Download PDF
ads:
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
1
ARLETE FONSECA DE ANDRADE
CANA E CRACK: SINTOMA OU PROBLEMA?
UM ESTUDO SOBRE OS TRABALHADORES NO CORTE DE CANA E
O CONSUMO DO CRACK
Mestrado em Psicologia Social
PUC/SÃO PAULO
2003
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
2
ARLETE FONSECA DE ANDRADE
CANA E CRACK: SINTOMA OU PROBLEMA?
UM ESTUDO SOBRE OS TRABALHADORES NO CORTE DE CANA E
O CONSUMO DO CRACK
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial
para obtenção do tulo de
Mestre em Psicologia Social, sob
a orientação do Prof. Dr. Peter
Kevin Spink.
Mestrado em Psicologia Social
PUC/São Paulo
2003
ads:
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
3
Prof. Dr. Peter Kevin Spink
Prof. Dr. Odair Sass
Prof.a. Dra. Leny Sato
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
4
Dedico este trabalho aos cortadores de cana,
acreditando em um futuro melhor.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
5
Á Alice Correia de Andrade, minha avó e meus
pais, Areno e Alzira.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
6
“Sem trabalho, toda vida apodrece. Mas, sob um trabalho
sem alma, a vida sufoca e morre.”
Albert Camus
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
7
RESUMO
Neste estudo, pretende-se analisar a condição dos trabalhadores rurais, notadamente
aqueles que se dedicam ao corte da cana-de-açúcar na região de Jaú/SP, intercalando a
discussão entre o processo da formação histórica e cultural dessas populações e os
aspectos relacionados com o uso e abuso de drogas, especificamente o crack.
A metodologia de análise fundamenta-se na fenomenologia social, Alfred Schütz,
dando forma teórica ao que o autor denomina o mundo da vida cotidiana, onde as
pessoas não teorizam a respeito de suas práticas. Um mundo real e intersubjetivo, em
que as pessoas interagem umas com as outras naturalmente; ou seja, a partir do senso
comum, os homens vão interagir com seus valores, cultura, crenças, etc.
Das entrevistas, tanto com os profissionais que realizaram atendimento aos cortadores
de cana que estavam consumindo crack como com os próprios trabalhadores,
surgiram vários questionamentos como: a droga relacionada ao trabalho; questões
sociais; ruptura com os nculos familiares e religiosos; a condição precária de
sobrevivência desses trabalhadores inseridos num sistema baseado na exploração da
o-de-obra e expropriação de suas terras onde todos seus valores acabam sendo
desenraizados.
Assim, a intenção será analisar pontos em comum que possam oferecer respostas às
questões sobre os porquês do consumo de crack por parte dessas populações.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
8
ABSTRACT
This study analyses the rural workers’ condition bringing into focus the sugar cane
cutters in the region of Jaú, State of São Paulo. The discussion goes through the
process of historic and cultural formation of such population and the aspects related to
the use and abuse of crack.
The methodology for analysis is based on the social phenomenology, with which
Alfred Schütz places under a theoretical view the concept of world of the everyday
life meaning that people do not theorizes their daily practices. A real and inter-
subjective world on which people interact on each other naturally, that is to say that
people interact based on their own values, culture, beliefs, and so on, following their
common sense.
The interviews made with the professionals who attended the sugar cane cutters who
were crack consumers and with the workers brought up many questions such as the
relationship between drugs and work; social questions; rupture of religious and
familiar ties; precarious survival condition of these workers inserted in a system based
on the labour exploitation and expropriation of their lands having as consequence the
rootlessness of their values as a whole. In this way, the purpose of this study will be
the analysing of the common reasons which lead that specific group to the
consumption of crack.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
9
AGRADECIMENTOS
A construção e finalização desta dissertação de mestrado contou com a participação e
apoio de rias pessoas queridas. Sem elas, não haveria nem emoção e nem brilho no
decorrer desta trajetória.
Em primeiro lugar quero agradecer a todos os cortadores de cana que participaram
desta pesquisa. A recepção afetuosa que tive por todos no canavial não poderia ser
mais gratificante. Em especial quero agradecer a Cristiane e ao cero, cortadores de
cana que lutam por um futuro melhor. A gentileza e grande contribuição que
ofereceram foi estimulante para que eu continuasse a me interessar pelo tema.
A minha mãe, Alzira da Fonseca Andrade sempre bondosa e generosa, ensinando-me
a valorizar todos os momentos de minha vida. Acalmava-me e confortava-me nos
meus momentos mais difíceis, fazendo com que eu não desistisse dos meus objetivos.
Ao meu pai, Areno César de Andrade, por me ensinar na vida o significado da
perseverança e do trabalho na conquista dos meus sonhos e desejos com dignidade.
O amor e apoio que recebi deles foi incondicional, compreendendo assim, meus
momentos de ausência. Sem isso seria quase impossível a finalização desta
dissertação.
Ao Ricardo dos Santos Malafronte, grande companheiro que apoiou esta pesquisa em
todos os sentidos durante esses anos de trabalho. Nos momentos em que
compartilhava minhas angústias e incertezas contagiava-me de alegria com seu lindo
olhar e sorriso renovando minhas forças para que eu continuasse em frente.
A minha grande e querida amiga Isabela Pennella que acompanhou-me nesta trajetória
desde o início sem me abandonar um minuto sequer. Sempre disposta a me ensinar e
discutir questões fundamentais no enriquecendo desta pesquisa, confortando-me em
todos os momentos. O maior presente que pude receber de uma pessoa, eu recebi.
Recebi a amizade de uma pessoa maravilhosa sem pedir nada em troca. A amiga
Isabela agradeço pela grande contribuição e carinho que tem por mim e por esta
dissertação.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
10
Ao meu grande e querido amigo Mário Antônio de Moraes Biral, que assumiu comigo
esta “filha” (a dissertação) em todos os sentidos. Biral, como o chamamos, sempre
esteve presente, orientando-me nas várias leituras que fez nesta dissertação com
críticas e sugestões, sem deixar o carinho de lado. Prestativo, intermediou-me nos
contatos com o Prof. Dr. Igor Vassilieff do CEATOX de Botucatu e com o Presidente
da FETAESP, Sr. Mauro a qual as entrevistas foram fundamentais para a presente
pesquisa.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Peter Kevin Spink, que aceitou esse desafio comigo.
Seus ensinamentos preciosos transmitiram conhecimento e estímulo a cada dia no
desenvolvimento desta dissertação.
A Profª. Dr.ª Maria Aparecida de Moraes Silva, que durante suas aulas na PUC/SP
ensinou-nos a valorizar o homem do campo e sua cultura a cada dia. Agradeço por
seus ensinamentos além de sua participação na minha qualificação.
A Profª. Dr.ª Carmem Junqueira, grande professora e amiga que estimulou o princípio
da minha escrita neste trabalho. Sempre carinhosa e atenciosa.
Ao Prof. Dr. Odair Sass, pelas valiosas sugestões que fez em minha qualificação.
Ao Prof. Dr. Antonio da Costa Ciampa agradeço pelas primeiras discussões e
contribuições referentes ao presente tema.
A Prof.a. Dr.ª Leny Sato por aceitar prontamente o convite em participar da minha
banca examinadora.
A Emilene do Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais por sempre me
orientar e auxiliar nos trâmites administrativos da PUC/SP. Excelente profissional,
além de prestativa em todos os momentos.
Agradeço a grande contribuição dos profissionais que entrevistei durante a minha
pesquisa, são eles: o Prof. Dr. Igor Vassilieff, os profissionais do CEATOX de
Botucatu, a Dra. Eliete, o Pastor Valter, o Sr. Francisco, Coordenador do Sindicato
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
11
Rural Patronal, o Sr. Mauro, Presidente da FETAESP e o Sr. Polaco, Presidente do
Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Mineiros do Tietê. Estas pessoas receberam-
me com carinho cedendo horas de seus dias para as minhas entrevistas e indagações
em relação aos aspectos do trabalho no corte de cana e esclarecimentos sobre o crack.
Ao meu querido Thor que não saiu nenhum minuto do meu lado e quando encontrava-
me exausta e desanimada, distraía-me com suas brincadeiras graciosas, fazendo-me rir
e relaxar todo tempo.
A minha amiga Ana Maria Augusta da Silva sempre interessada em me ajudar, ora
discutindo a temática do rural, ora buscando em sua biblioteca particular livros que
pudessem me auxiliar e desenvolver da melhor forma possível minha pesquisa com
suas ricas sugestões. Estimulando-me para que eu seguisse em frente.
Ao André Pomorski Lorente, meu revisor de português que com toda a paciência e
tranilidade arrumava meus erros, além de entregar os textos rapidamente para que
eu pudesse acertar os detalhes finais.
A minha amiga Myrt-Thânia de Souza Cruz por compartilhar comigo as discussões
referente a temática do rural enriquecendo assim minhas idéias. Agradeço também
pela sua disposição e carinho que teve em esclarecer minhas dúvidas quanto aos
trâmites institucionais da PUC/SP visualizando as soluções necessárias.
A minha amiga Rejane Teixeira pela amizade e carinho que sempre dedicou a mim
desde que nos conhecemos no mestrado da PUC/SP estimulando assim, a presente
dissertação.
Aos amigos Marize Duarte e Haluo pelas grandes contribuições sobre a temática do
rural em nossos encontros no NET (Núcleo de Estudos da Terra).
Aos meus sobrinhos Luciana de Andrade Olivieri Braga e Felipe de Andrade Olivieri,
pelo apoio moral, emanando energia positiva para que as minhas dúvidas e incertezas
desaparecessem.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
12
Ao SENAR/SP (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural) por ter apoiado e
financiado grande parte desta pesquisa, deixando-me tranqüila nesse aspecto para que
eu pudesse estudar e pesquisar sem haver este tipo de preocupação.
Aos funcionários do setor da informática do SENAR/SP, em especial Andréia
Medeiros Goalves e Fabiana Gonçalves de Lima, pela disponibilidade e carinho que
tiveram comigo em todos os momentos em que as solicitei para resolver minhas crises
e dúvidas nesta área.
A lia Corredoni, Sr. Paulo Bonater e Nilson Kikuty, do departamento pessoal e de
finanças do SENAR/SP pela disponibilidade, rapidez e carinho que tiveram em
resolver os trâmites administrativos com a bolsa de estudos fornecida pelo
SENAR/SP.
Ao pessoal da Livraria Loyola, em especial ao Antônio, por sempre me atender com
carinho e pesquisar sobre os livros que necessitava para meus estudos. Mesmo quando
alguns estavam esgotados, dava um jeito de conseguir, contatando seus amigos para
me atender o mais rápido possível.
Ao Flávio Rocha e Daniel (CA de Letras da PUC/SP) pela grande contribuição na
transcrição das entrevistas, e a Lissandra Ramos, pela revisão final dessas
transcrições. Sem vocês eu estaria até agora angustiada para terminar a presente
pesquisa.
A Mara Fátima Barbosa da Livraria Max Limonad, sempre prestativa e disposta seja
na busca dos livros e no andamento do processo da pesquisa.
Enfim, tive muita sorte em encontrar no meu caminho, pessoas tão maravilhosas e
afetuosas para me ajudar a concluir esta dissertação. Um momento tão significativo
em minha vida como em suas vidas também. Assim, Não poderia deixar de mencioná-
los e dizer muito obrigada.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
13
SUMÁRIO
Apresentação 2
Introdução 8
Procedimentos metodológicos
10
A Pesquisa de Campo
23
Histórias e Narrativas do Campo
25
Fenômeno e Relações Sociais
39
Capítulo I: Cana-de-Açúcar e o Trabalho Volante 52
Capítulo II: Modernização e Pobreza 72
Contradições da Modernização
85
Capítulo III: Cultura e Trabalho Rural 95
Capítulo IV: A Droga 109
A Cultura do Álcool
115
O Crack
123
As Diferentes Versões do Fenômeno
133
Perspectivas na Prevenção das Drogas
160
Considerações Finais 164
Anexos 168
Bibliografia 173
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
14
APRESENTAÇÃO
“Meu avô (minha avó) é a minha
narrativa”
Nélida Piñon
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
15
Antes de iniciar a discussão deste estudo: Cana e Crack: Sintoma ou Problema um
estudo sobre os trabalhadores volantes no corte de cana e o consumo de crack”,
algumas considerações, de cunho pessoal e profissional, são necessárias para entender
a escolha desta pesquisa.
Primeiramente, quero pontuar a questão pessoal, que tem grande relevância para a
referida escolha.
Apesar de não ter nascido no rural, este tema sempre permeou minha vida e, de certa
forma, minha origem, por meio das memórias de minha avó sobre sua vida em um
tio no interior do estado de Espírito Santo, e de meu pai, que nasceu e viveu grande
parte de sua infância no mesmo ambiente. Essas memórias diziam sobre o cotidiano
no campo em relação ao trabalho na plantação e na colheita, criação dos animais, a
caça e a pesca, as festas típicas que freqüentavam, a culinária regional, que minha
avó, já morando em São Paulo, continuava a fazer, como canjiquinha, quibebe
(abóbora refogada), cozido de legumes com carne, etc. Mas, por ser criança, o que
mais gostava de ouvir era sobre as estórias fantásticas, como os animais selvagens (a
onça e o jacaré), que vinham da mata até o tio à procura de comida, as lendas de
assombração, chamadas por ela de “coisa ruim”, que em seu linguajar seriam
elementos malignos que vinham perturbar a paz de espírito das pessoas; enfim,
estórias cheias de significados transmitidas de geração em geração. Hoje acredito que,
pelo fato de minha avó e meu pai serem excelentes narradores, além do aspecto do
exercício da memória, uma forma de reviver suas lembranças e transmitir esses
conhecimentos por meio da oralidade, me transformei em uma grande admiradora
dessas histórias.
Depois, durante alguns anos fiz diversas viagens de lazer ao interior de São Paulo e,
durante o percurso dessas viagens, admirava as plantações de cana-de-açúcar, ficando
ao mesmo tempo encantada e intrigada com a imensidão dessa cultura e com a grande
importância que possuía na vida dos trabalhadores e produtores rurais.
Quando visitava as propriedades rurais, tios e chácaras, lá estava a cana-de-açúcar.
Diversas ruas recortavam o seu interior, formando um grande labirinto, e não
conseguia descobrir o começo e o fim dessas ruas; era um mar verde, de cana verde.
Além disso, as queimadas realizadas no canavial ao entardecer, com a finalidade de
facilitar o trabalho dos cortadores de cana, eram hipnóticas.
As cores azul e avermelhado contrastando com o anoitecer eram um espetáculo.
Apesar do aspecto antiecológico, era muito bonito de se ver. Esse período foi na
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
16
década de 80, nos municípios de Piracicaba, Tietê e cidades vizinhas, onde a
plantação da cana-de-açúcar foi e é até hoje a principal atividade agrícola.
Em relação ao aspecto profissional, logo depois deste período fui trabalhar como
estagiária no Centro de Estudos Rurais e Urbanos - CERU, na USP. O objetivo do
CERU é estudar, a partir do referencial sociológico, os diversos segmentos,
transformações e movimentos sociais ocorridos tanto no espaço rural como no urbano.
Ali tive contato com diversos professores e pesquisadores que estudavam o rural. Foi
uma experiência enriquecedora, pois já encontrava-me interessada por temas que
abordavam esse aspecto.
Logo após, trabalhei durante anos na Secretaria de Estado da Cultura, e, para a minha
satisfação, no Departamento de Atividades Regionais da Cultura - DARC, onde fiz
muitas viagens ao interior do Estado de o Paulo, levando atividades e eventos
culturais à população local.
Atualmente trabalho em uma instituição (SENAR/SP) de educação profissional,
interligada com atividades de promoção social, para pequenos e médios produtores,
trabalhadores rurais e seus familiares.
Em relação ao tema das drogas, também houve grande relevância trabalhando no
Instituto de Medicina Social e Criminologia IMESC, uma autarquia da Secretaria da
Justiça. Nessa instituição fiz parte de uma equipe multidisciplinar que estudava a
relação do uso de drogas entre dependentes químicos e a repercussão familiar e social
na vida dessas pessoas.
Em 1997, já trabalhando na instituição em que me encontro atualmente, assistindo ao
noticiário da noite na TV, acompanhei uma série de reportagens sobre o consumo de
crack entre os cortadores de cana. Fiquei surpresa, pois o contexto que associamos ao
crack é de violência, marginalidade, consumo de outras drogas e ser muito comum
nos grandes centros urbanos. Falei do assunto no meu local de trabalho e da
preocupação frente a essa questão. Sugeri desenvolvermos um programa de prevenção
ao uso indevido de drogas no campo, e obtive a autorização para pesquisar e elaborá-
lo.
A partir desse ponto, participei de diversos cursos em relação ao tema, fiz pesquisas,
entrei em contato com outras instituições e com os colegas do IMESC e, finalmente,
elaborei o programa, consultando e buscando sempre a validação das diversas pessoas
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
17
e instituições envolvidas com a questão, como o CEBRID, IMESC, CONEN,
COMEN e SENAD.
1
A elaboração do programa até sua validação teve duração de um ano. Entretanto, por
questões financeiras, até hoje não pôde ser implantado. Mesmo assim, insisti em
estudar esse fenômeno, que, além de ser um tema importante e preocupante, foi pouco
pesquisado, até por ser um femeno recente.
Dessa forma, cheguei ao Programa de s-Graduação de Psicologia Social da
PUC/SP, em 1999, com o objetivo de contribuir com as diversas comunidades rurais
que enfrentam esse problema.
Como a área rural do estado de o Paulo é imensa, e diversas regiões vêm sofrendo
com essa questão, foi necessário delimitar o período e a região, pois seria impossível
fazer um levantamento em todo o estado.
Sendo assim, a região estudada nesta pesquisa é Jaú, onde localizam-se os municípios
de Igaraçu do Tietê, cidade em que foi realizada a reportagem televisiva sobre os
cortadores de cana-de-açúcar consumindo crack, Campos Canavial e Rios Dourados
2
,
cidades vizinhas, onde a presente pesquisa concentrou-se na parte de entrevistas aos
cortadores de cana e na vincia no canavial.
O EDR de J
3
é um dos mais importantes na plantação e produção de cana-de-
açúcar.
Desse modo, encontro-me envolvida nesta pesquisa desde outubro de 1997, mantendo
contato com essa nova realidade rural, de trabalhadores rurais volantes, expropriados
historicamente do processo social e de trabalho, vivendo a marginalização em todos
os sentidos.
Tudo lhes foi tirado. Suas terras, sua dignidade, sua sobrevivência, sua cultura, seu
trabalho e, agora, seu corpo. Corpo marcado por décadas de luta e exclusão social, e,
atualmente, pelas drogas.
1
CEBRID Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas, IMESC Instituto de Medicina Social e
Criminologia, CONEN Conselho Nacional de Entorpecentes, COMEN Conselho Municipal de Entorpecentes, SENAD
Secretaria Nacional Antidrogas.
2
Foram atribuídos nomes fictícios aos municípios estudados em virtude da preservação de suas identidades.
3
De acordo com o Instituto de Economia Agrícola, as regiões do estado de São Paulo estão divididas por EDR (Escritório de
Divisão Regional). Esta divisão foi criada para facilitar o trabalho dos pesquisadores que analisam os dados relativos às culturas
predominantes nas regiões, sua produção em quantidade, número e tamanho das propriedades, mercado de trabalho, etc., pois o
estado de São Paulo é muito rico e diversificado na área agrícola e seria impossível aprofundar os estudos no meio rural sem
estas divisões.
Os EDRs que mais se destacam no estado de São Paulo em plantio e produção da cana-de-açúcar são: Ribeirão Preto, Orlândia,
Jaú, Jaboticabal, Limeira, Piracicaba, Araraquara e Barretos. Nessas regiões, a cana-de-açúcar chega a ser praticamente uma
monocultura, com grande número de usinas e larga utilização de mão-de-obra. As outras regiões do estado também produzem
cana-de-açúcar, mas não tão significativamente como as já mencionadas.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
18
O trabalho no corte de cana possui duplo aspecto. Ao mesmo tempo que mantém a
sobrevivência de várias pessoas e famílias no meio rural, é aviltante ao ser humano no
sentido sico, intelectual e social. Enfim, fascinante e aviltante são as palavras que
melhor definem o trabalho com a cana-de-açúcar.
O presente estudo apresenta, além da parte introdutória, em que constam os
procedimentos metodológicos adotados na pesquisa e o referencial metodológico
baseado na fenomenologia de Alfred Shutz
4
, estará dividido em quatro capítulos.
O primeiro capítulo abordará o processo histórico do setor canavieiro e suas
implicações nos aspectos sociais, econômicos e ambientais e as transformações
geradas no cotidiano dos trabalhadores rurais relacionados à cultura da cana-de-
açúcar.
O segundo, intitulado Modernização e Pobreza, abordará as contradições existentes
entre os grandes investimentos financeiros e tecnológicos apoiados pelo Estado, com
o objetivo de beneficiar a economia brasileira na produção de açúcar e álcool,
mantendo a posição no ranking internacional como um dos primeiros países
exportadores destes produtos industrializados, e a crescente pobreza e exclusão social
de trabalhadores e pequenos produtores rurais, deixados de lado desse processo em
nome da modernização tecnológica.
O capítulo seguinte aborda a cultura caipira e a transformão dessa população em
trabalhadores volantes, “bóias-frias”, perdendo não só suas terras, mas também a
cultura, modo de vida, etc.
O último capítulo abordará o contexto da droga, iniciando com seu significado nas
diversas culturas e o aspecto farmacológico. Em seguida, o texto abordará a cultura do
álcool e o consumo elevado de aguardente, que é proveniente da cana-de-açúcar,
hábito inserido na cultura caipira, além do surgimento de outras drogas como o
crack, por exemplo. Quais os aspectos psicossociais que levam esses trabalhadores e
seus familiares a consumirem? Será que a lógica é a mesma do espaço urbano? E,
finalizando, algumas alternativas de prevenção ao uso de drogas.
4
Shutz, A., Fenomenologia e Relações Sociais. Ed. Zahar, 1979.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
19
INTRODUÇÃO
“Eu acho que é Deus que manda alguma pessoa pra
o que que tá acontecendo aqui na, na nossa região. Não
é aqui não, em todos lugar, em todos os lugar. Você
recramação, choro, desavença, briga, fome. Cê
não fala, ninguém fala assim…”
Sra. Clara: mulher, mãe, trabalhadora e lutadora. Ainda tem
sonhos e acredita na felicidade.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
20
A disposição em que se encontram as luvas e o facão não foi uma montagem. A
cortadora de cana colocou-os no chão naturalmente na pausa do almoço. Eu estava
presente nesse grupo e éramos quatro mulheres. Eu sentada no garrafão de água,
oferecido por elas, comendo meu lanche, e elas ao meu lado, comendo a comida de
suas marmitas. De repente, observei a presente imagem e imediatamente fotografei.
Estes instrumentos têm uma representação muito grande no cotidiano desses
trabalhadores.
(Foto: Rios Dourados, agosto de 2001, Arlete Fonseca de Andrade)
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
21
Pretende-se, com este estudo, analisar a condição dos trabalhadores rurais volantes
que se dedicam ao corte de cana no estado de São Paulo, com o objetivo de enriquecer
a discussão sobre o entendimento do processo de trabalho desses indivíduos e a
relação com o contexto da droga, neste caso, o consumo de crack.
Para tanto, faz-se necessário refletirmos primeiramente sobre o processo histórico do
advento da cultura da cana-de-açúcar no estado de o Paulo e o surgimento da
categoria de trabalho volante no meio rural, como também sobre as mudanças que
surgiram na agricultura paulista.
São diversas as questões e contradições que irão permear este estudo, mas uma delas
considero a mais representativa: trata-se da modernização e pobreza que envolvem os
aspectos históricos e sociais da mão-de-obra na cultura da cana-de-açúcar. A
modernização refere-se a toda tecnologia empenhada durante décadas na agroindústria
canavieira; a pobreza, aos trabalhadores rurais submetidos a uma ordem de exploração
da força de trabalho e de suas terras, que vem desde o Brasil colonial, contribuindo na
construção desse império e no não-reconhecimento de sua importância nesse
processo.
Notou-se, no decorrer da pesquisa, que o tema, por sua complexidade, possui caráter
multidisciplinar, podendo ser lido pelo viés da geografia, sociologia, economia,
história, psicologia social, potica, economia e antropologia. Essas disciplinas traçam
uma análise do meio rural, principalmente tratando-se de trabalhadores volantes de
uma região delimitada, e uma específica cultura agrícola, no caso, a cana-de-açúcar.
Mas o eixo principal deste trabalho será desenvolvido pela ótica da psicologia social,
devido ao contexto do consumo de drogas por parte dos trabalhadores; abordará,
portanto, os aspectos psicossociais inseridos nesse fenômeno.
Procedimentos Metodológicos
O desenvolvimento desta pesquisa passou por diversas fases. Inicialmente, procurou-
se reunir todos os dados referentes ao cotidiano dos trabalhadores rurais que se
dedicam ao corte de cana para aproximar o entendimento em relação aos vários
aspectos que levam ao consumo de drogas, especificamente o crack.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
22
A partir da reportagem televisiva (Jornal Nacional Rede Globo) sobre os
cortadores de cana consumindo crack no município de Igaraçu do Tietê, transmitida
em outubro de 1997, iniciou-se a busca de dados como: levantamento de reportagens
de jornal, bibliografias sobre o assunto e contato com pessoas que pudessem nortear
esclarecimentos sobre esse novo contexto no campo.
Foram encontradas reportagens de jornal sobre o assunto (Folha de São Paulo,
Caderno Cotidiano – “Explode Consumo de Drogas nos Canaviais”: 09/06/97,
Jornal Todo Dia, Caderno Cidades – “Uso de Droga por Cortadores de Cana
Preocupa”: 31/07/02, Cosmo On Line, Cosmo Especial – “Cresce Consumo de
Crack entre Cortadores de Cana”: 09/05/02 e Cosmo On Line, Redação WEB
Especiais – “Tráfico Internacional Retoma “Rota Caipira””: 5/11/02)
5
, descrevendo
os fatos ocorridos em Igaraçu do Tietê e o crescente consumo em outros municípios.
Após esse levantamento (reportagens e bibliografia), constatou-se a escassez do
assunto. Então, iniciou-se o contato com profissionais e pessoas ligadas direta ou
indiretamente à questão, levando em consideração as orientações previstas na
Resolução n. 196 de 10/10/1996
6
, do Conselho Nacional de Saúde, em relação às
pesquisas envolvendo seres humanos, preservando, assim, suas identidades.
Sobre esse aspecto, as informações e esclarecimentos do Orientador em relação ao
modo de entrar em contato e até em se comportar diante dos entrevistados foram
fundamentais para a direção da pesquisa, transmitindo segurança nas minhas
colocações e observações.
5
Estas matérias descrevem o crescente número de cortadores de cana consumindo crack, além da “Rota Caipira”, nome dado à
estratégia da distribuição de drogas no interior paulista. Os canaviais agora integram a “Rota Caipira” por terem várias ruas de
terra no meio do canavial, feitas pelos donos das terras plantadas e pelos usineiros, para o acesso das colheitadeiras e transporte
das canas colhidas.
Anexas, encontram-se as matérias na íntegra.
6
Por a pesquisa se tratar de um tema delicado e de certa forma perigoso, não será revelado o nome dos pesquisados, bem como o
nome dos municípios. Este procedimento está respeitando
as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa Envolvendo
Seres Humanos” – Conselho Nacional de Saúde, de acordo com a Resolução n. 196/96, em não causar “possibilidades de danos e
riscos à dimensão sica, psíquica, moral, intelectual, social, cultural ou espiritual do ser humano, em qualquer fase de uma
pesquisa e dela decorrente”. Parágrafo II – 8.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
23
Matéria: Folha de São Paulo
Junho 1997
Edição 24.904 Segunda, 09/06/97 Tiragem 518/464
COTIDIANO
Explode consumo de droga nos canaviais
WAGNER OLIVEIRA
da Agência Folha, em Botucatu
Adolescentes que trabalham nos canaviais da região de Botucatu (225 km de
SP) estão adotando o consumo de crack como forma de aumentar a
produtividade e, assim, ganhar mais.
''O consumo da droga entre os jovens vem crescendo em ritmo acentuado'',
disse o médico Igor Vassilieff, especializado em toxicologia e diretor do
Ceatox (Centro de Assistência Toxicológica).
O centro, ligado ao departamento de Biomédicas da Unesp de Botucatu,
realiza anualmente uma pesquisa com jovens cortadores de cana nas
fazendas da região.
Em 96, o centro registrou 42 usuários. Em 95, haviam sido registrados 14
casos e, em 90, apenas dois. Os usuários são submetidos a tratamento de
desintoxicação, oferecido pelo próprio centro.
''Quem trabalha na roça procura o crack para trabalhar mais, pois a droga
produz um efeito antifadiga. Na cidade, o uso da droga é por influência de
amigos, por diversão '', afirma Vassilieff.
''Mas, depois, o jovem do campo tem de abandonar logo o serviço na lavoura,
pois os efeitos da droga acabam debilitando-o.''
Os jovens que passam pelo Ceatoxo submetidos a uma bateria de exames
para se saber o grau de toxinas existente no organismo do usuário.
Eles recebem acompanhamento médico, psicológico e, quando necessitam,
são encaminhados a entidades que oferecem atividades para recuperar
viciados, como terapias ocupacionais e espirituais. O Ceatox atende jovens
de cerca de 20 cidades na região de Botucatu.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
24
Na maior parte dessas cidades, a cana-de-açúcar é uma das principais
atividades econômicas.
Em Igaraçu, uma das cidades em que o Ceatox prestou serviço a jovens
ligados ao corte de cana, 90% da população está envolvida com a atividade
canavieira.
O promotor da Infância e Juventude da cidade, Luiz Guilherme Gomes dos
Reis Sampaio Garcia, disse que o consumo de drogas entre os jovens
carentes é um dos grandes problemas da cidade.
''Nós sabemos que a droga está no campo e na cidade e que é um trabalho
difícil combatê-la'', afirmou. Ele disse que o baixo preço do crack facilita o uso
da droga entre os jovens mais pobres, também entre filhos de lavradores. Na
cidade, uma pedra da droga é vendida por cerca de R$ 5.
Desconhecimento
O presidente da Unica (União da Agroindústria Canavieira de São Paulo),
Sérgio Ometo, disse desconhecer o problema do crack especificamente nos
canaviais.
''Hoje, todos nós sabemos, a droga está em todo lugar'', afirmou. A Unica
representa 122 usinas no Estado e foi criada recentemente para fortalecer o
setor.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
25
Matéria: Jornal Dia
REGIÃO
Uso de droga por cortadores de cana preocupa
Claudete Campos – Região
O uso de entorpecentes por cortadores de cana de Americana, Santa
Bárbara d’Oeste, Nova Odessa, Paulínia e Sumaré, tem preocupado os
proprietários de plantações nos municípios, em especial com a queda da
produção e com a possibilidade de acidentes dos viciados. O delegado
seccional de Americana, José Roberto Daher, determinou investigações à
Dise (Delegacia de Investigações Sobre Entorpecentes) de Americana. O
delegado Marco Antonio Pozeti determinou levantamento sobre o assunto
para tentar descobrir a origem do problema. O presidente da Cooperativa de
Plantadores de Cana de Santa rbara, Jurandir Tunussi, que ainda atende
Americana, Nova Odessa, Sumae Paulínia, além de Monte Mor, disse que
ficou surpreso com o consumo de drogas pelos trabalhadores rurais, por
serem pessoas simples. “É preocupante, nunca ia imaginar que acontecia um
negócio desses no meio do campo”, explicou Tunussi.
Sindicato
O presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Capivari e Região,
incluindo Santa Bárbara, Antonio José Bon, confirmou que os proprietários
rurais se preocupam com o assunto porque o uso de drogas pode afetar a
produção e provocar acidentes no trabalho. Houve caso de agressões nos
alojamentos devido o uso de drogas. Segundo Bon, o problema vem
ocorrendo há dez anos e afeta todos os municípios. A dificuldade é encontrar
vagas nas clínicas de recuperação.
O delegado interino da Dise reconhece que também ficou surpreso com a
revelação. Normalmente, a polícia e as repartições que cuidam da segurança
tentam traçar o perfil do usuário, visando verificar as causas do consumo.
Pozeti explicou que usuário sob efeito do crack, a droga mais consumida por
pessoas de menor poder aquisitivo, não tem condições de trabalhar.
Copyright © 2001 - Editora Z - Jornal Todo Dia - Todos os direitos reservados. Esta página é
melhor vizualizada nos browsers MS Internet Explorer 4.0 ou superior ou Netscape 4.0 ou
superior, com resolução de tela de 800 x 600 pixels e 256 cores ou melhor.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
26
Matéria: Cosmo On Line
Cresce consumo de crack entre cortadores de cana
Fábio Gallacci/Agência Anhangüera
As mãos ásperas que empenham o fao afiado para mais um dia de colheita
pesada são as mesmas que acendem um cachimbo que pode levar à morte.
Vítimas freqüentes do consumo de bebidas alcoólicas e do cigarro, muitos
cortadores de cana-de-açúcar que atuam nas cidades da Região de
Americana (SP) - a 50 km de Campinas - encontraram um caminho sem volta
para aliviar a rotina sofrida nos canaviais: o crack. Mais barata que uma
garrafa de pinga, a droga que é o refugo da cocaína em forma de pedra vem
se popularizando entre os trabalhadores rurais, que não têm qualquer
alternativa de lazer, incentivo ou perspectiva de futuro.
A compra em pequenas quantidades é garantida nos centros urbanos, mas o
local do consumo não é uma esquina qualquer de cidade grande, mas o
próprio emaranhado verde onde passam horas a fio. Os mesmos milhares de
metros quadrados de cana que lhes garantem o ganha-pão em cada safra,
também servem como o esconderijo perfeito para a viagem alucinada em
busca de um perigoso prazer.
"Na cidade, você tem um cinema, uma pizza para distrair a cabeça. No
campo, a gente tem a solidão, odio e o trabalho pesado. Aqui sim é o lugar
perfeito para a entrada das drogas", define R., de 40 anos, que costumava
ser consumidor frequente de crack nos canaviais de Santa Bárbara d' Oeste
e hoje luta para se manter longe do vício. "O traficante do cortador de cana é
ele próprio, que pega quase tudo o que ganha em uma semana de trabalho
para ir atrás da pedra. O interessante é que conheci a droga com pescadores
aqui da Região", conta.
De acordo com R., não é raro encontrar parcerias organizadas entre os
colegas de canavial para que o consumo da droga seja mais constante.
"Cada dia da semana, um do grupo recebe o seu vate. Esse dinheiro garante
a compra da pedra para todos aproveitarem. É aquela velha história: hoje eu
garanto o seu lado e amanhã você garante o meu", descreve.
O consumo do crack também é feito sem despertar suspeitas à distância. O
tradicional uso do cachimbo é facilmente substituído pela droga sendo
colocada dentro de um cigarro comum. "Basta esmagar a pedra e enfiar tudo
no lugar do fumo. Também consumi maconha enrolada em palha de cana
para despistar o cheiro", descreve R., nos mínimos detalhes.
O trabalhador rural M.V., de 24, que trabalhou no plantio do milho e da cana
na Região de Campinas, acelerava o trabalho para fazer sua realidade sumir
em meio à fumaça. "Ganhava R$ 10,00 por dia trabalhado e gastava R$ 5,00
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
27
numa 'paranga' (porção) de maconha. Também usava o crack para esquecer
dos problemas em casa; meu ambiente familiar não era bom", diz o ex-
viciado que busca apoio para reconquistar a dignidade. "Quero voltar a
estudar. Parei na rie". M.V. costumava comprar um baseado pronto por
R$ 1,00. Para se ter uma idéia, cada balaio de milho que colhia lhe rendia R$
0,25. Quatro balaios garantiam alguns minutos de "barato".
Maconha no volante
Além do drama de se entregar ao vício, os trabalhadores rurais que estão
ligados às drogas também expõe a vida de outros durante o trabalho. "Não
sei como nunca machuquei nenhum colega meu. Cansei de dirigir um trator
completamente drogado. Além do crack, costumava varar a terra para o
plantio de cana e batata com um baseado na boca. O patrão me pegou várias
vezes, mas como não atrapalhava o serviço, ele deixava numa boa. Algumas
vezes, até trazia pinga pra gente beber nos intervalos", afirma o tratorista
A.I.R., de 31, que hoje busca recuperação no Sanatório Espírita de
Assistência e Recuperação de Americana (Seara).
"Já cheguei a ficar cinco horas dentro de um canavial fumando maconha e 50
gramas de crack, improvisando um cachimbo em uma latinha de cerveja.
Dois cortadores e um motorista desses treminhões estavam comigo", lembra
R., mencionando o profissional que tem nas mãos a responsabilidade de
transportar toneladas de cana em caminhões gigantescos pelas mal cuidadas
estradas da Região do plantio da cana-de-açúcar.
Copyright 1996 - 2002, Cosmo Networks S/A.Rede Anhangüera de Comunicação - RAC.
Todos os direitos reservados.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
28
Matéria: Cosmo On Line – Redação WEB Especiais
Tráfico internacional retoma ‘Rota Caipira’
Rogério Verzignasse, do Correio Popular
O tráfico internacional de drogas está retomando a famosa “Rota Caipira,
nome dado à estratégia utilizada por esses grupos para distribuir
entorpecentes em todo o Interior do Estado de São Paulo. Agora, os
canaviais paulistas passaram a integrar o esquema. Os entorpecentes,
fornecidos principalmente pelo Paraguai, são transportados de avião e
helicóptero para o Interior de São Paulo. As aeronaves pousam para
descarregar os pacotes nos chamados carreadores, estradas estreitas
abertas pelos usineiros para a operação das colheitadeiras nos canaviais.
neste ano, 70% das 82 toneladas de maconha e cocaína apreendidas no
Estado do Mato Grosso do Sul tinham como destino o Interior paulista. Por
mês, circulam pela Rota Caipira cerca de 5 toneladas de drogas.
A inovação na metodologia desafia os organismos policiais. As aeronaves,
pequenas, pousam com tranqüilidade nos carreadores. casos em que
homens, a serviço do tráfico, alargam as estradinhas, derrubando a cana-de-
açúcar com jeeps, caminhonetes ou tratores. Depois do pouso, os pilotos
nem se preocupam em desligar os motores. Em poucos minutos, as drogas
importadas são colocadas em veículos e transportadas para os centros
consumidores.
Em outras situações, nem o pouso é necessário. Voando baixo, as aeronaves
despejam os pacotes com entorpecentes sem pousar, em trechos
previamente determinados dos canaviais.
Diante deste cenário dramático, a Polícia Federal, organismo encarregado de
coibir o tráfico internacional no Brasil, fica de mãos atadas. Antes, o tráfico
aéreo era mais raro e se utilizava basicamente de 300 pistas não
homologadas pela Aeronáutica. Sabíamos, pelo menos, onde as drogas
podiam ser receptadas. Hoje, neste mar de canaviais cortados por
carreadores na nossa região, é impossível determinar as rotas”, fala o
delegado Edson Bocamino, da Polícia Federal de Ribeio Preto, município a
pouco mais de 200 quilômetros de Campinas.
Nova rota
A nova Rota Caipira se utiliza basicamente dos 54,7 mil quilômetros
quadrados do território paulista, localizados entre os rios Tietê, Para (na
divisa com o Mato Grosso do Sul) e Grande (na divisa com Minas Gerais).
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
29
São as regiões de São José do Rio Preto, Araraquara e Ribeirão Preto, onde
estão instaladas delegacias da Polícia Federal.
Mas os traficantes descobriram, usando os carreadores, uma estratégia para
escapar da repressão policial dos importantes centros urbanos. No começo
do mês, por exemplo, um avião foi abatido no ar quando se preparava para
lançar pacotes de maconha em uma fazenda entre as cidades de Morro
Agudo e São Joaquim da Barra, a 55 quilômetros de Ribeirão Preto. A Polícia
Federal conseguiu apreender 678 quilos de maconha e vários veículos que
esperavam pela droga no chão: um Palio, uma Saveiro e duas motocicletas.
Um traficante morreu e outros cinco foram presos. Neste mês, também
ocorreram apreensões em Araraquara, Araçatuba e Barretos.
Foram apreensões importantes, mas o delegado reconhece: é impossível
imaginar quantas toneladas o despejadas no Interior a cada mês. É uma
guerra que, infelizmente, a sociedade está perdendo.
Melhor visualizado em 800X600 e em Internet Explorer 4.0. Copyright© 1996 - 2002 Cosmo
On Line. Todos os direitos reservados.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
30
A primeira entrevista foi com o Prof. Dr. da UNESP de Botucatu, Igor Vassilief,
7
que
desenvolve pesquisas no CEATOX (Centro de Atendimento Toxicológico), sobre
informações das diversas substâncias tóxicas ingeridas pela população. Existem vários
CEATOXs e Centros de Controle de Intoxicação (CCI) em nosso país, e todos estão
interligados ao SINITOX (Sistema Nacional de Informações Tóxico-Farmacológicas),
que, por sua vez, está vinculado à FIOCRUZ (Fundação Osvaldo Cruz).
O SINITOX tem por objetivo fazer levantamentos estatísticos anuais dos casos de
intoxicação e envenenamento existentes em todo o Brasil, obtendo esses dados através
dos CCIs e CEATOXs espalhados por todas as regiões do país.
O CEATOX, além de exames, faz atendimento hospitalar em relação à desintoxicação
de diversas substâncias e orientação psicológica. Alguns casos, em relação aos
cortadores de cana, foram encaminhados ao CEATOX para exames, atendimento
hospitalar e, caso fosse necessário, provincias para internação.
A entrevista com o Prof. Igor realizou-se em duas etapas: uma no CEATOX, em
Botucatu, e outra em São Paulo, quando veio para proferir uma conferência.
Depois dessa entrevista, o Prof. Igor colocou à disposão o arquivo dos prontuários
de atendimento, além de me apresentar a psiloga com quem trabalha, e que também
fez o atendimento a esses trabalhadores da cana.
Os arquivos onde encontravam-se os prontuários das pessoas atendidas no CEATOX
UNESP/Botucatu não estavam organizados em relão ao tipo de droga consumida
ou perfil da população, e sim por ano. Nessa etapa da pesquisa, fiz 3 viagens ao
município de Botucatu, consultando cada prontuário, pois havia milhares. Desta
forma, selecionei alguns anos, principalmente o de 1997, ano da reportagem televisiva
realizada no município de Igaraçu do Tietê. Abaixo, descreverei o perfil de algumas
pessoas atendidas no CEATOX que considerei relevante para esta pesquisa.
