidos como "Cartas Reversais" ou "Notas Reversais". Um
destes documentos, aprovado pelo conselho da Sumoc em 29/03/1965, abriu a
Conta Movimento do Banco Central no Banco do Brasil.
Esta conta tinha o objetivo de efetuar o simples registro dos pagamentos
e recebimentos realizados pelo Banco do Brasil por conta dos serviços que
trocasse com o recém-criado Banco Central. É que este, ao começar a
funcionar, não tinha "recursos próprios", nem patrimoniais, nem de pessoal e
nem de custeio. A Conta Movimento serviria como caixa para estes primeiros
momentos, até que o Banco Central tivesse fontes de receita próprias para fazer
frente às suas despesas administrativas. Seus saldos credores seriam recolhidos
diariamente pelo Banco do Brasil ao Banco Central (o que nunca aconteceu) e
seus saldos devedores seriam recompensados nas operações de redesconto e
sobre eles recairiam juros de 1 %. Acontece que os saldos foram desde 1965
sempre credores, pois esta conta acabou por transformar-se na fonte automática
de suprimentos que o Banco do Brasil passou a recorrer para obter os recursos
necessários à execução de operações de interesse da política econômica do
governo (aliás, de todos os Governos do regime autoritário) ou a interesses
definidos pelo próprio Banco do Brasil.
Mais do que a sistemática, mas principalmente o uso que se fez da
Conta Movimento, feria claramente a própria Lei 4.595, que no seu artigo 19,
parágrafo primeiro, atribuía ao Conselho Monetário Nacional (e não ao Banco
do Brasil) a tarefa de alocar qualquer tipo de recursos definidos pela política
econômica do Governo. Esta Conta, que foi crescendo ao longo do tempo, além
de tornar impossível para o Banco Central o cumprimento de sua tarefa de
controle de todas as contas vinculadas à política monetária do país (como seu
executor institucional), retirava o poder de autoridade monetária do Conselho
Monetário Nacional. Durante duas décadas (1965-1985), praticamente todo o
relacionamento financeiro do Banco Central e do Banco do Brasil era feito
através desta conta, sendo que na realidade o Banco do Brasil podia decidir o
que debitar na Conta Movimento, já que nunca houve qualquer norma que
limitasse seu uso.
Tudo indica que todos os ministros da Fazenda entre 1965 e 1985 -
Octávio Gouvêa de Bulhões, Delfim Netto, Marfo Henrique Simonsen, Carlos
Rischbieter e Emane Galvêas -, tinham conhecimento da anomalia institucional
que representava a Conta Movimento, mas pouco fizeram para eliminá-la ou ao
menos controlá-la: "... Com o passar do tempo, já fora do Governo, fui notando
que a Conta Movimento só crescia... Levei o assunto ao ministro Delfim
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
114
(durante o Governo Costa e Silva), e ele me disse: ‘Casemiro, puxa ... está
crescendo. Não tinha visto que havia crescido tanto! Foi bom você me avisar.
Vamos ficar de olho nesse negócio. Mas é muito complexo, você sabe ... E a
gente precisa também levar bem as relações com o Banco do Brasil. Isso é
muito delicado’. Sai Delfim e entra o Simonsen, e eu fui lá falar com ele:
‘Marfo, se o débito líquido do Banco do Brasil, em conta aberta, já é igual à
base monetária, isto significa que a base monetária está entrando em
circulação através do Banco do Brasil. Que negócio é este? Voltamos ao tempo
da Sumoc. Pior. O Banco do Brasil está absorvendo o Banco Central’. Mas o
ministro Simonsen disse que tinha comprado outras brigas e não ia comprar
mais essa. Então eu disse a ele que ia sair por aí alardeando. E fui. Falei com
a imprensa, mas ninguém entendeu nada. Fui ao Senado, e dei um depoimento
na Comissão que investigava o sistema bancário, que era presidida por
Tancredo Neves e da qual faziam parte o Saturnino Braga. Lá eu disse que não
estava propondo medida nenhuma, propunha apenas a full disclosure da
informação. Porque não é possível que o Senado não saiba, que os jornalistas
não saibam, que os economistas ‘livre atiradores’ não saibam. Para que
alguma medida seja tomada é preciso primeiro que as pessoas conheçam a
situação. Então eu estou comunicando aos senhores que o orçamento
monetário foi transformado num outro assalto público, onde são dados
subsídios brutais, via Banco do Brasil. Fechem este buraco! Senão você não
tem política econômica... (RIBEIRO, DEPOIMENTO, p. 89-90).
Porém, as denúncias do Dr. Casemiro apareceram com pequeno
destaque na imprensa. O jornal O Estado de S. Paulo publicou uma nota na sua
edição de 17 de setembro de 1975: "Economista mostra o poder do Banco do
Brasil — O Dr. Casemiro Ribeiro, em depoimento no Senado, afirmou que por
uma distorção da Lei 4.595, quem decide sobre o nível das emissões é o Banco
do Brasil, através da Conta Movimento que serve de caixa para o pagamento
das despesas não cobertas pelo orçamento da União".
Neste momento, quando a crise econômica de 1974 começou a ter
efeitos sobre o crescimento do processo inflacionário, algumas medidas foram
tentadas para limitar o uso da Conta Movimento, mas sem sucesso. Técnicos do
Departamento de Administração Financeira do Banco Central tiveram a
iniciativa de propor uma saída: “Fomos ao ministro e mostramos a situação e
ele disse que já estava informado e devíamos tomar alguma providência.
Procuramos os técnicos do Banco do Brasil, que demonstraram ter conhe-
cimento da situação, mas pouca disposição em propor alguma mudança. Eles
alegavam que o crescimento da Conta Movimento era causado pelos débitos do
Tesouro, o que era em parte verdade. Para resolver este problema do débito do
Tesouro sugerimos que se tirasse do lucro do Banco Central, que no momento
era grande. Alterando-se a Lei 4.595, poderíamos transferir um pedaço da
receita do Banco Central, principalmente do câmbio e zerar o déficit do
Tesouro, e daí para a frente controlar a Conta Movimento” (Entrevista n° 1).
Na mesma época, o presidente do Banco Central, Dr. Carlos Brandão,
mandou um oficio ao Banco do Brasil, dizendo que não se podia mais debitar a
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
115
Conta Movimento se não houvesse autorização expressa do Banco Central. Foi
feito um decreto-lei autorizando uma emissão especial de Letras do Tesouro e
destinando parte da receita do Banco Central a um fundo (que na realidade era a
reserva monetária), com o fim específico de liquidar os débitos. Estas medidas
tiveram pequeno efeito, pois, o que se observou, foi um crescimento da conta
no período 1975-1979
97
.
Durante o primeiro semestre de 1974, o ministro Simonsen praticou uma
política monetária rígida, depois de um rápido período em que tentou
administrar a economia com menor controle dos preços. Logo a inflação teve
um recrudescimento, e houve a mudança de atitude, da qual fizeram parte as
tentativas de atuar sobre a Conta Movimento descritas acima. Para um dos
representantes da equipe que assessorava o Ministro da Fazenda em 1974,
houve um episódio em setembro daquele ano que arquivou qualquer intenção
de alterar o mecanismo da utilização da Conta:Estávamos às vésperas das
eleições para renovação do Congresso e recebemos uma orientação do Palácio
do Planalto no sentido de que a restrição monetária fosse aliviada. Houve uma
reunião no Ministério da Fazenda, coordenada pelo Chefe da Assessoria
Econômica do Ministério, Dr. Augusto Jefferson, e foi perguntado ao
representante do Banco Central, Dr. Edésio Ferreira, em quanto tempo o
Banco poderia injetar cerca de dois milhões de dólares na economia
98
através
dos instrumentos clássicos, ou seja, redução da taxa de redesconto e o open
market. O representante do Banco Central disse que em dois ou três meses isto
seria viável. A mesma pergunta foi feita ao representante do Banco do Brasil,
Dr. Rubem Cidade, Chefe de Gabinete da Presidência, e ele respondeu: em 48
horas daremos conta dos créditos solicitados ... aí ficou evidenciado para quem
estava praticando a política monetária a dimensão e a potencialidade deste
instrumento chamado Conta Movimento, ou seja, que ele respondia tanto ativa
quanto passivamente pela gestão da política do governo. E os estudos que
começavam equacionar o reordenamento das finanças públicas foram para a
gaveta” (Entrevista n° 2).
Assim, a Conta Movimento, que deveria ter um caráter provisório e
deveria existir apenas para disciplinar uma fase de transição, transformou-se na
fonte de recursos para suprir a maioria dos empréstimos e financiamentos
definidos pelo Governo e que estivessem fora do orçamento fiscal durante todo
o regime militar, mas principalmente depois de 1974. Ela transformou-se em
97
Em 1975, o saldo da Conta Movimento era de 36,2 bilhões de cruzeiros; cresceu para 66,2
bilhões em 1976; para 125,2 bilhões em 1977; para 192,3 bilhões em 1978 e para 366
bilhões em 1979. Fonte: Boletins e Relatórios do Banco do Brasil, citados por OLIVEIRA
1985, p. 32. Com a crise econômica iniciada em 1974, tanto o Banco do Brasil quanto o
Banco Central atuaram voltados para ações anticíclicas, ampliando os créditos tanto ao
setor agrícola quanto ao setor industrial, isto sem falar que não houve redução nos gastos
públicos pois os "grandes projetos" da fase do "milagre" estavam em andamento. Assim,
esta política baseou-se, entre outras medidas, na ampliação dos saldos da Conta
Movimento. Além de seu uso para enfrentar as eleições legislativas de 1974, como
veremos a seguir.
98
O rentrevistado não tinha certeza quanto ao montante a ser injetado.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
116
um poderoso instrumento para injetar ou contrair a liquidez de moeda no
sistema financeiro nacional, através do controle das operações ativas do Banco
do Brasil.
Entre 1976 e o início dos anos 80, a questão do reordenamento das
finanças públicas, e mais especificamente a Conta Movimento, foi afastada de
qualquer agenda.
A partir dos anos 80, com o aumento da institucionalização, exigida para
negociar-se com o Fundo Monetário Internacional, e o conseqüente crescimento
do papel do Banco Central, a desorganização das finanças públicas começa a
aparecer com mais clareza nos próprios documentos que são elaborados. Um
deles, por exemplo, apresentado pelo Banco Central, em caráter reservado, em
agosto de 1983, fazia um balanço da situação da Conta Movimento desde a sua
criação até aquela data:
a) no primeiro semestre de 1965, ocorreram saldos devedores na Conta
Movimento e o Banco Central pagou os juros de 1% a.a, ao Banco do
Brasil;
b) ao encerrar-se o exercício de 1965, o saldo da Conta Movimento era
favorável ao Banco Central;
c) o Banco do Brasil não efetuou qualquer recolhimento para encerrar o
saldo da Conta Movimento;
d) a partir do final de 1965, o saldo credor da Conta Movimento cresceu
constantemente;
e) a partir do 2°semestre de 1965, o Banco do Brasil passou a creditar ao
Banco Central juros, à taxa de 1 % ao ano, sobre os saldos credores da
Conta Movimento;
f) a partir do primeiro semestre de 1979, o Banco do Brasil deixou de
abonar juros sobre os saldos credores da Conta Movimento.”
99
(Relatório Confidencial do Banco Central, agosto de 1983, p. 2)
A situação da Conta Movimento em agosto de 1983 era assim descrita
pelo mesmo relatório:
“Atualmente a Conta Movimento tem recebido lançamentos por:
a) emissões/recolhimento de papel-moeda;
99
O Banco do Brasil passou a não pagar os juros em 1979, por recomendação do Ministério
da Fazenda, alegando que a carta reversal que criou a Conta Movimento só previa o
pagamento de juros no caso dos saldos devedores e o Banco do Brasil desde sempre era
credor. Este fato, sozinho, mostra a total inversão dos propósitos daquela decisão da Sumoc
que criou a Conta Movimento em 1965. O próprio Departamento Jurídico do Banco
Central reconheceu como procedente a suspensão do pagamento dos juros, pois a seguir
literalmente os termos da carta reversal de 1965, somente os saldos devedores deveriam
pagar juros, já que "não previam a existência dos saldos credores", como é natural.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
117
b) cobertura de débitos do Tesouro Nacional junto ao Banco do Brasil,
mediante uso de recursos de Operações de Crédito da União (sempre
no final do exercício);
c) nivelamento diário da Conta de Reservas Bancárias do Banco do Brasil
(sempre é mantido saldo diário correspondente à exigibilidade do
Depósito Compulsório em espécie).”
(Relatório Confidencial do Banco Central, agosto de 1983, p. 3)
Em resumo, de conta provisória, a Conta Movimento havia se
transformado em um dos principais instrumentos das políticas governamentais
do período, passando a ser o seu reflexo. Estas políticas se baseavam
principalmente na captação de recursos com custos elevados e sua aplicação em
programas subsidiados. Desta maneira, a Conta passou a financiar, ou com
emissão de moeda ou com o acionamento da dívida pública, pesadas despesas
como, por exemplo, a compra do trigo e os estoques reguladores, dentre outros,
o que feria frontalmente o artigo 62 da Constituição Federal que definia: "O
orçamento anual (aprovado pelo Congresso) compreendia obrigatoriamente as
despesas e receitas relativas a todos os órgãos e fundos, tanto da
administração direta quanto da indireta”. E a Conta Movimento não chegava
até o Congresso e nem tinha qualquer outro tipo de divulgação ou controle:
Parece brincadeira, mas durante dezoito anos ninguém nunca levantou a
questão legal” (Entrevista n° 3)
Por isso que a proposta de congelamento da Conta Movimento que
vamos discutir na Parte III causou tanta polêmica e tanta resistência. Além da
questão legal, esta medida representava, para o Poder Executivo, abrir mão de
um instrumento que lhe dava grande flexibilidade de ação em termos
orçamentários. E para o Banco do Brasil e sua burocracia significava a perda de
poder, pois na prática a Conta Movimento garantia a esta instituição seu papel
de autoridade monetária.
Durante o Governo Figueiredo, por exemplo, o Banco do Brasil, através
do seu presidente, Oswaldo Collin, percebendo que fazia parte da pauta de
discussões das medidas que seriam propostas para aprofundar o projeto de
estabilização, reformulações no papel de autoridade monetária até então
desempenhado pelo Banco do Brasil, contra-atacou. Em um oficio enviado ao
ministro Emane Galvêas, em 19 de julho de 1983, ele apresentou suas
ponderações no intuito de contribuir para o processo de controle da inflação:
"Tais ponderações, conquanto proviessem de inspiração mais ampla, receberam
estímulos especiais a partir de quando — mui recentemente, por sinal —
tomamos conhecimento da pauta que orientará o trabalho da Comissão Especial
constituída por V. Excia. para tratar da revisão da política de crédito agcola no
País e que põe em relevo em seu ternário, para discussão e estudo, a posição e o
desempenho do Banco do Brasil como instrumento de ação do Governo".
Dentre as medidas propostas pelo presidente do Banco, estaria a definição clara
de seu papel de autoridade monetária, de forma que se evidenciem controlada e
separadamente: "As operações de conta e ordem do Tesouro Nacional e de
interesses do Banco Central ... através de recursos específicos assegurados pelo
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
118
Conselho Monetário Nacional". Sugeria que se mantivesse a Conta Movimento
num regime de contabilização especial, para "respaldar as operações de
fomento e/ou de interesse governamental praticadas pelo Banco do Brasil. O
saldo desta conta... seria movimentado pelas liquidações das operações por ela
lastreadas, à medida de suas individuais ocorrências". Além de manter a
situação especial que o Banco desfrutava, sugeria ainda que fossem tomadas
medidas para transformá-lo em um banco comercial: "Paralelamente, garantir-
se-ia ao Banco do Brasil a prática, de forma integral, de operações bancárias
que tivessem respaldo em recursos e captações próprios, ficando neste caso,
sujeito ao regime vigente para as demais instituições financeiras em atividades
no país" (Oficio do presidente do Banco do Brasil ao ministro Emane Galvêas,
em 19 de julho de 1983, p. 1-3).
Estava aberto o conflito. Primeiro entre o Banco do Brasil e parte da
burocracia da área econômica no que se refere às alterações no papel de
autoridade monetária que o Banco desempenhava. Segundo entre o Banco do
Brasil e as instituições financeiras privadas em torno da sua transformação em
um banco tipicamente comercial. E mais tarde, entre a burocracia e as
oposições, a partir do momento em que se aproximava sua hora de assumir o
Governo. Estava aberto o caminho para a observação da atuação de um grupo
de técnicos nas propostas de um novo desenho institucional para as finanças
públicas.
P
ARTE III
A
BUROCRACIA EM AÇÃO:
ESPAÇO DE PODER, OBJETIVOS E LÓGICA DE AÇÃO
120
C
APÍTULO I
A QUESTÃO DA REFORMA DO ESTADO
As propostas de ajuste para corrigir os desequilíbrios das economias
latino-americanas são bastante antigas. Desde a instituição do Fundo Monetário
Internacional em 1945, criado para atuar nas crises temporárias de balanço de
pagamento dos países a ele filiados, a linguagem do "ajuste" passou a ser
constante em qualquer negociação que envolvesse financiamentos
internacionais
100
.
Mas os efeitos do ajuste (ou mesmo sua necessidade) sempre dividiu os
formuladores de política econômica. Para alguns
101
, feito o ajuste e controlada a
inflação, passado o período de recessão, haveria condições para retomar o
crescimento, corrigir os desequilíbrios e implantar um novo perfil estrutural do
Estado. Uma outra visão deste processo, que considerava o ajuste a
conseqüência e não a origem do processo de mudanças, é a que entendia que
feito o ajuste nos moldes do Fundo Monetário Internacional, entrar-se-ia numa
rota explosiva da qual faria parte a ciranda inflacionária e não surgiria nenhum
mecanismo automático que garantisse o crescimento ou que promovesse as
reformas estruturais do Estado.
Após o golpe de 1964, a política econômica brasileira foi caracterizada
pela centralização da arrecadação, usando-se como instrumentos principalmente
a poupança corrente, a correção monetária e sobretudo o financiamento externo.
A primeira crise do petróleo, em meados da década de 70, começou a
alterar este quadro, e seus desdobramentos foram tanto econômicos
102
quanto
institucionais. A crise institucional que o país mergulhou (e que ainda não
100
Para o FMI, a partir da década de 1970, ajuste significa: equilíbrio fiscal, abertura
comercial, privatização, eliminação de subsídios e queda acentuada nas taxas de inflação.
101
0 Consenso de Washington, por exemplo.
102
Em nenhum momento estaremos avaliando os resultados da política econômica adotada
pelos governos no período, apesar de que, às vezes, para efeitos de compreensão do nosso
problema de pesquisa, tenhamos que entrar na discussão de alguma medidas,
principalmente quando elas produziram efeitos no desenho institucional do Estado. Esta
ressalva vale também para dizer que, ao elegermos um conjunto de medidas como aquelas
propostas pela Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas que analisaremos a
seguir, não pretendemos avaliar o peso que elas teriam numa proposta de política
econômica. Não estaremos, da mesma forma, avaliando as causas que influíram no
aparecimento dos problemas diagnosticados.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
121
terminou) e que passaremos a analisar a seguir em um dos seus aspectos, foi o
resultado de múltiplos fatores (não só econômicos), alguns deles muito antigos,
mas que vieram à tona no passado recente com uma clareza que talvez seja
única em nosso processo histórico.
Entretanto, nas discussões que acompanharam a crise econômica, a
questão da reforma do Estado como uma das pré-condições para sua superação,
ainda não estava colocada de maneira prioritária no Brasil até meados dos anos
80. Assim, por exemplo, os temas da privatização e da liberalização comercial
só estavam presentes nas análises (ou pressões) vindas do "Primeiro Mundo" e
em alguns trabalhos acadêmicos, sendo inclusive contestadas por alguns
economistas de oposição, como veremos adiante. A questão da reforma fiscal e
tributária também estava colocada apenas formalmente, muitas vezes como
último item de muitas propostas, apesar de que a consciência de que alguma
coisa precisava ser feita para equilibrar as contas públicas crescia na velocidade
do agravamento da crise.
O desenvolvimento desta consciência, que engatinhava aqui e que
aparece nitidamente nos depoimentos que analisaremos a seguir, fazia parte do
que Fiori chama de "evolução intelectual", resultante da reflexão que já estava
avançada em alguns grandes centros acadêmicos e redes internacionais e que
assumiram a forma de uma análise claramente “policy oriented”,
principalmente nos documentos do Banco Mundial. A partir da segunda metade
dos anos 80, estas análises deslocaram a ênfase da discussão para a necessidade
de que as políticas de estabilização fossem acompanhadas de reformas
estruturais voltadas para a desregulamentação dos mercados, privatização do
setor público, redução e reforma administrativa do Estado (FIORI 1993, p. 7).
Este percurso intelectual
103
acabou se consolidando no final da década de 80
com as discussões sobre o problema da governabilidade, em que o Estado
passou a aparecer não "como um ator homogêneo e racional ... mas passou-se a
encará-lo como parte da construção de um novo modelo de desenvolvimento"
(FIORI 1993, p. 10). Somente aí começou-se a falar na Reforma do Estado
como requisito básico para a superação da crise. Mas o que vamos perceber
neste trabalho é que esta consciência parece que não caminhou na mesma
velocidade em todos os segmentos que se dedicavam à questão da política
econômica associada a um novo perfil institucional do Estado. E o interessante,
e que pretendemos demonstrar, é que ela caminhou mais rapidamente entre os
burocratas pertencentes aos quadros "estáveis" da área econômica do que entre
alguns analistas econômicos.
Que crise era esta? Na situação brasileira, esta crise tinha múltiplas
facetas. Em primeiro lugar era uma crise econômica, que começou a se
desenhar na década de 70, após um período de crescimento acelerado. Na
década de 70 podemos observar dois períodos. O primeiro caracterizou-se pela
erosão tributária, pela queda da poupança corrente e conseqüentemente pela
diminuição da capacidade de investimento, e pelo esgotamento do
103
Tal percurso não será descrito em detalhes neste trabalho.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
122
financiamento internacional. O segundo período (no final da década)
caracterizou-se pelo esgotamento da poupança corrente e, portanto, da
capacidade de investimento. Este processo, alimentado pelos altos subsídios à
exportação e pelos gastos do Governo (responsável por um Estado que havia
crescido muito) acentuou o drama do déficit público. Drama para alguns,
panacéia para outros, a questão do déficit público como potencial inflacionário
sempre dividiu opiniões (e continua dividindo), como veremos adiante.
Com a primeira crise do petróleo, acabou o financiamento externo e
começou-se a emitir para pagar os juros com o conseqüente crescimento da
dívida pública e o endividamento das estatais. O Governo Geisel (1973-1979)
conseguiu ainda algum financiamento externo com o II PND, principalmente
para os setores petroquímicos e para o aço. Este período é assim descrito por
um dos membros da equipe econômica do então Ministério da Indústria e
Comércio: "Vivi entre 1977 e 1979 todo o processo de substituição de
importações de bens de capital e insumos básicos que foi o grande programa
do Geisel que estava no II PND. O programa era coordenado pelo Ministério
da Indústria e Comércio, tinha como grande financiador o BNDE e envolvia
também o Banco do Brasil e o Banco Central, que centralizavam o programa
do álcool. A área de fertilizantes, defensivos, siderurgia, minerais não ferrosos,
cobre e níquel estavam na Indústria e Comércio. Estava-se desenvolvendo um
programa de auto-suficiência em grau máximo e tudo isto sob o impacto da
crise do balanço de pagamentos gerada pelo preço do petróleo. Os técnicos
preparavam os relatórios para o presidente Geisel simulando os diversos
cenários que o programa poderia gerar. Estou convencido hoje que nas
circunstâncias outro presidente teria tomado a mesma decisão, dado o
ambiente que o Brasil vivia. Ainda não havia o diagnóstico da falência do
Estado como líder de um processo de desenvolvimento. As cabeças naquela
época, salvo um ou outro trabalho acadêmico, seja do Governo ou das elites,
achavam que o Estado continuava sendo aquele senhor onisciente e onipotente
a conduzir o país e a resolver qualquer problema. E nós estávamos com
problemas: a crise do petróleo bateu no Brasil com muita violência e
intensidade, pois importávamos 80% do petróleo que consumíamos. Por outro
lado, tinha-se uma conjugação superfavorável, pois tínhamos projetos e
financiamento. Bastava olhar para o balanço de pagamentos do lado das
importações e via-se um grande campo para substituir a importação de
fertilizantes, defensivos, etc., além de avaliar-se que era o momento ideal para
um novo salto na substituição de importações em setores tecnicamente mais
avançados e com maior dinamismo como petroquímico e bens de capital. A
idéia da auto-suficiência tomou conta do Governo naquela época e achávamos
que não só daríamos um salto definitivo como resolveríamos a crise do
petróleo. O sistema de financiamento destes projetos também era altamente
tentador, pois o sistema bancário estava reciclando os petrodólares e o Brasil
conseguia financiamentos rapidamente e a custos baixos (a taxa de juros
girava em torno de 5 a 6% ao ano e a inflação mundial era de 10%). Era o
melhor dos mundos. Que presidente nestas circunstâncias não faria a mesma
coisa que o Geisel fez? Além disso era um presidente que tinha entrado para
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
123
iniciar a transição, e como poderia começar a transição num país pobre, sem
seguro desemprego e pedindo sacrifícios? Não havia outra saída. A solução
encontrada pelo Governo Geisel foi a melhor. Hoje, com o beneficio do tempo,
dizemos que estávamos errados. Mas na época não era possível degradar o
ambiente social e agravar o problema da distribuição de renda com um forte
programa recessivo” (Entrevista n° 5).
O outro lado da crise consistia na perda de poder arbitrai do Estado
agravado durante o regime militar, e isto por duas razões. Em primeiro lugar,
pelo crescimento constante da influência do setor privado nas decisões públicas,
sobretudo nas áreas "feudalizadas" das empresas estatais onde se formavam os
"anéis burocráticos". Cada setor cuidava de seus interesses diretamente com o
setor mais próximo do seu na área privada. A burocracia participou como um
dos atores desta crise, principalmente no ponto de interseção dos interesses
privados com os interesses coletivos, o que será discutido em detalhes adiante.
Em segundo lugar, pelo isolamento do setor Governo, agravado com a
centralização do período autoritário que tornou praticamente impossível a
coordenação das ações por parte da administração direta: as empresas
simplesmente passaram a não "obedecer" as decisões ou recomendações vindas
dos ministros, resolvendo suas políticas de salários, investimentos,
empréstimos, etc. praticamente sozinhas ou no máximo (quando este se
mostrava muito interessado), com o Presidente da República: "Em um
determinado momento, percebemos que o sistema de custos das empresas
públicas era praticamente inexistente; não havia preocupação por parte dos
dirigentes das empresas com o seu custo, com exceção, talvez, da Vale do Rio
Doce e da holding Petrobrás. Fora estas, ninguém discutia o preço de nada -
do lápis ao avião. Além disso, a maioria delas tinha militares nos cargos de
direção ou pessoas ligadas a eles ou ainda do chamado "esquema Geisel ".
Eram consideradas empresas de Segurança Nacional e seus dirigentes se
negavam a prestar informações. A única linguagem que entendiam era a
ameaça de não reajuste de tarifas, caso os dados não chegassem dentro do
prazo previsto. Na realidade havia uma intenção deliberada de sonegar
informações, mas havia também uma enorme falha (ou até ausência) de um
sistema de informações” (Entrevista n° 6)
104
.
Com um Estado fraco e com dificuldades de operar, aumentava na
sociedade a sua imagem de "ineficiente".
104
Esta situação foi anotada em 1993 por Bresser Pereira, quando afirmou que um processo de
privatização do Estado começou a ocorrer quando: "... clientes do Estado (capitalistas,
sempre; trabalhadores, eventualmente), seus funcionários (os tecnoburocratas públicos) e
seus dirigentes (os políticos) ... desenvolvem interesses especiais em detrimento do
interesse coletivo. O resultado é a tendência à crise fiscal e a inefetividade das formas de
intervenção. Chega então o momento do mercado, da reforma do Estado, da privatização,
da liberalização comercial, da desregulação" (BRESSER PEREIRA 1993, p. 45). Para
Bresser Pereira, a crise do Estado tem um caráter cíclico, pois há certos momentos que ele
consegue com sucesso suprir as falhas do mercado, mas em seguida sua ação tende a sofrer
distorções e é quando o processo de privatização do estado começa a ocorrer (BRESSER
PEREIRA 1989, p. 115-130).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
124
A crise se centrava também num total desarranjo das contas públicas,
fruto de um grande número de manipulações contábeis que tinham como
resultado o descontrole sobre os gastos, com efeitos no crescimento da inflação.
Por mais extraordinário que pareça, a inflação passou, a partir de um
determinado momento, a financiar os próprios gastos públicos
105
, colocando o
Governo no papel de um dos seus "sócios" mais poderosos. Esta situação,
principalmente desde o Governo Geisel (1975), já aparecia em inúmeros
relatórios reservados, relatórios estes elaborados pela alta burocracia dos
Ministérios da Fazenda e Banco Central que demonstravam a gravidade do
quadro
106
.
Vejamos como caminhavam as coisas tanto no interior do aparelho de
Estado brasileiro e com a sua burocracia quanto nas discussões acadêmicas.
O Governo Figueiredo (1979-1985) começou ainda com algum
financiamento externo, mas o novo aumento do preço do petróleo derrubou
definitivamente a ilusão que tinha atravessado o Governo Geisel, de que o
Brasil enfrentaria a crise mundial através da intervenção estatal. Apareciam
também com clareza naquele momento as distorções internas do modelo
105
No presente trabalho vamos examinar algumas destas manipulações contábeis (Conta
Movimento, entre outras) que começaram a ser desmontadas a partir de meados dos anos
80. Mas outras passaram a ser atacadas apenas nos anos 90, como é o caso da chamada
"caixa preta" do Banco Central. Em 1982, quando o Governo estatizou a dívida externa, e
como nem sempre o Banco Central tinha dólares para entregar aos devedores para que eles
fizessem suas remessas ao exterior e nem os devedores tinham cruzeiros para comprar as
divisas, o Governo Figueiredo criou uma conta especial no Banco Central: "Na coluna
referente ao passivo, o Banco anotava, em cruzeiros, o valor que o Brasil passava a dever
no banco credor, que era corrigido pela taxa de câmbio e pela taxa de juros internacional.
Do lado do ativo, começaram a ser estocados os títulos do Tesouro que funcionavam como
lastro da promessa de pagamento futuro em dólares ... o que não passava de mero jogo
contábil administrado pelo Banco Central que atuava como intermediário, uma vez que
nenhuma das duas promissórias era exigida ... O pagamento dos custos dos depósitos era
feito com a remuneração obtida pela carteira de títulos públicos... e ... com a queda dos
fundos internacionais e a elevação dos juros internos, o Banco Central passou a ter grande
lucro com esta conta" (José Negreiros, O Estado de S. Paulo, 12/9/93). Este "lucro" passava
para o Tesouro e virava "receita", e com estes recursos pagavam-se várias contas, inclusive
salários. Com a separação das contas do Tesouro e do Banco Central esta conta e sua
manipulação contábil terminarão.
106
No período do regime militar, a denúncia desta situação só não foi feita, porque sua
divulgação ficava restrita aos burocratas e dirigentes dos gabinetes encarregados da
condução da política econômica (eram segredos burocráticos, como diria Weber). Por
exemplo, a famosa "caixa preta" do Banco Central que tanto deu o que falar durante o ano
de 1993, já estava assim descrita em um relatório do Banco Central dez anos antes: "... a
partir de 1976, a crise cambial do país e a crescente expansão das aplicações subsidiadas do
Governo fizeram com que o Banco Central, por decisões do Conselho Monetário Nacional,
fosse registrando na sua contabilidade novas despesas do Tesouro Nacional... qualquer
reforma proposta terá de considerar o esquema de acerto de contas entre o Banco Central e
o Tesouro Nacional, pois as pendências hoje existentes, além de ensejarem interpelações do
Tribunal de Contas da União, mantêm registros a apropriar na contabilidade do banco,
deformando os balanços do Banco Central, publicados inclusive em revistas de organismos
internacionais" (Relatório Confidencial do Banco Central, agosto de 1983, p. 1-2).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
125
responsável pelo chamado "milagre brasileiro". Em 1979, o ministro Mário
Henrique Simonsen, do Planejamento, responsável pelas diretrizes econômicas,
tentou demonstrar que não era mais possível manter a economia com o
financiamento externo, pois tinha-se chegado ao esgotamento das principais
fontes. No plano interno, dentre várias outras medidas, defendia com ênfase
políticas de ajuste com o afastamento do Estado dos interesses privados
(representado entre outras ações, pelo "socorro" que prestava a empresas em
dificuldades financeiras), além de medidas de reordenamento das finanças
públicas, com a retirada do Banco do Brasil do papel de autoridade monetária
que detinha, e com a eliminação do orçamento monetário.
O presidente do Banco Central, Carlos Brandão, enquanto era Ministro
da Fazenda Mário Henrique Simonsen, elaborou e encaminhou ao Presidente da
República uma proposta de reforma da Lei 4.595, de 1964, que visava
justamente uma alteração nas formas de controle da política monetária. Em
resumo, propunha que o Banco Central se transformasse no modelo clássico, ou
seja, ficasse encarregado do controle da moeda e do crédito através dos
depósitos obrigatórios calculados sobre os depósitos à vista, empréstimos de
liquidez, operações de mercado aberto e operações cambiais. Recomendava
também que ele passasse todas as funções de banco de fomento para o Banco
do Brasil, que perdesse as funções de fiscalização e aplicação de penalidades
para a Superintendência das Instituições Financeiras, que passasse a operar só
com bancos comerciais públicos e privados nas operações de encaixe
obrigatório dos depósitos à vista, nos empréstimos de liquidez e operações
cambiais, ficando proibido de fazer empréstimos de qualquer natureza a outras
instituições financeiras. Quanto ao Banco do Brasil, ele perderia os depósitos à
vista dos bancos comerciais, deixando de ser autoridade monetária, mas
permanecendo como principal instrumento da política creditícia do Governo
Federal. Em compensação, para contrabalançar as perdas, ele assumiria todas as
funções de banco de fomento, aumentaria seu papel de apoio ao comércio
internacional através de suas agências no exterior, seria incentivado para
transformar-se no principal banco de apoio à pequena e média empresa dentre
outras medidas. E, finalmente, como conseqüência direta destas alterações,
seria extinto o orçamento monetário e passaria a existir exclusivamente o
orçamento fiscal aprovado pelo Congresso Nacional, além de provocar a
unificação de todas as despesas do Tesouro Nacional (proposta do presidente do
Banco Central, Carlos Brandão, em 1979, e publicada pela Gazeta Mercantil em
2/12/84).
Esta posição do presidente do Banco Central não era consensual dentro
da própria diretoria de então, o que só vinha a antecipar que as idéias de Carlos
Brandão enfrentariam muitas resistências dentro do próprio Governo. Um dos
diretores do Banco Central, Dr. Celso da Costa Sabóia, por exemplo,
encaminhou por escrito seu voto contrário à transferência das tarefas de banco
de fomento do Banco Central para o Banco do Brasil. Em uma reunião em
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
126
agosto de 1979, questionava a viabilidade da transferência imediata
107
daquelas
funções, em face das implicações que teria sobre a receita e, conseqüentemente,
sobre os resultados do Banco Central. Justificava-se, que em face dos convênios
e acordos então vigentes, com as diversas fontes nacionais e internacionais,
supridoras dos fundos que davam suporte a estes programas, a transferência
seria inviável. Argumentava também que havia questões éticas, pois a
transferência para o Banco do Brasil das funções de fomento poderia trazer
problemas no seu relacionamento com os demais bancos comerciais, dado ao
fato do Banco do Brasil ser o principal agente financeiro do Governo
108
(voto
em separado do diretor do Banco Central, Celso da Costa Sabóia, agosto 1979).
O ministro Mário Henrique Simonsen e o presidente do Banco Central
acabaram não conseguindo viabilizar sua proposta de política econômica, e,
como parte dela, a alteração da Lei 4.595 foi arquivada. O ministro foi
substituído por Delfim Netto, que entrou prometendo uma série de mudanças e
justificando que precisava "arrumar um pouco a casa e reduzir o ritmo da
inflação para poder depois... voltar a se mobilizar para o crescimento da
economia" (O Globo, 1/10/1979). Uma de suas principais medidas foi uma
desvalorização cambial (30%), com pré-fixação (45%) dos índices anuais de
correção monetária. Com isso, conseguiu ativar os investimentos privados
(crescimento do PIB de 8% em 1980), mas provocou uma aceleração da
inflação (de 50% para 100% ao ano) que, juntamente com a recessão de 1983,
acabou desequilibrando ainda mais o orçamento público. A separação das
atribuições do Banco Central e do Banco do Brasil, na época uma medida que
já começava a ser reconhecida como das mais urgentes, não saiu do papel. A
prometida "arrumação" da casa nem começou.
Há várias indicações de que durante a gestão da dupla Delfim Galvêas, a
idéia de "ajuste" acompanhado de um redesenho institucional do Estado,
cresceu muito mais rapidamente no seio da burocracia, como veremos adiante,
do que nas decisões dos dirigentes da política econômica. Um bom exemplo,
ilustrado pelo depoimento a seguir, pode ser dado por algumas tentativas de
iniciar-se um programa de privatizações: “Lembro-me de uma reunião que foi
numa sexta-feira em 1982. Fui chamado e me pediram para citar quais
empresas poderiam ser vendidas, porque na segunda-feira o presidente iria
anunciar. Respondi que não poderia responder imediatamente, que precisaria
verificar, mas me disseram que não havia tempo. Tínhamos que resolver
naquela reunião. Então o critério adotado foi escolher aquelas empresas que já
haviam sido do setor privado e que o Estado havia incorporado. Como se pode
ver, não foi uma decisão política baseada num programa de governo que deu
107
Parece fazer parte da "cultura burocrática" brasileira e também dos nossos tomadores de
decisão, a argumentação de que concordam com o conteúdo da mudança proposta, mas que
ela não deve ser feita imediatamente. Nos relatos a seguir observaremos as inúmeras vezes
que esta argumentação entra no discurso daqueles que se dizem favoráveis "em tese" a uma
proposta, mas que consideram que sua implementação deva ser adiada.
108
O diretor só não explicava como o problema ético seria superado com a permanência da
função de fomento no Banco Central!
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
127
início ao processo, pois nunca passou pela cabeça do presidente Figueiredo ou
do ministro Delfim que a privatização era algo importante para sair da crise
que já estávamos mergulhados. O que parece que aconteceu naquele momento
foi que, no processo de negociação com o FMI, este gesto de boa vontade
apareceu como necessário” (Entrevista n° 6).
A crise também tornou visível o processo "congênito" de assalto
corporativista e patrimonial ao Estado (MELLO 1988, p. 16), caracterizado
pelos subsídios para resolver situações setoriais, concessão pelos bancos
estatais de empréstimos a juros especiais para "salvar" empresas e avais
concedidos para operações financeiras privadas. Longe de equacionar soluções,
novos empréstimos e novos avais foram concedidos.
O reordenamento das finanças públicas foi abandonado e só não morreu
nas discussões internas de burocratas do Ministério da Fazenda, da Secretaria
do Planejamento, do Banco Central e do Banco do Brasil. Aquelas propostas de
iniciar sua implantação que já estavam prontas, foram aposentadas pelo
presidente do Banco Central, Affonso Celso Pastore, por determinação dos
ministros Antonio Delfim Netto e Ernane Galvêas depois de apresentarem o
assunto ao Presidente da República. Os pareceres entregues ao presidente
Figueiredo pelos dois ministros diziam que não restava tempo suficiente de
Governo para se empreender uma reforma bancária em profundidade e que a
gestão administrativa que a iniciasse deveria também consolidá-la.
