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Cervantes,
Dom Quixote
... e outras do nosso tempo
As e-crônicas:
1 - As muitas Galícias, pg. 3
2 - O mal que JK nos causou, pg. 8
3 - Os gnomos modernos de Zé Andrade, pg. 11
4 - Cervantes, Schopenhauer, Nietzsche & Sartre, pg. 15
5 - Cervantes:escravo,judeu,homossexual,proxeneta e...plagiário, pg. 18
6 - O genial filho de algo Dom Coxote da Mancha, pg. 23
7 - Guimarães Rosa e o jogo de xadrez, pg. 28
8 - A primeira visita de Macunaíma ao Rio de Janeiro, pg. 33
9 - Burle Marx e o deserto do Saara, pg. 39
10 - O carnaval que passou..., pg. 42
11 - Tradutor, traidor?, pg. 47
Poesia quase sempre:
12 - Conhecer Abgar Renault, pg. 51
13 - Pablo Neruda ou A poética do coração, pg. 60
14 - Moacyr Félix, poeta simplesmente, pg. 64
15 - (Re) Conhecer Vito Petagna, pg. 66
16 - O poeta Joaquim Itapary, pg. 70
17 - Bacelar Viana: a poesia da urbe, pg. 73
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AS MUITAS GALÍCIAS
Parece estranho que ao pesquisar nas enciclopédias modernas as
informações sobre a Galícia, se encontre uma terra irmã gêmea no nome. É
certo que aqui o nacional costuma usar atualmente a grafia Galiza, mas ao fim
das contas dá no mesmo, pois o gentílico é comum aos dois povos: galiciano.
Com efeito, está lá: “GALÍCIA, região da Europa oriental dividida entre a
Polônia e a Ucrânia”.
Na verdade é difícil estabelecer fronteiras numa região em que várias
populações se reúnem para viver. A Galícia provavelmente está em terras que
hoje são romenas, polonesas, ucranianas e eslavas. É um lugar de histórias
antigas, terra que diversos povos ambicionaram dominar e que, por essa razão,
foi passando de mão em mão desde tempos remotos. Ninguém ambiciona uma
terra que não tenha atrativos, riquezas naturais, um povo culto e nobre. No
entanto, cabe dizer, foi a Polônia que sempre perseguiu o objetivo ambicioso
de ter a Galícia como um dos seus territórios, embora galicianos e poloneses
vivessem às turras, justamente por isso. Havia diferenças culturais, religiosas e
políticas...
Aquela Galícia – é a história que registra – sempre se mostrou rebelde e
independente. Foi, antes, Principado Russo, tinha como principal cidade
Galitch (notem a semelhança de nomes: Galitch-Galícia). Após constantes
lutas por nacionalidade, os galicianos conseguiram impor sua independência já
no Século XII. No ano de 1205 o príncipe Mstislavitch reuniu os estados de
Volínia e Galícia, formando um único principado. Após a unificação o país
cresceu em fama e poder, atraindo as gentes aventureiras e ambiciosas,
sempre com o objetivo de submeter e conquistar os galicianos. Após muitas
4
lutas, guerras e revoltas prevaleceu o imperador Casimiro III, que depois da
conquista deu o nome de Rutênia às terras ocupadas.
Entretanto, o povo galiciano manteve as tradições, os costumes, a fé, o
constante uso e ensino da língua natal – um dialeto cirílico aproximado do
ucraniano. Ao ser anexado à Áustria em 1772 – que intervém para dirimir a
questão religiosa entre galicianos ortodoxos e polacos católicos (os galicianos,
com efeito, haviam se tornado uniatas desde 1596) – a Galícia ganhou status
de Reino: a nação independente durou até 1918. Nos anos que ocorreram os
conflitos da I Guerra Mundial (1914-1918), a Galícia – por sua posição
estratégica e poderio econômico – se transformou numa das principais zonas
de operação de frente oriental.
O fim da guerra levou também ao fim das monarquias, condados e
principados. Essa derrocada geral, inspirada pelo desejo de modernidade, teve
forte influência da Revolução Russa de 1917. Havendo necessidade de
redesenhar a geopolítica da região, os dominadores decidiram dividir uma vez
mais as terras da Galícia. A parte ocidental retornou aos domínios da Polônia,
ao passo que a Galícia oriental ficou com a Rússia e hoje é parte territorial da
Ucrânia.
Já o país da Galícia, região que conhecemos, famosa pelo jeito caloroso
que os habitantes todos os anos recebem milhares de turistas, está localizada
no Norte da península ibérica, vizinha a Portugal. O país como um todo é
formado pelas cidades de A Coruña, Lugo, Orense e Pontevedra, terra de
montes, de bosques de carvalhos, densa pradaria, de clima ameno durante
todo o ano e das fontes eternas da água mais doce que há na face da Terra!
Esta mesma região foi fundamental para a criação de Portugal como país, pois
ajudou a conservar e normalizar o idioma local, levando a língua portuguesa a
ser o idioma nacional lusitano.
Quem faz a língua é o seu povo: entre Portugal e Galícia eram os
poetas, os trobadores, que circulavam e viviam na mesma região, usando tanto
5
para difundir notícias, relatar a história, transmitir mensagens quanto para o
trobar, um dialeto comum – o galiciano.
O que há de comum entre esses dois países – duas Galícias – uma,
como se disse acima, de natureza exuberante e povo acolhedor, a outra
encravada nas fronteiras de nações dominadoras, o que eles têm em comum é
a existência de povos antigos cuja identidade e cultura próprias foram
sufocadas em nome da modernidade, de partilhas militares, dominação física e
comercial. Também existe de comum a luta intensa, a vontade indomável, a
ânsia de nacionalidade orgulhosa, elementos vitais e capazes, que não deixam
morrer nem a língua, nem fenecer a cultura.
Naquela Galícia carpática, de clima frio e rigoroso inverno, nasceu um
famoso escritor que chegou até nós. Trata-se de Leopold Von Sacher, que
depois ficou famoso com o nome Sacher-Masoch, aquele mesmo de cuja obra
se originou o masoquismo, descoberto e estudado pelos mais famosos
psicanalistas. Pois foi lendo a biografia de Sacher-Masoch [Bernard Michel,
Sacher-Masoch (1836-1895), tradução Ana Maria Scherer, editora Rocco, Rio
de Janeiro 1992], que me abriu o apetite e a curiosidade de conhecer aquela
outra Galícia, assim descrita pelo autor: “A capital do reino da Galícia é a
cidade que se chama em francês Léopol, em alemão Lemberg, em polonês
Lwów e que é hoje a cidade de Lvov na Ucrânia. Com 70 mil habitantes em
1836, ela era um dos grandes centros religiosos e culturais da Europa”.
Tanto mudou o nome da capital galiciana, quanto a Galícia eslava
mudou de “dono”, porém o seu povo sempre se manteve fielmente unidos pelo
sangue. Bernard Michel fez um cuidadoso trabalho de pesquisa, de
garimpagem, foi recolher nas origens as informações sobre o escritor,
descobriu fatos inéditos, ouviu relatos fidedignos e originais, visitou locais
remanescentes, descobriu descendentes, familiares, pesquisou órgãos
públicos, arquivos, bibliotecas, casas particulares. Esse trabalho fatigante
resultou nesta minuciosa e detalhada biografia de Sacher-Masoch. O livro se
tornou mais importante ainda porque força uma reavaliação do escritor, que
ficou famoso apenas por ter fornecido à ciência freudiana alguns elementos até
6
então desconhecidos que levaram à descoberta de uma fantasia sexual: o
masoquismo.
O Sacher-Masoch que Bernard Michel nos apresenta é muito mais
importante. Além de escrever centenas de obras, foi um historiador do seu
tempo. Amava de todo o coração a terra onde nasceu, além do galiciano,
falava e ensinava vários idiomas e dialetos: eslovaco, alemão, latim, polaco,
austríaco, francês, boêmio (tcheco), ruteno e inglês. Para entendê-lo, logo na
introdução o biógrafo esclarece quem é Sacher-Masoch:
“É um homem de fronteira: nasceu na Galícia, entre o mundo
russo que anuncia o Oriente e o mundo germânico. Escreve em língua
alemã, mas para evocar uma realidade eslava, completamente estranha.
Mas nasceu também na fronteira intelectual: entre a arte russa de
Turgueniev e de Gogol, o entusiasmo da geração romântica, o
pessimismo cientificista de Schopenhauer e de Darwin”.
Então, nada melhor que dar voz ao filho dileto e famoso para dizer quem
é, para descrever a sua terra, a amada Galícia:
“Aquele que, levado por uma frágil embarcação, desliza sobre o
mar calmo e sereno, enquanto os contornos difusos da costa
desaparecem pouco a pouco num véu de bruma e seu olhar sonhador
perscruta o oceano aéreo acima dele, me compreenderá talvez quando
falo da planície galiciana, desse oceano de neve através do qual, no
inverno, somos levados pelo trenó fugitivo”.
Não acharam estranha a comparação entre as imensas planícies sub-
carpáticas e o oceano, principalmente quanto o lugar dista quilômetros de
distância do mar mais próximo?
Ao sul da Galícia eslava se estende a cadeia montanhosa dos Cárpatos,
em cuja encosta de clima ameno e águas abundantes se cultivam castas de
uva para produzir o vinho branco mais famoso da região, difundido tempo
7
depois pela Alemanha com o nome de Liebfraumilch. Esta Galícia é também
um caldeirão cultural de mescla racial, mas forma um só povo, reunido nas
mesmas terras por ideais e religiões comuns. Sacher-Masoch um dia assim
saudou seus patriotas:
“Também eu vos saúdo a todos, que a todos os gerou um país, a
Galícia: poloneses, rutenos, alemães e israelitas! Quer useis o
czemerka, o tricórnio, a jamurka ou o uniforme branco; quer useis no
brasão de vossas convicções a vitoriosa águia de duas cabeças
[bandeira da Áustria] ou a nostálgica águia branca [bandeira da Polônia];
quer rezeis nas sinagogas, nos templos, na cirkew ou na igreja, eu vos
saúdo de todo coração!”
Porém, o detalhe mais curioso e mais importante que consta do livro de
Bernard Michel se refere à árvore genealógica de Sacher-Masoch. Diz o
biógrafo:
“Nessa zona de contatos entre os povos, onde a vida impunha
uma tolerância necessária, onde os casamentos mistos eram freqüentes,
as genealogias seguiam linhas curvas. Em vez de ser explicado por sua
hereditariedade, Leopold de Sacher-Masoch escolheu inventar a sua.
Por parte de pai, descendia de uma família alemã da Boêmia. Mas
cultuava a lembrança de um antepassado mítico, Dom Matias Sacher,
vindo da Espanha como capitão de cavalaria nos exércitos de Carlos V.
Haveria algo mais exótico na Galícia do que um cavaleiro vindo da outra
extremidade da Europa? A tradição familiar era incerta. Teria ele vindo
numa guarnição em 1517 ou em 1547, após a batalha de Mühlberg,
como ferido heróico, tratado por uma nobre moca, uma Clementi, que se
tornou sua mulher?”
Eis aí uma indicação para os historiadores galicianos. Será que as duas
Galícia são irmãs, não apenas no nome? Será que num passado distante
algum galiciano ibérico apaixonado não mais retornou à terra natal e ali mesmo
fundou uma nova Galícia? Será que um comandante de Carlos V, cujo império
8
imenso e poderoso chegou às fronteiras da Polônia, ali encontrando o patrício
resolveu ficar para se tornar ancestral do famoso escritor galiciano Sacher-
Masoch?
Quantas interrogações! Será o que será? Pé na estrada! Mãos à obra!
Tomar o caminho de Kolomea, pois...
(Publicado em http://www.agal-gz.org
http://gavetadoautor.sites.uol.com.br/
http://spaces.msn.com/xadrezeliteratura/)
9
O MAL QUE JK NOS CAUSOU
O que pensou JK quando ousou assumir a transferência da capital
federal para o planalto? É claro que nenhum mal lhe passou pela cabeça. O
projeto era antigo, com raízes no segundo Reinado, mas seja qual for o hálito
histórico que ambientou todo o processo – hoje completamente documentado –
a conseqüência refletiu na política brasileira como uma bordoada mal dada,
cujo nocauteado foi o povo. O que hoje nos aflige e nos derrota é o
distanciamento físico entre o político e seu povo.
Acabou o corpo-a-corpo, a vaca das reivindicações foi pro brejo com
corda e tudo, a pressão popular cujas raízes remontam à Revolução Francesa
esvaiu-se, quando se quiseram reunir milhões de pessoas para clamar pela
restauração da democracia, a responsabilidade caiu sobre o Rio de Janeiro e
São Paulo. Lula como líder sindical no planalto seria uma tragédia satélite, uma
piada sem quintal.
O distanciamento da sede política das grandes metrópoles implantou e
trouxe consigo a pior de todas as tragédias políticas ao gerar e fazer nascer
uma teocracia até então inimaginável: a democracia ditatorial. Aquilo que
parece mais não é: a perpetuação de uma ordem política na qual a ética e a
estética são descartadas de revés.
Na antiga capital federal, o Rio de Janeiro, o senado ficava bem ali nos
costados da Cinelândia, um reduto tradicionalmente rebelde e revolucionário,
onde até mesmo as reivindicações de ordem homossexual derrubaram
convenções. Era o reduto do teatro, do cinema, das boates e, portanto das
bichas recém assumidas. Qualquer movimento errado das autoridades,
qualquer passo em falso, qualquer escândalo mesmo menor, logo provocava a
reunião do populacho disposto a redirecionar os transviados.
A câmara dos deputados ficava logo ali na Praça 15 de novembro, ao
lado ao Paço Imperial que já era, desde o tempo do império, palco que refletia
a efervescência social e política da época. A república chegou e permaneceu
10
sujeita aos mesmos tremores, as reuniões que pautassem assuntos de mérito
raramente ocorriam no silêncio pacífico dos gabinetes. O alarido lá fora ecoava
em cada ouvido como a lembrar que o eleitor estava atento ao deslize de seus
mandatários.
Os estudantes tinham uma atuação política mais fecunda e conviviam no
entorno do poder. A UNE era ali na Praia do Flamengo a quinze minutos do
centro, a Faculdade de Direito, na Praça da República, mantinha o Largo do
CACO, em perene ebulição, a Faculdade de Filosofia na Praça Itália fazia
vizinhança com o Restaurante Central dos Estudantes, o famoso Calabouço,
fundindo estudantes secundários e universitários num só elemento. O
Ministério da Guerra, que nunca foi um órgão popular, tinha de conviver com a
grande massa de trabalhadores que embarcavam e desciam dos trens da
Central do Brasil.
Quando JK tomou coragem para antecipar-se à história estava
escrevendo a própria história. No entanto em tudo que ocorreu entre a idéia, o
projeto, a implantação, a inauguração e a transferência dos poderes para o
planalto central, em nada transpira a intenção de destravar o político do povo, o
mandatário do voto, a promessa da cobrança. O papel de vilão sobraria para os
prefeitos e vereadores, se já não viesse do alto a desmoralização das gestões,
carregando de impotência desmoralizadora qualquer sentimento de reação.
Terceirizou-se o poder.
A câmara dos deputados, o senado, o poder judiciário, estabelecidos
numa praça que não é a Praça 15 de novembro, ao lado ao Paço Imperial – o
Palácio da Alvorada – deixou de ser o palco capaz de refletir a efervescência
social e política, necessários ao debate das questões importantes. Não há mais
o debate, a população não tem como se pronunciar, Brasília enterrou o
plebiscito.
O isolamento do poder numa redoma protetora fez com que aumentasse
a sensação de impunidade, aumentando o rebanho das ovelhas negras. Quem
tiver mérito e paciência pode se dar ao trabalho de fazer a estatística que, no
11
entanto, está bem latente: a nova capital promoveu também os casos de
corrupção mais escabrosos, que passaram a ter uma magnitude inconcebível,
alçando a cifras imagináveis, neste país que todos os hóspedes do Alvorada
consideram pobre.
A república que chegou depois da ditadura permaneceu sujeita aos
mesmos tremores. As reuniões que pautam assuntos de mérito agora ocorrem
no silêncio pacífico dos gabinetes. O alarido ficou lá fora, bem longe, não mais
ecoa nos ouvidos dos políticos a lembrança de que o eleitor é o responsável
direto pelos mandatos e mantém o direito de cobrança. O poder hoje se exerce
encobertado pelos ternos e jaquetões impecáveis, etiquetados pelos melhores
estilistas italianos. A construção de Brasília acabou com a cobrança direta,
nenhum presidente se suicidará no Alvorada.
A construção de Brasília de fato colocou o nome de JK num patamar
elevado da história e o levou nome do Brasil ao cume da modernidade, não só
pela jóia arquitetônica que a cidade representa, mas também pela audácia e
coragem em transformar um empreendimento árduo e utópico na realidade de
fato. Essa aura de modernidade, porém, não impregnou o espírito ético dos
políticos, transformando o ideal numa mácula e o exercício da política em
tragédia nacional. Alguém duvida?
(Publicado em: http://www.aconfraria.com.br)
12
OS GNOMOS MODERNOS DE ZÉ ANDRADE
Você acredita em gnomos? Eu acredito em gnomos. Esta frase cada vez
mais divulgada nas cidades (circula nos vidros dos carros em forma de
adesivo), faz com que muita gente acabe se tornando um ferrenho admirador
dessa criatura minúscula que, segundo a lenda, habita as florestas e o interior
mais profundo da terra, a guardiã das minas e tesouros subterrâneos jamais
descobertos. Outros, mais graves na escolha de uma religião alternativa, vão
mais longe ainda. Não só eles colecionam os pequenos duendes, como
também organizam um local especial em casa para colocá-los a serviço da sua
guarda e proteção espiritual. Esperam assim ser reconhecidos como um
daqueles que merecem como prêmio a indicação de um tesouro, ainda que não
seja material, algo que possa tornar a existência espiritualmente mais
generosa.
Quando o artista plástico Zé Andrade resolveu tomar para si a iniciativa
de homenagear grandes figuras da humanidade, particularmente do Brasil, o
fez – mesmo sem assim o desejar – sob o signo dos gnomos, ou seja, fazendo-
os representados através de pequenas esculturas de terracota, unindo dessa
maneira a religiosidade milenar do barro aos anseios mais contemporâneos.
Não é à toa, posto que os gnomos – conta a história – eram assim batizados
em virtude de serem possuidores de rara inteligência, sempre aliada à razão e
à proposição de verdades morais definitivas (gnomas), que são as raízes de
todos os provérbios, os adágios sentenciosos, os ditados que se transformam
na filosofia do povinho.
O que Zé Andrade faz, ao juntar à sua coleção de pequenos gênios
personas representativas de todas as artes, é dar asas ao espírito para que se
manifeste, se faça, através da reunião num mesmo conjunto de vozes. São
personagens de presença definitiva em nossa vida, desde Villa-Lobos – que
transfigurou o som de nossa floresta em sinfonia clássica – a este Noel Rosa,
cotidiano, dos botequins da vida, fumante, bebedor de cerveja e poeta da
música urbana. Desde Antônio Carlos Jobim, dono de uma harmonia clássica,
capaz de nivelar a música popular à música chamada erudita, até o Cartola,
13
cujas letras plantadas na favela povoam o mesmo jardim das mansões –
autores e obras, em suma, díspares na forma, mas unas no conteúdo humano.
Da mesma forma Zé Andrade mostra que não é impossível se juntar ao
caráter universal deste trabalho tão brasileiro que Burle Marx nos legou, as
idéias de Einstein, cujo pensamento materialista sobre a relatividade das coisas
aproximou a alma humana da eternidade possível, que tanto os pobres mortais
almejam. E mais ainda: juntar toda essa sopa ao pensamento apaixonado de
Nietzsche, que tornou indistintas as fronteiras da razão e da loucura, mas
acaba por defini-las como inexistentes – ser louco é ser são e vice-versa...