7
Neste caso cito o nome do Prof. e o nome da Universidade em que faz pesquisa em função de ter autorizado sua imagem não
somente na televisão, mas também na reportagem do jornal sobre este caso e a mim, na presente pesquisa.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
31
SEXO:
M/F
IDADE MUNICÍPIO DROGA ANO OCUPAÇÃO
M 18 anos Igaraçu do Tietê Cocaína,
Maconha e
Crack
27/08/96 Trabalhador
Rural/Autônomo
M 21 anos Igaraçu do Tietê Crack e outras ? Cortador de
Cana/Autônomo
M 39 anos Itatinga Maconha e
Crack
05/11/97 Trabalhador
Rural/Autônomo
M 24 anos Avaré Cocaína e
Crack
? Trabalhador
Rural/Autônomo
M 15 anos Igaraçu do Tietê Crack 19/11/96 Cortador de
Cana/Autônomo
M 16 anos Igaraçu do Tietê Crack 27/05/97 Cortador de
Cana/Autônomo
M 17 anos Igaraçu do Tietê Crack 09/09/97 Cortador de
Cana/Autônomo
M 16 anos Igaraçu do Tietê Crack 08/01/98 Cortador de
Cana/Autônomo
M 17 anos Igaraçu do Tietê Crack 30/09/97 Cortador de
Cana/Autônomo
M 23 anos São Manoel Crack 11/11/97 Trabalhador
Rural/Autônomo
Fonte: Prontuários do CEATOX – UNESP/BOTUCATU
Além dos arquivos dos prontuários, o CEATOX forneceu uma listagem do número
total de pessoas atendidas por consumo de drogas ilícitas, discriminando o ano e as
áreas (rural e urbana) como demonstra a tabela a seguir:
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
32
Ano Rural Urbana
1994 90 160
1995 85 168
1996 75 266
1997 84 263
1998 72 266
1999 94 214
Total 500 1.337
Fonte: CEATOX – UNESP/BOTUCATU
Criou-se a partir daí uma rede de informações baseada na confiança e credibilidade
em relação à pesquisa. Fiz diversas viagens a Botucatu, pesquisando e anotando as
informações que constavam nos prontuários, além da entrevista realizada com a
psicóloga Dra. Eliete.
A partir dessa entrevista, foi-me indicado o Pastor da Igreja Assembléia de Deus, o
qual, na época, era Presidente do Desafio Jovem”, instituição ligada ao Governo do
Estado (Assistência Social), direcionada a jovens transgressores com prisão assistida.
Para encerrar a primeira etapa de entrevistas com esses profissionais, entrevistei o
Presidente da FETAESP (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de
São Paulo) e o Coordenador do Sindicato Rural Patronal de São Manuel sobre esta
questão.
Além de traçar uma linha condutora na pesquisa, o objetivo de entrevistar diversas
pessoas e profissionais envolvidos foi ouvir as diferentes vozes e versões sobre o
presente femeno.
Por meio desta rede de informações, obtive contato com o Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais do município de Campos Canavial, para entrevistar cortadores
de cana que trabalham tanto para as usinas locais como para os fornecedores.
Os cortadores entrevistados nesta pesquisa são o que chamamos de informantes-
chaves, conhecem e convivem na cidade e no trabalho com aqueles que são
consumidores de crack e outras drogas; alguns deles estão dependência química.
Sendo assim, acredito ser relevante para a pesquisa relatar o perfil dos cortadores de
cana entrevistados e que chamamos anteriormente de informantes-chaves.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
33
Sexo Idade Grau de Escolaridade Estado Civil
F 22 anos Colegial Completo Solteira
F 30 anos ? Separada
F 46 anos 2a. Série Primária
Primário Incompleto
Casada
M 21 anos Colegial Completo Amigado
M 20 anos 4a. Série Primária
Primário Completo
Solteiro
M ? Ginásio Incompleto Solteiro
F 48 anos Primário Incompleto Separada
M 53 anos Primário Incompleto Amigado
Viajei em diversas ocasiões para os municípios de Campos Canavial e Rios Dourados,
permanecendo durante todos os dias no canavial, interagindo nesse espaço, o
pesquisador e o pesquisado, compartilhando com eles o cotidiano do trabalho,
vivências e emoções, gravando entrevistas em relação às histórias de vida,
centralizando as perguntas no ambiente familiar, trabalho, expectativas de futuro,
sonhos, e, principalmente, sobre a droga e suas concepções.
Além das entrevistas, registrei todos os momentos, impreses da viagem, convívio
no canavial, conversa com outros cortadores que não entrevistei etc., na forma de
diário de campo, com o objetivo de aprofundar todos os sentidos que circulavam e
inseri-los na pesquisa.
Os vídeos sobre o trabalho e a vida cotidiana dos cortadores de cana também foram
fundamentais para entender o processo histórico e social que essas pessoas vêm
passando e sofrendo, sob condições subhumanas de existência. Destaco os deos
sobre a greve de Guariba, realizada em 1984
8
. Essa greve foi uma das mais
importantes da categoria, ficando conhecida em todo o estado de o Paulo, e tamm
em outros estados do país. Apesar da tamanha violência que acarretou até na morte de
um trabalhador, conseguiram os direitos trabalhistas que exigiam.
As Andorinhas: Nem e Nem
9
aborda o aspecto da migração das populações
rurais do Vale do Jequitinhonha para a região de Ribeirão Preto e os sentidos que
envolvem deixar olugarem busca de trabalho para manter suas famílias.
8
Realização: UFRJ, UFSCar, FERAESP. Imagens de Arquivo: TV Cultura, TV Manchete e CEDIC.
9
Projeto de Pesquisa da Prof.a. Maria Aparecida de Moraes Silva. Realização: CEDIC e UNESP – Araraquara.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
34
Os deos Brasil Caipira
10
e Casa Grande e Senzala
11
também dizem respeito às
raízes do Brasil, tradições e significado do modo de ser caipira. E, finalizando, o
vídeo sobre a reportagem dos cortadores de cana consumindo crack.
12
. Esses vídeos
enriqueceram a pesquisa, trazendo como elementos as imagens sobre a vida, o
trabalho, a fome, a violência, a busca pelo direito adquirido e o medo da seca, do não-
retorno, do não trabalho. São imagens reais que tratam não apenas da dor, mas da
felicidade e orgulho de ser um trabalhador rural.
A Pesquisa de Campo
Para muitos pesquisadores, a pesquisa propriamente dita se restringe ao levantamento
de dados e à discussão da produção bibliográfica; porém, esse esforço de criar
conhecimento não fornece o chamado trabalho de campo. Dessa forma, a dinâmica
que ocorre entre pesquisador e pesquisados é fundamental para a geração de idéias, a
análise da produção de sentidos da comunidade estudada, a possibilidade de criação
de questionamentos e a interação entre as diferentes realidades presentes. É necessário
articular os pressupostos teóricos-metodológicos com a vivência, uma vez que a
experiência adquirida no trabalho de campo fornece ao pesquisador novas descobertas
antes não imaginadas.
Seguindo esse procedimento, foram realizadas diversas viagens aos municípios
citados para que tal construção social fosse possível. Nas pesquisas realizadas no
canavial, buscou-se inicialmente adotar uma postura livre de “pré-conceitos” e
despretensiosa, deixando os trabalhadores à vontade para que pudessem relatar, por
meio de suas narrativas, suas histórias de vida, até a chegada do tema em questão.
Nas entrevistas, utilizou-se a técnica de gravação, mediante a autorização de cada
entrevistado. Foi adotado o modelo de entrevistas semi-estruturadas, que consiste no
relato de fatos da vida do pesquisado e no questionamento, por parte do pesquisador,
por meio de perguntas bem definidas, que no caso versavam sobre o consumo de
10
Realização TV Cultura.
11
Realização GNT. Direção: Nelson Pereira dos Santos. Baseado na obra “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre.
12
Reportagem e Pesquisa da Rede Globo. Exibido em outubro de 97 no Jornal Nacional.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
35
crack por cortadores de cana, encontrando o reflexo da dimensão coletiva a partir da
visão individual dos entrevistados.
A pesquisa centrou-se na observação participante, que consiste no contato direto do
pesquisador com o femeno em questão. A técnica de observação participante
permite obter informações sobre a realidade estudada em seus próprios contextos,
estabelecendo uma relação face a face entre o pesquisador/observador com os
pesquisados/observados. Nesse processo é possível modificar e ser modificado, ou
seja, existe uma grande interação entre duas realidades que podem ser opostas,
transmitindo e conhecendo diferentes modos de vida e contextos sociais.
Um exemplo dessa experiência ocorreu no primeiro dia da pesquisa, quando
apresentei-me a um grupo de cortadoras de cana, esclarecendo o propósito da minha
inclusão no canavial. Além da grande receptividade, uma delas me propôs passar por
um teste, que descreverei conforme consta no diário de campo selecionado para
compor a presente pesquisa.
“O teste era beber água do garrafão, mas sem copo. Aceitei e percebi
a oportunidade de conquistar a confiança delas, uma vez que todos
estavam curiosos e me observando. Então bebi a água sem me molhar
e ela ficou surpresa, gostando da minha atitude. Logo em seguida
perguntou se eu queria cortar cana; imediatamente, disse que sim.
Emprestou-me suas luvas e peguei o facão, mas não cortei a cana
como deveria. Então me ensinou e da segunda vez acertei no corte. O
curioso é que, depois, elas queriam me fotografar cortando cana.
Ensinei o mecanismo da máquina e me fotografaram. Percebi, nesse
momento, que tinha sido aceita no grupo, pois muitos cortadores
estavam observando mesmo sem parar de trabalhar.
Essa forma de ser aceita no grupo foi muito interessante, porque, até
então, quase ninguém sabia ou entendia o meu papel naquele lugar. A
partir do momento em que comecei a compartilhar as situações
vividas em seus cotidianos, entenderam que eu realmente queria
aprender junto com eles, e não à distância, sobre o modo de vida de
um trabalhador rural”.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
36
Conforme a descrição acima, a forma de observão participante foi plena, sem o
distanciamento de apenas mera figuração naquele cenário, contribuindo com minhas
experiências naquele mundo”. Era preciso estar aberta à aprendizagem com as
experiências daqueles trabalhadores para compor a minha vida cotidiana, registrar
todos os momentos que antecederam às entrevistas, como também os momentos de
intervalo entre uma entrevista e outra no canavial, para poder captar os sentidos dessa
realidade e adentrar-me nesse universo comdigos e significados próprios.
Seguindo essa postura, descrevo a seguir o diário de campo elaborado durante a
permanência nos canaviais dessas cidades, com o objetivo de registrar e enriquecer a
presente pesquisa.
Histórias e Narrativas do Campo
Uma introdução ao mundo da cana-de-açúcar e ao mundo rural é útil para ambientar o
trabalho, especialmente àqueles com pouco contato com essa realidade, que muita
de nossa psicologia social é urbana. Falar sobre o mundo rural, especialmente o
cotidiano do trabalho na cultura da cana, é menos comum.
As diversas visitas
13
às pessoas envolvidas com a questão do trabalho no corte de cana
e o uso do crack serão a fonte das entrevistas relatadas posteriormente.
Em agosto de 2001 viajei para os municípios de Campos Canavial e Rios Dourados,
14
pertencentes à região de Jaú, no interior paulista, localizado a 360 km da capital.
Durante todo o percurso da viagem procurei observar se havia canaviais e cortadores
de cana nas proximidades da estrada, para entender melhor o cotidiano da vida e do
trabalho dessas pessoas. Entretanto, até Botucatu a paisagem não demonstrava
nenhuma alteração: não avistei canaviais nem trabalhadores. Nas diversas vezes em
que viajei a este município, em função da pesquisa, nunca cheguei a observá-los.
Seguindo viagem, nas proximidades de Igaraçu do Tietê tudo mudou repentinamente.
13
Descrevo este diário de campo em particular porque foi o mais significativo na pesquisa.
14
Os nomes dos municípios em que foi realizada a pesquisa serão denominados Campos Canavial e Rios Dourados, por uma
questão de respeito e segurança àqueles que relataram suas experiências, histórias de vida e assuntos referentes à droga. Os
nomes dos cortadores de cana entrevistados, o Presidente do Sindicato e o turmeiro também são fictícios.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
37
A movimentação na estrada era intensa. Eram muitos treminhões
15
indo e voltando
cheios de cana, ônibus de trabalhadores chegando na cidade, anunciando o fim de
mais um dia de trabalho. Avistei canaviais imensos nos dois lados da estrada, a usina
trabalhando a todo vapor e muitas queimadas. O azul escuro do céu, próximo do
anoitecer, mudou em meio à fumaça e ao contraste do fogo nos canaviais. O cheiro
impregnado no ar era uma mistura de álcool, bagaço de cana e mato queimado. Todos
os meus sentidos mudaram de repente, pois estava vendo e sentindo exatamente o que
procurava.
O ônibus passou pelas cidades de Igaraçu do Tietê, onde foi realizada a reportagem
televisiva com os cortadores de cana consumindo crack, e Barra Bonita, onde está
localizada a Usina da Barra, considerada a maior da América Latina.
Percebi que Igaraçu do Tietê é uma cidade carente de recursos públicos básicos e,
como tantas outras próximas, tem o aspecto de cidade-dormirio, que acolhe pessoas
para trabalhar na cana-de-açúcar.
Todas as cidades vizinhas, como Dois Córregos, Mineiros do Tietê, Lençóis Paulista,
Barra Bonita, Macatuba, entre outras, sobrevivem em função do trabalho na cana.
Notei o duplo aspecto desta questão: não as pessoas dependem da cana, mas a cana
depende delas também; existe uma troca, mas esta troca é desigual, injusta e
competitiva.
um poder aparente e significativo quando se observa todos os fatores que
envolvem a agroindústria canavieira. O espaço físico e social está legitimado pela
mobilização de toda a população em relação às atividades exercidas pelo trabalho.
Em Barra Bonita, peguei um ônibus intermunicipal para Campos Canavial, onde o
Presidente dos Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Sr. Roberto, me aguardava. A
maioria dos passageiros eram trabalhadores rurais. Fiquei atenta às suas conversas, e o
assunto era o trabalho exercido no final do dia, a usina, a produção, e os afazeres do
dia seguinte. Quando cheguei na rodoviária de Campos Canavial, percebi que as
pessoas me olhavam de forma diferente, pois a cidade é pequena (com uma população
em torno de 20.000 habitantes) e a maioria se conhece. As diferenças no
comportamento, como o andar, o olhar, vestimentas, etc. não me deixaram passar
desapercebida.
15
Caminhões que carregam as canas cortadas para as usinas.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
38
Após minha instalação, fui ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, onde me
receberam muito bem. O Sr. Roberto mostrou-me as dependências: consultório
dentário, barbeiro, salas de reunião e um escritório onde um advogado presta auxílio
jurídico aos trabalhadores.
Conversamos um pouco sobre a minha pesquisa e os lugares nos quais passaria o dia
com os cortadores de cana.
Durante a noite caminhei pela cidade para conhecê-la melhor, mas não havia pessoas
circulando nas ruas. O relógio marcava 20h e estava tudo deserto.
Como acontece em outros municípios, Campos Canavial não tem bricas, indústrias
ou empresas e o comércio é muito fraco. A maioria da população exerce suas
ocupações na agroinstria canavieira, única fonte de sobrevivência de centenas de
famílias, e, por isso, acordam muito cedo. O trabalho na cana parece ser a exploração
da miséria e não apenas do trabalho. Tudo gira em torno dela, é a monocultura que
impera em diversos municípios. É a exploração da condição humana já por natureza
miserável.
No dia seguinte, as 8h da manhã, fomos para um canavial localizado no município de
Rios Dourados, onde havia uma turma de cortadores de cana que prestam serviços
para a Usina do município, de propriedade da Usina X. Cada turma possuía 86
cortadores, todos com registro em carteira.
Ao chegarmos, fui apresentada ao turmeiro, Sr. Onofre, e ao motorista do caminhão.
Apesar de ter obtido autorização para realizar a pesquisa por parte dos responsáveis da
Usina X, o Sr. Roberto esclareceu ao turmeiro a minha permanência durante todo o
dia no canavial.
Fui bem recebida por aqueles que logo avistei e procurei ser receptiva e humilde com
todos, conforme as sugestões de meu orientador. O Sr. Onofre acompanhou-me em
um trecho do canavial para me ambientar e demonstrar aos cortadores de cana o
propósito da minha “inclusão” em seu espaço. Depois de algum tempo, comecei a
andar sozinha pelo canavial e a me apresentar aos cortadores de cana que encontrava,
esclarecendo a minha presença.
Passado algum tempo, notei que alguns cortadores de cana já estavam almoçando,
pois começam a trabalhar entre 6h e 6h30, e das 8h às 8h30 fazem uma pausa para
comer uma parte da marmita. Mais tarde, entre as 12h e 13h, param novamente para
comer o restante.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
39
Seguindo o meu percurso, encontrei um grupo de três mulheres, me apresentei e
conversamos um pouco. Eram muito alegres e aproveitei para me incluir em seu
grupo. Uma delas, Vitória, era muito comunicativa e falou que, já que eu estava ali,
deveria passar por um teste: beber água do garrafão, mas sem copo. Aceitei e percebi
a oportunidade de conquistar a confiança delas, uma vez que todos estavam curiosos e
me observando. Então bebi a água sem me molhar e ela ficou surpresa, gostando da
minha atitude. Logo em seguida, perguntou se eu queria cortar cana imediatamente,
disse que sim. Emprestou-me suas luvas e peguei o facão, mas não cortei a cana como
deveria. Então me ensinou e da segunda vez acertei no corte. O curioso é que, depois,
elas queriam me fotografar cortando cana. Ensinei o mecanismo da máquina e me
fotografaram. Percebi, nesse momento, que tinha sido aceita no grupo, pois muitos
cortadores estavam observando mesmo sem parar de trabalhar.
Essa forma de ser aceita no grupo foi muito interessante, porque, até então, quase
ninguém sabia ou entendia o meu papel naquele lugar. A partir do momento em que
comecei a compartilhar as situações vividas em seus cotidianos, entenderam que eu
realmente queria aprender junto com eles, e não à distância, sobre o modo de vida de
um trabalhador rural.
Perguntei a elas se podia fotografá-las e entrevistá-las, e disseram que não havia
nenhum problema, mas, para fotografar, queriam tirar os jalecos e se arrumar. Eu
disse que a forma interessante para a fotografia era exatamente como estavam, no
ambiente de trabalho, assim como elas me fotografaram trabalhando. Entenderam o
propósito e aceitaram.
Despedi-me dizendo que voltaria mais tarde para conversar, que queria conhecer mais
trabalhadores, e também o próprio canavial. Indicaram algumas pessoas e me
convidaram para almoçar na volta.
Continuei andando pelo canavial, conversando e explicando aos outros o que estava
fazendo ali. Muitos, a princípio, acharam que eu era da usina, fiscalização, etc., mas
depois a maioria entendeu e aceitou ser fotografada e entrevistada, com exceção de
um casal.
Mesmo com a receptividade, havia um receio no ar, porque pessoas já haviam ido ao
canavial para investigar, fiscalizar. Numa conversa com um cortador de cana, soube
também que pessoas foram com o objetivo de degradar seu trabalho e o modo de
vida do homem do campo.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
40
Todos os cortadores com que conversei eram registrados em carteira do período de
maio a novembro, época da safra da cana. Depois, seriam demitidos e, se atingissem
suas metas, readmitidos para a próxima safra. Esse tipo de contrato temporário
garantia os seguintes direitos trabalhistas: 13 salário, férias e FGTS proporcional ao
período de trabalho. Não recebem os 40% de multa por demissão sem justa causa,
aviso prévio e salário desemprego, pois existe uma cláusula no contrato que isenta
todas as usinas e fornecedores do pagamento desses direitos.
A Usina X fornece, aos cortadores, jalecos estampados com o mbolo da usina e o
facão, além dos seguintes equipamentos de proteção (EPI): botas com biqueira de
ferro, para proteger os dedos na hora de cortar a cana, óculos, para proteger os olhos
da palha e da fuligem, luvas, para não cortarem as mãos, e caneleira. Oferece tamm
ônibus especial para transportar os cortadores de cana e distribuem soro nos dias
muito quentes, para não haver desidratação. Assim mesmo, o trabalho é
completamente insalubre em vários sentidos, principalmente em se tratando de
higiene e alimentação. Não cabines para higiene pessoal (necessidades
fisiológicas), lugar para lavar as mãos e tendas para as refeições. Pior: no canavial não
existe nenhuma árvore ou sombra para se proteger do sol na hora das refeições.
Alguns sentem cãibras em função dos movimentos repetitivos feitos durante o dia
para cortar a cana.
Apesar da fiscalização nas usinas e nos fornecedores, nem todos seguem a lei como a
Usina X, principalmente quanto ao registro em carteira e doação dos equipamentos de
trabalho e proteção.
Após uma boa caminhada pelo canavial, entrevistei Beatriz, outra cortadora de cana,
que no começo ficou intimidada, mas, no decorrer da entrevista, sentiu-se mais à
vontade. Procurei, em todo momento, ser informal, para não influenciar as respostas.
Quando perguntei sobre direitos trabalhistas e drogas, percebi que se fechou um
pouco, e foi muito objetiva: todos são registrados e nunca ouvi falar sobre drogas”.
Dessa forma, não insisti nas perguntas que tratavam desses assuntos. Ao término da
entrevista, uma frase me marcou: Nossa vida não tem novidade. É a mais comum do
mundo”. Verifiquei, no decorrer dos dias, que a vida desses trabalhadores tem relação
direta com o trabalho; não existem outros acontecimentos, com exceção dos aspectos
familiares. Trabalham para sobreviver, sem o aspecto surpresa ou novidade em suas
vidas. Acordam muito cedo, preparam suas marmitas e vão trabalhar, voltam no final
da tarde para suas casas, cumprem seus afazeres domésticos, pagam suas contas. A
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
41
grande maioria paga aluguel em suas moradias na periferia da cidade. No dia seguinte,
tudo recomeça. Não há grandes sonhos ou esperanças.
Entrevistei, em seguida, outra cortadora, chamada Patrícia. A entrevista foi rápida e
percebi que, nas mesmas questões que abordei com Beatriz, a reação foi semelhante.
No almoço, Vitória havia improvisado uma cabaninha com a palha da cana. A
princípio achei que fosse para todas nós, mas era para mim. Tinha levado um lanche
de pão com queijo e presunto e três frutas. Vitória, antes de iniciarmos o almoço,
disse que o pessoal estava enciumado porque eu havia conversado mais tempo com
elas, e que iriam almoçar também em nossa companhia, ao que respondeu: A gente
convidou primeiro, e mulher se entende melhor”. Achei muito simpático da parte dela,
pois justificou por mim aos outros trabalhadores o fato de ter aceitado o convite para
almoçar, e também o motivo do tempo das conversas.
Quando iniciamos o almoço, elas, sentadas no garrafão de água, ficaram me olhando,
sem abrir suas marmitas. Então perguntei: Vocês não vão comer? Disseram que
sim, mas continuavam me olhando. Ofereci meu lanche e disse que não tinha como
trazer comida, pois estava hospedada no hotel. Percebi seus olhos observando o
lanche, mas não aceitaram. Começaram a abrir suas marmitas, com vergonha. Tentei
o demonstrar curiosidade no conteúdo, mas vi de relance que havia arroz, feijão e
verdura. O olhar da Patcia no meu lanche era impressionante, parecia que nunca
havia comido o com queijo e presunto, e acredito que nunca tenha comido mesmo.
Ofereci as frutas, e a única que aceitou um pedaço de banana foi Vitória. Parei de
comer ao pensar em como se alimentam mal, não no trabalho mas também em suas
casas.
Depois entrevistei Vitória, que demonstrou ser a mais comunicativa; mas na hora de
gravar se acanhou um pouco, assim como todos. Disse-me que estava terminando o
colegial à noite e que precisava trabalhar para ajudar a sustentar sua família.
A maioria dos familiares dos cortadores de cana também são cortadores, pois não
outra atividade na região.
Em relação à droga, confirmou que havia ouvido comentários e que conhecia alguns
cortadores de cana que estavam usando drogas, mas não eram seus amigos.
Depois da entrevista, as pessoas com quem havia conversado disseram-me que eu
estava com expressão de exausta, e realmente era verdade, pois fatores como sol, solo
irregular, pontas de canas cortadas, fumaça do fogo da palha queimada, poeira, má
alimentação etc., levam a um grande desgaste físico. Fiquei imaginando que, além dos
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
42
fenômenos naturais enfrentados no canavial, trabalhar cortando cana ainda agrava a
saúde do ser humano.
Disseram-me ser pior nos dias de chuva e frio, pois têm de continuar trabalhando
mesmo com suas roupas molhadas. param se a chuva estiver forte, protegendo-se
no caminhão. Além disso, no frio, mesmo com as luvas, as mãos e o corpo todo doem,
e as cãibras são fortes, devido ao esforço sico.
A palavra privacidade não existe no local de trabalho. Vi duas cortadoras indo em
direção ao meio do canavial para fazer suas necessidades fisiológicas.
Em relação ao controle de trabalho, os turmeiros passam várias vezes entre os
cortadores. O ponteiro (aquele que vai medindo os metros cortados de cana) também
está sempre presente marcando a produção.
No final da tarde, fui entrevistar um cortador chamado César, jovem e muito
simpático. Apesar de sorrir o tempo todo, seu olhar demonstrava tristeza e cansaço,
como o de todos com quem conversei. Falamos sobre sua vida particular e o trabalho.
Quando perguntei se ele sabia do consumo de drogas entre os cortadores de cana,
disse-me sem hesitar que havia sim.
Perguntei sobre seus sonhos e desejos. Contou que tinha o colegial completo e queria
fazer faculdade de Educação Física, mas que não tinha condições. Assim como ele,
seus familiares também trabalham no corte de cana.
Às 15h30, todos já estavam caminhando até o ônibus para ir embora. Ainda me
perguntaram: Você vai no caminhão com a gente, ?” Torci para que o Presidente
do Sindicato não viesse, mas havia combinado o retorno com ele, pois eu estava em
outro município. Fiquei parada na porta do ônibus vendo todos entrarem, e então o Sr.
Roberto chegou.
Todos que entrevistei disseram-me que gostariam de mudar de vida, mas a
sobrevivência ultrapassa seus sonhos. Necessitam do trabalho para comer e ter um
lugar onde morar. seus filhos não trabalham cortando cana, pois foram unânimes
em desejar outro tipo de vida para si.
Moram na periferia da cidade, mas antigamente moravam nas colônias das fazendas,
que, hoje, praticamente inexistem, visto que todas viraram imensos canaviais.
No dia seguinte, durante a viagem a outro canavial, o Sr. Roberto disse-me que eu iria
perceber diferenças em relação à turma anterior, pois estes cortadores prestavam
serviço ao fornecedor que vende suas canas cortadas para a Usina X.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
43
Quando chegamos, o Sr. Roberto foi procurar o turmeiro. Nesse meio tempo ele me
apresentou a um cortador de cana. Cumprimentei-o e esclareci o objetivo da minha
presença no canavial.
Logo percebi várias diferenças em relação à outra turma. A cana era bem maior e
tinha mais palha, apesar de esta ter sido queimada, como acontece em outros lugares
para facilitar o trabalho no corte.
Fui apresentada ao turmeiro pelo Sr. Roberto e o procedimento foi o mesmo do dia
anterior, em relação à receptividade. Foi informado que o dono da cana (o
fornecedor) sabia da minha presença e que eu estava fazendo uma pesquisa com os
cortadores de cana para o mestrado na PUC/SP.
O turmeiro me apresentou a alguns cortadores, explicando a eles a minha pesquisa. O
primeiro que eu entrevistei foi um mineiro da região do Vale do Jequitinhonha. Assim
como ele, havia vários migrantes da mesma região de sua procedência, além de
alagoanos, baianos, e cortadores da ppria cidade de Campos Canavial.
Cláudio era jovem, tímido e de poucas palavras. Parecia assustado, mas no decorrer
da entrevista foi sentindo-se mais a vontade e confiante. Havia chegado à cidade em
junho para trabalhar na safra da cana. Como a região do Vale do Jequitinhonha é
considerada a mais pobre do Brasil, em períodos de safra está sempre à procura de
trabalho. Perguntei se sabia sobre o uso de drogas entre os cortadores de cana e disse
que sim. No final da entrevista perguntei se podia fotografá-lo, ao que consentiu. De
repente ouço uma voz feminina me chamando. Moça, ô moça. Vem tirar fotografia
da gente também”. Olhei na direção da voz e observei duas mulheres do outro lado da
estrada. Estavam em um nível muito acima do meu, um tipo de barranco. Quando
cheguei, uma delas me perguntou: Você é da televisão? Disse que não, e expliquei
meu propósito. Uma tinha 46 anos, e a outra 43. Ficamos conversando um tempo e
depois perguntei se podia fazer a entrevista sobre a vida do trabalhador rural. Disse
que tudo bem, e que contaria tudo; a outra cortadora, mais calada, distanciou-se de
nós continuando seu trabalho.
Falamos sobre sua vida, origem, dificuldades, trabalho e a questão das drogas no
campo. Então ela disse que já tinha ouvido comentários em outras turmas, mas não
conhecia ninguém. Quando eu estava terminando a entrevista, ela me disse baixinho:
Olha o patrão, o patrão vem vindo. O patrão.” Desliguei o gravador, e ele veio em
minha direção para conversar. Era o filho do fornecedor. Apresentamo-nos e expliquei
o que eu estava fazendo. Ele disse que já sabia por meio do Sr. Roberto. Pedi
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
44
autorização para continuar as entrevistas, ao que consentiu. No final, salientou: É
duro este trabalho, né?” Eu confirmei sua afirmação e ele foi embora.
Clara e Maria, as cortadoras, voltaram para perguntar sobre “o patrão”, e eu disse que
conversamos a respeito da minha pesquisa. Perguntei se podia fotografá-las, e me
disseram que sim. Clara, muito vaidosa, queria se arrumar e fez pose para a foto.
Informei a elas que iria ficar o dia inteiro no canavial e que nos encontraríamos mais
tarde.
Encontrei o turmeiro, que, aliás, havia sido cortador de cana durante 14 anos. Ele me
levou para conversar com um alagoano chamado Ulisses, que queria falar comigo.
Aproximei-me e me apresentei. Ele foi muito gentil. Parecia estar desesperado, pois
logo foi relatando que ele e mais 29 alagoanos estavam passando necessidades em
todos os sentidos. Percebi que estava tremendo e perguntei o motivo. Respondeu que
era fome e que seu irmão e os outros também estavam na mesma situação. Fiquei sem
palavras, mas segurei minhas emoções para não interferir no andamento da entrevista
e nem no seu relato, pois havia muita coisa a ser contada.
Era como se fosse um grito de desabafo no meio de tanta gente que não o ouvia. Um
grito em silêncio. Disse que iria entrevistá-lo. Ele descreveu em que condições chegou
em Campos Canavial com mais 29 alagoanos, e como estava vivendo. Chegaram no
começo de julho por intermédio de um homem, Raimundo, que lá em Alagoas os
recrutou para trabalhar em São Paulo na safra de cana, dizendo que iriam ganhar mais
dinheiro. Entretanto, terão de pagar as passagens de ida e volta.
Outros 70 alagoanos encontravam-se espalhados pela região, mas ele não sabia onde
exatamente. Achava que estavam desempregados, pois não eram acostumados a cortar
a meta diária estipulada pelos fornecedores.
De seu grupo de 30, 24 foram alojados em um sítio à beira de um rio, sem nenhuma
condição de moradia; passaram muito frio e sofreram com os borrachudos durante a
noite. Depois os levaram ao salão de uma igreja desativada da religião Testemunha de
Jeová, também sem condições de moradia. Existe apenas um banheiro para 24
homens e vários beliches, mas nem todos dormem em colchões, que por sinal são
péssimos. Ele mesmo, com seu irmão, dorme no chão.
Nesse salão havia dois foes precários, em que preparam suas marmitas, compostas
de um pouco de arroz e um pedaço pequeno e da pior qualidade de carne. Perguntei se
podia fotografar sua marmita, e disse que sim. Emagreceu vários quilos em função da
fome.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
45
Ulisses (nome fictício) é um trabalhador rural que migrou do estado de Alagoas em
busca de trabalho no corte de cana no município de Campos Canavial/SP. Ele é um
dos muitos que migraram e encontravam-se em condições precárias em relação à
moradia, trabalho e principalmente a alimentação. Quando o entrevistei, disse-me que
muitos estavam passando fome, inclusive ele. Pedi permissão para fotografar a
comida que estava em sua marmita. Havia apenas um pouco de arroz e um pedaço de
carne de péssima qualidade. Procurei não mostrar seu rosto inteiro para preservar sua
identidade. Este trabalhador foi muito significativo para mim, por isso o batizei de
Ulisses, aquele que não desistiu de sua batalha e de seu retorno ao lar, apesar de
enfrentar todos os tipos de obstáculos.
Foto: (Campos Canavial/SP, agosto de 2001. Arlete Fonseca de Andrade)
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
46
O fornecedor para o qual trabalham não havia cedido todos os equipamentos
necessários, cabendo a eles a compra da comida, do facão e das botas. Para efetuá-la,
foram orientados a abrir uma conta na mercearia próxima ao alojamento.
Todos os migrantes, com exceção dos cortadores de Campos Canavial, trabalham sem
luvas. Clara havia me falado que o fornecedor munia os cortadores de Campos
Canavial de botas, luvas, caneleiras e óculos; porém, se os perdessem, quebrassem ou
estragassem, deveriam repor com seu próprio dinheiro.
Em relação ao registro em carteira, os trabalhadores de Campos Canavial que estavam
a mais tempo eram registrados nos moldes preestabelecidos, ou seja, pelo período da
safra. Aos migrantes foi dito que iriam ser registrados, no entanto não haviam obtido
retorno.
Como ainda não haviam recebido nenhum dinheiro, já se achavam endividados em
função da compra de comida e equipamentos. Quando recebessem, todo o dinheiro
seria para pagar suas despesas.
Ulisses me disse que tinha somente duas peças de roupas, uma para trabalhar e outra
para poder andar na cidade; entretanto, por sua própria definição, eram trapos.
Em Alagoas, todos trabalham no corte de cana também, mas lá o período da safra é o
inverso daqui, em função das condições climáticas da região.
Quando terminei a entrevista com Ulisses, fui até o ônibus, peguei as frutas que tinha
para o almoço e entreguei a ele para repartir com seu irmão.
Nesse intervalo, o turmeiro apareceu e falou que outro alagoano queria conversar
comigo. Então me dirigi a ele. Sr. Perseu, um senhor de 53 anos, falava muito bem.
Confirmou tudo que estava ocorrendo e disse que haviam sido vendidos como gado
e enganados. Comecei a entrevista e logo chegou um outro alagoano, que se sentou
quietinho. Então decidi manter uma conversa mais aberta, aproveitando a
oportunidade de haver mais de um trabalhador. Mas, de repente, eles foram chegando
quietinhos e se sentando. No final haviam 5 alagoanos. Acabei entrevistando todos ao
mesmo tempo.
No final da conversa disse para eles procurarem o Sr. Roberto, no Sindicato dos
Trabalhadores Rurais, e descrever a situação em que se encontravam.
Todos com que conversei, alagoanos e mineiros, eram e sempre haviam sido
trabalhadores rurais.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
47
Na entrevista, perguntei ao Sr. Perseu sobre drogas. Disse-me que nunca havia ouvido
comentários a respeito, mas tinha visto cortador de cana trabalhar de uma forma
muito rápida e diferente, pensando: Olha como aquele cara corta cana. Parece que
tá com o demônio.” “Aí fico desconfiado se ele usou alguma coisa”, dizia.
Também não quiseram almoçar na minha frente, por vergonha acredito. Então fui para
o caminhão pegar meu lanche. Clara e Maria e outros cortadores que não conhecia
sabiam o que eles estavam passando e me perguntaram sobre sua condição. Confirmei
a estória e ficaram com um olhar que parecia uma mistura de tristeza e solidariedade
em relação à situação deles.
Alguns foram embora; ficaram apenas 4 cortadores de cana, que até então o tinha
visto. Apresentei-me a eles. Um era da Bahia e os outros 3 de Campos Canavial.
Apenas dois deles foram receptivos comigo, o baiano e 1 de Campos Canavial. Os
outros não me encaravam e mantinham a expressão do rosto fechada. Eram jovens e
seu comportamento me deixou intrigada. De repente, ouvimos barulho de fogos de
articio, e um deles disse: Eh…chegou a droga”. Fiz um ar de surpresa e disse que
em São Paulo acontecia o mesmo, perguntando em seguida se era assim também.
Ele me deu uma risadinha e mudamos de assunto. Todos voltaram ao trabalho em
direção a uma outra parte do canavial, pois onde estávamos era descampado. Fiquei
sozinha naquele espaço imenso e aberto, e não vi mais os cortadores, pois cortavam
de trás para frente.
Resolvi andar por esse espaço e, de repente, vejo os dois cortadores que achei
estranhos sentados sozinhos e bem juntos fumando algo. Eles não me viram e
continuei andando devagar para me aproximar. Quando notaram minha presença,
levantaram rapidamente e foram se juntar ao grupo.
Fui ao encontro do grupo e fiquei conversando com eles, inclusive com o turmeiro e
Ulisses, que estava perto dos dois trabalhadores que estranhei.
Percebi que o turmeiro queria que eu soubesse o que os migrantes estavam passando,
de uma forma muito sutil, apresentando-me a eles.
Nesse instante o Sr. Roberto chegou, e conversamos mais um pouco. Sinalizei para
Ulisses que ele era o Presidente do Sindicato dos Trabalhadores, de quem havia
falado. Despedi-me daqueles com quem conversei e dos outros também. De Ulisses
senti vontade de me despedir com um beijo. Realizei minha vontade, desejando boa
sorte.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
48
O Sr. Roberto me levou de volta à cidade às 15h. Os cortadores de cana trabalhariam
até 16h – 16h30, mais horas, portanto, que o pessoal da Usina X.
Decidi falar sobre os migrantes com o Sr. Roberto, e descrevi as condições em que
eles se encontravam. Resolvi fazer isso porque senti ser uma obrigação da minha parte
dizer o que estava acontecendo. Ele, muito prudente, disse que não estava sabendo, e
que iria até o local em que os alagoanos estavam morando para averiguar e tentar
resolver a situação sem prejudicar ou fazer alardes, para não haver nenhum tipo de
represália; e que, se houvesse irregularidades em relação ao fornecedor, teria de fazer
denúncias.
Combinamos continuar mantendo o contato, mesmo depois que eu viesse para São
Paulo. Chegando na cidade, revelei as fotos e cedi uma cópia ao Sr. Roberto, que me
convidou para tomar uma cervejinha e encerrar o dia com um bate papo. Entramos no
bar e, logo em seguida, uma moça também. Era Vitória, a quem convidamos para
ficar conosco. Foi ótimo, pois ela me deu o feedback dos comentários de sua turma.
Disse que adoraram minha presença, queriam que eu fosse com eles no caminhão e
que voltasse no canavial no dia seguinte. Também disse que sentiram minha falta e
alguns pensaram que eu fosse do Pavilhão 2 do Carandiru. Outros ficaram chateados
porque eu não os havia entrevistado. Expliquei ser humanamente impossível falar
com 174 trabalhadores num pequeno espaço de tempo. Mas disse que voltaria.
Depois de algum tempo, já em São Paulo, telefonei ao Presidente do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais para saber como estava a condição de vida daqueles
trabalhadores alagoanos. Ele havia verificado todos os fatos relatados, constatando
serem verdadeiros. Dessa forma, entrou em contato com o fornecedor para regularizar
a situação e a decisão foi encaminhá-los de volta a Alagoas. Fiquei mais tranqüila em
saber da notícia, pois a vontade deles, demonstrada durante as entrevistas, era de
retornar para casa ao lado da família, ao invés de permanecer no trabalho na condição
de “escravos.
Passado alguns meses da viagem realizada aos municípios de Campos Canavial e Rios
Dourados, precisamente em janeiro de 2002, Vitória me telefonou dizendo que
gostaria de ser entrevistada novamente sobre a questão das drogas consumidas pelos
cortadores de cana, pois, na época, havia ficado insegura em revelar o que sabia.
Desse modo, retornei ao município de Campos Canavial em fevereiro de 2002 para
encontrá-la. Nessa entrevista, contou-me sobre os casos que sabia de amigos e
vizinhos que consumiam drogas, especialmente o crack, e também sobre o tráfico que
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
49
alguns deles praticavam. Disse que, na época da pesquisa e das entrevistas no
canavial, havia alguns que consumiam drogas, mas havia ficado com medo de falar e
sofrer algum tipo de ameaça ou represália. Procurei não fazer interrupções durante a
entrevista para que Vitória pudesse relatar os fatos de forma seqüencial.
Depois dessa ocasião, continuei mantendo contato com Vitória e o Presidente do
Sindicato.
Quando iniciou-se a colheita de cana no ano de 2002, Vitória me telefonou dizendo
que estava nervosa, pois não havia sido chamada e precisava do salário para manter a
família. Ela e outras cortadoras estavam sendo intimidadas pelos turmeiros por não
aceitarem sair com eles. Disse a ela que isso configurava assédio sexual e que deveria
informar o fato à assistente social da usina. Coloquei-me a disposição para conversar
com os dirigentes para atestar sua boa integridade pessoal e profissional. Entrei em
contato com o Presidente do Sindicato para falar sobre o que estava acontecendo com
ela e outras cortadoras e solicitar sua ajuda para resolver o problema. Vitória foi à
usina e falou com a assistente social, como havia lhe orientado. Logo depois,
telefonou-me dizendo que tudo estava resolvido em relação ao trabalho, pois a
assistente social não estava sabendo desse tipo de procedimento por parte de alguns
turmeiros, e que eles seriam punidos, mantendo o sigilo das informações.
Após esses acontecimentos, Vitória voltou a trabalhar. Entretanto, logo depois, foi
convidada a integrar a Diretoria do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Campos
Canavial, sendo ela a única mulher da equipe. Tive nesse momento o prazer de
experimentar a vitória, tanto por ela, por seu talento e intelincia, como por mim, por
ter conseguido mudar um pouco a realidade de sua vida e a daqueles homens que
migraram de Alagoas em busca de trabalho e sobrevivência, e que estavam sujeitos à
exploração e maus tratos.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
50
Fenômeno e Relações Sociais
A partir dos dados apresentados, o senso comum poderia nos levar a crer que estes
trabalhadores estão cada vez mais envolvidos no consumo de drogas porque não há
perspectivas profissionais, assistência da rede pública para atender suas necessidades
básicas e o fato de o trabalho que exercem ser exaustivo, sendo difícil suportar o dia-
a-dia nesses locais.
