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CULTURA E
C
ONSCIÊNCIA
COLETIVA
Ensaio de Sociologia
Jacob (J.) Lumier
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CULTURA E CONSCIÊNCIA COLETIVA:
Leituras Saint-simonianas de Teoria Sociológica ©2007 by Jacob (J.) Lumier.
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Indicações para
FICHA CATALOGRÁFICA
Lumier, Jacob (J.) (1948 -...):
CULTURA E CONSCIÊNCIA COLETIVA:
Leituras Saint-simonianas de Teoria Sociológica
Internet, E-book Monográfico, 209 págs. dezembro 2007,
Com bibliografia e índices remissivo e analítico eletrônico.
(com Anexos)
ISBN...
1. Comunicação Social
2. Teoria Sociológica - Metodologia
I. Título. II. Série
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Leituras Saint-simonianas de Teoria Sociológica ©2007 by Jacob (J.) Lumier.
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CULTURA E CONSCIÊNCIA COLETIVA:
Leituras Saint-Simonianas de Teoria Sociológica
Ensaio de Sociologia
Por
JACOB (J.) LUMIER
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Rio de Janeiro, Dezembro 2007.
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AGRADECIMENTO
Deixo aqui meu reconhecimento para com o
programa de publicação Sala de Lectura CTS+I de la OEI, a iniciativa da “Se-
cretaría General de la Organización de Estados Iberoamericanos para la educaci-
ón, la ciencia y la cultura-OEI” que “tiene por objeto elaborar una biblioteca vir-
tual sobre Ciencia, Tecnología, Sociedad e Innovación (CTS+I)” onde tenho pu-
blicado meus ensaios de sociologia.
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APRESENTAÇÃO
Ao comunicar sobre a sociologia o sociólogo faz algo mais do que
um paper de universidade. Sua aproximação da matéria inclui a mais do caráter de-
sinteressado do conhecimento científico uma mirada vinculada à prática profissio-
nal. Desta sorte produz textos sociológicos, elaborações sobre a realidade social
que aportam não só os resultados da sociologia que faz, mas igualmente revelam
os procedimentos em vias de fazer.
Há uma indispensabilidade em produzir texto sociológico para
a prática do sociólogo, na qual os resultados levam aos procedimentos e vice-versa
ultrapassando a sugestão epistemológica de estabelecer um hiato entre contexto da
descoberta e contexto da justificação.
Esta obra mostra que o estudo histórico da sociologia revela-
se uma pesquisa de sociologia dos quadros operativos da teoria sociológica e cons-
titui a continuação do nosso e-book Leitura da Teoria de Comunicação desde
o ponto de vista da Sociologia do Conhecimento, publicado na Biblioteca Virtu-
al de Ciencia, Tecnología, Sociedad e Innovación, junto ao Programa Sala de Lectura
CTS+I, da O.E.I.
Elaboramos pela revalorização pedagógica da colocação do
conhecimento em perspectiva sociológica, orientação esta atualmente solicitada
para contrarrestar a filosofia abstrata das ciências cognitivas: para o sociólogo não
há comunicação sem o psiquismo coletivo
1
.
1
Se o mundo como significado foi transposto pela modernização “a uma distância muito vaga” das vidas das
pessoas não se pode deixar aí passar inteiramente despercebido que a autonomia do significado em relação ao
significante em contexto de dependência de um grupo, classe ou sociedade global configura a criação de liga-
ções com o próprio significado autônomo, expressando não o Outro imaginário do entendimento abstrato da
alteridade, mas desde o ponto de vista do contexto de realidade social expressando as relações com outrem.
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Entendendo que a linguagem humana exige uma união prévia,
seguimos o realismo de Georges Gurvitch em relação ao interesse, alcance e espe-
cificidade da teoria sociológica distinguindo sem separar os elementos históricos e
os elementos pouco ou não-históricos da realidade social. Desta sorte, aprofun-
damos a sociologia diferencial e a dialética acentuando o ponto de vista da auto-
nomia relativa dos grupos em relação às classes e às sociedades globais por desen-
volvimento da microssociologia e do pluralismo social efetivo. Entende-se, por-
tanto, que o subtítulo deste ensaio como Leituras Saint-Simonianas visa acentuar que
a sociologia é ciência dos determinismos sociais e que suas raízes estão plantadas
na sociedade industrial.
Quanto ao nosso estilo, contrariando as sugestões editoriais de
que os escritos com disciplina científica devem ser impessoais, utilizamos a primei-
ra pessoa do plural para afirmar a vontade de valor ou de verdade
2
.
***
2
Repelimos o paradoxo em se ignorar nos seres do passado a vontade de valor ou de verdade, lembrando que
Raymond Aron sublinha a separação radical do fato e dos valores em Max Weber como limitando erroneamente a
compreensão da conduta individual unicamente na referência das idéias de valor. Por contra, criando hermenêu-
tica weberiana em um dos seus primeiros ensaios marcantes, sustenta esse estudioso que se tal concepção ex-
cluindo a vontade de valor ou de verdade fosse admitida não se teria o critério para diferenciar entre uma
obra de filosofia como a “Crítica da Razão Pura” de Kant e as imaginações delirantes de um paranóico, já que
ambas seriam colocadas no mesmo plano. Ver Aron, Raymond: Introduction à la Philosophie de
l’Histoire (Paris, Gallimard).
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S U M Á R I O
Introdução:
Aspectos da explicação em sociologia:
Teoria diferencial e teoria sistemática. – pág. 09
Primeira Parte
– Cultura e Objetividade:
Notas sobre Max Weber e Wilhelm Dilthey – pág. 57
Segunda Parte
– Culturalismo e Sociologia:
Notas para um estudo dos quadros sociológicos da sociologia da
compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber – pág. 81
Terceira Parte
– O Problema da Consciência Coletiva na Sociologia da Vida Moral:
Notas sobre a análise crítica da sociologia de Émile Durkheim – pág. 93
Quarta Parte
– Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral – pág.109
Artigo anexo
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença. – pág. 143
Bibliografia – pág. 188
Guia dos termos sociológicos e Autores comentados – pág. 194
Índice Analítico – pág. 197
Sobre o Autor – pág. 203
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INTRODUÇÃO
Aspectos da explicação em sociologia:
Teoria sistemática, teoria diferencial e
O problema da possibilidade da estrutura.
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Introdução
Aspectos da explicação em sociologia:
Teoria sistemática, teoria diferencial e o problema da possibilidade da estrutura.
PRIMEIRA PARTE
O estudioso que tenha lido os ensaios de Ralf
Dahrendorf nos anos 70/80 terá notado com certeza as profundas implicações da
condição de publicidade do trabalho científico sobre o conhecimento.
Terá visto que grande parte dos mal-entendidos a
respeito de certas obras ou teorias científicas tem muito a ver com o fato de sua
exposição a todos os tipos de públicos, muitas vezes composto não só de leigos,
mas de gente alheia à formação nas ciências humanas.
Assim, por exemplo, tornou-se extremamente
difícil esperar que o público não profissional acolha a distinção metodológica entre, (a)
– por um lado as proposições testáveis ou formulações irrealistas dos sociólogos
científicos, feitas no interesse da boa teoria científica – como o postulado do
comportamento que se conforma aos papéis sociais; e (b) – por outro lado as a-
firmações de valor sobre a natureza do homem, que sejam atribuídas como decor-
rentes ou implícitas naquelas proposições teoréticas.
Dahrendorf reconhece
3
por trás desta atribui-
ção indevida de valor, tida por uma “espécie de reificação dos postulados”, que “o público
geral não compreende a distinção sutil entre as afirmações entendidas realisticamente e os postula-
dos deliberadamente irrealísticos”. Haja vista estes postulados teoréticos implicarem
uma divergência fundamental aos olhos do mundo do senso comum, divergência
que está no cerne da contradição entre esse “mundo do senso comum” e a ciência.
3
Dahrendorf, Ralf: “Ensaios de Teoria da Sociedade”, trad. Regina Morel, revisão e notas Evaristo de Moraes Filho,
Rio de Janeiro, Zahar-Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), 1974, 335pp. (1ªedição em Inglês,
Stanford, EUA, 1968). pp.114 a 117.
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Por sua vez, a lógica da pesquisa científica sendo especi-
ficamente baseada na incerteza fundamental do conhecimento humano, a ciência acolhe a ina-
dequabilidade de um argumento puramente lógico. Todavia, ao mesmo tempo
desse acolhimento, a ciência atual afirma-se vinculada a sua publicidade.
Quer dizer, se a condição de publicidade é ine-
rente ou não ao modo de produção científico ou se esta questão deve ou não ser
restringida aos estudiosos é um tema que extrapola o domínio do pensamento ci-
entífico para lançar-se no âmbito da comunicação social, já que a obra impressa e
com o advento da Internet o livro eletrônico (“e-book”) são produtos culturais
dos quais a atividade científica não saberia distanciar-se.
Alvo da epistemologia, o trabalho científico se
realiza igualmente como documento escrito e comunicado enlaçando experimen-
tação e comunicação: tal é a verdade que não pode ser disfarçada.
Se os membros leigos da sociedade fazem aos
postulados da sociologia a objeção de que seus ‘achados’ não lhes dizem nada além
do que já sabem é preciso reconhecer por trás desse apelo do leigo ao sociólogo a
oposição entre o nível teórico e o nível pragmático da cultura.
Segundo Anthony Giddens, na reinterpretação
sociológica “há um desvio contínuo dos conceitos construídos pela sociologia, através do que eles
são apropriados por aqueles cuja conduta eles foram originalmente cunhados para analisar”
4
.
Quer dizer a duplicidade entre o sociólogo e o leigo re-
vela em realidade a aplicação da reciprocidade de perspectivas e, por esse via, nada
mais faz que confirmar a existência de correlações funcionais entre os quadros so-
ciais e o conhecimento, que constitui exatamente um objeto especial de estudos da
sociologia, negando o suposto caráter exclusivamente causal dessa disciplina, mas
afirmando sua constituição como disciplina determinista.
Em teoria sociológica a explicação, a formulação de enunciados determinísticos, não deve nunca na ‘primeira
instância’ ir mais além do estabelecimento: (a) de correlações funcionais, (b) de regularidades tendenciais e (c)
de integração direta nos quadros sociais.
4
Giddens, Anthony: “
As Novas Regras do Método Sociológico
: uma crítica positiva das sociologias compreensivas”,
trad. Ma. José Lindoso, revisão Eurico Figueiredo, Rio de Janeiro, Zahar, 1978, 181pp. (1ªedição em Inglês,
Londres, 1976). Pág. 15.
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Aliás, esse tema da objeção dos leigos uma vez lem-
brado aos epistemólogos, nos serve como refutação para outra objeção, no caso,
uma questão metodológica, onde certos especialistas sustentam contra os sociólo-
gos que os atos de juízo seriam individuais porque ligados tanto à reflexão quanto
às palavras.
Ora, a objeção dos leigos é um tema coletivo e mos-
tra que a ação de refletir é debater o pró e o contra, é confrontar argumentos, é
participar em um diálogo, em uma discussão, em um debate. Então, os conjuntos
dos argumentos que são confrontados em um diálogo ao invés de serem arrolados
em “um mundo de produtos tornados independentes dos homens” como nos propôs Karl
Popper
5
formam em realidade a experiência coletiva. Daí Georges Gurvitch
6
di-
zer que “na reflexão pessoal figuram distintos ‘Eu’ que discutem entre eles” e que se trata de
uma “projeção do coletivo no individual”, haja vista a história das civilizações como tes-
temunha da existência de conhecimentos coletivos.
Sem embargo, o sociólogo não deve colocar o
problema da validade e do valor dos signos, símbolos, conceitos, idéias, juízos que
encontra na realidade social estudada, mas deve apenas “constatar o efeito de sua pre-
sença, de sua combinação e de seu funcionamento efetivo”, visando pôr em relevo as corre-
lações funcionais entre os quadros sociais e as obras de civilização. Isto porque a
sociologia concentra seus esforços nas classes do conhecimento mais profunda-
mente implicadas na realidade social e na engrenagem de suas estruturas, nos seus
determinismos sociológicos (por distinção dos determinismos sociais). Tanto mais
que em teoria sociológica a explicação ultrapassa a suposição do determinismo
único.
Com efeito, para fins de contraste expositivo,
podemos considerar neste ponto a questão da pressuposição fundamental da teo-
ria marxista, a fórmula do seu determinismo único – que por ser tal, por ser “úni-
co”, é um determinismo verificado por leis causais, as quais neste caso ficaram co-
nhecidas (a) - como a lei da queda tendencial da taxa de juros, tornando na eco-
nomia capitalista as crises como suposições “necessárias e inevitáveis”, e igualmen-
5
Popper, Karl: ‘
Conhecimento Objetivo: uma abordagem evolucionária
’, tradução Milton Amado, São
Paulo/Belo Horizonte, EDUSP/editora Itatiaia, 1975, 394 pp, traduzido da edição inglesa corrigida de 1973
(1ªedição em Inglês: Londres, Oxford University Press, 1972).
6
Gurvitch, Georges: “
Problemas de Sociologia do Conhecimento
, in Gurvitch et al.:Tratado de
Sociologia-vol.2”, trad.: Ma. José Marinho, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1968,
pp.145 a 189 (1ªedição em Francês: Paris, PUF,1960).
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te (b) - a lei do desenvolvimento desigual e combinado, que serve de reforço à
primeira.
Na fórmula deste “determinismo único” susten-
ta-se que as forças produtivas e as relações de produção por constituírem em todo
o tipo de sociedade a base “material”, teriam o poder de “determinar” não só a es-
trutura, mas a divisão em classes, a consciência, a ideologia e a cultura; pressuposi-
ção essa que por gerar hipótese com aplicação nas sociedades de tipo capitalista
concorrencial viu-se projetada para toda a história como se valesse para as cidades-
estados antigas, para as sociedades de tipo feudal, as sociedades de tipo patriarcal,
ou mesmo para os outros tipos de sociedades capitalistas em que a livre concor-
rência cedeu lugar aos mecanismos regulatórios.
Trata-se de uma concepção de causalidade gene-
ralizada e impregnada de filosofia da história e cientificismo, tentando reduzir o
pluralismo efetivo da realidade social a um projetado determinismo único que seria
imposto à sociologia por força de identificação ao modelo científico da física new-
toniana, com as leis causais de explicação.
Contra essa concepção dogmática argumenta-se
que: (1) normalmente toda a classe de conhecimento e todo o sistema cognitivo
formam parte da engrenagem de um quadro social como aspecto, escalonamento
ou elemento do fenômeno social total e de sua estrutura (isto é, formam parte das
regulamentações ou “controles” sociais em um grupo, classe, sociedade global); (2)
as dialéticas de polarização, ambigüidade ou complementaridade podem aparecer
entre quadro social e saber em situações tendentes ao desacordo entre esses ter-
mos; (3) geralmente, quadro social e saber se encontram em relações de implicação
mútua ou de reciprocidade de perspectivas; (4) estas duas últimas relações são i-
gualmente dialéticas – podem se apresentar como simetrias “frágeis” que se pode
quebrar, que se pode converter em termos opostos; (5) por essa razão, Gurvitch
observa que os desencontros ou desacordos entre realidade social e saber são me-
lhor estudados pelos procedimentos empírico-dialéticos do item 2.
A explicação sociológica por causalidade singular só se aplica em segunda instância e será limitada aos casos
particulares.
Todavia, este autor admite (6) – que é somente
nos casos em que a situação se torna em patente desacordo entre realidade e saber
que se faz possível a intervenção da causalidade entre os termos; (7) – nada obstan-
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te, Gurvitch contesta a aplicação de “leis causais” dizendo-nos que nestes casos do
item 6 se trata de
causalidade singular
e não “leis causais” e que tal explicação so-
ciológica por causalidade singular só se aplica em segunda instância e será limitada
aos casos particulares como nos seguintes exemplos: (7.1) casos da existência de
um sistema de conhecimentos avançados que pode ser a causa do avanço durável, que pode for-
necer uma explicação causal do por quê uma estrutura social retardada em relação
ao seu fenômeno social total consegue resistir e não quebrar – caso das Cidades-
Estados da Grécia antiga; caso do antigo regime na França dos séculos XVII e
XVIII; caso da Rússia do século XIX e princípios do XX; (7.2) sob outro aspecto
de casos de causalidade singular, temos a situação em que os próprios conhecimentos
avançados podem ser causa de retardo e assim favorecer a quebra da estrutura, da mesma
maneira em que, reciprocamente, a estrutura pode se converter em “causa de uma orienta-
ção abstrata do saber e de sua limitação às elites”, favorecendo igualmente a quebra (caso
do Egito antigo); (7.3) Gurvitch nota ainda o caso oposto: uma estrutura social avan-
çada em relação ao sistema do saber, a qual pode ser a causa da “mudança de orientação” desse
saber – caso da “antiga” URSS depois da revolução de 1917 ou o caso encontrado
nos EUA sob regime de capitalismo organizado, que coloca o conhecimento téc-
nico por cima das demais classes do saber.
Segundo Gurvitch, sem falsear e sem desacreditar
um conhecimento em sua coerência relativa não se pode afirmar que seja uma
simples projeção ou epifenômeno da realidade social, como se afirma na aplicação
da causalidade levando ao mito do determinismo único em sociologia.
Em teoria sociológica diferencial de que Gur-
vitch foi o incentivador se articula uma
visão de conjuntos
para o problema das
variações do saber de tal sorte que a explicação, a formulação de enunciados de-
terminísticos, não deve nunca na ‘primeira instancia’ ir mais além do estabeleci-
mento: (a) de
correlações funcionais
, (b) de
regularidades tendenciais
e (c) de
integração direta nos quadros sociais.
A colaboração da epistemologia com a sociolo-
gia passa pelo esforço de “circunscrever o conhecimento como fato social distinto
de outros fatos sociais”. A epistemologia ajuda a sociologia a formular o problema
de
circunscrever o conhecimento em termos de correlações funcionais
, fa-
cultando-lhe a colocação em perspectiva sociológica do conhecimento a qual, jus-
tamente, abre o acesso à intermediação pelas correlações funcionais.
Mas não é tudo. Por meio dos conceitos de totali-
dade, infinito, multiplicidade, pluralidade, perspectivas, quadros sociais, assim como através
da noção de generalidade limitada aos próprios quadros sociais a epistemologia
7
abre o ca-
7
Ver em especial as obras de Gastón Bachelar referidas na bibliografia.
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minho para uma explicação sociológica das orientações do conhecimento, tendo
em conta que a afirmação pela sociologia do coeficiente humano e social do co-
nhecimento neutraliza pela tomada de consciência as possíveis distorções na expli-
cação. Não há distorção no
procedimento especial da teoria sociológica efe-
tuando a colocação em perspectiva sociológica do conhecimento
8
.
Não cabe opor a “mudança inercial” característica do sistema contra a teoria sociológica diferencial como se a
dinâmica complexa dos conjuntos práticos atendesse ao choque de posições e não dependesse das atitudes coleti-
vas, do espontâneo coletivo propriamente dito, que já é tocado pela liberdade humana em algum grau.
Utilizando os resultados das análises diferenciais,
as teorias sistemáticas desenvolvem a coerência dos tipos de sociedades históricas
acentuando as regularidades tendenciais como critério de explicação sociológica.
A teoria sociológica diferencial por sua vez de-
senvolve-se com profundidade indispensável já que elabora sobre a realidade soci-
al tomada em escalas, como a realidade da condição humana regida pelo determi-
nismo científico. É especialmente orientada para pôr em relevo as correlações fun-
cionais entre os quadros sociais e as obras de civilização. O campo em que se de-
senvolve a teoria sociológica diferencial é descoberto em meio às atitudes coleti-
vas.
Quer dizer, são as atitudes coletivas que criam os
ambientes sociais onde se cotejam as diferenças sociais e se afirmam as estruturas
sociais. Compreendidos sob a noção de “
Gestalt
” como conjuntos ou configura-
8
Qualquer debate sobre a “validade” da perspectivação sociológica do conhecimento é inaceitável. Trata-se de
uma questão de fatos. Ou seja, a colocação do conhecimento em perspectiva sociológica sendo questão de fa-
tos não pode ser tomada como invenção do ceticismo e do nihilismo para invalidar todo o saber ou diminuir
seu valor. Ver Gurvitch, Georges: “
Los Marcos Sociales del Conocimiento
”, tradução Mário Giacchino,
Caracas, Monte Avila, 1969, 289pp (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1966). Ademais, a faticidade que possi-
bilita as equações de incerteza de Heisenberg em microfísica e corrobora a impossibilidade de medir simulta-
neamente a posição e a velocidade dos corpúsculos é a colocação em perspectiva sociológica do conhecimen-
to. Aliás, como mostrou Gurvitch a apreensão desta faticidade é bem notada no apelo à dialética sustentado
pelos físicos na revista
Dialectique
de 1947 - apud Gurvitch, Georges: “
Dialectique et Sociologie
”, Paris,
Flammarion, 1962, 312 pp., col. Science, ver em especial a p.24 e as págs.246 sq.
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ções virtuais ou atuais, esses ambientes implicam um quadro social referenciando
os símbolos que se manifestam no seu seio e as escalas particulares de valores, que
no seu seio são aceites ou rejeitadas, isto é, as chamadas dinâmicas coletivas de a-
valiação favorecendo a tomada de consciência dos temas coletivos reais.
Em sua expressão dialética, estes ambientes cria-
dores manifestam-se nas três escalas de realidade social: a dos Nós (escala micros-
social), a dos grupos e classes (escalas parciais), a das sociedades globais e suas es-
truturas. Em aparente paradoxo (só aparente) podem ser detectados experimen-
talmente nos coeficientes de discordância entre as opiniões exprimidas nas sonda-
gens ditas de “opinião pública” e as atitudes reais dos grupos
9
.
Mas não é tudo. A dialética sociológica é estuda-
da em modo diferencial e é descoberta com anterioridade em relação à expressão:
é descoberta no próprio ser social. Desse modo se mostrará, então, uma dialética
complexa e pluralista que está em medida de expressar a própria multiplicidade
dos tempos sociais gerados pelas estruturas em estado de mudança interior.
Quer dizer, se esta mudança interior torna frag-
mentada em multiplicidade a tensão entre posição e movimento teremos uma vari-
edade de procedimentos dialéticos de intermediação entre as manifestações dico-
tômicas, sejam apenas opostos ou mais do que isso sejam contrários, contraditó-
rios,etc.
Ainda que não se enquadre na desejada racionali-
dade do processus histórico, a dialética complexa revela seu alcance realista em
sentido ontológico na medida em que é ligada à sociologia diferencial dos agrupa-
mentos sociais particulares e à microssociologia corroborando a constatação de
Gurvitch sobre as hierarquias dos agrupamentos particulares como não absorvidas
e conflitantes com as hierarquias das classes sociais. Aliás, na teoria sociológica di-
ferencial é a partir da constatação dessa diferença específica aos agrupamentos so-
ciais particulares que se chega à percepção da mudança no interior das estruturas.
Além disso, tampouco pode ser classificada “po-
sitivista” a descrição e a análise gurvitcheana dos determinismos sociais como ope-
rações de integração dos fatos ou manifestações particulares nos planos de conjun-
tos práticos. Se os determinismos são operadores no sentido usual do termo em
análise matemática, isto é, são símbolos de uma operação (no caso, o esforço cole-
tivo de unificação) que se efetua sobre uma variável ou sobre uma função, a quali-
9
Incluindo as opiniões coletivas, as representações, as conceituações, note-se em favor desta constatação
experimental (experimental porque provocada pelas próprias sondagens de opinião) que o nível mental é
estudado na teoria sociológica diferencial como sendo apenas um aspecto do conjunto, tanto mais incerto
quanto os indivíduos mudam de atitude em função dos grupos ou os personagens que os papéis sociais
encarnam mudam segundo os círculos a que pertencem.
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ficação “positivista” é incabível porque se trata de função dialética (no caso, os
quadros sociais) e não apenas lógica, como dialético é o esforço coletivo de unifi-
cação.
Na teoria sociológica diferencial, a integração dos
fatos e a unificação nas estruturas se verificam a posteriori passando pelos temas co-
letivos reais (percebidos ou não) porque os grupos, as classes, as sociedades são a-
firmados tais na medida em que pronunciam e reconhecem, eles próprios, os Nós,
os grupos, as classes e as sociedades que pertencem reciprocamente e respectiva-
mente aos grupos, às classes, às sociedades.
Não cabe opor a “mudança inercial” característica
do sistema contra a teoria sociológica diferencial como se a dinâmica complexa
dos conjuntos práticos atendesse ao choque de posições e não dependesse das ati-
tudes coletivas, do espontâneo coletivo propriamente dito, que já é tocado pela li-
berdade humana em algum grau.
Prova disto é o fato, já mencionado e básico na
sociologia diferencial de que os agrupamentos particulares mudam de caráter e não
apenas de posições, assumem identidades e diferenças não assumidas em tipos ou
subtipos de sociedades diferentes.
Na medida em que participam da mudança em e-
ficácia que se opera no interior das estruturas, mais do que se deslocarem confor-
me trajetórias apenas exteriores, os grupos se movem nos tempos sociais acentu-
ando a variabilidade.
Tanto é assim que um refinado historiador e crí-
tico das análises e da teoria sociológica de Gurvitch como o é Fernand Braudel,
portanto habituado à variedade dos conjuntos de fatos, não deixou escapar a re-
flexão de que a tensão entre posição e movimento recolhida nas chamadas equações
de incerteza de Heisenberg em teoria microfísica é uma tensão que se fragmenta na
multiplicidade dos tempos de que fazemos a experiência na vida social e histórica,
tendo Braudel debatido, inclusive, a formulação de Gurvitch a este respeito, sobre-
tudo a compreensão sociológica de que a multiplicidade dos tempos sociais se
descreve como a coordenação dos movimentos que persistem na sucessão e se sucedem na du-
ração
10
.
Com efeito, como mencionado, a realidade que a
teoria sociológica diferencial estuda é a condição humana considerada debaixo de
10
Braudel, Fernand: “
História e Ciências Sociais
”, tradução dos artigos originais em Francês por Carlos Braga e
Inácia Canelas, Lisboa, editorial presença, 1972, 261 pp.
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uma luz particular e tornando-se objeto de um método específico cuja aplicação
põe em relevo, no dizer de Gurvitch, os "
fenômenos sociais totais
", ou seja, as
totalidades social-humanas “presentes” não só metodologicamente, mas sobretudo
ontologicamente antes de todas as suas expressões, manifestações e cristalizações -
não permitindo, portanto a
alienação
total na objetivação das obras de civilização
(Arte, Religião, Direito, Conhecimento, Moral, Educação, etc.).
Os grupos e as classes e as sociedades globais,
embora integrados, não são em maneira alguma meros órgãos executivos nem do
sistema, nem de uma área de civilização, como o desejariam alguns antropólogos.
É pelas totalidades social-humanas e nelas que os fatos sociais são postos em vias
de criação e de modificação do ser social, bem como os Nós, os grupos, as classes e
sociedades são tomados em conjuntos.
Segundo Gurvitch, o tornar-se objeto da condi-
ção humana ela própria, o recompor o todo pela aplicação do
método dialético
empírico realista
– sobretudo pela aplicação da reciprocidade de perspectivas en-
tre o Eu e o objeto – significa aceitar a evidência no trabalho intelectual de que o
compromisso inelutável de qualquer existência em situações sociais múltiplas e an-
tinômicas não pode ser posto em relevo, não pode ascender à percepção ou à to-
mada de consciência senão graças aos procedimentos dialéticos operativos da reciprocidade
de perspectivas implicando no insucesso a tomada do risco de enveredar por portas já
abertas na realização da obra novadora do conhecimento.
A equação existencial não pode mais ser vista como a origem das
ilusões e dos erros que poderiam ser evitados.
Como mencionado, a realidade da condição hu-
mana é regida pelo determinismo científico implicado nos seres e coisas simples-
mente existentes. Em teoria sociológica diferencial o determinismo científico é si-
tuado sem atribuição prévia de qualidades, tendo na linguagem relacional seu pró-
prio suporte. Em poucas palavras: o determinismo científico tem por único pres-
suposto a afirmação dos universos reais e concretos existentes como viabilizando o aces-
so aos fatos sociais, isto é: o acesso aos microdeterminismos das manifestações da
sociabilidade e aos determinismos das unidades coletivas reais (incluindo os gru-
pos, as classes e as sociedades).
Como ensina Gurvitch o determinismo científico
não pode ser reduzido a nenhum gênero de necessidade – nem metafísica, nem lógica, nem trans-
cendental, nem matemática – pois que representa um compromisso entre uma contingência e uma
coerência relativas”: essas duas relatividades que concorrem no determinismo se
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acham ligadas ao setor da realidade que lhes servem de plano de referência – às
experiências moral, jurídica, religiosa ou cognitiva. “Não se pode afirmar que a necessi-
dade ou a contingência pura sejam fundamentos do determinismo ou da liberdade humana, estes
fundamentos se encontram inerentes à realidade empírica e desse modo colocados numa esfera in-
termediária de tensão e de passagem entre o qualitativo e o quantitativo, o descontínuo e o contí-
nuo, o mutável e o estável, o irreversível e o reversível, o momento e a duração, esfera essa que ca-
racteriza toda temporalidade efetiva ou, mais exatamente, a multiplicidade dos tempos
11
.
Além disso, se não há antagonismo negativo, mas
intermediação entre sociabilidade (quadros sociais), atividade (obra de civilização)
e funcionalidade (interpretação), como graus do esforço a que se ligam os setores
referidos, temos o homem como um construtor de símbolos, temos a relatividade
da oposição do arcaico e do histórico, sendo os mitos e os símbolos sociais então
revelados como intermediários positivos indispensáveis ao conhecimento de sorte
que a equação existencial não pode mais ser vista como a origem das ilusões e dos
erros que poderiam ser evitados (Freud, Marx) – como costuma acontecer quando
se impõe um antagonismo excludente entre infra e superestrutura ou uma relação
de causa e efeito opondo necessariamente os quadros sociais e o conhecimento.
Sem dúvida, o coeficiente humano do conheci-
mento embora trazendo uma limitação social do campo de visão revela ao mesmo
tempo aspectos ou setores desconhecidos da realidade e da verdade, na sua varie-
dade infinita. É a tomada de consciência do papel que desempenha no conheci-
mento a equação existencial que pode fazer avançar os critérios precisos de análise
e explicação sociológica, e a forma dessa consciência complexa em segundo grau é
a teoria sociológica
12
.
De fato, não há dúvida de que na sociologia dife-
rencial os procedimentos dialéticos compreendendo as complementaridades, as
compensações, as ambigüidades, as ambivalências, as polaridades e a reciprocidade
de perspectiva constituem as descrições pelas quais se chega a desocultar os tem-
pos, a eficácia ou a permanência das mudanças que estão a ocorrer no âmago da
realidade social.
11
Gurvitch, Georges: “
Determinismos Sociais e Liberdade Humana: em direção ao estudo sociológico
dos caminhos da liberdade
”, trad. Heribaldo Dias, Rio de Janeiro, Forense, 1968, 361 pp, traduzido da
2ªedição francesa de 1963. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1955), págs. XIV e XV, op.cit.
12
Gurvitch, Georges: “A Vocação Actual da Sociologia - vol. I: na senda da sociologia diferencial”,
tradução da 4ª edição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587 pp. (1ªedição em
Francês: Paris, PUF, 1950), p.113 sq.
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Neste sentido, a mumificação do conceitual ou dis-
cursivo adquire um estatuto metodológico mais específico, passando de obstáculo
à percepção para obstáculo à verificação da mudança, já que o plano discursivo é
negado em modo sociológico (é um dos aspectos da colocação em perspectiva so-
ciológica) pelas variações factuais do saber e a mumificação do conceitual bloqueia
este conhecimento.
Cabe acrescentar, enfim, no dizer de Gurvitch,
que a verificação dos níveis da dialética, sobretudo a clarificação das três escalas ou
dimensões do microssocial, do grupal, do global é uma orientação bem circunstan-
ciada que se compreende do ponto de vista do avanço da perspectivação socioló-
gica do conhecimento acentuada no século XX, nos anos 50 e 60, (a) - pela busca
de coerência entre teoria científica e pesquisa favorecendo o reencontro das dife-
rentes interpretações da dialética e do empirismo pluralista efetivo, corroborados
no âmbito das ciências da natureza com a teoria física, (b) - pela afirmação da mul-
tiplicidade dos quadros de referência operativos.
Como já o dissemos a respeito dos determinis-
mos propriamente sociológicos de que depende a formação das estruturas sociais,
o esforço coletivo de unificação dos determinismos sociais já é historiado, de tal
sorte que a estrutura social se coloca como um processus permanente compreen-
dido num movimento de desestruturação e reestruturação. A estrutura sendo obra
de civilização não pode, pois, subsistir um instante sem a intervenção dos atos co-
letivos, num esforço de unificação e orientação a recomeçar sempre.
Gurvitch insiste que o problema da estrutura so-
cial só se põe na escala macrossociológica e em relação às unidades coletivas reais,
nunca em geral: não há uma análise estrutural separada de uma análise dos agru-
pamentos particulares, classes sociais, ou sociedades globais, sejam estas tribos, ci-
dades, Estados, impérios, nações, sociedades internacionais.
Do ponto de vista sociológico, é improdutivo discutir problemas de estrutura social sem levar em conta a nítida
consciência coletiva da hierarquia “específica e referencial” de uma unidade coletiva real, como o é a hierarquia
das relações com os outros grupos e com a sociedade global, ou, designada de modo mais amplo, hierarquia das
manifestações da sociabilidade, hierarquia esta que
se verifica unicamente nos agrupamentos estruturados.
Na teoria sociológica em cuja percepção diferen-
cial os grupos são sempre específicos a análise da passagem de um “agrupamento
não-estruturado mas estruturável” como o é todo o agrupamento particular para chegar
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à condição de agrupamento estruturado distingue os seguintes momentos: 1) - a
diferenciação entre “categoria” ou “estrato”, como simples coleção de indivíduos
que se encontram numa situação mais ou menos idêntica, por um lado, e por ou-
tro lado os “verdadeiros grupos reais”; 2) - a oposição de grupo e de estrutura; 3) -
a passagem propriamente dita de um agrupamento não-estruturado para agrupa-
mento estruturado
13
.
Seja como for, no estudo da reestruturação desde
o ponto de vista da teoria sociológica diferencial importa reter que em cada unida-
de coletiva real as manifestações da sociabilidade configuram em sua diferença es-
pecífica os quadros microssociais que ali se diferenciam em maneira espontânea
(Nós, relações com outrem), mas que são utilizados pelas unidades coletivas para
se estruturarem e desse modo as manifestações da sociabilidade são hierarquizadas
do exterior, de fora para dentro: o grupal e o global imprimem a sua racionalidade
histórica e a sua ligação estrutural a essas manifestações microscópicas da vida
social que lhe dão consistência e densidade
14
.
***
SEGUNDA PARTE
Utilizando os resultados das análises diferenciais, as teorias sistemáticas desenvolvem a coerência dos tipos de
sociedades históricas acentuando as regularidades tendenciais como critério de explicação sociológica.
13
Gurvitch, Georges: “
A Vocação Actual da Sociologia
- vol. I: na senda da sociologia diferencial”,
tradução da 4ª edição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp. (1ªedição em
Francês: Paris, PUF, 1950). Págs. 496 a 500.
14
Malgrado os adeptos do psicodrama e dos diversos psicologismos muito projetados nas chamadas dinâmicas de
grupo os elementos microssociais integram a dialética das escalas do parcial e do global e não têm
absolutamente nada a ver com o individualismo, o atomismo e o formalismo sociais, mas criam inclusive
referências objetivas para o mundo dos valores.
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Em relação às teorias sistemáticas nos defronta-
mos ao problema da coerência como critério dos determinismos propriamente
sociológicos dos tipos de sociedades globais e suas estruturas. A construção dessa
tipologia sociológica constitui o pré-requisito das teorias sistemáticas bem como
expressa a produção para onde elas desembocam. Desta sorte, antes de surgir co-
mo desafio para a elaboração e na elaboração das teorias sistemáticas elas mesmas,
a coerência revela-se o problema metodológico prévio da construção tipológica
que se equaciona no âmbito da dialética complexa.
Quer dizer, para equacionar o problema da coe-
rência de que são elaboradas as teorias sistemáticas foi preciso estabelecer uma re-
ferência dialética e dialetizadora capaz de introduzir nos quadros operativos da so-
ciologia não somente a constatação da insuficiência do pensamento conceitual pa-
ra conter nos conceitos a manifestação do todo ele mesmo, mas, sobretudo, foi
preciso estabelecer uma referência dialética e dialetizadora capaz de introduzir o
procedimento determinístico voltado para dar expressão à
ambivalência dialética
assim
apreendida na insuficiência do conceitual
15
.
O pensamento sociológico tem clareza do relati-
vismo que permeia a noção de coerência e alimenta-se na observação de que (a)-cada esfe-
ra do real, (b)-cada gênero de determinismo(c)-cada procedimento operativo para
constatá-lo “se encontra situado não somente em outro grau de compromisso en-
tre o qualitativo e o quantitativo, o contínuo e o descontínuo, o contingente e o
coerente, mas também em outra temporalidade”.
A temporalidade científica não pode ser destaca-
da da temporalidade real sobre a qual se funda, assim como o construído não pode
ser isolado do vivido, enfatizando que assim é porque esses dois elementos se en-
contram ligados por uma dialética de passagem
16
. Este pluralismo descontinuista
aparece como desdobramento da teoria da relatividade geral de Einstein. Daí falar-
se de vários tempos na física que mantêm diferentes relações, tanto que
G.Bachelard dirá o seguinte: “
Se o tempo do físico pôde aparecer, até nossos
15
Segundo Gurvitch, embora não seja explicação, a dialética (análise sociológica) prepara a explicação mediante a
descrição. Isto significa que, igual a todo o conceito sociológico relativista e realista assimilando a aplicação
das teorias de consciência aberta, a consciência coletiva requer a aplicação dos procedimentos dialéticos de
complementaridade, implicação mútua, ambigüidade, polarização e reciprocidade de perspectiva para ser
adequadamente descrita em sua “realidade irredutível” diante da consciência individual, diante das obras de
civilização (moral, direito, conhecimento, religião, educação, etc.) e das “outras consciências coletivas”. Cf.
Dialectique et Sociologie, op.cit.
16
Ver Gurvitch, Georges: “
Determinismos Sociais e Liberdade Humana: em direção ao estudo
sociológico dos caminhos da liberdade
”, trad. Heribaldo Dias, Rio de Janeiro, Forense, 1968, 361 pp,
traduzido da 2ªedição francesa de 1963. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1955), op. cit. p. 26.
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dias, único e absoluto, foi porque o físico se situou primeiramente num
plano experimental particular. Com a relatividade, surgiu o pluralismo
temporal”
17
.
Notando a partir desse pluralismo temporal o
modo do realismo, em que o ontológico precede o epistemológico fazendo surgir
a relação dialética entre o método dialético e a realidade social e humana já dialéti-
ca nela mesma, podemos assinalar que a vertente de Saint-Simon e do jovem Marx
acentuando desse modo a precedência do ser social se traduz no pensamento de
Gurvitch pelo alcance operativo, como conexão de efetividade, em que esse autor
emprega a noção de “fenômeno social total”.
Desta forma, no pensamento sociológico de
Gurvitch - e isto lhe valeu injustamente a classificação de “positivista lógico" - o
fenômeno do todo social é verificado e tem efetividade como tal justamente na es-
cala dos tempos sociais gerados na dinâmica de reestruturação.
Vale dizer, por diferença das metodologias abs-
tratas muito utilizadas inclusive por estudiosos da história das civilizações, essa
constatação do enlace entre o fenômeno do todo social e as duplas escalas dos
tempos da reestruturação – enlace este que Gurvitch designa fenômeno social to-
tal – resguarda a teoria sociológica diferencial da arbitrariedade do corte temporal
que leva à construção do tipo de estrutura e de sociedade global. Isto porque a di-
mensão temporal vem a ser resgatada exatamente no emprego operativo da men-
cionada noção de “fenômeno social total”, como veremos adiante, cabendo ante-
cipar que, pela dialetização, os tempos múltiplos em sociologia são mais do que
apenas “meios lógicos de variabilidade” construídos por necessidade de compre-
ender e explicar a reestruturação, antes disso são igualmente verificados em reali-
dade como tempos reais. Daí a ambivalência dialética
18
.
Desta sorte temos que a coerência das teorias
sistemáticas é relativa ao saber coletivo afirmado nos diversos tipos de sociedades
globais históricas, e os graus de coerência dependem da maior ou menos indispen-
sabilidade desse saber coletivo para a unificação das sociedades e seus tipos de es-
trutura.
Ou seja, lá onde o saber mantém-se periférico e
as correlações funcionais não predominam a explicação sociológica compreende o
17
Sobre o pluralismo temporal ver Nota 01 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final deste capítulo.
18
Ver “
Dialectique et Sociologie
, op.cit.
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esforço de unificação pela reestruturação como se fosse um determinismo único e
as teorias sistemáticas alcançam o maior grau de coerência, acentuando nessa cau-
salidade singular uma realidade quase independente da tomada de consciência.
A pesquisa da causalidade singular sobressai como explicação na análise em que as Cidades-Estados antigas
tornando-se Impérios são comparadas por um lado às sociedades teocrático-carismáticas e às sociedades patri-
arcais, e por outro lado às sociedades feudais.
Já vimos que a pesquisa da causalidade singular
do quadro social sobre o saber pode conduzir a relações de polarização, de ambi-
güidade, ou de complementaridade entre quadro social e sistema cognitivo. Cabe
agora acentuar que essa mesma causalidade singular sobressai como explicação na
análise em que as Cidades-Estados antigas tornando-se Impérios são comparadas
por um lado às sociedades teocrático-carismáticas e às sociedades patriarcais, e por
outro lado às sociedades feudais.
Com efeito, nas sociedades teocrático-
carismáticas
19
cujo exemplo histórico mais surpreendente é o antigo Egito a estru-
tura tende a reduzir-se a uma expressão oficiosa e limitada das tensões entre o Es-
tado, a Igreja e as confrarias mágicas de tal sorte que, voltada para explicar a que-
bra de estrutura que nessa tensão se anuncia,
a coerência
buscada pela teoria sis-
temática vem a ser encontrada na influência do racionalismo, do cálculo econômi-
co das trocas, do direito individual (de obrigação, de contrato, de prenda, de crédi-
to), bem como na influência da multiplicidade de grupos particulares laicos (gru-
pos profissionais e as corporações de ofício). Portanto, são essas influências vari-
adas associadas à influência do racionalismo que explicam a freqüência das revolu-
ções surgidas diretamente dos fenômenos sociais totais
20
nas sociedades teocráti-
co-carismáticas.
Já no que concerne o tipo das sociedades globais
patriarcais e ao contrário de Max Weber, a análise proposta por Gurvitch nega que
as mesmas provenham de sociedades teocrático-carismáticas, afirmando que são
19
As sociedades teocrático-carismáticas são caracterizadas por sua encarnação em “reis-
sacerdotes-magos-deuses vivos”.
20
Sobre o tipo sociológico das sociedades teocráticas carismáticas ver Nota 02 dentre as NOTAS
COMPLEMENTARES no final deste capítulo.
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paralelas. Desta sorte, a análise põe em relevo que a historicidade das sociedades
patriarcais é reduzida ao aspecto das lutas internas pelo poder, foco da coerência
buscada pelas teorias sistemáticas. Ademais, as sociedades patriarcais aparecem
bem retardadas em cotejo com as teocracias carismáticas, não sendo possível, po-
rém, classificá-las entre as sociedades arcaicas por causa de sua especificidade
21
.
Quanto ao problema suscitado pelas Cidades-
Estados que se convertem em Impérios, Gurvitch admite duas soluções para este
problema: (1) – na tipologia das sociedades globais estuda-se primeiro o que está
mais distante de Nós, quer dizer: estudam-se as estruturas feudais antes das Cida-
des-Estados antigas; (2) – já do ponto de vista do conhecimento elaborado e ex-
plícito, pelo contrário, não é permitido desconsiderar a herança das Cidades-
Estados antigas para as sociedades que sucederam a antiguidade clássica, tanto
mais que o primeiro desacordo entre quadro social e saber faz parte dessa herança
encontrada nas sociedades feudais.
A análise sociológica põe em relevo que nas Ci-
dades-Estados antigas o desnível entre o fenômeno social total atrasado e a estru-
tura global adiantada introduz os conflitos entre os sistemas cognitivos de maneira
mais acentuada do que se verifica nas Teocracias Carismáticas, cuja interpenetra-
ção com a sociedade patriarcal engendrou exatamente a Cidade-Estado.
Daí resulta: (1) - um conhecimento filosófico que
se separa completamente do saber mitológico-cosmogônico e, adquirindo inteira
autonomia, logra um extraordinário grau de desenvolvimento e expansão revelan-
do-se um conhecimento de vanguarda que caracteriza melhor o milagre grego re-
produzido depois em Roma; além disso, grande parte de seu prestígio e seu atrati-
vo advém de seu caráter partidário, dividido numa pluralidade de “capelas” em
conflitos ressonantes. Ou seja, o conhecimento filosófico é capaz de atrair para
sua órbita de influência tanto o conhecimento político quanto o conhecimento ci-
entífico, cujo salto inicial é considerável.
Da mesma maneira, dos conflitos entre os siste-
mas cognitivos resulta (2) - a disputa muito séria entre o conhecimento filosófico e
o conhecimento perceptivo do mundo exterior, sendo este último bem extenso ri-
co e atrativo, com suas estruturas essencialmente extrovertidas, podendo-se falar
não só em rivalidade manifesta mas até em hostilidade irredutível, como no exem-
21
Sobre o tipo sociológico das sociedades patriarcais ver Nota 03 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no
final deste capítulo.
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plo de Sócrates opondo-se aos não-filósofos, a que Aristóteles caberá tentar a re-
conciliação.
Resulta igualmente dessas disputas cognitivas (3)
- o fato de que na filosofia grega a tomada de consciência do advento do futuro
tenha sido conceituada, tanto quanto tenha sido posto em relevo o esforço huma-
no para dominar tal tempo.
Em conclusão, apesar de ter sido “realista” no
sentido de afirmar (a) – a veracidade do conhecimento do mundo exterior, (b) – a
veracidade do porvir da sociedade, (c) – a veracidade da justificação das ciências,
(e) – a veracidade dos ideais e das táticas de conhecimento político, a filosofia grega
permaneceu alheia à realidade social da qual surgiu.
Nas Cidades-Estados antigas a coerência do tipo de sociedades históricas liga-se ao fato de que a superiorida-
de da cidade como grupo territorial específico combinando o princípio de localidade e de vizinhança traz consigo
uma tendência à laicidade e à racionalidade favorecendo, por sua vez, o triunfo do natural em relação ao
sobrenatural e se abrindo na democratização da estrutura social e no individualismo greco-romano refreados,
porém pelo próprio reforço do princípio territorial que acompanha a democratização.
Desta forma, a coerência buscada pelas teorias
sistemáticas nas Cidades-Estados antigas liga-se ao fato de que a superioridade da ci-
dade como grupo territorial específico combinando o princípio de localidade e de
vizinhança predominando sobre o parentesco, sobre a Igreja, sobre as famílias
doméstico-conjugais, sobre as confrarias artesanais, sobre as estratificações eco-
nômicas, etc. traz consigo uma tendência à laicidade e à racionalidade favorecendo
o triunfo do natural em relação ao sobrenatural e se abrindo na democratização da
estrutura social e no individualismo greco-romano os quais, entretanto cabe subli-
nhar são refreados pelo próprio reforço do princípio territorial que acompanha a
democratização.
Segundo Gurvitch, esse modo de operar ambiva-
lente explica o seguinte: 1) - a rivalidade manifesta entre o conhecimento filosófico
e o conhecimento perceptivo do mundo exterior; 2) - a ocorrência dos regimes ti-
rânicos em Grécia; 3) - o Principado e depois o Império, em Roma; 4) - bem co-
mo a influência do individualismo jurídico dando espaço para a evolução de uma
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burocracia imperial, do centralismo e do absolutismo cesariano que minaram as
bases dessa estrutura
22
das Cidades-Estados antigas.
A respeito das sociedades feudais, a coerência do tipo de sociedades históricas refere-se sobretudo à evolução das
cidades livres caracterizando uma verdadeira revolução municipal, que deu nascimento aos governos provisó-
rios.
Segundo Gurvitch, é indiscutível que as cidades
como centros da indústria e do comércio são ao mesmo tempo (a) - os centros da
inspiração intelectual e da ressurreição do direito romano; (b) - as sedes de onde
parte o conhecimento perceptivo do mundo exterior e de onde partirá, finalmente,
o movimento da Renascença.
Nas sociedades feudais, o saber como fato social
fica enfraquecido e somente a Igreja romana, as cidades liberadas ou livres e a hie-
rarquia dos grupos militares feudais estão em condições de fazer valer o conheci-
mento elaborado em doutrinas ou em fórmulas. Nas demais hierarquias só ocorre
o conhecimento espontâneo e difuso. É que há um desacordo muito marcado en-
tre o fenômeno social total global subjacente e a estrutura correspondente, mais
acentuado ainda devido ao pluralismo excepcional da estrutura feudal em si,
comportando várias hierarquias de grupos, de regulamentações, e das obras
de civilização.
Aliás, como remarca Gurvitch, é por esse plura-
lismo extremo acrescido das heranças greco-romana, germano-bárbara e a dos
mouros que se diferencia o feudalismo europeu dos correspondentes tipos japo-
nês, chinês, russo, etc., sendo o feudalismo europeu imbricado entre os séculos X
e XIV (a Idade Média), cujas particularidades são estudadas pelos historiadores
nos casos da França, da Inglaterra, Flandres e Alemanha
23
.
22
Sobre o tipo sociológico das Cidades-Estados antigas ver Nota 04 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no
final deste capítulo.
23
Sobre o tipo sociológico das sociedades feudais ver Nota 05 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final
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Não se pode minimizar o papel do saber como fato social nesse e para esse
tipo de estrutura das sociedades globais que dão a luz ao capitalismo.
Nas sociedades globais que dão a luz ao capita-
lismo o traço marcante aqui é o despertar do Estado na forma da monarquia ab-
soluta participando ativamente do desenvolvimento do capitalismo nascente e,
nessa e por essa atividade, tratando todos os problemas políticos sob seu aspecto
econômico. Daí que os historiadores e os economistas caracterizam a organização
política dessa sociedade como “despotismo esclarecido”.
Segundo Gurvitch, além dessa vinculação ao “Es-
tado ressuscitado”o caráter particular desse tipo de sociedade inclui os começos do
maquinismo, as primeiras fases da industrialização, a transformação do trabalho
em mercadoria, a aparição das classes sociais propriamente ditas (estrutura de clas-
ses) e, na linguagem gurvitcheana, certa diminuição do desacordo entre a estrutura
global e o fenômeno social total subjacente.
Quer dizer,
não se pode minimizar o papel do
saber como fato social nesse e para esse tipo de estrutura
devendo-se acentu-
ar a reciprocidade de perspectivas que aqui se configura entre experiência e conhe-
cimento para chegar à explicação sociológica.
Como já tivemos a ocasião de notar, em sociolo-
gia só é possível ir além das explicações por correlações funcionais e buscar o má-
ximo de coerência do processus de reestruturação como fundado numa causalida-
de singular deixando o fato social do saber como epifenômeno, somente quando
se está perante um caso de desacordo preciso de quadro social e saber, como nas
análises de Karl Marx, em que o saber da Economia Política clássica está em desa-
cordo com o quadro da sociedade de classes ao qual pertence.
Nesses casos, se poderá estabelecer uma deter-
minada mudança social como a causa particular de que a estrutura é o efeito, pola-
rização esta que, aliás, muitos tentaram fazer apressadamente para este tipo de so-
ciedade que dá a luz ao capitalismo, atribuindo ao advento do maquinismo o papel
de causa singular da mudança estrutural, o que excluiria equivocadamente o alcan-
deste capítulo.
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ce ou a relevância do saber como fato social para a reestruturação desse tipo glo-
bal.
Ao falar de “diminuição do desacordo”, Gur-
vitch tem em vista uma comparação com as sociedades feudais, em cujo tipo nota-
se um desacordo cuja intensidade é um fato novo, a que se conjuga como vimos
um "pluralismo excepcional" da estrutura em si. A explicação aqui assenta-se no
fato singular que se produz ao fim do regime feudal, quando se efetua a aliança
dos monarcas feudais com as cidades francas ou abertas, as quais compraram sua
liberdade ao Estado territorial, reanimando-o.
Assim é a mudança social levando à reanima-
ção do Estado, o qual recupera força com a referida aliança, que constitui o ele-
mento máximo de coerência da teoria para as sociedades feudais, restando, então,
o saber como fato social em estado preponderantemente espontâneo e difuso, sem
que seja feito valer. Com efeito, tirado do seu sono por essa aliança singular, o Es-
tado toma a forma da monarquia absoluta como dizíamos constituindo na análise
gurvitcheana um traço característico das sociedades globais que dão a luz ao capi-
talismo. Na Europa Ocidental, são os séculos XVII e XVIII os que correspon-
dem a esse tipo de sociedade, já iniciada durante a segunda metade do século XVI,
sobretudo na Grã-Bretanha.
Segundo a descrição de Gurvitch,
excluindo a
equivocada atribuição do papel de causa singular para o advento do ma-
quinismo
e resgatando o alcance ou a relevância do saber como fato social para a
reestruturação desse tipo de sociedade global que dá a luz ao capitalismo, nota-se:
(1) - o predomínio do Estado territorial monárquico de grande envergadura, que
atribui ao monarca o poder absoluto, e que se aliou com a burguesia das cidades e
com a nobreza ligada à burocracia, dita nobreza de toga; (2) - o Estado apóia aos
plebeus burgueses, aos capitalistas industriais das manufaturas, aos comerciantes
de envergadura internacional e, muito particularmente, aos banqueiros, quem, en-
riquecidos depois da descoberta do Novo Mundo, tornaram-se seus credores; (3) -
e os apóia contra a nobreza de espada, contra os operários e os camponeses, subs-
tituindo assim a antiga hierarquia das dependências feudais por uma nova; (4) - no
começo, o Estado mantém as classes sociais bem controladas e considera a indus-
trialização (notado progresso na metalurgia e nos têxteis) e a promoção do capita-
lismo como os meios de reforçar seu próprio prestígio político, militar, financeiro
e econômico, porém, logo desempenhará o que Gurvitch chama “papel de apren-
diz de feiticeiro” e, em lugar de dominar as classes sociais, será dominado por e-
las.