Sem se fazer de rogado, aliás, de modo bem simples, Zé Andrade dá a
chance de juntar a expressividade de Machado de Assis, iniciador da fase
familiar realista do romance, incorporando a despensa, hábitos caseiros, como
também as mazelas espirituais domésticas – ao personagem picaresco de
Mário de Andrade, Macunaíma, exorcista das lendas indígenas, o caráter que
milhormente expressa a expressão brasileira.
Depois do que, agrega toda essa feijoada à grandiosidade sertaneja com
que Guimarães Rosa emoldurou suas narrativas, trazendo-nos uma visão
cinemascópica do nosso interior mais remoto.
São eles, pela própria razão da existência, os seres gnômicos modernos
que justificam a etimologia (a expressão é grega gnomikos, vinda pelo latim
dos feiticeiros gnomicus), justo as entidades possuidoras de outros poderes
além da inteligência marcante, são seres escolhidos por Deus para melhorar a
existência terrena. Ou, em outro degrau espiritual, aqueles raros que os
alquimistas reconheciam a um primeiro olhar como trazendo dentro de si o
ardor da sabedoria, a flama existencial, o poder da genialidade. São
fragmentos da inteligência que vaga pelo universo, matéria-prima da alma
humana, que de outra forma seriam esquecidos ou, em outras palavras, pílulas
de memória, como prefere o próprio Zé Andrade.
14
Na criação de Zé Andrade, a poesia se faz presente de forma contumaz,
pois não tem apenas Fernando Pessoa, que não é apenas uma, mas várias
pessoas, cuja heteronímia o aproxima intimamente dos gnomos. Tem também
Manuel Bandeira, cuja longevidade era-lhe insuspeitada mercê da tuberculose
com a qual sempre conviveu desde a mocidade, fazendo-o passar cada dia
como se fosse o último e assim expressar esse estado espiritual em todas as
suas poesias, para não falar de Ferreira Gullar – vivo e entre nós – autor do
Poema Sujo, sem dúvida alguma o texto mais representativo do éthnos
brasílico dos tempos atuais. São estrelas da vida inteira e merecem sem dúvida
freqüentar o mesmo altar...
Zé Andrade nos faz transitar pelas mesmas trilhas tortuosas da
imaginação que povoam as plantações de girassol de Van Gogh, enquanto que
o seu Picasso parece imaginar o que foi aquela Guernica dolorosa, sem cores,
negra e branca, cujo sangue impensado borraria todas as telas do mundo.
Traz-nos também as figuras de personagens que superaram seus criadores,
sobrevivendo como seres eternizados, Carlitos, Dom Quixote e o nosso Barão
de Itararé, que ainda irão alegrar a existência humana por séculos vindouros,
enchendo-a da paz necessária para suportar toda a tragédia da bomba.
Para participar da coleção criada por Zé Andrade não é suficiente ter um
nome famoso, ter estrela na calçada da fama. Além disso, a personalidade
figurada há de possuir algo de afinidade com os gnomos, em outras palavras,
com a sabedoria, a religiosidade, o dever e a obrigação de ter tido uma
existência estelar, fortemente associada a benefícios em defesa daquilo que
mais prezamos: nossa tão amada casa, a Terra e seus habitantes.
Deste mesmo modo as mãos do artista de Zé Andrade nos dão através
do barro e da essência sempiterna, o calor das novas vidas de Groucho Marx,
de Alfred Hitchcock e de Woody Allen, magos que levaram às telas dos
cinemas gravações de passagens de nossas vidas passadas, presentes,
futuras, componentes de nossos medos e temores, mas semeadores de
sonhos. São membros de uma mesma equipe, gloriosos plantadores de
esperanças, iguais a Sigmund Freud, a Mahatma Ghandi e ao nosso Sobral
15
Pinto, sonhadores de um mundo melhor, filósofos da incompreensão, por isso
mesmo, simplesmente necessário.
Esses são os gnomos de que necessitamos na vida atual, não aquela
coleção de corujinhas, tartarugas ou pseudo-gnomos europeus e nórdicos.
Estes já têm muita preocupação em preservar as florestas e as riquezas dos
solos daquelas terras combalidas por séculos de exploração.
Precisamos ter a companhia de gnomos modernos, gênios que nos
encaminhem para uma existência espiritualmente rica, que nos abram a
cabeça para novas idéias. Mestres que espicacem nosso espírito para a
aventura, que façam do risco desconhecido uma vitória e sábios que nos dêem
coragem tanto para enfrentar os maus corações, para nos encher de força e
excitação para lutar por aquilo que sonhamos. Almas sensíveis que sejam
inspiração para selecionar as flores e ervas que escolhemos para nosso jardim,
que sejam sementes para as árvores, os frutos orgânicos que queremos para
nossa mesa.
Adote os gnomos modernos, faça um conjunto conforme sua
personalidade e... Incense-o. É essa a ocasião que Zé Andrade nos dá e que
não podemos perder.
(Publicado em: http://www.ocaixote.com.br nº 17
e
http://gavetadoautor.sites.uol.com.br)
16
CERVANTES, SCHOPENHAUER, NIETZSCHE & SARTRE
Transformar a filosofia em livro de cabeceira é um sonho de difícil
realização, por muitos até mesmo é tido como utopia. Isso se seguirmos os
caminhos naturais da filosofia que, como o teatro, a psiquiatria e a religião, têm
caminhos absolutos e regras de vida rígidas. Pois podem crer, antes mesmo de
se inventarem enredos romanceados em que todos esses elementos culturais
elevados servem de pano de fundo para encontros e reencontros de personas,
entre nós já havia quem violasse as seitas concitadas, assinando em nome de
todos os que fossem do contra.
Nossos jornais destacavam o movimento pós-tropicalista em que o culto
do século passado se tornava bem presente, juntados num mesmo sexo os
movimentos estéticos contraculturais dos séculos 19, 20 e 21 – não havia
nenhum espaço que trouxesse o passado ou que anexasse o futuro – tudo era
hoje, aqui agora. Nada de parece que foi hontem, nem que o futuro a Deus
pertence. A crise existencialista que promete suicídios demorados que
terminam no sofá da psicanálise. O demais, tudo é enredo...
As colunas contraculturais de um guru não assumido – Luiz Carlos
Maciel – os escritos sobre Antipsiquiatria de Ernesto Bono, os conceitos éticos
de tablóides como Opinião, tudo dava um tom particular, um diagnóstico para a
leitura nacional sobre a Revolução Universal de 1968, passarmos cada dia
como se fosse o último da vida, repetir a mesma vida sempre e eternamente,
sem medo da unanimidade burra (Nélson Rodrigues), viver o melhor possível,
não deixar que nada fique pior, não deixar nada por não viver... E só então
morrer.
Quando a Revolução Francesa assimilou a realidade de que a conquista
de conceitos antes filosóficos também competia à política, tornou possível ao
homem concretizar uma utopia, torná-la real. Assim foi que a felicidade, até
então tratada como um mero sentimento, tornou-se uma exigência de vida, um
direito político a ser conquistado, um dever de estado, como consta na
Constituição Norte-americana.
17
Então caros colegas. Desde há muito tempo a felicidade é direito
adquirido, desses tais que nem os ministro do STF têm competência para
derribar, embora soubessem com muito zelo denegar os direitos adquiridos dos
velhinhos aposentados – e isso é a mesma história.
O pseudonegativismo de Schopenhauer é mero jogo de cintura. Se ele
afirma como princípio que “A vida é uma coisa miserável” e trata de direcionar
seu pensamento nesse conceito, a reta que toma é outra, pois é também da
filosofia o direito ao contraditório. Arte de amar, dele próprio é prova disso.
Ademais já não disse Nietzsche quem também soube amparar seu texto
na contradição entre a vida animal e a vida humana? Pois – disse este – a
diferença entre o nós e um animal é que o bicho (não) sabe como viver. Quer
dizer, ele não colocou aquele não ali entre parênteses, mas fi-lo eu. Dá no
mesmo. Pois este outro, o Calderón de la Barca não nos ensinou que “la vida
es sueño” e que o maior pecado do homem é ter nascido?
Pois, caros ouvintes, se desde eras remotas a busca da felicidade
passava pela utopia – não vê que Demócrito teve a petulância de cegar-se
pensando que evitando a visão das coisas fúteis iria alcançar a felicidade? –
agora devemos cobrá-la dos políticos e ponto final. Sejamos risonhos como os
espectadores do comediante de Kierkegaard: quando ele interrompeu seu
número para avisar que o teatro estava pegando fogo, o público respondeu
com a maior gargalhada que jamais tinha recebido em toda a sua carreira.
A vida não é uma folhinha de parede, esta aí, cotidiana, no ar, para ser
vivida, mesmo se um dia qualquer, em que a ressaca foi maior que o prazer.
Mesmo se a gente acorde morto de espanto ao ver o espelho refletir, não a
nossa cara de jiló, mas algo travestido com o mesmo terrível pesadelo em que
se meteu Gregor Samsa fantasiado de barata gigante. Não caia na besteira de
perguntar: afinal eu sou um homem ou um rato? Você é uma barata mesmo!
Kafka, que na verdade nasceu na Paraíba, sabia que a vida tem de ser vivida,
mesmo se um dia você acorde rato... Ou barata. E foi à luta! O que você faz aí
parado?
18
Por acaso qual foi o exemplo que Sartre deixou? Repetindo Cervantes,
Sartre vestiu a carapaça de um moderno cavaleiro andante para ser o
libertador do mundo. Mas Sartre libertou mesmo: foi quem obrigou, através de
ações nascidas do povo, a França dar liberdade para suas colônias. Ontem
como hoje como amanhã, a França faz coisas para serem seguida. Na rabiola
todos os povos coloniais lutaram pela liberdade e a era do colonialismo [físico,
bem entendido] terminou. Foi o tempo feliz da teoria da autodeterminação dos
povos – que era uma lei internacional adotada e respeitada por todas as
nações membros ONU. Mas, hoje, afinal, onde está mesmo a
autodeterminação dos povos?
Bem se não conseguimos transar a liberdade dos povos, pelo menos
vamos viver cada dia como se fosse o último antes dos tanques americanos
invadirem nossos quintais.
Seguir sem rumo, infinitamente seguir, laçados um no outro, perdidos na
embriaguez, da alma e da carne, estreitamente juntos, enfrentar o amor,
desprezar a morte, alimentar a carne que palpita jovem sob o tecido da
roupa que nos envolve, que gira e bate como um sudário, antes que se
erga a mais dilacerante tristeza que só pode vir da morte, talvez do amor
mais triste ainda, nunca da felicidade... Nunca, jamais...
(Publicado em: www.recantodasletras.com.br)
19
CERVANTES:
ESCRAVO, JUDEU, HOMOSSEXUAL, PROXENETA E... PLAGIÁRIO
Nestes tempos de comemoração dos 400 anos do “Dom Quixote” (1605-
2005) – que ainda hoje ressoa – as leituras se focam, não só nas obras de
Miguel de Cervantes, mas também no vasto repertório de obras correlatas,
destinadas a esmiuçar o acervo literário e a vida do genial fidalgo.
Um dentre os milhares de trabalhos sobre Miguel de Cervantes é Um
escravo chamado Cervantes, de autoria do escritor marroquino Fernando
Arrabal. Não é uma obra recente, primeiramente foi lançado em 1996 na
França, onde o autor é mais reconhecido, para aportar três anos depois cá
entre nós.
Fernando Arrabal é um autor que ficou conhecido pelo talento rebelde,
explosivo, que caracterizou alguns autores nascidos sob a ditadura franquista.
Desde o tempo das primeiras peças e filmes, criou fama como o inventor do
teatro do pânico – é o que disseram de suas chocantes peças teatrais – fama
que carregou para toda a obra que produziu.
Ser um rebelde revolucionário nas letras é – ao mesmo tempo –
liberdade e opressão. Se por um lado lança um autor nos mares da fama de
maneira espetacular, por outro, obriga-o a seguir uma estrada nem sempre
gloriosa, porque cheia de balões de ar.
Este livro “Um escravo chamado Cervantes” veio a lume baseado num
documento espetacular, datado de 1569 e descoberto em 1820, segundo o
qual, Cervantes, aos 21 anos, sob a acusação de homossexualismo, foi
condenado pelo rei da Espanha, a ter a sua mão direita amputada e a um
desterro de dez anos. Pena essa não cumprida graças à fuga para a Itália.
É claro que a partir da descoberta quase tudo que se escreveu sobre
Miguel de Cervantes teria que passar a uma severa e rigorosa revisão.
Fernando Arrabal tomou para si a tarefa de exercer uma parcela dessa revisão.
20
Se ele foi feliz ou infeliz nesta tarefa, dize-o a fama que o livro arrebanhou.
Seja como for, mexer com Cervantes, sua obra e sua glória, é algo assim como
condenar – o autor e a audácia – ao cadafalso.
Para classificar Cervantes como um escravo, Arrabal nos remete não só
ao motivo direto do documento, comprovando, sim, que a escravidão se verifica
não apenas sob os grilhões de ferro, mas igualmente sob a ditadura efetiva que
a nobreza exercia sobre os súditos. Aliada dos poderes secundários da Igreja,
cuja opressão se verifica como segundo degrau hierárquico da dominação,
essa escravidão atingiu Cervantes diretamente no cerne do seu labor literário.
Como autor ele não conseguiu romper a barreira dos intelectuais próximos do
poder e da Inquisição para levar a sua obra ao público. Antes, teve que gastar
prestígio e artimanha para se manter vivo e atuante.
Num segundo plano Arrabal perde muito tempo na busca dos
antepassados mais longínquos de Cervantes para posicioná-lo como judeu de
descendência cristão-nova. O que temos em tese é que o cristão-novo jamais
deixa de ser judeu, mesmo que corridas várias gerações. Mas Arrabal no livro
descreve uma exceção dessa regra de interesses: o Bispo de Burgos – depois
também de Castela – dom Pablo de Santa Maria, foi um antigo rabino da
cidade. Dom Pablo, assustado pela imprevista matança e perseguição dos
judeus, abraçou o cristianismo com tal fé que logo alcançou a mitra de Burgos.
A nova fé que o Bispo assumiu seria de tal maneira exacerbada por
Santa Maria e de tal modo exercida, que tanto o pai quanto o filho, dom Alonso
de Cartagena (que também seria Bispo), se transformaram em ferozes
implacáveis perseguidores de judeus! Portanto, não há como explicar a
obsessão que move Arrabal, nem essa necessidade depressiva de demonstrar
que a descendência de Cervantes fosse ou não fosse judia, posto que, no
caso, se trata do menor e menos importante pedaço da biografia do genial
fidalgo de la Mancha.
Para fugir da pena a que fora condenado pelo rei da Espanha, Miguel de
Cervantes foge para a Itália. Ali chegando arranja abrigo, proteção e trabalho
21
na casa do monsenhor Giulio Acquaviva y Aragon, que Cervantes conheceu
durante as pompas fúnebres de dom Carlos, filho de Filipe II morto
prematuramente – assassinado pelo pai, dizem. Mais uma vez aparece em
cena o Cervantes escravo, desta vez de Acquaviva, também efeminado. Para
fugir da escravidão, da subserviência opressiva, Cervantes aproveita a
convocação feita para compor o famoso exército de aliados e se inscreve sob o
comando de João de Áustria para combater os otomanos.
Como é sabido, Cervantes se arrisca destemidamente. Ele busca de
todas as maneiras alcançar o perdão pelas loucuras que fez, mas também
conseguir ascensão na nobreza, algo que ambiciona desde sempre, mas
jamais verá realizado. Numa das refregas o agitado e valente soldado é
atingido de forma violenta por um canhonaço. A explosão feriu todo o lado
esquerdo do seu corpo, deixando os membros seriamente avariados. Decorre
daí a suspeita de que, fosse cumprida a primeira parte da condenação em que
Cervantes perderia a mão direita e agora ferido na batalha inutilizando todo o
lado esquerdo, jamais o Dom Quixote teria sido escrito, perdendo a
humanidade a criação da maior de suas obras primas.
Ao retornar para a Espanha após ter se recuperado das feridas – de
posse de vários documentos atestando a sua bravura e recomendando o
aproveitamento em cargos imperiais – o barco em que Cervantes viaja é
seqüestrado por piratas árabes: passageiros e tripulantes são feitos
prisioneiros.
Em Argel, Cervantes vive a planejar fugas espetaculares, na ânsia de
chegar à Espanha e finalmente conseguir a posição social que tanto sonhou,
ambição desta vez lastreada nas façanhas heróicas da batalha de Lepanto,
ação cujo testemunho é subscrito por nada menos que o próprio João de
Áustria, comandante supremo e meio-irmão de Filipe II. Nada consegue e o
suplício só termina quando os parentes conseguem o dinheiro suficiente para
pagar o resgate. São mais de três anos como prisioneiro – e mais uma vez
escravo – do manda-chuva do país, ocasião em que também se torna seu
amante, para não perder a viagem.
22
No entanto está vivo e reencontra a família com um negócio de pensão
(hospedaria) montado em Madri. Cervantes usa seus conhecimentos e
facilidades sociais para fazer publicidade do negócio. Viajantes vindos da Itália,
da França e países baixos ali se hospedam. A recepção está aos cuidados da
sua irmã Andrea Cervantes, que sabe encher os hospedes mais importantes
com todas as regalias que a posição social merece. Muitos deles deixaram
relatos agradecidos pelo bom trato que receberam na pensão dos Cervantes.
É neste momento que Arrabal, com um dom que só ele possui,
consegue transformar Miguel de Cervantes em um legítimo proxeneta, capaz
de deixar envergonhado o mais afamado cafetão da Lapa carioca.
Mas... plagiário? É claro que todos os cervantistas conhecem as leituras
e pesquisas que serviram de base para a feitura do romance. Também a
elaboração da principal personagem do livro O Genial Fidalgo Dom Quixote de
la Mancha já foi objeto de muitos estudos. No próprio romance Cervantes deixa
algumas pistas – não são poucas – como no episódio em que são condenados
e incendiados muitos livros de cavalaria da sua biblioteca.
Lá pelas tantas Fernando Arrabal descobre uma nova característica em
Cervantes, nomeando-o também enxadrista. Não há nada que diga que
Cervantes não sabia jogar xadrez, jogo popular na época, mas nem por isso
pode ser chamado de jogador de xadrez, coisa que nenhum biógrafo até então
havia sinalizado. Mas como o xadrez é também uma paixão de Arrabal, não é
incomum que a sua galeria de personagens receba também o título.
No entanto, a maior influência coube a Arrabal descobrir que Feliciano
de Silva, antecessor de Cervantes em vários livros de cavalaria – os vários
Amadis, os romances pastoris, as Celestinas – foi o autor mais admirado por
Cervantes. Arrabal capricha em localizar aqui e ali os sinais mais óbvios de que
Miguel de Cervantes não só se serviu da obra de Feliciano de Silva como
modelo, mas adquiriu uma cumplicidade tal, uma proximidade tão próxima, que
só se pode chegar à fatal conclusão.
23
E se é Fernando Arrabal quem tudo isso diz, escreve e assina embaixo,
quem sou para contradizê-lo?
Quanto ao livro em si, Um escravo chamado Cervantes é de leitura
muito difícil. Ou Arrabal transportou para esta pseudobiografia todas as
loucuras inatas que o levou a ser considerado escritor maldito na melhor das
tradições e escreveu uma obra cabalmente intraduzível – e, se traduzida,
ilegível – ou Carlos Nougué é na verdade o pseudônimo de um desses
programas de tradução simultânea que infestam a Internet.
[Fernando Arrabal (Melilla 1932) Um escravo chamado Cervantes tradução de Carlos Nougué,
Editora Record, 1999]
(Publicado em:
www.usinadaspalavras.com)
24
O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DA MANCHA
Em não havendo restrições quanto ao romance de Cervantes, obra
prima consagrada ao longo dos seus 400 anos de idade, o foco literário volta-
se para as traduções, como esta última anunciada na divulgação feita por
Gustavo Bernardo, saída n’ O Globo Prosa & Verso de 14/01/2006.