Claro que estes fatores são de grande relevância para o estudo em questão, mas
existem outros por trás do aparente. Para tanto, objetiva-se desenvolver a análise das
entrevistas gravadas e transcritas, reunindo depoimentos que permitam conhecer:
O cotidiano do trabalhador;
O significado que atribui ao trabalho;
A sua história de vida;
A expectativa de vida em relação ao trabalho, profissão e família;
Os sonhos/desejos que possui;
As diferentes versões que circulam em relação ao crack;
Os porquês da droga.
O referencial metodológico de análise será baseado na fenomenologia social, que são
formas de conhecimento prático socialmente construído. Essa construção é
estabelecida entre o social-psicológico, sofrendo influências da sociedade, por meio
de valores, conceitos, iias construídas entre diferentes grupos sociais que explicam
a realidade da vida cotidiana e, ao mesmo tempo, a influência da realidade psíquica,
subjetiva e particular.
O estudo dos fatos sociais a partir da fenomenologia social, da etnometodologia, do
interacionismo simbólico e do construtivismo tem suas raízes na ruptura dos modelos
tradicionais da pesquisa sociológica construída na visão durkheimiana de ignorar o
senso comum, apesar de tais correntes não estarem desvinculadas das ciências sociais.
Nas ciências humanas, Alfred Schütz é o representante mais significativo do
pensamento fenomenológico, sendo considerada esta corrente como a sociologia da
vida cotidiana. Apesar de suas elaborações terem influências do pensamento
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
51
weberiano, é na filosofia de Edmund Husserl que Schütz recebe a maior influência em
relação à fundamentação metodológica.
O argumento de Husserl é o mesmo de Dilthey e Weber, isto é, os atos sociais
envolvem uma propriedade que não está presente nos outros setores do universo
abarcados pelas ciências naturais: o significado.”
16
Dessa forma, a fenomenologia social contribuirá nas questões que surgirão no
decorrer da pesquisa em relação à vida cotidiana desses trabalhadores e suas relações
sociais, como também o entendimento do referido fenômeno estudado, pois o mundo
para ele está relacionado com a vida cotidiana, o mundo da vida, ou como ele mesmo
diz: o mundo da rotina”, no qual as pessoas não teorizam sobre suas práticas. Um
mundo real e intersubjetivo, em que as pessoas interagem umas com as outras
naturalmente; ou seja, a partir do senso comum, os homens o interagir com seus
valores, cultura, crenças etc.
A fenomenologia social apresenta, em relão à pesquisa, as seguintes características:
a) “Uma crítica radical ao objetivismo da ciência, na medida em
que propõe a subjetividade como fundante do sentido;
b) Uma demonstração da subjetividade como sendo constitutiva
do ser social e inerente ao âmbito da autocompreensão
objetiva;
c) A proposta da descrição fenomenológica como tarefa principal
da sociologia.”
17
Alfred Schütz traz para o pensamento da fenomenologia social o mundo da vida
cotidiana, no qual o homem situa-se em meio a suas angústias e preocupações em
intersubjetividade com os semelhantes do grupo em que vive no tempo presente, ou
seja, a relação face a face.
Referente à presente pesquisa, buscou-se exatamente essa relação: conhecer o
cotidiano dos cortadores de cana a partir da pesquisa de campo, buscando ouvir suas
histórias de vida no tempo passado, presente e perspectivas de futuro. Parte desta
centrou-se na questão da vida cotidiana, como: que horas começam suas trajetórias de
16
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec – Abrasco,1992, pg. 55.
17
Idem, pg. 55.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
52
trabalho, como é o dia no canavial, os intervalos para almoço e o lanche, o retorno
para casa, etc., além da questão da droga, tão presente em suas vidas.
O medo de perder o lugar em que moram, de ser ameaçados por saberem de casos que
dizem respeito à questão da droga e, dessa forma, prejudicar suas vidas e de seus
familiares, de perder o trabalho e não conseguirem sobreviver, etc.
Sobre o conhecimento, Schütz o divide em três categorias:
a) “A do vivido e experimentado no cotidiano;
b) da epistemologia que investiga esse mundo vivido;
c) do método sociológico para a investigação.”
18
Num primeiro momento, o mundo social apresenta-se aos indivíduos como o mundo
da cotidianidade, tal como é experimentado pelo homem, atitude naturale aceito da
forma que é. Nesse sentido, o homem não questiona a estrutura significativa do
mundo, mas age e vive nela.”
Esse mundo cotidiano apresenta-se por meio de tipificações construídas pelos
próprios atores sociais, de acordo com suas histórias e relevâncias. Segundo Schütz,
essas tipificações possuem em si o universal e o estável, o específico e o mutável.”
19
Nesse ponto observa-se uma das diferenças do pensamento de Schütz em relação a
Weber. Enquanto para Weber o tipo-ideal é uma construção analítica criada pelo
cientista, para Schütz o ator social, não apenas o cientista, tipifica o mundo para
compreendê-lo e comunicar-se com seus semelhantes.”
20
O ponto inicial para a fenomenologia social são os construtos de primeira ordem,”
21
usados por toda a sociedade, isto é, o senso comum, mesmo que se tenha iias
vagas, limitadas e/ou fragmentadas e com emoção. Schütz não tem interesse em
comparar ou questionar se o senso comum é superior ou inferior à construção
científica, pois o propósito de um cientista/pesquisador social é descobrir e revelar os
significados subjetivos implícitos que circundam o universo dos atores sociais
estudados.
18
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec – Abrasco,1992, pg. 55.
19
Idem, pg. 56.
20
Idem, pg. 56.
21
Idem, pg. 56.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
53
O cientista social cria um saber diferente a partir do conhecimento
de primeira ordem”, por meio da elaboração de modelos do ator
social, de “tipos ideais” para explicar os significados da realidade
social e para descrever os procedimentos dos significados.”
22
De acordo com Schütz, a partir do mundo da vida cotidiana o cientista construi
modelos distintos do senso comum. São constrdos:
a) “Pela consistência lógica, isto é, pela possibilidade de
descrever o vivido, buscando trazê-lo para a ordem das
significações;
b) Pela possibilidade de interpretação; e
c) Pela adequação à realidade.”
23
E o modelo científico para compreensão do mundo social tem os seguintes princípios:
a) “A intersubjetividade: estamos sempre em relação uns com os
outros;
b) A compreensão: para atingir, penetrar o mundo do vivido, a
ciência tem que apreender as coisas sociais como
significativas;
c) A racionalidade e a internacionalidade: o mundo social é
constituído sempre por ações e interações que obedecem usos,
costumes e regras ou que conhecem meios, fins e resultados.
24
22
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 56.
23
Idem, pg. 56.
24
Idem, pg. 56.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
54
Sobre a compreensão empírica da realidade, Schütz elabora alguns conceitos em
relação ao ato social, como o de situação. Este conceito diz respeito ao lugar que a
pessoa ocupa na sociedade, o papel que desempenha e suas posições ético-religiosas,
intelectuais, políticas, etc. A esse respeito, diz que o homem está biograficamente
situado no mundo da vida, agindo de acordo com esse papel social que desempenha.
Outro conceito que Schütz elabora é o estoque de conhecimento dos atores sociais,
que seriam as referências com as quais interpreta-se o mundo e estabelece-se as ações.
Outros conceitos com que Schütz trabalha são os termos de relevância e estrutura de
relevâncias, que significam a importância dos objetos e os contextos que estes
possuem para os sujeitos, relacionados com sua história de vida e bagagem de
conhecimento que possuem.
Esses conceitos desenvolvidos por Schütz são de grande importância para a pesquisa
empírica, passando do contexto individual para o grupal e comunitário, que o autor
denomina reciprocidade,
25
seja de comunicação, sentido de comunidade, de objetivos
e de interpretação intersubjetiva, visto que, segundo ele, a maior parte de nosso
conhecimento vem de nossos pais, familiares, professores, grupo comunitário, etc.
Recebemos formas de classificar e tipificar, criando o nosso universo e colocando-nos
na vida prática em relação com o mundo.
Outro elemento fundamental para a fenomenologia social é a linguagem, pois para o
autor a vida humana é essencialmente diferente e pode ser compreendida através
do mergulho na linguagem significativa da interação social.”
26
A linguagem, práticas, coisas e acontecimentos são inseparáveis. E a linguagem é
essencial para que a realidade seja do jeito que é, isto é, a realidade é a própria vida
cotidiana nos indivíduos onde eles se comunicam, concordam, discordam, justificam-
se, negam ou criam.”
27
Para Schütz, a linguagem cotidiana ocupa todo um universo rico e inexplorado da
essência social.
Nesse sentido, a intercomunicação e a linguagem são fundamentais, uma vez que:
25
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec Abrasco,1992, pg. 57.
26
Idem, pg. 58.
27
Idem, pg. 58.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
55
“A linguagem cotidiana esconde todo um tesouro de tipos e
características pré-constituídos de essência social que abrigam
conteúdos inexplorados.
28
A fenomenologia social diz que há conhecimento subjetivo, e não objetivo ou
neutro, pois é o homem que imprime leis ao real, e o ato de conhecimento reúne o
observador e o observado, ambos possuidores de significados atribuídos pelo próprio
homem.”
29
A partir da tese geral da reciprocidade das perspectivas formulada por Schütz,
marca-se o caráter social da estrutura do mundo da vida de cada um,
30
baseado na
idéia de que cada indivíduo tem sua experiência particular e subjetiva, sua visão de
mundo é diferente do outro em relação ao mesmo fato; mas, em contrapartida, todos,
de certa forma, fizeram ou fazem parte daquela ação, porque duas idealizações
usadas pelas pessoas: a possibilidade de troca em relação aos pontos de vista e a
conformidade do sistema de pertinência”. Por exemplo: todas as pessoas que foram a
uma partida de futebol supõem que foram assistir pelas mesmas razões, apesar das
diferenças em relação ao modo de vida, ao ponto de vista, etc., mas o que as une é a
mesma razão, a intenção, a situação, ou seja, suas experiências.
Portanto, neste estudo, as experiências darão um significado ao trabalho do cortador
de cana e ao consumo de drogas, no caso, o crack, tomando como referência o
trabalho, a vida familiar e afetiva e as perspectivas futuras, apesar de as experiências
vividas serem diferenciadas umas das outras. Mas o que as une é a mesma condição, a
mesma situação, o mesmo problema.
A análise das narrativas dos entrevistados procurará identificar sentidos nos discursos
que caracterizam sentimentos de atividade/inatividade; liberdade/dependência;
sofrimento/conforto; trabalho/não-trabalho; capacidade/incapacidade; ter direitos/não
ter direitos; ser cidadão/ser marginal.
28
Coulon, A. Etnometodologia. Ed. Vozes, 1987, pg. 11.
29
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec – Abrasco,1992, pg. 58 e
59.
30
Coulon, A. Etnometodologia. Ed. Vozes, 1987, pg. 13.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
56
Os casos de cada indivíduo trazem uma vida cheia de significados, pois o aspecto
qualitativo é fundamental para as ciências humanas. Trabalhar a realidade viva do
grupo é uma forma de elaborar os dados. Com isso, passamos da impressão para a
hipótese do trabalho em questão.
O aspecto da vida social (localização) é uma forma de analisar o problema social. Na
pesquisa de campo é importante determinar as unidades mínimas de vida econômica
e social em que as relações encontram um primeiro ponto de referência.”
31
O estudo do grupo em questão visto da perspectiva histórica quanto aos problemas
caracterizam a situação da vida rural em São Paulo.
As correntes teóricas, como a fenomenologia social Schütz, a etnometodologia
Park e Garfinkel, o construtivismo - Berger, Luckman e Goffman, e o interacionismo
simlico - Mead, como já foi mencionado, têm suas semelhanças ao romper com os
moldes tradicionais de pesquisa das ciências humanas, que consistiam em ignorar o
senso comum e suas representações sociais, além da contribuição e influência que a
fenomenologia social possibilitou servindo de base a essas correntes posteriores.
Sendo assim, o presente estudo não terá a pretensão de analisar a questão dos
cortadores de cana consumirem crack a partir da ótica de cada corrente, e sim requerer
suas contribuições para enriquecer o entendimento do referido fenômeno.
O berço da etnometodologia foi a Universidade de Chicago, e Robert Park seu
arquiteto principal. As idéias de Park foram teoricamente desenvolvidas por Harold
Garfinkel na década de 30. Garfinkel, em sua célebre obra intitulada Stuties in
Ethnomethodology”, tem como fontes principais dois autores: Talcott Parsons,
sociologia americana, e Alfred Schütz, que funda a fenomenologia social.
A partir da fenomenologia, Garfinkel desenvolve sua teoria em relação à
etnometodologia, dizendo que, mais que uma teoria, ela é uma perspectiva de
pesquisa que trabalha com uma abordagem qualitativa do social, organizando-se
segundo a iia de que todos nós somos pesquisadores sociais em estado prático, ou,
de acordo com a formulação de Alfred Schütz, “o real se acha descrito pelas
pessoas.
32
31
Candido, A., Os Parceiros do Rio Bonito. Ed. Duas Cidades, 1987, pg. 20.
32
Coulon, A., Etnometodologia. Ed. Vozes, 1987, pg. 7.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
57
Garfinkel postula que:
“O fato social não é um objeto estável, mas o produto da contínua
atividade dos homens, que aplicam seus conhecimentos, processos,
regras de comportamento, em suma, uma metodologia leiga cuja
análise constitui a verdadeira tarefa do sociólogo.”
33
Dessa forma, a etnometodologia abarca o estudo das atividades cotidianas, sejam elas
triviais ou eruditas
34
, partindo da pesquisa empírica dos métodos que os indivíduos
utilizam para dar sentido e ao mesmo tempo realizar suas ações cotidianas.
Diferentemente dos sociólogos tradicionais, que consideram os aspectos do saber do
senso comum uma categoria residual”, a etnometodologia trabalhará na contra-mão
desse conceito, analisando as crenças e os comportamentos desse senso comum como
base constituinte de todo comportamento socialmente organizado.”
35
Na Inglaterra, os dois representantes da etnometodologia foram Harrison e Madge
(1937), que tentaram aplicar os procedimentos metodológicos para compreender
melhor o dia-a-dia do homem comum em uma sociedade complexa. Apesar do
espírito inovador, Harrison foi criticado dentro e fora do âmbito científico por sua
falta de rigor metodológico.
36
Assim, os movimentos etnometodológicos decaíram nos Estados Unidos e, na
Inglaterra, sua influência acabou sendo pequena. Porém, a partir da década de 50, a
tradição etnometodológica tem sido retomada com vigor e é evidente a sua grande
contribuição para as ciências humanas.
37
Esta breve introdução em relação à etnometodologia justifica-se por ter semelhança
com a fenomenologia social na sua formulação do senso comum e do mundo
cotidiano, que Schütz elaborou com maestria em sua obra Fenomenologia e Relações
Sociais.
33
Coulon, A., Etnometodologia. Ed. Vozes, 1987, pg. 24.
34
Idem, pg. 30.
35
Idem, pg. 30.
36
Mynaio, M. C. de Souza. O Desafio do Conhecimento. Ed. Hucitec – Abrasco, 1999, pg..52 e 53.
37
Idem, pg. 55.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
58
A contribuição do construtivismo, que tem afinidades com o marxismo, vai aparecer
tanto na fenomenologia social como na etnometodologia, nas idéias de Peter Berger e
Thomas Luckman
,38
ouvintes das palestras ministradas por Schütz, que trabalham com
a relação indivíduo–sociedade. A esse respeito, os autores vêem a sociedade como
uma realidade objetiva e subjetiva ao mesmo tempo, e o indivíduo, neste contexto,
exterioriza seu próprio ser no mundo social interiorizando esse mesmo mundo como
realidade objetiva.
Esse processo dialético é composto de: exteriorização, objetivação e interiorização,
interligados um ao outro. Para que isso ocorra, é necessário compartilhar e participar
do mundo do outro; depois desse processo de interiorização é que o indivíduo
torna-se um ser social. Assumir o mundo do outro é torná-lo o seu próprio.
Esse processo de socialização do indivíduo no mundo objetivo está dividido em duas
etapas: socialização primária e secundária.
A socialização primária ocorre na infância e em uma estrutura social objetiva,
proporcionando um aprendizado cognitivo. É uma relação dialética entre a identidade
objetivamente atribuída e a identidade objetivamente apropriada.
O indivíduo se apropria da sua identidade em certo mundo e, simultaneamente,
esse mundo passa a ser apropriado por ele mediante suas atribuões, permitindo-o
localizar-se. É no processo de socialização primária que surge o outro generalizado, e
o elemento mais importante é a linguagem. Ao término da socialização primária, o
indivíduo torna-se efetivamente um ser social (integra a sociedade), porque possui
uma personalidade e um mundo próprio. A socialização secundária é uma
continuidade da primária, responsável pela identificação na comunicação entre os
seres humanos, por isso a linguagem é tão importante.
“Nas sociedades conhecidas há sempre alguma distribuição social do
conhecimento, tanto o universal como o conhecimento especial que
está relacionado ao conhecimento de funções específicas resultantes
da divisão social do trabalho; assim a socialização secundária passa
a ser importante para a aquisição desses novos conhecimentos.”
39
38
Berger, P. & Luckmann, T. A Construção Social da Realidade. Ed. Vozes, 1966.
39
Vários Autores. Interacionismo Simbólico e Teoria dos Papéis. Ed. EDUC, pg. 179.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
59
Em relação ao trabalho dos cortadores de cana, podemos verificar que não possuem
conhecimentos universais nem específicos sobre o seu trabalho. Desempenham suas
funções mecanicamente, visando garantir apenas sua sobrevivência. O resultado desse
processo é a alienação, pois não se apropriam de outros mundos.
Berger e Luckman salientam que a realidade subjetiva tem uma relação socialmente
definida com a realidade objetiva. O papel da conservação da realidade subjetiva é
muito importante para a confirmação da identidade. Esse processo é dialético, uma
vez que há relação recíproca entre os diferentes fatores.
O fator mais importante na conservação da realidade é o diálogo, porque tem como
função manter, modificar e reconstruir constantemente a realidade subjetiva do
sujeito.
“A realidade é interiorizada tanto na socialização primária como na
secundária por processos sociais, sua manutenção depende desse
processo, embora com características diferentes.”
40
Vale ressaltar nesse processo que, se o indivíduo interage simultaneamente o seu
próprio ser com o mundo social, e um dos aspectos do mundo atual é a grande
importância que se a bens materiais, bem como à conquista de poder consumi-los,
poderíamos dizer que os cortadores de cana estão interagindo e interiorizando os
valores atribuídos de uma sociedade de consumo, e a droga é um deles.
O desenvolvimento da identidade do indivíduo é determinado pelas condições
históricas, sociais e materiais dadas, incluídas na condição do indivíduo na dimensão
temporal: passado, presente e futuro.
Os trabalhadores rurais, em geral, possuem um referencial histórico e social não
apenas em relação à luta pela posse da terra para realizarem seus trabalhos, como
também são caricaturados como seres desprezíveis tanto no aspecto cultural como no
social, não obedecendo aos padrões estabelecidos e determinados pelo modo de vida
das cidades.
40
Vários Autores. Interacionismo Simbólico e Teoria de Papéis. Ed. EDUC, pg. 181.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
60
A não-metamorfose ocorre na impossibilidade de articular personagens novos ou
velhos, e pode ser reconhecida como a morte biológica ou simlica.
O trabalho é onde se dá a emancipação do sujeito, onde ele pode realizar uma
atividade criativa e livre, satisfazendo suas necessidades básicas e atingindo uma
ascensão social. A impossibilidade de emancipação acaba por gerar a alienação do
sujeito, tornando-se escravo de seu trabalho, como de si mesmo, não reconhecendo-o
como fator importante na relação social.
Em relação aos trabalhadores rurais, especificamente os cortadores de cana, podemos
dizer que a morte simlica está relacionada a sua baixa auto-estima, não constituindo
um personagem. Sendo assim, a droga (crack) poderia estar contribuindo não para
a morte simlica, mas também para a morte física desses indivíduos.
Uma outra característica da identidade é sua temporalidade: passado, presente e
futuro
41
. Na mesmice da identidade há a exclusão da temporalidade, tornando-se
abstrata, perdendo sua capacidade de transformação
42
. O tempo dos cortadores de
cana está completamente ligado às suas atividades profissionais, faz-se apenas para o
trabalho. Muitos preferem adotar o silêncio e o esquecimento como forma de
resistência em função dos traumas vividos
43
. Outros já não conhecem o contexto
histórico de lutas travadas entre camponeses e latifundiários para a obtenção da terra,
pois esta representava para os trabalhadores o fim de sua escravidão, por meio dela se
completavam e se realizavam.
O estigma é outro ponto fundamental, incorporado à cultura do homem do campo
desde sua descrão literal, como pessoas sem bom trato, grosseiros e sem educação;
além desse fator, atualmente esse estigma é agravado pelo fato de muitos serem
dependentes de drogas.
Erving Goffman diz que o conceito de estigma está ligado a pessoas portadoras de
características físicas, morais ou grupais determinadas, promovendo o descrédito das
pessoas normais. A esse respeito diz:
41
Ciampa, A. C., A Estória do Severino e a História de Severina. Ed. Cortez, 1998, pg. 198.
42
Idem, pg. 198.
43
Pollak, M.
Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, Vol. 5, n. 10, 1992, pg.203.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
61
“Quando normais e estigmatizados realmente se encontram na
presença imediata uns dos outros, especialmente quando tentam
manter uma conversação, ocorre uma das cenas fundamentais da
sociologia, porque, em muitos casos, esses momentos serão aqueles
em que ambos os lados enfrentarão diretamente as causas e efeitos de
estigma.”
44
O indivíduo estigmatizado sente-se completamente inseguro frente aos normais,
que, no caso, representam um tipo de sociedade perfeita. Almeja um modelo que
todos gostariam de ser tanto no aspecto moral como social. Essa inseguraa dos
estigmatizados é relacionada à possibilidade de os normais identificá-los com
determinado tipo de caráter e ao modo como serão recebidos pela sociedade.
Estigma, para os gregos, eram sinais corporais feitos para evidenciar o que a pessoa
fez de mau em relação ao status moral.
Na era cristã, o estigma possui duas concepções diferenciadas: uma em relão à
graça de Deus, e a outra às marcas de distúrbio.
Atualmente, a concepção de estigma é similar ao significado dos gregos, embora
esteja mais ligada à desgraça do que à marca corporal. A este respeito, o autor diz:
“O termo estigma será usado em referência a um atributo
profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é
uma linguagem de relações e não de atributos. Um atributo que
estigmatiza alguém pode confirmar a normalidade de outrem,
portanto ele não é, em si mesmo, nem honroso nem desonroso.”
45
Os tipos de estigma que Goffmam exemplifica são: as abominações do corpo, as
culpas de caráter e, finalmente, os estigmas tribais de raça, não e religião.
No caso dos cortadores de cana, o tipo de estigma que mais se aproxima é o de
caráter, duplamente caracterizado. Primeiro em relação ao tipo de trabalho que
exercem: são trabalhadores volantes, não possuem emprego fixo, sendo a grande
44
Goffman, E. Estigma. Ed. Guanabara, 1988, pg. 23.
45
Idem, pg. 23.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
62
maioria autônomos, não atingindo um status social conquistado. O outro aspecto diz
respeito à depenncia química: no caso, alguns o usuários de crack. A este tipo de
estigma, Goffmam diz que:
“são percebidas como vontade fraca, paixões tirânicas ou não
naturais, crenças falsas e rígidas, desonestidades, sendo essas
inferidas a partir de relatos conhecidos de, por exemplo, distúrbio
mental, prisão, vício, alcoolismo, homossexualismo, desemprego,
tentativas de suicídio e comportamento político-radical.”
46
O ser estigmatizado acaba não desenvolvendo uma relação social cotidiana. Desse
modo, afasta de si os normais”, destruindo os outros atributos que ele possui ou
conquistou.
46
Goffman, E. Estigma. Ed. Guanabara, 1988, pg. 14.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
63
Capítulo I: Cana-de-Açúcar e o Trabalho Volante
“Pela minha idade, eu acho que eu não tenho mais
sonho não. Não pra ter mais sonho não. Quer dizer,
que a esperança é a última que morre, né? Mas de
qualquer maneira, eu acho tão difícil, tanto tempo da
minha mocidade, tanto que eu trabalhei, tanto que eu
batalhei até hoje e nada arrumei, a pra eu me
desinganá de sonho.”
Sr. Perseu: apesar de dizer que não tem mais sonhos, acredita
na esperança de um dia melhor e que ela não morrerá.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
64
Apesar de este estudo estar direcionado ao trabalho no corte de cana e suas diversas
implicações, faz-se necessário refletirmos primeiramente sobre a importância do
trabalho na vida humana, assim como o processo histórico e as mudanças ocorridas
durante os diferentes períodos.
A origem da palavra trabalho tem um significado não muito procio aos seres
humanos. Vem do latim tripalium, e era um instrumento aplicado aos escravos que
o cumpriam suas obrigações, daí seu significado, castigo. Na Idade Média, o
sentido do trabalho não muda muito; travail, em francês, referia-se a um aparelho para
conter os animais durante a cirurgia.
47
A partir da iia inicial, sofrer”, passou-se à iia de esforçar-se, lutar, e, por fim,
trabalhar.
48
Na concepção moderna, o trabalho tem um outro significado: é reconhecido como
fator social, determinante da humanização do homem, distinguindo-o dos animais.
Assim, o trabalho não liga o homem à natureza mas os homens entre si, pois a
atividade individual está ligada a um sentido mais amplo que é a sociedade.
O trabalho, na atualidade, está associado à expressão de liberdade e, por meio dele, o
homem modifica a natureza e inventa a técnica, criando uma nova realidade.
Nesse sentido, o trabalho possui um aspecto mágico em função de sua duplicidade: de
um lado, aparece como valor de uso, atendendo às necessidades dos seres humanos, e,
de outro, como valor de troca, criador de mercadoria.
O trabalho como valor de uso insere, no seu contexto, significado humano à natureza,
atendendo às suas necessidades. Já o trabalho como valor de troca homogeniza
produtos distintos, ignorando suas especificidades, transformando-os em
mercadorias.
49
Com o desenvolvimento do capitalismo, a produção vira mercadoria e surge uma
divisão do trabalho diferenciada, integrando a divisão social do trabalho que i se
destacar por seus resultados, ou seja, produtores artesanais antes independentes do
47
Spink, K. P.,Psicologia e Saúde: Repensando Práticas. Ed. Hucitec, pg. 91.
 
     !
" #  ! 
$
$ "
#
% &
' (
)!  *+,- .,$/00
49
Marx, K. , Engels, F., A Ideologia Alemã. Ed. Martins Fontes.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
65
processo de produção sob o controle do capital passam a dividir tarefas, resultando na
divisão do trabalho.
A sociedade capitalista, ao mesmo tempo que liberta o trabalhador da servidão”, o
torna totalmente alienado em relação ao controle sobre o processo de realização de
seu trabalho. O trabalhador acaba não tendo a visão desse processo, perdendo
completamente o controle dos produtos confeccionados por ele, bem como de sua
distribuição no mercado. Ocorre a alienação no campo social, potico e,
principalmente, na consciência, à medida que suas idéias aparecem fragmentadas do
mundo real.
É interessante, e ao mesmo tempo contradirio, notar que todas essas mudanças
foram a base para a formação de uma sociedade racionalizada, que tornou-se
complexa com o desenvolvimento do capitalismo e seu caráter dominador.
Nessa transição, as idéias, pensamentos, sentimentos e relações sociais acabaram
sofrendo com o impacto da industrialização.
Sobre esse processo de transformação do trabalho no mundo moderno, vários
pensadores de diferentes vertentes manifestaram suas concepções, como Comte, que
analisou essas mudanças como uma forma de a sociedade ordenar-se e progredir,
rumo a um estágio avançado.
50
Marx também percebeu as contradições do avanço do capitalismo, e, de certa forma,
enxergou-o com otimismo inicial, porque acreditava que as contradições levariam à
superação desse sistema por meio de revoluções. Havia um vislumbramento dessas
transformações no século XIX na racionalização do mundo, como uma forma de a
humanidade emancipar-se.
Mas o século XX não correspondeu a essas expectativas. A divisão do trabalho, a
exploração dos trabalhadores e o domínio da técnica não levaram ao projeto de
emancipação da sociedade.
Após uma sucessão de derrotas nas reivindicações dos sindicatos dos trabalhadores,
dos partidos de esquerda, principalmente na Europa, ascensão dos partidos de massa,
como o nazismo e o fascismo, e uma série de guerras, como a Ia. e IIa. Guerras
Mundiais, as ciências humanas precisaram repensar todo esse cenário histórico para
gerar as possíveis análises e explicações diante dos fatos.
50
Comte, A., Os Pensadores. Ed. Abril.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
66
Esse mundo, resultante de diversas transformações e reivindicações, é marcado pelo
progresso científico, urbanização acelerada, divisão do trabalho, racionalização e
democratização.
O pensamento positivista acreditava que o desenvolvimento das sociedades estava
preso a uma linha evolutiva, ou seja, quando houvesse progresso haveria ordem, e
isso só seria possível quando a prática fosse subordinada à teoria.
Para Marx, a transformação de objetos em valor de uso cumpre o seu papel frente às
necessidades humanas tanto do ponto de vista econômico como pelo aspecto
psicossocial.
Em relação ao desenvolvimento do capitalismo, Marx tem uma visão crítica,
denunciando a miséria, a opressão, a exploração e o trabalho desumano nas fábricas, o
que contribuía para o acúmulo do capital e aumento da miséria.
Vale ressaltar que o desenvolvimento do progresso científico e da técnica constituirão
o princípio da negação dessa sociedade desumana, levando à organização de uma
sociedade em que os indivíduos seriam livres, auto-afirmando-se num trabalho
criador.
Em sua obra, aponta a exploração humana na sociedade capitalista apenas nas
relações de produção, restrito às fábricas. Porém, a opressão do trabalho não se
restringe apenas às fábricas, por realizarem trabalhos em série; ela é disseminada nos
diversos setores de trabalho da sociedade.
Com todo esse cenário de mudanças e transições históricas no decorrer do século XIX
e meados do culo XX, vide a opressão do trabalho, o aumento da miséria, as
revoluções, a ruptura dos laços sociais e a não-emancipação do homem seja por meio
do trabalho seja pelo conhecimento científico, caberia dizer que, hoje, eles são
acontecimentos do passado, ou do início do avanço do capitalismo. Mas a realidade
mostra-nos que a sociedade, em relação às formas de trabalho, não avançaram muito
ao que os homens tanto desejaram, isto é, um trabalho mais livre e criativo, com o
qual se obtivesse prazer e não a exploração da mão-de-obra.
A partir das idéias do pensamento histórico apresentadas em relação ao trabalho e à
evolução da sociedade capitalista, perguntaríamos: o que esses aspectos têm de
relevante ao se pensar o trabalho dos cortadores de cana na atualidade?
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
67
A intenção é mostrar que muitos segmentos de trabalho, bem como suas categorias,
o atingiram o estágio, tão almejado pela sociedade, de emancipação, transformação
da servidão em liberdade e em criatividade, atendendo todas as necessidades e desejos
dos seres humanos. Em algumas categorias o trabalho obedece sua concepção inicial
de um castigo àqueles que não cumprissem suas obrigações.
Mesmo com o passar dos tempos, a estrutura de trabalho no campo, especificamente
em relação à categoria dos cortadores de cana, continua baseado na servidão, em que
os trabalhadores se submetem a essa ordem por uma questão de sobrevivência, apesar
da evolução tecnológica investida em muitos setores, principalmente no que diz
respeito à industrialização da matéria-prima, no caso a cana-de-açúcar.
Seu trabalho transformou-se em mera mercadoria. Não tendo nenhum acesso ao
controle de sua produção e não reconhecendo seu trabalho dentro da macroestutura
que envolve todo o complexo da agroinstria canavieira, estão, portanto, excluídos
do processo de produção.
Enfim, ocorre uma ruptura entre o produto e o produtor: o trabalhador produz o que
o consome, consome o que não produz. Esse processo chama-se alienação e
implica em ser e não ser ao mesmo tempo. O homem é o que é pelo trabalho; o
trabalho é nosso modo de ser. Mas, ao mesmo tempo que nos realizamos por ele,
também nos perdemos quando deixamos de tê-lo no sentido de vislumbrar a
possibilidade de estarmos livres e donos do produto que fabricamos, participando e
conhecendo todos os seus mecanismos e não sujeitos apenas ao processo mecânico,
perdendo o acesso ao produto final.
As palavras de um cortador entrevistado na pesquisa define bem essa dimensão da
alienação do trabalho:
“Bom…, o serviço da gente, que a gente trabalha aqui no corte de
cana, acho que, se os homens do governo, sei lá, pegasse,
ponhasse na cabeça, poxa, vamos dar uma valorização, pros
cortadores de cana, porque o açúcar que eles fornecem hoje pelas
empresas é tudo nós que faz esse açúcar, açúcar, álcool, é somos nós,
somos nós que corta né, é dela que sai a mercadoria. Acho que se
eles ponhasse na cabeça, ajudasse a gente, a gente trabalharia assim,
um pouco mais animado, assim, se pagasse um pouco mais. Porque
pagar, não tão pagando...”.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
68
Não pretende-se aqui fazer uma historiografia sobre a cultura da cana-de-açúcar e a
força de trabalho rural, mesmo porque muitos estudos já foram desenvolvidos sobre
estas queses no Brasil. É necessário, entretanto, apresentar alguns aspectos
históricos para entendermos os conflitos, contradições, modernização, exploração da
o-de-obra e o surgimento de uma nova categoria de trabalhadores rurais, os
volantes, e a inserção da temática do crack em seu cotidiano.
A história da agroindústria canavieira é muito complexa, uma vez que suas
implicações sociais, ecomicas, geográficas e antropológicas, desde o Brasil
colonial, atraíram o olhar de rios estudiosos, que aprofundaram suas pesquisas nos
diversos segmentos desse setor econômico que emprega centenas de milhares de
trabalhadores rurais baseado num sistema arcaico até os dias de hoje, e, por outro
lado, investe em pesquisas e inovações tecnológicas envolvidas no rendimento da
produção e em maquinarias sofisticadas.
Esse importante setor da economia brasileira sempre esteve presente no
desenvolvimento histórico do Brasil, influenciando todos os setores da sociedade, pois
marcou o processo de formação e colonização do país, iniciado no culo XVI. A
cana-de-açúcar tem sua origem no oriente e foi trazida pelos portugueses,
expandindo-se pelas ilhas tropicais do Atlântico a partir do século XV. Nesse período,
os portugueses, interessados em inserir essa nova cultura agrícola no mercado
europeu, apropriaram-se de terras indígenas, destruindo matas para a construção de
engenhos de açúcar. Assim sendo, começaram a escravizar índios e africanos para a
plantação e colheita da cana-de-açúcar, ficando o sistema de moagem nos engenhos
movidos a carro de bois. A partir do início do século XIX, começam a surgir os
primeiros engenhos a vapor, predominantes no litoral e zona da mata do Estado de
Pernambuco até o Recôncavo da Baía de Todos os Santos, em fuão da facilidade de
escoamento do produto para os portos.
51
No final do século XIX, começam a surgir as dificuldades em exportar o úcar
devido ao alto custo de produção, bem como a má-qualidade do produto (açúcar não
refinado e de coloração marrom), levando o governo imperial a financiar a
51
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 19.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
69
implantação de engenhos centrais por meio de concessão de exploração a empresas
nacionais e estrangeiras. Esses engenhos eram mais modernos, e possuíam
equipamentos mais adequados à fabricação do açúcar branco.
52
Vale dizer que o primeiro engenho central foi construído em Quissamã (RJ) e
começou a funcionar em 1877
53
. Hoje, foi transformado em usina, localizando-se no
município de Muriaé (RJ).
Após a instalação do primeiro engenho central, vários outros surgiram até 1889. Com
a República, ocorre a transformação desses engenhos em modernas fábricas,
denominadas usinas. A diferença entre engenho e usina é que o primeiro não podia
possuir terras para cultivar a cana, sendo obrigado a comprar de fornecedores, e não
podia utilizar mão-de-obra escrava. Isso porque os engenhos eram considerados
atividades industriais e não agrícolas. A usina já podia possuir terras plantadas,
moendo, desse modo, sua ppria cana. Esse foi o fator que fez com que os engenhos
fossem desaparecendo frente às dificuldades de competir com as usinas, e o capital
estrangeiro investido nos engenhos começou a desviar para atividades mais rentosas,
como o transporte e os comerciantes de importação e exportação, chamados
comissários do açúcar”, etc.
54
Assim surgia o período usineiro, com numerosas fábricas de pequeno e médio porte
dotadas de estradas de ferro particulares e destilarias de álcool. Os engenhos, com
esse avanço, começam a desaparecer, permanecendo apenas alguns para abastecer o
mercado regional. Inicia-se um novo período na história econômica e social do Brasil.
Esse estudo, denominado ciclo do açúcar e da civilização”, que deu origem à
produção comercial em grande escala, está baseado, segundo Gilberto Freyre, no
latifúndio, na monocultura e na escravidão.”
55
Essa transição dos engenhos centrais para as usinas e destilarias é explicada pelo fato
de os engenhos pertencerem ao período manufatureiro e as usinas, ao período
industrial capitalista.
56
Nota-se que o período usineiro, desde o governo imperial, sempre recebeu garantias,
incentivos fiscais e empréstimos bancários a juros muito baixos. A partir da década de
52
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 19.
53
Marchiori, M. E. P. et al., Quissamã, 1987, p. 19; Viana, S. B. R., O Engenho Central de Quissamã, 1981.
54
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 20.
55
Freyre, G. ,Casa Grande e Senzala. Ed. Record,
56
Santiago, T. A., Manufatura e o Engenho de Açúcar no Brasil Colonial. Ed. Vozes,1980, pg. 195-205.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
70
70, intensificam-se os investimentos em tecnologia para acelerar a produção de açúcar
e expandir a produção de álcool.
Especificamente no estado de São Paulo, onde concentra-se esse estudo, no período
colonial, foram implantados 3 engenhos centrais: Piracicaba (1882), Lorena (1884) e
Porto Feliz (1887). A produção de açúcar nesse período era tão grande que o porto de
Santos chegou a ser chamado, no início do século XIX, de porto do açúcar, por
Araújo Filho.
57
Isso provocou o crescimento da população paulista, com a imigração de áreas
distantes do país e também de outros países, voltada para a força de trabalho,
provocando um crescimento da acumulação capitalista.
58
A cana ganhou expressão em São Paulo inicialmente no Alto do Vale do Tietê áreas
próximas a Campinas, Capivari, Sorocaba e Porto Feliz.
A partir da década de 40, inicia-se a expansão da cultura da cana em São Paulo,
59
tornando-se, na década seguinte, o estado de maior produção de açúcar do país, a
ponto de desaparecer a importação de máquinas para as usinas no processamento do
açúcar e álcool vindas da Europa e EUA, as quais passaram a ser fabricadas em São
Paulo pelos grupos Dedini (Piracicaba)
60
e Zanini (Sertãozinho), que atenderam, na
metalurgia, o mercado de São Paulo e outros estados do Brasil. O grupo Dedini tinha
ligações estreitas com o grupo Ometto, dono de mais de 20 usinas em São Paulo.
61
As relações entre trabalhador rural e o processo de apropriação da terra também
existem desde o período de colonização do Brasil, em que inicialmente o trabalho
rural era escravo, do cultivo da cana até sua transformação em açúcar e aguardente. A
doutrina que esses trabalhadores em condição escrava receberam era baseada na
submissão aos seus patrões, garantida pelo castigo e evangelização. Além da violenta
condição em que essas pessoas encontravam-se, sem liberdade e obrigadas a trabalhar,
caso contrário eram espancadas, viam-se obrigadas a abdicar de sua cultura e religião.
57
Araújo Filho, J. R., Santos , O Porto do Café, 1969, pg. 50-55.
58
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 56.
59
Idem, pg. 59.
60
Negri, B., Um Estudo de Caso da Indústria Nacional de Equipamentos. Dissertação de Mestrado. UNICAMP, 1977.
61
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 60.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
71
Gilberto Freyre esquematizou a relação de submissão da estrutura de uma sociedade
patriarcal formada nesses moldes de acordo com o desenho abaixo:
62
Casa Grande
Capela
Engenho
Após a abolição da escravatura, passou-se a usar a mão-de-obra livre junto com a
escrava.
63
Os proprietários de terras, produtores tradicionais de cana, ofereciam um
tio para lavoura de subsistência e usavam mão-de-obra familiar na plantação e
industrialização da cana-de-açúcar, não havendo remuneração em dinheiro nem
garantias trabalhistas. Esse sistema generalizou-se em todos os engenhos e, para os
grandes produtores, era o meio mais prático e econômico de livrar-se de suas
obrigações. Outro sistema utilizado e também generalizado foi o de sujeição, em que
o trabalhador recebia um pedaço de terra do proprietário e tinha de trabalhar 4 dias
com remuneração inferior à estipulada pelo mercado, e, nas épocas de safra, todos da
família eram recrutados a trabalhar, sendo pagos por tarefa realizada, para produzirem
mais.
64
Com a implantação das usinas e maior demanda de produção de cana, os canaviais
estenderam-se e muitos moradores foram desalojados de seus tios para as cidades e
vilas da região. Passaram a ser contratados por empreiteiros, que comandavam e
deslocavam os grupos até o canavial. Inicia-se então o processo de proletarização.
65
“Com a expansão dos canaviais e a adoção mais acentuada das
relações capitalistas de produção, o trabalhador se viu num dilema:
ou se proletarizar, tornando-se um trabalhador rural comum,
parceiro ou arrendatário, ou, finalmente, para uma pequena camada,
sitiante, podendo vir a ser fornecedor.
66
62
Freyre, G. , Casa Grande e Senzala. Ed. Record, 2000.
63
Após a abolição muitos não foram libertos, continuando na condição de escravos.
64
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 202.
65
Andrade Neto, J. C. X. de, O Estado e a Agroindústria Canavieira no Nordeste Orienta. Tese de Doutorado. USP, 1990.
66
Ianni, O., A Classe Operária vai ao Campo. Cadernos CEBRAP, Ed. Brasiliense,1976.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
72
Nesse processo de proletarização, pequenas lavouras vão desaparecendo das regiões
em que as terras eram melhores e mais acessíveis, formando, a partir dessa concepção,
grandes latifúndios de cana.
67
À medida que a renda aumenta, dispensa-se a mão-de-obra, estimulando a
concentração da propriedade de terra e da renda.
É nesse cenário que surge a categoria de trabalhador volante, no início da década de
50, quando a agricultura começa a ter um crescimento significativo, e os reflexos
desse processo vão avançar a partir da década de 60, permanecendo até os dias atuais.