Provavelmente a avaliação política que o Governo Figueiredo fazia na época,
ou seja, que a sua sucessão seria feita de forma tranqüila com a vitória de um
candidato do PDS aceito pelo "sistema", interferiu neste adiamento de soluções
mais permanentes. Este novo Governo seria então o responsável pela
implantação não só da reforma bancária, como também da reforma fiscal. E
devem também ter levado em conta que era preferível, para atravessar estes
últimos anos de Governo em um momento de crise, contar com as
maleabilidades que o sistema vigente propiciava, do que institucionalizar regras
que tolhessem a liberdade de atuar das autoridades monetárias do Governo:
Estas questões de reordenamento das finanças públicas nunca preocuparam o
ministro Delfim, que acho até que chegava a ter uma posição contrária a elas,
pois a ‘desordem’ 'aumentava seu poder”, disse um dos entrevistados (pedindo
que desligássemos o gravador). Os fatos demonstraram que a avaliação estava
correta.
A análise da crise, aos olhos da academia e entre os economistas de
oposição ao regime militar, dava mais ênfase a suas características
macroeconômicas do que ao seu perfil institucional. Passado o impacto da
primeira crise do petróleo, durante a qual ainda não havia certeza quanto à
profundidade e duração dos problemas que a economia enfrentaria,
principalmente no que se refere às fontes de financiamento (tanto internamente
quanto junto aos órgãos financeiros internacionais), tanto os burocratas do
Governo quanto os economistas de oposição ao regime militar
109
passaram a
109
O documento apresentado pela Comissão para o Plano de Governo do Presidente Tancredo
Neves (Copag), em fevereiro de 1985, expõe o mesmo diagnóstico, como veremos a seguir.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
128
concordar que os problemas da economia brasileira não eram passageiros. Mas
suas análises não coincidiam nem quanto às suas causas e nem quanto aos
remédios para superar a difícil situação. Alguns trabalhos elaborados a partir de
1977 por vários economistas de oposição, entre os quais Luciano Coutinho e
Luiz Gonzaga Belluzzo, localizaram a persistência da crise brasileira nas causas
estruturais internas, na extrema dependência de nossa economia do equilíbrio
do capitalismo internacional (avaliação semelhante àquela feita pelos
economistas estruturalistas nas décadas de 60 e 70) e apontaram a inflação
como principal forma de manifestação desta mesma crise (COUTINHO e
BELLUZZO 1977 in COUTINHO e BELLUZZO 1982, p. 9-36).
Em estudo elaborado em 1981, José Serra, outro economista de
oposição, assim resumia a situação da economia brasileira: "Existe um forte
desequilíbrio estrutural com relação ao setor externo, caracterizado por
compromissos financeiros de grande magnitude que, por um lado, retiram graus
de autonomia da política econômica doméstica e, por outro, freiam o
crescimento da capacidade de importar....O quadro adverso anterior é tão mais
grave na medida em que a espiral inflacionária é acelerada e seu retrocesso é
extremamente custoso em termos de produção e emprego, no contexto de uma
terapia ortodoxa. (Em terceiro lugar), o potencial de expansão da economia,
medido pela capacidade produtiva disponível e pelas oportunidades de
investimento existentes é amplamente satisfatório: ... (por exemplo) no caso da
indústria manufatureira ... a relação capital-produto agregada era, em 1980,
cerca de 42% mais elevada que em 1973, circunstância altamente relevante para
o futuro próximo, com a maturação dos projetos de bens de produção iniciados
há alguns anos. No setor de infra-estrutura energética, cabe recordar que a
maior parte dos grandes projetos hidroelétricas entrará em operação no futuro
imediato. ... Da mesma forma, no que se refere aos recursos naturais, o país
conta com uma dotação capaz de permitir a superação de três dos principais
estrangulamentos no caminho da economia: a questão energética, o problema
agrícola ... e a ... oferta de minerais metálicos não-ferrosos" SERRA 1981 in
BELLUZZO E COUTINHO 1982, p. 118).
Segundo o mesmo analista, o caminho para a superação da crise poderia
não ser penoso, desde que se adotasse "uma alternativa de política econômica
heterodoxa, capaz de compatibilizar uma retomada do crescimento sustentado
... com uma atenuação das desigualdades sociais" (SERRA 1981 in
BELLUZZO e COUTINHO 1982, p. 118-119). Para tanto, indicava como
principais pontos na formulação de uma política econômica: uma política
cambial que estabelecesse "diques" de proteção aos efeitos de perturbação da
economia internacional, a definição de frentes de expansão que programassem
adequadamente o investimento público e desse um horizonte mínimo ao
investimento privado, facilitando a negociação financeira internacional, uma
política de "reservas de desenvolvimento tecnológico ... mais especificamente
no setor de bens de capital que (possibilitasse) um melhor aproveitamento das
economias externas derivadas deste processo e a conquista de posições mais
sólidas no cenário do comércio mundial" e finalmente a realização de reformas
nos sistemas tributário e financeiro, para sustentar tanto os investimentos
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
129
quanto para conter a propagação inflacionária (SERRA 1981 in BELLUZZO e
COUTINHO 1982, p. 119-120).
As dificuldades de ordem institucional ainda não haviam aparecido com
destaque. Em 1983, começou a amadurecer entre os economistas da
Universidade Católica do Rio de Janeiro a idéia de que o elenco de opções até
então conhecido para superar a crise econômica e principalmente a inflação
brasileira, não era capaz (e nem havia sido no passado) de apresentar resultados.
Em outras palavras, nem a recessão, nem o controle do déficit, nem a contenção
da expansão monetária e nem o seu oposto, ou seja, uma política
desenvolvimentista com aumento dos investimentos públicos, tinham sido, no
caso brasileiro, capazes de deter uma inflação que seguia seu curso, com altos e
baixos, mas sempre presente. Este diagnóstico foi consolidado em 1984 por três
economistas — Pérsio Arida, André Lara Resende e Francisco Lafaiete Lopes
— e serviu de base para a implantação em 1986 do Plano Cruzado. Em seus
trabalhos, chamavam a atenção para o fato de que era necessário buscar-se
outras alternativas "heterodoxas", conforme já havia alertado o economista José
Serra em 1981. Algumas das idéias apresentadas pelos economistas da PUC do
Rio de Janeiro — o fim da correção monetária com congelamento de preços
110
e a criação de uma nova moeda para eliminar o fator "inercial" da inflação
111
além de medidas drásticas de contenção do déficit público que apontavam para
um redesenho institucional das finanças públicas — receberam explicitamente a
aprovação do ex-ministro Mário Henrique Simonsen, considerado nos meios da
oposição como um conservador e colaborador da ditadura militar. Este apoio
serviu de munição tanto para os membros da equipe do ministro Delfim Netto,
quanto para os economistas ligados aos partidos de oposição, que à época
passaram a atacar a proposta como sendo "monetarista", recessiva e que serviria
a uma política de "arrocho salarial".
Dos economistas de oposição, foi o professor José Carlos Braga da
Unicamp que analisou mais especificamente o perfil institucional da crise no
que se refere às questões das finanças públicas e aos problemas orçamentários.
Em 1981, criticou a posição oficial do Governo, expressa pelo professor Carlos
Langoni, presidente do Banco Central, considerada por ele como "ortodoxa".
Segundo Langoni, o déficit público era a causa principal da inflação e Braga
afirmava não ter o gasto público necessariamente caráter inflacionário, na
110
"Uma terapia que atuasse não sobre as contas do governo e apolítica monetária, mas sobre
o próprio processo de formação de preços, diretamente sobre as práticas de correção e
reajustes periódicos. Numa palavra, atacar de frente a própria indexação." Francisco Lopes
in SARDENBERG 1987, p. 36.
111
“...a essência dos processos de inflação está na perda de credibilidade da moeda" e (a nossa
inflação) "é substancialmente inercial." Mesmo que não estejam ocorrendo fatores
primários de inflação, isto é, mesmo com o déficit público e a política monetária sob
controle, mesmo com inexistência de choques como maxidesvalorização do cruzeiro,
eliminação brusca de subsídios de preços ou alta de preços agrícolas, mesmo sem pressão
exagerada de demanda e sem crise externa, ainda assim há inflação no Brasil ..."os preços
sobem hoje porque subiram ontem, de acordo com o mecanismo perverso da catraca da
economia indexada" (RESENDE, André Lara in SARDENBERG 1987, p. 37-38).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
130
medida em que este gasto fosse capaz de gerar "demanda efetiva (gasto em
consumo e investimento) e (contribuísse) para a expansão da massa de salários
e lucros e, portanto, para a ampliação da renda e da riqueza material da
sociedade, bem como das receitas públicas" (BRAGA 1981 in BELLUZZO e
COUTINHO 1982, p. 196-197).
A questão do déficit público como uma das manifestações da crise do
Estado, apesar de preocupar os economistas de oposição e os formuladores da
proposta "heterodoxa", esbarrava em algumas barreiras de ordem conceitual,
ideológica e de desconhecimento dos reais mecanismos de funcionamento dos
gastos públicos. Conceitualmente, redução dos gastos públicos poderia
significar redução dos investimentos e recessão, ideologicamente poderia
significar uma postura de redução da presença do estado na economia. Mas
havia também o desconhecimento do dia-a-dia, do funcionamento dos
mecanismos institucionais de que o Governo se utilizava, desconhecimento este
provocado pelo afastamento destes economistas da atuação concreta durante
todo o regime militar.
Em seminário realizado em janeiro 3e 1985, em Cambridge, USA, o
professor de Harvard, Lary Summers, ao comentar a proposta apresentada pelo
economista Pérsio Arida, disse: "Isto está ótimo, mas vai fracassar", pois
achava que a proposta não propunha medidas concretas para atacar uma das
principais causas da inflação brasileira, ou seja, o fato do Governo gastar muito
além das suas possibilidades (SARDENBERG 1987, p. 65). O comentário do
professor Summers não estava sendo justo, pois formalmente a questão do
déficit aparecia na proposta e em todas as análises da situação brasileira.
Entretanto, ele estava sendo perspicaz, pois levantava uma questão política e
institucional como um dos principais entraves à implantação de qualquer
programa de ajuste, o que, pelos relatos que analisaremos a seguir, parecia não
preocupar muito os economistas de oposição.
Distante da discussão acadêmica e das propostas alternativas de política
econômica, após a saída do ministro Mário Henrique Simonsen, como o
Governo Figueiredo passou a lidar com a situação? Ao assumir, os ministros
Delfim Netto e Emane Galvêas sabiam que não havia mais condições de se
fazer nenhum milagre. A situação se agravava ainda mais, pois os projetos em
andamento eram indivisíveis: Itaipu estava no meio, a Usiminas estava no seu
quarto estágio e assim por diante. Desta maneira o Brasil, que havia adiado o
seu ajuste, teria que iniciá-lo. A inflação estava disparando e começou-se a falar
em controle do déficit, em controle de investimento das empresas estatais, etc.
Mas a profundidade das medidas tomadas pelo Governo até meados de 1984
não corresponderam ao seu grau de consciência da gravidade da crise. Isto
porque o ministro Delfim Netto, que através da Secretaria do Planejamento da
Presidência da República comandava a estratégia geral da política econômica,
pretendia adiar as medidas mais drásticas para que o próximo governo as
encaminhasse. O presidente Figueiredo não estava também interessado em
alterações substantivas.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
131
O cenário político, entretanto, estava se modificando com mais rapidez
do que os estrategistas da área econômica do Governo imaginavam (ou
gostariam). O crescimento das pressões pela democratização, emblematizadas
pela campanha das Diretas-Já e as dificuldades do PDS em encontrar um
candidato que unisse suas várias tendências, abriu espaço para novas ações
institucionais.
Mas estas propostas não vieram das oposições que, afastadas do
Governo há quase vinte anos, não possuíam mais uma avaliação adequada do
que era o aparelho de estado: “O conhecimento que as oposições tinham do
aparelho do Estado era vago neste momento e se prendia mais aos seus
aspectos estruturais. Na época, a oposição tinha como argumento apenas as
críticas à política monetarista do Delfim, à recessão e à concentração de
renda. Dos elementos da oposição concentrados no PMDB, o que tinha mais
informações era o Carlos Lessa. E esta desinformação se reflete no documento
entregue ao presidente eleito Tancredo Neves, onde se propunham as medidas
reformistas (Entrevista n° 7).
O encaminhamento de propostas e algumas das ações institucionais
vieram de dentro do próprio aparelho de Estado, mais especificamente da alta
burocracia da área econômica. A maturação das medidas que deviam ser
implementadas foi um trabalho da máquina burocrática, cujas propostas
encontraram vontade política para começarem a ser implantadas no Governo da
Nova República com o ministro Dilson Funaro.
Este processo de maturação dentro da "máquina" caminhava através de
três tipos de pressões diferentes. A primeira tinha origem nas questões macro
econômicas: “O desarranjo fiscal e financeiro do Estado se mostrou
incompatível com o equilíbrio econômico. Uma vez que não se crescia mais
tanto, pois o crescimento vai resolvendo muitas destas questões, a crise passa a
mostrar a impossibilidade de viver-se com a desordem financeira do Estado do
lado monetário, do lado fiscal, do lado do crédito, do lado externo, etc.
(Entrevista n° 4).
A segunda tinha origem na própria lógica de ação da burocracia, para
quem esta desordem foi ficando cada vez mais clara e fazendo crescer com isto
a consciência de que seu poder altamente discricionário afetava a eficiência da
sua ação, além de torná-la vulnerável em situações de alto risco: “Ao assumir o
Ministério, conversando com um dos membros da equipe que faziam parte da
`máquina', perguntei-lhe qual seria, na sua opinião, a medida mais urgente a
ser tomada para que eu tivesse o comando das ações. E ele me respondeu, para
grande surpresa minha: mecanismos que façam o senhor perder poder,, pois só
assim terá condições de administrar a economia” (Entrevista n° 8). Outro
entrevistado confirma esta visão: “O propósito da alta burocracia da área
econômica, principalmente aquela ligada ao processo orçamentário e à
consolidação das contas públicas, pelo menos com quem convivi ... era de
perder poder. Criar regras para impedir a desordem institucional que
havíamos atingido era prioridade para esta gente. Queriam ter instrumentos
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
132
que os impedisse de agir sobre pressão. Que pudessem dizer não com apoio
institucional” (Entrevista n° 4).
Em terceiro lugar, havia a pressão de ordem política, pois com a
abertura democrática, o Congresso iria retomar seu papel e participar da
definição de que tipo de Estado a sociedade brasileira queria.
Para enfrentar esta nova situação, o Poder Executivo precisava preparar-
se, pensavam os burocratas.
133
C
APÍTULO II
A
COMISSÃO PARA O REORDENAMENTO
DAS FINANÇAS PÚBLICAS: SEU PERFIL
Mesmo depois que o Governo Figueiredo decidiu adiar a discussão das
propostas de reordenamento das finanças públicas, alguns burocratas do
Ministério da Fazenda, da Secretaria do Planejamento da Presidência da
República, do Banco Central e do Banco do Brasil passaram a se reunir
informalmente e retomaram as reflexões iniciadas na década de 70, sobre o
sistema que comandava as finanças públicas no Brasil. Este processo deu início
a um movimento que corresponde exemplarmente ao que Martins destaca ser o
papel criativo da burocracia, ou seja, "ser capaz de pensar os problemas ... (se
antecipando) aos próprios órgãos de representação de interesses, na proposição
de políticas..." (MARTINS 1985, p. 95).
Os acontecimentos que se seguiram parecem mais a luta de um grupo
com uma plataforma política definida, do que a de um segmento da burocracia
na tentativa de implementar sua proposta. A situação faz jus às conclusões de
Martins de que "há uma dinâmica inerente ao que chamamos de entidades
governamentais autônomas, qualquer que seja o regime político prevalecente,
para se destacarem do corpo da burocracia governamental strictu sensu e para
ganharem uma independência relativa que reforça a tendência para se
constituírem em subpólos de poder" (MARTINS 1985, p. 94). Só que neste
caso não havia nenhuma entidade governamental reunindo estes burocratas,
mas sim um outro tipo de solidariedade.
O grupo informal que passou a se reunir era composto por técnicos de
duas gerações. Os mais antigos tiveram o seguinte "itinerário de carreira": entre
os 20 e os 25 anos (entre 1963 e 1970), entraram por concurso para o Banco do
Brasil (a maioria) ou para a Receita Federal, logo após a conclusão do curso
colegial
112
Os primeiros funcionários do Banco Central também vieram do
Banco do Brasil, que forneceu durante alguns anos os quadros para a montagem
da nova instituição. Esta geração de técnicos começou a se aposentar a partir de
112
Antiga denominação do Segundo Grau.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
134
1990. A outra geração iniciou sua carreira pública através de concursos do
Banco Central após o golpe de 1964
113
.
Principalmente para os que ingressaram no Banco do Brasil, esta
instituição funcionou para eles como escola de formação, da mesma maneira
que a universidade funcionou para aqueles burocratas descritos por Martins e
por Schneider e que pertenciam às empresas estatais como a Vale do Rio Doce
e Petrobrás (MARTINS 1976), Siderbrás, Açominas, Carajás, etc.
(SCHNEIDER 1991). O Banco do Brasil (e depois o Banco Central) fez mais
do que dar ensinamentos técnicos, princípios de disciplina, hierarquia, respeito
a normas e ética profissional. O Banco do Brasil lhes forneceu também as bases
ideológicas para sua concepção do que fosse o "interesse público". Esta
"escola" que foi para muitas gerações o Banco do Brasil, ensinou-lhes a resistir
que se desse empréstimos a pessoas que não cumpriam os requisitos bancários
mínimos: "O político que queria fazer alguma coisa no Banco do Brasil tinha
que fazer direto no Gabinete, porque se viesse uma informação de baixo, e o
cliente não merecesse, vinha um parecer arrasador " (RIBEIRO,
DEPOIMENTO, p. 4). E ensinou-lhes a defender o Banco do Brasil acima de
qualquer coisa, inclusive acima do próprio "interesse público", como o tempo
acabou demonstrando: "em primeiro lugar o Banco do Brasil, em segundo lugar
o Banco do Brasil e em terceiro lugar o Banco do Brasil" era o slogan
empregado pela "casa" para lembrar a alguns funcionários considerados
"ovelhas negras", como Casemiro Ribeiro, que propunham a criação de um
banco central.
A carreira numa instituição pública serviu de praticamente possibilidade
única de ascensão profissional e social, além de segurança econômica para
muitos. Oriundos em sua maioria de Estados do Norte e Nordeste e alguns do
Rio de Janeiro
114
, filhos de famílias de nível sócio-econômico médio e alguns
de famílias de agricultores, cresceram numa situação onde a rigidez da estrutura
de classes não oferecia muitas oportunidades, e assim foram encontrando, no
concurso de acesso a uma instituição pública, a chance de uma carreira estável,
de grande prestígio na comunidade (principalmente no caso do Banco do
Brasil) e com um salário compensador
115
.
113
Os mais jovens da Comissão ingressaram no Banco do Brasil, Banco Central ou Receita
Federal entre 1967 e 1973 e em 1993 permaneciam na ativa.
114
Esta sub-representação de São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul nos
quadros do funcionalismo público federal, principalmente daqueles que fazem carreira no
serviço público, foi constante. Se observarmos o crescimento do funcionalismo público
federal por região, verificaremos que quando o país começa a se industrializar, as regiões
Sul e Sudeste têm uma queda relativa no número de funcionários: "Fazendo igual a 1 a
relação entre o crescimento da burocracia e o da população entre 1940 e 1950, em 40 a
região sul teria um índice 2,25 em relação ao Nordeste. Em 1950 este índice cai para 1,66.
0 mesmo ocorre com o crescimento da burocracia em relação à população ativa: se a
relação para o Nordeste for igual a 1, ela é de 2,4 em 40 e 1,7 em 50 na região Sul".
(CUNHA 1963, p. 133)
115
A mesma situação foi identificada por MARTINS 1985 em seu estudo sobre o BNDE.
Atualmente, no que diz respeito ao Banco do Brasil, apesar de, em termos relativos, ter
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
135
Os que fizeram sua carreira no Banco do Brasil, depois de ficarem
algum tempo em suas regiões de origem, muitos deles cuidando de assuntos
relacionados com o crédito rural, o Banco ofereceu-lhes a oportunidade de
transferirem-se inicialmente para o Rio de Janeiro e depois para Brasília.
Apenas depois de estarem trabalhando em Brasília a maioria deles cursou uma
universidade, nos cursos de economia, administração, ciências contábeis e
direito.
Na transferência para Brasília, muitos optaram por integrar os quadros
do recém-criado Banco Central, que na sua fundação contou apenas com
funcionários do Banco do Brasil. Aliás, a criação do Banco Central foi
responsável por uma nova leva de profissionais que praticamente alimentou,
durante toda a década de 70, 80 e 90, a administração federal da área econômica
com quadros estáveis e bem remunerados.
Este percurso acabou interferindo profundamente na sua formação como
"funcionários públicos". Sua prática profissional desenvolveu-se com um
grande isolamento dos centros de riqueza do país (principalmente São Paulo
que não tinha nenhum representante no grupo que foi entrevistado) e, portanto,
passaram ao largo dos interesses do "grande capital". Brasília também serviu
para aprofundar este isolamento, pois nem na universidade tiveram contato com
outros segmentos muito diferentes do seu.
Este fato talvez ajude a explicar porque 100% dos entrevistados tenham
se identificado como "funcionário público ou servidor público", ao pedirmos
que se autodefinissem. Resultado totalmente diferente do encontrado por
Luciano Martins em sua pesquisa feita em 1976 quando quase 80% se
identificaram como "executivos" e apenas 20% como "alto funcionário público"
(e isto no setor Governo!). E também ajuda a explicar sua postura de defensores
do "interesse público", como veremos nas entrevistas a seguir.
Na realidade, Brasília mereceria um estudo à parte, pois tem um papel
importante pela grande atração que exerce sobre este segmento da burocracia. A
maioria dos entrevistados afirmou ter uma ligação muito grande com a cidade,
apreciando bastante seu ritmo calmo de vida, a facilidade de fazer amigos e
havido um achatamento salarial nos últimos tempos, seus funcionários ganham ainda hoje,
em média, duas a três vezes mais que seus pares dos bancos privados. Além disso, têm as
seguintes vantagens: se aposentam com 90% do salário da ativa, têm estabilidade, têm uma
gratificação de 25%, anuênios de 1%, licença-prêmio de noventa dias a cada cinco anos e
plano de carreira que lhes garante uma promoção a cada três anos de serviço. Tudo isso
sem contar as comissões que atingem 30% dos funcionários. Eles têm assistência médica
garantida pela Caixa de Assistência e sua segurança futura é protegida por uma entidade de
previdência dos funcionários — a Previ — onde para cada cruzeiro que o funcionário
coloca, o Banco coloca dois. Quanto aos funcionários da Receita Federal, apesar de não
acompanharem os níveis salariais nem a "cultura" de prestígio daqueles do Banco do
Brasil, são dos poucos burocratas da administração direta que possuem uma carreira cujos
salários na maior parte do tempo se manteve em níveis superiores aos dos demais setores,
além de possuir estabilidade de emprego e aposentadoria integral. Por esta avaliação
podemos perceber que, em termos relativos e considerando-se sua situação funcional,
tratava-se de uma elite de funcionários públicos.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
136
manter contatos constantes com estes, de criar os filhos, de morar em casas
confortáveis. Um deles afirmou, inclusive, que a principal razão por ter deixado
um trabalho na iniciativa privada em São Paulo, onde ganhava muito mais, foi a
falta que lhe fez Brasília: “Não posso nem dizer que voltei por causa dos meus
filhos, pois um deles ficou em São Paulo e o outro já me disse que vai prestar
vestibular e morar lá” (Entrevista n° 9).
Muitos deles, algum tempo depois que chegaram à Brasília, passaram a
desempenhar funções administrativas e de assessoramento a conselhos e a
ministros, com rotatividade entre os órgãos da área econômica, ocupando
cargos mais importantes ou menos importantes ao longo dos anos 70 e 80
116
.
Reunidos em Brasília, a cidade acabou criando condições propícias à
aproximação, pois tinham mais ou menos a mesma idade, vieram recém-
casados com filhos pequenos, ou se casaram em Brasília, enfrentando um
processo de socialização que criava naturalmente solidariedades.
Entretanto, a origem comum como funcionários do Banco do Brasil, do
Banco Central e da Receita Federal e a cidade de Brasília não seriam condições
suficientes para alimentar um perfil unificador de mentalidades. Não podemos
deixar de anotar uma outra circunstância, talvez a mais importante, ou seja, que
todos chegaram aos órgãos federais em Brasília após 1964, num momento em
que a "despolitização" da sociedade levava a uma valorização de seu
aperfeiçoamento técnico e a uma desvalorização das questões que envolvessem
qualquer tipo de conflito de interesses. Naturalmente estes conflitos
continuavam existindo, mas esta geração de burocratas foi, no seu início de
carreira, fortemente desestimulada a encará-los.
Outra característica deste período, e que vai ter papel importante na
formação destes burocratas, foi que diferentemente da geração anterior a 1964,
como vimos na Parte II, havia uma clara separação entre o pensamento da
academia e as discussões que se desenvolviam no interior dos órgãos do
Governo. O ambiente de debates e reflexão que existia na década de 40 e
principalmente nos anos 50 e começo dos anos 60, que auxiliaram na formação
de duas gerações da elite burocrática brasileira, desapareceu a partir de 1964. A
nova burocracia foi preparada para “obedecer a quem está mandando
(Entrevista n° 11), para elaborar projetos, para guardar a memória da
administração e principalmente preparar normas institucionais, muitas delas
nascidas do debate anterior, do qual não participaram e do qual muitos não
tinham nem conhecimento. O único órgão que criou um ambiente de reflexão a
116
Entre os cargos que nossos entrevistados ocuparam estavam (incluindo apenas cargos de
chefia e assessoramento superior): Assessor do Conselho de Desenvolvimento Econômico,
Membro da Comissão de Coordenação Financeira, Coordenador do Conselho Diretor do
PIS/Pasep, Chefe da Consultoria Técnica da Presidência do Banco do Brasil, Chefe da
Assessoria de Assuntos Econômicos do Ministério da Indústria e Comércio, Chefe da
Assessoria de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda, Secretário de
Administração Geral da Seplan, Secretário de Coordenação Econômico e Social da Seplan,
Secretário Geral do Ministério da Fazenda, Secretário Executivo do Ministério da Infra-
Estrutura, Ministro da Fazenda, Ministro do Planejamento, Presidente do Banco Central.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
137
partir de 1964 foi o Ipea — Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada — ligado
à Secretaria de Planejamento da Presidência da República onde localizava-se a
"parte pensante da burocracia", segundo um jargão consagrado, mas que,
segundo os relatos que analisaremos a seguir, comunicava-se pouco com os
demais órgãos onde estavam concentrados os operadores da política
econômica
117
. Unidos na carreira, na cidade, na despolitização, estes burocratas
criaram a sua solidariedade.
Mas tanto a despolitização das relações quanto a ausência de debate e de
reflexão começaram a se alterar em meados dos anos 70, quando esta
burocracia começou a ser colocada diante de situações em que o jogo de
interesses privados e políticos começaram a aparecer à luz do dia (ainda uma
mela-luz}. Também, na mesma época, revigorou-se o velho clientelismo nas
relações classe política-governo após as eleições legislativas de 1974
118
. E
servindo como fator constitutivo do novo contexto, a crise econômica trazia
também o debate e a reflexão sobre os caminhos para superá-la. Todo este
conjunto de fatores começava a criar condições para que estes técnicos
percebessem a origem e o objetivo das pressões, bem como possíveis soluções
para corrigir algumas das distorções.
Uma conseqüência importante do novo quadro conjuntural é que ele
obrigava que um grande número destes burocratas, começasse a criar uma
lealdade de grupo, tanto para proteger-se quanto para manter seu espaço de
poder e influência. Paradoxalmente, o fato de não pertencerem a uma agência
específica acabava criando interesses comuns, mas com características
diferentes tanto do "espírito empresarial", apontado anteriormente, quanto dos
interesses corporativos presentes em suas agências de origem (Banco do Brasil
e Banco Central). Este "afastamento" provocou, em alguns momentos, reações
violentas por parte dos membros das duas corporações, sendo que alguns deles
passaram a ser considerados persona non grata.
Pode-se dizer que este processo de tomada de consciência por parte
desta burocracia ligada à execução da política econômica teve dois momentos,
como veremos na análise das entrevistas. Um primeiro, quando passaram a
buscar soluções rápidas para "apagar o incêndio"'
119
e evitavam falar em
117
Diz um dos entrevistados: "Lembro-me de uma vez, em 1978 ou 1979, que chegou às
nossas mãos um estudo do Ipea mostrando que daí a 6 ou 7 anos o Sistema da Previdência
ia quebrar, e nossa reação era pensar: deixa pra lá, nós não estaremos mais aqui... mas no
fundo esta situação começava a incomodar ". (Entrevista n° 5)
118
A vitória do MDB, partido de oposição ao Governo Militar que elegeu 65% dos Senadores
(a renovação era de 1/3) e quase dois terços da Câmara Federal, obrigou uma mudança de
prática na negociação política, não porque o Governo precisasse do Congresso para
encaminhar seus projetos, pois podia usar com liberdade o decreto-lei, mas porque
desenhava-se no horizonte uma perda de poder caso não se alterassem as regras do jogo
político. Estas mudanças acabaram "politizando" a administração.
119
Perguntas que os "bombeiros" tinham que responder: como terminar o estágio quatro da
Usiminas? Como viabilizar a Rede Ferroviária Federal que está prestes a quebrar? Como
evitar que a indústria açucareira como um todo entre em colapso? Como financiar a nova
safra agrícola? (Entrevista n° 5).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
138
soluções de longo prazo e um segundo, quando perceberam que a crise era mais
profunda e tiveram que buscar soluções nas propostas de um novo desenho
institucional para conduzir um processo de ajuste econômico.
Realmente eles mudaram muito durante a década de 80. Por exemplo,
em um documento elaborado em meados dos anos 70 por um dos
coordenadores e dos mais ardorosos defensores das medidas propostas pela
Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas criada em 1984, ele
criticava enfaticamente a tentativa de transformar o Banco do Brasil num banco
comercial, numa clara demonstração de resistência à qualquer proposta de
repensar o papel das instituições que lidavam com as finanças públicas: "Uma
agressiva campanha de captação de recursos no mercado não seria possível a
esta altura e cabe mesmo duvidar se seria desejável. Em primeiro lugar, porque
não há ambiente para que o Banco possa expandir-se em áreas claramente
preenchidas pela iniciativa particular. Em segundo, porque, a rigor, o Banco só
se justifica perante a Nação enquanto puder exercer basicamente atividades
pioneiras e de nítido sentido social" (NÓBREGA 1978, p. 23).
E prosseguia: "... diante das peculiaridades da situação brasileira,
(mesmo após a Lei 4.595 o Banco do Brasil) permaneceu ... com funções de
banco central, como as de depósito das reservas voluntárias dos bancos
comerciais... e de Agente Financeiro do Tesouro Nacional para arrecadação da
receita e realização dos pagamentos e suprimentos necessários à execução do
Orçamento da União. Ademais, o estreito relacionamento contábil e financeiro
com o Banco Central ... caracterizam nossa Instituição como autoridade
monetária, não pelo fato de ter assento no Conselho Monetário Nacional, mas
por repartir com o Banco Central a responsabilidade pela operação e controle
dos mecanismos oficiais de expansão ou contração da liquidez do sistema
econômico. Esta privilegiada situação do Banco, que o diferencia
fundamentalmente de outros bancos comerciais, é de extraordinária importância
para manter a sua flexibilidade operacional, por seu turno indispensável ao
exercício de relevantes atribuições do Estabelecimento, muitas das quais
somente são prontamente realizadas (como a execução da política de preços
mínimos e das operações de emergência, bem assim os pagamentos por conta
do Tesouro), porque, a rigor, ele não tem nenhuma restrição de caixa,
funcionando mesmo como termômetro das emissões de papel-moeda ... Não há
como negar a extrema necessidade de preservar-se o conjunto de atribuições de
banco central que remanescem no Banco do Brasil. Aí me parece residir o
verdadeiro equilíbrio da Lei 4.595, que ao invés de copiar a figura de banco
central clássico de países mais desenvolvidos, adotou solução inteiramente
brasileira de elogiável coerência com a realidade nacional ... Assim, a
dicotomia das funções de banco central que se observa é adequada à nossa
situação, além de vital à sobrevivência do Banco do Brasil e indispensável para
as condições sócio-econômicas do país" (NÓBREGA 1978, p. 21-22).
120
120
Em apenas cinco anos, os mesmos burocratas haviam modificado totalmente sua posição
sobre o assunto. Em um trabalho preparado por três destes burocratas, inclusive o autor do
trabalho citado anteriormente, para ser entregue ao Presidente da República pelos ministros
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
139
Mas será que estes burocratas conseguiram contornar o que Nunes
chama de "complexa rede de corretagem que vai dos altos escalões até as
localidades" (NUNES 1985, p. 362) e neutralizar a ação dos corretores desta
rede que são capazes de construir caminhos privilegiados até o centro de poder?
Parece que sim, mas não através de mecanismos que a literatura aponta. Já
vimos que o insulamento burocrático e o surgimento de ilhas de racionalidade
são os processos considerados para proteger esta elite burocrática das pressões
desta rede e que estes processos não explicam quais os recursos políticos
necessários para isolar um conjunto de burocratas e nem quem ou o que
promove este isolamento. Adiante falaremos sobre os recursos políticos que
utilizaram para proteger-se. Por agora é importante reter que estes burocratas,
na situação analisada, parece que escaparam da "complexa rede de corretagem".
Este grupo tinha um projeto comum. Este projeto foi sendo construído
ao longo do tempo, mas mais do que tudo era um projeto de servir ao que
entendiam ser o "interesse público". Ao serem indagados se consideravam que
constituíam um grupo, 90% dos entrevistados afirmaram que sim, para
imediatamente ressaltar que eram um grupo quanto à identidade de suas idéias,
mas não como um grupo com interesses próprios.
Da mesma maneira que os "Cardeais da Previdência" descritos por
Hochman, sua ascensão a cargos de assessoria é vista como o resultado natural
de uma trajetória de burocratas "apolíticos, competentes e desinteressados"
(HOCHMAN 1990). Mas no caso da Previdência, sua burocracia tinha um
interesse imediato, um projeto de poder, que era assumir a direção do novo
órgão que surgiria com a junção dos antigos Institutos. No caso da alta
burocracia econômica, que serviu em diferentes órgãos, que subiu e desceu na
importância das posições que ocupou, mas que sempre esteve próxima do locus
onde eram definidas as políticas gerais, quais seriam seus interesses? Parece
que não se prendiam aos seus órgãos de origem: dos que deixaram por
empréstimo ou o Banco Central ou o Banco do Brasil, 30% dos entrevistados
não retornaram em nenhum momento àquelas instituições. Outros 20%
retornaram para ocupar cargos de diretoria (inclusive a Presidência) e os 50%
restantes foram e voltaram, mas nunca por um período inferior a seis anos,
ocupando sempre altos cargos de assessoria econômica em diversos
Delfim Netto e Emane Galvêas (e que nunca foi enviado), eles declaram: "Como parte
integrante das medidas necessárias ao programa de estabilização econômica que estão em
curso (deve-se) criar condições para a restauração do poder de controle dos instrumentos
clássicos de política monetária atribuídos ao Banco Central do Brasil" (Documento sem
assinatura, 6/7/ 1983, p. 14). Entre as medidas mais urgentes sugeridas estão: congelamento
da Conta de Movimento e paulatina transformação do Banco do Brasil em banco
tipicamente comercial.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
140
Ministérios
121
. Portanto, seus interesses estavam distantes das corporações de
origem, ou seja, do Banco do Brasil e do Banco Central.
Levando em consideração estas características constitutivas do perfil
deste grupo de burocratas, vamos procurar os recursos políticos que puderam
dispor e como se utilizaram destes recursos. Em outras palavras, como estes
recursos definiram seu espaço de poder e qual foi sua lógica de ação, o que será
observado através da análise dos trabalhos da Comissão para o Reordenamento
das Finanças Públicas, das tentativas de implementação de suas decisões, das
reações que provocou, bem como nos desdobramentos de suas propostas.
121
No momento da entrevista, 30% já haviam se aposentado. Destes, 50% haviam aberto seu
próprio escritório de consultoria, 30% estava prestando serviço em organismos
internacionais e 20% dedicavam-se a outras atividades.
141
C
APÍTULO III
A COMISSÃO PARA O REORDENAMENTO DAS FINANÇAS
P
ÚBLICAS: O DIAGNÓSTICO E AS MEDIDAS PROPOSTAS
A) A CRISE E O PROCESSO DE TOMADA DE CONSCIÊNCIA
As dores da conjuntura podem ser as do parto de um novo arranjo
institucional. Resta verificar, para que a criança não seja uma natimorta.
Com esta frase, um dos membros da Comissão para o Reordenamento das
Finanças Públicas anunciava, em fevereiro de 1982, o início de uma batalha que
na realidade, até o final de 1993, ainda não havia terminado. Mas é importante
retermos o fato de que, muito antes que a grande maioria dos implementadores
das políticas econômicas e mesmo seus analistas de oposição tivessem
consciência da real situação institucional das finanças públicas, ou tendo-a,
pretendessem agir, havia uma parte da burocracia para quem esta consciência
crescia com velocidade.
Através dos relatos destes técnicos e da análise do processo que iniciou
a reformulação institucional das finanças públicas no Brasil, aprende-se muito
sobre o espaço de poder da burocracia e sobre a sua lógica de ação: “Vou tentar
explicar o nosso processo de conscientização ... No contexto da crise em que
estávamos no final dos anos 70, começou a desmoronar muita coisa. A
primeira foi o Crédito Rural. Por 50, anos havíamos construído uma
agricultura baseada no grande incentivo institucional que se chamava crédito
subsidiado. Isto fez o Brasil negligenciar ao longo do tempo instrumentos
muito mais universais e éticos como a pesquisa, o ensino, a armazenagem, a
infra-estrutura, a tecnologia. O crédito só beneficiava uma elite, pois era um
incentivo discriminatório, ou seja, só para aqueles que tinham acesso ao
Estado ou a um Banco, fundamentalmente o Banco do Brasil, o Banco do
Nordeste ou Bancos Estaduais. Isto começou a desmoronar e começou a ficar
evidente no orçamento monetário. O desmoronamento do Crédito Rural
começou a chamar maior atenção sobre a Conta Movimento do Banco Central
no Banco do Brasil ... As pressões do Crédito Rural era das maiores no
Ministério da Fazenda (talvez não a mais importante, mas a maior). Vinham
lideranças do setor rural, trabalhadores agrícolas, o próprio Ministério da
Agricultura – que é até hoje o grande remanescente da relação de dependência
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
142
da burocracia com os interesses empresariais. Como viabilizar um orçamento
monetário austero com estas pressões?” (Entrevista n° 5).
O relato acima mostra como uma situação que hoje pode parecer tão
clara ao analista, faz parte de todo um processo de tomada de consciência por
parte desta burocracia, que muitas vezes na sua ação rotinizada e
principalmente despolitizada (típica do regime autoritário), não percebia onde
começava e onde acabava a cadeia de relações no processo de tomada de
decisões.
O crédito rural é um dos bons exemplos de como operava o clientelismo
na sociedade brasileira, desde há muito tempo. Tratava-se de um processo que
atravessava uma rede de relações pessoais que começava muitas vezes no
contato do Prefeito com o gerente do Banco do Brasil, caminhava mais um
degrau através do Deputado Estadual ou Federal da região
122
, passando ou não
pelo Governador do Estado, chegando a alguma autoridade federal da área da
agricultura ou de preferência da área econômica ou ainda da própria diretoria do
Banco do Brasil. Havia formas também de "encurtar caminho", principalmente
para os grandes proprietários rurais, que conseguiam chegar diretamente à
autoridade federal. Neste percurso, contar com o apoio de alguém de dentro da
burocracia, para apressar o andamento administrativo do pedido era sempre
útil
123
.
A partir desta questão aparentemente setorial e das alternativas para
superá-la, estes técnicos reuniram-se a partir de 1981, num "grupo informal" de
trabalho. Mas rapidamente a discussão se ampliou, pois começaram a perceber
outras coisas.
A primeira delas era que ninguém no Governo (nem eles próprios) sabia
mais o que era o setor público, não conhecia as contas públicas. Por exemplo,
na falta de informações e do conhecimento por parte dos técnicos de conceitos
básicos como o de "Necessidade de Financiamento do Setor Público Não
Financeiro", o primeiro acordo com o Fundo Monetário Internacional em 1982
foi bastante difícil. Os técnicos do Fundo tiveram que trabalhar com vários
dados dispersos, o que obrigou os técnicos brasileiros a calcular, pela primeira
vez, os dados básicos. Só assim foi possível cumprir uma das condicionalidades
do Fundo, que era a de estabelecer metas em relação à redução do déficit
público, à política monetária e ao balanço de pagamentos: “Aí começa um
grande processo educativo da máquina. Queiramos admitir ou não, o FMI teve
um grande papel neste processo, não porque veio nos ensinar, mas sim porque
122
Muitas vezes o processo se inicia com o Deputado da região.
123
Não nos referimos aqui a atos de corrupção direta, ou de compra de favores com o
pagamento pecuniário ao funcionário. No escopo deste trabalho não tivemos condições de
examinar esta prática, mas nossa avaliação é de que ela atinge um número pequeno de
funcionários, que muitas vezes são rapidamente identificados pela "máquina" e isolados. O
que costumam receber são presentes de pequeno valor material que servem mais para ser
mostrados como sinal do seu prestígio. E este tipo de retribuição é aceito sem maiores
questionamentos por parte da "máquina".
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
143
quando pediam uma informação nós tínhamos que procurá-la e assim
começamos a nos organizar. Foi nesta época que surgiram as primeiras
percepções dentro da máquina de que vivíamos num grande primitivismo
institucional” (Entrevista n° 5).
Para obter estes dados, precisavam começar a trabalhar com
informações estatísticas consistentes e principalmente precisavam contar com
um sistema institucional de finanças públicas que contivesse os instrumentos
adequados de execução e controle. Para estabelecer qualquer tipo de meta no
campo do déficit público, dos preços internos, da política monetária do balanço
de pagamento, precisava-se de dados que não existiam e de instrumentos que
estavam para ser criados: “Passamos a discutir alguns aspectos das finanças
públicas que anteriormente dava-se pouquíssima atenção. O principal deles
era o déficit público, cujo critério de mensuração estabelecido pelo Fundo
Monetário Internacional chamava-se "Necessidades de Financiamento do
Setor Público Não-Financeiro — NFSP" e que nós desconhecíamos
(Entrevista n° 5).
A segunda coisa que perceberam, foi que este primitivismo institucional
se caracterizava não só pela falta de instrumentos de controle dentro do
Governo, como também pela falta de controle por parte da sociedade. Tomaram
consciência de que esta situação dava ao Ministro da Fazenda um enorme
poder, pois o sistema de decisão (ou a falta de um) o tornava o centro das
pressões. Esta questão, que antes de 1964 fazia parte integrante dos discursos e
do posicionamento das elites burocráticas do setor público, havia sido sepultada
pela centralização autoritária do regime militar, e agora renascia junto com a
crise do Estado.
Desde o início do regime militar, o Ministro da Fazenda podia realizar
despesas sem autorização legislativa e muitas vezes via emissão de moeda,
apenas com uma autorização do Conselho Monetário Nacional, através de um
artifício que já existia desde Getúlio Vargas, mas que ganhou nova força e que
teve ao longo do tempo vários nomes, mas era mais conhecido por orçamento
monetário, como já vimos anteriormente
124
. Este não era propriamente um
orçamento, mas sim uma previsão da variação anual dos saldos das contas de
recursos e aplicações das autoridades monetárias, compatível com uma
"desejada" expansão dos meios de pagamento. A programação dos recursos e
gastos efetivos do governo federal estava contida em outros dois documentos:
O Orçamento da União e o Orçamento das Estatais. Destes, apenas o
Orçamento da União era submetido ao Congresso Nacional
125
.
124
Suas origens estão na Parte II, Capítulo III.
125
Em 1984, os mecanismos institucionais que definiam os orçamentos eram os seguintes:
orçamento monetário – era elaborado pelo Poder Executivo - basicamente por técnicos da
Secretaria do Planejamento da Presidência da República, Ministério da Fazenda, Banco
Central e Banco do Brasil entre os meses de setembro e novembro e submetido ao
Conselho Monetário Nacional em dezembro. Continha gastos governamentais de origens
tão diversas quanto: aquisição de produtos agropecuários destinados à formação de
estoques reguladores para efeitos de abastecimento e regulagem da oferta de produtos
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
144
Esta (des)organização orçamentária impedia que se visualizasse a
quantas andavam as contas do Governo Federal, e só era útil em épocas de
abundância e para o tomador de decisões de um regime centralizador e
autoritário, no caso o Ministro da Fazenda, que não tinha muito s obstáculos em
pular de uma peça orçamentária para outra, fazendo suas opções quase no
escuro: "O tomador de decisões não tinha diante de si um leque de alternativas
possíveis, não podendo, portanto, resolver, baseado em informações, se era
preferível gastar mais com educação, previdência, saúde pública, segurança ou
justiça e menos com a formação de estoques reguladores, com investimento e
custeio de estatais ou com o financiamento das safras agrícolas. Não conseguia
nem saber se tinha recursos suficientes - sem apelo à emissão de moeda - para
financiar todos os gastos pleiteados" (Entrevista n°10).
Em terceiro lugar, tomaram consciência que as carteiras de fomento
tanto do Banco do Brasil como a do Banco Central eram financiadas pelos
impostos num primeiro momento e, quando estes não eram mais suficientes,
passavam a ser financiadas através da expansão da dívida pública: “Assim, o
Brasil parece ser um dos poucos casos do mundo em que a dívida pública se
expande não para financiar um programa definido de Governo ou mediante
autorização legislativa. Ela se expande por decisão do Conselho Monetário
Nacional que era presidido pelo Ministro da Fazenda: ali fluíam as decisões
que geravam despesas e, portanto, as pressões. Na realidade, o CMN
organizava as pressões que vinham dos mais diversos setores que dependiam
do Estado; ele coordenava na prática toda política fiscal e monetária, e o
Congresso Nacional tinha uma função decorativa” (Entrevista n° 5).
Todos diagnósticos são hoje coincidentes, mas não o eram na época,
quanto à confusão institucional em que estavam mergulhadas as finanças
públicas, principalmente a partir da década de 70, pois além do quadro já
descrito, havia despesas que escapavam inclusive da autorização do Conselho
Monetário Nacional. Citando apenas um destes diagnósticos: "As principais
instituições de Finanças Públicas eram o Banco Central, o Banco do Brasil e o
Tesouro Nacional, distribuídos entre o Ministério da Fazenda e a Secretaria do
exportáveis; pagamento de avais do Tesouro em empréstimos externos; e até operações de
empréstimos de liquidez ou de mercado aberto e de crédito comercial e industrial.
Orçamento da União — elaborado pelo Poder Executivo e submetido à aprovação do
Legislativo como uma peça única (o Legislativo poderia apenas aprová-lo em bloco ou
rejeitá-lo em bloco) em torno do mês de agosto de cada ano, para ser executado entre
janeiro e dezembro do ano seguinte. Contava com recursos provenientes dos tributos e
outras receitas da União. Repassava parte destes recursos para as empresas estatais e delas
podia receber recursos em forma de impostos ou dividendos. Orçamento das Estatais — era
uma programação de caixa elaborada pelo Governo Federal para disciplinar os gastos
destas empresas. Era preparado pelo Executivo (Seplan-Sest), entre os meses de setembro e
novembro de cada ano e então submetido ao Conselho de Desenvolvimento Econômico em
dezembro para ser executado no ano seguinte. Previa a necessidade de captação de recursos
de cerca de 500 empresas estatais e seus recursos eram provenientes do resultado de suas
próprias atividades, de financiamentos internos e externos e de recursos do Orçamento da
União.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
145
Planejamento da Presidência da República, (caracterizando assim) a
inexistência de um órgão responsável pela administração financeira quanto à
execução do orçamento da União, (havendo) apenas o registro para efeitos de
acompanhamento feito pelo Banco do Brasil. O Banco do Brasil realizava
operações de interesse do Tesouro (crédito subsidiado a setores prioritários,
aquisição de produtos agrícolas, etc.) e do Banco Central (depósitos voluntários
das instituições financeiras e administração do meio circulante). Para realizar
estas operações, o Banco do Brasil tinha acesso automático aos recursos do
Banco Central (o que incluía a expansão da base monetária), através de
mecanismos de nivelamento diário da chamada Conta Movimento. O Banco
Central realizava operações de fomento (fundos e programas, redesconto
seletivo), e gerenciava a dívida pública, cujos montantes emitidos independiam
de autorização prévia de qualquer natureza" (PARENTE e CALABI 1990).
O que ocorria então era a "fusão financeira completa das três
instituições, que funcionavam na prática como um único caixa". Esta
promiscuidade era gerida pelo Banco do Brasil que tinha seus desequilíbrios
automaticamente supridos com recursos do Banco Central.
Além desta completa desorganização estrutural, também inexistiam
instrumentos adequados de planejamento, execução e controle financeiro: "O
orçamento da União não incluía todas operações de conta do Tesouro, inclusive
aquelas realizadas pelo Banco do Brasil e Banco Central não se submetendo,
portanto, ao Congresso Nacional". O equilíbrio que o orçamento apresentava
era assim artificial. Havia uma "desvinculação total entre planejamento e
orçamento, ficando o primeiro com aspectos gerais de política e o segundo não
tendo características de instrumento de implementação e verificação da ação
planejada". Finalmente, o atraso de 120 dias
126
na contabilidade federal
impossibilitava qualquer cálculo gerencial, além do que "cada unidade gestora
tinha seu próprio sistema de execução orçamentária e financeira, provocando
duplicidades, inconsistência e saldos médios elevados no Banco do Brasil"
(PARENTE e CALABI 1990).
Durante a realização do Congresso Nacional de Bancos em Salvador,
Bahia, numa palestra que fez no dia 20 de novembro de 1984, o então
Secretário Geral do Ministério da Fazenda Dr. Mailson Ferreira da Nóbrega
afirmou: "As lideranças empresariais e políticas condenam a inflação, o déficit
público elevado e o endividamento interno, mas protestam quando o
esgotamento dos recursos do Governo impede o Banco do Brasil e o Banco
Central de atender à demanda de crédito para a agricultura e para as
exportações, como se a expansão desses empréstimos, com base em emissão de
moeda ou ampliação da dívida pública, fosse absolutamente neutra do ponto de
vista da liquidez do sistema econômico, da inflação, do déficit público". Nesta
mesma palestra, apontou as demais distorções arraigadas na mentalidade destas
mesmas lideranças e que dificultavam o encaminhamento de um novo desenho
institucional. Em primeiro lugar, "os empréstimos que as instituições
126
Tempo que se levava para "fechar" os balanços que vinham das mais diversas fontes.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
146
financeiras públicas concedem com recursos do Tesouro ou pela via da
expansão monetária que não constituem item de despesa pública", sem que este
fato cause qualquer estranheza; em segundo lugar, "a crença de que o crédito
oficial deve ser o principal instrumento de estímulo ao desenvolvimento de
certas atividades econômicas, principalmente a agricultura. Com isso, o crédito
rural suplantou, de longe, entre os anos 40 e 80, o papel de outros mecanismos
de apoio ao setor rural como a pesquisa, a assistência técnica, a educação, a
saúde, a política de preços mínimos e os investimentos em infra-estrutura"; em
terceiro lugar, o fato de que "através do artifício de apelar-se ao orçamento
monetário, tem-se financiado a compra de produtos agrícolas amparados pela
política de preços mínimos, e isto sem falar nas intervenções na área do café,
trigo e do açúcar". Finalmente, "o orçamento monetário tem funcionado
também como mecanismo para atender o déficit da previdência social e a
inadimplência de empréstimos externos garantidos pelo Tesouro Nacional, o
conhecido mecanismo do Aviso GB-588 do Banco do Brasil, pelo qual esta
instituição honra, em nome da União, responsabilidades de empresas estatais,
estados e municípios" (Primeira Versão do Pronunciamento do Secretário-Geral
do Ministério da Fazenda. Dr. Mailson Ferreira da Nóbrega no Congresso
Nacional de Bancos em Salvador, Bahia, no dia 20 de novembro de 1984).
Pode-se perceber que, a partir do começo dos anos 80, quando os
burocratas do setor Governo começam a falar em ajuste, pensavam
principalmente em medidas para uma reorganização institucional das Finanças
Públicas. Mas ao tratar desta temática específica, que era o espaço por onde esta
burocracia transitava com maior facilidade, e que já havia sido objeto das
formulações da geração que a precedeu, não tratavam a questão com uma visão
tecnocrática e começavam a romper o discurso despolitizado imposto pelo
regime autoritário. Nas discussões anteriores — década de 60 e começo da
década de 70 —, defendia-se como adequado um sistema que comportasse um
orçamento monetário e um orçamento das empresas estatais, em que os gastos
pudessem ser decididos sem nenhuma interferência do Congresso e cobertos
por emissões que dependessem apenas de decisões das autoridades do
Executivo, ou no máximo, do Conselho Monetário Nacional. Os burocratas
ligados a áreas de decisão da política econômica nos anos 80 apontavam
problemas muito mais gerais, que hoje fazem parte de qualquer agenda sobre a
reforma do Estado. Estes problemas eram principalmente as relações do
Executivo com o Legislativo, as relações do Executivo com as lideranças
empresariais e políticas, as prioridades de financiamento do setor público, além
de levantar a questão da centralização excessiva de poder nas mãos da área
financeira do governo. Cinco questões, que, com nomes mais sofisticados —
crise do Estado, modernização do Estado, governabilidade, perda da capacidade
decisória do Poder Executivo, relações público-privado — preocupavam
também a comunidade acadêmica, que certamente, com o debate que
suscitavam, teve sua influência neste processo de tomada de consciência.
Neste mesmo Congresso, no discurso de abertura, o ministro Galvêas,
retratando o pensamento expresso em vários documentos do "grupo informal"
de burocratas a que nos referimos anteriormente, declarou: "Também creio,
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
147
firmemente, que é preciso reduzir o déficit do setor público, cortando os gastos
correntes e reduzindo os investimentos públicos, nos Municípios, nos Estados,
no Governo Federal, nas empresas estatais ou (então), o que é menos desejável,
aumentando os impostos... A desindexação pura e simples, por mais racional
que pareça, perderá sua eficácia ante o descrédito inevitável que a
acompanhará, se não for equacionado, adequadamente, o déficit público ... O
‘bom-mocismo’ jamais derrotará a inflação. É preciso que os Prefeitos,
Governadores e os Ministros entendam isto. E também os membros do
Congresso Nacional, para que não dêem curso a iniciativas de reformas
tributárias dissociadas da realidade, que propõem redistribuição de recursos
dentro da federação, sem cuidar simultaneamente de uma adequada
redistribuição de encargos ou sem levar em consideração as possibilidades do
erário. Foi com o pensamento voltado para estas deficiências e imperfeições da
vida econômica nacional que demos início em 1981 a um trabalho de grande
profundidade, visando o ordenamento e o disciplinamento da execução
orçamentária e da administração financeira da área federal, vinculando a
execução da administração orçamentária às responsabilidades do Congresso
Nacional ... trabalho que inclui uma revisão das atribuições do Banco Brasil e
do Banco Central, e não uma simples Reforma Bancária como se tem
anunciado. Como dizia Von Mises ... uma disciplina capaz de inibir ou evitar os
‘abusos dos políticos da hora’. Pretende-se colocar em um só lugar todos os
recursos com que a união financiará todos os seus gastos, de forma que o
excesso de despesas sobre as receitas, se houver, seja claramente explicitado. É
a proposta para a implantação do princípio da unicidade orçamentária ... e a
eliminação factual do orçamento monetário na sua concepção atual" (discurso
proferido pelo Sr. Ministro da Fazenda Ernane Galvêas na abertura do XV
Congresso Nacional de Bancos em Salvador, no dia 23 de novembro de 1984,
p. 6-8).
Este discurso do Ministro Galvêas, que foi elaborado por um dos
membros da Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas, revela um
outro componente da lógica de ação desta burocracia, ou seja, a desconfiança
que demonstram pelos políticos, o que fica evidente também em alguns
depoimentos que examinaremos a seguir. Uma outra evidência que a análise
dos depoimentos e dos documentos começa a desenhar, é de que neste processo
que se inicia, esta burocracia teve um papel de formuladora.
Foi a partir daquele "grupo informal" que saíram as recomendações
básicas para a decisão do Conselho Monetário Nacional, que através do Voto
283/84 de 21 de agosto de 1984 aprovou um conjunto de medidas que deram
início formal à proposta de um novo desenho institucional das finanças
públicas. Nesta mesma data o CMN designou uma Comissão para apresentar a
moldura operacional e jurídica, a fim de tomar estas medidas concretas. Esta
Comissão ficou conhecida nos meios de comunicação como Comissão de
Reforma Bancária, mas este título, conforme o próprio Ministro destacou em
seu discurso referido acima, recebeu reparos de seus membros, que preferiram
chamá-la de por seu nome formal, ou seja, Comissão para o Reordenamento das
Finanças Públicas. Isto porque consideravam que ela se propunha a uma
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
148
profunda revisão na lógica das finanças públicas e não apenas a separação das
atividades do Banco Central e do Banco do Brasil: “Estávamos caminhando
para um regime democrático e o sistema de decisão que havia sido engendrado
era incompatível com uma sociedade aberta e pluralista. As pressões teriam
que se deslocar do Ministério da Fazenda para o Congresso Nacional.
Achávamos que rapidamente tínhamos que introduzir no Brasil conceitos que
já eram correntes em outros países há 200 anos (universalidade, unicidade
orçamentária, etc.). O Orçamento, peça-chave do planejamento de uma
sociedade do ponto de vista do Governo, teria que ir para o Congresso
(Entrevista n° 5).
Mas a idéia de limitar a ação do Executivo sobre os gastos públicos via
Congresso Nacional era também, para esta burocracia, uma forma de tornar
mais visível a ação direta dos políticos, para que a "sociedade" pudesse
controlá-los: “Estávamos entrando num regime democrático, em que os
políticos teriam muito mais força, e seu acesso direto aos gastos públicos via
pressões sobre as autoridades econômicas do governo seria um grande
desastre. Assim, ao pensarmos em propor que os orçamentos fossem unificados
e submetidos ao Congresso, estávamos pensando em permitir que a sociedade
pudesse vigiar a ação dos políticos, pois daí tudo ficaria às claras e não entre
as quatro paredes de um gabinete” (Entrevista n° 3).
Antes de entrarmos na análise dos trabalhos da Comissão, abrimos um
parênteses para tratar de um órgão criado em 1983, que precedeu os trabalhos
da Comissão e que teve uma importância muito grande como ponto de partida
para o processo de reordenamento das finanças públicas. Foi o Comitê
Interministerial de Acompanhamento da Execução dos Orçamentos Públicos –
Comor. Este Comitê foi criado com o objetivo de "coordenar as funções de
assessoramento aos Ministros da Fazenda e Chefe da Secretaria de
Planejamento da Presidência da República em assuntos relacionados com a
elaboração e execução dos orçamentos governamentais, tendo em vista os
objetivos de controle monetário e de redução do déficit público" (Portaria
Interministerial MF/Seplan, de 29 de julho de 1983, publicada no Diário Oficial
da União de 2 de agosto de 1983). Segundo a afirmação de um de seus
membros, "o Comor foi uma sugestão do FMI, que considerava impossível
falarmos em qualquer programa de ajuste, sem contarmos com um órgão que
desempenhasse o papel de coordenação dos gastos, inclusive das empresas
estatais" (Entrevista n° 11).
O Comor tinha a seguinte composição: os dois Secretários Gerais do
Ministério da Fazenda e do Planejamento; o Superintendente do Ipea, o
Secretário da Receita Federal, o Vice-presidente de Operações no País e o
Diretor de Controle do Banco do Brasil; o Diretor da Área Bancária e o Chefe
do Departamento Econômico do Banco Central; o Secretário Especial de
Assuntos Econômicos do Ministério do Planejamento; o Secretário Especial de
Abastecimento e Preços, o Secretário de Controle das Empresas Estatais, o
Secretário de Orçamento e Finanças e o Secretário de Articulação com os
Estados e Municípios da Secretaria do Planejamento da Presidência da
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
149
República; o Secretário Adjunto do Ministério da Fazenda e o Chefe da
Assessoria Técnica Especial do Ministro Chefe da Seplan. O Comitê tinha por
competência acompanhar a execução dos orçamentos através dos indicadores
existentes (que eram precários), "sugerindo as providências que (julgasse)
necessárias à correção de eventuais desvios" (Portaria de 1983). O Comor
deveria se reunir semanalmente para dar parecer prévio a "propostas, pleitos,
sugestões, procedimentos e quaisquer outras iniciativas relacionadas com os
assuntos que possam acarretar desvios nas metas estabelecidas para o controle
monetário e o déficit público"
127
(Portaria de 1983). Nenhum destes assuntos,
segundo a Portaria, seriam submetidos à decisão dos Ministros da Fazenda e do
Planejamento sem o prévio parecer do Comor.
O Comitê reuniu-se regularmente até 1985, sendo extinto formalmente
em março de 1986 com a criação da Secretaria do Tesouro. Pela avaliação de
alguns técnicos que trabalharam no Comor e mais a análise de várias pautas e
atas de suas reuniões, pode-se perceber, que do ponto de vista formal, ele
cumpriu o disposto na Portaria ministerial. Entretanto, jamais desempenhou o
papel de controle orçamentário, já que os pleitos que lá chegavam, a não ser que
contivessem reivindicações absurdas, recebiam um parecer técnico favorável e
o parecer da oportunidade e da possibilidade era eminentemente político. Em
outras palavras, quando um pleito chegava ao Comor, ele já havia sido
negociado anteriormente (ou concomitantemente) com as autoridades do
Governo (ministros ou até mesmo o Presidente da República). Os pedidos e as
pressões "pulverizavam" a pauta do Comitê, pois não faziam parte de nenhum
programa consolidado.
Entretanto, o Comor teve um outro papel, este de grande importância.
Ele representou o lugar institucional onde um grande número de técnicos (a
maior parte deles fizeram parte mais tarde da Comissão para o Reordenamento
das Finanças Públicas) teve a oportunidade de tomar conhecimento da estrutura
dos gastos públicos e do tipo de pressão e da tendência das reivindicações que
atingiam o Governo. Além disso, foram colocados diante da necessidade de
consolidar as informações tanto do lado da receita quanto do lado despesa. Não
127
Deveriam passar pela aprovação do Comor: créditos adicionais, comportamento da
arrecadação federal, despesas de pessoal, limites de dispêndios globais e de captação de
recursos externos das empresas estatais, reconhecimento de prioridades para contratação ou
renovação de créditos externos e internos, endividamento das empresas estatais e das
agências descentralizadas, endividamento público decorrente de cobertura de
compromissos assumidos no exterior por terceiros, dívida mobiliária federal e de mercado
aberto, endividamento de Estados e Municípios, planos de recursos e aplicações das
instituições financeiras federais, política de preços e de tarifas do setor público,
empréstimos externos e mecanismos de depósito em moeda estrangeira, operações do
programa especial de exportação, do Finex-BB e Finex Leste Europeu, fixação de valores
básicos de custeio e de preços mínimos, bem como a política de garantia de preços
mínimos (prorrogação de créditos, aumento de prazos, mudança de esquemas de remissão,
aumento de limites de adiantamento, aquisições diretas de indústrias, beneficiadores,
comerciantes, etc), Programa de Garantia da Atividade Agropecuária – Proagri, plano de
safra e operações de crédito ao cacau, café e açúcar, crédito agrícola, estoques reguladores,
importação e exportação de produtos agrícolas feitos pelo Governo.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
150
que tivessem conseguido, pois isto, segundo declaração de um entrevistado
“não se tem até hoje (1993)” (Entrevista n° 3). Mas, como um instrumento para
aumentar o grau de consciência destes técnicos, o Comor foi bastante eficiente.
B) A COMISSÃO: COMPOSIÇÃO, ESTRUTURA E RELATÓRIOS PARCIAIS
A Comissão era coordenada pelo Secretário Geral do Ministério da
Fazenda, Dr. Mailson Ferreira da Nóbrega. Tinha um Comitê Supervisor com a
seguinte composição: Raymundo Monteiro Moreira (Ministério da Fazenda -
Coordenador), Paulo César Ximenez Alves Ferreira (Banco Central), Pedro
Pullen Parente (Banco Central), Cláudio Dantas de Araújo (Banco do Brasil),
Antonio de Azevedo Bonfim (Banco do Brasil), Luiz Fernando Gusmão
Wellisch e Inácio José Barreira Danziato (Secretaria do Planejamento da
Presidência da República).
Foram escolhidos 106 técnicos (Anexo II), entre funcionários graduados
do Ministério da Fazenda, Secretaria do Planejamento da Presidência da
República, Banco Central e Banco do Brasil. Houve uma subrepresentação na
participação do Ministério da Fazenda e do Planejamento, que não foi
numérica, mas sim no grau de envolvimento. As informações que analisaremos
a seguir indicam que a "batalha" foi assumida muito mais pelos membros da
Comissão que pertenciam ao Banco Central e Banco do Brasil.
A partir do Voto 283/84 do Conselho Monetário Nacional, esta
Comissão se subdividiu em quatro grupos de trabalho. O Grupo de Trabalho 1
(GT 1) ficou encarregado do diagnóstico e das propostas referentes à dívida
pública mobiliária da União. O Grupo de Trabalho 2 (GT2), do diagnóstico e
propostas sobre a compra de produtos agrícolas e programas oficiais de crédito.
O Grupo de Trabalho 3 (GT3), dos assuntos referentes às relações institucionais
entre o Tesouro Nacional, o Banco Central e o Banco do Brasil. E, finalmente,
o Grupo de Trabalho 4 (GT4), que deveria elaborar a proposta sobre a
reformulação administrativa da Comissão de Programação Financeira do
Ministério da Fazenda. O GT3, que tratou das relações entre o Tesouro
Nacional, Banco do Brasil e Banco Central, desdobrou-se em seis subgrupos,
incumbidos dos estudos dos seguintes aspectos do relacionamento institucional
entre estes órgãos: prestação de serviços ao Tesouro Nacional e sua
remuneração; riscos do Tesouro Nacional (avais, empréstimos, bônus, etc.);
regularização de operações de responsabilidade do Tesouro Nacional e das
autoridades monetárias, inclusive operações de crédito da União e depósitos em
moedas estrangeiras; custódia de numerário; compensação de cheques e
depósitos voluntários de bancos; Conta Movimento do Banco Central no Banco
do Brasil.
As atividades dos diversos grupos eram acompanhadas pelo Comitê
Supervisor nominado anteriormente. Logo após o Voto do Conselho Monetário
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
151
Nacional, os pontos mais relevantes da proposta foram debatidos com os
Ministros da Fazenda, Emane Galvêas, do Planejamento, Delfim Netto, com os
Presidentes do Banco Central, Afonso Celso Pastore, e do Banco do Brasil,
Osvaldo Roberto Collin. Também participaram das discussões finais, antes que
o relatório fosse concluído, o Secretário da Receita Federal, Francisco
Dornelles, o Procurador-Geral da Fazenda, Cid Heráclito de Queiroz, o
Superintendente do Ipea, José Augusto Savasini, e os Chefes de Gabinete dos
Presidentes do Banco Central, Dilson Sampaio da Fonseca, e do Banco do
Brasil, Paulo Maurício de Andrade (Relatório Final da Comissão Especial
definida pelo Voto 283/84 do Conselho Monetário Nacional).
A análise dos relatórios parciais (deixaremos o relatório geral para a
sessão seguinte) fornece um material valioso para a compreensão de como
funcionava o aparato institucional encarregado das finanças públicas no país em
meados dos anos 80.
O relatório do GTI, grupo coordenado pelo Dr. André Romar Fernandes,
do Banco Central, e que deveria fazer um diagnóstico e propor novas formas de
administração da dívida pública mobiliária da União, chamava atenção logo no
seu início para o fato de que em 1967 o Governo havia iniciado uma profunda
mudança nos mecanismos institucionais que tratavam da dívida pública. No dia
28 de fevereiro de 1967 (final da gestão de Octávio Gouvêa de Bulhões), o
governo promoveu o "resgate de toda a dívida mobiliária anterior às ORTNs e
transferiu para o Banco Central a administração da dívida pública até então
exercida pela Caixa de Amortização". No mesmo ano, agora durante a gestão
do ministro Delfim Netto, promoveu-se uma radical (e centralizadora, bem ao
estilo de um regime autoritário)
128
mudança na política de condução da dívida
pública, através de um simples ato administrativo do Ministério da Fazenda
determinando que "todos os atos e fatos contábeis envolvendo as emissões e os
resgates dos títulos públicos fossem efetuados sem trânsito pelas contas
Orçamentárias da União, mas sim diretamente a débito e a crédito do Banco
Central, que os registraria em contas específicas em nome do Tesouro
Nacional"
129
Em 1970 as ORTNs foram substituídas pela Letras do Tesouro
Nacional e suas emissões ficaram subordinadas apenas às decisões do Conselho
Monetário Nacional, limitadas a 10% dos meios de pagamento existentes no
final do último dia do ano anterior. Finalmente, em 1971, também na gestão do
ministro Delfim Netto, uma Lei Complementar (a de número 12), permitiu
emissões de títulos pelo Executivo sem apreciação legislativa, colocando nas
mãos dos ministros da área econômica, do Banco Central e do Conselho
Monetário Nacional toda a responsabilidade sobre as decisões que envolvessem
o endividamento público no país.
O relatório destacava que, a partir desta data, o Banco Central, como
administrador da dívida pública, ficou encarregado de todas as ofertas públicas
de títulos, bem como cabia a ele proceder ao resgate e ao pagamento de juros,
128
O comentário entre parênteses é nosso e não do relatório do GTI.
129
Este ato criou a famosa "caixa preta" a que nos referimos anteriormente.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
152
determinando o montante de cada emissão, influindo nas taxas de captação e
administrando os recursos oriundos da colocação primária de títulos. Além
disso, ele teria o poder de baixar normas administrativas e a iniciativa de propor
alterações legais que envolvessem a dívida mobiliária da União. Assim, o
Banco Central, e isto é o mais importante, realizaria emissão primária de títulos
não só para atender ao giro da dívida ou para fins de política monetária (na
neutralização dos efeitos expansionistas das operações cambiais, por exemplo),
mas também para os repasses aos programas de fomento e para as demais
operações conduzidas pelas autoridades monetárias por conta e ordem do
Tesouro Nacional. Estas operações não corriam por conta do Orçamento da
União, mas ficavam embutidas no orçamento monetário, não ficando
explicitado jamais o montante do déficit do Governo em suas relações com o
sistema econômico.
Para superar esta anomalia, o GT1 propunha transferir a gestão da
dívida mobiliária interna para o Ministério da Fazenda, junto à Comissão de
Programação Financeira, ficando os serviços de execução com o Banco Central
e o Banco do Brasil. Quanto às emissões de títulos do Tesouro Nacional, elas só
poderiam ocorrer para: efetuar o giro da dívida independentemente de
autorização legislativa; financiar déficits orçamentários, até o limite autorizado
pelo Congresso Nacional; financiar créditos especiais ou suplementares, até o
limite autorizado pelo Congresso Nacional; e para operações de crédito por
antecipação da receita. As despesas com os juros, comissões e as parcelas dos
descontos que excedessem a correção monetária deveriam ser fixadas no
Orçamento da União, não podendo ser incluídas no giro da dívida; e o
orçamento fiscal deveria consignar verbas para garantir o resgate de títulos não
girados. Finalmente, o Banco Central ficaria proibido de adquirir títulos
destinados ao financiamento dos déficits ou de créditos especiais ou
suplementares, a não ser que fosse expressamente autorizado pelo Congresso
Nacional.
O relatório do GT2, grupo coordenado pelo Dr. Edmar da Costa Barros,
do Banco do Brasil, e que estava encarregado do diagnóstico e das propostas
sobre a compra de produtos agrícolas e programas oficiais de crédito, colocava
como seu objetivo principal desenhar um novo modelo institucional onde os
recursos para as políticas do setor seriam, do momento de sua implantação em
diante, "originários do orçamento da União através de dotações e liberações
atribuídas aos respectivos ministérios setoriais" e não mais originários do
orçamento monetário e com sua liberação centralizada. Esta era uma mudança
importante, já que no diagnóstico elaborado para este relatório, todas as contas -
a Conta para Garantia de Preços Mínimos, a Conta Trigo, a Conta Café, a Conta
Açúcar e a Conta dos Estoques Reguladores - estavam registradas em outubro
de 1984 como contas em aberto, o que queria dizer: "o sistema em
funcionamento não leva em consideração as limitações orçamentárias", ou
seja, as contas eram financiadas através de emissões ou títulos.
Em segundo lugar, o relatório mostrava a situação dos Programas
Oficiais de Fomento, que a partir de 1964 foram em grande parte assumidos
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
153
pelo Banco Central, pelas razões já expostas na Parte II deste trabalho. Além
destes, continuavam existindo ou foram criados outros Fundos no Banco do
Brasil. Desde 1964, as políticas governamentais induziram à criação, no âmbito
das autoridades monetárias, de uma variada e crescente gama de programas de
crédito seletivo, com juros e prazos favorecidos, dirigidos para "estimular a
produção e a distribuição de produtos básicos para o mercado interno, ampliar a
geração de excedentes para exportação, incentivar a modernização das
atividades produtivas e reduzir os desequilíbrios setoriais e regionais". Muitos
destes fundos foram criados sem fontes específicas de recursos ou com
suprimentos insuficientes. A sua principal fonte de recursos estava, portanto,
nos adiantamentos do Banco Central, pois as transferências financeiras do
Orçamento da União não acompanhavam a demanda dos programas de
fomento. Além destes Fundos, havia outros no Banco do Brasil, e estes eram
alimentados pela Conta Movimento, o que dava na mesma, pois esta era
mantida por repasses do Banco Central. Em outras palavras, praticamente
nenhum Fundo era suprido pelo Orçamento da União e sim pelo orçamento
monetário. E mais grave, não havia explicitação do valor real dos subsídios
embutidos nos financiamentos favorecidos, impossibilitando a avaliação da
política de incentivos.
Em agosto de 1984, eram vinte e quatro programas ou projetos em
operação no Banco Central, distribuídos em oito Fundos
130
. Além destes, havia
mais vinte e dois programas ou projetos em extinção, distribuídos em cinco
130
Em operação: Fundo de Financiamento à Exportação (Finex) – Programa de
Financiamento à Exportação e Programa de Equalização de Taxas de Financiamento à
Exportação; Fundo Geral para a Agricultura e Indústria (Funagri)-Programa de Incentivo
à Produção de Borracha Natural, Programa Nacional do Álcool Rural e Industrial,
Programa Nacional de Assistência à Agroindústria, Programa Nacional de Armazenagem
Industrial, Programa Nacional do Calcário Agrícola-Industrial; Fundo Nacional de
Refinanciamento Rural (FNRR) – Programa Nacional de Aproveitamento de Várzeas
Irrigáveis, Programa Especial da Região Geoeconômica de Brasília, Programa de
Investimentos Agrícolas, Plano de Desenvolvimento Rural Integrado do Nordeste de Minas
Gerais, Programa de Financiamento de Equipamento de Irrigação, Programa de Pólos
Agropecuários e Agrominerais da Amazônia, Plano de Recuperação de Cafezais, Plano da
Safra Cafeeira, além de Linhas Específicas, onde poderiam ser enquadrados outros projetos
a qualquer momento; Fundo Nacional de Refinanciamento Industrial (Funagri-FNRI) –
Programa de Desenvolvimento Agroindustrial, Programa Agroindústria, Programa
Corredores de Exportação; Fundo de Democratização do Capital das Empresas (Fundece);
Programa de Apoio à Agroindústria do Setor Sucro-Álcooleiro; Fundo Nacional de
Refinanciamento Rural (Funagri-FNRR) – Programa Especial de Créditos às Populações
Pobres das Zonas Canavieiras do Nordeste, Programa de Desenvolvimento das Áreas
Integradas do Nordeste, Programa de Aproveitamento de Recursos Hídricos do Nordeste
Semi-Árido, Programa especial de Apoio ao Desenvolvimento da Região Semi-Árida do
Nordeste (Projeto Sertanejo); Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à
Agroindústria do Norte e Nordeste (Proterra-Terranova).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
154
Fundos. No Banco do Brasil, existiam doze Fundos em operação
131
e trinta e
quatro em extinção.
O relatório reconhecia a "importância desses programas na promoção do
desenvolvimento econômico do país" e propunha a revisão da sua sistemática
de funcionamento através do seguinte esquema operacional: o Conselho
Monetário Nacional aprovaria regulamento contendo as condições básicas do
programa oficial de crédito (finalidade, prazos, encargos financeiros, garantias);
o ministério setorial proporia a inclusão, no orçamento da União aprovado pelo
Congresso, do volume de recursos necessários à execução da política de
fomento; aprovada a proposta, o ministério da área se articularia com o
Ministério da Fazenda com vista à liberação dos recursos necessários à
implementação do programa, de acordo com cronograma previamente
elaborado; o ministério setorial liberaria os recursos diretamente aos agentes
financeiros para acobertar as aplicações e idêntico procedimento seria adotado
para os casos de bonificação e equalização de custos; os recursos específicos
constantes do orçamento da União para a operacionalização de programas
oficiais de crédito seriam aplicados exclusivamente por intermédio dos bancos
oficiais; e por último, o Banco do Brasil seria o principal agente financeiro dos
programas oficiais de crédito. A nova sistemática proposta recomendava, assim,
uma ampliação dos controles sobre a estrutura destes gastos, além da eleição de
prioridades.
Os trabalhos do GT3, coordenados pela Dr. Raymundo Monteiro
Moreira, à época Secretário Geral Adjunto do Ministério da Fazenda e
funcionário do Banco do Brasil, envolveram a maioria dos membros da
Comissão, pois este grupo deveria tratar do relacionamento institucional entre
Tesouro, Banco Central e Banco do Brasil, abrangendo os seguintes aspectos:
prestação de serviços e riscos do Tesouro Nacional, regularização de operações
de responsabilidade do Tesouro Nacional e das autoridades monetárias,
custódia de numerário, compensação de cheques e depósitos voluntários de
bancos privados e públicos e Conta Movimento do Banco Central no Banco do
Brasil. A amplitude dos assuntos e a quantidade de pessoas envolvidas fez com
que definissem um estatuto de funcionamento, incluindo objetivos de cada
subgrupo, atribuições gerais e cronograma de trabalho.
O relatório parcial do GT3, com 153 páginas, extrapolou seus
propósitos, pois para chegar ao tema principal, ofereceu um diagnóstico
131
Em operação: Fundo Especial de Apoio às Pequenas e Médias Empresas Industriais (FAD
3 – Fepemi); Financiamentos Especiais para Abastecimento de Café ao mercado Financeiro
(Fescaf); Financiamento às Cooperativas de Cafeicultores, Sociedades Assemelhadas e
Empresas Estaduais de Economia Mista (Ficafm); Fundo para Financiamento de Capital de
Giro (Fungir); Programa de Eletrificação Rural de Cooperativas (Geer); Programa de
Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep-giro); Programa Especial de
Exportação (PEE); Programa de Desenvolvimento dos Cerrados (Polocentro); Programa
Nacional do Carvão Mineral (Procarvão),Programa Nacional de Armazenagem
(Pronazem); Programa de Redistribuição de Terras e de Estímulo à Agroindústria do Norte
e Nordeste (Proterra); Empréstimos ao Governo Federal (EGF).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
155
bastante completo da situação em que se encontrava o setor público nacional,
tanto nos seus aspectos institucionais quanto estruturais. Ele começava
atacando o ponto que consideravam crucial para poder falar-se num novo
desenho institucional das finanças públicas: a unificação orçamentária. E
terminava destacando os dois principais obstáculos para que este novo desenho
se implantasse: a função de fomento desempenhada pelo Banco Central e a
Conta Movimento. Trataremos destes dois temas em mais detalhes na análise
do relatório final da Comissão, mas seria interessante refazer o caminho que
percorreram para chegar àquelas propostas.