Existe uma analogia com outras artimanhas: no futebol, por exemplo, o
técnico se arvorou de maioral. Não é mais o jogador o centro das atenções,
nem o craque, nem o goleador. Como por um milagre se descobriu que o
futebol não existiria sem aquela figura que fica à margem do campo fazendo
gestos e mímicas, inventando uma linguagem marginal, que só ele entende.
Vaidade das vaidades! Ora, mas no teatro também foi assim. Que seria
de Shakespeare, de Moliére ou Brecht ou Becket se não fosse a inventividade
criativa e genial dos montadores? Pois, pois, cada nova apresentação é uma
releitura não autorizada. Aonde se desemboca na pura verdade: a maioria das
montagens modernas está tão distante da produção inicial que do autor mesmo
sobram apenas o título e o texto. Quanto ao contexto...
Assim é que as novas traduções, de uns tempos para cá, têm como
objetivo principal caracterizar-se como a mais atual, a especial, a novidade. E
para ser especial e vendável, tem de trazer em si algo de novidade que
justifique não só a aquisição física do exemplar, mas que também traga prazer
à leitura. Um objetivo secundário – ainda que seja anunciado nas primeiras
linhas – é o de cooptar a linguagem quinhentista de Cervantes, trazendo-a para
ser digerida e consumida nos dias atuais.
Isso já foi tentado com outros livros – a Bíblia – por muitas outras
editoras, como na recente tradução feita para a Editora 34, segundo a qual
aquele era, sim, o Quixote definitivo, atualizado e normalizado para o brasileiro
dos nossos tempos. Mas também as traduções têm vida breve, como as
mariposas. A singularidade é que esta edição, bem recente (2005), que
25
provavelmente deu muito trabalho a seus produtores, outros já julgaram
superada, descartável, de ontem e tome tradução! Vem coisa nova por aí...
Para isso é mister dar ares de modernidade, de coisa nova, assim como
é propagado aos quatro ventos. Esta tradução, feita por brasileiro e espanhol,
revela sutilezas da obra-prima Cervantes (sic). É como ressalta Gustavo
Bernardo na divulgação. Baseados em quê os tradutores desvendaram tais
sutilezas? Em busca da solução para três incógnitas, compactadas numa só:
como escreveria Cervantes o Quixote no português de sua época, mas de
modo tal que não perdesse o sabor hispânico de então e fosse compreensível
para o leitor de hoje?
Pois não é que sem querer Gustavo Bernardo coloca uma questão que
bem pode ser aproveitada em quase todos os vestibulares vindouros? Sim,
leiam bem, repitam a leitura mais uma vez, mais outra vez como se faz no
vestibular e então respondam: como? Sim, como escreveria Cervantes o
Quixote no português de sua época, mas de modo tal que não perdesse o
sabor hispânico de então e fosse compreensível para o leitor de hoje?
Em seguida a essa contundente questão – que se nos concebe
irrespondível – Gustavo Bernardo enumera as enormes dificuldades e desafios
enfrentados pela dupla de tradutores, que em essência são os mesmíssimos já
enfrentados outrora por inúmeros outros tradutores de todas as partes do
mundo. A viagem da tradução é uma odisséia sem fim. É, porém, assunto
totêmico, próprio para tradutores, nunca para resenhistas...
Neste caso em particular, porém, nós, que somos simples admiradores
da obra de Cervantes, temos a obrigação de meter o bedelho. Isto porque os
tradutores Nougué e Sanchez ousaram em matéria que nenhum outro havia se
atrevido: mexer no título da obra. Sim, para começar do começo, desde longo
tempo, o título do romance vem merecendo algumas observações, muitas
ressalvas, escassas contestações, até medo em escrevê-lo, mas ninguém
havia ousado adulterá-lo como agora foi feito.
26
O título original do primeiro volume é: EL INGENIOSO HIDALGO DON
QUIJOTE DE LA MANCHA. Primeiro vem o caso da expressão “Ingenioso” que
aqui se traduz por Engenhoso. Este caso, por exemplo, já é merecedor de
alguma discussão. A expressão ingénio, de onde vem o ingenioso, é irmão do
nosso genioso (genial), bem diferente do nosso engenho e, por extensão, do
engenhoso que é sempre utilizado para traduzi-lo. A expressão Ingénio
fragmenta-se em in e génio = o gênio, a genialidade, interior. Para evitar
digressões que poderiam levar ao didatismo desnecessário, o resumo da ópera
é o seguinte: ao rigor do pé da letra, uma das opções para traduzir o ingenioso
para o brasileiro, seria a expressão genial. Então teríamos: O GENIAL
FIDALGO DON QUIXOTE DE LA MANCHA.
O caso da palavra Fidalgo já foi vastamente esclarecido pelo escritor
marroquino Fernán Arrabal no livro “Um escravo chamado Cervantes”, também
da Record e também traduzido por Carlos Nougué. Fidalgo, segundo Arrabal,
significa filho de algo. O que nos remete de imediato para a segunda versão
moderna do título: O GENIAL FILHO DE ALGO DON QUIXOTE DE LA
MANCHA.
Até o nome do homem – Dom Quixote – foi ameaçado, mas enfim
mantido. Vejamos a justificativa para tal, fazendo um flashback das palavras de
Gustavo Bernardo: “Quijote” corresponde à peça da armadura que cobre a
coxa e deveria ser traduzida para “coxote”, mantendo a terminação “ote” que,
em espanhol, tem sentido depreciativo. Pois para mim, um leigo em espanhol,
diria que Cervantes estava era fazendo uma gozação a si mesmo, ou seja, à
sua condição de manco, coxo – portanto coxote... – mas, como disse, sou asno
em espanhol! Então fica só a provocação. Aí os autores da tradução explicam o
temor de mexer em tais expressões (quixote, quixotesco e outros derivados),
que se tornaram proverbiais em nossa língua Graças a Deus os tradutores
acharam temeridade adulterá-la. Caso contrário toparíamos com: O GENIAL
FILHO DE ALGO DOM COXOTE DE LA MANCHA.
Mas, êpa! de La Mancha?? Aqui, sem querer, tocamos na principal
execração de dupla de tradutores Nougué & Sanchez. Pois não é que ousaram
27
modificar o título da obra aportuguesando o Don Quijote de La Mancha para
Dom Quixote da Mancha?? Mas a justificativa para adulterar o de La Mancha
para da Mancha é realmente trágica. Quem diz é Gustavo Bernardo:
“Mas contra as traduções anteriores, optaram “da Mancha” e não “de La
Mancha”, se em português se fala na Espanha Central como “a
Mancha”.
Péra aí! Eu disse que era leigo em espanhol, mas também não é tanto
assim. Em algumas regiões da Espanha e de Portugal – principalmente na
Galícia, no Noroeste espanhol – as cidades são realmente denominadas
assim: A Coruña (La Coruña), A Estrada (La Estrada), Oporto (Porto) – nossa
muito bem conhecida cidade portuguesa, aquela do vinho de lá mesmo.
Mas não me consta que La Mancha seja chamada A Mancha, porque La
Mancha fica na região de Castilla que, como todos sabem, se fala o
castelhano. Saibam mais visitando o site da cidade: “La Comunidad Autónoma
de Castilla - La Mancha es una comunidad enclavada en el corazón de la
Península Ibérica. Está formada por las provincias de Albacete, Ciudad Real,
Cuenca, Guadalajara y Toledo, siendo ésta última la capital”. (http://www.uclm.es)
Mas se querem ousar [e ousar ainda mais com o apoio do Instituto
Cervantes?], então vamos pelo menos obedecer à escrita regional, sem
adulterá-la! Para manter a grafia “A Mancha”, o verdadeiro título que a dupla
sertaneja de tradutores Nougué & Sanchez deveria usar é: O engenhoso
fidalgo Dom Quixote de A Mancha (ou d’A Mancha). Ousem, mas ousem como
cavaleiros: valentes, corajosos, assumidos. Não chamem “La Mancha” de
“Mancha”, pois é certo que os naturais da terra de Quixote não vão gostar
nadinha de vê-la com tal nódoa, mácula, labéu, desonra, tacha...
Tenho a obrigação de fazer uma ressalva positiva, pois, ainda bem que
os tradutores Nougué & Sanchez refrearam a dosagem de ousadia senão –
segundo seus planos – estaríamos diante das aventuras de tal de Dom Coxote
28
e em conseqüência aterrissaríamos em um novo título para a obra de
Cervantes: O GENIAL FILHO DE ALGO DOM COXOTE DA MANCHA!
Muito mais daquilo que foi dito na resenha de Gustavo Bernardo
mereceria outras reparações – por exemplo, a tradução de en cuanto pelo
vicioso enquanto, tão em moda entre nossos literatos de hoje – entre outras
coisinhas. Mas não deste escriba amador (que se entremeia aqui enquanto
poeta), mas de gente gabaritada e do mesmo nível que o autor da resenha,
professor de Teoria da Literatura na UERJ.
O meu caso pessoal e que motivou estas linhas, é mesmo com o senhor
Carlos Nougué, Prêmio Jabuti de Tradução – seja lá o que for isso – que me
fez sofrer a algum tempo atrás com a leitura de uma tradução catastrófica do
livro “Um escravo chamado Cervantes” (Record 1999), de autoria do já
mencionado escritor marroquino Fernán Arrabal. Até para se traduzir um porra-
louca é preciso algum talento. Em todo caso, ainda acho que o Dom Quijote de
La Mancha – tanto o Hidalgo (Parte I) quanto o Caballero (Parte II) – são
excelentes livros para se ler no original...
[O engenhoso fidalgo D. Quixote da Mancha: Primeiro Livro, de Miguel de Cervantes Saavedra.
Tradução de Carlos Nougué e José Luis Sanchez. Editora Record, 570 páginas].
(Publicado em:
www.recantodasletras.com.br
http://gavetadoautor.sites.uol.com.br/)
29
GUIMARÃES ROSA E O JOGO DE XADREZ
Os aficionados, jogadores e outros malucos por xadrez estão
acostumados a encontrar referências sobre a nobre arte da Deusa Caissa,
numa variada gama de cultura. A pintura, o desenho, a literatura, o cinema, a
escultura, o teatro – e mais alguns não lembrados – todos foram influenciados
ou tocados pelos misteriosos desígnios deste jogo que também é ciência e
arte.
Por isso não nos admiramos mais de encontrar por aí citações ao
xadrez, a torto e a direito, no nosso dia a dia. Algumas são coerentes, outras
nem tanto – estas nos fazem rir diante de tanta ingenuidade: – Esse aí não
manja nada de xadrez, dizemos com orgulho mordaz.
Mas quem um dia imaginou encontrar qualquer menção ao jogo de
xadrez num conto de João Guimarães Rosa? O mestre Guimarães Rosa é
especialista em brasilidade, principalmente daquelas encontradas nos sertões
das gerais. Em seus romances e contos se encontra uma verdadeira
enciclopédia de conhecimentos sobre o homem, o interior e as terras semi
virgens dos campos e montanhas do planalto central, que vara as outras
regiões confins goianas e mato-grossenses. Tudo isso maravilhado por uma
linguagem inventada pelos próprios personagens – pedras preciosas e brutas
que o autor encadeou em fios de ouro, colar de pérolas.
Pois nas histórias que compõem o volume Sagarana existe um conto
intitulado Minha gente, que traz um personagem que é a figura típica dos
malucos por xadrez. Segundo Guimarães Rosa, como confessa na introdução
do volume (carta a João Conde), o conto Minha Gente, “por causa de uma
gripe, talvez, foi escrito molemente, com uma pachorra e um descansado de
espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever os demais”.
O tema central não é o xadrez em si, mas a relação amorosa entre
primos-irmão, tão comum nas famílias interioranas. Algumas estão certas e
terminam por celebrar casamentos duradouros. Mas a grande maioria reside
30
apenas naquela felicidade amorosa adquirida na convivência diária, que
apanha os jovens em plena adolescência, quando os humores, as sensações,
a sensualidade, os sentimentos, os ardores, a sexualidade, começam a se
impor vigorosamente.
A caminho da fazenda do Tio Emilio, para passar um tempo, o narrador
esbarra com o personagem que figura aquela pessoa sempre encontrável ou,
como diz: “o meu até-as-pedras-se-encontram”, que se prepara para seguir no
mesmo rumo. Foi assim que os dois combinaram seguir juntos essa viagem,
que só pode ser feita a montaria. Além de ser pessoa dinâmica, de alta
voltagem e lacônica tirania, tem um vício: problema em três lances, em
elaboração. E segue:
“Porque o seu fraco, e também o seu forte, é o ‘nobre jogo’ de
xadrez. Em tal grau, que ele sempre traz consigo, na mala de viagem:
um tabuleiro grande; uma coleção de peças grandes; outros trinta e dois
trebelhos de menor formato; mais outro jogo, de reserva, dos de bordo,
com os escaques perfurados para se atarraxarem os pinos das figuras;
blocos-diagramas, para composição de problemas; números de
‘L’Echiquier’ (sic: L’Echequier) e de ‘La Stratégie’; recortes de jornais,
com partidas de grandes mestres; e alguma roupa, também”.
Santana – esse é o nome do personagem – chega com as duas
montarias atreladas prontas para a viagem. Não quer de nenhum modo perder
esse momento de felicidade que é reencontrar um parceiro tão nobre, que faça
a longa jornada, geralmente monótona, parecer um turismo cultural. Começa a
viagem conclamando:
“– Vinde, amigos, perguntai ao estrangeiro se sabe ou aprendeu,
algum dia, qualquer jogo... Esporeou o burro e acrescentou: “ – Você
joga com as brancas. Toma... E Santana estende-me a carteirinha,
porque há também a carteirinha, o xadrezinho de bolso, que eu me
esquecia de mencionar; tão permanente na algibeira do meu amigo
como os óculos de um míope na cara de um míope. Apenas, muito
31
menos necessária: quem quisesse, de maldade, escamoteá-la, logrado
ficaria; porque Santana, em encontrando parceiro, joga à cega: tem
ainda um tabuleiro e outras peças, na cabeça, talvez no recheio dos dois
murundus da testa – duas testas paralelas, como a viseira de uma
saúva”.
A viagem prossegue e o xadrezinho portátil muda mão em mão a cada
novo lance. Lá pelas tantas Santana não se sente bem na posição:
“– A partida está desinteressante. (...) Era melhor continuarmos
aquela Ruy López que não acabamos, da última vez... Fico rindo. Não
do poder que tem Santana de conservar as partidas de memória, nem
da sua capacidade de ignorar os grandes escoamentos de tempo, com o
que, algum dia, hei de vê-lo tirar do bolso a carteirinha, esta mesmíssima
carteirinha, e propor-me a continuação daquela partida – subvariante K
da variante belga do sistema Sossegovitch-Sapatogoroff do contra-
ataque semi-frontal iugoslavo do peão do Bispo da Dama – interrompida,
dez anos antes, precisamente no lance dezenove.”
Guimarães Rosa satiriza e joga com os personagens. Parece-lhe que
escrever é o mesmo que jogar xadrez. Neste caso, coloca Santana em
dificuldades na partida. Está inferior:
“Santana, ledor de Homero e seguidor de Alhókhin*, também,
como um e outro, cochilou. Moveu uma jogada frouxa, e agora não tem
o que escolher. Ou compromete a posição do seu rei, ou perde uma
peça, porque um bispo e um cavalo poderão ser atacados, em forquilha,
por um peão branco. Referve a confusão, nos paços de Ítaca”.
Aqui Guimarães Rosa segue satirizando: o nome de Alekhine está
grafado em corruptela (alho), puxada do modo como a imprensa mundial
divulgou a derrota do até então imbatível Campeão Mundial. Após defender o
título e vencer os dois matches (1929 e 1934), contra Efim Bogoljubow,
Alekhine chocou o mundo e a si mesmo ao perder o título para o desafiante
Max Euwe. “Too much Alekohol” (álcool). Assim foi como um comentarista
32
russo explicou a derrota. Anos depois, superada a fase dos excessos de
bebida e cigarro, Alekhine recuperou o título em 1937, derrotando o mesmo
Euwe no matche de volta.
Voltando ao conto, se vê que a reverência ao jogo de xadrez não só
segue em toda a novela de Guimarães Rosa, como também se introduz no
âmago da trama. E não somente no amor inocente entre primos: as
movimentações políticas dos coronéis são como lances. Ora é o enredo que
segue como um movimento de peças no tabuleiro, ora os personagens
desmontam dentro de um tabuleiro. Aquela vidinha no interiorzão bem que
assemelha à batalha dos escaques, peões, damas, bispos e reis.
Mas para ganhar o coração da prima Maria Irma, quando o narrador
transpõe para o nobre jogo do xadrez, o resultado decepciona. O conquistador
tenta de tudo:
“Devo mostrar-me caído, enamorado. Ceder terreno, para depois
recupera-lo. É uma boa tática... Umgambito do peão da Dama, como
Santana diria...” Mas lá pelas tantas, tudo vai por água abaixo... “Tudo
saiu pior do que o pior que eu esperava! Maria Irma despreza a minha
submissão. Tenho de jogar um ‘gambito do peão da Dama, recusado...”
Mas foi tudo em vão. Nada tirava o enamorado do abatimento. Nem
quando recebeu uma carta, nada menos de quem? Santana! Céus! A missiva
dizia:
“Caríssimo, analisando a posição em que interrompemos aquela
Zuckertort-Réti, na viagem a cavalo, verifiquei que o jogo não estava
perdido para mim. Ao contrário! Junto o diagrama, porque não confio
muito na sua memória, desculpe. Mas, veja o avanço do cavalo preto a
5C e, em seguida, B3D e o outro bispo batendo a grande diagonal e...
veja, oh ajuizado moço Telêmaco, na quarta jogada, o tremendo ataque
frontal dos peões negros, contra o roque branco. Indefendível! Xeque-
33
mate! Continuemos, por correspondência. Escreva para Pará-de-Minas.
Seu, Santana”
Ao contrário do grande jogador, quem manobra aqui é a mulher. Maria
Irma tem outros planos nessa partida. Pois num dia jogou assim no ar: “Sei que
você gostaria mais de Armanda.” Mas o primo apaixonado não tinha olhos para
mais ninguém. Desiludido do amor não correspondido, nada resta ao primo
abandonado senão sumir da fazenda. No bar, despedindo-se dos amigos, pede
com euforia:
“– Saltem um cálice da branquinha potabilíssima da Januária que
está com um naco de umburana macerando no fundo da garrafa!... Viva
Santana e seus peões! Viva o xeque-do-pastor! Volto!”
Novamente as personas se movimentam num final parecido com o
começo, molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que só
Guimarães Rosa em sua maestria sabe conduzir. Maria Irma movimentou as
peças de tal modo que o desfecho não poderia de ser outro, como ficou dito na
voz do narrador: “E foi assim que fiquei noivo de Armanda, com quem me
casei, no mês de maio, ainda antes do matrimônio da minha prima Maria Irma
com o moço Ramiro Gouveia, dos Gouveias da fazenda da Brejaúba, no Todo-
Fim-É-Bom”.
[Guimarães Rosa – Conto Minha Gente in “Sagarana” – Ed. Record 1995]
(Publicado em:
www.xadrezdemestre.kit.net)
34
A PRIMEIRA VISITA DE MACUNAÍMA AO RIO DE JANEIRO
Antes de escrever o romance Macunaíma, Mário de Andrade fez uma
viagem que veio realizar um de seus sonhos. Partindo de São Paulo (Santos),
a expedição marítima organizada por dona Olívia Penteado, correu o
Amazonas e o Peru, com escalas no Rio de Janeiro, Salvador e outras capitais
do Nordeste.
Desde 1926, dona Olívia Penteado – conhecida como A Senhora das
Artes – vinha divulgando o seu projeto de organizar uma viagem que
simbolizasse uma nova descoberta do Brasil. A idéia animou sobremaneira
Mário de Andrade, que bem a seu jeito, batizou de “Viagens pelo Amazonas
até o Peru, pelo Madeira até a Bolívia, por Marajó até dizer chega”.