Em 1951, no governo Vargas, foi criada a Comissão Nacional de Política Agrária,
com o objetivo de estudar e propor ao Presidente formas de organizar e desenvolver a
agricultura. Dentre as prioridades, estavam a melhoria da condição da mão-de-obra
agrícola, com uma legislação que os protegesse, e o acesso à terra. Mas todas as
tentativas de aprovar a lei da reforma agrária foram derrubadas. Somente em 1954 é
que foi aprovado um projeto de lei dispondo a crião de um Serviço Social Rural,
financiado pelos próprios trabalhadores por meio da cobrança de uma taxa. O objetivo
desse serviço era melhorar as condições de vida dos trabalhadores e de seus
familiares, em relação à saúde, moradia, educação, treinamentos, associações, etc.
68
Mas a questão é que esse serviço serviu apenas de pretexto para impedir a
regulamentação das leis trabalhistas em relação ao trabalho rural.
O que foi impossível de se realizar na década de 50 surge em 1963, no governo João
Goulart, com o Estatuto do Trabalhador Rural (lei 4.214 02/03/63), o qual garantia
ao trabalhador rural os mesmos direitos do trabalhador urbano. Os empregadores, para
fugir dessa determinação, começam a usar o serviço do turmeiroou gatopara se
isentar de suas responsabilidades.
69
O turmeiroencarregava-se de contratar o-de-obra por conta própria, afastando a
possibilidade de responsabilizar os verdadeiros empregadores de seus deveres. Isso
porque, até 1963, a contratação era informal; com o Estatuto, deveria ser por escrito, o
que obrigava os empregadores a arcar com contrato em carteira de trabalho,
garantindo todos os direitos de seus trabalhadores, como FGTS, 13 salário, férias, etc.
67
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 205.
68
Baptistella, C. da S. L., Francisco, V. L. dos S., Vicente, M. C. M., O Trabalho Volante: uma análise do emprego num período
de transição no campo paulista – Informações Econômicas, 2000.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
73
A criação do ETR contribuiu de forma negativa nas relações de trabalho, pois muitos
trabalhadores o foram enquadrados nessa regulamentação e aqueles que tinham
trabalho permanente foram demitidos para posteriormente serem contratados como
volantes.
O relato de um cortador de cana, migrante do estado de Alagoas, exemplifica essa
situação na contratação dos trabalhadores pelogato”, que perdura até os dias de hoje:
Sr. Perseu: Era registrado, tudo certinho, tudo tranqüilo. Agora aqui
eu estranhei por que a gente veio pra puxá pra ... pela usina né.
Quando chegô aqui a gente foi vendido pro gato, que nem um animal.
Arlete: Vocês foram vendidos, vendidos pro gato?
Sr. Perseu: Foi. É eu considero vendido, porque chega aqui, haviam,
a gente veio em 40, ficô 28, 24 aqui não foi?
Arlete: Vinte e quatro alagoanos.
Sr. Perseu: Foi. Vinte e quatro alagoanos que ficô. Ficô 6 pro
bando de Rios Dourados, pro outro gato, quer dizer, outro gato
ficou com os seis né? Aí adespois, com o decorrer do tempo, conversa
mais conversa eu soube que o cara que transportô a gente de lá pra
cá, veio iludindo, dizendo que era pra registrar pela usina, chega
aqui, o pessoal, vende por cabeça, cem reais cada um, deu pra eu
entender, porque se fosse, registrar pela usina mesmo, a gente tava
tudo num canto, registrado pela usina, a gente tava tudo num canto.
O pessoal que veio estava tudo num canto. (os 40 alagoanos).
Arlete: Claro.
Sr. Perseu: Mas dividiu, um pra um canto, outro pra outro, outro
pra outro, quer dizer que, um gato falou assim, eu preciso de dez,
outro falou eu preciso de cinco né, outro, eu quero 24, (risos).
Dessa forma, o contingente de mão-de-obra informal começa a crescer a partir de
meados dos anos 60, em função da intensificação da cultura da cana-de-açúcar, que
tem como base o crescimento do Programa Pró-Álcool, que atraiu a atenção do
governo e de estudiosos.
69
Baptistella, C. da S. L., Francisco, V. L. dos S., Vicente, M. C. M., O Trabalho Volante: uma análise do emprego num período
de transição no campo paulista – Informações Econômicas, 2000.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
74
Com esse processo de expulsão das terras, surge nos anos 60 as ligas camponesas,
formadas pelo Partido Comunista Brasileiro. Esse período da história brasileira é
marcado por muita violência, com lutas e mortes, em nome da reforma agrária e da
regularização das relações de trabalho e melhoria de salários. Para conter a grave
situação de conflito entre donos de latifúndio e pequenos produtores e trabalhadores
rurais expulsos pelo avanço do capital, o Estado achava que promulgando o ETR os
ânimos nesse conflito seriam amenizados. Entretanto, alguns governadores rebelaram-
se contra o presente Estatuto, pois estavam comprometidos com os donos de
latifúndio.
“Nos anos 60 e 70, auge da ditadura, procedeu-se em todas as áreas
canavieiras do país, um intenso processo de desruralização dos
trabalhadores do campo, e os grandes proprietários acabam
promovendo uma política de expulsão de pequenos proprietários e
trabalhadores de suas terras, forçando-os a morar nas periferias das
cidades e vilas próximas às suas propriedades.”
70
A rápida aceleração industrial no início do século XX, com a constituição de grandes
centros urbanos e periferias das cidades e o fluxo migratório voltado para o
desenvolvimento industrial e agrícola, gerou o empobrecimento da classe
trabalhadora, expropriação e expulsão dos camponeses de suas terras e subordinação
do trabalho em prol do capital.
70
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 210 e 211.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
75
Grande parte das terras era de sitiantes, que se viram obrigados a arrendá-las para as
usinas diante das grandes dificuldades de adquirir crédito bancário, baixa
produtividade nas colheitas, condições climáticas que, muitas vezes, prejudicavam as
plantações e o despreparo administrativo dos pequenos proprietários rurais, resultado
do processo histórico da agricultura brasileira, baseada em protecionismo do governo
e grande poder político dos produtores. Essa realidade é alterada com as
transformações no processo produtivo e avanço do capital ficando sujeitos às
fragilidades dessas mudanças. Assim, o sitiante cede suas terras e vai para a cidade
em busca de subempregos, ou acaba se tornando um empregado assalariado da própria
usina.
A transformação do agricultor em trabalhador assalariado é dada pela conjuntura
econômica, e essa mudança afeta radicalmente o cotidiano desses trabalhadores,
alterando os valores culturais, necessidades, padrões de comportamento, condições e
projetos de vida, modos de percepção de si próprio e do mundo.
Não podemos resumir o homem apenas como um organismo que interage com seu
meio sico. Ele transcende a esfera biológica, pois é no processo histórico que
adquire a verdadeira condição humana, interagindo na sociedade.
71
Os trabalhadores volantes possuem uma característica peculiar na agricultura: o
trabalho descontínuo e sazonal. Isso significa que são contratados em alguns meses do
ano para plantação ou colheita de determinadas culturas. Na cultura da cana-de-
açúcar, é muito freqüente a contratação de mão-de-obra volante; no início do primeiro
semestre, o plantio, e no segundo, a colheita. Nos outros meses esses trabalhadores
migram para conseguir trabalho em outras culturas ou fazem bicos nas periferias
das cidades.
O trabalhador volante possui uma caracterização singular:
a caracterização singular do trabalhador volante é que, apesar de
ser um assalariado rural, tem seu custo de reprodução ao nível do
setor urbano.”
72
.
71
Sass, O., Fragmentos Sobre a Vida na Roça – Estudo Psicossocial com Pequenos Proprietários Rurais. Dissertação de
Mestrado, PUC/SP, 1982.
72
Silva, J. G., O “bóia-fria” entre aspas e com os pingos nos is in A Mão-de-Obra Volante na Agricultura. Ed. Polis,1982.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
76
Essa definição de trabalhador volante deve-se ao processo de proletarização, que deu
origem a essa modalidade de trabalhador rural. Ele interioriza e personifica a união
entre o trabalhador rural e o urbano, fazendo com que reproduza sua mão-de-obra
entre o setor agcola e industrial.
vários tipos de trabalhadores volantes no estado de o Paulo, com três formas
diferentes:
1. bóia-fria permanente: trabalhador volante, durante o ano
inteiro, cuja renda depende exclusivamente do trabalho
assalariado. Esse trabalhador é em verdade efetivo da unidade
agrícola, estando inclusive protegido pelos direitos
trabalhistas;
2. bóia-fria eventual ou esporádico: empregado apenas na época
da safra, presta serviço a diversos proprietários agrícolas em
períodos descontínuos, pelo que não se pode afirmar a
existência de qualquer vínculo empregatício;
3. bóia-fria temporário: alterna sazonalmente empregos rurais e
urbanos e permanece na zona rural somente por ocasião dos
picos agrícolas.”
73
Onde o emprego é melhor distribuído existe um número maior de trabalhadores bóias-
frias, chamados de turmas fixas ou trabalhador volante permanente. Esse tipo de
trabalhador tem sua ocupação apenas no meio rural e é assalariado, dependendo
exclusivamente dessa fonte de renda.
outras formas de venda da força de trabalho: trabalho assalariado por produção,
em períodos de grande produção agrícola, e assalariado por tempo de serviço, durante
a entressafra.
O trabalho em muitas usinas é organizado de acordo com a rotina do plantio e colheita
da cana-de-açúcar, divididos durante o ano entre a safra e a entressafra.
73
Silva, J. G., O “bóia-fria” entre aspas e com os pingos nos is in A Mão-de-Obra Volante na Agricultura. Ed. Polis,1982.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
77
Apesar de a cultura da cana estar crescendo e suas áreas de plantio aumentando, o
número de trabalhadores vem diminuindo, em virtude do investimento na
mecanização. Por outro lado, investe-se na seleção de trabalhadores volantes, de
acordo com a produção individual.
Essa seleção é feita em função do número de toneladas de cana que um trabalhador
corta por dia. Um trabalhador do gênero masculino, entre 18 e 30 anos, sem nenhum
problema sico, corta, por dia, mais de 10 toneladas de cana. Esse tipo de trabalhador
interessa muito à usina.
Os trabalhadores volantes também vivem um processo de proletarização advindo da
penetração do capitalismo no campo. A separação entre produtor, propriedade e meios
de produção gera um processo de transformações que o ficam apenas no âmbito
econômico, mas modificam valores culturais, sociais e poticos, afetando o modo de
compreensão de suas vidas. Rompida a relação com a terra, esses trabalhadores
passam de produtores a consumidores, e suas necessidades básicas tornam-se regidas
pelos valores desenvolvidos na vida urbana. Por fim, esses volantes não conseguem
perceber que miséria, sofrimento e exploração não o condições dadas e sim
resultado de todo um processo histórico que permeia a relação assalariada.
A lógica que prevalece na estrutura do trabalho volante é desvinculada do local e da
família. Desenraizados da construção social pela própria lógica do trabalho, não
possuem lugar definido; portanto, não criam vínculos sociais. Caminham de acordo
com o trabalho. A única relação que permeia suas vidas é a relação com o trabalho. A
lógica do capital faz com que sejam espremidos e excluídos, construindo suas vidas
nas periferias das cidades e entrando na lógica de consumo das áreas urbanas. Com
isso, seus valores são descaracterizados e assumem outros aspectos não adquiridos
conforme sua origem.
O binômio campo–cidade levanta a hipótese de que a passagem de uma sociedade
agrária para uma sociedade urbana não se em função do desenvolvimento
tecnológico, e nem é a causa da urbanização acelerada que vem ocorrendo nas
comunidades rurais. Esse fato deve-se ao desenvolvimento do capital, que cria
mecanismos de separação e promove a dominação do campo pela cidade.
74
Os pequenos proprietários vivem a transição para um processo de proletarização, visto
que o capital articula formas de reproduzir-se no campo, corrompendo o sistema de
74
Sass, O., Fragmentos Sobre a Vida na Roça – Estudo Psicossocial com Pequenos Proprietários Rurais. Dissertação de
Mestrado, PUC/SP, 1982.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
78
economia familiar, transformando-os em simples mercadorias, baseado no excedente
da terra ou da produtividade.
Esse deslocamento do homem do campo para a cidade, que se a partir do período
pré-industrial para o industrial, acaba alterando os digos sociais e familiares. O que
era predominantemente rural passa a ser hegemonicamente urbano
75
. Entretanto,
apesar da migração ter conseqüências de rupturas na estrutura social, em razão da
inclusão de estruturas sociais mais complexas, não pode ser concebida como um
processo de desestruturação familiar, e sim uma nova organização nas relações
primárias.
76
Essa reorganização pode durar um longo período e adotar lógicas que não pertencem à
sua origem, havendo transformações no sentido do esquecimento, em razão da
estabelecida.
Os migrantes, quando estabelecidos na cidade, são obrigados a se integrar ao novo
mercado de trabalho, empregando-se nos serviços temporários que a cidade exige,
como consertos de encanamento de água, esgoto, eletricidade, pintura, etc.,
sobrevivendo do trabalho informal, assim como ocorre nas usinas e fornecedores.
Tanto no campo como na cidade esses trabalhadores estão sujeitos à força do poder
econômico, sem terra para exercer suas funções e sem a qualificação profissional
exigida no espaço urbano.
A crescente migração também repercutiu negativamente nas cidades, visto que estas
incharam sem nenhum planejamento urbano, o que contribuiu para a queda da
qualidade de vida e perda da garantia de seus empregos.
Esse novo sistema de relações de trabalho provocou grande impacto principalmente
nas cidades pequenas, que passaram a ter um crescimento anormal sem entrosamento
entre a população que migrou em busca de trabalho e a dos trabalhadores rurais do
local, em função de suas difereas de costumes, cultura, etc.
77
Os usineiros têm interesse na força de trabalho dos migrantes, porque estes dedicam-
se mais ao trabalho, não têm ligações locais nem acesso às entidades que os
representam. Os usineiros procuram segregá-los do contato de outros trabalhadores,
alojando-os em grandes gales comunitários em suas propriedades ou colocando-os
75
Lobo, E. C., Lia, A. S. M., Questão Habitacional e O Movimento Operário, in Barbosa, F. C., Mercado de Trabalho de
Migrantes Nordestinos: os empregados de edifício no Rio de Janeiro.
76
Durham, E. R., A Caminho da Cidade: Ed. Perspectiva, 1973.
77
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 212.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
79
em grupos nas casas da periferia das cidades.
78
Por outro lado, os trabalhadores locais
reagem aos migrantes pelo fato de estes não se integrarem à luta por melhores
condições de trabalho e de salário. Esses migrantes muitas vezes já possuem um
pedaço de terra em seu lugar de origem, que os trabalhadores locais não têm. Estes
possuem apenas a força de trabalho, mas não perdem a esperança de um dia
reconquistar o lugar perdido.
79
O ato de migrar à procura de trabalho, seja ele no campo ou na cidade, em virtude de
expulsão, pressupõe o abandono do espaço social de origem, o que gera sérias
implicações em relação à adaptação ao novo meio, inclusive de moradia.
O lugar (moradia) para essas populações não se limita a um teto que proteção e
conforto (espaço público e privado). Possui uma importância no aspecto psíquico,
uma vez que o lugar está associado ao desejo de transformação, subsistência e
sociabilidade. Por seu histórico de luta, conflito e expulsão das terras em que eram
donos de seu trabalho, temem ser expulsos da mesma forma como ocorreu em seu
lugar de origem. Desse modo, sujeitam-se a morar em lugares inadequados, muitas
vezes em troca de trabalho, recebendo por isso pagamentos bem inferiores,
submetendo-se à subordinão de regras de controle moral e disciplinar de seus
empregadores.
Enfim, os costumes e práticas usadas no campo, em fuão das necessidades
capitalistas, acabam reproduzindo-se na cidade, mas num sentido mais traumático,
pois o vislumbramento de retorno à terra, a seus mecanismos de trabalho e reprodução
social e cultural acaba distanciando-se cada vez mais do homem do campo.
Em relação à luta pelos direitos trabalhistas, rias greves ocorreram em diferentes
localidades rurais no país. No final da década de 70 (1979), surge a primeira greve
organizada dentro da legalidade, em Pernambuco, congregando toda a classe
trabalhadora dos canaviais. A partir de então, iniciam-se, na década seguinte, várias
greves com o objetivo de humanizar as relações de trabalho e diminuir as medidas
prejudiciais aos seus interesses.
80
Muitas dessas greves foram realizadas em diversos municípios do Nordeste e nos
estados de Minas Gerais e São Paulo; entretanto, a intervenção governamental sempre
reagiu às greves com violência.
78
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 213.
79
Idem, pg. 213.
80
Idem, pg. 214 e 215.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
80
Um exemplo disso ocorreu no município de Guariba/SP em 1984, onde os cortadores
de cana do município insatisfeitos com a exploração que estavam sofrendo com
baixos salários e aumento do custo de vida, viram-se impossibilitados de sobreviver e
manter suas famílias. Dessa forma, organizaram-se e decidiram entrar em greve. Esta
greve ficou conhecida em todos os municípios do estado de São Paulo e rios
estados do Brasil em função da grande violência por parte das autoridades blicas
(Prefeitura, Polícia Militar e Governo do Estado) e pela conquista de suas
reivindicações: cortar 5 ruas de cana ao invés de 7 e aumento no preço da tonelada da
cana cortada. Mas o sucesso dessa greve teve um sabor amargo, pois muitas pessoas
apanharam, entre homens e mulheres, velhos e crianças, cortadores de cana ou o,
familiares e vizinhos. Outros literalmente foram espancados por policiais militares,
além do assassinato de um cortador de cana, Amaral Vaz Melone conforme as
imagens de arquivo da TV Manchete, TV Cultura e CEDIC.
Apesar das greves e dos acordos, a situação na área canavieira ainda é tensa. O
trabalho escravo e semi-escravo ainda é utilizado, conforme denúncias da Pastoral da
Terra
81
e comunicação apresentada à APIPSA
82
em 92.
83
No estado de Mato Grosso é muito freqüente o uso de mão-de-obra indígena (homens,
mulheres e crianças). Recebem remuneração inferior à legalizada
84
com a conivência
das organizações que os representam.
Trabalhadores nordestinos e dos estados do Pará, Maranhão, Mato Grosso e Minas
Gerais ainda sofrem, sendo retidos a força nos canaviais. Quando esses trabalhadores
percebem a exploração nos baixos salários e descontos de aluguel, alimentos, multas
por infração, manifestam a vontade de voltar ao lugar de origem. Porém, o retorno é
dificultado pelos empresários, que colocam milícias armadas para impedi-los.
8586
A fiscalização dos trabalhadores no canavial é muito rigorosa. Eles são punidos com
demissão, em casos mais graves, e com o gancho”, suspensão por 3 ou 4 dias de
trabalho.
87
81
Comissão Pastoral da Terra. Conflitos no Campo, pg. 78.
82
Barrozo, J. C., O trabalho escravo nas agroindústrias de Mato Grosso in Encontro Nacional da APIPSA, 1992.
83
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 216.
84
Proposta, n. 55, p. 10 e 11. Rio de Janeiro, FASE, 1992.
85
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 217.
86
Cito outros estados, principalmente os da região Nordeste, devido ao grande número de migrantes que se dirigem ao estado de
São Paulo, a fim de trabalhar na colheita da cana, representando, no total, a grande maioria de trabalhadores dedicados a essa
cultura, além de muitos terem fixado moradia nas cidades do interior do estado.
87
Barban, V. A.,
O Trabalhador Rural na Agroindústria Canavieira Empresarial no Estado de SP., Dissertação de Mestrado –
USP, pg. 47.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
81
Tendo em vista as questões levantadas, acredito ser importante descrever o dia de
trabalho no corte de cana, para termos a dimensão da realidade diária desses
trabalhadores migrantes das diversas regiões do Brasil, como também dos locais em
que hoje moram nas periferias da cidade.
O dia de trabalho no corte de cana inicia-se entre 4h30 e 5h00. Nesse horário, os
trabalhadores preparam seu almoço, que, na maioria das vezes, é composto de arroz,
feijão, alguma verdura e ovo. Também levam, às vezes, uma garrafa térmica com café
e um garrafão de água.
Entre 5h30 e 6h00, o caminhão ou ônibus passa em um local determinado para
apanhá-los em direção ao trabalho.
Comem uma parte da comida por volta de 9h30, e, a partir das 11h00, comem o
restante e tomam ca.
Trabalham até as 16h30, aproximadamente. Meia hora depois, o transporte chega para
levá-los ao local determinado para todos retornarem às suas casas.
Muitos moram longe do local de trabalho, chegando a uma distância de até 50 km dos
campos de corte da cana-de-açúcar.
Esses trabalhadores, em sua maioria, colhem uma média de 12 toneladas de cana/dia,
entre homens e mulheres.
O trabalho na colheita da cana-de-açúcar é realizado de segunda a sábado, durante 7
meses no ano (maio a novembro), em função da produção nas usinas de açúcar e
álcool.
A maioria desses trabalhadores não são registrados; portanto, o possuem assistência
dica e social.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
82
Capítulo II: Modernização e Pobreza
“Aí a gente se depara pelo meio desse mundo sofrendo,
tem viagem que a gente se bem, ganha bem, é bem
recebido onde chega, claro que não é que a gente não
tamo sendo bem recebido. que tem um detalhe que
não agrada, que a gente aqui tamo...sofrendo.”
“Fomos vendido que nem escravo.”
Sr. Perseu: cortador de cana que migrou de Alagoas em busca de
uma vida e um futuro melhor.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
83
A foto acima mostra o processo de mecanização nos canaviais no estado de o
Paulo. A colheitadeira retira a cana do solo e joga no caminhão ao lado. Neste
canavial, não mais cortadores de cana, apenas as máquinas em seu lugar. Para
sobreviver, esses trabalhadores são obrigados a migrar para outras regiões do estado
onde a colheita ainda é manual.
A grande maioria não recebeu qualificação profissional, sendo excluídos do novo
sistema de trabalho.
Foto: Pirassununga /SP, agosto de 2002. Arlete Fonseca de Andrade
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
84
O processo de modernização na lavoura canavieira concentra em si um conjunto
constituído por vários decretos, leis, programas, estatutos, investimentos tecnológicos
em maquinarias e pesquisas científicas sobre insumos e adubos químicos. Esse
processo teve como principal aliado o Estado, por meio de sucessivas intervenções
com o objetivo de intensificar a produção canavieira.
Historicamente, os investimentos governamentais neste setor econômico tiveram
início no período colonial, desde a instalação dos engenhos centrais e sua
modernização até a transformação destes em usinas.
O interesse do Estado em investir na lavoura canavieira tem como fundamentos a
geração de lucros rentáveis tanto para a União como para os donos dos grandes
latifúndios, a competição no mercado internacional por meio da exportação dos
produtos industrializados como o açúcar e álcool e o controle das políticas aplicadas
aos grupos de usineiros.
Na verdade, o Estado sempre desenvolveu ações voltadas ao fomento da produção de
açúcar e álcool. Esse íntimo relacionamento entre o Estado e o que viria a ser o
Complexo Agro-industrial (CAI) da cana-de-açúcar pode ser verificado desde o
período colonial.
O objetivo deste capítulo é fazer um apanhado histórico do século XX, a partir da
década de 30, salientando pontos importantes e esclarecendo alguns decretos e leis
que justificam porque esse setor econômico é o mais importante do país.
Descrever e interpretar todos seus decretos, leis e estatutos seria uma tarefa
desnecessária, pois a bibliografia que trata desse assunto é muito rica e correríamos o
risco de nos afastar do objetivo central desta pesquisa, transformando-a em mais uma
descrição teórica sobre a modernização da agroindústria canavieira. Desse modo,
pretende-se trabalhar alguns pontos importantes e necessários para entender as
complexidades que envolvem esse setor da economia brasileira.
O capítulo anterior abordou o processo histórico da agroindústria canavieira, que tem
suas raízes na instalação dos engenhos centrais, representando o início da
industrialização.
O surgimento das usinas no final do século XIX revolucionou o modo de produção,
comparado aos antigos engenhos de açúcar. Essa passagem dos engenhos para as
usinas expressa a transição do período manufatureiro para a grande indústria.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
85
Um dos fatores importantes na passagem para a etapa da modernização foi o
desenvolvimento tecnológico aplicado à construção de máquinas, deixando de lado o
trabalho humano e artesanal na fabricação de produtos como o açúcar e o álcool.
Nessa etapa, as habilidades dos trabalhadores acabaram ficando num vel secundário,
em conseqüência da ciência, tecnologia e trabalho em massa apropriados como força
produtiva.
A esse respeito Marx diz:
“Enquanto sistema organizado de máquinas de trabalho que
recebem seu movimento de um autômato central, por meio da
maquinaria de transição, a indústria maquinizada reveste sua
figura mais desenvolvida. A máquina individual é substituída por
um monstro mecânico, cujo corpo enche fábricas inteiras e cuja
força demoníaca, oculta a princípio pelo movimento quase
solenemente compassado de seus membros gigantescos, irrompe
na dança loucamente fabril e vertiginosa de seus inúmeros órgãos
de trabalho.”
88
A modernização da agricultura brasileira é um fenômeno que iniciou-se a partir do
pós-guerra, quando começou-se a utilizar equipamentos mecânicos e produtos da
indústria química. Mas é nos anos 60 que ocorre um grande salto desse setor
econômico no país, podendo-se falar em uma industrialização da agricultura.”
89
A sustentação do processo de modernização e decorrente industrialização dos
produtos in natura foram baseadas no Estado, validadas pelas poticas de
financiamento a juros subsidiados e intensificadas com a criação do Sistema Nacional
de Crédito Rural (1967).
88
Marx, K. , O Capital. Crítica da Economia Política t1. Ed. Civilização Brasileira, pg. 464.
89
Ramos, P., Agroindústria Canavieira e Propriedade Fundiária no Brasil. Ed. Hucitec, 1999.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
86
A produção no setor industrial canavieiro caracterizou-se pelos elevados
investimentos em capital fixo. Iamamoto afirma:
“Este é um ramo de produção que, em função de suas
particularidades industriais e agrícolas, requer elevada
disponibilidade de capitais: capitais fixos imobilizados em máquinas
e equipamentos, capital circulante para acionar e renovar o processo
produtivo, além de capital alocados na compra de terras,
transfigurados em renda capitalizada.”
90
As usinas representam, na história da agroinstria canavieira, uma etapa antecipada
da industrialização da agricultura.
As palavras de Otávio Ianni refletem bem essa questão:
“A usina é uma fábrica fora do lugar, da cidade, no campo.
Parece inserida no processo de reprodução do capital agrário. Na
usina, o capital agrário e industrial aparecem conjugados,
subsumidos um ao outro. De longe, vista no campo, a usina parece
engolida pelo canavial; a fábrica pela planta; a indústria pela
agricultura. Mas o que ocorre é o inverso, reverso. Na
agroindústria canavieira, o capital industrial instalado no campo
confere ao capital agrário as suas cores e matizes. Na usina, a
cana-de-açúcar é industrializada, transformada em açúcares e
álcoois, seguindo as exigências e a lógica da produção industrial.
comandam os processos físicos e químicos, mas sobressai a
máquina e o andamento maquinizado. Na usina, a força de
trabalho e a divisão social do trabalho organizam-se
produtivamente, segundo os movimentos e os andamentos do
capital industrial. Pouco a pouco as exigências da usina se
estabelecem e se impõem nos canaviais, sobre os fazendeiros, os
plantadores de cana e os operários rurais. É verdade que a cana-
90
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 114.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
87
de-açúcar se faz segundo o andamento da natureza, nas suas
estações. Mas esse andamento pode acelerar-se algum pouco e
aperfeiçoar-se, segundo determinações provenientes da usina. É
nesse movimento que se aplicam e propagam o fertilizante, o
defensivo, o trator, a queima das folhas, a intensidade do corte, a
velocidade do transporte, a intensificação da força de trabalho. Ao
desenvolver-se no campo, a usina incute no verde dos canaviais
uma vibração e uma aspereza que nada tem a ver com a doçura da
cana-de-açúcar.”
91
Esse trecho escrito por Ianni sobre as usinas de cana-de-açúcar e álcool exemplificam
bem as transformações e contradições existentes nesse setor econômico. Para que o
açúcar chegue à mesa dos consumidores, com a finalidade de adoçar ou transformar
sabores amargos em algo prazeroso, ou até o álcool, na locomoção das pessoas em
seus automóveis, exige-se um dissabor daqueles que participam desse processo,
explorador da força de trabalho em nome do capital industrial e fundamentado na
propriedade fundiária, pois:
“As relações de propriedade articulam-se com as relações de
trabalho como meio de subordinar o trabalho. As diversas formas
de organização do trabalho e de participação em seus frutos
condicionadas pela distribuição dos meios de produção,
expressam formas diferentes de relação com o usineiro, capitalista
e proprietário territorial, articulando sujeitos sociais distintos.”
92
De fato, a propriedade fundiária tem ligações históricas e estreitas com o regime
capitalista de produção. Entretanto, o capital cria e recria formas históricas específicas
de propriedade que melhor lhe conm, baseado na exploração capitalista,
subordinando a agricultura ao capital.
91
in Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 116.
92
Idem, pg. 116.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
88
Essa breve introdução sobre a passagem para uma etapa moderna de propriedade da
terra contribui para refletir sobre as relações sociais que formam historicamente as
complexas relações entre capital industrial e renda capitalizada
93
no setor canavieiro.
A agroindústria canavieira de São Paulo tem ligações com as mudanças realizadas
tanto na economia paulista como na nacional, e, também, na expansão e crise do café.
Este epidio tem um papel fundamental no desenvolvimento de um novo capital
financeiro e comercial acumulado e desviado para a produção e comercialização do
açúcar.
“Os capitais acumulados a partir do café representaram uma
das fontes da formação da burguesia industrial do açúcar.”
94
A partir da década de 30, a intervenção do Estado tem papel decisivo no
desenvolvimento da agroindústria canavieira, criando órgãos como o IAA (Instituto do
Açúcar e Álcool, Decreto n. 22.789 de 01/06/33).
“A partir desse momento a ação do Estado foi-se intensificando,
ao ponto de chegar a abranger inteiramente o setor ucareiro. A
intervenção se faz presente desde a produção da matéria-prima
(regulando o corte, transporte, pesagem e beneficiamento) até a
fabricação, distribuição, consumo e exportação do produto
acabado, tanto no mercado nacional quanto internacional.
Disciplina as relações entre fornecedores e usineiros e destes com
seus lavradores referente ao modo, ao tempo e à forma de
pagamento das canas, bem como a solução dos litígios
decorrentes. Estabelece a política de equilíbrio entre a produção e
consumo, com vistas a garantir preços estáveis, encaminhando os
excessos para o mercado exterior. Cuida do financiamento das
safras a usineiros e fornecedores. Determina quotas mensais de
comercialização e estabelece normas para a assistência social aos
93
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 119.
94
Idem, pg. 121.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
89
trabalhadores da agroindústria açucareira (através de
Cooperativas, Associações e Sindicatos) estipulando as
contribuições para o custeio dessas operações. Institui órgãos
para julgar as infrações ocorridas. Dentro desta linha
intervencionista, o preço da cana e o do açúcar, as quotas dos
fornecedores, como das usinas do país ficam inteiramente sob o
controle do Estado, através da política de contingenciamento.”
95
A primeira iniciativa governamental foi estabelecer estoques reguladores, garantindo
os preços para os produtores. Outra medida importante foi a industrialização do álcool
com finalidade de combustível para os automóveis, substituindo a gasolina importada.
Essa medidas foram colocadas em prática a partir da criação do IAA, órgão que
dirigia, controlava e fomentava a produção do açúcar e álcool anidro em todo o país.
A partir de sua criação e medidas poticas, estimulava-se a implantação de destilarias
de álcool com incentivos fiscais e tributários.
Em 1939, o Estado cria uma política de limitação da produção em todo o país. Essa
política visava modernizar o setor industrial, reduzindo a concorrência e estimulando
a produção do álcool. Os efeitos negativos que poderiam surgir com as diversas
instalações de destilarias particulares e centrais foram neutralizados, e estas, mantidas
pelo IAA, que aproveitava seus excedentes de produção.
O fortalecimento da agroindústria paulista tem como ponto central o resultado
revertido da potica implementada pelo IAA de preservar a produção nordestina, pois,
de acordo com Ramos,
96
as medidas estatais para proteger a economia canavieira
nordestina incutiram na mentalidade dos empresários a iia de que nunca iriam
quebrar e, conseqüentemente, não precisavam se preocupar em produzir com
melhor eficiência. Assim, ocorrem baixos níveis de produtividade em relação aos
padrões internacionais exigidos.
Com a queda na produção das usinas e destilarias do Nordeste e o surto de
industrialização canavieira paulista, colocam-se à disposão dos usineiros
financiamentos mais acessíveis, equipamentos e assistência técnica.
95
Queda, O. A intervenção do Estado na agroindústria açúcareira paulista. Piracicaba, 1972. Tese de Doutorado ESALQ/USP.
In Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 121 e 122
.
96
Ramos, P. Agroindústria Canavieira e Propriedade Fundiária no Brasil. Ed. Hucitec, 1999, pg. 142 e 143.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
90
Com a IIa Guerra Mundial, os preços dos produtos de exportação sofrem quedas, o
que estimula a substituição do petróleo, em função da sua escassez, valorizando o
parque alcooleiro. O comércio de cabotagem, meio pelo qual se fazia o intercâmbio
de mercadorias nas diversas regiões do país, também é afetado, gerando uma
superprodução na região Nordeste e a falta de abastecimento na região Centro-Sul,
esta dependente daquela. Desse modo, o eixo da agroindústria canavieira transfere-se
da região Nordeste para a Centro-Sul.
Diante dessa situação, os usineiros são favorecidos no governo Dutra pelo decreto n.
9.827, de 1946, que consistia numa revisão das quotas de produção. O Decreto foi
resultado da pressão dos usineiros paulistas para que o governo reduzisse os controles
e ampliasse os veis de produção. Outra iniciativa dentro dessa potica refere-se ao
Estatuto da Lavoura Canavieira (Decreto-Lei n. 3.855, de 1941). Pelo Estatuto:
“O discurso legal expressa a defesa da pequena propriedade, da
pequena exploração, dos colonos e trabalhadores assalariados.
Visava disciplinar as relações entre usineiros e lavradores de
cana”, dentro do almejado propósito de desenvolvimento
equilibrado do setor”. Representou uma resposta, no campo político,
às tensões decorrentes de movimentos grevistas dos fornecedores de
Pernambuco e Rio de Janeiro que vinham se acumulando desde o
início da década de 1930.”
97
O Estatuto preconizava evitar o confronto entre os fornecedores e donos de usinas,
como ocorria nesses estados, e estimular a expansão canavieira. Com isso, estabeleceu
que, das canas moídas, 40% deveriam ser de fornecedores e 60% das próprias usinas.
Ao instituir as quotas de fornecimento o Estatuto da Lavoura Canavieira vincula o
fornecedor à usina, evitando confrontos, garantindo matéria-prima e trabalho para as
usinas e “subordinando o plantio de cana às necessidades da indústria do açúcar e do
álcool”.
98
97
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 124.
98
Idem, pg. 124.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
91
Em suma, os fornecedores estavam amarrados às usinas e sem outra alternativa.
Enquanto as usinas cuidavam da parte industrial, a produção da matéria-prima seria de
responsabilidade e dividida entre os fornecedores, bem como os riscos que poderiam
surgir nesse setor agrícola.
Em São Paulo, os fornecedores de cana até então eram uma categoria inexpressiva,
em virtude do sistema de colonato oriundo da época da expansão cafeeira.
O Decreto-Lei n. 6.969, de 1944, complementar ao ELC, referia-se aos trabalhadores
da cana, colocando-os sob a tutela do IAA, no qual as relações de trabalho eram
regulamentadas por um contrato-tipo”.
“Tais contratos garantem os direitos à estabilidade, à moradia-
padrão, à assistência médico-hospitalar gratuita, à concessão de
terras próximas às moradias para o plantio de subsistência, além da
proibição de ter os salários reduzidos em função do eventual malogro
das colheitas, uma vez que o salário mínimo fora legalmente
estabelecido pelo ELC .”
99
Na prática, esses decretos reverteram-se em mecanismos econômicos”, favorecendo
somente os usineiros, que representavam não somente os interesses da lavoura mas da
burguesia industrial”.
A partir da década de 50, os usineiros paulistas organizam-se em cooperativas
regionais”. A finalidade dessas cooperativas consistia na produção de grande parte de
suas canas e a comercialização direta. Adotado esse procedimento, ocorre um grande
crescimento no mercado interno, e São Paulo transforma-se em um dos estados mais
importantes dentro do contexto da lavoura canavieira.
Os excedentes internos foram canalizados para o mercado internacional, fazendo com
que o Brasil retornasse a ser um dos maiores exportadores de açúcar.
Como visto, o período 1950-1964 foi fundamental para o setor canavieiro no processo
de construção de novas modalidades para a acumulão de capital e modernização.
99
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pgs. 125 e 126.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
92
O Estado teve um papel central no setor com iniciativas e investimentos, produzindo
mercadorias e serviços e favorecendo o capital internacional e a burguesia nacional.
Dada a importância da agroinstria canavieira tanto no mercado interno como nas
exportações, o incentivo do Estado, que já subsidiava taxa média de lucro às
empresas, estimula a modernização tecnológica por meio de apoio técnico-científico.
Nesse sentido, é lançado o Plano de Expansão da Indústria Açucareira Nacional,
aumentando as quotas de produção das usinas do país em 100 milhões de sacos.”
100
Os estados de São Paulo e Paraná foram beneficiados com essas quotas adicionais,
detendo 40% da produção nacional.
Na região Nordeste – para compensar a “perda do mercado consumidor Centro-Sul – ,
os preços do açúcar passam a ser fixados a partir dos custos médios de produção
regionais,”
101
mesmo tendo prioridade nas exportações.
A produção nas regiões Norte e Nordeste deixa a desejar em relação à eficiência na
produção e custos maiores. Assim, a região Centro-Sul novamente é beneficiada.
Em 1971, a situação reverte-se com um subsídio aos produtores nordestinos
expresso na equalização dos preços em todo o território nacional”.
102
Uma das
estratégias do governo militar para o crescimento do país era o estímulo às
exportações. A partir de 1968, adota-se uma política nacional baseada no fomento da
exportação de açúcar.
Surgem vários programas visando à melhoria da produção e sua racionalização, além
de o Estado manter os incentivos fiscais, fazer fusões de grupos usineiros e
reorganizar o espaço geográfico, concentrando as usinas dentro de uma mesma região.
Esses investimentos aplicados pelo Estado no setor canavieiro, ampliados após 1965
com a criação do Sistema Nacional de Crédito Rural (lei n. 4.829 de 05/11/65), foram
fundamentais para a modernização conservadorada agricultura, tendo como apoio
a utilização de insumos industriais em grande escala e o mercado exportador.
A criação do Crédito Rural impulsionou a consolidação dos Complexos
Agroindustriais (CAIs), aprofundando o perfil concentrador de terra e de capital da
estrutura agrária do país.”
103
100
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pgs. 127 e 128.
101
Idem, pg. 128.
102
Idem, pg. 128.
103
Idem, pg. 129.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
93
Paralelamente à crião do Crédito Rural, o Estado estimulou uma “política de
valorização fundiária no decorrer da década de 70. Essa política serviu para
concentrar ainda mais a propriedade fundiária, repercutindo na expulsão de pequenos
produtores e assalariamento da força de trabalho, o que causou um grande êxodo rural
no país.
Para esses investidores a terra passa a ter significado distinto do de pequenos
produtores que vivem em regime de economia familiar. A terra configura-se em um
sistema financeiro, passando o título de propriedade da terra a ser identificado
como reserva de valor em carteira de ativos das empresas, além de funcionar como
garantia para o acesso ao crédito subsidiado no mercado monetário”.
104
A modernização na lavoura da cana-de-açúcar atinge o auge em 1975, com o
Programa Nacional do Álcool (Proálcool) Decreto n. 76.593, de 14/11/75, que
propunha a substituição da gasolina pelo álcool, em função da crise energética e das
altas do preço do petróleo. Mas a verdadeira razão da criação desse Programa
consistia em salvar” a agroinstria canavieira da crescente crise e ampliar o
mercado da indústria mecânica pesada”.
105
O Proálcool, desde sua criação, teve pouca repercussão. Em vista disso, em 1979 o
Estado promulga um Decreto (n. 83.700) criando o Conselho Nacional do Álcool
(CNAL) e a Comissão Executiva Nacional do Álcool (CENAL). Cabia a esses órgãos
acelerar o processo de instalação de destilarias em todo o país.
A história do Proálcool está dividida em três fases, de acordo com o estudo de Ceron.
A primeira concentra-se entre os anos de 1975 e 1980, caracterizado por um grande
estímulo do Estado na implantação de numerosas destilarias para a produção do
álcool, estimulando a indústria automobilística a desenvolver automóveis movidos a
essa substância.
104
Delgado, G. C., Capital Financeiro e Agricultura no Brasil: 1965-1985. Ed. Ícone/UNICAMP; in Iamamoto, M. V., Trabalho
e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 129.
105
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza. Ed. UNESP, 1994, pg. 236.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
94
A segunda fase refere-se aos anos de 1980 a 1986, marcados pela grande escassez de
petróleo no Brasil devido à alta dos preços da importação do produto em função da
guerra entre Irã e Iraque. Nesse período, o Estado estabeleceu metas a serem atingidas
para a produção, perpassando 10,7 milhões de metros cúbicos de álcool em 1985. Para
que isso fosse alcançado, o governo brasileiro facilitou a aquisição de créditos e
subsidiou as destilarias de álcool.
A última fase vai de 1986 a 1990, quando o álcool perde condições de competir no
mercado em fuão da queda dos pros do petróleo no mercado internacional, o que
afetou as destilarias de álcool em todo o país.
106
A análise da atuação do Proálcool na década de 80 deixou várias questões pendentes,
como as condições de trabalho e a luta salarial dos canavieiros, a distribuição e
estocagem do álcool hidratado e a tecnologia de motores a álcool.”
107
O Programa caracterizou-se pelos incentivos à industrialização e comercialização do
álcool; entretanto, nenhuma atenção foi dada às questões sociais e ambientais. Além
da destruição de matas e florestas para a implantação de canaviais, o que causava
grande impacto no meio ambiente, houve a supressão de muitas lavouras de
subsistência e a atração de mão-de-obra para essa cultura, gerando grandes migrações
de trabalhadores das regiões Norte e Nordeste para o estado de São Paulo. Isso
provocava acentuado desemprego, uma vez que não havia como absorver toda essa
o-de-obra.