(5) - Nota-se certo descompasso entre, por um
lado, o aperfeiçoamento incessante dos modelos técnicos e econômicos, cuja im-
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portância aumenta nessa estrutura e, por outro lado, o fato de que a organização
da economia, prejudicada pelos vestígios das corporações de ofícios (vestígios pré-
capitalistas), e o movimento demográfico, estão retardados a respeito das técnicas,
assim como as invenções e suas aplicações não seguem uma curva de avanço regu-
lar. (6) - Nota-se que o fenômeno social total é refreado pelo modo de operar dos
estamentos não-produtivos e pelo marasmo do campo, que só se move por influ-
ência das cidades e do Estado; (7) - Nota-se também, prossegue Gurvitch, que es-
se traço refreado do fenômeno social total global pesa sobre o impulso do desen-
volvimento técnico e industrial.
(8) - Quanto à divisão das classes sociais nascen-
tes nessas sociedades globais que dão a luz ao capitalismo nota-se, nessa análise
sociológica gurvitcheana, os seguintes aspectos: (8.1) - que essa divisão, fazendo-
lhes concorrência e fustigando-lhes desde dentro, está em oposição: (a)-à hierar-
quia oficial dos corpos constituídos, formada pela nobreza, clero, “estado sim-
ples”(plebeus burgueses), camponeses, estes pagando direitos ao senhorio e dí-
zimos; (b)- aos graus de nobreza; (c)-aos diferentes cargos, alguns dos quais se
comprava. (8.2) - que as empresas econômicas novas de grande envergadura, ma-
nufaturas, fábricas, sociedades de comércio marítimo, bancos, favorecidos pela
monarquia, se lhe tornam finalmente hostis, não aprovando nem a política de
guerra, nem a manutenção dos privilégios da nobreza.
Prosseguindo nessa análise sociológica das socie-
dades globais que dão a luz ao capitalismo nota-se que (9) - Os grupos tradicionais
como a Igreja por um lado e por outro lado a família conjugal-doméstica começam
a perder sua importância, apesar de sua resistência. (10) - Verifica-se a acentuação
das massas, favorecidas pela política absolutista de nivelação dos interesses com-
binada com as ondas de população que afluem para as grandes cidades e com a
desagregação da estrutura senhorial-feudal; (11) - nota-se grande desenvolvimento
das relações com outrem ativo, favorecendo toda a classe de trocas e de pactos
embora travados que estavam pelos restos do regime de privilégios, das barreiras
entre ordens e corporações, e pela ingerência do absolutismo dito “ilustrado” na
vida econômica;
(12) - Quanto aos níveis em profundidade da rea-
lidade social na sociedades globais que dão a luz ao capitalismo, nota-se, em pri-
meiro lugar - prossegue Gurvitch - duas classes de modelos: os modelos idênticos
às regras jurídicas, tomados como regulamentação minuciosa feita de cima para
baixo, e os modelos técnicos, estes nascidos das fábricas, exatamente como um
aspecto do transtorno da vida econômica, ambos inovadores; em segundo lugar,
nota-se incluindo todo o mundo dos produtos, a base morfológico-demográfica
como estando ligada à necessidade de mão de obra e ao problema de seu recruta-
mento; e em terceiro lugar, nota-se os aparelhos organizados de toda a classe, cuja
burocratização começa;
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(13) - Nota-se igualmente nas sociedades globais
que dão a luz ao capitalismo que: (a) - a enorme impulsão da divisão do trabalho
técnico, superando muito a divisão do trabalho social, sendo combinada ao ma-
quinismo, tem por conseqüência uma produtividade sem precedentes em quanti-
dade e em qualidade; (b) - a acumulação de riquezas, acelerada pelo descobrimento
do Novo Mundo, alcança em tempo record grandes proporções agravando os con-
trastes entre a pobreza e a opulência. (14) - Na hierarquia das regulamentações so-
ciais, o conhecimento e o direito estão na frente, e a educação em segundo lugar,
liberando-se da tutela eclesiástica;
(15) - Se assiste, sublinha nosso autor, à vitória
do natural sobre o sobrenatural, da razão sobre toda a crença; bem como ao cres-
cimento do individualismo em todos os campos, e ao nascimento da
idéia do
“progresso da consciência”
, sendo a reter que a expressão mais completa da ci-
vilização e da mentalidade própria dessa sociedade no seu apogeu é a “época das
luzes”, que faz o homem confiar no seu êxito e no das suas empresas técnicas e
indústrias. Quanto ao saber como fato social para este tipo de estrutura e de socie-
dades globais que dão a luz ao capitalismo, saber este cujo papel não se pode mi-
nimizar, tendo em conta, conforme a linguagem gurvitcheana, a diminuição do de-
sacordo entre a estrutura global e o fenômeno social total global favorecendo as
correlações funcionais, vemos Gurvitch notar que o primeiro lugar no sistema
cognitivo é compartilhado pelo conhecimento filosófico e o conhecimento cientí-
fico, que se completam mais do que competem
24
.
***
TERCEIRA PARTE
A pluridimensionalidade da realidade social e o problema da possibilidade da estrutura:
Nota sobre o estudo dos níveis múltiplos e das hierarquias múltiplas em teoria sociológica.
24
Sobre o tipo sociológico das sociedades globais que dão a luz ao capitalismo ver Nota 06 dentre as NOTAS
COMPLEMENTARES no final deste capítulo.
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Seja como for, sobressai que a coerência buscada
pelas teorias sociológicas sistemáticas de reestruturação das sociedades históricas
alcança o grau máximo como pesquisa da causalidade singular unicamente nos ca-
sos da análise em que as Cidades-Estados antigas tornando-se Impérios são com-
paradas por um lado às sociedades teocrático-carismáticas e às sociedades patriar-
cais, e por outro lado às sociedades feudais.
Como mencionado, tais são as situações onde o
saber mantém-se periférico e as correlações funcionais não predominam, de tal
sorte que a explicação sociológica compreende o esforço de unificação pela rees-
truturação como se fosse um determinismo único e as teorias sistemáticas alcan-
çam o maior grau de coerência, acentuando nessa causalidade singular uma realida-
de quase independente da tomada de consciência.
Por contra, vimos que em teoria sociológica dife-
rencial de reestruturação a explicação, a formulação de enunciados deterministas,
não deve nunca na ‘primeira instância’ ir mais além do estabelecimento: (a) de cor-
relações funcionais, (b) de regularidades tendenciais e (c) de integração direta nos
quadros sociais. Isto quer dizer que, muitas vezes chamadas igualmente teorias sis-
temáticas ou teorias de desenvolvimento ou teorias de estrutura, a pesquisa de re-
gularidades tendenciais pauta-se na exigência comum de pôr em relevo a coerên-
cia de um conhecimento como repelindo a afirmação de que seja uma projeção ou
epifenômeno de um quadro social, mera superestrutura ideológica. Trata-se, afinal,
da procura de correlações funcionais entre os quadros sociais e o conhecimento:
um estudo explicativo que não levanta a questão do condicionamento de uns em
relação ao outro, mas limita-se a verificar seu paralelismo.
Sob esse paralelismo posto em destaque pelas
correlações funcionais podem surgir, segundo Gurvitch, ademais da dependência
ao mesmo fenômeno social total, as relações entre o simbolizado e o simbolizante.
Quer dizer, dessa dependência configurando uma realidade particularmente quali-
tativa e contingente em mudança decorre que a afirmação do significado em sua
autonomia relativa a respeito do significante -ou do simbolizado a respeito do
simbolizante- seja também a antecipação no presente de um tempo futuro, seja
também “um futuro atual”. Portanto, a subjetividade coletiva (aspiração aos valo-
res) é reconhecida.
Mas não é tudo. Para além de todo o cotejo às
teorias sistemáticas, sabe-se que a teoria sociológica diferencial ela só e unicamente
ela é capaz de guardar o alcance e a aplicação de investigar e equacionar
o pro-
blema da possibilidade da estrutura.
Neste ponto, podemos notar que o estudo da
dialética complexa das três escalas - a escala do microssocial, a escala do parcial (a-
grupamentos particulares e classes sociais) e a do global (sociedades globais) - dei-
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xa bem estabelecida a percepção de que a realidade social do conjunto comporta
uma pluralidade de modos atualizados.
Aliás, trata-se de uma aquisição da teoria socioló-
gica na tradição de Saint-Simon e do jovem Marx, valorizada na sociologia de
Gurvitch, a verificação de que a realidade é em ato. Além disso, do fato de que a
consciência faz parte das forças produtivas em sentido lato e desempenha um pa-
pel constitutivo nos próprios quadros sociais, - seja como linguagem, seja pela in-
tervenção do conhecimento, seja ainda como direito espontâneo – decorre que a
construção do objeto na teoria sociológica se faz a partir dos quadros sociais como
sendo os modos de ação comum atualizados nas manifestações da sociabilidade,
atualizados nos agrupamentos particulares, nas classes sociais e nas sociedades
globais, notando-se ademais que os quadros sociais exercem um domínio, um en-
volvimento sobre a produção material e espiritual que se manifesta em seu seio, a
qual se prova mediante as correlações funcionais.
Notamos igualmente que, dessa forma, os qua-
dros sociais e a consciência real
25
revelando-se como produtos das forças produtivas
strictu sensus podem por isso permanecer objetivados
26
dando lugar, por sua vez, à
dialética dos níveis de realidade social.
Se a teoria sociológica na construção de tipologi-
as tira dessa igualmente complexa dialética dos níveis da realidade social ela pró-
pria os procedimentos de complementaridade, compensação, implicação mútua,
ambigüidade, ambivalência, reciprocidade de perspectiva e, até, polarização, agora,
neste ponto do estudo da reestruturação sobressai a compreensão de que as mani-
festações da sociabilidade, como fenômenos microssociológicos são elementos
anestruturais
, portanto, incapazes por si próprios de formar as hierarquias dos
patamares de realidade, hierarquias estas indispensáveis às formações de equilíbrio
que são as estruturas sociais.
Ou seja, as formas da sociabilidade, embora não
unifiquem - como vimos- atualizam no seu seio os degraus objetivados da realida-
25
Consciência real
é um termo da sociologia de Marx para designar que a consciência faz parte das forças
produtivas em sentido lato e desempenha um papel constitutivo nos próprios quadros sociais incluindo além
das obras ou controles acima mencionadas a religião, a família, o Estado, o Direito, a moral, a ciência.
26
Sobre a objetivação da realidade social e o conceito sociológico de alienação ver Nota 07 dentre as NOTAS
COMPLEMENTARES no final deste capítulo.
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de, aos quais Gurvitch chamará “
níveis múltiplos
”, constatando que entre esses
níveis se trata de relações inteiramente variáveis, alternando e combinando, por
um lado, graus de cristalização e, por outro lado, graus de espontaneidade, e assim
constituindo forças dinâmicas de mudança.
Em palavras simples, a partir desses níveis assim
compreendidos como “níveis múltiplos”, se afirma o conhecimento de que não e-
xiste tipo de sociedade que alcance uma coesão sem choques; de que nada se re-
solve nunca numa sociedade, pelo menos não definitivamente, só há graus de coe-
são e de disparidade. Portanto, as hierarquias em que esses níveis múltiplos tomam
parte são também
hierarquias múltiplas
, que variam em cada sociedade e em tal
ou qual tipo de estrutura - seja estrutura parcial ou global - nas quais a descontinu-
idade prevalece.
O conceito de estrutura social na sociologia diferencial põe em relevo o fato de
o conjunto social por mais complexo que seja preceder virtualmente ou atualmente
a todos os equilíbrios, hierarquias, escalas.
O estudo desses níveis múltiplos e dessas hierar-
quias múltiplas permite avançar na explicação sociológica do que Gurvitch chama
”pluridimensionalidade da realidade social”, suas “ordens sobrepostas”, e, se as
camadas seccionadas podem se afirmar como sendo mais cristalizadas e oferecer
um suporte mais sólido à estruturação do que jamais poderão fazê-lo as manifesta-
ções da sociabilidade, cabe sublinhar que tais camadas seccionadas nada represen-
tam, e não passam de aspectos difusos da matéria social dinâmica, independentes
do grau de valor e de realidade, somente limitadas aos graus de dificuldade para
acessá-las.
Dessa maneira, a teoria sociológica constrói seu
objeto na medida em que delimita a realidade social em níveis mais ou menos
construídos para estabelecer “conceitos” ou quadros operativos eficazes em vista
de dar contas da pluridimensionalidade da realidade social. Segundo Gurvitch, o
estudo das combinações móveis dessas camadas seccionadas somente tem lugar se
for feito antes que intervenha sua unificação no determinismo sociológico parcial
regendo os agrupamentos particulares e as classes sociais.
Note-se que, para esse autor, a anterioridade des-
se estudo das camadas seccionadas se resguarda da arbitrariedade do chamado
“corte epistemológico” praticado nas metodologias abstratas exatamente por veri-
ficar a dialética dos níveis de realidade como combinada àquela outra dialética das
três escalas.
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Deste modo, se poderá diferenciar dez patamares
em profundidade, seguintes: 1) - a superfície morfológica e ecológica; 2) - os apa-
relhos organizados; 3) - os modelos sociais; 4)- as condutas coletivas regulares; 5)-
as tramas dos papéis sociais; 6)- as atitudes coletivas; 7)- os símbolos sociais; 8)- as
condutas coletivas inovadoras; 9)-as idéias e valores coletivos; 10)- os estados
mentais e atos psíquicos coletivos -cabendo sublinhar que é maior a dificuldade de
acesso quanto mais profundo ou espontâneo é o nível estudado.
No interior de uma estrutura social as hierarquias múltiplas implicam uma formação de equilíbrio dinâmico
conforme a escala dos tempos sociais da própria estrutura, e acentuam a permanência das mudanças funda-
mentais ocorrentes no interior da estrutura que, pela variabilidade, alteram a formação de unidade do tipo de
sociedade global, alteram a combinação das hierarquias que definem o tipo.
Para aclarar o arranjo dessas camadas subjacen-
tes, suas combinações móveis em hierarquias específicas múltiplas a sociologia leva
em conta que as alterações nesses planos de conjunto estão na origem das mudan-
ças fundamentais no interior das estruturas.
Em conseqüência, igualmente a estas, as camadas
subjacentes se movem nos tempos sociais, por meio dos quais admitem princípios
de equilíbrio, isto é: admitem graus diversos de mediação entre o contínuo e o
descontínuo, entre o quantitativo e o qualitativo, o reversível e o irreversível, cons-
tituindo seqüências de microdeterminismos sociais que se combatem e sofrem de-
sajustes nas cadências dos seus movimentos.
Nada obstante, essas seqüências de microdeter-
minismos sociais em combatem chegam a arranjos em hierarquias múltiplas e vari-
adas, por efeito da dialética entre a escala do microssocial, a escala do parcial e a
escala do global, de tal sorte que as hierarquias figuram como criações do esforço
de unificação.
Temos, então, para simplificar, que os princípios
de equilíbrio constituindo seqüências microssociológicas estão na base das hierar-
quias de que, por sua vez, as estruturas sociais configuram as dinâmicas de forma-
ção de equilíbrio ao darem nascimento aos tempos sociais.
Com efeito, no interior de uma estrutura social as
hierarquias múltiplas
implicam uma formação de equilíbrio dinâmico conforme
a escala dos tempos sociais da própria estrutura, e acentuam a permanência das
mudanças fundamentais ocorrentes no interior da estrutura que, pela variabilidade,
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alteram a formação de unidade do tipo de sociedade global, alteram a combinação
das hierarquias que definem o tipo.
Desta forma, acentuando a escala dos tempos so-
ciais, o conceito de estrutura, na sociologia diferencial de Gurvitch, põe em relevo
o fato de o conjunto social por mais complexo que seja preceder, virtualmente ou
atualmente, todos os equilíbrios, hierarquias, escalas, seguintes:
(I) - A série das hierarquias específicas e múltiplas com-
preendendo as escalas ramificadas nas quais o elemento hierárquico assenta-se na distribuição e
não na pressão do conjunto; tais hierarquias múltiplas são as seguintes: (1) - a combina-
ção das manifestações da sociabilidade, como atualizando-se no conjunto e nos
agrupamentos particulares; (2)- a acentuação dos patamares em profundidade da
realidade social, como atualizando-se no conjunto, na escala do parcial, e no mi-
crossocial; (3)- a escala dos modos de divisão do trabalho e dos modos de acumu-
lação, que também se atualizam nas classes sociais e não só nas sociedades globais;
(4)- a hierarquia das regulamentações sociais (também chamados “controles soci-
ais”); (5) - a escala dos tempos sociais hierarquizando-se, combinando-se, interpe-
netrando-se, entrechocando-se de diferentes maneiras, pois a duração de uma es-
trutura social nunca é um repouso, mas, no dizer de Gurvitch é uma “procissão atra-
vés de vias tortuosas abertas pela multiplicidade dos tempos sociais”.
(II) - A série das hierarquias em unificação com preemi-
nência do elemento de contenção: (1) - a hierarquia dos agrupamentos funcionais, às ve-
zes em competição com a hierarquia das classes sociais e a das respectivas organi-
zações. Nota-se que essa competição lhe imprime um acentuado fator de variação,
em virtude do que a hierarquia dos agrupamentos funcionais desfruta de um esta-
tuto ambíguo e pode ser considerada também entre as hierarquias múltiplas, já que
ainda não constitui as formas particulares dos conjuntos; (2) - a combinação dos
modelos, signos, sinais, símbolos, idéias, valores, em breve, das obras de civiliza-
ção cimentando a estrutura social global, notando-se que essa hierarquia constitui
o momento fundamental na formação de unidade; (3) - a hierarquia dos determi-
nismos sociais, compreendendo a dialética entre o microssocial, o parcial e o glo-
bal, cuja unificação dá a forma particular do determinismo sociológico global.
Do fato de o conjunto social preceder todas as
hierarquias temos não somente que o problema chamado “passagem do grupo à
história” releva da pluridimensionalidade da realidade social e se examina no âmbi-
to do estudo das camadas seccionadas, que, conforme dissemos, é um estudo em-
preendido antes
que intervenha a unificação das mesmas nos determinismos so-
ciológicos parciais regendo os agrupamentos particulares e as classes sociais, mas,
em conseqüência, temos também que as tendências e os equilíbrios que constitu-
em o caráter estruturável de um grupo nem sempre são conseguidos e os grupos
não chegam a se tornar estruturados, mostrando ser real o problema da possibili-
dade da estrutura.
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Na sociologia diferencial de Gurvitch, o caráter
estruturável de um grupo tem três proveniências, seguintes: (1) - o fato de que a
unidade do grupo se realiza mediante o arranjo de uma coesão particular entre
(1.a) - as manifestações da sociabilidade, por um lado, e (1.b) - por outro lado, as
atitudes coletivas, incluindo suas expressões nas condutas regulares; (2) - a existên-
cia de um princípio de equilíbrio entre as hierarquias múltiplas; (3) - o fato de que
a inserção do grupo em uma classe social ou em uma sociedade global tende a ma-
nifestar-se por um arranjo (3.a) - de suas relações com os outros grupos e (3.b) -
do papel e do lugar que o grupo tem na hierarquia particular dos agrupamentos
que caracterizam uma sociedade global dada.
Em conseqüência da observação dessas proveni-
ências se pode formular a definição de que os agrupamentos são estruturáveis
porque: A) - manifestam tendência para estabelecer um arranjo virtual das hierar-
quias múltiplas, ou seja, uma “ordem particular”; B) - manifestem tendência para
pôr em relevo a posição, o papel e as relações do grupo com o “exterior”, ou seja,
um “espírito de corpo”.
Todavia, - como dizíamos - do fato de o conjun-
to social preceder todas as hierarquias, resulta que as tendências e os equilíbrios
que constituem o caráter estruturável de um grupo e que viemos de enumerar nem
sempre são conseguidos. Daí que existam grupos estruturados, como os idosos, os
grupos de juventude, certas profissões (embora estes grupos sejam habitualmente
desorganizados têm expressão em diferentes organizações), e existam também
grupos “apenas estruturáveis”, como os diferentes públicos, as minorias étnicas, os
produtores, os consumidores, as indústrias, os grupos de geração.
Nota Gurvitch que o nível organizado em relação
ao equilíbrio da estrutura é só uma questão de expressão, não indispensável, ainda
que todo o grupo organizadO seja ao mesmo tempo estruturado, já que em con-
trapartida um grupo pode ser não somente estruturável sem ser organizado, como
pode também ser estruturado e não ter organização própria.
Do ponto de vista do interesse na sociologia do
conhecimento são os grupos estruturados que oferecem planos de referência mais
precisos
27
. Tanto é assim que, pela abordagem da análise gurvitcheana, o conhe-
cimento opera como um elemento cimentador da estrutura, fazendo com que os
grupos estruturados sejam sedes específicas do conhecimento. Visando exatamen-
27
Ver: Gurvitch, Georges (1894-1965): “
Los Marcos Sociales Del Conocimiento
”, Trad. Mário Giacchino,
Monte Avila, Caracas, 1969, 289 pp. (1ªedição em Francês: Paris, Puf, 1966). Op.cit.
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te pôr em relevo o caráter específico dessas sedes do conhecimento, a análise gur-
vitcheana dá privilégio aos agrupamentos sociais particulares caracterizados no se-
guinte: (I) - segundo seu modo de acesso seja aberto, condicionado, fechado; II) -
segundo suas funções, destacando a família, os grupos de localidade de pequena
envergadura, as fábricas; (III) - os blocos de grupos multifuncionais, como o Esta-
do e a Igreja
28
.
***
28
Ver minha exposição a respeito dos grupos estruturados como sedes do conhecimento em Lumier, Jacob (J.):
Internet, e-book:, doc/zip: “
Aspectos da Sociologia do Conhecimento: Reflexão em torno às análises
Sociológicas de Georges Gurvitch
”, 548 fls., 2005, bibliografia e índices remissivo e analítico eletrônicos,
(896kb.zip), especialmente as págs.156 a 196; através de leiturasjl[email protected]ro.br ; ou
pelo website “Produção Leituras do Século XX”, em http://www.leiturasjlumierautor.pro.br
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Introdução
Aspectos da explicação em sociologia:
Teoria sistemática, teoria diferencial e o problema da possibilidade da estrutura.
BIBLIOGRAFIA COMENTADA MÍNIMA:
Gurvitch, Georges: “Los Marcos Sociales del Conocimiento”, trad. Mário Giac-
chino, Caracas, Monte Avila, 1969, 289pp (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1966
Do mesmo autor: “Determinismos Sociais e Liberdade Humana: em direção ao
estudo sociológico dos caminhos da liberdade”, trad. Heribaldo Dias, Rio de
Janeiro, Forense, 1968, 361 pp., traduzido da 2ªedição francesa de 1963. (1ªedição
em Francês: Paris, PUF, 1955).
Do mesmo autor: “Études sur les Classes Sociales”, Paris, Gonthier, 1966, 249
pp., Col. Médiations (1ªedição em Francês: Paris, Centre de Documentation Uni-
versitaire-CDU, 1954).
Do mesmo autor: “Dialectique et Sociologie”, Paris, Flammarion, 1962, 312 pp.,
col. Science.
Do mesmo autor: “A Vocação Actual da Sociologia-vol.I : na senda da socio-
logia diferencial”, tradução da 4ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel,
Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950).
Do mesmo autor: “A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e pers-
pectivas”, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa,
Cosmos, 1986, 567 pp. (1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957).
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Do mesmo autor: “Objeto e Método da Sociologia”, in Gurvitch et al.:
Tratado
de Sociologia-vol.1
, trad. Ana Guerra, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas
Editoriais, 1964, pp.15 a 50, 2ªedição corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF,
1957).
Do mesmo autor: “
Breve Esboço da História da Sociologia
”, no mesmo
Tra-
tado de Sociologia-vol.1
, trad. Rui Cabeçadas, pp. 51 a 98.
Do mesmo autor:
Problemas de Sociologia Geral
: sociologia em profundidade, microsso-
ciologia, agrupamentos particulares e classes sociais, as estruturas sociais, as sociedades globais e
os tipos de suas estruturas, as regras da explicação em sociologia: as variações das fórmulas do de-
terminismo sociológico; no mesmo
Tratado de Sociologia - vol.1
, tradução Alberto
Ferreira, pp. 219 a 345.
Do mesmo autor: “
Problemas de Sociologia do Conhecimento
”, in Gurvitch et
al.: “
Tratado de Sociologia-vol.2
”, trad.: Ma. José Marinho, revisão: Alberto Fer-
reira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1968, pp.145 a 189 (1ªedição em Francês: Paris,
PUF, 1960).
***
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Introdução
Aspectos da explicação em sociologia:
Teoria sistemática, teoria diferencial e o problema da possibilidade da estrutura.
NOTAS COMPLEMENTARES
(1) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE O PLURALISMO TEMPORAL
DO PENSAMENTO CIENTÍFICO
Em relação à citação de Bachelar – afirmando que se o
tempo do físico pôde aparecer único e absoluto foi porque o físico se situou primeiramente num
plano experimental particular, mas que a relatividade fez surgir o pluralismo temporal – deve-se
anotar o comentário subseqüente: “Para a relatividade, existem vários tempos que, sem dúvida, se correspon-
dem... mas que não conservam duração absoluta. A duração é relativa. A concepção das durações nas doutrinas da
relatividade aceita ainda a continuidade como característica evidente... o mesmo não se passa na física quântica. To-
das as dificuldades que encontramos na assimilação das doutrinas provêm do fato de explicarmos uma mudança de
qualidade... (por uma) mudança de lugar. Veremos que a continuidade é aqui... uma péssima hipótese... É, pois, de
presumir que a física quântica implique necessariamente a concepção de durações descontínuas que não terão as pro-
priedades de encadeamento ilustradas... por trajetórias contínuas” (Cf. Bachelard “La Dialectique de la Durée”,
pp.90-91, apud Gurvitch,“A Vocação Atual da Sociologia”, vol.II,op.cit.,pp378-9).
Na análise de Gurvitch, por sua vez, o relevo é posto
nos critérios pelos quais os tempos se multiplicam, cabendo destacar as seguintes proposições: (1) -
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o fato de que a temporalidade científica não pode ser destacada da temporalidade real sobre a qual
se funda, assim como o construído não pode ser isolado do vivido faz sobressair o equívoco
da in-
terpretação levando a concluir que , por ser na maioria dos casos um tempo mensurável e depen-
dente de planos de referência mais ou menos artificialmente construídos para cada ciência, o tempo
em que são colocados os objetos das diferentes ciências perderia, por isso mesmo, seu caráter es-
pecífico, seu elemento particular de contingência, de qualitativo e de descontínuo. (2) - Gurvitch
assinala que: (a) - O elemento do qualitativo, do descontínuo e do contingente no tempo se fortifi-
ca gradualmente à medida que se passa sucessivamente da astronomia à macrofísica, desta à micro-
física, da mecânica, mesmo quântica, à termodinâmica, desta à química, depois à biologia, enfim, à
psicologia, à história e à sociologia, (b) - ao passo que se fortifica gradualmente o quantitativo no
percurso inverso, atrás do contínuo e do coerente. (3) - No primeiro caso, o recurso às leis causais
torna mais limitada a expressão do determinismo, enquanto no segundo caso torna-se mais propi-
cia a aplicação dessas leis (salvo em microfísica); (4) - De todas as maneiras, permanece-se sempre
na esfera do determinismo desde que: se tenha em conta
o pluralismo dos determinismos como
correspondentes à multiplicidade dos tempos
e, se tenha em conta o fato de que lei e causalidade
(determinismo) não se entrelaçam. (5) - Nota-se que não existe sempre correspondência entre o re-
forço do qualitativo e o da descontinuidade (p.ex.: o tempo na ciência da história é simultaneamen-
te mais continuista e mais qualitativo que em sociologia), o que, sublinha nosso autor, acentua a
multiplicidade dos tempos. (6) - Nota-se, ainda, que os tempos se multiplicam: segundo as acentua-
ções variadas do presente, do passado e do porvir; segundo as acentuações de suas projeções e
contatos diversos; segundo seus avanços, retardos, caráter cíclico, alternância, virtualidade de crises
e de explosões, aparição e desaparição de ritmos. (7) - Entretanto, estes diferentes critérios podem
coincidir ou entrar em conflito, bem como podem ter importância e significação desiguais nas di-
versas esferas do real: apreendidas, conhecidas, ou conscientemente construídas pelas diferentes ci-
ências.
***
(2) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE AS SOCIEDADES TEOCRÁ-
TICO-CARISMÁTICAS.
A análise gurvitcheana põe em relevo o fato de o misticismo ofi-
cioso e superficial encontrar-se muito limitado, vindo em benefício de um racionalismo crescente
articulando o conjunto das obras de civilização e precipitando a quebra da estrutura. Observa-se
que é nas sociedades teocrático-carismáticas onde, tomado por empréstimo de Assíria e Babilônia
pelo Egito, aparece pela primeira vez um conhecimento científico independente da mitologia cos-
mológico-teogônica, da magia e do conhecimento técnico.
Todavia, esse conhecimento científico (geometria, elementos de
astronomia, biologia) segue sendo essencialmente esotérico. Quer dizer, é patrimônio dos inicia-
dos, que pertencem à casta de sacerdotes e aos grupos de escribas, diferenciando-se aqui pela pri-
meira vez uma sociedade intelectual com o aparecimento de um grupo de estudiosos, amiúde inde-
pendentemente de toda a relação com a religião, que assumem deliberadamente a tarefa de manter
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o conhecimento científico e de transmiti-lo pelo ensino a seus sucessores (ainda que reduzidos a
um pequeno grupo de iniciados). Nota-se, ainda, que os números, as equações, as análises geomé-
tricas e os calendários quantificados, que constituem as primeiras manifestações do conhecimento
científico, podem tomar formas místicas acentuadas.
Enfim, tendo em conta a relatividade do histórico e do arcaico à
luz do que são tratadas como o primeiro caso de sociedades históricas e ademais do Egito antigo,
as teocracias carismáticas abrangem dentre seus exemplos a Babilônia, a Assíria, o Reino Hitita, a
Pérsia, a China, o Japão antigo, o Tibet e as Índias; em maneira especial, inclui-se os Califatos Islâ-
micos sob as dinastias dos Omeyas e dos Abasis, do século VIII ao XIII, e, muito provavelmente,
também o Império dos Incas.
***
(3) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE AS SOCIEDADES
PATRIARCAIS.
Com efeito, no tipo de sociedades patriarcais a religião está por
completo a serviço da “casa”, implica um misticismo muito reduzido e serve melhor de garantia à
moralidade tradicional. Nessas sociedades patriarcais todas as atividades econômicas, políticas e re-
ligiosas se reúnem no meio da família doméstico-conjugal, onde o patriarca é sobretudo proprietá-
rio-empresário, além de chefe político e sacerdote.
Nota Gurvitch que esse tipo de sociedade combina-se com religi-
ões muito diferentes: monoteísmo e politeísmo, paganismo, judaísmo e cristianismo. Isto porque o
tipo patriarcal se desprende do Antigo Testamento, da Odisséia e da Ilíada; inclui a família romana
antes de sua integração à Cidade, bem como a associação de vários patriarcas, na tradição germâni-
ca; tendo as sobrevivências ou analogias desse tipo global chegado até os “latifundia” do alto Im-
pério romano, aos “zadrugas” eslavos e às monarquias patrimoniais, notando-se ademais no tipo
patriarcal inclusive o caso da monarquia franca dos séculos VI ao IX.
Assinala-se, ainda, a ausência de diferenciação dos poderes, a de-
bilidade excepcional ou a quase inexistência de grupos particulares e o ambiente quase racional e
laico do funcionamento dessas sociedades patriarcais. Vale dizer, não existem tensões perceptíveis
entre as estruturas e o fenômeno social total global, porém, como a sociedade aqui é fechada, imo-
bilista e rotineira nota-se um papel muito limitado do conhecimento, prevalecendo a moralidade
tradicional juntamente com a moralidade das imagens simbólicas ideais, sendo as obras de civiliza-
ção limitadas às tradições épicas recitadas, às tradições dos cantos, bailes e festas, ao idioma falado
e escrito, aos cultos, ritos, revelações, etc.
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(4) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE AS CIDADES-ESTADOS.
Nessa análise sociológica se aclara que o individualismo greco-
romano tomou como centro da vida jurídica e das trocas econômicas o conceito de persona for-
mulado pelo direito romano - em realidade, o “paterfamiliae” - conceito de persona este que to-
mou em Roma o duplo sentido de (1) - sujeito com máscara jurídica distinto do agente psicológico, re-
ligioso, moral, e de (2) - Vontade que manda, sendo que esta pode pertencer a uma pessoa individual
ou coletiva, mas é sempre distinta de outras pessoas, as quais lhe são opostas.
Segundo Gurvitch, é essa “pessoa” como unidade simples e ab-
sorvente, a que se considera como o fundamento e o agente único de toda a relação social, de toda
a propriedade, enfim de todo o poder. Daí a importância do individualismo jurídico para o tipo de
estrutura das Cidades-Estados tornando-se Império, isto é, para o equilíbrio do “imperium-potestas
que garante o dominium dos particulares - com este último limitando o primeiro, pois essa estrutura
reserva importante lugar ao Estado, ao contrato e à propriedade privada.
Gurvitch nos lembra ainda que, se o individualismo triunfou em
Roma por meio do Direito Romano promovendo de uma só vez o dominium e o imperium, venceu
na Grécia, não só nos órgãos políticos democráticos e nos procedimentos judiciais, mas na arte, na
filosofia, nos usos e costumes, nas trocas de toda a classe assim como no princípio mesmo do diá-
logo e nas tragédias gregas, nas quais o homem luta contra seu destino, sua decisão é livre, porém
amiúde lhe contrarresta o factum.
Nota-se, por acréscimo, a inexistência de classes sociais, apesar
das fortes desigualdades econômicas, dos movimentos de grandes massas de desocupados que re-
clamavam “panem et circensese das revoltas de escravos (Espartacus), já que estes não queriam
transformar a sociedade global (segundo Gurvitch, não se observa neles a mínima capacidade de
resistência à penetração pela sociedade global), não demonstram consciência de classe nem ideolo-
gia, não desempenham papel preciso na produção e, sobretudo não podiam comunicar-se (por falta
de meios técnicos) com os segmentos sociais do mesmo nível existentes em outros povoados, ci-
dades, impérios.
Ademais, a situação era desfavorável ao aparecimento de classes
sociais, notando-se que as técnicas econômicas do campo estavam muito atrasadas em relação ao
desenvolvimento do conhecimento filosófico, científico, do conhecimento do mundo exterior, da
arte, do direito e da organização política -distinguindo aqui as técnicas artesanais que prosperavam
nas cidades de comércio marítimo internacional- pois nem gregos nem romanos sabiam atrelar os
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cavalos para fazê-los trabalhar a terra. Enfim, foram os gregos e os romanos que em sua visão nova
afirmaram definitivamente a existência independente do mundo exterior.
***
(5) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE AS SOCIEDADES FEUDAIS.
Distingue-se no tipo de estrutura das sociedades globais feudais
da Europa cinco hierarquias concorrentes seguintes: 1) - Federação hierarquizada dos grupos mili-
tares, baseada numa corrente de dependências feudais compreendendo a “homenagem de vassa-
los” ou sacrifício pessoal do vassalo para o senhor, que dá lugar aos feudos, que obrigam às presta-
ções, tanto quanto às obrigações militares restritas aos cavaleiros consagrados; 2) - hierarquia dos
grupos patrimoniais com uma característica econômica, incluindo as relações entre senhores e
camponeses detentores de terras com diferentes títulos; bem como as relações entre suseranos e
vassalos quando o feudo se torna hereditário e passa ao patrimônio do vassalo, notando-se que,
posteriormente, a hierarquia de senhores–vassalos e a dos grupos patrimoniais se tornam em parte
paralelas e em parte divergentes; 3) - hierarquia que tem na cabeça o Estado Monárquico, que era
ineficaz - nos lembra Gurvitch - tanto sob a forma de Santo Império Romano-Germânico como
sob a forma do conjunto de principados soberanos de uma região - vinculados apenas pelo rei feu-
dal, “o primeiro entre seus pares”- ficando letargado o Estado como bloco de grupos locais, como
conjunto territorial por excelência, até o fim do regime feudal, notando-se, entretanto, que foi gra-
ças ao acordo dos monarcas feudais com as cidades liberadas, as quais compraram sua liberdade ao
Estado territorial, que este veio a ser reanimado; 4)- hierarquia eclesiástica da Igreja romana, que é
bem diferente das outras hierarquias: é a mais vasta coletividade e a única universal. Seus dignitá-
rios se enquadram também nas correntes de vassalos e de patrimônios, porém se reconhecem so-
mente dependentes da hierarquia eclesiástica. 5) - Federação das cidades liberadas e suas hierarqui-
as de grupos, como as hierarquias dos mestres de ofícios, as das intendências, as das associações de
companheiros e aprendizes, as das sociedades comerciais: representa um vasto movimento de libe-
ração das “comunas” urbanas com seus conselhos municipais, onde estão representadas as socie-
dades comerciais e as corporações de ofícios (para Saint-Simon, este movimento marca o começo
da era industrial, com a superação progressiva dos “ociosos” pelos “produtivos”).
Como se vê, no plano do saber nota-se que a Igreja romana, por
um lado e, por outro lado as cidades livres são as que, neste tipo de estrutura feudal, representam
os dois centros principais do sistema cognitivo. A Igreja é considerada, sobretudo como a encar-
nação visível do “corpus mysticum”, integrando em sua unidade sob certo aspecto toda a pluralidade
dos grupos e de suas hierarquias. Quer dizer, cabe sublinhar - e GURVITCH o destaca em sua a-
nálise sociológica - que, desde o ponto de vista da sociologia do saber (interessando sem dúvida o
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estudo do tomismo), a Igreja com essa idéia do “corpus mysticum” se afirma representante do fenô-
meno social total global. Destaca também nosso autor que, todavia, depois de muitas disputas e lu-
tas, incluindo, por exemplo, as lutas do Papa GREGÓRIO VII com o Imperador HENRIQUE IV
desembocando por um lado no nascimento da doutrina política de MARCÍLIO DE PÁDUA pro-
clamando a soberania do povo a favor da Igreja, e, por outro lado, na doutrina da escola dos legis-
tas de Bolonha retornando à soberania do Estado, o poder da Igreja se encontra sensivelmente li-
mitado pelo predomínio militar da corrente hierárquica feudal e pelo predomínio econômico, téc-
nico e, finalmente, intelectual, das cidades liberadas. Nota-se que a Igreja e as cidades podem se
combinar como quadros do conhecimento, dando lugar às universidades, que eram muito numero-
sas na Idade Média: estabelecimentos religiosos cujos professores pertencem ao clero, as universi-
dades se encontram todas imbricadas nas cidades livres, cuja influência sofrem decisivamente. Se-
gundo GURVITCH, o ensino das universidades é pautado num saber cada vez mais conforme à
tradição clássica, herança do sistema cognitivo das Cidades-Estados tornando-se Impérios.
Quanto à dinâmica da estrutura feudal, nosso autor nota que é pe-
la apreciação dos papéis e das atitudes que se chega à compreensão da mesma, já que não se trata
somente dos papéis privilegiados, impostos, regulares como se poderia pensar, mas dos papéis flu-
tuantes, variáveis, improvisados.
Com efeito, se observa em cada uma das cinco correntes hierár-
quicas em luta que os papéis dos grupos e dos indivíduos são múltiplos: se cruzam se combinam se
contradizem. As maneiras de julgar esses mesmos papéis e suas interpretações variam ao extremo.
Desse modo, não se encontra dois senhores, duas ordens de cavaleria, duas cidades, duas ordens
religiosas, etc., que concebam seu papel da mesma maneira; variabilidade esta que se repete, outra
vez, em cada um dos seus membros individuais. Num outro segmento, abrangendo os símbolos,
modelos, regulamentos variados, ritos, procedimentos, costumes, usos, observa-se que a diversida-
de dos mesmos e a contradição que os atinge favorece as tendências renovadoras. Gurvitch avalia
também como favorável, ou como estímulo às condutas renovadoras e efervescentes, exemplifica-
das nas “Cruzadas”, o fato de que se produzem falhas entre as diferentes correntes hierárquicas em
luta, que devem ser atribuídas ao tempo adiantado a respeito de si mesmo, o qual, apesar do pre-
domínio do tempo cíclico, se faz sentir, sobretudo nas Cidades livres. Aliás, este autor remarca
textualmente que “a reputação de obscurantismo da Idade Média, tomando-se a esta freqüentemente como fundi-
da na noite mais sombria relativamente ao campo do saber, se funda em uma interpretação demasiado apressada e,
por conseguinte, inexata; erro este que deve ser atribuído ao procedimento pelo qual se tem omitido distinguir justa-
mente as classes de conhecimento", sobre as quais Gurvitch insiste.
Quer dizer, confundiu-se assim à “maneira positivista” o saber em
geral com o conhecimento científico, o qual, efetivamente, se encontrava em um nível muito baixo
(cf. "Los Marcos ...”,op.cit., p.199), contribuindo para isso os fatos de que: (a)- o ensino nas univer-
sidades limitava-se à teologia e à filosofia; (b)- o progresso das técnicas não tinha contato com as
ciências - marcadas estas últimas pelas formas mística, especulativa e simbólica- as quais estavam
representadas pelos alquimistas e os astrólogos, que eram protegidos por poderosos senhores-
potentados (buscava-se nas ciências, artificialmente, o ouro).
Aliás, apesar de figurar em quinto lugar no sistema cognitivo das
sociedades feudais o conhecimento técnico estava muito mais desenvolvido do que se pode-
ria acreditar: cavalos atrelados e moinhos de água e de vento, no campo; o trabuco, o arcabuz e
antes do final da Idade Média as armas de fogo, no âmbito da corrente feudal e das técnicas milita-
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res; no âmbito dos monastérios, os beneditinos inventam o relógio, cujos primeiros mecanismos
introduzem uma verdadeira revolução na medida do tempo, a qual se torna acessível a grandes ca-
madas da população. Nas cidades, há o desenvolvimento da navegação e novas técnicas no arte-
sanato, sem falar na arquitetura das catedrais e castelos e na arte religiosa, que se enriquecem tecni-
camente.
Sem dúvida, estas observações interessam indiretamente à socio-
logia do conhecimento filosófico porque será o caráter introvertido das sociedades feudais,
sua falta de interesse pelo conhecimento perceptivo do mundo exterior - que tanta impor-
tância tem para o objeto da filosofia, como vimos nas Cidades-Estados tornando-se Impérios - que
nos faculta a explicação para a diminuição da importância concedida a um conhecimento técnico
tão pronunciado nas sociedades feudais, rechaçado abaixo do conhecimento de outro e dos Nós,
em quarto lugar, e abaixo do conhecimento de senso comum, em terceiro lugar. Essa rejeição se
manifesta de modo especial pela ausência de perspectiva na arte, pela configuração das cida-
des como plissadas, redobradas sobre elas mesmas, finalmente, pela maneira fantasmagórica
com que se representa o universo e a terra, e, ainda, até no célebre ditado de que “todos os cami-
nhos conduzem a Roma” (Cf. Gurvitch, “Los Marcos...", op.cit, p.198).
Em contrapartida, a consciência dos tempos como duração é mui-
to adiantada, com a distinção entre tempo, idade e eternidade (tempus, aevum, aeternitas) estabele-
cida pela teologia católica situando-se em um escalão muito mais adiantado do que o conhecimento
das amplitudes, consideradas estas como “infestadas de tentações infernais” por grandes segmen-
tos da população (em sua maioria analfabetos).
***
(6) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE AS SOCIEDADES QUE DÃO A
LUZ AO CAPITALISMO.
Com efeito, nosso autor insiste a respeito deste papel significativo
do saber como fato social, traçando de inicio um esboço histórico do salto prodigioso da ciência
desde a Renascença, cujos expoentes, como se sabe, são os seguintes: Copérnico (1473-1543), Ke-
pler (1571-1630), Galileu (1564-1642), nos conhecimentos astronômicos; Newton (1643-1727) in-
venta o cálculo infinitesimal no mesmo momento em que Leibniz (1646-1716) também o faz de
outra forma, ambos fundadores da Física mecânica; a química moderna nasce com Lavoisier (1743-
1794); as ciências do homem se desenvolvem dividindo-se em muitos ramos, seguintes: a Econo-
mia Política é criada por Adam Smith E David Ricardo e, com outra forma, pelos fisiocratas; a ci-
ência política se afirma com Hobbes, Spinoza, Locke, Montesquieu, Rousseau, os enciclopedistas,
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Condocert, e Destut de Tracy (Montesquieu já pressente o advento da sociologia). Nota-se, igual-
mente, a reforma do ensino, cada vez mais laico, a acelerar o desenvolvimento do conhecimento
científico, sobretudo a partir de 1529, com a fundação do Collège de France. Todos os grandes fi-
lósofos participam das discussões científicas (com alguma reserva, Pascal e Malebranche) já que a
laicização do saber filosófico, cada vez mais independente da teologia, favorece sua tendência a fa-
zer das ciências a base de suas reflexões. Nota-se, entretanto, prossegue nosso autor, que o contrá-
rio não se verifica e os cientistas mostram pouco interesse pelo saber filosófico como tal. Mesmo
assim, o prestígio do conhecimento filosófico está em que é o melhor colocado para defender a ci-
ência contra a teologia e, além disso, são os filósofos quem amiúde emitem hipóteses verdadeira-
mente científicas, como Descartes e Leibniz. Nesta descrição proporcionada pela análise gurvit-
cheana, o saber filosófico acolhe mais o racional sobre o místico, excetuando a Pascal, um pouco a
Malebranche e a Spinoza, místico da racionalidade; da mesma maneira, acolhe mais o adequado so-
bre o simbólico e ainda favorece a combinação do conceitual e do empírico, do especulativo e do
positivo e, finalmente, o predomínio da forma individual sobre a forma coletiva, esta última, por
sua vez, muito relegada, aqui, no saber filosófico. O conhecimento científico, por sua vez, tem a
acentuação do elemento racional como exclusiva sua; aqui, o conceitual predomina sobre o empíri-
co e a forma coletiva é preponderante; nota-se a formação de equilíbrio do positivo e do especula-
tivo, assim como do simbólico e do adequado.
Quanto ao segundo lugar no sistema cognitivo dessas sociedades
que dão a luz ao capitalismo, corresponde ao conhecimento perceptivo do mundo exterior, com as
seguintes características: (1) - a rápida promoção desse conhecimento deve-se à criação de novos
meios de comunicação, que acompanha a extensão do comércio em escala mundial, favorecendo o
conhecimento dos oceanos e de continentes até então desconhecidos; além disso, favorecendo a
maior circulação das diligências, o aumento e o melhoramento dos caminhos que cruzam os países
ocidentais permitiu comunicações relativamente rápidas; (2) - todavia, a análise de Gurvitch consi-
dera mais importante as novas percepções e conceituações das amplitudes e dos tempos em que se
encontra imbricado o mundo exterior: (2.1) - nota-se uma competição entre os tempos “adiantado
a respeito de si” e o “tempo atrasado”, correspondendo a uma estrutura de uma só vez inovadora e
anacrônica, competição esta que anuncia um tempo em que o passado, o presente e o porvir irão
entrar em conflito rapidamente, numa situação explosiva que favorecerá o porvir, com o “tempo
surpresa” ameaçando quebras nas poderosas organizações da superfície; (2.2) - essa competição
entre o tempo adiantado e o tempo atrasado aplica-se igualmente ao fenômeno social total global
subjacente à estrutura, de tal sorte que encontramos, por um lado, que o conhecimento do mundo
exterior, a vida econômica, as técnicas industriais, o comércio internacional, o saber filosófico, a
burguesia e sua ideologia estão essencialmente adiantados em relação à estrutura, enquanto que,
por outro lado, a nobreza, o clero, a vida agrícola, o campesinato, estão atrasados a respeito da
mesma. A própria monarquia absoluta está adiantada a respeito de suas iniciativas e atrasada quan-
to a sua organização e suas conseqüências. (2.3) - Assim, Gurvitch avalia que a quebra do Antigo
Regime foi muito mais espetacular do que as revoluções inglesa e holandesa ou do que as guerras
religiosas e civis, incluindo nesta lista a guerra da independência nos Estados Unidos; e que esta
quebra do antigo regime não se apagará jamais da memória coletiva das sociedades que virão. (2.4)
- Temos, então, que esses tempos e amplitudes em que se encontra imbricado o mundo exterior,
embora rico em incógnitas e em possibilidades novas, se fazem particularmente mensuráveis com o
lema da classe burguesa que toma consciência da sua existência: “tempo é dinheiro”, a que se junta:
“todos os caminhos conduzem ao ouro, ou, pelo menos, ao dinheiro”. Quer dizer, todas as ampli-
tudes são apreciadas menos pelo sistema métrico e mais pelo tempo necessário para percorrê-las,
decorrendo desta quantificação que o mundo exterior se torna um objeto de estudo científico.
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Neste ponto, cabe sublinhar a observação notada por
Gurvitch de que, desse modo de apreciar as amplitudes pelo tempo necessário para percorrê-las, é
decorrente a posição de relevo alcançada conjuntamente pelo conhecimento perceptivo do mundo
exterior e pelo saber científico no sistema cognitivo do tipo de sociedades que dão a luz ao capita-
lismo, posição de relevo esta que - prossegue nosso autor - é muito mais significante aqui do que
em muitos outros tipos de sociedade, sem esquecer que desse modo o saber científico prepara o
salto que na etapa seguinte do capitalismo o levará ao primeiro lugar.
No terceiro lugar desse sistema cognitivo vem o conhe-
cimento técnico, que deu um salto considerável, e isto não só na indústria (ramos dos têxteis e da
metalurgia), mas na navegação e na arte militar. Reitera Gurvitch, como já o notamos que o aper-
feiçoamento do conhecimento técnico levando ao maquinismo se encontra em relação direta não
com as aquisições da ciência, mas com as melhoras de ordem prática, o que já fora assinalado por
Adam Smith e por Karl Marx, apesar de suas diferenças intelectuais. Quer dizer, Karl Marx tivera
razão ao insistir no primeiro tomo de
O Capital
(cf. tomo I, 4ª seção, caps. XIV e XV) de que não
são as invenções técnicas as que tiveram por resultado a profusão de fábricas, mas, pelo contrário,
foi a divisão do trabalho técnico nas grandes fábricas, cada vez mais numerosas, a que criou a ne-
cessidade de técnicas mecanizadas e provocou assim a introdução das máquinas, tal como confir-
mado pelo estudo das técnicas industriais dos séculos XVII e XVIII.
Neste tipo de estrutura e de sociedades globais que dão a
luz ao capitalismo observa-se ainda como retardados a respeito das técnicas, não só o movimento
demográfico, mas a organização da economia, que é prejudicada pelos vestígios das corporações de
ofícios (vestígios pré-capitalistas), assim como as invenções e suas aplicações não seguem uma
curva de avanço regular.