Participaram da viagem D.Olívia Penteado, a sobrinha Mag, Mário de
Andrade e Dulce, filha da pintora Tarsila do Amaral. O itinerário de ida constou
de ida de navio até Belém e daí então seguir de barco pelo Amazonas até
Iquitos (Peru). No retorno a comitiva percorreu a [Estrada de Ferro (?)]
Madeira-Mamoré, voltou a Belém e depois continuou até a Ilha de Marajó. Ao
passo que de volta a São Paulo, fizeram escalas por algumas capitais do
nordeste e pelo Rio de Janeiro.
Dessa viagem resultou um sem número de realizações do escritor
paulistano e determinou o interesse de Mário pela produção cultural do Norte e
Nordeste do país. Entre as obras que nasceram da viagem contam o diário
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publicado com o título de “O Turista Aprendiz”, as gravações, fotografias e
notas sobre temas populares, que seriam incluídas em outros trabalhos.
Foi nessa viagem que Mário de Andrade descobriu o cantador de coco e
repentista Chico Antonio (cujo projeto seria o livro Na pancada do ganzá), mas,
principalmente, acendeu no poeta a chama de brasilidade que deu origem ao
seu romance mais famoso: “Macunaíma”. Nesse romance Mário de Andrade
inclui uma pequena passagem do herói pelo Rio de Janeiro (capítulos VII,
Macumba e VIII, Vei a Sol).
É no capítulo VII Macumba, que começa a primeira atribulada passagem
de Macunaíma pelo Rio de Janeiro:
“Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a
muiraquitã e isso dava ódio. Pois então resolveu tomar um trem e ir
no Rio de Janeiro se socorrer de Exu diabo em cuja honra se realizava
uma macumba no outro dia”.
Com esse estado de espírito Mário de Andrade prepara o roteiro do seu
personagem:
A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata,
feiticeira como não tinha outra, mãe-de-santo famanada e cantadeira ao
violão. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento,
javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em
torno na cabeça pequetita”.
O reduto de Tia Ciata era conhecido. Ficava ali pelas bandas da Praça
Onze, nas encostas do morro do Estácio. Era ponto de reunião de
macumbeiros, sambistas, músicos e também dos “fadistas” que se tornariam os
chorões no futuro. Pixinguinha, Donga, João da Baiana compareciam às
festanças regadas a música, mulheres e comilanças.
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No mesmo terreiro em que ela festejava os Orixás, as festas de Cosme
e Damião, da Oxum N.Sª. da Conceição, tia Ciata comandava rodas de samba,
nas quais demonstrava suas habilidades de partideira. Avançada na idade, tia
Ciata dava preferência ao miudinho, um tipo de samba sincopado que se
dançava de pés colados e passos curtos. (1)
“Então a macumba principiou: Na ponta vinha o ogã tocador de
atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão. E
foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o cachiri temível cujo
nome é cachaça”.
O filho de Ogum, bexiguento e fadista não é outro senão o próprio
Pixinguinha, em carne e osso, que foi um das muitas fontes que forneceu a
Mário de Andrade os dados necessários para compor o capítulo. A
correspondência de MA com os cariocas comprovam que a todos eles sempre
dava um jeito de perguntar algo sobre a matéria.
No entanto, corre na internet a seguinte história.
“O escritor Mário de Andrade procurou Pixinguinha, em 1926,
explicando que estava recolhendo material para um livro, ‘Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter’, que pretendia publicar. Pediu um
depoimento a Pixinguinha, que relatou em detalhes as rituais do
candomblé da Tia Ciata, célebre pelas famosas sessões onde eram
cultuados orixás africanos. Em retribuição, procurando homenageá-lo,
Mário fez de Pixinguinha um de seus personagens na obra, inserido na
famosa cena de macumba descrita no livro pelo autor paulista.
Pixinguinha figura como "um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista
de profissão”. (2)
Em toda história tem um pouco de folclore nesta não será diferente. Isso
porque, salvo prova em contrário, se existem indícios da criação de Macunaíma
nessa época (1926), não seria com tanta definição assim. O próprio Mário de
Andrade fez questão de dizer que escreveu o livro em 1927, de supetão, na
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semana de férias que tirou no sitio do tio dele, no interior de São Paulo, após a
viagem ao Amazonas. O livro saiu em 1928.
Ademais, Macunaíma foi um trabalho muito discutido com seus
correspondentes, inclusive Manuel Bandeira, que ousou desclassificar
Macunaíma da condição de romance, por não satisfazer algumas exigências
estéticas. Resultado dessa discussão, Macunaíma saiu na primeira edição
como Rapsódia e não como Romance. Também o título do romance foi motivo
de comentário entre os amigos. Manuel Bandeira tratava a expressão “caráter”
com o sentido moral e ético, enquanto Mário de Andrade traduzia nela o
sentimento antropológico: o brasileiro, devido à mestiçagem física e cultural,
ainda não tinha características de povo, raça.
Por outro lado, a mãe-de-santo mais afamada da época, Tia Ciata, havia
falecido em 1924.
A macumba era freqüentada por todo tipo: gente direita, gente pobre,
advogados, garçons, pedreiros meia colheres, deputados, gatunos,
marinheiros, marceneiros, ricaços, portugas, senadores.
Alcançado o intento de se vingar do gigante Piaimã, que tia Ciata
realizou dando-lhe uma sova monumental, algumas muitas chifradas de touro
selvagem e ferroadas de quarenta mil formigas-de-fogo.– o que de fato ocorreu
– tudo termina em samba.
Mario de Andrade aproveita a ocasião e faz uma bela homenagem aos
amigos:
“Então tudo acabou fazendo a vida real. E os macumbeiros
Macunaíma [ele, Mário de Andrade, o próprio], Jaime Ovalle, Dodô,
Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso Ferreira, Raul Bopp, Antônio
Bento, todos esses macumbeiros saíram na madrugada”.
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No capítulo seguinte (VIII-Vei a Sol), Macunaíma ainda está no Rio de
Janeiro. Mas é o outro Rio que aparece, a baía de Guanabara, a Praça Mauá,
a Avenida Rio Branco. Macunaíma estava com fome e fez uma trapaça com a
árvore Volomã, fazendo com que caíssem dela os frutos mais saborosos.
“Volomã ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra
além da baía de Guanabara, numa ilhota deserta, habitada antigamente
pela ninfa Alamoa que veio com os holandeses”.
O retrato da Baía de Guanabara, pontilhada de centenas de ilhotas
desertas, pedregosas, com pouca ou nenhuma vegetação, sem água e sem
condições de habitabilidade, se fixou em Mário de Andrade. O herói
Macunaíma penou na ilhota deserta sujo de coco de urubu, até que um dia Vei,
a Sol tomou Macunaíma na jangada e fez as três filhas limparem o herói... E
Macunaíma ficou alinhado outra vez.
A jangada vai flutuando pela baía de Guanabara, enquanto Macunaíma
dorme. Quando a embarcação topou na margem, Macunaíma acordou...
Lá no longe se percebia mais que tudo um arranhacéu cor-de-
rosa. A jangada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de
Janeiro”.
Este “arranhacéu cor-de-rosa” não é outro senão o Edifício A Noite,
recém terminado, que aparecia imponente, moderno e belo a todos aqueles
que chegavam ao Rio de Janeiro, aportando no principal atracadouro na Praça
Mauá. A paisagem vista do cais também é fotografada pelo romancista:
“Ali mesmo na beira d’água tinha um cerradão comprido cheinho
da árvore pau-brasil e com palácios nos dois lados. E o cerradão era a
avenida Rio Branco”.
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Os pés de pau-brasil ornamentavam a então Avenida Central desde a
época da sua fundação em 1905. Tempos depois o pau-brasil foi substituído e
até hoje a Avenida Rio Branco é arborizada com oitizeiros.
Safado como era Macunaíma se viu no Paraíso:
Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem
de Santo Antonio que era capitão de regimento e depois deu em cima de
todas as cunhãs por aí”.
E depois de muitas estripulias, enfarado da maloca sublime,
Macunaíma não achou mais graça da capital da República.
Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do
igarapé Tietê”.
Isso tudo se torna profético, porque anos depois, em 1938, Macunaíma
retornaria ao Rio de Janeiro, em circunstâncias totalmente diversas e adversas.
E do mesmo modo repentino resolveu retornar pra taba do igarapé Tietê.
Esse é o mote para “A segunda visita de Macunaíma ao Rio de Janeiro”,
que virá antes de Miguel de Cervantes escrever a 2ª parte do seu Dom Quixote
– a não ser que outro Avellaneda mais afoito me tome a dianteira.
(1) www.cifrantiga.hpg.ig.com.br/Letras_33/tia_ciata.htm
(2) www.pixinguinha.com.br/biografia/curiosidades.htm
(Inédito)
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BURLE MARX E O DESERTO DO SAARA
Quem viu o registro fotográfico da formação do Aterro do Flamengo,
quando toneladas e toneladas de pedra e areia originadas do desmonte do
morro de Santo Antônio foram ali despejadas, empurrando as águas do mar
para mais longe, pode ter uma pequena idéia do que é um deserto.
De repente as águas da enseada do Galeão, da praia do Flamengo e da
enseada de Botafogo, que formavam as avenidas Beira Mar no Castelo, a
Praça Paris, a antiga praia do Russel e chegavam às cercanias do Hotel e da
Igreja da Glória, até o Morro da Viúva (embora ganhasse outro nome em cada
bairro), ficaram mais distantes.
Hoje quem passa ali e vê aquele enorme espaço, a terra que um dia foi
entulho, poeira e pedra, transformada num pedaço de mata atlântica em plena
meninice, sente junto com a alegria que o verde traz, a sensação de que
alguma mágica se fez, algum milagre se deu. Sente também que mágica e
milagre são dons santificados que a natureza traz consigo, mas aprende
igualmente que a transformação, a criação, a materialização das forças
naturais provêm do dedo humano.
Sim, porque era uma área de 1,2 k de terra árida, barro, granito e
pedras, que, por força do talento humano se transformaram num espaço verde,
que ainda não encontrou o seu apogeu, mas está em plena expansão, com
uma felicidade a mais: encontra-se à beira-mar e tem como pano de fundo
nada menos que o Pão de Açúcar – ao vivo e em cores.
Mas se hoje o verde prevalece, traz paz e alegria a seus freqüentadores
e àqueles que passam ali diariamente, se é verdade que a natureza fez a sua
parte de mágica e beleza, cabe a um poeta que tem o dom de Midas às
avessas transformá-lo em realidade. Midas transmudava em ouro tudo o que
tocava, o nosso jardineiro transforma em verde tudo aquilo em que põe as
mãos... O Parque do Flamengo é o mais bonito jardim do poeta e artista
Roberto Burle Marx.
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Somente a antevisão que atinge os poetas e profetas, poderia imaginar,
vendo aquele vão de areia e pó que vai desde a antiga ponta do Galeão até a
enseada de Botafogo, transformado num parque verde – e, ainda mais,
transformá-lo num éden para os dias de hoje. Em outras palavras: colocar
sempre o ser humano e a natureza integrados na mesma paisagem,
convivendo no mesmo espaço, habitando o parque como adão coabitou o
jardim...
Além de ser um ambiente tranqüilo para caminhadas ao amanhecer e no
fim do dia, o parque oferece outros atrativos. Tem quadras esportivas para
tênis, basquete, vôlei e futebol de salão, ciclovia, pista para caminhada e
corrida, campo de aeromodelismo, rampa de skate, uma mini-cidade para
crianças e nove campos de futebol. A praia do Flamengo tem quase um
quilometro de areia para os banhistas e ao lado a Marina da Glória cede
espaço para os visitantes marítimos. Para que o parque não deixe de crescer
nem perca a fonte de plantas, Burle Marx implantou um mini-horto em seu
interior. Assim, o parque do Flamengo quanto mais velho fica, mais bonito se
torna.
Nos domingos e feriados, o parque é fechado para o trânsito de
veículos, o que aumenta ainda mais a área de circulação e lazer. Por isso e por
muito mais, quando atravesso o Parque do Flamengo, penso imediatamente
em Burle Marx. Imagino a figura de cabelos brancos, personalidade alegre,
imaginativa, faladora, sempre a ilustrar o que diz com sonhos e sempre a
transformar os sonhos em realidade, uma realidade em que estão sempre
juntos o homem e a natureza. Um poeta enfim...
Diz a biografia de Burle Marx que ele nasceu em São Paulo. Mas a
natureza que, ele tanto amou (e vice versa), tratou logo de consertar esse
defeito. Aos quatro anos se mudou com a família para o Rio de Janeiro e está
entre nós até hoje. Se dermos um corte espacial no trabalho de Burle Marx,
podemos comprovar o quanto ele amou esta cidade. E o quanto a cidade do
Rio de Janeiro, ela mesma, deu ao amigo toda a liberdade de mexer nos seus
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recônditos, permitindo-lhe dar vida aos incontáveis sonhos, que hoje fazem
parte da história da cidade.
Apesar de que nem sempre os trabalhos sejam associados ao nome,
pertencem aos sonhos de Burle Marx inúmeros jardins, terraços e espaços que
freqüentamos no dia a dia, como os jardins do antigo Ministério da Educação e
do Aeroporto Santos Dumont, os terraços da ABI e do Largo da Carioca, os
jardins suspensos do Outeiro da Glória, a orla do Leme e o famoso calçadão de
Copacabana. São locais que não teriam porque existir se não fosse à presença
humana.
Com a aquisição em 1949 de um sítio em Barra de Guaratiba (sempre
perto do mar...), Burle Marx pôde concretizar a idéia de ter no Rio de Janeiro
uma grande coleção de plantas que servissem de base para seus projetos e
estudos. É um acervo botânico de valor incalculável. E como não poderia
deixar de ser, em 1985 doou o sítio com todo o acervo ao IPHAN, para que não
se perdesse o enorme trabalho que idealizou com paixão.
Poderia aqui repetir friamente os dados biográficos e dizer que Roberto
Burle Marx foi um dos maiores paisagistas do nosso século, conhecido e
premiado internacionalmente. E foi. Artista de múltiplas artes foi também.
Desenhou, pintou, foi tapeceiro, ceramista, escultor e criador de jóias. Dizem,
mas não provam, que também cantava razoavelmente.
Roberto Burle Marx faleceu em 4/6/1994 no Rio de Janeiro com 84 anos.
Mas quem o viu e leu nas entrevistas, no documentário feito seu sítio,
caminhando entre as plantas e denominando as características e origens de
cada uma como se fossem irmãs, quem o viu declamar versos de poesia
amorosa, quem o conheceu pessoalmente – este com muito mais autoridade
ainda – poderia jurar de mãos juntas que Burle Marx foi apenas um jardineiro.
Um jardineiro capaz de transformar o deserto do Saara numa mata
atlântica, de converter a aridez da caatinga num aprazível sítio em Guaratiba...
(Inédito)
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O CARNAVAL QUE PASSOU...
Fui criado no bairro do Cachambi, Rio de Janeiro, um enclave entre os
mais famosos irmãos – os bairros do Méier e Del Castilho – ali onde o carnaval
corre tranqüilo e silencioso, sem outras manifestações senão o famoso bloco
As meninas do Cachambi, que saía no domingo e depois só na terça-feira, ao
encerrar os festejos momescos. Depois o bloco foi alcunhado de “As piranhas”,
mas aí já estava em plena decadência e hoje só sobrevive um arremedo
daquele que chegou a reunir espontaneamente cerca de mil participantes.
É verdade que a maior das nossas representações folclóricas, o
Carnaval, se transformou numa vistosa ópera popular, voltada principalmente
para as elites e para o turismo. No entanto, é bom não esquecer que as
escolas de samba nasceram de pequenas aglutinações de sambistas que
foram batizadas de blocos, que ainda hoje subsistem em sua formação original.
Em pleno Carnaval do século 21, mantendo-se distante da moderna tecnologia
eletrônica que as escolas de samba utilizam fartamente, é um prazer se notar
que os blocos de rua ainda são um elemento importante nos festejos de Momo.
Um desses blocos mais curiosos é o Concentra mas não sai, criado pela
cantora Beth Carvalho e amigos, que se reúne num bar em Laranjeiras (Zona
Norte). Como o nome diz – e a razão da existência – o bloco se concentra, mas
nunca sai! A turma da batucada permanece no local durante todo o carnaval
cantando samba e recebendo os convidados, famosos ou não, que vão lá dar
uma canja no Concentra mas não sai. Mais curioso ainda é o fato de que um
grupo de mulheres que cumprem pena no presídio feminino Talavera Bruce,
inspiradas em Beth Carvalho para animar o seu próprio carnaval, fundou um
bloco homônimo, utilizando apenas um apêndice que explicita sem crueldade a
própria condição da agremiação e seus membros. É o Concentra mas não sai
mesmo!
Os blocos representam resistência nesta festa coletiva de liturgia
religiosa, que começou popular e se tornou social e profana. Chocante, pois na
Idade Média o carnaval seguia direto desde as festas de reis até a quarta-feira
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de cinzas e os blocos não existiam, mas desde então já os grupos se
formavam para se enfrentar numa batalha fingida e violenta. No Rio de Janeiro
existem blocos que mantêm a tradição de independência tanto na forma quanto
nos enredos escolhidos, que cuidam de levar os protestos e insatisfações
populares aos responsáveis, em todos os níveis, embora prevaleça o clamor
mais íntimo e mais local. São os blocos de raiz realmente popular formado e
sustentado pelas comunidades, sem aceitar patrocínios nem invasões,
principalmente aquelas de momento, geralmente ofertadas por políticos de
plantão.
Um dos mais antigos do Rio de Janeiro era o bloco Chave de Ouro, do
bairro do Engenho de Dentro, cuja característica era sair após o meio-dia da
Quarta-feira de Cinzas, quando o carnaval já tinha terminado. Como era de
esperar, pressionadas pelos comerciantes que não gostavam da bagunça, as
autoridades constituídas tomaram a iniciativa de proibir o bloco, outorgando à
força policial o poder necessário para coibir o evento. A turma do bloco tomava
cuidados para se garantir e proteger seus muitos participantes. Basta dizer que
o local de concentração era secretíssimo, a informação corria de boca em
boca, criava-se a artimanha de montar uma falsa concentração, tudo para
despistar a polícia. Todos esses arranjos e cuidados não evitavam o pior: a
polícia se reorganizava, localizava o verdadeiro bloco já em plena evolução, o
confronto era inevitável, a porrada comia. Os membros do bloco, tratados como
marginais, recebidos na base do cassetete, feridos e sangrando eram levados
ao distrito policial, fichados, processados, etc. Até que um dia o prefeito
resolveu mudar tudo: em vez de ser perseguido, o Chave de Ouro teria – como
teve – proteção policial (e apoio do comércio!), não só na concentração mas
durante todo o desfile. Foi o fim, perdeu a graça, o bloco Chave de Ouro
acabou!
Falar no Cordão do bola preta, agremiação do clube do mesmo nome,
que tem um dos mais tradicionais salões de dança no centro do Rio de Janeiro
(Cinelândia), é chover no molhado. Este famoso híbrido de bloco e banda –
tem uma orquestra para acompanhar o desfile tocando um repertório tradicional
de marcha, samba e marcha-rancho – faz seu desfile inicial no sábado, uma
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semana antes do Carnaval, antecipando o império do Rei Momo, que
acompanha o desfile. O Cordão do bola preta era considerado reduto de
coroas, mas a tradição fez com que a comunidade do centro respondesse
positivamente. Hoje o bloco está renovado, ganhou nome, todos desfilam
juntos, agregando mais de dez mil participantes entre a comunidade e turistas.
Em contrapartida à existência dos blocos, as comunidades de classe
média, ou porque não gostariam de se misturar à plebe ou porque eram
barrados nos blocos populares, se voltaram para si mesmas e criaram
associações para brincar o carnaval – esse é um dos motivos porque nasceram
as Bandas. Mas a diferença não é somente essa: na prática uma banda é
acompanhada de carro sonorizado e elementos musicais de sopro, tendo como
repertório o samba, as marchas, alguns raros frevos e elementos recém
aportados como o ritmo baiano do momento, mais fresquinho. Já o bloco é
animado por uma percussão tradicional, básica para acompanhar os
sambistas, que a cada ano escolhem um samba inspirado em tema escolhido
de comum acordo.