Através do Proálcool, o Estado concedia empréstimos a fundo perdido aos industriais
que montassem novas destilarias. Com isso, atendia às classes produtoras. Essa
medida era justificada pela geração de empregos. Entretanto, além dos graves danos
ao meio ambiente que essas indústrias causaram, os empregos eram sazonais.
Após a crise (1986-1990), o Proálcool teve como aliados a instria automobilística e
a Petrobrás, esta para a compra e estocagem de álcool anidro. Além de valorizar as
propriedades de terra dedicadas à cultura da cana-de-açúcar, o Programa favoreceu a
concentração fundiária por meio da garantia de um mercado amplo e crescente para o
álcool, abrindo portas para o mercado internacional do açúcar.
106
Manuel Correia de Andrade, em seu livro Modernização e Pobreza, faz referência ao estudo desenvolvido por Marcelo Ceron
em seu livro Proálcool e Produção de Agroenergia Alternativa no Brasil, 1991.
107
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social. Ed. Cortez, 2001, pg. 130.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
95
Contradições da Modernização
Não pretende-se nesta parte do estudo esmiar os aspectos referente às legislações
trabalhistas destinadas às populações rurais, mas cabe fazer algumas considerações
para se entender as contradições existentes no processo dessa modernização
dolorosa.”
108
Em 1963, no Governo João Goulart, foi criado o ETR (Estatuto do Trabalhador
Rural) em 1964, no primeiro governo da ditadura militar, foi a vez do ET (Estatuto da
Terra). Esses estatutos devem ser analisados no contexto dos conflitos sociais e do
processo de modernização na agricultura sob a chancela do Estado, da
modernização trágica.”
109
Grande parte das mudanças nas relações de trabalho na agricultura está centrada nos
aspectos econômicos, como a concentração da terra e a erradicação dos cafezais. A
cultura do café teve um grande declínio, abrindo campo para a implantação de outras,
como a cana-de-açúcar em São Paulo, além da implantação da pecuária, avanços
tecnológicos refletidos na mecanização, investimentos em pesquisa para o
desenvolvimento de adubos químicos, etc. Mas tais fatores em si não fornecem uma
explicação compreensiva da mudança nas relações de trabalho, ou seja, o processo
de acumulação do capital e o da industrialização da agricultura, representados pelos
Complexos Agro-Industriais (CAI) não podem ser entendidos como as únicas forças
propulsoras das mudanças das relações de trabalho.”
110
Nesse cenário de mudanças nos diversos setores da agricultura, juntamente com o
aumento da produção, as classes dominantes nos anos 50 adotaram um discurso
baseado na ideologia desenvolvimentista”, condenando o atraso no campo, a fraca
produtividade, os métodos atrasados e a miséria dos trabalhadores.”
111
108
Termo utilizado por José Graziano da Silva.
109
Silva, M. A. de Moraes; Errantes do Fim do Século. Ed. UNESP, 1998, pg. 62
110
M. A. de Moraes Silva desenvolve a idéia de Verena Stolcke no livro Cafeicultura, Homens, Mulheres e Capital. Ed.
Brasiliense.
111
Idem, pg. 62.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
96
Esse discurso não permaneceu apenas na teoria; foi posto em prática, inicialmente,
pela elaboração de um diagnóstico dos cafezais paulistas em 1957, realizado pela
FAO, CEPAL e IBC.”
112
A intervenção do Estado resultou na erradicação do café e na diversificação de
culturas durante as décadas de 60 e 70; com isso, intensificou-se o processo de
expulsão de parceiros, colonos, arrendatários e pequenos proprietários.
Nota-se que, durante as décadas de 60 a 80, 2,5 milhões de pessoas foram expulsas do
campo paulista. Mas isso não ocorreu, como dizem os teóricos que estudam os
Complexos Agro-Industriais, somente pelas mudanças da passagem de um período
artesanal para a dinâmica do desenvolvimento tecnológico, em relão às formas e
costumes de trabalho no campo, ou a partir da própria dinâmica de um capital,
supostamente, acima das relações sociais.”
113
Seria uma forma simplista de analisar essas mudanças, pois não se pode esquecer que,
concomitantemente a esse processo, inúmeros acontecimentos ocorriam em todo o
país, como a organização de trabalhadores rurais e urbanos, pressões da população por
reformas sociais, movimentos de reforma agrária, a formação das ligas camponesas,
etc.
Os interesses poticos e econômicos do Estado e donos dos CAIs sobrepuseram-se
aos interesses sociais e de direito dos trabalhadores rurais. Desde 1943, os
trabalhadores das zonas rurais haviam adquirido os mesmos direitos dos trabalhadores
de fábricas dos grandes centros urbanos, que eram regidos pela CLT, porém esses
direitos “permaneceram letra morta.”
114
.
A questão central não é mostrar os regimentos do estatuto (ETR), mas a repercussão
negativa nas relações entre trabalhadores e “donos de terras, as quais geraram grande
conflito. Esses trabalhadores (bóias-frias), em sua maioria, acabaram não sendo
enquadrados na regulamentação dessa lei como trabalhadores rurais.”
115
112
Silva, M. A. de M.; Errantes do Fim do Século;. Ed. UNESP, 1998, pg. 63.
113
Idem, pg. 63.
114
Idem, pg. 64.
115
Idem; pg. 64.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
97
Por sua vez, os trabalhadores permanentes acabam tornando-se um encargo” para os
proprietários rurais, e por isto, eles são despedidos, para serem, em seguida,
admitidos como volantes, isso é, uma força de trabalho mais barata, porque os gastos
sociais não seriam computados.”
116
.
Sobre essa questão, o trecho da entrevista citada abaixo registra bem a situação
que perdura até os dias de hoje:
Arlete: Aqui você é registrado?
César: É também, é onde eu trabalho.
Arlete: E é de período também né, que é de maio a novembro. E no
período que não tem, que seria de novembro até abril, o que você
faz?
César: Olha, a gente procura arrumar outro serviço,… a gente tem
que procurar um outro serviço, plantar cana, né, cortar cana mesmo,
se achar. A gente faz de tudo pra um serviço.
O ETR não melhorou as condições de vida dos trabalhadores rurais; ao contrário,
intensificou a exploração da força de trabalho.
Essa lei veio a garantir o poder político das classes dominantes e do Estado,
assegurando a dominação das classes trabalhadores por um longo período.
Sobre esta questão Moraes Silva diz:
“O ETR representou um “equilíbrio instável de compromisso” na
medida em que os sacrifícios impostos não atingiriam os interesses
políticos dos proprietários rurais e não punham em xeque seu poder
político. A ação do Estado, ao criar o ETR, implicou em dois pontos:
a) no que tange às classes dominadas, elas foram impedidas de se
organizar politicamente e foram submetidas ao aparelho do
Estado;
116
Silva, M. A. de M.; Errantes do Fim do Século;. Ed. UNESP, 1998, pg. 64.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
98
b) no que tange às classes dominantes, o Estado lhes permitiu a
organização - dominação e a sua autonomia neste momento
histórico concreto, impondo o “sacrifício econômico” aos
proprietários de terras sem, contudo, ameaçar o seu poder
político. Estes aspectos se tornam evidentes na lei n. 5.889
(1973), que substituiu o ETR. Todavia, essa nova lei não
regulamentou a situação dos trabalhadores volantes; da mesma
forma, os 27% correspondentes aos gastos sociais continuavam
não sendo aplicados a estes trabalhadores. O que estava em
jogo era a extensão desses direitos aos volantes. Segundo
Stolcke (1986), o ETR foi uma concessão moderada aos
trabalhadores rurais, feita por um congresso nitidamente
conservador (p.218). Da mesma idéia partilha uma outra autora
(Ferrante, 1976, p. 196-7).”
117
Ainda sobre a questão da lei n. 5.889, nela aparece o termo empregados ruraise
o trabalhadores rurais. Outra lei, n. 6.019, promulgada em 1978, define o
trabalhador temporário como aquele que não ultrapassa 90 dias, excluindo-os dos
benefícios trabalhistas.
Ora, além da exclusão da terra, são excluídos da lei e das garantias de trabalho. Deve-
se entender que as leis aplicadas aos trabalhadores urbanos não devem ser, de forma
igual, aplicadas aos trabalhadores rurais. É necessária uma visão ampla sobre a
realidade do meio rural para adequar as leis trabalhistas, visto que o universo rural e
suas práticas são diferentes do meio urbano.
Dessa forma, essas leis regulamentaram a expulsão dos trabalhadores do campo,
retirando-lhes não apenas os meios de subsistência como também os direitos
trabalhistas.”
118
.
Nesse cenário surgem diversas denominações estigmatizadas do trabalhador rural,
quais sejam: bóia-fria, trabalhador volante, eventual, etc., excluindo-os das leis que
deveriam garantir sua qualidade de vida e protegê-los nas questões trabalhistas.
117
Silva, M. A. de Moraes; Errantes do Fim do Século. Ed. UNESP, 1998, pg. 65.
118
Idem, pg. 66.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
99
Além da dupla negação trabalho e direitos são ridicularizados pelo termo ia-
fria. Arrancaram-lhe não a roça, os animais, os instrumentos de trabalho.
Desenrzam-no. Retiram-lhe, sobretudo, a identidade cultural, negando-lhe a
condição de trabalhador.”
119
É interessante analisar o significado do nome volante, aquele que voa, irresponsável,
que não pára em lugar nenhum.”
120
Portanto, essas leis não contribuíram para expulsar os trabalhadores do campo e de
seu habitat, mas também imprimiram-lhe a denominação de volante.
Sobre a volantização da força de trabalho, Moraes Silva diz:
“Esse processo de volantização da força de trabalho permitiu os
sucessos da modernização agrícola garantidos pelo Estatuto da Terra
(1964) e pelo Proálcool (1975). Esta é uma das primeiras medidas do
governo militar, sendo dirigida por um duplo sentido:
a) conservar o poder político dos proprietários rurais;
b) polarizar seus interesses, juntamente com as outras frações da
classe dominante para um interesse comum que consistisse na
exploração econômica e na dominação política. Este último
aspecto da dominação não é levado em conta nas análises da
“caificação” da agricultura. Graças a esta combinação de
interesses, o Estatuto da Terra atinge seus objetivos: aumento
da produção e da produtividade mediante o processo de
industrialização da agricultura.”
121
Esse processo de modernização conservadora na agricultura fortaleceu-se com o
advento do Proálcool, aliado aos projetos realizados de erradicação dos cafezais, que
mudaram completamente a paisagem do meio rural. Tudo isso acrescentado pelas
mudanças nas relações de trabalho por meio dos dois dispositivos jurídicos do Estado.
119
Silva, M. A. de M.; Errantes do Fim do Século;. Ed. UNESP, 1998, pg. 66.
120
Idem, pg. 66.
121
Idem, pg. 67.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
100
O resultado desse processo, no caso do campo paulista, gerou um grande impacto
negativo nas relações sociais e de trabalho das populações tradicionais rurais. Em
nome da modernização, a sociedade assistiu ao desaparecimento da roça de
subsistência, dos contratos de parceria, da indústria doméstica e da produção de
consumo pessoal
122
, quebrando não somente os laços da estrutura familiar, mas
também os laços de solidariedade existentes nos bairros rurais. De acordo com os
apontamentos de Antonio Candido em seu livro Os Parceiros do Rio Bonito”, o
bairro rural representa para seus moradores uma naçãozinha”, onde as regras e
estruturas sociais e simbólicas são criadas dentro do contexto da comunidade.
A expropriação da população rural do seu lugar de origem, o campo, em outros países,
principalmente na Europa, levou séculos. Já no Brasil, levou apenas algumas cadas.
A exproprião ocorreu mediante a violência legalizada pelos donos do poder”, e,
em muitos casos, foi explícita, deixando marcas em seus corpos e em suas memórias.
As relações de trabalho que permeiam a lavoura da cana-de-açúcar têm em si aspectos
contraditórios, pois, de um lado, necessita e estimula a concentração da força de
trabalho, principalmente na colheita das safras da cana, e, de outro, bane esses
trabalhadores de seus direitos trabalhistas e legais, deixando-os à margem do
processo.
O próprio Estatuto do Trabalhador Rural descaracteriza os trabalhadores temporários
perante a legislação. Ao negar a condição de trabalhador rural diante da lei, cria-se um
preconceito em relação a essas pessoas, caracterizando-as como sobrantes, ociosos,
vagabundos, etc., produzindo uma diferenciação social (étnico racial)
123
desses
expropriados, com a vigência do Estado.
Essa situação é ainda mais acentuada com os trabalhadores rurais que migram de
outras regiões do país, articulando essa diferenciação social entre os de fora”, os do
lugare as mulheres.
124
Os de foratornam-se estranhos no próprio país, visto que
têm hábitos e costumes diferentes dos trabalhadores locais. Essas características
culturais próprias transformam-se em atributos negativos no momento em que seus
portadores deparam-se frente ao “outro”, ao “do lugar”, ao paulista.”
125
122
Silva, M. A. de M.; Errantes do Fim do Século;. Ed. UNESP, 1998, pg. 68.
123
Idem,, pg. 72.
124
Idem; pg. 72.
125
Idem, pg. 72.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
101
Expulsos de suas terras pelo processo de modernizão, são obrigados a viver nas
periferias das cidades, com outros valores e modos de vida, participando da “lógica”
de um espaço que não lhes pertence. Desenraizados do lugar, da cultura, como se não
bastasse, o contexto social produz uma representação negativa, interferindo em sua
vida cotidiana, nas relações sociais.
A imagem do trabalhador volante, aquele que voa, sujeito à dominação do capital e
das relações que permeiam a conjuntura do setor agrícola, acaba introjetando neles
esse poder repressivo criado nas relações sociais e de trabalho.
A introjeção de uma identidade negativa traz a impossibilidade de vislumbrar sua
emancipação. Perde-se a capacidade de transformação e de articular velhos e novos
personagens; surge o risco de uma morte simbólica.
O ETR (Estatuto do Trabalhador Rural) reforçou esse estigma, uma vez que os
trabalhadores expulsos não foram reconhecidos pela lei. Na verdade, eram “foras-
da-lei.”
126
A questão de emancipar-se das regras e da dominação do trabalho explorador, ser um
trabalhador livre” dentro da estrutura agrícola, é traduzida como ausência dos direitos
de moradia, da roça de subsistência e do controle de seu trabalho. Reforçando essa
idéia é que as leis jurídicas do ETR acabaram criando a figura do volante, negando
seus direitos enquanto trabalhador rural. Nesse sentido, o Estado não apenas legitimou
a exploração e expulsão dos trabalhadores omitindo-se, como também o interviu
para protegê-los dos sacrifícios que vinham passando.
Outra situação no campo sobre o aspecto da negação é a figura do gato”, que tem
como função intermediar as relações entre patrões e empregados. Essa denominação
ao empreiteiro traduz-se no fato de ser esperto, astuto, visualizando os ganhos que
pode vir a obter por meio da força de trabalho dos trabalhadores rurais. Enfim, o pulo
do gato”, o golpe” do gato.
A fala de um cortador de cana entrevistado na pesquisa mostra bem essa questão:
“Quando a gente che aqui, soltaram a gente, e a gente fi
dividindo, 10 prum canto, 20 pra outro, dividindo sabe? foi
adespois que eu vim entendê que a gente chegô aqui, o cara trouxe e
126
Silva, M. A. de Moraes; Errantes do Fim do Século. Ed. UNESP, 1998, pg. 111.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
102
vendeu a gente por cabeça como quem vende animal, R$100 reais
cada um.”
Por meio dessa figura do gato cria-se um deslocamento nas relações de
exploração, em que o patrão se esconde sob o envelope do gato.””
127
Dessa forma,
o patrão fica protegido de ser um explorador das forças de trabalho e repassa essa
atribuição ao “gato, fazendo com que este fique responsável pelos sarios.
O gatotem uma trajetória de trabalho no meio rural, em geral, foram meeiros ou
sitiantes.”
128
Além de ser empreiteiro, também desempenha outras funções, como dirigir os
veículos que transportam os trabalhadores. Conhece-os bem, pois é ele quem
arregimenta-os para o trabalho. Além disso, atua na fiscalização dos serviços,
controlando a produção de cada um, acumulando o papel de agenciador e feitor” e
de “compra e venda” do trabalho.
O gato surge no processo de mudaas das relações de produção, junto com o
bóia-fria”.
Antes da figura do gato”, eram os patrões que contratavam os trabalhadores para o
labor nas fazendas, mas, com a expansão dos diversos segmentos na agricultura, esta
tarefa foi tornando-se mais difícil.
Nas palavras de Moraes Silva:
No mundo de antes, da colônia ou da morada, o teatro era montado
com a presença dos atores-fazerndeiros. Agora, eles saem do palco e
substituem este teatro pelo de marionetes. A teatralização da
dominação é vista por meio de bonecos, das figuras.”
129
A figura do gato”, em si, já nasce carregada de estigmas e com aspectos de uma
identidade negativa. As próprias relações de produção e dominação produziram essa
representação. São “malandros” de origem humilde.
127
Silva, M. A. de Moraes; Errantes do Fim do Século. Ed. UNESP, 1998, pg. 108.
128
Idem, pg. 108.
129
Idem, pg. 112.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
103
Sobre essas figuras, Moraes Silva diz:
Ora pendem para um lado, ora pendem para o outro, sem nunca
estar fixas em alguns deles. Elas negam o que são e são o que não
são. Investidas das máscaras sociais, encobrem a realidade dura de
suas reais existências.”
130
Enfim, a modernização na lavoura canavieira intensificou o mercado interno e externo
de açúcar e álcool, propiciou o avanço tecnológico por meio de pesquisas científicas
em maquinarias e insumos químicos, beneficiamento na qualidade dos produtos
industrializados, racionalização nos preços de combustível para automóveis,
substituição do petróleo pelo álcool, expansão do mercado de trabalho técnico, etc. As
contribuições que a modernização ofereceu ao país nesse setor econômico não podem
ser negadas.
A questão a ser discutida é que, em nome dessa modernização”, as relações sociais e
de trabalho foram sacrificadas, contradizendo esse avanço no campo pelo
empobrecimento das populações rurais, a devastação ecológica, com a destruição de
matas e florestas para a implantação da cana-de-açúcar, a quebra dos vínculos culturais
e sociais, a desvalorização da mão-de-obra, a expulsão de pequenos proprietários, a
exclusão dos direitos trabalhistas, adjetivações negativas atribuídas a esses
trabalhadores, menosprezando seu modo de vida e conhecimento em trabalhar e
usufruir da terra, e a fome crescente em um país tão rico na produção de alimentos.
É nesse cenário histórico marcado de contradições, conflitos e lutas pela posse da
terra que emerge o fenômeno que estimulou o presente estudo: a presença nos dias de
hoje do “crack” entre os trabalhadores agrícolas, especialmente os cortadores de cana.
Sobre o que a presença do “crack” significa, sua amplitude e penetração na cultura
rural, poucos dados sistematizados: algumas reportagens de TV, comentários de
profissionais que lidam com a questão e conversas entre pessoas envolvidas no
acompanhamento de eventos no campo. Sobre o tema, não nenhum trabalho
acadêmico. Assim, torna-se convidativo, especialmente face à desvalorização do
130
Silva, M. A. de M.; Errantes do Fim do Século;. Ed. UNESP, 1998, pg. 127.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
104
“homem do campo” discutida anteriormente, dizer Ah…é por causa das condições”,
e deixar a resposta aqui. Mas será que é isso?
O objetivo deste trabalho é aprofundar e abrir essas questões usando a contribuão da
psicologia social na compreensão tanto das práticas sociais quanto dos sentidos e
discursos a elas integradas. Quais são os sentidos que circulam sobre o “crack”?
Como posicionar a questão no meio das interpretações sobre a sua presença? Crack,
em outras palavras, é um sintoma ou um problema? Como trabalhar sua prevenção?
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
105
Capítulo III: Cultura e Trabalho Rural
“Eu começo com minha oração. Antes de começar.
Começar a iniciar o trabalho, eu faço a minha reza,
peço pra Ele me ajudar, que me dê forças pra trabalhar,
que não aconteça nada comigo, pra mim não se cortar,
nada. E de tarde é a mesma coisa, quando acabo, dou
graças a Deus, rezo de novo, digo obrigado por mais
um dia e ...”
César: jovem, perseverante e sonhador.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
106
Muito de nossa literatura regional não possui citações recomendadas sobre o homem
do campo e seu modo de vida.
Até a visão que os folcloristas possuem desses cidadãos denota um aspecto
preconceituoso, com adjetivações como:
“Roceiro, matuto, acanhado, sem trato na cidade.”
131
Mesmo o dicionário, mais cuidadoso nas atribuições em relão à cultura e identidade
do caipira, em nada melhora a exposição. Dos gerais aos especializados, a mudança é
muito pequena, sugerindo que “além de tímido e despreparado, o caipira pode ser um
sujeito pouco confiável.”
132
Para se entender a formação da cultura caipira, típica do estado de o Paulo, é
necessário retrocedermos um pouco na história do Brasil, quando este país ainda era
colônia de Portugal.
No final do século XVIII e início do XIX, de acordo com dados históricos, os
paulistas viviam isolados e não tinham relação com os povos estrangeiros que vinham
pelo oceano, enquanto outras proncias ricas do país, como Bahia, Pernambuco, Rio
de Janeiro, estavam ligadas ao Atlântico, recebendo a civilização oriunda da
metrópole e dos países da Europa, desenvolvendo o comércio através da importação e
exportação de produtos.
A cultura paulista mudaria suas características a partir da construção do Caminho do
Mar, fazendo com que a população perca o seu “sublime isolamento.
O paulista nunca se afez às cousas do mar. É homem do interior. A
palavra interior é das que mais usa o paulista. É no sertão que está a
terra boa, e não na beirada do oceano, como no Norte.”
133
131
Bueno, V. in Brandão, C. R., Os Caipiras de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1983, pg. 9.
132
“Homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se
em público (...) Habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas sonso...”, Cascudo, Dicionário do Folclore Brasileiro
in Brandão, C. R., Os Caipiras de São Paulo, pg.10.
133
Prefácio de Rubens Borba de Morais no livro Viagem a Província de S. Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire. Ed. Livraria
Martins, 1945, pg. 9.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
107
Além desses fatores, os estrangeiros mantiveram-se afastados de São Paulo pela
proibição de Portugal em penetrar no interior da província, além da falta de atrativos,
por ser um meio muito pobre. Mas essa pobreza era uma conseqüência e o a causa.
A causa da pobreza paulista estava na falta de comunicação com o mar. Assim, São
Paulo chega à segunda década do século XIX quase desconhecido dos
estrangeiros.”
134
.
Até então, a política portuguesa não permitia a liberdade dos mares e do comércio aos
estrangeiros que queriam comercializar com o país. Os ingleses, muito interessados
nesse ramo e querendo comercializar seus produtos diretamente, procuraram o
Tratado de Methuen.
135
Por meio desse tratado os ingleses obtiveram passaporte livre
para comercializar tecidos em Portugal, em troca do mesmo favor aos vinhos do
Porto.
Em 1807, Napoleão decreta a extinção da dinastia de Bragança e a invasão a Portugal.
D. João VI tenciona refugiar-se no Brasil. Diante dessa situação, a Inglaterra exige a
abertura dos portos para o comércio inglês em troca do transporte e segurança da côrte
no país. Não tendo escolha, D. João VI aceita a proposta. A partir de então, vários
europeus, despertados pela curiosidade, invadem os trópicos a fim de conhecer e
aprofundar suas pesquisas. Cientistas, artistas, comerciantes, turistas viajam para o
Brasil com o objetivo de desenvolver seus estudos e estabelecer uma rota comercial.
Nesse ínterim, um jovem botânico francês, Auguste Saint-Hilaire (1779-1853),
desembarca no Brasil, percorrendo as províncias do Rio de Janeiro, Espírito Santo,
Minas Gerais, Goiás, cidades do Sul e São Paulo.
Ao lado de suas pesquisas na área da botânica, a grande contribuição de Saint-Hilaire
foram as descrições de viagens ao interior do Brasil, que vieram a ser publicadas
posteriormente. Uma delas está no livro Viagem a Província de São Paulo”, no qual
realizou um verdadeiro trabalho etnográfico sobre a população paulista, em especial o
caipira, cidadão do interior e de vida simples.
A descrição dos cidadãos do interior paulista foi realizada pelo autor de forma
minuciosa, mas sem o olhar do cientista social. Ele descreve o que e o que sente,
134
Prefácio de Rubens Borba de Morais no livro Viagem a Província de S. Paulo, de Auguste de Saint-Hilaire. Ed. Livraria
Martins, 1945, pg. 10.
135
Esse tratado teve conseqüências desastrosas para Portugal, pois todo o ouro do Brasil passou para os industriais britânicos.
Acabado o ouro e os mercados europeus fechados por Napoleão, a indústria inglesa procurou novos consumidores.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
108
sem o intuito de analisar a formão histórica e as transformações sociais sensíveis ao
pesquisador social. Seu olhar é o do estrangeiro, do estranho em um espaço estranho.
Por outro lado, as pesquisas e observações de Saint-Hilaire trazem uma riqueza para
aqueles que se interessam pelo processo histórico das populações regionais do Brasil,
especialmente São Paulo.
Esta breve introdução fundamenta-se na explicação do olhar desse cientista sobre o
caipira. Além disso, o autor descreve em seu diário as populações indígenas e negras,
fornecendo-nos números de indivíduos livres e na condição de escravos existentes na
época.
Sobre a formação étnica do brasileiro, nota que, ao contrário dos países europeus, em
que uma homogeneidade em relação a raça, no Brasil há três raças distintas,
compostas pelo branco, negro e índio, além dos numerosos mestiços que constituem a
população do país. A esse respeito diz:
Escravos negros, uns crioulos, outros africanos; negros livres,
africanos e crioulos; alguns indígenas batizados; um número
considerável de indígenas selvagens; mulatos livres e mulatos
escravos; homens livres, todos considerados, perante a lei, como da
raça caucásica, entre os quais se encontra, porém, grande quantidade
de mestiços de brancos e indígenas tais são os habitantes da
província de São Paulo. Estranha confusão de raças, do que resultam
complicações embaraçosas e perigosas, quer para a administração
pública, quer para a moral social.”
136
As anotações de viagem de Auguste Saint-Hilaire apresentam o paulista rústico o
caipira – retratado de forma literal, conforme a descrição abaixo.
“Estes últimos, quando percorrem a cidade, usam calças de tecido de
algodão e um grande chapéu cinzento, sempre envolvidos no
indispensável poncho, por mais forte que seja o calor. Denotam os
seus traços alguns dos caracteres da raça americana; seu andar é
pesado, e têm o ar simplório e acanhado. Pelos mesmos têm os
136
Saint-Hilaire, A., Viagem a Província de São Paulo. Ed. Livraria Martins, 1945,pg. 95.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
109
habitantes da cidade pouquíssima consideração, designando-os pela
alcunha injuriosa de caipiras, palavra derivada possivelmente do
termo curupira, pelo qual os antigos habitantes do país designavam
demônios malfazejos existentes nas florestas.…”
137
.
O homem do campo na obra de Saint-Hilaire, como também na de outros viajantes
estrangeiros que visitavam o país a fim de realizar suas pesquisas científicas ou até
mesmo em busca de aventuras, não aparece como sujeito da história do Brasil, ao
contrário de suas descrições sobre os conquistadores, personalidades da Coroa ou os
bandeirantes paulistas que desbravavam as matas e caçavam as populações indígenas.
O caipira, trabalhador da terra na literatura desses autores, não pertence nem a uma
coisa nem a outra, ou seja, não é reconhecido nem como pertencente a uma classe de
senhores”, com poder de dominação, e nem como dominado da província, como
ocorreu com as populações indígenas e negras.
Saint-Hilaire não identifica no caipira nem sua cultura nem seu trabalho, vendo neles
um povo sem qualquer importância, como demonstra a citação:
“Enquanto descrevia e examinava as plantas, aproximou-se um
homem do rancho, permanecendo várias horas a olhar-me, sem
proferir qualquer palavra. Desde a Vila Boa até Rio das Pedras, tinha
eu tido quiçá cem exemplos dessa estúpida indolência. Esses homens,
embrutecidos pela ignorância, pela preguiça, pela falta de
convivência com seus semelhantes, e, talvez, por excessos venéreos
prematuros, não pensam: vegetam como árvores, como as ervas dos
campos. Obrigado, pela ventania, a deixar o rancho, fui procurar
abrigo numa das cabanas principais, mas admirei-me da desordem e
da imundice reinantes na mesma. Grande número de homens,
mulheres e crianças desde logo rodeou-me. Os primeiros vestiam
uma camisa e uma calça de tecido de algodão grosseiro; as mulheres,
uma camisa e uma saia simples. Os goianos e, mesmo, os mineiros de
classe inferior vestem-se com muito pouco apuro, mas, pelo menos,
137
Saint-Hilaire, A. de, Viagem a Província de São Paulo. Ed. Livraria Martins, 1945, pg.113.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
110
são limpos; a indumentária dos pobres habitantes de Rio das Pedras
era tão imunda quanto suas cabanas.”
138
De acordo com essas falsas adjetivações, ficou impressa no homem do campo a marca
de um sujeito não civilizado, um ser grosseiro sem cultura e educação, para aqueles
que os vêem de fora, isto é, estrangeiros num universo próprio e singular.
Assim como Saint-Hilaire, outros letrados do país e do exterior criaram uma
identidade negativa para o caipira de São Paulo. Um mundo privado ao mesmo tempo
de “produção de cultura sobre a natureza (a agricultura) e da criação de uma
cultura na sociedade.”
139
Por outro lado, temos a sorte de reverter esse quadro de impressões pouco atrativo
com autores que conseguiram compreender o caipira, como: Maria Isaura Pereira de
Queiroz, Carlos Rodrigues Brandão e José de Souza Martins, em diversos livros
dedicados ao modo de vida desses cidadãos, Antonio Candido, no clássico “Os
Parceiros do Rio Bonito”, Cornélio Pires, compositor, escritor e caipira, estudioso
profundo de sua cultura, entre outros. Nota-se que entre esses pesquisadores do
assunto existe um esforço admivel para explicar a iia de “caipira”, seja a
explicação por meio do nome, por características próprias em relação ao modo de vida
e/ou do trabalho agrícola.
Nos primeiros anos do século XX, ninguém estudou e esclareceu melhor o homem do
campo, mais propriamente o caipira, como Cornélio Pires. A ele dedicou diversas
composições musicais no estilo modo de viola, a música de raiz, raiz esta da terra, e
também uma grande coleção de escritos, na tentativa de mostrar o verdadeiro sentido
do caipira.
Nesses escritos o homem do campo aparece não somente como um tipo de gente do
estado de o Paulo, mas também um homem dedicado ao trabalho. Cornélio Pires
inverte a crítica atribuída ao caipira mostrando aos escritores que as fizeram quão
desconhecimento do assunto e preconceitos estes possuem, apresentando o homem do
campo com atribuições ridicularizadas a toda a sociedade brasileira.
138
Saint-Hilaire, A., Viagem a Província de São Paulo. Ed. Livraria Martins, 1945, pg. 111 e 112.
139
Brandão, C. R., Os Caipiras de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1983, pg. 22.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
111
Esse homem que Cornélio Pires apresenta é o oposto do de Saint-Hilaire, como
também de Monteiro Lobato. Sobre ele diz:
“Por mais que rebusque o ‘étimo’ de caipira’, nada tenho deduzido
com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-
guarani ‘capiâbiguâra’. Caipirismo e acanhamento, gesto de ocultar
o rosto: neste caso temos a raiz ‘caí ’ que quer dizer: ‘gesto de
macaco ocultando o rosto’. ‘Capipiara’ que quer dizer o que é do
mato. Capiã, de dentro do mato: faz lembrar o ‘Capiau’ mineiro.
‘Caapi’- trabalhar na terra, lavrar a terra- ‘Caapiára’, lavrador.
E o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último caso o mais
aceitável, pois ‘Caipira’ quer dizer roceiro’, isto é,
lavrador...homem da terra.”
140
O termo caipira, apesar de várias definições, de acordo com o texto de Cornélio Pires
citado acima, traduz a iia do homem ligado à terra, que trabalha na terra,
conhecedor da natureza e que possui uma organização cultural e social desenvolvida a
partir das tradições da cultura indígena, africana e européia, enfim, dos diversos tipos
étnicos, incorporadas no mundo da cultura rústica, principalmente no estado de São
Paulo.
A respeito da identidade e do modo de vida do caipira, Cornélio Pires escreve:
“Nascidos fora das cidades, criados em plena natureza, infelizmente
tolhidos pelo analfabetismo, agem mais pelo coração do que pela
cabeça. Tímidos e desconfiados ao entrar em contato com os
habitantes da cidade, no seu meio são expansivos e alegres, folgazões
e francos; mais francos e folgazões que nós outros, os da cidade. De
rara inteligência – não vai nisso um exagero são incontestavelmente
mais argutos, mais finos que os camponeses estrangeiros.
Compreendem e aprendem com maior facilidade; fato aliás observado
por estrangeiros que com eles têm tido ocasião de privar. É fato: o
140
Pires, C., Conversas ao Pé do Fogo, in Cândido, A., Os Parceiros do Rio Bonito.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
112
caipira puxador de enxada, com a maior facilidade se transforma em
carpinteiro, ferreiro, adomador, tecedor de taquaras e guembê, ou
construtor de pontes…Os caipiras não são vadios: ótimos
trabalhadores, têm crises de desânimo quando não trabalham em suas
terras e são forçados a trabalhar como camaradas, a jornal. Nesse
caso o caipira é, quase sempre, uma vítima.
O trabalhador estrangeiro tem suas cadernetas, seus contratos de
trabalho, a defesa do ‘Patronato Agrícola’ e seus cônsules…Trabalha
e recebe dinheiro. Ao nacional, com raras exceções o patrão paga
mal e em vales com valor em determinadas casas, onde os preços são
absurdos e os pesos arrobalhados; nesse caso, o caipira não tem
direito a reclamações nem pechinchices, está comprando fiado… com
o seu dinheiro, o fruto do seu suor transformado em pedaço de
caderneta velha rabiscada a lápis. E querem que o brasileiro tenha
mais ânimo! Ânimo não lhe falta, quando trabalha em suas próprias
terras….”
141
Além da identidade do caipira de São Paulo e da importância do trabalho com a terra,
esse trecho de Conversas ao Pé do Fogo fala do processo de expropriação do campo e
da cultura que esse cidadão vem sofrendo ao longo desses anos.
Seguindo ainda essa linha de raciocínio para explicar o modo de vida dos habitantes
rurais, subalternos da enxada e do arado, Carlos Rodrigues Brandão faz uma excelente
tentativa sugerindo desvendar a imagem dos escritos do passado que fizeram dele, um
ator subalterno da própria história. Para os não conhecedores da história, o caipira é a
face negada comparado ao homem da cidade, definido por caricaturas que a cidade
faz dele, estabelecendo, dessa forma, a diferença entre um tipo de pessoa e outra.
Se o lugar de vida do caipira é o contrário da cidade e o seu trabalho é invisível por ser
o oposto, portanto, o seu modo de ser e sua cultura estão longe do conceito de
civilização e civilizado que a cidade considera.
142
141
Pires, C., Conversas ao Pé do Fogo in Os Caipiras de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1983, pgs. 28 e 29.
142
Brandão, C. R., Os Caipiras de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1983, pg. 12.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
113
Essa distorção em relação à cultura caipira e à negação de seu valor muitas vezes
acaba sendo incorporada por aqueles que vivem no rural, por ver no espelho o reflexo
dessa imagem distorcida e comparativa que o homem da cidade faz a sua pessoa e a
sua cultura.
Sobre o trabalho do homem do campo/lavrador, Brandão diz:
“Justamente a face negada do lavrador caipira é a do trabalho
agrícola que, a cada ano, rege a sua vida dentro dos ciclos
intermináveis de plantar, tratar, colher, comer. Ciclos que recriam o
ritmo que move todas as outras faces reais ou imaginadas do seu
mundo.”
143
A rotina do trabalho está interligada à vida pessoal, familiar e comunitária,
dominando o arranjo:
1) das situações de trocas entre o caipira e a natureza com a
qual ele sempre se vê através da mediação do trabalho de
coleta na caça e na pesca, na “cata” de mel, de frutas e
raízes, de ervas medicinais, de madeira;
2) das situações e estruturas de relações entre familiares,
parentes, vizinhos, companheiros de trabalho, outras
categorias de iguais pobres do lugar ou de fora (colonos,
tropeiros, mascates, oficiais e artesãos dos ofícios de criação e
construção roceira);
3) das situações e estruturas com o mundo dos “outros”
(fazendeiros e outros senhores, homens da cidade,
“autoridades”);
4) dos arranjos do calendário e das formas de trocas simbólicas
com o sagrado, nas crenças e cultos pessoais, familiares e
comunitários.”
144
143
Brandão, Carlos Rodrigues, Os Caipiras de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1983, pg. 49.
144
Idem, pg. 49.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
114
O trabalho com a terra não é exercido como na cidade (fábricas, oficinas, etc.). Ele
obedece a outras regras, outra lógica, e não sob a vontade dos homens ou das relações
de mercado de bens e do trabalho. O labor da terra está diretamente ligado aos
mistérios que a vida reproduz. Assim, não depende apenas das leis naturais do ciclo
vital de cada tipo de planta, mas da dança anual do tempo e seus efeitos sobre todos os
seres vivos com que o trabalhador rural lida. O fator tempo é fundamental porque
depende das condições climáticas, determinando os momentos de trabalho e de
vacância
145
.
Uma das características fundamentais no trabalho do campo tradicional é a unidade
doméstica convertendo-se em unidade de produção, ou seja, um trabalho
essencialmente realizado em família.
Nesse sentido, as relações de parentesco - o compadrio, por exemplo - na sua estrutura
são fundamentais para a reprodução tanto material quanto simlica do
relacionamento: a família é o elemento agregador nas relações sociais do homem do
campo.
Nesse sentido, Maria Isaura Pereira de Queiroz exemplifica bem a questão:
“Os caracteres do campesinato continuam os mesmos, conforme
mostram diversos autores. A família constitui sempre a unidade
social do trabalho e de exploração da propriedade, sendo que os
produtos, via de regra, satisfazem às necessidades essenciais da vida;
as tarefas do trabalho se dividem entre todos os membros do grupo
doméstico, em função das faculdades de cada um, formando assim
uma equipe de trabalho. A família assegura a subsistência de todos
os membros; a combinação família-empresa agrícola faz com que se
estabeleça uma comunidade de posse e uma comunidade de consumo,
além da comunidade de trabalho, sob a autoridade de um membro,
que é o pai da família. Comunidade autárquica, a família camponesa
é também em geral autoritária. Por outro lado, o grupo econômico
autônomo constituído pela família camponesa tem tendência a uma
145
Brandão, C. R., Os Caipiras de São Paulo. Ed. Brasiliense, 1983, pg. 50.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
115
forte centralização, procurando se perpetuar por meio de uma
ligação vigorosa com seus meios de subsistência (isto é, com o
patrimônio a ser transmitido aos descendentes), e para tanto negando
aos seus membros o direito de dela se apartar para criar situações
socioeconômicas distintas.”
146
As regras de herança e da partilha social não são iguais às da cidade. m seus
códigos, seus costumes, sua lei própria. A transmissão da herança da terra entre as
populações mais tradicionais geralmente era repassada ao primonito e sempre
homem. Isso acontecia para não haver o risco de a terra ser repartida entre todos os
filhos da família, separando dessa forma a tradição e a cultura. O constructo do
parentesco está ligado à terra como fator de produção e moral no sentido de os
costumes estarem ligados ao patrimônio, principalmente ao patrinio moral.
Antonio Candido, outro importante autor, esclarece de modo sensível as diferenças
entre sociedade/rústica e sociedade/caipira, visto que, muitas vezes, o termo rude está
associado ao caipira. Diz:
O rural exprime sobretudo uma localização, enquanto ele pretende
exprimir um tipo social e cultural, indicando o que é, no Brasil, o
universo das culturas tradicionais do homem do campo; as que
resultaram do ajustamento do colonizador português ao novo
mundo….”
147
Portanto, caipira representa um modo de ser, um tipo/estilo de vida, e o um tipo
racial, como foi descrito por Saint-Hilaire.
Esse modo de vida apontado por Antonio Candido possui uma organização no
trabalho, na alimentação, fonte vital de subsistência, na religiosidade e no meio
ambiente em que vivem, onde a participação da família é fundamental, o que permite
a interação dos vários grupos que vivem na mesma comunidade, gerando assim seu
próprio meio de subsistência e suas manifestações culturais.
146
Queiroz, M. I. P. de, O Campesinato Brasileiro. Ed. Vozes, 1973.
147
Candido, A., Os Parceiros do Rio Bonito. Ed. Duas Cidades, 1987, pg. 21.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
116
Nesse ponto o estudo de Antonio Candido tem grande relevância para o entendimento
do modo de vida do caipira, em que os meios de subsistência não podem ser
compreendidos separadamente da cultura na qual o estímulo provém das necessidades
básicas.
Outro ponto fundamental na cultura caipira diz respeito ao alimento. Fator profundo
de solidariedade e sociabilidade entre essas comunidades, baseia-se na dádiva”
148
entre o dar, o receber e o retribuir.
O alimento desenvolve no seio das relações sociais não somente a organização do
trabalho e a interação social entre os grupos, mas também aspectos culturais como o
mutirão no preparo das festas religiosas e comunitárias, em que todos colaboram
oferecendo alimentos e preparando as comidas típicas atuando nesse aspecto o
universo simlico. A comida reúne em si o trabalho e o ato ritual. A vida, o meio e o
grupo interagem e unificam-se em função dela. O alimento traz uma carga de
manifestação simlica quando adquirido com esforço; à medida que existe uma
regularidade no abastecimento, essa carga simbólica diminui.
O aspecto cultural do caipira em relação à alimentação não condiz com os dias de
hoje, pois os alimentos transformaram-se em função da tecnologia e não mais o
efeito ritual e sacralizador, como também a abundância. Atualmente, a fome prevalece
no campo, o que constitui uma contradição. Em relão a esse assunto, Antonio
Candido aborda a fome psíquica, algo que está presente o tempo todo. Fome e fartura
habitam a memória, sendo a fartura hoje apenas uma idealização.