A questão da unificação orçamentária era assim tratada: "O que se
deseja é dispor de um orçamento federal que contemple todos os recursos com
que a União financiará os seus gastos em cada exercício. E que, caso a
confrontação entre recursos e dispêndios, nessa programação, evidencie um
déficit, seja ele financiado através de operações da dívida pública". E
acrescenta: "Diante da constatação da insuficiência de recursos para financiar
todos os gastos pleiteados — sem apelo à emissão de moeda — seria facilitada
a tarefa de realizar cortes nas despesas em montante compatível com o processo
de ajustamento econômico ora em curso
132
, que se faz necessário diante de uma
conjuntura em que se reduziu substancialmente a poupança disponível (a
externa especialmente) para financiar o desenvolvimento do país ... (assim), a
autoridade monetária não realizaria emissões de moeda com a finalidade de
financiar o déficit público, porque a emissão de moeda não gera poupança
adicional, e ... cria ilusão monetária" (p. 10).
Em outro momento do relatório parcial do GT3, os técnicos afirmam
que não haveria reorganização das finanças públicas "sem o saneamento das
132
Este relatório é de 1984. Vejamos como era avaliada a situação do orçamento nove anos
depois, ou seja, em dezembro de 1993: "O irrealismo orçamentário acentuou-se no início
dos anos 90. A despesa orçada, excluída a rolagem da dívida interna, situou-se
respectivamente em 144, 113 e 108 bilhões de dólares nos exercícios de 1990, 1991 e 1992,
enquanto a receita efetivamente realizada ficou em 111,78 e 68 bilhões de dólares.
Sobressai desses números a imensa disparidade entre o gasto público desejado e o que é
consistente com a nossa realidade tributária, revelada pela disposição da sociedade de pagar
impostos. Uma solução usual para essa situação consistiu numa forma simples de
racionamento: a imposição de limites quantitativos à realização de despesas autorizadas no
Orçamento, conhecida como contingenciamento. Este porém conduz a várias distorções,
das quais a perda de transparência do processo orçamentário é sem dúvida a mais
perturbadora. Em vez da mediação política do Legislativo sobre o confronto aberto das
demandas sociais, o arbítrio burocrático do Executivo passa definir as prioridades efetivas
do gasto público. Pior ainda, pois mesmo nos anos que se adotou o contingenciamento ele
não foi suficiente para resolver o desequilíbrio. A saída então adotada tem sido vedar a
emissão de títulos para a cobertura de gastos correntes. Com isso a repressão fiscal — ou
seja, o adiamento das despesas e sua conseqüente corrosão pela inflação — torna-se o
único instrumento de ajuste das contas da União. Formou-se assim, ao longo do tempo,
uma sociedade espúria entre a Administração Pública, em todos os níveis e instâncias, e o
processo inflacionário (Exposição de motivos n°395, do Programa de Estabilização do
Ministério da Fazenda divulgado dia 7/12/1993 e publicado no jornal O Estado de S. Paulo
do dia 8/12, p. B13).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
156
finanças estaduais e municipais com uma reavaliação dos critérios para o
endividamento dos seus órgãos de administração direta e indireta, do
reequilíbrio do sistema financeiro estadual (principalmente dos bancos) e uma
composição das dívidas passados" (p. 11)
133
.
Outro aspecto que o relatório considerava fundamental era o
equacionamento do sistema das finanças da previdência social, pois "seu
endividamento junto ao Banco do Brasil e demais bancos tem provocado
tensões indesejáveis sobre a condução da política monetária, pois o mecanismo
automático de financiamento através da apresentação de saldos devedores como
‘fato consumado’ se transfere para o Banco Central via redesconto de liquidez
aos bancos comerciais ou via Conta Movimento do Banco do Brasil" (p. 11).
134
Ressaltavam também que o modelo até então utilizado para viabilizar o
Sistema Financeiro de Habitação precisava ser reavaliado, pois o
"direcionamento obrigatório de parte da poupança nacional para o setor da
construção civil (que atende um segmento da população), tem que ser revisto,
num contexto em que escasseiam os recursos disponíveis para financiar outras
prioridades, inclusive a produção de alimentos" (p. 12). Interessante notar que
neste ponto, na sua linguagem cifrada, os técnicos estão fazendo uma crítica às
políticas que definiam como população-alvo dos recursos públicos as camadas
médias, deixando de lado políticas que atingiriam mais as populações de baixa
renda, como a produção de alimentos.
O relatório do GT4, grupo coordenado pelo Dr. Osiris Azevedo Lopes
Filho
135
e que ficou encarregado da proposta de reformulação administrativa da
Comissão de Programação Financeira do Ministério da Fazenda, destoou dos
anteriores e revelou duas coisas. Em primeiro lugar, parece que foi elaborado
para "cumprir tabela"
136
, o que fica demonstrado pela pouca importância que o
assunto mereceu por parte tanto do comando central da Comissão quanto da
própria burocracia do Ministério da Fazenda. O grupo começou a se reunir com
a recomendação de que seu trabalho se limitasse a preparar "a estruturação do
133
A situação em 1993 era a seguinte: "Os Estados, além de desfrutarem das vinculações de
receita, também se beneficiam largamente de transferências voluntárias do Orçamento da
União e do uso dos bancos estaduais como supridores de recursos." (Exposição de motivos
n° 395, do Programa de Estabilização do Ministério da Fazenda divulgado dia 7/ 12/1993 e
publicado no jornal O Estado de S. Paulo do dia 8/ 12, p. B13).
134
A situação em 1993 era a seguinte: "... a Lei de Custeio da Previdência obriga o Tesouro
nacional a cobrir as insuficiências de recursos oriundas de benefícios, quaisquer que elas
sejam. Este automatismo obviamente enfraquece o incentivo para que haja disciplina no
lado da despesa no orçamento da seguridade". (Exposição de motivos n° 395, do Programa
de Estabilização do Ministério da Fazenda divulgado dia 7/12/1993 e publicado no jornal 0
Estado de S. Paulo do dia 8/12, p. B13.).
135
Em dezembro de 1993, o Dr. Osiris era Secretário da Receita Federal do Ministério da
Fazenda.
136
"Cumprir tabela", na linguagem dos locutores esportivos brasileiros, se refere à situação em
que uma equipe já está desclassificada do campeonato, mas tem que participar de um jogo
para cumprir um compromisso formal.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
157
novo órgão de forma que fosse possível funcionar institucionalmente na área já
prevista", ou seja, nas dimensões da Comissão de Programação Financeira já
existente. Na realidade, imaginou-se um novo órgão, mas o que mudaria
realmente era apenas a sua denominação, passando a chamar Secretaria do
Tesouro, mas com atribuições muito semelhantes às que j á desempenhava a
Comissão de Programação Financeira. Assim sendo, das dez páginas do
relatório (o menor de todos), quatro cuidavam de aspectos relacionados com a
vida funcional de seu futuro corpo técnico, sendo o seu paradigma "a estrutura
central da Secretaria da Receita Federal". Definia quantas funções gratificadas
seriam necessárias, como deveria ser a carreira, qual a viabilidade jurídica da
nova categoria funcional, etc. Mas em nenhum momento o relatório
dimensionava a grandiosidade da tarefa que teria pela frente se realmente se
transformasse em Secretaria do Tesouro, resumindo-se a dizer, por exemplo,
que a subsecretaria de execução financeira deveria "liberar os recursos e
realizar auditorias nos órgãos destinatários de recursos ... para acompanhar e
controlar sua utilização", ou então que a subsecretaria de programação e análise
financeira é que deveria "elaborar os fluxogramas de caixa de todas as
atividades pertinentes a projeções e análises das receitas e despesas".
Em segundo lugar, este relatório foi o reflexo do pouco amadurecimento
e da pequena motivação por parte da burocracia "mais distante" do núcleo do
poder, sobre uma mudança no papel institucional que o executivo poderia
desempenhar no acompanhamento dos gastos públicos através da criação de
uma Secretaria do Tesouro. Nem "no papel" eles se dispuseram a colocar suas
idéias, se é que as tinham: "Não acreditávamos que algo seria feito e nem
tínhamos a mínima idéia de como fazer. Quem participou da Comissão (GT4)
foram principalmente os técnicos da Receita, que sabiam como arrecadar, mas
não sabiam quase nada sobre o controle dos gastos. Éramos do terceiro
escalão, e quem estava comandando eram os colegas do Gabinete" (Entrevista
n° 12). A falta de preparo e de envolvimento dos quadros permanentes dos
Ministérios envolvidos nas mudanças vem confirmar a pesquisa feita por
Luciano Martins (MARTINS 1985) quando aponta como, ao longo do tempo, a
burocracia do setor Governo foi se distanciando do perfil que apresentava nas
décadas de 40,50 e 60, como vimos na Parte II
137
.
C) AS DIRETRIZES DO CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL,
O DIAGNÓSTICO E AS PROPOSTAS FINAIS DA COMISSÃO
Na posse dos 106 técnicos que foram nomeados para compor a
Comissão, seu presidente declarou que os trabalhos deveriam estar voltados
para a idéia de que "as despesas governamentais deverão se tornar bem mais
transparentes e, portanto, identificáveis pela sociedade. Assim, a aquisição de
137
Vale acrescentar que os quatro relatórios parciais dos Grupos de Trabalho incluíam um
cronograma de implantação das medidas, um esquema detalhado para a transição, além das
leis e decretos que deveriam ser alterados com a sua nova redação (cerca de 300 entre leis e
decretos-leis).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
158
trigo, por exemplo, deverá aparecer com uma dotação no orçamento destinado
ao Ministério da Agricultura e se houver necessidade de compra adicional do
produto, a agricultura terá que cortar em alguma outra despesa. Atualmente,
quando há pressões neste sentido, o Governo utiliza-se de emissão de moeda, e
isso mantém as finanças públicas e a inflação em altos patamares" (Diário
Comércio e Indústria, 24/8/1984).
As diretrizes estabelecidas pelo Voto do Conselho Monetário Nacional j
á definiam claramente qual deveria ser o objetivo central dos trabalhos da
Comissão: "incorporam o orçamento da União, todos os dispêndios de
responsabilidade do governo federal". A Comissão reuniu-se imbuída da
certeza de que o Voto do Conselho lhes pedia para equacionar definitivamente
"a questão dos dispêndios do governo, realizados pelo Banco do Brasil e Banco
Central, eliminando a possibilidade da interferência direta e incontrolável
desses dispêndios sobre a política monetária, ante o peso que passaram a
representar ... a compra dos produtos agrícolas, o crédito de fomento, o déficit
da previdência social e o pagamento dos avais do Tesouro Nacional em
operações de crédito externo do setor público, a maioria delas viabilizadas por
decisões isoladas do próprio Colegiado" (Relatório Final da Comissão, p. 3).
Outra certeza que a Comissão carregava era de que deveria propor "a
eliminação das atividades de fomento ... exercidas pelo Banco Central, tanto
por revestirem indiscutíveis características de despesa pública quanto pela
conveniência de restringir a atuação daquele Banco às funções que lhe são
próprias ... como as relacionadas com o redesconto de liquidez, os depósitos
compulsórios do sistema bancário, as operações de mercado aberto, as
operações cambiais, a administração do meio circulante, bem como a
fiscalização e o controle do sistema financeiro nacional" (Relatório Final da
Comissão, p. 4).
Outra recomendação presente no Voto do Conselho Monetário Nacional
era a de "transferir para o Ministério da Fazenda a administração da dívida
pública, que continuaria sendo operacionalizada pelo Banco Central", a fim de
criar uma fronteira definitiva entre a atuação do Banco Central no mercado
aberto e aquelas referentes ao endividamento do Tesouro Nacional, que
financiavam os gastos não atendidos pelas receitas do Governo Federal. Esta
recomendação, no entanto, "não incluía na lei de meios as parcelas relativas ao
giro da dívida" o que "deixava de consignar no Orçamento da União todas as
receitas e despesas de responsabilidade do Governo", como lamentava o
Relatório Parcial do Grupo de Trabalho que estudou as novas formas de
administração da dívida pública mobiliária da União.
E, finalmente, a última recomendação do Voto do Conselho Monetário
Nacional, era de que se "redefinisse as funções do Banco do Brasil, preservando
o seu papel de principal instrumento da política creditícia do governo federal e
de agente do Tesouro Nacional". Um dos pontos destacados no referido
relatório, era o perigo do comprometimento progressivo do Banco do Brasil,
pois a ampliação dos gastos públicos, aliada à necessidade de evitar a expansão
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
159
das emissões de moeda, estavam obrigando o Governo a "contingenciar
rigidamente" os seus empréstimos.
Os problemas que o Banco poderia vir a enfrentar, se não se tomasse
alguma providência, j á haviam sido apontados pelo presidente da instituição
em 1983, na mesma época que o grupo de técnicos mencionado anteriormente
já estava se reunindo, quando em 19 de julho enviou um oficio ao Ministro da
Fazenda pedindo a adoção de um conjunto de medidas para pôr fim ao que se
chamava nas conversas informais de "crescente esvaziamento do Banco", e que
aparecia formalmente na parte final de seu oficio: "Não obstante as forças
conjunturais possam vir a modificar as previsões para 1983, está expresso na
composição do orçamento monetário Nacional, por força da política
contracionista, a compressão progressiva da atuação do Banco do Brasil.
Analisada comparativamente essa projeção com os inexoráveis efeitos do
crescimento das despesas administrativas da instituição ... conclui-se por
preocupante comportamento de tendências que evoluem em sentidos
antagônicos e afetarão, a médio prazo, os parâmetros da liquidez do Banco. O
que se observa, pois, Senhor Ministro, é que o Banco do Brasil está sendo
comprimido não por força de contração dos ativos das autoridades monetárias,
mas sim porque, dentro do orçamento monetário, substancialmente mais que a
dele está crescendo a atuação operacional do Banco Central através de outros
agentes financeiros" (Oficio PRESI 83/1279 de 19/07/1983 do presidente do
Banco do Brasil, Dr. Oswaldo Roberto Colin, ao Sr. Ministro da Fazenda Dr.
Ernane Galvêas). No mesmo oficio ele propunha que se colocasse em regime de
contabilização especial a Conta Movimento do Banco Central, cujos saldos, na
sua opinião, deveriam ser movimentados pelas liquidações das operações
garantidas por ela, na medida em que fossem ocorrendo; propunha também que
se instituísse nova conta de suprimento para registro contábil das operações do
Tesouro Nacional de interesse do Banco Central; que se garantisse ao Banco do
Brasil a prática, de forma integral, das operações bancárias que tivessem
respaldo em recursos e captações próprios; que se transferisse do Banco Central
para o Banco do Brasil as operações de fomento realizadas pelo Banco Central
no âmbito da política de crédito rural; e que se deslocassem, de forma
definitiva, do Banco do Brasil para o Banco Central, os depósitos voluntários
das instituições financeiras.
Na realidade, este alerta do presidente do Banco do Brasil, se por um
lado demonstrava que algo precisava ser feito, por outro lado sugeria que as
mudanças caminhassem na direção de fortalecer mais ainda o Banco do Brasil
como autoridade monetária, além de conceder-lhe alguns privilégios típicos dos
bancos comerciais.
O relatório da Comissão não deixou dúvidas quanto a dois pontos
centrais que deveriam nortear as finanças públicas do país daquele momento em
diante, ao sugerir a implantação definitiva dos princípios básicos de
universalidade e de unicidade orçamentária. A universalidade garantiria a
incorporação no orçamento aprovado pelo Congresso Nacional de todas as
receitas e todas as despesas a cargo do Tesouro Nacional, incluindo as
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
160
operações de crédito externo e interno em que a União aparece como tomadora
além dos respectivos programas assim financiados. A unicidade garantiria a
existência de um orçamento único, com uma caixa única, que registraria as
receitas e as despesas que constituiriam um grande fundo comum
138
.
Os demais pontos destacados no relatório foram: tornar transparentes os
gastos do Governo Federal, evitando a realização de despesas implícitas,
principalmente pela via de taxas de juros reais negativas nas operações de
crédito de fomento. O subsídio, quando houvesse, deveria ser claramente
destacado em dotações específicas do orçamento da União; explicitar os déficits
do orçamento da União, quando fosse o caso, e a forma de financiá-los, vedado
o uso das emissões de moeda com essa finalidade; finalmente, possibilitar visão
completa dos gastos públicos, de modo a auxiliar o Poder Executivo e o
Congresso Nacional na decisão sobre prioridades na alocação dos recursos do
Governo Federal para atender os diversos itens da despesa (Relatório Final da
Comissão, p. 6).
Para alcançar os efeitos pretendidos, o referido relatório propunha, em
primeiro lugar, a extinção do orçamento monetário, que na forma corrente na
época "era a mera consolidação dos balanços e balancetes do Banco Central e
Banco do Brasil". O que se propunha não era o simples somatório dos
orçamentos da União, monetário e o orçamento Sest (das empresas estatais). Se
isto fosse feito, prosseguia o relatório, estar-se-ia incluindo no orçamento da
União "matéria estranha à política fiscal, como os depósitos à vista do público
no Banco do Brasil"; além da consolidação das operações comerciais e
financeiras das empresas estatais do setor produtivo, que apareciam no
orçamento Sest.
Em segundo lugar, o relatório sugeria a centralização das
disponibilidades do Tesouro no Banco Central, o que permitiria uma adequada
administração do fluxo de caixa e a redução dos encargos da dívida pública. De
forma suave, porém clara, o relatório denunciava que, a propósito de prestar
assistência a "setores e regiões prioritárias" o Tesouro vinha "historicamente"
expandindo o seu endividamento sem que isto ficasse visível no orçamento
publicado: "... ao longo do tempo cristalizou-se a falsa idéia de que o Tesouro
Nacional poderia espalhar os seus recursos pelas instituições financeiras
públicas e privadas para atingir objetivos de política fiscal. A oferta de
depósitos a custo financeiro zero nos bancos oficiais federais lhes permitiria
ampliar a assistência a setores e regiões prioritários, a taxas favorecidas de
juros. Por outro lado, a permanência por um determinado prazo, de recursos da
arrecadação tributária na rede arrecadadora possibilitaria a prestação de
correspondentes serviços sem ônus para o Tesouro Nacional. Em qualquer dos
casos, existe uma despesa implícita a onerar o Tesouro Nacional. Sem poder
utilizar os recursos depositados, mas tendo de realizar a despesa, o Tesouro
138
Os princípios da universalidade e da unicidade, bem como muitos dos itens arrolados a
seguir, já estavam definidos desde a Constituição de 1946, e eram explícitos na Lei n.4
4.320 de abril de 1964, mas ou não eram cumpridos ou foram alterados por Atos
Institucionais e Complementares.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
161
acaba por expandir o seu endividamento, pagando juros e correção monetária.
Assim, a despesa acaba por ser realizada (o subsídio ao crédito e os recursos de
arrecadação), com o inconveniente de não explicitá-lo no orçamento da União"
(Relatório Final da Comissão, p. 7-8).
O sistema de "caixa única" do Tesouro no Banco Central eliminaria esta
grave distorção. O documento sugeria que ela poderia ser implantada em duas
etapas: na primeira, entrariam todas as disponibilidades não comprometidas,
sejam aquelas que tivessem origem na execução orçamentária ou naquelas
oriundas das operações de crédito da União, ficando no Banco do Brasil e
demais instituições autorizadas apenas os recursos de depósitos à vista das
unidades orçamentárias e que já estivessem devidamente liberados como
despesa pelo Ministério da Fazenda. Na segunda fase, todos
139
os recursos
seriam transferidos para o Banco Central "que assumiria, como lhe cabe, a
função de depositário dos recursos do Governo Federal. Não mais haveria
depósitos do Tesouro em nome de unidades orçamentárias em qualquer outra
instituição financeira. A arrecadação da Receita Federal seria transferida no dia
útil imediato ao Banco Central, podendo os agentes arrecadadores optar pela
permanência por um determinado período, abonando a remuneração que vier a
ser acordada com o Tesouro Nacional" (Relatório final da Comissão, p. 8).
Estes objetivos não eram novos pois já estavam expressos do III PND aprovado
pelo Congresso em maio de 1980. O problema era colocá-los em prática.
O relatório prossegue indicando as principais conseqüências desta nova
orientação para cada uma das instituições envolvidas. O Banco Central não
estaria mais envolvido no levantamento de recursos ou emissão de moeda para
cobrir possíveis dificuldades financeiras da União. O Banco do Brasil não seria
mais o depositário das reservas voluntárias dos bancos e, principalmente, não
receberia automaticamente recursos para suprir os seus desequilíbrios de caixa.
No que se refere ao Conselho Monetário Nacional, seriam retiradas suas
faculdades de "criar linhas de crédito e subsídios... que passariam a depender do
orçamento da União. Ao mesmo tempo ... se eliminaria a possibilidade do
Conselho autorizar o uso dos recolhimentos compulsórios dos bancos com
objetivos de fomento, restringindo-os ... a instrumento de política monetária"
(Relatório Final da Comissão, p. 11). A Comissão sugeria, finalmente, que o
Conselho Monetário Nacional se concentrasse nas atividades de integração da
política fiscal, monetária e cambial com os objetivos da política econômica do
país; nas de controle e dimensionamento da expansão do crédito de acordo com
os interesses nacionais; e, finalmente, que fixasse as diretrizes para um sadio
desenvolvimento dos mercados financeiro e de capitais. Em seu discurso de
abertura do XV Congresso Nacional de Bancos, citado anteriormente, o
Ministro da Fazenda Emane Galvêas declarou: "... nossa proposta visa proteger
o Conselho Monetário de influências políticas, para... inibir sua capacidade
atual de expandir os gastos públicos, seja através do Banco do Brasil ou do
Banco Central, e concentrar atuação nas suas funções básicas de principal órgão
139
Grifo do relatório.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
162
da administração pública: a coordenação das políticas fiscal, monetária e
cambial; o controle da expansão do crédito e a faculdade de orientá-lo segundo
os interesses nacionais; e a fixação. das diretrizes que disciplinam as atividades
e o desenvolvimento do sistema financeiro e do mercado de capitais" (p. 9).
A semelhança em forma e conteúdo dos conceitos desenvolvidos pela
Comissão encarregada do Relatório Final do Voto do CMN e o discurso do
Ministro da Fazenda, confirmam a idéia de que o Governo j á tinha em 1984
plena consciência da necessidade e urgência de se iniciar uma reforma
institucional das finanças públicas no país. E a burocracia do setor Governo
ligada ao Ministério da Fazenda, Secretaria do Planejamento da Presidência da
República, Banco Central e Banco do Brasil já tinha um modelo para esta
reforma. Faltava definir o melhor percurso para implementar a proposta e
vontade política para agir. E esta parece que não existia.
Quais medidas de curto prazo eram propostas pela Comissão para o
novo modelo de relacionamento institucional entre Tesouro Nacional, Banco
Central e Banco do Brasil?
No que se refere ao Tesouro Nacional, as principais medidas defendidas
foram: reformular o orçamento da União, incluindo nele todos os recursos e
dispêndios; centralizar no Banco Central as disponibilidades do Tesouro
Nacional; integrar no Ministério da Fazenda, a administração da dívida pública
mobiliária interna, permanecendo o Banco Central como agente do Tesouro
Nacional para a colocação primária dos títulos e execução dos demais serviços
da dívida; reestruturar a Comissão de Programação Financeira para assumir as
tarefas de administração da caixa do Tesouro Nacional e da dívida pública
federal, bem como de acompanhamento e controle das operações que
envolvessem riscos financeiros para o Tesouro Nacional; criar o Comitê da
Dívida Pública com a finalidade de auxiliar na formação da política da dívida
pública e coordenar as ações dos órgãos envolvidos.
No âmbito do Banco Central, as medidas propostas foram: extinguir o
orçamento monetário e instituir novo modelo de programação monetária; retirar
do Banco do Brasil e colocar no Banco Central atividades que lhe eram típicas,
tais como, a função de caixa do Tesouro Nacional, a função de depositário das
reservas do sistema bancário e a função de supridor de moeda manual; transferir
para o Ministério da Fazenda, como já foi dito acima, a gestão da dívida pública
mobiliária interna federal; eliminar as funções de fomento do Banco Central e a
possibilidade de utilização dos recolhimentos compulsórios para ações de
fomento.
Estas alterações aproximariam o Banco Central do perfil de um banco
central clássico. Aliás, a burocracia da área econômica do setor Governo (com
exceção da pertencente ao Banco do Brasil) sempre foi favorável à
independência do Banco Central: “Esta independência era fundamental para
que a sociedade tivesse mais um instrumento de controle sobre os gastos do
Governo e não, como ocorre no caso brasileiro, do Banco Central se
transformar em financiador do déficit público. O Banco Central independente
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
163
serve de alerta para que a sociedade perceba sempre quando o Governo está
gastando mais do que podia, e o sinalizador seria a taxa de juros. Quando ela
subisse seria porque isto estava ocorrendo” (Entrevista n° 3).
Finalmente, as mudanças propostas, no que se refere ao Banco do
Brasil, podem ser assim resumidas: transferir para o Banco Central as
disponibilidades não comprometidas do Tesouro Nacional, permanecendo no
Banco apenas as contas de depósitos das unidades orçamentárias; transferir para
o Banco Central os depósitos voluntários dos bancos comerciais e a função de
supridor de moeda manual, como já foi visto anteriormente; definir meios que
assegurassem ao Banco do Brasil o papel de principal instrumento de política
creditícia e de atuação direta do Governo Federal no setor financeiro; e, por
último, eliminar a sistemática da Conta Movimento do Banco Central, medida
que acabou provocando a maior resistência por parte da "corporação" Banco do
Brasil, como veremos adiante.
Como já anotamos anteriormente, os problemas com o financiamento do
crédito rural, e a pré-falência deste sistema, chamou a atenção para os erros de
muitos dos programas oficiais de crédito. A partir do diagnóstico da Comissão,
o relatório sugeriu as seguintes medidas: realizar todas as operações de crédito
com recursos do Orçamento da União, alocados aos ministérios setoriais,
inclusive aquelas com instituições internacionais; ao ministério setorial deveria
caber a supervisão da política; entregar ao Conselho Monetário Nacional a
definição das regras básicas de operação; proibir as operações de repasse ou
refinanciamento do Banco Central; subordinar à aprovação do Congresso
Nacional a assunção de riscos operacionais sob responsabilidade do Tesouro
Nacional.
A análise de algumas das medidas de aplicação a médio prazo, indica a
profundidade das mudanças sugeridas, bem como o seu cronograma mínimo. A
caixa única de Tesouro Nacional no Banco Central deveria ser implantada a
partir de janeiro de 1986, extinguindo-se todas as contas de depósitos das
unidades orçamentárias nas demais instituições financeiras. O prazo de dois
anos seria necessário para reorganizar o sistema financeiro em todas as
unidades orçamentárias, bem como mecanizar as informações, muitas das quais
mantinham o sistema manuscrito em poder de diferentes técnicos, um de cada
componente orçamentário. Mesmo com a implantação do caixa único, manter-
se-ia descentralizado o sistema de pagamentos, que seriam feitos à base de
autorização mensal de saques, através de cheques compensáveis no mesmo dia
pelo Banco do Brasil: "A rationale da medida está em que o Tesouro somente
supriria fundos para desembolsos previstos no orçamento da União, evitando
manter recursos naquelas instituições financeiras, a custo financeiro zero,
enquanto se endivida junto ao público, pagando juros e correção monetária"
(Relatório Final da Comissão, p. 17).
Como parte das propostas de médio prazo, deveria ser revista a
sistemática de arrecadação dos tributos federais, que, se não fossem recolhidos
no dia útil imediato ao seu pagamento, os bancos pagariam juros ao Tesouro
Nacional em taxas equivalentes à das operações de mercado aberto. Finalmente,
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
164
o relatório propunha que se enviasse ao Congresso legislação estabelecendo
diretrizes claras para os créditos de fomento de qualquer natureza, com
definição de parâmetros mínimos para os encargos financeiros, inclusive com a
criação de um sistema de seguro, principalmente para as operações de crédito
rural.
Como conclusão final, o relatório da Comissão destacava que este
conjunto de medidas completaria "a transição iniciada com a reforma de 1964
(Lei 4.595)" que rearticulou o sistema bancário. Entretanto, fazia a ressalva de
que "as medidas propostas não serão capazes, por si só, de resolver todos os
problemas com que nos defrontamos ... principalmente os relacionados com o
déficit da previdência social, a intervenção estatal no trigo e no açúcar e as
finanças estaduais e municipais" (Relatório Final da Comissão, p. 19). Estes
temas, afirmavam, deveriam ser tratados com a mesma urgência, mas em
separado.
A lista das autoridades que assinam o relatório foi depois contestada
pelos representantes do Banco do Brasil, que declararam através da imprensa,
no último mês do Governo Figueiredo, que haviam participado das discussões,
mas não haviam assinado o relatório final. Mas no exemplar que foi
apresentado ao Conselho Monetário Nacional, e que constam de seus arquivos,
estão os seguintes nomes:
Mailson Ferreira da Nóbrega, então Secretário Geral do Ministério da
Fazenda e Presidente da Comissão;
Edésio Ferreira Fernandes, Coordenador de Assuntos Econômicos do
Ministério da Fazenda;
Elyeser de Souza Cavalcanti, Secretário Executivo da Comissão de
Programação Financeira do Ministério da Fazenda;
Akihiro Ikeda, Secretário Especial de Assuntos Econômicos da Seplan;
João Batista de Abreu, Chefe da Assessoria Técnica do Ministro-chefe da
Seplan;
Frederico Augusto Bastos, Secretário de Orçamento e Finanças da Seplan;
José Luíz Silveira Miranda, Diretor da Área Bancária do Banco Central;
José Kleber Leite de Castro, Diretor de Crédito Rural e Programas
Especiais do Banco Central;
Silvio Rodrigues Alves, Chefe do Departamento Econômico do Banco
Central;
Sadí Assis Ribeiro Filho, Diretor de Controle do Banco do Brasil;
Aléssio Vaz Primo, Diretor de Crédito Rural do Banco do Brasil;
Geraldo Naegele, Consultor Técnico do Banco do Brasil.
A visão que a Comissão tinha do novo desenho institucional das
finanças públicas levanta algumas questões para nossa reflexão. Ao tratar da
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
165
reestruturação das finanças públicas, a Comissão levantou pontos que
ultrapassaram os limites de uma mera reorganização formal. Várias medidas
apontam nesta direção. A transferência da administração da dívida pública do
Banco Central para o Ministério da Fazenda permitiria ao Governo utilizaras
emissões de títulos públicos, principalmente para a condução da política
monetária, e com isto poderia controlar melhor seus próprios gastos. Mas a
principal conseqüência desta medida seria o fim da Conta Movimento que
supria o Banco do Brasil com recursos do orçamento monetário, através da
emissão de moeda ou de títulos. Com isso, automaticamente, ficaria extinto o
próprio orçamento monetário. Todas as previsões de despesas do Governo
Federal estariam então contidas no orçamento fiscal, que seria aprovado pelo
Congresso Nacional. Era a consagração do princípio da "transparência" nas
contas públicas. Seria este um voto de confiança que estavam dando ao
Congresso e conseqüentemente aos políticos?
Um dos entrevistados declarou: “pretendíamos abrir para a sociedade
todas estas questões e tornar claros todos estes desvios. Achamos na época que
a única maneira de fazer isto seria através do Congresso Nacional, apesar de
todos os riscos que isso poderia trazer" (Entrevista n°5). Mas quem era a
sociedade para eles? Era uma entidade abstrata, desprovida de interesses, capaz
de fiscalizar com neutralidade? Pelos depoimentos, percebe-se que seu
pensamento se aproxima das idéias liberais que consideram a sociedade como
um espaço "independente" onde são definidas as prioridades, prioridades estas
que são levadas por representantes eleitos ao Estado, inclusive determinando
seus poderes e estabelecendo seus limites. Não questionam em nenhum
momento como se estruturam os interesses nem como se definem as
prioridades. A análise das reações a estas propostas, e as respostas dadas pela
burocracia, nos permitirão avançar neste raciocínio.
166
C
APÍTULO IV
O ENCAMINHAMENTO DAS MEDIDAS
A pressa com que se tentou encaminhar as medidas propostas pela
Comissão teve duas motivações distintas. Por parte dos comandantes da política
econômica, ministros Delfim e Galvêas, colocam a questão de por que o mesmo
Governo que teve na direção de sua política econômica grande margem de
manobra na manipulação dos gastos públicos, trabalhando com todo tipo de
facilidades, uma vez que seus gastos foram cobertos pelo orçamento monetário,
resolveu agir com todo afinco nos seus últimos meses para iniciar uma reforma
que inibiria estas ações para o próximo governo? Acontece que a derrota de
Mário Andreazza e a vitória de Maluf na convenção do PDS, mais a perspectiva
da vitória de Tancredo no colégio eleitoral, mudou totalmente o curso das
coisas. O assunto só voltou a exame por uma decisão política que levou em
conta este novo quadro, fazendo com que o Palácio do Planalto concluísse que
a reforma do sistema financeiro deveria ser feita o quanto antes: "É preciso
cuidar para que o próximo Governo perca a regalia de aplicar vultosos recursos
sem dar satisfações a ninguém ... tornava-se necessário deixar uma sala de vidro
para a próxima administração, de modo que seus movimentos possam ser
melhor acompanhados. Não se pode deixar (como é hoje) ... inteiramente livre
para o próximo Governo, para dispor como bem quiser do orçamento
monetário.... seria como dar-se um cheque em branco a um Governo de
oposição ao movimento de 1964" (Helival Rios, Folha de S. Paulo, 1/10/84.).
Esta afirmação apresentava com clareza a "nova posição" das autoridades
governamentais.
Entretanto, havia uma segunda motivação, esta por parte dos técnicos
que participaram da Comissão. Eles temiam que com a maior participação do
Congresso Nacional nas decisões de Governo, as pressões clientelistas
acabassem saindo vencedoras nas decisões das autoridades monetárias. A forma
de ter-se um antídoto para esta situação era abrir as contas do Governo para a
sociedade via Congresso Nacional. A presença de pressões mais difusas poderia
aumentar a importância da ação destes técnicos. E por isso tudo consideravam
bem-vinda a aparente mudança de posição do Palácio do Planalto.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
167
A) OS FATOS I: UMA VITÓRIA PARCIAL E TEMPORÁRIA
Alguns fatos demonstram que os próprios técnicos sabiam que algumas
destas propostas, mesmo que aprovadas, não poderiam ser postas em prática
imediatamente, o que pode ser uma indicação de que estavam mais preocupados
em criar situações irreversíveis para o próximo governo, do que possibilitar que
se colhessem os benefícios das medidas a curto prazo. Por exemplo, a não
inclusão no Projeto de Lei Orçamento de 1985, enviado ao Congresso, de uma
dotação destinada a atender aos encargos da dívida interna, seria um obstáculo à
implementação da Reforma. Como a proposta de alteração do projeto de lei
orçamentária não foi enviado, o atendimento dos encargos da dívida interna
continuariam com o Banco Central. Quando esta questão foi levantada, o
Secretário Executivo do Ministério da Fazenda, Mailson da Nóbrega declarou
ao Jornal da Tarde que isto não seria problema, pois mesmo não estando no
orçamento, o lançamento adicional de títulos constituiria numa operação de
crédito, o que seria feito através de Projeto de Lei específico a ser encaminhado
ao Legislativo, projeto este que determinaria a abertura de crédito especial para
o lançamento de títulos. E afirmava "... a reforma em nada vai alterar a estrutura
do endividamento público... mas ocasionará basicamente uma mudança
administrativa, passando a administração da dívida do Banco Central para o
Ministério da Fazenda" (Jornal da Tarde 27/9/84).
A reunião do Conselho Monetário Nacional do dia 13 de dezembro de
1984 deveria examinar e decidir sobre as medidas propostas no Relatório da
Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas criada quatro meses
antes por ele mesmo. Mas após a forte reação contrária, vinda dos segmentos
mais variados, e, como veremos adiante, motivada por razões diferentes, a
imprensa do próprio dia 13 noticiava que o Governo havia decidido recuar e
retirar da pauta a apreciação do relatório: "A reforma precisa dos pareceres
finais de muitas das partes interessadas" (ministro Emane Galvêas, Correio
Brasiliense, 13/12/84). A decisão de não examinar o relatório foi tomada após
uma reunião da qual participou o presidente do Banco do Brasil, Oswaldo
Collin, o presidente do Banco Central, Affonso Celso Pastore, e o Ministro da
Fazenda, Emane Galvêas, atendendo a um pedido vindo do Palácio do Planalto
por intermédio do Ministro Chefe da Casa Civil, Leitão de Abreu.
Entretanto, apesar da decisão de não colocar em votação o relatório,
permanecia na pauta da reunião do Conselho Monetário Nacional o exame da
programação monetária de 1985. Foi quando manifestou-se mais uma vez a
capacidade criadora de quem conhecesse o caminho. Através da manipulação
do próprio orçamento monetário, com a retirada de parte dos recursos
governamentais combinada com rígidos limites de aplicação para o ano de 1985
e restrições à atuação do Banco do Brasil, começou na prática a reforma
bancária: “A programação monetária de 1985, aprovada pelo Conselho
Monetário no dia 13 de dezembro, já dispensava ao Banco do Brasil o
tratamento de banco comercial restrito. Assim sendo, a partir de janeiro, a
variação dos empréstimos do Banco do Brasil deixaria de influenciar a base
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
168
monetária (emissão primária de moeda) por não serem mais consideradas
operações ativas da autoridade monetária. Os depósitos à vista do Banco do
Brasil também deixariam de compor a base monetária. Como banco comercial,
o Banco do Brasil não poderia mais sacar da Conta Movimento que ficaria
congelada, com a redução gradual de seu saldo. Assim sendo, o Banco do
Brasil precisaria manter um volume de aplicações compatível com o
crescimento da captação, já deduzido o recolhimento compulsório sobre os
depósitos à vista e a prazo. Caso ocorresse alguma emergência, o banco
deveria recorrer aos empréstimos de liquidez do Banco Central, como qualquer
outro banco comercial" (Entrevista n° 3).
Com estas providências, o Banco Central passaria a ser, na prática,
autoridade monetária única e seria dado mais um passo para a unificação dos
orçamentos fiscal e monetário: "Basicamente, o repasse de recursos do
superávit do Tesouro passaria a ser a fonte de dinheiro não-inflacionário do
Banco Central para suprir as operações ativas da base monetária" (Entrevista
n° 3).
A partir deste "congelamento" da Conta Movimento, o Banco do Brasil
só poderia efetuar os pagamentos dos benefícios da Previdência Social,
financiar a formação dos estoques reguladores, efetuar a compra do trigo, por
exemplo, se recebesse os recursos do Banco Central expressamente destinados
para este fim.
Estas medidas saíam com a força de uma Resolução do Conselho
Monetário Nacional, o que não era muito, pois dependeria do quanto fosse
respeitada na prática pelos condutores da política econômica. Mas é importante
notar que foi um processo conduzido durante todo o ano de 1984, culminando
com a reunião do Conselho Monetário Nacional pela ação praticamente isolada
de uma parte da burocracia que compunha o grupo central da Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas. Com seus conhecimentos técnicos dos
mecanismos de formulação da programação monetária, prepararam uma peça
para o ano de 1985, que trazia no seu bojo algumas das medidas que haviam
sido vetadas inclusive pelo Palácio do Planalto. Com este "atalho", tentavam
também evitar um atrito com o Congresso, que fatalmente ocorreria se
apelassem para o decreto-lei: "Através de um mecanismo administrativo
normal, a Conta Movimento foi congelada. O disciplinamento do financiamento
do setor público era fundamental para que se possa atingir o objetivo de
controlar e reduzir o déficit público, abrindo mais espaço para o setor privado
da economia" (José Luiz de Miranda, Diretor da Área Bancária do Banco
Central, Correio Brasiliense, 15/12/84).
Após a decisão do Conselho Monetário Nacional, numa demonstração
de que a ação partiu da burocracia e não do Governo, o Presidente Figueiredo
declarou-se descontente com o seu resultado e "solicitou explicações para o
ministro Delfim Netto sobre a questão e este respondeu que não estava
inteirado do assunto" (O Estado de S. Paulo, 21/12/1984 e Entrevista n° 5).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
169
Na realidade, o congelamento na prática da Conta Movimento era um
início bastante tímido, pois deixava de fora a maior parte das medidas propostas
pelo relatório final da Comissão, mas poderia ser encarado como um primeiro
passo. Assim, a violência da reação que descreveremos a seguir, foi
desproporcional ao alcance da mudança
140
.
O contra-ataque veio rápido, sinal também dos novos tempos: no dia 19
de dezembro de 1984, o Deputado Federal do PMDB, Élquisson Soares, "com a
anuência do candidato Tancredo Neves"
141
, segundo declarou, deu entrada na
Justiça Federal com uma Ação Popular contra a determinação do Conselho
Monetário Nacional de congelar a Conta Movimento a partir de 1 ° de janeiro
de 1985. Segundo a Ação Popular "as medidas administrativas aprovadas pelo
Conselho Monetário Nacional são ilegais, e, se postas em prática,
desestabilizarão o Banco do Brasil". Além disso, a Ação Popular alertava que
não havia possibilidade de deixar-se de aplicar os recursos da Conta
Movimento do Banco do Brasil, sem provocar uma recessão profunda. A ação
denunciava também que o Banco Central passaria a aplicar recursos através do
sistema bancário comercial (onde o Banco do Brasil seria apenas mais um), o
que representaria a transferência de depósitos para os bancos privados. E estes
seriam, para os autores da ação, os reais objetivos da proposta, e não a alegada
"redução da inflação mediante o controle dos meios de pagamento". O deputado
declarou ao encaminhar a ação, que o "sistema financeiro internacional tem
interesse no enfraquecimento do Banco do Brasil, pois isso poderá levar à
abertura do setor bancário nacional à participação estrangeira" (Folha de S.
Paulo, 20/12/1984).
Com uma liminar da Justiça Federal concedida pela juíza Ana Maria
Pimentel Trintão, as primeiras medidas da reforma financeira decididas pelo
Conselho Monetário Nacional foram suspensas no dia 19 de dezembro. Na sua
decisão, ajuíza determinava que "as autoridades monetárias apontadas rés
(Ministro da Fazenda, Emane Galvêas e presidente do Banco Central, Affonso
Celso Pastore) se abstenham de praticar atos de execução que viabilizem as
medidas adotadas na reunião do Conselho Monetário Nacional de 13 de
dezembro de 1984, que possam atingir a estrutura, a competência do Banco do
Brasil S. A., ou de qualquer forma causem lesão ao patrimônio público"
140
O congelamento da Conta Movimento não extinguia o orçamento monetário, pois havia
outras maneiras de acioná-lo. Além disso não se estava criando a "caixa única" do Tesouro
no Banco Central; não se alterava o papel do Conselho Monetário Nacional; não se
transferia a gestão da dívida pública para o Ministério da Fazenda; não se eliminavam as
funções de fomento do Banco Central.
141
O deputado declarou que transmitiu, através de assessores, sua intenção de entrar com a
ação popular, e que teria recebido um sinal verde através do mesmo canal de comunicação.
Como veremos a seguir, esta foi mais um das posições que ficaram sem ser esclarecidas,
pois outros interlocutores ligados ao Dr. Francisco Dornelles afirmavam que Tancredo
Neves era a favor do encaminhamento que estava sendo dado, que estaria inclusive sendo
feito em comum acordo com os técnicos que o lideravam. Lembremo-nos que a este tempo
o Dr. Dornelles era o Secretário da Receita Federal do Governo Figueiredo (Entrevista
nº 1).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
170
(Íntegra da Decisão, cópia expedida pela Secretaria da Sá Vara da Justiça
Federal, registrada sob o n° 230-AD184 em 19 de dezembro de 1984).
B) OS FATOS II: OS PRIMEIROS MESES DE GOVERNO DA NOVA REPÚBLICA
Nos primeiros meses de 1985, o Governo Figueiredo nada fez para
contestara decisão judicial, apesar da pressão de alguns membros da Comissão
para o Reordenamento das Finanças Públicas: “Chegamos a levar ao ministro
Galvêas, preparada pelo Dr. Cid Heráclito, a contestação da medida judicial,
mas o ministro disse que o Presidente preferia não encaminhá-la” (Entrevista
n° 5).
Antes da posse do presidente eleito, Tancredo Neves, a Copag
Comissão para o Plano de Governo apresentou em seu relatório final um
capítulo abordando a questão das finanças públicas
142
. Iniciava sua análise com
um diagnóstico em que afirmava que "a programação global das contas públicas
apresentada pelo... Governo para 1985, é inequivocamente precária e irrealista,
(pois) fortes desequilíbrios estão embutidos nos orçamentos fiscais, monetário,
das estatais e do Sinpas
143
" identificando em seguida o montante e as causas
destes desequilíbrios. E acrescentava: "A programação global das contas
públicas para 1985 parece claramente inconsistente, configurando uma situação
onde o raio de manobra é muito estreito e contraditório. ... O grande desafio
consiste em analisar e aprofundar alternativas mais convenientes para o
financiamento efetivo do déficit global das finanças públicas que sejam, ao
mesmo tempo, compatíveis com três objetivos: controle da inflação, redução da
taxa de juros e retomada sustentada do crescimento e dos investimentos
produtivos". Na sua parte final, o relatório apontava: "Deve-se enfrentar as
distorções quanto à própria natureza da dívida mobiliária. É fundamental
preservá-la através de uma reforma, para que atue como precioso instrumento
auxiliar (de médio e longo prazo) para o financiamento do desenvolvimento
econômico (considerando o peso relativamente pequeno desta sobre o PIB),
evitando-se traumas de ajustamento para o sistema financeiro nacional. Além
disso, é relevante um aprofundamento da reflexão sobre: a coordenação
explícita dos diferentes ‘orçamentos’, com elevado grau de transparência
pública e legislativa; a reformulação das relações internas entre as Autoridades
Monetárias (Bacen, BB, Tesouro, BNH, etc.); aperfeiçoamento das estruturas
de controle hoje existentes (Sest, SOF, Secin, Comor, etc.,) como instâncias não
duplicadas e, mais que isso, não apenas de fiscalização, mas também de
planejamento do gasto e das inversões do setor público, a médio e longo prazos;
142
“Subsídios sobre a Situação das Finanças Públicas” in Copag, Relatório Final, fevereiro de
1985, mimeo.
143
Sistema Nacional de Previdência Social.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
171
e a necessidade de revisar amplamente a estrutura tributária
144
. E finalizava: "O
conjunto de questões acima enfeixa os principais temas de uma Reforma
Financeira de grande envergadura, cuja implementação requer a elaboração de
estudos de grande profundidade, sendo recomendável a constituição imediata de
Grupos de Trabalho nesta direção" (Relatório Final da Comissão para o Plano
de Governo, fevereiro de 1985, mimeo)
145
.
A leitura do documento indica que o grupo encarregado de elaborá-lo
teve acesso limitado às informações, o que parece normal dentro de um quadro
em que seus membros vinham da oposição e a grande maioria jamais havia
participado da administração pública. Além disso, como desconfiavam de
qualquer pessoa que houvesse participado dos Governos militares, não
recorriam a estes burocratas ou técnicos a não ser para obter informações,
jamais levando em consideração suas propostas: "Sugeri uma vez que
chamássemos para uma reunião o Mailson, pois tinha ouvido falar dos
trabalhos de uma Comissão que ele havia coordenado. Já havíamos ganho a
eleição, qual era o problema? Acabaram me convencendo de que aquele
trabalho havia sido feito apenas para acalmar o FMI e seus resultados
seguiam o receituário de uma orientação monetarista da qual queríamos nos
afastar" (Entrevista n° 16). Assim, é grande a fragilidade do documento
apresentado pelo Copag, se comparado ao relatório da Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas, ao qual os membros do novo Governo
poderiam até ter acesso se quisessem. A ausência de qualquer referência à
desorganização institucional das finanças públicas torna ingênuas as propostas
de redução das taxas de juros, controle da inflação e retomada sustentada do
crescimento e dos investimentos produtivos. Apesar de apontarem a
necessidade de "uma reforma financeira de grande envergadura", a ausência de
uma avaliação da gravidade da situação institucional das finanças públicas
explica o "susto" que levaram quando assumiram a direção da economia:
"Sabíamos que a situação econômica era grave, apesar de estar um pouco
melhor do que em 1983, mas não tínhamos noção da precariedade dos
instrumentos disponíveis para atuar na execução de qualquer política”
(Entrevista n° 14).
A distância entre as articulações no âmbito da Copag e as intenções do
presidente eleito, Tancredo Neves, parecia ser muito grande, e isto ficou
demonstrado no episódio da escolha do Ministro da Fazenda. Pouco antes de
sua posse, Tancredo Neves escolheu para Ministro — e esta foi uma escolha
pessoal que escapou às articulações da Aliança Democrática — seu sobrinho
Francisco Dornelles, que havia sido, até o final do Governo Figueiredo,
Secretário da Receita Federal. Economista de perfil conservador, sem ligações
partidárias, Dornelles compartilhava com muitas das idéias desenvolvidas
durante os trabalhos da Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas,
144
Entrando em detalhes no que se refere à reforma tributária que não fazem parte do escopo
deste trabalho.
145
Cópia cedida pelo professor Wilson Suzigan, visto que o Relatório Final não foi publicado.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
172
tendo inclusive participado das reuniões iniciais e finais da Comissão, e
assinado o relatório enviado ao Conselho Monetário Nacional. Mas, talvez por
temer que a perda de muitos dos poderosos mecanismos que a atual
configuração das contas públicas dava ao governante, não parecia estar disposto
a criar as condições políticas para implantar as mudanças: “Ele havia
aprendido com o Delfim que a centralização de poder era a chave do comando
da economia” (Entrevista n° 11).
Esta sua falta de disposição já apareceu antes da posse do novo
Governo, quando, como futuro Ministro da Fazenda, esteve com o Ministro do
Planejamento, Delfim Netto, para negociar a transição e o assunto do
reordenamento institucional das finanças públicas não foi objeto de
conversações e nem de negociações: “Nos meses de janeiro, fevereiro e março,
não chegou até o Ministério da Fazenda nenhum sinal de que o futuro Governo
representado pelo ministro Dornelles já tinha uma posição definida no que se
refere ao reordenamento das finanças públicas, ou mesmo de que este assunto
fosse prioritário” (Entrevista nº 2).
Logo ao assumir o Ministério da Fazenda durante a interinidade do
Presidente Sarney, a equipe do ministro Francisco Dornelles não promoveu
nenhuma ação na tentativa de derrubar a liminar na justiça, ou mesmo
encaminhar ao Congresso Nacional via Projeto de Lei, alguma medida que
alterasse o desenho institucional da administração das finanças públicas. Um
fato anterior à posse indica a posição ambígua do futuro Governo em relação ao
assunto: a escolha pelo Presidente Tancredo Neves do Dr. Camilo Calazans
para a presidência do Banco do Brasil indicava que seriam muitas as
dificuldades para introduzir qualquer alteração institucional que significasse
uma mudança nas funções ou no modo de operar do Banco do Brasil, mudanças
estas que representassem, dentro da sua lógica de ação, uma perda de poder. O
Dr. Calazans havia manifestado inúmeras vezes sua posição contrária à
transformação do Banco do Brasil em banco comercial, tirando-lhe muitas das
regalias que possuía como autoridade monetária, inclusive a de operar com a
Conta Movimento, opondo-se ao seu congelamento. Aliás, durante os três anos
de sua gestão na presidência do banco, foi um defensor intransigente da
"corporação" contra qualquer "ameaça", apesar de ter sido derrotado algumas
vezes, como em 1985/86, no caso da Conta Movimento.
Segundo analistas do período, "a Nova República encontrou a economia
em situação relativamente favorável quando comparada com os três anos
anteriores (1981,1982 e 1983... (iniciando) seu mandato sem maiores
dificuldades para fechar o balanço de pagamentos e em condições bem
melhores para encaminhar as negociações externas
146
. No lado interno, o
quadro também era bem mais animador ... após um longo período de contração
iniciado em 1981, a economia retomava a trajetória de crescimento. Puxado
pelo vigoroso desempenho das exportações, o PIB crescera 4,5%, iniciando um
146
Havia um superávit comercial de U$ 13 bilhões que permitiram o pagamento dos débitos
atrasados e a elevação das reservas para U$ 7,5 bilhões (SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO
1985, p. 1).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
173
processo de recuperação do mercado interno" (SAMPAIO JÚNIOR e
AFFONSO 1985, p. 1-2).
Entretanto, nenhum dos problemas estruturais, tanto aqueles ligados ao
funcionamento geral da economia quanto aqueles ligados à crise do Estado,
estavam equacionados. As medidas encaminhadas nas primeiras semanas do
Governo Sarney pelo ministro Dornelles demonstravam alguma preocupação
neste sentido, e centravam-se em três eixos principais: contração dos gastos
públicos, recuperação dos instrumentos de política econômica e moralização da
"coisa pública". Dos três pontos mencionados, o principal era o arrocho fiscal,
pois na avaliação da equipe de Dornelles, o déficit público era a principal causa
do descontrole monetário e, em conseqüência, da inflação. Mas esta
preocupação voltava-se mais para o corte de gastos do que para seu controle
institucional. A fim de conter as despesas do setor público, o Governo decidiu
paralisar as operações ativas dos bancos oficiais
147
, cortar 10% do orçamento
fiscal
148
, proibir a contratação de novos funcionários até 31 de dezembro tanto
na administração direta quanto indireta, colocar o pagamento da dívida externa
como prioridade das estatais, ameaçando de punição os dirigentes que não
respeitassem esta diretriz, suspender por noventa dias os empréstimos de
fomento do Banco Central e proibir o refinanciamento integral na rolagem da
dívida pública (SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO 1986, p. 13).
A posição de extrema fraqueza do ministro Dornelles, provocada pela
situação que o levou a assumir o ministério (doença e posterior morte de
Tancredo Neves, fonte quase única de seu poder na fase da montagem do novo
Governo), fez com que a maioria destas medidas não fosse cumprida. As
reações contrárias às suas propostas, não somente por parte dos grupos que
haviam apoiado a Aliança Democrática e de setores progressistas via PMDB,
sindicatos e organizações de funcionários públicos, mas também entre os
conservadores (principalmente pelas medidas de paralisação das operações
ativas dos bancos oficiais que afetavam a agricultura e o setor exportador),
acabaram motivando a sua queda. Outro fator que contribuiu para sua saída foi
o pouco entrosamento entre ele e o Presidente Sarney desde o início do
Governo. O Presidente demonstrava ter mais afinidades com o Ministro do
Planejamento, João Sayad.
Descontadas as simpatias pessoais, as divergências entre Dornelles e
Sayad que chamavam mais a atenção da equipe e do próprio Presidente Sarney,
estavam tanto no diagnóstico da situação econômica do país quando nos
remédios. O ministro Sayad, indicado pelo PMDB de São Paulo ao Presidente
Tancredo Neves
149
para a pasta do Planejamento, baseava seu diagnóstico na
idéia de que a questão do déficit público e da inflação poderiam ser atacadas
147
Através da compra compulsória de títulos públicos.
148
Sobre os 15% que o Governo Figueiredo cortou no começo de 1985.
149
Quando este decidiu não escolher o economista José Serra, que era Secretário do
Planejamento do Governador Franco Montoro, de São Paulo, e que havia coordenado a
Comissão do Plano de Governo – Copag.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
174
sem recorrer a uma política recessiva, o que soava muito melhor aos ouvidos de
um Presidente de perfil populista, que assumia dentro de um contexto político
bastante delicado, provocado tanto pela morte do Presidente Tancredo Neves
quanto pelos compromissos assumidos pela Aliança Democrática durante a
campanha eleitoral. Em outras palavras, seria difícil convencer o Presidente
Sarney da necessidade de um programa de ajuste com efeitos recessivos e
principalmente de cortes nos gastos públicos
150
.
No que se refere às alterações institucionais nos mecanismos que
comandavam as finanças públicas, se existiam divergências entre Fazenda e
Planejamento, elas não ficaram visíveis. Mas as coisas caminhavam lentamente,
apesar da permanência da maioria dos técnicos que haviam participado da
Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas em funções de
assessoria próximas aos formuladores da política econômica no início do
Governo da Nova República. Estes burocratas foram chamados por Francisco
Dornelles e João Batista de Abreu, este último nomeado Chefe da Assessoria
Econômica do Ministério da Fazenda, onde teve um papel destacado durante
grande parte do Governo Sarney, do qual foi mais tarde Ministro do
Planejamento. Abreu reuniu em torno de si o núcleo central da antiga
Comissão
151
e a permanência destes técnicos foi apontada, pelos profissionais
que vieram "de fora" da administração pública federal, como muito importante
para a operação das propostas de política econômica formuladas durante todo o
Governo Sarney (Entrevistas no 4 e 14). Mas a urgência imprimida pelos
mesmos técnicos no final do Governo Figueiredo, bem como o seu espaço de
ação, diminuíram bastante nos primeiros meses da Nova República, pois agora
a negociação política era bem mais complexa. Além disso “o ministro
Dornelles era da escola do ministro Delfim, ou seja, queria controlar os gastos
mas era contra o fim do orçamento monetário e não queria tirar poder do
Banco do Brasil” (Entrevista n° 11).
Havia, entretanto, alguns sinais importantes de que estavam vivas as
idéias de propor um novo desenho institucional para a gestão das finanças
públicas, apesar de parecer que pouca gente queria ouvir falar sobre este
assunto entre os apoiadores do novo Governo. Assim, no discurso proferido na
Câmara no início de maio de 1985
152
, o ministro Dornelles incluiu a noção de
"déficit de caixa" em substituição à noção de "déficit operacional". Esta
150
Esta posição do Presidente Samey já ficou clara na reunião do Conselho Monetário
Nacional em maio de 1985, quando, pressionado pelos governadores, autorizou o aumento
da capacidade de endividamento de Estados e municípios. Gazeta Mercantil, 19/5/85, p. 1.
151
O único que não permaneceu, apesar de convidado pelo ministro Dornelles, mas
formalmente vetado por lideranças do PMDB, foi o Dr. Mailson da Nóbrega.
152
No pronunciamento na Câmara, proferido no dia 8 de maio de 1985, o ministro Dornelles
afirmou que o "déficit do setor público constituía a causa principal dos desequilíbrios da
economia brasileira. Tal déficit provinha", em sua avaliação, "do excesso de gastos sobre
as receitas, causado pela ineficiência congênita das empresas estatais", entre outros fatores
(SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO 1986, p. 15).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
175
diferença não era semântica: significava que se mantinha a idéia de iniciar um
processo de substituição do orçamento monetário por instrumentos mais
realistas, que fixassem a origem e o destino dos recursos públicos.
Esta mudança de atitude refletiu-se na preparação do Orçamento para
1986, que começou a ser montado em meados de 1985 pela equipe do Ministro
do Planejamento, João Sayad. A orientação dada foi para que o núcleo central
do processo fosse a unificação orçamentária, isto é, a incorporação no
Orçamento da União que iria ser enviado ao Congresso de todas as despesas
fiscais que estavam embutidas no orçamento monetário, como por exemplo, os
estoques reguladores, as contas trigo, café, açúcar, álcool, a equalização das
taxas no financiamento às exportações, etc.
153
. Estas inclusões fizeram com que,
pela primeira vez desde 1964, o Orçamento da União apresentasse um déficit
considerável. Mas a proposta apresentada em julho de 1985 contemplava
medidas tímidas para a dimensão do desajuste. Dentre elas, sugeriam a
antecipação do recolhimento do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e
sobre o Imposto de Renda, a elevação das alíquotas do imposto de renda sobre
os ganhos do setor financeiro e o corte dos gastos públicos.
Na negociação deste conjunto de medidas, ficou claro um grande
constrangimento de ordem política e institucional. Como encaminhar qualquer
proposta a um Congresso onde o Governo teria grande dificuldades de articular-
se, pois a composição política havia sido feita em torno de um Presidente e
quem assumiu foi outro? Como caminhar as negociações, se não havia um
programa de Governo definido e se pairava uma enorme desconfiança por parte
do PMDB e de outros partidos que militaram na oposição durante o regime
militar, em relação ao Presidente Sarney que havia sido até alguns meses atrás
Presidente do PDS, partido de sustentação do regime anterior? Tudo isto sem
falar que o clima no Congresso estava muito mais próximo da idéia de
promover as mudanças sem penalizar ninguém, já que em 1986 haveria eleições
para deputado federal e a renovação de dois terços do Senado. Todos sabiam
que restava a possibilidade de recorrer-se ao Decreto-Lei, tão duramente
atacado pelas oposições durante o período autoritário. Mas como fazer isto sem
desmoralizar-se? Na verdade, este "impasse institucional", que já havia sido
apontado pela burocracia que comandou o processo de Reordenamento das
Finanças Públicas em 1984, só foi resolvido em 1986 com o Plano Cruzado,
que acabou sendo implantado através do tão combatido decreto-lei.
Os desentendimentos entre Fazenda e Planejamento, mais a falta de
apoio do ministro Dornelles junto à cúpula do Governo e do PMDB, levaram ao
seu pedido de demissão em agosto de 1985. No dia 27 de agosto assumiu o
Ministério o empresário Dilson Funaro, até então Presidente do BNDE.
153
Como o tempo era curto, "optou-se por iniciar o processo com a inclusão das operações de
natureza não-reembolsável, de interesse do Tesouro, realizadas pelo Banco do Brasil e
Banco Central. As de natureza reembolsável foram deixadas para a etapa seguinte —
empréstimos a setores prioritários, p. ex. (CALAM e PARENTE 1990).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
176
Esta alteração no comando da política econômica do Governo
representou muito mais que uma troca de nomes. Ela representou o fim das
desavenças de fundo entre Planejamento e Fazenda, com a adesão a um
programa que priorizava o crescimento econômico através da queda nas taxas
de juros e de cortes nos gastos públicos, desde que não provocassem recessão
(SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO 1985, p. 22). A nova equipe econômica
passou a agir imediatamente, e já em setembro as taxas de juros recuaram de
21,5% (último leilão de títulos públicos da equipe Dornelles) para 16,5% acima
da correção monetária (SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO 1985, p. 23). Os
efeitos das mudanças na condução da política econômica também se refletiram
na queda do déficit público de 8,4 trilhões de cruzeiros em agosto para 7,1
trilhões em setembro e 6,9 trilhões em outubro: "Estes resultados
corresponderam em parte a uma redefinição metodológica que eliminou do
conceito de caixa várias imprecisões contábeis ... e à recuperação da receita da
União, a qual, de janeiro a outubro, cresceu 13,3% em termos reais, contra
7,4% de janeiro a agosto" (SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO 1985, p. 24).
Mas a situação estava longe de refletir uma superação das profundas
distorções tanto estruturais quanto operacionais da economia nacional e mais
especificamente das finanças públicas. E a inflação pulou de 9,1% em outubro
para 15% em novembro
154
. Foi neste momento que novas medidas de
profundidade começaram a ser gestadas e que, no que se refere às contas
públicas, os técnicos da burocracia permanente e os "de fora" passaram a
convergir tanto no diagnóstico quanto nas propostas de superação.
Aproximava-se o momento em que o conhecimento dos mecanismos perversos
que comandavam as finanças públicas no país, que a burocracia havia
acumulado durante mais de uma década, iria casar-se com a vontade política de
superá-los.
154
0 maior índice mensal até então registrado no país.
177
C
APÍTULO V
A
S REAÇÕES ÀS PROPOSTAS DA COMISSÃO PARA O
REORDENAMENTO DAS FINANÇAS PÚBLICAS
As principais reações contrárias às medidas propostas pela Comissão
para o Reordenamento das Finanças Públicas entre o final de 1984 e os
primeiros meses de 1985, vinham de três fontes principais.
Em primeiro lugar, das burocracias ligadas ao Banco do Brasil e ao
Banco Central. A reação mais forte veio do Banco do Brasil, desde sua diretoria
até seu corpo de funcionários, que pia, com a perda da condição de autoridade
monetária, um estreitamento de sua margem de atuação. Quanto ao Banco
Central, o receio de seus funcionários e principalmente da diretoria que cuidava
das contas de fomento, era de que a sua transferência para o Banco do Brasil
representasse um enfraquecimento na importância do Banco. Em segundo
lugar, de parte dos banqueiros privados, que temiam a concorrência poderosa
no mercado que ocorreria, na sua avaliação, se o Banco do Brasil se
transformasse num banco comercial. E finalmente da oposição, que ficou
receosa de perder instrumentos importantes, apesar de que eram instrumentos
centralizadores e autoritários, no momento em que assumiam a condução da
política econômica.
Após a divulgação do Relatório da Comissão, e antes que o Conselho
Monetário Nacional se reunisse para examiná-lo, os jornais passaram a anunciar
que haveria um poderoso lobby atuando em Brasília, disposto a aplicar "quanto
dinheiro fosse necessário para acelerar a implantação da reforma" (Folha de S.
Paulo, 5/12/84). Mas os fatos parecem não confirmar estes rumores, muito pelo
contrário. Não foi possível identificar quais seriam os beneficiários imediatos
da aceleração da Reforma. Na realidade, se parte da reforma chegou a caminhar
e se só foi sustada por uma Ação Popular cuja liminar foi concedida pela
justiça, o mérito só pode ser creditado a uma parte dos membros da Comissão,
justamente o núcleo básico que a compunha.
O Governo Figueiredo ficou dividido quanto ao encaminhamento da
Reforma. Enquanto os burocratas que compunham a Comissão para o
Reordenamento das Finanças Públicas, com exceção dos representantes do
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
178
Banco do Brasil, estavam convencidos de que ela deveria (e poderia
legalmente) ser encaminhada via decreto-lei e resoluções do Conselho
Monetário Nacional - e conseguiram convencer, num primeiro momento, o
ministro Emane Galvêas sobre este procedimento. O ministro Delfim Netto
mantinha-se aparentemente alheio ao seu encaminhamento. Por outro lado, o
Presidente da República recebia as pressões contrárias do Congresso, por
intermédio do deputado Nelson Marchezan, líder do seu partido o PDS, que
também era funcionário do Banco do Brasil. O deputado tentou conseguir do
Governo um compromisso de só fazer a reforma através do Legislativo e
afirmou, ao sair de uma audiência que a receptividade tinha sido "boa junto ao
ministro Delfim Netto, do Planejamento, e junto ao ministro Leitão de Abreu,
do Gabinete Civil", mas ressaltou que a resistência estava"localizada no
Ministério da Fazenda" (Jornal do Brasil, 6/12/84).
Tudo indica que o deputado Nelson Marchezan conseguiu convencer o
Presidente Figueiredo, que em despacho com o ministro Emane Galvêas, deu a
ordem, que este transmitiu por escrito ao Dr. Mailson da Nóbrega nos seguintes
termos:
"Ao Senhor Secretário Geral
Conforme decisão do Exmo. Senhor Presidente da República, as
medidas que dependam de mudanças na legislação, mesmo as que poderiam ser
adotadas imediatamente, através de Decreto-Lei, deverão ser objeto de
considerações posteriores.
Assim, recomendo à Comissão destacar em seu relatório, como de
implementação a curto prazo, apenas as propostas que se situem.no campo
administrativo-operacional" (Despacho de próprio punho do Sr. Ministro, em
21/1/1985, no oficio que encaminhava de volta o relatório da Comissão).
Além da posição oficial do Governo, pudemos identificar cinco outras
posições conforme as reações dos grupos que se manifestaram quanto ao
conteúdo e quanto ao momento de encaminhamento da reforma. Na realidade,
cada uma delas tende a representar, na sua essência, uma visão específica
dentro daquele contexto determinado, sobre o desenho institucional que o
Estado deveria ter no que se refere à sua organização financeira. Levamos em
conta que cada uma delas não se apresentou em seu "estado puro", pois sendo o
momento da transição entre o regime autoritário e a primeira experiência
democrática depois de vinte anos, o que mais caracterizava a situação era uma
grande cautela nas manifestações da maioria dos atores envolvidos.
A primeira delas, defendida pelos funcionários do Banco do Brasil e
seus apoiadores, que chamaremos de corporativista, e que tinha como
justificativa a defesa das funções sociais que o Banco do Brasil desempenharia:
"Tão importante quanto a Agência Metropolitana de Rio de Janeiro e de São
Paulo é a modesta agência de São Benedito, implantada no imenso divisor de
águas da Serrado Ibiapaba, no Ceará, ou em Ji-Paraná, Rondônia" (Expedito
Quintas, Correio Brasiliense, 8/12/84). Esta afirmação ilustra com clareza a
idéia de que o Banco deveria ser preservado de suas funções acima de tudo. A
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
179
segunda posição, manifestada pelos grupos privados, incluindo banqueiros,
empresários industriais e comerciais, proprietários de jornais e que apresentava
tanto posições favoráveis quanto contrárias às medidas, demonstrando uma
ausência de consenso, ao contrário do que alardeavam os que combatiam a
reforma. A terceira, defendida pelos que estavam engajados na luta político-
partidária, e que se subdividia em dois grupos. Um grupo era composto por
aqueles que se opunham ao encaminhamento das medidas, sem entrar no seu
mérito, afirmando apenas que não era oportuno que fossem implantadas no
final de um Governo. O outro grupo, ao contrário, composto por aqueles que
defendiam as medidas em seu conteúdo e quanto à urgência de seu
encaminhamento, como forma de fazer com que as oposições, provavelmente
vitoriosas nas eleições presidenciais, tivessem sua liberdade de ação limitada,
principalmente com a eliminação do orçamento monetário. A quarta posição,
com características autoritárias, da qual eram os principais protagonistas
aqueles que se opunham às medidas ou por desconhecimento da real situação
das contas públicas ou porque, implicitamente, concordavam que existisse um
orçamento monetário que pudesse ser definido por poucos, desde que estes
poucos fossem do seu grupo político. Este grupo era o mais difícil de ser
identificado, já que preferiam não expressar sua posição publicamente.
Finalmente, a quinta posição, da qual faziam parte a maioria dos burocratas do
Banco Central, do Banco do Brasil, da Secretaria de Planejamento da
Presidência da República e do Ministério da Fazenda, que compunham a
Comissão para o Reordenamento das Finanças Publicas, e que defendiam as
medidas sob o argumento de que elas representariam a entrega, via
transparência das informações, das decisões sobre os gastos públicos e sobre o
seu controle à "sociedade", e por isso, coincidiam com o "interesse público".
A) A POSIÇÃO CORPORATIVISTA DO BANCO DO BRASIL
O Banco do Brasil transformou-se no centro das reações contrárias às
medidas propostas pela Comissão. Aliás, como já vimos, as resistências do
Banco do Brasil a qualquer tipo de mudança no sistema financeiro público são
muito antigas. Estas resistências fizeram com que o primeiro presidente do
Banco Central, Dr. Dênio Nogueira, declarasse em 1989 que a "maior
dificuldade para controlar o sistema bancário como um todo, centrava-se no
Banco do Brasil ... Sempre foi muito difícil controlar o Banco do Brasil ... em
qualquer plano de estabilização neste país...com sua força política e econômica,
eles jamais querem se sujeitar..." (NOGUEIRA, DEPOIMENT0,13/10/89,p.
80).
A concluir pelas manifestações através da imprensa, parecia que todas
as alterações voltavam-se exclusivamente para alterar o perfil daquela
instituição financeira, o que não era verdade. Entretanto, o congelamento da
Conta Movimento representaria realmente uma mudança importante para o
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
180
Banco do Brasil, que, para não ser abalado profundamente, deveria receber
novos instrumentos que o colocasse em condições de competitividade com as
outras instituições bancárias. Mas estas medidas, que permitiriam ao Banco se
transformar num conglomerado, podendo daí atuar com os mesmos
instrumentos de captação que qualquer outro banco comercial, não foram
claramente definidas pela Comissão, e muito menos ficaram definidos os prazos
para que as alterações fossem implantadas. Esta indefinição favoreceu e serviu
de munição para aqueles que não gostariam que o Banco deixasse de ser
autoridade monetária e, portanto, continuasse recebendo recursos do Tesouro e
do Banco Central e, principalmente, serviu para sustentar a argumentação dos
corporativistas. A ameaça, real ou não, que representava o fim da Conta
Movimento à estrutura interna do Banco e de seu pessoal (incluindo a
estabilidade dos funcionários, seus salários e demais vantagens), era o motivo
principal dos protestos. E alguns chegaram a expressar claramente este temor.
Na realidade, não eram apenas condições formais que precisavam ser
dadas para que o Banco não fosse abalado. Também era necessária uma
reviravolta na mentalidade que dominava o Banco, que, sem precisar competir
com ninguém
155
, fazia de seus funcionários simples operadores e não
profissionais à procura de melhores padrões de desempenho da instituição:
"Duvido que alguém achasse uma agência do Banco do Brasil numa cidade
grande se não tivesse o endereço bem certo, pois a falta de concorrência não
criava a necessidade de colocar-se nem uma placa para dizer que ali era a
sede de um banco"; radicaliza um membro da Comissão para o Reordenamento
das Finanças Públicas (Entrevista n° 2).
Por outro lado, a idéia de transformá-lo num conglomerado preocupava
os banqueiros privados, principalmente porque, como não estava claro qual
seria o novo desenho institucional do Banco, eles temiam que ele não perdesse
muitas das regalias que dispunha por ser o Banco do Governo, tomando-se
assim um concorrente "desleal". A perda dos privilégios de ser autoridade
monetária parecia, no entanto, preocupar muito mais seus funcionários do que
os banqueiros privados.
Este debate em tomo do papel do Banco do Brasil, apesar de importante
e mobilizador das principais "paixões", escondia o principal: sob a alegação de
que as mudanças acabariam com o papel social que o Banco desempenhava
junto aos pequenos investidores, seus defensores deslocavam a discussão, e
acabavam não contrapondo um outro desenho institucional que pretendiam para
as finanças públicas num país que se democratizava. Não definiam, dentro do
"seu" modelo, qual deveria ser o papel atribuído ao Banco do Brasil. Em outras
155
Em relação ao volume de depósitos, o Banco do Brasil sempre teve uma situação bastante
confortável, pois, além de ser o agente financeiro do Tesouro, recebia obrigatoriamente os
depósitos de todas as entidades da Administração Indireta da União como também os de
milhares de funcionários federais e de empregados de empresas públicas. Estes clientes
"cativos" retiravam dos funcionários do Banco do Brasil qualquer motivação para se
preparem adequadamente, com vistas a atuar competitivamente com os bancos comerciais
privados.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
181
palavras, não se discutia quem devia decidir sobre os mecanismos que
presidiriam a definição do destino a ser dado aos recursos públicos, nem do
controle sobre a expansão da base monetária (emissão primária de papel-
moeda), fundamentos de qualquer regime democrático, nem quem deveria
definir as prioridades de uma política creditícia. Esta discussão passava longe
da preocupação dos funcionários e da direção do Banco do Brasil, bem como de
seus defensores no Congresso.
Para os funcionários da "corporação" Banco do Brasil o que importava
em primeiro lugar era que sua situação funcional e os benefícios (inclusive
salariais) que haviam acumulado durante vários anos não se alterasse. Assim foi
grande sua reação. A começar por seu presidente, Oswaldo Collin: apesar de ter
participado da parte formal das discussões e oficialmente defender suas
conclusões, não ficou difícil observar, através de suas declarações à imprensa
mesmo antes de se tomar público o teor do relatório da Comissão, que, no
limite de sua força política, tentaria barrar o encaminhamento das medidas. Sob
a alegação de que a decisão deveria passar pelo Congresso Nacional, tentava
adiar sua aprovação e assim ganhar tempo para derrubá-la no futuro Governo:
"O Conselho Monetário Nacional não deve transformar o Banco do Brasil em
banco comercial, sem consultar o Legislativo... a reforma em andamento no
Conselho Monetário Nacional embute mais perguntas do que respostas, mas já
está evidente que o Banco, pelo menos a curto prazo, sofrerá prejuízos em
decorrência da perda de recursos do Tesouro e do Banco Central" (Correio
Brasiliense, 5/11/84).
Estas declarações ainda comedidas, se transformaram em guerra aberta a
partir do começo de dezembro de 1984, quando o relatório tornou-se público. E
apesar de seus nomes e assinaturas aparecerem no relatório final, os burocratas
que representavam o Banco do Brasil declararam posteriormente que "o
referido documento não foi assinado pelos representantes do banco ali citados
nominalmente (Sadi Assis Ribeiro Filho, Aléssio Vaz Primo e Geraldo
Naegele). Trata-se (de um documento) elaborado pelo Ministério da Fazenda e
ainda não discutido em seus detalhes ao nível da Comissão. A posição do banco
com relação à matéria continua alinhada às reiteradas manifestações do Exmo.
Sr. Presidente Oswaldo Collin em diversos encaminhamentos públicos a saber:
encaminhamento da proposta através do Congresso Nacional, clara definição
das funções do banco como principal agente do tesouro nacional e instrumento
de política creditícia do governo federal, concessão formal ao banco, sem
privilégios, dos meios que lhe assegurem acesso a todos os segmentos de
mercado do sistema financeiro, prazo razoável de transição para uma segura
adaptação do banco à nova situação" (Telex enviado a todas as Agências e
Superintendências do Banco do Brasil e assinado por Geraldo Naegele,
Consultor Técnico da Presidência do Banco do Brasil).
Após esta declaração praticamente oficial por parte da Diretoria do
Banco do Brasil, contrária às medidas propostas pelo relatório no que se referia
às suas conseqüências sobre o banco, posição esta camuflada pela afirmação de
que ela deveria ser amplamente discutida e enviada ao Congresso Nacional, os
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
182
funcionários do Banco do Brasil enviaram uma carta ao presidente Oswaldo
Collin, onde ficou evidente que sua oposição ia além da forma de
encaminhamento, mas era muito mais uma oposição à substância da proposta.
Nesta carta, além de hipotecar "irrestrita solidariedade à posição assumida" pelo
presidente do Banco, afirmavam que era indispensável que uma matéria desta
magnitude fosse discutida pelo Congresso Nacional. E iam além: declaravam
que o Banco deveria ser preservado "como instrumento da ação direta do
Governo no mercado de crédito... e que fossem adotadas ações que permitissem
a preservação do patrimônio financeiro e moral conquistado ao longo de quase
dois séculos: em última instância, um patrimônio da própria sociedade
brasileira". E acrescentavam: "Como ficará a assistência aos pequenos
proprietários e comerciantes? E como ficarão as centenas de agências
deficitárias situadas nas regiões mais carentes do país?
156
E quem assumiria os
custos pela manutenção dos mais de 600 funcionários de alto nível cedidos pelo
Banco aos mais diversos Ministérios e demais órgãos do setor público?"
(Gazeta Mercantil, 5/12/84).
Com um discurso menos diplomático, os funcionários também
protestavam com veemência através de seu Sindicato, publicando em um jornal
de circulação interna do banco o seguinte artigo: "No apagar das luzes desse
Governo, pretende-se realizar uma reforma bancária a toque de caixa, reforma
que tem por maior objetivo o dilaceramento do Banco do Brasil, a liquidação de
seu quadro de profissionais, as demissões massivas de colegas, coisa com que
não podemos compactuar. Esta empresa j á não nos pertence. Pertence à Nação,
pertence ao povo brasileiro. Tentativas como essas de sua liquidação têm que
enfrentar o nosso repúdio. Estamos, pois, em luta e saberemos lutar. Em defesa
de nossos salários, de nossas conquistas sociais, em defesa mesmo da Empresa,
inteiramente abandonada à sua própria sorte..." (Manifesto do Sindicato dos
Empregados em Estabelecimentos Bancários de Brasília, 30/11/84). E
acrescentavam: "Pois saibam estes senhores que vão deixando o palco, e o
fazem melancólica e indecentemente, que dentre os acordes dissonantes tão
comuns em final de festa, acordes produzidos por aqueles que, embriagados de
poder, não sentem que esse mesmo poder já lhes escapa, saibam estes senhores
bêbados, que nós, do Banco do Brasil, estaremos em uníssono gritando um não
e um basta a estes desmandos e a essa imoralidade. Esta empresa é, na sua
história, a própria história da formação da nossa nacionalidade. E ela não
desaparecerá, porque apesar de todas as absolutas loucuras que fizeram nos
últimos vinte anos, ainda não conseguiram liquidar com a nação brasileira"
(Jornal O Cebolão, editado pelos funcionários do Banco do Brasil, número
42/84).
156
A existência de agências deficitárias deve-se ao fato de que, para abrir-se uma nova agência
do Banco do Brasil, respeitavam-se dois outros critérios: acompanhar o crescimento da
fronteira agrícola e/ou responder a pressões políticas locais. Assim, o crescimento do
número de agências do Banco do Brasil foi, até o final da década de 70, sempre superior ao
dos bancos privados. Entre 1967 e 1978, o número de agências do Banco do Brasil cresceu
97%, enquanto o número de agências dos bancos privados cresceu 42% no mesmo período
(OLIVEIRA 1985, p. 35).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
183
Os bancários tinham seus representantes no Congresso Nacional, e estes
saíram em defesa do que consideravam uma ameaça à carreira profissional
daqueles funcionários. Vejamos algumas declarações:
– “O Banco do Brasil, ao perder sua função de autoridade monetária, terá
que especular no mercado, como qualquer outro banco privado,
deixando de lado seu nobre papel social... (Além disto), como ficará a
situação salarial de seus funcionários que recebem remunerações
superiores às do mercado financeiro?”
157
(deputado federal Sebastião
Rodrigues, PMDB do Paraná, Folha de S. Paulo, 22/11/84).
– "Seria inadmissível agora, ao apagar das luzes deste Governo que teve
cinco anos e nove meses para promover mudanças dessa envergadura,
fazer-se essa propalada a reforma bancária, em cujo mérito nem
queremos entrar agora, mas que atingirá profundamente sua estrutura,
através de Decreto-Lei. Aqui fica, portanto, o meu protesto, como
funcionário do Banco do Brasil, mas principalmente como
parlamentar..." (deputado federal Saulo Queiroz, PDS de Minas Gerais.
Anais da Câmara dos Deputados, Sessão de 4/12/84).
– "Em tese, não somos, como não poderíamos deixar de ser, contrários a
modificações no atual sistema. Mas que, para essas reformas, exige-se a
participação da sociedade, por sua representação maior que é o
Congresso Nacional... (a reforma) é imposição do FMI. Mas esse
famigerado FMI sabe, por ter sua sede em Washington, que o caminho
natural das leis é o Congresso Nacional, pois no seu país-sede respeita-
se a representação popular e o Governo se curva às suas decisões. Por
que então aqui se impõe a humilhante exigência que se faça sem o
respaldo do Congresso? A preocupação maior de todos é com o Banco
do Brasil, instituição respeitada e confundida com a própria Nação, pelo
que tem representado nos seus 170 anos de existência para o
desenvolvimento e o progresso do Brasil. Retiram-se dele prerrogativas
e privilégios... comete-se um crime contra o país e contra o povo
brasileiro... deixo aqui nosso grito, nosso alerta contra essa ação,
defendendo a incolumidade do Banco do Brasil... na competência e
honradez de seus milhares de funcionários, que o constituíram no
passado e que o mantém no presente..." (deputado federal Evandro
Ayres de Moura, PDS do Ceará, Anais do Congresso Nacional,
6/12/84).
– "O que estará reservado ao funcionalismo do Banco do Brasil? São 170
mil zelosos servidores, uma elite com uma larga tradição de
respeitabilidade, de moralidade e de grandes serviços prestados ao povo
brasileiro. Essa gente não foi ouvida; essa gente teme ser prejudicada, e
certamente o será, se essa pretendida reforma vier a toque de caixa,
157
0 grifo é nosso.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
184
como pretende o atual Governo..." (deputado federal Nyder Barbosa,
PMDB do Espírito Santo, Anais do Congresso Nacional, 6/12/84).
A posição dos funcionários e direção do Banco do Brasil foi comentada
pelo Jornal O Estado de S. Paulo, que em editorial sob o título "A Nova
Revolução dos Bichos" referindo-se ao livro Animal Farm, de Orwell, afirmava
que era "comovedor o fervor democrático que apoderou-se do Banco do Brasil,
da direção aos funcionários de agência, que reclamam, em nome da democracia
que se instaurará, que a reforma bancária anunciada pela área financeira do
governo ... seja discutida pelo Congresso. É comovedor o empenho dos
funcionários em colocar os ‘interesses da nação’ — que são os do banco — nas
mãos do Congresso, onde os defensores das empresas estatais poderão
conservá-lo... A reforma bancária não será jamais efetivada se tiver que ir ao
Congresso... (onde) o espírito estatizante de deputados e senadores acabará
criando... as condições que permitirão ao Banco do Brasil ampliar seu espaço
no mercado financeiro em detrimento das instituições particulares de crédito...
Quando ao democratismo se juntam o nacionalismo dos interesses e o
oligarquismo, o País corre o risco de acabar todo ele uma imensa fazenda,
dirigida pela oligarquia em nome do Congresso (onde o Banco do Brasil tem
amplos apoios), em nome da soberania e em nome da Pátria ... Orwell, em
Animal Farm, já retratara essa aliança. Teremos de repetir todo o doloroso
processo da "revolução dos bichos" para ver onde alguns querem nos levar?" (O
Estado de S. Paulo, Notas e Informações, 6/12/84).
A proposta de que as modificações fossem discutidas no Congresso
Nacional e não decididas via decreto-lei ou via resolução do Conselho
Monetário Nacional, se por um lado poderia demonstrar uma real oposição a
estes caminhos criados pelo regime autoritário, por outro lado vinha sempre
acompanhada da manifestação de que, uma vez no Congresso, estes segmentos
trabalhariam para que as medidas fossem rejeitadas. Democráticos na forma,
porém defensores de interesses corporativos no conteúdo. Por sua vez, os
burocratas que defendiam o encaminhamento das medidas iniciais via decreto-
lei e resoluções do Conselho Monetário Nacional, se por um lado
demonstravam confiar mais nos caminhos autoritários para encaminhar sua
proposta, por outro estavam batalhando por soluções institucionais mais de
acordo com um regime democrático.
Os membros da Comissão que mantinham a defesa da proposta, em
Nota Confidencial, procuravam alertar para a real situação do Banco do Brasil,
além dos limites destes interesses corporativos e definiam qual, na sua opinião,
deveria ser o papel do Congresso Nacional, aí sim insubstituível: "O que é
inaceitável é continuar o estiolamento do Banco do Brasil. A compressão que
vem sendo feita nos seus empréstimos, para dar lugar a gastos do governo no
orçamento monetário, pode levar à penúria o nosso secular estabelecimento,
marco da vida nacional e patrimônio da sociedade. Só os que não querem
informar-se é que desconhecem a imperiosa necessidade de estancar o
esvaziamento do Banco do Brasil. Além disto, o país precisa, via Congresso
Nacional, acompanhar a expansão da nossa base monetária. É ilusório pensar
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
185
que o Tesouro possa assegurar a maior parte dos recursos para as operações do
Banco do Brasil, a menos que se queira provocar uma inflação explosiva —
pelas emissões de moeda — ou elevar ainda mais as já brutais taxas de juros —
pela ampliação da dívida pública. O Banco do Brasil pode e deve buscar na
captação de poupanças a base de seu futuro crescimento. Os escassos recursos
do Tesouro a ele destinados devem ser reservados para lhe permitir atuar em
favor dos pequenos empresários, principalmente do setor rural ..."(Nota
Confidencial, O Banco do Brasil e a extinção do orçamento monetário, p. 2 e 3,
5/12/84).
Os funcionários do Banco do Brasil conseguiram aliados em outros
setores. O então presidente do Tribunal de Contas da União, ministro Mário
Pacini, afirmou que "quem conhece a história do Brasil, com a qual se confunde
o próprio Banco do Brasil, sabe e deseja que ele tenha sua estrutura reforçada e
reformulada para que volte a operar, como fazia até a década de 70, quando
realmente constituía instrumento exclusivamente a serviço do interesse da
pátria, uma alavanca para o progresso, uma instituição ágil e sempre pronta a
executar a política ditada pelos interesses maiores da nação brasileira e além
fronteiras... As medidas propostas levarão ao esvaziamento gradativo da
importância do Banco do Brasil como agente financeiro da União" (O Estado
de S. Paulo, 15/12/1984). Mas o ministro Mário Passini, esquecendo-se
momentaneamente sua posição de magistrado, foi além: “Durante uma reunião
numa visita que fizemos ao Tribunal, contou que havia participado de uma
‘conspiração’ para derrubar o Projeto. Disse que foi ao Figueiredo e que se
articulou com o Marchezan, e com vários deputados. Imagine, um Ministro que
ia ser presidente do Tribunal de Contas da União!!" (Entrevista n° 5).
As reações dos funcionários do Banco Central não foram noticiadas pela
imprensa, mas sua diretoria, principalmente aquela ligada às funções de
fomento, reagiu: “As reações se concentraram na área que se encarregava dos
fundos e das carteiras de fomento, e a nossa briga, nós, do Banco Central, que
estávamos na Comissão e que tínhamos vivido a experiência do lado do
Ministério da Fazenda, era tentar convencer nossos colegas que isso era
fundamental para que o Banco Central se transformasse num verdadeiro
Banco Central. O Banco funcionando como banco de fomento, enfraquecia seu
papel em vez de fortalecer” (Entrevista n° 1). As reações do Banco Central se
restringiram a discussões internas do Governo, não chegando nem ao
Congresso nem às manifestações sindicais.
B) OS INTERESSES PRIVADOS SEM CONSENSO
Os banqueiros estavam divididos quanto ao encaminhamento das
medidas, e nenhum deles saiu em defesa entusiástica das mudanças propostas.
Alguns demonstraram preocupação com a concorrência "desleal" que poderia
representar o fato do Banco do Brasil se transformar num banco com as
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
186
mesmas características dos bancos comerciais, captando recursos no mercado, e
ainda assim manter alguns dos privilégios de ser uma instituição
governamental. Neste sentido manifestou-se o Sr. Elmo de Araújo Camões,
então presidente do Banco Sogeral: "É estranho que o Governo tenha deixado
de lado desde 1979 um programa de tão grande envergadura e agora, nos
últimos dias de seu mandato, decida adotar a reforma bancária. Isso, no fundo,
virá dificultar a ação do próximo governo, pois porá seus gastos dentro de uma
camisa de força, diminuindo o grau de liberdade para executar uma política
econômica e social mais liberal. Além disso, o Banco do Brasil vai roubar
espaço dos bancos com menor rede de agências ao se tornar um banco
comercial" (O Globo, 25/11/84).
Na mesma direção manifestou-se o Dr. Olavo Setúbal, presidente do
Banco Itaú, para quem as medidas "só seriam bem aceitas pelas classes
empresariais, se fossem discutidas amplamente... e não deviam ficar restritas a
debates fechados a nível de Governo" (Diário Comércio e Indústria, 6/12/84).
O Presidente da Febraban – Federação Brasileira das Associações de
Bancos, Roberto Konder Bornhausen, mostrou sua preocupação com o novo
papel que se atribuiria ao Banco do Brasil: "Não encontro justificativa para o
Banco do Brasil se transformarem grande conglomerado. O Governo dispõe da
maior sociedade de crédito imobiliário, responsável por 50% da captação da
poupança, que é a Caixa Econômica Federal, além de possuir o maior banco de
investimento do país, que é o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
e Social (BNDES), e o próprio Banco do Brasil como está estruturado hoje, já
se constitui num grande conglomerado" (Gazeta Mercantil, 14/11/84).
As manifestações da Fenaban - Federação Nacional dos Bancos, por
outro lado, foram principalmente a favor das medidas propostas pelo Governo.
Nesta direção vai a declaração do Dr. Teóphilo Azeredo Santos, seu presidente.
Para ele, as medidas "acabam com o arbítrio que existe hoje de o Poder
Executivo emitir títulos da dívida e papel-moeda, aplicando estes recursos
geradores da inflação como quiser, sem nenhuma participação da sociedade
brasileira. Não se verifica esta prática em nenhum país do mundo" (O Estado de
S. Paulo, 16/11/84). Mas achava que a reforma ainda iria demorar, pois
somente um Governo empenhado politicamente teria condições de levá-la
adiante (Gazeta Mercantil, 31/8/84).
A avaliação de uma newsletter editada em Nova York e de circulação
entre banqueiros internacionais com interesses no Brasil era positiva: "As boas
notícias para os bancos comerciais brasileiros vieram pelo fato de que as
autoridades estão gradualmente desvinculando as funções do Banco Central e
do Banco do Brasil. Isso dará aos bancos locais, sobretudo os que são
subsidiários de instituições internacionais, novo campo de ação. O Banco do
Brasil cada vez mais atuará como banco comercial, não como instrumento de
programas governamentais. Ao mesmo tempo, o Banco Central atuará como
banco central ortodoxo e as necessidades de consolidação dos recursos do
Tesouro serão decididas pelo Congresso, e não por altos funcionários. Isso
significa que os bancos comerciais terão de ficar com nova parcela nos
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
187
empréstimos aos setores exportadores e agrícolas da economia, anteriormente
dominados pelo Banco Central e Banco do Brasil. Naturalmente, os bancos
comerciais agora enfrentarão competição por recursos do mercado monetário
por parte do Banco do Brasil, mas isto não será tão grave" (The Banker,
November 1984, New York).
A Associação Nacional das Corretoras de Valores colocou-se
decididamente favorável às medidas, declarando sua estranheza pelo fato de
membros da equipe de Tancredo Neves estarem se colocando contrários à sua
implementação: "A dimensão dos problemas existentes no setor público é em
parte o resultado de que essa área era mal conhecida, tinha pouca transparência
para os analistas, e essa anomalia era ainda mais grave na década passada... Um
dos fatores do desequilíbrio das contas públicas deriva de velhos problemas,
tais como o direito do Banco Central de emprestar dinheiro, em atividades de
fomento; e o Banco do Brasil de emprestar dinheiro mandando o Banco Central
pagar a conta e assim transformando-se, simultaneamente, em banco comercial
e autoridade monetária... Quanto ao serviço da dívida, ele não é lançado no
Orçamento da União, mas no orçamento monetário, de tal sorte que a dívida
acaba fugindo, acima do que seria razoável, ao controle do Legislativo e do
Tribunal de Contas. Quanto ao Banco Central, deveria funcionar como em
países desenvolvidos: livre das ingerências do Executivo e responsável pela
liquidez, influindo em conseqüência sobre o nível dos juros, mas só operando
papéis públicos em função de montantes j á estabelecidos em orçamento. As
autoridades, em fim de mandato, estudam uma reforma menos ambiciosa, mas
nessa linha básica. A oposição, prestes a transformar-se em situação, teme que
essa reforma limite seu espaço de manobra... A questão é, porém, mais ampla e
importante. A reforma bancária não pode ser vista sob o prisma partidário,
porque representa uma aspiração de todos os que querem ver o governo — os
que passaram e os que virão — operando com transparência. E, principalmente,
controlado pelo Legislativo, sujeito a orçamentos, não podendo... decidir
autoritariamente sobre como gastar, apresentando depois a conta para os que
não puderam evitá-la. As contas do governo devem ser aprovadas e fiscalizadas
em sua plenitude, seja no final do governo Figueiredo, seja ao longo do governo
(muito provável) de Tancredo Neves. Evitar a transparência das contas públicas
é uma postura duvidosa, mesmo que a oposição esteja consciente de que o
serviço da dívida interna pode ser de tamanho incompatível com o Orçamento
da União. Essa eventual incompatibilidade explica a busca de protelar a
reforma, mas o caminho não deveria ser este. Ao contrário, melhor seria iniciar
já a transição, sentarem-se já representantes do governo que vai sair e daquele
que vai entrar, para juntos encontrarem fórmulas que atendam a um imperativo
de ordem prática e moral — tornar abertas, amplamente fiscalizáveis,
perfeitamente visíveis, as contas públicas. Sob pena de que a obscuridade
perpetue esse instrumento de poder, ao qual os governantes têm-se rendido
sempre que as pressões para o aumento dos gastos vão-se tornando mais fortes,
ameaçando a sobrevivência do seu poder político" (Boletim Mensal da Ancor –
Associação Nacional das Corretoras de Valores, Novembro de 1984, 114 11).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
188
Houve banqueiros que opuseram-se fortemente "à oportunidade" das
medidas, demonstrando que a posição não era consensual. O diretor do Banco
Nacional, Germano Brito Lira, indagou se "a sociedade havia sido consultada
para justificar medida tão profunda nos orçamentos da União, com a
subordinação exclusiva dos gastos públicos ao orçamento fiscal" (Gazeta
Mercantil, 21/11/84).
Outros banqueiros também criticavam as medidas, mas por outras
razões, considerando-as tímidas, por não contemplarem o aspecto mais
importante que era a independência do Banco Central. A Carta Econômica,
órgão de circulação interna do Banco Boa Vista, assim se manifestava: "As
evidências... nos animam a sugerir a independência do Banco Central do Brasil.
Tal proposta nos parece oportuna por várias razões. Primeiro, porque o déficit
público brasileiro é enorme e constitui ... o principal foco inflacionário.
Segundo, porque há anos vem-se tentando controlá-lo sem sucesso... A nosso
ver, a única maneira de se ter sucesso nesse empreendimento será proibir o
Banco Central de emprestar ao Governo, tornando-o inteiramente autônomo,
respondendo apenas pelo controle monetário. Não tendo a quem recorrer, o
Governo, em todas as esferas, e as próprias empresas estatais, teriam que
ajustar-se. Terceiro, a necessária reversão das expectativas inflacionárias requer
fatos novos e concretos. Sem que se tomem medidas firmes e objetivas, parece
impossível convencer a sociedade de que a inflação será realmente debelada ...
Nada seria mais concreto e objetivo do que mostrar à sociedade que o principal
foco inflacionário terá forçosamente que desaparecer, como resultado da
transformação do Banco Central em órgão independente. Em alguns casos de
inflação em outros países, ao invés de simplesmente proibir o Banco Central de
conceder empréstimos ao governo, foram impostos limites nominais para estes
empréstimos. No caso brasileiro, porém, a prática de estabelecer limites não
parece dispor de suficiente credibilidade, devido às constantes revisões e
descumprimento das metas. Por esta razão sugerimos que o Banco Central seja
efetivamente impedido de emprestar ao governo. Cumpre notar que os projetos
de reforma monetária e bancária em estudo pela atual administração não
parecem contemplar esse aspecto" (Carta Econômica, Ano III, n°11, novembro
de 1984, editada pelo Banco Boa Vista, Rio de Janeiro).
O Presidente da FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São
Paulo manifestou-se pela aprovação das medidas, destacando que "pela
primeira vez o Conselho Monetário Nacional toma uma atitude aprovada com
aplausos gerais" (O Globo, 22/8/84). Para os empresários, uma das coisas
atraentes da proposta era a transformação do Banco do Brasil em banco
comercial, pois dependendo do volume de recursos que ele captasse, aumentaria
a disponibilidade de crédito no mercado, e os bancos privados precisariam
trabalhar com taxas compatíveis com esta competição, o que poderia "baratear
o dinheiro".
Os dois jornais considerados os mais conservadores e que apoiavam na
maior parte das vezes a política econômica dos Governos militares desde 1964,
aplaudiram as medidas com bastante ênfase em seus editoriais.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
189
O jornal O Globo assim se manifestou em editorial: "É sintomática a
disposição das autoridades financeiras de passar ao Congresso Nacional a
responsabilidade de aprovar a emissão de títulos da dívida pública destinados a
suplementar receita da União. Sintomática da evolução político-institucional do
país, na perspectiva da plena democratização, antes mesmo que o processo de
abertura se complete e comece a desdobrar-se. Mesmo que como fundamento
das medidas se possam vislumbrar motivações ligadas à dificuldade de cumprir
metas de finanças públicas assumidas com a comunidade financeira
internacional. Ou por isso mesmo. Em outros tempos, sob o influxo das
tendências centralizadoras que marcaram a vida nacional nos últimos 15 anos,
não passaria pela cabeça de nenhum expoente da alta burocracia
governamental, compartilhar com o Congresso nem que fossem os ônus das
decisões econômicas. Vê-se agora que medidas tendentes a reforçar o
Legislativo são tomadas independentemente da definição da questão sucessória.
Alastra-se a convicção de que o caminho... é o da democracia" (O Globo,
editorial de 3/9/84).
E o jornal O Estado de S. Paulo adotou posição semelhante: "A reforma
representa importantíssimo passo à frente, especialmente se considerar que ao
prever a unificação dos orçamentos públicos no plano federal, restitui ao
Congresso todos os seus poderes — mas lhe devolve igualmente
responsabilidades. Curiosamente, em alguns meios parlamentares de oposição,
a reforma foi mal recebida. Essa reação negativa só pode ser explicada pelo fato
de haver-se falado que ele seria implementado via decreto-lei... mas esta
discussão não é essencial ... o que é essencial... é que a Nação esteja consciente
da importância, tanto política quanto econômica da reforma proposta. Ela
permitirá à Nação, por intermédio dos seus representantes no Congresso,
assumir suas responsabilidades no que diz respeito ao total das emissões de
moeda, ao volume de colocação de títulos públicos (hoje ambos fixados sem
controle pelo próprio Executivo), sabendo-se que tais decisões têm efeito direto
sobre a taxa de inflação e o custo do dinheiro... Ao longo dos anos toda
disciplina monetária sob controle do Congresso prevista na Lei 4.595 foi
esquecida. A reforma agora proposta indica a volta ao espírito da lei de 1964...
na medida em que todas as receitas e despesas deverão ser inscritas no
orçamento fiscal e caberá ao Congresso decidir quanto aceita emitir em títulos
da dívida pública e em papel-moeda. Com isso o Banco Central perde seu poder
de emissão, para melhor exercer o poder de guardião do valor da moeda.
Naturalmente, se o Congresso decidir por emissões maiores, estará assumindo a
responsabilidade de maior inflação; se decidir emitir quantidade maior de
títulos da dívida interna, estará provocando uma alta das taxas de juros. Com a
reforma, pelo menos os representantes da Nação terão a responsabilidade de
decisões tão importantes, hoje adotadas por tecnocratas, que consultam apenas
pró-forma os membros do Conselho Monetário Nacional. Parece difícil que o
Congresso se recuse a aprovar essa reforma, que o reintegra em poderes que
nunca lhe deveriam ter sido retirados. Uma recusa seria o reconhecer que
prefere ter no executivo um bode expiatório a exercer plenamente seus poderes
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
190
com responsabilidade" (O Estado de S. Paulo, editorial Notas e Informações de
16/11/84).
A posição do jornal Folha de S. Paulo era pelo adiamento das medidas,
para que o próximo Governo decidisse o que fazer. O jornal assim se expressou
em editorial: "Reforma necessária, porém não já... É entranhável a pressa com
que o atual governo deseja implementar esta reforma bancária, pois teve os
últimos seis anos, sem demonstrar tanta pertinácia, para fazê-la... Economistas
ligados ao candidato aliancista Tancredo Neves têm demonstrado grande
insatisfação com a implementação da reforma, nos moldes em que vem sendo
discutida no governo ... Alegam que serão criadas limitações inaceitáveis na
administração do Orçamento da União, a ponto de tornar-se necessário que o
novo governo, qualquer que seja, tenha que adotar medidas para neutralizar
seus efeitos indesejáveis..." (Folha de S. Paulo, editorial de 9/11/84).
Pode-se observar que entre os empresários não havia um
amadurecimento que resultasse numa posição definida em relação às mudanças.
Por isso, falar que eles estariam pressionando para que se alterasse o quadro
institucional das finanças públicas numa ou noutra direção seria forçar a
realidade. Sua preocupação restringia-se ao "perigo" que poderia representar
uma competição do Banco do Brasil.
C) A POSIÇÃO DOS POLÍTICOS
Do ponto de vista político-partidário, podemos identificar, em termos
gerais, dois grupos: os que estavam deixando o Governo Figueiredo e os que
estavam entrando com Tancredo Neves. Não incluímos aqui o grupo que
apoiava Paulo Maluf, pois no período dos debates sobre as propostas de
reordenamento das finanças públicas, já estava claro que ele seria derrotado no
Colégio Eleitoral.
Mas no Congresso Nacional, quanto ao encaminhamento das medidas,
não havia dois grupos. Todos os partidos políticos manifestaram-se contrários
ao seu encaminhamento e deram integral apoio à tese de que a reforma bancária
só deveria ser discutida após a posse do novo Presidente da República. Mas, ao
expressar esta opinião, a grande maioria parecia já deixar subentendido que
seria contra as medidas, caso tivesse que se manifestar pelo voto. Em
documento enviado ao presidente do Sindicato dos Bancários do Distrito
Federal, Augusto Carvalho, os líderes partidários declaravam: "Os líderes do
PDT (Brandão Monteiro), PMDB (Freitas Nobre), PTB (Celso Peçanha), PT
(Aírton Soares), PDS (Joacil Pereira, vice-líder, já que o líder Nelson
Marchezan sentiu-se impedido por ser funcionário do Banco do Brasil) e Frente
Liberal (Jorge Borhausen), signatários do presente, sensibilizados pela justa
preocupação demonstrada pelo corpo de funcionários do Banco do Brasil com
seu futuro e o futuro do próprio Banco, com medidas que pretendem atingir de
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
191
forma irreversível esse eficiente instrumento do Governo e orgulho da Nação
brasileira, declaram publicamente a sua oposição às intenções de se
implementar uma reforma bancária antes que assuma o seu mandato o próximo
Presidente da República" (Jornal do Brasil, 8/12/84).
Esta manifestação refletia com clareza o que Bresser Pereira chamou de
populismo econômico: "a transição democrática no Brasil ocorreu sob a égide
do populismo econômico. A idéia dominante, quando começa a Nova
República... era de que agora tudo seria possível em matéria econômica. A
inflação seria controlada sem necessidade de maiores ajustamentos fiscais, o
desenvolvimento seria retomado, os salários e os lucros aumentariam. Os dois
partidos dominantes (à época) no Congresso, o PMDB e o PDS, (eram) dois
partidos essencialmente populistas... populistas e fisiológicos (BRESSER
PEREIRA 1992, p. 14).
O grupo político do PDS (ex-Arena) que estava deixando o Governo
Figueiredo, estava convencido de sua derrota, mesmo antes que o Colégio
Eleitoral tivesse se manifestado, pois não conseguira vencer a convenção do seu
partido, o PDS, com o candidato Mário Andreazza. Ficou difícil identificar
claramente qual a sua posição em relação às medidas, e a que mais se sobressai
nos depoimentos e na cobertura pela imprensa, é uma atitude que oscila entre a
indiferença e o desejo quase irreverente de colocar amarras na ação do futuro
Governo. Abdicavam assim do papel de organizar e selecionar os interesses do
bloco que deixava o poder (se é que este bloco ainda existia), colocando nas
mãos da burocracia o encaminhamento das medidas.
Já a posição do grupo que se preparava para assumir o Governo é
bastante contraditória. A posição do próprio candidato Tancredo Neves foi de
grande ambigüidade no que se refere à política econômica que iria adotar,
primeiro por uma questão de estilo pessoal, e segundo porque procurava
acomodar correntes muito diferentes no amplo leque de apoios que recebeu:
"De um lado, levantava bandeiras reformistas, colocando como principal meta
de seu governo a maior democratização do padrão de desenvolvimento da
economia. Tratava-se de retomar o crescimento e criar empregos. Para realizar
estes objetivos... defendia mudanças qualitativas na política econômica,
subordinando as condições de negociação da dívida externa e o combate à
inflação à necessidade de não comprometer o bem-estar social da população e o
crescimento econômico. As formas específicas que tais modificações
assumiriam nunca foram bem esclarecidas... contentava-se em ressaltar a
necessidade de centrar o desenvolvimento no mercado interno e em reiterar que
o país deveria passar por mudanças estruturais, sem detalhá-las também. Ao
lado do discurso mais progressista, procurava acalmar os setores conservadores,
assumindo compromissos claramente contraditórios com os objetivos acima
mencionados. Ao enunciar a sua política econômica, as teses ortodoxas
apareciam com toda força... enfatizava-se a necessidade de reduzir o déficit
público através de cortes de despesas e da eliminação de subsídios... e
comprometia-se a honrar todas as dívidas contraídas pelo país" (SAMPAIO
JÚNIOR e AFFONSO 1986, p. 10).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
192
Havia também contradições e ambigüidades na equipe que participou da
elaboração do Plano de Ação do Governo (Copag), bem como entre aqueles que
no Congresso ou pela imprensa manifestavam suas posições quanto às ações do
futuro Governo. As diferenças de posição também apareciam nas propostas
daqueles que não participaram da elaboração do Plano de Governo, mas que
iriam fazer parte do Governo, como é o caso do economista Francisco
Dornelles, conforme a avaliação daqueles que analisaram os momentos que
antecederam à mudança de Governo: "Enquanto a Copag trabalhava no plano
de governo atraindo a atenção de toda a mídia, Tancredo fazia seu sobrinho,
Francisco Dornelles, embaixador para assuntos econômicos, encarregando-o de
negociar a transição com Delfim Netto... Assim, liderados por Dornelles ... as
teses recessionistas voltaram a ganhar força. Na visão conservadora, a política
econômica não deveria sofrer grandes alterações de rota, mas apenas algumas
correções de percurso ... a estratégia de Dornelles era aproveitar a credibilidade
e o respaldo popular de seu tio para submeter a economia a um choque
recessivo, que supostamente derrubaria a inflação, preparando o país para a
retomada do crescimento e para o restabelecimento das negociações da dívida
externa em condições de força. Para implementar tal estratégia, Dornelles
negociou com Delfim Netto a elevação dos preços e tarifas públicas em março,
a fim de que o novo governo assumisse em condições de decretar um rígido
controle de preços, sem maiores prejuízos para as finanças públicas"
(SAMPAIO JÚNIOR e AFFONSO 1986, p. 12).
Muitos dos membros da oposição que se opunham às mudanças,
justificavam sua atitude por serem contrários ao momento e à forma como as
medidas estavam sendo encaminhadas, mas outros, como já vimos
anteriormente, avançavam sua posição negativa quanto ao conteúdo das
propostas. A crítica quanto à oportunidade do momento parece, à primeira
vista, quase irrefutável: propor mudanças de tal profundidade às vésperas da
troca de Governo transformou-se num alvo fácil de ataques e em motivo para
muitas desconfianças. Este fato quase nos fez abandonar a análise da posição
daqueles que assim justificavam sua rejeição às propostas. O que nos levou a
considerar que este tipo de argumentação poderia fornecer algumas
informações interessantes, foi a recorrência com que se usou, e ainda se usa até
hoje, da justificativa que não se deve alterar o desenho institucional do Estado
brasileiro "antes que" termine a Copa do Mundo, antes das eleições, antes do
fim da CPI, antes que mude o governo, etc., etc., etc. Parece que quando se trata
de alterar padrões institucionais ou rever regras e normas, no caso brasileiro, na
maior parte das vezes escapa-se da discussão do seu conteúdo, justificando-se
seu, adiamento pelas mais variadas razões.
O economista Celso Furtado, na época filiado ao PMDB e cogitado para
compor o Ministério de Tancredo Neves, se colocava contra o encaminhamento
das medidas antes da posse do novo Presidente. Mas ao justificar sua posição
levantava uma questão que merece alguns comentários. Ele dizia que "apesar
do Brasil ter um sistema bancário inadequado e haver muita confusão entre o
Banco do Brasil e Banco Central, que hoje ainda exercem funções de
autoridade monetária, não se pode fazer a reforma já só porque o FMI e o
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
193
Banco Mundial decidiram pressionar neste sentido. É inaceitável fazer uma
reestruturação como esta, que demanda tempo e profundas discussões com
todos os segmentos da sociedade, sob pressões externas e no apagar das luzes
do governo Figueiredo" (Relatório Reservado, 9/11/ 84). E acrescentava: "Não
interessa ao próximo governo receber as contas públicas com todas as
limitações impostas sob inspiração do Fundo Monetário Internacional" (Correio
Brasiliense, 22/11/84). Em outra oportunidade o economista também declarou
que tinha dúvidas sobre a eliminação do orçamento monetário, por considerá-lo
um instrumento muito importante em termos macroeconômicos, do qual o
futuro Governo não deveria prescindir (O Estado de S. Paulo, 4/12/ 84). Se
tomarmos suas palavras como um discurso pré-eleitoral, não há dúvidas de que
vai na direção de uma bandeira da oposição (e que a esquerda sempre levantou)
de que aceitar as regras do FMI era admitir a interferência do imperialismo
norte-americano no país. Mas no caso de Furtado ela parecia representar, em
primeiro lugar um "esquecimento" (ou um desconhecimento) de muitos que
estavam fora do Governo há vinte anos, da falta total de instrumentos que
qualquer equipe que assumisse a direção da economia tinha para iniciar um
programa de ajuste com a confusão em que estavam mergulhadas as contas
públicas. Em outro momento de sua trajetória pública, Celso Furtado já tinha
tido experiência com questões de controle dos gastos públicos, como já vimos
na Parte II. Quando estava elaborando o Plano Trienal como Ministro do
Planejamento do Presidente João Goulart, chamou um notório monetarista, o
Dr. Casemíro Ribeiro, para elaborar o capítulo referente à Reforma Bancária do
referido plano. Na opinião do Dr. Casemiro, este convite veio, apesar de
pertencerem a grupos de pensamento diversos, porque "quando você chega ao
Governo e não consegue transformar o obviamente elementar em decisão de
política... (e)... ao ver o descalabro ... (ao ver) como estão gastando o dinheiro
público estupidamente e que não há o controle elementar básico... você se
transforma em um ‘monetarista’ (RIBEIRO, DEPOIMENTO, 21/9/1989, p.
19).
Mas a posição do PMDB tinha outras raízes, pois a convicção da
maioria dos seus economistas era de que o déficit público não era problema e,
portanto, medidas de cunho monetário não deveriam ser consideradas
prioritárias. Um dos entrevistados levanta uma outra característica que muitos
economistas da equipe que preparava-se para assumir o Governo carregavam:
“Muitos se formaram economistas no rastro da tradição de pensamento da
Cepal, ou seja, toda preocupação estava voltada para o desenvolvimento
econômico e não para a questão da estabilização. Estava-se sempre pensando
no longo prazo, e dando uma ênfase excessiva às questões de planejamento
econômico e subestimando as questões de curto prazo, e principalmente o
papel do mercado. Tiveram que mudar de idéia dentro do Governo, uns um
pouco antes... e outros não mudaram até hoje” (Entrevista n° 8).
A atitude da oposição denotava uma complicada lógica, ao condicionar
as exigências do regime democrático representada pelo pleno funcionamento do
Poder Legislativo e as razões individualizadas de quem ia exercer o poder: "Se
o controle praticado pelo Congresso é saudável, deve sê-lo em todas as ocasiões
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
194
e com qualquer Governo", dizia em editorial o jornal O Estado de S. Paulo
(28/11/84), ao comentar as declarações do economista Celso Furtado.
No caso de Celso Furtado, havia um outro componente importante. Ele
havia liderado no período pré-1964, como j á vimos anteriormente, a posição
derrotada em relação às orientações da política econômica. A burocracia que
atuava em Brasília, e que havia participado da proposta em exame, era filha de
outra escola. Sua escola teve como professores longínquos Eugênio Gudin e
Octávio Gouvêa de Bulhões, e como professores recentes Roberto Campos,
Delfim Netto e Emane Galvêas e vinte anos de ditadura. Realmente as
dificuldades de diálogo entre os dois grupos era muito grande.
O PMDB, partido que liderava a coligação que acabaria conduzindo
Tancredo Neves à Presidência da República, colocou-se através de seus
representantes no Congresso, frontalmente contra as medidas propostas pela
Comissão. O movimento foi liderado pelo deputado Elquisson Soares, da
bancada da Bahia. A grande preocupação do deputado não era com as questões
substantivas da reforma proposta, mas sim com a defesa da "corporação" Banco
do Brasil que seria atingida principalmente com o fim da Conta Movimento que
lhe permitia ter acesso a recursos inclusive através de emissões. O deputado
acusava o Ministro da Fazenda, Emane Galvêas, de tentar promover a reforma
bancária transformando o Banco do Brasil em banco comercial, sem ouvir o
Congresso Nacional e, sem um amplo debate nacional: "A reforma não trará
vantagens para o país e por isso ele não quer discuti-la com o Congresso... o
Banco do Brasil perderá com a reforma bancária ... trilhões de cruzeiros, que,
após a reforma, terá que buscar no mercado, exigindo reciprocidade da
clientela... isto é, toda vez que o produtor rural for ao Banco do Brasil levantar
o seu minguado e chorado custeio agrícola terá que deixar grande parte do
dinheiro do custeio aplicado em RDB, em seguro". O deputado queria saber
ainda como ficariam os funcionários do Banco do Brasil com a mudança, que
possuíam então uma legislação especial que lhes garantia estabilidade:
"Passarão a sofrer ameaças de demissão... para que os balanços apresentem
lucros maiores? Estará o ministro querendo promover uma reforma de tamanho
alcance ouvindo o Conselho Monetário Nacional pelo telefone?" (Jornal de
Brasília, 14/10/84).
A diferença entre o discurso do deputado e o da comissão de burocratas
sobre o encaminhamento que deveria ser dado à questão das finanças públicas,
deixando por um momento de lado o debate de iniciar-se a reforma ao apagar
das luzes do Governo Figueiredo, levanta pontos significativos das duas
posturas. Enquanto os burocratas falavam em deixar que a sociedade decidisse
sobre se os recursos deveriam ser destinados ao crédito agrícola ou à educação,
ao financiamento de um setor industrial ou ao investimento em infra-estrutura,
o deputado defendia que esta decisão ficasse nas mãos da direção e dos técnicos
do Banco do Brasil. Enquanto os burocratas falavam em entregar ao Congresso
as decisões sobre o Orçamento da União e a eliminação do orçamento
monetário, o deputado preocupava-se com a carreira profissional dos
funcionários do Banco do Brasil.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
195
Na mesma direção manifestou-se o deputado Fernando Gomes também
do PMDB da Bahia. Em um discurso na Câmara dos Deputados declarou: "A
esta altura dos acontecimentos, não é difícil encontrar o verdadeiro objetivo
dessa gente, principalmente dos tecnocratas da Secretaria do Planejamento da
Presidência da República; eles não querem uma verdadeira reforma bancária,
que não se faz da noite para o dia; desejam pura e simplesmente golpear o
Banco do Brasil, o mais sólido estabelecimento creditício do país, e que vem
consolidando-se como um dos grandes bancos internacionais. Pretende-se
transformar o Banco do Brasil numa instituição de segunda classe, pois querem
transformá-lo num Banco comercial comum, tirar do Banco a condição de
autoridade monetária, retirar-lhe a regalia de Caixa do Tesouro, colocar o
Banco do Brasil em paridade com os demais bancos, mas continuando com as
obrigações, passando a atuar como banco comercial, mas continuando com as
obrigações de banco do Governo, prestando os serviços e só ficando com os
ônus. Este processo de desprestígio do Banco do Brasil já havia começado com
o credenciamento de todo o sistema bancário para fazer o crédito rural, com a
criação do BNDE e quando tiraram do Banco do Brasil a condição de Banco de
Desenvolvimento, quando criaram o BNCC e quando retiraram do Banco do
Brasil as cooperativas. Podemos identificar também, através desta manobra
castradora, a intenção de inviabilizar para o próximo governo, o melhor uso
desta instituição bancária, que se continuasse como está organizada serviria a
partir de março de 85 como excelente suporte da tarefa administrativa nacional,
da mesma sorte que antes de 64 serviu a todos os governos democráticos do
País... Mais uma vez os nossos monetaristas, principalmente o trio Delfim,
Galvêas, Amador Aguiar, querem empulhar o Governo, tentando obter que o
Executivo imponha sozinho estas mudanças indesejáveis, que atingirão
mortalmente o Banco do Brasil... Mas esta reforma não ocorrerá. O Congresso
espera o Governo patriótico de Tancredo Neves, que levará à frente uma
política financeira capaz de atender aos interesses nacionais e menos aos
grandes beneficiários do nosso monetarismo, que têm sido os grandes
monopólios internacionais e contemplando meia dúzia de apaniguados e de
suspeitíssimas áreas do poder econômico" (Anais do Congresso Nacional,
discurso proferido em 5/11/84).
Também o deputado Hélio Duque, do PMDB do Paraná, declarou-se
contra a reforma afirmando que ela nascia "no cérebro de meia dúzia de
técnicos autoritários que, acostumados ao nível de imposição que prevaleceu
nos últimos vinte nos da vida brasileira, não sabem que as coisas começam a
mudar, para valer... Nos termos da proposta, uma instituição como o Banco do
Brasil passa a ser um instrumento secundário, o que é danoso para o país" (O
Estado de S. Paulo, 8/12/84).
Além da preocupação demonstrada pela "bancada do Banco do Brasil",
como são conhecidos os deputados que têm sua origem profissional e/ou sua
base eleitoral ligadas à instituição, havia uma atitude difusa no Congresso, de
que ao ter que decidir sobre as receitas orçamentárias e não apenas sobre as
despesas, e também sobre o volume das emissões de títulos da dívida pública
ou das emissões monetárias que poderiam fazer subir a taxa de juros ou a taxa
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
196
de inflação, o ônus para os parlamentares seria muito maior, e este fato não
parecia atrair suas simpatias: "O Congresso parece que preferia deixar ao
Executivo esta tarefa ingrata" (4 Estado de S. Paulo 28/11/ 84). Esta talvez seja
uma das explicações para a contradição de estarem rejeitando a forma do
encaminhamento via decreto-lei, apesar de que o que se pretendia fazer por este
"caminho espúrio" era dar maior poder ao Congresso.
A posição da assessoria econômica do candidato Tancredo Neves era
contrária ao encaminhamento das medidas, segundo declaração que alguns
deles deram ao Relatório Reservado, e estes mesmos assessores atribuíam
posição idêntica ao candidato: "A reforma bancária que o Governo Figueiredo
está elaborando ao apagar das luzes, vem sendo observada com irritação pelo
candidato da Aliança Democrática Tancredo Neves. Ele considera uma
interferência indébita da atual administração no futuro governo e teme que sua
aprovação leve à criação de verdadeiras armadilhas institucionais, que
dificultariam a margem de manobra do sucessor de Figueiredo em matéria de
formulação de política econômica. Em conversas com alguns de seus
interlocutores mais constantes, Tancredo deixou transparecer que se fosse
enviada para apreciação do Congresso faria tudo para barrá-la, reservando o
assunto para a próxima administração. Como o Governo optou por sancioná-la
através do Conselho Monetário Nacional passando ao largo do Congresso, se
eleito, admite convocar o mesmo Conselho para rever as decisões a respeito do
assunto. Para Tancredo, a atual administração não só estaria disposta a acertar
com o FMI metas que a economia teria que cumprir em 85, como também
estaria interessada em criar instrumentos institucionais que praticamente
obrigariam o futuro governo a cumprir o estabelecido. Ao candidato não passou
despercebido também o grande interesse que o FMI e os banqueiros privados
internacionais vêm mostrando em que a reforma bancária seja sancionada no
atual governo. Para o candidato, o máximo que o atual governo deveria fazer
era elaborar o projeto e deixá-lo como sugestão" (Relatório Reservado, 19 a
25/11/84). Mas as reações públicas do candidato foram muito mais discretas do
que de sua assessoria, deixando transparecer mais uma atitude de "evitar atritos
com possíveis aliados" de ambos os lados, do que de apoio decisivo a esta ou
aquela posição. É exercício de adivinhação tentar concluir qual era (e se tinha)
uma idéia definida sobre o assunto. O seu único legado, e este contrário ao
encaminhamento das mudanças propostas, foi a escolha antecipada de Camilo
Calazans como presidente do Banco do Brasil, este sim, um declarado defensor
da "corporação" e da manutenção do Banco como autoridade monetária.
A posição real do candidato Tancredo Neves sobre o assunto ficou
mergulhada em controvérsias, como já vimos anteriormente. Seu futuro
Ministro da Fazenda, Dr. Francisco Dornelles, afirmou a dois entrevistados da
presente pesquisa que o Presidente (então já eleito, mas não empossado) iria
implementar algumas das medidas, principalmente a que se referia ao
congelamento da Conta Movimento. Declarou também que antes da eleição
havia evitado tratar do assunto, pois poderia criar atritos políticos indesejáveis.
Mas na prática, com a posse de José Sarney, o ministro Francisco Dornelles
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
197
durante seus seis meses de gestão, não se movimentou na direção da
implementação de nenhuma das medidas.
Alguns economistas que participavam da coligação que apoiava
Tancredo Neves concordavam com parte das propostas colocando, entretanto,
alguns reparos ilustrativos. Luiz Carlos Bresser Pereira, então presidente do
Banespa - Banco do Estado de São Paulo do Governo Montoro do PMDB,
assim se expressou sobre o assunto: "A reforma bancária deveria ter sido
aprovada há muito tempo, mas ela envolve uma série de processos difíceis,
entre os quais o processo político... A grande notícia foi a transferência das
funções do Banco do Brasil para o Banco Central, fazendo com que aquele
passe a atuar como um Banco comercial e dispute seu espaço no mercado"
(Jornal do Brasil, 22/8/84).
Mais dois economistas ligados ao PMDB manifestaram-se a favor das
medidas, colocando porém algumas ressalvas. Um foi Luís Carlos Mendonça
de Barros, da Corretora Planibanc, e que foi posteriormente diretor do Banco
Central durante o Governo Sarney: "O importante não é a Reforma em si, mas o
fato de permitir a transparência nas relações econômicas do Governo ... o
fundamental é que os gastos do Executivo ficarão subordinados ao Legislativo,
o que significa um avanço democrático" (Revista Exame, 5/9/84). O outro foi o
Dr. José Carlos Braga, da Unicamp, que afirmou: "É imprescindível a
separação das contas do Banco Central, do Tesouro e do Banco do Brasil. Isto
implica que o Banco do Brasil deixe de ser autoridade monetária, ampliando
suas funções de banco público de fomento, papel hoje assumido pelo Banco
Central, com a garantia do Tesouro Nacional, e a cobertura do diferencial entre
a taxa de juros de mercado e aquele correspondente aos créditos favorecidos
que venha a conceder. ... Esta cobertura impedirá a erosão do patrimônio do
Banco do Brasil". Mas fazia uma ressalva: "A reforma bancária, ainda que
necessária, deve ser acompanhada da retomada do crescimento econômico, para
o que é imprescindível um reescalonamento em melhores condições de prazos e
juros das dívidas externa e interna, bem como o saneamento financeiro das
empresas estatais, para recuperar a sua capacidade de investir. É também
fundamental uma redefinição ampla das condições financeiro-credítícias dos
sistemas público e privado de intermediação, visando à expansão econômica"
(Jornal da Tarde, 5/10/84). Já em 1981, o professor Braga havia manifestado
suas restrições às propostas ensaiadas pela equipe do ministro Símonsen
(propostas estas bloqueadas pela equipe do ministro Delfim que o sucedeu,
como já vimos anteriormente na Parte II).
O governador de Santa Catarina, Esperidião Amin, manifestou-se
favoravelmente às medidas, pois elas representariam a "moralização da área
financeira" (Correio Brasiliense, 3/12/84). Mas a defesa mais veemente das
medidas foi feita pelo então Secretário da Fazenda do Rio de Janeiro, César
Maia, na época filiado ao PDT, partido que se mantinha distante da coligação
que apoiava Tancredo Neves. Em artigo publicado no jornal O Globo ele
declarava: "A crítica à ortodoxia monetária não deveria conduzir, como oposto,
à indisciplina monetária. No entanto, é o que parece pela resposta dada por
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
198
faixas da oposição às formulações apresentadas pelo Ministério da Fazenda...
Os instrumentos de controle monetário atuais são de evidente e progressiva
debilidade. A começar pelo grau de disciplina que operam as próprias
autoridades. Cada vez mais se estreitam os caminhos e o que se tem é uma
‘cama de gato’, que transforma qualquer política na arte de improvisar. As
medidas propostas nos parecem óbvias. A participação efetiva do Legislativo
nas questões orçamentárias e de endividamento público... é o mínimo que os
democratas devem exigir. Amenos que a proximidade do látego tenha
estimulado a vontade do uso. E como a ida ao Congresso não tem a agilidade de
decretos, resoluções, portarias e reuniões telefônicas, requer-se a adoção de
políticas que permaneçam. Este é um princípio básico para o disciplinamento
das autoridades... O embaralhamento do Banco Central, Banco do Brasil,
Ministério da Fazenda e do Planejamento rompe a unidade do setor público e
aumenta o distanciamento da sociedade... O Ministério da Fazenda (está
propondo) um reordenamento que persegue tornar identificados cada um dos
sistemas, definidas as responsabilidades, transparentes os gastos e recuperadas
as prerrogativas políticas. Não se entende o porquê do rechaço de certos porta-
vozes econômicos da oposição... Portanto, seja pelo lado institucional,
organizacional ou conjuntural, não há como deixar de saudar a iniciativa. O
rigor dos controles monetários significa regras do jogo sólidas e políticas
orientadas, preponderância do real sobre o fictício, e da sociedade sobre o
Estado. Não é mania de monetarista, mas de quem não quer ver a gestão
monetária se transformar em produção de pipoca. Da forma que se gere a
política monetária com seus ativos e instrumentos embrulhados e seus efeitos
nublados, a única garantia para o futuro é de desarranjos inerciais. Nesse
sentido, entendemos que criar constrangimentos políticos à implementação
para-administrativa das reformulações é ação de inexplicável desoportunidade"
(César Maia, Secretário da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro, artigo para o
Jornal O Globo, 9/12/84).
Comentando a posição daqueles que se opunham ao encaminhamento
das medidas via Conselho Monetário Nacional através de resoluções e decretos-
lei, preferindo enviá-las ao Congresso, assim se manifestava a burocracia que
liderou a elaboração do relatório da Comissão para o Reordenamento das
Finanças Públicas: "... a extinção do orçamento monetário é medida que
independe do Congresso Nacional, embora possa o Poder Executivo renunciar à
sua competência em matéria de finanças públicas e propô-la ao Legislativo por
intermédio de Projeto de Lei. Corre-se o risco, porém, de exploração emocional
e demagógica da proposta atribuindo-se, por exemplo, propósitos menos nobres
à flexibilidade que agora se pretende reduzir, e relacionando o orçamento
monetário com males da economia nacional, até mesmo os denominados
escândalos financeiros. O mesmo risco existirá caso se proponha a implantação
da medida em qualquer outra oportunidade" (Nota Confidencial, O Banco do
Brasil e a extinção do orçamento monetário, p. 3, 5/12/84).
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
199
D) A VISÃO AUTORITÁRIA
O regime autoritário construiu um edifício institucional próprio, com
instrumentos bastante eficazes para a condução de seus propósitos
centralizadores. Um destes edifícios foi o aparato institucional que regulava e
conduzia as finanças públicas, que foi usado para comandar o processo nos
tempos de crescimento. Quando entramos numa crise que exigia medidas para
ajustar a economia, estes mesmos instrumentos mostraram que j á não
obedeciam a controles diretos e muito menos poderiam adaptar-se a um regime
democrático e a uma política de controle dos gastos. Mas as reações às
propostas de mudança mostraram a força desta herança autoritária, inclusive
por parte das oposições que se preparavam para assumir o Governo.
Entre os que se manifestaram contra as medidas, há um artigo de um
colaborador do Correio Brasiliense que chama a atenção pela crueza com que
coloca o que alguns expressavam por argumentos mais sofisticados. Dizia ele:
"Os instrumentos de política monetária atuais são mais do que suficientes para
que o Governo exerça efetivo controle sobre os meios de pagamento... não há
nenhuma razão para serem criadas novas instituições de controle e para acabar
temerariamente com o flexível orçamento monetário praticamente independente
do orçamento fiscal e que tem oferecido amplas facilidades para o Poder
Executivo implementar suas políticas desenvolvimentistas... Com o processo de
abertura política, por que o Poder Executivo haveria de abdicar das enormes
vantagens proporcionadas pelo sistema híbrido a favor do Poder Legislativo?
Isto é coisa daqueles que estão interessados em desnacionalizar o sistema
financeiro acabando com o Banco do Brasil" (Correio Brasiliense, 19/2/1984).
Havia mais gente pensando assim: alguns burocratas da área econômica,
que não quiseram se identificar, declararam para o Correio Brasiliense que
"nenhuma autoridade em nenhum governo quer correr o risco de ter todas as
contas transparentes e controladas pelo Congresso. Esta é uma das maiores
razões para que se queira fazer a reforma aos poucos" (Correio Brasiliense,
18/3/84).
Alguns membros da administração federal tinham posição semelhante,
como Herculano Borges da Fonseca, então presidente da Comissão de Valores
Mobiliários. Apesar de concordar como sendo absolutamente necessários para
eliminar a "máquina de fazer dinheiro" a adoção da reforma bancária e das
finanças públicas, assim como o controle, pelo Congresso Nacional, do
mecanismo que tem permitido e facilitado o agravamento do processo
inflacionário, pensava que ela deveria ser adiada. E afirmava: "Por mais
perfeito e acabado que seja o projeto... ele só deveria entrar em vigor se, e
quando, aprovado pelo futuro Governo e pelo Congresso Nacional, pois a
reversão do processo inflacionário, motivo básico para a adoção da reforma
monetária, deve ser paulatina e após as decisões de políticas globais. Ao novo
governo não devem ser impostas medidas prontas como esta, que vai tirar-lhe a
liberdade que lhe confere o orçamento monetário, mas sim sugestões e
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
200
recomendações, pois a decisão sobre a oportunidade da ação das novas
reformas deverá ser a dos que vierem depois e tiverem a honra e o ônus de
carregara tocha..." (O Estado de S. Paulo, 30/11/84)
Com argumentos mais sofisticados, o economista Dércio Garcia
Munhoz, da Universidade Nacional de Brasília, membro da assessoria
econômica de Tancredo Neves e funcionário do Banco do Brasil, também se
opunha à proposta, elogiando a atitude do Presidente Figueiredo de barrar seu
encaminhamento e culpando os tecnocratas que "num delírio pela conquista de
incontrolável e ilegítimo poder" tentaram aprovar as medidas, empregando
métodos espúrios e atendendo aos interesses do Fundo Monetário Internacional.
Na sua análise, aponta três aspectos principais que, na sua opinião,
comprometeriam os "insinceros propósitos reformistas" da tecnocracia: o
objetivo implícito de estrangular definitivamente o Banco do Brasil, o desvio de
recursos de posse do governo de áreas produtivas para a especulação financeira,
e, finalmente, o grau de comprometimento do orçamento fiscal com encargos
derivados da especulação com títulos públicos, sacrificando investimentos
sociais e imobilizando a futura administração. Quanto ao estrangulamento do
Banco do Brasil, seus argumentos não diferiam muito daqueles que
consideravam que se estava retirando do Banco seu papel "social". Quanto ao
segundo aspecto apontado – desvio de recursos do sistema produtivo para a
especulação financeira – denunciava que se estava tentando "impedir que o
Governo Federal utilizasse, para crédito... os recursos a custo zero, em poder do
Banco Central, derivados do compulsório bancário e das emissões monetárias
inevitáveis". E por último, apontava que em vez de se identificar quem era
responsável pelo aparecimento da dívida pública, pretendia-se apenas jogar no
orçamento fiscal os encargos reais desta dívida, o que iria paralisar o próximo
Governo pois a ele não sobrariam recursos para novos investimentos (Artigo
publicado no jornal Folha de S. Paulo, 23/12/1984).
O que é importante destacar nos comentários do economista de
oposição, é sua crença de que ainda seria possível pensar-se numa política
econômica de perfil desenvolvimentista, para a qual era estranha qualquer idéia
de ajuste através de um reordenamento das finanças públicas que fosse capaz de
controlar a expansão da base monetária. Também chama a atenção a pouca
importância que dá ao papel do Legislativo na definição das políticas de crédito
e investimento de recursos públicos, pontos cruciais na proposta sob sua crítica,
o que não lhe permite perceber que ela representava não um ganho, mas sim
uma perda de poder por parte do que denomina de tecnocracia. Mesmo que
todos seus argumentos fossem defensáveis, porque não deixar que o Congresso
Nacional decidisse sobre os destinos das finanças públicas?
Autoritarismo e centralização de poder caminharam juntos na
experiência do regime militar brasileiro entre 1964 e 1985. E um dos pontos
nevrálgicos desta centralização era justamente a política econômica, onde muito
poucos decidiam sobre o ritmo de crescimento do endividamento público e
sobre as prioridades de investimento. Mas autoritarismo e centralização de
poder são também o resultado da forma como se organizou o Estado a partir de
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
201
1930, como vimos anteriormente (marcado pela falta de hegemonia dos
interesses privados). O período da transição entre o regime autoritário militar
iniciado em 1964 (sem dúvida quando autoritarismo e centralização atingiram
seu auge) e a abertura democrática iniciada em 1985 ofereceram um momento
privilegiado para observar como a centralização e o autoritarismo que
cresceram no regime militar, perduraram no ideário da Aliança Democrática e
mesmo depois.
Na verdade, a Aliança Democrática não garantia a nenhum dos grupos
que a compunha a certeza de exercer a hegemonia sobre a política econômica.
Esta incerteza fazia com que os recursos autoritários e centralizadores
preexistentes (o orçamento monetário, por exemplo) fossem tratados com
cuidado, pois sua eliminação pura e simples poderia acarretar a imobilização do
Governo, já que nenhuma facção tinha recursos políticos suficientes para impor
uma trajetória própria. Também, pretendia-se quebrar a "coalizão de suporte ao
velho regime, entre tecnocratas (civis e militares) e os setores das elites
empresariais (do setor público e privado)". Com isso, acabou-se criando "uma
contracultura governista entre os economistas críticos do regime" (SOLA 1989,
p. 41).
No episódio que envolveu a discussão em tomo do Reordenamento das
Finanças Públicas, esta posição aparece com evidência, apesar de não estar
explicitada no discurso dos principais líderes e economistas que compunham a
Aliança Democrática. Mas não há indícios de que estivesse na sua agenda
imediata a desconcentração do poder, particularmente no campo da execução da
política econômica. Ao contrário, na sua visão, para implementar qualquer
medida, precisavam de um Governo forte. Esta seria mais uma conseqüência do
fenômeno mais amplo de uma "transição por distensão" do regime autoritário
para o regime democrático e não de uma "transição por colapso", na
terminologia adotada por O’Donnell (1987). Ou, "em um exercício de
populismo com autoritarismo" (SOLA 1989, p. 39), praticado pela oposição
reunida na Aliança Democrática
158
.
O que parece é que os membros da Aliança Democrática,
principalmente os pertencentes ao PMDB (com exceção dos ligados à
"bancada" do Banco do Brasil que atacavam as medidas para defender os
interesses da corporação, como já vimos anteriormente), não levaram em conta
que a precariedade institucional no trato das finanças públicas tinha chegado ao
ponto de tornar impossível qualquer ação planejada. E parece que ignoravam
que já havia uma proposta elaborada pela burocracia da área econômica que
poderia ser incorporada ao seu programa, mesmo que com reparos. Alguns
conheciam a proposta, mas a rejeitavam por considerar seus autores por demais
comprometidos com o regime militar.
158
Ao usar esta expressão a autora refere-se a uma experiência posterior, ou seja, ao Plano
Cruzado, de 1986. Entretanto, pensamos que ela se aplica perfeitamente ao período que
precedeu à eleição de Tancredo Neves.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
202
Esta atitude autoritária teve outra conseqüência sobre a implementação
das políticas. A idéia de que um Ministro da Fazenda, querendo, pode resolver
os problemas da economia, é muito comum tanto para o cidadão que
acompanha o assunto pelo noticiário quanto para alguns que atuam, se
preocupam e estudam soluções para os desajustes econômicos. Isto ocorre, a
partir de duas lógicas, ambas com origens em uma visão autoritária do
processo. A primeira, principalmente daqueles ligados ao aparelho burocrático
e que fica clara na análise do encaminhamento das propostas da Comissão para
o Reordenamento das Finanças Públicas, para quem, tendo-se capacidade
técnica e um bom diagnóstico, chega-se à solução correta, esquecendo-se de
que há um longo caminho a percorrer pela estrada de interesses contraditórios
todas as vezes que se tenta alterar um processo. E aí, além da solução técnica,
há uma trabalhosa negociação política com os diversos grupos, o que também
envolve competência. Segundo declarações de um dos entrevistados, membro
da equipe do Ministério da Fazenda em 1984: "O nosso primeiro susto foi em
1984, durante as negociações com o Fundo Monetário Internacional, havia
uma demanda por parte deles, de uma política compulsória de rendas no
campo dos salários. Já que não se podia fazer o salário pela média, far-se-ia
um redutor sobre os salários, o famoso Decreto-Lei 2.045. Foi feito, chegamos
à conclusão que o Fundo estava certo e fizemos. Formalmente, naquela época,
o decreto-lei podia, dentro de um prazo determinado, ser rejeitado por 2/3 do
Congresso, o que era praticamente impossível, e nunca havia acontecido. Mas
o Congresso rejeitou o 2.045. Foi a nossa primeira grande derrota. Ali
começou a ficar claro, pelo menos para um grupo restrito de técnicos, que a
questão econômica tinha também a ver com legitimidade. Não adiantava ter o
caminho correto, precisava ter legitimidade, e o Governo Figueiredo estava
perdendo legitimidade" (Entrevista n° 5).
Dentro da segunda lógica, e desta as oposições que assumiram a partir
da Nova República foram "vítimas", seria possível adquirir-se capacidade
técnica e operacional com rapidez e facilidade, pois segundo esta lógica, a boa
solução técnica nasceria da boa teoria e da boa análise política. Como, antes de
se colocarem na trincheira, consideravam-se portadores de ambas as
características, bastava conseguir que uma determinada pessoa fosse Ministro
da Fazenda e estava-se a meio caminho de uma solução. Esqueciam-se de que
uma boa proposta, com viabilidade política conquistada nas negociações, mas
sem condições institucionais de implementação que garanta sua eficiência e sua
permanência, pode ser um grande fracasso a médio prazo. A superação destes
entraves, que se originavam nas práticas autoritárias, era um assunto que ainda
não estava resolvido em meados dos anos 80.
E) BUROCRATAS E A DEFESA DO "INTERESSE PÚBLICO"
Os burocratas diretamente ligados à administração das contas públicas
perceberam, como vimos anteriormente, que sem mudanças profundas que
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
203
definissem novos instrumentos de atuação, não se conseguiria traçar um novo
desenho institucional para o Estado, e particularmente não se conseguiria conter
o déficit público e atacar a inflação. No momento da transição entre o regime
militar e o Governo Tancredo Neves, eles detinham o discurso e as iniciativas,
visando quebrar as regras autoritárias e centralizadoras que comandavam as
finanças públicas: "Mas fomos muito ingênuos e tivemos os mesmos defeitos do
regime autoritário. Achávamos que tínhamos descoberto o problema, sabíamos
o que era bom para o Brasil e então era só executar. Não nos demos conta de
que isto ia mexer com anos de cultura, tradição, interesses, etc. Fomos
entusiasmados, anunciamos para a imprensa o que para nós era o início da
transformação do processo orçamentário. Mas um dia tudo isto desmoronou"
(Entrevista n° 5).
A posição da burocracia que compôs a Comissão para o Reordenamento
das Finanças Públicas não foi consensual. Ou, foi consensual no relatório
escrito, mas este escondia as posições contrárias daqueles que preferiram se
calar ao perceber qual era a posição que seria vitoriosa. E mais uma vez, as
oposições surgiam por parte daqueles que estavam preocupados com o futuro
de suas corporações, ou seja, Banco do Brasil e Banco Central.
Os defensores do Banco do Brasil na Comissão afirmavam que a
reforma proposta não assegurava ao Banco nenhuma missão específica para que
pudesse "preservar seu papel de principal instrumento da política creditícia do
Governo Federal, deixando nas mãos dos bancos privados, através de seus três
representantes no Conselho Monetário Nacional, a decisão sobre quem teria
direito a receber verbas provenientes da arrecadação de impostos, ou seja, se
toda a rede bancária ou apenas o banco oficial". E acrescentavam que "... não há
razão para que o Governo pegue dinheiro proveniente da arrecadação de
impostos e entregue a bancos particulares para que estes emprestem aos
produtores rurais". E perguntavam: "Qual então é a missão específica de banco
de Governo que assegurará ao Banco do Brasil esta função de principal agente
da política econômica?" (Declaração de um membro da Comissão que não quis
se identificar, dada ao Correio Brasiliense, 1/12/84).
Em resposta às reações violentas contra as medidas propostas, nota
confidencial redigida por membros da Comissão que mantinham-se fiéis à sua
certeza de que as medidas eram inadiáveis denunciava que a flexibilidade
"perigosa e inconveniente aos interesses nacionais que foi se firmando ao longo
dos últimos 20 anos por força das pressões e dos usos e costumes" era, além de
tudo, inconstitucional. E justificavam: "A Constituição e a legislação
orçamentária determinam que o Orçamento da União deve abranger todas as
receitas e todas as despesas do Governo Federal. O orçamento monetário não
poderia assim abrigar nada que fosse privativo do Orçamento da União. O seu
objetivo é limitar a expansão monetária em patamar compatível com as
necessidades de moeda e crédito da economia. Com o tempo, porém, o
orçamento monetário foi se transformando em canal paralelo de gastos
públicos: compra do trigo, do açúcar e dos demais produtos agrícolas; as
dívidas externas honradas pela União; as linhas de crédito de fomento; o déficit
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
204
da previdência social e as operações de crédito externo da União. Em ambos os
casos (despesa e receita), nada limita o poder do Executivo via decisões do
Conselho Monetário Nacional. Este singular mecanismo acabou por criar na
sociedade brasileira a idéia de que o Governo Federal tem o dom de multiplicar
recursos para atender despesas através das autoridades monetárias. Daí a
facilidade de expansão que ministros, governadores, parlamentares e líderes
empresariais julgam existir nas operações de fomento do Banco Central e do
Banco do Brasil. O Tesouro Nacional e o Ministério da Fazenda perderam... a
proteção que merecem em qualquer sistema de finanças públicas. Não podem
hoje resistir às pressões por maiores gastos, que tendem a se avolumar. É
razoável que estas pressões existam, mas é preciso que haja freios ao
crescimento desordenado e inflacionário das despesas. O remédio é cortar o mal
pela raiz, colocando todas as receitas e despesas públicas no orçamento da
União, corno manda a Carta Magna, o que torna desnecessário o orçamento
monetário... Não se trata de medida contra o Banco do Brasil, nem uma barreira
à ação do futuro Governo; ao contrário, é providência que lhes beneficia. Além
disso, é uma exigência do interesse público, à qual os interesses dos
funcionários do banco têm que se curvar. É um legado que o atual Governo
deixa aos próximos governos. É importante associara abertura política como
ajustamento da economia realizados na pior crise do país. A história deverá
reconhecer esse trabalho, apesar da incrível oposição que a ele se vem
fazendo..." (Nota Confidencial, O Banco do Brasil e a extinção do orçamento
monetário, p. 1-2, 5/12/84).
A leitura do documento ajuda a entender um pouco mais qual o sentido
que estes burocratas davam à "defesa do interesse público Seguramente
percebiam que os interesses das corporações muitas vezes se sobrepunham ao
"interesse público" e esta atitude deveria ser combatida sempre. Para eles o
"interesse público" deveria ser buscado na sociedade, como já vimos
anteriormente, e eles, como funcionários públicos, seriam seus defensores.
Consideravam sua atuação como apolítica e apartidária, e portanto se
autoproclamavam como o grupo mais competente para conduzir esta vontade da
sociedade. Ao adotarem esta atitude, declaravam uma autonomia que não
correspondia à realidade do seu espaço de atuação, pois este vinha
condicionado não só por limites estruturais como também pelo fato da
sociedade manifestar interesses diversos, muitos dos quais contraditórios. Em
outras palavras, ou o "interesse público" passaria a ser definido pelos próprios
burocratas, e então eles tentariam impor à sociedade o que lhes daria um
perigoso poder sem controles, ou não haveria possibilidade de definir o que
seria o "interesse público" no emaranhado de interesses contraditórios que
emanavam da sociedade.
205
C
APÍTULO VI
A REFORMA COMEÇA A SER IMPLANTADA:
UMA VITÓRIA DA BUROCRACIA?
Não pretendemos fazer uma análise da nova fase que se inicia com a
implantação do Plano Cruzado, pois foram grandes as modificações que
começaram a ser introduzidas no desenho institucional das finanças públicas,
englobando inclusive a criação da Secretaria do Tesouro, o que aumentaria
muito nosso escopo analítico. Entretanto, como as primeiras medidas propostas
pela Comissão para o Reordenamento das Finanças Públicas acabaram sendo
implementadas nas águas do Plano Cruzado a partir de 1986, inclusive o
congelamento da Conta Movimento, alguns pontos merecem atenção.
A vitória da Aliança Democrática em 1985 trouxe consigo as condições
de legitimidade política que estavam faltando ao regime militar nos seus
últimos anos. Tudo indicava que estava aberto um período de profundas
mudanças no país, inclusive no desenho institucional das finanças públicas.
Mas os primeiros meses da Nova República parece que não confirmaram este
prognóstico, como já vimos anteriormente. A morte do presidente Tancredo
Neves abalou imediatamente a legitimidade do novo regime. José Sarney
representava ainda a fase do regime militar, por mais que seus aliados
pretendessem negar. Além disto, a Aliança Democrática não se fez em torno de
um programa claro, onde estivesse definido, por exemplo, o papel que o Estado
deveria ter nesta nova fase da história brasileira. E para complicar ainda mais o
quadro, com a entrada de Sarney nenhum grupo podia declarar sua hegemonia
na aliança política que passaria a governar o país.
O período da gestão do ministro Dornelles à frente do Ministério da
Fazenda foi um exemplo deste desarranjo político. No que se refere à análise
que desenvolvemos no presente estudo, ficou bastante claro que já havia um
grupo que era portador de uma proposta de reforma das finanças públicas, com
pontos que poderiam ser considerados polêmicos, mas não em sua essência,
como os fatos acabaram demonstrando. O que faltava era "vontade política" de
mudanças, e isto parecia que a Nova República havia enterrado nos seus
primeiros meses de existência.
Mas o aprofundamento da crise econômica fez o tema voltar
rapidamente à agenda do Governo. Além disso, um outro fato muito importante
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
206
contribuiu para o renascimento da discussão: a grande maioria dos
coordenadores e muitos dos integrantes dos grupos de trabalho da Comissão
para o Reordenamento das Finanças Públicas se agruparam em torno da
Assessoria Econômica do Ministério da Fazenda
159
, sob a coordenação do Dr.
João Batista de Abreu.
O ponto de partida deste processo foi a unificação orçamentária: "Como
havia pouco tempo, pois a data limite para o encaminhamento da proposta
orçamentária era 31 de agosto, optou-se então por começar pela inclusão no
Orçamento, das operações de natureza não-reembolsável de interesse do
Tesouro, realizadas pelo Banco do Brasil e Banco Central. As de natureza
reembolsável foram deixadas para a etapa seguinte, como por exemplo os
empréstimos a setores prioritários" (Entrevista n° 4).
Quando a proposta orçamentária é encaminhada ao Congresso em
agosto, incluindo por exemplo os encargos com os empréstimos externos, a
aquisição de trigo, o programa de crédito rural, a política de preço nacional
equalizado de açúcar e álcool, etc., o orçamento apresentou pela primeira vez
desde 1964 um déficit considerável. Era o começo da mudança de mentalidade.
A partir daí prosseguiram os estudos necessários para avançar ainda mais:
"Duas áreas foram escolhidas como absolutamente prioritárias: a separação
do Banco do Brasil em relação ao Banco Central e ao Tesouro e a preparação
do Ministério da Fazenda para acompanhar a execução do novo orçamento em
outros moldes. Para se ter uma idéia, quando cheguei ao Ministério da
Fazenda, em 1985, o Tesouro era composto por dois funcionários que
acompanhavam a execução orçamentária pelos extratos que eram
apresentados pelo Banco do Brasil" (Entrevista n° 11).
Assim sendo, as primeiras medidas propostas foram: imediato
congelamento do saldo da Conta de Movimento, com a eliminação da
sistemática diária de nivelamento de seu saldo. Com isso o Banco do Brasil
deixaria de ter acesso aos recursos do Banco Central. O saldo desta conta seria
acertado futuramente entre o Ministério da Fazenda e o Banco do Brasil
160
.
Outra medida seria exigir que todas as operações que o Banco do Brasil tivesse
que realizar no interesse do BACEN ou do Tesouro deveriam ser cobertas por
recursos prévios e específicos (CALABI e PARENTE 1990).
159
Pudemos identificar os seguintes nomes: Alcindo Ferreira, Aléssio Vaz Primo, Armando
Thiers Farnese, Amold Alicio da Silva Gaspar, Cid Heráclito de Queiroz, Cincinato
Rodrigues Campos, Daniel Alves Ramires, Edésio Ferreira Fernandes, Edson Alves Sá
Teles, Francisco de Assis Campolina de Oliveira, Fuad Jorge Noman Filho, Gilberto
Florito, Helio Bebiano, Inácio José Barreira Danziato, Jorge Caetano, José Augusto
Savasini, José Augusto Varanda, Luis Fernando Gusmão Wellisch, Luiz Antonio Andrade
Gonçalves, Luiz Carlos Nerosky, Luiz Jorge de Oliveira, Osiris de Azevedo Lopes Filho,
Paulo Cesar Ximenes Alves Ferreira (passou a reintegrar a equipe apenas em 1987), Pedro
Pullen Parente, Raymundo Monteiro Moreira, Renato Pimenta Furtado, Roberto Calaça da
Costa, Sadi Assis Ribeiro Filho e Silvio Rodrigues Alves.
160
Este futuro durou bastante, pois fomos informados em abril de 1994 que os últimos acertos
estavam sendo feitos naquele mês, portanto, nove anos depois.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
207
A saída do ministro Dornelles e a entrada do ministro Dilson Funaro foi
o dado que faltava para que o processo finalmente se iniciasse: “O Ministro
Funaro era tremendamente sensível e percebia as coisas com muita rapidez,
apesar de conhecer muito pouco da administração pública, o que aliás no caso
até ajudava. Numa determinada semana no início de 1986, o presidente do
Banco do Brasil, Camilo Calazans, apresentou com muita alegria ao ministro
Funaro o fantástico lucro que o Banco havia conseguido no ano anterior. Ao
analisarmos para ele aqueles dados, não ficou difícil demonstrar que este lucro
vinha da Conta Movimento, e que, portanto, era totalmente fictício. Aí foi só o
tempo de descer para o nosso andar e pegar o Voto do Conselho Monetário
que já estava pronto para ser assinado, Voto este que na prática congelava a
Conta Movimento
161
. Nestas horas a burocracia é imbatível. Ela sabe o
momento exato de fazer as coisas” (Entrevista n° 11). O Voto recebeu mais
tarde o n° 045/86 e foi promulgado no dia 31/1/1986.
Houve imediatamente forte reação dos parlamentares ligados ao Banco
do Brasil, seus funcionários cercaram o Ministério da Fazenda, conseguiram
obter uma nova liminar que foi revogada pelo Tribunal Federal de Recursos e,
finalmente, em fevereiro as decisões foram implementadas: “No dia em que o
Ministério foi cercado, foi impressionante a atuação do ministro Funaro,
principalmente para nós, funcionários nascidos e criados no regime militar.
Ele mandou que o pessoal do Banco do Brasil entrasse no auditório do
Ministério da Fazenda, que é pequeno e assim ficou superlotado, e desceu para
falar com eles. E aí, com aquele carisma que só ele possuía, explicou numa
linguagem bastante simples que aquela decisão só iria beneficiar o Banco do
Brasil, e principalmente iria favorecer a democracia e a transparência das
contas públicas. Saiu de lá ovacionado” (Entrevista n° 9).
Faltava começar a segunda parte das mudanças, estas ligadas à criação
de um órgão que controlasse as contas do Governo: "Partiu-se do diagnóstico
de que no Ministério da Fazenda não havia nenhum órgão que estivesse
estruturado para assumir a administração financeira da União. Esta função era
realizada por diversos órgãos, cada um com sua cultura própria. O Banco do
Brasil controlava a execução financeira, o Banco Central controlava a dívida
pública, ninguém controlava o saldo das operações de risco direto ou indireto
para o Tesouro realizadas no âmbito das instituições financeiras federais, não
havia previsões e avaliações do impacto sobre as finanças federais de operações
das demais entidades do setor público federal, estadual ou municipal, e assim
por diante" (CALABI e PARENTE 1990).
161
Na verdade este congelamento se deu em duas etapas: a primeira foi anterior ao Voto,
quando criaram-se os registros das Operações de Créditos Realizados que o Banco do
Brasil teria que apresentar diariamente, e que representavam os gastos da Conta
Movimento. O segundo foi através do Voto 045/86, que suspendeu o pagamento por parte
do Tesouro destas operações, exigindo que elas fossem cobertas com recursos do próprio
Banco. O passivo da Conta Movimento foi sendo saldado com o tempo.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
208
No que diz respeito à execução orçamentária a situação não era
diferente. O sistema existente apresentava uma defasagem de quatro meses
entre o gasto e seus relatórios contáveis, cada órgão possuía "o seu" sistema de
levantamento das operações, o que tomava quase impossível a consolidação
global, e finalmente, cada órgão mantinha um saldo médio elevado na falta de
uma conta única. Cada um destes itens, como j á observamos, fazia parte do
diagnóstico apresentado pela Comissão para o Reordenamento das Finanças
Públicas em 1984. Mas em 1986 havia chegado o momento político que
carregava as condições para a implantação não só de um órgão (o que em 1984
não ficou muito claro), mas principalmente de um sistema moderno de
execução financeira que atingisse todos os ministérios, autarquias e até
empresas. Assim sendo, "no início de março de 1986 o Governo criou a
Secretaria do Tesouro com a fusão da então Secretaria Executiva da Comissão
de Programação Financeira e da Secretaria Central de Controle Interno, com as
seguintes funções: seria responsável pelo planejamento, normatização,
coordenação e controle das áreas de programação e administração financeira,
contabilidade e auditoria; pelo controle dos riscos diretos e indiretos assumidos
pelo Tesouro; e finalmente responsável pelo controle financeiro do setor
público, a fim de que fosse possível avaliar os impactos da execução financeira
de todas as entidades públicas sobre as finanças federais. A Secretaria do
Tesouro Nacional foi criada com representantes setoriais em cada ministério ou
órgão de hierarquia equivalente, denominadas Secretarias de Controle Interno, e
com representantes seccionais de cada unidade da Federação denominadas
Delegacias do Tesouro Nacional" (CALABI e PARENTE 1990).
Para ocupar as principais funções desta nova estrutura, recorreu-se à
burocracia permanente: "Procurou-se montar a Secretaria com o maior número
possível de funcionários já integrantes dos quadros do Governo, com o objetivo
de permitir que suas atribuições fossem realizadas no menor prazo possível e
com a maior eficiência possível. Foram treinados em quarenta e cinco dias
mais de cinco mil funcionários no país inteiro e assim foi montado o Siafi –
Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal”
162
(Entrevista n° 1).
162
Sobre o Siafi, Andrea Calabi e Pedro Pulen Parente, dois de seus idealizadores e
implementadores, apresentam a seguinte avaliação: "O Siafi foi desenvolvido e
implementado no prazo recorde de 7 meses, isto é entre julho e dezembro de 1986,
iniciando suas operações no dia 5 de janeiro de 1987. Foram desenvolvidos cerca de 900
programas de computador, instalados cerca de 1.100 terminais e treinados cerca de 5.000
funcionários dos diversos órgãos. No mesmo período, para otimizar as condições que o
Siafi proporcionaria, foi consolidada toda legislação sobre execução orçamentária e
financeira, trabalho que não se fazia desde o Código de Contabilidade Pública de 1922. O
novo Plano de Contas foi elaborado, de forma tal que pudesse ser utilizado tanto pelos
órgão sujeitos às regras da Lei 4.320 quanto da Lei 6.404. Atualmente (1990) o Siafi
interliga 46 órgãos da administração direta, 49 fundações, 35 empresas públicas e 12
fundos. Tem uma rede de 4.984 equipamentos terminais, distribuídos em 1.407 instalações,
processando cerca de 640 mil transações por dia. Já foi implantada a conta única que
representa significativa economia para os cofres do governo, entre os quais o DRF
eletrônico, cujo processamento se dá dentro do sistema, evitando o trânsito dos recursos
pela rede bancária".