Algumas bandas, como a Banda de Ipanema, são famosas no mundo
inteiro, mais pela peculiaridade do que pelo carnaval que apresenta.
Inicialmente a Banda de Ipanema, reduto da esquerda festiva, representava
privadamente o bairro que leva o nome. A geração que floresceu cultural e
artisticamente no bairro, do cinema novo, da bossa-nova, atravessou os vinte
anos do regime militar. Esta foi a base política da Banda de Ipanema, nascida
para expandir suas manifestações, seus protestos, agravos e desagravos, mas
que hoje sobrevive com poucos representantes. Os gays, um dos grupos que
se infiltraram na banda para lutar pelos seus direitos, chegou viu e venceu.
Hoje é maioria e a Banda de Ipanema é considerada sede do movimento GLS,
principal reduto carioca do grupo que se prepara para tomar o poder...
Tem um momento que blocos e bandas se confundem: é no protesto
sempre latente, na forma de desfilar, rebelde livre, sem peia na irreverência, na
falta de preconceito, na desorganização. Os participantes criam
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espontaneamente os temas. Não são obrigados, mas se concentram para dar
início ao desfile, outros são seqüestrados e agregados durante o percurso.
Ninguém paga taxa de inscrição, nem compra abadás ou outra
vestimenta obrigatória, ninguém é cercado em currais encordoados. A cada
ano alguém do bloco ou da banda pede a um artista para fazer o desenho
símbolo do tema-enredo. Ziraldo, Jaguar, Millôr, Niemeyer, entre outros artistas
populares são convidados e oferecem colaboração gratuita para a criação de
uma camiseta, que será oferecida ao custo de dez ou quinze reais. Como
ninguém é obrigado a comprar, virou item de colecionador.
Alguns blocos e bandas evoluem, crescem, ganham forma de escola de
samba. Os famosos blocos dos subúrbios da Leopoldina Bafo da Onça,
Boêmios de Irajá e Cacique de Ramos, aglutinam milhares de participantes,
são acompanhados de bateria com formação de escola de samba, usam
fantasias estilizadas, formam grupos fechados e desfiles organizados. Alguns,
como os suburbanos Arranco de Varsóvia e o Arrastão de Cascadura, já se
transformaram em escolas de samba e fazem parte dos desfiles oficiais.
Mas o que fica mesmo é o ajuntamento de bairro, popular e espontâneo,
informal crítico, que vai aos poucos se formando na desordem, batucada de
formação simples, tamborim, surdo, agogô, samba na goela e no pé, para sair
ninguém sabe quando, ninguém sabe de onde, sem itinerário, sem destino. É o
bloco de sujo, que se reúne num canto e sai desfilando de botequim em
botequim, o bloco de enredo que vem com samba e fantasia próprias, grande
bateria, milhares de participantes ou o bloco de arrastão, que vai atraindo
passantes e assistentes, num pega-e-solta interminável, eles são a razão de
sobrevivência do carnaval como festa popular.
– o Bloco das Carmelitas sai do antigo convento de mesmo nome em
Santa Teresa;
o Vizinha faladeira, de Santo Cristo faz o último desfile porque virou
escola de samba;
– o Simpatia é quase amor, de Ipanema é o preferido dos turistas;
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– o Suvaco de Cristo, sai do Jardim Botânico, justo embaixo do Cristo
Redentor, daí o nome;
– o Cordão do boitatá, sai da Praça XV e fica lá mesmo;
– a banda Vem ni mim que sou facinha, é feminina, feminista, libertária
e tem ares de bloco, por isso é popular;
– o Xêra puêra desfila pelas ruas descalças de Itaipuaçu levantando
poeira na cara de quem fica atrás;
– o bloco Meu bem eu volto já! herdou do Mamãe eu vou às compras
todos os foliões e a também irreverência;
– o Loucura suburbana reúne os internos (mas nem por isso loucos),
do Instituto Nise da Silveira;
– o Barbas sai do Bar Barbas, foco de resistência cultural em Botafogo,
é uma singela homenagem a Nélson Rodrigues Filho;
– o bloco Cachorro cansado sai do Flamengo, eterno vira-lata, pára em
todos os postes para o ritual xixi;
– o Boca seca exibe formação e som afro-reggae, mas também o
fumacê que é a razão da boca ficar... seca;
– o Bloco do Bonde, idéia de Zé Andrade, reside dentro do bondinho de
Santa Teresa, mas este ano não saiu em razão da greve dos funcionários, por
falta de pagamento dos salários;
– outro residente e flutuante é o Se melhorar afunda, que circula na
barca Rio-Niterói alegrando os passageiros;
– o bloco Galinhas do meio-dia, é das mocinhas (verdadeiras e falsas)
que circulam nas noites de Copacabana (a profissão mais antiga do mundo). E,
portanto, só acorda e desfila após as 12 h.
E assim vai... Ano que vem o Carnaval será o mesmo, mas os blocos
serão sempre novos...
(Publicado em:
http://www.museudapessoa.net/)
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TRADUTOR, TRAIDOR?
Traductor, traditor. Desde que a tradução se transformou numa atividade
literária universal absolutamente necessária ao contato cultural entre
comunidades de línguas diferentes, passou a ser foco de ataques dos mais
sinistros aos mais desbocados, dos mais eruditos aos mais sacanas. Foram os
gregos e os romanos os primeiros a se dedicarem à tradução como fonte de
sabedoria e guarda de conhecimento, vertendo os livros religiosos espalhados
nas regiões mais longínquas. O pobre coitado do tradutor virou saco de
pancada (suas fontes históricas remontam a textos sagrados). Esse fato fazia
dele persona mágica, depositária de sabedorias que não podiam chegar ao
populacho, por isso era tratado de modo especial e espionado como hoje as
forças de segurança vigiam os cientistas, donos do saber tecnológico.
Traduttore, traditore. O epíteto latino gravado pelos italianos para
martirizar o terror que a tradução provoca aos leitores mais cultos (que adoram
as edições bilíngües), tem que ser revisitado sob a ótica da dificuldade da obra
a ser traduzida. Analisando desse revés, não há como deixar de absolver os
tradutores, senão completamente pelo menos aliviar da carga mais pesada: o
carma que carregam com eles junto com a edição da obra. Coube
particularmente à poesia a responsabilidade da condenação tácita, visto que a
poesia provoca uma escapada obrigatória dos sistemas tradicionais de
tradução (para o texto poético não serve jamais a tradução automática e pouco
ou quase nada as traduções semióticas ou literais) . Acredito piamente que o
tradutor só merece a fogueira quando, envolvido de tal maneira com a obra
traduzida, se acha no direito de cometer o pecado da co-autoria. A não ser
assim e seguindo o roteiro a tradução será bem sucedida. No entanto, a cultura
universal deve muitíssimo aos tradutores, ainda que infiltrados de alguns
poucos traidores...
Quando o tradutor opta por utilizar a liberdade na transcrição – a
chamada tradução livre – jamais sai incólume perante a crítica, que jamais é
uníssona. Para evitar esse estado de risco, vai cair na tradução literária
(também chamada poética), quando os valores se deslocam para a recriação, a
49
transcriação ou para a transposição, que exige do tradutor alto conhecimento
literário e lingüístico. Ao transpor o lado mais sensível da mensagem o tradutor
obriga-se a traduzir a forma, a correlação intertextual, ou seja, significado e
significante. É necessário que o signo seja traduzido não só quanto ao seu
significado – que seria a tradução literal-referencial – mas que também absorva
a iconicidade própria, onde as funções da linguagem se inter-relacionam
harmônica e solidariamente.
O ensaísta e tradutor Jorge Schwartz, no interessante artigo “Traduzir
Borges” (Revista Cult nº 25), registra as dificuldades que teve para trazer para
o brasileiro o texto do notável escritor argentino. Ao assumir a responsabilidade
de traduzir Jorge Luis Borges, como todo tradutor que se preza, Schwartz foi à
busca do Borges já anteriormente traduzido para o português, garimpando
fontes onde pudesse se alimentar de sabedoria. Mas o que encontrou foi um
container de dificuldades principalmente advindas das traduções lusitanas. Os
percalços que não foram ultrapassados pelos colegas de ultramar, ainda que
mal resolvidos, agora se encontram gravados em papel e ocupam lugar nas
prateleiras das bibliotecas. Isto é: o estrago está feito.
Embora pareça um tanto estranho o comentário, talvez devêssemos
reservar algum respeito aos tradutores lusos, se deles não saltassem enorme
quantidade de pequenos erros técnicos, daqueles que – se fôssemos fazer um
paralelo com a arbitragem de futebol diríamos – tiveram efeito decisivo no
resultado da partida. Jorge Schwartz demonstra no artigo que soube sugar ao
máximo o aprender com o erro alheio e seguir em frente cuidando de evitar
repeti-los, sem medo de esgotar os limites da paciência em busca da melhor
solução. Esperando despertar o interesse dos leitores no apaixonante país da
tradução, destaco o seguinte parágrafo, como exemplo de que a arte de
traduzir – quando levada com carinhoso amor – nada tem da traição.
“Um dos problemas mais saborosos foi decifrar o sentido de “el baño de
la planga”, conforme aparece em ‘As kenningar’. No Beowulf, saga islandesa
do ano 700, Borges transcreve uma série de metáforas usadas para
denominar
[grifei] o mar. Aqui o mar é o caminho das velas, o caminho do cisne, a
50
poncheira das ondas e “el baño de la planga”. Graças a especialistas em
ornitologia, conseguimos verificar que a “planga” é uma ave de rapina
americana, o que leva a várias incoerências: o fato de a América ainda não ter
sido descoberta no século VIII e a ave de rapina não freqüentar águas
marítimas para tomar banho, mas florestas, seu habitat natural. Aliás, a versão
portuguesa manteve ‘o banho da águia’, o que semanticamente é no mínimo
um paradoxo. Descobrimos finalmente tratar-se do pelicano, solução adotada”.
Continua o tradutor: “Outro caso, que nos levou da ornitologia à
botânica, foi a presença das “cortaderas” que dilaceravam as carnes da
personagem de “As ruínas circulares”, nas primeiras linhas do memorável
conto. Após certa pesquisa, descobrimos tratar-se do “capim navalha”. Para
não estragar o efeito poético da frase, utilizamos como solução “arbustos
cortantes”. Diante do mesmo problema, a edição portuguesa optou como
solução “sanguessugas que lhe dilaceravam as carnes”.
Assim Jorge Schwartz descreveu os obstáculos que se apresentaram
durante o seu labor em transferir para o brasileiro a obra de Borges. O que me
chamou atenção foi o curioso “el baño de la planga” e a referência às
“cortaderas”. Jorge Schwartz deixou bem claro que a intenção de Borges era
usar metáforas para denominar o mar. Então na poesia o mar é: 1) o caminho
das velas; 2) o caminho dos cisnes; 3) a poncheira das ondas; 4) “el baño de la
planga”.
E agora? Em denominando o mar como “o caminho das velas”
curiosamente se entende que há uma metáfora direta. Navegantes,
navegadores, naves, navios, velas. Tudo conforme os conformes. Quanto a ser
o mar “o caminho dos cisnes”, pode-se dizer que, em não sendo ave
migratória, o cisne não transita pelo mar e, portanto, o mar NÃO É o caminho
dos cisnes! Ou estaria o mestre Borges fazendo uma referência ao formato de
cisne que têm os navios vikings? Pensar assim até que seria acertado. Quanto
à expressão “a poncheira das ondas”, reparo, somente ela tomou o sexo
feminino ao tratar de denominar o mar (masculino)...
51
Chegamos no “el baño de la planga”. Reparei em minhas poucas
andanças por nossa latinoamerica que aquilo que os hispânicos chamam de
baño não é exclusivamente o ato de tomar banho ou se banhar – o banho em
si mesmo – mas também ao recinto e todo o ambiente que compõe o banheiro.
Aí sim, o sentido de “el baño de la planga” estaria claro: o mar é o banheiro (ou
em bom brasileiro: a banheira), do pelicano. Mais ainda, sabe-se que o mar
não é só a banheira do pelicano, mas também fonte de alimentação e
sobrevivência. O mar é o verdadeiro lar dos pelicanos.
Quanto a “cortaderas” – do conto “As ruínas circulares” – acho que a
botânica pregou uma peça em Schwartz, porque em sendo o conhecidíssimo
capim navalha, que realmente dilacera as pernas daqueles que ousam
atravessar seu domínio, não será jamais arbusto. Será erva [não aquela
aromática e digestiva cujo consumo é proibido e proibitivo], mas a relva, da
família das gramíneas. Por isso não forma arbusto e sim touceira. Então, acho
que uma frase assim como: “touceiras de capim navalha que lhes dilaceravam
as carnes” – não ficaria de todo mal nem perderia o estro poético.
Seja o que for, imagino que o don Jorge Luis Borges, tendo sofrido na
pele as agruras da arte de traduzir (era profundo conhecedor da literatura
anglo-saxão, germânica e escandinava), viveu a dar boas risadas pensando
nas armadilhas que preparou, dos mistérios que plantou nos textos, deixando
para os tradutores o sofrimento de resolvê-los. Podemos repetir o riso do
poeta, ao atestar com que facilidade os irmãos lusitanos se renderam às
dificuldades que a obra de Borges carrega. Tintim por tintim, as soluções
encontradas após o trabalho exausto e a pesquisa criteriosa de Jorge
Schwartz, foram os elementos imprescindíveis para deixar a tradução de Jorge
Luís Borges simplesmente saborosa. Sorte nossa.
Aleluia! Por tudo isso, honra e glória aos tradutores que fazem chegar
até nós o melhor da colheita, das searas alheias – matéria-prima para produzir
o pão da padaria espiritual...
(Publicado em: www.gavetadoautor.sites.uol.com.br)
52
CONHECER ABGAR RENAULT
“No poeta, quebra-se o elo da transmissão: o indivíduo, por instantes, opõe-se à
sociedade – consciente ou inconscientemente – e com os mesmos processos de
língua-social – também consciente ou inconscientemente – cria os seus valores
individuais, sua língua-indivíduo: estilo”. (Antônio Houaiss, Seis poetas e um problema,
MEC, 1960)
"Vós, poetas, não sabeis o amargo de ser ou não ser poeta quando o mundo em dor se
alarga e em água se reduz e cintila, quando o amor em nossa carne viva morde a sua
garra ou seta, ou quando, na hora mais morta da noite, entre mar e mar, a vida só
existe no olhar intenso da treva a escrutar dentro da insônia grávida o que fizemos da
nossa vida." (Abgar Renault, Prefácio de desculpas in A outra face da lua, José
Olympio/INL, 1983)
Para o leitor, apaixonado ou não, a poesia traz segredos e com eles o
mistério. Cada novo livro é um portal de deslumbrante paisagem, o poeta lido e
relido se transforma em novo autor, cada volume reaberto é renovação, nova
idéia, redescoberta de amor, ritmo intenso, imagem fixada. A poesia não
envelhece. Assim, o (re) encontro com a poesia muitas vezes também se faz
por osmose, atração indescritível, escondida atrás de meandros, ritual vodu,
hipnose, puro magnetismo, sonho, incenso e tarô. Vagando dentro desse
universo – e mais alguns – apenas a leitura de um poema, Filho morto, incluído
no livro “Ensolarando Sombras”, de Vera Brant, provocou em mim uma
transferência direta para a alma e o coração de Abgar Renault. Fui
transportado à “uma paisagem de fluidez de luz”.
Aberta a primeira porta, olhos escancarados, o passo seguinte foi
desenterrar no sebo [o poeta é raro] o volume Obra Poética (Editora Record
1990), que junta os livros “A princesa e o Pegureiro”, “Sonetos Antigos” (1968),
“A Outra Face da Lua” (1983), “A Lápide Sob a Lua” (1968), “Sofotulafai”
(1971), “Cristal Refratário”, “Íntimo Poço”, “Thanatos”, “O Rio Escuro”,
desvairar-se com a lírica irreprochável de uma poesia cuja raiz circunda o
coração, as vísceras, todas as artérias, mas nem por isso deixa de ter origem
contemporânea, nem de pertencer à elite cultural, pós-modernista. Singular. E
plural.
53
Não foi fácil, por outro lado, o poeta decidir aparecer, despertar-se do
casulo em que estava aprisionado por entraves das profissões que havia
optado por exercer: político, educador, diplomata. Pois tal dúvida suscitou
revolta em vários contemporâneos, que literalmente o obrigaram a apresentar a
arte poética para publicação. Antes, já provocara entusiasmo em Tristão de
Ataíde, o primeiro e desvendar a determinante de um poeta cuja em obra
aparecia "tão clássico em sua modernidade." Vários outros se debruçaram
curiosos ante a claridade despendida pela letra que não perdia a alma, mas
avançava resoluta para o futuro.
Seu conterrâneo Carlos Drummond de Andrade, amigo do "admirável e
esquivo poeta", estranhando haver nestes tempos "um autor fugindo a ser
editado", foi daqueles que não descansou até que Abgar Renault, resolvesse
entregar-se ao sétimo dia de criação, apresentando seu trabalho ao editor José
Olympio e perdesse por fim a fama de ser "um poeta avesso a aparecer em
livro". Todos, enfim, poderiam dividir com o poeta de Itabira a poesia que trazia
em seu cerne "uma aguda visão do mundo e do ser, envolta em magia verbal".
UMA NOITE MARCHA SOBRE MIM
Eu carreguei o meu corpo de abelhas e relâmpagos
e me escorri em sonho e sede à tua espera,
e o meu planeta descreveu a órbita infinita da esperança de ti
com os seus rebanhos de incêndio e desespero.
Sonhei-me lã sobre as tuas espáduas escarpadas,
pele sobre a tua, escamas, tempestade e erosão
em todo o curvo território das tuas arquiteturas,
fulvo campanário a clamar por tua constelação.
Banhei de ávido vinho as praias e as escadarias
onde surgiria o sol do teu tropel universal,
tingi de esmeraldas e sabores o dia complexo,
dei à sombra o esplendor de límpido metal.
54
Não sei o que sonharam dentro de mim estas mãos e esta boca,
mas eu esperava ser a tua habitação e habitar-te
com a fluida força, o solto peso e a exatidão
com que a água no côncavo busca a forma.
Por que se nublou e desfolhou o cristal interior
em que vacilavas para a minha escarpa? Por que rolaste
do fio de um minuto, pelo outro vértice,
desaparecendo sob o olhar estéril do meu pântano?
Sem sonho gritam meus olhos na oceânica solidão,
recuam palavras partidas e beijos derrotados,
estiram-se meus braços como trilhos para nenhuma viagem,
e uma noite marcha sobre mim cheia de frutos rotos, luas arruinadas e
cemitérios.
A estrada parece de fácil trilhar uma vez percorrida. No caso particular
de Abgar Renault, o poeta optou por uma poesia ao mesmo tempo íntima e
universal, sem associar-se a escolas e institutos capazes de determinar algum
tipo de fronteira ou limite ao poder de criador. Livre, simplesmente livre, como
deve ser toda arte criadora. Pôde assim correr todas as trilhas, expandir-se a
limites intoleráveis dentro de uma produção absolutamente impecável. Abgar
Renault foi quem primeiro estabeleceu mais nitidamente o poder imaginativo
dos contrastes, festejando poderosamente o claro e o escuro, a cor e o gris, a
luz e a sombra, a fealdade e a beleza. Integrou a poesia às demais artes,
levou-a ao âmago da natureza periscópica que cerca o homem.
A linguagem depurada, inata em Abgar Renault, foi elemento
fundamental para que expoentes da nossa cultura rendessem a ele exaltada
admiração, citando como exemplo pós-modernista. Elogiando, por exemplo, a
"poderosa linguagem lírica, sempre associando a vocação especulativa à
sensibilidade que não recusa problemas humanos". Além disso Abgar Renault
foi considerado "uma das chaves que explicam a projeção e o prestígio da
poesia brasileira contemporânea" (Adonias Filho).
55
A poetisa Henriqueta Lisboa, como todos, também ficou impressionada
com a inviabilidade de Abgar Renault, édito apenas para poucos privilegiados,
desconhecendo-lhe o talante em manter-se escondido, sem deixar de ressaltar
os méritos, ao reconhecer que "a construção do seu poema se recorta em
técnica delicadamente geométrica, sem espraiar de sentimentos nem respingos
de espuma".
O mesmo soco que recebi agradavelmente ao conhecer Abgar Renault
tinha outrora atingido o também poeta Mário Chamie:
“A poesia brasileira alimenta, ao longo de sua história, um jogo de
oposições e contrastes. Esse jogo não implica necessariamente
rivalidade mortal dos pólos opostos, de tal modo que um sobreviva à
custa da exclusão do outro. A tradição dos opostos pendulares de nossa
poesia não elimina os contrários. Não. Na verdade, o que ela estabelece
é uma transfusão das substâncias próprias de cada um. Transfusão sem
a qual nem um nem outro subsistiria”. (Mário Chamie, Enigma: Claro e
Escuro, Suplemento Cultural O Estado de São Paulo, 1984, in Obra
Poética).
O poeta concede vênia ao rigor classificatório que incita a santificação
de poetas titulares mesmo à revelia dos mesmos:
“A tradição dos contrastes em nossa poesia, talvez, já seja a evidência
de que é impossível definir a sua substância, a não ser considerada ela
própria um enigma. A poesia brasileira, nesse sentido, acolhe a
realidade nuclear desse jogo. Passa por ela o corte transversal da
duplicidade básica em que a luz se opõe à sombra, o claro se opõe ao
escuro.” (cit.)
Entre o claro e o escuro acende-se o arco-íris, figura permanente na
ótica de Abgar Renault. O enigma que excitou Mário Chamie levando-o a
realizar o ensaio, enfrenta a disparidade paralela de poetas do naipe de
Gregório, Drummond e Abgar. Interessa-nos o último:
56
“Refiro-me a Abgar Renault. Ele não está entre Gregório de Matos e
Carlos Drummond de Andrade. Abgar Renault situa-se no centro
daquela indagação, com a independência de quem refaz a substância do
poema, na sua vivência e na visão que tem de si mesmo e do mundo“.
(cit.)
Por fim, ainda Mário Chamie – com lucidez e claridade – enquadra a
poesia de Abgar Renault numa dimensão sem molduras:
“Se Abgar Renault é uma primeira pessoa plural e sujeito do verso que
conjugamos, o que ele fez de si, o fez para nós no melhor legado da
nobre tradição de nossa poesia”. (cit.).
Isso se pode ler claramente em:
PERGUNTAS AO CREPÚSCULO (I)
Mas por que tamanho azul?
Por que parado em silêncio
esse automóvel sem cor?
Quem veio, quem voltará?
Por que também esta grama
e tantos passos ausentes?
Por que escrevo cartas velhas,
nova letra, verde tinta,
desesperadamente,
à estrela Alfa ou Gama,
que, clara, tão clara, pinta
de surdo luto e segredo
o raio de lua e sol?
Por que hoje uma fita escura
a marcar página em branco
neste livro em minha mesa?
E uma garrafa de vinho
57
– púrpura, vívido e bêbedo –
por que na frente de mim,
sem mãos, sem lábios, sem copo?
Por que nos olhos, no ouvido,
sem o possessivo minha
a curva concha marinha
cheia de mim e sonatas
de Mozart – frágeis, mas sempre?
Por que não ser seqüestrado
pela resposta à pergunta
sepultada em meu peito?
Por que, para ser feliz,
por que, para que não o ser?
Por que contabilizar
arcaicos números mortos,
buscando débito e crédito,
e procurar receber
escassos, dúbios cifrões
há tanto tempo caídos
em exercícios já findos?
Março, 1975
Para ver como são as coisas, nem sempre uma reta é uma reta. A
palavra de Carlos Drummond de Andrade veio mais cedo, mas – hoje se vê –
ficou contida nas fronteiras de um espaço em que Abgar Renault ainda não
transitava plenamente, claro, mas o poeta iria crescer – e muito.
“Abgar Renault figura numa antologia de poesia moderna como poderia
figurar – se tivesse idade provecta – numa antologia dos últimos
parnasianos. Não esquecer que começou modelando “sonetos
antiquos”, num tempo em que Bilac apenas se despedia com a Tarde e
a poesia chamada modernista era apenas um poema de Manuel
Bandeira no Malho: “Quando perderes o gosto humilde da tristeza...
58
(Carlos Drummond de Andrade, O Pessimismo de Abgar Renault,
Confissões de Minas, 1944 in Obra Poética).
Se o modernismo no Brasil iria se transformar num rotundo fracasso
(para alguns setores da chamada elite cultural), na poesia passaria, de
passagem, apenas, animando as almas como um hálito renovador, mas que
precisava ser destrutivo para vingar. A poesia bebeu o leite do modernismo, o
néctar. Depois cresceu, desmamou. E Abgar Renault – de sólidas
humanidades – reinventou, numa série de 24 sonetos que deu nome de
“Sonetos Antigos” (1923), a emoção camoniana, justo numa época em que
aferventava o modernismo na boca do vulcão cultural que se transformou o
eixo Rio - São Paulo. Pouco tempo depois restaria apenas espaçados
rescaldos em alguns cantos, antes de se transformar em fumaça.
Naqueles tempos nem mesmo Carlos Drummond de Andrade poderia
antever em Abgar Renault um poeta que, despudoradamente, trespassaria os
movimentos literários com a liberdade e o poder de uma voz tão impecável,
acima de tudo e de todos, à qual não se poderia mover nenhuma crítica ou
censura. Quando Abgar Renault faz poesia calam-se todos respeitosamente.
“Mas vem o modernismo – continua Carlos Drummond de Andrade – e
Abgar Renault é situado nele sem perder sua característica fundamental,
o culto às formas decorosas de expressão. Nessa imensa falta de
respeito que foi o modernismo, Abgar conservou o respeito próprio e o
respeito dos outros”. (C.D.A.cit.)
Dentro dessa poesia de caráter mágico descobre-se abismado o mundo
particular dos sonetos de Abgar Renault. Quando lidos assim, metidos em
máscaras de carnaval veneziano, escondido entre florestas de poemas, os
sonetos de Abgar Renault conseguem passar livres. Mas basta uma visão mais
atenta para ver que o espaço que medeia entre um soneto e outro é ocupado
por uma espécie de viaduto sentimental, humano, caloroso. Há um invisível
claro-escuro elo de ligação entre os sonetos. Neles Abgar Renault se solta, se
desnuda por inteiro, sem pudor, sem freio, sem limitação.
59
Foi sob a forma do soneto que Abgar Renault escolheu para tratar os
temas mais íntimos, para dar recados cabalísticos, para falar aos seus como se
estivessem sentados juntos, conversando na intimidade das salas ou dos
quartos, quando o tema era o amor, o erotismo, a paixão da mulher amada, a
amizade, o apego aos próximos. Apesar de terem sido publicados entremeados
aos poemas, os sonetos de Abgar Renault provocam o sentimento mais que de
unidade, ultrapassando além mesmo as fronteiras da íntima cumplicidade.
Não se trata apenas de semear toda a poesia nos catorze versos que
compõem o soneto clássico. Ao compô-los o poeta Abgar Renault caminha
pelas frases com a calma de asceta, a tranqüilidade de alguém que dá os
primeiros passos para percorrer uma longa estrada. Mas quando o soneto
chega ao fim deixa a sensação de que tudo foi dito, com todas as palavras,
sem economia, sem contenção, sem a concisão estética que tantos apregoam,
sem agredir a gramática, principalmente, sem economizar a beleza, em versos
que acumulam som, cor, luz, perfume, gosto. E uma sensualidade de sabor
bíblico, “estes rosais do último céu desperto”, verdadeiramente imperceptível a
leituras apressadas.
Foram esses tais detalhes e a excepcional qualidade da poesia de Abgar
Renault que Carlos Drummond de Andrade quis destacar, com propriedade,
quando fuzilou a imensa falta de respeito que foi o modernismo, evidentemente
referindo-se, entre outras coisas, à tentativa frustrada de Mário de Andrade de
impor uma fala brasileira a nível cultural. Mas havia essa imposição mesmo ou
foi defeito de interpretação?
O próprio Mário de Andrade cita o fato em carta a Prudente de Moraes,
neto:
“Às vezes, está claro, me irrita a maneira com que tendências sérias,
elevadas e sinceras, em que me meto, sejam reduzidas a pó-de-traque
pelos continuadores. Como é o caso do brasileirismo, e o caso da
língua, problema tão nítido na minha inteligência desde o princípio e que
foi pavorosamente, enjoativamente desvirtuado por todos os que não
60
compreenderam a parte puramente experimental da aquisição de estilo e
principalmente de enunciação de caracteres não fixos, mas
generalizáveis da nossa maneira de pensar e sentir, e
conseqüentemente de exprimir.” (Cartas de Mário de Andrade a
Prudente de Moraes, neto-1924/36–Georgina Koifman (org), Nova
Fronteira 1985).
Poderia se dizer que somente Guimarães Rosa veio a entender de
maneira literária o que seria a fala brasileira, ao atracar sua memorável obra ao
brasileirismo a que Mário de Andrade se referiu, apesar de o falar do autor de
Grande Sertão: Veredas ficar restrita às fronteiras de Minas. Mas se Abgar
Renault conservou o respeito próprio e o respeito dos outros, certamente não
deixou de percorrer outros destinos, porque teve a natureza dos
experimentalistas, dos aventureiros e exploradores, para os quais nenhum
caminho deve ser percorrido se não for uma estrada nova, cujas curvas são
desconhecidas, as escarpas e desfiladeiros um desafio permanente. Essa forte
impressão é a feitiçaria imposta pela descoberta desse novo poeta, que
escreve aliciando a natureza animal da poesia à liberdade de escrever, “porque
o sopro de uma treva contagiosa / influiu, passando, a minha forma e coloriu o
meu olhar”.
E assim, livre e sem cabresto, sem medos, freqüentou os salões e as
catedrais com a mesma dignidade com que penetrou no cárcere e na capela
mais simples. Usou de todas formas sem se envergonhar nem se prender a
nenhuma delas. “O poeta mete a língua na vida alheia, na língua alheia, na
obra alheia, na dor alheia e na própria dor”, como disse Cacaso a respeito de
Glauco Mattoso, carapuça que serve a todos.
A VIDA TEM UMA FACA NA MÃO
Vamos parar de ler. Paremos de escrever.
Olhos e mãos circulam no papel
ao serviço da dor e da desgraça,
61
mas as palavras são frias e sem fel
para exprimir o desespero dessa taça.
Ninguém sabe escrever. E ninguém pode ler
o que fica, depois de tanta luta fútil,
a escuridão desvirginada do teu ser
na indiferença de uma folha de papel.
Hoje, ontem, amanhã – amanhã sobretudo –
a vida sempre tem uma faca na mão,
vai sob as unhas, vai direto ao coração,
dói nos olhos, nos pés, dói na alma, dói em tudo,
torna toda a poesia um jogo raso e inútil.
Abgar Renault foi um poeta consciente e livre. Manteve-se encolhido no
limbo premeditado, com medo daquela "poesia equilibrada, consciente,
silogística, que nasce, cresce e se conclui como um teorema ou uma fórmula
estatística..." (Prefácio de desculpas). Necessário fosse, não teria pejo em usar
a gramática inteira – o passado e o presente – em sua poesia, pois tudo o que
diz o faz com todas as palavras e paisagens a que tem direito. No entanto,
dono de técnica apurada, não se preocupa em ser adjetivo, substantivo,
conciso ou contido – se essas fórmulas venham para danificar a sua idéia,
desequilibrar o que pretende construir. Aplica no sonho e na matéria o poder do
imaginoso, é fantástico na descoberta de novas e belas construções,
extraordinário no detalhe, insuperável nas cores e luzes. Encontrou soluções
esmeraldinas, até mesmo para as imagens e fotografias desgastadas pelo uso
contumaz. Não é fácil, não, nada é truque, principalmente porque “chega um
momento em que a vida é distância, e tudo é tarde.”.
A descoberta dessa poesia atualizada, didática e exemplar, obriga juntar
os sonetos num só pacote, para que a leitura dos mesmos em conjunto
transmitam a mesma sensação de felicidade e alegria. Apesar de Abgar
Renault obedecer nos sonetos à forma tradicional, sem exceder-se, em
62
algumas poesias nota-se a mesma cumplicidade honesta, tanto em emoção
quanto na temática. Os sonetos são reflexos de coisas, situações, crenças,
ideologias e fatos muito pessoais ou extraordinários. Não que haja neles uma
unidade, nem isso é necessário para atestar a beleza e qualidade, mas há sim
uma forte identidade, cumplicidade irmã, intimidade impublicável, parentesco
excessivamente familiar. Uma sala, um espelho quase sempre presente
guardam íntima versatilidade e desavergonhada pureza, um “silêncio de
sombras entre folhas”.
Enquanto pode foge da "esfinge que ontem, na estrada de Tebas, fitou
em mim os seus olhos e me dissolveu". Simplesmente não quer ser
comparado, prefere a invisibilidade a ver sua obra poética "reduzida a esta rala
poesia, a esta ou nenhuma poesia sem surpresa e sem mistério, a este
coração nu, direto, elementar, irreversível...", conduzida a excessivo debate,
desgastantes comparações, debitada a compulsões teóricas, em respeito à
opção de caminhar outro trilho que não o puramente literário. Agora que se
computa um centenário de nascimento à sua biografia, o que fazem os
guardiões da mina poética deixada por Abgar Renault, que não a expõe toda
se a cultura luso-brasileira, a poesia latino-americana assim o exigem? Não se
sabe...
O fato é que Abgar Renault, embora tenha conseguido e leveza dos
anjos, não conseguiu tornar-se invisível, se é que tentou. Numa peça
encaixada em "A outra face da lua" (Livraria José Olympio Editora/Pró-
memória/INL 1983), intitulada "Prefácio de desculpas" – que aqui vai à íntegra
–, o poeta mesmo deixou-nos um itinerário, o mapa de uma derrota, algo em
que confessa a dificuldade sentimental que tem em exercer plenamente a
poesia:
Perdoai-me a soberba de haver-me sonhado vosso irmão,
sem ver nem ouvir estéril vácuo nas minhas palavras,
que não soube nunca encher meu grave coração.
Perdoai os versos incomunicáveis do chão de lavas
e de pedras em que vivo. Perdoai o vinho, o sal, o pão
63
sem fé que meu corpo e minha alma receberam gratuitamente.
Perdoai perdidamente a voz esquiva e outrora,
que entre os esbeltos cantos de profundas vozes
se compôs de tristeza essencial e de vaga alegria malcontente,
se ergueu, e se apagou de pobreza e de fadiga.
Perdoai-me se me esqueci a mim sentado entre vós,
como um de vós, e não reconheci meu destino tão comum,
e procurei dar-lhe forma impossível, sem o hálito de fogo que anima a
elementar argila.
Perdoai, em mim, a quem se viu um dia sem destino nenhum.
Vós, poetas, não sabeis o amargo de ser ou não ser poeta
quando o mundo em dor se alarga e em água se reduz e cintila,
quando o amor em nossa carne viva morde a sua garra ou seta,
ou quando, na hora mais morta da noite, entre mar e mar,
a vida só existe no olhar intenso da treva a escrutar
dentro da insônia grávida o que fizemos da nossa vida.
Não podeis saber como arrasa saber o que é poesia,
ouvi-la e vê-la onde está, sentir que nasce de um sem-querer,
às vezes de fortuito encontro de domésticas palavras
em coito inesperado, que gera sentidos novos e novos sons,
e não poder captá-la, nem à noite, nem à tarde, nem ao aberto dia,
nem acordado nem desacordado nas surdas tumbas do sono...
percebê-la, evasiva e arisca, esgueirando-se entre todos os vocábulos
bons ou maus,
feios ou belos, da língua mais ilustre ou mais plebéia...
Tê-la doendo agudamente no sangue e vê-la, quando irrompe visível,
– idéia sem forma ou forma sem idéia –
reduzida a esta rala poesia, a esta nenhuma poesia sem surpresa e sem
mistério,
a este coração nu, direto, elementar, irreversível...
(Oh, o íntimo cansaço da poesia equilibrada, consciente, silogística,
que nasce, cresce e se conclui como um teorema ou uma fórmula
estatística...)
Sobre tudo ignorais, ignorareis (sois poetas!) a suada impotência
64
de não ser vossa aquela mão, esse ouvido, certo sortilégio, a ciência,
a antena, o acaso, o não-sei-quê divino, humano, aéreo,
que condensa e repete o poder de todas as filogêneses
e faz nascer numa folha de papel, entre vertiginosos traços,
a rosa, Júlio César, um sapo, a Virgem Mãe, uma estrela em pedaços,
um carbúnculo, esta salamandra, e a esfinge
– a esfinge que ontem, na estrada de Tebas, fitou em mim os seus olhos
e me dissolveu.
Não sabeis, não sabereis jamais, como eu,
Quanto mata sentir que a poesia nascida da punhalada mais aguda é
triste concha vã,
Sem nenhum eco de mar, e que para ela não existe amanhã.
(1950)
A literatura, porém cobra audácia e audaciosamente transformei num
conjunto único e indivisível os sonetos de Abgar Renault. Ajuntei também
alguns poemas que não foram publicados na forma tradicional do soneto, mas,
dando a eles a forma visual do soneto, podem ser considerados aquilo que o
próprio Abgar Renault chamava de sonetos excessivos. Enfim, quando muito,
abusa-se, peca-se por excesso. Peca-se com prazer: ler a poesia de Abgar
Renault jamais será excessivo – porque para o poeta o “viver passou aqui: foi
asa / e um dizer de pássaro remoto.”
(Publicado em: www.aconfraria.com.br)
65
PABLO NERUDA OU A POÉTICA DO CORAÇÃO
Caminho pelas ruas do centro de Santiago, década de 70, anos de
chumbo e aço, anônimo, admirando prédios chamuscados pelos incêndios,
paredes rompidas por intensos bombardeiros. A sede da Rádio Nacional, que
transmitiu clamores de resistência até a invasão pelas tropas. Edifícios
perfurados, redação de jornais, sedes de partidos políticos, tudo destruído,
metralhado a torto e a direito. A paisagem mais triste, porém, era o Palácio La
Moneda. Emparedado por um carro blindado, tábuas cerrando portas e janelas.
A cúpula externa onde costumava tremular a bandeira nacional estava
destruída pelo bombardeio aéreo. Instigado pela presença viva da história me
aproximo sem medo. Ali morreu Salvador Allende defendendo o cargo a que
fora eleito. Chego o mais perto que posso. A proximidade me emociona mais.
Um senhor de cabelos brancos, boina na cabeça, traje simples, surrado, cria
coragem, se aproxima e diz: “Eu estava aqui. O palácio foi bombardeado,
incendiado e invadido. Assassinaram don Salvador.” Caminhamos até um bar,
ofereci vinho, cigarro e conversamos mais um par de horas. A história viva, a
catástrofe histórica lacerada, passava diante de mim por seu personagem.
Narrador e ouvinte de olhos úmidos.
Outras vezes retornei a Santiago. A cidade revivia envergonhada, tímida
e calada. Nas mesmas ruas, agora limpas e varridas, encontrei um vendedor
de publicações e gravações piratas. Revendia as obras de Nicanor Parra,
Victor Jara, Violeta Parra, poetas da terra, cantores da resistência. Depois de
adquirir confiança, indicou-me bares obscuros onde se ouvia música e poetas,
apesar do toque de queda. Comprei La Bicicleta, revista de resistência,
algumas fitas, entre elas de Pablo Neruda lendo poemas do livro “Vinte poemas
de amor e uma canção desesperada”. A voz de Neruda soa grave, amorosa,
dramática. Não diz poemas como Vinícius de Moraes ou Carlos Drummond de
Andrade, mais parece um cantor de tango, de bolero, do nosso samba canção.
A partir de então vi que Neruda não seria jamais considerado um clássico. Era
um poeta popular, como o nosso Catulo da Paixão Cearense ou Patativa do
Assaré.
66
Como se mede um poeta? Como se mede a uma distância considerável
o poeta e sua obra? Retiram-no do espaço e tempo a que estava confinado, do
qual fazia parte? Exclui-se a geografia física, foco da paisagem em derredor?
Elimina-se a ideologia que entendeu, teve afinidade e abraçou? Deleta-se a
utopia da igualdade social que fere e machuca quando se torna consciente?
Destrói-se a construção política que assimilou aquele sonho que erigiu a
sangue e suor? Como se mede o poeta sem misticismo, sem religiosidade,
sem eternidade? A imortalidade de Neruda vai durar porque, no momento em
que lhe foi dada à bênção das musas, soube interpretar como nenhum o anseio
da terra e dos povos em derredor. No momento certo trouxe à lembrança todo
o mal que o invasor (especialmente o espanhol), causou. Sem leviandade.
Essas considerações vêem empiricamente após leitura do artigo de
Floriano Martins “Neruda”. Parece que para alguns o poeta chileno representa
um ícone – mas também um incômodo. O que se pretende é destotemizá-lo.
Não se pode derrubar o altar de qualquer um senão daquele que conseguiu
abalar a estrutura da poesia hispânica. Frívolo, inconseqüente, desmesurado.
Tudo que Floriano Martins disse e citou de uma dezena de críticos importantes
a respeito de Pablo Neruda é absolutamente verdadeiro. O próprio Floriano
Martins o reconhece ao citá-lo, quando se compara com o classicismo moderno
de Vicente Huidobro.
Mas, dá para imaginar a leitura de Gonçalves Dias sem a ótica edênica e
indígena que sempre o acompanhou? Como chegaria até nós a leitura de
Casimiro de Abreu sem a viagem feiticeira de uma só via? Como seríamos
capazes de ler Joaquim de Sousândrade sem a contingência intercontinental a
que foi submetido, impregnando-o de um futurismo páranormal? E mais
próximo a nós, como ouviríamos Mário de Andrade excluído do urbanismo
erótico desenfreado a que se escravizou como um sacrificado? E ler Brecht
sem o marxismo dialético? Eis um exercício que se pode fazer ad infinitum, à
exaustão, esgotando todas as fábulas possíveis. Finalmente, como não se
pode falar mal de un pequeño mal poeta, vamos crescer à custa de un gran
mal poeta – tudo tem seu princípio. Em frente!
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A polêmica, entretanto, não nos faz esquecer o artigo de Flora
Sussekind (Escalas e Ventríloquos), sobre a poesia brasileira, limitando-a ao
curral cult São Paulo-Rio de Janeiro. Ditadura que não se pode aceitar em
hipótese alguma, sob pena de transformar-nos em periferia. Ao submeter-nos à
imposição do Eixo São Paulo-Rio como centro cultural irradiante, ao qual se
deve – por subserviência e mimetismo – imitar como único e verdadeiro, foi
uma catarse. O Rio de Janeiro jamais perdeu o caráter macunaímico de
resistência cultural, mas a avassaladora pressão que São Paulo exerce,
utilizando o poder dos meios de comunicação é criminosa. Aceitar a idolatria
nos sufoca, nos põe em genuflexão, humilhados ante uma elite cultural capaz
de formular sozinha, tomando uma base acadêmica de qualidade, a diretriz
teórica a ser seguida pela “intelectualidade marginal” – os outros somos nós. A
poesia não fica de fora, aliás, é elemento de importância vital.
Neruda traz na poesia a tradição dos payadores, poetas populares cuja
matéria prima é a emoção. Isso porque, apesar do progresso técnico e
científico, do aparato eletrônico que penetra nos confins do cérebro para
descobrir o neurônio é responsável por tal ou qual reação, chegou-se a lugar
nenhum quando a exigência era definir o ponto exato onde é fabricada a
emoção. Tudo aponta que – seguindo teorias astrofísicas similares –
localizamos, sim, o buraco negro do conhecimento do cérebro. Quem se
amarra no que faz, procura novas fontes de entendimento onde possa haver
um compromisso mais que causal, embora se sujeitando a desembocar em
outra armadilha, a da imitação da subserviência. É possível? Enfim, para nos
libertar, tentaremos.
Tentaremos descobrir o exato momento em que a poesia apartou-se do
domínio da emoção e catou rumos cada vez mais emparedados em direção ao
intelecto puro. Para os viciados em emoção e adrenalina, quando tudo foi se
tornando cerebral demais (e o coração foi eliminado como centro capital das
emoções), os movimentos poéticos se acantonaram em nova ótica. Foi
decretada a morte do romantismo e determinou-se também a mudança do
centro do espírito do coração para o cérebro. Trata-se de uma suposição, claro,
mas se verá que é fato de somenos importância na circunstância atual: à
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descoberta da morte cerebral seguiu-se a morte do coração como centro
emotivo. Por isso as poesias de T.S.Eliot e Saint-Jean Perse poderão ser lidas
a qualquer tempo, mas não as Odas de Neruda.
Talvez e admiração e ódio que começamos a sentir pela poesia latino-
americana resulte do largo isola-mento que a história nos impôs. Agora,
enfeitiçados pelo canto da sereia, devotamos tempo a uma poética que não
tem o tempero, o cheiro, o ar que respiramos. Para usar expressão antiga: não
tem nossa alma. De repente nos bateu a ansiedade de sermos hispânicos.
Não, não somos hispânicos. Não é uma simples constatação geográfica ou
histórica, é carnal, visceral, simplesmente não somos hispânicos.
Não somos parte da América Latina de fala espanhola que, para dirigir-
se a nós, o faz através da Europa. Não descendemos de conquistadores
criminosos, reais exterminadores que ensangüentaram as terras, rios e mares,
do México à Patagônia. Porque não somos dessa laia nossa poesia é diferente.
Não temos afinidades poéticas que nos tornem irmãos. Não somos herdeiros
de uma tradição pirata, de saqueadores, de Blake, Colón e outros bucaneros
que não merecem letra. Não nos orgulhamos disso, mas viemos de Portugal,
essa terra que se tornou pequena demais porque desistiu a tempo de se
transformar em conquistadores criminosos. E por extensão viemos da África,
do Oriente, da Arábia. E a poesia portuguesa – que é nossa – é também das
colônias, de Cabo Verde, dos Açores, de Angola, de Moçambique, de Macau e,
porque não, de Timor.
A distância da nossa letra e poesia é a mesma que separa nossos heróis
dos heróis latino-americanos, todos são índios, mestiços, negros. Porque os
saqueadores não deixaram pedra sobre pedra, nem a glória, nem a poesia.
Encheram os buques com o botim e se mandaram. A herança literária latino-
americana adveio da colonização de castas européias oriundas da barbárie.
Mas isso é história, não é poesia. Em poesia somos tão distantes quanto o
haicai do soneto. Não temos as mesmas rimas, a mesma história, não somos
sequer vizinhos poéticos. Se uns poucos se atiraram nos braços eloqüentes da
poesia latino-americana, foram em busca do espaço que lhe foi negado aqui
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mesmo, colonos de nós mesmos. Cabe perguntar por que não buscamos esse
espaço aonde mais o canto se aproxima do nosso? Por que não instigar a
América Central, as Antilhas, cujo sol e sal são bem mais próximos a nós?
Será que nos afasta deles o fato de não serem tão literariamente arianos
quanto nos julgamos?
A fonte de possa poesia, que pode ainda hoje ser qualificada de
romântica – e aqui romantismo tem que ser entendido como a poética voltada
para o coração –, é originária das qualidades humanitárias que herdamos do
cantar gálico, galego e germânico, temperados posteriormente com o ritmo
africano e a espiritualidade oriental. Não sofremos a influência bárbara da
poesia celta e ibérica, tampouco somos descendentes das sujeições étnicas
basca e catalã. Graças a esse detalhe natural nossa poesia não foi
compurscada por elementos pseudo-heróicos, ao contrário, cresceu e se impôs
ao mundo culto vacinada contra epopéias sangrentas.
Nosso herói vem do bumba-meu-boi, do fandango, da micareta, de
lendas indígenas, do vodu, da macumba. Então agora a poesia latino-
americana aparece agigantada. De repente começamos o lava-pés de vizinhos
que sempre nos miraram de viés, alimentando relações literárias e poéticas
com fuxicos, comadrios e futricas. O barbarismo dos países latino-americanos
ameaça nos contaminar. Os Andrades são nossos; os Bilacs são os; os
Campos são nossos. É nossa salada poética, o tempero característico, nosso
itinerário percorrido, a voz que varou fronteiras. Não vamos hoje, à luz do
Século 21, fingir de mocinho bom e bem comportado, aluno de quem tem
pouco a ensinar. Que aprendam conosco – se quiserem – a poética do
coração, do samba, do fado, do chorinho.
Algo que se pode dizer de Neruda – um tiquinho parecido com Mário de
Andrade – é que poeta como ele não existe mais. Ninguém mais adota a
poesia do coração, que parece com o evangelho: uma poética estranha e
familiar, ao mesmo tempo ingênua e amiga. Ninguém faz a poesia que significa
“amor à beleza”, essa beleza que se confunde com o bem. O que diremos da
poética do coração? A poética do coração é essencialmente a interpretação
70
contemplativa da vida. Simplificando e fazendo abstração das diferenças, pode-
se dizer que a poética do coração opõe à corrente ativa, a corrente
intelectualista e monástica, sem deixar de colocar a liberdade como
fundamento. Preconiza fundamentalmente um caminho mais curto e mais fácil
de poética, de volta ao reino interior, para empregar expressões familiares.
O método não se diz inédito, invoca toda uma tradição, menos
concernente à vida poética solitária, em favor da solidariedade. O poeta
“reconduz o espírito ao coração” e “une-o à alma”. Variante de fórmulas
clássicas atualizadas em nosso tempo, a poética do coração não é algo novo,
mas sim baseada em perspectivas anteriores. Trata-se de “guardar o coração
pelo espírito” e “reconduzir o espírito da razão para o coração”. É estranho
porque a mesma religiosidade negada à poesia atropelou a todos nós recente-
mente através das obras de pseudo-ascetas capitaneados por Paulo Coelho,
este, por sua vez, cavalo do espírito de Raul Seixas.
Pode-se reverter esse quadro? Como? Talvez imitando na poesia os
próprios pseudo-ascetas, só que diante de um computador, em conferências e
discussões, em defesa de tese, invadindo as faculdades de letras. Não vamos
como os antigos, “recomendar um lugar tranqüilo e solitário, a posição sentada
e os olhos fechados, apoiar o queixo sobre o peito e fixar o olhar no umbigo”
(apesar de que olhar o próprio umbigo abre a consciência para muita coisa
nova). Mas podemos inventar uma maneira poética de explorar o coração e as
entranhas, de modo a copiar escolas sofistas. Pôr-se em busca da energia do
coração, energia que designa essencialmente a atividade divina na alma
humana restaurada.
É essa a revolta que se propõe na poesia, sem dever subserviência ao
Eixo São Paulo-Rio, sem se escravizar fixamente em elementos técnicos que
substituem a emoção pelo intelectualismo, nem fixação de que também somos
parte integrante da América Latina. Ou isso ou tudo e tudos! Cartas para a
redação.
(Publicado em: www.recantodasletras.com.br)
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MOACYR FÉLIX, POETA SIMPLESMENTE
Vez por outra a poesia se engessa num nome fazendo sombrear a
constelação em torno. Sobrevivemos durante décadas reféns da volumosa
poesia de Carlos Drummond de Andrade em desmerecimento a outros. Agora
que o tempo cuidou de pôr em evidência seus nomes, podemos enfim nos
deslumbrar com a poesia de Moacyr Félix. É hora de sair da sombra para a
luminosidade, hora de fruir da palavra desse poeta dono de voz própria, plural,
múltipla, mais brasileira que nunca. Poeta de concessões mínimas que cuidou
de manter uma linguagem autêntica, por isso Moacyr Félix está mais próximo
de nós, sua gente.
Aproveitando o remanso dos setent’anos o poeta partiu para arrumar a
estante, tirar da gaveta vírgulas, éditos, inéditos, esquecidos, aquecidos, mexer
nos baús, para ousar um testamento prematuro. Introdução a Escombros é de
1998, mas está em dia. É de sorrir-se reparar que o poeta envelheceu, mas
não envileceu, continua “portador do poema social jamais previsto nos
comícios: o poema social-vertical, ao mesmo tempo transcendente e
transparente”, como introduz Eduardo Portela. E como diz o próprio Moacyr
Félix em Sim e não:
Sim, acho que envelhecer é isto: saber-me mais e mais
os ossos, os nervos, as memórias, os súbitos vazios e a tristeza
arquitetados pelo tempo em mim e a me moverem
como escurescentes eixos deste pensar-sentir em que
a cada instante giro-me tantalicamente em quedas e ascensões
ora mui velozes ora mui lentas e que assim vão fazendo-me
vida, minha vida
nunca resignada em subidas e descidas nestes círculos
que sei cada vez mais serem em meu ser a definitiva obra
cada vez mais em mim desviventes e próximas e definidas
vésperas de túmulo, meu túmulo.
Não, não quero que envelhecer seja isto; e por isso continuarei
72
a escrever um pouco mais do meu ser neste papel em branco
a favor do que é o Amor e contra o capitalismo que é
o que foi ou está sendo desvivido em mim e em todos.
E depois vou procurar um amigo e tomar com ele uma cerveja
clara e, portanto, vivamente oposta ao escuro silêncio em que
em cinzas se desfaz o futuro nenhum dos que morreram.
Moacyr Félix fez o que qualquer coroa faz: mexeu no baú em busca dos
cobertos pela poeira, dos esquecidos do passado, dos guardados pelos
temporais, daí não pôde fugir da cobrança da arte: a recriação. Não fugiu, ao
contrário, entregou-se ao melhor da poesia e do poeta que é o recriar,
recriando-se a si mesmo e aos outros. Despertou algum poema dormido,
revigorou temas tirados da letargia, para a qual não nasceram, antes, muitos
foram parar ali pela força, pela violência, pela intolerância. Renasceram como
bebês de proveta para uma nova vida. Quem lucra? Quem lê.
O papel que a poesia impôs a Moacyr Félix foi o de vilão da poesia
brasileira. Pagou o pato pelos que fugiram, pelos que se acomodaram sob
láureas falsas ou não, pagou o pato pelos que aderiram, pelos que
emudeceram e outros... Agora pensa que choraminga? Não! Diz de novo tudo
o que teria dito e não dito, isto sem abusar das falsas impunidades, pois a
maior delas o tempo vende como mercadoria para depois cobrar como agiota.
Então, o que sempre poetou, é a pura verdade:
Quando vier, ó carreirista
da política e das letras,
com a sua teoriazinha na mão
– como se fosse um buquê
para enfeitar sua vida
no jornal ou na TV –
saiba disto:
atrás de vo
empurrando você
causando você
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afirmando você
transcendendo você
existe a fábrica
– e seu chão
ligado ao motor das almas
que compõem uma nação
existe a palavra
– com seu âmago alado
há mais de 800.000 anos
e de onde não some
a antiqüíssima história
do trabalho e do homem,
existe a desalienação
– sobretudo a se operar
na linguagem lenta das verdades
que a cada um religa tudo.
Ora, visto o que está escrito, recomponho-me: não é verdade é que
Introdução seja um testamento, não, me enganei. Talvez seja um relatório de
feitos e ocorridos que – sem dizer eunãodisse? – apascenta-lhe a alma. Dentre
todos os efeitos, tem um que sobressai: trazer o poeta bem vívido para pertinho
de nós, ele está bem aqui, conversando com a gente, batendo um papo
descontraído, bebendo uma cerveja clara, a bordo do palanque de uma cadeira
de vime.
Introdução a Escombros é livro para ficar na gaveta ao lado, em
consumo lento e permanente, livro que dá certeza e garantia de nos manter
imunizados para novas sombras.
(Publicado em: http://spaces.msn.com/xadrezeliteratura/)
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(RE) CONHECER VITO PENTAGNA
Para apresentar este poeta, de luz fúlvida e fátua, vou gastar pouca
saliva, mesmo porque dele se sabe pouco, que teve vida breve (Piracicaba,
1914-Valença 1958), que além de poeta era diplomado em Direito e que dele
se conhecem apenas dois livros: Três momentos de poesia, saído em 1939
(com Augusto de Almeida Fº e Amiar Fares) e Poemas, reunião dos últimos
escritos promovida pelos amigos e familiares em 1978. Sem delongas repasso
a palavra de três notáveis admiradores da breve, mas lúcida poesia de Vito
Pentagna. Da lavra já não se pode dizer o mesmo: os poemas denotam um
profundo entendimento da condição humana, ressaltam as sensibilidades do
cotidiano e revelam o altruísmo de que era possuidor. Nada é em vão. Leiam o
que dizem Lúcio Cardoso, Maria Alice Barroso e Rosa Chacel, leiam esta
pequena antologia, excertos de seu último livro e digam sim, é tudo verdade...
Lúcio Cardoso anotou em seu “Diário completo”:
"3/jun/54: Vito Pentagna lê alguns de seus poemas, que me
parecem excelentes. Todos eles misteriosamente entrelaçados, com
certa pompa de expressão ligeiramente fora da moda, e que traduzem
tão bem sua curiosa personalidade, aliás, das mais autênticas, das mais
‘vivas’ que tenho encontrado ultimamente. Tudo que o cerca, móveis,
cortinas, livros e objetos de adorno, lembra esse gosto um pouco
rebuscado e fora de uso que exprime o mundo secreto de um homem
realmente sensível – e revelam o artista até seus menores detalhes. Não
creio que seja estritamente um poeta, mas um romancista também. A
qualidade de sua inteligência, seu Dom de analisar e compreender,
fazem suspeitar a presença de um criador de tipos, amadurecido e
grave, que ainda não ousou encetar a grande tarefa que provavelmente
o espera.”
O depoimento de Maria Alice Barroso, Em busca de Vito, é comovente:
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“Não foi só através do inesquecível livro de Maria Helena Cardoso
Por onde andou um coração, que ouvi falar em Vito Pentagna: ela
própria, antes de me dar uma cópia do original para eu ler, já tinha me
falado desse amigo, que deixara em sua vida a marca das grandes
amizades. (...) O conhecimento de Vito me levou a Valença, a querer
conhecer Léa, sua única irmã e a perscrutar a casa dos Pentagna, na
tentativa de descobrir em cada objeto – principalmente em seu escritório,
que permanece com a mesma disposição com que ele o deixou – o
toque de sua mão de dedos longos e alvos. (...) Eu li estes poemas no
silêncio largo de sua casa em repouso – e ao mesmo tempo em que me
sentia privilegiada por travar conhecimento com um artista que
conseguia dizer, em sua poesia, aquilo que eu ainda não consegui
exprimir em prosa, já começava lamentar que tantos – quase todos! –
não conhecesse estas páginas, cuja inarredável destinação é o leitor.”
Rosa Chacel escreveu Vito en mi recuerdo especialmente para o livro:
“Salen, por fin, a la luz estos versos que durmieron casi veinte
años... No, no es esto: no puede decir que salen a la luz porque no se
someten a ella. Su sombra, invulnerable, irrumpe con brillo de azabache,
por entre la claridad que la acata... Veinte años, es cierto, pero tampoco
puedo decir que durmieron porque estos versos son el clamor del
insomnio. Clamor, no lamento, pues no hay en ellos quejido lastimero:
son como la voz de la campana, que vibra con toda su materia herida y
da la nota justa, dobla con la medida correspondiente al mazo que la
golpea... Justeza, reflexión especulativa en el espejo negro del insomnio,
tan opuesto al color de la vigilia, pero no menos riguroso... (...) ahora,
aquí, en este caso, antes estos versos no es un empeño de análisis
crítico lo que me acucia, es el conocimiento de su origen, el haberlos
visto brotar en su fuente cuando, antes de ser versos, palabras rimadas,
pulidas y tendidas sobre un papel, eran sonrisas o miradas brotando del
hontanar humano: eran chispas del pedernal de la mente, duras,
brillantes, súbitas ideas... No pretendo explicar nada: los poemas están
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ahí – una presencia íntegra, para el que sepa leer. Misterio de la
persona.”
Por isso, por tudo isso, vale a pena conhecer a poesia de Vito Pentagna:
OS NOTURNOS
(II)
Fiquei só ao relento por um céu de extermínio,
entre nuvens esparsas, sob astros impacientes.
As palavras soavam de uma urgência remota,
estes frutos distantes, estes frutos tão próximos.
Quantas árvores altas quando soa o abandono,
quanta voz sem garganta, quando eco sem muro.
um ladrar já sem cão, numa estrada poeirenta.
Tanta luz de fantasma enche o espaço noturno,
tanta luz que se move sinalando o perigo.
O que arde não sei, assim só, ao relento.
O que arde, o que punge, o que fere, o que mata.
Eu só sei que estou só, e esta noite me guarda
não sei mais que promessa, não sei bem que ameaça.
Que importa um peito a arfar descompassado,
um coração que insiste,
que pulsa, ruminante, inquieto,
desejos, e tormentos, e ânsias vãs?
Um puro estar, inerte, bloqueado
sob a pendente ameaça deste gume
na infinita abóbada do vazio.
(III)
Medidas de contemplação, – Aurora –
Ocaso. Duplos pesos paralelos.
Cinco portas do corpo, cinco chagas,
habitantes do túnel, testemunhas,
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de um crepúsculo a outro partilhando
incessantes pupilas – as estrelas.
Sem pálpebras, sem pálpebras nem venda,
sem pestanas – subsidiárias da noite
complementos, de uma total e plena
conseqüência...
Oh! – Trescalo,
as narinas na sombra te recolhem,
e um sabor nunca provado experimentam.
Mãos que não tocaram e já possuem
vozes bem anteriores à garganta.
Todos os sentidos estão despertos.
OUTRO MOMENTO
Mergulho os olhos no céu de maio,
e penso que breve será noite em tudo.
Não essa noite coletiva e fácil,
em cada alma se contempla e busca
– porém a outra, individual e trágica,
a grande noite sem reconhecimento.
Não sei porque tanta emoção me alcança!
Um corpo só já é tão desolado
que mais não pode outro estar sozinho,
mesmo que as trevas se refaçam plenas
no mais profundo de uma noite, opaca.
OS AFLUENTES
Todos os rios desembocam na noite.
Mar antiqüíssimo, ela os recolhe todos,
em promíscuo albergue sem privilégios.
Um murmúrio único soma silêncio e queixa,
misturando antídotos sem indagar origens.
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Em solidão bem íntima desabrocha o arroio,
ignora horizontes e sóis, e ventos;
em solo ou entranha, abre caminho e passa,
não importa que águas, que céus bebeu,
quantas estrelas conduziu, flutuantes,
em torno a que árvores campeou sua angústia.
Boca sem pressa ela tritura tudo
em confusa lama – substância e abismo.
É como se um desejo o conduzisse cego,
e a própria fonte já aspirasse à queda,
ao sombrio lagar onde o cansaço e o medo
fermentam um mosto, indiferente, anônimo.
SONETO NÚMERO DOIS
Desde o balcão suspenso sobre o mar,
desde esta alta varanda sobre a vida,
tão alta e solitária, tão perdida
que nenhum eco traz o resfolgar
de peito igual e humano ao peito ímpar.
Contemplo a luz que teima já vencida,
no sangue de sua última ferida,
um doloroso e lento retardar.
Esta tarde não é primeira tarde,
encontro derradeiro, despedida,
desfalecendo à morta soledade.
No entanto, que aderência descabida,
uma carne tão frágil, tão covarde,
que mercadeja o transe da partida!
(Publicado em: http://spaces.msn.com/xadrezeliteratura/)
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O POETA JOAQUIM ITAPARY
Poeta, cronista, ensaísta. Político, advogado, formado pela CEPAL
(ONU), desde moço se envolveu com os problemas culturais da sua terra.
Membro do Movimento Nacionalista Acadêmico, Líder universitário. Diretor do
“Jornal do Povo”, sob a direção de Neiva Moreira, diretor de “O Combate”,
“Diário da Manhã” e “O Estado do Maranhão”. Fundou a revista “Legenda”, com
Bernardo Almeida, Reginaldo Teles, Ubiratã Teixeira, Yêdo Saldanha, Antônio
Almeida e outros. Conduziu o programa de revificação das artes populares
através da SUDEMA, responsável pela reedição da bibliografia básica sobre o
Maranhão. Joaquim Itapary foi Secretário-Geral do Ministério da Cultura e
elaborou o projeto que resultou na Lei Sarney de incentivo à cultura, sob a
orientação do Ministro Celso Furtado. Chefiou a delegação brasileira no Comitê
Interamericano de Educação, Ciência e Cultura na OEA (Washington). Membro
da Academia Maranhense de Letras. Livros: “Do Incerto Ócio” –1989 (Poesia);
“História da Fábrica Rio Anil” (História); “Crônicas”(2004)
A qualidade literária de Joaquim Itapary repousa na história. Por isso é
poeta, mas antes de tudo um historiador do cotidiano – um cronista. Não
fossem os cronistas e a história estaria caminhando por didatismos estáticos e
estanques. Nada seria acrescentado às narrativas informativas, ao peso de
concreto que são os fatos estigmatizados pelas datas e pelas ações pura e
simplesmente. Sem a crônica, a história perderia o lado humano.
Agora neste ano de 2006 o escritor assume a presidência da Academia
Maranhense de Letras, fato comemorado como a mais justa das honrarias. O
que vale dizer que Joaquim Itapary atinge a terceira idade literária em plena
mocidade. Entre suas atuações de caráter acadêmico, é de se esperar que
comece também a consolidar o acervo que constitui a sua obra, legado que
deixa para que estudantes e estudiosos tenham aonde se debruçar em busca
da história da província do Maranhão e de uma ilha chama Upaon Açu.
Vale a pena ler alguns poemas do seu livro “Do incerto ócio”:
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FRUSTRAÇÃO
Com macia seda e tecido nobre
teci meus sonhos vendo o infinito
mas outras mãos vestiram-me do cobre
de cacos de luas e ruinoso grito.
O outro que me quis olho na vigia
dos porões de naus que não navego
metamorfose me incompleto todo dia
e à diversa geometria me entrego.
Pesa-me o processo mudo na carteira
o parecer concebido sem proveito
letal rotina que pela vida inteira
mata o espírito e massacra o peito.
Desato o nó górdio e no cabide ponho
inútil gravata algoz do meu pescoço
porém a vida que perdi e sonho
é tenaz quimera do meu tempo moço.
VERDE PAZ
O dia sobre o tempo sobe
e verde invade meus olhos;
planta profundas raízes
nas entranhas do meu ser
nutrindo-me de paz e clorofila.
HOLOCAUSTO
Homens na terra no céu máquinas
estralam o estrepitoso orbe
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rosas fumorosas desabrocham
fragorosamente rubras infragrantes.
Rápidos raios soldam o horizonte
em sólidas linhas ao orco escarlate
e assoma rubra à abrasada litosfera
a massa mineral de magma ebulido.
Esvai-se a vida verde e breve
em voraz ciclone de ar quente
por imenso esôfago de amargura.
Caminho humano de viscoso piso
findo fervente em cáustico cadinho
fornalha da orbívaga aventura.
CONTRIÇÃO
Eu pecador contrito me confesso
de joelhos sobre lisas cantarias
bato no peito e pecados meço
cometidos em ti noites e dias.
Cubro a cabeça e em solenidade
busco o perdão de ruas e janelas
lavo o espírito nas fontes da cidade
virgem de cal azeite e pedras belas.
VIDA
Onde está a densa tristeza
que tanto em mim demorava,
ígneo punhal do peito dentro,
qual noite de negro ônix?
82
Levou-a da madrugada a chuva,
tornou-a orvalho nos rebentos verdes,
pérolas de prata na bruma da manhã,
colorindo flores no jardim do dia.
Lavar-me nesse orvalho devo agora,
banhar meu rosto nas gotas do relvado,
plantar mil árvores para proteger-me
do duro sol da humana iniqüidade.
Ao fim do dia a casa regressar,
Íntegro, integralmente alegre,
do despropósito da tristeza certo,
que apesar da vida a vida vale
e vale mais que o pesar da vida.
(Publicado em:
http://spaces.msn.com/xadrezeliteratura/)
83
BACELAR VIANA: A POESIA DA URBE
Alfredo Luiz BACELAR VIANA, nasceu em São Luís do Maranhão, terra
de poetas, no dia 23 de dezembro de 1938, falecendo na mesma cidade em
1982. Ingressou na Faculdade de Medicina em 1960, fez curso de psiquiatria
no Rio de Janeiro, tornando-se professor de psicopatologia e clínica
psiquiátrica. Durante muito tempo foi presidente da Associação Maranhense de
Psiquiatria. Além de poeta era ensaísta e cronista. Tornou-se membro da
Academia Maranhense de Letras, mantendo a tradição familiar, pois era filho
do também Acadêmico Fernando Viana. Publicou os livros Elegia da rosa
(poesia) e Três evocações (ensaios), além de colaborar em jornais e revistas.
Dele disse João Mohana, na crônica “O poeta que voltou da morte”:
“Existe um sentido profundo nas obras póstumas. É que na
verdade são obras feitas em vida, apenas publicadas post mortem. No
caso de Clamor de São Luís, encontramos os poemas da última etapa
vivida na terrena peregrinação de Bacelar Viana. Representam, portanto,
o grau mais avançado da evolução literária a que chegou o poeta de
Aula da Saudade.
Bacelar Viana não é um poeta hermético, à semelhança do Nauro
Machado de Testamento provincial ou da Adalgisa Nery de Mundos
oscilantes. Bacelar Viana é transparente como as fontes de seu cantar.
Porque para ele estrela é estrela, pedra é pedra, amor é amor. Claro que
o tema São Luís não podia faltar em poeta que assumiu
conscientemente sua condição de maranhense.
Ao lado de Dagmar Desterro, de José Chagas, de Bandeira
Tribuzi, de Carlos Cunha, de Nauro Machado, de Evandro e Ivan
Sarney, de Odylo Costa, de Luís Augusto Cassas, Bacelar Viana integra
a plêiade dos cantores desta urbe feiticeira. Contudo, em Bacelar Viana
a formação do médico direciona o paladar do poeta. É que ele não abre
os olhos nem estende os braços para as sacadas e telhados e azulejos
e mirantes da cidade (en) cantada.
Em Bacelar Viana o humanista contempla, impotente, o desamor
destrutivo de uma miragem, e com isto submerge na nostalgia de
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estrofes que não cantam a arquitetura, porque a força antropológica lhe
parece mais vibrante. Mais do que os sobrados, quem neles vive e
morre torna-se a inspiração para “Clamor de São Luís”. Sem dúvida
Bacelar Viana inscreve-se entre os poetas maranhenses que mais
dramaticamente enxergaram e denunciaram todas as frentes de miséria
nesta cidade tão cantada por tantos."
Pouca coisa há a acrescentar nesse texto do insigne escritor e padre
maranhense que foi João Mohana. Apenas o fato de que Bacelar Viana
representava um tipo de poeta cujas raízes estão arraigadas na sua cidade
natural – tipo em extinção engolido pela metrópole sem identidade que não
consegue sequer dar certidão de nascimento a seus próprios filhos. Capaz,
portanto de escrever uma poesia comprometida com a estrutura física e social
da cidade em que nasceu, perseguido os mesmos becos e vielas podres que o
acompanharam como sombras.
Ao escrever poesia, Bacelar Viana não larga de lado os bichos e as
pessoas, os males e as sandices, os defeitos e as porcarias, tudo que sua
visão de humanista preparava para desconstruir, tratando a realidade e a
utopia num mesmo plano emocional, conquanto não fosse defeito. É de se
perguntar quando os poetas trocaram a camisa que veste o cotidiano, por mais
tristeza que a poesia não possa conter, optando por uma estética que beira o
universal, mas que não reflete a sua vila?
Ler Bacelar Viana é acender o alerta sobre a necessidade que a poesia
tem de não deixar de refletir também a dor e a alegria locais, por mais
rastaqüera que isto seja...
Como no poema
CLAMOR DE SÃO LUÍS
Não que não a ame, não, não, não e não...
Amo-a, sim, com a alma trespassada
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De muitas dores e muitos desencantos.
Revolta-me pressenti-la estertorosa,
Envelhecendo qual velha prostituta
Na sombra gordurosa dos bordéis.
Amo demais esta cidade velha
Que se desfaz de muitas de suas graças
Para acompanhar os passos lestos
Do Tempo deletério e molestoso.
Vejo-a perder o encanto de suas faces,
A fagueirice risonha de seus gestos
Que ora se perdem nos sórdidos ruídos
Que escapam dos intestinos podres
E dos ventres rotundos, saciados
Do consumo voraz e antropofágico,
Cujos dejetos correm pressurosos
Para adubar a miséria periférica
Que circunda a cidade, quais correntes,
Agrilhoando a alma primitiva
Da gente genuína e inconspurcável.
Olho-a desfigurada, agônica e inquieta,
Sem tempo pra vagares cismarentos,
Envolvida no vórtice da Máquina
Que a quer trepidante e produtiva,
Gerando rosto sem nome e sem passado,
Mãos afanosas que obedecem a cérebros
Manipulados pela Nova Ordem
Cujo lábaro de fogo é o Rei Dinheiro
Que se encastela nos bolsos infindáveis
Da infinitésima parcela dos barões.
Pressinto-a muda e desfigurada,
Sem sinos jubilosos, sem girândolas,
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Tecnicalizada, cibernética,
Triste, triste, cada vez mais triste,
Sem poder beber a água do Anil,
Sem poder tomar banho no Bacanga,
Sem poder morder a polpa sumarenta
Das mangas, sapotis e dos cajus.
São Luís, São Luís, o que fizeram de ti?
Os ventos mornos do Atlântico
Não passam mais por aqui,
Não trazem o beijo e o abraço
Do africano sedento
Cujo canto morno e lento
Embalou o sonolento
Verão tupi-guarani.
As aves pancoloridas
Não mais povoam as ribeiras,
Seus trinos já se perderam
No rumor das avenidas,
São vidas, são muitas vidas
Que não vivem mais aqui.
Onde estão as procissões,
O som macho dos rojões,
As festas embandeiradas,
As grandes saias rendadas,
Verdes, azuis, encarnadas,
Vestindo moças brejeiras
Sapecas, namoradeiras,
Escondidas nas varandas,
Cumprindo alegres cirandas
Ao bom compasso das bandas
Do coreto da Matriz?
- Onde é que estás, São Luís?
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Onde está o povo bravo,
Heróico no desagravo
Da afronta e do desrespeito?
Onde está o nosso irmão
Que herdou do Bequimão
A coragem e o destemor,
Que levantava a sua voz,
Que enfrentava o poder,
Que pagava com seu sangue
O direito de dizer?
O que é que teu povo diz
Nestes dias, São Luís?
Mui heróica e leal cidade santa,
Estás desfigurada e diferente.
És uma contrafação estranha e dolorosa
Da outrora mimosa capital.
Corre em tuas veias sangue novo
E os germes do progresso a todo custo.
Copias com desfaçatez incrível
Os modismos danosos de outros povos
E não te deitas mais à sombra plácida
Das palmeiras impávidas e indomáveis.
São Luís, São Luís, faze um confiteor, Princesa,
Pára um pouco pra pensar.
Não te enredes na trama
Dos que te querem mudar.
Mantém tua alma intocada
Não te deixes conspurcar.
Tens de crescer para todos,
Não te deixes enganar.
Querem transformar tua beleza
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Em algo mecânico e deformado,
Engordam os teus núcleos de miséria
E drenam do teu sangue envenenado
Os sórdidos valores alienados
Que se transferem para as bolsas gordas
De insensibilíssimas figuras
Que cospem e escarram nos teus monumentos.
São Luís, São Luís, cidade amada,
Solarenta pousada à beira-mar,
É com a alma triste e dilacerada
Que entôo esta canção pra te acordar.
Acorda desse horrível pesadelo
Em que te querem pra sempre acorrentar,
Arranca de teu peito o escalpelo
Que pretende tua alma dissecar,
Revolta-te, enfurece-te, ouve o apelo
Dos teus filhos que querem te salvar.
(Publicado em: http://spaces.msn.com/xadrezeliteratura/)
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O autor
Quem sou eu? Meu nome é Salomão Rovedo (1942), tenho formação cultural em São Luis
(MA), resido no Rio de Janeiro. Sou escritor e participei de vários movimentos poéticos nas
décadas 60/70/80, tempos do mimeógrafo, das bancas na Cinelândia, das manifestações em
teatros, bares, praias e espaços públicos.
Tenho textos publicados em: Abertura Poética (Antologia), Walmir Ayala/César de Araújo-CS,
Rio de Janeiro, 1975; Tributo (Poesia)-Ed. do Autor, Rio de Janeiro, 1980; 12 Poetas
Alternativos (Antologia), Leila Míccolis/Tanussi Cardoso-Trotte, Rio de Janeiro, 1981; Chuva
Fina (Antologia), org. Leilaccolis/Tanussi Cardoso-Trotte, Rio de Janeiro, 1982; Folguedos
(Poesia/Folclore), c/Xilogravuras de Marcelo Soares-Ed.dos AA, Rio de Janeiro, 1983; Erótica
(Poesia), c/Xilogravuras de Marcelo Soares-Ed. dos AA, Rio de Janeiro, 1984; Livro das Sete
Canções (Poesia)-Ed. do Autor, Rio de Janeiro, 1987.
Inéditos que estou tentando publicar em e-books: Liriana (Contos), O Breve Reinado das
Donzelas (Contos), Estrela Ambulante (Contos), O Pacto dos Meninos da Rua Bela (Contos),
Ventre das Águas (Romance), Poesia de Cordel - O Poeta é Sua Essência (Ensaios), O
Cometa de Halley e Outros Ensaios (Artigos Publicados em Jornais), (Poesia): Pobres
Cantares, 20 Poemas Pornôs e 1 Canção Ejaculada, Glosas Escabrosas (Xilogravura de
Marcelo Soares), Blues Azuis & Boleros Imperfeitos, Ventre das Águas, Amaricanto, Viola
Baudelaireana e Outras Violas, Templo das Afrodites, Amor a São Luís e Ódio, Anjos Pornôs,
Macunaíma (Em Cordel).
Outras coisinhas que fiz: publiquei folhetos de cordel com o pseudo de Sá de João Pessoa;
editei o jornalzinho de poesia Poe/r/ta; colaborei esparsamente em: Poema Convidado(USA),
La Bicicleta (Chile), Poética (Uruguai), Alén (Espanha), Jaque (Espanha), Ajedrez 2000
(Espanha), O Imparcial(MA), Jornal do Dia(MA), Jornal do Povo(MA), A Toca do (Meu) Poeta
(PB), Jornal de Debates(RJ), Opinião(RJ), O Galo(RN), Jornal do País(RJ), DO Leitura(SP),
Diário de Corumbá(MS) – e outras ovelhas desgarradas, principalmente pela Internet.
Tenho também e-books disponíveis gratuitamente no site:
www.dominiopublico.gov.br
Endereço: Rua Basílio de Brito, 28/605-Cachambi-20785-000-Rio de Janeiro Rio de Janeiro
Brasil - Tel: +55 21 2201-2604
Foto: Priscila Rovedo – Imagem da capa:
http://www.quijote.tv/
Este trabalho está licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-
Compartilhamento pela mesma licença 2.5 Brazil. Para ver uma cópia desta licença, visite:
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559 Nathan Abbott Way, Stanford, California 94305, USA. Obs: Após a morte do autor os
direitos autorais devem retornar para sua filha Priscila Lima Rovedo.
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