Como visto, a desvalorização do homem do campo deu-se em diversas formas,
começando com as interpretações deturpadas de rios pesquisadores e cientistas que
atribuíram ao modo de ser do caipira conotações negativas, como sujeitos não
civilizados e sem cultura e, depois, com o avanço do capital e a terra transformada em
mera mercadoria pelo grandes investidores, pela obrigação de esses cidadãos
migrarem para outras regiões ou mesmo para áreas urbanas, deixando para trás sua
identidade e sua cultura, transformando-se em trabalhadores assalariados. Mas a
questão maior é o desenraizamento cultural. Com o tempo, em função da ausência de
148
A dádiva é um conceito desenvolvido pelo antropólogo Marcel Mauss.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
117
sociabilidade, a vida simbólica morre, acarretando desestruturação social e
psicológica. Esse novo espaço é ocupado por valores de consumo pertencentes à
lógica do ambiente urbano.
Estereotipados, desenraizados e com a auto-estima afetada, anseiam pela aceitação da
sociedade como cidadãos que possuem valor e dignidade, revertendo essa identidade
negativa que lhes foi impressa injustamente. Pela inclusão social, tentam se sentir
parte de algo, mas o que fica é o desejo do retorno à terra e do reencontro consigo
mesmo. Nas palavras de Moraes Silva:
“Em suas memórias permanecem o ideal de retorno do pouco
“lugar” que ainda lhes pertencem. A memória, “reencontro em busca
do buraco negro, invisível que ficou. Reencarnação do lugar, da
gente, com a terra, a espera e a esperança.”
149
.
149
Silva, M. A. de M., Vídeo: As Andorinhas: Nem Cá e nem Lá. Projeto de Pesquisa, 1991.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
118
Capítulo IV: A Droga
“Assim, escuta, o Fulano fuma droga? Ele quis fa
não, ai ó Vitória eu não vou mentir procê ele fuma, ele
trás na roça aqui, ninguém sabe, pelo amor de Deus
ninguém sabe mesmo, ele vai assim de minuto em
minuto, vai fumá, ele não consegue, está tão
acostumado com aquilo, que sem fazer isso, ele não
consegue cortar cana, [...] perde a força, dá dor de
cabeça, ele fica assim irritado, então ele precisa ir
fumá pra podê cortar cana, você pode ver que ele corta
superbem cana, mas não é ele que está cortando a cana,
é a droga que está cortando pra ele…”
Vitória: menina, mas com mãos de mulher que não desiste de
seu trabalho para sustentar sua família e seus sonhos.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
119
Atualmente, reportagens televisivas e jornalísticas vêm mostrando que os cortadores
de cana estão consumindo drogas, especificamente o crack. A questão então é: O que
está levando esses trabalhadores a uma mudança brusca de comportamento, sendo que
o crack, podemos dizer, é uma droga muito comum nos grandes centros urbanos, até
em função da facilidade de adquiri-la?
A princípio, poderíamos responder enfatizando o aspecto psicossocial em relação ao
uso de drogas, como mudança de comportamento, representação social e aspectos
relativos à saúde e à identidade.
A aceitação da droga no meio rural pode ser decorrente de vários problemas:
familiares, sociais, financeiros, frustrações profissionais e amorosas, falta de
informão, dificuldades de integração, entre outros. No entanto, vamos ater-nos à
questão do trabalho, mesmo porque é a atividade mais importante no dia-a-dia.
Todo ser humano necessita de prazer ou significado para sua vida, no sentido amplo
da palavra. Nas sociedades modernas, o ser humano geralmente associa a ascensão
pessoal e/ou social à realização no trabalho, uma vez que vivemos numa sociedade
voltada para o consumo e, muitas vezes, esse status social está ligado aos bens
materiais adquiridos.
A possibilidade de emancipação e ascensão social é mais remota no caso dos
trabalhadores rurais, e o consumo do crack pode ser uma forma de esquecerem os
problemas vivenciados no cotidiano.
Inicialmente, no entanto, é importante definir o que se entende por drogas tanto no
sentido psicossocial e cultural como no sentido farmacológico.
Os aspectos psicossocial
(1)
e cultural
(2)
possuem características particulares ao modo
em que vivem determinadas sociedades, com seus mitos, crenças e comportamento. O
estudo das diferentes drogas em diferentes culturas vem sempre associado a questões
históricas, religiosas, sociais e, principalmente, à cultura de cada povo.
diversos tipos de cultura com eficácias diferentes referentes à droga. Em
sociedades ditas primitivas”, a droga possui efeito ritual e religioso. em
sociedades ditas modernas”, um dos aspectos é o caráter adquirido no sentido de
identificação social, de inserção e aprovação por determinado grupo.
Nos países andinos, o ato de mascar a folha de coca, predominante no campo, está
ligado ao trabalho. Esse fato origina-se da necessidade de subsistência, pois trabalha-
se mais de 12 horas por dia sob elevada altitude. Entretanto, diferenças no ato de
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
120
mascar a folha pelos trabalhadores andinos comparado ao ato de consumir crack pelos
cortadores de cana: os andinos não são dependentes químicos ou psicológicos, é um
ato de herança cultural, e não há discriminação social.
Nos países de primeiro mundo, a droga abrange outros conceitos. A estratificação e as
regras sociais tornam o usuário um ser à margem da sociedade. Por serem sociedades
voltadas ao desenvolvimento tecnológico e industrial, outros valores são
humanizados, além do entendimento distorcido da maioria da população de que
drogas são apenas aquelas substâncias proibidas por lei.
A ascensão social vista nas sociedades primitivas” e modernas” em relação à droga
possui enfoques diferenciados. Nas “primitivas”, quando um jovem atinge sua
maioridade, é inserido no grupo e participa do ritual, adquirindo uma identidade e
conhecendo o mundo espiritual e seus significados religiosos. Nestas sociedades, usa-
se plantas alucinógenas e não discriminação, pois a droga faz parte das regras
simlicas.
Nas “modernas”, muitos buscam alternativas de identificação no meio social pelas
drogas e, conseqüentemente, seu abuso, não obtendo o êxito esperado.
No aspecto farmacológico
150
, usamos o termo drogas psicotrópicas, isto é, aquelas
que agem no rebro, modificam seu funcionamento e, em decorrência disso, alteram
o comportamento psicológico do usuário. Existem três classificações para as drogas:
as estimulantes, as depressoras e as perturbadoras.
As estimulantes atuam no sistema nervoso central, fazendo o cérebro funcionar mais
rapidamente. Fazem parte desse grupo a cocaína, crack, anfetaminas (mazindol,
dietilpropima, fenproporex), inibidores de apetite, a cafeína, entre outras.
As depressoras fazem o cérebro funcionar de maneira mais lenta, deprimindo a
atividade cerebral. São depressoras o álcool, hipnóticos, barbitúricos, ansiolíticos
(diazepan, lorazepam, clordiazepóxido) narcóticos naturais (morfina e codeína),
narcóticos sintéticos (meperidina, metadona, propoxifeno) e narcóticos semi-sintéticos
(heroína), além dos solventes.
As perturbadoras o alteram o ritmo do cérebro no sentido mais rápido ou mais
lento, mas sim o funcionamento normal dos neurônios, causando confusão no cérebro.
150 Os dados foram extraídos do Centro de Estudos sobre Drogas Psicotópricas. CEBRID/UNIFESP.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
121
Provocam alucinações e delírios. São as drogas sintéticas (LSD e êxtase), as naturais
(maconha ou derivados, haxixe e THC), os inlicos (plantas e cogumelos) e os
derivados do peiote. Também são perturbadoras as drogas anticolinérgicos (derivadas
de plantas, Datura sp) e as sintéticas (triexafenidila e benactizina).
151
Como pode-se observar, todas afetam, profundamente, o só o sistema nervoso, mas
todo o corpo humano.
A partir dos esclarecimentos sobre os aspectos psicossocial, cultural e farmacológico
em relação ao que se entende por drogas, faz-se necessário abordar o contexto do
“mundo das drogas” em nossa sociedade.
O conceito de mundo, como já visto anteriormente neste estudo, está vinculado às
obras de Alfred Schütz e George Simmel.
Em nossa sociedade moderno-contemporânea, o processo de complexidades tende
cada vez mais a multiplicar os espaços e domínios sociais simbólicos”,
152
transformando-os em espaços de “mundosno sentido genérico.
Sendo assim, a existência de um mundo das drogas está vinculada a toda uma
organização criada em torno dessa temática, englobando a produção, distribuição,
consumo, além das complexidades sociais e culturais associadas às drogas, como as
crenças, valores, estilo de vida e vies de mundo que expressariam modos
particulares de construção social da realidade”.
153
No entanto, dentro do mundo das drogas podemos estabelecer um recorte
heterogêneo nas sociedades contemporâneas, quando pensamos, por exemplo, em
uma aldeia boliviana ou nas tribos indígenas do Brasil, e no tráfico internacional e nos
grandes centros de consumo, como Nova Iorque, São Paulo, Paris, Rio de Janeiro, etc.
No caso das grandes metpoles, podemos identificar grupos, indivíduos e categorias
sociais que consomem drogas de forma diferenciada. Neste mundo, a noção do que é
xico e a conceitualização do que é droga o extremamente complexas, abarcando
rios conjuntos, desde a heroína até o papo de anjo. Da mesma forma,
comportamentos e atitudes não podem ser analisados de forma homogênea em relação
151
Os nomes científicos das drogas, bem como suas características e efeitos no corpo humano, foram retirados dos folhetos
publicados pelo CEBRID.
152
Velho, G., A Dimensão Cultural e Política do Mundo das Drogas in Drogas e Cidadania. Ed. Brasiliense, 1994, pg. 23.
153
Idem, pg. 23.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
122
ao que chamamos de “mundo das drogas”. É necessário estabelecer distinções e
particularidades em função da amplitude desta temática.
Além das diferenças em abordar as fronteiras da estratificação socioeconômica,
também distinções em relão às tradições culturais e às particularidades no
consumo de cada droga: maconha, cocaína, crack, ácido, álcool, etc. Historicamente e
culturalmente, a mesma droga pode apresentar usos e costumes muito diferentes. O
consumo da maconha, por exemplo, era mais comum entre pessoas das camadas mais
populares de nossa sociedade. A disseminação desta droga entre os setores dios e
de elite tem início a partir dos anos 60, em função da opressão potico-cultural que o
mundo atravessava. Jovens de vários países, principalmente do mundo ocidental,
manifestam-se contra os governos de ditadura, o racismo, a guerra do Vietnã e os
padrões convencionais - valores familiares, educacionais e de trabalho - dando vazão
a uma concepção de mundo livre da opressão no sentido amplo, pregando a liberdade
humana, sexual, etc. Esse movimento contra-cultural caracterizou uma geração,
denominada geração beat, que recebeu a inflncia de vários escritores e poetas como
Jack Kerouac, Walt Whitman, Alan Ginsberg, e também a geração hippie, em que as
palavras de ordem eram paz e amor. Esses jovens tinham uma esperança verdadeira
de transformar a realidade vivida em um mundo melhor; para isso, seria necessário
chocar os padrões vigentes e as autoridades políticas, chamando a atenção da
sociedade como um todo para as situações em que os governantes de Estado
expunham suas populações, obrigando os jovens ao serviço militar e enviando-os para
uma guerra que eles nem sabiam os porquês, promovendo ditaduras sangrentas nos
países da América Latina, expulsando o homem do campo e perseguindo os
intelectuais, a população negra e os partidos de esquerda. Enfim, uma verdadeira caça
às bruxas em pleno século XX. As palavras de liberdade e mudança de
comportamento eram ecoadas nos ouvidos de toda uma geração. A droga serviu de
caminho para essa trilha, assim como as músicas de protesto surgidas na época.
A droga (maconha, LSD e heroína), assim como a música (rock), eram elementos
presentes, significando uma mudança de comportamento, estilo de vida e visão de
mundo, transgredindo as leis vigentes.
A grande questão nesse contexto é que os jovens que ansiavam pelo fim de uma
guerra, dos governos de ditadura e dos padrões morais vigentes estavam caindo em
outra guerra: a luta para livrar-se da depenncia química e psicológica das drogas,
após seu consumo freqüente. Com essa grande massa de dependentes, o narcotráfico
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
123
organiza-se cada vez mais para fortalecer sua expansão e abastecer o mercado
mundial.
É importante frisar que o consumo de drogas não pode ser analisado de forma isolada,
excluindo os atributos sociais e culturais que envolvem diferentes grupos e categorias.
Por outro lado, os povos tradicionais usam drogas dos tipos mais variados com outro
caráter social, associado ao contexto religioso. A droga é consumida em cerimônias e
rituais, sendo um mero instrumento para a comunicação com o mundo dos espíritos e
do sobrenatural.
A disseminação das drogas em nossa sociedade, pelos seus diferentes segmentos de
classe social (populares, média e alta), acabou gerando uma nova situação. o se
tratava de confirmar os estereótipos relacionados às pessoas de baixa-renda pelo
consumo da maconha, mas de explicar mudanças de comportamento. Assim, a droga
adentra por um mundo metropolitano com grande número de pessoas e extrema
diversidade, e não em uma sociedade de pequena escala como as tradicionais.
Ao estudar o fenômeno das drogas, é importante a contextualização, pois todas as
tentativas e explicações genéricas baseadas nos aspectos fisiológico e psicológico
acabaram no nível da rotulação e estigmatização.
É óbvio que, no mundo das drogas”, seria demasiadamente innuo ignorar a
existência de redes nacionais e internacionais com interesses poticos e econômicos, e
visualizar somente as circunstâncias sócio-históricas.
O tráfico de drogas internacional mobiliza diversos segmentos da sociedade e muitas
pessoas, constituindo-se em um grande instrumento de poder. O tráfico de drogas é
uma das atividades mais lucrativas, atuando ao lado do tráfico de armas. Dessa forma,
torna-se irresistível, para certos aplicadores de capital menos éticos, participar e
investir nesse comércio mundial e clandestino; por isso a dificuldade em controlar a
circulação de drogas por meio das medidas legais.
É importante não impor modelos únicos e homogêneos em relação à conduta e a
atitudes sobre o uso de drogas, principalmente em sociedades complexas, excluindo a
natureza potica e econômica que também faz parte de seu contexto.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
124
A Cultura do Álcool
…“Por acaso, ou mesmo de propósito, algumas frutas, possivelmente
uvas, foram deixadas por algum tempo em um vasilhame primitivo ou
em algum buraco de rocha. O sol e a ação de “criaturas invisíveis”
que agora sabemos chamavam-se fermentos, estragaram as frutas.
Elas se transformaram em uma massa pastosa. Mas um homem
faminto e sedento ingeriu a massa. Nós podemos apenas imaginar o
impacto deste acidente fermentativo. Não apenas a sua fome e a sua
sede foram saciadas, mas ele se sentiu inexplicavelmente bem. Menos
cansado, mais corajoso…Estava descoberto o álcool.”
Mark Keller
154
A descoberta do álcool conforme descrição de Mark Keller é mais uma forma de
liberdade poética do que histórica.
A verdadeira história da descoberta do álcool jamais saberemos exatamente, mas sua
existência e os problemas que causam pelo seu uso inadequado são antigos
conhecidos do homem.
A ingestão do álcool é um dos costumes mais antigos e continua persistindo em nossa
sociedade atual, apesar do conhecimento dos perigos potenciais de seu hábito pelo uso
excessivo.
Os primeiros registros sobre o uso do álcool datam de 6.000 a.C., e sua grande
popularidade no mundo faz com que ele seja eleito a droga mais consumida, a qual
outros psicotrópicos vêm se sobrepor, mas não substituir.
155
A formulação do álcool é constituída basicamente da fermentação de açúcares,
(cerveja e vinho foram as primeiras bebidas alcoólicas), sendo facilmente obtida em
qualquer região do país e do mundo. O mesmo procedimento não ocorre com outras
substâncias psicoativas, como os opiáceos, a maconha e a coca, que, além de sofrerem
limitações em relação ao plantio, necessitam de solo e condições climáticas
adequadas, passando posteriormente por um processo químico mais complexo que o
do álcool. Em função das questões levantadas, outro aspecto favorável ao álcool é seu
custo e aquisição, muito mais acessíveis comparados a outros psicotrópicos.
154
Masur, J., O Que é Alcoolismo. Ed. Brasiliense, 1991, pg. 9. Citação extraída do mesmo livro.
155
Idem, pg. 10.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
125
Uma outra característica encontrada nas bebidas alcoólicas, não presente em nenhuma
droga psicotrópica, é a de fornecer energia. Cada grama de álcool contém 7
calorias.
156
Essas calorias são chamadas de calorias vazias”,
157
pois não estão associadas a
proteínas, vitaminas ou sais minerais. Seu conteúdo calórico constitui uma
diferenciação em relação a outras substancias psicoativas. Fornecendo energia, as
bebidas alolicas fazem com que o ser humano o sinta fome. Esse fator, aliado ao
baixo custo, torna o álcool mais atraente que outras drogas. A combinação entre o
aumento do poder energético e a perda da fome acaba sendo um fator importante em
lugares onde essa condição é comum, caso de algumas regiões do nordeste, em função
da seca e da falta de alimentos. Sabe-se de casos, nas regiões canavieiras de alguns
municípios do nordeste, em que muitas mães, antes de ir para o trabalho no corte de
cana, embebedam seus filhos para que eles durmam e, conseqüentemente, não chorem
de fome, pois não alimentos para saciar uma função biológica necessária para a
sobrevivência do ser humano ou de qualquer ser vivo, que é o ato de se alimentar.
Em busca de uma compreensão das causas que levam pessoas ao consumo de drogas
psicotrópicas, excluindo a dimensão citada acima, um fator a ser considerado é o tipo
de efeitos farmacológicos produzidos associado ao aspecto psicossocial de cada
indivíduo.
Sobre a sensação que o álcool produz, Masur diz:
“O álcool é uma droga que no ser humano produz, ao lado do seu
claro efeito depressor, uma não menos óbvia ação de euforizante,
traduzida predominantemente por desinibição comportamental,
hilaridade, expressões afetivas aumentadas e diminuição da
autocrítica. Esta dupla ação do álcool é dose-dependente, o efeito
estimulante ocorrendo em doses menores.”
158
156
Masur, J., O que é Alcoolismo. Ed. Brasiliense, 1991, pg. 11.
157
Idem, pg. 11.
158
Idem, pg, 11.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
126
As primeiras bebidas alcoólicas consumidas foram a cerveja e o vinho, que dependem
exclusivamente do processo de fermentação. Com a sua disseminação, comaram a
surgir bebidas destiladas como: rum, conhaque, uísque e a famosa cachaça, que no
Brasil é muito popular, existindo inúmeras usinas no país na fabricação dessa bebida.
O surgimento dos destilados causaram uma revolução na história das bebidas
alcóolicas, pois seus efeitos são mais prolongados, não só em relação à euforia, mas
também em relação à embriaguez e ao alcoolismo.
O álcool é uma droga que possui questões contraditórias, ou seja, de um lado o
fator extremamente atraente, e de outro, o fator destrutivo, como exemplifica a citação
a seguir:
“A um legislador foi perguntado se ele era contra ou a favor de
bebidas alcóolicas e ele respondeu:
“Se você se refere àquela substância que leva à degeneração do
homem, que lesa profundamente o seu organismo, que mina as forças
construtivas do país, eu sou contra. Mas se você está pensando
naquela substância que promove a igualdade e a fraternidade entre
os seres humanos, que faz com que as pessoas se sintam mais felizes,
que facilita a homens e mulheres que se relacionem livres dos
preconceitos impostos pela sociedade, então eu sou a favor.”
159
Entre as populações rurais é muito comum verificar essa dupla situação em relação à
ingestão de bebidas alcoólicas, como demonstrado no trecho acima. Temos os
aspectos culturais e de sociabilidade em virtude das festividades de caráter religioso e
de tradição. Por outro lado, quando essa acessibilidade no contexto da tradição é
desviada de sua função original, acarreta um grande problema, que é a dependência do
álcool, não sendo muitas vezes encarada como uma doença que deve ser tratada.
159
Masur, J., O Que é Alcoolismo. Ed. Brasiliense, 1991, pg. 15.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
127
As determinações biológicas, psicológicas e sociais que levam o indivíduo a se tornar
dependente do álcool são muito semelhantes às que levam a dependência das drogas
ilícitas, como o crack, cocaína, heroína, etc.
A determinação biológica baseia-se no fato de as pessoas, quando começam a beber
ou usar outras drogas, não conseguirem se restringir a uma ou duas doses, ou vezes de
uso. Este fenômeno é conhecido como Perda do Controle e ocorreria em
conseqüência a uma reação fisiológica em cadeia desencadeada por uma quantidade
inicial de álcool”
160
, levando ao consumo de quantidades cada vez maiores, indo
contra a intenção inicial de apenas experimentar.
A determinação psicológica coexiste com a teoria da vulnerabilidade biológica.”
161
Um dos pressupostos são traços característicos de personalidade, como insegurança,
dependência, baixa auto-estima, passividade e introversão. Outro pressuposto em
relação à depenncia do álcool, e outras drogas também, é que os dependentes
aprendem a lidar com os problemas existenciais por meio de seu uso, ou melhor
dizendo, pelo efeito delas.
A última determinação, que é a social, está ligada ao caráter cultural relacionado aos
grupos sociais. Culturas que utilizam o álcool ou outras drogas para efeito ritual
possuem baixos índices de dependência, pois o que prevalece é o contexto simlico e
o o abuso destas com a finalidade de afastar-se dos problemas de ordem emocional,
financeira, profissional, etc., dificuldades de inclusão nos diversos grupos sociais, de
comunicação, e de relacionamentos.
Em nossa sociedade, é muito comum meninos serem encorajados por seus familiares e
amigos a ingerir bebidas alcoólicas precocemente, incutindo a idéia de que para
provar sua masculinidade deve-se praticar esse hábito.
162
Sobre essa questão da ingestão de álcool entre a população masculina no sentido de
provar valores como virilidade e maturidade, temos o relato do Prof. Dr. Igor
Vassilief, médico toxicologista da UNESP/Botucatu:
160
Masur, J., O que é Alcoolismo. Ed. Brasiliense, 1991, pg. 29.
161
Idem, pg. 36.
162
Os dados relacionados às determinações biológicas, psicológicas e sociais foram extraídos do livro. O Que é Alcoolismo, de
Jandira Masur, transpondo essas determinações a outras drogas como o crack. Os aspectos biopsicossociais referentes à
dependência do álcool são semelhantes aos de outras drogas.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
128
“Então é diferente. Não precisa tomar todo dia. Mas o povão...o cara
põe na cabeça porque um slogan, inclusive eu aprendi esse slogan
na cana...com a meninada... Anos atrás na...roça, é que os mais
velhos induzem os mais novos a beberem, bebida alcóolica. Então, o
mais velho chega e pro irmão de 12 anos e aí? num...e ele não
quer beber. “Se cê não beber, cê num é homem”. Mas não é homem
mesmo! 12 anos não é homem. É um slogam dos...na cabeça do
moleque. Ele acaba bebendo, ele passa mal porque ele quase não
bebe, mas poder levar o slogan “eu sou homem”, ele acaba
bebendo! E começa a entrar no ritmo… Quer dizer, induzindo o
slogan…é espantoso…aí vai fa pro rapaz “não, não faça isso!
não cai na conversa dos mais velhos”. 12 anos não é homem!...
Acaba prejudicando, mas...essa frase eu aprendi exatamente na
plantação. Não foi de livro, não existe livro, nada. Foi de usuários
que vêm no serviço, que vêm contando... Como? Quando você
começou a beber? Com que idade? Mas porque você começou a
beber com 12 anos? “Ah, eu fui lá acompanhar meus pais, tava
trabalhando, os caras levam bebida lá...na hora do almoço, né,
bebem na hora do almoço e olha pra minha cara e eu tô lá sem beber.
o cara vira e fala:” “Olha, tem que beber!”, “mas não gosto
disso aí, não quero”; “aí o cara diz:“Não, tem que beber, senão
cê não é homem, pô!””
Muitas vezes a porta de entrada para o consumo de outras drogas é aberta pelo uso e
abuso do álcool. É incomum uma pessoa iniciar suas experiências psicotrópicas
consumindo diretamente uma droga como o crack. O álcool, por ter o caráter lícito,
sem repressões sociais, traz em si não somente os problemas decorrentes de seu
consumo, mas libera a possibilidade de potencializar suas sensações junto com outras
drogas como o crack, maconha e cocaína.
Outro trecho da entrevista com o Prof. Dr. Igor Vassilief mostra essa relação entre o
uso e abuso do álcool e de outras drogas como o crack:
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
129
Arlete: Quer dizer que quem consome crack também consome álcool
e maconha?
Prof. Igor: “Consome. Consome muito mais. Mas aí...quando no
crack, ele já usou a maconha...”
Arlete: Ele já bebeu...?
Prof. Igor: Aí...volta a beber junto. Porque é o seguinte, o crack
estimula e o álcool consegue abolir a estimulação. que não em
doses baixas, então o indivíduo começa a beber em doses altas. E nós
temos indivíduos de 20 anos, alcoólatras, que começaram a beber
com seus 12 anos. Não precisa esperar 45 anos de idade pra ser um
alcoólatra…”
O álcool é uma droga que, consumida constantemente, causa problemas orgânicos
como gastrite, aumento da pressão arterial, hepatite, cirrose alcoólica, distúrbios
neurológicos, etc. Esses problemas levam um tempo relativamente longo para se
manifestar, comparado aos efeitos orgânicos pelo uso crônico de drogas como a
cocaína e o tabaco.
o uso crônico da cocaína, organicamente, leva ao emagrecimento, debilitando de
forma geral o organismo, além de insônia, lesão grave da mucosa nasal e maior
probabilidade de convulsões. Para aparecer tais sintomas no corpo humano, o período
é relativamente curto.
Essas duas drogas combinadas e consumidas, uma prática comum, geram um efeito
devastador no organismo, além dos danos sociais que causam quando o indivíduo está
consumido por seus distúrbios psicológicos.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
130
A tabela a seguir fornece-nos uma referência sobre as drogas em relão aos danos
por seu uso intensivo.
Não levando-se em consideração a via de administração (no caso da heroína e da
cocaína, podem ser usadas de forma injetável, com conseqüências gravíssimas tanto
na parte física como na psíquica), as drogas que demonstram maior risco orgânico
pelo uso crônico são o álcool, a cocaína e o tabaco. Outro aspecto significativo é a
síndrome de abstinência. De acordo com a tabela abaixo, nota-se que o álcool
continua liderando o ranking, mas em relação a outras drogas há uma reorganização
na estrutura. A heroína reveste-se do mesmo caráter de gravidade que o do álcool,
mas com pouco tempo de uso.
Tanto o álcool como a heroína apresentam maior risco ao ser humano quando em
abstinência dessas substâncias.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
131
Outro problema de grande relevância é a incapacidade social causada pela droga.
Novamente, álcool, heroína e cocaína encabeçam a lista, conforme a próxima tabela.
A incapacidade social manifesta-se em decorrência das alterações psicológicas
causadas pelas drogas, bem como pela própria dependência que estas causam.
A depenncia não se refere ao período em que a pessoa encontra-se no estado de
abstinência, como citado anteriormente, mas sim a partir do momento em que a droga
penetrana vida do indivíduo, passando a significar uma prioridade. Outros valores,
considerados importantes, perdem seu lugar para a droga, afetando as relações
familiares, profissionais e afetivas.
163
A incapacidade social relativa ao uso tanto da heroína como da cocaína leva menos
tempo para aparecer comparada ao álcool. Tanto a heroína como a cocaína têm grande
potencial de invadir a vida das pessoas, fazendo com que elas negligenciem
cuidados básicos consigo próprias, como também relações fundamentais que têm com
o mundo. A busca das condições para se obter a droga, como conseguir dinheiro e
encontrar o traficante, passa a ser a preocupação dominante do usuário. Essa natureza
pode ser exemplificada pelo trecho da entrevista do pastor Valter, quando este fez o
atendimento a três jovens cortadores de cana que estavam no DEJOB para se
recuperar da dependência das drogas.
163
As três tabelas foram extraídas do livro: Drogas: subsídios para uma discussão, de Jandira Masur e E. A. Carlini. Ed.
Brasiliense, 1993, pg. 18, 21 e 24.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
132
“Nós...além de toda a segurança, com todo o trabalho em cima deles,
né, eles ainda prepararam um assalto, né, e isso pela...eu acredito que
eles entraram numa...numa depressão...numa ansiedade terrível
naquela noite, , por falta da droga e do alcoolismo, do cigarro, né,
do ambiente. E...conseguiram a fuga, foram até a...cidadezinha, o
bairro, e fizeram o assalto com revólver, com tiro, saiu tiroteio,
sabe? Uma coisa assim...horrível mesmo, né? Que passamos aquela...
aquela madrugada com polícia, né, a polícia prendeu todos eles,
levaram para...para.... não sei se é o 1o. DP, na delegacia... E ali foi
feito um B.O., a ocorrência pelo dono do restaurante, né. E
isso...deram voadoras, derrubaram todos aqueles...aquele prédio,
aquela...aquelas porta toda lá, né. Foram recebidos a bala pelo vigia,
né?…”
No caso, a falta de cocaína e heroína leva o usuário a um estado de grande
irritabilidade e sentimentos “persecutórios”. A paranóia, traduzida em um grande
medo sem razão, pode levar a manifestações de violência. Por esse motivo, a
incapacidade social vem sendo apontada como um dos principais problemas
psicológicos causados pelo uso das drogas, principalmente a cocaína.
O Crack
Antes de analisarmos os porquêsdo crack, algumas considerações a respeito dessa
droga são necessárias para compreender os seus efeitos na vida das pessoas.
O crack nada mais é do que a cocaína em forma de pedras, e tem esse nome porque,
quando essas são colocadas em uma espécie de cachimbo e fumadas, emitem um som
de estalo, crack, crack. Tanto o crack como a merla são obtidos de uma mistura a
partir da extração da pasta da coca. Essa pasta contém várias impurezas, sendo
necessárias outras reações químicas para transformá-las em um produto puro. Assim,
essas duas formas da cocaína são mais baratas do que a forma em.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
133
As reações desta droga no sistema nervoso central ocorrem de formas diferenciadas,
de acordo com a via de uso (nasal, pulmonar e endovenosa) e pelo grau de pureza
encontrado no produto. Quanto mais rápido a droga agir no cérebro, mais apreciada
será pelo consumidor.
Aspirando a cocaína, por exemplo, o usuário começa a sentir seus efeitos após 10 a 15
minutos. Injetando, após 3 a 5 minutos; e fumando (crack), após 10 a 15 segundos.
Com relação à duração de seus efeitos no cérebro, o crack é a droga que tem menor
duração, isto é, 5 minutos após ser fumado eles desaparecem. Com a cocaína
injetável, os efeitos têm duração em torno de 15 a 20 minutos, e com a aspirada, de 30
a 40 minutos. Assim, o crack é a droga que age mais rapidamente no sistema nervoso
central e também é a mais consumida, em função de esses efeitos desaparecerem em
pouco tempo.
Por causa dessa característica (agir de forma rápida no cérebro, desaparecendo logo
em seguida) o crack acabou tornando-se a droga mais cara e perigosa, em comparação
aos outros tipos de usuário da cocaína, pois a freqüência de uso do crack é muito
maior que as outras, apesar de seu baixo custo monetário.
Sobre essa questão do crack, a Dra. Eliete, psicóloga que realizou atendimento aos
cortadores de cana que estavam consumindo crack no CEATOX de Botucatu, junto
com o Dr. Igor, relata:
“O aspecto social contribui para que esses cortadores estejam usando
o crack porque ele é mais barato que as outras drogas. Você é
usuário de droga, você pega uma droga, potente que nem o crack, e
tem toda uma facilidade de obter, porque custa, hoje, de 4 a 5 reais
uma pedra. É barato, é mais barato…e a sensação que você vai ter é
muito maior ...
Os efeitos que o crack provoca no ser humano, de forma geral, estão divididos em
psíquicos e periféricos. Psíquicos seriam aqueles que agem no funcionamento do
cérebro (sistema nervoso central), e periféricos, os efeitos que atuam em outras partes
do corpo humano.
Os efeitos psíquicos em relação à cocaína fumada (crack) são descritos como uma
sensação de grande prazer, comparada ao orgasmo sexual. Essa intensidade de prazer
o aparece em usuários da cocaína de forma aspirada.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
134
Quando seus efeitos desaparecem, outros não agradáveis surgem. O usuário sente um
mal-estar, associado à ansiedade e angústia que tem após o término dessas sensações.
Surge uma vontade irresistível de usar novamente, a qual o usuário não consegue
dominar. Essa sensação é maior em usuários de crack; por isso, esses são
considerados mais violentos que os usuários da cocaína aspirada ou injetável. Quando
o têm a droga, começam a sentir a fissura”, perdendo toda a razão, cometendo
roubos, brigas e até atos mais sérios.
Essa vontade intensa acompanha o usuário sempre, mesmo ele deixando de usar a
droga. Uma vez em contato com algo que lembre a droga, volta a sentir vontade de
consumi-la, perdendo seu controle.
A paranóia também é uma sensação mais intensa e comum em usuários de crack.
descrições que, quando sob o efeito da droga, os usuários não confiam nos
companheiros, acham que a qualquer momento a polícia ou algum parente vai
aparecer, etc. Além disso, esses usuários podem tornar-se violentos, achando que seus
companheiros o passaram para trás, roubando a droga, etc.
Os efeitos periféricos - aqueles que agem em outras partes do corpo que o o cérebro
- atingem principalmente o coração, em função de a cocaína aumentar a pressão do
sangue e o batimento cardíaco, causando uma arritmia que pode levar à morte. Além
disso, uma elevação na temperatura do corpo, fazendo com que o usuário transpire
mais que o normal e sua boca fica seca. Por isso que é muito comum usuários de
cocaína serem usuários de álcool, como mencionado no sub-capítulo anterior.
Os efeitos crônicos - aqueles adquiridos com o tempo de uso -, como ansiedade,
alucinações, paranóia, agitação, etc., passam a ser freqüentes, ou seja, basta o usuário
consumir um pouco da droga e já é suficiente para sentir o mal-estar que ela
proporciona. com as sensações agradáveis acontece o inverso. O usuário necessita
cada vez mais consumir a cocaína/crack para obter a sensação que teve na primeira
vez. É uma busca constante de algo perdido, como um dejavu”, uma sensação
passada que não pode mais ser alcançada. Essa necessidade de aumentar a dose para
sentir os efeitos agradáveis denomina-se tolerância a qual ocorre com os usuários
dependentes de álcool também.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
135
Os efeitos desagradáveis que aparecem quando pequenas doses da droga são
consumidas é denominado sensibilização. “É como se o organismo estivesse mais
sensível à droga”.
164
Além desses fatores, a cocaína inibe o apetite, fazendo com que o usuário perca peso.
O sono também é prejudicado, pois, sob o efeito da cocaína, ficam com insônia.
Juntando todas essas implicações que a droga provoca no corpo humano, o crack tem
causado danos sérios aos pulmões, criando situações como tosses freqüentes e
dificuldades de respirar.
Outro problema com o passar do tempo é a própria dependência dessa substância
nociva, tanto na parte física como psicológica, na vida do usuário.
No aspecto social, a droga (crack) passa a ser o centro da vida desses usuários, mesmo
sabendo que ela traz sérios problemas a sua saúde.
Após algum tempo, os usuários usam a droga não somente para sentir seus efeitos
agradáveis, mas principalmente para diminuir as sensações desagradáveis que ela
provoca quando o indivíduo está em abstinência. Proeza essa que acaba não
conseguindo.
165
Em função da complexidade que envolve o assunto, neste estudo não pretende-se
afirmar que os cortadores de cana de várias regiões do estado de o Paulo estão
consumindo crack por um motivo ou por outro. Isto pode incorrer no erro de
centralizar apenas em uma questão e ignorar outras tão importantes quanto a eleita. O
objetivo é discutir baseando-se nas diferentes versões dos entrevistados, achando um
ponto comum a todas elas.
Assim, além de analisar as diversas versões que circulam sobre essa questão, é
importante chamar a atenção do uso e abuso de drogas por “nrazões, mesmo
porque, constatado em diversos estudos psicológicos e sociais realizados com
indivíduos que as consomem e sua repercussão na esfera familiar e social, nunca
conseguiu-se achar uma resposta ideal para os porquês que envolve o presente
fenômeno.
164
Nappo, S. A., e Noto, A. R., Cocaína: Crack, Merla e Pó, 1998.
165
Os dados referentes aos aspectos psíquicos, periféricos e crônicos do uso da cocaína/crack foram extraídos da cartilha
Cocaína: Crack, Merla e Pó, 1998. As autoras Solange Nappo e Ana Regina Noto são pesquisadoras do CEBRID, órgão
pertencente à UNIFESP. Essa cartilha foi escrita para o Programa de Prevenção ao Uso Indevido de Drogas no Campo, do
SENAR/SP, desenvolvido pela socióloga Arlete Fonseca de Andrade.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
136
O uso de drogas abarca vários contextos, como: a história individual, grupal, cultural
e social regida em cada sociedade. Em relação as comunidades rurais, as razões
podem ser diversas, como a falta de perspectivas nos âmbitos profissional e pessoal,
ausência de assistência da rede pública para atender suas necessidades básicas, o
trabalho que exercem ser muito exaustivo (ganham por produtividade/dia de cana
cortada) ruptura dos vínculos familiares, religiosos e culturais, etc.
Como a presente pesquisa tem um caráter inédito dentro da psicologia social e das
ciências sociais, vale ressaltar a importância da temática a fim de chamar a atenção de
estudiosos, autoridades públicas, profissionais das ciências médicas e biológicas que
atuam na assistência a essas populações, para trabalhar os aspectos preventivo e
curativo da dependência de drogas, que, infelizmente, ainda é vista de forma
estigmatizada, associada à formação de caráter, e não como uma doença, que
envolve também os familiares do usuário e deve ser tratada.
O crack, como exposto no início desse sub-capítulo, é derivado da cocaína. Na
classificação entre as drogas, é considerado uma das piores por diversas questões.
Fundamentado em pesquisas farmacológicas e comportamentais, seus efeitos agem
rapidamente no organismo do indivíduo causando danos irreversíveis e dependência
rápida. Atua diretamente no sistema nervoso, proporcionando psicologicamente
prazer, alegria, sensação de poder, falta de apetite e de cansaço.
Os usuários, quando consomem crack, não sentem cansaço, fome, tristeza, e ficam
hiperativos. Mas, após o uso contínuo em busca do prazer inicial, tornam-se
dependentes.
Um trecho da entrevista realizada com o Prof. Dr. Igor Vassilief explica bem os
efeitos do crack no corpo humano.
“É, eu diria assim: no objetivo pra cortar cana não precisa consumir.
Isso não necessidade, nenhuma possibilidade pra cortar cana.
Agora, o cara que descobriu esse lado e a molecada é ignorante,
vamos ser claros. Então ele é induzido, adolescente quer, é a coisa
mais fácil, é a fase mais perigosa que nós temos na nossa vida,
porque não está com a personalidade formada. Qualquer um que
venha com uma novidade, qualquer coisa que se exponha, o cara
acredita. Pode ser para bem, pode ser para mal. Então o cara falou,
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
137
né, “dá uma legal”. Mas dá realmente essa resposta aí, e vou dizer, é
em reação que ela induz. Se…você fosse pra levantar…, além de toda
a operação feita você vai ter um momento de prazer, porque ela vai
acabar, em última análise, jogando mais dopamina, o que num
mecanismo de ...ela inibe o crescimento de...e retorno, então você fica
mais tempo com dopamina atuando com ....Dopamina ela é um dos
...no nosso cérebro que nos da prazer, que um bem-estar
momentâneo. E é o mesmo que dar um orgasmo para nós, no ato
sexual nós temos dopamina envolvida.
Libera, estimula...no ato sexual pra nós...é uma delícia. A droga
também esse prazer, mas na cabeça é um quadro. Então pra
você entender melhor, é um prazer de um indivíduo que não é
alcoólatra, o cara que toma eventualmente uma bebida alcóolica, seja
um copo de cerveja ... se tomar um copo de cerveja você vai ver essa
diferença, quando você está tomando um copo de cerveja, quando
dois minutos você sente um bem-estar, você sente algo no seu cérebro,
um ... que seria o fator de ...você sente algo diferente, aquilo te dá um
bem-estar, te um momento de prazer. É esse o mecanismo que
ocorre com as outras drogas. Então eu não vou dizer que droga não
dá. Coca dá, crack dá, maconha dá, e o indivíduo acaba
procurando exatamente, um quadro gostoso. Ele não sabe dizer
que é por causa disso. Ele não consegue usar essas palavras.
Comparar um gato com um moleque desses, o cara não entende nada
ele vai pensar que...não é isso. Mas ele, com as palavras dele, nós
temos que usar, entender as palavras dele. Se ele falar “dá prazer,
uma coisa gostosa também”, talvez ele acabe procurando, porque ele
procurando em última análise não é o que eu faço de ficar o dia
todo cortando cana lá, porque isso é cansaço, não é prazer, isso é
desgaste. Como essa droga, especificamente cocaína, o crack, né,
que é cocaína, dá essa estimulação, ele tem um prazer momentâneo,
então ele por causa de 10, 15 minutos, o máximo que isso aí, ele
trabalha oito horas a troco de nada, produzir, produzir, e fica
esperando pelo dia seguinte receber novamente a coquinha dele”.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
138
A idéia desenvolvida pelo Prof. Igor reporta exatamente essa sensão que os usuários
de cocaína/crack procuram: um grande prazer, pois, de acordo com suas palavras, essa
droga faz com que haja no cérebro uma produção maior, porém forçada, de dopamina,
transmitindo essa sensação física.
É interessante notar que, no final deste trecho, o Prof. Igor diz que a atividade
exercida por esses trabalhadores não prazer em suas vidas, fazem por uma questão
de sobrevincia. o existe o trabalho criativo, a realização, o prazer por meio dele.
Dessa forma, esses trabalhadores passam o dia todo cortando cana, sentindo grande
exaustão e sem obter o prazer desejado. A maioria desconhece a importância de seu
trabalho dentro da estrutura da agroindústria canavieira. Esse processo torna-se
alienante para o homem que exerce sua atividade profissional objetivando apenas sua
sobrevivência, sem vislumbrar outra alternativa ou perspectiva de vida.
Assim, a droga pode ser uma forma de sentir o prazer tão desejado, além de
proporcionar um estímulo o racional, mas sico, fazendo com que o cansaço e o
desânimo desapareçam por alguns instantes. Nesse ponto podemos dizer que a droga
age mais como causa da alienação nesse processo do que como um produto dela.
166
Em relação aos danos psicológicos que o crack pode causar no indivíduo, temos o
relato da Dra. Eliete explicando os efeitos dessa droga. Ela comenta:
“O psiquismo é totalmente alterado, a pessoa perde totalmente a
percepção do tempo e do espaço, perde a percepção do certo e do
errado, a pessoa perde o limite, é…como se viesse uma coisa de
dentro dela uma força da própria droga, um bicho fora. Muitas vezes
a gente já viu em crise, a pessoa parecia um bicho selvagem…
No psiquismo é como que se a pessoa perdesse a capacidade de
raciocínio. Ela fica lenta e os valores dela vão se quebrando cada vez
mais. Ela não ama mais...