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
209
Foi montado assim um novo sistema de execução financeira do
Orçamento, com as seguintes características: "integração dos sistemas de
orçamento e de execução financeira; utilização das mais modernas tecnologias
da informática, incluindo o processamento on-line de transações; centralização
do processamento e padronização dos procedimentos da execução orçamentária
e financeira, sem, no entanto, reduzir a autonomia das unidades orçamentárias
na gestão de suas dotações; implementação para toda a administração direta de
forma obrigatória, e de forma optativa para os órgãos da administração indireta
e dos poderes legislativo e judiciário; implantação da sistemática de conta
única, de forma a reduzir a necessidade de manutenção de disponibilidades pelo
Governo Federal, com redução direta dos custos de sua dívida" (CALABI e
PARENTE 1990).
Cumpria-se mais uma etapa. Entre as medidas que ainda não tinham
sido implementadas, e que também "mobilizavam paixões", estava a relação
entre o Banco Central e o Tesouro Nacional. Em maio de 1987, assumiu o
Ministro Luiz Carlos Bresser Pereira em substituição a Dilson Funaro que havia
se desgastado por não ter conseguido condições políticas para introduzir as
correções necessárias no Plano Cruzado. O ministro Bresser manteve a maioria
dos técnicos da burocracia permanente que havia elaborado e iniciado a
implantação da reforma institucional das contas públicas. No bojo do seu
"Programa de Consistência Macroeconômica" implementou-se a separação
financeira entre Banco Central e Tesouro referente à administração da dívida
pública mobiliária, que passou para o Tesouro, pois até então a lei permitia a
emissão primária de títulos com fins de política monetária pelo Banco Central,
o que possibilitava, como o diagnóstico da Comissão para o Reordenamento
das Finanças Públicas já havia apontado em 1984, a emissão de títulos para
cobrir contas do Tesouro ou do Banco do Brasil sem dotação orçamentária. Foi
também sacramentada a transferência da administração da maior parte dos
fundos de fomento do Banco Central para o Ministério da Fazenda. E, por
último, mas não menos importante, foi completado o processo de unificação
orçamentária, com a inclusão das operações reembolsáveis que haviam sido
excluídas na etapa anterior. Estas operações incluíam a dívida financeira de
Estados e municípios, de bancos estaduais, o refinanciamento da dívida externa
com aval do Tesouro, o financiamento de investimentos agropecuários, do
custeio pecuário, do custeio agrícola, da política de preços agrícolas, dos
estoques reguladores, dos investimentos industriais, do financiamento aos
exportadores, das dívidas das micro e pequenas empresas e da comercialização
dos produtos agroindustriais como o álcool
163
. Muitas destas questões, como,
por exemplo, a que tratava da dívida financeira de Estados e municípios, não foi
resolvida, mas deu-se um passo importante para o seu equacionamento pelo
fato dela tornar-se pública. Era mais uma vitória das idéias pregadas desde 1984
pela burocracia ligada à Comissão para o Reordenamento das Finanças
Públicas. O monstro de várias cabeças começava a ser domado, pelo menos no
que diz respeito à sua configuração institucional.
163
Estas medidas tiveram vigência a partir de 1° de janeiro de 1988.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
210
Mas faltava um longo caminho a percorrer para que o Estado brasileiro
se ajustasse
164
. No escopo deste trabalho, um braço institucional deixou de ser
contemplado pelas reformas até 1988, ou seja, o braço do controle sobre a
qualidade do gasto: “O controle da qualidade e da eficiência do gasto não
existe. A discussão é muito acirrada na apresentação de proposta
orçamentária. Uma vez que o Orçamento é aprovado pelo Congresso, ninguém
tem mais controle da eficiência da aplicação do gasto. As Cisets (Controle
Interno Setorial de cada Ministério), que deveria ser o braço de controle da
Secretaria do Tesouro não foi estruturada” (Entrevista n° 15). Pudemos
comprovar este fato. Quando visitamos a Ciset do próprio Ministério da
Fazenda
165
, pudemos constatar que ela não tinha funcionários auditores
habilitados em número suficiente, os que existiam não podiam cobrir todos os
gastos orçamentários e nem tinham autonomia para isto, o que tomava quase
impossível que atuassem sobre a qualidade do gasto: “Quando se é um
funcionário que deve fiscalizar seus superiores ou mesmo seus ‘iguais’ ; fica
tudo muito difícil se não existir uma garantia de que sua avaliação vai ser
respeitada e que não haverá represálias" (Entrevista n° 9). O recente episódio
da chamada "máfia do orçamento” só eclodiu no final de 1993, pela denúncia
de um funcionário público — José Carlos Alves dos Santos —, mas por razões
que nada tinham a ver com o controle institucional.
164
Várias mudanças foram introduzidas pela Constituição promulgada em outubro de 1988, a
maioria delas aprofundando a reforma que havia sido iniciada: houve o restabelecimento
das competências do Legislativo com a abertura da possibilidade de que este apresentasse
emendas desde que fossem compatíveis com o Plano Plurianual de Investimentos e com a
Lei de Diretrizes Orçamentárias e que indicassem a fonte de recursos. Não poderiam ser
apresentadas emendas que se referissem às despesas de pessoal, ao serviço da dívida ou às
transferências constitucionais. A Constituição introduziu também "mudanças no ciclo e nos
instrumentos de planejamento através do Plano Plurianual, que consistia na definição de
diretrizes regionalizadas, objetivos e metas para as despesas de capital e para os programas
de duração continuada. Cada Governo deveria apresentar o seu Plano no primeiro ano e
deveria estender-se até o primeiro ano do Governo seguinte. Introduziu-se a Lei de
Diretrizes Orçamentárias, que deveria ser o elo entre o Plano e o Orçamento, incluindo as
metas e prioridades da administração, com a definição das despesas de capital para o
exercício orçamentário subseqüente, orientação para a lei orçamentária anual, as alterações
na legislação tributária e a política de aplicação das agências financeiras oficiais. A Lei
Orçamentária Anual deveria incluir o orçamento fiscal com todos os órgãos da
administração direta e indireta, exceto empresas, o orçamento de investimentos das
empresas públicas e sociedades de economia mista e o orçamento da seguridade social.
Definiu também a introdução de limites para a realização de determinadas despesas: gastos
com pessoal sujeitos a 65% das receitas correntes, alteração de cargos e salários e demais
vantagens somente se houver prévia dotação com autorização específica da LDO, limitação
do valor das operações de crédito ao montante das despesas de capital (que compreendem a
realização de investimentos, as inversões financeiras e o pagamento do principal dos
empréstimos). Assim, o aumento da dívida total só poderia ocorrer se houvesse aumento
equivalente nos investimentos e inversões financeiras e garantindo-se um mínimo de
recursos para amortizações futuras, além de obrigar que os encargos da dívida fossem
cobertos com recursos próprios e não com endividamento adicional (CALABI e
PARENTE 1990; Constituição do Brasil, outubro de 1988).
165
Que aliás funcionava até 1993 em um edificio bem distante de todos os outros órgãos da
Fazenda, todos situados na esplanada dos Ministérios.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
211
C
ONCLUSÕES E DESDOBRAMENTOS
A presença e a importância da burocracia no desenho institucional das
finanças públicas surgem como características marcantes da sua trajetória e
ajuda a definir seu espaço de poder, bem como sua lógica de ação. E
ousaríamos dizer que este traço não se restringe a um segmento da burocracia,
mas aparece em todos aqueles órgãos onde existe um quadro permanente e
estável de funcionários. Em outras palavras, todas as áreas públicas — saúde,
educação, previdência, etc. — têm um grupo de burocratas que são importantes
formuladores institucionais. Esta presença se dá para o bem e para o mal, pois
ela não é garantia de que suas propostas resultem necessariamente em um
desenho inovador, já que podem muitas vezes ter outros objetivos em vista,
como por exemplo a defesa de interesses corporativos. No caso estudado, o seu
desempenho merece várias qualificações.
Em primeiro lugar, ao proporem as mudanças no desenho institucional
das finanças públicas, os burocratas não estavam dando um voto de confiança
aos políticos. Pelo contrário: estavam propondo que a vigilância que exerciam
sobre o executivo como funcionários e portanto guardiões do "interesse
público", fosse transferida para a "sociedade" e que essa, através da
transparência das contas públicas, pudesse controlar os políticos.
Aqui aparece o que Beetham, ao interpretar Weber, chama de
"ambivalência da racionalidade burocrática": as mesmas qualidades que a
credenciam para diagnosticar e propor ações que garantam a administração do
bem público (conhecimento técnico, informação, autonomia relativa que gera
imparcialidade, etc.), também lhes dá, em certas situações os "meios e o ímpeto
de exercer o poder além dos limites inerentes a sua natureza" (BEETHAM
1984, p. 78-79). Ou ainda o que Marx destaca no 18 Brumário, quando, ao
descrever o autoritarismo do regime político francês da época, destaca que a
burocracia atuava como representante de interesses que nasciam de sua própria
percepção da ordem burguesa a ser mantida e que muitas vezes não coincidiam
com os interesses da própria burguesia (BAYER 1975, p. 86). Nossos
burocratas partiam de uma prática autoritária na qual estavam mergulhados há
quase vinte anos, que os "protegia" dos interesses e das demandas vindas do
Congresso que não atuava como Poder Legislativo, e nem dos Partidos
Políticos que, além da sua histórica fraqueza, sofriam ainda os efeitos de um
sistema comandado pela repressão ao jogo político. As pressões a que estavam
habituados, eram as pressões clientelistas vindas dos canais personalizados de
relações. Assim, se percebiam a presença da pressão de um deputado, ela não
era exercida como parte da barganha entre Executivo e Legislativo, mas sim
como resultado da influência que aquele deputado tinha junto ao Ministro ou
algum alto escalão do Executivo. O que temiam é que, com a abertura política e
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
212
com a crescente força do Poder Legislativo, os políticos passassem a pressionar
muito mais. Com isso apelavam para "a sociedade" como fiscalizadora das
decisões. Propunham-se a "dividir" o seu papel com a sociedade. Mas esta
"parceria" não diminuía seu poder, pois, através das pressões difusas que
vinham da sociedade, surgiam como força capaz de apresentar soluções.
Mas quem era a sociedade para eles? Era uma entidade abstrata,
desprovida de interesses, capaz de fiscalizar com neutralidade? Pelos
depoimentos percebe-se que seu pensamento se aproxima mais das idéias
liberais que consideram a sociedade como um espaço "independente" onde são
definidas as prioridades, que são levadas por representantes eleitos ao Estado,
inclusive determinando seus poderes e estabelecendo seus limites. Sua visão
aproxima-se da idéia de que as metas da sociedade são "abstratamente dadas" e
não "o resultado da vitória de interesses particulares que se apresentam como
ideologia e apenas como tal são interesses gerais, ou seja, metas da sociedade",
como defende Luciano Martins (MARTINS 1985). Para eles, como defensores
do "interesse público", estavam defendendo os interesses da "sociedade em
geral". Mas como definir o que é a "sociedade em geral" quando existem
diversas classes sociais e portanto quando os interesses estão divididos? É
impossível. O que pode existir em sociedades concretas são acordos entre estes
interesses em defesa de uma proposta, e dentro deste acordo a burocracia pode
ter um papel importante. No caso estudado, a transparência orçamentária, bem
como seu controle através de mecanismos institucionais rígidos (e públicos),
era a proposta em tomo da qual poderia ser tentado um acordo. Mas a
burocracia não tinha a percepção deste processo: ela achava que como detentora
da "boa nova" seu sucesso estava garantido.
Esta burocracia tinha uma visão peculiar dos políticos, um de seus
possíveis parceiros. No seu papel de "pedintes", os políticos eram vistos como
representantes de interesses particularistas, em geral contrários ao "interesse
público" e que, portanto, deviam ser enquadrados institucionalmente (através
de normas legais) para evitar que sangrassem o Estado. Quem devia controlar
os políticos (além da lei) era a sociedade, através de instrumentos que
tomassem transparente a ação dos políticos, para que então fosse possível a
organização de pressões que garantissem o respeito ao "interesse público".
Nada melhor para isto, pensavam, do que o debate legislativo. Não porque
confiavam nos políticos, mas sim porque através do debate aberto a
"sociedade" tomaria consciência da situação e pressionaria na direção
"correta". Mas a idéia de que a sociedade era portadora da "visão correta"
tinha problemas, como vimos anteriormente.
Sua visão de "interesse público" era autoritária. Eles consideravam-se os
detentores do que fosse o "interesse público", a partir de sua condição de
técnicos competentes, honestos, neutros e apolíticos. Demonstravam ter certeza
disto, e atuavam baseados nesta certeza. Assim, para eles, fazia parte do
"interesse público" naquele momento, o controle da classe política, que passaria
a ter grande força com a abertura democrática. Mas também fazia parte do
"interesse público" (para eles) reduzir o intervencionismo estatal na área
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
213
financeira, principalmente através da mudança do papel do Banco do Brasil que
perderia os privilégios de ser o agente do Governo, e passaria a atuar como
banco comercial, primeiro passo para sua privatização. Assim pouco a pouco o
seu conceito de "interesse público" para aquele momento ia se definindo.
Em segundo lugar, a atuação da burocracia no momento analisado foi o
resultado de um processo de tomada de consciência que nasceu da necessidade
de se promover um programa de ajuste. Neste processo, os burocratas foram
expostos a informações (ou perceberam a falta delas) que os colocou frente a
dilemas e frente à necessidade de alterar rotinas. Mas neste momento,
diferentemente do que ocorrera em outros momentos históricos — como no
primeiro Governo Vargas e principalmente durante a execução do Plano de
Metas de JK, como apontou Celso Lafer em sua tese de Doutorado (1970) —,
não optaram pelas soluções via administração paralela, mas sim por
modificações institucionais que alterassem o papel do Estado. O quê havia
mudado? Tanto o esgotamento do modelo autoritário como a aproximação de
um regime democrático, num país que havia crescido e se modernizado mas
que mantinha um Estado com regras e práticas institucionais clientelísticas e
com controles frouxos, auxiliaram a formação da consciência de que as
mudanças precisariam alterar em profundidade este quadro, principalmente para
aqueles que lidavam cotidianamente com os gastos públicos.
Em terceiro lugar, a transição de um regime militar para um regime de
liberdades democráticas, foi um momento de exacerbação da autonomia da
dimensão política já apontada por Luciano Martins (1985). Esta característica
do nosso processo histórico definiu os limites da burocracia na sua tentativa de
atingir seus objetivos. O cenário político nos dois anos que precederam o fim
do regime militar estava dominado por um descontentamento por parte dos
vários segmentos sociais originado no esgotamento do caminho autoritário.
Mas este descontentamento não vinha acompanhado de nenhuma proposta
consensual dos rumos que se pretendia dar à política econômica ou à ação do
Estado. O que unia os grupos que apoiaram a Aliança Democrática era a idéia
de mudança institucional com respeito às regras democráticas. Além disso,
havia uma proposta defendida por parte da Aliança Democrática de uma
política de desenvolvimento econômico =distribuição de renda e outra, de outra
parte da Aliança Democrática, de cunho liberal, com maior respeito às leis do
mercado e conseqüente diminuição do "tamanho" do Estado. Mas ninguém
parecia ter idéia de como fazer uma coisa nem outra. Ou quase ninguém. Parte
da burocracia da área econômica do setor Governo, no que se refere ao
reordenamento das finanças públicas não só sabia, como procurou atuar,
aproveitando o espaço aberto pela conjuntura "mudancista". Mas esta mesma
conjuntura definia os limites de sua ação, isolando-a politicamente através do
discurso ideológico de que tratava-se de uma proposta tecnocrática inspirada
nos interesses do capitalismo internacional, materializados nas exigências do
Fundo Monetário Internacional.
O espaço de poder desta burocracia, durante o regime militar, parece
que se ampliou com a maior centralização das decisões em torno de "ministros
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
214
fortes" ou do próprio Presidente e com a redução das pressões dos grupos de
interesses e do Poder Legislativo. Com isso, este segmento burocrático passou a
contar com recursos políticos delegados pela situação. Mas este momento de
maior autonomia foi confundido por eles com um poder real de mudar as
coisas, pois não percebiam os limites da situação: "Qual foi nossa grande
ingenuidade? Tivemos os mesmos defeitos do regime autoritário: achávamos
que tínhamos descoberto o problema, sabíamos o que era bom para o Brasil e
então era só executar. Não nos demos conta de que isto ia mexer com anos de
cultura, tradição, interesses, patriotismos', etc. Fomos entusiasmados,
anunciamos para a imprensa o que para nós era o início da transformação das
políticas públicas no país. Mas um dia tudo isto desmoronou" (Entrevista n° 4).
Em quarto lugar, a "defesa do interesse público" e o livre jogo
democrático se transformaram na lógica de ação desta burocracia,
paradoxalmente, em duas práticas incompatíveis. A capacidade dos burocratas
de atuar na definição de um novo desenho institucional de um estado que
precisava se ajustar impõe outro tipo de limites na passagem do regime militar
para o governo civil de Tancredo Neves, não porque perderam seus recursos
políticos, mas porque estes ficaram muito enfraquecidos porque a nova lógica
democrática veio "carimbada" com propostas que misturavam o antigo
populismo econômico, com a defesa de interesses corporativos, tudo sob a
bênção de uma política promotora do desenvolvimento e centrada na
distribuição de renda. Diante deste quadro, encolheram sua participação e
"aguardaram" um momento melhor para agir. Assim, nos primeiros meses da
Nova República, durante a gestão do ministro Dornelles, reduziu-se o espaço de
poder daquele segmento burocrático que havia se fortalecido tanto no final do
período anterior. Apesar de terem permanecido no Governo e da presença de
dois de seus líderes — Francisco Dornelles e João Batista de Abreu—, a
ampliação do espaço democrático parece ter inibido sua ação, e os recursos
políticos tão úteis na fase anterior, perderam sua eficácia. Este foi o momento
do fortalecimento dos interesses corporativos — no nosso caso centrados no
Banco do Brasil —, e foi a vez do Congresso Nacional, arena onde estes
técnicos tinham enormes dificuldades em circular e onde, definitivamente, não
havia espaço para pensar-se em reordenação institucional. Viveu-se, por algum
tempo, aquele momento mágico, tão comum nas fases pós-mudança, em que
tudo (inflação, déficit público, descontrole das contas públicas, etc.) iria
resolver-se com o tempo.
Em quinto lugar, o que fez com que parte da burocracia ligada a áreas
tão nevrálgicas na definição da política financeira do Governo, não se
preocupasse em perder um poder que praticamente os transformava em
"autoridades" monetárias? Apesar de atuarem quase sempre comandados por
pressões que vinham dos governantes, sobrava-lhes ainda um bom espaço de
manobra. A "transparência" nas contas públicas que propunham limitaria seu
grau de liberdade para influir nas decisões tomadas entre "quatro paredes" onde
agiam com desenvoltura. Mas talvez tenham percebido que as tais decisões
davam-lhes apenas o micropoder de distribuir favores, o que, se j á era
desgastante com o Congresso enfraquecido, se transformaria em um quadro
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
215
caótico com a ampliação do espaço democrático. Contas bem estruturadas e
regras bem definidas lhes dariam o macropoder de gerir as finanças públicas,
sabedores que eram de que sua presença seria indispensável (o que o tempo
provou ser verdade) na nova conjuntura. Assim, não estavam perdendo recursos
políticos, mas sim, mudando sua qualidade.
Finalmente, pensando no futuro, algumas considerações podem ser
feitas. Em primeiro lugar, observamos que a grande maioria dos técnicos que
participou do que chamamos de "elite burocrática" da área econômica desde os
anos 30 vinham de órgãos como o Banco do Brasil, o Dasp, a Sumoc, o BNDE,
a Receita Federal, e mais tarde o Ipea, onde concentrava-se a "parte pensante da
burocracia". Todos estes espaços institucionais garantiram a formação
profissional de seus técnicos, a sua remuneração em patamares atraentes, e a
construção de uma ética e de uma disciplina que foram responsáveis pela
performance deste grupo que analisamos. Até meados dos anos 70, havia uma
preocupação permanente em oferecer treinamentos internos, além do incentivo
para que os melhores profissionais se aperfeiçoassem em programas de
mestrado ou doutorado ligados à sua área e em universidades aprovadas pela
sua instituição de origem. Havia também uma preocupação em enviá-los para
cursos e estágios no exterior (FMI, Bird, etc.). Esta formação foi durante as
décadas de 50 e 60 um importante recurso político para a definição do espaço
de poder destes burocratas. Mesmo após o golpe de 1964, a formação da
burocracia ligada à área econômica prosseguiu, principalmente através dos
programas de treinamento do Banco Central, do Ipea e do BNDE. Mas, a partir
do Governo Figueiredo, esta preocupação desapareceu. E foi totalmente
sepultada, com o agravamento da crise econômica e com a "Reforma
Administrativa" do Governo Collor, quando foram desativados todos os
treinamentos, as possibilidades de aperfeiçoamento no exterior, além da
desmoralização do funcionário público através de uma campanha pela mídia
que o colocava como o grande vilão da crise do Estado. Além destes fatores, a
privatização de algumas estatais terá seus efeitos sobre a qualidade da
burocracia pública, já que durante as décadas de 60, 70, 80 e começo de 90, elas
foram as grandes supridoras de quadros qualificados para a administração
direta. Esta situação, associada ao bloqueio da substituição de funcionários
determinada pela suspensão dos concursos no contexto do "enxugamento da
máquina", faz prever um esvaziamento e um "envelhecimento" perigoso para as
próximas décadas.
Em resumo, este cenário torna bastante pessimista qualquer perspectiva
no que se refere à renovação dos quadros da administração pública se não
forem tomadas medidas rápidas para reverter este estado de coisas. Não se
forma um quadro de funcionários públicos competentes por decreto. E estes
burocratas, apesar de não serem os detentores da chave para resolver a crise do
Estado, são fundamentais para formular e operar novos desenhos institucionais
em todas as áreas da administração pública.
216
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A
NEXO I
P
ESSOAS ENTREVISTADAS E DEPOIMENTOS
P
ESSOAS ENTREVISTADAS (em ordem alfabética)
Andrea Sandro Calabi, Arnold Alicio da Silva Gaspar, Cincinato Rodrigues Campos,
Davi Moreira, Edson Alves Sá Teles, Fernando Milliet de Oliveira, Fernando Henrique
Cardoso, Fuad Jorge Noman Filho, Geraldo Gardenalli, João Batista de Abreu, José
Augusto Varanda, Luis Gonzaga Belluzzo, Luiz Carlos Bresser Pereira, Luiz Jorge de
Oliveira, Mailson Ferreira da Nóbrega, Nelmar de Castro Batista, Osiris de Azevedo
Lopes Filho, Paulo Cesar Ximenes Alves Ferreira, Paulo Galleta, Sadi Assis Ribeiro
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Cpdoc/FGV-Banco Central do Brasil, 1990. Projeto "A criação do Banco Central no
Brasil: primeiros momentos".
GUDIN, EUGÊNIO – Eugênio Gudin (depoimento, 1979). Rio de Janeiro, Programa
de História Oral do Cpdoc/FGV, 1980.
LEITE, CLEANTO DE PAIVA – Cleanto do Paiva Leite (depoimento, 1983). Rio de
Janeiro, Cpdoc/FGV – História Oral, 1986.
NOGUEIRA, DÊNIO – Dênio Nogueira (depoimento, 1989). Rio de Janeiro,
Cpdoc/FGV – Banco Central do Brasil, 1990. Projeto "A criação do Banco Central do
Brasil: primeiros momentos".
RIBEIRO, CASEMIRO ANTONIO – Casemiro Antonio Ribeiro (depoimento, 1989).
Rio de Janeiro, Cpdoc/FGV – Banco Central do Brasil. 1990. Projeto "A criação do
Banco Central: primeiros momentos".
RIBEIRO, CASEMIRO ANTONIO – Depoimento entre 1975 e 1979. Cpdoc/FGV.
222
A
NEXO II
N
OMES DOS PRINCIPAIS MEMBROS DA COMISSÃO PARA O
R
EORDENAMENTO DAS FINANÇAS PÚBLICAS INSTITUÍDA PELO
V
OTO 283/84 DO CONSELHO MONETÁRIO NACIONAL E DE
PESSOAS QUE TIVERAM PARTICIPAÇÃO DIRETA NOS SEUS
TRABALHOS
Akihiro Ikeda, Akira Ensiki, Alcindo Ferreira, Aléssio Vaz Primo, André Romar
Fernandes, Anselmo de Oliveira Andrade, Antonio Carlos Ferreira de Paula, Antonio
Carlos Monteiro, Antonio Carlos Tiago, Antonio Ribeiro Pontes Filho, Armando
Thiers Farnese, Arnold Alicio da Silva Gaspar, Carlos Alberto Correa, Carlos Eduardo
Tavares, Cid Heráclito de Queiroz, Cincinato Rodrigues Campos, Clair lenite Gobbo,
Claudiano Manoel de Albuquerque, Daniel Alves Ramires, Dilson Sampaio da
Fonseca, Edgard Dias Junior, Edésio Ferreira Fernandes, Edilson Almeida Pedrosa,
Edmar da Costa Barros, Edolier Cassio de Morais, Edson Alves Sá Teles, Elyeser de
Souza Cavalcanti, Faim Abrahão Filho, Flaviano Pereira Trindade, Francisco Amadeu
Pires Felix, Francisco Carlos da Rocha, Francisco de Assis Campolina de Oliveira,
Francisco Dornelles, Francisco Junqueira Bruzzi, Frederico Augusto Bastos, Fuad
Jorge Noman Filho, Geraldo Cesar Machado Leal, Geraldo Naegele, Gilberto Florito,
Haroldo Drefahl, Haroldo Nazareno Melo Monteiro, Helio Bebiano, Herley José de
Almeida, Inácio José Barreira Danziato, Israel Pinheiro, Italo Sidney Gasparini Filho,
Ivson Romero de Almeida Paraíso, João Batista A.Lemgruber, João Batista de Abreu,
João Batista Gruginski, Jorge Caetano, Jorge Roiff, José Augusto Savasini, José
Augusto Varanda, José Costa de Oliveira, José Dias de Alencar, José Ferreira Junior,
José Guilherme da Silva Caldas, José Kleber Leite de Castro, José Luiz Silveira
Miranda, Leonardo Mauricio Colombini Lima, Luciano Alvarenga de Aguiar, Luis
Fernando Gusmão Wellisch, Luiz Antonio Andrade Gonçalves, Luiz Carlos Nerosky,
Luiz Jorge de Oliveira, Mailson da Nóbrega, Manoel Francisco da Silva, Marcio
Reinaldo Dias Moreira, Maria Izabel Pacheco de Lima, Maria Raimunda Leite de
Assis, Nelmar de Castro Batista, Odair Lucietto, Osiris de Azevedo Lopes Filho,
Osmar Victor do Espírito Santo, Paulo Cesar Ximenes Alves Ferreira, Paulo Maurício
de Andrade, Pedro Pullen Parente, Plínio Euripedes de Castro, Raimundo Geraldo de
Aguiar Pereira, Raymundo Monteiro Moreira, Renato Pimenta Furtado, Roberto
Calaça da Costa, Rubens Luiz Pereira Rezende, Ruy Meneses Graça, Sadi Assis
Ribeiro Filho, Sebastião Barros, Sergio de Castro, Silvio Rodrigues Alves, Udson
Jaques Perdigão, Woner Resende de Miranda.
223
ANEXO III
A
LGUNS EXEMPLOS DOS DIVERSOS CONSELHOS, COMISSÕES
E GRUPOS EXECUTIVOS CRIADOS ENTRE 1930 E 1964
– o Conselho Federal de Comércio Exterior, criado em junho de 1934, ficou encarregado de
centralizar a política de comércio exterior do país visando à expansão do intercâmbio
externo. Dele fez parte Jesus Soares Pereira que teve papel destacado entre os técnicos do
governo nas décadas seguintes.
a.Comissão Mista de Reforma Econômica e Financeira, criada em maio de 1935 e que
deveria elaborar um projeto de revisão tributária, sugerir meios para a redução das despesas
públicas e propor um plano de reorganização econômico-financeira do país, incluindo a
revisão geral dos vencimentos do funcionalismo. Dela faziam parte o ministro da Fazenda
Sousa Costa, Eugênio Gudin e representantes do Executivo e do Legislativo.
o Conselho Técnico de Economia e Finanças, criado em novembro de 1937 e que deveria
viabilizar formas de fiscalização e controle das finanças estaduais e municipais tentando
eliminar as distorções provocadas pela excessiva autonomia das unidades da federação que
comandou a formação da nossa organização político-administrativa. O objetivo principal
deste Conselho seria transferir para o Poder Executivo federal as operações financeiras
externas. Deveria também elaborar estudos e pareceres sobre tributação, legislação
bancária e monetária, incentivos fiscais, aproveitamento de combustíveis e política
energética. Presidido pelo Ministro da Fazenda, dele fizeram parte (além dos representantes
da iniciativa privada) José Carlos de Macedo Soares, Oscar Weinschenk, Eugênio Gudin
(que ficou lá até 1960), Aluisio de Lima Campos, J. Barbosa Carneiro, Pedro Rache e
Romero Estelita.
Comissão da Defesa da Economia Nacional, criada em setembro de 1939, com o objetivo
de assegurar a defesa da economia do país dos efeitos da Segunda Guerra Mundial e
deveria trabalhar articulada com o Conselho Federal de Comércio Exterior. Tinha como
tarefa levantar os estoques, incentivar as exportações e controlar os transportes marítimos e
seus fretes. Teve como presidente João Alberto Lins de Barros, e dela fizeram parte Carlos
Taylor e Manuel Henrique da Costa. Foi extinta em setembro de 1942, pois com mudança
de posição do Brasil no conflito mundial, era necessário um órgão com atribuições mais
amplas. Este órgão foi a Coordenação da Mobilização Econômica.
Comissão da Defesa Econômica, criada em outubro de 1942, diretamente ligada ao
Presidente da República para fiscalizaras atividades econômicas dos colaboradores internos
da política do Eixo, pertencentes à chamada "quinta coluna". O Decreto de criação da
Comissão determinava que fossem responsabilizados todas as firmas e todos os cidadãos
alemães, japoneses e italianos por possíveis danos ao Brasil provocados por atos de
agressão. Criava também uma reserva junto ao Banco do Brasil, a partir dos bens de
empresas e cidadãos destes países que excedessem dois contos de réis.
Coordenação da Mobilização Econômica, criada em setembro de 1942 e extinta em 1945,
com o objetivo de mobilizar a economia do país em função de situação de emergência
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
224
provocada pela guerra. Deveria intervir nas áreas da produção, circulação, distribuição e
consumo. Criou uma estrutura razoável (Setor de Preços, Abastecimento, Produção
Industrial, Licenciamento e Despacho de Produtos Importados) que foi depois absorvida
por outros órgãos. Dela participaram: Lucas Lopes, Glycon de Paiva e Valentim Bouças.
Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial, criado em 1943, foi uma tentativa de
resolver conflitos entre a orientação do governo e os interesses privados, colocando frente a
frente ambos os lados. Acabou sendo palco do debate entre Eugênio Gudin e Roberto
Simonsen sobre a intervenção do Estado na Economia, sendo que o primeiro era favorável
à supressão gradual dos mecanismos de intervenção do Estado na economia. O próprio
Gudin afirma que a criação posterior da Comissão de Planejamento Econômico foi um
expediente político para fazer frente ao Conselho Nacional de Política Industrial e
Comercial.
Comissão de Planejamento Econômico, criada em setembro de 1944, ao final da Segunda
Guerra, dando continuidade aos trabalhos da Coordenação da Mobilização Econômica,
deveria coordenar a adaptação da economia aos tempos de paz. Extinta em 1945, com a
deposição de Vargas. Idealizada por Eugênio Gudin para impor limites às propostas do
Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial liderado por Roberto Simonsen, era
composta por 17 membros e presidida pelo Secretário Geral do Conselho de Segurança
Nacional. Tinha por objetivo planejar a economia nas áreas da agricultura, da indústria, do
comércio interno e externo, dos transportes, da moeda, do crédito e da tributação, e
estimular as empresas privadas. A Comissão preparou um plano ferroviário que acabou
sendo adotado em 1946 e reformulado pelo Plano Salte.
Comissão Mista Brasil-Estados Unidos – criada em dezembro de 1950 e instalada em julho
de 1951. Composta por técnicos dos dois países, tinha por objetivo estudar os problemas
básicos da economia brasileira e propor projetos para o desenvolvimento do país nos
diversos setores, com a promessa de que os Estados Unidos investiriam até trezentos
milhões de dólares para financiar estes projetos, A prioridade seria dada aos setores de
transportes, energia e agricultura, considerados pontos críticos para um programa de
desenvolvimento econômico do país: "Durante as negociações para a instalação da
comissão mista, o Governo dos Estados Unidos vinculou explicitamente sua participação
ao cumprimento da lei sobre o desenvolvimento internacional, popularmente conhecida
como Programa do Ponto IV. Este programa consistia num plano de assistência técnica aos
países subdesenvolvidos, divulgado pelo Governo Truman em janeiro de 1949. Afirmava o
Governo norte-americano que a principal tarefa de uma comissão mista seria encorajar a
introdução da técnica e do capital estrangeiro no Brasil" (BELOCH e ABREU 1984, p.
852). Participaram da Comissão: Roberto Campos, Ari Torres (que chefiava a
representação brasileira), Glycon de Paiva, Lucas Lopes, Valentim Bolsas e José Soares
Maciel Filho, este nomeado em 1952 por Vargas para ser o primeiro diretor-
superintendente do BNDE. Estes técnicos transferiram-se todos para o BNDE com a sua
criação em 1952 e com a dissolução da Comissão Mista em 1953. Sua principal
contribuição ficou principalmente na formação de uma equipe de técnicos nacionais
capazes de elaborar projetos para o desenvolvimento econômico do país, já que criou
apenas a possibilidade de financiamento de projetos específicos, não conseguindo acertar
nenhum crédito fixo junto aos organismos internacionais como se pretendia na sua criação.
Conselho Nacional de Economia-dezembro de 1949. Deveria opinar sobre as diretrizes da
política econômica do país e sugerir ao Presidente e ao Congresso medidas que
considerasse necessárias ao desenvolvimento do país. Instituído pela Constituição de 1946
como órgão de consultados Poderes Executivo e Legislativo, em substituição ao Conselho
Federal de Comércio Exterior. Participaram Bulhões e como técnico Dênio Nogueira e
Garrido Torres.
Comissão Nacional de Política Agrária - criado em julho de 1951 e instalada em janeiro de
1952. Nasceu num contexto político em que começava a aparecer com mais força algumas
demandas para a reforma agrária, e deveria propor medidas para: aumentar a produtividade
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
225
agrícola; amparar o trabalhador rural inclusive com a extensão dos serviços de assistência e
previdência social; organizar e incentivar a criação de cooperativas; regulamentar as
relações entre proprietários, posseiros e foreiros; melhorar a utilização das terras da União;
proteger os recursos naturais, dentre outras medidas. Entretanto, "com a oposição de
amplos setores ligados aos interesses agrários dominantes, as atividades da comissão pouco
contribuíram para medidas concretas", mas criou um grupo de técnicos que pela primeira
vez reuniu informações e colocou em debate a questão da reforma agrária (BELOCH e
ABREU 1984, p. 853). Dela fizeram parte: Luis Simões Lopes, Josué de Castro, Antonio
de Arruda Camara, José Artur Rios, Carlos Medeiros da Silva, Hermes Lima, Raul Cardoso
de Melo Filho, Rui Miller Paiva, dentre outros.
Conselho de Desenvolvimento Industrial – criado em 1953, fazia parte da estratégia usada
pelo segundo Governo Vargas para abrir espaço para a ação da burocracia. "modernizante",
para criar uma arena de negociação interburocrática e para abrir um canal aos interesses do
setor privado. Na avaliação de Luciano Martins (MARTINS 1985), entretanto, em vez de
atuar nesta direção, o CDI acabou se tornando um organismo de "não decisão". Assim, a
definição da política industrial que era a razão de sua existência, acabou se dando em
outras agências da administração direta ou nas empresas estatais encarregadas de um
determinado setor produtivo.
_ Grupo Misto de Estudos BNDE-Cepa l– maio de 1953. Criado para estudar a aplicação à
economia brasileira dos métodos de planejamento estrutural definidos pela Cepal. Formado
por técnicos da Cepal e do BNDE, sob a Presidência de Celso Furtado, o grupo fez o
levantamento e a análise dos dados da situação brasileira, para fornecer elementos à
formulação de programas de desenvolvimento econômico, ao direcionamento dos
investimentos e à identificação dos setores que mais necessitavam aperfeiçoamento. Os
resultados deste relatório serviram de base para a elaboração do Plano de Metas do
Presidente Juscelino Kubstchek. O grupo misto encerrou suas atividades em 1957.
Grupo Executivo para a Indústria Automobilística – Geia – junho de 1956. O Geia foi o
mais importante dos Grupos Executivos criados durante o Governo Kubitschek. Os outros
foram: Grupo Executivo para a Indústria de Bens de Capital, Grupo Executivo de
Assistência à Pequena e Média Empresa e o Grupo Executivo para a Indústria da
Construção Naval. O Geia formulou planos segundo os quais as empresas que cumprissem
determinadas exigências — como altos índices de participação de produtos nacionais nos
veículos fabricados — teriam várias vantagens, como taxa estável de câmbio para
importação do que não pudesse ser encontrado no país, subsídios, isenções para
importações de partes complementares e financiamento a longo prazo do BNDE.
Conselho Nacional de Desenvolvimento – fevereiro de 1956. Criado para coordenar a
política econômica do Governo Juscelino Kubitschek, para elaborar os projetos definidos
no Plano de Metas. Com o empréstimo de técnicos do BNDE, formaram-se grupos de
trabalho para formular os programas específicos do Plano de Metas. Daí surgiram os
grupos executivos, que coordenaram a execução das propostas.
– Conselho de Política Aduaneira – agosto de 1957. Tinha por atribuição administrar o sistema
de tarifas inclusive garantindo uma flexibilidade que acompanhasse as modificações das
condições econômicas internas e externas.
Conselho Administrativo de Defesa Econômica – Cade – setembro 1962/maio 1963.
Criado com a finalidade de apurar e reprimir os abusos do poder econômico, efetuando
pesquisas e fiscalizando a administração e a gestão econômica das empresas em que a
União tivesse interesse, bem como a contabilidade das empresas de qualquer natureza. Fez
parte do Conselho: Lourival Fontes.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
226
Gilda Figueiredo Portugal Gouvêa é socióloga, tem 50 anos e uma filha. É Professora Doutora
do Departamento de Sociologia da Unicamp e Pesquisadora do Núcleo de Políticas Públicas da
mesma Universidade. Foi chefe da Assessoria Técnica da Secretaria do Planejamento da
Prefeitura de São Paulo, Chefe de Gabinete da Secretaria da Educação de São Paulo, da Reitoria
da Unicamp e do Ministério da Fazenda em São Paulo. Foi coordenadora da campanha para o
Senado de Fernando Henrique Cardoso, em 1978, e uma das coordenadoras em São Paulo de
sua campanha à Presidência da República, em 1994.
Burocracia e elites burocráticas no Brasil Gilda Portugal Gouvêa
227
“...a melhor discussão teórica sobre o problema que li nos últimos anos.
A burocracia é um fenômeno decisivo de nosso tempo, que a autora reconhece e
analisa com respeito necessário. Não esconde a burocracia, não tece sobre ela loas
desnecessárias, nem a transforma na culpada de todos os nossos males, como o fizeram
recentemente seus críticos neoliberais. A autora prefere ser realista. A burocracia é um
fenômeno central do capitalismo controlado pelo mercado, pelas grandes organizações
burocráticas e pelo Estado. Se o mercado auto-regulado de pequenas empresas fosse
suficiente para garantir a coordenação da economia, nem Estado nem grandes
organizações burocráticas seriam necessárias. Mas não é esta a história do nosso
tempo, da qual Gilda foi capaz, com enorme maestria, de descrever e contar um
episódio específico mas paradigmático: o de uma burocracia acuada por uma crise do
Estado no Brasil dos anos 80, mas que, não obstante, conseguiu levar adiante uma
importante reforma institucional ...”
Luiz Carlos Bresser Pereira
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