Por sua vez, o conhecimento político, tanto implícito ou
espontâneo quanto explícito ou formulado, ocupa o quarto lugar desse sistema cognitivo, ainda que
possa parecer surpreendente essa colocação tão baixa em face do meio fértil em intrigas constituí-
do pelos grupos privilegiados no Antigo regime. Há que distinguir três aspectos seguintes: 1) - que
o conhecimento político implícito está, evidentemente, estendido na corte, e que é função da riva-
lidade: (a) - da nobreza de espada e da nobreza de toga; (b) - de toda a nobreza e da burguesia em
ascensão; (c) - bem como entre as diferentes frações da burguesia: a industrial, a comercial, a finan-
ceira; 2) - que esse conhecimento político espontâneo se encontra ausente no meio das classes po-
pulares, representadas pelos operários das fábricas e pelo “campesinato”, que, derrotados pelas
mudanças de estruturas que nada lhes traz de benefício, não sabem o que fazer ou que tática adotar
numa situação que, em geral, lhes é muito desfavorável e Gurvitch nos lembra que sua consciência
de classe e sua ideologia não se formarão antes do século XIX, e muito depois das grandes como-
ções da Revolução francesa. 3) - Na medida em que se mantém, o Antigo Regime necessita de uma
política que não leva geralmente em conta os grupos de interesse, por privilegiados que sejam, quer
dizer, as disputas políticas e, conseqüentemente, o conhecimento político das pessoas, são de im-
portância secundária para o absolutismo. Por sua vez, esses grupos de interesses (os que têm futu-
ro e os mais adiantados e clarividentes) encontram uma compensação na elaboração das doutrinas
políticas, cujo esquema tirado da análise gurvitcheana é o seguinte: (a) - na Inglaterra, Thomas Mo-
rus (“Utopia”, 1516) e Francis Bacon (“Nova Atlântida”, inconclusa), durante a Renascença; posteri-
ormente, nos séculos XVII E XVIII, os escritos de Hobbes e Locke correspondem, nessa análise
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sociológica, às aspirações da burguesia ascendente, como quadro social do conhecimento, que, fi-
nalmente, só então triunfará. (b) - na França: os fisiocratas, os enciclopedistas, Turgot,
J.J.Rousseau, terão influência desde o começo e durante a revolução, e suas doutrinas tratam tanto
do fim ideal quanto da tática a empregar para alcançá-lo, tipificando o conhecimento político for-
mulado ou elaborado. (c) - Na Holanda: o Tratado Político” (1675-1677) de Spinoza faz pressentir,
sublinha Gurvitch, “certos elementos do pensamento de Rousseau. Nota-se que nas doutrinas
políticas (e nas ideologias em que se inspiram), apesar do predomínio da forma racional, “o simbó-
lico , o especulativo, o conceitual, e o individual são sempre muito acentuados”, mesmo naquelas
doutrinas mais preocupadas pela racionalidade , pelo empirismo, pela objetividade, pela adequa-
ção. Já no conhecimento político espontâneo, a forma racional se combina à forma empírica, es-
tando igualados em importância o positivo e o individual. Quanto à sociologia do conhecimento
de senso comum, aqui, neste tipo de sociedades globais dando à luz o capitalismo, em penúltimo
lugar, está marcado pela grande multiplicidade dos meios que lhe servem de quadro. Quer dizer,
está consideravelmente confundido pelo seguinte: por um ambiente tão novo e imprevisto; pelo
advento do começo do capitalismo e do maquinismo; pelo descobrimento do Novo Mundo; pela
política absolutista de nivelação dos interesses; pelo debilitamento da igreja; pela afluência das
grandes massas da população às cidades, etc. Assim, esse conhecimento de senso comum se encon-
tra disperso em vários meios, seguintes: (a) - entre os cortesãos, os representantes da nobreza de
espada e os da nobreza de toga; (b) - nos diferentes grupos da burguesia, no novo exército profis-
sional, entre os marinheiros, etc., ou ainda, entre os operários da fábrica. Seu refúgio será, então, a
vida rural e os círculos restritos da família doméstica conjugal. Gurvitch nos lembra a observação
de Descartes de que o senso comum é “a mais compartilhada” das faculdades, avaliando que o
mestre do racionalismo moderno resistia desta maneira à tentação de negar a existência mesma
dessa classe de conhecimento, “provavelmente pressionado pelas contradições crescentes entre os
diversos beneficiários do conhecimento de senso comum”. Enfim, nota-se a disputa entre a forma
mística e a forma racional desse conhecimento, em particular no clero e no campesinato (“paysan-
nerie”). No último lugar desse sistema cognitivo das sociedades globais que dão à luz o capitalis-
mo, vem o conhecimento de outro e dos Nós que: 1) - como o conhecimento de senso comum,
também se encontra em grande dispersão pelos diferentes meios relacionados com a atualização da
sociabilidade das massas, com a política de nivelação do absolutismo e com a desintegração dos
grupos herdados da sociedade feudal, estando em nítida regressão a identificação do conhecimento
dos Nós ao “espírito de corpo”. 2) - Todavia, Gurvitch observa que se nota um novo conhecimen-
to de outro, servindo de compensação parcial para o rebaixamento desse mesmo conhecimento de
outro como de indivíduos concretos, lembrando-nos que, tanto na classe proletária nascente como
na classe burguesa ascendente, ambas penetradas da ideologia de competição e de produção eco-
nômica, o conhecimento de outro é quase nulo. Nosso autor acrescenta que, nesse novo conheci-
mento de outro, se trata de uma tendência para universalizar a pessoa humana que se relaciona a
Rousseau, com sua teoria da Vontade Geral idêntica em todos, e a Kant, este, com seu conceito de
“Consciência Transcendental” e de “Razão Prática”, que chega à afirmação da “mesma dignidade
moral” em todos os homens. Quer dizer, tem-se um conceito geral do outro fora de toda a con-
creção, de toda a individualização efetiva, acentuando-se as formas racional, conceitual, especulati-
va e simbólica, com tendência frustrada a reunir o coletivo e o individual no geral ou no universal.
Para encerrar, Gurvitch nota que as sedes de intelectuais encarregados de manter esse sistema cog-
nitivo, desenvolvê-lo e difundi-lo se enriqueceu, com a adição de novos grupos e novos membros,
destacando-se junto aos filósofos, aos estudiosos, aos docentes a entrada dos representantes das
“belas letras”, dos escritores, dos doutrinários políticos e, por fim, dos inventores de técnicas no-
vas.
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(7) - NOTA COMPLEMENTAR SOBRE A OBJETIVAÇÃO DA REALIDADE SOCIAL E O
CONCEITO SOCIOLÓGICO DE ALIENAÇÃO.
Em relação ao problema da objetivação dos quadros sociais,
Gurvitch observa que Marx insistiu contra Hegel “e com razão” no fato de que a objetivação sem a
qual as sociedades e as civilizações não poderiam subsistir em modo algum devia confundir-se com
a perda de si.
Assim nota-se que o “jovem” MARX distingue a alie-nação nos
seguintes aspectos: a objetivação; a perda de si; a medida da autonomia do social; a exteriorização
do social mais ou menos cristalizada; a medida da perda de realidade ou desrealização de que de-
pendem em particular as ideologias; a projeção da sociedade e dos seus membros para fora de si
próprios e a sua dissolução nessa projeção ou perda de si.
Ainda que as aplicações exclusivamente sociológicas dessas distin-
ções relativas ao conceito de alienação nem sempre se diferenciem das suas aplicações em sentido
político -ligadas que são em Marx à aspiração à libertação total de certos aspectos da alienação- es-
sas distinções assim como “a dialética entre os diferentes sentidos do termo alienação” possuem
um sentido sociológico muito preciso.
No dizer de Gurvitch, “trata-se dos graus de cristalização, de es-
truturação e de organização da vida social que podem entrar em conflito com os elementos espon-
tâneos desta”, resultando pelo concurso de ideologias falazes na ameaça de dominação e sujeição
que pesa sobre as coletividades e os indivíduos. É assim que Marx estuda a dialética das alienações
na sua análise do regime capitalista, em que o trabalho é alie-nado em mercadorias; o indivíduo ali-
enado à sua classe; as relações sociais alienadas ao dinheiro, etc. (cf. Gurvitch, “A Vocação Actual
da Sociologia –vol.II: antecedentes e perspectivas”, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Or-
lando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp. -1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957 – op. cit: ver
pág. 279).
Além disso, sabe-se que a pesquisa dos aspectos múltiplos que se
ligam aos níveis da realidade social e sua objetivação implicando a dialética das alienações revela-se
uma abordagem produtiva em teoria sociológica. Autores voltados ao estudo dos universos simbó-
licos e sua legitimação institucional desenvolvem o problema da objetivação em vista de esclarecer
a questão da reificação da realidade social pressupondo a dialética das alienações.
Quer dizer admite-se que os universos simbólicos são passíveis de
cristalização segundo processos de “objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimento”.
Esses processos de cristalização levam a um mundo de produtos teóricos que, porém, não perde
suas raízes no mundo humano de tal sorte que os universos simbólicos se definem como “produ-
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tos sociais que têm uma história” e “se quisermos entender seu significado temos de entender a
história da sua produção”, em termos de objetivação, sedimentação e acumulação do conhecimen-
to, haja vista a “função nômica” do universo simbólico como o que põe “cada coisa em seu lugar
certo”, permitindo ao indivíduo “retornar à realidade da vida cotidiana”.
Tal é o horizonte da análise dos processos de legitimação por
Berger e Luckmann (“A Construção Social da Realidade: tratado de sociologia do conhecimento”,
trad. Floriano Fernandes, Rio de Janeiro, editora Vozes, 1978, 4ªedição, 247 pp. (1ªedição em In-
glês, New York, 1966). Nessa análise se tem em conta que, nas objetivações em que as teorias são
observadas surge a questão de saber “até que ponto uma ordem institucional, ou alguma parte dela
é apreendida como uma faticidade não humana”, e que essa “é a questão da reificação da realidade
social”.
Quer dizer, nessa questão trata-se de saber “se o homem ainda
conserva a noção de que, embora objetivado, o mundo social foi feito pelos homens e, portanto,
pode ser refeito por eles”. É a reificação como grau extremo do processo de objetivação, extremo
esse no qual “o mundo objetivado perde a inteligibilidade e se fixa como uma faticidade inerte”.
Nessa conjectura da reificação como grau extremo da objetivação,
os significados humanos são tidos, então, comoprodutos da natureza das coisas. Quer dizer, a
reificação é uma modalidade da consciência, de tal sorte que, mesmo apreendendo o mundo em
termos reificados o homem continua a produzi-lo - paradoxalmente, o homem é capaz de produzir
uma realidade que o nega.
Em conseqüência a análise visando a integração reflexiva nota que
“a reificação é possível no nível pré-teórico e no nível teórico da consciência”: “os sistemas teóri-
cos complexos podem ser descritos como reificações, embora presumivelmente tenham suas raízes
em reificações pré-teóricas” -“a reificação existe na consciência do homem da rua” e não deve ser
limitada às construções dos intelectuais.
Da mesma maneira, seria “um engano considerar a reificação
como uma perversão de uma apreensão do mundo social originariamente não reificada”: “a apre-
ensão original do mundo social é consideravelmente reificada, tanto filogeneticamente quanto on-
togeneticamente”. Em contrapartida, a apreensão da própria reificação como modalidade da cons-
ciência “depende de uma desreificação ao menos relativa da consciência”, exigência sociológica es-
ta que “é um acontecimento comparativamente tardio” geneticamente falando.
Completando seu esquema analítico, nota-se que as instituições
podem ser apreendidas em termos reificados quando se lhes outorga um status ontológico inde-
pendente da atividade e da significação humanas. Quer dizer, através da reificação “o mundo das
instituições parece fundir-se com o mundo da natureza”. Da mesma maneira, os papéis sociais po-
dem ser reificados, de tal sorte que o setor da autoconsciência que foi objetivado num papel é en-
tão também apreendido como uma fatalidade inevitável (identificação heteropática).
Quer dizer, “a reificação dos papéis estreita a distância subjetiva
que o indivíduo pode estabelecer entre si e o papel que desempenha”. Quer dizer: “a distância im-
plicada em toda a objetivação mantém-se, evidentemente, mas a distância causada pela desidentifi-
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cação vai se reduzindo até o ponto de desaparecer”. A conclusão é de que a análise da reificação
serve de corretivo padrão para as tendências reificadoras do pensamento teórico em geral, e do
pensamento sociológico em particular.
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Introdução
Aspectos da explicação em sociologia:
Teoria sistemática, teoria diferencial e o problema da possibilidade da estrutura.
FIM
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por
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Primeira Parte
Cultura e Objetividade:
Notas sobre Max Weber e Wilhelm Dilthey
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Jacob (J.) Lumier
Primeira Parte
Cultura e Objetividade:
Notas sobre Max Weber e Wilhelm Dilthey
Preliminares
Ao que parece há uma dificuldade prévia anteposta a todo aquele que se propõe refletir e elaborar sobre a
sociologia da cultura e que é um obstáculo relevante do aparente desacordo no tratamento e na definição do
campo diferencial do material que lhe corresponde.
No século XX a reflexão sobre a cultura foi exercida
tanto no marco de uma sociologia dos modelos sociais quanto a partir dos fatos de
linguagem. Por um lado, pensadores influentes como Theodor W. Adorno, Walter
Benjamim e à sua maneira Herbert Marcuse nos transmitem a imagem de que a socio-
logia da cultura encontra seu material no impacto das técnicas sobre as artes, a litera-
tura, a vida intelectual e a moralidade. Em conseqüência a sociologia deve por isso ser
exercida como crítica da cultura, tanto mais necessária quanto foi contundente desde
os anos vinte a influência de autores e polemistas como Oswald Spengler e sua obra
A Decadência do Ocidente, que nos ofereceram uma visão pessimista e altamente elabo-
rada do impacto das técnicas.
Por outro lado, buscando certa distinção entre cultura
e civilização, vê-se outra corrente de interpretação nos dizendo que há uma demarca-
ção entre natureza e cultura a ser posta em relevo não nos utensílios, mas na lingua-
gem articulada: linguagem e sociedade sendo pois as duas faces dessa distinção. Con-
sideram os autores dessa corrente que a civilização material e técnica não deve ser
incluída na definição de cultura. A técnica como uso de utensílios já seria encontrada
entre os animais superiores enquanto que a cultura é coisa propriamente humana, um
traço distintivo da humanidade, abrangendo os conhecimentos, a crença, a arte, a
moral, o direito, os costumes e todas as aptidões adquiridas pelo homem como
membro da sociedade. Insistem os autores dessa tendência na importância do critério
da linguagem, supondo incluído nela como coisa propriamente intelectual os fatos de
ordem afetiva, os sentimentos se misturando com freqüência às idéias.
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A respeito disso, como emblema dessa tendência parti-
cular de sociologia da cultura, há sobre a linguagem um curioso raciocínio espacial do
antropólogo-social Claude Lévy-Strauss em que, muito mais do que sua serventia
como meio para descrever experimentos físicos (
29
), atribui à imagética o valor de-
monstrativo de argumento conclusivo para uma tese científica. Trata-se de uma pro-
posição imaginária em que esse influente autor se refere a uma situação no espaço
onde, em um planeta desconhecido imaginamos encontrar seres vivos que fabricam
utensílios: “nem por isso teremos a certeza de que eles se incluem na ordem huma-
na...”. Imagine-se agora que esbarramos com seres vivos que possuem uma linguagem
por mais que essa linguagem seja diferente da nossa, mas que seja traduzível na nossa
linguagem revelando seres com os quais podemos nos comunicar: estaríamos então
na ordem da cultura e não mais na ordem da natureza. Nessa imagética fora de lugar,
a linguagem seria então ela própria e sem condição prévia o fato cultural por excelên-
cia e a sociologia da cultura passaria a estudar o que chamam as formas da cultura - o
conhecimento, a própria linguagem, a arte e a literatura, a religião – tomadas como
representações coletivas, porém entendidas estas segundo uma versão sui generis. Ou
seja, as representações coletivas constituídas naquelas assim chamadas formas da cul-
tura representam a orientação sobre o termo ideologia tirada do antropólogo-social C.
Lévy-Strauss, pela qual não se deve crer que as transformações ideológicas gerem as
transformações sociais, mas que somente a ordem inversa é verdadeira: a concepção
que os homens formam para si das relações entre a natureza e a cultura é função da
maneira como se modificam as suas próprias relações sociais.
Seja como for, quer estudemos a sociologia da cultura
sob essa tendência pró fatos da linguagem, quer privilegiemos a corrente pró crítica
da cultura, ambas influentes no século XX, poderemos lamentar que, tanto em uma
quanto em outra, as referências à Renascença restam tópicas, parecendo desligadas de
uma reflexão de conjunto voltada para reencontrar a autonomia do mundo da cultura.
Reflexão esta que sem dúvida faz falta a quem lê esses autores, caso se pergunte sobre
tal dualidade aparente de orientações e se a mesma poderá ser ultrapassada em abor-
dagem mais aprofundada, notadamente se tivermos em conta que os estudos da Re-
nascença acentuam a diferenciação de um mundo da cultura justamente como o fato
novo definindo aquela época, ou melhor, definindo essa época a que somos vincula-
dos à medida mesma em que, por ambigüidade, nos aproximamos e nos distanciamos
da história passada.
29 Quem não está lembrado da importância de imaginar um observador movendo-se em meio aos igualmente
imaginados trens em movimento para compreender as descrições experimentais da teoria da relatividade?
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Em qualquer maneira, não há negar que a utilização da
expressão sociologia da cultura encabeçando este nosso ensaio suscita de chofre um
problema prévio a toda a verificação de conteúdo passível de atribuir-lhe, suscita um
problema de metodologia cujo esclarecimento nos permitirá afirmar se há uma disci
plina específica nos termos de tal expressão ou se a mesma é o equivalente de socio-
logia das obras de civilização (
30
).
***
30
No Tratado de Sociologia Vol. II, Georges Balandier assina um esclarecedor ensaio/artigo intitulado
“Dinâmica das Relações Exteriores das Sociedades Arcaicas” em que, apreciando “Os Estudos de Contatos
Culturais”, nos mostra haver um uso específico e particular aos antropólogos e etnólogos da noção de cultura
e da noção de civilização, que são termos por eles utilizados em maneira equivalente um ao outro e
estritamente vinculados aos problemas da realidade colonial, como implicando os contatos culturais. As
noções de cultura e de civilização se referem então aos modelos postos em cotejo nesses estudos, que são
voltados para o conhecimento específico das sociedades tradicionais dependentes. Portanto, sob este aspecto,
esse uso das noções mencionadas não interessa à sociologia das obras de civilização senão como sociologia
aplicada, nada tendo a ver diretamente com o assunto do nosso ensaio.
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PRIMEIRA PARTE: MAX WEBER
A cultura é um segmento de significação que permanece irredutível à natureza e qualquer proposição de retor-
no à natureza é absolutamente contrária a uma civilização concreta.
Dentre os pensadores do início do século XX, é com
Max Weber que se consagrou a noção de cultura no âmbito da sociologia como sen-
do algo mais do que um modelo social. Em sua notável obraA Objetividade do
Conhecimento”, a noção de cultura aparece na seqüência de uma argumentação rejei-
tando qualquer mérito ao estudo que se pretenda objetivo dos eventos culturais e que
seja voltado para efetuar a redução da realidade empírica ao plano das leis de explica-
ção. Max Weber reconhece a equiparação entre os eventos culturais e os fenômenos
de ordem mental. Não obstante isso, toma por pouco relevante a proposição de que a
insuficiência de uma redução da realidade empírica a leis causais sociais possa decor-
rer em razão do baixo grau de legalidade ou regularidade desses fenômenos mentais.
Acrescenta o seguinte: 1) – que o conhecimento das leis sociais não é um conheci-
mento da realidade social, mas é um meio utilizado pelo pensamento em vista de tal
efeito; 2) – que o conhecimento dos eventos culturais se funda na significação que a
realidade da vida possui aos nossos olhos, sendo essa realidade sempre estruturada de
maneira singular bem como são igualmente singulares as relações em que a realidade
aparece aos nossos olhos como dotada de significação; 3) – que, estando vedado a
qualquer lei de explicação causal revelar o sentido e as condições em que é possível
conceber um conhecimento dos eventos admitidos como culturais, é por contra acei-
te por Max Weber que este problema se decide em virtude das idéias de valor. Quer
dizer, a possibilidade de um conhecimento do cultural depende dessas idéias de valor
já que é sob essas idéias especiais que a cultura nos casos particulares vem a ser cada
vez considerada por Nós (
31
)
.
31 Este
Nós
que Max Weber menciona é o que se apreende e se afirma desde o ponto de vista do homem como
tal, sendo daí que ele apresenta sua definição de cultura como um segmento finito
investido pelo pensamento
de uma significação e de uma importância no seio do porvir mundial
infinito
e estranho a toda a significação.
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Esse segmento de significação – a cultura – permanece
assim irredutível e não admite nenhum retorno originário à natureza, sendo a propo-
sição deste retorno à natureza absolutamente contrária a uma civilização concreta.
Quer dizer, Max Weber argumenta contra um interlocutor imaginário supondo-o
defensor do retorno à natureza (
32
) e o faz com a finalidade de pôr em relevo a reci-
procidade das idéias de valor a que se liga sua definição. A cultura resta um segmento
de significação, pois o defensor do retorno à natureza só pode adotar essa atitude
referindo a civilização concreta à qual ele se opõe às suas próprias idéias de valor,
sendo estas, por sua vez, que lhe fazem encontrar aquela fútil. Trata-se na cultura ou
nesta definição weberiana de cultura de uma condição puramente lógica e formal,
como ele próprio o declara. Condição esta que seria visada ao se dizer que todas as
individualidades históricas são ancoradas de maneira logicamente necessária nas idéias
de valor.
Mas não é tudo. Essa definição da cultura em casos
particulares como segmento de significação baseado na reciprocidade das idéias de
valor aparece como decisiva para a conclusão de Max Weber afirmando a pressuposi-
ção transcendental de toda a ciência da cultura, a respeito da qual esse autor nos dirá
consistir no fato de os Nós dos homens afirmarem-se como seres civilizados, dotados
da capacidade e da vontade de tomar conscientemente posição em face do mundo e
lhe atribuir um sentido.
Nos seus esclarecimentos complementares é-nos dito
que é com base nesse sentido atribuído seja lá qual for que alguém é conduzido a
portar os ajuizamentos sobre certos fenômenos da coexistência humana, a respeito
dos quais, segundo Max Weber, também se é conduzido a tomar uma posição signifi-
cativa que tanto pode ser positiva ou negativa. Nessas formulações se vê então não só
32 Neste seu recusar a proposição do retorno originário à natureza Max Weber assinala um problema dos anos vinte
que um antigo freqüentador dos círculos weberianos como Ernst Bloch tratará com espírito crítico mais
aprofundado ao examinar o legado do passado dentro do processus histórico e sustentar a tese de que, como matéria
das contradições contemporâneas, o legado do passado não pode ser adequadamente contemplado caso o
enfoque seja limitado ao capitalismo como ao presente em seu estágio último. Na análise blocheana do
tradicional como positividade há que distinguir uma outra matéria diferenciada: a matéria de uma contradição
que se rebela a partir de forças produtivas absolutamente não-desencadeadas: que se rebela a partir de
conteúdos intencionais de uma espécie que permanece sempre não-contemporânea. O fundamento da
contradição não-contemporânea é o conto irrealizado do bom velho tempo, o mito literário, a lenda fabulosa
mantida sem solução do velho ser obscuro da natureza. Nessa lenda fabulosa se encontra um passado não superado
desde o ponto de vista do desenvolvimento das oposições econômicas, mas sob o aspecto material também é
um passado que não foi ainda dignificado como passado. Cf. Bloch, Ernst:
Héritage de ce Temps
(Erbschaft dieser Zeit, Zürich, 1935), tradução de Jean Lacoste, Paris, Payot, 1978, 390 pp.
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o estabelecimento de uma ligação conceitual entre as noções de seres civilizados, po-
sição, atribuição de sentido, mas essa ligação surge como o que efetivamente esclarece
sobre a definição de cultura como condição puramente lógica e formal, dando-lhe
uma dimensão transcendental ou permitindo opor em termos absolutos uma civiliza-
ção concreta à veleidade de regresso à natureza.
Daí, qualquer que seja o conteúdo da tomada de posi-
ção significativa, os fenômenos da coexistência humana são tais porque têm aos nos-
sos olhos uma significação cultural. Ademais, o que Max Weber chama condicionali-
dade do conhecimento cultural pelas idéias de valor reflete o alcance da significação
cultural como o que funda o interesse científico de tais fenômenos à exclusão do ca-
ráter de que sejam fenômenos puramente notáveis: desta sorte, a prostituição é um
fenômeno cultural tanto quanto a religião ou o dinheiro - nos dirá Weber em seu
relativismo culturalista. Portanto, nessa argumentação se acentua que a condiciona-
lidade pelas idéias de valor é proposta na referência do uso pelos lógicos modernos:
os fenômenos culturais são tais unicamente para a razão e unicamente porquanto sua
existência e a forma que assumem historicamente tocam diretamente ou indiretamen-
te aos nossos interesses culturais. Em termos operativos, a definição de cultura é des-
dobrada nos critérios do fenômeno cultural como instigando nossa curiosidade inte-
lectual, já que essa curiosidade procede igualmente dos pontos de vista das idéias de
valor, sendo estas que enfim imprimem uma significação ao segmento de realidade
entendido sob os conceitos de prostituição, religião ou dinheiro. Quanto à noção de
civilização, compreende a mesma o campo dos fenômenos da coexistência humana,
haja vista falar-se de uma civilização concreta, ou melhor, no sentido weberiano, par-
ticular.
Com referência à análise da racionalização e em especial no tocante à Renascença, a utilização aplicada do
termo “cultura” em Max Weber se diferencia em certo aspecto da religião já que “afirma a noção de bens de
civilização sem alcance religioso imediato”.
Com efeito, Max Weber ganhou o prestígio de um
mestre da sociologia pela notável influência de suas análises sobre a civilização oci-
dental cujo fenômeno peculiar examinou na racionalização por vezes associada à no-
ção de intelectualização, mas que compreendeu em definitivo como o resultado da
especialização científica e da diferenciação técnica, no dizer do weberianista Julien
Freund. Essa racionalização consiste na organização da vida por divisão e coordena-
ção das diversas atividades com base em estudo preciso das relações entre os homens
e das relações com seus instrumentos e seu meio, visando maior eficácia e rendimen-
to. Max Weber teria ainda caracterizado essa racionalização como um refinamento
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engenhoso da conduta e um domínio crescente do mundo exterior analisando-a em
sua evolução através da religião, do direito, da arte, da ciência, da política e da eco-
nomia. Sob o aspecto da intelectualização progressiva da vida, a racionalização despo-
ja o mundo de seus encantos e de sua poesia: é desencanto. O mundo se torna como
a obra artificial do homem, que o governa como se comanda a uma máqina. Julien
Freund nos lembra uma certa afinidade de Max Weber com Jacob Burckhardt, quem
pôs em relevo a racionalidade na Renascença dando ênfase à perspectiva em arte e
simbolizando o Estado constituido pelas cidades italianas livres como obra de arte.
De fato, na sua influente e polêmica obra "
A Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo
", Max Weber inicia com uma série de
observações sobre a racionalização na civilização ocidental, destacando o legado da
Renascença neste particular, já que o método experimental é um produto da Renas-
cença sem o qual nem a medicina teria fundamento biológico e bioquímico, apesar de
utilizar uma técnica empírica avançada, pois uma química racional só veio a se conhe-
cer na civilização ocidental.
Mas não é tudo. Nessa mesma obra Max Weber lem-
bra-nos novamente a Renascença quando o assunto é o aparecimento da música ra-
cionalmente harmônica – contraponto e harmonia – ou a própria racionalização tida
hoje por clássica da arte no seu conjunto, notando em pintura a utilização racional da
perspectiva. Além disso, a cultura da Renascença tem em Max Weber uma referência
de destaque em sua análise do ascetismo racional. Quer dizer, ao observar que nas
polêmicas teológicas se dava mostra de erudição e alusões clássicas, assinala o ideal
do puritano como não implicando desprezo pela cultura, ainda que se verificassem
tomadas de posição desconfiadas ou até hostis aos bens de civilização sem alcance
religioso imediato. O ideal do puritano em relação à cultura acolhe de bom grado a
ciência, fazendo exceção da escolástica. Podemos então registrar nessa passagem,
com referência à análise da racionalização e em especial no tocante à Renascença, que
o uso aplicado do termo cultura em Max Weber se diferencia em certo aspecto da
religião já que afirma a noção de bens de civilização sem alcance religioso imediato.
Noção esta que, compondo uma imagem da Renascença como foco do moderno,
Max Weber tornará a frisar em suas célebres conferências sobre “
Le Savant et le
Politique
”, sobretudo o alcance da experimentação racional tornando possível a ci-
ência empírica moderna, no seu dizer foi a Renascença que elevou a experimentação
ao estatuto de um princípio da pesquisa como tal. Antes de passar às ciências esse
procedimento encontra paralelo no domínio da arte com Leonardo da Vinci e seus
pares e, em maneira característica, no domínio da música como dissemos, em que
Max Weber homenageia os “experimentadores do cravo” no século XVI, tendo sido
sob a influência de Galileu que esse procedimento de experimentação controlada se
torna o grande instrumento da atividade científica – estendendo-se ao campo da teo-
ria com Bacon para ser adotado nas universidades, sobretudo em Itália e nos Países
Baixos.
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No pórtico dos tempos modernos a ciência aparecia
aos olhos dos homens da Renascença como o caminho que conduz à arte verdadeira,
interpretado por Max Weber como o caminho que conduz à verdadeira natureza.
Quer dizer esse autor nos sugere ter sido essa ligação entre arte e ciência, ambas pro-
cedendo da mesma idéia de Natureza como acessível à experimentação, que está na
base da convicção renascentista elevando em ideal e em realidade o artista ao nível de
um homem douto. Fato este observado na sociedade da Renascença, onde os artistas
assumiam por eles mesmos essa convicção e onde a ambiência social lhes reservou
um lugar de prestígio.
Se a incredulidade moderna é tirada do culto da Renascença pelos heróis, lembrando-nos inclusive o florentino
Maquiavel, Max Weber nega que o problema da ética seja um apanágio dessa mesma Renascença.
Mas não é tudo. A afinidade de Max Weber com Jacob
Burckhardt pode ser acompanhada na revalorização dos humanistas, na utilização da
imagem positiva destes por Max Weber que, em suas análises dos tipos sociais dos
letrados, lembra-nos do humanista da Renascença não só como paradigma de um
tempo onde se aprendia a fazer discursos em latim e poesias em grego a fim de se
tornar conselheiro político e sobretudo historiógrafo de um príncipe, mas também
como caracterizando um fino letrado que recebeu uma educação humanista ao entrar
em contato com os monumentos linguísticos do passado longínquo. Há outras passa-
gens em que a imagem da Renascença como foco do moderno serve de apoio a Max
Weber para contrarrestar sua análise da especialização da ética como favorecendo a
organização da política em atividade perfeitamente consequente, submetida às suas
próprias leis e sempre mais consciente dela mesma. Quer dizer, se a incredulidade
moderna é tirada do culto da Renascença pelos heróis, lembrando-nos inclusive o
florentino Maquiavel, Max Weber nega que o problema da ética seja um apanágio
dessa mesma Renascença. Tanto que sua análise da especialização da ética é compa-
rativamente referida ao quadro de conjunto de todas as religiões.
Retornando aos aspectos metodológicos da noção de
cultura e da utilização aplicada da mesma pode-se observar em Max Weber e em sua
obra monumental “
Economia e Sociedade
” certa equiparação da noção de cultura à
ordem simbólica. É o que nos sugere Pierre Bourdieu ao nos mostrar que, na análise
weberiana da assim chamada “ordem propriamente social”, todos os traços atribuídos
ao grupo de status pertencem à ordem simbólica. Por cultura se compreende então o
conjunto das convenções portadas pelos grupos desse tipo nas sociedades tradicio-
nais ou à exemplo dessas sociedades. Trata-se de uma noção utilizada na descrição da
funcionalidade desses grupos de status e de sua influência e que inclui, portanto, além de
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modelos de comportamento, as regras convencionais que definem a maneira justa de
executar os modelos. Segundo esse autor, na análise da assim chamada “ordem pro-
priamente social” Max Weber atribui a cada grupo de status como camponeses, buro-
cratas, guerreiros, intelectuais certas propriedades que Bourdieu chama trans-
históricas ou transculturais tais como certa atitude diante do mundo ou certo tipo de
religiosidade. Desta forma a cultura como ordem simbólica inclui um estilo de vida
ou de privilégios honoríficos – por exemplo: o uso de vestimentas características, o
consumo de iguarias específicas proibidas a outros, o direito de se dedicar a práticas
artísticas, etc. – bem como as regras e proibições que regulam certas trocas sociais
como dentre outras o casamento. Segundo Bourdieu, a funcionalidade dessa noção
mais etnológica de cultura a que já nos referimos (ver nota “1”) está em acentuar a
autonomia parcial da ordem social em relação à ordem econômica, já que tal autono-
mia deriva da possibilidade inerente à ordem social para desenvolver a sua própria
lógica como universo de relações simbólicas – definindo-se esta ordem como modo
de distribuição do prestígio social. Bourdieu nos sugere então que o aproveitamento
da noção de cultura em Max Weber conduz ao conceito de certa lógica da simboliza-
ção da posição social que, nessa linha de interpretação, é equivalente à lógica da estru-
tura social, posto tratar-se de uma lógica da distinção.
Neste ponto pode-se notar que o aproveitamento des-
sa noção mais etnológica de cultura baseia-se em simplificações e atribuições perfei-
tamente arbitrárias, com o sistema social sendo reduzido a uma lógica da inclusão e
da exclusão sem referência aos quadros sociais específicos e valendo em maneira abs-
trata para qualquer estrutura social, como se as lógicas sociais não sofressem varia-
ções em função de quadros sociais precisos e dos tipos de sociedades globais, como
se aprende com Durkheim e seus colaboradores (
33
). Sem dúvida, essa orientação
33
Contra a tese que pretende separar análise estrutural e análise histórica, Georges Gurvitch sustenta que o proce-
dimento de apreciar em um só conjunto e aí contrapor grupo e estrutura na análise sociológica é válido, não só
para agrupamentos de grande envergadura, como os estratos numa classe social, os desempregados, os produ-
tores e os consumidores, mas para os agrupamentos particulares funcionais, já que: 1) - não pode deixar de ha-
ver certa semelhança entre grupo e estrutura, sendo característica de todos os agrupamentos o fato de serem
estruturáveis, como já mencionado; ademais, a possibilidade de uma estrutura não se confunde, e não é nem
estruturação, nem estrutura adquirida; 2) - num grupo não-estruturado, as relações com os outros grupos e
com a sociedade global ficam fluidas; 3) - é somente quando começa a estruturação que essas relações se tor-
nam precisas, quer dizer, que se coloca toda uma série de questões a propósito de como o grupo se integra na
sociedade global e da medida da sua tensão com os outros grupos; 4) - por isso, assinala Gurvitch, os mesmos
grupos específicos podem adquirir estruturas variadas em função da sua integração nos diversos tipos de soci-
edades globais, como o grupo familiar, que ora é família doméstica, ora é família conjugal, ora é família-lar;
como, igualmente, o grupo profissional, que ora aparece fazendo parte da família doméstica, ora identificado a
uma confraria mágica, ora fazendo um todo com uma casta, ora tomando o caráter de uma associação voluntá-
ria, etc.; 5) - por fim, é indiscutível que um grupo não-estruturado em um tipo de sociedade global, como é o
caso das indústrias, o dos consumidores, ou, ainda, o dos estratos tecnocráticos, em regime de capitalismo
concorrencial, pode vir a estruturar-se muito fortemente noutros tipos de sociedades globais, como é ainda o
caso dos grupos mencionado uma vez postos sob o regime do capitalismo dirigista. Ver GURVITCH, Geor-
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abstrata revela a dificuldade própria ao aproveitamento da noção de cultura em Max
Weber impregnada do neokantismo e da filosofia da história de Heinrich Rickert,
tanto que Georges Gurvitch situa Max Weber na confusa e equivocada corrente do
culturalismo espiritualista, pondo em relevo tal dificuldade. Os pré-conceitos espiritu-
alistas intervindo indevidamente no âmbito da sociologia consistem não só em consi-
derar todas as ciências sociais como ciências da cultura, mas são igualmente afirmados
lá onde se atribui aos modelos, regras, idéias e valores o papel de fatores predominan-
tes, estabelecendo as significações internas das condutas sociais como ligadas às signi-
ficações e valores culturais, de tal sorte que um lugar proeminente na sociologia vem
a ser concedido às sistematizações das significações culturais feitas pelos teólogos,
juristas, moralistas, etc. Gurvitch sublinha que no culturalismo de Max Weber a so-
ciologia da religião, do Direito, etc. deve limitar-se ao estudo das repercussões unila-
terais dos encadeamentos dos dogmas, das normas, dos valores – elaborados por
ciências sociais particulares – sobre as condutas sociais que os realizam, relegando o
problema das correlações funcionais recíprocas para um nível implícito (
34
). Nessa
crítica, a dificuldade maior no aproveitamento da sociologia de Max Weber é sua in-
capacidade para apreender as totalidades concretas e não ver que a compreensão e a
explicação são apenas momentos do mesmo processus, a tipologia qualitativa não
podendo ser aplicada no vazio, mas exigindo apreender a sociedade, os grupos, as
classes, os Nós, bem como as suas obras diretas
35
.
***
ges (1894-1965): “
A Vocação Actual da Sociologia - vol.I: na senda da sociologia diferencial
”, tradução
da 4ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp. (1ªedição em Francês: Paris,
PUF, 1950).
34
Ver neste e-book o artigo Culturalismo e Sociologia.
35
E Gurvitch acrescenta: toda a explicação pressupõe a integração em um conjunto que compreendemos e toda a
compreensão é precisamente a apreensão das significações que se inserem nesse conjunto.
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SEGUNDA PARTE: WILHELM DILTHEY
Somente uma inovadora fundamentação epistemológica e lógica diferente que tenha princípio na relação especial
do conhecimento e da realidade histórico-social pode suprir as lacunas que existem todavia entre as ciências
particulares das unidades psicofísicas e as ciências da economia política, do direito, da religião e outras.
Note-se que o posicionamento culturalista de Max We-
ber não encontra respaldo em Wilhelm Dilthey, o fundador das Ciências da Cultura,
em cuja obra não ocorre atomização da realidade social em coleções de condutas in-
dividuais, nem tampouco a dissolução das obras de civilização em nominalismo ou
doutrina de especialistas. Longe do pensamento diltheyano a concepção própria do
culturalismo abstrato de que as condutas individuais tornam-se sociais unicamente na
medida em que sejam orientadas para as condutas de outras pessoas, com a ajuda das
significações internas ou subjetivas.
A apreensão das totalidades dispensa a interpretação do sentido interno das condutas para chegar à construção
dos tipos sociológicos.
Segundo Gurvitch, não há dúvida de que o problema
da compreensão foi formulado por Dilthey, quem empregou esse termo para dizer
“apreensão direta”, intuitiva, relativamente às totalidades reais concretas e às signifi-
cações humanas correspondentes. Quer dizer, a apreensão das totalidades dispensa a
interpretação do sentido interno das condutas para chegar à construção dos tipos
sociológicos, incluindo a apreensão de significações enxertando-se por vezes nessas
totalidades e fazendo parte delas. A interpretação dessas significações apreendidas é
particularmente importante para a construção dos tipos de sociedades globais, sendo
nesses tipos que os problemas das civilizações ou das obras de civilização estão por
sua vez implicados. Aliás, é com base na interpretação dessas significações apreendi-
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das que se elaboram os ramos da sociologia das obras de civilização (
36
) que Gurvitch
enumera como segue: 1) – sociologia dos sinais, dos símbolos, das idéias e valores
(incluindo as suas diferenciações, as suas combinações, as suas hierarquias variáveis
em função de tipos sociais diversificados); 2) – sociologia do conhecimento; 3) – so-
ciologia da religião; 4) – sociologia da moral; 5) - sociologia do direito; 6) – sociologia
da arte; 7) – sociologia da linguagem; 8) - sociologia da educação. Portanto, essa ori-
entação afirma a importância não da filosofia da história, mas da esfera simbólica e,
nesse domínio a relevância da análise filosófica como indispensável para permitir
reencontrar na realidade social os fenômenos específicos do conhecimento, da moral,
da religião, do direito, etc., bem como para estabelecer os esquemas classificatórios
que servem de referência à investigação sociológica.
Em sua orientação pró-realista, Dilthey se distancia tanto da “corrente histórica” quanto da “corrente abstra-
ta” – as duas correntes de conhecimentos universitários mais influentes na vida acadêmica das universidades
alemães, no período do liberalismo, entre 1870 e 1914.
Essa orientação pró-realista é bem expressa na
Intro-
dução às Ciências do Espírito
37
, na qual Dilthey em bom contemporâneo de sua
época se distancia das duas correntes de pensamento então predominantes nos salões
intelectuais e na vida acadêmica das universidades alemães no período do liberalismo,
entre 1870 e 1914. Segundo este pensador, na chamada “escola histórica” notava-se
conforme sua procedência no romantismo o erro de fugir do mundo da abstração
para refugiar-se no “sentimento profundo” da chamada realidade viva, tida esta como
poderosamente irracional ultrapassando todo o conhecimento adquirido segundo o
princípio de razão suficiente. Em maneira complementar, este filósofo e historiador
da filosofia se distancia igualmente da chamada “escola abstrata”, cujo erro registra
como consistindo em descuidar a relação dos abstratos conteúdos parciais com o
todo vivo e em tratar de maneira finalística essas abstrações como realidades.
36
Impropriamente chamada “sociologia do espírito” para diferenciar dos materialismos.
37
Ver DILTHEY, Wilhelm: “
Introducción a las Ciencias del Espíritu: em la que se trata de fundamentar el
estudio de la sociedad y de la historia
”, tradução e prólogo por Eugenio ÍMAZ , México, Fondo de
Cultura Económica, 1944, 485 pp. (1ªedição em Alemão, 1883).
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A realidade da vida histórico-social está escondida sob a bruma de certas entidades abstratas tais como a arte,
a ciência, o Estado, a sociedade, a religião.
Trata-se nessas correntes equivocadas de duplo erro
que tem a ver com a dificuldade própria para alcançar a realidade da vida histórico-
social, a qual, segundo Dilthey está escondida sob a bruma de certas entidades abstra-
tas tais como a arte, a ciência, o Estado, a sociedade, a religião. Em face dessa dificul-
dade para chegar à vida histórico-social esse pensador apresenta sua metodologia em
vista de
ensinar a ver
, comunicando-nos inicialmente o que podemos chamar seu
esquema sobre
a dinâmica da realidade social
, pelo qual nos introduzirá no estudo
diferenciado do plano das unidades delimitadas e do plano dos objetos de análise social, toma-
dos como os dois planos básicos da realidade. Essa introdução toma em conta por
sua vez a existência de dois processus sociais seguintes: 1) – o processus de articula-
ção social, no âmbito do qual se conjugam (a) – não só a combinação do que Dilthey
chama por um lado os efeitos pequenos e por outro lado os grandes efeitos, (b) – mas, i-
gualmente, a combinação das relações permanentes entre os indivíduos, por um lado, e das
formações permanentes existentes de antemão, por outro lado; 2) – o processus de homoge-
neidade e comunidade que, surgindo da articulação social alcança os grupos menores e
os grupos maiores.
O campo dos estudos começa pois em referência dessa
homogeneidade e objetiva primeiro o plano dos diversos povos ou unidades delimita-
das; segundo, o plano das formações permanentes ou objetos de análise social, que
Dilthey define em maneira dinâmica como “um fim permanente que promove atos psíquicos
(intuições, juízos)”, isto é, compreende uma intervenção, com seus grandes efeitos no
âmbito da reciprocidade dos indivíduos interacionados ou interpenetrados, cujos pe-
quenos efeitos asseguram essa interpenetração
38
.
38
Sobre isto, Dilthey nos lembra o processamento a partir do século XVII do movimento inovador em
efervescência cultural conhecido por “
Sturm und Drang
”.
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O desenvolvimento da ciência da estética tão ao gosto do sentimentalismo da corrente histórica, não é possível
sem referência às ciências da moral ou às da religião, afirmando a conexão viva que liga a origem da arte e o
fato ideal.
Nesse esquema complexo, o estudo do primeiro plano
leva a distinguir o que Dilthey chama os sistemas culturais na sociedade, enquanto no
segundo plano se descobre a organização externa. A esta organização externa corres-
pondem três âmbitos, respectivamente, (a) – os Estados, (b) – as associações, (c) – a
trama das vinculações permanentes das vontades segundo relações de prestígio, dependência, proprie-
dade, comunidade – sendo que a amplitude dessas últimas relações tipo estratificação
aparece a Dilthey como sendo mais estreita que a amplitude da sociedade e como
estando em oposição ao âmbito dos Estados. Temos, então, em correspondência aos
dois planos, as Ciências da Cultura e as Ciências do Estado, havendo uma relação
constante das verdades entre essas duas “classes de ciência”, bem como dentro de
cada uma. Para Dilthey o desenvolvimento da ciência da estética tão ao gosto do sen-
timentalismo da corrente histórica, não é possível sem referência às ciências da moral
ou às da religião, afirmando a conexão viva que liga a origem da arte e o fato ideal.
Com efeito, na análise diltheyana a ciência se utiliza do
princípio de razão suficiente, pelo qual se busca primeiro determinar certas correlações
funcionais – como se diria em sociologia do conhecimento – ou no dizer de Dilthey “as
dependências” entre os diversos elementos psíquicos ou psicofísicos formadores da
conexão de fim, tomada esta em sua efetividade como fusionando os indivíduos intera-
cionados; segundo: determinar a maneira como se condicionam uns aos outros esses
elementos e suas propriedades. Acresce que esses elementos são conscientes e em
certo grau podem se expressos em palavras, ou seja, mediante proposições e concei-
tos. Alcança-se então o nível propriamente epistemológico, em que Dilthey argumen-
ta sua distinção a respeito da “escola abstrata” mostrando que a possibilidade de se
pronunciar verdades, enunciados de conteúdo efetivo ou pronunciar regras: 1) – de-
pende do modo pelo qual os elementos psíquicos se acham entrelaçados naquela co-
nexão de fim; 2) – depende da pertinência predominante desses elementos psíquicos,
seja ao pensamento, ao sentimento, à vontade. Segundo Dilthey, no conjunto das
proposições e conceitos científicos nota-se não só a diversidade da natureza das pro-
posições, mas a essa diversidade corresponde a do enlace dessas proposições em refe-
rência das dependências que a ciência encontra nelas. Quer dizer, a epistemologia é
fundada no princípio de razão suficiente e esses enlaces das proposições e das depen-
dências verificadas não podem ser tomados como unicamente lógicos. Caso contrário
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se incorreria no erro da escola abstrata que, ao impor o nível lógico como único, leva a
reduzir todas as atividades orientadas para um fim à razão e ao pensamento. Desta
forma, Dilthey define que a expressão sistema lhe serve para designar a conexão de fim,
tal como entendida neste modelo de dependências dinâmicas.
A epistemologia é fundada no princípio de razão suficiente e os enlaces das proposições e
das dependências verificadas não podem ser tomados como unicamente lógicos.
A exposição diltheyana da metodologia de análise dos
sistemas culturais é orientada para pôr em relevo o problema das lacunas existentes
entre as ciências particulares das unidades psicofísicas – baseadas na análise psicológi-
ca – e as ciências da economia política, do direito, da religião e outras, como ciências
da cultura. Inicialmente, se distingue dois tipos de dependências ou correlações. Um é
o tipo que releva da teoria geral de um sistema e se dá por referência às relações funda-
mentais que são próprias a esse sistema em modo uniforme em todos os seus pontos:
é chamado tipo generalíssimo. Assim, no caso de um sistema como o da religião, o tipo
generalíssimo inclui o seguinte: 1)- as dependências entre os fatos do sentimento reli-
gioso e os da dogmática e os da concepção filosófica do mundo; 2) – as dependências
entre os fatos desse sentimento religioso e os do culto e os da sociedade religiosa.
Mas não é tudo. Na exposição diltheyana o mesmo tipo generalíssimo de dependência
pode ser observado, por exemplo, no âmbito da economia política pela relação de
que, ao influir na valorização dos produtos da terra, o distanciamento dos locais de
mercado condiciona a intensidade da agricultura. Finalmente, quanto ao outro tipo de
dependências, trata-se de um âmbito mais restrito e inclui as dependências que se dão
entre as modificações das propriedades gerais de um sistema que constituem uma
figura particular do mesmo.
A efetividade do incremento histórico é assimilada em graus nas várias formas de certeza científica.
Nada obstante, Dilthey chama a atenção para o fato de
que os sistemas culturais assentam em conteúdos psicofísicos e de que os conceitos
correspondentes a esses conteúdos são de segunda ordem, em comparação com os da
psicologia individual. Há uma distinção por efeito do
incremento histórico
entre o
conteúdo fundamental estudado pela psicologia e constitutivo da base da análise do
sistema, por um lado, e por outro lado os fatos complexos. As várias formas de certeza cien-
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tífica absorvem esta distinção ou efetividade do incremento histórico em graus. Pri-
meiro: ao nível da percepção, a efetividade do incremento histórico é assimilada co-
mo convicção da realidade; segundo: ao nível do pensar, como evidência; terceiro: ao nível
do conhecer segundo o princípio de razão suficiente, como consciência da necessidade.
Por sua vez, são os conceitos psicofísicos que constituem a base da análise, isto é, em
economia política, por exemplo, os conceitos tais como “escassez, economia, traba-
lho , valor, etc.”. Desta sorte, os fatos dos sistemas da cultura só podem ser estuda-
dos unicamente por meio de fatos acessíveis à análise psicológica. Em outras pala-
vras, na metodologia diltheyana há uma dependência dos conceitos das ciências da
cultura em relação à análise psicológica que Dilthey aprecia como uma dependência
embrulhada ao extremo. No seu entender, somente uma inovadora fundamentação
epistemológica e lógica diferente que tenha princípio na
relação especial do conhe-
cimento e da realidade histórico-social
(
39
) pode suprir as lacunas que existem
todavia entre as ciências particulares das unidades psicofísicas e as ciências da eco-
nomia política, do direito, da religião e outras.
Com efeito, tal relação especial do conhecimento e da
realidade histórico-social será tornada mais transparente com a tomada em considera-
ção do que Dilthey chama as ciências do Estado, bem como mediante a colocação em
relevo da complementaridade destas ciências do Estado e das ciências da cultura. Para
esse pensador, não se pode olvidar a relação que mantêm os conteúdos parciais artifi-
cialmente destacados pelas ciências com o organismo da realidade em que pulsa a
vida mesma. E acrescenta: a mais desse não-olvidar, é exigido assumir essa relação
com a realidade viva para que o conhecimento possa estabelecer a forma exata dos
conceitos e proposições, bem como atribuir-lhes seu valor cognoscitivo adequado.
Na falta da consciência metodológica de tal relação e na falta de sua colocação em
obra não se poderiam desenvolver as verdades da ciência da estética que, como vi-
mos, são para Dilthey referidas às da moral e às da religião.
Portanto, em vista de pôr em relevo a complementari-
dade entre as duas classes de ciência, Dilthey examina as ciências do Estado come-
çando sua exposição por rejeitar a hipótese de que a interação transcorra somente no
âmbito da ligação dos atos psíquicos em um sistema cultural. Se assim fosse – argu-
menta nosso autor – ainda que cada um dos seres em interação acomodasse sua ativi-
dade à do que se encontra junto dele seriam cada um para si e somente a inteligência
estabeleceria a conexão entre eles, e cada um contaria com os outros, porém
não
se
39
O interesse das análises e inferências de Dilthey para a sociologia do conhecimento e para a complexa
psicologia da consciência coletiva será assinalado nos artigos finais desta obra / e-book..
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daria nenhum sentimento vivo de sociabilidade entre eles (Dilthey emprega comunidade
por sociabilidade). Como átomos conscientes, tais seres daquela hipótese defeituosa
realizariam tão pontual e perfeitamente as tarefas de suas conexões finais que entre
eles seria dispensável qualquer associação ou qualquer constrição (Dilthey emprega
coação por constrição).
Quer dizer, essa argumentação se afirma como decor-
rente da tomada em consideração da condição humana. Segundo Dilthey, o que con-
verte o homem em membro da organização exterior sem deixar de ser igualmente um
elemento integrante da trama de um sistema cultural é o poder desatado de suas pai-
xões ou sua necessidade íntima, isto é, seu
sentimento de sociabilidade
. Desta
forma, diante da estrutura que mostra uma conexão de elementos psíquicos no todo
final de um sistema, há que distinguir essa outra estrutura que surge na associação de
unidades de vontade. A essa última estrutura correspondem então as seguintes análi-
ses: (a) – a análise das propriedades da organização externa da sociedade, (b) – a aná-
lise das comunidades propriamente ditas, (c) – a análise das associações, (d) – a análi-
se das urdiduras que surgem nas relações de dominação e na vinculação exterior das
vontades.
O fundamento dessas ciências do Estado, tomado este
como forma de relações permanentes dentro da interação, radica primeiro na virtude
do homem que é um ser social. Quer dizer, se o homem se acha dentro da conexão
natural, então
os sentimentos permanentes de co-pertinência
estão conjugados às
semelhanças decorrentes de tal conexão, bem como estão igualmente conjugados às
relações permanentes dos atos psíquicos de um ser humano com os de outro, consti-
tuindo portanto um nível além da fria representação dessas relações; segundo: a mais
desses sentimentos de co-pertinência há outras forças que, atuando conjuntamente,
impulsionam as vontades para a associação, a saber: os interesses e a coação. Tal a com-
plementaridade das ciências do Estado para com as ciências da cultura.
Ao parecer de teoria sociológica, e porquanto favore-
çam (a) – a investigação da forma do processus cognitivo orientado para a realidade
social e (b) – a investigação correlata da conexão de suas verdades como vinculadas à
vontade de adentrar-se no conhecimento, será em atenção à interpolação desses sen-
timentos de co-pertinência que Dilthey nos apresentará sua análise dos sistemas cul-
turais. Esse mestre-pensador não só incorpora o
incremento histórico
em suas aná-
lises, mas põe em relevo que os sistemas culturais assimilam uma vontade de eficácia,
designada como vontade total, à qual são relacionadas as atividades da organização exte-
rior porquanto combinadas às ações recíprocas dos indivíduos, sendo dessa vontade
de eficácia assim entendida como vontade total que dependerá a forma particular dos
sistemas culturais. Na premissa dessa análise se afirma a constatação no indivíduo de
um ponto de entrecruzamento da pluralidade desses sistemas culturais, que Dilthey
observará mediante o cotejo do ato e da obra tomando o caso das obras intelectuais,
já que uma obra intelectual pode expressar ao mesmo tempo um fato de ciência, um
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fato econômico de mercado, o cumprimento de um contrato (acentuando o fato jurí-
dico), a manifestação do profissional. Aliás, o cotejo do ato e da obra está na base da
objetividade dos sistemas culturais sendo deste ponto de vista que, mais uma vez,
Dilthey se distancia da “ciência abstrata”, haja vista separar esta última em seus pro-
cedimentos metodológicos os diversos sistemas culturais que, ao contrário disso, apa-
recem entrelaçados na realidade histórico-social.
Os critérios da objetividade dos sistemas culturais são
os seguintes: (a) – aparecem ao indivíduo em fatos que lhe são anteriores, que have-
rão de sobreviver-lhe e cujas disposições atuam sobre ele; (b) – aparecem à imagina-
ção científica como repousando sobre si mesmos; (c) – aparecem ao homem atual ou
moderno não só como parte da ciência natural mais ampla, porém como um fato
com independência das pessoas que praticam esta ciência. Para Dilthey, cada sistema
de cultura por sua vez é definido nos seguintes aspectos: (a) – como um modo de
atividade constitutivo da pessoa que se desenvolve em múltiplos aspectos a partir da
mesma; (b) – satisfaz a um fim no todo da sociedade; (c) – está equipado com os mei-
os duradouros estabelecidos no mundo exterior e finalmente, (d) – em uma etapa
cultural superior, alcança uma diferenciação internamente rica em significações por
efeito do
incremento histórico
. Assim, atento a esta última característica onde já
predomina o complexo dos sistemas culturais, Dilthey sustenta que a análise deve começar
em nível mais simples, isto é, pelo sistema em que os elementos da cultura e da orga-
nização exterior ainda se encontram juntos, a saber: pelo fato do direito.
Na análise do processus do incremento histórico, o fato do direito não pode ser identificado nem a
uma função da vontade total nem tampouco à função de um sistema de cultura e constitui o nível mais simples
onde os elementos da cultura e da organização exterior ainda se encontram juntos.
Com efeito. Notando que o individualismo crescente provoca
o desenvolvimento do direito, Dilthey em sua análise destaca as seguintes correlações: (A) –
que o prestígio dos indivíduos se mede na referência da função que desempenham na
sociedade; (B) – que a mesma vontade total efetua por um lado a medida dos direitos
individuais na referência da função que os indivíduos desempenham e por outro lado
domina na organização externa da sociedade, figurando igualmente a sede da forma-
ção do direito; (C) – que, nessa formação do direito, a vontade total como portadora
dos imperativos estabelecidos e a consciência jurídica dos indivíduos atuam em con-
sonância, sendo essa consciência jurídica não um fato teórico, mas uma realidade da
vontade. Vale dizer: a razão pela qual o direito que concentra em si ambas as classes
de realidade social
não
pode ser identificado nem a uma função da vontade total nem
tampouco à função de um sistema de cultura deve-se a que
a substanciação do di-
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reito
depende, por um lado, da consciência jurídica dos indivíduos interpenetrados –
que são e permanecem sendo as forças viventes formadoras do direito – e, por outro
lado, depende da unidade de vontade encarnada na organização externa da sociedade.
Desta forma sobressai o simples valor e o alcance de mera
instância inicial sine qua non que a análise da formação do direito produz, haja vista o
estatuto dos demais sistemas culturais que vão sendo diferenciados à medida do
in-
cremento histórico
. Trata-se de um processus de diferenciação em que, tanto as
ações recíprocas dos indivíduos – base na qual se desenvolve um sistema cultural –
quanto as atividades da vontade total, deixam-se ir
particularizando cada vez mais
,
redundando na seguinte seqüência dos sistemas culturais: primeiro – a economia polí-
tica; segundo – a moral; terceiro – a linguagem e a religião; quarto – a arte e a ciência. Mas
não é tudo. A este desenvolvimento corresponde a tomada em consideração das pro-
priedades gerais das ciências que estudam esses sistemas da cultura, bem como a de-
limitação do campo das mesmas.
Com efeito. Dilthey insiste na importância de uma
psicologia verdadeiramente descritiva para, por exemplo, (a) – esclarecer sobre o con-
ceito de vontade ou de imputabilidade, no âmbito de direito; (b) – esclarecer sobre o
conceito de imaginação ou de ideal, no âmbito da arte; (c) – elucidar proposições
elementares como o princípio da gestão econômica, no âmbito da economia política;
(d) – o princípio da metamorfosis das representações sob a vida anímica, no âmbito
da estética; (e) – as leis do pensamento, em teoria da ciência. A indispensabilidade de
tal psicologia descritiva procede do fato ou situação de que esses sistemas culturais
particulares se apresentam para Nós como poderosos fatos objetivos, obstáculos que
resistem ou suscitam a tomada de consciência, isto é, fatos de intuição: o espírito hu-
mano houve por conformá-los desta sorte antes de atendê-los cientificamente.
A exposição de Dilthey deixa bem claro seu pensamen-
to a respeito do caráter intuitivo dos fatos culturais e da importância dessa intuição
para o conhecimento desses fatos. Diz-nos que existe uma etapa no desenvolvimento
dos sistemas culturais na qual a reflexão teórica não está separada todavia da ação e
da conformação prática. O mesmo entendimento que se dirigiu mais tarde para a
fundação e explicação teórica do direito e da economia esteve ocupado no princípio
com a configuração desses sistemas (no sentido de Gestalt). Será mediante a análise
de um sistema de moral configurado como independente que esse caráter intuitivo é
posto em relevo.
Em diferença do costume, que se diversifica segundo
os povos e os Estados, a moral é observada como constituindo um único sistema
ideal que só pode ser modificado unicamente pela diferença de articulações, comuni-
dades, associações. A proposição básica de análise desse sistema ideal implica enlaçar
por um lado o que nosso autor chama a
autognosis psicológica
com a comparação
das modificações afetando tal sistema ideal no âmbito dos diferentes povos, por ou-
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tro lado. Lembre-se neste ponto as análises de Jacob Burckhardt como paradigmáti-
cas na comparação das modificações afetando o sistema da vida moral
40
.
A análise de Dilthey é orientada para pôr em relevo no
seu dizer “o poder regulador da consciência moral comum”, tomado este elemento regulador
como um efeito diretamente observado sob os dois aspectos que se seguem, por-
quanto constituam os critérios objetivos do fato moral. Com efeito: (a) – por um
lado, o elemento regulador é observado no fato de que o indivíduo só é capaz de
contrarrestar à imposição sobre si de certa corrente de opinião pública moral na me-
dida em que encontra respaldo em outra atmosfera de opinião pública que o sustente;
(b) – por outro lado, o elemento regulador é também observado na transmissão do
resultado total da cultura moral como tendo sido feito em proveito do desenvolvi-
mento ou elevação da pessoa humana em seus começos. Mas não é tudo. Para intro-
duzir seu modelo, Dilthey assinala o campo da moral como se apresentando em for-
ma dupla, seguinte: (a) – sob a forma do juízo do espectador sobre as ações e, (b) –
sob a forma assumida no âmbito dos motivos por um conteúdo independente de seu
resultado no mundo exterior, isto é, independente de sua adequação. Neste caso o
domínio moral aparece como força que vive na motivação, enquanto que no caso do
item “(a)”, embora seja da mesma natureza que o item “(b)”, o domínio moral se
apresenta como força que reage de fora em face das ações de outros indivíduos, afir-
mando-se em aprovação ou desaprovação desinteressada. Em ambos os casos a vin-
culação moral se deixa expressar sob a mesma proposição.
Nada obstante, nosso autor tece comentários sob o
fato de que o caráter dos homens lhe aparece como algo misterioso, admitindo que
somente suas próprias ações podem revelar parcialmente a eles esse caráter algo mis-
terioso que nas criações literárias políticas se trata como transparente. Quer dizer,
nosso autor considera de difícil acesso na vida real a transparência da conexão entre
caráter, motivo e ação dos homens. Sua análise põe em relevo que a moral aparece
sem cisão facilitando a própria análise ao afirmar-se na aprovação ou reprovação pe-
los espectadores, enquanto que a dificuldade é maior na análise da moral da motiva-
ção. Nesta, o analista só alcança com clareza unicamente a conexão entre o motivo e
a ação, mas os motivos como tais restam misteriosos. Dilthey observa dificuldade
semelhante mas em maneira inversa na moral de aprovação e desaprovação, pois se a
moral está inteiramente contida no juízo dos espectadores essa mesma moral se debi-
lita por completo no aspecto da união íntima dos motivos com o conteúdo do espíri-
to nos indivíduos aos quais tal juízo é referido.
40
Ver nesta obra / eBook o ensaio anexo intitulado
Arte e Função Simbólica
.
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Segundo Dilthey, essa dupla forma da consciência
moral na sociedade tem atuação direta e atuação indireta, realizando um efeito regu-
lador. Diretamente, porque a consciência moral surge espontaneamente como o sen-
timento do valor inseparável da afirmação mesma da dignidade distintiva do ser hu-
mano; indiretamente, porque a consciência moral que se desenvolve na sociedade
exerce uma pressão sobre o indivíduo, submetendo aos motivos mais variados. Esse
poder do sistema moral se exerce sob vários aspectos: como opinião pública, como o
juízo dos demais homens, como a honra. Daí que Dilthey fale de um sistema autô-
nomo de moral, com ênfase no seu caráter autônomo, e assine ao mesmo uma espé-
cie de coação interna (um efeito constringente) por contraposição à coação externa
do sistema do direito.
***
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Primeira Parte
Cultura e Objetividade:
Notas sobre Max Weber e Wilhelm Dilthey
FIM
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por
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Segunda Parte
Culturalismo e Sociologia:
Notas para um estudo dos quadros sociológicos da
sociologia da compreensão interpretativa desen-
volvida por Max Weber.
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Segunda Parte
Culturalismo e Sociologia:
Notas críticas para um estudo dos quadros sociológicos da
Sociologia da compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber.
O culturalismo abstrato ou espiritualista não se presta como orientação intelectual e metodológica para basear
os critérios objetivos que permitem construir tipos sociológicos.
O
culturalismo abstrato
é uma corrente de pensa-
mento do século XX que se caracteriza por buscar um elo da filosofia da história
com a sociologia. Trata-se de uma expressão utilizada por Georges Gurvitch em
seu ensaio sobre “
O Objeto e o Método da Sociologia
41
para examinar as ori-
entações limitadoras da sociologia da compreensão interpretativa que esse autor
observa na obra de Max Weber, esclarecendo sobre a maneira variada como neste
último se combinam o formalismo, o culturalismo e o psicologismo que não se
sintetizam, mas aumentam continuamente e permanecem desligados uns dos ou-
tros. Atribuindo ao culturalismo abstrato a falta de critérios objetivos e o caráter
arbitrário da ligação entre a compreensão e a interpretação subjetiva Gurvitch põe
em relevo que tal orientação errática não se presta para construir tipos sociológi-
cos, já que torna impossível justificar a passagem das significações internas (subje-
tivas) para as significações sociais e culturais, levando em conseqüência à dispersão
dos critérios. O culturalismo de Max Weber por um lado deriva de sua imensa e-
rudição histórica e por outro lado decorre dos preconceitos espiritualistas que re-
parte com Heinrich Rickert e que consistem em considerar todas as ciências soci-
ais como ciências da cultura estritamente individualizantes. Como assinala Gurvit-
41
Ver Gurvitch, Georges: “
Objeto e Método da Sociologia
”, in Gurvitch et al.:
Tratado de Sociologia-
vol.1
", trad. Ana Guerra, revisão: Alberto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1964, pp.15 a 50, 2ªedição
corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1957). Ver também do mesmo autor e nessa mesma obra coletiva:
Breve Esboço da História da Sociologia
”, trad. Rui Cabeçadas, pp.51 a 98. Ver também do mesmo autor:
A Vocação Actual da Sociologia - vol. I: na senda da sociologia diferencial
, tradução da 4ª edição
francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp. (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950).
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ch, será por esse biais que se chegará a atribuir o papel de fator predominante aos mo-
delos, regras, idéias e valores, levando o culturalismo a um beco sem saída. Aliás,
como assinalamos no capítulo anterior, a discussão a propósito deste fator predo-
minante na realidade social nos mostra o estado limitado da sociologia do século
XIX nos seguintes aspectos: (1) – em sua orientação paradoxal voltada para de-
compor a realidade social em fatores isolados que precisamente por estarem sepa-
rados perdem o seu caráter social; (2) – em sua pretensão que visa explicar a reali-
dade social na sua generalidade e fora de seus tipos, recorrendo-se (3) – precisa-
mente ao fator predominante que se acreditava ser ele próprio extra-social.
Portanto, essa crença no caráter extra-social do supos-
to fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social é assinalada
em Max Weber, quem nega qualquer possibilidade de intuição do todo social e re-
conhece em boa vontade o caráter individualista e nominalista de sua concepção
da realidade social. Nota Gurvitch que foi em conseqüência dessa crença no su-
posto “fator predominante” que se chegou a falar de escolas sociológicas, cada
uma reportando a realidade social assim destruída à outra realidade de outro gêne-
ro – geográfica, biológica, tecnológica, psicológica. O preconceito espiritualista da socio-
logia do século XIX atribuía às idéias, aos gêneros do conhecimento, às formas do direito um pa-
pel determinante, tendo o próprio fundador da filosofia positiva e da sociologia August Comte su-
cumbido à tentação desse preconceito
42
. Por sua vez, a ligação dos sociólogos do começo
do século XX por cuja orientação se filiam ao preconceito espiritualista é um tanto
camuflada. Assim, na Alemanha, partindo de uma analogia com as categorias e os
dados sensíveis em Kant, os representantes do culturalismo abstrato dentre os so-
ciólogos afirmam que o Direito constitui a forma enquanto a economia constitui a
matéria da realidade social. Ademais fazem com que essa forma, isto é, o Direito,
seja tomada como o fator predominante na vida social pretendendo, em maneira
mais ampla, que as formas sociais entendidas pela analogia com a filosofia de Kant
constituem o único objeto de estudo da sociologia
43
.
***
42
Comte viu no conhecimento teológico, no conhecimento metafísico, no conhecimento positivo os fatores
decisivos do desenvolvimento da sociedade.
43
No culturalismo abstrato as formas sociais são aparentadas em sua primazia às enteléquias aristotélicas, como
causas ao mesmo tempo finais e eficientes. Cabe notar que Gurvitch estuda na referência da “escola
espiritualista” os sociólogos alemães R. Stammler, por um lado, e por outro lado Simmel, Vierkandt, e Von
Wiese.
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Max Weber desconheceu as teorias de consciência aberta e veio a tomar as significações práticas
dos comportamentos sociais como isoladas da realidade social e sistematizadas pela teologia, pela
ciência do Direito, pela filosofia.
Do ponto de vista da crítica gurvitcheana, observa-se
que Max Weber não quis separar completamente compreensão e explicação tendo
recomendado aos sociólogos com razão que, procedendo por compreensão inter-
pretativa, procurassem os sentidos dos comportamentos sociais a fim de melhor
os explicar em seguida. Todavia, a qualificação desses sentidos ou significações
como internas é o erro que Gurvitch assinala aos adeptos da concepção de que a
consciência é voltada para si própria e não aberta às influências diversas da ambi-
ência social (
Gestalt
). Aliás, foi dessa maneira que Max Weber desconheceu as te-
orias de consciência aberta
44
e veio a tomar as significações práticas dos compor-
tamentos sociais como isoladas da realidade social e sistematizadas pela teologia,
pela ciência do Direito, pela filosofia – tal o papel dos fatores predominantes na
vida social. Contudo, se o seu culturalismo tem uma vertente em Heinrich Rickert
não chega ao exagero deste. Heinrich Rickert negava a possibilidade da sociologia
como ciência da cultura em virtude da pretensão da sociologia em generalizar em
um domínio onde Rickert supunha que a generalização não seria viável. Em dife-
rença, os tipos sociológicos ideais weberianos são intermediários entre a generali-
zação e a individualização, e sua generalidade não equivale a uma média, nem sua
individualização – que deriva das significações – tampouco é equiparável a uma
não-repetição.
A sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em
direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de uma
evolução social unilinear e contínua.
Segundo Georges Gurvitch, o culturalismo abstrato de
Heinrich Rickert deve ser classificado dentre os falsos problemas da sociologia do
século XIX, notadamente a falsa alternativa entre sociologia ou filosofia da histó-
44
As
teorias de consciência aberta
foram desenvolvidas por Bergson, por Husserl, por Bachelard e promovidas
nos meios sociológicos por Gurvitch como levando à constatação da imanência recíproca do individual e do
coletivo. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “
Dialectique et Sociologie
”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp.,
Col. Science.
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ria, incluindo as obras de todos os que seguiram a Heinrich Rickert de perto ou de
longe. A confusão com a filosofia da história é absolutamente inadmissível, haja
vista a capacidade da sociologia para alcançar perfeitamente por si só a situação
presente da sociedade sem precisar de outra disciplina para isso. Mais ainda: a so-
ciologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o
abandono das ilusões de uma evolução social unilinear e contínua, sendo da competência
da sociologia descobrir na realidade social as diversas perspectivas possí-
veis e até antinômicas que são postas para uma sociedade em vias de se fa-
zer. As ilusões trazidas pela confusão com a filosofia da história se encontram fa-
vorecidas pela ocorrência de um erro lógico fundamental que é segundo Gurvitch
a falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor. Desse erro de-
corre a confusão, pois em vez de explicar os desejos a partir da realidade social,
constrói-se a realidade social em função desses desejos. Os juízos de valor são as
aspirações, os desejos e as imagens ideais do futuro e formam um dos patamares
da realidade social em seu conjunto, de tal sorte que o progresso em direção a um ideal
só pode intervir na análise sociológica unicamente em vista de integrar esse pro-
gresso ideal em um conjunto de fatos sociais que a análise se propõe explicar. A
sociedade está sujeita a flutuações e até aos movimentos cíclicos e o progresso reti-
líneo em direção a um ideal particular, tomado como um movimento constante,
não pode valer mais do que para períodos determinados – em outros períodos a
sociedade pode até ir em sentido oposto ao ideal ou orientar-se por um ideal com-
pletamente diferente.
A falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor torna impossível o acesso da análise socio-
lógica a um dado fundamental da vida social que é a variabilidade.
Quer dizer, a falta de distinção entre os juízos de reali-
dade e os juízos de valor
45
torna impossível o acesso da análise sociológica a um
dado fundamental da vida social que é a variabilidade. Gurvitch nos lembra que a
identificação da sociologia e da filosofia da história afirma a pressuposição monista
que é absolutamente irreal, pois não existe uma Sociedade com “S” maiúsculo,
mas só há unicamente sociedades múltiplas em tal sorte que o sociólogo é levado a
45
Não confundir com a “separação radical do fato e dos valores” que alguns autores assinalam em Max Weber como se
verá adiante.
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pôr em relevo em cada sociedade a ocorrência de tendências variadas e em cada
crise o anúncio de diversas soluções possíveis. O termo realidade social e o termo so-
ciedade cobrem fenômenos muito diferentes segundo se trate de diferentes épocas
históricas, de diferentes civilizações, de diferentes tipos sociais. Uma visão singular
da sociedade e um modo próprio de interpretar sua natureza são manifestações de
caráter coletivo que se encontram sobretudo em cada tipo de sociedade global.
Ora, o culturalismo abstrato articula uma concepção sem nenhum contato com es-
sas manifestações do real concreto. Trata-se de uma orientação desdobrada da
chamada filosofia crítica da história que se tentou opor à filosofia dogmática da
história. Todavia, a metodologia do saber histórico veio a ser discutida sem ter si-
do posta em relação dialética com a metodologia do conhecimento sociológico,
nem ter afirmado o reconhecimento da realidade dos fenômenos do todo social –
ou fenômenos sociais totais, no dizer de Gurvitch – de maneiras que o objeto e a
realidade histórica tiveram que brotar do próprio método histórico. Heinrich Ric-
kert e seus colegas de pesquisa (inclusive Max Weber) utilizaram a noção de cultu-
ra com tal desiderato: (1) – tomada a partir de alguns fatos e alguns valores arbitra-
riamente escolhidos, a cultura se opõe à natureza. Para esses culturalistas a distin-
ção entre natureza e espírito deve ser aplicada positivamente à caracterização das
ciências históricas, já que estas tratam de objetos que são portadores do espírito obje-
tivo, quer dizer, objetos que possuem um significado e um sentido não perceptível,
mas compreensível para todos. Isto se esclareceria de imediato, supõe-se no cultu-
ralismo, se pensarmos que a história é antes de tudo ciência da cultura humana. A
vida cultural se apresentaria sempre como um acontecimento significativo e pleno
de sentido enquanto a natureza por contra se desenvolveria livre de significado e
de sentido, chegando-se inclusive a censurar Dilthey exatamente por não ter de-
senvolvido a oposição entre natureza e espírito em uma lógica da história. (2) –
No esquema do culturalismo abstrato Gurvitch destaca que é por meio dessa refe-
rência aos valores como método que se constrói a cultura; (3) – para o estudo da
cultura assim construída só se pode aplicar unicamente o método individualizante;
(4) – desta maneira se obtém por resultado conjuntamente a realidade histórica e a
ciência da história. Tal é o esquema do culturalismo abstrato em sua tentativa de
reduzir toda a história à história da cultura, procedendo por um método sobre ou-
tro método.
***
A crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social fun-
ciona para equilibrar a tensão no pensamento de Max Weber sem que,
todavia, isso o proteja contra os reveses em sua sociologia, como a dispersão.
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Neste ponto podemos pôr em relevo que essas análises
e apreciações críticas em torno ao culturalismo abstrato podem aportar algum es-
clarecimento não só à história das ciências sociais no século XX, mas sobretudo ao
estudo sociológico dos quadros de referência da própria sociologia – a sociologia
do conhecimento sociológico – que Gurvitch considera indispensável para liberar
a sociologia de certos coeficientes ideológicos. No caso em pauta, trata-se do estu-
do dos quadros sociológicos da sociologia da compreensão interpretativa desen-
volvida por Max Weber. Essa linha de pesquisa já se encontra assinalada nos estu-
diosos da obra e pensamento de Max Weber que buscam selecionar as influências
aceites por este pensador oriundas do seu ambiente social e intelectual mais pró-
ximo, assim como buscam descobrir a maneira pela qual tais influências se tradu-
zem em conceitos e modelos de análise.
A sugestão de que o problema da sociologia de Max
Weber se equaciona em termos sociológicos em torno ao culturalismo espiritualis-
ta, tomado como o conjunto das orientações intelectuais e metodológicas que ser-
vem de referência para a sociologia da compreensão interpretativa, parece atender
em maneira bastante satisfatória a tal linha de pesquisa dos estudiosos. Isto porque
a sugestão de Gurvitch aporta um esclarecimento sobre as fontes na sociologia do
século XIX para a procedência do formalismo, do culturalismo e do psicologismo
que, freqüentemente, os estudiosos observam combinando-se em maneiras varia-
das na sociologia de Max Weber.
Como vimos, a análise de Gurvitch nos mostra que es-
sas orientações para o formalismo, o culturalismo e o psicologismo nada mais sig-
nificam do que ampliações da
crença no caráter extra-social do fator predomi-
nante como capaz de explicar a generalidade do social
. A dificuldade maior
de Max Weber surge da tensão entre, por um lado, a convicção de que o método
das ciências sociais é necessariamente individualizante e por outro lado a própria
possibilidade da sociologia, a qual implica em generalização. Tal o quadro do seu
pensamento, que Gurvitch põe em relevo como efetivando-se na base da constru-
ção dos tipos sociológicos weberianos. Por outras palavras: a crença no caráter extra-
social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social funciona então
para equilibrar essa tensão no pensamento de Max Weber sem que, todavia, isso o
proteja contra os reveses em sua sociologia, como a dispersão.
Como se sabe, o contexto mais amplo em que se pro-
duziu a sociologia da compreensão interpretativa é marcado não só pela atmosfera
humanista dos salões intelectuais, mas pela influência dos neokantianos, que pre-
dominaram nas universidades alemães à época do liberalismo, entre 1870 e 1914,
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acentuando a erudição no ensino e a importância dos conceitos reguladores e das
regras como princípios na teoria do conhecimento. Além disso, nota-se também o
choque de duas estruturas de trabalho intelectual contemplando no dizer de C.
Wright Mills a interpretação conservadora de idéias pelos acadêmicos, por um la-
do, e por outro lado a produção intelectual de socialistas não-acadêmicos
(Kautsky, Bernstein, Mehering), dualidade esta que ainda segundo Wright Mills
criava uma tensão intelectual singular e desafiadora.
Respaldando a crítica gurvitcheana, Wright Mills ob-
serva a confusão em Max Weber da filosofia da história e da sociologia. A raciona-
lização não só é um princípio mas é o elemento mais geral na filosofia da história
de Max Weber, sendo medida pelo
desencantamento do mundo
, em relação a
que Wright Mills situa a contribuição de Max Weber à sociologia o conhecimento
ao mesmo tempo em que registra tratar-se da concepção errática de um progresso
unilinear na direção da perfeição moral. Mas não é tudo. Em relação ao psicolo-
gismo, Wright Mills nota que a noção de cultura européia em Max Weber afirma
igualmente o progresso ideal porém admitindo ambigüidades e que as racionaliza-
ções progressivas são objetos de análises psicológicas quando ali se trata de expli-
car os sistemas religiosos. Sublinha igualmente Wright Mills o
nominalismo cui-
dadoso
do método de Max Weber e a influência da imagem (romântica) do indi-
víduo monumentalizado (Carlyle) para a concepção weberiana do líder carismáti-
co. Nesse individualismo nominalista, se a unidade final das análises weberianas é
posta pelas motivações compreensíveis do indivíduo isolado não será de espantar
que essa análise estanque ou fique suspensa diante do conceito de personalidade.
Com efeito, a personalidade ali não passa de um centro de criatividade profundamente irra-
cional, um processus não analisado cuja concretização em uma noção derivada do
romantismo Max Weber se empenha em rejeitar.
Mas não é tudo. Esse individualismo e nominalismo
podem ser notados diretamente na seguinte passagem selecionada por Wright Mil-
ls de “
Ensaios sobre a Teoria da Ciência
” de Max Weber (Ver a edição france-
sa: Paris, Plon): “A sociologia interpretativa considera o indivíduo (Einzelindividuum) e seu ato
como a unidade básica, como seu átomo (...). O indivíduo é também o limite superior e o único
portador de conduta significativa (...). Conceitos como Estado, associação, feudalismo e outros
semelhantes designam certas categorias da interação humana. Daí ser tarefa da sociologia reduzir
esses conceitos à ação compreensível, isto é, sem exceção, aos atos dos indivíduos participantes
46
.
46
WRIGTH MILLS, C. e GERTH, Hans - Organizadores: «
Max Weber : Ensaios de Sociologia
», tradução
Waltensir Dutra, revisão Fernando Henrique Cardoso, 2ªedição, Rio de Janeiro, Zahar, 1971, 530 pp.(1ªedição
em Inglês : Oxford University Press, 1946).
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Para Wright Mills, o problema da compreensão foi
formulado por Wilhelm Dilthey e Max Weber o incorporou em suas análises por
ele mesmo denominadas como sociologia interpretativa ou compreensiva. O problema
dos tipos sociológicos atende pois a uma abordagem nominalista e estabelece uma
escala de racionalidade e irracionalidade em que a psicologia da motivação cede lu-
gar a um recurso tipológico.
Wright Mills sustenta a ocorrência de uma dualidade
entre as reflexões metodológicas de Max Weber e suas análises. Por um lado, hou-
vera o propósito metodológico de limitar a compreensão e interpretação do signi-
ficado às intenções subjetivas do agente social, mas em sua obra real, por outro la-
do, Max Weber teria admitido que os resultados das interações não são em modo
algum sempre idênticos ao que o agente pretendia fazer.
Apesar de todas essas observações corroborativas da
crítica gurvitcheana e direcionadas para uma sociologia do conhecimento socioló-
gico, Wright Mills não percebe porém a importância da utilização de fatores isola-
dos. Ou seja, a utilização de fatores isolados na sociologia de Max Weber é consta-
tada por Wright Mills que por falta de uma crítica da sociologia do século XIX aí
não percebe a
crença no caráter extra-social do fator predominante como
capaz de explicar a generalidade do social
, nem o alcance desta crença especi-
fica aos sociólogos para a análise sociológica dos quadros intelectuais da sociologia
de Max Weber.
Em maneira semelhante a Wright Mills, outros autores
estudiosos também se restringem a assinalar uma correlação entre um contexto de
choque de duas estruturas de trabalho intelectual por um lado, e por outro lado a
dualidade entre metodologia e análise na obra de Max Weber. Lamentavelmente,
não desenvolvem orientação proveitosa em sociologia do conhecimento sociológi-
co aplicável a este pensador.
Assim Raymond Aron tece suas observações críticas
no âmbito desse duplo dualismo de influências intelectuais e de metodologi-
a/análise e, embora admita a influência de Heinrich Rickert, também se apraz em
contemplar o irracional em Max Weber. Mais precisamente: tendo descoberto uma
orientação de caráter existencial ou até existencialista na filosofia implícita de Max
Weber, Raymond Aron limitou sua contribuição a uma forte argumentação contra
a redução do pensamento weberiano ao nihilismo – tese sustentada pelo filósofo
da cultura política Leo Strauss. Nesse marco de crítica filosófica, e em certo modo
inesperado para um sociólogo, nos sugere Raymond Aron que o problema da
compreensão tal como desenvolvido em Max Weber deve ser referido preferenci-
almente não a Dilthey, mas ao pensamento metapsicológico do psiquiatra e filóso-
fo kierkegaardiano Karl Jaspers.
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Quer dizer, deve-se dar preferência ao psicologismo ou
à limitação de Max Weber ao psicologismo, fazendo prevalecer o âmbito não ro-
mântico do problema daquele centro de criatividade profundamente irracional, que como
vimos Wright Mills acentuou a respeito da orientação de Max Weber para o con-
ceito de personalidade.
Desse modo, em um dos seus primeiros ensaios mar-
cantes intitulado “
Introduction à la Philosophie de l’Histoire
” (Paris, Galli-
mard) Raymond Aron sublinha a separação radical do fato e dos valores em Max Weber,
desdobrando alguns comentários críticos a respeito do paradoxo em se ignorar
nos seres do passado a vontade de valor ou de verdade, paradoxo este limitando
em conseqüência o alcance da orientação de Max Weber para a compreensão da
conduta individual unicamente na referência das idéias de valor. Sustenta esse estu-
dioso que se essa concepção excluindo a vontade de valor ou de verdade fosse
admitida, não se teria o critério para diferenciar entre uma obra de filosofia como a
“Crítica da Razão Pura”, de E. Kant, e o que Raymond Aron chama as imagina-
ções delirantes de um paranóico, já que ambas seriam colocadas no mesmo plano.
Seja como for, esse estudioso não chega a observar em
tal exorbitância do método nominalista o biais pelo qual se infiltra no pensamento
de Max Weber a crença específica aos sociólogos que acometia a sociologia do sé-
culo XIX e que deve ser posta de lado, pela qual, como vimos, se reduz a realidade
social aos fatores predominantes, a saber: a
crença no caráter extra-social do fa-
tor predominante como capaz de explicar a generalidade do social
. Assim,
em seu monumental ensaio posterior sobre “
Les Étapes de La Pensée Sociolo-
gique
47
Raymond Aron se limitará a confirmar que a orientação de Max Weber
deve ser referida a uma filosofia existencial, nada acrescentando de interesse para a
análise dos quadros sociológicos da sociologia da compreensão interpretativa de-
senvolvida por Max Weber.
***
47
ARON, Raymond: “
Les Étapes de la Pensée Sociologique : Montesquieu, Comte, Marx, Tocqueville,
Durkheim, Pareto, Weber”
, Paris, Gallimard, 1967, 659pp.
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Segunda Parte
Culturalismo e Sociologia:
Notas críticas para um estudo dos quadros sociológicos da
Sociologia da compreensão interpretativa desenvolvida por Max Weber.
FIM
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Terceira Parte
O Problema da Consciência Coletiva na
Sociologia da Vida Moral
Notas sobre a análise crítica da sociologia de Émile Durkheim
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Terceira Parte
O Problema da Consciência Coletiva na Sociologia da Vida Moral:
Notas sobre a análise crítica da sociologia de Émile Durkheim
Epígrafe
O problema sociológico da consciência coletiva é tornar possível compreender na raiz a possibilidade de comuni-
cação universal entre os seres humanos. (Gurvitch)
***
Durkheim prepara o caminho para o reconhecimento da colaboração parcial
da filosofia moral e da sociologia da vida moral
O ponto de vista da sociologia evocando a reflexão é
afirmado não só na autonomia da consciência moral como sistema de cultura, mas
sobretudo em relação ao caráter intuitivo dos fatos culturais de que nos falou Wi-
lhelm Dilthey em consideração do desenvolvimento cultural. É a inserção da re-
flexão teórica na ação e na prática levando à configuração particular dos sistemas
culturais. Esse ponto de vista será aplicado por Georges Gurvitch em sua análise
antidogmática do conceito de consciência coletiva em Émile Durkheim
48
. Gurvit-
ch entende que há na ciência dos fatos morais uma incapacidade em privar-se do
auxílio da reflexão teórica sobre a especificidade dos valores morais que Durkheim
põe em relevo ao vincular sua concepção da realidade social e do fato moral em
particular às aspirações coletivas para com os valores, preparando assim o caminho para o
reconhecimento da colaboração parcial da filosofia moral e da sociologia da vida
moral.
Observa Gurvitch em relação à noção de ciência dos fatos
morais à qual religa os adeptos da ciência dos costumes que, muito antes do nascimento
48
GURVITCH, Georges (1894-1965): “
A Vocação Actual da Sociologia - vol.I: na senda da sociologia
diferencial”
, tradução da 4ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp.
(1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950). “
A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e
perspectivas”
, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp.
(1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957). “
Tratado de Sociologia - vol.1
", revisão: Alberto Ferreira, Porto,
Iniciativas Editoriais, 1964, 2ªedição corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1957). ”
Tratado de
Sociologia - Vol.2
”, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, (1ªedição Em Francês: PUF,
Paris, 1960).
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da sociologia, já Montaigne, Montesquieu, Hume e Adam Smith esforçaram-se por
descrever a diversidade dos costumes abrangendo com tal designação condutas, sen-
timentos, apreciações, critérios morais. Depois destes pensadores, muitos outros
autores do século XIX e do século XX descreveram fatos morais variados e inter-
pretados de diferentes maneiras. Ademais dos sociólogos propriamente ditos, con-
tam-se historiadores e psicólogos não havendo todavia entre eles um acordo durá-
vel nem quanto ao método a empregar, nem sobre o critério de diferenciação en-
tre os fatos morais e as outras obras de civilização como o direito, a religião, a arte,
o conhecimento, a educação.
Esta dificuldade pode ser explicada pelo que Gurvitch
descreve como o paradoxo característico da vida moral, a saber: é própria a todos os
grupos sociais e pode ser sustentada por todos os quadros sociais, mas não dispõe
de órgãos específicos para vigiar o seu exercício que, aliás, pode ser ou coletivo ou
individual. Quer dizer, a impossibilidade em partir de unidades especializadas co-
mo suportes da moralidade impõe à sociologia da vida moral a imperiosa necessi-
dade em relação a definir os fatos morais, para os distinguir das outras obras de ci-
vilização. Segundo Gurvitch, a filosofia moral e a sociologia da vida moral possu-
em um limiar comum na experiência moral, a qual só raramente é imediata e os
seus caracteres são muito variáveis e móveis: flutuam em função das sociedades
globais, classes sociais, grupos particulares e formas de sociabilidade. Nada obstan-
te, servindo-se da noção de
Gestalt
aplicada na descrição das atitudes coletivas e
em particular das atitudes morais é possível definir os fatos morais sem tomar po-
sição filosófica precisa nem identificar-se a uma doutrina particular – mas, bem en-
tendido, sem prescindir da colaboração da reflexão e da análise filosófica para de-
finir a especificidade do fato moral.
A utilização da noção de Gestalt aplicada na descrição das atitudes coletivas e em particular das atitudes
morais torna possível definir os fatos morais sem tomar posição filosófica precisa nem identificar-se a uma
doutrina particular.
Portanto, para alcançar a sociologia da vida moral é
preciso atentar para as seguintes condições: primeiro- não dar lugar privilegiado a
priori a um gênero particular da vida moral; segundo- não transformar por efeito do
cotejo com os quadros sociais um desses gêneros de moralidade real em projeções
ilusórias das crenças coletivas. Desta sorte, estudioso da sociologia da sociologia, Gur-
vitch empreende a análise do histórico da sociologia da vida moral em busca dos
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seus próprios quadros operativos sociológicos como conhecimento científico. E o
faz mediante a observação do conjunto das obras dos autores interessados na
chamada ciência dos costumes e das obras dos sociólogos.
Sublinha-se inicialmente que as doutrinas filosóficas
particulares estão implícita ou explicitamente contidas em todas as definições já
apresentadas sendo a notar a ampla variedade de gêneros de moralidade. Vale di-
zer, por exemplo, são gêneros de moralidade dentre outros o utilitarismo em Ben-
tham, e em Sturt Mill; a moral do sentimento em Westermark; a moral sintetizan-
do o racionalismo, o evolucionismo e o pragmatismo em Hobhouse, G.H.Mead,
J.Dewey e mais recentemente M.Ginsberg; por fim, a moral reconciliando o obri-
gatório e o desejável na comum dependência dos ideais criados pela sociedade su-
blimada no espírito em Durkheim. Mas não é tudo. Em relação a essa característi-
ca dos adeptos da ciência dos costumes e dos sociólogos em incluírem nas suas
definições do fato moral não só as reflexões de filosofia mas as próprias doutrinas
filosóficas particulares, Gurvitch observa dois desdobramentos contraditórios: (a)
– pelo aspecto estritamente sociológico, a inclusão de doutrinas teve o mérito de
favorecer a descrição dos vários gêneros da vida moral assim por esse biais desco-
bertos na realidade social, isto é, constatados como fatos; (b) – pelo aspecto dog-
mático entretanto, a inclusão de doutrinas na definição do fato moral levou a
submeter a sociologia da vida moral a uma filosofia particular.
Quer dizer, em razão da muito forte ligação entre a
moralidade real e os quadros sociais, como já vimos, e na medida mesma em que
essa ligação provocou o nascimento antecipado da sociologia da vida moral antes
de constituir-se a sociologia, surgiu como quadro de referência do conhecimento
sociológico aplicado à vida moral a
crença efetiva, específica aos adeptos da
ciência dos costumes e aos sociólogos da vida moral, afirmando a possibi-
lidade desejada de utilizar a sociologia da vida moral como base de uma
doutrina moral
, neste caso, uma moral teorética de fundamento sociológico que
ao mesmo tempo conhecia e estatuía criando uma via para uma nova metamoral,
em que a sociologia se colocaria no lugar da filosofia. Estamos pois diante de uma
antiga corrente do pensamento moderno que desde o século XVI atravessa o sécu-
lo XIX e chega ao século XX. Quer dizer essa crença especial na possibilidade de
utilizar as descrições em fatos dos vários gêneros da vida moral como base de uma
doutrina moral conhecendo e estatuindo ao mesmo tempo nos serve de explicação
para as orientações contraditórias das posições sociológicas e, em vista de liberar a
sociologia de certos coeficientes ideológicos, aplica-se segundo Gurvitch com no-
tado proveito na análise sociológica da sociologia da vida moral em Émile Dur-
kheim.
Com efeito, segundo Gurvitch, ao estudar desde o
ponto de vista antidogmático a Durkheim deve-se lembrar por um lado a seme-
lhança de sua orientação com as metamorais tradicionais de Platão, Aristóteles,
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Spinoza, Hegel, onde um mundo espiritual supratemporal e absoluto se realiza no
mundo temporal. Por outro lado, deve-se ter em conta que, em modo contrário a
Levy-Bruhl que dele foi colaborador, Durkheim crê na possibilidade de conhecer e
de prescrever simultaneamente: espera tirar de um conhecimento teórico prévio
uma doutrina moral que imponha objetivos e prescreva regras de conduta. Vale
dizer: a moral teórica de Durkheim reconciliando o obrigatório e o desejável na
comum dependência dos ideais criados pela sociedade sublimada no espírito é
uma metamoral semi-sociológica e semi-metafísica. Gurvitch a designará
sociolo-
gismo da metamoral
, utilizando designação idêntica à utilizada por outro impor-
tante colaborador de seu mestre Durkheim que o foi C. Bouglé.
Será em decorrência de sua tese pró religião que, em face dos critérios próprios ao fato jurídico como a coação e
a sanção, Durkheim fracassará ao tentar delimitar o domínio da moralidade como apego aos grupos soci-
ais,tendo atribuído um alcance demasiado grande ao hábito, à regularidade e à disciplina.
Esse sociologismo durkheimiano explica por que, ten-
do alcançado uma formulação engenhosa com alcance propriamente sociológico,
Émile Durkheim não chegou a estabelecer definitivamente a sociologia da vida
moral como ciência empírica. Ou seja: há duas orientações contraditórias atuando
no pensamento desse mestre da sociologia geral. Por um lado, se Durkheim alcan-
çou as bases da sociologia da vida moral isso se explica (a) – pelo aproveitamento
original que tirou de sua reflexão junto com a filosofia, neste caso a filosofia de
Kant, levando-o a introduzir em diferença deste último que a ignorou, a noção do
desejável
na análise dos valores; (b) – pelo aproveitamento de suas observações
diretas e indiretas sobre o papel da coletividade de aspiração como referência para
a afirmação dos ideais – antecipando assim o estudo das correlações funcionais en-
tre os gêneros de vida moral e os quadros sociais. Por outro lado, os limites a que
o sociologismo da metamoral embaraçou a Durkheim podem ser notados pela
predominância em seu pensamento do estatuto da religião impondo a inoperância
de seu método para a determinação da especificidade do fato moral, predominân-
cia decorrente de sua tese falaciosa de que é bastante difícil compreender a vida
moral se não a aproximarmos da vida religiosa. Sem embargo, deve-se ter em con-
ta que a predominância do estatuto da religião tem procedência também em um
aspecto positivo favorecendo a distinção entre valores culturais e valores econô-
micos, no caso, procede da polêmica que Durkheim sustentou contra as morais
eudemonistas – as morais do que é útil, do que é técnico, do que dá prazer.
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Será em decorrência de sua tese dogmática pró religião
que, em face dos critérios próprios ao fato jurídico como a coação e a sanção,
Durkheim fracassará ao tentar delimitar o domínio da moralidade como apego aos
grupos sociais, tendo atribuído um alcance demasiado grande ao hábito, à regula-
ridade e à disciplina, sublimando desta maneira – adverte Gurvitch – a moralidade
tradicional e a moralidade imperativa, como gêneros da vida moral. Além disso, o
sociologismo durkheimiano dificulta a aceitação de que o problema dos funda-
mentos da validade dos valores e dos ideais ou o problema de sua justificação per-
tence com exclusividade à filosofia moral.
Neste ponto cabe pôr em relevo a análise gurvitcheana
antidogmática como um caminho novo que se abre para incluir a psicologia coleti-
va no domínio da sociologia ao qual em realidade pertence. Nesta análise que
busca a sociologia da sociologia, se acentua a diferença entre a problemática dur-
kheimiana da fundamentação da validade dos valores e dos ideais, por um lado e,
por outro lado os créditos que a sociologia da vida moral como ciência empírica
tem para com a concepção engenhosa de Durkheim. Com efeito, nesta concepção
se destaca como sendo de proveito para a maior precisão de algumas característi-
cas da realidade social a compreensão de que os ideais fundamentadores da objeti-
vidade dos valores ideais são eles próprios simultaneamente produtores e produtos
da realidade social a qual, desta maneira, é penetrada por significações humanas.
Quer dizer, os ideais em sua eficácia motora são elementos constitutivos da coleti-
vidade e emanam dela – daí falar-se de coletividade de aspiração para designar a aspira-
ção aos valores como qualidade da consciência coletiva.
A afirmação dos valores como sendo objetivos está em que as coisas e as pessoas às quais tais valores são
atribuídos atendam à condição de serem coisas e pessoas que estão postas em contacto com os ideais por efeito
da afetividade coletiva.
Prosseguindo, Gurvitch põe em relevo os elementos
propriamente sociológicos que estão por debaixo da problemática durkheimiana
da fundamentação e justificação dos valores. Nota-se então o dilema do pensa-
mento de Durkheim entre, por um lado, fundamentar os ideais exclusivamente na
coletividade de aspiração – o que implicaria tomar os ideais por simples projeções
das crenças coletivas de tal sorte que a objeção do próprio Durkheim contra o
simples apelo a um sujeito coletivo para explicar a objetividade dos valores seria
aplicada à sua própria objeção; ou, e este é o outro lado do dilema, atribuir ao
mundo espiritual dos valores a capacidade de efetuar uma intervenção direta colo-
cando-se como um dado sui generis diante da consciência coletiva. Entretanto Gur-
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vitch nos deixa ver que por detrás dessa atribuição de ordem metafísica Durkheim compreende os
ideais em maneira descritiva como obstáculos (apreendidos), supondo o critério sociológico de sua
resistência à penetração pela subjetividade coletiva (coletividade de aspiração, incluindo as crenças
coletivas), levando-o a concebê-los exatamente como os termos dessas aspirações, seus focos.
Quer dizer, diferentemente dos valores baseados no
critério da utilidade como o são os valores econômicos, aqueles outros valores
chamados valores culturais considerados no pensamento de Durkheim como valo-
res ideais ou fundados nos ideais podem ser definidos conforme a formulação de
C.Bouglé em termos de instrumentos de comunhão e princípios de incessante regeneração para
a vida espiritual, podendo ser comparados a ímãs que atraem e merecem atrair os es-
forços humanos convergentes.
Segundo o resumo de Gurvitch, a orientação para a
sociologia da vida moral em Durkheim compreende dentre outros aspectos o se-
guinte: (a) – que a objetividade dos valores propriamente culturais não se reduz à
sua mera coletividade; (b) – que as principais obras de civilização como a religião,
a moral, o direito, a arte são sistemas de valores culturais; (c) – que a validade obje-
tiva dos valores culturais consiste na sua referência aos ideais. Quer dizer, a afir-
mação dos valores como sendo objetivos está em que as coisas e as pessoas às
quais tais valores são atribuídos atendam à condição de serem coisas e pessoas que
estão postas em contacto com os ideais por efeito da afetividade coletiva : tal é o efeito que
qualifica propriamente a subjetividade coletiva como aspiração aos valores, notan-
do-se o aspecto de imãs da vontade que os valores assumem neste contacto com
os ideais. Gurvitch sublinha a definição de Durkheim pondo em relevo que os ide-
ais tomados por si não são representações intelectuais abstratas, frias, mas os ideais
são essencialmente motores.
Em Durkheim a consciência coletiva exprime o fato social indiscutível da interpenetração virtual ou atual das
várias consciências coletivas ou individuais,sua fusão parcial verificada em uma psicologia coletiva.
Neste ponto notamos o núcleo da leitura gurvitcheana
sustentando que Durkheim alcançou as bases da sociologia da vida moral sobretu-
do pelo aproveitamento original que tirou de sua reflexão junto com a filosofia de
Kant, levando-o a introduzir em diferença deste último que a ignorou, a noção do
desejável
na análise dos valores. Com efeito, é a funcionalidade dos valores ideais,
sua característica de instrumentos de comunhão e princípios de incessante regene-
ração da vida espiritual se afirmando indispensavelmente por meio da afetividade
coletiva que se refere a utilização do termo
desejável
na seguinte formulação de
Durkheim: qualquer valor pressupõe a apreciação de um sujeito em relação com uma sensibili-
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dade indefinida: é o desejável, qualquer desejo sendo um estado interior. Definição descritiva
esta que não só torna extensível a característica do
desejável
a qualquer valor para
além dos valores ideais, mas, por esta via os engloba igualmente na noção de funcio-
nalidade que acabamos de mencionar a respeito desses últimos (qualquer valor
tendo assim alguma participação nos ideais)
49
.
É neste sentido que se deve entender o posicionamen-
to de Gurvitch segundo o qual, em sua aplicação exclusiva à sociologia da vida
moral, a concepção de Durkheim deveria conduzir ao estudo empírico das rela-
ções funcionais entre os valores morais e os conjuntos sociais (um sujeito em relação
com uma sensibilidade indefinida), notadamente se tivermos em vista que (1) – Dur-
kheim chega a opor para fins de análise os valores ditos culturais a outros valores
insistindo ao mesmo tempo na variedade infinita e na particularização de todos os
valores sem exceção; (2) – faz sobressair o papel que desempenham os valores na
constituição da própria realidade social; (3) – que, enfim, podemos completar sua
concepção com a constatação das flutuações dos valores, os quais se juntam e se interpe-
netram depois de se terem diferenciados – constatação esta que Gurvitch põe ao
crédito de C. Bouglé e de seu conceito de conjunção dos valores.
Quanto à descrição do
sociologismo durkheimiano
da metamoral
impedindo Durkheim de estabelecer definitivamente a sociologia
da vida moral como ciência empírica podemos notar inicialmente a tendência errá-
tica que altera o estatuto sociológico da consciência coletiva. Com efeito, conceito
específico da sociologia a noção de consciência coletiva afirma que, base da vida
moral, a solidariedade de fato – como diria o próprio Durkheim – está entrelaçada
aos estados mentais – sendo atribuído a esta consciência como formando comple-
xo com àquela solidariedade o que Durkheim chama de “verdadeira realidade”,
“verdadeira essência da sociedade”. Segundo Gurvitch a exaltação de termos tais
como “verdadeira essência da realidade” é compreensível porque tal condição de
estar entrelaçada à sociabilidade significa que em Durkheim a consciência coletiva
exprime o fato social indiscutível da interpenetração virtual ou atual das várias
consciências coletivas ou individuais, sua fusão parcial verificada em uma psicolo-
gia coletiva.
49
Ver adiante o artigo
Introdução à Sociologia da Vida Psíquica – Primeira Parte: A análise crítica das
contribuições de Émile Durkheim
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Durkheim manteve-se estranho ao reconhecimento da existência das experiências morais coletivas e dos méto-
dos de análise que reconduzem mediante procedimentos dialéticos a estas experiências variadas e só raramente
imediatas.
Todavia, ao inseri-la em uma teoria do progresso moral
e ao lhe impingir o sentido de um espírito metafísico não só destacado das consci-
ências individuais mas pairando acima delas, a consciência coletiva é assim equivo-
cadamente concebida por Durkheim como não verificável em uma psicologia co-
letiva. Nessa concepção metafísica o progresso moral significa então erroneamente
a imanência crescente da consciência coletiva em relação à consciência individual.
Quer dizer, em um primeiro momento correspondendo ao que Durkheim chama
solidariedade mecânica a suposta transcendência da consciência coletiva é total. Com
o desenvolvimento do segundo tipo de solidariedade, a solidariedade orgânica, se a
consciência coletiva se torna parcialmente imanente o equívoco de Durkheim con-
tinua, no entanto, com essa imagem de consciência coletiva a pairar acima das
consciências individuais e a se impor a elas como uma entidade metafísica. Escla-
rece Gurvitch que a atribuição por Durkheim de autoridade moral à tal noção e-
quivocada de consciência coletiva é proveniente desta sua errônea caracterização
como entidade metafísica se impondo às consciências individuais. Da mesma ma-
neira, proveniente dessa errônea característica metafísica, se compreende a convic-
ção de Durkheim de que o progresso moral, como suposta escala de imanência
crescente da consciência coletiva, produz uma espiritualização do Direito, da mo-
ral e da religião. Quer dizer, recusando expressamente a identificar o mundo espi-
ritual com o supranatural, Durkheim atribui a essa suposta espiritualidade social um
ascendente moral, dizendo que a obrigação é a prova de que as maneiras de agir da
religião, da moral, do direito não são obra do indivíduo, mas emanam de uma
consciência moral que supostamente o ultrapassa. Nota Gurvitch que essa con-
cepção errática do espiritual identificado com a consciência coletiva como funda-
mentando a obrigação sem que, por este motivo, seja tornado sobrenatural no sen-
tido místico, é uma concepção em que o espiritual é tomado no marco de uma
oposição lógica a qualquer outra espécie de ser, indicando ter sido concebido por
Durkheim como o cimo da hierarquia ontológica do ser e, nesta qualidade precisa,
como o Bem Supremo – sublinhando o molde exclusivamente metamoral, clássico
ou tradicional do sociologismo durkheimiano.
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Ao mesmo tempo em que defendeu a contribuição de Durkheim para a sociologia da vida moral, Gurvitch é
impiedoso ao desmontar o quase delírio espiritualista de Durkheim prejudicando a psicologia coletiva – o que
alguns sociólogos não gostaram ao ouvir.
Será pois em razão dessa concepção errática identifi-
cando a sociedade, a consciência coletiva e o espírito metafísico que para Dur-
kheim a integração apropriada da sociedade representa o critério do Bem enquan-
to que a desintegração anômica o critério do Mal. Desta forma se entende sua aná-
lise da crise moral em que, pelo desenvolvimento da divisão do trabalho social e
dos agrupamentos de atividade econômica, o Estado e a família perderam sua for-
ça de integração, tornando-se a organização profissional em poder moralizador
central – isto porque, na equivocada avaliação durkheimiana, seria por meio dela
que melhor se realizaria sua concepção de uma suposta solidariedade orgânica, por
ele erroneamente identificada de antemão como ideal moral.
Como podemos ver, ao mesmo tempo em que defen-
deu a contribuição de Durkheim para a sociologia da vida moral, Gurvitch é impi-
edoso ao desmontar o quase delírio espiritualista de Durkheim prejudicando a psi-
cologia coletiva – do que os sociólogos dogmáticos não gostaram ao ouvir. Mas
não é tudo. É igualmente esta errônea concepção metamoral identificando a cons-
ciência coletiva e o Bem supremo que explica (a) – por que Durkheim envolveu
seu método em um círculo vicioso entre chegar ao fato moral por indução ou por
dedução – sendo esta última na verdade que constitui o seu raciocínio conceitualis-
ta; e (b) – por que, limitando-se dessa maneira ao raciocínio exclusivamente lógico,
manteve-se estranho ao reconhecimento da existência das experiências morais co-
letivas e dos métodos de análise que reconduzem mediante procedimentos dialéti-
cos a estas experiências variadas e só raramente imediatas.
Aliás, como observamos a respeito das análises filo-
sóficas de Wilhelm Dilthey, a definição dos fatos morais oferecida por Georges
Gurvitch não só põe em foco a experiência, mas também põe em relevo tratar-se
de um conteúdo objeto de aprovação ou desaprovação, cujo caráter desinteressado
é seu traço distintivo essencial. Tal sua formulação seguinte: os fatos morais são atitu-
des coletivas e individuais concebidas como aspectos da realidade social por serem inspiradas pela
experiência de uma luta contra todos os obstáculos que se opõem ao esforço humano, como mani-
festação digna de aprovação desinteressada. Seja como for, nessa definição dos fatos mo-
rais Gurvitch toma emprestado a Durkheim (a) – o papel da afetividade coletiva e
(b) – a intuição de que a consciência é aberta às influências do ambiente, embora,
como já assinalamos, Durkheim não se dá conta disso ao concebê-la como rela-
cionada à solidariedade de fato.
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Para Gurvitch, a insuficiência das orientações de Dur-
kheim quanto ao problema da consciência coletiva que ele próprio introduziu na
sociologia do Século XX está em sua falta de relativismo ao ignorar que a impor-
tância dos níveis em profundidade da realidade social é variável segundo cada tipo
de sociedade global, cada tipo de agrupamento social e segundo os diferentes Nós.
Quer dizer, a consciência coletiva deve ser estudada (a) – não só nas suas manifes-
tações na base morfológica da sociedade, nas condutas organizadas e regulares,
nos modelos, signos, atitudes, funções sociais, símbolos, idéias, valores e ideais co-
letivos, obras de civilização, (b) – principalmente nas estruturas e nos fenômenos
não-estruturais, mas (c) – igualmente em si própria, já que a consciência coletiva
não se realiza inteiramente em qualquer desses elementos e sublinha Gurvitch, po-
de extravasá-los em expressões imprevisíveis, inesperadas e até surpreendentes.
A realidade dos níveis culturais na vida coletiva põe em relevo que a consciência coletiva os apreende, sendo
portanto uma consciência situada no ser, intuitiva e capaz de se multiplicar em um mesmo quadro social.
Desta forma, contrariando os sociólogos dogmáticos,
Gurvitch sustenta que
a psicologia coletiva possui seu domínio próprio na
sociologia
, domínio não percebido com clareza por Durkheim, cujas reflexões e
análises não ultrapassaram a identificação da consciência coletiva com as crenças
coletivas (consciência coletiva fechada). A realidade dos níveis culturais na vida co-
letiva – os níveis simbólicos e significativos, as idéias, os valores e os ideais – de-
sempenha um papel de primeiro plano que ultrapassa a consideração dogmática
dos mesmos como simples epifenômenos, projeções ou produtos; mas põe em re-
levo que a consciência coletiva os apreende, sendo portanto uma consciência
situada no ser, intuitiva e capaz de se multiplicar em um mesmo quadro social.
Quer dizer, o problema da autonomia do mundo cul-
tural, o mundo das obras de civilização – que intervém na constituição da realida-
de social e que depende simultaneamente de todos os níveis em profundidade da
realidade social (como estes dependem do mundo das obras de civilização) – im-
plicando a relação entre a consciência coletiva e o nível das idéias, dos valores, e
ideais coletivos, para ter clareza deve ser considerado desde o ponto de vista da
teoria de consciência aberta (imanência recíproca do individual e do coletivo). Isto
torna possível distinguir por um lado as projeções da consciência coletiva, os seus
estados mentais e os seus atos e, por outro lado as obras de civilização como a co-
letividade de certas idéias e certos valores que aspiram à validade.
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O mundo cultural funciona como um obstáculo, resis-
te à consciência coletiva, se afirma como um nível específico da realidade social de
tal sorte que é suscetível de se apresentar a esta consciência como o seu dado. Na-
da obstante, esse nível é capaz de tornar-se um produto unilateral dessa consciên-
cia. Trata-se de uma aparente contradição e designa apenas que, em sua autono-
mia, o mundo cultural com seus valores que aspiram à validade só pode ser
apreendido por via de consciência coletiva. Por sua vez, a apreensão por via
de consciência coletiva é possível graças ao fato de que essa consciência é capaz de
se abrir, ultrapassando as suas crenças e assimilando as novas influências do ambi-
ente social, bem como é capaz de se multiplicar no mesmo quadro social.
Os símbolos para servirem de base à comunicação universal devem ter para todas as consciências
individuais o mesmo significado pressupondo em modo realista uma união, uma fusão parcial das
consciências anterior a qualquer comunicação simbólica.
Note-se que essas características da consciência coleti-
va em sua relação com o mundo cultural constituem um dos aspectos do que
Gurvitch chama dialética do ato e da obra. Aliás, da capacidade de se multiplicar
em um mesmo quadro social decorre o relativismo de que a importância dos ní-
veis em profundidade se configura em maneira variada segundo cada tipo de soci-
edade global, cada tipo de grupo social particular, e segundo os Nós – sendo cada
agrupamento particular como quadro social um macrocosmo de formas de socia-
bilidade, assim como cada sociedade global o é de agrupamentos e classes sociais.
O problema sociológico da consciência coletiva na
análise antidogmática de Gurvitch é o de tornar possível compreender a própria
possibilidade de comunicação universal entre os seres humanos e exige como já o
dissemos uma interpretação realista da consciência como virtualmente aberta e i-
manente ao ser. Partindo da constatação de que os símbolos para servirem de base
à comunicação universal devem ter para todas as consciências individuais o mes-
mo significado Gurvitch – e Dilthey antes dele – põe em relevo que isto pressupõe
uma união, uma fusão parcial das consciências anterior a qualquer comunicação
simbólica. Tal a abordagem realista que devemos contrapor à concepção que reduz
a consciência coletiva a uma simples resultante das consciências individuais isola-
das, tidas como ligadas entre si pelas suas manifestações exteriores nos signos e
nos símbolos – Claude Levy-Strauss, por exemplo, trata a consciência coletiva
como resultante de consciências individuais ligadas na linguagem como signo exte-
rior da fala; da mesma maneira, há quem veja as consciências individuais ligadas (a)
no direito, como símbolo projetando a crença na solidariedade ou as representa-
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ções coletivas dessa crença; (b) no totem religioso das sociedades arcaicas, como
símbolo (bandeira ou emblema) de um clã arcaico, seu signo exterior, etc.
Por contra, Gurvitch assinala que a concepção redu-
cionista desprezando inclusive o método sociológico de Durkheim – voltado para
diferenciar a especificidade da consciência coletiva, mesmo na limitação de seu so-
ciologismo, como vimos – é uma concepção que se acomoda ao preconceito
dogmático profundamente enraizado na psicologia clássica que faz considerar
qualquer consciência como necessariamente fechada, introspectiva, voltada para si
própria e oposta ao mundo que apreende. O reducionismo leva a negar a aptidão
ainda que virtual da consciência para se abrir em relação a outrem e ao Nós e, mais
geralmente, em relação ao ser no qual se encontra integrada. Ao invés de círculo
fechado a consciência é tensão dirigida para aquilo que a ultrapassa e lhe resiste,
como os conteúdos em obras de civilização, acolhidos nas experiências coletivas
dos valores e ideais. Desta sorte, a consciência coletiva como conceito sociológico
preciso se afirma como um aspecto irredutível da vida psíquica que não tem coisa
alguma de transcendência nem de metafísica. A fusão parcial das consciências não
é imposta de elementos exteriores, mas se revela imanente às consciências indivi-
duais e estas imanentes à fusão. Tal é a base da complementaridade, implicação
mútua e reciprocidade de perspectivas entre a consciência coletiva e as consciên-
cias individuais.
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Terceira Parte
O Problema da Consciência Coletiva na Sociologia da Vida Moral:
Notas sobre a análise crítica da sociologia de Émile Durkheim
FIM
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Quarta Parte
Introdução ao Estudo Sociológico da
Variabilidade na Vida Moral
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Quarta Parte
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
Primeira Parte
Admitindo a dimensão não imediata, mas mediata da experiência moral sobressai a importância dos símbolos
acentuando a flutuação da experiência moral em função dos quadros sociais.
O postulado básico da sociologia da vida moral é reali-
zar obra científica na medida em que se afirma uma disciplina com orientação relati-
vista
50
e empirista adotando como ponto de referência para o estudo dos fatos mo-
rais o conceito estritamente sociológico de atitude moral, compreendendo as atitudes
coletivas ou individuais penetradas pela experiência moral.
A utilização deste conceito de atitude é então de
alta valia viabilizando, por sua vez, o acesso a toda a multiplicidade dos aspectos e
variações da vida moral na medida mesma em que os integra nos quadros sociais a
50
Note-se que o relativismo sociológico não incorre na dispersão dos critérios, mas elabora uma orientação
probabilitária afirmando a variabilidade funcional, cuja complexidade, porém, decorre das funções dialéticas.
Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “
Dialectique et Sociologie
”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp., Col.
Science. Op.Cit.
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que pertencem, procedimento de integração este que é característico do estudo socio-
lógico. Em acordo com Georges Gurvitch
51
não se pode dar primazia a um gênero
de experiência moral como se esta fosse uma experiência integralmente imediata.
Quer dizer, em sociologia não tem base o propósito de
definir a experiência moral seja como perpétua revolta, seja como indignação, seja como
obrigação etc. porquanto se pretenda com atribuições destes gêneros ao conteúdo mo-
ral esgotar o campo da experiência moral. Admitindo a dimensão não imediata, mas
mediata dessa experiência trata-se de aí pôr em relevo a importância dos símbolos,
acentuando a variabilidade e mobilidade, a flutuação da experiência moral em função
dos quadros sociais tais como sociedades globais, classes sociais, agrupamentos soci-
ais particulares, formas ou manifestações de sociabilidade. Aliás, não só o nível sim-
bólico deve ser posto em relevo, mas a variação mesma entre o caráter mais imediato
– a apreensão direta do conteúdo moral – e o caráter mais mediato (apreensão reali-
zada pela intermediação dos símbolos sociais) passa a constituir um aspecto da pró-
pria experiência moral.
Portanto, favorecido com a possibilidade de chegar à
realidade da vida moral através da análise em profundidade do nível dos símbolos
sociais, o ponto de vista probabilitário vem a ser afirmado e acolhido. Delineia-se
então, menos que uma definição filosófica, uma delimitação descritiva e ampla da
experiência moral como variável funcional. Segundo Gurvitch, o termo apropriado
para a definição descritiva pode ser tirado da linguagem corrente na vida social histó-
rica onde consciência da liberdade (prometeísmo
52
) e competitividade se combinam,
a saber: a noção de luta. Ou seja, no sentido de uma teoria dinâmica a luta humana
implica mas não depende da história e constitui uma experiência que tanto é uma experiên-
cia vivida quanto o é experiência percebida nos quadros sociais. Por efeito da reflexão
51
GURVITCH, Georges (1894-1965): “
A Vocação Actual da Sociologia - vol.I: na senda da sociologia
diferencial”
, tradução da 4ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1979, 587pp.
(1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1950). “
A Vocação Actual da Sociologia –vol.II: antecedentes e
perspectivas”
, tradução da 3ªedição francesa de 1968 por Orlando Daniel, Lisboa, Cosmos, 1986, 567 pp.
(1ªedição em francês: Paris, PUF, 1957). “
Tratado de Sociologia - vol.1
", revisão: Alberto Ferreira, Porto,
Iniciativas Editoriais, 1964, 2ªedição corrigida (1ªedição em Francês: Paris, PUF, 1957). ”
Tratado de
Sociologia - Vol.2
”, Revisão: Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto 1968, (1ªedição Em Francês: PUF,
Paris, 1960). Op.Cit.
52
Percepção coletiva de que a ação concentrada pode mudar as estruturas, o prometeísmo é qualidade em todos
os tipos de sociedades históricas e sua aplicação em sociologia é indispensável para descrever a realidade
histórica como setor privilegiado da realidade social, e desta forma evitar qualquer confusão com a filosofia da
história. Ver Gurvitch, Georges (1894-1965): “
Dialectique et Sociologie
”, Flammarion, Paris 1962, 312 pp.,
Col. Science. Op.Cit.
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coletiva, a luta humana pode ser e efetivamente o é simbolizada e conceituada. Aliás,
simbolização e conceituação essas que evidentemente admitem graus em relação à sua
apreensão intuitiva. Portanto, esses graus de experiência moral devem ser bem aco-
lhidos na fórmula da definição que lhe corresponde, haja vista a defasagem entre o
apreendido e o conhecido, que constitui fator de variabilidade nessa sociologia. A
fórmula proposta por Gurvitch é a seguinte: “
a experiência moral vivida, percebi-
da e admitindo graus diversos de simbolização e conceituação é uma luta con-
tra todos os obstáculos que se opõem ao esforço humano quer coletivo, quer
individual, afirmada como manifestação digna de aprovação desinteressada
”.
O objetivo do estudo sociológico é pois fazer sobres-
sair a variabilidade na vida moral que, ademais de variar entre o imediato e o media-
to, ocorre em numerosos sentidos, haja vista a não-dependência da história. Assim
temos que a vida moral (a) – varia como experiência moral positiva e como negativa,
incluindo a experiência dos preconceitos, das faltas, da maldade, da covardia, etc.
como experiências negativas; (b) – varia com a variação das relações entre o que vale
como Bem, o que se tem por objetivos, por fins, por modelos, regras, valores, ideais e
suas representações intelectuais; (c) – varia com as variações das relações entre todos
esses elementos e as condutas efetivas; (d) – varia com as variações das relações entre
cálculos de valores e juízos de realidade relativos à resistência e à encarnação desses
mesmos valores; (e) – varia com as variações das relações entre critérios morais e
inclinações naturais (coletivas e individuais) – relações em que ambos os termos po-
dem caminhar no mesmo sentido ou em sentido contrário (não há oposição necessá-
ria entre critérios morais e inclinações naturais); (f) – varia com as variações das rela-
ções de diferenciação e de conjunção da própria experiência moral com as outras
obras de civilização, em particular com a religião, o direito, a arte e o conhecimento;
(g) – varia com as variações das relações entre os diferentes gêneros da vida moral,
suas acentuações, eficácia e importância.
Segundo Gurvitch, a obtenção desses resultados com-
pondo a variabilidade da experiência moral só é possível de alcançar mediante a apli-
cação do conceito sociológico de atitude moral
53
, que os integra nos quadros sociais
a que pertencem e desta maneira permite chegar a uma definição operativa dos fatos
morais como objetos do estudo sociológico relativista e empirista, efetuando-se sem
adotar uma doutrina filosófica da consciência moral nem atribuir aos fatos morais uma
origem histórica
54
· Portanto, há uma análise prévia das atitudes como fatos sociais, isto
53
Vimos anteriormente que a noção de
Gestalt
se inscreve na concepção mesma e na descrição das atitudes
coletivas e em particular das atitudes morais sendo possível a partir daí definir os fatos morais sem tomar po-
sição filosófica precisa nem identificar-se a uma doutrina particular – mas, bem entendido, sem prescindir da
colaboração da reflexão e da análise filosófica para definir a especificidade do fato moral.
54
Sobre as relações entre o saber histórico e a sociologia ver a Nota 01 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES
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é, como vias às quais penetrará a experiência moral. Esta as torna então ambiências
sociais inspiradas justamente pela experiência de uma luta contra todos os obstáculos
que se opõem ao esforço humano e digna de aprovação desinteressada, conforme a
definição mencionada.
Na medida em que compreendem as disposições que levam os agrupamentos sociais, os
Nós e as sociedades inteiras a reagirem em certa maneira comum, a conduzirem-se em
certo modo e a assumirem papéis sociais particulares, mesmo que não cheguem ao seu
fim, as atitudes coletivas criam um ambiente social muito peculiar.
Na medida em que as atitudes coletivas como Gestalten
constituem um nível específico da realidade social, a análise sociológica marca os limi-
tes da interpretação exclusivamente psicológica. Quer dizer, a possibilidade de a expe-
riência moral penetrar nas atitudes funda-se não só no fato de que essas configura-
ções coletivas são conjuntos (a) – muito mais complexos do que as condutas, senti-
mentos, intuições, juízos, por um lado, e por outro lado os modelos, prescrições, va-
lores, ideais, aspirações, criações; (b) – implicam todos esses níveis do conjunto das
imagens-exemplos
55
; (c) – os ultrapassam e assim se oferecem ao mesmo tempo à
observação direta ou indireta (produzida mediante aplicação dos procedimentos dialé-
ticos de verificação); (d) – trata-se de configurações sociais que podem permanecer
no estado mais virtual que atual, ou só se efetuarem em parte; (e) – em todo o caso,
nunca se realizam inteiramente (isto é, ultrapassam o seu conceito); (f) – portanto, são
dependentes unicamente do fenômeno do todo social – ou fenômeno social total, no
dizer de Gurvitch – tanto quanto servem de elementos constitutivos indispensáveis
dos Nós e grupos.
Em acordo com Gurvitch, as atitudes assim entendi-
das desde o ponto de vista da imanência recíproca do coletivo e do individual tanto
podem favorecer as tradições, as regularidades, as normas, quanto as aspirações, as
no final deste artigo..
55
Em sociologia, ultrapassando o ponto de vista exterior, as imagens-exemplos são examinadas não como
atuando de fora sobre as mentalidades, mas como inseridas na realidade social de tal sorte que não há
condutas sem modelos em vias de realização e reciprocamente, os modelos sociais clamando por realização
nas condutas.
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inovações, as efervescências, as criações. Na medida em que compreendem as dispo-
sições que levam os agrupamentos sociais, os Nós e as sociedades inteiras a reagirem
em certa maneira comum, a conduzirem-se em certo modo e a assumirem papéis
sociais particulares, mesmo que não cheguem ao seu fim, as atitudes coletivas criam
um ambiente social muito peculiar, onde no dizer de Gurvitch banham os elementos
organizados, os modelos, os signos e os símbolos
56
, e onde se desenrolam as práticas,
se representam os papéis e, finalmente, se afrontam as rivalidades ou antagonismos
sociais e se afirmam os equilíbrios das estruturas sociais.
As atitudes coletivas, ao mesmo tempo flutuantes e persistentes, inesperadas e previsíveis, não se as pode apre-
ender e permitem ao mesmo tempo a experimentação, isto é, a verificação em coeficientes de discordância entre
as opiniões exprimidas nas chamadas sondagens de opinião pública e as atitudes reais dos grupos.
Mas não é tudo. Aprofundando essas observações
Gurvitch põe em relevo certos aspectos das atitudes coletivas como ambientes sociais
peculiares que nos permite compreender melhor como a penetração pela experiência
moral vem a ser favorecida, seguintes: (a) – que as atitudes coletivas originam um
clima privilegiado em que se desenvolve uma multidão de símbolos, particularmente
os símbolos emotivos ou afetivos, por meio dos quais os valores coletivos se expri-
mem em um quadro social particular e são aceites ou rejeitados
57
; (b) – que as atitu-
des implicam uma mentalidade, em particular as preferências e aversões afetivas, e as
predisposições a condutas e reações – além das tendências a assumir papéis sociais,
como mencionado; (c) – que as atitudes individuais e as atitudes coletivas não podem
ser consideradas nem em oposição nem como alternativas, mas em relações dialéticas
variadas, já que os indivíduos mudam de atitude em função dos grupos a que perten-
cem, ao mesmo modo em que seus papéis ou seus personagens mudam segundo os
círculos diferentes a que eles pertencem; (d) – que as atitudes coletivas, ao mesmo
tempo flutuantes e persistentes, inesperadas e previsíveis, não se as pode apreender e
permitem ao mesmo tempo a experimentação, isto é, a verificação em coeficientes de
discordância entre as opiniões exprimidas nas chamadas sondagens de opinião públi-
ca e as atitudes reais dos grupos.
56
Em acordo com Gurvitch e como vimos anteriormente, os símbolos para servirem de base à comunicação
universal não se impõem desde o exterior, mas em face das consciências individuais são apreendidos ou
percebidos como devendo ter necessariamente o mesmo significado, pressupondo em modo realista uma
união, uma fusão parcial das consciências anterior a qualquer comunicação simbólica.
57
Em um quadro social, esses momentos de seleção ou escolha dos valores coletivos em meio a uma multidão de
símbolos – que nem de longe se deixam reduzir ao psicologismo do psicodrama – são designados por
Gurvitch como
dinâmicas coletivas de avaliação
, que em realidade as pesquisas de opinião pública buscam
provocar.
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Segundo Gurvitch, é em relação a este último e fun-
damental aspecto que se deve evitar o erro evidente cometido pela psico-sociologia
americana a qual, tendo introduzido positivamente o conceito de atitude social que
permitiu eliminar a noção errada e confusa de instinto social enganou-se de caminho ao
tratar a atitude como dependendo exclusivamente da psicologia. Esse engano teve
conseqüências: (a) – levou à idéia demasiado simples de que as antinomias e os confli-
tos sociais resultam sobretudo das atitudes perversas; (b) – e, dessa maneira, levou à
ilusão de que se conseguiria alcançar a mudança de atitudes por meio de sermões
lenificantes, pela reeducação que eliminaria os mal-entendidos, ou enfim pela psico-
técnica e a psicanálise; (c) – ilusão essa que se traduziu no insucesso das tentativas de
aplicar tais métodos para modificar, por exemplo, a atitude dos brancos para com os
negros nos Estados do sul dos EUA, ou a atitude dos diferentes grupos de emigrados
uns para com os outros, ou ainda a atitude dos operários e dos patrões em uma em-
presa. Por contra, Gurvitch destaca como esclarecimento desse erro psicologista o
seguinte: (a) – que o nível mental não passa de um aspecto do conceito sociológico de
atitude o qual, como mencionado, constitui um verdadeiro conjunto social, uma con-
figuração ou Gestalt coletiva
58
; (b) – que as atitudes coletivas só dependem da menta-
lidade coletiva em medida limitada; (c) – que a atitude contém sempre vários aspectos
além do mental porque implica ao mesmo tempo como mencionado o Eu, os Nós, o
outro, os grupos e a sociedade global
59
. No entanto, Nosso autor destaca mais uma
vez que, diretamente subjacente às atitudes coletivas estão os símbolos sociais e que
estes não se identificam aos modelos, tendo seu domínio específico ao fundo das
atitudes coletivas.
***
58
Sobre o método de estudo da realidade social, ver a Nota 02 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no
final deste artigo.
59
Sobre a sociologia dos agrupamentos sociais particulares e sua autonomia relativa em face e no âmbito das
classes sociais, ver Nota 03 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final deste artigo.
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Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
Segunda Parte
Não se pode reduzir a vida moral nem às práticas e hábitos nem mesmo mais largamente às condutas regula-
res previstas ou esperadas.
Em seu artigo sobre os “
Problemas de Sociologia da
Vida Moral
”, apresentado dentre outros escritos seus como contribuição à obra co-
letiva por ele próprio dirigida em dois extensos volumes publicada nos anos cinqüen-
ta
60
, Georges Gurvitch relaciona as datas e os títulos das obras dos autores adeptos
da ciência dos costumes, já mencionados no capítulo anterior deste ensaio
61
, nas quais
encontrou as descrições em fatos dos vários gêneros de moralidade. São os seguintes:
Dentre os sociólogos:
(a) – Herbert Spencer (The Principles of Ethics, vols. I e II; 1893); / (b) – William Gra-
ham Sumner (Folkways, a Study of the Sociological Importance of Usages, Manners, Customs
and Morals, 1906); / (c) – W.G. Sumner, A.G. Keller e M.R. Davie (The Science of Soci-
ety, 4 vols., 1927-1933); / (d) – Edward Westermark (L’Origine et le Développement des
Idées Morales, 1928 – original de 1906 – e Ethical Relativity, 1932); / (e) – L.T. Hob-
house (Morals in Evolution, 1ª ed. 1906, 7ª ed. 1951); / (f) – Émile Durkheim
(L’Éducation Morale, 1903, republicado em 1925; Physique des Moeurs et du Droit, obra
póstuma, publicada em 1950 por G. Davy; Détermination du Fait Moral, 1906 – repro-
duzido em Philosophie et Sociologie, 2ª ed. 1951); / (g) – Lucien Lévy-Brhul (La Morale et
la Science des Moeurs, 1903); (h) – Albert Bayet (La Science des Faits Moraux, 1935); (i) –
Morris Ginsberg (On the Diversity of Morals, 1º vol., 1956);
Dentre os historiadores:
(a) – Charles Letourneau (Évolution de la Morale, Paris, 1887); / (b) –William E. H.
Lecky (History of European Morals from Augustus to Charlemagne, 2 vols., 1ª ed. 1869, 2ª
ed. 1950);
Dentre os Psicólogos:
60
Problemas de Sociologia da Vida Moral
in Gurvitch, Georges et al: ”
Tratado de Sociologia -
Vol. 2 ”,
revisão Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto, 1968, (1ªedição em Francês: PUF, Paris, 1960), capítulo
III.
61
Ver neste nosso ensaio o capítulo 3 acima intitulado “O
Problema da Consciência Coletiva na Sociologia
da Vida Moral: Notas sobre a análise crítica da sociologia de Émile Durkheim
”.
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(a) – A. Sutherland (The Origin and Growth of Moral Instincts, vols. I e II, 1898); / (b) –
W. Wundt (Psychologie des Peuples, vols. I a X, 1900 a 1920; e Ethik, vol. I, 4ª ed., 1912).
Segundo Gurvitch, muitos desses sociólogos sentiram
que não se pode reduzir a vida moral nem às práticas e hábitos nem mesmo mais
largamente às condutas regulares previstas ou esperadas. Comentando a Westermark,
nosso autor remarca que este sociólogo afirma o estudo das opiniões em detrimento
dos costumes, definindo a consciência moral como emoções de indignação e aprova-
ção que se encontram na base dos juízos morais, referidos estes, por sua vez, em sua
especificidade moral, ao mau, ao vicioso, ao culpado ou ao bom, ao virtuoso, ao me-
recedor. Todavia, ao reduzir inadvertidamente toda a vida moral aos juízos preestabe-
lecidos – preestabelecidos porque são os juízos que se referem às condutas já realiza-
das – Westermark com essa delimitação descreve em realidade somente uma espécie
de moralidade existente ao lado de várias outras.
O estudo dos fatos morais deve ser alargado para além dos deveres e normas no sentido de incluir as imagens-
simbólico-ideais.
Já em sua sempre aprofundada análise crítica da obra e
pensamento de Durkheim, Gurvitch assinala ao menos quatro gêneros de vida moral:
(a) – um gênero de moralidade ao qual chama moralidade imperativa; (b) – um
gênero que define como moralidade de aspiração; (c) – um outro gênero já obser-
vado em Westermark que é a moralidade dos juízos preestabelecidos e, (d) – a
moralidade tradicional. Tal variedade se deve às descrições segundo critérios di-
versos oferecidas por um Durkheim insatisfeito em suas obras. Gurvitch observa
nessas obras a combinação dos critérios seguintes: 1) – a regularidade ou disciplina
como característica dos fatos morais bem como o critério da adesão a um grupo soci-
al e à sua finalidade (em L’Éducation Morale ); 2) – a observação de que a moralidade
se faz acompanhar por sanções difusas e não-organizadas (em De La Division du Tra-
vail Social); 3) – o critério da combinação do obrigatório e do desejável (em várias o-
bras), combinação essa que ocorre em proporções muito variáveis – Durkheim con-
cede, por exemplo, que na Antiguidade parece que a noção do dever (prevalece o
elemento obrigatório) foi muito minorada em favor da noção de virtude (prevalece o
elemento do desejável), enquanto que na Idade Média e nas sociedades “não-
civilizadas” é predominante a idéia do “soberano Bem” (prevalece o desejável); 4) – o
critério das funções sociais do Ideal (em “Les Formes Élémentaires de la Vie Religieuse” e
em “Jugements de Réalité et Jugements de Valeur”, de 1911).
Por sua vez, L.T. Hobhouse consta como um autor
positivo para quem o objeto da sociologia da moralidade é constituído por todas as
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manifestações da consciência moral na vida social, incluindo não só os hábitos e cos-
tumes, regras e princípios, mas também crenças e ideais. Todavia seu estudo socioló-
gico da vida moral não mantém a autonomia deixando-se penetrar por uma filosofia
sintetizando o evolucionismo e o racionalismo.
Mas não é tudo. Segundo Gurvitch a interessante con-
tribuição de Albert Bayet guarda dois aspectos dignos de nota. Por um lado admite
um intelectualismo moral prévio ao definir a ciência dos fatos morais como etiologia,
acrescentando a precisão de tratar-se do estudo da distinção do Bem e do Mal tal
como se manifesta nos fatos sociais. Por outro lado Gurvitch louva o esforço de Ba-
yet no sentido de ampliar a definição do fato moral em duas direções renovadoras
seguintes: (a) – contra a redução dos fatos morais a condutas habituais e regulares
conformadas aos deveres e normas, afirmando Bayet que, na realidade dos fatos a
moralidade admite, encoraja, tolera, aconselha, propõe; (b) – ao considerar que tam-
bém existem as virtudes sublimes do sage (o circunspecto), do estóico, do santo, do
homem prudente, do homem honesto, do cidadão. Gurvitch concede a palavra a
Bayet para esclarecer sobre essas
imagens-simbólico-ideais
, como dirá posterior-
mente nosso autor em sua classificação dos diversos gêneros de vida moral. E Bayet
completa: “tais virtudes sublimes ninguém pensa em considerá-las todas como indispensáveis”.
“Em vez de as encarar como um exercício obrigatório, a sociedade propõe-nas aos seus membros como
um cume que nem sempre se logra atingir”. Seu argumento definitivo é portanto no sentido
de alargar o estudo dos fatos morais para além dos deveres e normas.
***
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
Terceira Parte
É em razão do fato de que as atitudes morais implicando o nível dos símbolos, mas a estes não se reduzindo
constituem um setor da realidade social que no dizer de Gurvitch a explicação sociológica consiste no estabele-
cimento de correlações funcionais.
Sem dúvida, em bom durkheimiano, Gurvitch não
deixa passar em silêncio a recomendação de seu mestre destacando a indispensabili-
dade do símbolo que possibilita a observação do fato moral, seguinte: “para poder estu-
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dar a realidade moral é indispensável determinar previamente em que consiste o fato moral, porque,
para poder observá-lo, ainda precisamos saber o símbolo que o representa
62
· Recomendação
essa que Gurvitch levará em conta em sua definição do fato moral a partir da noção
sociológica de atitude, na qual definirá a própria sociologia da vida moral. Com efeito,
é em razão do fato de que as atitudes morais constituem um setor da realidade social
que no dizer de Gurvitch a explicação sociológica consiste no estabelecimento ou de
correlações funcionais ou de regularidades tendenciais, assim como consiste em inte-
gração no conjunto do tipo social e às vezes na formulação de leis de probabilidade.
Em conseqüência e na medida mesma em que são constatadas como um setor da
realidade social, logo indispensáveis na formação das estruturas, pode-se admitir na
análise da vida moral em um quadro social preciso que, além da atitude moral favore-
cida,
existem outras atitudes que não se manifestam
.
A moralidade real, não reduzida ao símbolo que a representa, é observada na hierarquia variável dos seus
gêneros e formas.
Gurvitch nos lembra para exemplificar que a classe
camponesa (paysannerie) favorece habitualmente uma atitude moral tradicionalista; que
a classe burguesa favorece uma atitude moral finalista; as classes médias uma atitude
moral baseando-se no dever; e a classe proletária, por sua vez, favorece uma atitude
moral fundando-se na aspiração e na criação. Todavia isto não significa que nessas
classes deixe de haver outras atitudes morais que não se manifestam nem que, nessa
mesma medida, entre esses quadros sociais e as atitudes morais exista uma relação de
causa e efeito (se existisse tornaria ilusória toda a moralidade).
Desta maneira, com essas observações considerando as
atitudes morais como um setor da realidade social (o que é válido também para o
conhecimento) e afirmando uma orientação preliminar à sua definição de sociologia
da vida moral, Gurvitch exclui que a explicação sociológica tenha alguma coisa a ver
com o problema da justificação das atitudes morais, a saber: se as atitudes são ficções,
projeções, epifenômenos – afirmações estas que dependem da filosofia. Por contra,
para a sociologia há uma competição entre diferentes gêneros de atitudes morais bem
como, no interior destes há conflitos entre as diferentes formas da moralidade real.
Quer dizer, a moralidade real, não reduzida ao símbolo que a representa, é observada
na hierarquia variável dos seus gêneroS e formas, isto é, nos sistemas de moralidade
62
Sentença de Durkheim in “
Philosophie et Sociologie
”, pág 49.
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real ou sistemas das atitudes morais efetivas, que correspondem em particular aos
tipos de estruturas globais (e muitas vezes aos tipos de estruturas parciais).
Para Gurvitch, todos os tipos de estruturas sociais têm
tendência a favorecer não um único gênero e no interior deste uma só forma da vida
moral, mas toda uma hierarquia de gêneros e formas. Quer dizer, o sistema de mora-
lidade desempenha um papel não só na estruturação das sociedades globais, mas
também na estruturação dos agrupamentos sociais particulares (incluindo aí as classes
sociais).
Em sua definição da sociologia da vida moral Gurvitch põe em relevo duas linhas de estudo complementares
acentuando as correlações funcionais e a pesquisa (a) – das variações das relações da moralidade com as outras
regulamentações sociais,(b) – da justificação ideológica, (c) - da gênese da vida moral.
Desta maneira, antes de apresentar a fórmula de sua
definição descritiva da sociologia da vida moral, Gurvitch distinguirá oito gêneros da
vida moral real e seis dicotomias das formas da moralidade real. Note-se que no ter-
mo gênero da vida moral real as atitudes coletivas são abordadas como incluindo tudo o
que implícita ou explicitamente elas contêm em conjunto, como Gestalt coletiva. Aliás,
ao classificar em maneira descritiva as atitudes coletivas segundo
o conjunto de sua
orientação para um ascendente moral exigindo um esforço digno de aprova-
ção desinteressada
Gurvitch é durkheimiano por manter a característica do ascenden-
te moral como critério fundamental do quadro social
63
, mas ultrapassa seu mestre ao
afirmar a simples exigência de um esforço digno como princípio verificável e não a obrigação
durkheimiana que lembra o subjetivismo exacerbado do imperativo kantiano.
A classificação dos oito gêneros da vida moral real
diferenciando-se no conjunto da orientação das atitudes coletivas para um ascendente
moral exigindo um esforço digno de aprovação desinteressada é então a seguinte:
(1) – a moralidade tradicional;
(2) – a moralidade finalista, em particular utilitária;
(3) – a moralidade das virtudes;
(4) – a moralidade dos juízos preestabelecidos;
(5) – a moralidade imperativa;
(6) – a moralidade das imagens simbólicas ideais;
63
Em sociologia e em consonância com a não-redução da moralidade real ao símbolo que a representa a noção de
quadro social da vida moral compreende a atitude em vias de se fazer, um suporte intencional ou não-
representativo.
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(7) – a moralidade de aspiração;
(8) – a moralidade de ação e criação.
Quanto ao termo de “formas da moralidade real”, Gurvit-
ch pretende designar as tonalidades das atitudes morais que intervêm no modo
de apreender ou aplicar o ascendente moral, para o qual se orientam. As seis
dicotomias compondo essas formas variáveis da moralidade são as acentuações que
manifestam as flutuações intensas dessas formas no seio de cada gênero da vida mo-
ral. São as seguintes:
(1) – a moralidade mística e a moralidade racional (sendo a moralidade religiosa e a
laica suas manifestações secundárias);
(2) – a moralidade intuitiva e a moralidade reflexiva;
(3) – a moralidade rigorista e a moralidade dos dons naturais;
(4) – a moralidade que se amplia e a moralidade que se circunscreve;
(5) – a moralidade firmemente respeitada e a moralidade em declínio;
(6) – a moralidade coletiva e a moralidade individual.
Enfim, o termo sistema da vida moral é definido por
Gurvitch como designando as hierarquias particulares dos gêneros de vida moral e no
interior destes as acentuações das formas da moralidade, correspondendo ambas aos
tipos dos quadros sociais.
Neste ponto, podemos então observar em sua defini-
ção da sociologia da vida moral que Gurvitch põe em relevo duas linhas de estudo
complementares: primeira linha: o estudo das
correlações funcionais
entre gênero,
formas, sistemas de atitudes morais, por um lado, e por outro lado os tipos de qua-
dros sociais, compreendendo as sociedades globais, as classes sociais, os agrupamen-
tos sociais particulares, as manifestações de sociabilidade; segunda linha: a investiga-
ção (a) – das
variações das relações da moralidade com as outras regulamenta-
ções sociais
e obras de civilização; (b) – das formas de
justificação ideológica
por
meio de doutrinas; (c) – finalmente, a investigação da
gênese da vida moral
e seus
determinismos específicos.
Em sociologia trata-se da vida moral efetiva, isto é, de uma regulamentação ou contro-
le social sempre particular.
O estudo das correlações funcionais que se efetua ini-
cialmente pelo cotejo dos gêneros e formas das atitudes morais com os tipos de qua-
dros sociais exige a atenção do sociólogo para a questão prévia de saber quais dentre
os gêneros e formas particulares podem ser referenciados no tipo microssocial, no
tipo grupal ou no tipo global que se estuda, haja vista em sociologia tratar-se da
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vida moral efetiva, isto é, de uma regulamentação ou controle social sempre
particular e, portanto exigindo essa seleção e adequação prévias à descrição em que
o gênero de vida moral se especifica em realidade. Na seqüência dos procedimentos
desse estudo das correlações funcionais Gurvitch distingue o seguinte: (a) – que seja
constatada a ordem em que estão colocadas esses gêneros da vida moral referenciá-
veis, isto é, o sistema de vida moral que constituem entre si e, (b) – sendo possível
verificar a correspondência de um sistema diferente para cada tipo de estrutura global
ou parcial, (c) – será então estabelecida a correlação funcional entre esses sistemas e
os tipos de estruturas – notando-se com ênfase que o estabelecimento dessa correla-
ção funcional se alcança sem que surja o problema da causalidade.
Mas não é tudo. Essa possibilidade de estabelecer a
explicação por correlações funcionais sem discutir o problema da causalidade merece
destaque: é o procedimento privilegiado da sociologia da vida moral e se aplica igual-
mente para verificar a acentuação das formas da vida moral – sempre no interior dos
gêneros morais – em função dos quadros sociais. Gurvitch nos dá alguns exemplos a
respeito disso. Lembra-nos as variações da moralidade imperativa que (a) – tanto
pode tomar uma forma racional ou mística quanto uma forma intuitiva ou reflexiva;
que (b) – pode ampliar-se ou circunscrever-se; (c) – pode ser aceite ou não – varia-
ções estas que são válidas igualmente para a moralidade tradicional, para a moralidade
das imagens simbólicas ideais (que é a moralidade propriamente ideológica) e ainda
para a maior parte dos outros gêneros de atitudes morais. Em face dessas constata-
ções, Gurvitch nota a exigência para o sociólogo da vida moral que terá de novo que
buscar as correlações funcionais dessas variações com os quadros sociais.
A função da vida moral é muito mais importante em certos tipos de sociedades ou de grupos do que em outros.
Porém, devemos dar muita ênfase a este outro domí-
nio da sociologia da vida moral – já destacado na segunda linha de estudo acima discrimi-
nada – cuja análise não exige tampouco recurso direto à causalidade e que diz respeito
à comparação da importância da função da vida moral, isto é, a análise da relação
entre as atitudes morais e os outros gêneros de regulamentações sociais. Assim se
constata que a função da vida moral é muito mais importante em certos tipos de soci-
edades ou de grupos do que em outros. Vale dizer, enquanto nas cidades e impérios
antigos a arte, o conhecimento e o direito predominavam sobre a vida moral, esta
ocupava o primeiro lugar na sociedade patriarcal e o terceiro lugar na sociedade feu-
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dal, e se a vida moral conquistou uma certa supremacia na época das democracias
liberais, foi relegada para último plano pelo capitalismo organizado
64
.
Quanto à investigação das formas de justificação ideo-
lógica por meio de doutrinas, que constitui igualmente domínio da sociologia da vida
moral, tem lugar uma disciplina específica que Gurvitch designará sociologia das doutri-
nas ou das filosofias morais. Trata-se de examinar a hipótese de que algumas das filosofias
morais possam revelar-se como formas dogmáticas (ou axiomáticas) de justificar e
sublimar uma situação de fato encontrada no sistema das atitudes morais em vigor
em certo tipo de estrutura social. Nota-se, no entanto que essa linha de pesquisa não
implica em tomar como impossível uma filosofia moral não dogmática e não ideoló-
gica. Para Gurvitch, cabe aos filósofos encontrá-la sem esquecer a variabilidade dos
sistemas da vida moral evidenciada pelos sociólogos. Em sua análise, observando os
casos privilegiados, nosso autor sugere que as seguintes doutrinas morais poderiam
corresponder às atitudes morais existentes em certos tipos de estruturas globais: (a) –
as doutrinas do bem supremo, do dever, das virtudes; (b) – as do rigorismo moral, a
doutrina dos dons naturais, as doutrinas vitalistas, as racionalistas, as místicas, as sen-
timentais; (c) – as morais contemplativas e as morais de ação; (d) – as morais indivi-
dualistas.
Quanto à última tarefa da sociologia da vida moral
compreendida na definição-programa de Gurvitch, como vimos, destaca-se a linha de
pesquisa em que a explicação causal poderia intervir. Trata-se da pesquisa genética da
vida moral que nosso autor distingue nas seguintes orientações: (1) – o estudo das
origens religiosas, das origens mágicas
65
, das origens jurídicas, das origens cognitivas
da vida moral; (2) – o estabelecimento dos determinismos de transformação da vida
moral nos diferentes tipos de agrupamentos, classes, sociedades globais; (3) – a pes-
quisa dos determinismos da ação desempenhada pela vida moral sobre os outros as-
pectos do fenômeno social total e seu conjunto.
64
Ver as análises de C.Wright Mills sobre a irresponsabilidade organizada em “A Elite do Poder”, Zahar, Rio de
Janeiro. (The Power Elite. New York: Oxford University Press, 1964).
65
Quer dizer: o estudo das origens da vida moral a partir das práticas das sociedades arcaicas, sobretudo as
práticas referidas ao que os etnólogos chamam Magia como obra de civilização ou magia branca.
Ver: Lumier, Jacob (J.); Laicidade e dialética: dois artigos Saint-Simonianos para a sociologia do
conhecimento (127 págs) Internet, Portal MEC.br, e-book, pdf, 2007; link:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=53879
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ea000151.pdf
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Nada obstante, Gurvitch entendeu que só o estudo das
correlações funcionais entre os gêneros, formas e sistemas da vida moral e os quadros
sociais de que fazem parte podia ser empreendido com resultados positivos e satisfa-
tórios. O desenvolvimento da sociologia da vida moral à época (anos de 1960) ainda
era muito reduzido e a disciplina insuficientemente amadurecida para que todos os
problemas enunciados fossem então abordados. Em conseqüência encontramos em
suas obras como vimos somente (a) – suas exposições tornando precisos inicialmente
os gêneros e formas da vida moral mediante o procedimento metodológico de colo-
cá-los de novo nos fenômenos sociais totais correspondentes; (b) – suas exposições
estudando como pontos de referência as manifestações dos quadros microssociais,
grupais e globais na vida moral; (c) – suas exposições sobre as correlações funcionais
entre as estruturas sociais globais e os sistemas de moralidade real
66
.
***
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
Quarta Parte:
Notas sobre a análise crítica do
Método de Durkheim para diferenciar os fatos morais.
O método para diferenciar o fato moral só é possível no dizer de Gurvitch como análise reflexiva dos atos
realizados, reconduzindo às diferentes espécies da experiência coletiva e à sua interpenetração dialética, análise
esta derivada do hiperempirismo dialético.
66
Ver para os itens (b) e (c):
Problemas de Sociologia da Vida Moral
in Gurvitch, Georges et al:
Tratado de
Sociologia -
Vol. 2 , revisão Alberto Ferreira, Iniciativas Editoriais, Porto, 1968, (1ªedição em Francês: PUF,
Paris, 1960), págs. 206 a 237. Op.Cit.
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Seja como for, Gurvitch desenvolve as orientações
fundamentais da sociologia da vida moral através da análise crítica do método de
Durkheim para diferenciar os fatos morais
67
do qual alguns aspectos já foram men-
cionados. Como sabemos a proposta de Durkheim (a) – é demasiado restrita quando
pressupõe que qualquer moralidade é hábito tradicional e regularidade, é conforme a
regras preestabelecidas; (b) – é demasiado ampla quando estabelece a distinção entre
direito e moral pelo critério de sanções organizadas (Direito) ou sanções difusas (Mo-
ral). Essas oscilações entre o restrito e o amplo devem-se à indefinição do método que
para Durkheim não pode ser (a) – nem indutivo, porque isto pressuporia os fatos mo-
rais como sendo já desligados dos outros fatos de civilização quando, ao contrário
disso, é exatamente essa distinção que se pesquisa no problema da determinação da
especificidade do fato moral; (b) – nem dedutivo, pois se a definição dos fatos morais
fosse deduzida não serviria de ponto de referência para a sociologia em sua exigência
de descrição da moralidade real efetiva, mas a substituiria e a faria desaparecer.
Por contra, o método para diferenciar o fato moral só
é possível no dizer de Gurvitch como
análise reflexiva dos atos realizados, re-
conduzindo às diferentes espécies da experiência coletiva e à sua interpene-
tração dialética
, análise esta derivada do hiperempirismo dialético
68
, cujos procedi-
mentos veremos mais adiante. Portanto, Durkheim está longe de alcançar uma análise
com recursos dialéticos. Em seu pensamento são favorecidos em particular os gêne-
ros da vida moral baseados na regra e no desejável
69
, tidos como ligados entre si pelo
elemento do ascendente, o qual exige do sujeito um esforço qualificado no dizer e Dur-
kheim como uma violência que infligimos a toda uma parte da nossa natureza. Aliás,
é esta característica da vida moral real em exigir do sujeito um esforço controlador
sobre parte de si que torna os vários aspectos da
realidade moral
indissoluvelmente
ligados. Foi essa característica do
ascendente
que Durkheim achou por bem aproxi-
67
Ver seus estudos em
A Vocação Atual da Sociologia,
2 vols. Op.Cit.
68
A filosofia e a ciência possuem um umbral metodológico comum que é a purificação prévia, a dura prova, o
ordálio do hiperempirismo dialético
que libera tanto a ciência quanto a filosofia de todo o preconceito ou pré-
judicação e provoca a demolição de todo o quadro conceitual operativo mumificado. O hiperempirismo
dialético é uma direção do realismo sociológico que compreende certos procedimentos de desdogmatização
do conhecimento que concorrem para estabilizar a visão de conjuntos
e fazer sobressair toda a complexidade
do método da sociologia. Ver: Gurvitch, Georges (1894-1965): “
Dialectique et Sociologie
”, Flammarion,
Paris 1962, 312 pp., Col. Science. Op.Cit.
69
Dentre eles a moralidade fundada no dever, a qual implica um forte desenvolvimento do racionalismo e só
surge nitidamente nos séculos XVIII e XIX.
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mar do elemento do sagrado que por sua vez diz respeito à religião e não à vida mo-
ral. Em seu pensamento a abordagem metodológica deve vincular-se a uma suposta
ciência cuja descrição e explicação da realidade moral forjam o critério para a julgar,
para dela pronunciar juízos de valor. Identifica então essa pretendida ciência com a
“ciência dos costumes” atribuindo-lhe função normativa ao supor que em tempo de
crise poderia a mesma repor a situação opondo ao caráter passageiro da crise a per-
manência com a qual durante muito tempo se firmou o princípio assim negado. Tais
as preliminares.
É a característica da vida moral real em exigir do sujeito um esforço controlador sobre parte de si que torna os
vários aspectos da realidade moral indissoluvelmente ligados.
A análise reflexiva porém deixa de lado esta concepção
da “ciência dos costumes” tida como função normativa
70
para concentrar-se na críti-
ca das oscilações do método. Visando contrarrestar a insuficiência em pressupor que
qualquer moralidade é hábito tradicional e regularidade – afirmação inexata até para
definir o direito – observa-se (a) – que a vida moral quer seja coletiva quer individual
tem tendência para se afirmar como um esforço de inovação; (b) – que é possível
distinguir os hábitos especificamente morais dos outros hábitos pelo fato de os hábitos
morais serem ímpetos tornados moderados e estabelecidos que, então se apresentam como pontos de
referência para as novas revoltas contra o que está cristalizado ou para novos ímpetos; (c) – que a
regularidade e a ordem estável se afirma somente na periferia da moralidade real; (d) –
que, por contra, a moralidade real deve ser concebida como uma atividade que mes-
mo coletiva é perpetuamente móbil (mobile), motora . Acresce que, no sentido desta
última observação, vários autores definiram o fato moral como uma antecipação, uma
projeção perpétua do que há de ser (Fréderic Rauh), falando-se inclusive de moralidade dinâ-
mica da criação (Bérgson). Segundo Gurvitch formulações deste teor estão mais próxi-
mas da definição das tendências efetivas da vida moral real desde que reconheçam
suas diferentes espécies e formas.
70
A concepção atribuindo função normativa à ciência dos costumes é menos uma simples projeção ideológica de
interesses conservadores do que o é fruto de um pensamento metafísico atribuindo alcance metamoral à
sociedade. Ver neste ensaio o capítulo 3
acima, intitulado
O Problema da Consciência Coletiva na
Sociologia da Vida Moral: Notas sobre a análise crítica da sociologia de Émile Durkheim
.
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O elemento da norma não pode separar-se do valor desejado, ao passo que o valor desejado se pode afirmar
sem o apoio de qualquer norma.
A insuficiência da definição de Durkheim para reco-
nhecer a moral não-impositiva como outro gênero de moralidade tampouco resiste a
uma apreciação lógica voltada para cotejar a existência de certas virtudes sublimes que o
grupo social ou a sociedade propõe aos seus membros como um exemplo elevado a
alcançar sem que ninguém pense em exigi-las todas como um dever, nem considerar
seu exercício como obrigatório. Quer dizer, confrontando a concepção de Durkheim
tornando moral um hábito regular ao submetê-lo a regras e imperativos categóricos
precisos, por um lado, e por outro lado assinalando o fato de que o hábito e a regula-
ridade desde o ponto de vista moral não atendem a uma existência necessária, e que,
por conseqüência o fato moral não está lógica ou necessariamente ligado a regras,
Gurvitch porá em relevo que o elemento da norma não pode separar-se do valor de-
sejado, ao passo que o valor desejado se pode afirmar sem o apoio de qualquer norma.
Houvera pois um erro de análise em identificar ode-
ver-ser” – que é característica efetiva dos valores morais – com a prescrição; em identi-
ficar o dever-ser com a norma que dele deriva sim, é certo, mas deriva somente em caso
de resistência aos valores, e que por conseqüência é norma proibitiva – ou seja, um
dever concebido como prescrição, como regra, é sempre negativo, combativo e proi-
bitivo. Distinguindo então entre o dever e a norma do dever, Gurvitch observa que o
dever é o produto da constatação de que um valor desejado não é realizado (ou não o
é suficientemente) nos fatos que lhe resistem; enquanto que a norma do dever varia
segundo o grau e a forma da resistência a um valor aspirado. Quer dizer, se essa resis-
tência não se verificar não existe norma, e nos lembra ainda a título e exemplo cabal
que não se pode prescrever norma alguma a uma mãe que ama seu filho ou a uma
comunhão de crentes em êxtase, o que não significa que não haja moralidade.
Segundo Gurvitch, após haver introduzido na defini-
ção do fato moral (ou da moralidade real) o elemento do desejável, da aspiração aos
valores, é um erro tentar conservar o elemento da prescrição. Isto levaria a separar
moralmente o desejado de qualquer outra forma do desejável. A distinção entre o dever-ser
e a norma do dever põe em relevo a falta de fundamento para se confrontar a priori-
dade do valor, do desejável, sobre a prescrição no âmbito do fato moral. Torna-se então
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evidente que o elemento da norma
71
não pode separar-se do valor desejado ao passo que este se pode
afirmar sem o apoio de qualquer norma.
Tal é o caso que Gurvitch vai buscar em Albert Bayet.
Ou seja, a par do que a moralidade real exige sob a forma de regras e de prescrições
se pode encontrar na moralidade real os seguintes elementos: (1) – o que ultrapassa
qualquer regra; (2) – o que nela é inexprimível; (3) – o que é pura aspiração. Da mes-
ma maneira, como mencionado, se pode encontrar independentemente de sua refe-
rência às regras os seguintes traços: (a) – o que a moralidade admite; (b) – o que a
moralidade encoraja; (c) – o que ela tolera; (d) – o que ela aconselha; (e) – o que pro-
põe. Gurvitch cita a formulação de Bayet já mencionada segundo a qual um dos tra-
ços morais mais instrutivos é o tipo no qual se representa um ideal: o sage (o circuns-
pecto), o estóico, o santo, o prudente o ordeiro, o cidadão. Será ao estudo sociológico
deste gênero de moralidade real que, ao invés de virtudes sublimes, Gurvitch chamará
imagens simbólicas ideais, como mencionado.
Durkheim em sua reflexão junto com a filosofia de Kant faz por um lado com que o desejado em moral per-
maneça como imperativo hipotético, e por outro lado faz com que o dever seja sempre penetrado pelo desejável.
Sem duvida, o referido erro de análise em que se en-
volveu Durkheim tem a ver com sua interpretação sociologista da autonomia moral
em face da filosofia de Kant. Gurvitch nota que neste último o caráter do dever con-
cebido como imperativo categórico se põe perante a autonomia moral como o que
lhe resiste, ou seja, o dever como imperativo categórico só se realiza ao passar na
capacidade que a consciência moral individual tem de atribuir a si mesma a sua pró-
pria lei. Por sua vez, Durkheim (a) – aceita expressamente a oposição que faz Kant
do imperativo categórico (afirmado perante a autonomia moral) ao imperativo hipo-
tético; (b) – completa essa oposição pela introdução da oposição das sanções ligadas
aos atos por um elo sintético – em que vê as características do deveres morais – e das
sanções ligadas aos atos por um elo analítico – característica das regras técnicas.
A estes critérios Durkheim introduz como o caráter
essencial de qualquer ato moral o elemento do desejável, do que nos atrai, o ele-
mento do que nos parece bom, do que nos apegamos, elemento este que, como foi
mencionado, é desconhecido por Kant. Nada obstante, Durkheim apresenta esse
elemento do desejável como muito especial e o opõe a todos os outros desejos deri-
71
Notando que a norma não tem necessidade de ser fixada de antemão e nem sempre o é, já que a resistência aos
valores é imprevisível.
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vados da nossa sensibilidade, tomando-o como incomensurável com eles, como colo-
cado à parte, desfrutando de um prestígio, exigindo esforços e sacrifícios. Desta ma-
neira, por essa colocação do desejável à parte, Durkheim em sua reflexão junto com a
filosofia de Kant faz por um lado com que o desejado em moral permaneça como
imperativo hipotético, e por outro lado faz com que o dever seja sempre penetrado
pelo desejável. Gurvitch nota que é por esta via de atribuição do caráter de imperati-
vo categórico que desta última maneira é afirmado tanto para a regra tradicional
quanto ao desejável em moral, que finalmente Durkheim acredita poder concluir que
a origem e o fim da moral é a sociedade e não a consciência individual.
***
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
Quinta Parte
A exigência para alcançar um critério do fato moral se impõe mesmo diante de
diferenciação histórica incontestável entre os fatos morais e as crenças no sobrenatural.
***
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As observações com alcance crítico que Gurvitch nos oferece em sua análise das bases da sociologia da vida
moral na obra e pensamento de Durkheim são pautadas pela pesquisa da variabilidade.
Em Durkheim a variação é admitida somente em rela-
ção à combinação do obrigatório e do desejável, cujo exemplo é o caso da Antiguida-
de, em que a noção do dever estaria muito diluída. Seu postulado afirma que querer
outra moral para além da que está implicada na natureza da sociedade seria negar esta, e por conse-
guinte negar-se a si próprio
72
. É a afirmação da pressuposição dogmática de uma hierar-
quia imutável dos agrupamentos sociais segundo o seu valor. Em realidade, a sociolo-
gia constata ao contrário disso a inversão constante tanto das hierarquias dos gêneros
de moralidade como das tabelas de valores, e constata as variações dos atos de prefe-
rências e repugnâncias, isto é, as variações das atitudes e das funções sociais de dife-
rentes conjuntos pelos quais os valores são aceites ou rejeitados, advindo dessas vari-
ações a impossibilidade de uma escala estável entre os valores.
A orientação de Durkheim para a regularidade e a dis-
ciplina lhe traz dificuldades como mencionado para distinguir os fatos morais diante
das outras obras de civilização que lhe são mais próximas como, por exemplo, diante
dos fatos jurídicos e dos fatos religiosos. É no direito que a regularidade e a discipli-
na, por um lado, e por outro lado a norma desempenham um papel equivalente ao
valor (no sentido do desejável), à aspiração, à ação, porque em acordo com Gurvitch
é no direito que a ordem estabelecida, a realização, a segurança têm uma importância
tão grande como os valores à realizar, a mobilidade e o ímpeto. Vale dizer, a experi-
ência jurídica é consumada em atos de reconhecimento coletivo dos fatos em que se
encarnam os valores ou fatos normativos (objetos da sociologia jurídica).
Foi reconhecida pelo próprio Durkheim a inexatidão do critério de sanções organizadas e sanções
difusas para estabelecer a distinção entre direito e moral.
Se Durkheim ensina que a pesquisa dos fatos morais
pode começar pelo estudo de sua expressão nos fatos jurídicos e que estes só os refle-
tem parcialmente, Gurvitch esclarece o seguinte: (a) – que os fatos jurídicos podem
entrar em conflito flagrante com os fatos morais; (b) – que a vida moral é infinita-
mente mais flexível e mais móbil que a vida jurídica; (c) – que a vida moral varia com
uma rapidez incomparavelmente maior do que a realidade jurídica; (d) – que a experi-
ência e a realidade jurídicas são inteiramente coletivas enquanto a realidade e experi-
ência morais podem ser tanto coletivas quanto individuais; (e) – que as experiências
72
Cf. “
L’Éducation Morale
” pág. 54, apud Gurvitch, op.cit.
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morais em que o vetor individual está mais fortemente acentuado e que tenham re-
percussões sociais relevam do domínio da sociologia da vida moral.
Segundo Gurvitch, foi reconhecida pelo próprio Dur-
kheim a inexatidão do critério de sanções organizadas e sanções difusas para estabelecer a
distinção entre direito e moral. O direito que se afirma acompanhado de sanções or-
ganizadas apóia-se em um direito espontâneo com sanções difusas, sendo estas utili-
zadas exatamente para fundamentar a organização de sanções – qualquer direito san-
cionado apoiando-se em geral em um direito não sancionado, que é unicamente ga-
rantido pela própria existência da estrutura social na qual ele se apóia. Acresce que (a)
– o termo sanção no domínio do direito designa uma medida social mais ou menos
determinada pela regra infringida (a coação propriamente dita); (b) – que sanção em
moral significa uma reprovação imprevisível do ato, proveniente tanto da coletividade
quanto do próprio agente moral; (c) – que as sanções jurídicas e as sanções morais
são muitas vezes incomensuráveis; (d) – que, no fato moral regra e sanção podem
desempenhar um papel mais subalterno e superficial ao passo que no fato jurídico a
sua importância é de primeira ordem. Quer dizer, ao estabelecer a distinção entre
direito e moral pelo critério de sanções organizadas e sanções difusas, respectivamen-
te, Durkheim só aborda por conseqüência as diferentes espécies e camadas do direito,
não alcançando o fato moral propriamente dito.
A tese sobre a gênese histórica da vida moral a partir da religião é muito contestada.
Se a sociologia da vida moral deve procurar sob a apa-
rência das religiões o fato moral propriamente dito, não deve deixar-se confundir à
sociologia religiosa. Ao insistir na relação entre o conteúdo moral e o sagrado, e ao
afirmar a origem propriamente histórica do fato moral e do fato religioso como men-
cionado Durkheim não consegue traçar uma distinção nítida entre eles. Neste senti-
do, as observações de Gurvitch assinalam as seguintes correções: (1) – que a obriga-
ção moral liga-se ao elemento da sociedade e não ao elemento religioso; (2) – que a
tese afirmando a gênese histórica da vida moral a partir da religião é muito contesta-
da; (3) – que a exigência para alcançar um critério do fato moral se impõe mesmo
diante de uma diferenciação histórica incontestável entre os fatos morais e as crenças
no sobrenatural.
Com efeito, Gurvitch nota que, na análise etnológica
do totemismo nas sociedades não-históricas, Durkheim admite que os interditos deri-
vados do totem (interditos religiosos) só se tornam morais graças ao elemento supra-
rogatório da censura, da reprovação pública (elemento este que sem dúvida completa-
ria o elemento dos efeitos místicos dos atos contrários aos interditos). Quer dizer,
não é a violação dos interditos em si mesmos que faz nascer as sanções propriamente
éticas, assim como não é o interdito como tal que constitui o fundamento da obriga-
ção moral. Gurvitch põe então em relevo no tocante ao “item (1)
” que os suportes da
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moralidade manifestos no tabu religioso são os seguintes: (a) – o respeito imposto pela
sociedade; (b) – o seu ascendente direto; (c) – a reprovação pela qual ela verbera o
culpado.
Já quanto ao “item (2)”, há que distinguir entre a tese
da gênese histórica da vida moral e a diferenciação histórica incontestável dos fatos
morais e das crenças no sobrenatural, em que a análise ultrapassa o totemismo religi-
oso. Gurvitch nos lembra o seguinte: (a) – que essa tese da gênese histórica da vida
moral é contestada por vários sociólogos dentre os quais Westermark, King, Edward
Mayer e Marillier; (b) – que, mesmo admitindo a existência de uma moralidade religi-
osa isto não exclui outras origens da moralidade (“talvez origens múltiplas”, dirá
Gurvitch); (c) – que, dentre os sociólogos colaboradores do próprio Durkheim já se
observou (Bouglé) que o fato de crenças religiosas e práticas morais estarem por ve-
zes aglutinadas não é um conhecimento decisivo porque aglutinação não é identidade;
(d) – mesmo se em algumas estruturas sociais houvesse dominação da religião sobre a
moral isto não significa que houvera criação da moral pela religião; (e) – sem embar-
go, na hipótese de que a referida dominação da religião sobre a moral significa que
haverá uma moralidade pós-religiosa é possível admitir que houve uma moralidade
pré-religiosa. Gurvitch lembra-nos ainda suas próprias análises das sociedades arcai-
cas
73
, cujos resultados não só favorecem sua crítica do caráter amoral atribuído por
Durkheim à Magia como obra de civilização naquelas sociedades
74
, mas, desenvol-
vendo e aprofundando o caminho aberto por Marcel Mauss, serviram ao própriO
Gurvitch para distinguir uma moralidade da imanência e do esforço e uma moralida-
de ligada à religião sendo esta uma moralidade da transcendência, do Bem Supremo,
da tradição e do dever.
Considerando agora os casos de estudo em que tenha
havido uma incontestável diferenciação histórica entre fatos morais e crenças no so-
brenatural, Gurvitch sublinha que mesmo nestes casos a sociologia da vida moral
precisa voltar a encontrar o critério sociológico de distinção entre os fatos morais e as
crenças no sobrenatural de diversos gêneros, incluindo nestas últimas em particular
os fatos religiosos. Nosso autor põe então em relevo os seguintes aspectos: (a) – que
73
Ver
A Vocação Actual da Sociologia
, 2 vols., op.cit. Ver também, Lumier, Jacob (J.): Laicidade e dialética:
dois artigos Saint-Simonianos para a sociologia do conhecimento (127 págs) Internet, Portal MEC.br, e-
book, pdf, 2007; op.cit. link:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=53879
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ea000151.pdf
74
Os etnólogos como Marcel Mauss estudaram o mito do maná mágico notando que se diferencia socialmente do
totemismo religioso, sobretudo nos Melanésios.
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a experiência moral não é mística em si mesma e como tal não implica em modo al-
gum um apelo ao transcendente; (b) – que a experiência moral pressupõe um mundo
de conflitos indo até às antinomias e opõe-se a outras experiências irredutíveis
75
; (c)
– que, pelo contrário, a experiência religiosa é experiência mística de um sobrenatural
transcendente, incluindo a promessa de salvação – e nessa promessa a categoria da
graça – como universo simbólico das religiões; (d) – que a experiência religiosa assim
caracterizada ultrapassa as oposições sociológicas e fusiona todas as experiências em
uma unidade transcendente.
Desta forma, acentuando (a) – que o desejado no fato
religioso (salvação) é o absoluto; (b) – que, por conseqüência, esse desejado religioso
ultrapassa toda a oposição entre ideal e fato, entre valor e interesse e (c) – que a beati-
tude assim prometida reconcilia totalmente o idealismo e o eudemonismo, Gurvitch
destaca o caráter inócuo da tentativa de Durkheim em utilizar esse “sagrado” (beati-
tude prometida) para aproximar a vida moral da religião e assim acentuar sua oposi-
ção ao utilitarismo, como critério sociológico dos fatos morais. Segundo Gurvitch,
essa limitação de Durkheim faz sobressair a relevância do já mencionado hiperempiris-
mo dialético para chegar à indispensável determinação sociológica do fato moral, só
possível de encontrar analisando a especificidade das diferentes experiências coletivas,
sem sucumbir à tentação de as justificar.
***
75
No sentido de teoria dinâmica um mundo de conflitos não é característica exclusiva das sociedades históricas,
mas, em acordo com Gurvitch é igualmente observado nas sociedades arcaicas em meio à pluralidade dos
agrupamentos levando à afirmação do indivíduo (conflitos entre clãs religiosos e confrarias diversas).
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Quarta Parte
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
NOTAS COMPLEMENTARES
(Nota 01) - LINHAS PARA UMA SOCIOLOGIA DO SABER HISTÓRICO
A grande tentação que espreita a ciência da história é a “predição do passado”, a qual se converte
comumente em projeção dessa predição no futuro.
Ø
Para apreciar a diferença entre tempo sociológico e tempo histórico é preciso distinguir a reali-
dade estudada, o método aplicado a esse estudo e o objeto que resulta da conjugação de realidade e
método.
Ø O caráter histórico de uma realidade social é múltiplo, havendo graus de percepção de que a ação
humana concentrada pode mudar as estruturas e permitir revoltas contra a tradição (graus de pro-
meteísmo).
Ø Expresso na historiografia o saber histórico se concentra exclusivamente sobre a realidade histó-
rica, acentuando muito o primado das sociedades globais como sujeitos “fazendo história”.
Ø Por sua vez, a sociologia salienta “o complexo jogo” entre as escalas do social que se pressu-
põem uma a outra, quer dizer: procura confrontar a realidade histórica com “os planos sociais não-
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históricos ou pouco históricos”, como o são os elementos microssociais e grupais, respectivamen-
te.
Ø Sobressai que as manifestações prometeicas da realidade social são as que menos se prestam à
unificação, registrando-se aqui um segundo foco de tensão com os historiadores, já que estes ten-
dem para uma unificação muito intensa da realidade social, enquanto o sociólogo reconhece a resis-
tência da realidade histórica à unificação, facilmente verificada no conflito de versões. Por isso o
sociólogo busca acentuar a diferenciação e a diversificação, que considera muito ativada pelos pla-
nos sociais em competição.
Ø O caráter muito mais continuísta do método histórico se observa na medida em que a história,
como ciência, “é conduzida a vedar as rupturas, a lançar pontes entre diversas estruturas", o que é
uma manifestação do pensamento ideológico (Ver, Gurvitch, Georges: A Vocação Atual da Socio-
logia, vol.II”).
Ø Portanto, será mediante a crítica o continuísmo do método histórico que se apontam algumas
direções para uma sociologia do saber histórico.
Ø O historiador busca “a luz unitária” que é do saber histórico, mas que não se encontra na reali-
dade histórica.
Ø O saber histórico se beneficia do tempo já decorrido, mas reconstruído e tornado presente, de tal
sorte que a explicação pela causalidade histórica singular intensifica a singularidade, estreitando as
relações entre causa e efeito, tornando-as mais contínuas e por isso mais certas.
Ø Daí a razão da crença exagerada na força do determinismo histórico.
Ø Segundo GURVITCH, por contra, observando a realidade histórica, nota-se que a multiplicidade
dos tempos especificamente sociais é aqui acentuada por suas ligações com o prometeismo.
Ø Quer dizer, a realidade histórica privilégio ao tempo descompassado, ao tempo avançado
sobre si mesmo, ao tempo de criação, seriamente limitados, todavia, pelo tempo de longa duração e
o tempo em retardamento.
Ø No saber histórico, por sua vez, esses tempos históricos reais são reconstruídos segundo o pen-
samento ideológico do historiador, “quem é tentado a escolher alguns desses tempos em detrimen-
to dos outros”.
Ø É por meio do saber histórico que as sociedades são arrastadas a reescrever sem cessar sua histó-
ria, “sempre tornando o tempo passado simultaneamente presente e ideológico” (ib.ibidem).
Ø Os tempos decorridos e restaurados pela história, assim o são segundo “os critérios das socieda-
des, das classes ou dos grupos que são contemporâneos aos historiadores”.
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Ø GURVITCH insiste que a multiplicidade dos tempos que enfrenta o historiador, assim como
sua“unificação exagerada”, não é tanto a da realidade histórica, mas a de “reconstruções variadas”.
Ø Então, essa segunda multiplicidade e essa segunda unificação reduzem-se a interpretações múlti-
plas da continuidade dos tempos.
Ø Pertencendo a diferentes sociedades, classes ou grupos, os historiadores não conseguem ressusci-
tar os tempos escoados senão à custa da projeção do seu presente no passado que eles estudam.
Ø Nota-se duas inferências:
Ø - Que os historiadores não podem atingir essa projeção do seu presente no passado que estudam
sem supor uma continuidade e uma unidade entre as diferentes escalas de tempos próprios às di-
versas sociedades;
Ø Decorrendo daí (b) - que a grande tentação que espreita a ciência da história é a “predição do
passado”, a qual se verte comumente em projeção dessa predição no futuro.
Ø Quanto aos tempos sociais propriamente ditos, se encontram e se debatem nas diferentes cama-
das ou níveis em profundidade da realidade social estudada em sociologia e, no dizer de
GURVITCH, nas oposições entre os elementos não-estruturais, estruturáveis e estruturados.
Ø O tempo social é caracterizado pelo máximo de significações humanas que nele se enxertam e
pela sua extrema complexidade, levando à variabilidade particularmente intensa da hierarquia de
tempos sociais.
Ø Há uma dialética levando ao esclarecimento do conceito de tempo e outra dialética levando ao
esclarecimento do conceito de social:
Ø A primeira é a dialética entre sucessão e duração, continuidade e descontinuidade, instante e
homogeneidade (a multiplicidade dos tempos, a escala dos determinismos e as realidades por eles
regidas estão na mesma situação de intermediários entre os contrários complementares);
Ø A segunda é a dialética tridimensional, a dialética entre o microssocial, o grupal e o global, consti-
tuindo a dinâmica do fenômeno social como um todo.
Ø No esforço das sociedades históricas para unificar os tempos sociais, a direção do tempo pode
conduzir aos graus mais intensos da liberdade humana, que então comanda os determinismos so-
ciológicos caso aquele esforço seja favorável à predominância (a) - do tempo em avanço sobre si
mesmo, onde o futuro se torna presente; ou, (b) - do tempo explosivo dissolvendo o presente na
criação do futuro imediatamente transcendido (cf. “Determinismos Sociais e Liberdade Humana”;
ver também “A Vocação Atual da Sociologia”, vol.II, já citada).
Ø Será a utilização dessa conceituação sociológica prévia dos tempos sociais pela análise que porá
em relevo a sua realidade, as maneiras de tomar consciência dessa realidade dos tempos, e no dizer
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de GURVITCH porá em relevo os esforços empregados nos quadros sociais estruturados a fim de
dispor esses tempos numa escala hierarquizada e assim os dirigir.
***
(Nota 02) – SOBRE O MÉTODO DE ESTUDO DA REALIDADE SOCIAL.
Segundo Gurvitch, o método de estudo da realidade social consiste na tipologia qualitativa e desconti-
nuista que se liga, necessariamente, (a)- “à aplicação de uma visão de conjuntos recusando-se a sa-
crificar tanto a unidade quanto a multiplicidade”, por um lado e, por outro lado, (b)- “ao recurso
aos procedimentos do hiperempirismo dialético”, os únicos que, no dizer do nosso autor, “se mos-
tram capazes (a) - de frustrar a tentação de mumificar os tipos e estabilizar a visão de conjuntos e
(b) - de fazer sobressair toda a complexidade do método da sociologia”. Gurvitch põe em relevo os
dois pontos seguintes: (1º) - que os tipos sociológicos podem repetir-se e por isso o método tipo-
lógico generaliza até certo limite, mas para fazer assinalar a especificidade do tipo, e constrói dife-
rentes tipos em função da variedade dos quadros sociais reais e suas estruturas, como um método
singularizante, mas só para reencontrar os quadros suscetíveis de se repetirem. Da mesma maneira,
(2º) - o método tipológico utiliza os dados da história, mas só para acentuar as descontinuidades ou
rupturas não apenas (a) - entre s, grupos, classes, sociedades globais, por um lado, mas também,
(b) - por outro lado, entre fenômenos sociais totais e suas estruturas. Desta forma, são distinguidos
três gêneros de tipos sociológicos: (a) - os tipos microssociológicos ou tipos de ligações sociais: os
Nós, as relações com Outrem; (b) - os tipos de agrupamentos particulares e classes sociais; (c) - os
tipos de sociedades globais. São distinguidas, no desdobramento, as três espécies dos tipos: (a) - a
espécie microssocial é abstrata; (b) - a espécie dos agrupamentos particulares é abstrata concreta;
(c) - enquanto que as classes sociais e as sociedades globais são de espécie concreta. O segundo
aspecto do método da sociologia consiste em tomar sempre em consideração todas as camadas,
todas as escalas, todos os setores da realidade social ao mesmo tempo e de chofre, aplicando-lhes
uma visão de conjuntos - isto é, como dissemos: em ligação com os procedimentos do hiperempi-
rismo dialético, pois que se trata de estudar o vai-vem, a interpenetração e a tensão (a) - entre as
camadas, as escalas; (b) - entre os elementos anestruturais, estruturados, estruturáveis; (c) - entre o
espontâneo e o organizado; (d) - entre os movimentos de estruturação, de desestruturação e de re-
estruturação; e ainda, (e) - entre o indivíduo e a sociedade. Finalmente, GURVITCH sintetiza que
o pluralismo hiperempírico é essencialmente a característica do método da sociologia, é a sua for-
ma específica de aplicar a visão de conjuntos, sem absorver a multiplicidade na unidade.
***
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(Nota 03) – A SOCIOLOGIA DOS AGRUPAMENTOS PARTICULARES
COMO QUADROS SOCIAIS.
No que concerne o estudo dos grupos particulares como quadros
sociais deve-se notar inicialmente em conformidade com Gurvitch que só há grupo quando em um
quadro social parcial aparecem as seguintes características: 1) - predominam as forças centrípetas sobre
as centrifugas; 2) - os Nós convergentes predominam sobre os Nós divergentes e sobre as diferentes
relações com outrem. Quer dizer, é dessa maneira e nessas condições que o quadro do microcosmo
das manifestações de sociabilidade que constitui um grupo social particular pode afirmar-se, no seu
esforço de unificação, como irredutível à pluralidade das ditas manifestações. Daí a percepção desen-
volvida na sociologia de Gurvitch de que em todo o microcosmo social há virtualmente um grupo
social particular, que a mediação da atitude coletiva faz sobressair. O grupo é uma unidade coletiva
real, mas parcial, que é observada diretamente, como já foi dito. Essa unidade é fundada exatamente em
atitudes coletivas contínuas e ativas; além disso, todo o grupo tem uma obra comum a realizar, encontra-se
engajado na produção das “idéias”, como o direito, a moral, o conhecimento, etc., de tal sorte que sua
objetivação se afirma, reiteradamente, como “unidade de atitudes, de obras e de condutas”, advindo
dessa característica objetivação que o grupo se constitua como quadro social estruturável, com tendên-
cia para uma coesão relativa das manifestações da sociabilidade. Nota-se, então, no conjunto dos
agrupamentos particulares, uma dialética entre a independência e a dependência a respeito do modo de
operar da sociedade global. Dessa forma, como já notamos, observa-se que os grupamentos mudam
de caráter em função dos tipos de sociedades globais em que se integram conforme hierarquias especí-
ficas, notadamente conforme a escala dos agrupamentos funcionais. Nota-se também, do ponto de
vista da dialética diferencial independência/dependência, que em tipos de sociedades globais favore-
cendo a estruturação dos agrupamentos particulares, como na sociedade feudal, o modo de operar
desses grupos pode parecer comandar o do conjunto. O inverso é verdadeiro: na teocracia oriental, na
Cidade-Estado, na sociedade do início do capitalismo, no comunismo, nota-se que o modo de operar
das estruturas globais tem eficácia que parece predominar ostensivamente sobre o dos agrupamentos
particulares. Enfim, nas lutas das classes, a competição e a combinação entre o modo de operar unifi-
cando os grupos, e o que rege as sociedades globais, podem tomar formas muito diversas. Seja como
for, é essa dialética sociológica de competição e combinação, orientada ora para a independência, ora
para a dependência a respeito do modo de operar da sociedade global, que, na sociologia de Gurvitch,
justifica o estudo separado dos modos de operar regendo os grupamentos. Da mesma maneira, é essa
dialética que justifica a percepção do papel essencial que, pela objetivação, os agrupamentos particu-
lares desempenham na unificação pela sociedade global. Ou seja: existe um deslocamento, uma com-
petição, uma ruptura, uma tensão entre o determinismo sociológico das classes sociais e o das socieda-
des em que elas se encontram integradas. Segundo Gurvitch, é um erro fatal transformar o determi-
nismo das classes em um princípio universal, em módulo permitindo atingir a compreensão de todo o
determinismo sociológico global. Sem levar em consideração essa ruptura, não se chega ao essencial,
não se percebe que se está ante “uma descontinuidade relativa limitada por uma continuidade relativa”,
cujos graus só podem ser estudados de maneira empírica. Daí o campo da dialética entre independên-
cia e dependência, sendo essencial o papel dos agrupamentos particulares porque impedem que a uni-
ficação pelo modo de operar da sociedade global, cuja integração dos fatos é a mais eficaz, seja efetua-
da sem a intervenção da liberdade humana, sem a intervenção da liberdade de escolha, da liberdade de
decisão, da liberdade de criação. Ou seja, o papel dos agrupamentos particulares é não deixar escapar
nem a descontinuidade, nem a continuidade entre os dois determinismos, entre o determinismo das
classes sociais e o das sociedades globais . Dessa maneira, a análise sociológica diferencial empírica do
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grupal, isto é, a análise da escala do parcial na realidade social , tal como estudada na sociologia de
Gurvitch, leva a distinguir seis espécies de agrupamentos funcionais, seguinte: (1) - os agrupamentos
de parentesco : clã, família doméstica, família conjugal, lar, etc.; (2) - os agrupamentos de afinidade
fraternal , que são fundados sobre uma afinidade de situação, compreendida aí a situação econômica,
mas que também podem ser fundados sobre uma afinidade de crença, de gosto ou de interesse: por
exemplo: os agrupamentos de idade e de sexo, os diferentes públicos, os agrupamentos de pessoas
tendo os mesmos rendimentos ou fortunas; (3) - os agrupamentos de localidade : comunas ou comar-
cas, municipalidades, departamentos, distritos, regiões, Estados; (4) - os agrupamentos de atividade
econômica, compreendendo todos os agrupamentos cujas principais funções consistem em participa-
ção na produção, nas trocas, na distribuição ou na organização do consumo; (5) - os agrupamentos de
atividade não-lucrativa, como os partidos políticos, as sociedades eruditas ou filantrópicas, clubes
esportivos, etc.; (6) - os agrupamentos místico-extáticos , como as igrejas, congregações, ordens religi-
osas, seitas, confrarias arcaicas, etc.
Na sociologia de Gurvitch, a escala dos agrupamentos funcionais,
cujas espécies acabamos de enumerar, é posta em relevo como sendo privilegiada e formando os pila-
res das sociedades. Constituem não só o pilar das sociedades globais de todo o tipo, mas também o
pilar de toda a estrutura social do conjunto. Todavia, é em virtude do fato de que os agrupamentos
mudam de caráter em função dos tipos de sociedades globais em que se integram - como já dissemos -
que se pode falar de tipos de agrupamentos e de que estes tipos são mais concretos que os tipos mi-
crossociológicos, são mais concretos do que a Massa, a Comunidade, a Comunhão, as relações de
aproximação, as relações de afastamento, as relações mistas. Quer dizer, os tipos de agrupamentos
são mais submetidos às condições históricas e geográficas; são mais dependentes dos tipos de estrutu-
ras globais em foco na estrutura social do conjunto em que ora formam blocos maciços, ora se disper-
sam, sofrendo de maneira manifesta os efeitos do modo de operar da sociedade global. Reciproca-
mente, o modo de operar da sociedade global é, por seu lado, fortemente impregnado (a) - pelo modo
de operar dos agrupamentos parciais, em especial daqueles que exercem papel destacado na hierarquia
dos agrupamentos funcionais, sobre a qual, ademais, se apóia a estrutura do conjunto em questão,
assim como, (b) - pelo modo de operar das classes sociais, as quais desde que aparecem nas sociedades
industrializadas subvertem a hierarquia básica da estrutura do conjunto e a combatem.
Sob este aspecto das relações entre a escala do parcial e a
escala do global, incluindo a dialética entre a independência e a dependência em face do global, nota-se
ainda que, na sociologia de Gurvitch, a hierarquia dos agrupamentos no interior de uma classe social
só raramente se reduz à escala dos estratos de afinidade econômica, resultantes estes que são da dispa-
ridade de riqueza ou de salário, da disparidade de preparação profissional, de necessidades, de carên-
cias ou de satisfação destas. Outros gêneros de hierarquias de grupos surgem com base em critérios
como o prestígio, o poder, a boa reputação de certos agrupamentos no interior da classe, critérios estes
que, em geral, são completamente independentes da estratificação econômica. Por sua vez, no interior
de uma classe social, a escala dos agrupamentos independentes dos estratos econômicos implica uma
avaliação que só pode derivar da tábua de valores própria a esta classe (cf.”Determinismos Sociais e Liber-
dade Humana”, op.cit, pp.209sq). Desse modo, a classe social em seu esforço de unificação dos agru-
pamentos parciais, que ela empreende em competição com a unificação pelo tipo de sociedade global,
se afirma como totalidade dinâmica específica que, todavia, apresenta caráter diferente para cada classe,
para cada estrutura e, às vezes, para cada conjuntura global. Quer dizer, a unificação dos modos de
operar dos agrupamentos sociais particulares em um modo de operar de classe, toma formas diferen-
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tes, dado a variedade das classes sociais, seus tempos diferentes e suas obras diferentes. O esforço de
unificação dos modos de operar divergentes no interior de uma classe social, põe em relevo o papel
destacado que a consciência de classe, a ideologia e as obras de civilização desempenham habitualmen-
te na dinâmica das classes sociais, que não é só uma dinâmica de avaliação relativamente à hierarquia
dos agrupamentos independentes da estratificação econômica, mas inclui a suprafuncionalidade da
classe, pois a classe social interpreta a totalidade das funções sociais como combinada ao esforço con-
centrado que realiza para ascender ou para ingressar no poder. Na sociologia de Gurvitch, a análise
da totalidade dinâmica específica da classe social faz notar o fato de que as classes sociais servem nor-
malmente de planos de referência ao conhecimento, à moral, ao direito, à arte, à linguagem, favorecen-
do a verificação do funcionamento dos modos de operar parciais dessas próprias classes sociais. En-
fim, como já foi notado, o modo de operar das classes sociais afirma, antes de tudo, a acentuação dos
papéis sociais, de preferência no domínio econômico e político; em seguida, afirma a eficácia da cons-
ciência coletiva muito intensa e penetrante, conseguindo predominar sobre o espírito de corpo dos
agrupamentos, chegando a guiar suas atitudes. Vem depois a afirmação da eficácia dos símbolos, idéi-
as e valores e, mais amplamente, a eficácia das obras de civilização e ideologias que as justificam, ele-
mentos estes que colaboram para solidificar a estruturação das classes sociais.
É preciso ter em vista, quando se estuda a sociologia de
Gurvitch, que se trata de pôr em relevo os meandros da liberdade humana intervindo na realidade
social, de tal sorte que a variabilidade é pesquisada exatamente porque constitui o critério da liberdade
interveniente nos determinismos sociais (ver a este respeito, notadamente, sua obra “Determinismos
Sociais e Liberdade Humana”, já citada). Desse modo, não é de estranhar a ênfase dada por nosso autor
ao acentuar como irredutíveis as tensões verificadas entre os grupos subalternos no interior de uma
classe, tanto mais percebidas do ponto de vista diferencial quanto a classe é simultaneamente um ma-
crocosmos de agrupamentos e um microcosmos de manifestações da sociabilidade. Da mesma manei-
ra, são irredutíveis: (a) - as variações na tomada de consciência de classe; (b) - as variações no papel
desempenhado pelas classes na produção, distribuição e consumo; (c) - as variações das obras de civili-
zação que realizam ou da ideologia que representam. Ou seja, não se pode deixar de perceber um
elemento de liberdade humana, ao menos sob o aspecto coletivo da liberdade, penetrando na realidade
social pela luta das classes sociais, pela tomada de consciência de classe, pelos conflitos entre classes e
sociedades globais, pelas tensões entre forças produtivas e relações de produção. Quanto aos diferen-
tes agrupamentos em tensões e lutas no seio das classes sociais, notam-se as famílias, os grupos de
idade, os agrupamentos de afinidade econômica ou estratos, as profissões, os públicos, os grupos de
produtores e de consumidores, os agrupamentos locais, as associações amicais, fraternais, religiosas,
políticas, educativas, esportivas e assim por diante, isto, sem falar na limitação recíproca entre Estado,
igrejas diversas, sindicatos profissionais, partidos políticos, limitação recíproca esta que favorece a
liberdade individual. Enfim, a percepção da multiplicidade dos agrupamentos no seio de uma classe
varia em função da própria luta das classes: maior a luta, menor a percepção. Por sua vez, o Estado e
os partidos políticos são dois gêneros de agrupamentos particulares que, nos tipos das sociedades
modernas, se apresentam geralmente como instrumentos das lutas das classes. Nota-se ainda que a
redução dos agrupamentos a estratos ou camadas caracterizadas pela disparidade de fortuna ou de
salário é, como já dissemos, um erro, que ameaça a unidade da classe, como totalidade irredutível aos
agrupamentos que nela se integram. As classes sociais têm sempre tendência a alterar a hierarquia
oficial da sociedade em que elas são incluídas; elas não concedem importância às tradições e às regras,
a não ser quando são afastadas do poder ou lhes é difícil mantê-lo. Além disso, a eficácia da consciên-
cia de classe, da ideologia e da organização concretiza-se de maneira diferente para cada classe e varia
em função das estruturas, e, às vezes, das conjunturas, notando-se que a consciência de classe, a ideo-
logia e a organização são (a) - normalmente muito mais pronunciadas no proletariado do que nos
camponeses, ou nas classes médias e, mesmo, do que na burguesia; (b) - tampouco são de intensidade
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igual segundo as nações, os tipos de capitalismo, os regimes políticos, as flutuações nos rumos da crise
ou da prosperidade, e assim por diante.
***
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Quarta Parte
Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral
FIM
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da
Renascença.
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença.
PRIMEIRA PARTE:
A análise filosófica da função simbólica
tomada como um vínculo geral do mundo da cultura.
***
A análise filosófica vem a ser orientada por um processus de simplificação da interpretação alegórica em vista
de descobrir um só objeto ou um só motivo simples que contenha e compreenda todos os demais.
Como se sabe, sendo um nível da realidade social, o
mundo da cultura pode ser estudado sob seu aspecto simbólico não só em socio-
logia, mas em filosofia. Já vimos que a noção de cultura se refere ao mundo dos
valores e ideais e que em sua autonomia relativa é estudado na sociologia das obras
de civilização. Já vimos igualmente que podemos utilizar a expressão sociologia da
cultura para designar o ramo mais geral de estudo sociológico dos sinais, símbolos,
idéias, valores, incluindo o estudo das suas diferenciações, combinações, hierarqui-
as variáveis em função dos tipos sociais diversificados.
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Entretanto, na análise filosófica a função que se toma
em consideração se afirma em referência outra que não primordialmente os tipos
construídos em sociologia. Não predomina a missão voltada para pôr em relevo as
correlações específicas entre as obras de civilização e os quadros sociais visando
explicar a eficácia do direito, do conhecimento, da moral, da arte, da religião, da
educação como setores imprescindíveis na estruturação da realidade social.
Antes disso, o que se busca na análise filosófica será no
dizer de Ernst Cassirer não uma unidade de efeitos, mas uma unidade do proces-
sus criador. Todavia o ponto de partida especulativo não aparece orientado como
em sociologia por uma conjectura apenas descritiva e não significante.
A busca do processus criador em análise filosófica
compreende uma intenção afirmativa ou até confirmativa admitindo-se que, se o
termo humanidade tem alguma significação apesar das diferenças e oposições en-
tre as formas simbólicas estas são chamadas a atender um fim comum, de tal sorte
que será possível fazê-las convergir em um foco comum de pensamento.
Desta forma, embora sob o aspecto interpretativo in-
dividual e conceitualista não será exagerado compará-la ao culturalismo, desde o
ponto de vista do realismo levando a reconhecer a união prévia que a linguagem
humana pressupõe, o mais correto será notar sua vertente na filosofia fenomeno-
lógica. Ou seja, em relação à realidade social a análise filosófica acentua a autono-
mia da esfera da cultura referindo-a antes ao pensamento (a) – em sentido especula-
tivo como intenção para algo não inteiramente idêntico, e (b) – sobretudo como
atividade penetrada e envolvida na subjetividade individual (aspiração aos valores).
Daí que a função tomada em consideração seja uma função de síntesis filosófica cha-
mada a incluir a função simbólica e constitui função geral do mundo da cultura, de
tal sorte que permite tratar o mito, a religião, a arte, a linguagem e até a ciência
como variações de um mesmo tema
76
.
Deste ponto de vista, a análise filosófica vem a ser ori-
entada por um processus de simplificação da interpretação alegórica
77
, em vista de
descobrir um só objeto ou um só motivo simples que contenha e compreenda to-
dos os demais.
76
Cf. Cassirer, Ernst: “La Philosophie des Formes Simboliques (La Conscience Mythique)”, versão francesa
por Jean Lacoste, Paris, Les Éditions du Minuit, 1972, 342 pp., (1ªedição em Alemão: 1925).
77
Ver sobre a interpretação alegórica a (Nota 01) dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final deste artigo.
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O homem não pode mais enfrentar-se com a realidade em modo imediato, mas, por efeito desse elemento inter-
médio que é sua descoberta, a realidade física lhe aparece envolta em formas lingüísticas, em imagens artísticas,
em símbolos míticos ou religiosos, de tal sorte que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão através da
interposição desse meio artificial.
No dizer de Cassirer o sistema das atividades humanas
se resolve na obra do homem de cujo círculo de humanidade a linguagem, o mito,
a religião, a arte, a ciência e a história são os elementos constitutivos: tal é a con-
cepção de filosofia do homem que orienta previamente a análise filosófica da fun-
ção simbólica tomada como um vínculo geral do mundo da cultura.
O sistema simbólico se define na referência do mundo
humano e na análise das respostas humanas tomadas em relação a certos motores
representados como estímulos externos. O esquema da análise filosófica é feito
em comparação ao processus de adaptação dos organismos biológicos ao seu am-
biente. Se cada organismo se acha coordenado ao seu ambiente é porque há coo-
peração e equilíbrio dos sistemas de recebimento dos estímulos externos e de rea-
ção ante os mesmos.
Sem embargo, no tocante ao mundo humano há uma
diferença específica posta na descoberta de um novo método para adaptar-se ao seu
ambiente, método diferencial este que aparece como intermediário entre a recepção dos
estímulos externos e a reação ante os mesmos e que, todavia transforma a totalidade da
vida humana constituindo desse modo uma nova dimensão da realidade. Quer di-
zer, na realidade do mundo humano a resposta é demorada, é interrompida e re-
tardada por um processus lento e complexo de pensamento intermediado.
Cassirer entende essa diferença específica das respostas
humanas como reversão da ordem natural: o homem já não pode escapar desse
universo simbólico, desse processo lento e complicado de pensamento a trans-
formar a totalidade da vida humana. Dito com outras palavras, o homem não pode
mais enfrentar-se com a realidade em modo imediato, mas, por efeito desse ele-
mento intermédio que é sua descoberta, a realidade física lhe aparece envolta em
formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos míticos ou religiosos, de tal
sorte que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão através da interposição
desse meio artificial.
Todavia, além da descoberta, Cassirer não se formula a
questão de saber como esse meio artificial vem a ser um meio interposto entre a
recepção e a reação, mas aprecia tão somente o efeito dessa interposição descober-
ta que é afirmação do universo simbólico: a configuração de uma
rede simbólica
que se reforça e se torna mais refinada em função do progresso no pensamento e
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na experiência, aliás, é o critério mesmo desse progresso. Daí sua diferença especi-
fica.
Onde há progresso no pensamento, há reforço dessa
rede simbólica tecendo a linguagem, a arte, o mito e a religião sem se confundir a
esses, em conjunto ou separadamente. A rede simbólica é pois a trama complexa
da experiência humana, trama formada exatamente pela linguagem, a arte, o mito,
a religião. Desta sorte, se afirma que a realidade física parece retroceder na mesma
proporção em que avança a atividade simbólica do homem.
Todavia, em face dessa análise Cassirer sublinha que a
racionalidade
é um traço inerente a todas as atividades humanas, seu imperativo
ético fundamental, que pode ser observado na mitologia, na linguagem, na religião
pelo que se afirmam como formas da vida cultural humana em toda a sua riqueza e di-
versidade, isto é, se afirmam como formas simbólicas nas quais se compreendem
os caminhos da civilização.
Deste modo, visando esclarecer a configuração do
simbolismo da linguagem humana, a análise filosófica busca estabelecer o conceito
de inteligência e imaginação simbólicas. Toma como ponto de partida a distinção
entre signos e símbolos. Raciocina à maneira clássica por contraste com a suposi-
ção usual de um mundo de natureza animal a partir da seguinte imagem: se, na
“conduta animal” há um complexo sistema de signos e sinais, constata-se uma dis-
tância imensa destes fenômenos à inteligência da linguagem simbólica e humana.
Quer dizer, os famosos experimentos do behaviorista
Pavlov e todos os fenômenos descritos comumente como reflexos condicionados
não só estão muito longe como estão em oposição ao caráter essencial do pensa-
mento simbólico humano. Sinais e símbolos correspondem a dois universos dife-
rentes do discurso: um sinal é uma parte do mundo físico do ser, enquanto um
símbolo é uma parte do mundo humano do sentido. Os sinais são operadores, os
símbolos são designadores. Mesmo sendo entendidos e utilizados como tais os si-
nais possuem uma espécie de ser físico ou substancial, os símbolos possuem uni-
camente um valor funcional.
Para esclarecer sobre a transição na psyché individual de
uma imaginação e inteligência práticas para uma inteligência e imaginação simbóli-
cas Cassirer nota a ultrapassagem dos métodos usuais de observação psicológica
sublinhando que a visão do caráter geral e da importância extraordinária dessa
transição se alcança observando a realização da própria natureza.
Quer dizer, o fato de uma criatura aprender a combi-
nar certa coisa ou evento com certo signo do alfabeto manual ou que se tenha es-
tabelecido uma associação fixa entre essas coisas e certas impressões tácteis, ainda
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que se repitam e ampliem, não implicam a inteligência do que é e do que significa
a linguagem humana.
Um símbolo humano genuíno se caracteriza não por sua uniformidade, mas
por sua variabilidade: não é rígido ou inflexível, mas móvel.
Segundo Cassirer, para chegar a inteligência da lingua-
gem humana a criatura tem que fazer um descobrimento novo muito mais impor-
tante do que a mera associação entre certas coisas e certas impressões tácteis. Tem
que compreender que cada coisa tem um nome, que a função simbólica não se a-
cha restrita a casos particulares, mas constitui um princípio de aplicabilidade uni-
versal que abrange todo o campo do pensamento humano.
Essa compreensão do simbolismo da linguagem hu-
mana pode se produzir como um choque súbito favorecido pela natureza. Quer
dizer, o princípio do simbolismo constitui a chave que dá acesso ao mundo especi-
ficamente humano, o mundo da cultura, e uma vez que o homem se acha em pos-
se dessa chave está assegurado o progresso ulterior. Por isso, o progresso no pen-
samento não pode ser obstruído nem impossibilitado por lacuna alguma do mate-
rial sensível.
Desde o ponto de vista da análise filosófica a cultura
deriva seu caráter específico e seu valor intelectual e moral não do material que a
compõe, não de impressões sensíveis originais, mas de sua forma, de sua estrutura
arquitetônica a qual pode ser expressa com qualquer material sensível. O livre de-
senvolvimento do pensamento simbólico e da expressão simbólica não se acha
obstruído pelo mero emprego de signos tácteis em lugar dos signos verbais. No
reino da linguagem sua função simbólica geral é a que vivifica os signos materiais e
os faz falar. Sem esse princípio vivificador o mundo humano seria surdo e mudo.
Ao lado a aplicabilidade universal devida ao fato de
que cada coisa tem um nome, a outra característica da função simbólica é o caráter
extremamente variável dos símbolos, que podem expressar o mesmo sentido em
idiomas diferentes, assim como – nos limites de um mesmo idioma – uma mesma
idéia ou pensamento pode ser expressa em termos diferentes. Um símbolo huma-
no genuíno se caracteriza não por sua uniformidade, mas por sua
variabilidade
:
não é rígido ou inflexível, mas móvel. O dar-se conta dessa mobilidade é uma
conquista tardia no desenvolvimento intelectual e cultural do homem e será afir-
mado no pensamento reflexivo.
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A moderna teoria da Gestalt já mostrou como o processo perceptivo mais simples implica elementos estruturais
fundamentais que antecipa a capacidade do homem para isolar relações ou considerá-las em sentido abstrato.
Do ponto de vista da dependência em que se acha o
pensamento relacional para com o pensamento simbólico, se chega a compreender
que não seria correto dizer que o mero dar-se conta de relações já pressupõe um
ato intelectual, um ato de pensamento lógico ou abstrato. Segundo Cassirer o dar-se
conta de relações é uma precaução necessária até nos atos elementares da percepção:
sem um sistema complexo de símbolos o pensamento relacional não se produziria
e muito menos alcançaria seu desenvolvimento.
A moderna teoria da Gestalt já mostrou como o pro-
cesso perceptivo mais simples implica elementos estruturais fundamentais, inclusi-
ve certos níveis ou configurações das quais as estruturas espaciais ou óticas foram
demonstradas em etapas relativamente inferiores da vida animal. Daí se entende
que no homem se tenha desenvolvido uma capacidade para isolar relações ou con-
siderá-las em sentido abstrato.
Quer dizer, para captar esse sentido abstrato das rela-
ções o homem já não depende de dados sensíveis concretos, dados visuais, auditi-
vos, tácteis, mas considera essas relações em si mesmas: na geometria se estudam
relações espaciais universais de que a linguagem humana é o passo preliminar. A
natureza da linguagem liga-se pois à reflexão ou pensamento reflexivo, como ca-
pacidade que consiste em destacar de toda a massa indiscriminada do curso dos
fenômenos sensíveis fluentes certos elementos fixos, por efeito de isolá-los e con-
centrar a atenção sobre eles.
Bem entendido que esse pensamento reflexivo depen-
de do pensamento simbólico, compreende o dar-se conta da variabilidade e da mobi-
lidade das relações, inclusive o dar-se conta da função simbólica da linguagem. Cassi-
rer visa mostrar com essa distinção de três níveis em sua análise –
o pensamento
relacional, o pensamento simbólico, o pensamento reflexivo
– que a conduta
humana como um todo é interligada ao simbolismo da linguagem, de tal sorte que,
no campo da psicopatologia da linguagem, os que perdem o uso da palavra – isto
é, perdem a captação dos universais – tornam-se incapacitados para a solução de
problemas que exigem qualquer atividade especificamente teórica ou reflexiva, se
aferram aos fatos imediatos e são incapazes de executar tarefas que exigem a com-
preensão do abstrato.
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O pensamento simbólico consiste na capacidade de dotar o homem com uma nova faculdade: a de reajustar
constantemente seu universo humano.
Na observação do progresso ulterior da cultura Cassi-
rer nota a independência da função do pensamento simbólico no aprofundamento
da distinção entre realidade e possibilidade. Essa distinção não denota nenhum ca-
ráter das coisas em si mesmas e se aplica unicamente ao nosso conhecimento. O
bom exemplo é o método hipotético empregado por Galileu para o estudo dos fe-
nômenos naturais, já que esse mesmo método por arrazoamentos hipotéticos e
condicionais pode ser encontrado em Rousseau.
Quer dizer, a distinção entre realidade e possibilidade
que caracteriza os grandes filósofos éticos se impõe nas ciências da natureza e de-
fine as matemáticas como uma teoria de símbolos. Os fatos da ciência implicam
sempre um elemento teórico ou simbólico, foram hipotéticos antes de chegar a ser
observáveis. Cassirer sublinha que o caráter utópico das descrições dos filósofos
éticos como Rousseau constitui uma construção simbólica que o filósofo se pro-
põe descrever e trazer à realidade como um inesperado futuro da humanidade. Sua
conclusão assina ao pensamento simbólico a capacidade de dotar o homem com
uma nova faculdade: a de reajustar constantemente seu universo humano.
As teorias éticas revelam esse caráter do pensamento
simbólico na medida em que o mundo ético nunca é dado, mas sempre se acha fa-
zendo-se. O pensamento ético jamais pode limitar-se a aceitar o dado. Segundo
Cassirer é este pensamento simbólico que supera a inércia natural do homem e lhe
dota com uma nova faculdade na qual se trata de dar lugar ao possível como o oposto à
aceitação passiva do estado atual dos assuntos humanos, do qual o método hipotético é
devedor.
***
Em sua análise da arte, Cassirer destaca a aplicação
dessa compreensão do pensamento simbólico como dotando o homem da nova
capacidade para reajustar constantemente seu mundo humano: a arte não é mera reprodução
de uma realidade dada e acabada. É uma via para o descobrimento da realidade. Se
a linguagem e a ciência determinam nossos conceitos do mundo exterior não pas-
sam de abreviaturas da realidade enquanto a arte é intensificação da realidade, uma
concreção.
Na contemplação de uma grande obra de arte não sen-
timos separação entre o mundo subjetivo e o objetivo; não vivemos na realidade
plena e habitual das coisas físicas nem tampouco vivemos por completo em uma
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esfera individual. Para além dessas duas esferas detectamos um novo reino, ao qual
se referem as formas plásticas, musicais ou poéticas. Estas por sua vez possuem
uma verdadeira universalidade, uma comunicabilidade universal, de tal sorte que
passamos a ver a realidade em tal forma particular.
A arte desprende um poder construtivo na estruturação de nosso universo humano posto que toda a obra de
arte possui uma estrutura intuitiva, um caráter de racionalidade, ou seja: antes de comporem analogias com as
esferas do inconsciente, cada elemento singular deve ser sentido como parte de um todo compreensivo.
Mais do que representativas / objetivas ou expressivas
/ subjetivas essas formas são segundo Cassirer formas simbólicas e nos introdu-
zem uma nova realidade na qual se vê a manifestação de uma interpretação que o
artista alcança não através de conceitos, mas das formas sensíveis. O artista é um
descobridor das formas da natureza: alcança a percepção das formas puras e estru-
turas visuais introduzindo em um reino outro que não o da análise de objetos sen-
síveis e seus efeitos.
A arte é um descobrimento verdadeiro e genuíno. Em
sua descrição da experiência estética definida como um estado psíquico diferente
da frieza de nosso juízo teórico e do prosaísmo de nosso juízo moral, Cassirer as-
sinala o seguinte: (a) – que a imaginação do artista nos mostra as formas das coisas
em sua verdadeira figura, fazendo-as visíveis e reconhecíveis; (b) – que, ao selecio-
nar um determinado aspecto da realidade, o artista não inventa arbitrariamente,
mas (c) – seu procedimento é de objetivação: uma vez que assumimos sua pers-
pectiva, somos levados a olhar o mundo com seus olhos, tudo se passando como
se jamais houvéssemos visto o mundo com essa luz peculiar; (d) – essa luz é algo
mais do que um vislumbre momentâneo: em virtude da obra de arte tornou-se
uma luz duradoura e permanente.
Portanto, na análise filosófica a arte constitui um uni-
verso de discurso independente, no qual se afirma a imaginação artística. Esta, por
sua vez, se relaciona à linguagem simbólica do mito e da poesia predominante nos
povos primitivos que falavam fabulando e escreviam hieróglifos, como na chama-
da idade heróica dos gregos, para quem o mito era uma alegoria viva.
A imaginação artística não se confunde nem à capaci-
dade inventiva nem ao poder personificador, mas é a capacidade para produzir pu-
ras formas sensíveis cujo resultado é o descobrimento de um mundo novo de
formas poéticas, musicais ou plásticas.
Observando a definição de beleza como forma vivente,
Cassirer assinala que houve quem considerasse a busca por essas formas viventes
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como o primeiro passo indispensável que conduz à experiência da liberdade.
Lembra-nos de Schiller, no centro do romantismo alemão, cuja definição de con-
templação ou reflexão estética afirma nesta última a primeira atitude liberal do
homem diante do universo. No seu dizer: enquanto o desejo se apropria de seu objeto, a
reflexão coloca o objeto do desejo à distância e o converte em ideal, salvando-o das garras da pai-
xão. Tal seria a atitude – liberal, consciente, e reflexiva – tida como demarcadora
da fronteira entre o lúdico e a arte.
Sem embargo, esse colocar à distância como característica
da obra de arte suscita a problemática da teoria estética referente à racionalidade
peculiar da arte, isto é, a racionalidade da forma simbólica. Admitindo que esse co-
locar à distância não implica a desumanização da arte, Cassirer sustenta que viver
no reino das formas não significa uma evasão dos assuntos da vida, mas, pelo con-
trário, significa a realização de uma das energias mais altas da vida mesma.
A arte desprende um poder construtivo na estrutura-
ção de nosso universo humano posto que toda a obra de arte possui uma estrutura
intuitiva, um caráter de racionalidade, ou seja: antes de comporem analogias com
as esferas do inconsciente, cada elemento singular deve ser sentido como parte de
um todo compreensivo.
Segundo Cassirer há que distinguir essa racionalidade
peculiar à arte daquela outra racionalidade das coisas ou dos acontecimentos. A
definição de arte como linguagem simbólica nos proporciona o gênero comum,
mas não a diferença específica. A arte pode infringir as leis da probabilidade, pode
nos proporcionar a visão mais grotesca e extravagante e assim mesmo possuir sua
racionalidade peculiar, a racionalidade da forma.
Cassirer nos lembra a frase de Goethe à primeira vista
paradoxal seguinte: a arte é uma segunda natureza, também misteriosa, porém
mais inteligível porque se origina no entendimento – a que Cassirer acrescenta: a
arte nos proporciona a ordem na apreensão das aparências visíveis, tangíveis e au-
díveis.
Na ciência tratamos de reduzir os fenômenos a suas
primeiras causas e a leis e princípios gerais. Na arte nos encontramos absortos em
sua aparência imediata e nos deleitamos dessa aparência plenamente em toda a sua
riqueza e variedade: não temos a ver com a uniformidade das leis, mas com a mul-
tiformidade e diversidade das intuições.
Observa Cassirer que a arte pode ser descrita como
conhecimento cuja verdade não consiste em uma descrição ou explicação teórica,
mas antes na visão simpática das coisas. Essas duas idéias de verdade se encon-
tram em contraste, mas não em contradição: podemos alternar nossas visões da
realidade, a arte nos proporciona uma imagem mais rica, mais vívida e com colora-
ção da realidade, facilitando-nos uma visão mais profunda em sua estrutura for-
mal. E Cassirer conclui: a arte caracteriza a natureza do homem como não se en-
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contrando ele limitado a uma única maneira específica de abordar a realidade, mas
que pode escolher seu ponto de vista e assim passar de um aspecto das coisas a
outro.
***
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença.
SEGUNDA PARTE
A análise sociológica da esfera simbólica do mundo humano.
***
A função simbólica é inseparável do homem tomado coletiva ou individualmente, de tal sorte que os Eu, Nós,
grupos, classes sociais, sociedades globais são construtores inconscientes ou conscientes dos símbolos variados.
Sem embargo, devemos retornar ao problema do sim-
bolismo antes de prosseguir com a análise filosófica da arte e das demais formas
simbólicas que compõem o mundo da cultura.
Com efeito, em sua definição descritivo-compreensiva
do pensamento simbólico como dotando o homem da nova capacidade para reajustar
constantemente seu mundo humano Cassirer afirma
o ponto de vista da mobilidade e
da variabilidade
levando-nos a relembrar que os símbolos são estudados em so-
ciologia como símbolos sociais, portanto existindo como representações que só
em parte exprimem os conteúdos significados e servem de mediadores entre os
conteúdos e os agentes coletivos e individuais que os formulam e para os quais se
dirigem, tal mediação consistindo em favorecer a mútua participação dos agentes
nos conteúdos e desses conteúdos nos agentes. O símbolo social é tanto uma re-
presentação incompleta, uma expressão inadequada, quanto um instrumento de
participação.
Segundo Gurvitch, os símbolos sociais revelam velan-
do e ao velarem revelam, na mesma maneira em que, impelindo para a participa-
ção direta no significado, travam-na. Portanto, os símbolos constituem uma forma
de comportamento diante dos obstáculos, sendo possível dizer que a
função sim-
bólica
é inseparável do homem tomado coletiva ou individualmente, de tal sorte
que os Eu, Nós, grupos, classes sociais, sociedades globais são construtores in-
conscientes ou conscientes dos símbolos variados.
Na análise sociológica da esfera simbólica do mundo
humano Gurvitch acentua as seguintes constatações: (1) – a imensa variabilidade
decorrente da ambigüidade fundamental do simbólico; (2) – os planos subjacentes
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da realidade social ela própria são dependentes do simbolismo na medida em que
justamente simbolizam o todo indecomponível dessa realidade seccionada; (3) –
ao mesmo tempo, os símbolos sociais mais especialmente ligados às obras de civi-
lização
78
funcionam como argamassa de colagem juntando as descontinuidades en-
tre os níveis seccionados; (4) – os símbolos se apóiam em experiências coletivas e
atos criadores dos Nós , grupos, sociedades, que (a) – constituem uniões prévias as
quais, por sua vez, tornando possível a comunicação (a1) – ultrapassam a esfera
simbólica tornando-a igualmente possível.
Nada obstante, cabe lembrar que em sociologia não se
procede a uma redução que não seja um procedimento dialético e Gurvitch insiste
que a esfera simbólica se limita a ser uma camada em profundidade da realidade
social dentre outras, reconhecendo que a redução das idéias e valores e das obras
de civilização ao plano do pensamento simbólico é característica da análise filosó-
fica. Esta as destaca da realidade social e do empirismo efetivo para desse modo as
estudar acentuando sua autonomia relativa como formas simbólicas dotadas de di-
ferenças específicas.
Cabe, pois, à sociologia esclarecer que a mobilidade pro-
vém exatamente do caráter mediador dos símbolos, além disso: (a) – os símbolos variam
em função dos sujeitos coletivos que os elaboram, ou emissores; (b) – os símbolos
variam em função dos sujeitos coletivos a que se dirigem, ou receptores; (c) – os
símbolos variam em função dos tipos de estruturas sociais parciais ou globais, bem
como em função das conjunturas particulares, dos quadros sociais (sociedades,
classes, agrupamentos particulares, formas de sociabilidade); (d) – os símbolos va-
riam igualmente em função dos obstáculos a ultrapassar ou situações a dominar
justamente pelos símbolos, etc.
Desta forma a sociologia põe em relevo a afinidade en-
tre o conjunto da realidade social e a esfera simbólica. Quer dizer, se analisarmos
as características de funcionalidade dos símbolos sociais constataremos com Gur-
vitch que há duas maneiras de classificar os símbolos: uma, enfocando as colora-
ções dominantes, distingue
três gêneros de simbolismo
que atendem a diferen-
ças de graus e não
a oposições nítidas, é a seguinte: (A) – símbolos sociais com
dominante intelectual; (B) – símbolos sociais com dominante emotiva e (C) – sím-
bolos sociais com dominante ativa e voluntária.
78
Os símbolos da linguagem, conhecimento, moralidade, arte, religião, direito, incluindo as idéias e valores que
essas obras de civilização implicam (mediante redução ao plano do pensamento, a análise filosófica as estuda
em sua autonomia relativa como formas simbólicas dotadas de diferenças específicas).
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Inclui-se na categoria de símbolos sociais com dominante in-
telectual as representações coletivas e individuais, as medidas, as conceituações das
diversas temporalidades e extensões concretas
79
, as categorias lógicas, as grande-
zas matemáticas que evocam a noção de infinito (cálculo infinitesimal), os símbo-
los servindo de fundamento ao aparato conceitual de diferentes ciências; a lingua-
gem, enfim. Aliás, deste ponto de vista da coloração dominante, em relação à lin-
guagem, Gurvitch remarca o caráter intermediário da mesma entre os símbolos in-
telectuais e os símbolos voluntários e ativos, porque a sua primeira forma consistiu
em gestos e exclamações.
Na categoria de símbolos sociais com dominante emotiva in-
cluem-se as danças e os cantos, as expressões de luto, as festas de noivado ou de
carnaval, as maneiras de fazer a corte e de se declarar, as bandeiras, as condecora-
ções, os monumentos, as imagens ideais que servem de padrões de moralidade
80
.
Finalmente, dentre a categoria de símbolos sociais com dominante ativa e voluntária en-
contramos os símbolos que servem de “sinais de símbolos”, isto é: os símbolos mo-
tores, os símbolos de preparação, os de chamada, os de comando, os de encoraja-
mento, os de excitação, etc.
Quanto à outra maneira de classificar os símbolos em
sociologia
81
se refere a uma oposição cujos critérios são eminentemente empíri-
cos, a saber: (a) – símbolos conscientemente enganadores e ilusórios: os slogans,
os preconceitos, as imagens ferindo a imaginação ou excitando os complexos de
superioridade e de inferioridade, as falsificações, os louvores, etc. (b) – os símbo-
los inconscientemente irrisórios: ligados às relações entre os sexos (macho e fê-
mea), à libido e mais especialmente ao tipo de casamento; (c) – símbolos cuja ela-
boração não contém nenhuma intenção reservada enganadora: são os símbolos li-
gados às obras de civilização como os símbolos religiosos, os símbolos morais, os
símbolos jurídicos, estéticos, do conhecimento, educativos, enfim.
Gurvitch sublinha o pluralismo da função simbólica:
cada símbolo depende do cotejo entre a função simbólica total e uma situação
conflitual de conjunto mais particularizada. Todavia, a validade dessa noção de
79
Ver sobre a multiplicidade dos tempos sociais segundo Georges Gurvitch o seguinte ensaio: Lumier Jacob (J.):
Leitura da Teoria de Comunicação Social desde o ponto de vista da Sociologia do Conhecimento
(Ensaio, 338 págs.). Internet, O.E.I. / E-book / pdf, 2007, págs. 180 a 219. link:
http://www.oei.es/salactsi/lumniertexto.pdf
80
Ver neste ensaio o capítulo 4: Introdução ao Estudo Sociológico da Variabilidade na Vida Moral.
81
A sociologia não é competente para considerar a oposição entre os símbolos como produtos da vida coletiva e
os símbolos possuindo uma verdade em si.
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pluralismo da função simbólica deve ser submetida a uma precisão. É que por
mais dependentes que os símbolos sejam dos diferentes aspectos da mentalidade,
as distinções entre os símbolos devem-se a diferenças de grau, de acentuação, de
coloração, como dissemos, e não a oposições nítidas, não havendo na classificação
dos três gêneros de simbolismo separação completa possível.
Não obstante exercer-se como impulso para a participação direta no significado, a função simbólica guarda um
aspecto de inadequação que a sociologia designa como “signo no símbolo” verificando que os símbolos são
presenças intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar carências
.
Podemos notar ainda nessa análise sociológica que a
maior parte das manifestações do social no mundo exterior dependem do simbo-
lismo, sendo este o caso das organizações, dos modelos, sobretudo os modelos
culturais, dos ritos, dos procedimentos, das tradições, das práticas, dos modos, dos
papéis sociais.
Todavia, como assinala Gurvitch, não é necessário que
todos os símbolos sejam generalizados e standardizados; não é necessário que es-
tejam ligados a modelos mais ou menos cristalizados ou fixados de antemão:
um simbolismo singular e espontâneo
que em circunstâncias particulares pode
tornar-se importante e que está próximo das condutas coletivas efervescentes, inovadoras
e criadoras, tanto quanto, em relação ao plano dos valores e das idéias sociais, está
igualmente próximo da apreensão coletiva direta ou não mediatizada pelos pró-
prios símbolos sociais.
Quer dizer esse simbolismo espontâneo e inteiramente
singular está na proximidade dos atos mentais coletivos, incluindo as intuições intelectu-
ais, emotivas, voluntárias dos Nós, dos grupos, das sociedades globais. Podemos
notar então que nesta análise sociológica da esfera simbólica, em sua definição,
Gurvitch compreende os símbolos como presenças intencionalmente introduzidas e invo-
cadas para indicar carências, tornando de tal sorte reconhecida a “expressão-signo no sím-
bolo”, sendo a esta expressão-signo que se refere o aspecto de inadequação que a
função simbólica compartilha com o seu sentido de instrumento de participação
ou de impulso para a participação direta no significado.
Cabe lembrar que ao constatar o signo no símbolo não se
exagera sobre o conhecimento de que a maior parte dos símbolos adquiriu por eta-
pas nos tipos mais recentes de sociedade um caráter completamente racional, não tendo mais
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o aspecto místico original da esfera simbólica
82
. Vale dizer, a sociologia não tira
do fato desse caráter racional adquirido através dos tipos de sociedade a conclusão
de que os símbolos se tornaram simples signos, simples indicativos da ação ou do
comportamento: a sociologia repele nessa hipótese exagerada da preponderância
total dos signos
83
a conseqüente redução na intensidade do caráter que tem o
símbolo de instrumento impulsionando para a participação direta no significado
84
.
Pelo contrário. Sustenta Gurvitch que essa participação
pode ela própria tomar um caráter racional e natural e não levar os símbolos em
modo algum a se tornarem veículos de misticidade
85
. Tomando o exemplo de
uma investigação científica em equipe onde prevalece o apelo à descoberta nota-se
que a participação consciente em diferentes níveis no ser social ou na criação cole-
tiva intelectual não incluem o elemento místico.
Outro exemplo é a língua utilizada pela coletividade
que, como sistema de símbolos, serve ao mesmo tempo de resposta antecipada às
questões postas e de expressão incompleta das significações e idéias compreendi-
das pela coletividade que fala tal língua e a utiliza em seu próprio pensamento.
Segundo Gurvitch, este fato de as mentalidades e as consciên-
cias coletivas e individuais utilizarem um vasto aparelho simbólico prova o caráter social da vida
mental, do elemento psíquico e sobretudo consciente – os quais são integrados na realidade social e
assim passam a esta suas energias ou emanações subjetivas.
Daí se pode considerar as categorias lógicas, os impe-
rativos morais, as regras do direito, como símbolos que inadequadamente e adap-
tados às circunstâncias exprimem as idéias lógicas e os valores morais e jurídicos
profundos.
Seja como for, ao parecer de teoria sociológica essa
compreensão da função simbólica como mediação favorecendo a mútua participa-
ção dos agentes nos conteúdos significados e desses conteúdos nos agentes coleti-
vos e individuais está em medida de incluir a distinção entre o real e o possível. É
82
Originariamente a esfera simbólica surge ligada às crenças no sobrenatural, religioso ou não.
83
Nessa hipótese exagerada acredita-se que os sistemas simbólicos “engendram o sentido e o consenso em torno do sentido”
por meio de alguma lógica e se deixa de lado a pesquisa sociológica fundamental do sentido da esfera
simbólica ela própria como setor da realidade social. Ver a mencionada Nota 01 dentre as NOTAS
COMPLEMENTARES.
84
Em sociologia a autonomia do significado é relativa e só se afirma na dependência ao fenômeno social total de
tal sorte que o avanço na racionalidade da cultura tem igualmente seu critério nessa dependência.
85
Já notamos esta característica racional quando Cassirer liga o progresso da cultura à diferenciação entre coisas e
símbolos, com a distinção entre realidade e possibilidade tornando-se mais pronunciada.
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o que se pode depreender da notação da mencionada “expressão-signo no símbolo”, in-
troduzida por Gurvitch para admitir a racionalidade sem excluir o elemento alegó-
rico exclusivo do símbolo (a mútua participação), assim diferenciado de toda a
misticidade.
Quer dizer, incluindo a expressão-signo no símbolo a fun-
ção simbólica ela só já equivale a uma alegoria
86
da unidade de ação como expe-
rimentação e dessa maneira atende a um princípio de racionalidade do pensamento
como interpretação do significado, como distinção entre o real e o possível de-
sembocando em uma faculdade nova do homem: a mencionada capacidade de rea-
justar constantemente seu mundo.
Aliás, nessa distinção entre realidade e possibilidade, já
sublinhamos tratar-se de uma conquista eminentemente epistemológica que se-
gundo Cassirer se observa nos estágios mais avançados da cultura, no progresso da
ciência na Renascença e nas épocas subseqüentes. O símbolo assim entendido
como reduzido ao elemento da expressão-signo não teria então uma presença ope-
rativa irredutível (Gurvitch) em afinidade oculta com a realidade social, já que seu
elemento seria apenas uma distinção intelectual – com base na qual se procede à
interpretação alegórica.
A possibilidade de apreender as configurações do objeto figurativo sendo fundada no fato de que a época atual
sublima todas as formas do pensamento operativo põe em relevo a compreensão do símbolo como presença
operativa, como mediação.
Por contra, na função simbólica como mediação tería-
mos uma compreensão ampliada destacando a ambigüidade ou a tensão em dois
pólos como constitutiva de qualquer símbolo social, a saber: (a) – signo de uma
espécie particular e (b) – instrumento de participação direta no significado – isto é,
instrumento de apreensão (e não apenas interpretação) dos conteúdos simboliza-
dos.
86
Alegoria por guardar o aspecto de inadequação que a função simbólica compartilha com o seu sentido de
“instrumento impulsionando para a participação direta no significado”, inadequação essencial esta já verificada
pela sociologia ao compreender os símbolos em sua funcionalidade social como “presenças intencionalmente
introduzidas e invocadas para indicar carências
”.
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Entretanto, da mesma maneira em que se admite que a
participação direta nos conteúdos significados para a qual incita o símbolo pode
tomar um caráter racional e natural, desprovido de qualquer misticidade, se admite
igualmente que a ambigüidade fundamental dos símbolos nessa compreensão am-
pliada acentua a relativização da sua racionalidade.
Quer dizer, dessa ambigüidade a análise sociológica
chega inicialmente a um duplo drama da esfera simbólica em seu conjunto, levan-
do segundo Gurvitch à constatação da confusão dos símbolos bem como à desco-
berta da inversão do seu sentido ou missão. Daí temos os símbolos criando os
conteúdos simbolizados – que então podem se tornar predominantemente imagi-
nários – ao invés de exprimir e incitar à participação, e, por essa via, passando os
símbolos a contribuir indiretamente para suscitar os obstáculos à participação nos
valores e idéias como conteúdos significados.
Em segundo momento, a análise sociológica põe em
relevo que, desse duplo drama se chega a constatar o pluralismo da função simbó-
lica em que, como já vimos, no seu tríplice aspecto intelectual, emotivo, voluntá-
rio, cada símbolo encontra-se como dependendo do cotejo entre a função simbó-
lica total e uma situação particularizada do duplo drama do conjunto.
Enfim a análise constata que o simbolismo sociológico
e o simbolismo psicanalítico (onírico e erótico) podem encontrar segundo Gurvit-
ch um denominador comum, com o elemento social fazendo variar o elemento li-
bidinal enquanto que, por sua vez, o simbolismo erótico representando ele próprio
um esforço inconsciente para vencer os obstáculos à participação direta nos con-
teúdos significados.
***
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença.
TERCEIRA PARTE
A função simbólica na sociologia da arte.
***
As configurações que se apreendem na experiência estética não são idênticas a nenhum dos elementos que a
compõe e nunca coincidem com o que se vê na experiência habitual. Esse meio, esse sistema de signos que se
observa em todas as simbolizações figurativas e artísticas e que se interpõe entre a consciência de um criador e a
de um espectador possui necessariamente essa característica de não ser sobreponível indiferentemente a não
importa qual estado de consciência.Existe uma distância da arte.
Mas não é tudo. A compreensão ampliada da função
simbólica em que o símbolo é definido como presença operativa, como me-
diação, se encontra reforçada na análise sociológica da arte, em que a possibilida-
de de apreender as configurações do objeto figurativo funda-se no fato de que a
época atual sublima todas as formas do pensamento operativo.
A atividade artística aparece nessa análise como inte-
grando no espaço os elementos encontrados esparsos nos mais diversos tempos, e
utilizando a ambigüidade, a reciprocidade, a polaridade dos sinais de símbolos consti-
tutivos da forma plástica e das representações, já que esta forma é tomada como
sendo não um reflexo das aparências, mas sim um dinamismo proveniente da im-
pulsão que lhe deu origem (e não do objeto).
A atividade combinatória do artista está pois, sempre
próxima da ação operativa: em caso algum se situa no plano do inconsciente, mas
começa onde acaba o virtual e determina uma escolha entre o número infinito dos
possíveis. Nessa análise a nós oferecida por Pierre Francastel
87
as configurações
87
Ver o artigo de Pierre Francastel em: Gurvitch et al.: “Tratado de Sociologia-vol.2”, revisão: Al-
berto Ferreira, Porto, Iniciativas Editoriais, 1968, (1ªedição em Francês: Paris, PUF,1960).
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que se apreendem na experiência estética não são idênticas a nenhum dos elemen-
tos que a compõe, como se observa em maneira privilegiada na experiência do
filme, em que a sucessão das figuras móveis que passam no écram sem deixar ras-
tro constitui um tipo inédito de transmissão da coisa vista, do déjà vu.
Compreende-se que os elementos materiais da proje-
ção cinematográfica nunca coincidem com o que se vê na experiência habitual. Es-
se meio, esse sistema de signos (fixos ou móveis) que se observa em todas as sim-
bolizações figurativas, incluindo as simbolizações artísticas e que se interpõe entre
a consciência de um criador e a de um espectador possui necessariamente essa ca-
racterística de não ser sobreponível a qualquer estado de consciência.
O objeto figurativo como imagem transmissora, seja
esta constituída por uma sucessão de sinais rápidos – caso do filme – ou por uma
configuração fixa de elementos diferenciados, não se confunde nem à coisa vista
nem à coisa percepta no espírito pela experiência ordinária.
Sem dúvida, essa não-coincidência da imagem trans-
missora com os estados mentais revela a distância da arte, de tal sorte que a apreen-
são sempre lenta e elaborada do objeto figurativo se diferencia como um fato de
civilização, cuja possibilidade assenta no caráter sublimado de todas as formas do pensa-
mento operativo, tal como se observa ao longo das épocas modernas.
Tendo em conta, por conseqüência, que em determi-
nado grupo social são os mesmos princípios que determinam as associações de i-
déias e influenciam os ciclos sempre renovados das diferentes produções de obje-
tos usuais ou de instituições, pode-se notar em acordo com Francastel a analogia
entre o desenvolvimento das especulações matemáticas e físicas, por um lado, e
por outro lado as transformações da arte figurativa na primeira metade do século
XX.
Daí, se considera legítima a pretensão dos artistas em
participar de uma renovação do universo sensível, como característica de uma é-
poca que sublima todas as formas do pensamento operativo (matemático, físico,
biológico, plástico). O universo atual do século XX já não é mais como na Renas-
cença, em que as formas do pensamento simbólico se sobrepunham ao uso de al-
guma habilidade manual em vista da descrição de um universo bruscamente am-
pliado, que já não aparecia nem como fato da mesma matéria nem como simples
reflexo de um pensamento divino hierarquizado. O universo atual aparece não
mais como um encadeamento de forças a explorar, mas como um campo de for-
ças a desencadear.
***
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Na análise sociológica da arte o objeto figurativo (guarda em si a função simbólica) é tratado como fato de
civilização no sentido de que sua possibilidade assenta no caráter sublimado de todas as formas do pensamento
operativo.
Nesta análise sociológica da arte como agente de ex-
pressão de um grupo social esforçando-se por tomar consciência e para chegar ao
conhecimento de si mesmo, a compreensão do objeto figurativo supõe uma análi-
se bastante ampliada. Como vimos, o objeto figurativo (guarda em si a função
simbólica) é tratado como fato de civilização ou constitui objeto de civilização no
sentido de que sua possibilidade assenta no caráter sublimado de todas as formas do pen-
samento operativo, tal como se observa ao longo das épocas modernas. Daí a rele-
vância da reflexão sobre a Renascença.
Quer dizer, o estudo da renascença leva a destacar a re-
lação existente nos começos do século XV entre as profundas transformações so-
ciais e o tão excepcional desenvolvimento das artes. Nota-se o princípio de ação
recíproca das artes sobre a sociedade reforçando a observação de que, embora te-
nha um aspecto manual ou técnico, a atividade artística penetra nas forças que ori-
entam o movimento da sociedade.
Ademais de acentuar o papel social das artes como e-
lemento de coesão
88
a Renascença trouxe para o primeiro plano a questão da fun-
ção criadora desempenhada pelo artista, sendo bem conhecido o fato de que nesta
época o artista individual ganhou seu lugar na sociedade entre os intelectuais.
Em conseqüência, constituindo o campo do pensa-
mento simbólico, a relação dialética do real e do imaginário vem a ser melhor
compreendida na medida em que são postos em questão os pressupostos lógicos
da Renascença, incluindo a exaltação do artista individual. Vale dizer, se é aceito
que a Beleza corresponde à eficácia, isto vem a ser mais frequentemente afirmado
88
Embora esse papel social possa variar em função das situações e das estruturas e possa até servir como fator de
dissociação.
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no sentido do sucesso ou dos valores que o justificam do que no sentido utilitário,
podendo-se mesmo atribuir à arte a possibilidade de condensar de uma forma evi-
dente a lição moral da experiência visual.
Desse modo, na exaltação renascentista do artista in-
dividual nunca se trata do diálogo isolado de um homem com um objeto desligado
do seu ambiente. Aliás, Francastel observa que a crença renascentista de um diálo-
go do homem-artista com o absoluto é um logro. O pensamento de outrem só é
apreendido em dado contexto e só assim suscita as reações sentimentais e intelec-
tuais.
Na reflexão sobre a relação dialética do real e do imaginário é patente o caráter inadequado da expressão
artística.
Nessa reflexão sobre a relação dialética do real e do
imaginário é patente o caráter inadequado da expressão artística, que já notamos
no fato da não-coincidência da imagem transmissora do objeto figurativo com os
estados mentais. Francastel acentua esse caráter inadequado ao pôr em relevo que
não existem boas interpretações da imagem, mas somente interpretações, decor-
rendo daí a exigência de reflexão sobre o problema da distinção necessária entre a
imagem e o objeto figurativo.
Como mencionado, a arte jamais é conforme a uma represen-
tação mental precisa. Se assim não fosse, seria tornada imagem no sentido psicológico
e não em sentido figurativo. Se a leitura de uma obra de arte – quadro, estátua,
monumento ou filme – leva tempo e exige esforço, com a interpretação necessari-
amente fragmentária que o acaso de um contexto lhe deu, é porque há um perpé-
tuo vai-vem entre a tela, o objeto figurativo e o pensamento.
Por efeito de sua cristalização, diz-nos Francastel, toda
a obra de arte se torna ponto de partida de uma reflexão estética cotejando os múl-
tiplos elementos da experiência transmitida pelo artista na imagem transmissora
com a própria experiência de quem sabe mirar. O objeto figurativo é o termo de
uma experiência e ao mesmo tempo é o ponto de partida de uma nova experiência
que reintroduz o objeto figurativo no espírito de seu autor, em que se cristalizam
pensamento e atividade combinatória.
Produto de uma astúcia do espírito, a obra de arte é fixa,
mas sua interpretação é móvel. Como se sabe, pertence ao domínio do figurativo –
imagem ou objeto – tudo o que é suscetível de identificação fragmentária, enquan-
to pertence ao domínio da forma artística tudo o que constitui uma nova ordem
de conjunto – isto é: tudo o que modifica o valor relativo dos elementos utilizados
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na obra, decifrando inclusive o esquema funcional de sua integração e sugerindo
modos de conduta e compreensão.
Nessa análise sociológica da arte com mirada para a
função simbólica a distinção no âmbito da reflexão estética de um nível voltado
para refletir sobre os recortes do real é uma diferenciação que acentua a maior coe-
rência deste nível em face da primeira, haja vista o refletir sobre os recortes do real se
desdobrar sempre no tempo.
Com efeito, a arte é um tipo de conhecimento intelec-
tualizado e vinculado à exploração dinâmica do campo de percepção visual, possu-
indo como seus caracteres linha, cor, luz, volume, relevo, etc. cujos recortes não
são os do real.
Nada obstante, Francastel observa que a arte surge ne-
cessariamente realizando quer objetos representativos das crenças de um grupo
quer, no aspecto abstrato, esquemas imaginários de representação, sendo a arte as-
sim surgida memória ou projeto para um grupo social, conforme o caso das alternati-
vas mencionadas.
Este caráter simbólico da sua função social ou, por ou-
tras palavras, esta sua capacidade para informar através de um tipo particular de
sinais os valores de outras atividades simbólicas eminentemente verbais, levanta a
questão da relação da arte com a linguagem.
No estudo dessa questão, recomenda Francastel que a
relação arte/linguagem deve ser enfocada em maneira crítica evitando-se reduzir às
leis da linguagem a experiência plástica – com suas regras originais presidindo às
associações simultaneamente representativas e operativas.
Sem dúvida a experiência artística utiliza igualmente a
todas as linguagens modelos ou esquemas de causalidade; descrições de sistemas
de várias dimensões servindo para fixar a atenção nos fenômenos suscetíveis de
repetição; procede à distinção dos campos de experiência organizados ao nível da
percepção ou sistemas racionalizados: sendo-lhe todavia inaplicável as divisões ob-
jetivas definitivamente válidas.
Vale dizer: se o caráter diretamente estruturante da arte
é imediatamente acessível a muitas pessoas; se para estas pessoas privilegiadas a
linguagem da arte é imediata e se sua experiência não pode porém ser comparti-
lhada por quem se exprime apenas através de outras formas de expressão conven-
cionais como as matemáticas, cabe pôr em relevo diante disso e em benefício da
comunicação social que as formas diferenciadas específicas da linguagem não
permanecem incomunicáveis aos outros grupos nelas não iniciados – caso contrá-
rio não se poderia falar com exatidão de comunicação na sociedade.
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Observa Francastel que o estudo das condições segun-
do as quais qualquer tipo de linguagem possui simultaneamente autonomia e per-
meabilidade deve levar em conta que a mesma se altera para se tornar em um dos
elementos do sistema múltiplo de intercomunicação, cuja rede oferece à sociedade
a possibilidade de participar na totalidade das experiências técnicas e intelectuais.
***
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença.
QUARTE PARTE
Notas para a Leitura de A Filosofia da Renascença
***
A arte jamais é conforme a uma representação mental precisa. Se assim não fosse, seria tornada imagem no
sentido psicológico e não em sentido figurativo. Se a leitura de uma obra de arte – quadro, estátua, monumen-
to ou filme – leva tempo e exige esforço, com a interpretação necessariamente fragmentária que o acaso de um
contexto lhe deu, é porque há um perpétuo vai-vem entre a tela, o objeto figurativo e o pensamento.
Tendo em vista a aplicação na leitura de Jacob Burc-
khardt, essas análises sociológicas da função simbólica na arte favorecem a com-
preensão do alcance artístico ou estético na abordagem crítico-histórica de
A Filo-
sofia da Renascença
(Die Kultur der Renaissance in Italien, 1860, tradução em portu-
guês da Ed.Presença, Lisboa
). Com efeito, nesta obra de Burckhardt a consideração
dos fatos de civilização pode ser equiparada à noção do objeto figurativo nos permi-
tindo ver a compreensão da Renascença como acentuando a penetração do pata-
mar dos símbolos sociais.
O destaque fundamental é para a noção de
distância
,
quer se trate de paisagem, relatos de viagem, descobertas de novos continentes,
cartografia, medidas aí utilizadas, enfim, rotas para o desenvolvimento do comér-
cio, sobressaindo desta forma em primeiro plano a importância do conhecimento
do mundo exterior. Vale dizer, na leitura de
A Filosofia da Renascença
de Jacob
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Burckhardt a noção de distância como categoria do mundo exterior antes de identifi-
car-se ao espaço quantitativo como um de seus aspectos afirma uma experiência em
vias de se efetuar e ao mesmo tempo validada na medida em impulsiona o dinamismo da
esfera simbólica e artística.
Trata-se de uma experiência em que o espaço por não
ser ainda reduzido ao componente quantitativo que as ciências desenvolverão mais
tarde não pode ser pensado exclusivamente em termos das medidas buscadas co-
mo necessárias às viagens marítimas em expansão. A paisagem e os relatos de via-
gem revelam a busca desse espaço como penetrada pelo desejo de abarcar com a
mirada a imensidão do horizonte sem fim de um mundo exterior ainda misterioso.
Se a partir desse simbolismo de aspiração levarmos em
conta o aporte contemporâneo da sociologia do conhecimento perceptivo do
mundo exterior, fazendo ver a noção de distância como conceituação da extensão
concreta em que se imbrica justamente o mundo exterior, poderemos obter uma a-
plicação produtiva deste conhecimento do século XX
89
para formular nossa refe-
rência de leitura.
Ou seja, se todo o simbolismo coletivo em sua presen-
ça operativa (não somente representativa) se define como mediação incitando à
participação nos valores e idéias
90
e uma vez que, sendo fundamental no simbo-
lismo coletivo da Renascença, a distância é a conceituação da extensão concreta po-
demos admitir como conjectura sociológica em nossa leitura que a carência da idéia
de extensão concreta traz a maior afirmação intelectual do indivíduo e do individual na
Renascença. Tanto mais que, na base do predomínio da esfera simbólica e artística
se verifica uma realidade social e histórica profundamente fragmentária, deixada
no rastro das Cruzadas e do fim do Sacro-Império Romano-Germânico.
Ademais, como foi dito, a carência da idéia de
extensão concreta experimentada ou vivenciada na base da noção de distância co-
mo categoria de um mundo exterior ainda misterioso poderá sem dúvida ser to-
mada por critério da impulsão do dinamismo da esfera simbólica e artística. Para
isto, será bastante saber que o correlativo tema literário (não-religioso) da alma na
literatura da Renascença se faz acompanhar reconhecidamente como veremos pela
afirmação da ausência de lugar.
89
Produzido por uma consciência cuja abertura em perspectivas já prevalece sobre os obstáculos. Pesquisar sobre
este tema as referências às teorias de consciência aberta, neste ensaio e nos meus E-books anteriores
acessíveis no website da O.E.I e no Portal MEC.br.
90
Possibilitando a produção dos significados em sua autonomia relativa, em sua incerteza.
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Aliás, a percepção crítico-histórica dessa ausência de lu-
gar para referir o tema da alma na literatura da Renascença é constatada em manei-
ra muito nítida não somente nas descrições de Burckhardt, mas igualmente nas a-
nálises interpretativas da Crítica da Cultura.
Como veremos, neste marco será possível destacar
dentre as observações de Herbert Marcuse
91
uma constatação que, em face da fi-
losofia racional moderna ás voltas com o cartesianismo, sublinha o alcance crítico
histórico do tema literário da alma no simbolismo artístico renascentista como uma
parte não investigada de um mundo a descobrir.
Por via de uma resignação sublimada, o tema da alma adquire funcionalidade sociológica no plano dos valores
culturais que, por evocar uma atitude, Marcuse chama cultura afirmativa, para estudá-la em seu apogeu como
cultura da época burguesa nos séculos XVIII e XIX.
Quer dizer, embora alcançada pelas “exigências de liber-
dade e auto-valoração do indivíduo”, que acentuam o aspecto de aspiração no simbo-
lismo, o reino da vida interior permanece desconhecido para a filosofia racional
moderna, atribuindo-se à literatura da Renascença a convicção de que a alma não es-
tá lugar nenhum, não tem disposição nem capacidade para receber ou para produzir algo, (...)
não podendo ser objeto nem da psicologia especulativa nem da psicologia empírica.
Todavia, não se pretende afirmar com isto que a ausên-
cia de lugar diminua a importância desse tema da vida interior na Renascença. Pelo
contrário. Lembrando-nos sobre Dilthey, Marcuse põe em relevo que, (a) – sendo
o correlato das riquezas da vida exterior recentemente descobertas, o interesse pe-
las situações individuais incomparáveis e reais até então desprezadas da alma fazia
parte do programa filosófico renascentista de viver a vida total e integralmente, e
(b) – que a preocupação pela alma tem sua influência na crescente diferenciação
das individualidades e aumenta a alegria de viver dos homens através de um de-
senvolvimento natural baseado na essência do homem.
Para a crítica da cultura há uma qualidade negativa no
tema da alma em literatura da Renascença na medida em que a alma aparece como
91
Marcuse, Herbert: ‘Cultura y Sociedad’, tradução E.Bulygin e E. Garzón Valdés, Buenos Aires, editorial Sur,
3ªedição, 1968, 126 pp. (1ªedição em Alemão, Frankfurt, Suhrkamp, 1965).
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signo de tudo o que não é mundo. Mas não é só isso: servindo para configurar na
vida interior a única garantia humana, o tema da alma desde o ponto de vista críti-
co histórico sublima uma atitude de resignação.
Quer dizer, por via dessa resignação assim sublimada, o
tema da alma adquire uma funcionalidade sociológica no plano dos valores cultu-
rais que, por evocar uma atitude, Marcuse chama cultura afirmativa, para estudá-la
em seu apogeu como cultura da época burguesa nos séculos XVIII e XIX.
Tomando como ponto de partida desse estudo a con-
vicção renascentista de que a alma não está em lugar nenhum, Marcuse nos mostra
em que modo tal ausência de lugar tem alcance estruturante na sociedade moder-
na. Desta maneira nos faculta a compreensão da ambigüidade do plano dos valo-
res da classe burguesa, sendo por meio do tema da alma que a cultura afirmativa
protesta contra a coisificação no capitalismo ao mesmo tempo em que induz a a-
comodar-se.
Por um lado, a representação desse tema estabelece a
alma como o único âmbito da vida não alcançado pelo suporte da mercadoria que
coisifica, isto é, não alcançado pelo valor de troca: a alma aparece representada
como o ideal que situa o homem individual e insubstituível por encima de todas as
diferenças sociais e naturais, âmbito da verdade entre os homens, o Bem e a Justi-
ça, onde as faltas humanas devem ser expiadas pela pura humanidade.
Por outro lado é também a representação do tema da
alma que constrói uma concepção de educação cultural como exigência de disciplinar
as massas insatisfeitas procedendo à internalização do prazer mediante sua espiri-
tualização.
Nada obstante, antes de desdobrar sua funcionalidade
sociológica na sociedade do século XVIII e XIX, Marcuse nota o tema da alma na
literatura da Renascença vinculando-se ao surgimento da universalidade da cultura, e
por essa via pressupondo o desaparecimento da concepção tradicional pela qual os
valores supremos eram objeto de ocupação profissional e patrimônio de certa clas-
se social.
Essa substituição da concepção tradicional, traço da
época burguesa como um todo, na medida em que se verifica no âmbito do pen-
samento artístico envolvendo as relações entre o necessário e o Belo, entre traba-
lho e prazer é uma substituição que não
alcança a situação real de serem os valores
superiores patrimônio de uma classe social. Quer dizer, a substituição da concep-
ção tradicional atinge somente a boa consciência desse patrimônio sobre os valo-
res, sua base no reconhecimento de que a possibilidade de se dedicar ao prazer e à
verdade e não ao necessário era uma possibilidade que não podia abranger a maio-
ria dos homens, contemplando somente uma pequena parte dentre eles.
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Segundo Marcuse, essa boa consciência deixa de existir
diante do caráter abstrato dos homens nas relações sociais de troca competitiva
advindas com o incremento do mercado da força de trabalho. Para bem compre-
ender esta nulidade, basta levar em conta que o caráter abstrato é extensível ao
manejo dos bens ideais por efeito de analogia da relação imediata do indivíduo
com o mercado (suas características e necessidades pessoais somente têm impor-
tância como mercadorias). Por essa analogia, torna-se também imediata a relação
do indivíduo com Deus, com a Beleza, com o Bom e com a Verdade: como seres
abstratos todos os homens devem ter igual participação nesses valores.
Trata-se em realidade social de uma correlação socio-
lógica, portanto funcional, possibilitando o procedimento de que resulta a universa-
lidade da cultura como concepção consolidando a obra de arte ou seu conteúdo em
uma espécie de valor que, por sua própria essência abstrata deve afetar, obrigar e
agradar a todos sem distinção.
Daí provém o mecanismo pelo qual “a civilização re-
cebe sua alma da cultura”: a distinção pela qual, em modo sociológico e em termos
avaliativos, a cultura como reino dos valores propriamente ditos e dos fins últimos
permanece distanciada do processus social, reservando-se à civilização o mundo da
utilidade social e dOs fins mediatos ou mediatizados.
Tal distinção constitui o caráter geral da forma de cul-
tura que em sentido crítico-histórico Marcuse chama
cultura afirmativa
: procede
da Renascença, faculta ao indivíduo desde sua interioridade realizar por si mesmo
um mundo valioso essencialmente diferente do mundo real da luta pela existência,
e estabelece aos objetos culturais uma dignidade que os eleva acima do cotidiano.
A cultura afirmativa funciona como modelo à medida
que cria através das correlações sociológicas da universalidade da cultura um reino de
unidade e de liberdade aparentes, apaziguando as relações conflitivas das novas
condições sociais e econômicas de existência desdobradas desde a Renascença.
***
Em posse desse modelo crítico-histórico da cultura a-
firmativa, a análise marcuseana orienta-se para a sociologia do conhecimento filosó-
fico, relaciona a filosofia da razão e o tema da alma que não está em lugar nenhum
pondo em relevo a perplexidade da filosofia em face deste tema que não foi criado
por ela, mas que encontrou sua primeira expressão positiva na literatura da Renas-
cença.
Quer dizer, Marcuse nos proporciona a análise da filo-
sofia da razão (Descartes, Kant, Hegel) à que refere o racionalismo materialista da
classe burguesa em ascensão, análise em cotejo diante da cultura afirmativa que, co-
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mo vimos, é um modelo cujo alcance social serve para tomar em consideração não
só o conjunto dos valores próprios à classe burguesa como conceito sociológico
preciso, mas abarca a época das relações sociais e econômicas de troca competitiva
como um todo.
Tomando em referência exatamente o quadro da troca
dos produtos como mercadorias, essa análise marcuseana faz notar que o tema da
alma liga-se a círculos de vida que escapam à razão abstrata. Nesta última, somente
a razão técnica como aspecto parcial da res cogitans pode ser tomada em considera-
ção nas fases da elaboração da matéria que começam com a divisão do trabalho na
manufatura e terminam com a indústria de máquinas.
Com efeito. Nesse processamento produtivo, Marcuse
põe em relevo as potências espirituais da produção como viabilidade para uma possível
descoberta pela filosofia de um enlace com o aspecto propriamente social. Toda-
via observa na realidade desse processamento produtivo que as potências espiritu-
ais da produção se colocam ao produtor imediato como propriedade privada e
força dominante, de tal sorte que o pensamento não assimilado na razão técnica se separa
desde Descartes cada vez mais da vinculação consciente com a práxis social,
permitindo a coisificação que o pensamento mesmo estimula como razão abstrata.
Há uma distância que separa a filosofia da razão de qualquer vinculação social ao tema da alma, de tal sorte
que o objeto da psicologia resta uma questão crítica, não só no âmbito do conceito afirmativo da cultura, mas
no âmbito da própria filosofia.
Por conseqüência, os círculos (sociais) de vida a que se
ligam o tema da alma escapam à vinculação consciente pelo pensamento não assi-
milado na medida em que a filosofia deixa largada ao indivíduo as relações objeti-
vas, a aparência, como as leis das coisas.
Esta situação fundamental de não-vinculação social do
pensamento, no dizer de Marcuse, em que se observa a limitação da filosofia da
razão (a qual ademais não reflete a consciência da perspectiva) será designada co-
mo “distância
”, neste caso, aquela que separa a filosofia da razão de qualquer vincu-
lação ao tema da alma, de tal sorte que o objeto da psicologia resta uma questão
crítica, não só no âmbito do conceito afirmativo da cultura, mas no âmbito da
própria filosofia.
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Com efeito, no dizer de Marcuse, o relevo atribuído
neste modelo afirmativo faz alusão ao ser não-corporal do homem como substân-
cia propriamente dita do indivíduo afirmando a alma como algo mais do que a totalidade
das forças e mecanismos psíquicos (de que se ocupa a psicologia empírica).
Lembrando-nos sobre Alfred Weber em sua definição
de cultura como a expressão e como o querer de uma alma situada por detrás de
todo o domínio intelectual da existência e desprovida de preocupação pela finali-
dade e a utilidade (elementos estes últimos pertencentes à racionalidade da técni-
ca), Marcuse nota que essa liberação do anímico como caráter de substância es-
teve desde Descartes baseada na peculiaridade do Eu como res cogitans oposto ao
mundo mensurável e calculável. Quer dizer, essa liberação do anímico como cará-
ter de substância esteve diferenciada como a única dimensão da realidade que es-
capa ao racionalismo materialista da classe burguesa em ascensão.
Produz-se então o esquema de uma redução imperfeita
nos conceitos da filosofia da razão que não consegue assimilar as qualidades e afi-
nidades do Eu como cogitatio à res extensa. Na divisão do Eu em dois campos que aí
se verifica, em sua peculiaridade autoconsciente, o Eu como sujeito do pensamen-
to (mens ou espírito) está aquém do ser da matéria como seu a-priori.
Todavia, Descartes trata de interpretar sob o enfoque
materialista o Eu como alma (anima), como sujeito das paixões (amor e ódio, ale-
gria e tristeza, ciúmes, vergonha, remorso, agradecimento, etc), as quais ficam pois
reduzidas à circulação do sangue e à sua modificação no cérebro, fazendo-se de-
pender dos nervos a todos os movimentos musculares e sensações, só que os ner-
vos mesmos devem conter um alento muito fino ao qual se denomina espírito vital.
Marcuse põe em relevo que apesar desse resíduo ima-
terial a interpretação de Descartes é clara: o Eu é ou espírito, mero pensar (cogita-
tio me cogitare) ou, na medida em que não o é, se o considera como um ente cor-
poral (cogitatio), cujas qualidades pertencem ao ser da matéria (res extensa), mas não
podem dissolver-se totalmente na matéria.
A conclusão de Marcuse em face dessa redução imper-
feita, na qual sobressai a alma como um reino intermédio não dominado entre
a incomovível autoconsciência do puro pensar afirmada no entendimento e a cer-
teza físico-matemática do ser material põe em relevo a exclusão do objeto da psi-
cologia: “os sentimentos, os desejos, os instintos e afetos do indivíduo ficam desde o começo fora
do sistema da filosofia da razão”.
***
Mas não é tudo. Essa limitação do racionalismo mate-
rialista da classe burguesa em ascensão levando à exclusão do objeto da psicologia
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é igualmente destacado em relação a Kant, quem nega expressamente poder en-
tender a alma no marco da dicotomia de “res cogitans” e de “res extensa”, no dizer de
Marcuse: “Kant destruiu a psicologia racional sem poder alcançar a psicologia empírica”.
Acresce que nos grandes sistemas de filosofia da razão
tampouco há consideração integral da alma. Assim o estudo da alma em Hegel se
divide igualmente em duas partes: uma que corresponde à antropologia psicológica
e outra à filosofia do espírito.
Entretanto, nota Marcuse que em Hegel a alma está ca-
racterizada por não ser ainda espírito. Quando trata da psicologia ou da alma humana
em sua teoria do espírito subjetivo o conceito diretor não é a alma, mas o espírito.
Na sua antropologia a alma está ainda totalmente ligada a determinações naturais,
no dizer de Marcuse: “Hegel fala da vida planetária em geral, das diferenças natu-
rais entre as raças, das idades da vida, do mágico, do sonambulismo, das distintas
formas dos sentimentos psicopáticos e somente em poucas páginas da alma real”.
Quer dizer, em Hegel a alma não é outra coisa que
passagem ao Eu da consciência, passagem que surge quando se abandona a teoria
antropológica e se penetra na fenomenologia (antropológica) do espírito. Os ver-
dadeiros objetos da psicologia – os sentimentos, os instintos, a vontade, o desejo,
etc. – se apresentam somente na referência da substância inteligível como formas
de existência do espírito.
Por contra, será neste ponto que Marcuse fará sobres-
sair o contraste com a cultura afirmativa de que nos falou previamente e na qual se
entende por alma aquilo que precisamente não é espírito. Lembra-nos para começar sobre
Oswald Spengler, o autor de “A Decadência do Ocidente”, quem houvera preconizan-
do a noção de alma como inacessível para a luZ do espírito, para o entendimento,
para a investigação empírica, comparando ser mais fácil seccionar e analisar um
tema de Beethoven mediante o bisturi e os ácidos do que analisar a alma pelo pen-
samento abstrato. Quer dizer, na cultura afirmativa a idéia de alma torna reunidas
em uma unidade indivisível as faculdades, atividades e propriedades não-corporais
do homem – incluindo representação, sentimento e instinto – unidade que se con-
serva manifestamente em todas as condutas do indivíduo e que precisamente
constitui sua individualidade.
Para Marcuse finalmente este conceito de alma que
suscitou a perplexidade da filosofia da razão encontrou sua primeira expressão po-
sitiva como já o dissemos na literatura da Renascença, onde o tema da alma afir-
ma a ausência de lugar.
***
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Seja como for, de todas estas observações sobre a fun-
cionalidade do tema da alma para uma sociologia do conhecimento filosófico in-
cluindo a moderna filosofia da razão sobressai o interesse renovado dos estudos
da Renascença. A análise e Marcuse põe em relevo não só a ligação da esfera sim-
bólica e artística da Renascença com a estrutura de classes das sociedades dos sé-
culos XVIII e XIX, mas nos mostra o alcance dessa ligação para a crítica do racio-
nalismo materialista da classe burguesa em ascensão.
Ademais, o modelo social descoberto nessa análise an-
tecipa uma explicação sociológica para a permanência da distância da arte, simbo-
lizada na universalidade da cultura afirmativa.
Mas não é tudo. Há certos aspectos nos pressupostos
desse modelo que devemos assinalar em vista de reencontrar a atualidade das des-
crições sobre a vida social e artística elaboradas na obra clássica de Jacob Burc-
khardt “A Filosofia da Renascença”.
Quer dizer, as trajetórias das condutas coletivas em ní-
vel dos símbolos sociais tomadas por realizadas nas pressuposições desse modelo
social reconstituído por Marcuse não se verificam conforme as previsões ou não
se reduzem às tendências esquemáticas. As condutas da esfera simbólica não se
acomodam às regularidades impostas pelos modelos, mas atendem ao modo espe-
cífico de operar dos símbolos.
Basta lembrar como vimos as observações de Georges
Gurvitch afirmando não ser necessário que os símbolos sejam padronizados ou es-
tejam ligados a modelos sociais fixados de antemão. Há um simbolismo singular e
espontâneo que nas circunstâncias particulares pode ser verificado em aproxima-
ção ás condutas coletivas efervescentes, inovadoras e criadoras, bem como é pró-
ximo à apreensão coletiva direta dos valores e das idéias sociais, a que esse autor
destaca os atos e intuições dos Nós, grupos, sociedades globais.
Assim, se é válido destacar que a carência da idéia de
extensão concreta
92
como critério da impulsão do dinamismo da esfera simbólica
na circunstância particular da Renascença aglutinando a sociedade em Itália orienta
a análise de crítica da cultura que expusemos, devemos distinguir por sua vez as
concepções assimiladas na mesma.
Devemos ter em conta a compreensão do dinamismo
da esfera simbólica como assimilando certos resultados da teoria sociológica, se-
guintes: (1) – a aplicação da definição estritamente sociológica de que, como medi-
ação, os símbolos sociais revelam-se presenças intencionalmente introduzidas e
invocadas para indicar carências; (2) – o fato de que as extensões concretas como
92
Sobre a extensão concreta ver Nota 02 dentre as NOTAS COMPLEMENTARES no final deste artigo.
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amplitudes nas quais está imbricado o mundo da percepção coletiva
93
são concei-
tuadas em distância; (3) – a constatação de que na Renascença o conhecimento do
mundo exterior ocupa o primeiro plano
94
.
Com efeito, nas linhas do modelo marcuseano a afir-
mação de que a alma é uma parte não investigada de um mundo a descobrir dá por
suposto inicialmente que os humanistas da Renascença conseguiram efetivamente
consolidar tal concepção de alma como desprovida de lugar. Suposição esta que ao
constituir proposição conjetural de reflexão crítico-histórica resta a verificar nas
descrições das condutas dos humanistas ou a eles referidas. Descrições que, em fa-
to, mostram não só a ambigüidade dessa corrente de pensamento e ação renascen-
tista, mas a ascensão e o declínio do prestígio social dos letrados humanistas.
Em segundo lugar, a afirmação de que aquela concep-
ção de alma como desprovida de lugar acontece em correlação à importância do
conhecimento do mundo exterior tampouco pode ser estabelecida de antemão.
Trata-se de uma referência que antes de mais nada incentiva a descobrir nas con-
dutas da sociedade identificada à Renascença a maneira e a base sob as quais tal
enlace pode ocorrer entre esse tema da alma que não está em lugar nenhum e as
experiências da distância ou vivências de seu conteúdo que situam o mundo exte-
rior.
Em realidade, antes de valerem como realizadoras do
modelo crítico-histórico caracterizado como cultura afirmativa, as correlações apro-
ximando o tema literário da alma ao conhecimento do mundo exterior releva do
desenvolvimento do comércio no mediterrâneo e inclui o estudo da vida social e
da sociedade renascentista italiana sendo observada notadamente na atitude coleti-
va orientada para a indiferença dos dogmas religiosos, como assinalado nas descri-
ções de Burckhardt.
Comentário análogo aplica-se igualmente para a aceita-
ção de uma sobreposição da imagem simbólica ideal do homem liberado e para a a-
ceitação como faticidade dos valores de liberdade e autovaloração do indivíduo, os quais
93
Sobre a noção de amplitudes concretas ver igualmente a mencionada Nota Complementar 02.
94
O movimento da Renascença é a complementação da evolução das cidades livres caracterizando uma verdadeira
revolução municipal ao dar nascimento aos governos provisórios, haja vista constituírem esses centros da in-
dústria e do comércio os focos da inspiração intelectual e da ressurreição do direito romano e as sedes de on-
de parte o conhecimento perceptivo do mundo exterior.
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estariam sobrepostos ao conhecimento do mundo social e do mundo exterior –
incluindo a concepção de que este mundo é o palco de um domínio racional. Neste
último caso se impõe igualmente a descrição das condutas que se ligam às grandes
viagens como empreendimentos complexos ou aos seus relatos, incluindo a refle-
xão e aspiração do descobrimento de novos continentes bem como, neste marco,
o surgimento da cartografia.
Somente pela observação sociológica dessas condutas
coletivas tidas por realizadoras do modelo de cultura afirmativa ou pela descrição
das atitudes que as englobam é que se poderá aceitar ou rejeitar a imagem da Re-
nascença como situação em que o reino da vida interior é o correlato das riquezas
da vida exterior então descobertas, como nos sugere a crítica da cultura de Herbert
Marcuse.
***
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença.
NOTAS COMPLEMENTARES
(Nota 01) - Sobre a Interpretação Alegórica do Mito.
O caráter de aplicação para novos conhecimentos que ressalta da
análise sociológica do saber arcaico na sociologia de Gurvitch é posto em relevo quando em cotejo
com a análise filosófica.
Com efeito, foi assinalado por Bourdieu, a respeito da análise
filosófica, para começar, que o “estruturalismo etnológico” de Cassirer e de Levy-strauss tem uma
“dívida” com a corrente durkheimeana que muitas vezes passa despercebida.
Para Bourdieu, Levy-Strauss é censurável (a) - por “esquecer-se”
de utilizá-lo e, sobretudo (b) - por “incluir” o princípio da relação (ou correlação) entre as estruturas dos sis-
temas simbólicos e as estruturas sociais - princípio do qual ele, Levy-Strauss, se utilizou - “dentre as ex-
plicações demasiado fáceis e ingenuamente projetivas” - tornadas desprezadas pelo próprio Levy-
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Strauss como referências de uma “leitura externa”, que o mesmo passou a rejeitar em favor das
in-
terpretações alegóricas
(
95
).
Para Bourdieu, se levarmos a sério, ao mesmo tempo, a hipótese
de Durkheim sobre a inserção social dos esquemas de pensamento, de percepção, de apreciação e
de ação, por um lado, e, por outro lado, o fato da divisão em classes nas sociedades, somos neces-
sariamente conduzidos à hipótese de que existe uma correspondência entre as estruturas sociais e as estrutu-
ras mentais, correspondência esta que se estabelece por intermédio da “
estrutura dos sistemas
simbólicos
” - língua, religião, arte, etc.
Os sistemas simbólicos - prossegue o mesmo autor - “engendram o
sentido e o consenso em torno do sentido por meio da lógica da inclusão e da exclusão” e, desse modo, estão
propensos por sua própria estrutura a servirem simultaneamente a funções de inclusão e exclusão,
de associação e dissociação, de integração e distinção - funções essas que este autor considera te-
rem um alcance político.
Para Bourdieu, o ponto de vista da corrente durkheimeana como
interpretação estrutural
se opõe à interpretação alegórica pelo seguinte: trata-se de realizar, com
atenção à prática, a intenção de descobrir a lógica imanente do mito ou do rito.
Segundo este autor, a contribuição da corrente de Durkheim po-
deria ser apreciada no marco de “uma teoria da função de integração lógica e social das representa-
ções coletivas”. Uma “teoria” segundo a qual a sociedade tem necessidade não apenas de “um con-
formismo moral”, mas também de um mínimo de “conformismo lógico”, sem o qual não poderia
subsistir.
Para Durkheim, todavia, prossegue o mesmo autor, o primado é
para a produção do sentido, que Durkheim vincularia a um entendimento entre os homens, a uma
concepção homogênea do tempo, do espaço, da causa, do número, etc., como base prévia de todo
o acordo viabilizando a vida em comum (cf. Durkheim, Émile: “Les Formes Elementaires de la Vie Re-
ligieuse”, p.24; apud Bourdieu, op.cit. p.29sq).
A orientação da sociologia de Gurvitch compreende este esquema
da corrente durkheimeana, só que este autor desenvolve uma concepção dinâmica de toda a moralida-
de efetiva - que se nota em seus comentários aos estudos de Bérgson - e aplica essa concepção dinâmi-
ca na sociologia dialética dos níveis ou camadas em profundidade da realidade social, de tal sorte que
as
obras de civilização
em sua extensão como controles ou regulamentações sociais são tomadas
como setores indispensáveis à estruturação da própria realidade social.
Aliás, Gurvitch, a quem repugna o “culturalismo abstrato” e o
funcionalismo dos seguidores de Parsons, evita usar expressões tais como “estrutura dos sistemas
simbólicos” e limitando-se ao realismo sociológico constata a funcionalidade intermediária na cor-
respondência entre as estruturas sociais e as estruturas mentais justamente como
colocação em perspectiva
sociológica das obras de civilização
.
Para Gurvitch a consciência é integrante da existência do caráter
coletivo e sua sociologia se nos apresenta como a “linguagem” da
subjetividade coletiva
nos
mostrando a perspectivação sociológica como um fato.
Neste sentido, podemos reencontrar o esquema durkheimeano da
“inserção social do pensamento” de que nos falou Bourdieu. Basta ter em conta que “a lógica i-
manente do mito ou do rito” bem entendida como categorias do saber arcaico, somente nos são acessíveis graças
95
Cf. Bourdieu, Pierre: “
A Economia das Trocas Simbólicas
”, introdução, organização e seleção dos originais
em Francês por Sérgio Miceli, São Paulo, ed. Perspectiva, 1974, 361 pp., pág.33.
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ao fato da coincidência dos quadros de referências lógicas e estimativas com os quadros sociais, coincidências descober-
tas pela colocação em perspectiva sociológica que Boudieu desconhece.
Em que pese os comentários de Bourdieu acentuando a oposição
com a interpretação alegórica, por um lado, e as diferenças da sociologia com a análise filosófica
por tratar esta o Maná como via de expressão no âmbito do sagrado, por outro lado, os resultados
de Gurvitch (sobretudo seu reconhecimento de que há diferentes graus de misticismo e de raciona-
lidade) são, todavia, corroborados pela análise filosófica que podemos encontrar em Cassirer, cen-
trada na exclusividade humana da nova espiritualidade nascente (Gurvitch acentuará como traço
dessa exclusividade humana o conflito entre os princípios da imanência e da transcendência).
***
(Nota 02) Sobre a noção de extensão concreta.
Gurvitch desenvolve uma
concepção dinâmica
de toda a mora-
lidade efetiva fundada sobre os estudos de Bergson e aplica essa concepção dinâmica na sua socio-
logia dialética dos níveis ou camadas em profundidade da realidade social, de tal sorte que as obras
de civilização são tomadas como setores dessa realidade social (Gurvitch, a quem repugna o cultura-
lismo abstrato dos seguidores de Max Weber e o funcionalismo dos seguidores de Parsons, evita usar
expressões tecnificadas tais como “estrutura dos sistemas simbólicos”).
Como já vimos, para Gurvitch a consciência é integrante da exis-
tência do caráter coletivo e sua sociologia se nos apresenta como a “linguagem” da subjetividade
coletiva (aspiração aos valores), nos mostrando a colocação do conhecimento em perspectiva so-
ciológica como um fato: o fato da coincidência dos quadros de referências lógicas e estimativas
com os quadros sociais.
Além de distinguir as percepções e o conhecimento perceptivo, a
análise gurvitcheana visa sobretudo resguardar a integridade do mundo exterior em sua relativa di-
versidade, como condição da experiência humana, “salvando-o” da dominação pelo elemento das
imagens, isto é liberando-o do preconceito da consciência fechada ou idêntica em todos, genérica
(introspecção).
Quer dizer, o conhecimento perceptivo do mundo exterior en-
contra obstáculo na própria “percepção coletiva de amplitudes e tempos em que está situado este
mundo” – percepção esta que o próprio conhecimento perceptivo pressupõe.
Característica bem notada se tivermos em conta que o caráter da
extensão na morfologia da sociedade encontra-se enroscado a esta classe do conhecimento, consta-
tação esta que, ao invés de suprimir a objetividade deste “mundo dos produtos” (que é a morfolo-
gia social), como exagerou astuciosamente Claude Levy-Strauss em sua notória crítica a Gurvitch,
faz por acentuar que a morfologia está penetrada de significações propriamente humanas que não
podem passar despercebidas, mas devem ser alcançadas e aclaradas pela sociologia.
Quando estava “em último lugar” no quadro da sociedade feudal,
o conhecimento perceptivo do mundo exterior tinha como expressões a “ausência de perspectiva na ar-
te, o plissamento das cidades e dos povoados em si mesmos, em sua arquitetura e sua disposição", estando assim
em acordo com o caráter fechado da mentalidade coletiva naquele tipo de sociedade global.
Na análise “gurvitcheana”, quer se trate de amplitudes ou de tem-
pos, a percepção que se tem é de “natureza” coletiva e suas manifestações fazem aparecer “uma
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grande multiplicidade de caracteres”, da qual decorre “a variedade de imagens do mundo exterior”
nos diversos quadros sociais.
Portanto, as amplitudes e os tempos estão entre os obstáculos que
suscitam a manifestação e a tomada de consciência dos temas coletivos reais como sujeitos – os
Nós, os agrupamentos particulares, as classes sociais, as sociedades globais. É como se a análise
gurvitcheana procedesse a uma redução das imagens do mundo exterior ao seu elemento mais sim-
ples,chegando à observação e descrição dos “meios” ou amplitudes/tempos em que o mundo exte-
rior está imbricado, referência esta muito perquirida pelos estudiosos da “história íntima”.
Atento à especificidade do relativismo sociológico, Gurvitch insis-
te na “diferença essencial
” entre amplitude e tempo, assinalando que “a multiplicidade dos tem-
pos” se impõe independentemente de toda a tomada de consciência do tempo, enquanto a “plura-
lidade das amplitudes” não.
No dizer de Gurvitch: a amplitude donde está imbricado o mundo exteri-
or assim como o mundo social, como a realidade independente de toda a tomada de consciência – o que resta apreen-
dido – não pode ser senão uma amplitude única. Qualquer outra interpretação introduziria uma mística de muitos
mundos visíveis e invisíveis, que só teria validade para uma sociedade arcaica. Tal a tese gurvitcheana do rea-
lismo relativista sociológico, de maneira que a pluralidade de amplitudes só pode ser admitida como
uma resultante da intervenção de diversas percepções, simbolizações, conceitualizações, etc.
Quer dizer, nesta teoria sociológica as diversas tomadas de cons-
ciência dos temas coletivos reais como sujeitos colocam em perspectivas a realidade da amplitude.
Estas perspectivas recíprocas, por sua vez, não são ilusões porquanto constituem as vias de apro-
ximação até a amplitude real única, como a qualidade apreendida dos objetos, sua cognoscibilidade,
seu mediu oculto. Tais vias são as amplitudes concretas
que Gurvitch relaciona à descoberta por
Bergson da extensão concreta distinta de sua quantificação em espaços.
Entretanto, certas proposições preliminares fazem-se necessárias
para referenciar adequadamente a leitura gurvitcheana de Bergson.
assinalamos no pensamento de Gurvitch que a sociologia é o
estudo da sociedade em ato, sendo esta expressão tirada de Saint-Simon. Vimos que abarca o estu-
do dos esforços coletivos e individuais pelos quais a sociedade, os grupos, os Nós, e os homens
que nela estão integrados se criam, se produzem a si próprios enfrentando os obstáculos: ora, é
exatamente essa a razão pela qual a sociologia é a ciência da liberdade humana e de todos os obstáculos que a
liberdade encontra e ultrapassa parcialmente.
Se os atos, a liberdade, a consciência situam o domínio de estudo
da sociologia na proximidade direta ao da filosofia, então sociologia e filosofia científica encon-
tram-se sem cessar no mesmo terreno. Sustentará nosso autor em prova disto que nem tanto o te-
ma ou o problema, mas
o acordo mesmo entre ciência e consciência não apenas terá caráter
fundamental e será constituído em realidades de determinismos e liberdade (aspecto so-
ciológico), mas se fará em modo essencial sobre a base do tempo próprio a cada domínio
do real (aspecto filosófico).
É o que podemos comentar tendo em vista as várias etapas do es-
tudo do problema do tempo desenvolvido por Gurvitch em modo aprofundado e original.
Toma este autor como ponto de partida na obra “
Matiérè et
Memoire
” a descoberta por Bergson da “extensão concreta” aplicanda inicialmente ao contexto
da antropologia filosófica. Deve-se notar, porém, neste terreno e antes de mais nada que, atento à
relatividade do arcaico e do histórico,
Gurvitch repele com firmeza as teses antropológicas
como a do próprio Bergson que aproximam ou buscam alguma relação entre a Magia co-
mo obra de civilização nas sociedades arcaicas
(a Magia dita “branca” exercida pelos fazedores
de chuva, curandeiros, etc.) e as obras da ciência.
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Para o sociólogo é impossível constatar sequer uma contradição
ou qualquer ligação que seja entre Magia e ciência, em razão de que são duas atitudes diferentes que
se afirmam em dois planos que nem sempre se encontram. Daí se entende que – e a frase seguinte
é a tese gurvitcheana – a Magia pode tornar-se a raiz das técnicas, as quais têm o mesmo funda-
mento psico-social que a primeira.
Já quanto à ciência, Gurvitch mostra independência em relação ao
pragmatismo da sua própria abordagem afirmado no trato dos valores de civilização como sendo
dotados de objetividade por constituírem projetos de ação, aspectos da projeção dos atos coletivos
nos estados mentais. Assume, então, um posicionamento contrário à tese pragmatista no que
concerne a afirmação de uma ligação originária entre ciência e técnica.
Com efeito, Gurvitch sustentará que as ciências nem sempre têm
relação ao “homo faber”. Proposição esta comprovada a partir do caso da Grécia clássica, onde
estão as ciências em desenvolvimento e a técnica retardatária. Há também o caso do Egito antigo,
onde as técnicas estão desenvolvidas e as ciências embrionárias. Tal o alcance da análise de atitu-
des.
Mais não é tudo. Dentre as argumentações preliminares à leitura
gurvitcheana de Bergson certos aspectos relacionados à descrição bergsoniana da função fabulatória
devem ser postos em relevo. Ou seja, existe nas sociedades arcaicas grande parte da experiência
sobre a qual o “homo faber” não se sente capaz de agir: não podendo agir sobre a natureza espera
que a natureza aja por ele. O universo povoa-se assim de intenções. Tal a origem do mito do
Maná, ao qual se liga a Magia como obra de civilização.
É pois a influência do instinto sobre a inteligência desencorajada
pela sua própria incapacidade em realizar os desejos afetivos que explica a Magia para Bergson.
Este autor chama “sociedade fechada” a esta forma de vida baseada no instinto (a natureza agindo
pelo homem) e aí distingue as representações coletivas como reações defensivas da natureza contra
esta outra representação pela inteligência de uma margem desanimadora de imprevisto entre a ini-
ciativa tomada e o efeito desejado, sendo a tais “reações defensivas”, isto é, à função consoladora
de garantia contra o receio, que Bergson chama “
função fabulatória
”.
Quer dizer, na Magia não se trata de combater a dissolução do
instinto de sociabilidade ameaçado pela inteligência, como é o caso na “Religião Estática”, mas a
função consoladora é afirmada no sentido de “combater o desencorajamento da própria inteligência perante a
sua própria impotência”. Tal a oposição Magia-Religião que Gurvitch considera fundamental na leitura
de Bergson (Cf. “
A Vocação Atual da Sociologia –vol.II
”, págs. 102 sq, op.cit.). Neste marco,
as representações mágicas são representações fabulatórias de omnipotência humana que oferecem
uma consolação à inteligência desencorajada por se sentir ainda impotente para dar a conhecer ao
mundo e para fundar a ciência.
Desta forma fica excluída em Bergson qualquer identidade de
conteúdo entre “Religião Estática” e Magia, restando entre elas somente uma analogia de atitudes,
a qual, todavia, considerada improvável, Gurvitch repelirá com firmeza, afirmando a distinção en-
tre “angústia” e “receio-medo”, isto é: a diferença entre a consolão pela esperança da graça e da sal-
vação, e a consolação pela confiança posta nas próprias forças do sujeito-agente.
A concepção de Bergson de que na Magia-Maná se trata apenas
de desejos e não de vontade, termos estes afirmados em oposição um ao outro, é repelida desde o
ponto de vista da análise sob o argumento de que, sendo o desejo uma tendência expressa na Ma-
gia, a vontade, por sua vez, mais não é do que a mesma tendência acompanhada da consciência:
desejo e vontade não podem ser postos em oposição porque não passam de graus do mesmo pro-
cesso de realização, existindo entre eles uma gradação de intermediários.
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Gurvitch contestará igualmente a descrição mesma da função
consoladora, descrição esta que em Bergson é fundada na oposição entre instintos sociais, inteli-
gência e intuição mística. Oposição metodológica esta muito contestável, já que “o conceito de instinto
se encontra cada vez mais excluído da psicologia social, onde causou bastantes danos”.
Por contra, em sociologia a vida social, a sociabilidade é verificada
não em termos de instintos, mas, antes, como projeções de atos coletivos -cujas configurações são
as atitudes- de tal sorte que os grupos sociais reais são penetrados por esses atos coletivos, os quais
são apreendidos nos estados conscientes, emotivos, voluntários e intelectuais. Quer dizer, as intu-
ições coletivas de diferentes espécies em que esses atos são apreendidos estão virtualmente presen-
tes em qualquer manifestação da mentalidade coletiva.
Mas o pensamento de Gurvitch vai mais longe nesta análise. À
vida social real corresponde um fenômeno psíquico do todo social em que o consciente e o supra-
consciente não estão separados por nada mais do que pelos graus do subconsciente e reciproca-
mente, isto é: esses graus do subconsciente, por sua vez, não estão separados senão pelos graus de
passagem do supra-consciente ao consciente, não havendo nenhuma “natureza exterior” aprisio-
nando o “psiquismo coletivo”.
Segundo Gurvitch, desse tratamento “aberto” do material empí-
rico das sociedades arcaicas resultam várias conclusões diferentes das de Bergson, seguintes: (a)- a
função consoladora é exercida para compensar pelos fracassos perante as forças sobrenaturais ex-
perimentadas como medo-temor – daí que, para Gurvitch, este receio é sempre ligado ao desejo de
êxito, estando a função consoladora exercida como expectativa de vir a ter êxito por seus próprios
meios.
Quanto aos demais esquemas de Bergson, nada acrescentam à so-
ciologia. Assim, (b) - a oposição entre “sociedade fechada” e “sociedade aberta” ou igualmente a
oposição entre “religião estática” e “religião dinâmica” correspondem somente a camadas ou níveis
diferentes da vida social no interior de cada sociedade e de cada grupo real; de tal sorte que, (c) -
esta última oposição não tem qualquer relação com o problema da distinção entre a Magia e a Reli-
gião, que se apóiam em duas forças sobrenaturais heterogêneas, por isso, (d) - a “função fabulató-
ria” na religião conduz à humildade enquanto que na Magia-Maná conduz à auto afirmação, coletiva e
individual.
Vemos, então, com Bergson, que o elemento humano está posto
em causa na análise do saber arcaico, o qual suscita o interesse histórico exatamente porque, na si-
tuação das sociedades arcaicas, existe, como já foi mencionado, “uma grande parte da experiência
sobre a qual o homo faber não se sente capaz de agir e espera que a natureza aja por ele, povoan-
do, assim, o universo de intenções”. É claro que a teoria de Bergson, nesta apreciação de Gurvitch
que estamos a comentar, não deixa dúvida quanto à relatividade da oposição do arcaico e do histó-
rico, tanto mais que faz pôr em relevo as expectativas sociais como se ligando ao esforço coletivo
antes de se ligarem aos papéis sociais.
Podemos agora retornar ao estudo do problema do tempo em
Gurvitch partindo da orientação de Bergson em relação à vida social tal como definida em “
La
Èvolution Crèatrice
”. Na leitura gurvitcheana esta obra compreende: (1) - uma descrição do “uni-
verso global” como graus de criação
diferentes em intensidade e espessura; (2) - considera a matéria,
a vida psíquica, a vida biológica, a vida social e a vida espiritual como níveis sobrepostos da reali-
dade.
Ou seja, em Bergson esses níveis significam que os dados imedi-
atos da consciência (obstáculos resistentes que suscitam a tomada de consciência e a ela não se
identificam nem a ela se reduzem) não só (3a) - valem como expressão do fato de que as consciên-
cias são interpenetradas e de que há uma experiência coletiva, mas (3b) - formam uma escala que
está situada entre a matéria
(o “Eu banal”, o “Eu senhor-todo-o-mundo”, situado no
espaço
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mensurável
) e o espírito (onda de criação ou aspiração coletiva perpétua, a que se ligam o “Eu
profundo” e o “Nós profundo”).
Enfim, (4) - essa escala de níveis da realidade – daí se chegará à
noção de patamares (paliers) – se movimenta em tensão, “em uma esfera intermediária de compromisso entre
o puramente qualitativo e a quantidade, entre a liberdade plena e a necessidade”, que Gurvitch resume como o
domínio de um tempo quantitativo-qualitativo,” cujo problema Bergson teria levantando im-
plicitamente, sem o desenvolver (Cf. “
A Vocação Atual da Sociologia,vol.II”
, p.234, op.cit.).
Deste ponto em diante Gurvitch discute o posicionamento de
Bergson na referência de uma teoria da liberdade oferecida, em “
Les Données Immédiates de
la Conscience
” como demonstração da futilidade do determinismo e do indeterminismo clássicos
que, orientados para ‘o já feito
’ e não para o ato que se faz, ignoram que a liberdade não é mais do que
um matiz de ação, vivida na própria ação (ibid.p.242).
Nosso autor assinala que nesta teoria bergsoniana o arbitrário
como a própria escolha é o grau mais baixo da vontade. Para fugir à necessidade de escolha entre
as alternativas impostas pela inteligência (conhecedora do progresso) sujeitando a liberdade de ação
e na ação, Bergson sugere que os graus superiores da vontade que libertam da sujeição às alternativas se verificam
no retorno à espontaneidade pura, designada como impulso, que se encontra aquém da consciência, se
arriscando o filósofo científico com esta formulação a identificar a liberdade com o infraconscien-
te.
Para Gurvitch, entretanto, Bergson já admite que a liberdade
comporte graus, os quais porém só podem manifestar-se em “durações qualitativas diversificadas
- esses graus intermediários da duração e da liberdade, imprescindíveis tanto para a existência humana
quanto para as diferentes ciências, já que, sem essas gradações, tanto a existência quanto as ciências
ficam condenadas a não poderem ir além do tempo espacializado e quantificado, próprio ao domí-
nio exteriorizado do mecanicismo.
Nota Gurvitch que é em razão dessa
teoria da liberdade se e-
xercendo contra as imposições da inteligência
que “Bergson descreve os diferentes graus da
duração e da liberdade correspondentes ao vital, ao psicológico, ao social e ao espiritual” (ver
Matière et Mémoire”, bem como “La Èvolution Crèatrice”).
Nessa descrição, a liberdade plena compreendendo a atividade
propriamente criadora liga-se à vida espiritual; em seguida, vem a vida consciente, que é psicológica
e social, a qual conduz à vida espiritual e é tida como o reservatório da liberdade, portanto, uma li-
berdade muito mais intensa do que a simples espontaneidade vital. Tal a série.
É em consonância com essa gradação da liberdade que se verifica
a gradação dos tempos, e Gurvitch sublinhará que falar de “espessura da duração”, como o faz
Bergson, significa que a duração, o tempo qualitativo, apresenta graus, havendo muitos ritmos dife-
rentes, mais lentos ou mais rápidos, que serviriam de mediações para o grau de tensão ou de afrou-
xamento, assim como para o grau de elasticidade desigual da duração.
É neste ponto que, segundo Gurvitch, se verifica a descoberta de
Bergson, mencionada no início desta seqüência, já que essa gradação em direção aos tempos múl-
tiplos é concebida em vista de “atenuar a oposição entre o inextenso e o extenso, e entre a qualidade e a quan-
tidade”, sendo esta atenuação se fazendo pela descoberta da extensão concreta
, a qual é, então,
distinta do espaço homogêneo intuído na consciência, e distinta da tensão-movimento, sendo nesta úl-
tima que, como vimos, está imbricada a escala dos níveis da realidade, sendo pela extensão concreta
que a tensão-movimento revela-se constitutiva e vem a ser afirmada na esfera intermediária de com-
promisso entre o puramente qualitativo e a quantidade, entre a liberdade plena e a necessidade im-
posta.
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Quer dizer, atento à criação coletiva, sobretudo às significações
humanas penetrando a morfologia da sociedade, Gurvitch nos diz que a extensão concreta é desprovi-
da da capacidade de prolongar o seu passado no presente - capacidade de que dispõe tanto o espa-
ço homogêneo da consciência quanto a tensão movimento do ser - de tal sorte que, em sua varie-
dade, essas extensões
- designadas concretas por se manifestarem em durações - correspondem “às
realidades flexíveis que comportam graus”, existentes com relativa independência da tomada de consciên-
cia – note-se que na sociologia dos patamares (paliers) em profundidade de Gurvitch a liberdade é
verificada a posteriori na quebra das estruturas, sendo inclusive admitido a intervenção da liberdade
mais ou menos inconsciente, apesar de sua ligação com a vontade como seu catalisador
.
Seja como for, em relação ao aproveitamento e ao interesse da lei-
tura de Bergson para a sociologia cabe assinalar que na teoria da liberdade conducente à descoberta
das “durações concretas” há uma passagem pela concepção essencialmente dinâmica de qualquer moralidade
efetiva, já que Bergson atribui aos graus superiores da vontade a libertação da sujeição às alternativas
impostas.
Aliás, a concepção dinâmica está presente no posicionamento
inicial da teoria da liberdade, já que a demonstração da futilidade do determinismo e do indetermi-
nismo clássicos por Bergson, afirma-se no cotejo entre uma atitude orientada para o “já feito” e
outra para o “ato que se faz”, a ignorância da liberdade sendo decorrente do desprezo dessa orien-
tação para o ato que se faz.
Desde o ponto de vista da sociologia, Gurvitch nota que o acesso
a essa concepção dinâmica se verifica no seguinte: (1) – a partir da renúncia à crença dogmática no
progresso unilinear e ao otimismo exorbitante, projetados na imagem de uma elevação contínua
para o Bem desde a vida biológica até a espontaneidade vital ou social e ao seu desenvolvimento
histórico; (2) – a partir da crítica às concepções finalistas e aos objetivos preconcebidos, como pro-
jeções de um mecanismo às avessas que dissolve a ação.
A partir desses pontos pode-se enfrentar as dificuldades seguintes:
(a) - é impossível fundamentar a certeza moral na certeza intelectual; (b) - há conflito contínuo en-
tre os modelos imóveis estabelecidos pelo conhecimento prévio ou pela própria ação moral como
paralisada por esses modelos preestabelecidos. Quer dizer, para chegar a uma moral teórica afir-
mando a certeza moral; para libertar a moral da sua sujeição a um conhecimento prévio, só se con-
segue mediante o apelo ao vivido moral experimentado no próprio esforço.
Desta forma, ensina Gurvitch, a moral do progresso conhecido
pela inteligência se revela uma nova forma de sujeição àquilo que é conhecido de antemão (cf. “
A
Vocação
...
”, vol.II
, op.cit, pp.239sq).
Em sociologia as descontinuidades e as rupturas entre as miríades de microdeterminismos são brechas por onde
a liberdade humana
em todos os seus graus pode tentar intervir na vida social. Gurvitch põe em relevo que a
vida social obriga a liberdade a se manifestar previamente como micro-liberdade
(a que surge como as
brechas), o que é apenas um começo, porque, desde que se apresenta o problema da unificação dos
microdeterminismos e dos determinismos unidimensionais (aqueles dos patamares em profundidade da
realidade social), não é à micro-liberdade, mas à liberdade humana
simplesmente (a que é interveniente em
todos os seus graus) que se é forçado a apelar para secundar o indispensável esforço de unificação. Ver Leitura
da Teoria de Comunicação Social desde o ponto de vista da Sociologia do Conhecimento (Ensaio, 338 págs.). Internet,
O.E.I. / E-book / pdf, 2007, link:
http://www.oei.es/salactsi/conodoc.htm
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Por contra, o conhecimento dos critérios morais concretiza-se
como uma reflexão posterior sobre o ato moral diretamente vivido, sobre os valores
entrevistos
no calor da própria ação. E essa ação moral criadora dos seus próprios critérios está em oposição
direta a qualquer crença no progresso automático, notando-se que a especificidade da experiência
moral assim reconhecida se verifica exatamente como reconhecimento, como ação participante nos
variados graus do esforço, ou, em uma só sentença: “é a vontade de olhos abertos nas trevas”.
Segundo Gurvitch, a base dessa experiência moral específica é a
teoria da intuição da vontade
orientada pelas suas próprias luzes, à qual se chega pela concepção
dinâmica de qualquer moralidade efetiva em três níveis: (a) – como ultrapassagem contínua do
adquirido; (b) – como recriação permanente dos Nós e de Outrem; (c) – como moralidade de ação
e de aspiração participando na liberdade criadora pelo próprio esforço incessante dos Nós.
Concepção dinâmica esta resumida na fórmula de Bergson segun-
do a qual “para que a consciência se destacasse do ‘já feito’ e se aplicasse ao que ‘se está a fazer’ seria necessário
que, voltando-se e retorcendo-se sobre si mesma, a faculdade de ver constituísse uma só unidade com o ato de querer”.
Na ação livre, ao lançar-se para frente, tem-se a consciência dos motivos e dos móveis, tornando-se
ambos idênticos.
Gurvitch observa que esta teoria da intuição da vontade
é não só
a base da especificidade da experiência moral, mas que essa especificidade é a liberdade consciente.
Quer dizer, assim como há diferentes espessuras da duração e variadas intensidades da liberdade,
há também diferentes graus da vontade consciente, a qual se torna cada vez mais livre à medida
que: (a) – ultrapassa a escolha entre as alternativas, mediante o exercício da decisão; (b) – ultrapassa
a própria decisão voluntária, mediante o exercício da vontade propriamente criadora.
Desta forma, a moral da criação que se tira de Bergson encontra
fundamento para prosseguir a sua realização nas diferentes camadas (paliers) em profundidade da
realidade social. É a liberdade situada no âmago da vida humana consciente. Enfim, Gurvitch as-
sinala que o desvio místico de Bergson deve-se ao não ter ele encontrado na sua análise da liberdade
consciente o problema dos valores de civilização, aos quais Gurvitch chama “esses escalões que dirigem
a elevação libertadora”.
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ARTIGO ANEXO
Arte e Função Simbólica:
Notas para a revalorização dos estudos da Renascença.
FIM
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Lumier, Jacob (J.): Internet, e-book: doc/zip: “
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através de [email protected]; ou pelo website “Pro-
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Marcuse, Herbert: ‘Cultura y Sociedad’, tradução E.Bulygin e E. Garzón Valdés,
Buenos Aires, editorial Sur, 3ªedição, 1968, 126 pp. (1ªedição em Alemão, Frank-
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Pequeno guia rápido de termos básicos e autores.
alienação,
agrupamento,
ambigüidade,
análise,
Aristóteles,
arte,
atitude,
behaviorismo,
Bergson,
Burckhardt,
ciência,
civilização,
classes,
coletivo,
complementaridade,
conflito,
conhecimento,
conjunto,
consciência,
correlações,
cultura,
desejável,
desejo,
dialética,
Dilthey,
dinâmica,
direito,
Durkheim,
essencial,
estrutura,
Eu,
experiência,
experimentação,
fenômeno,
filosofia,
Galileu,
Gestalt,
global,
grupo,
história,
imanência,
individual,
indivíduo,
intermediário,
intermediação,
interpessoal,
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intuição,
juízo,
Kant,
Kardiner,
Levy-Bruhl,
Levy-Strauss,
liberdade,
linguagem,
Linton,
Marx,
mentalidade,
método.
microssociologia,
mito,
moral,
Moreno,
mudança,
Nós,
objetivação,
obras,
papéis,
perspectiva,
probabilidade,
probabilitário,
procedimento,
psicologia,
psíquico,
psiquismo,
quadros,
racionalidade,
realidade,
reciprocidade,
reificação,
religião,
Rousseau,
Saint-Simon,
significações,
símbolo,
simbolismo,
sistema,
sociabilidade,
social,
sociedade,
sociologia,
subjetividade,
teoria,
valores,
variabilidade,
variações,
Weber.
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ÍNDICE DE TÍTULOS
AGRADECIMENTO 4
APRESENTAÇÃO Erro! Indicador não definido.
Em teoria sociológica a explicação, a formulação de enunciados determinísticos, não deve nunca na ‘primeira instância’
ir mais além do estabelecimento: (a) de correlações funcionais, (b) de regularidades tendenciais e (c) de integração
direta nos quadros sociais.
12
A explicação sociológica por causalidade singular só se aplica em segunda instância e será limitada aos casos
particulares.
14
Não cabe opor a “mudança inercial” característica do sistema contra a teoria sociológica diferencial como se a
dinâmica complexa dos conjuntos práticos atendesse ao choque de posições e não dependesse das atitudes coletivas,
do espontâneo coletivo propriamente dito, que já é tocado pela liberdade humana em algum grau.
16
A equação existencial não pode mais ser vista como a origem das ilusões e dos erros que poderiam ser evitados. 19
Do ponto de vista sociológico, é improdutivo discutir problemas de estrutura social sem levar em conta a nítida
consciência coletiva da hierarquia “específica e referencial” de uma unidade coletiva real, como o é a hierarquia das
relações com os outros grupos e com a sociedade global, ou, designada de modo mais amplo, hierarquia das
manifestações da sociabilidade, hierarquia esta que se verifica unicamente nos agrupamentos estruturados.
21
Utilizando os resultados das análises diferenciais, as teorias sistemáticas desenvolvem a coerência dos tipos de
sociedades históricas acentuando as regularidades tendenciais como critério de explicação sociológica.
22
A pesquisa da causalidade singular sobressai como explicação na análise em que as Cidades-Estados antigas
tornando-se Impérios são comparadas por um lado às sociedades teocrático-carismáticas e às sociedades
patriarcais, e por outro lado às sociedades feudais.
25
Nas Cidades-Estados antigas a coerência do tipo de sociedades históricas liga-se ao fato de que a superioridade da
cidade como grupo territorial específico combinando o princípio de localidade e de vizinhança traz consigo uma
tendência à laicidade e à racionalidade favorecendo, por sua vez, o triunfo do natural em relação ao sobrenatural e
se abrindo na democratização da estrutura social e no individualismo greco-romano refreados, porém pelo próprio
reforço do princípio territorial que acompanha a democratização.
27
A respeito das sociedades feudais, a coerência do tipo de sociedades históricas refere-se sobretudo à evolução das cidades
livres caracterizando uma verdadeira revolução municipal, que deu nascimento aos governos provisórios.
28
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A pluridimensionalidade da realidade social e o problema da possibilidade da estrutura: Nota sobre o estudo dos níveis
múltiplos e das hierarquias múltiplas em teoria sociológica.
32
O conceito de estrutura social na sociologia diferencial põe em relevo o fato de o conjunto social por mais complexo que
seja preceder virtualmente ou atualmente a todos os equilíbrios, hierarquias, escalas.
35
No interior de uma estrutura social as hierarquias múltiplas implicam uma formação de equilíbrio dinâmico conforme
a escala dos tempos sociais da própria estrutura, e acentuam a permanência das mudanças fundamentais
ocorrentes no interior da estrutura que, pela variabilidade, alteram a formação de unidade do tipo de sociedade
global, alteram a combinação das hierarquias que definem o tipo.
36
Ao que parece há uma dificuldade prévia anteposta a todo aquele que se propõe refletir e elaborar sobre a sociologia da
cultura e que é um obstáculo relevante do aparente desacordo no tratamento e na definição do campo diferencial do
material que lhe corresponde.
59
A cultura é um segmento de significação que permanece irredutível à natureza e qualquer proposição de retorno à
natureza é absolutamente contrária a uma civilização concreta.
62
Com referência à análise da racionalização e em especial no tocante à Renascença, a utilização aplicada do termo
“cultura” em Max Weber se diferencia em certo aspecto da religião já que “afirma a noção de bens de civilização
sem alcance religioso imediato”.
64
Se a incredulidade moderna é tirada do culto da Renascença pelos heróis, lembrando-nos inclusive o florentino
Maquiavel, Max Weber nega que o problema da ética seja um apanágio dessa mesma Renascença.
66
Somente uma inovadora fundamentação epistemológica e lógica diferente que tenha princípio na relação especial do
conhecimento e da realidade histórico-social pode suprir as lacunas que existem todavia entre as ciências
particulares das unidades psicofísicas e as ciências da economia política, do direito, da religião e outras.
69
A apreensão das totalidades dispensa a interpretação do sentido interno das condutas para chegar à construção dos
tipos sociológicos.
69
Em sua orientação pró-realista, Dilthey se distancia tanto da “corrente histórica” quanto da “corrente abstrata” – as
duas correntes de conhecimentos universitários mais influentes na vida acadêmica das universidades alemães, no
período do liberalismo, entre 1870 e 1914.
70
A realidade da vida histórico-social está escondida sob a bruma de certas entidades abstratas tais como a arte, a
ciência, o Estado, a sociedade, a religião.
71
O desenvolvimento da ciência da estética tão ao gosto do sentimentalismo da corrente histórica, não é possível sem
referência às ciências da moral ou às da religião, afirmando a conexão viva que liga a origem da arte e o fato
ideal.
72
A epistemologia é fundada no princípio de razão suficiente e os enlaces das proposições e das dependências verificadas
não podem ser tomados como unicamente lógicos.
73
A efetividade do incremento histórico é assimilada em graus nas várias formas de certeza científica. 73
Na análise do processus do incremento histórico, o fato do direito não pode ser identificado nem a uma função da
vontade total nem tampouco à função de um sistema de cultura e constitui o nível mais simples onde os elementos
da cultura e da organização exterior ainda se encontram juntos.
76
O culturalismo abstrato ou espiritualista não se presta como orientação intelectual e metodológica para basear os
critérios objetivos que permitem construir tipos sociológicos.
83
A sociologia exige o abandono das ilusões do progresso em direção a um ideal, bem como o abandono das ilusões de
uma evolução social unilinear e contínua.
85
A falta de distinção entre os juízos de realidade e os juízos de valor torna impossível o acesso da análise sociológica a
um dado fundamental da vida social que é a variabilidade.
86
A crença no caráter extra-social do fator predominante como capaz de explicar a generalidade do social funciona para
equilibrar a tensão no pensamento de Max Weber sem que, todavia, isso o proteja contra os reveses em sua
sociologia, como a dispersão.
87
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O problema sociológico da consciência coletiva é tornar possível compreender na raiz a possibilidade de comunicação
universal entre os seres humanos. (Gurvitch)
95
A utilização da noção de Gestalt aplicada na descrição das atitudes coletivas e em particular das atitudes morais
torna possível definir os fatos morais sem tomar posição filosófica precisa nem identificar-se a uma doutrina
particular.
96
Será em decorrência de sua tese pró religião que, em face dos critérios próprios ao fato jurídico como a coação e a
sanção, Durkheim fracassará ao tentar delimitar o domínio da moralidade como apego aos grupos sociais,tendo
atribuído um alcance demasiado grande ao hábito, à regularidade e à disciplina.
98
A afirmação dos valores como sendo objetivos está em que as coisas e as pessoas às quais tais valores são atribuídos
atendam à condição de serem coisas e pessoas que estão postas em contacto com os ideais por efeito da afetividade
coletiva.
99
Em Durkheim a consciência coletiva exprime o fato social indiscutível da interpenetração virtual ou atual das várias
consciências coletivas ou individuais,sua fusão parcial verificada em uma psicologia coletiva.
100
Durkheim manteve-se estranho ao reconhecimento da existência das experiências morais coletivas e dos métodos de
análise que reconduzem mediante procedimentos dialéticos a estas experiências variadas e só raramente imediatas.
102
Ao mesmo tempo em que defendeu a contribuição de Durkheim para a sociologia da vida moral, Gurvitch é impiedoso
ao desmontar o quase delírio espiritualista de Durkheim prejudicando a psicologia coletiva – o que alguns
sociólogos não gostaram ao ouvir.
103
A realidade dos níveis culturais na vida coletiva põe em relevo que a consciência coletiva os apreende, sendo portanto
uma consciência situada no ser, intuitiva e capaz de se multiplicar em um mesmo quadro social.
104
Admitindo a dimensão não imediata, mas mediata da experiência moral sobressai a importância dos símbolos
acentuando a flutuação da experiência moral em função dos quadros sociais.
111
Na medida em que compreendem as disposições que levam os agrupamentos sociais, os Nós
e as sociedades inteiras a reagirem em certa maneira comum, a conduzirem-se em certo
modo e a assumirem papéis sociais particulares, mesmo que não cheguem ao seu fim, as
atitudes coletivas criam um ambiente social muito peculiar.
114
As atitudes coletivas, ao mesmo tempo flutuantes e persistentes, inesperadas e previsíveis, não se as pode apreender e
permitem ao mesmo tempo a experimentação, isto é, a verificação em coeficientes de discordância entre as opiniões
exprimidas nas chamadas sondagens de opinião pública e as atitudes reais dos grupos.
115
Não se pode reduzir a vida moral nem às práticas e hábitos nem mesmo mais largamente às condutas regulares
previstas ou esperadas.
117
O estudo dos fatos morais deve ser alargado para além dos deveres e normas no sentido de incluir as imagens-
simbólico-ideais.
118
É em razão do fato de que as atitudes morais implicando o nível dos símbolos, mas a estes não se reduzindo
constituem um setor da realidade social que no dizer de Gurvitch a explicação sociológica consiste no
estabelecimento de correlações funcionais.
119
A moralidade real, não reduzida ao símbolo que a representa, é observada na hierarquia variável dos seus gêneros e
formas.
120
Em sua definição da sociologia da vida moral Gurvitch põe em relevo duas linhas de estudo complementares
acentuando as correlações funcionais e a pesquisa (a) – das variações das relações da moralidade com as outras
regulamentações sociais,(b) – da justificação ideológica, (c) - da gênese da vida moral.
121
Em sociologia trata-se da vida moral efetiva, isto é, de uma regulamentação ou controle
social sempre particular.
122
A função da vida moral é muito mais importante em certos tipos de sociedades ou de grupos do que em outros. 123
O método para diferenciar o fato moral só é possível no dizer de Gurvitch como análise reflexiva dos atos realizados,
reconduzindo às diferentes espécies da experiência coletiva e à sua interpenetração dialética, análise esta derivada
do hiperempirismo dialético.
125
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É a característica da vida moral real em exigir do sujeito um esforço controlador sobre parte de si que torna os vários
aspectos da realidade moral indissoluvelmente ligados.
127
O elemento da norma não pode separar-se do valor desejado, ao passo que o valor desejado se pode afirmar sem o
apoio de qualquer norma.
128
Durkheim em sua reflexão junto com a filosofia de Kant faz por um lado com que o desejado em moral permaneça
como imperativo hipotético, e por outro lado faz com que o dever seja sempre penetrado pelo desejável.
129
A exigência para alcançar um critério do fato moral se impõe mesmo diante de diferenciação histórica incontestável
entre os fatos morais e as crenças no sobrenatural.
130
As observações com alcance crítico que Gurvitch nos oferece em sua análise das bases da sociologia da vida moral na
obra e pensamento de Durkheim são pautadas pela pesquisa da variabilidade.
131
A análise filosófica vem a ser orientada por um processus de simplificação da interpretação alegórica em vista de
descobrir um só objeto ou um só motivo simples que contenha e compreenda todos os demais.
145
O homem não pode mais enfrentar-se com a realidade em modo imediato, mas, por efeito desse elemento intermédio que
é sua descoberta, a realidade física lhe aparece envolta em formas lingüísticas, em imagens artísticas, em símbolos
míticos ou religiosos, de tal sorte que não pode ver nem conhecer coisa alguma senão através da interposição desse
meio artificial.
147
Um símbolo humano genuíno se caracteriza não por sua uniformidade, mas por sua variabilidade: não é rígido ou
inflexível, mas móvel.
149
A moderna teoria da Gestalt já mostrou como o processo perceptivo mais simples implica elementos estruturais
fundamentais que antecipa a capacidade do homem para isolar relações ou considerá-las em sentido abstrato.
150
O pensamento simbólico consiste na capacidade de dotar o homem com uma nova faculdade: a de reajustar
constantemente seu universo humano.
151
A arte desprende um poder construtivo na estruturação de nosso universo humano posto que toda a obra de arte possui
uma estrutura intuitiva, um caráter de racionalidade, ou seja: antes de comporem analogias com as esferas do
inconsciente, cada elemento singular deve ser sentido como parte de um todo compreensivo.
152
A função simbólica é inseparável do homem tomado coletiva ou individualmente, de tal sorte que os Eu, Nós, grupos,
classes sociais, sociedades globais são construtores inconscientes ou conscientes dos símbolos variados.
155
Não obstante exercer-se como impulso para a participação direta no significado, a função simbólica guarda um aspecto
de inadequação que a sociologia designa como “signo no símbolo verificando que os símbolos são presenças
intencionalmente introduzidas e invocadas para indicar carências.
158
A possibilidade de apreender as configurações do objeto figurativo sendo fundada no fato de que a época atual sublima
todas as formas do pensamento operativo põe em relevo a compreensão do símbolo como presença operativa, como
mediação.
160
As configurações que se apreendem na experiência estética não são idênticas a nenhum dos elementos que a compõe e
nunca coincidem com o que se vê na experiência habitual. Esse meio, esse sistema de signos que se observa em
todas as simbolizações figurativas e artísticas e que se interpõe entre a consciência de um criador e a de um
espectador possui necessariamente essa característica de não ser sobreponível indiferentemente a não importa qual
estado de consciência.Existe uma distância da arte.
162
Na análise sociológica da arte o objeto figurativo (guarda em si a função simbólica) é tratado como fato de civilização
no sentido de que sua possibilidade assenta no caráter sublimado de todas as formas do pensamento operativo.
164
Na reflexão sobre a relação dialética do real e do imaginário é patente o caráter inadequado da expressão artística.
165
A arte jamais é conforme a uma representação mental precisa. Se assim não fosse, seria tornada imagem no sentido
psicológico e não em sentido figurativo. Se a leitura de uma obra de arte – quadro, estátua, monumento ou filme –
leva tempo e exige esforço, com a interpretação necessariamente fragmentária que o acaso de um contexto lhe deu, é
porque há um perpétuo vai-vem entre a tela, o objeto figurativo e o pensamento.
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Por via de uma resignação sublimada, o tema da alma adquire funcionalidade sociológica no plano dos valores
culturais que, por evocar uma atitude, Marcuse chama cultura afirmativa, para estudá-la em seu apogeu como
cultura da época burguesa nos séculos XVIII e XIX.
169
Há uma distância que separa a filosofia da razão de qualquer vinculação social ao tema da alma, de tal sorte que o
objeto da psicologia resta uma questão crítica, não só no âmbito do conceito afirmativo da cultura, mas no âmbito
da própria filosofia.
172
Mensagem Sobre o 2031
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CULTURA E CONSCIÊNCIA COLETIVA:
Leituras Saint-Simonianas de Teoria Sociológica
por
Jacob (J.) Lumier
Mensagem Sobre o
Autor
Ensaísta incorrigível ao modo do ideal experimental com que se diferencia o homem
de idéia, J. Lumier é um autor com experiência internacional, mas sem
parti pris,
cuja satisfação é a descoberta dos conteúdos intelectuais pela leitura e na leitura.
Há quem veja nisso uma atitude obsessiva em intenção do outro e dos pósteros.
Melhor para seus leitores que podem sempre se reconhecer contemplados em seus
textos. Não será portanto à toa haver intitulado sua Web "
Leituras do Século
XX"
ludibriando os que tiveram imaginado nesta fórmula a coloração gris de um
Outono nostálgico. Longe disso. Longe a cogitação de um eterno Século XX que
se impostaria no título à pegada do termo "
Leituras
". Pelo contrário. São as leitu-
ras literárias que imperam; é o trabalho da obra intelectual emergindo em atualiza-
ções recorrentes no ato de ler e escrever que prevalece. E ninguém pode negar o
ápice literário e científico da produção intelectual do século XX.
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Na
Home Page
http://www.leiturasjlumierautor.pro.br a imagem do ideal das "Lei-
turas" é oferecida na seguinte formulação: "a PRODUÇÃO LEITURAS DO SÉ-
CULO XX - PLS é vocacionada para avançar na reflexão de uma situação de fatos com gran-
de impacto no século XX, já assinalada no âmbito da sociologia por Georges GURVITCH, a
saber: a situação de que, sob a influência do impressionante desenvolvimento das técnicas de co-
municação, "passamos, num abrir e fechar de olhos, pelos diferentes tempos e escalas de tempos
inerentes às civilizações, nações, tipos de sociedades e grupos variados". "A unidade do tempo re-
velou-se ser uma miragem", como nos mostraram, simultaneamente, a filosofia (BERGSON) e
a ciência (EINSTEIN). Ficou claro que "a unificação dos tempos divergentes em conjuntos de
tempos hierarquizados", sem o que é impossível nossa vida pessoal, a vida das sociedades e nossa
orientação no mundo, não é uma unidade que nos é dada, mas uma "unificação a adquirir pelo
esforço humano, onde entra a luta para dominar o tempo", dirigi-lo em certa forma".
Sem dúvida, se nos mantivermos em atenção, cultivando a
mirada aberta à influência da expressão e dos conteúdos intelectuais iremos com
certeza desfrutar da reflexão acima assinalada e descobriremos a coerência da
complexa matéria tratada em disciplina científica por Jacob (J.) Lumier em seus E-
books monográficos e artigos sociológicos. Com efeito, para o nosso autor a
monografia é trabalho científico na medida em que compreende descoberta e veri-
ficação/justificação, mas é igualmente forma racional de comunicação compor-
tando, por isso, por esse
enlace de experimentação e comunicação
, uma dife-
rença específica apreendida como
arte de compor
a que se ligam as profundas
implicações para a difusão do conhecimento decorrentes da condição de publici-
dade do trabalho científico. No dizer de J. Lumier "(...) grande parte dos mal-entendidos
a respeito de certas obras ou teorias científicas tem muito a ver com o fato de sua exposição a to-
dos os tipos de públicos, muitas vezes composto não só de leigos, mas de gente alheia à formação
nas ciências humanas. Se a condição de publicidade é inerente ou não ao modo de produção cientí-
fico ou se deve ou não ser restringida aos estudiosos é uma questão que extrapola o domínio do
pensamento científico para lançar-se no âmbito da comunicação social, já que a obra impressa ou,
depois do advento da Internet, a obra ou livro eletrônico, “e-book”, é um produto cultural do qual
a atividade científica não saberia distanciar-se". Portanto, nos escritos de Jacob (J.) Lu-
mier não se trata somente das variações compreendendo o tema das simboliza-
ções e a autonomia relativa do conhecimento, mas se fosse perguntado o leitor a-
tento diria que juntamente com a noção de
mediatização
, a palavra chave apro-
ximando seus ensaios é "
Gestalt
", uma das noções fundamentais em matéria de
ciências humanas. Neste sentido, os escritos sociológicos de Jacob (J.) Lumier são
de interesse básico e prestantes à formação.
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***
Perfil do Autor
Professor do ensino superior, o autor é Titulaire d'une licence de
l'Université de Paris VIII - Vincennes, section Philosophie.
Durante
o pro-
longamento dos anos sessenta freqüentou a antiga EPHE-VI
éme
Section (Sor-
bonne)
.
É sociólogo profissional e exerceu a docência, lecionando Sociologia e
Metodologia Científica junto à universidade privada e junto à universidade pública.
Exerceu também as atividades de pesquisador com o amparo de fundação científi-
ca.
É o autor dos e-books monográficos e dos artigos sociológicos apre-
sentados como produtos culturais de literatura digital no referido websitio <
http://www.leiturasjlumierautor.pro.br > de cujo domínio é o titular. Sendo subs-
critor e simpatizante da revista eletrônica
Sociétés de l’information : compren-
dre la dynamique des réseaux
, publicada em parceria com a Internet Society -
ISOC, o autor realiza desde os anos noventa uma atividade intelectual e literária
que promove na Internet a auto-aprendizagem, favorece a educação a distância
(EAD) e é voltada para a formação nas ciências humanas, passando pela criação e
coordenação de um grupo para a revalorização da monografia.
As obras de Jacob (J.) Lumier são digi-
tadas em arquivos sob ambiência Windows com aproveitamento do Office-Word; são
ensaios originais que observam os padrões acadêmicos e aplicam o modelo das mo-
nografias com as seguintes disposições: a) abordam problemas de sociologia e filoso-
fia; b) apóiam-se em fontes teóricas e metodológicas de alguns pensadores notáveis
do Século XX (Ernst Bloch, Theodor W. Adorno, Georges Gurvitch, Alexandre
Kojévè); c) apresentam notas de rodapé ou notas de fim e bibliografia comentada; d)
utilizam as normas técnicas recomendadas.
Jacob (J.) Lumier partilha a compreensão de que um ensaio se
diferencia de um tratado nos seguintes termos: - "Escribe ensayísticamente el que
compone experimentando, el que vuelve y revuelve, interroga, palpa, examina, atra-
viesa su objeto con la reflexión, el que parte hacia él desde diversas vertientes y reúne
en su mirada espiritual todo lo que ve y da palabra todo lo que el objeto permite ver
bajo las condiciones aceptadas y puestas al escribir." (...) "El ensayo es la forma de la
categoría crítica de nuestro espíritu. Pues el que critica tiene necesariamente que expe-
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rimentar, tiene que establecer condiciones bajo las cuales se hace de nuevo visible un
objeto en forma diversa que en un autor dado; y, ante todo, hay que poner a prueba,
ensayar la ilusoriedad y caducidad del objeto; éste es precisamente el sentido de la
ligera variación a que el critico somete el objeto criticado"(
c
). Em duas palavras, o
autor de ensaios dedica-se a cultivar, sobretudo uma atitude experimental.
***
E-books de Jacob (J.) Lumier publicados entre 2005 e 2007:
Publicações On Line:
– Organización de Estados Iberoamericanos para la Educación, la Ciencia y la Cultura – O.E.I.
– Portal do Ministério de Educação MEC.br
(1) - Tópicos para uma Reflexão sobre a Teoria de Comunicação Social (relações entre
tecnologias da informação e sociedade) (Artigo, 16 págs.)
Internet, O.E.I. / E-book, PDF,
2006,
http://www.oei.es/salactsi/conodoc.htm
http://www.oei.es/salactsi/topicos.pdf
(2) - Comunicação social e sociologia do conhecimento: artigos (Ensaio 79 págs.) Inter-
net
, Portal MEC.br / E-book / pdf, 2007, Link:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=34320
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ea000105.pdf
c
(Cf. Max Bense: "Uber den Essay und seine Prosa", apud Theodor W. Adorno: "Notas de Literatura", trad. Manuel
Sacristán, Barcelona, Ed. Ariel, 1962, pp. 28 e 30).
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(3) – Leitura da Teoria de Comunicação Social desde o ponto de vista da Sociologia
do Conhecimento (Ensaio, 338 págs.). Internet
, O.E.I. / E-book / pdf, 2007, link:
http://www.oei.es/salactsi/conodoc.htm
http://www.oei.es/salactsi/lumniertexto.pdf
(4) – Laicidade e dialética: dois artigos Saint-Simonianos para a sociologia do conhe-
cimento (Ensaio 127 págs).
Internet, Portal MEC.br / E-book / pdf, 2007,
Link
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obr
a=53879
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/ea000151.pdf
Publicações em páginas comerciais:
(1) - Communication Sociale et Démocratie ou Deux Articles de Sociologie de la Con-
naissance Redigés en Portugais 1- La Culture du Partage; 2- La Fiction dans Les Élections
ou Démocratie et Vote Obligatoire au Brésil. (Ensaio 154 págs)
Internet, E-book, PDF,
2007,
http://books.lulu.com/content/773350
(2) - Dans la Voie du Homo Faber: Articles Saint-Simoniens de Sociologie de la Connais-
sance Rédigés en Portugais (Ensaio 185 pages)
Internet, E-book, PDF, 2007,
http://www.lulu.com/content/846559 ;
(3) - Philosophie à la Lumière de la Communication Sociale: Réflexion Sur la Lecture de
Hegel Rédigée en Portugais. (Ensaio, 126 pages)
Internet, E-book, PDF, 2007,
http://www.lulu.com/content/856648
(4) - Lutopie Négative dans la Sociologie de la Littérature: Articles au Tour de Marcel
Proust Redigés en Portugais (Ensaio 133 pages),
Internet, E-book, PDF, 2007,
http://www.lulu.com/content/846559
(5) - Sociologie de La Littérature - I : Lecture de Proust - Une Approche Inspirée par
Samuel Beckett (Ensaio, 134 págs)
http://www.lulu.com/content/1028643
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http://sociologia-jl.blogspot.com/
http://stores.lulu.com/jcarlusmagn
***
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