Ela perde a identidade total. Ela perde a identidade. Com o tempo ela
se desconhece.
166
Nota minha.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
139
Ela não tem valor. Nunca se sabe ... ou o que vai acontecer. É uma
Roleta Russa. É a perfeita Roleta Russa.”
De acordo com o relato exposto, os danos psíquicos são tão graves quanto os sicos,
alterando totalmente sua personalidade, degenerando os laços afetivos e sociais que
esses trabalhadores - filhos e pais de família - possuem com os seus e com a sua
comunidade. Sua identidade é diluída nesse processo, bloqueando formas de
emancipação como um todo, desenvolvendo, assim, uma identidade negativa, em que
o indivíduo permanece na mesmice dessas situações, não vislumbrando alternativas de
transformação.
Ainda sobre os danos psicológicos, a Dra. Eliete desenvolve uma iia em relação à
patologia a que o crack pode levar o indivíduo:
“Só um detalhe que eu vou falar pra você, isso pode ser meu, pode
vim 50 terapeutas falar (...), mas é legal eu falar porque é o que eu
sinto. Alguns desses casos os meninos se tornaram, quase que uma
patologia que estava neles, já era uma psicose. Psicose depressiva, na
maioria dos casos. Acredito que o Dr. Igor concorda com isso.”
Os aspectos sociais tamm são muito prejudicados quando as pessoas tornam-se
dependentes do crack. Como ocorreu no município de Igaraçu do Tietê, interior do
estado de São Paulo, e vem ocorrendo em outros municípios da região estudada,
jovens cortadores de cana consumiam o crack em pleno exercício de seu trabalho no
canavial. Alguns deles foram atendidos no CEATOX, recebendo tratamento
psicológico e para desintoxicação da droga. Nesse caso, a Dra. Eliete pôde observar o
perfil desses jovens na parte social e como foi afetada a vida cotidiana, no
relacionamento com a família, com o trabalho, amizades, etc. Ela diz:
“Esses meninos vem vindo de uma relação que… as famílias são
muito pobres, é…pessoas que não têm objetivos na vida, não
tinham é…sonhos. Então viviam ali. A maioria é muito pobre. E o
que restou pra eles? Eles começaram a consumir a droga, desde
pequeno, …é…
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
140
Já havia um histórico. Quando vão trabalhar levam consigo o vício. E
são pessoas que precisariam daquele dinheiro pra quê? Pra podê
levando o dinheiro pra casa pra comer, … E não se sabe o que
acontecia, mas todo dinheiro que eles ganhavam ficava… no
consumo.
Um dos jovens chegou muito louco..., ele falou assim: “Ah...vou
quebrar tudo, vou arrebentar. “Arrebenta, e o máximo que vai
acontecer”, falei, “é os caras vim te segurar. Você está encaminhado
aqui e eu estou pra te ajudar”. Ele se acalmou, a hora que ele
acabou, uma hora depois... “Você é independente”, ele disse. “Você
fala igualzinho a minha …” Então eu te conquistei?” Ele falou
assim: “Já. Eu acho que você gosta das coisas que eu gosto, não é”?
Eu falei assim: “Com certeza.” Ele disse: “Eu queria ter uma
casa, ter uma família. Eu não tenho, eu sou sozinho. As vezes é
melhor a gente estar preso do que com quem a gente tem que viver”.
Os relatos dos profissionais que realizaram atendimento a esses usuários de crack
demonstram que o envolvimento com drogas muitas vezes está associado a encontrar
uma solução mágica” para os problemas e carências. Fazendo uso delas, são levados
a acreditar que as frustrações do trabalho, da vida familiar, afetiva e social,
sobrevivendo aos conflitos vivenciados no cotidiano, serão amenizadas ou esquecidas.
Mas o que ocorre é exatamente o contrário. Desesperançados e com seus sonhos
desfeitos, a vida acaba se tornando um pesadelo maior.
A falta de perspectiva, no sentido amplo da palavra, decorrente de vários fatores
socioculturais que fizeram dele um sujeito à margem do processo histórico de nossa
sociedade, faz o cortador de cana tornar-se dependente de drogas na tentativa de
pertencer a qualquer grupo, não passando novamente pela rejeição registrada em suas
memórias ao longo dos tempos. Sobre isso a Dra. Eliete diz:
que isso também tem todo um outro componente…que é assim:
cada personalidade, cada pessoa vai ter uma formação, e nessa
formação dessa pessoa vai ter um buraco, e é que a pessoa vai
buscar, alguns vão buscar o quê? Uma coisa ligada a algum
sentimento, familiar. Cocaína: rejeições e mais rejeições, o crack
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
141
também, rejeições profundas, falta de…porque o crack toma tudo.
Porque às vezes a pessoa já tem a coisa da morte com ela.
Em função desses traumas, dessas rejeições, podemos dizer que a droga, em seu
contexto atual em nossa sociedade, possui na essência o aspecto “democrático”, isto é,
ela não discrimina e nem exclui os diferentes tipos de pessoas e seus contextos
particulares. Para consumir droga, ou pertencer a um grupo que faz uso dela, não são
exigidos critérios específicos do usuário. São aceitas pessoas de todos os credos,
raças, culturas, classes sociais, idade, se pertencem à zona rural ou urbana. Esse
caráter sem fronteiras denomino princípio liberal negativo,
167
com o qual diversos
grupos são incluídos e homogeneizados.
Quando um grupo está consumindo qualquer tipo de droga, por mais diferente que
seja, existe uma integração, e os diversos tipos de preconceitos o deixados de lado,
pois a droga age com efeito de interação entre as pessoas, fazendo com que elas
deixem de lado seus valores morais, sociais e culturais, unificando-as num corpo
agindo para uma determinada função, qual seja, consumir a droga. A única coisa que
importa naquele momento na vida dessas pessoas é a própria droga.
168
As palavras do Pastor Valter, presidente do DEJOB (Desafio Jovem Botucatu), que
também realizou atendimento assistencial aos adolescentes cortadores de cana no
município de Igaraçu do Tietê, expressam bem esta questão:
“Em toda...toda a... seqüência da nossa... da nossa sociedade, é... a
droga não escolhe, ela não escolhe... o grau social, né? E isto...é...é
um trabalho assim que vem...que vem... que vem sendo feito durante
esses anos aqui e... eu acredito que é uma... uma porcentagem assim
de 50% de jovens da periferia e 50% de jovens da alta sociedade...”
“Então a droga não escolhe, né? E não escolhe... nem a parte social,
nem idade, nem... rico, pobre, nem cor.”
167
Nota minha
168
Nota minha
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
142
As questões apresentadas até o momento mostram que os dependentes de drogas,
independente da condição que venha a lhe ser atribuída dentro da estrutura social, são
vistos como pessoas estigmatizadas e de comportamento desviante, às quais Goffman
denomina desviantes sociais.
Os desviantes sociais são pessoas engajadas numa espécie de negação coletiva da
ordem social.
169
Dentro da estrutura social, são vistas como incapazes de alcançar
sua emancipação e transformação para progredirem dentro dos padrões vigentes da
sociedade. Essa condição de desvio, relacionada aos sujeitos deste estudo, possui em
si duas conotões: aquela atribuída aos usuários de drogas e aquela que reporta a sua
origem. Sobre essa condição, Goffman diz:
Há membros da classe baixa que, de forma bastante perceptível,
trazem a marca de seu status na linguagem, aparência e gestos, e que,
em referência às instituições públicas de nossa sociedade, descobrem
que são cidadãos de segunda classe.”
170
Como pode-se notar, os estigmas e os desvios sociais relacionados a essas populações
rurais estão carregadas de representações negativas. Primeiro, reportando-se a sua
condição de pobreza e cultura, em que o linguajar e o modo de vida lhes o
peculiares; e, em segundo, a questão de serem usuários e muitos tornarem-se
dependentes de drogas, agravando ainda mais os atributos do estigma. Esses
indivíduos acabam se vendo, de forma estigmatizada, inseguros pela recepção que
possam ter diante dos padrões vigentes.
As Diferentes Versões do Fenômeno
São rias as versões que circulam sobre a questão do consumo de crack entre os
cortadores de cana. Assim, objetivou-se, na presente pesquisa, entrevistar os
profissionais que realizaram atendimento aos trabalhadores da cana, como o médico e
169
Goffman, E., Estigma. Ed. Guanabara, 1988, pg. 155.
170
Idem, pg. 155.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
143
a psiloga do CEATOX de Botucatu e o pastor da Assembléia de Deus e Presidente
do Desafio Jovem, bem como outros profissionais, como o Coordenador do Sindicato
Rural de São Manuel e o Presidente da FETAESP, que também procuraram auxiliar
esses trabalhadores, relatando o presente fenômeno às autoridades blicas
competentes.
Os discursos, as versões sobre o crack, centram-se em maior grau na fala dos próprios
cortadores de cana, que se vêem compartilhando essa nova realidade com seus colegas
de trabalho, amigos e até familiares que consomem o crack, tanto no canavial como
nos arredores de suas moradias.
Foi questionado, nas entrevistas com os profissionais, qual o motivo, na opinião de
cada um, que leva os cortadores de cana a consumirem drogas, especialmente o crack.
aos trabalhadores, foi perguntado se eles sabiam que alguns de seus colegas de
trabalho estavam consumindo crack e a razão desse fenômeno.
As respostas abordaram diversas questões a respeito desse fenômeno. Desse modo,
pretende-se analisar seus discursos e achar os pontos em comum nas falas dos
entrevistados.
Discutir, analisar a fala, a palavra de cada indivíduo ou de cada grupo/segmento,
significa um grande passo para entender os porquês dos diferentes femenos que
ocorrem em nossa sociedade. A fala possibilita revelar ao pesquisador as condições
estruturais, de sistemas de valores, normas e símbolos da comunidade estudada.
Vários estudiosos apontam a fala, a palavra, como a forma mais importante de
interação entre os diversos grupos sociais. Sobre a fala, Bakhtin considera:
“A palavra é o modo mais puro e sensível de relação social.”
E continua:
“Existe uma parte muito importante da comunicação ideológica que
não pode ser vinculada a uma esfera ideológica particular: trata-se
da comunicação da vida cotidiana. O material privilegiado de
comunicação na vida cotidiana é a palavra.”
171
171
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec - Abrasco , 1999, pg. 100.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
144
Cada grupo social, em diferentes épocas, possui seu próprio discurso/repertório, e este
é determinado pelas relações de produção e pela estrutura socio-política”. Por meio
da fala - que não está desvinculada de outras formas de comunicação - os seres
humanos refletem e refratam seus conflitos e contradições.
Preocupado com as entrevistas não-estruturadas que são realizadas na prática da
pesquisa social, Pierre Bourdieu indaga a seguinte questão: Em que momento ou
sentido sabemos que a fala de um pode estar representando a fala de muitos?
Para Bourdieu, a identidade de condições de existência tende a reproduzir sistemas
de disposições semelhantes, através de uma harmonização objetiva de práticas e
obras.
172
E ainda diz que:
“Todos os membros do mesmo grupo ou da mesma classe são
produtos de condições objetivas idênticas. Daí a possibilidade de se
exercer na análise da prática social, o efeito de universalização e de
particularização, na medida em que eles se homogeneizam,
distinguindo-se dos outros”.
173
Esta formulação de Bourdieu está baseada no esquema teórico denominado Habitus,
isto é:
“Um sistema de disposições duráveis e transferíveis que integram
todas as experiências passadas e funciona a todo momento como
matriz de preocupações, apreciações e ações. O ‘habitus’ torna
possível o cumprimento de tarefas infinitamente diferenciais, graças
às transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os
problemas, da mesma forma, graças às correções incessantes dos
172
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec – Abrasco, 1999, pg. 111.
173
Idem,
pg. 111.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
145
resultados obtidos e dialeticamente produzidos por estes
resultados”.
174
Bourdieu afirma que o indivíduo é um portador passivo de tradições”. Isto não quer
dizer que o testemunho, o relato de um entrevistado é precioso em si mesmo, mas este
indivíduo, de certa forma, diz sobre costumes e maneiras de sua comunidade, significa
uma amostra da continuidade.
Esse aspecto faz sentido a partir do momento em que o comportamento social e
individual obedece a modelos culturais interiorizados, ainda que de forma
conflitante.
175
Além disso, Alfred Schütz diz que cada indivíduo experimenta e conheceas regras
sociais de forma particular. O conjunto das diferentes informações individuais que são
vivenciadas em comum acaba compondo uma única obra na estrutura das relações
sociais. O mais importante nessa questão não é a soma de cada reprodução dos
indivíduos, mas o entendimento dos modelos culturais que caracterizam o grupo .
Estas questões apresentadas pelos diferentes teóricos reforçam a importância dos
conteúdos da fala de cada entrevistado, pois neles semelhanças e diversidades,
fazendo com que o assunto não se esgote em si mesmo e possa ser trabalhado nas
diferentes visões de cada profissional, o que contribui para sanar as dificuldades em
relacionar as falas com a questão das drogas, em função da complexidade dessa
temática.
A análise das entrevistas com os profissionais mostrou que o consumo do crack tem
pontos particulares e comuns. Ressaltam questões sobre a condição social (moradia,
educação, saúde, etc.) dessa classe trabalhadora, laços familiares e afetivos,
religiosidade, problemas psicológicos (estrutura psicológica de cada indivíduo em
lidar com dificuldades, diversidades, auto-estima, etc.)
Na opinião do Prof. Dr. Igor Vassilief, o consumo de crack por esses trabalhadores da
cana tem ligações com a exploração do trabalho. Visando ao aumento da
produtividade no corte/dia, há, nos canaviais, um forte controle pelos turmeiros em
relação a essa questão, ou seja, aqueles trabalhadores que o atingem as metas diárias
(acima de 10 toneladas/dia) estão excluídos do trabalho na próxima safra.
174
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec Abrasco, 1999, pg.
111.
175
Idem, pg. 112.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
146
também, em sua explicação, questões referentes aos agravos sociais que essas
pessoas enfrentam na vida cotidiana. Sobre suas versões, diz:
“Então você veja que outros aproveitaram uma situação e nem o
garoto sabe disso, pois vem daqueles que contratam a pessoa, porque
cana é por tonelada cortada, quer dizer, o pagamento é diferente, o
sistema. Não é por dia de trabalho, os dias que cê trabalhou, é
cobrado um controle de produtividade. E a pessoa produz sobre
aquilo lá. Como eu falei pra você, tem uma família aqui de
Paraguassú Paulista, se não me falha a memória, o pai viu a
reportagem e percebeu que havia algo de errado no filho. Então ele
pegou e falou - e eu lembro da frase. Eu cheguei a falar com o
próprio pai, no corredor…“Desconfiei vendo a reportagem, que...
meu filho, esse moleque corta mais do que eu, então não é
possível...”, e eu falei “não é possível, alguma coisa tá errada, não
pra comparar um moleque de 14 anos com um indivíduo de 35 anos.”
Fisiologicamente, alguma coisa está errada.”
Na entrevista, o Prof. Dr. Igor salientou também acreditar que aqueles que controlam a
produtividade no canavial (chamado de turmeiro, ou gato”), estão agindo na
distribuição das drogas para esses trabalhadores. É comum, no trabalho da cana, o
gato desempenhar a função de intermediário nas relações entre patrões e
empregados, visualizando os ganhos que pode vir a obter por meio da força de
trabalho dos trabalhadores rurais.
Sobre isso diz:
“O gato, porque ela (a droga) era distribuída dentro do caminhão,
isso foi flagrado com a reportagem. A reportagem você no
caminhão parado, acho que desce velhos e fica aquela molecada e
dão um jeito lá, mas dentro do caminhão, do próprio caminhão que
levava o pessoal pra roça, quer dizer, quem vai fazer? o gato que
contrata os homens”.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
147
Além dessas questões, o efeito anti-fadiga que o crack proporciona no organismo
dos trabalhadores, quando estão exercendo suas atividades profissionais, e o prazer
que pode oferecer durante alguns minutos, uma vez que muitos cortadores estão
insatisfeitos com seu trabalho e com sua vida, o obtendo o prazer e a realização tão
almejada.
“Se ele falar “dá prazer, uma coisa gostosa também”, talvez ele
acabe procurando, porque ele procurando em última análise não é
o que eu faço de ficar o dia todo cortando cana lá, porque isso é
cansaço, não é prazer, isso é desgaste. Como essa droga,
especificamente cocaína, o crack, né, que é cocaína, essa
estimulação, ele tem um prazer momentâneo, então ele, por causa de
10, 15 minutos, o máximo que isso , ele trabalha oito horas a
troco de nada, produzir, produzir, e fica esperando pelo dia seguinte
receber novamente.”
A opinião da psicóloga que também realizou o atendimento a esses usuários sobre o
crack versa sobre as dificuldades sociais e familiares em que essas populações se
encontram. Não acredita que o consumo do crack tenha relação com a questão do
trabalho, pois, argumenta, há diversos profissionais (médicos, psicólogos, enfermeiros,
professores, etc.) que também são dependentes de drogas, cada um com aspectos
diferentes quanto à construção de suas trajetórias de vida.
Já as rupturas nos vínculos familiares e a desestruturação social são anteriores à
questão do trabalho. Ela diz:
“Esses meninos vêm vindo de uma relação que…as famílias são
muito pobres, é…pessoas que não têm objetivos na vida, não
tinham é…sonhos. Então viviam ali. A maioria é muito pobre. E o
que que restou pra eles? Eles começaram a consumir a droga, desde
pequeno… Isso. vinha com histórico. Quando vão trabalhar levam
consigo o vício. E são pessoas que precisariam daquele dinheiro pra
quê? Pra poder tá levando o dinheiro pra casa pra comer, ou…E não
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
148
se sabe o que acontecia, mas todo dinheiro que eles ganhavam
ficava…no consumo.”
“O problema é bem embaixo, é social. Pra mim,...tá chegando nesse
meio a droga, só que mais importante...é a base social hoje é - valores
familiares. aí, você assiste uma novela você chora. O que é isso?
Cadê Deus, cadê a religião, cadê o temor, cadê o respeito? Mãe que
não respeita filho que não respeita o pai. Que padrasto não respeitou
não sei quem, que num sei quem não respeitou a irmã.
Se você pega as histórias, as histórias se repetem com pessoas que
estão totalmente com seus egos mal elaborados, com sua vida mal
elaborada, com carências profundas.
Acho que agora misturou. Cultura do meio rural, cultura do meio
urbano, misturou.”
“Então, esse trabalhador rural hoje ele não é mais essa pessoa. É
outro perfil. Hoje são pessoas desempregadas que querem trabalhar e
vão trabalhar nisso. Não é mais aquele perfil de 30 anos atrás, que
são os meus avós…
O que há em comum entre esses usuários de drogas da zona rural perpassa o contexto
social, acarretando na ruptura dos laços afetivos. Esses trabalhadores sempre
vivenciaram a exclusão. Esse fator já se transformou numa dada condição histórica,
176
sentida por todos aqueles que são de origem rural, agravada pelos estigmas sociais que
lhes foram atribuídos e confundidos muitas vezes com estigmas de caráter, má
formação da personalidade, fazendo com que se conformassem com essa dada
condição.
Tais fatores contribuem para que haja mudanças bruscas na estrutura, no cotidiano
dessas populações, adotando outras lógicas na tentativa de serem aceitos socialmente
pelos padrões determinantes.
176
Referente ao que chamo de dada condição histórica”, esclareço que tanto as gerações anteriores como as atuais dos
pequenos produtores e trabalhadores rurais guardam na meria a vivência dos traumas da exclusão, como também dos
estigmas, perpetuando até os dias de hoje essa situação.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
149
A versão do pastor Valter, que também realizou atendimento no DEJOB a esses jovens
trabalhadores, abordou a ausência tanto dos órgãos públicos como de empresas
privadas na assistência social, no sentido de empregar recursos no auxílio a essas
famílias de trabalhadores, que hoje encontram-se morando nas periferias das cidades e
passando por necessidades em todos os sentidos. Além disso, o relato do pastor Valter
salientou um fator muito importante, que é a falta de treinamento, instrução e apoio
aos trabalhadores por parte das grandes empresas do setor açucareiro. O objetivo das
usinas de açúcar e dos fornecedores centra-se na oferta e procura da o-de-obra e em
sua exploração. Além da falta de treinamento para a qualificação da mão-de-obra, não
existe dentro dessas empresas nenhum trabalho social e psicológico direcionado ao
atendimento ao trabalhador, caso ele venha a apresentar problemas dessa ordem. A
esse respeito, o pastor diz:
“É...agora, o que eu compreendo assim e... quero falar agora também
nessa gravação...é a falta assim de uma triagem, né, a falta de uma
triagem que... acredito que todas essas empresas de cana-de-açúcar,
trabalho rural assim, devem ter assim uma assistente social, uma
equipe, né, uma psicóloga, uma...assistente social, né, que deveria,
por obrigação fazer uma triagem…uma triagem que deveria até
das drogas... né, entrar nesse setor e... foi o que eu observei.
Porque são... eram jovem assim que não tinham instrução...Entende?
Então eu tô achando aí, eu vejo aí, né, que até uma escola, um
momento assim de aprendizado, teria que ter...nessas usina, nesses
lugares, né, um trabalho feito com uma psicóloga, né, porque
geralmente esses rapazes ele...veio trabalhar, mas veio trabalhar
estragado...ele não veio usar droga lá na cana, não, ele já usava na
periferia da cidade dele, já usava já. ele já era um drogado! Como
é que traz um drogado pra ir trabalhar? Então…uma triagem...Não
podia ter trazido mesmo e...e conseguido através de uma escola, de
um ensinamento ali na usina, ou na firma, de qualquer lugar e
preparado aquele...esse jovem, né. No fim...eu não acredito numa boa
produção que eles deram... Não acredito numa boa produção, e isso
porque eles usavam o crack né, usavam o crack, que trazia uma
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
150
conseqüência assim no sistema nervoso, um descontrole, né? Eu não
acredito que uma pessoa dessa vai render 70% do trabalho dele, né?
Então veja aí... a falta de uma triagem, de um...de um ensinamento, de
uma ajuda, né... É... então, a conseqüência foi grave.”
Na opinião do Coordenador do Sindicato Rural de São Manuel, na época da pesquisa,
o consumo de crack é um reflexo das dificuldades encontradas na esfera social e de
trabalho, agravado pelo vislumbramento no aumento da produtividade que esses
trabalhadores possam oferecer às usinas de açúcar e fornecedores. Ele relata:
“Ah...Na minha opinião eu acho que... Eu vejo assim, o pessoal que
corta a cana é um pessoal vulnerável, né. Ele tem duas coisas
negativas que conta aí: primeiro...que é um povo assim que não tem
estudo. Ele não tem chance. Então você não tem oportunidade na
vida. E como a bebida é um...um suporte pra você até acabar
esquecendo certa circunstância da vida, a droga também leva a isso.
Então você não tem muitas opções. Então quando começou a surgir o
crack, que era... acredito eu ser mais barato do que a cocaína, o
jovem começou a consumir. Uma...que não...de não ter represália,
principalmente por ser aberto e não ter uma fiscalização. O cara não
vai ser...mandado embora, não vai ter a questão de um chefe, porque
tem um chefe de turma, mas ele preocupado com a produção, então
o cara pela vontade... às vezes ele fuma ele produz mais ainda, e até
por isso então ele se cala porque eles vão graças a Deus que o
cara tá...ali de ingerindo droga, e tá...ele fica alucinado, então ele vai
cortar cana no limite e... Então se ele...quanto mais ele cortar mais
dinheiro ele vai ter.
Então...na verdade, o primeiro passo é a base de escolaridade, né. É
um pessoal assim que é fácil de se levar, fácil de se comprar. Então,
quer dizer, os traficante tão...“expert” em dobrar a pessoa. Se tem
uma pessoa que tem uma mente fraca, né, fácil manipulação,...então
fica bem mais prático, né? Então o que acontece? Ele pega, ele
aquela situação...sem perspectiva da vida dele...aí oferece, o cara
acaba gostando, ele vai consumindo, ele vai consumindo... Então
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
151
ele fala: “pôxa, ele não tem estudo, ele o tem condições de
conseguir um emprego melhor.” Tem o problema de emprego, né...
Não tem tantas indústrias como tem na capital, ou mesmo na grande
cidade... Então ele fica naquele negocinho, na expectativa de...querer
até uma fuga, né, a droga é uma fuga. E o crack, que é...bem mais
barato que a maconha! Então ele vai...só que o problema...”
“O social. É a vida sedentária que o cara leva e...ele pega um padrão
de vida...que...ele fica limitado ao bairro, né, e tem bairros aqui em
São Manuel que...nem em São Paulo, o pessoal conhece lá, Buraco
Quente, né? Vila Prudente, que tem a favela e...assim vai. Então
ele...se limita, ele tem um limite. Então o limite dele é aquele mundo, e
aquele mundo...acaba levando pra ele a droga, né...Então eu acho
que é a vida que ele leva, né... A perspectiva de vida e tal. A outra...a
própria cultura dele que é baixa que deixa levar fácil, e o
consumo...que não tem a...a vigilância que na cidade tem. Geralmente
numa empresa, que tem os técnicos de segurança, que tem o pessoal
que faz averiguação o cara fica mais esperto, ele não vai arriscar,
ele tem um emprego então ele pensa um pouco. Os outros não, ele
no meio do mato...”
“Às vezes faz frio mas não chove. Então... Não é fácil, né? É difícil. E
outra...eu vi um caminhão, eu vim dentro de um caminhão,
também...Esse caminhão de bóia-fria tem um monte de gente dentro,
tudo amontoado, quanto mais couber mais eles vão enfiando.
tudo molhado, tudo suado... Então é uma situação difícil.
Uma vez eu parei com um colega meu da Casa da Agricultura e nós
ficamos comentando, né? “Tem usina aqui que ainda alimentação,
né. Mas a gente via que eles levam, né...Então quer dizer, não tem
fogareiro, não tem onde... onde é que você vai...achar madeira pra
ficar esquentando, não tem nada. Então o que é que eles fazem? Nove
horas da manhã eles comem. Porque quando eu fui eram nove horas
da manhã e eles estavam sentados tudo num cantinho, era que nem
bicho, a verdade é isso, amontoado ali...sem o mínimo de higiene.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
152
Então aquela marmita o cara divide ela em três partes, então ele
come uma às nove, come mais um pouco meio-dia, uma hora, e come
às duas, quer dizer...ele vai comendo as partes, ele não come duma
vez aquela marmita...
“As condições de...trabalho... Que nem de laranja, que tem os
espinhos, né, então...do café, os galhos são muito fechados, então eles
machucam muito, né. E outra, esse pessoal vem, ainda aqueles que
honrosamente conseguem estudar à noite, né, que...conseguem se
formar pra ver se consegue uma coisa melhor, ainda vai, mas é que
nem eles falam... A maior briga minha pra alfabetização é a
disponibilidade do pessoal de indo e chega morto…chega morto
que nem fala.
A versão do Presidente da FETAESP (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do
Estado de São Paulo) sobre o crack salienta a grande miséria e falta de perspectivas
quanto ao trabalho e à mudança social que os cortadores de cana vem sofrendo. Além
desse aspecto, acredita que o fato de a grande maioria dessas pessoas morarem na
periferia das cidades acaba incorporando em seu cotidiano outras aspectos, alterando
seus modos e hábitos, e a droga é um desses elementos. Ele diz:
“Eu, particularmente eu não tenho informação aonde tá, agora não
descarto a possibilidade de que miséria e tudo isso faz com que a
pessoa use mesmo, porque hoje se você entrar no meio rural, no corte
de cana, você vai ver jovens, rapazes, molecada bonita,
entendeu...que tem o seu segundo colegial, primeiro colegial…ou na
série…trabalhando no corte de cana e essas pessoas estão metidas
na cidade também, e o crack na realidade ele vem da cidade, ele não
vem na roça, e pra induzir, para fazer amizades, círculos de
amizades, isso não é descartável não. Entendeu que existiu isso no
passado, quer dizer eu soube através da imprensa mesmo, fui atrás,
fomos atrás…batemos em cima, acionamos o delegado fizemos um
auê…e…fizemos a nossa parte..”.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
153
“Porque as pessoas não vão ter outra alternativa…voltam a beber,
vão beber…ou vão se meter com droga…Se o cara tem condições ele
não vai nisso…o cara pensa também na família…Olha, é humilhante
ser hoje cortador de cana…e eles são simples, você mesmo falou
agora, eles sentem vergonha até de conversar…e você hoje uma
rapaziada, ou analfabeto então, com algum estudo mais na
roça…parece um tapa assim, colocam um tapa nele, pra ele
enxergar aquilo, só aquilo.
Não fez nada, mais e... eu quero te dizer o seguinte, hoje antes o
trabalhador rural, era...dava orgulho falá eu sou um trabalhador
rural, porque o que girava no comércio hoje e gira no comercio e o
trabalhado rural, queira ou não, e o trabalho rural, se acaba isso,
acaba o comercio. O comércio em Mineiros, tem o comércio é muito
bom, você andava na cidade no final de semana na época atrás,
antes dessa crise toda aí, você andava na cidade de final de semana
parecia domingo no meio da semana, o pessoal comprando, aquela
agitação de, sabe de...
Hoje não, é tudo morto. As pessoas hoje, sabe...você muito bado,
entendeu, você muitas pessoas caída na rua, você pessoas mal
vestida, você pessoa com semblante, e...triste, preocupado…você,
entendeu? Você vê tudo isso hoje.”
Observamos que todas as versões apresentadas pelos profissionais citados nesta
pesquisa sobre os porquês do consumo de crack por cortadores de cana têm mais de
uma explicação, mas uma delas acredito que foi salientada por todos os entrevistados,
que é sobre a carência social que essas populações vêm enfrentando desde o período
colonial. São pessoas que sofreram a expulsão e expropriação de suas terras, de seus
instrumentos de trabalho e de sua produção, fonte de sobrevivência de suas famílias.
Com todo esse cenário histórico do rural brasileiro, assistimos durante dezenas de
décadas as conseqüências serem reverberadas em nossa sociedade: o aumento da
miséria, a ruptura dos laços afetivos e culturais, o fortalecimento dos estigmas e as
representações sociais negativas atribuídas às populações rurais.
A identidade dessas pessoas, com o passar do tempo, é diluída e outras questões são
incorporadas em suas práticas cotidianas, como a aquisição de bens de consumo,
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
154
drogas em geral, ausência de vínculos culturais e familiares, a falta de afeto pela terra
e pelo que dela provém.
Referente as versões dos trabalhadores, acredito ser de grande relevância abrir espaço
para suas falas em relação ao uso de drogas.
Dar vez e voz às suas narrativas oferece a nós pesquisadores e leitores uma dimensão
mais real do presente femeno. Assim, foram selecionados trechos das entrevistas
desses cortadores de cana. Alguns eram funcionários das usinas e outros funcionários
dos fornecedores de cana. A seguir temos a descrição desses trabalhadores:
Usina:
Você ouviu alguém dizer que cortador de cana está usando drogas,
principalmente o crack?
Vitória:
“Já.
Aqui eu nunca ouvi falar, mas nos fornecedores eu ouvi falar
bastante.
Que eles levam até bebida pra toma na roça. Meu vizinho também, ele
é turmeiro lá, ele tava perdendo quase a mulher por causa disso, por
causa de droga na roça, bebida né, quer dizer, o povo levava bebida.
Leva bebida e não trabalha.
Ando vendo muito aqui no meio do canavial.
Não posso definir assim com certeza, mas que tão usando, tão.
Porque o pessoal que trabalha pro fornecedor, eu posso até falá
deles, comenta bastante sobre isso.
Aqui eu nunca ouvi falar. Eu não posso falar nada, porque eu nunca
ouvi falar.
Tá usando. Ah, tá assim, lá em Mineiros tá dominado.
Na cidade, eu acho que está dominada já, você passa você a
rapaziada fumando, molecada nova, aliás, tem que ser amigo de todo
mundo, porque hoje em dia quem usa isso é perigoso perder a vida.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
155
Então tem que ser colega de todo mundo, tratar todo mundo bem, e lá,
atrás da minha casa tem um comboio, tem acho que de tudo de 18, 17,
15, 13, tudo fuma droga, todos.
Trabalham na roça. São, mas aí é mais dos fornecedores, né?”
E porque você acha que eles estão usando drogas?
“Eu não consigo falar.
Eu acho que não é o trabalho, eu acho que o trabalho ocupa a mente
da gente, se eu sou uma pessoa, um cidadão honesto, eu o faria
isso. Procurar uma meta pra pode fugir desse problema de droga, a
não viver, se misturar com essas pessoas, evitar não ter tanto acesso
com eles, não é porque é meu amigo, é meu melhor amigo, se ele
mexe com isso, eu vou tentar evitar, porque se não eu posso me
afundar junto com ele, e quem mexe com isso qué afundá você, não
vai te aconselhá a caí fora, não faz isso, eles qué que você usa
também.
Ele qué afundá os amigo dele também. Então eu acho que é desgosto
de família, falta de carinho, falta de atenção, de conversar, de um pai
sentá assim com o filho, falá se fizé assim, contá como é que é a vida,
ensiná pra ele, né, o que ele sabe, né, então, os pais hoje em dia não
tão ensinando isso pros filho, os filho estão aprendendo na rua, estão
sendo educado na rua, não em casa, os pais não tá tendo tempo, e os
filhos de hoje são muito rebelde, enfrenta os pais, domina, qué batê,
quem mexe com isso então, Deus me livre!!
Eu acho que talvez sim, né, talvez envolve um pouco, né, mas como eu
falei procê, tá tudo dominado, porque as polícias são os próprios
exemplos, o exemplo que tá dando pro pessoal, isso eu posso falar,
porque isso eu vi na minha cidade, policiais mesmo, trabalhando
com pessoas, são da parada de traficantes mesmo, vende mesmo
droga, e a gente conversava, as polícias fuma com a gente, compra da
gente, então eles mesmos dão mal exemplo, então eles não pode
chegá, pegá a gente, espancá a gente, porque se eles fazê isso tão nas
nossa mão também, então é eles por eles, né.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
156
Sabe porque que pra saber, porque o meu vizinho ele mexe com
isso, ele trabalha pro fornecedor, ele foi drogado no trabalho, ele
contou pra mim, aí chegou o turmeiro mandou ele fazê tal serviço,
o turmeiro foi gritá com ele, ele enfrentar o turmeiro e disse se o
turmeiro enchesse o saco que dava uma facãozada no turmeiro ali
mesmo, acabava com o turmeiro ali, e não tava nem vida, o
turmeiro foi lá, começou a agradá ele e tudo, disse ó rapaz, esquece
isso pá, ele falou assim que o turmeiro pegô ele fumando droga,
que o turmeiro não fez nada com medo, não teve coragem de mandá
ele embora, ainda o cara falou assim, você vai pagá o meu dia que eu
fiquei parado ainda, eu não sei o que aconteceu, se ele pagou ou
não, o menino enfrentou ele na roça, e ele tem medo desse moleque.
É, tem medo.
E não é só ele, da turma dele que mexe com droga, tem mais gente da
turma dele, então ele deve sabê... praticamente é um caminhão de
refugo que tá ali, só refugo.
Só ri e não faz nada, então eles que...digamos que eles que, comandar
a roça, pra isso tem o fiscal na roça, pra comanda a gente... então se
o turmeiro pega e faz o serviço a pessoa não faz, como que o turmeiro
pode pegá ela o ano que vem, se ele não passa no primeiro teste,
como que ele que se bem atendido se ele não atende o turmeiro,
desgosto fica com uma pessoa dessa na roça.”
Você ouviu alguém dizer que cortador de cana está usando drogas,
principalmente o crack?
Maria:
“Eu vi falar, mas eu nunca vi não.
Já ouvi falar.
Eu ouvi falar, sim, que cortador de cana usa ela , mas eu nunca
vi.
É, eu ouvi falar que no município aqui por aqui eles, muitos usam
mesmo.
Acho que sim, mas eu nunca vi não, mas eu vejo o povo falando”.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
157
E porque você acha que eles estão usando drogas?
“O que que eu posso dizer? Eu como evangélica, eu acho que um
pouco é falta de Deus.
Ah, eu acho assim, se as pessoas têm a cabeça boa, não vai partir pra
um lado mau pra poder desabafar o que eles sentem. Eu penso assim.
As pessoas têm que pensar nas conseqüências, né, no que que adiante
você se drogar, tudo porque falta dinheiro, porque falta uma coisa e
outra, não adianta, acho que as coisas se torna difícil”.
Você ouviu alguém dizer que cortador de cana está usando drogas,
principalmente o crack?
César:
“Olha, que eu saiba, eu não…,conheço muitos amigos meus que
fumam isso, mas eu não mexo com essas coisas, mas não sei se eles
mexem com crack, cocaína mais, acho que com maconha eles mexem,
maconha eles mexem, porque tem uns que trabalham se for com
drogas, outros trabalham se beber um pouco, cada um, cada
pessoa tem…
São cortadores de cana.
Alguns é da Usina X, alguns não.
No próprio canavial. Antes de começar o serviço. Passou um perto de
você assim.
Ah, isso eu não tô muito por dentro, mais… Eu acho que…eles
fazem alguma coisa, né, pra trabalhá, eu acho eles…”.
E porque você acha que eles estão usando drogas?
“É pra trabalhar... Pra rendê mais. Porque pessoas desse jeito, um
amigo meu mesmo, eu já perguntei pra ele, que graça tem ficar assim,
falô: “Ah, se dá animação, vontade”, se fala assim: “eu vou matar
esse cara”, ele pega e mata, não nem aí. que ele fala: eu vou
trabalhar”, ele vai trabalhar mesmo. Ele arregaça a coisa.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
158
Mas, mesmo assim, até a maconha, ela vai acabando com o corpo da
pessoa.
Isso. Em geral, como bebida, tudo... Acaba tudo.
As duas coisa ...
As duas coisas? Pra produzir mais e também por causa do trabalho
Isso.
Fornecedor:
Você ouviu alguém dizer que cortador de cana está usando drogas,
principalmente o crack?
Clara:
“Ah, isso daí pra todo lugar tem, menina, viche. Isso daí se a gente
for fala serve até pra briga. Aqui eu não sei porque eu não vou atrás
disso daí, mas todo lugar deve tê, né?
Eu ouvi fala, sim.
Ouvi, acharam na roça, né?
É, eu ouvi fala, sim.
Ah, Muitas turma assim falam sim, das veis até na rua fala: Olha
naquela turma em tal lugar, você viu?” Negócio de droga. A gente
escuta falá em todos os lugar, menina. Aqui até agora…”.
E porque você acha que eles estão usando drogas?
“Sei lá não. Deve te não. Todo lugar tem, se não tivé eles ficam louco,
não.
Porque. Por causa do ganho, né? Eu acho que é por causa do ganho,
porque se você tem o dinheiro, a comida pra você come, o seu
dinheiro pra você, você tendo a regalia, não digo tudo, você não
tendo, pouco pra você ter, ninguém vai mexer com isso, eu acho que
ninguém vai.
É lógico. Você tendo um ganho pra você se sustentar, pra você
comprá seu sapato, das veis o coitadinho não tem, fala: “poxa vida,
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
159
aquela não tem sapato, tem isso, porque que eu não tenho? Eu vou
roubá”. Eu vou, ele se altera, né?
Fica doido e vai rouba, que esse tempo teve roubo, porque, porque
ele, veja, o próprio colega tem um aparelho de som e ele não pode ter.
Lógico, lógico. uma colega sua que tem um carro. Cê baba
porque ela tem um carro. Oh, meu Deus, porque eu não tenho?
lutando e não tenho.
Eu vou entrar em droga aí eu roubo um pra mim e cabo.
Ahhhh, eu acho que sim. Eu acho que sim porque eles fumam aquilo
lá, eles ficam louco. E diz que uma fome, né? Falam que fome.
Deus me livre.
E não pode falá nada porque se eles, vamos supor, você drogada
né, e vai chamar você a atenção no serviço, ele vai te dar uma facada
no cê.
Porque ele não vai firebaixado perto dum colega seu, ele que a
coisa corre. Depois que ele fez, que passou em frente, ele vai se achar
pequeno. Vai fala: “Poxa, o que que eu fiz? Que que eu fui fazer
aquilo lá?” Aí já é tarde demais.
Porque a gente muita coisa errada menina. Muita coisa errada.
Muita coisa. Porque aqui, vamos supor, você tem uma colega, mas ela
não é sua colega. Pode ser sua colega, mas não é”.
Você ouviu alguém dizer que cortador de cana está usando drogas,
principalmente o crack?
Antônio:
“Ah, é.
Ichi. Eu sei qual.
Companheiro de Turma.
Ah, Pode até que usa, pra não ver, eles não deixa ver. Mas eles usa.
Eu acho que sim, viu. Existe.
Ô. Como aqui mesmo, tinha. Trabalhou uma semana saiu, mas usava
direto também.
Trabalhou uma semana e saiu.
Usava direto.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
160
Existe sim.
Ah, tem muitos que tá sim, viu?
Viche. Não, eu vi muitos usa também (falou rápido)”.
E porque você acha que eles estão usando drogas?
“Ah, sabe que nem sei, viu. Acho que acostumou mesmo.
Ah, sei lá. Eu acho que muitos pensam que é trabalho, né?
Ah, pra, sabe, pra …vai se machucar, não haver dor. Coisa assim.
Se Machucar, não haver dor. Acho que é Coisa assim né? Não sentir
dor no corpo, trabalha a vontade, não senti dor.
Bom, eu não sei. Eles falam que é assim, né. Eu mesmo não uso.
É, chega uma hora que dói o corpo. Ah, meio-dia, 1h, não
agüentando mais.
Não tá. 2h00 mesmo, não agüenta mais fazer nada”.
Todos os cortadores de cana entrevistados na pesquisa tinham receio em responder
quando perguntados sobre a questão do consumo de drogas entre seus colegas de
trabalho. Alguns se omitiam, ficando claro o temor que tinham em abrir o jogo sobre
esta questão, e outros diziam que “não sabiam de nada”.
O material que consegui nessas entrevistas foi de cortadores que, por meio de uma
maior convincia, confiaram na pesquisadora, repassando informações de interesse.
Vitória foi a entrevistada com que tive maior identificação, por isso o trecho da sua
entrevista foi maior. Passado alguns meses da pesquisa de campo, Vitória me
telefonou e disse que gostaria de ser entrevistada novamente, pois o havia falado
tudo o que sabia sobre o consumo do crack, em função do medo de não me conhecer
bem. Sendo assim, viajei novamente para Campos Canavial.
Segue abaixo uma rica narrativa de Vitória sobre as questões do consumo do crack por
cortadores de cana.
Vitória:
“Lá, onde eu trabalho mesmo, comecei a desconfiar de um pessoal
que trabalha perto de mim, né, ele ia sempre assim passeá (ia no meio
da cana, cortava 5, 6 metro e saía), eu comecei a analisá aquilo,
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
161
eu achei estranho, porque nunca uma pessoa consegue tantas vezes
assim ao mesmo tempo, né, que eu percebi que ele nem pegava o
fósforo na mochila, quem fuma, assim cigarro, não vai fumá no meio
da cana, fuma ali na …
Entra na cana verde pra fumá. eu estava conversando com um
amigo meu, João, eu perguntei: “Francisco, posso te fazer uma
pergunta? Ele falou assim: “Pode Vitória”. Aí como a gente era
superaberto. Assim, escuta, o José fuma droga?” Ele quis fala não:
“Ai ó Vitória, eu não vou mentir procê ele fuma, ele traz na roça
aqui, ninguém sabe, pelo amor de Deus ninguém sabe mesmo, ele vai
assim de minuto em minuto, vai fumá, ele não consegue, está tão
acostumado com aquilo, que sem fazer isso, ele não consegue cortar
cana,…perde a força, dor de cabeça, ele fica assim irritado, então
ele precisa ir fumá pra pode cortar cana, você pode ver que ele
corta superbem cana, mas não é ele que está cortando a cana, é a
droga que está cortando pra ele”. Aí ele, né? ele falou assim pra
mim: “Ó Vitória, só que ninguém sabe aqui na Usina X, porque
ninguém ... todo mundo aqui sabe, todo mundo sabe que tem uns
par dele que fuma droga, que ninguém revela, com medo, é lógico
que pode prejudicar o seu serviço, porque a Usina X não aceita isso,
na firma deles, droga”. Não, pode ficar tranqüilo, eu não sou nada
dele, eu trabalhando na minha aqui. Comigo ele está em paz, ele
pode fazer o que ele quiser, que eu acho errado.Aí eu cheguei
nele e perguntei, né: “O José, posso fazê uma pergunta procê? Você
fuma, né?” Ele disse: “não, que isso Vitória, eu não fumo”. “Claro
que você fuma, porque uma pessoa não sai de três em três minutos
pra fazê necessidade”. “Não, eu não vou mentir procê, eu estou
superviciado, não consigo largar, eu tô ficando muito violento, eu não
era assim, você me conhece desde criança, a gente conviveu junto,
brincando junto, estudamos juntos, mas tá difícil, eu não consigo mais
me controlar, eu me misturei com o pessoal ...você tem que fazê o
que eles querem porque senão eles te espancam, e eu dando de
vender pra fora. Eu cheguei nesse ponto, mas não sou eu, eles me
obriga a fazer isso, eu sou casado, tenho duas filha, minha mulher ...
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
162
ela não merece isso, ela não merece isso, mas eu não consigo mais me
controlar, eu perdendo tudo, amor de pai, de mãe, meus três filhos,
os meus colegas assim, que não dependentes da droga se afastaram
de mim, os que são tão quanto mais se aproximando de mim, tem
muitos, e eles estão me obrigando a vender”. ele pegou um dia foi
pra cidade X. Chegô na Rodoviária ...foi vende ali, foi pego no
flagra. Aí daquele dia pra cá, foi no domingo, nunca mais ele voltou,
ficou 5 meses na cadeia, levou uma surra que quase mataram ele na
cadeia de X, ninguém sabia, aí começaram a sentí falta dele no
trabalho tudo, ninguém sabia explicar ... ninguém sabia, passou, eu
vim saber depois de três meses, que ele estava preso, ele tem o que,
ele tem, 18, 20 anos.”
“Quem fumava crack lá era o Manuel.
Ele era assim. Ele ia a semana inteira ... dinheiro pra comprar aquilo
lá, o crack, ia, levava, não tinha assim amizade com ninguém, era ele
e Deus, não tinha essa, amigo pra tomar café junto, sentar assim
junto, ele sentava bem distante da turma, bem longe, ele fumava.
Uma vez também fui sair, peguei ele fumando do outro lado da
quadra, não teve como ele mentir. Também fiquei com medo,
porque ele é um cara muito assim, estranho, ele ameaça as pessoas.
Ele era meu vizinho, ele fumava crack e vendia também.
Vendia na cidade. Ele era dependente daquilo, ele conseguia tudo,
tudo o que ele tinha, uma roupa boa, um móvel bão, era através do
crack.
Agora já o José usava no canavial? Falô que era maconha.
Esse Manuel abria o jogo. Fumava o que via na frente. O corpo
dele necessitava daquilo...o que vinha na frente, encarava tudo.
Quando ele usava, ele era violento pra cortar cana, não tinha...Era
difícil pegar uma pessoa pra trabalhá que nem ele. O rendimento dele
era muito grande.
O rendimento dele, a produção dele, era muito grande. Então ele
ganhava 700, 800, através da...do crack, quando ele não fumava e ia
para o trabalho, ele cortava bem menos, que o corpo dele
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
163
necessitava daquilo, ficava muito fraco, não tinha assim força nos
braços pra trabalhar. Aí ele faltava, faltava 3, 4, ficava semana sem ir
para o trabalho...encontra o crack. Aí ele passou a vendê pra cidade
de Rios Dourados e de Casco Quebrado também.
Olha, a turma saía da cidade, ali de Rios Dourados, Campos
Canavial mesmo e ia comprar lá na casa dele.
Eu não posso afirmar que eram cortador de cana, que ele saía da
roça, bom, tinha muitos dos fornecedores, não Usina X,
fornecedores, também da usina que trabalhava com a gente e ia
comprar deles. Os fornecedores. Gatos da Usina X.
É, compravam crack dele. Então vinha pessoas de fora comprar dele,
gente também, cortador de cana de Rios Dourados comprar dele.
Comprando com ele, só que ele até agora nunca foi pego. Vinha gente
de fora. Uma vez eu sempre chegava tarde às vezes da rua, eu
encontrava aqueles carrão chic na porta da casa dele que trazia pra
ele revende, e é uma segurança imensa ali, ninguém nunca polícia
ali, nunca nada. Depois, aí entrô outro vizinho ali na rua da minha
casa que também é cortador de cana, era da pesada mesmo, esse
havia espalhado pra todo mundo, tanto mulher como homem, ia lá
compra, lotava. Ele ganhava dinheiro assim muito fácil, ele pagava
aluguel sem trabalhar. E cortava cana, que ele faltava mais do que
ia.
O Manuel e o José cortavam cana na Usina X. E o outro era do
fornecedor.
Vi outras pessoas usando. que você e não pode fazer nada né.
Você não pode denunciar eles e nem ficar contra eles, tem que aceitá
tudo.
Nessa turma que eu agora, nessa firma que eu tô trabalhando
agora, assim, dentro do ônibus mesmo no fundão a gente vindo
embora pra casa, tinha gente no fundão fumando, nem respeita o
pessoal da frente.
Incendeia o ônibus, ainda...fica exigindo que é pra deixar a janela
fechada, o motorista é muito medroso...
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
164
Eu não olho pra trás, porque eu tenho medo, porque eles são muito
mal...sabe, sei lá, eles são muito estranho, eles olham feio pra você
assim...
O Manuel não trabalha mais na Usina, porque ele teve muita falta,
né, então não tem mais... cortaram ele, nem sonhando ele entra na
Usina X. Mas nunca foi flagrado, nunca.
Ninguém nunca falou nada, porque não tem provas, né? Agora a
gente que trabalha igual a ele que trabalha ali, pra gente é normal
aquilo, porque se você denuncia você se prejudica, se você falá se
prejudica, se for abrir um BO contra eles você é prejudicado. Você
não tem saída, você tem que aceitá. Então ele é uma pessoa normal.
Hoje ele lá, corta cana pra fornecedores, vai quando qué, quando
não qué falta, ele depende disso, ele vende isso daí, então...
E porque que você acha que está acontecendo isso, até no próprio
canavial eles estão usando droga?
Eu acho porque isso já tomou conta de meio mundo, pra mim isso daí
deveria ser liberado já, e os próprios policial tão dando mal exemplo,
né?
Os próprio policial, principalmente aqui de Campos Canavial
também. Aqui uns que eu já cheguei a pegar. É policial saindo de
noite aqui e indo nos canaviais que têm aqui pra cima, em
Coqueiros, fumá. Já peguei três vezes. Porque uma vez eu vinha vindo
da minha mãe, eu e meu namorado, e a gente veio por dentro, né,
acho muito longe dar a volta no trevo lá, então vamos cortar aqui por
Coqueiros, sai mais perto, né, e assim que eu tava vindo, os policial
tava indo, chegou nas duas entradas do canavial eles pararam o
carro, apagaram as luzes, e eles tavam fumando, meu namorado
pegou umas 4 vezes. Vamos supor que acontece um acidente,
qualquer coisa aqui na cidade, você não acha um policial.
Fica tudo escondido. Então eu acho que isso, quando você está ...
isso, é uma maneira fácil de ganhar dinheiro, então uns vendem os
cabeças de fora, olha: você não precisa trabalhar, você precisa fazê
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
165
isso, você ganha dinheiro fácil, é você fazer isso, você tira sua vida
numa boa, você não precisa de luxo, não precisa sofrer, né”. Então as
pessoas, as cabeças aqui, eles não tem cabeça pra pensar, eles caem
fácil por necessidade. Não a maioria, aliás, a maioria fumando
droga.
Aqui em Campos Canavial feio, a violência, as meninas de 13, 14
anos terrível. A maioria. Então como isso está tomando conta de
tudo, eles não tão sabendo se controlar, não tem assim uma amizade
mais boa, que aquele é minha amiga, meu amigo ele fuma, uma
pessoa decente é difícil você encontrar mais, tanto filho de papai
quanto gente pobre, cortador de cana, tomou conta, espalhou, a
escola, tanto a escola...
Ele corta mais...usando crack. Ele fica mais,...mais violenta, mais
elétrico?
O Manuel fica quieto na dele lá. Eles corta uma cana que é coisa de
louco. Você fica até assim admirado, você acha bonito ver o pessoal,
que eu comecei a desconfiar assim, porque não é normal a pessoa
cortar assim, se for uma cana ruim ele não encontra saída, tudo
enrolado ali, você fica, como eu vou fazer, eles não, eles acham
aquilo uma moleza e vai, sabe, não tem dificuldade nem de um lado
nem do outro, eles vão, quanto mais eles vão eles ficam mais distante
da turma, eles não qué aproximar o pessoal canavieiro perto deles.
Quanto mais longe, pra eles fumá, porque eles uma
descansadinha, fuma, outra descansadinha, fuma, e vai indo pra
frente. Eles o são de perder tempo. Eles não perdem tempo pra
nada.
Eu...uma vez eu perguntei porque pra esse Manuel o que ele acha de
droga, né, ele falou pra mim, é super dez, é gostoso, me faz bem, sabe,
faz bem pro meu ego, eu gosto disso, eu vivo disso, e não vou largar
disso. Acho que desde dos 16 anos. Acho que hoje ele tá com uns 25.
A mulher dele também se envolveu com isso, trabalha na roça
também. Usa crack também junto com ele. Ela fica louca. Tem dia
que ele chega a quebrar a casa inteira, depois não uma semana a
casa tá mobiliada inteirinha.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
166
Quem vier na casa dele compra. Vem de fora, da região...É tudo na
casa dele. E é assim, se comprá e não pagá... Morre. Ainda não
aconteceu isto aqui em Mineiros, mas é linchado ou paga…Ele
chegô a tomá de pessoa assim, na rua, bicicleta, televisão,
videocassete, por 5 real, chegou a entrar na casa do peão e tomá,
sabe, ou paga ou perde. Tem que pacom objeto ou com dinheiro,
ou você apanha.
Meu outro vizinho também, se envolveu com uma turma da pesada,
tem um grupo assim na rua da minha casa, se você for você fica
admirada, tem um bar assim, é assim de maconheiro, ali rola tudo. Ali
rola tudo, e quem bobeá apanha ali, fica pertinho da minha casa.
Então tem um rapazinho, sabe, que ele vendeu, ele foi pego, foi
espancado, ele roubou, e chegou hoje da cadeia e apanhou pra
caramba, quase mataram ele. Ele tem o que, 22 anos. Quase
mataram, só que ele não entregou os cara, porque ameaçaram ele de
morte, se ele falá ele morre, ele apanhou tanto ... desconfiaram de
um, parece que uma pessoa que entregou, e hoje ele é ameaçado, ele
não sai do portão pra rua. que ele fez tudo o que tinha direito,
injeta na veia, ele fez tudo, eu sei que o pior de tudo é quando você
injeta.
Ele tentou matá a mãe dele umas quinze vezes. A mãe dele...Já chegou
bebinho aqui na casa dos vizinhos ...
Tem mais gente que usa. Aquele de Coqueiros, agora eu não lembro o
nome dele, ele também usa. Eu acho que é crack. Ele é da minha
turma.
Olha, não na Usina X, porque lá, quando você faz a coisa pára, você
fumou um cigarro lá, parô. eles não perdoa, não pode passa nada
lá. Eles não aceita mesmo, agora fornecedor, eles falam não, mas o
pessoal não obedece, os homem manda, né? O não deles é um sim, ali
rola pinga, rola tudo.
Eu não sei falá com detalhe procê, que nem como eu falei procê, que é
difícil eu se virá pra trás, porque eles pode mandá uma resposta
procê que você não vai gostá, às vezes pode chega até a agredir você
dentro do caminhão. É perigoso demais.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
167
Tem que aceitá, o cheiro é insuportável ali, te fazendo mal, e você
tem que aceitá, o turmeiro não toma uma dea dentro, não fala
nada, acho que tem medo também.
Olha, o Manuel falou pra mim assim que é assim, o que ele ganha, eu
tou falando do Manuel, o que ele ganha assim,…mais é melhor pra
ele, mas não é tanto pela pobreza, é a necessidade do crack, pra
poder comprá ele. Tinha dias, às vezes, o pagamento dele, às vezes,
tinha meses que o pagamento dele inteiro ia só pra isso, pra crack, ele
deixava de pagar aluguel, comprá leite da filha dele, mas comprava o
crack pagava tudo no crack e vendia pros grandão, pros cabeça, e
deixava de pagar aluguel, deixava de tudo.
Eu acho que tomou conta do canavial. As únicas pessoas que não
sabem são os usineiros.
Só o turmeiro que sabe, porque eles (usineiros) não saem do
escritório deles pra ir lá. É difícil.
Eu acho que os fornecedores sabem mais do que os usineiros.
A Usina X faz um trabalho muito interessante, eu acho muito bonito,
até hoje nunca conheci uma firma que faz trabalho igual eles sobre a
droga, eles tanto procuram as escolas da região, né, que nem
começou a escola agora, acho que daqui a um mês, quinze dias, eles
estão lá na escola dando palestra, expricando, eles trazem pessoas de
fora. Eles levam o conhecimento deles nas escola. No trabalho
também. Então talvez, o que tá acontecendo no canavieiro eles não
sabem.
Já o fornecedor não tem, porque eu trabalhei também, agora em
dezembro, não, agora em janeiro, numa firma , Santa Gertrudes
....Aí meu Deus do Céu. Eu acho que Santa Gertrudes, eu trabalhei,
perto de um pessoal de Mesquita, e a maioria daquela turma fuma
crack, a maioria, tudo homem, eles cortavam cana sem camisa, de
calça e facão e luva na mão. Sentava assim, o horário de café é uma
hora, pra eles era duas horas, duas horas e meia. E o turmeiro não
falava nada, quer dizer, pra mim, o turmeiro e o pessoal de têm
envolvimento com aquilo. Em Mesquita.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
168
Tavam usando crack sim, porque um chegou pedindo fósforo pra mim
e eu não tinha e ele nem falou obrigado nem nada, você tem ou não
tem. Eu fiquei com medo, falei, eu não tenho, fiquei até com medo de
tomar café, eu tava deitada eu levantei, sentei. Muito grande a
movimentação entre eles.
Eles… em roda no garrafão, jogando baralho, não pra se
aproximar, porque eles são assim, o olhar deles medo. A gente…
se pergunta né, nossa!!! O turmeiro aceita isso? Nossa! Nunca
conheci um turmeiro assim. Aceitar isso na turma. O horário do café
é uma hora, eles estão duas horas e meia sentados aí.
Tanto é que eu trabalhei, entrei na firma, só fiquei um dia, não
voltei mais. Fiquei com medo porque eu achei muito estranho aquele
pessoal.
E a impressão que eu tenho dessa turma aí, eu falei com minha mãe,
né, quando chegou a tarde, trouxe o meu facão, a minha ferramenta:
“Mesquita, mas não vou voltar mais, aquele ambiente não é pra
mim”.
O duro é que eles não cortavam cana, sentava mais do que
trabalhava. A gente chegou a acabar o nosso canavial e fomos
obrigados a ajudar eles a acabar o deles. Era pesado mesmo.
Falavam muita besteira, né? Entre eles ali. Falava dos rolos, das
mulheres, muita besteira entre eles. E o turmeiro na dele, andava,
passava, bem normal. Porque na usina, os fiscais acompanha as
turmas ali. São os fiscais que acompanha o trabalho da gente, e pra
fornecedor, nesse que eu fui, só tinha gato. Não tinha um fiscal. Então
ali você fazia tudo o que você tinha direito. Não tinha uma lei
rigorosa lá. Você ia cortar sua cana ali, chega lá, corta pra cá, ponta
pra lá, não precisava nem cortá.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
169
Perspectivas na Prevenção das Drogas
A Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que estão mais propensos ao uso
de drogas pessoas:
sem informações adequadas sobre os efeitos das drogas;
com uma saúde deficiente;
insatisfeitas com sua qualidade de vida;
com personalidade vulnerável ou com problemas de integração social;
com fácil acesso às drogas.
177
Esses pontos apresentados pela OMS sobre o perfil das pessoas que estão mais
propensas a consumirem drogas encaixam-se de certo modo no que temos hoje em
relação aos usuários de drogas no universo das populações rurais do estado de o
Paulo. Quer dizer: ausência de esclarecimentos necessários em relação ao uso de
drogas por parte das autoridades de saúde pública; a saúde de muitos trabalhadores
encontra-se comprometida em função da má alimentação e grande desgaste sico no
trabalho, o repondo as vitaminas e sais minerais necessários ao corpo humano;
insatisfação com o trabalho em função da exploração da o-de-obra, sem acesso a
terra e a produção que ela provém; problemas de integração nos diferentes grupos
sociais, principalmente nas áreas urbanas, provenientes dos estigmas que trazem
historicamente; e a grande facilidade de acesso à droga, pois, de acordo com a matéria
de jornal que integra esta pesquisa, a rota do tráfico de drogas, denominada rota
caipira”, atua nos muitos canaviais, pela falta de fiscalização das autoridades
competentes e facilidade na distribuição das drogas para todo o estado de São Paulo.
Sabe-se também que o cultivo de drogas como a maconha é realizado em muitas
terras de produtores na base da coação. São obrigados, pela rede do tráfico de drogas,
em troca de não sofrerem represálias e atentados contra sua vida e de sua família.
Diante dessas dificuldades, parece ser impossível trabalhar ações preventivas ao uso
de drogas no campo, mas o pouco que podemos fazer muitas vezes pode significar
grande diferença na vida dessas populações, esquecidas muito tempo pelas
autoridades públicas.
177
Nappo, S. A., e Noto, A. R., Cocaína: Crack, Merla e Pó, 1998.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
170
Em primeiro lugar, é necessário diluir a iia, nessas comunidades que vivenciam
esse problema, de que existem receitas ou modelos prontos no tratamento da
dependência física e psicológica de drogas.
Antes de realizar qualquer tipo de prevenção em qualquer grupo ou comunidade, é
necessário conhecer a população, suas necessidades, organização, valores, normas,
etc. A partir desse conhecimento, dessa interação, é que se poderá fazer uma avaliação
de suas necessidades e problemas mais freqüentes. Esse diagnóstico contribuirá para a
escolha do tipo de preveão (primária, secundária ou terciária) que deve ser
trabalhado na comunidade em questão, envolvendo os diversos profissionais que
atuam nas áreas da saúde e social, bem como toda a comunidade, estimulando a
participação dos rios segmentos que a integram, como associações de bairro,
sindicatos, igrejas, escolas, redes de saúde, etc., aproveitando o auxílio dessas
estruturas nas estratégias a serem desenvolvidas. É importante, também, desfazer
idéias distorcidas que esses próprios segmentos possam ter em relação as drogas,
contribuindo na tentativa de livrar os usuários de uma dada comunidade dos estigmas
impostos pela sociedade.
Esse procedimento auxilia também para que a família do usuário aproxime-se desses
programas, compreenda os vários aspectos que envolvem a depenncia das drogas,
fazendo com que seus parentes livrem-se o mais rápido possível delas.
Esses procedimentos mencionados vão ao encontro do que os fenomelogos que
atuam na área da saúde consideram a respeito da cura em que a base está nos
“valores, símbolos e sistemas de significados compartilhados nos seus grupos de
referência.”
178
Esses grupos de referência irão proteger os indivíduos contra as
“grandes estruturas impessoais e anônimas”
179
em que Schutz comenta, eles se
tornam um número. Advogam portanto uma reforma do sistema de saúde que leve em
conta os valores culturais dos grupos, seus mediadores (os pequenos grupos) e seus
ecossistemas.”
180
Desse modo, desenvolve-se uma visão holística a respeito da concepção do binômio
saúde/doença, alinhada nos seguintes pontos:
178
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec – Abrasco, 1999, pg. 61.
179
Idem, pg.61.
180
Idem, pg.61.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
171
a) “a saúde tem que ser pensada como um bem-estar integral:
físico, mental, social e espiritual;
b) os indivíduos devem assumir uma responsabilidade inalienável
frente às questões de sua saúde;
c) as práticas da medicina holística devem ajudar as pessoas a
desenvolver atitudes, disposições, hábitos e prática que
promovam seu bem-estar integral;
d) o sistema de saúde deve ser reorientado para tratar das causas
ambientais, comportamentais e sociais que provocam a doença;
e) as pessoas devem se voltar para a harmonia com a natureza,
utilizar práticas e meios naturais de tratamento.”
181
Os resultados concretos, a partir das concepções fenomenológicas sobre a área da
saúde, têm demonstrado:
f) “um questionamento sobre o papel do Estado e das grandes
instituições médicas;
g) incremento dos pequenos grupos privados e voluntários
referentes à questão da saúde;
h) reconhecimento de modalidades alternativas de expressão e de
tratamento de saúde;
i) aparecimento de novas formas institucionalizadas de saúde
pública combinadas com associações voluntárias; atenção
primária; autocuidado; uso da medicina tradicional;
participação comunitária; educação e saúde vinculadas à
pesquisa-ação.”
182
181
Mynaio, M.C. de Souza, O Desafio do Conhecimento - Pesquisa Qualitativa em Saúde. Ed. Hucitec – Abrasco, 1999, pg. 62.
182
Idem, pg. 62.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
172
Enfim, as iias expressas em relação às perspectivas de preveão ao abuso de
drogas, fenômeno que pode ocorrer em diversos grupos e comunidades que integram
nossa sociedade, poderão servir de tentativa para abrir a discussão e criar subsídios
o apenas para a realização de ões preventivas, mas também alternativas mais
sensíveis nos aspectos curativos que envolvem a presente questão.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
173
Considerações Finais
“Ah, eu desejava ter um sítio meu. , pra mim
acordar cedo e ir trabalhar ali no meu cantinho”
Sra. Aparecida: Desejo pela terra. Terra sagrada de onde
provêm seu trabalho e seu sustento.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
174
A partir das questões apresentadas nos capítulos que compõem esta dissertação: a
formação hisrica da agroindústria canavieira; a crescente miséria e desqualificação
profissional dos trabalhadores rurais; os aspectos históricos e culturais do homem do
campo, importantes na construção da identidade brasileira, porém não valorizados em
função dos conceitos que a modernidade criou no decorrer dos anos, incluindo o
aspecto do consumo de drogas como marca da diferença entre as pessoas, temos uma
questão aberta na discussão do presente fenômeno (crack), qual seja: O crack é um
sintoma ou um problema?
Para tecer considerações a esse respeito, faz-se necessário entendermos o que
significa as palavras problema e sintoma no sentido literal.
Problema
Situação que ameaça certos valores básicos e culturais causados
pelos desajustes individuais às normas adotadas ou falhas existentes
na própria estrutura social”. (
Dicionário Michaelis
)
Sintoma
Fenômeno das funções ou da constituição material dos órgãos,
próprio para indicar a existência, a sede e a natureza de uma
enfermidade”.
Indício de um estado ou de mudanças ocultas”. (
Dicionário Michaelis
)
A partir destas definições, percebemos que problema é um fenômeno externo que
introduz-se na ordem normal das coisas causando uma desestruturação, uma ruptura
das normas e regras vigentes, construídas em uma dada comunidade no decorrer dos
anos.
o significado de sintoma traz-nos um sinal, um vestígio de mudanças numa dada
estrutura. O sintoma revela aos seres humanos que algo diferente está acontecendo em
seus organismos, fora dos parâmetros da normalidade. A partir de tais sintomas, faz-se
um diagnóstico para saber a causa destes sinais, para posteriormente investigar quais
os problemas que estão ocasionando tais mudanças no organismo.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
175
Muitas vezes, a partir de um sintoma tem-se revelado o princípio de uma doença a
qual quando tratada no início, poderia vir a ser curada.
O sintoma, no aspecto social abordado nesta pesquisa, movimenta-se em fuão de
um problema, desarranjando os princípios estabelecidos pelos diferentes grupos ou
comunidades em questão. A introdução de algo novo (estranho) faz com que as
pessoas pertencentes a esse grupo levem um tempo para compreender tais
acontecimentos referentes a esse novo elemento.
Seguindo tal linha de raciocínio, poderíamos dizer que o consumo de crack por
cortadores de cana, pessoas de origem rural, é um problema na sua ordem social, e o
sintoma seria o reflexo dos vários elementos externos incorporados em suas práticas
cotidianas.
As conseqüências desses problemas podem decorrer do trabalho na cana-de-açúcar,
devido aos índices de produtividade exigidos pelas usinas e fornecedores, situações de
insalubridade no ambiente de trabalho, falta de conhecimento da importância de suas
atividades profissionais na estrutura da agroindústria canavieira, aos estigmas
atribuídos ao homem do campo em função da sua cultura, modo de vida, etc. Depois,
à imagem que lhe criaram comparando-o ao homem da cidade, introduzindo em suas
mentes os conceitos de bom e ruim, e, a partir disso, o outro, o diferente é belo,
inteligente, educado, comparado a esses trabalhadores.
também fatores relacionados à freqüente expropriação de suas terras, de seus
instrumentos de trabalho, de sua sobrevivência, episódio na história brasileira que
gerou muita violência no campo, pois não havia como se opor às idéias determinadas
pelo Estado, que iam ao encontro dos interesses dos grandes latifundiários e
empresários rurais. Atualmente, muitos não têm casa, terra para plantar, utensílios,
passam necessidades trabalhando apenas para se manter em pé.
A ausência dos recursos públicos na assistência às populações rurais faz com que
informações e esclarecimentos sobre diversas questões, principalmente a droga, não
cheguem ao conhecimento desses indivíduos.
Forçados a mudar para a periferia das cidades, obrigados a adotar lógicas pertencentes
ao espaço urbano, em função da mudança de seus cotidianos. Poderíamos dizer que
todos esses problemas provocaram um sintoma, e o fato de se tornarem dependentes
de drogas já é uma doença. O fato de consumirem drogas pode ser uma forma de
serem aceitos e incluídos em qualquer grupo social.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
176
Esta situação pode ser explicada pelo que denominei princípio liberal negativo, em
que não há restrições para as diversas pessoas incluírem-se nesse novo segmento, pois
a droga traz em si o aspecto “democrático”: ninguém sofrerá qualquer tipo de
rejeição, como ocorre muitas vezes em outros segmentos sociais que o indivíduo
deseja inserir-se. A droga não exclui em função das condições sociais que o indivíduo
possui; ao contrio, é bem aceito no comércio de drogas em fuão do pouco recurso
financeiro que obtém do trabalho na cana.
A partir da inserção nesses grupos, inicia-se um estágio diferente, transformando tais
sintomas em doenças sicas e psicológicas.
O sintoma não deixa de pertencer a um problema, então, acredito que a presente
indagação o se afirma propriamente nem em uma nem em outra, e sim nas duas, ou
seja, o problema é a causa e o sintoma é uma conseência.
Muitos dizem que o indivíduo que consome drogas é um indivíduo alienado, que já
perdeu o raciocínio lógico, a diferença entre o que é certo e errado, etc. Mas a droga
o tornou esse indivíduo num ser alienado, ela vem a contribuir para que esse
processo seja acelerado. A partir do não-reconhecimento de sua função na esfera
social, da produção de uma identidade negativa, restrição e acesso a informações, não
reconhecimento ou valorização de sua origem, etc., temos um sujeito alienado
socialmente, e a droga faz com que o indivíduo se distancie cada vez mais dessas
questões, tornando-o realmente em um alienado em todos os sentidos, rejeitando até,
muitas vezes, assistência, ajuda para tais problemas, impedindo que haja um salto
positivo e sua identidade verdadeira venha a ser revelada.
Enfim, o crack é um sintoma a partir de vários problemas sociais que surgiram entre
as populações rurais, e o estágio em que se encontra atualmente já se caracterizou
numa doença crônica, que é a dependência física e psicológica desta droga.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
177
Anexo
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
178
Roteiro de Entrevistas
1) PROFISSIONAIS
Prof. Dr. Igor Vassilieff CEATOX/UNESP Botucatu, Dra. Eliete Psicóloga, Sr.
Francisco Coordenador do Sindicato Rural Patronal de São Manuel, Sr. Valter
Pastor da Igreja Assembléia de Deus e Presidente do DEJOB Desafio
Jovem/Botucatu, Sr. Mauro – Presidente da FETAESP.
1) No final de 1997, assisti a uma série de reportagens no Jornal Nacional da
emissora de TV Rede Globo, sobre cortadores de cana do município de Igaraçu do
Tietê, Estado de São Paulo, consumindo uma droga conhecida como crack. O
Sr.(a) poderia, antes de iniciar nossa entrevista a esse respeito, situar exatamente o
mês e confirmar o ano dessas reportagens?
2) O Sr. (a) poderia nos dizer como a dia tomou conhecimento desse fato, e como
foi o contato dessa emissora ?
3) O Sr. (a) saberia nos dizer desde quando os cortadores de cana da região vêm
usando crack?
4) Quantos trabalhadores no corte de cana passaram pelo CEATOX, para
atendimento e encaminhamento? (Dr. Igor e Dra. Eliete)
5) Além de Igaraçu do Tietê, há registro de cortadores de cana dependentes do crack
em outros municípios? Quais são esses municípios?
6) O Sr. (a) saberia dizer qual o perfil desses trabalhadores, além de trabalhar no
corte de cana-de-açúcar?
7) São na maioria homens ou mulheres? E qual a faixa etária desses trabalhadores?
8) Qual é o tipo de tratamento que o CEATOX oferece a esses trabalhadores? (Dr.
Igor e Dra. Eliete)
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
179
9) Existe encaminhamento para outros centros de saúde? Quais são? (Dr. Igor e
Dra. Eleite)
10) Como profissional da área da saúde, e também da área rural, qual a explicação que
atribuiria para os cortadores de cana estarem consumindo crack?
11) E como um cidadão comum, qual seria a sua interpretação a esse respeito? O
Sr.(a) teria outra resposta sem se basear no fato de ser: Médico e especialista na
área de toxicologia, Psiloga, Coordenador do Sindicato Rural Patronal,
Presidente da FETAESP e Presidente do DEJOB?
12) O Sr. (a) poderia falar quais são os danos causados fisicamente e psicologicamente
pelo crack? (Dr. Igor e Dra. Eliete)
13) E o aspecto social? O (a) Sr. (a) acha que também contribuiu para os cortadores de
cana estarem consumindo crack?
14) Esse fenômeno foi divulgado em 1997. Hoje o (a) Sr. (a) saberia nos dar um
panorama de como está o consumo de crack entre os cortadores de cana?
15) Se o índice de usuários aumentou, o Sr. (a) saberia nos dizer, em porcentagem,
esse aumento?
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
180
2) CORTADORES DE CANA
História de Vida
183
1) Onde você nasceu? (município)
2) Quantos anos você tem?
3) Com quantos anos começou a trabalhar na roça?
4) Sempre trabalhou na zona rural? (corte de cana)
5) Seus pais também eram trabalhadores rurais?
6) Onde eles nasceram? (município)
7) Quantos irmãos você tem?
8) Eles também trabalham no corte de cana?
9) diferenças em relação ao trabalho no corte de cana na cidade (Estado) em que
mora e aqui em Rios Dourados e Campos Canavial (S.P)? Migrantes do Norte
de Minas e Alagoas.
10) Ainda existem moradores na zona rural no seu Estado? - Migrantes
11) Como é o ritmo de vida na cidade (Estado) onde você nasceu? – Migrantes
12) Como vocês estão alojados aqui em São Paulo?
13) Você tem registro na carteira profissional ou trabalha aqui como autônomo?
14) Como é o seu dia de trabalho? Que horas começa e acaba o trabalho?
15) Que horas você almoça e faz o lanche da tarde?
16) A sua comida é composta de quais alimentos?
183
Buscou-se nas entrevistas obter relatos dos cortadores de cana em relação às suas histórias de vida, utilizando o método de
entrevistas semi-estruturadas, ou seja, um questionário mais aberto para aproveitar todos os momentos de suas falas. em
relação às perguntas sobre o uso de drogas, principalmente o crack, seguiu-se com perguntas mais fechadas, centrando nas
respostas que a pesquisadora buscava em seu trabalho.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
181
17) Qual o período de trabalho no corte de cana?
18) E, quando acaba a safra, o que você faz nos outros meses para sobreviver?
19) Quantas toneladas você corta por dia?
20) Quanto você ganha por mês em média?
21) Existem cortadores de cana que trabalham sem registro em carteira?
22) Você já teve algum acidente de trabalho?
23) Quais os problemas de saúde que você teve em função de trabalhar no corte de
cana?
24) Você pode contar um pouco da sua história de vida, da sua família, de seu
cotidiano?
25) Eu fiquei sabendo que em 97 teve um caso em Igaraçu do Tietê em que cortadores
de cana estavam usando drogas, principalmente aquela chamada crack. Você tem
conhecimento disso ou já ouviu falar?
26) Existem realmente cortadores de cana usando drogas, especialmente esta?
27) Eles usam no próprio canavial?
28) Eles consomem a droga perto de outros cortadores de cana?
29) Como eles ficam sob o efeito da droga?
30) Porque você acha que alguns cortadores de cana estão consumindo drogas
(crack)?
31) Você acha que tem relação com o trabalho, para suportar o ritmo e produzir mais
no corte de cana, ou com o tipo de vida sacrificado que os trabalhadores rurais
levam?
32) Você tem algum desejo, sonho que gostaria de realizar?
33) Conte-me sobre esse sonho, este desejo?
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
182
Bibliografia
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
183
Andrade Neto, J. C. X. de, O Estado e a Agroindústria Canavieira no Nordeste
Oriental. Tese de Doutorado – USP, 1990.
Andrade, M. C. de, Modernização e Pobreza na Agroindústria Canavieira; Ed.
UNESP, 1994.
Arjo Filho, J. R., Santos: O Porto do Café; Fundação IBGE, 1969.
Baptistella, C. da S. L., Francisco, V. L. F. dos S., Vicente, M. C. M., O Trabalho
Volante: uma análise do emprego num período de transição no campo paulista.
Informações Econômicas, 2000.
Barban, V. A., O Trabalhador Rural na Agroinstria Canavieira Empresarial no
Estado de S. Paulo. Dissertação de Mestrado – USP, 1989.
Barbosa, F. C., Mercado de Trabalho de Migrantes Nordestinos: os empregados de
edifício no Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado - UFF, 1997.
Berger, P., Luckmann, T., A Construção Social da Realidade; Ed. Vozes, 1998.
Bounard, P., O Lugar da Etnografia nas Epistemologias Construtivistas. Revista de
Psicologia Volume 1, Número 2, nov. 99. UEL.
Brandão, C. R., Os Caipiras de São Paulo; Ed. Brasiliense, 1983.
Bueno, A. e Goes, F., O Que é Geração Beat; Ed. Brasiliense, 1984.
Cândido, A., Os Parceiros do Rio Bonito; Ed. Duas Cidades, 1987.
Carli, G. de, Gênese e Evolução da Indústria ucareira de S. Paulo; Ed. Irmãos
Pongetti, 1943.
Ciampa, A. da C., A Estória do Severino e a História da Severina; Ed. Brasiliense,
1998.
Codo, W., O que é Alienação; Ed. Brasiliense, 1986.
Comte, A., Os Pensadores; Ed. Abril.
Coulon, A., Etnometodologia; Ed. Vozes, 1995.
Durhan, E. R., A Caminho da Cidade; Ed. Perspectiva, 1973.
Ferrante, V. L. S. B., O Pulsar Desritmado do Coração na Agroindústria Paulista.
Encontro Nacional de Encontros Temáticos do PIPSA, 1990.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
184
Freyre, G., Casa Grande e Senzala; Ed. Record, 2000.
Guareschi, P. e Jovchelovitch, S., (orgs.) Textos em Representações Sociais; Ed.
Vozes, 1999.
Goffman, E., Estigma; Ed. Guanabara, 1988.
Goffman, E., A Representação do Eu na Vida Cotidiana; Ed. Vozes, 1985.
Halbwacks, M., A Memória Coletiva; Ed. Martins Fontes.
Hilaire, A. S., Viagem a Província de São Paulo; Ed. Livraria Martins, 1945.
Ianni, O., A Classe Operária Vai ao Campo. Cadernos Cebrap; Ed. Brasiliense, 1976.
Iamamoto, M. V., Trabalho e Indivíduo Social; Ed. Cortez, 2001.
IEA - Instituto de Economia Agrícola e Coordenadoria de Assistência Técnica
Integral.
Kowarick, L., Trabalho e Vadiagem; Ed. Brasiliense, 1987.
Martins, J. de S., Os Camponeses e a Política no Brasil; Ed. Vozes, 1995.
Martins, J. de S., A Sociedade Vista do Abismo; Ed. Vozes, 2002.
Marx, K.; F. Engels, A Ideologia Alemã; Ed. Martins Fontes.
Marx, K., O Capital; Ed. Civilização Brasileira.
Masur, J., O Que é Alcoolismo; Ed. Brasiliense, 1991.
Masur, J. e Carlini, E. A., Drogas: subsídios para uma discussão; Ed. Brasiliense,
1993.
Melo, M. da C. D’Incao, Bóia-Fria: Acumulão e Miséria; Ed. Vozes, 1975.
Minayo, M. C. de Souza, Pesquisa Social; Ed. Vozes, 2000.
Minayo, M. C. de Souza, O Desafio do Conhecimento: Pesquisa Qualitativa em
Saúde; Ed. Hucitec – Abrasco, 1999.
Moura, M. M., Os Camponeses; Ed. Ática, 1986.
Nappo, S. A. e Notto, A. R., Cocaína: Crack, Merla e . Cartilha de prevenção ao
uso de drogas desenvolvida pelas pesquisadoras do CEBRID, 1987.
Negri, B., Um Estudo de Caso da Indústria Nacional de Equipamentos. Dissertação
de Mestrado UNICAMP, 1977.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
185
Pollak, M., Memória e Identidade Social. Estudos Históricos, R. Janeiro, Vol. 5, n.
10, 1992.
Pollak, M., Memória, Esquecimento, Silêncio. Estudos Históricos, R. Janeiro, Vol. 2,
n. 3, 1989.
Queiroz, M. I. P. de, O Campesinato Brasileiro; Ed. Vozes, 1973.
Queiroz, M. I. P. de, Bairros Rurais Paulistas; Ed. Duas Cidades, 1973.
Ramos, P. Agroinstria Canavieira e Propriedade Fundiária; Ed. Hucitec, 1999.
Santiago, T. A Manufatura e o Engenho de Açúcar no Brasil Colonial; Ed. Vozes,
1980.
Sass, O., Fragmentos Sobre a Vida na Roça – Estudo Psicossocial com Pequenos
Proprietários Rurais. Dissertação de Mestrado, PUC/SP 1982.
Sissa, G., O Prazer e o MalFilosofia da Droga; Ed. Civilização Brasileira, 1999.
Schütz, A., Fenomenologia e Relações Sociais, Textos Escolhidos; Ed. Zahar, 1979.
Sigaud, I. Os Clandestinos e os Direitos; Ed. Duas Cidades, 1979.
Silva, J. G. da, A Modernização Dolorosa; Ed. Zahar.
Silva, M. A. de Moraes, Errantes do Fim do Século; Ed. UNESP, 1998.
Spink, K. P., Psicologia e Saúde: Repensando Práticas; Ed. Hucitec,1992.
Szmrecsányi, T., O Planejamento da Agroindústria Canavieira no Brasil; Ed.
Hucitec, 1979.
Vários Autores; Indivíduo, Trabalho e Sofrimento; Ed. Vozes, 1998.
Vários Autores; A Mão-de-Obra Volante na Agricultura; Ed. Polis, 1982.
Vários Autores; Interacionismo Simlico e Teoria de Papéis; Ed. Educ, 1998.
Velho, G., Desvio e Divergência; Ed. Jorge Zahar, 1999.
Woortmann, E., Herdeiros, Parentes e Compadres, Ed. Hucitec/UNICAMP, 1995.
Williams, R., O Campo e a Cidade; Ed. Companhia das Letras, 2000.
Zaluar, A. (org.), Drogas e Cidadania, Ed. Brasiliense, 1994.
Cana e Crack: Sintoma ou Problema? Um Estudo Sobre os Trabalhadores no Corte de Cana e o Consumo do Crack
186
Vídeos:
As Andorinhas: Nem Cá e Nem . Projeto de Pesquisa: Maria Aparecida de
Moraes Silva, UNESP – Araraquara, 1991.
A Greve de Guariba: Realização FERAESP, UFSCAR e UFRJ. Imagens de
Arquivo: TV Cultura, TV Manchete e CEDIC.
Casa Grande e Senzala: Produção TV Cultura.
Casa Grande e Senzala: Produção GNT. Direção: Nelson Pereira dos Santos. 2001.
Cortadores de Cana e o Consumo do Crack: Reportagem Jornal Nacional, TV
Globo, outubro 1997.
Brasil Caipira: Realização TV Cultura.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo