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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE GEOGRAFIA
NA PROCURA DO LUGAR O ENCONTRO DA
IDENTIDADE
Um estudo do Processo de Ocupação de Terras: Osasco
ARLETE MOYSÉS RODRIGUES
TESE DE DOUTORAMENTO
APRESENTADA À FACULDADE
DE FILOSOFIA, LETRAS E
CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE
GEOGRAFIA DA UNIVERSIDADE
DE SÃO PAULO
ORIENTADOR:
Prof. Dr. Manuel F. Gonçalves Seabra
São Paulo
1988
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Ao Eder Sader,
Grande companheiro e amigo, contaminado
pelo sangue impuro desta sociedade que
tanto lucrou para ver transformada,
assassinado pela incúria do governo brasileiro.
À Maria Regina de Toledo Sader,
Pela sua força e coragem em enfrentar a vida.
Aos integrantes do Movimento Terra e Moradia de Osasco.
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APRESENTO/DEDICO/AGRADEÇO
Este é um texto que exprime parcialmente, a história de muitos. Escrito no espaço
por esses muitos, acabou ficando apenas com a minha assinatura.
Na verdade, esta pesquisa foi possível porque, infelizmente, uma grande parte
dos trabalhadores brasileiros vive em situação de extrema penúria. Seria preferível não ter
esse laboratório para trabalhar dissertações e teses acadêmicas. Mas a realidade está e,
assim, é preciso tentar desvendá-la e mostrar que os trabalhadores produzem um espaço ao
produzirem sua condição de existência. É preciso, também, desmistificar o mito da apatia
do povo brasileiro.
Dedico este texto ao mesmo tempo em que agradeço:
Ao Vanderlei companheiro de muitas jornadas. Está presente em todas as linhas deste
trabalho, porque está no meu caminhar de vida e de luta. Sem paixão não dá para viver.
À Tarsila pela sua meiguice e carinho e por dizer: “Não se preocupe, o que não der
tempo, a gente continua.” (27/6/87, logo após a ocupação do Jardim Conceição).
Ao Diogo – pelo seu jeito maroto e levado e pela sua vontade de ir à “terra” para
compreender o que eu fazia e poder também participar.
Aos integrantes do “Movimento Terra e Moradia de Osasco” Esta Terra é Nossa; Vila da
Conquista e Jardim Conceição 2. Não pra dizer o nome, pois são mil famílias. Estão
todos aqui, são companheiros de luta (como dizia o Oficial de Justiça: “Aqui todos se
chamam companheiros?”). Aqui todos têm nome, não vou citá-los. Obrigado pela sua
luta, pois foi ela que possibilitou esse trabalho.
Aos companheiros do Grupo de Apoio e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de
Osasco – para a lista não ficar enorme, sintam-se, por favor, citados.
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Aos companheiros do Grupo de Habitação do Partido dos Trabalhadores e da Articulação
Nacional do Solo Urbano, com os quais aprendi a tentar unir a teoria e a prática da
pesquisa.
Aos companheiros da Associação dos Geógrafos Brasileiros que confiaram em mim para
representá-los no Movimento Nacional pela Reforma Urbana.
Aos companheiros de trabalho da Unicamp IFCH –, em especial àqueles que batalharam
junto comigo pela ampliação do quadro de professores de geografia para que eu pudesse
dar conta de todas as minhas tarefas e aos que partilharam das inúmeras idas e vindas no
trajeto São Paulo-Campinas, onde nem sempre fui companhia agradável.
Ao Nelsinho e Kozo pela sua presença nas áreas de pesquisa, filmando, conversando e
discutindo a proposta de trabalho. Agradeço a possibilidade de elaborar o vídeo que conta
não só história do movimento, mas a constituição de um grupo de trabalho, no qual, desde o
início, participou o Bernardo. Nelsinho elaborou também os cartogramas deste trabalho.
À Lea Goldenstein e Rosa Ester Rossini – pelas contribuições valiosas no exame de
qualificação.
À Comissão de Pós-Graduação do Departamento de Geografia que julgou procedente meu
plano de pesquisa e concedeu-me uma bolsa da CAPES.
A lista ainda é muito grande:
Aos companheiros e amigos da AGB – São Paulo e da AGB Nacional. Aos da Pós-
Graduação; ao Lúcio Kowarick, que na sua proposta de curso permitiu um raro momento
de encontro, de uma reflexão, entre os que estavam preocupados com os movimentos
sociais urbanos: Eder Sader, Maria Salete Machado, Célia Sakurai, que também participou
da pesquisa nas favelas, pois mesmo após o término do curso, continuamos a nos encontrar
5
e a tentar achar um caminho de trabalho que possibilitasse a melhor compreensão da
realidade.
Ao Rubens P. dos Santos, pela revisão da redação, à Gisele (em especial pelo desenho da
capa), ao Maurício (pela elaboração dos croquis), à Mônica (que tentou discutir a minha
visão romântica), à Regina Bega, Ariovaldo, Ana Maria Marangoni (em especial pela
leitura atenta dos manuscritos datilografados), Palheta, Vera Silva Teles, Ana Maria
Neimeyer, Edmundo Fernandes Dias, Suely Koffes, ... e ... Sou grata a todos vocês.
Ao Manoel Seabra, presença importante em todos os momentos de elaboração deste
trabalho. Um exemplo de vida a ser seguido. Sua presença traz sempre a tranqüilidade,
instigante de, a cada passo, refletir sobre a realidade e do caminho não estar sendo trilhado
no escuro. Agradecer ao orientador desta tese é pouco, é preciso agradecer à sua presença.
Obrigada por ter aceito orientar-me e por ser meu amigo.
Os erros deste trabalho devem ser tributados à minha incapacidade de analisar
corretamente a realidade.
oOo
Este livro foi digitado, digitalizado e formatado por Frederico Bertolotti, geógrafo,
mestrando em Geografia Humana na USP e Cátia Alves de Senne, historiadora,
especialização em organização de arquivos no IEB em setembro de 2007.
O presente livro é licenciado por meio de uma licença Creative Comonns Atribuição – Não
Comercial- Compartilhar Igual, versão 2.5, disponível em
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/2,5/deed.pt. Em função da citada licença os
artigos que compõe a obra poderão ser copiados, reproduzidos integral ou parcialmente
podendo ser, inclusive, traduzidos desde que sempre seja reconhecido o direito de
atribuição e referência aos nomes dos autores e desta obra, nos termos da licença.
O arquivo do livro pode ser obtido diretamente com a autora pelo endereço eletrônico :
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NA PROCURA DO LUGAR: O ENCONTRO DA IDENTIDADE
Um estudo do Processo de Ocupação Coletiva da Terra: Osasco
I – INTRODUÇÃO
1. Apresentação do Trabalho.........................................................................................10
1.1. O ponto de partida....................................................................................................10
1.2. O encaminhamento da pesquisa...............................................................................13
1.3. A mudança de percurso no percurso........................................................................15
2. Os eixos principais do trabalho.................................................................................19
3. O encaminhamento da pesquisa................................................................................21
3.1. A pesquisa nos jornais..............................................................................................21
3.2. O processo cotidiano de apropriação do espaço......................................................23
3.3. A pesquisa militante................................................................................................25
II UMA REFLEXAO SOBRE A METRÓPOLE PAULISTA E PROPRIEDADE DA
TERRA URBANA NO BRASIL
1. São Paulo: Cidade Capitalista Alguns aspectos da concentração espacial da
riqueza e pobreza.......................................................................................................31
2. A apropriação do espaço urbano para moradia.........................................................48
2.1. Valor de uso/valor de troca: a mercadoria terra urbana e suas especificações........53
2.2. A constituição da propriedade da terra no Brasil.....................................................62
2.3. A terra urbana – mercadoria “sui generis” e/ou assemelhada ao capital.................67
2.4. A renda da terra – absolutamente diferencial...........................................................78
2.5. A produção da Cidade – individual e social.............................................................85
2.6. Os meios de consumo coletivos...............................................................................93
III – OS DISCURSOS SOBRE O ACESSO À TERRA E MORADIA NA CIDADE
7
1. Alguns aspectos das falas sobre as cidades.............................................................104
2. As falas e as práticas sobre os favelados e os ocupantes: os personagens e as
imagens (dos favelados e dos ocupantes)................................................................112
3. As alterações nas falas e nas práticas sobre os favelados e os ocupantes: os mesmos
personagens e as novas imagens.............................................................................130
3.1. Os partidos políticos nos movimentos...................................................................146
3.2. As alterações na fala: igreja...................................................................................159
3.3. As várias ênfases dos moradores citadinos............................................................170
3.4. O processo de resistência as falas e as práticas dos ocupantes – a constituição dos
novos sujeitos.........................................................................................................179
3.5. O Congresso Constituinte e a Reforma Urbana.....................................................189
3.6. As permanências nas falas e nas práticas...............................................................199
IV O COTIDIANO DOS PROCESSOS DE OCUPAÇÃO DE TERRAS: MOVIMENTO
TERRA E MORADIA – OSASCO
1. Justificativa.............................................................................................................202
2. “Esta Terra é Nossa” – Histórico do Movimento....................................................204
2.1. Início......................................................................................................................204
2.2. Ampliação do movimento......................................................................................209
2.3. A descoberta do “movimento” – organização........................................................213
2.4. A ocupação.............................................................................................................216
2.5. A reintegração da posse.........................................................................................219
2.6. A conquista da terra...............................................................................................222
2.7. Vizinhança..............................................................................................................224
2.8. Os partidos políticos...............................................................................................227
2.9. A relação com o poder municipal..........................................................................229
2.10. A continuidade do Movimento “Esta Terra é Nossa”.................................232
3. Incorporação de Novos Interessados – Grupo 2.....................................................236
3.1. Jardim Conceição...................................................................................................236
3.2. A procura do lugar.................................................................................................238
8
3.3. A ocupação da Gleba Jardim Conceição................................................................240
3.4. A vizinhança...........................................................................................................242
3.5. Os ocupantes: um pouco de cotidiano....................................................................244
3.6. Jardim Conceição: Vila da Conquista – a relação do movimento com o poder
público....................................................................................................................247
3.7. Vila da Conquista continua sua luta.......................................................................253
4. A contínua procura do lugar para morar.................................................................258
4.1. A procura do novo lugar........................................................................................260
4.2. A nova ocupação....................................................................................................261
4.3. A luta pela permanência do grupo 3 no Jardim Veloso – área particular..............264
4.4. A presença partidária no despejo...........................................................................267
4.5. A continuidade da luta...........................................................................................268
4.6. A liminar de reintegração da posse........................................................................271
4.7. A resistência no despejo.........................................................................................274
4.8. A continuidade do movimento...............................................................................277
4.9. É preciso que tudo mude (na aparência) para que tudo fique como está (na
essência).................................................................................................................280
5. O encontro da identidade........................................................................................282
5.1. O vídeo do movimento no movimento...................................................................284
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................287
APÊNDICE – Fotos............................................................................................................284
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................303
ANEXOS
9
INTRODUÇÃO
10
1. APRESENTAÇÃO DO TRABALHO
1.1. O ponto de partida
Este trabalho começou a ser elaborado com a preocupação de tentar compreender a
luta no e pelo espaço urbano realizada pelos favelados.
O ponto de partida foi a conclusão da dissertação de mestrado, onde analisei as
causas do crescimento explosivo das favelas, sua distribuição pelo espaço urbano na cidade
de São Paulo, a situação de trabalho dos favelados e o percurso migratório dos chefes de
família migrantes moradores em favelas. Esta análise me permitiu compreender a realidade
da inserção no mercado de trabalho e de consumo da população favelada; ao mesmo tempo
fez surgir novas indagações sobre a produção, reprodução e lutas no espaço urbano.
Embora não seja, hoje, nenhuma novidade, nas considerações finais da dissertação
de mestrado ressaltei alguns aspectos sobre o processo de favelização:
“No desenvolvimento do capitalismo no Brasil a favela é produto da conjugação de vários
processos: da expropriação de pequenos proprietários rurais e da super-exploração da força
de trabalho no campo, que conduz à migração rural-urbana; do empobrecimento da classe
trabalhadora em seu conjunto e do preço da terra urbana que conduz à necessidade de
sucessivos deslocamentos no espaço urbano até a invasão de áreas. A favela exprime a luta
pela sobrevivência e pelo direito ao uso do solo urbano de uma parcela da classe
trabalhadora. Exprime, enfim, a luta pelo direito à cidade...
O mesmo processo o desenvolvimento do capitalismo que provoca a expropriação no
campo, provoca também a super-exploração na cidade e cria uma população excedente para
as necessidades médias de acumulação. A favela é uma ‘instituição necessária’ ao
desenvolvimento do capitalismo, porque é onde se aloja uma parcela da classe trabalhadora.
Na aparência uma contradição entre a massa de riqueza gerada e a extrema penúria de
uma grande parte dos trabalhadores. Na essência, o mesmo processo que propicia a
produção de riqueza, espolia o trabalhador até o limite máximo da sua força de trabalho,
única riqueza que lhe restou e que esgotada dia a dia. A favela é então um dos aspectos
da organização do espaço para e pelo capital...
À medida que aumenta a pauperização da classe trabalhadora e que se acelera o crescimento
das favelas, os moradores passam a reivindicar, pela força de seu conjunto, condições mais
dignas de sobrevivência... a população favelada passa, cada vez mais, a contestar as formas
institucionais que regem o direito do uso da terra urbana. Não contestação da
propriedade privada, na medida que reivindicam o título de posse da propriedade da área
que ocupam, mas há contestação da legislação vigente. É um processo de luta pelo direito à
moradia e à terra urbana. É necessário um estudo específico dos movimentos que hoje se
expandem pelas favelas; das construções das ‘favelas de alvenarias’ e das recentes invasões
organizadas, para entendê-los em sua complexidade”.
(Rodrigues, A. M. 1981, p. 161 e sgs.)
11
Assim, o ponto de chegada da dissertação de mestrado foi o ponto de partida deste
trabalho: analisar os movimentos sociais urbanos que ganhavam visibilidade política no
início da década de 80, bem como as ocupações organizadas, contrastantes com as
ocupações cotidianas das favelas.
Ainda na dissertação de mestrado, analisei comparativamente a situação de trabalho
dos favelados com os moradores de casas de alvenaria e concluí que a população favelada
faz parte da classe trabalhadora em seu conjunto e não é marginal ao sistema econômico.
Obtém seu sustento pela venda de sua força de trabalho em condições semelhantes a dos
moradores das casas de alvenaria. Mas considerei que as lutas entre vizinhos casas de
alvenaria e barracos pudesse ser atribuída ao fato da favela provocar uma
“desvalorização”, ou pelo menos um não aumento de preço, nos terrenos das vizinhanças.
Para sair de uma análise puramente econômica, tornou-se importante analisar a produção
do espaço, tentando compreender a complexidade de produção/reprodução do espaço e as
formas de legitimação da propriedade da terra, compreendidas neste trabalho através da
análise dos discursos sobre a cidade e sobre a moradia. Assim, procuro obter um
compreensão sobre a luta no e pelo espaço urbano de segmentos da classe trabalhadora.
Fica evidente que, ao afirmar que a população favelada faz parte da classe trabalhadora em
seu conjunto, utilizo o conceito marxista de classe social, relacionada ao lugar objetivo que
cada um ocupa na divisão social do trabalho. Tal conceito é efetivamente discutido e
esclarecido por Eder Sader quando coloca a necessidade de compreender o significado
dessa objetividade:
“Se pensarmos a realidade objetiva como resultado das ações sociais que se objetivaram (...)
poderemos pensar a existência objetiva da divisão de classes na sociedade capitalista como
uma ‘realidade virtual’, uma condição vivida e continuamente reelaborada. ‘Classe social’
desse modo designa uma condição que é comum a um conjunto de indivíduos, mas ela é
alterada pelo modo como é vivida.”
(Sader, E. 1987, p.19-20)
Trata-se, diz Eder, de articular a noção-objetiva (pelas condições de existência) e
subjetiva (elaboração da organização dos sujeitos implicados). Como neste trabalho a
ênfase será dada nas condições de reprodução da força de trabalho, devo esclarecer também
que considero, como Francisco de Oliveira, que a reprodução não é simplesmente o eterno
retorno da produção (Oliveira, F. 1987). Assim, os movimentos de luta pela obtenção da
12
moradia, não são meros reprodutores das necessidades de acumulação de capitais e,
portanto, têm uma dinâmica e uma constituição de sujeitos que não eliminam a ‘luta’ no
interior de uma mesma classe (pelas condições de existência), pois estas condições são
alteradas pelo modo como é vivida.
1
oOo
1
Veja a esse respeito Sader, Eder op. cit.
13
1.2. O encaminhamento da pesquisa
Para compreender os conflitos no interior da mesma classe, tornava-se necessário
analisar quer a condição dos moradores das áreas vizinhas às favelas e ocupações, quer a
dos próprios ocupantes e favelados tanto no que diz respeito a sua condição como na
condição do outro, buscando assim compreender a condição de vida que, como diz Dario
Lanzardo:
“...apresenta-se de forma mistificada, mascarando o processo de exploração real da classe
operária e provindo de uma mistificação mais geral, própria da classe capitalista.”
(Lanzardo, D. – in Thiollent, 1981, p.233)
Estão implícitas nas análises das condições de vida – de moradia – as representações
e a atuação do Estado; nesse sentido, busquei analisar as falas institucionais sobre a cidade
e a moradia. Para buscar esclarecer os conflitos no interior da mesma classe, foi necessário
situar a atuação do Estado com ênfase no poder local, no contexto de uma procura de maior
visibilidade das mobilizações e associações de moradores em movimentos reivindicatórios,
seja por melhorias de infra-estrutura de serviços, seja no caso das favelas e ocupações
pela permanência nas áreas ocupadas. Este contexto de reivindicações não diz respeito
apenas aos moradores das favelas, mas também a uma maior visibilidade das organizações
dos moradores das casas de alvenaria, dos bairros da periferia da cidade, que reivindicavam
infra-estrutura e retirada das favelas que ocupavam as áreas livres desses loteamentos.
Neste processo do início dos anos 80, paralelamente, verificava-se também uma
predisposição de “mudança” da política habitacional dirigida à população dos “sem terra”,
pelo menos situada ao nível dos discursos do poder público.
Na proposta inicial deste trabalho, a ênfase era analisar o processo de apropriação,
produção e reprodução do espaço urbano pelos favelados, e o seu processo de organização
na luta pela permanência nas áreas ocupadas e por melhores condições de vida. A análise
do processo de apropriação do espaço seria realizada através da dimensão do cotidiano, ou
seja: como se chega a uma favela, como se descobre o lugar, como se muda (porque em
algum lugar antes de se chegar à favela também é preciso morar), bem como através do
processo de organização dos moradores para os movimentos reivindicativos.
14
Para analisar essas questões tornar-se-ia necessário verificar as diferenças ou
semelhanças deste processo com outras formas de organização cotidiana do espaço: as
auto-construções na periferia e as ocupações coletivas de terra, que se tornam mais
freqüentes na década de 80. Delimitei, como universo de pesquisa, algumas favelas do
município de São Paulo e os bairros vizinhos a estas favelas (veja-se anexo de pesquisa).
Para verificar as semelhanças e diferenças entre favelas e ocupações foi selecionado o
Movimento dos Sem Terra de Osasco, município da Grande São Paulo.
oOo
15
1.3. A mudança de percurso no percurso
O que esperava que fosse apenas um complemento de toda a pesquisa, passou a ser
a ênfase da pesquisa de campo, porque as ocupações de terra que ganharam maior
expressão nesta década permitem ver com clareza, num curto espaço de tempo, a
apropriação dos moradores já citadinos da dimensão de cidadão, o processo de organização
e a produção da cidade e da cidadania, na medida em que é um processo que se expressa
conflitantemente. Visto que, como diz Panzieri:
“...é preciso que a investigação se faça numa situação ‘quente’, isto é, particularmente
conflitante...: é preciso estudar como o sistema de valores que o operário exprime em
tempos normais se transforma, que valores o substituem com uma consciência clara das
alternativas ou desaparecem naquele momento.”
(Panzieri, R. in Thiollent, 1981, p. 229)
Busquei, assim, analisar as transformações que ocorreram em situação de conflito,
como são os casos de ocupação de terra, que se manifestam de forma diferente caso a
propriedade da área ocupada seja pública ou particular. Sem perder de vista tentar
compreender a apropriação cotidiana do espaço pelos favelados, a pesquisa tornou-se uma
pesquisa participante, ou, quem sabe, militante com os favelados, mas principalmente com
o Movimento Sem Terra de Osasco; seja na sua cotidianidade, seja na sua expressão
enquanto movimentos sociais urbanos na luta pela moradia. E na sua ampliação, enquanto
participantes do Movimento Nacional pela Reforma Urbana.
Para analisar o movimento de ocupação estive presente no processo de luta pela
conquista da terra e da moradia, desde reuniões preliminares até o assentamento, mesmo
que provisório, das famílias. Quase sempre com gravador, máquina fotográfica, papel e
lápis e muitas vezes com equipamento de filmagem (contanto nesses casos com o Nelsinho
e Kozo), pois considero que a situação de conflito não é expressa apenas num movimento,
mas sim num período de tempo.
Embora tenha sido muito difícil mudar alguns aspectos da pesquisa, foi necessária
esta alteração para melhor dar conta da realidade. Posso não ter dado conta da
complexidade que envolve esta dimensão do espaço e da cidadania neste espaço, mas sem
dúvida, este trabalho permitiu caminhar junto com o movimento, sem ter estipulado a priori
qual seria o ‘melhor’ caminho, buscando-o no decorrer da caminhada. Na verdade, procurei
não apenas a emissão de opinião reativa (perguntas e respostas), mas verificar como os
16
participantes do movimento se situam diante da problemática da busca do lugar para morar.
É evidente que o risco de deixar obscuros alguns aspectos da realidade não é atributo
exclusivo da pesquisa participante, mas da própria incapacidade de observar a realidade de
modo concreto, pois afirma Thiollent:
“No conhecimento social, mais do que em qualquer outro tipo de conhecimento, a
acessibilidade de determinados tipos de informação relevante para a explicação de uma
situação depende dos modos práticos de atuação dos cientistas no seu relacionamento
dentro da situação.”
(Thiollent, M. 1981, p.130)
Um outro aspecto colocado como importante no inicio da pesquisa dizia respeito
aos conflitos existentes entre as reivindicações dos moradores das casas de alvenaria e as
dos moradores dos barracos de favelas. Também este sofreu modificações. A análise dos
conflitos das reivindicações se mantém e se amplia. Foi necessário então verificar como os
moradores de alvenaria da periferia pobre se relacionam com os moradores das terras
ocupadas e se conflitos para a produção de uma “cidade que nasce da noite para o dia”,
como disse uma moradora vizinha a uma área de ocupação de terras. Além disso, procurei
verificar se as reivindicações dos ocupantes conflitavam ou não com as dos favelados. De
modo geral, busquei analisar os modelos de representação relativo ao problema de moradia.
É também bom destacar que, mediando esses conflitos e propiciando a expansão do
urbano, no que se refere a interesses do capital ou limitando esta expansão quando se refere
à gestão da cidade, está o Estado.
No atual momento histórico, reveste-se de fundamental importância a análise da
atuação do Estado na mediação dos conflitos, considerando-se a discussão sobre a questão
da função social da propriedade e da produção e consumo da cidade no Congresso
Constituinte. Ao acompanhar os integrantes dos movimentos em seus “eventos” de
reivindicação, verifiquei que os representantes do poder local do município de Osasco
faziam constantes referencias ao fato das verbas para habitação estarem concentradas na
esfera federal e estadual e que, dadas às ‘divergências’ políticas, essas verbas estavam
‘congeladas’ estando, portanto, o poder local sem condições de atender às justas
reivindicações. Ressalte-se que, no caso, os governos Municipal, Estadual e Federal fazem
parte do mesmo partido.
17
Durante o processo de elaboração deste trabalho, acompanhei os movimentos dos
“sem terra/sem casana discussão e na elaboração das propostas, coletas de assinaturas e
entrega das Iniciativas Populares sobre Reforma Urbana e Reforma Agrária, no Congresso
Constituinte, bem como o processo de discussão no próprio Congresso.
Para entender e poder analisar profundamente todo um processo de produção de
experiência, a elaboração do documento permitiu verificar o caminhar da luta e dos
encontros conjunturais e analisar como as questões que sempre aparecem como fracionadas
ao longo do espaço e do tempo confluem para uma proposta que abrange reivindicações de
vários movimentos em suas especificidades. Como diz Lúcio Kowarick:
“Não considero possível deduzir as lutas sociais das determinações macro-estruturais, posto
que não ligação linear entre precariedade das condições de existência e os embates
levados adiante pelos contingentes por ela afetados. Isto porque malgrado uma situação
variável, mas comum de exclusão econômica, os conflitos manifestam-se de maneira
diversa e, sobretudo, as experiências de lutas têm trajetórias extremamente díspares,
apontando para impasses e saídas para as quais as condições estruturais objetivas
constituem, na melhor das hipóteses, apenas um grande pano de fundo. Não se trata de
desconsiderá-las, mas de reconhecer que, em si, a pauperização e a espoliação são apenas
matérias primas que potencialmente alimentam os conflitos sociais: entre as contradições
imperantes e as lutas propriamente ditas há todo um processo de ‘produção de experiências’
que não está, de antemão, tecido na teia das determinações estruturais... Se as lutas
caminham paralelamente, existem estuários conjunturais onde elas desembocam, e o
entendimento desse encontro requer um mergulho sobre a diversidade de movimentos que
ocorrem tanto nas fabricas como nos bairros, a fim de captar aquilo que estou denominando
de momentos de fusão dos conflitos e reivindicações.
(Kowarick, L. 1984, p. 71 e 78)
A discussão para a elaboração da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana foi um
desses momentos “privilegiados” de encontros conjunturais, pois cada movimento de sem
terra e “sem teto” tinha reivindicações que convergiam para uma proposta comum: a
produção mais justa do espaço urbano e a gestão coletiva deste espaço.
Por que explicar estas alterações da pesquisa? O usual é publicar apenas os
resultados. Explicar procedimentos iniciais e as mudanças é praticamente começar pelo
fim, mas como disse Marx:
“O método de exposição não coincide necessariamente com o método da pesquisa.”
Considero necessária esta explicação, porque a pesquisa participante não foi, neste
caso, definida a priori, mas sim constituída no próprio percurso, e, além disso, quero deixar
18
marcada a posição, da qual tenho sido como tantos outros pesquisadores arauto, de que
a pesquisa também em Ciências Humanas é extremamente difícil, na medida em que se
propõe a dar conta da realidade em sua complexidade.
O objetivo desta pesquisa não é definir uma única forma de metodologia, mas de
abrir “brechas” na geografia e propor também indicações para a compreensão da produção
no espaço em sua cotidianidade e na sua possibilidade de ação imediata. Explicar o
percurso da pesquisa permite ver, como diz Sérgio P. Rouanet, que:
“As humanidades são ao mesmo tempo ordem e transgressão. São habitadas por um ideal
normativo explícito, por um sonho de harmonia, de equilíbrio e perfeição; mas como esta
ordem está permanentemente em contradição com todas as ordens existentes, elas são
permanentemente transgressoras.”
(Rouanet, S. P. 1987a, p. 350)
Mostrando as dificuldades em Ciências Humanas, a tentativa de entender-se a
realidade através da pesquisa militante, é possível, que sabe, ajudar a romper os grilhões, no
sentido dito por Marx:
“A crítica não arrancou as flores imaginárias que enfeitavam nossos grilhões para que
suportássemos esses grilhões sem qualquer consolo e qualquer fantasia, mas para que
rompêssemos os grilhões.
(In: Rouanet, op. cit., p. 327)
oOo
19
2. OS EIXOS PRINCIPAIS DO TRABALHO
A pesquisa busca atentar para as manifestações de resistência no seu significado
de apropriar-se do espaço para viver na cidade, que os movimentos de favelados e de
ocupantes organizados deixam entrever. Procura analisar a capacidade de criar, de articular,
em seus fluxos e refluxos, a construção da cidadania implícita cotidianamente nas lutas pela
moradia, construindo e reconstruindo o espaço urbano. Procura também analisar os
modelos de representação relativos aos problemas de moradia e as transformações que
ocorrem em situações de conflito.
A produção do espaço urbano poderia ser comparada, grosso modo, com um
caleidoscópio, que a cada virada, por menor que seja, mostra uma nova combinação de
elementos, de cores, dando uma nova forma do visível, onde todas as outras formas e cores
estão contidas, embora nem sempre visíveis. É claro que a imagem do caleidoscópio pode
significar a rearticulação do mesmo material, num conjunto fechado. Portanto, é necessário
considerar que aos caleidoscópios se incorporam sempre novos elementos para ser ao
mesmo tempo ordem e transgressão.
Este trabalho procura mostra pelo menos alguns aspectos da produção do espaço
urbano. Cada um deles tem contido vários outros:
2.1. A luta pela moradia realizada pelos “sem terra/sem teto” urbanos, sejam os inquilinos,
os favelados, os encortiçados, os ocupantes (que em momento anterior eram inquilinos). A
pesquisa analisa uma pequena amostra, que está restrita a alguns favelados do Município
de São Paulo, a entrevistas com lideranças das favelas de Diadema e Guarulhos, na Grande
São Paulo e em Campinas e pesquisa com os ocupantes do Movimento “Terra e Moradia”
de Osasco, também Município da Grande São Paulo.
2.2. A luta pelos equipamentos de consumo coletivo e pelo efetivo reconhecimento da
propriedade da terra, realizada pelos ‘compradores’ dos lotes dos chamados loteamentos
clandestinos e dos auto-construtores da periferia pobre. Neste estrato da pesquisa, a
entrevista foi realizada com lideranças dos movimentos pela regularização dos loteamentos
clandestinos. Enfim, todos os que chegam antes dos serviços e equipamentos de consumo
coletivo: os desbravadores da cidade. Desta luta, em geral, participam apenas os
20
proprietários de casa própria, pois quando obtidos os equipamentos de consumo coletivos
os alugueis aumentam e os inquilinos são em geral “expulsos”.
2.3. As lutas cotidianas realizadas pontualmente no espaço, que se ampliam pela
transformação do espaço urbano com a aglutinação dos movimentos urbanos sociais na
elaboração da proposta de iniciativa popular no Congresso Constituinte – A Reforma
Urbana.
2.4. A atuação do Estado face ao movimento geral da produção do espaço urbano na
mediação dos conflitos, atuação que se tanto na esfera da regulamentação do trabalho
(salário, condições de trabalho em geral), quanto direta ou indiretamente na produção e
na administração dos bens de consumo coletivo e no ordenamento espacial da cidade.
oOo
21
3. O ENCAMINHAMENTO DA PESQUISA
3.1. A pesquisa nos jornais
Para dar conta destra proposta de trabalho, procurando o avesso do discurso,
pesquisei as notícias veiculadas pela imprensa sobre a questão das favelas e das ocupações
em São Paulo, durante um período de 20 anos. Sobre as favelas desde o inicio da década de
60 e sobre as ocupações desde o final da cada de 70. As notícias foram apenas as da
grande imprensa, selecionadas e arquivadas pelo Centro Pastoral Vergueiro.
Como uma primeira aproximação, é possível afirmar que em cada período as
noticias apresentam semelhanças ao nível do discurso e na forma como eram redigidos os
temas. Pesquisar as noticias publicadas na grande imprensa, significava procurar analisar
discursos ou representações sobre a cidade e mais especificamente sobre as favelas e as
ocupações na cidade. Não foi feita paralelamente a pesquisa e analise de imprensa
denominada “alternativa ou engajada”, método utilizado por vários pesquisadores e que
teriam permitido uma comparação entre os diferentes discursos sobre a questão analisada,
enriquecendo a análise.
Durante a década de 60 e inicio da de 70 quem “fala” pelos favelados são
principalmente as associações “comunitárias” como o MUD Movimento Universitário de
Desfavelamento , a ACB Associação Comunitária do Brasil, órgãos da Prefeitura como
Secretaria do Bem Estar Social (criada em 1967).
A partir dos primeiros anos da década de 70 as notícias de jornais sobre as favelas
são mais abundantes, tanto no que se refere a estudos sobre favelas quanto no que diz
respeito ao que parece ser um inicio de resistência dos favelados à remoção. No entanto,
os favelados ainda não têm “voz”: as associações comunitárias, o poder público e
intelectuais falam “por eles”. É evidente nos discursos a presença do “nós” (a sociedade
representada pelas associações, o poder público e intelectuais) e do “eles” (os favelados). É
visível também a dicotomia entre o “eles”: os pobres coitados que o sabem morar, pois
vieram da roça e precisam ser educados e os marginais que se escondem nas favelas. Para
uns se clama educação para que morem decentemente; para outros se clama que se proíbam
as favelas e se construam prisões.
22
Na segunda metade da década de 70, as noticias sobre favelas, além de serem mais
abundantes, mostram novos “interlocutores”. Inicialmente, a Igreja e os estudiosos do
assunto ganham expressão e, posteriormente, o próprio favelado. Os primeiros, ao
analisarem sob um “novo” prisma as favelas, mostrando as verdadeiras causas da existência
das mesmas e os segundos, quando são entrevistados pela imprensa, principalmente ao se
mobilizarem e se organizarem em associações ou ao serem atingidos por enchentes,
inundações, ou incêndios, isto é, quando se descobre que não são marginais”, mas
marginalizados.
Começam a falar “por si”, seja contestando remoções, reivindicando luz, água e
posse da terra, seja promovendo reuniões ou encontros de favelados. Continuam também a
ter ‘voz’ os demais segmentos: poder político, as associações comunitárias e os intelectuais
que continuam a considerar a favela como um excrescência. Começam também a aparecer
com maior incidência representantes das industria de construção civil, reivindicando
mudanças na legislação que pudessem beneficiar a produção de moradias para as faixas de
“renda mais baixa”. Começa a ficar mais visível que a existência da favela é entendida
como falta de moradia, que é preciso construir para acabar com as habitações sub-normais.
Ficou evidente que, apesar da grande variedade de notícias, há uma regularidade de
temas: preocupação em “limpar” a cidade, em educar os favelados, em verificar a
incidência de incêndios e enchentes nas favelas; preocupação pela forma como o poder
público deveria construir novas habitações; com a discussão da condição marginal ou não
do favelado, etc., e com a questão do direito e da justiça social. Mas também um novo
interlocutor que são os próprios representantes dos favelados, na medida em que criam um
novo espaço de reivindicações, tornando explícita a constituição de um novo sujeito
coletivo.
Busquei, ao analisar vários anos de notícias em jornais, o que não está
expressamente dito, ou seja, quais as representações contidas nas notícias sobre os sem
terra/sem casa, durante este período do tempo, como se constitui este novo sujeito coletivo
dos movimentos de favelas, das ocupações de terra e das reivindicações por equipamentos e
meios de consumo coletivo. A exclusão ideológica e a inclusão pela cidadania.
oOo
23
3.2. O processo cotidiano de apropriação do espaço
A questão colocada era também: como captar o processo de apropriação e produção
cotidiana do espaço? As notícias de jornais davam conta de uma parte apenas das questões.
Sem dúvida, a aplicação de questionários abertos –, como amostras significativas é uma
forma também de se buscar explicar a realidade. Utilizei esta técnica de pesquisa do
mestrado e penso que, na verdade, só consegui analisar um pouco mais da realidade, porque
para aplicá-los foram muitos os “fins de semana passados nas favelas, estabelecendo-se
com cada pesquisado uma relação pessoal.
No entanto, se pesquisas exaustivas permitem obter a descrição do universo
pesquisado, não permitem verificar como os participantes dos movimentos se situam diante
da problemática da busca da moradia. É um retrato de um momento do tempo. Na maioria
das vezes, em que se pese a importância deste tipo de pesquisa para a compreensão da
situação de vida e de trabalho, tem-se apenas a emissão reativa que, neste caso, não atendia
aos objetivos propostos neste trabalho. A pesquisa exaustiva de questionário é muitas vezes
complementada, ou mesmo substituída, por entrevistas gravadas. Diz Brandão:
“... que na pesquisa participante a entrevista livre, a história de vida se impõe. O
pesquisador descobre com espanto que maneira espontânea de uma pessoa explicar alguma
coisa diante do gravador é através de sua história de vida, ou através de um fragmento de
relações entre a vida e aquilo a que responde.”
(Brandão, op. cit., p. 13)
Um instrumento eficaz que, talvez por falta de conhecimento, ainda não me permitia
captar o processo de transformação. Parte inicial da pesquisa nas favelas em São Paulo e do
Movimento “Terra e Moradia” de Osasco foi feita com entrevistas gravadas, assim como
com os movimentos de Guarulhos, Diadema e Campinas.
Mas, na medida em que eu, por um projeto político pessoal, era participante ativa da
coleta de assinaturas da Iniciativa Popular pela Reforma Urbana para o Congresso
Constituinte, os pesquisados tornaram-se companheiros de um projeto, de um
compromisso, que me obrigou a repensar não a posição de pesquisa, mas também a
minha participação no processo. Como podia pedir que me contassem sua história de vida e
sua história no movimento, se ia às assembléias, às reuniões, à entrega do “ticket” de leite
para ajudá-los a explicar o significado e o conteúdo da proposta de Reforma Urbana? Como
24
pedir que eles me contassem sua história de luta, sem consideram que eles poderiam contar
apenas aquilo que eu queria ouvir? Na verdade, fui me construindo no decorrer da pesquisa
como uma companheira e pesquisadora na luta do dia-a-dia e como parte integrante do
percurso da vida, do caminhar de luta, refletindo sobre ela.
Cito aqui um aspecto que considero importante. Ao relacionar-me com um morador
de uma favela organizada em associação de moradores, com a maioria das casas em
bloco, com arruamento realizado pela Prefeitura no início da década de 80, após vários
contatos, entrevistas gravadas e participação conjunta com as lideranças na coleta de
assinaturas sobre a Iniciativa Popular na Constituinte, solicitaram-me donativos para o
projeto de atendimento às crianças (de 7 a 14 anos) como se eu fosse uma empresa (anexo).
A surpresa me fez refletir sobre o significado de invadir permanentemente suas casas e
nada dar em troca. Mas uma troca que, aparentemente, nada tinha a ver comigo. Por outro
lado, em contato com o movimento das ocupações de terra (participando da mesma
forma que na favela), também me foi solicitada uma troca: que me contariam a sua história
se eu a escrevesse, para que eles pudessem contá-la para outros (a história foi escrita e se
transformou num filme em vídeo).
Este relato pode servir como um parâmetro para indicar as diferenças de
organização e de como a constituição dos sujeitos políticos é extremamente diversificada. E
que, mesmo considerando a pesquisa participante, era preciso estar atento para as
diferenças. E fica mais uma questão: analisar um único movimento, tentar ver o movimento
por dentro, sem compará-lo com outros pode impedir o aprofundamento da análise?
oOo
25
3.3. A pesquisa militante
Cabe ressaltar que esta não é uma pesquisa participante no sentido de que os
representantes dos movimentos atuariam subalternamente coletando dados ou até em alguns
casos fazendo análises. Pretendi mesmo analisar a constituição dos sujeitos políticos do
movimento, tentando dar conta desse processo num momento de conflito. Utilizei dados
coletados pelo movimento, mas o objetivo era o deles mesmos fazerem seu cadastro, sua
pesquisa sócio-econômica para verificar o que proporiam como foram de pagamento da
terra ou como iriam dimensionar as escolas face ao número de crianças. Não participei da
elaboração, mas ajudei na coleta de dados, que posteriormente me emprestaram para eu
fazer a análise dos mesmos.
Mas, para dar conta do processo de apropriação cotidiana do espaço, e ver a
transformação de quem chega e pergunta:
“Como faço para ‘ganhar’ um pedaço de terra?”
e menos de 6 meses depois, após ter ocupado um lote de terra, construído um barraco,
ficando um mês e ter sido expulsa com a polícia nas ‘costas’, reconstruir seu barraco em
terreno da prefeitura e dizer:
“Agora é fazer trincheira para manter esse pedaço de chão com este barraco em cima. Estou
cansada de trabalhar e de não ter dinheiro para pagar aluguel, ser despejada a cada 6 meses,
até o próprio Prefeito não quer que a gente fique aqui. Pois faço trincheira, se for preciso, e
luto. Só saio se eles passarem o trator em cima de mim.”
E completa, brincando:
“Aí não precisa mais sair, né, já fica enterrada com os trens tudo por cima.
(pesquisa de campo)
Foi preciso conviver e aprender a conhecer todo um processo cotidiano para analisar
a vivência de:
“... reelaboração do imaginário constituído através de novas experiências de práticas
coletivas, onde se produzem alterações na fala e deslocamentos de significado.”
26
(Sader, E., op. Cit., p. 19)
A pesquisa participante tem, no mínimo, entre seus pressupostos a negação da
neutralidade da ciência. Ciência para o pesquisador participante não é neutra, mas pelo
contrário, pois entendo como Thiollent:
“... é necessário que o cientista e sua ciência, mais do que conhecer para explicar, pretenda
compreender para servir.”
E, ainda mais:
“Contra a ilusão da neutralidade é preciso salientar que os métodos e técnicas de pesquisa
são, ao lado dos conceitos e teorias, os instrumentos de produção do conhecimento
concreto.” (Thiollent, M. Op. Cit., p. 130)
Mas, para fazer pesquisa participante, como diz Marx:
“Não é necessário que o pesquisador se faça operário para conhecê-lo, é necessário um
compromisso e uma participação com os projetos de luta do outro.”
(In: Brandão, C. R. , op. Cit. P. 12)
Não tive a pretensão de aparecer como se fosse um “sem terra”. Desde o princípio
ficou evidente que era uma professora, que estava ao mesmo tempo apoiando o movimento
e fazendo uma pesquisa, que era solidária com a luta para a obtenção da moradia e que
assim fazia parte do que é conhecido como grupo de apoio, pois considero injusta a
distribuição de riqueza na sociedade, e que sempre que necessário e possível expressaria a
minha opinião. Não era mera expectadora, não era um “sem terra”, mas tinha um
compromisso e uma participação com os projetos do movimento “sem terra/sem teto”.
Diz ainda Brandão:
“...não é propriamente um método objetivo de trabalho científico que determina a priori a
qualidade da relação entre os pólos da pesquisa, mas, ao contrario com freqüência é a
intenção premeditada, ou a evidência realizada de uma relação pessoal e ou politicamente
estabelecida, ou a estabelecer, que sugere a escolha concreta dos modos concretos de
realização do trabalho a pensar a pesquisa. E, em boa medida, a lógica, a técnica e a
estratégia de uma pesquisa de campo dependem tantos dos pressupostos teóricos quando da
27
maneira como o pesquisador se coloca na pesquisa e através dela e, a partir daí, constitui
simbolicamente o outro que investiga.”
(Brandão, op. cit., p.8)
Nesta pesquisa tive a preocupação de tentar contribuir com os meus conhecimentos
de modo a não prejudicar a iniciativa do movimento. Como um apoio ao movimento que
poderia auxiliá-lo no que fosse possível, dado o conhecimento sobre a legislação em
habitação, estive presente e estabeleci uma relação com objetivos políticos comuns.
Inicialmente, fui observar como se dava a organização, sendo apresentada aos líderes do
movimento como representante do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Estávamos
num momento de coleta de assinaturas para a Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana.
Ao final de muitas conversas, de uma gravação de duas horas com ampla ‘comissão’ me foi
dada a grande oportunidade:
“A memória da gente é fraca, se você quiser saber mesmo, venha ao novo movimento ver
como se organiza.”
(depoimento)
E mudou o eixo da pesquisa com os “sem terra” de Osasco. Participei de
inúmeras reuniões (pelo menos 2 por semana), durante um período de mais de 1 ano. Fui
junto com o Movimento a passeatas reivindicatórias, acompanhei comissões de
negociações, seja com os proprietários de terra, seja com o Prefeito de Osasco. Passei a
noite ajudando a carregar madeira e construindo barracos, no Jardim Conceição e no Jardim
Veloso, fiquei na frente do trator junto com o Movimento, cantei, falei em assembléias e
reuniões, preparei reuniões, tirei muitas fotos e levei pessoal para filmar, conversei com
parlamentares e outras entidades de apoio. Enfim, participei do processo e ao chegar em
casa muitas vezes foi difícil anotar o que tinha ocorrido. Entendi, então, a frase: “A
memória da gente é fraca”, a vivência é tão forte, tão intensa e tão cansativa que não
para pensar nas condições de existência.
Lembrava com freqüência das dificuldades que Simone Weil, quando trabalhava
como operária, sentia para refletir sobre o trabalho quando se está esgotado de cansaço.
Como é possível ao trabalhador extenuado pelas jornadas de trabalho, pelas horas de
transporte, mal alimentado, mal dormido sem uma moradia digna lutar para conseguir
uma moradia e ainda refletir sobre sua condição de vida? Na maior parte das vezes, para os
28
participantes dos movimentos, é difícil pensar sobre sua prática cotidiana. E assim se
coloca e se evidencia a necessidade da ciência realizada para ajudá-los a refletir sobre sua
condição de vida na produção e no consumo.
Um outro aspecto desta pesquisa participante diz respeito à participação com as
lideranças dos movimentos de São Paulo e do Brasil na discussão, redação, coleta de
assinaturas e entrega da Proposta da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana. Seria
possível, se esta participação não estivesse ocorrendo, verificar como se apresentou para
cada representante dos movimentos a questão da terra, da construção da moradia, do
aluguel? Mesmo que fosse possível obter relatos a respeito, isto não me permitiria ter um
conhecimento profundo da representação para os movimentos da produção e consumo do
urbano analisar a reflexão que fazem de sua situação de vida. Mas o que realmente não
permitiria seria a minha constituição enquanto sujeito político do Movimento pela Reforma
Urbana.
Representei, para os movimentos de favelados e de ocupantes, aquela que tinha,
pelo menos no contato inicial, material da proposta para distribuir e discutir, para que se
pudesse coletar assinaturas e que trazia as noticias de como ia, ao nível de Brasil, a coleta
das mesmas, a entrega e, depois quais seriam os aspectos vitoriosos das propostas.
Mostrava do lado de quem estava.
Penso que para alguns participantes, eu era a “companheira” que vivia anotando,
tirando retrato e que falava muito. Muitas vezes fui chamada para dar umas “palavras” para
explicar o que estava ocorrendo, com a condição de que falasse pouco. Escrever ou ajudar a
escrever documentos era uma das minhas tarefas. Fazer painel de fotografias, editar vídeo
contando a história do movimento, ajudar a medir os terrenos, levar amostra de água para
verificar se não estava contaminada, levar crianças machucadas para serem medicadas,
eram outras. Ou seja, como um componente da equipe de apoio, fazia as tarefas como todo
mundo.
Muitos companheiros de caminhada e de luta viveram comigo esta experiência que,
para mim, só terá atingindo seu pleno significado quando contar, quando transmitir, a
reflexão que fiz. Além de voltar para cada uma das favelas, para dizer, afinal, no que
resultou em termos de lei todo o trabalho para a coleta de assinaturas. O produto deste
trabalho não é apenas, espero, este texto escrito. É a minha transformação, é a
29
transformação do movimento, é o caminhar da “Reforma Urbana”. É também deixar escrita
a memória do Movimento. E um vídeo sobre o Movimento. Um modo de retratar e relatar o
processo e de auxiliá-lo na sua caminhada ao contar e mostrar para outros futuros
participantes como concretamente ocorreu, neste espaço/tempo, esta caminhada.
No primeiro capítulo procuro analisar as formas pelas quais uma parte significativa
da classe trabalhadora se impedida de apropriar-se de um espaço para moradia,
considerando as características da terra urbana. Aparentemente “deslocado” do resto do
trabalho, este capítulo serve de reflexão sobre a questão da renda da terra e de que modo se
“naturaliza” a valorização, como se a terra fosse objeto de valorização em si. Como se
uma produção da cidade coletivamente e como transparece a produção apenas da terra em
si. Tento, inclusive, analisar como se cria, se recria e se amplia um discurso sobre a
valorização da terra.
No segundo capítulo procuro analisar as falas sobre a cidade, falas essas
consideradas como “competentes”, tentando demonstrar como nelas está presente a
exclusão. Procuro analisar como se amplia o esquadrinhamento do espaço, e de que modo
se constitui num espaço proibitivo, tanto pela questão econômica, como pela ideológica,
cotidianamente colocada.
No terceiro capítulo trato de experiências concretas de apropriação do espaço
urbano: favelas, ocupações. Pesquisando aspectos do cotidiano das ocupações desde a
formação de um grupo de discussão até a ocupação de terras
(ocupação/desocupação/ocupação). Procurei entender, no processo de apropriação do
espaço, as transformações dos participantes, analisando os padrões de entendimento e
comportamento individual e coletivo na busca da moradia e no encontro da identidade em
ocupações coletivas.
oOo
30
UMA REFLEXÃO SOBRE A METRÓPOLE PAULISTA E A
PROPRIEDADE DA TERRA URBANA NO BRASIL
31
1. SÃO PAULO: CIDADE CAPITALISTA ALGUNS ASPECTOS DA
CONCENTRAÇÃO ESPACIAL DA RIQUEZA E POBREZA
As metrópoles capitalistas são ao mesmo tempo concentração e dispersão;
socialização da produção e apropriação individual dos lucros; aglomeração e isolamento.
Concentração de capitais, de produção, de homens, de edifícios, de riqueza e de pobreza.
Concentração de múltiplos usos, distribuídos em diferentes ‘áreas’, concentrando-se em
umas riquezas e em outras – a maioria – a pobreza. Dispersão dos indivíduos no interior das
concentrações. Isolamento dos indivíduos nas aglomerações.
Trato aqui, apenas, de uma dimensão da questão urbana, de alguns aspectos da
produção da existência, que caracterizam o cotidiano de moradores da Região
Metropolitana paulista.
Quando se trata da riqueza do local de moradia esta é visível no tipo e tamanho dos
edifícios construídos, nas ruas asfaltadas, com iluminação pública, onde circulam,
predominantemente automóveis particulares, em geral luxuosos. pequena circulação de
pessoas, mas, quando isto ocorre, estas estão “bem” vestidas. No interior destes edifícios
casas e apartamentos também alguns lugares, em geral não visíveis, pobres, restritos,
ocupados pelos empregados domésticos, dispersos e isolados nas unidades. Quando se trata
da concentração no local de trabalho, a visibilidade da riqueza e da pobreza é muitas vezes
contrastante: edifícios luxuosos, intensamente ocupados, tanto por aqueles que representam
os que detém o poder e a riqueza, como pelos que garantem esta riqueza, ou seja, pelos que
representam aqueles que concentram a pobreza a grande parcela dos trabalhadores. Nas
ruas o tráfego intenso de pessoas, o comércio ambulante mostra com toda a força contraste
da riqueza e da pobreza.
Quando se trata da concentração da pobreza, sua visibilidade também é maior nos
locais de moradia: unidades pequenas e inacabadas, e em muitos lugares as unidades
construídas de “sobras”, nas ruas esburacadas trafegam alguns ônibus para transporte
coletivo, em precário estado de conservação; paisagem árida, sem árvores, sem iluminação
pública. Na maioria das ruas, sem asfalto, há uma intensa circulação de pessoas, mal
vestidas, descalças, muitas crianças e animais domésticos. Nos locais de trabalho, como nas
32
fábricas, lugar de produção de riqueza, concentram-se muitos destes
moradores/trabalhadores. Nas ruas, o comércio ambulante completa o quadro da
concentração de pobreza.
Torna-se visível a afirmação de Topalov:
“A cidade constituí uma forma de socialização capitalista das forças produtivas. É o
resultado da divisão social do trabalho, é uma forma desenvolvida de cooperação entre as
unidades de produção... Concentra as condições gerais da produção capitalista. Estas
condições gerais, por sua vez, são condições da produção e da circulação, de consumo;
processos que contam com suportes físicos, que dizer, objetos materiais incorporados ao
solo.
(Topalov, C. p. 20, grifos meus)
Apesar das especificidades do processo de urbanização mundial, as metrópoles
guardam características globalizantes, em especial as do Terceiro Mundo, pois são parte
inerente do mesmo processo desenvolvimento capitalista. Como diz Castels, a produção
espacial nas grandes cidades capitalistas manifesta-se pelo menos em três aspectos: na
concentração de grandes unidades de produção e consumo (desde a grande unidade
industrial integrada a rede de hipermercados), na concentração da massa de assalariados
com uma diversidade e níveis de hierarquização; na concentração do poder político, que se
expressa tantos nas formas de políticas territoriais, como nas formas de regulação nas
relações de trabalho e de uso do espaço urbano.
2
A concentração de riqueza e da pobreza na Metrópole paulista, objeto do presente
estudo, também já foi demonstrada em vários trabalhos.
3
Trato aqui de uma dimensão
pouco visível desta concentração/isolamento, pois a cidade capitalista confere a cada um o
“seu lugar”, visto que a configuração do urbano tende a reproduzir as classes do
capitalismo.
A cidade capitalista corresponde a grandes aglomerações de população. Na metade
desta década, a população que mora em cidades corresponde a cerca de 40% da
população mundial. Ao findar do século XX, a população urbana deverá corresponder a
50% da população mundial. No Brasil, pelo Censo de 1980, moravam nas cidades
80.436.409 pessoas, ou seja mais de 60% do total da população do país. Há que se ressaltar
2
Veja-se Castels, M., La Cuestion Urbana, 1974.
3
Veja-se Kowarick, L., A Espoliação Urbana , 1979; Vários, S. Paulo 1975 Crescimento e Pobreza, 1976;
Kowarick, L. e Campanário, M., São Paulo, Metrópole do subdesenvolvimento industrializado, 1985.
33
que esta urbanização mundial é ainda mais marcante porque fortemente concentrada em
algumas aglomerações: as metrópoles e megalópoles.
As 12 maiores aglomerações do anos 2000 serão, segundo a ONU: Cidade do
México, São Paulo, Tóquio, Calcutá, Bombaim, Nova York, Seul, Xangai, Nova Deli, Rio
de Janeiro, Cairo e Buenos Aires. Como se observa, todas as cidades aqui mencionadas
situam-se em países capitalistas, em especial nos chamados do Terceiro Mundo. Este fato
causa apreensão aos técnicos do Fundo das Nações Unidas para Atividades em Matéria de
População FNUAP que relacionam o aumento da pobreza ao crescimento da população
citadina. Preconizam que é necessário limitar o crescimento populacional para evitar
possíveis sublevações e também o aumento da miséria, numa reedição do malthusianismo.
Consideram que a miséria das cidades é originada pelo crescimento populacional. Analisam
apenas a superfície do processo de concentração, porque as causas da concentração da
pobreza são as mesmas da concentração da riqueza. Porque, como dito, na aparência
contradições entre a massa de riqueza gerada e a extrema penúria de uma grande parte dos
trabalhadores. Na essência é o mesmo processo. Portanto, as colocações e as preocupações
do FNUAP, mostram apenas que há uma concentração de riqueza e de pobreza, que está em
toda a parte nas cidades dos chamados países subdesenvolvidos e em grande parte dos ditos
desenvolvidos.
No Brasil, as metrópoles concentram cerca de 30% da população total, ou seja, mais
de 40.000.000 de pessoas. A pesquisa deste trabalho foi realizada na maior destas
aglomerações – a Região Metropolitana de São Paulo, cuja população em 1985 estava
estimada em 15.221.267 pessoas. Foi feita na Cidade de São Paulo que conta com
10.063.110 pessoas, e em Osasco cm 591.588 habitantes nesse mesmo ano. Cidades onde
se concentra a produção da riqueza e pobreza da maioria dos seus habitantes. Como dizem
Lúcio Kowarick e Milton Campanário:
“Fruto de uma longa conjuntura de progresso que se expressa nos 7,1% de crescimento do
PIB entre 1950 e 1980, a Grande São Paulo, epicentro deste dinamismo, reunia, no final do
período considerado, 36% do pessoal ocupado no parque manufatureiro do país, 46% do
total de salários e 40% do valor da transformação industrial e dos investimentos de capitais
na indústria e forte presença em quase todos os ramos fabris... São Paulo adquiriu
características metropolitanas. Isto não porque sua feição demográfica tornou-se
agigantada ou porque houve rápida extensão de sua mancha urbana, mas sobretudo, pelo
papel econômico que passou a desempenhar sobre o território econômico nacional,
34
aprofundando a tradicional divisão de trabalho interna à sociedade brasileira... Mas é bom
também lembrar que a maioria da população é composta por assalariados mal remunerados,
que moram em precárias condições, gastam muitas horas diárias no dispendioso e fatigante
transporte coletivo e alimentam-se mal...”
(Kowarick, L. e Campanário, M. in: Novos Estudos Cebrap, n.13, p.68-9, 1985).
Falar das grandes aglomerações significa também falar das dispersões. Números
ficam sem sentido se não se levam em conta as classes sociais que compõem esta
população, como analisa Marx na “Introdução à Crítica e Economia Política”. Porque estas
concentrações estão distribuídas em classes sociais diferentes, e em diferentes estratos de
uma mesma classe. Estão espacialmente concentradas em diferentes lugares na cidade e
vinculadas, de diferentes formas, ao processo de produção e consumo. Estão dispersas no
sentido de, que no capitalismo, incentiva-se o individualismo e o “fazer-se”
individualisticamente. Ou seja, cada indivíduo é considerado o responsável pela obtenção
de valores de uso que depende da venda da sua força de trabalho. A produção é social, mas
diz-se que a obtenção de um bem de consumo dependerá da capacidade de cada indivíduo
de obtê-lo. Divulga-se a idéia de que quem contribui para a sociedade obtém benefícios
correspondentes a sua contribuição. Instala-se também a competição, pois os melhores,
diz-se, terão acesso a determinados bens.
Para as classes sociais que vendem sua força de trabalho, esta dispersão está
relacionada também ao processo de trabalho que ‘isola’ os indivíduos, individualiza a
produção e o consumo. Mesmo quando se trata dos denominados bens de consumo
coletivo, seu consumo efetivo é individualizado; por exemplo, o pagamento pelo uso dos
transportes coletivos é responsabilidade individual.
A produção une grupos de indivíduos num mesmo local, mas o processo de
produção tende a tornar os indivíduos isolados, compartimentados. É Foucault quem
discute o isolamento”, o enquadramento dos indivíduos, quando analisa a construção de
espaços privilegiados para este fim. O Panóptico de Bentham é exemplo de organização
espacial que não é a simples produção do lugar onde se exercerá um poder, mas o que se
denomina de sociedade disciplinar. Como esclarece Foucault:
“A disciplina tem que fazer funcionar as relações de poder não acima, mas na própria trama
de multiplicidades, e também o menos dispendioso possível...”. O Panóptico é a ordenação
que vai afetar a natureza mesma do poder, “é um modelo generalizável de funcionamento;
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uma maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana dos homens... é o
diagrama de um mecanismo de poder levado a sua forma ideal; ... é uma figura de
tecnologia política...
(Foucault, 1983, p. 181).
O Panóptico ‘serve’ para isolar os trabalhadores agrupados num mesmo espaço,
que cada um tem o seu lugar definido na produção, na sociedade e no espaço. A vigilância
é exercida por todos e ao mesmo tempo por ninguém em especial. No espaço urbano todos
cuidam para que todos permaneçam no seu lugar. Alguém mal vestido num aeroporto será
observado como um possível marginal, um bandido. Se ‘todos’ têm um carro de último
tipo, aquele que chega com um carro velho em más condições de conservação, é alguém de
‘fora’ do grupo. em outros lugares, onde ninguém tem carro, ou se tem, são carros
velhos, se alguém chega com um carro último tipo, significa que não é daquele lugar, que é
um “doutor”, um “figurão”. Que algum interesse deve ter. Se aquele outro é visto como um
bandido, este outro é visto como alguém que alguma coisa quer.
Mas não se pode crer que a microfísica tenha abolido a macrofísica do poder, e sim
pelo contrário, que sirva para manter cada um no seu lugar, aperfeiçoando a divisão
territorial do trabalho.
Pois o taylorismo, por sua vez:
“...ao possibilitar o aumento da produtividade do trabalho “economizando tempo’
suprimindo gastos desnecessários e comportamentos supérfulos no interior do processo
produtivo, aperfeiçoou a divisão social do trabalho, assegurando definitivamente o controle
do tempo de trabalho pela classe dominante.
(Rago, M. e Moreira, E., 1984, p. 24)
Também determina a cada um o seu lugar, como dizem os autores acima citados,
pois o método de intensificação da produção em menor espaço de tempo acabou por
penetrar em todas as atividades que se realizam fora da fábrica. Ao individualizar o
operário no interior da fábrica, o sistema Taylor quebrou toda forma de articulação e todo
laço de solidariedade entre os explorados. Permanecendo cada qual no seu lugar, a
produção será maior, se os gestos forem economizados deverá ser maior ainda. E se
aumentar a produção poder-se-á ascender a um outro lugar. Mas é preciso estar atento para
produzir mais, obedecer a hierarquia e continuar a manter-se no lugar. No interior da
fábrica mantêm-se cada um no seu lugar e aumenta-se a produção, pois:
36
“O Taylorismo, enquanto método de organização científica da produção, mais do que uma
técnica de produção é essencialmente uma técnica social de dominação.”
(idem, p. 25)
Aliás, na nossa realidade, como lembra Eder Sader:
“...as fábricas modernas’ que se criaram em nosso solo privilegiam muito mais os
objetivos de contenção e disciplinamento social dos trabalhadores, beneficiando-se de
maiores taxas de exploração e recorrendo à contínua rotatividade da mão-de-obra, do que os
de racionalização do processo produtivo.”
(Sader, E., op. cit., p.57)
Tal processo é real e visível também nas cidades, pois os moradores espoliados são
trabalhadores explorados.
4
Nas cidades mantém-se cada um no seu lugar, tenta-se garantir a
produtividade geral da cidade com mecanismos de poder dissimulados e disseminados.
Mas, é possível verificar que alguns trabalhadores são pinçados para servir de
exemplo, para mostrar como é possível mudar de lugar. Mudam de lugar nas camadas de
classe ou até mesmo mudam de classe por mérito “exclusivamente pessoal”. Se alguns
conseguem, por que outros não?
Este discurso, que pode ser ouvido em qualquer lugar nas cidades, deixa claro que
se considera apenas o mérito ‘pessoal’ o responsável por possibilitar mudanças de um para
outro lugar na sociedade e no espaço. Serão comentários, na sua maioria, sobre pessoas que
sempre se comportaram de acordo com as normas vigentes e que só por isso diz-se,
puderam mudar. O que não se diz é porque os milhares de outros, que também sempre
seguiram as normas vigentes, não conseguiram ascender e mudar de classe social ou de
camada na mesma classe.
Também se incentiva a mudança de lugar de classe e no espaço, através de loterias,
os que tiram a sorte “grande”, podem mudar a sua condição de vida. Mas, quando muitos
acertam, como começou a ocorrer com a “loteria esportiva” ou depois com a quina” da
loto, que passa para “sena”, é preciso mudar as regras do jogo, para continuar a ilusão da
sorte grande, da possibilidade individual de mudança.
4
Veja-se Kowarick, L. op. cit.
37
Assim, a concentração da população nas cidades significa também,
contraditoriamente, sua dispersão, seu isolamento. Dispersão em classes sociais diferentes e
nelas em camadas de classe. Cada uma ocupa um lugar na produção, na cidade e na fábrica.
E individualiza-se e se dispersa em espaços “panópticos”, métodos de produção-rotinização
e racionalização, que caracterizam o controle da população concentrada.
A cidade é também concentração da produção industrial, da distribuição dessa
produção e também da produção agrícola, do comércio e dos serviços, desde os
considerados de alta tecnologia até a entrega/coleta de jornais de porta em porta.
A cidade preexiste à industrialização, que tão fortemente caracteriza a sociedade
moderna. A cidade medieval foi principalmente comercial, artesanal e bancária. É preciso
levam em conta que no feudalismo a terra foi a base da organização espacial. Desse modo a
apropriação do espaço estava ligada à produção agrícola e à produção doméstica de
manufaturas. A produção estava dispersa no espaço e as cidades eram “rurais”: lugar de
troca, de intercâmbio. O advento do capitalismo redimensiona este modo de ocupação do
espaço. A cidade é o lugar privilegiado da produção industrial e da acumulação de capitais.
Muito embora no início do processo de industrialização e mesmo no início do século XX a
indústria tenda a se localizar, principalmente próxima às fontes de matérias primas e de
energia e não necessariamente onde houvesse cidades, é a cidade o lugar por excelência
da produção industrial, principalmente onde se encontra uma população “livre” para vender
a sua força de trabalho.
5
Ora, para que a produção industrial e a acumulação de capital sejam possíveis é
preciso que haja mão-de-obra disponível, ou seja, que se considere que a população está
dividida em classes sociais, sendo uma delas aquela que essencialmente vende a sua força
de trabalho.
Penso que um indicador dos homens “livres”, para ficar mais perto da compreensão
de quem é a população brasileira que mora nas cidades, é o levantamento da população
potencialmente ativa (vide tabela 1). A concentração populacional, necessária ao processo
de produção, implica em alterações nas formas de sujeição. Como explica Foucault:
5
Ver Marx, K. A Acumulação Primitiva do Capital; Lefebvre, H. O Direito à Cidade e Ribeiro, D. O
Processo Civilizatório.
38
“Se a decolagem econômica do Ocidente começou com os processos que permitiram a
acumulação do capital, pode-se dizer, talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos
homens permitiram uma decolagem política em relação às formas de poder tradicionais,
rituais, dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma
tecnologia minuciosa e calculada de sujeição. Na verdade, os dois processos, acumulação
de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria sido possível
resolver o problema de acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de
produção capaz de mantê-los e de utilizá-los; inversamente as técnicas que tornam útil a
multiplicidade cumulativa dos homens aceleram o movimento de acumulação de capital.
(Foucault, op. cit. p. 194)
O elevado crescimento da população nas áreas metropolitanas, significa, uma
possibilidade da população escapar aos mecanismos de controle e disciplina, pois, como
dito, pobreza e riqueza são as duas faces da mesma moeda. É o medo das sublevações que
motiva instituições como a FNUAP
6
a propor estratégias de controle populacional, pois
ações coletivas são consideradas como desordem e perigo.
TABELA 1 – Brasil – População Potencialmente Ativa - 1985
POPULAÇÃO
GRUPOS DE
IDADE
ECONOMICAMENTE
ATIVA
NÃO
ECONOMICAMENTE
ATIVA
TOTAL
10 a 14 anos 2.860.730 (5,2) 11.851.516 (27,5) 14.712.245
15 a 18 7.969.171 (14,5) 5.900.460 (13,6) 13.869.631
20 a 24 8.797.309 (16,0) 3.621.115 (8,3) 12.418.424
25 a 29 7.766.462 (14,0) 3.016.160 (7,0) 10.782.622
30 a 39 12.462.488 (22,6) 4.572.170 (11,0) 17.034.658
40 a 49 8.156.811 (14,8) 3.791.566 (8,7) 11.948.377
50 a 59 4.705.799 (8,5) 3.886.935 (9,0) 8.592.734
60 e mais 2.377.387 (4,3) 6.515.184 (15,0) 8.892.571
idade ignorada 2.337 370 2.707
Total 55.098.494 (56,1) 43.155.475 (43,9) 98.253.969
6
Vide início deste capítulo.
39
Fonte: Anuário Estatístico do IBGE – 1986
A tabela 1 mostra os dados da população residente no Brasil com mais de 10 anos,
ou seja, da população considerada potencialmente ativa. Embora possam significar uma
aproximação, não demonstram exatamente quem vende e quem compra a força de trabalho.
Indicam apenas que mais da metade da população potencialmente ativa estava trabalhando
na data da pesquisa realizada pelo IBGE. Se excluirmos o grupo de 10 a 14 anos de idade, a
porcentagem dos que trabalham aumentará significativamente, passando de 56,1% para
62,5%. É bom ressaltar que considerar população potencialmente ativa aquela abaixo da
faixa dos 14 anos é típico de países dependentes, onde realmente se entra no mercado de
trabalho muito jovens, antes mesmo de ter se iniciado a formação escolar, quanto mais
terminado.
Tem-se assim um demonstrativo de quem está envolvido na produção. Mas como,
neste trabalho estou centrando a análise na cidade, é preciso fazer a distinção de que 28,5%
da população economicamente ativa estava empregada em atividades agrícolas e, portanto,
71,5% em atividades não agrícolas. Como hoje mais de 70% da população brasileira vive
nas cidades, tem-se uma parte correspondente de trabalhadores nas atividades concentradas
nas cidades, no secundário e no terciário (tabela 2).
TABELA 2 – Brasil – População Economicamente ativa por ramos de atividade 1985
RAMO DE ATIVIDADE
NÚMEROS ABSOLUTOS
PERCENTAGEM
Agrícola 15.190.393 28,5
Ind. Transformação 7.847.317 14,7
Ind. Construção 3.097.386 5,8
Outras Indústrias 839.275 1,5
Comercio de Merc. 5.814.660 10,9
Prestação de Serv. 8.854.159 16,6
Serv. Auxiliares 1.433.471 2,7
Transp./Comun. 1.916.009 3,6
Social 4.150.928 7,7
40
Adm. Pública 2.346.736 4,4
Outras Atividades 1.746.602 3,2
Total 53.236.936 100,0
Fonte: Anuário Estatístico do IBGE – 1986
É evidente que esta maior concentração de atividades secundárias e terciárias é
ainda mais significativa na Região Metropolitana de São Paulo, onde as atividades
agrícolas expressam 0,6% da PEA; as indústrias 38,6%; o comércio, prestação de serviços,
transporte representam, 42%; e as atividades de administração publica, social e outras,
representam 18,8% do PEA.
7
Muito embora no atual momento histórico, as grandes metrópoles concentrem mais
atividades terciárias do que secundárias e se tenham redimensionado as organizações
territoriais, a questão da concentração de pessoas, de capitais, de gestão, de produção e de
consumo não se modificaram ainda substancialmente, nos aspectos que interessam
especificamente a este trabalho, pois o desenvolvimento tecnológico não é linear, não
atinge todos os setores da produção e nem todos os países componentes do sistema
capitalista mundial. Além disso, não uma relação unívoca entre desenvolvimento
tecnológico, concentração de atividades terciárias, e resolução de problemas sociais.
8
Como os detentores dos meios de produção são poucos, quando se fala da
população brasileira morando e trabalhando nas cidades, fala-se da maioria dos brasileiros,
ou seja, da classe trabalhadora. É possível chegar-se a uma primeira aproximação com os
dados da tabela 3 onde verifica-se que, do total da população economicamente ativa, apenas
3,2% são considerados empregadores. Os dados são semelhantes para a cidade (3,1%) e
para as atividades agrícolas (3,4%). Deve-se destacar na cidade e no campo o trabalho por
conta própria e, nas atividades agrícolas, o trabalho familiar não remunerado.
7
Fonte: PNAD – 1985 – Regiões Metropolitanas
8
Como se trata, neste estudo, de analisar alguns aspectos dos vários problemas dos moradores da Metrópole
Paulista, esta dimensão não será abordada. Veja-se a respeito, Ratner, Henrique – 1988.
41
TABELA 3 – Brasil – População economicamente ativa – 1995 Vínculo empregatício
ATIVIDADES
VÍNCULO
Agrícola Não agrícola
TOTAL
Empregados 5.796.585 (38,1)
28.591.154 (75,1)
34.387.154 (64,6)
Conta própria 4.555.540 (30,0)
7.556.611 (19,9) 12.112.151 (22,8)
Empregadores 513.508 (3,4) 1.187.910 (3,1) 1.701.418 (3,2)
Não remunerado
4.324.760 (28,5)
710.868 (1,9) 5.035.628 (9,4)
TOTAL 15.190.393 38.046.543 53.236.936
FONTE: Anuário Estatístico do IBGE – 1986
TABELA 4 – Região Metropolitana de São Paulo – Pessoas ocupadas por posição na
ocupação e classes de rendimento mensal
CLASSES DE
RENDIMENTO
TOTAL
EMPREGADOS
CONTRA
PROPRIA
EMPREGADORES
Até ½ SM 3,6 2,8 8,9 0,2
De ½ a 1 SM 9,6 9,8 11,0 0,4
De 1 a 2 SM 24,5 26,1 21,7 1,9
De 2 a 3 SM 16,5 18,2 10,6 1,7
De 3 a 5 SM 19,5 19,5 20,5 16,3
De 5 a 10 SM 16,2 15,2 18,2 30,3
Mais de 10 SM 9,3 7,9 8,0 46,9
Sem decl. 0,7 0,5 1,0 2,3
FONTE: PNAD – 1985 – Regiões Metropolitanas
42
Não é possível afirmar que na categoria “empregadores” estejam apenas os
detentores dos meios de produção, porque estão incluídos desde os empregadores
domésticos até os grandes empresários. Mas na Grande São Paulo (Tabela 4), constata-se
que são sobretudo os empregadores que apresentam um ganho superior a 10 salários
mínimos, contrastando com os rendimentos dos assalariados (57% ganham até 3 salários
mínimos) e dos trabalhadores por conta própria (52% recebem até 3 salários mínimos).
Estes d ados, se não esgotam o assunto, dão-nos uma idéia do significado da
concentração demográfica e seu conteúdo que de alguma forma expressa a concentração da
produção industrial, de comércio e de serviços que ocorre nas cidades, particularmente nas
aglomerações metropolitanas.
Acrescente-se que à produção tipicamente citadina, há aquela que de fato ocorre nas
áreas rurais, mas que é consumida na cidade e cujos “insumos” são produzidos na cidade.
Produção esta que se refere tanto aos produtos alimentícios e aos insumos industriais
quanto à produção de energia. Grandes extensões de terras, em áreas de rios planálticos ou
mesmo de planícies, com grandes volumes de água, são utilizadas para a construção de
represas e de usinas hidroelétricas. Ora, a maior parte dos insumos utilizados são
produzidos nas cidades desde os projetos até as turbinas. Prontas as barragens, grandes
extensões de terra são inundadas e a produção de energia será consumida principalmente
nas cidades. A mesma coisa pode-se dizer das grandes represas para o fornecimento de
água potável para os moradores das cidades.
Aqui pode-se mencionar pelo menos um aspecto importante, interligado com vários
outros: a concorrência do uso urbano-industrial com o uso agrícola, que interfere no preço
da terra. A concentração-dispersão espacial da cidade com seus tentáculos em direção ao
campo, como se fosse um grande polvo, envolvendo o espaço rural. Desse modo verifica-se
que o preço da terra rural não é apenas redimensionado quanto se aumentam os limites
administrativos das cidades, mas também quando se expandem os “serviços” para a própria
cidade e o campo. Este é sem dúvida um aspecto visível da urbanização do campo que, se
não o único, é importante para analisar-se a concentração urbana e a redefinição dos usos e
preços da terra.
Acrescente-se também um outro aspecto de aglomeração-concentração: a expansão-
diversificação do comércio e dos serviços. Vinculada à produção, toda uma rede de
43
serviços, individuais e coletivos, se faz necessária; nesses pode incluir-se toda uma rede de
infra-estrutura física – visível ou não – ocupando espaço à superfície ou não (como é o caso
da rede subterrânea de água, a rede aérea de luz, etc.).
Está presente na grande cidade, enfim, toda uma rede, toda uma gama de grandes
concentrações: de capital, com seus aspectos visíveis e invisíveis; de edifícios de produção
de mercadorias, de gestão, de moradias, de comércio, prestação de serviços; de fluxo destas
mercadorias e de pessoas. Esta concentração mostra que, como diz Lefebvre:
“...tornando-se centro de decisão ou antes agrupando-os, a cidade moderna intensifica, organizando,
a exploração de toda a sociedade.”
(Lefebvre, op. cit., p. 57)
Mas como lembra o mesmo autor:
“A cidade é a projeção da sociedade sobre um lugar... não é apenas uma ordem distante, um
modo de produção, um código geral, é também um tempo, ou vários tempos, ritmos...”
(idem, op. cit., p. 56)
Ela contém também, sem se reduzir a ela, uma ordem próxima que entre outras
coisas se expressa como o lugar das reivindicações para minorar esta exploração da
socidade. Cada vez mais as grandes passeatas reivindicatórias deslocam-se do lugar onde o
bem ou serviço é necessário para o lugar na cidade onde podem chamar mais a atenção.
Em São Paulo, têm sido cada vez mais constantes as caravanas de moradores da
periferia em direção aos lugares considerados centros de decisão como, por exemplo, os
gabinetes de prefeitos, a área central das cidades, etc. Além disso, tem-se tornado uma
tônica no Brasil, as longas caminhadas de trabalhadores rurais “sem terra” em direção às
cidades-sedes de governo estadual – demonstrando sua mobilização e reivindicação. O
“Movimento dos Sem Terra” do Estado de São Paulo fez em abril de 1988, uma caminhada
de 200 km (de Limeira ao centro da cidade de São Paulo, passando por vários centros
urbanos) para trazer suas reivindicações ao Governo do Estado. Se a cidade é a sede do
poder, é também a este lugar que devem dirigir-se as reivindicações.
A cidade lança seus tentáculos por toda parte e, visível ou invisivelmente, tende a
reproduzir a sociedade de classes do mundo capitalista com seus fluxos visíveis, seus fluxos
escondidos, seus espaços recortados, compartimentados. A grande cidade com seus fluir,
44
seu barulho constante, como se a cada dia ficasse mais compacta, mais rígida e ao mesmo
tempo mais elástica, maior, se expande e toma (com seus tentáculos) a sociedade inteira.
É a cidade grande; onde se conta com a alta tecnologia do computador a serviços de
“todos”, mas onde se espera horas nas filas de lugares computadorizados e onde uma
grande parcela de moradores analfabetos. Onde se tem alta tecnologia para se explorar a
natureza, dutos e condutos para transportar petróleo, água, esgoto, energia elétrica, mas
onde falta de água nas torneiras ou onde se usa água de poço contaminado, onde há falta
de luz pública e mesmo domiciliar, e se usa a vela, onde há ruas esburacadas sem
cobertura de asfalto advindo da exploração do petróleo – , onde se anda com os pés
descalços. Carros e ônibus modernos para que circulem em alta velocidade, mas onde se
gasta, para uns, horas no trânsito, para outros – a maioria – horas nas filas e no trânsito; uns
esperam “confortavelmente” instalados nos seus automóveis, ainda que andem alguns
metros em horas, enquanto outros a maioria esperam horas nas filas e horas dentro de
ônibus lotados, sujos e escuros.
Mas está cada um no seu “lugar”, esperando “pacientemente” a hora de chegar em
casa. Casa? Para uns chegar em casa significa casa de alvenaria, água, luz, chuveiro,
banheiro, cama e comida. Variáveis os tipos de casa, desde as luxuosas até as confortáveis
ou razoavelmente confortáveis. Para outros a maioria significa barracos ou cômodos de
alvenaria, sem luz, sem água e muitas vezes sem comida. A espera “paciente” também se
expressa na violência do trânsito, da vida e das pessoas em geral. Mas cada um está no seu
lugar. As fábricas, os bancos, a polícia, o circo montado e desmontado, o teatro, o cinema,
os bares e botequins, os restaurantes de luxo, as favelas, os cortiços, as mansões, a energia
nuclear e a iluminação a vela, mostram a diversidade da produção da riqueza e o aparente
paradoxo desta riqueza produzir também a pobreza: “Ai de ti riqueza se a pobreza não
produzisse os frutos que produzem a tua riqueza”. (Ariovaldo Umbelino de Oliveira,
citando a fala de uma trabalhadora rural espoliada). E continua cada um no seu lugar.
As grandes cidades, como São Paulo, mostram essas desigualdades como toda a
força, tanto ao nível da concentração da riqueza como da pobreza. A segregação espacial
urbana mostra o lugar de cada um e cada um no seu lugar, pois:
“O espaço urbano, o bairro, as relações de vizinhança, a moradia, os equipamentos
coletivos de caráter mais local, são construídos, geridos e utilizados pelo Estado de maneira
45
a reproduzir, na sua micro-política, as estruturas de poder e de dominação em vigor na
sociedade definindo normas de comportamento normalizados e padronizados (ou
patronizados?) para que nada escape ao controle... No universo doméstico da moradia, no
reino doméstico-domesticado, as instituições totais, comandadas pela TV, pela propaganda
oficial, constroem um universo onde cada um é um agente passivo. As escolas, as áreas de
lazer, os centros de saúde, as creches administradas pelo Estado, completam este quadro de
submissão do indivíduo às instituições totais, que impõem um modo de vida previsto e
regulamentado.”
(Bonduki, 1986, p. 269)
Na diversidade das concentrações e gigantescas aglomerações, lugares de
produção, de consumo, o “consumo de lugar” (como diz Lefebvre para a produção, para
o comércio, para os serviços, enfim, para o próprio consumo). As representações e imagens
de cada um ao produzir e consumir são diversificadas.
Para quem nasceu numa Metrópole como São Paulo, a cidade mostra-se como se
fosse um turbilhão de permanências e mudanças. “Cresceu tanto que tudo mudou, mas
mesmo assim tudo está no mesmo lugar. não conheço os vizinhos, mas as casas são as
mesmas, o comércio é do mesmo tipo, mas o comerciante mudou.” (S.M.S., 48 anos,
nasceu e cresceu na cidade de São Paulo). “O nome da rua é o mesmo, mas é tudo diferente
de 30 anos atrás, quando apenas algumas ruas tinham luz, nem havia água encanada e as
casas eram modestas.” (Z.M.E. – 50 anos). (depoimentos)
É difícil perceber as ruas em que os carros transitam lentamente se transformando
em grande avenidas de aparente trânsito rápido, mas que é mais lento carros parados pela
intensidade de fluxo de automóveis. Numa recente enchente ocorrida em São Paulo, um
morador do bairro do Butantã em SP, desabafou: “Antigamente (antes da canalização),
quando era um riozinho, não era tão ruim. Enchia, mas não tínhamos o barulho horrível dos
caminhões até as três horas da manha.”. Mas o bairro foi se urbanizando, as matas dando
lugar às edificações, à canalização do córrego: “Pensávamos que a perda da tranqüilidade e
da segurança da tua por causa dos caminhões era o preço que tínhamos que pagar para não
ter mais enchente. Agora, além do perigo do trânsito, voltamos a ter as casas inundadas.”
(in Gazeta de Pinheiros, 01/4/88).
Este depoimento é, sem dúvida, demonstrativo do processo de ver a cidade
mudar”. A urbanização tira a mata, canaliza o rio, em troca da promessa de não haver
enchente: poluição, trânsito intenso, etc. Porém verifica-se que esta troca não é
46
verdadeira, faz parte do processo de urbanização. Para quem nasce numa cidade como São
Paulo tudo muda, mas os problemas continuam e são continuamente redimensionados.
Para quem chega, principalmente quando vem de lugares onde o ritmo é marcado
pelo dia e noite, horas de sol, de chuva, ritmo da hora e do tempo de colheita e do plantio, e
se depara com o ritmo das horas contadas em minutos e segundos a hora do relógio –, o
impacto das grandes cidades é muito maior. Em São Paulo, o ritmo intenso não é apenas
quanto à velocidade do trabalho, mas do tempo como um todo. Nas áreas centrais da
cidade, um relógio em cada esquina, marcando um tempo e um ritmo de controle das
horas e minutos, passando este controle do tempo do lugar de trabalho para a cidade, ou
melhor, para os habitantes da cidade como um todo. É preciso ir e vir, trabalhar e voltar,
com sol intenso, com chuvas que provocam cheias e com os velocímetros de ônibus e
carros contendo a marca dos 180 km/h, quando os ponteiros atingem no máximo 20 km/h.
Como consumir tantos lugares e tão diferentes entre si? Desde os “Shopping
Centers” até os marreteiros ambulantes. Desde o do homem sanduíche” até o dos
imponentes “out-doors”. Desde o do forno de micro-ondas até o do fogão à lenha, que pode
ser apenas um buraco no chão, onde se usa para ser mais “rápido” a panela de pressão (foto
a). Desde o consumo dos lugares ao de consumo das idéias, pois diz a propaganda, quem
fuma a ou b, tem a marca do sucesso, mas também, isto não é dito, há o fato de fumando, só
gastar seu dinheiro e seu pulmão e não ter dinheiro para comer, e assim o sucesso não vem.
Como diz Álvaro V. Pinto:
“Os homens consomem socialmente as idéias, da mesma maneira que qualquer outro bem
indispensável, e o fazem porque delas necessitam para a atividade permanente a que estão
obrigados a se dedicar: a de produzirem a sua existência. Mas entre os produtos que têm
que elaborar para viver, contam-se igualmente as idéias, não aquelas já conhecidas, ou com
o mesmo conteúdo com que foram adquiridas, mas outras inéditas...”.
(Pinto, A.V., 1969, p. 49)
Assim, os que nascem na Grande São Paulo e os que chegam, vindos do campo ou
de outras cidades, consomem a cidade, as idéias o consumo dos lugares. Desse modo,
produzem a cidade, porque produzem sua existência.
Penso que uma forma de compreender este processo de produzir e consumir a
cidade é analisar a apropriação do espaço urbano para moradia, buscando verificar o
47
consumo das idéias conhecidas e as que vão sendo construídas nesse processo de luta
pela moradia, numa grande metrópole como é São Paulo.
oOo
48
2. APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO PARA MORADIA
“A fragmentação do espaço para venda e compra está em franca contradição com a
capacidade técnica e científica da produção do espaço em escala planetária.
(Henri Lefebvre)
nas cidades capitalistas várias maneiras de apropriação do espaço urbano para
moradia. Em todas elas a terra é apropriada vendida e comprada – em “pedaços”,
compartimentada. O marco divisório dessa apropriação é a classe ou parcela de classe a
qual pertencem os indivíduos e/ou grupos de indivíduos, que define a capacidade
diferenciada de pagar pela terra e pela casa. Principalmente para os trabalhadores, esta
apropriação, enquanto propriedade, não se expressa necessariamente num momento de
tempo, mas num período de tempo, que pode ser a vida útil de um indivíduo. Na ótica deste
trabalho, a apropriação do espaço urbano é lugar de moradia, necessidade biológica e
necessidade social. É a terra e a habitação onde alguns ainda obtêm renda, juros, lucro e
outros – a maioria – despedem esforços e dinheiro para obter um abrigo.
A ênfase na análise da terra e/ou habitação nela edificada, é uma forma de tornar
explícito o processo de produzir e consumir a cidade, de tentar tornar explícito, na luta
cotidiana pela moradia, aquilo que, no dizer de David Harvey, é mistificado e turvo na vida
diária. Cerca de ¾ da terra urbana é utilizada para habitação, o que implica numa
concorrência entre as diferentes “necessidades” de moradia, e entre as necessidades de
reprodução do capital e de reprodução da força de trabalho, ou seja, o espaço necessário
para moradia também conflita com diferentes usos urbanos. Neste sentido, penso que a luta
pela moradia caracteriza um processo extremamente rico que permite analisar a produção e
o consumo do espaço urbano, notadamente porque a produção é social, mas é imputado ao
individuo a resolução da questão do onde e como morar.
Considere-se também que uma diversidade muito grande, seja em tamanhos de
lotes, seja em qualidade e tamanho de construção, seja em localização; há áreas bem
servidas ou não por equipamentos de consumo coletivos urbanos e com características de
segregação, verdadeiros guetos de moradia e com preços muito variados. que se
considerar, portanto, o consumo dos lugares com seus preços variados e suas características
49
diferentes, ou seja, a concentração da pobreza e da riqueza e sua visibilidade na segregação
espacial.
Não se pode viver sem ocupar espaço. Morar é uma das necessidades básicas, assim
como comer, vestir,etc. As quantidades de artigos ou de meios de subsistência que são
julgados necessários em cada período são determinados historicamente. A moradia, em
qualquer período histórico, é considerada uma necessidade vital. Mudam as características
da moradia, desde o abrigo em cavernas, do chamado processo de hominização, até as
diversidades das construções atuais ou as casas do futuro, do século XXI, como nos filmes
de ficção científica, ou quem sabe nos espaços inteiramente lisos, de Felix Guatarri. Diz
Agnes Heller:
“As ‘necessidades naturais’ são simplesmente relativas à consumação da vida humana
(autoconservação). São necessárias por natureza porque, se não satisfeitas, o Homem não
pode manter o estado de ser vivo. Não são análogas às necessidades animais, pois estas
condições (aquecimento, vestimenta) que não se colocam como necessidade’ para o
animal, se revelam indispensáveis à simples sobrevivência do ser humano. São
consequentemente necessidades sociais...: a própria necessidade, encontra-se socializada
pelo modo de satisfazê-la.”
(La Theorie des Besoin chez Marx, p. 48)
Assim, a necessidade de morar, como uma necessidade vital, tem que ser
compreendida socialmente. O problema de onde e como morar diz respeito à maioria dos
trabalhadores, aqueles que não podem pagar pelo direito de uso-aluguel – ou pelo direito de
propriedade-compra – pois:
“...na ótica puramente capitalista, as necessidades dos operários aparecem como limites à
riqueza e enquanto tal são analisadas. Mas, simultaneamente, a necessidade aparecendo sob
a forma de uma demanda solvável constitui uma força motriz e um instrumento do
desenvolvimento econômico.
(idem, p. 49)
Em geral, o limite de produção da moradia, que atenda a necessidade dos
trabalhadores, tem sido analisado pelo viés do mercado. Como os trabalhadores não podem
pagar pelo direito de uso, não há incentivo para a produção de casas para aluguel; como não
podem pagar pelo direito de propriedade, não incentivos de produção de casas para
compra e venda no mercado, ou seja, não há incentivos à produção.
50
No entanto, a indústria de construção civil, pelo menos no Brasil, tem sido
considerada um dos baluartes da produção capitalista, tanto pelo consumo de outros
insumos industriais na construção em si, como pela numerosa mão-de-obra empregada nas
edificações. Mas, como a ótica tem sido sempre a demanda solvável, o Estado é chamado a
intervir, passando a ser responsável pelo atendimento desta necessidade, regulando a
produção e subsidiando o consumidor. Na verdade, diz-se que a falta de um mercado
inviabiliza a produção desta riqueza e que caberá ao Estado agir para propiciar a sua
produção, porque se constitui numa força motriz do desenvolvimento econômico. De
qualquer modo, mesmo com a intervenção do Estado, sempre depende de uma
possibilidade de pagamento.
Por outro lado, a intervenção do Estado, no caso do Brasil, tem redundado na
privatização dos recursos públicos, canalizados através do Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço (FGTS) e das Cadernetas de Poupança, que financiam empresas construtoras para
um mercado de “baixa renda” (Maricato, E., 1987). Mas e aqueles que mesmo assim o
podem pagar? É possível, casos extremos pedir de porta em porta restos de comida, roupas
velhas que não são mais usadas. Será possível pedir um “pedaço” da casa para morar,
mesmo que seja por algumas horas, mesmo que o “pedaço da casa” não tenha uso? É até
possível ser precariamente atendido em lugares públicos, como albergues; porém apenas
uma moradia provisória de um ou dois dias. Ou então, quando alguma calamidade atinge
determinados lugares, as famílias moradoras podem obter algum lugar para ficar
provisoriamente, como é no caso de áreas atingidas por enchentes, incêndios, até que o
lugar anterior seja reconstruído, ou se arrume um outro lugar definitivo ou ainda provisório
para ficar.
O porquê não é possível pagar pelo direito de uso ou troca, implica também em
considerar a relevância da questão da moradia, pois é preciso compreender as
determinantes do preço desta mercadoria e seus componentes: a terra e a obtenção de renda,
a edificação e a obtenção de lucros, os empréstimos e a obtenção dos juros, os salários
pagos aos trabalhadores; a produção social da cidade e da moradia e a apropriação
individual, pois como diz Harvey:
“O modo de produção capitalista força uma separação entre o trabalhar e o viver ao mesmo
tempo que os reintegra de maneira complexa... As lutas em torno do fundo de consumo para
51
o trabalhador, emergem das tensões inevitáveis entre os apropriadores (procurando renda),
os construtores (procurando lucro), os financistas (procurando juros) e o trabalho
(procurando se opor às formas secundárias de exploração que ocorrem no local de vida).
Entretanto, os meios e as formas de tais conflitos diários são o reflexo de uma tensão muito
mais profunda, com manifestações não o facilmente identificáveis uma luta sobre o
significado e a definição de valores de uso, do padrão de vida da força de trabalho, da
qualidade de vida, da consciência e até mesmo da própria natureza humana.”
(Harvey, 1982. Esp. Debates, n.6)
Portanto, morar é uma necessidade básica, sendo, sua característica definida
socialmente. Apresenta-se com especificidades porque o lugar de abrigo é também uma
quantidade de espaço para uso exclusivo de seus ocupantes, um espaço privativo que pode
ser utilizado de várias maneiras. Como lugar de trabalho, mesmo considerado apenas como
moradia, implica na realização de determinadas tarefas, que têm como lugar privilegiado de
execução a própria moradia: cozinhar, passar, lavar e banhar-se, limpar a própria casa, etc.
É também o lugar onde se tem privacidade, onde se descansa-dorme e com o advento da
TV, tem-se na maioria dos casos, o único lazer, etc. Atividades internas à casa que também
são definidas socialmente. Onde e como morar, onde e como na moradia dormir, cozinhar,
ter lazer, etc. Todos os utensílios da moradia também, como na própria moradia,
representam uma força motriz para o desenvolvimento econômico. Caracterizam-se, todos e
cada um dos utensílios, também como mercadorias que têm um valor de uso e um valor de
troca. Há, em cada unidade de moradia, também um consumo interno, além do consumo da
casa – o lugar onde se fica e que corresponde ao micro-cosmos individual e familiar
(Rodrigues, A. M., 1988).
Morar implica que a casa esteja situada num contexto, no nosso caso urbano, e que
tenha uma localização relativa em relação ao trabalho, aos serviços, um tipo de vizinhança,
etc., o que implica na produção e no consumo do lugar. A casa, assim localizada no espaço
urbano, compreende um lugar, produzido e reproduzido pela sociedade em seu conjunto,
pela concentração de homens e de produção. E assim, ao analisar a moradia com suas
características de produção e consumo, estar-se-á analisando a cidade capitalista, em pelo
menos um dos seus aspectos significativos; principalmente porque esta análise o pode
estar dissociada da produção e do uso dos equipamentos de consumo coletivo. A rigor, os
equipamentos coletivos deveriam beneficiar todos os moradores das cidades. Porém
verifica-se que para serem utilizados é necessária uma capacidade de pagar que depende do
52
lugar que os moradores ocupam no interior da divisão do trabalho, o que define seu lugar
na cidade.
oOo
53
2.1. Valor de uso/valor de troca: a mercadoria terra urbana e suas especificações
Um primeiro aspecto a ser abordado está relacionado à apropriação da terra
urbana/habitação como valor de troca, visando a obtenção de renda, lucros ou juros, o que
não implica em dizer que nestes casos o valor de uso não exista, mas sim que o objetivo
desta apropriação é o valor de troca. São segmentos sociais que lucram diretamente com a
cidade. Diz Topalov:
“Definirei como proprietário capitalista (do solo urbano) a um agente para o qual possuir a
propriedade é o suporte da valorização de um capital. A propriedade de um terreno ou de
um imóvel é a forma concreta de um valor abstrato: o capital, o valor que se valoriza. Este
proprietário venderá ou não, segundo a rentabilidade alternativa de seu capital, obtida em
outra forma de investimento. Evidentemente a rentabilidade de um capital imobiliário é
algo complexo: não é somente a renda anual, que pode até ser nula. Sabe-se que com
relação ao aluguel, por exemplo, a renda obtida não é senão um dos componentes da
rentabilidade global, sendo outra a evolução do valor venal do ativo. Em resumo pode –se
dizer que o proprietário capitalista é aquele que administra seu bem como capital.
(Topalov, p. 174)
Utilizarei esta definição de Topalov que se refere explicitamente, neste caso, aos
proprietários capitalistas do solo, àqueles que investem em imóveis, com o objetivo de
obter renda. ainda aqueles que, embora não sejam diretamente proprietários do solo,
obtêm com a terra uma valorização do capital. Neste caso poderíamos citar os detentores do
capital financeiro, que fazem empréstimos para aquisição da terra, ou loteamento, ou
mesmo empréstimos para a aquisição da casa própria e assim obtêm seus juros do capital.
Não é apenas a propriedade direta que pode permitir, no solo urbano, o objetivo de
valorização do capital dinheiro. ainda aqueles que lucram com a cidade, no sentido
mesmo da obtenção direta de lucro, através do processo de urbanização, abertura de vias e
mesmo da edificação. Ao empregar trabalhadores neste processo, tem-se um processo de
valorização do capital empregado.
Por outro lado, há uma grande parcela de moradores da cidade, que pertencentes aos
mais diversos segmentos da sociedade, apropriam-se do espaço urbano como valor-de-uso,
onde, é claro, está embutido o valor de troca, o que lhes permite também apropriar-se de
uma renda. É freente afirmar-se que, para os possuidores de pequenos lotes ou mesmo
casas para moradia própria, a terra e a casa tem apenas valor-de-uso. Não concordo com tal
54
assertiva, porque seria negar as características da mercadoria no modo de produção
capitalista. Como bem diz Harvey:
“...o método marxista de colocar o valor-de-uso e o valor-de-troca em relação dialética entre
si merece consideração porque favorece o duplo propósito de soprar vida nova nos estudos
geográficos e sociológicos do uso do solo, e de construir uma ponte entre as abordagens
espaciais e econômicas dos problemas de uso do solo.”
(Harvey, D., op.cit., p. 137)
Em que pese a especificidade do solo urbano, toda mercadoria tem em si valor de
uso e de troca. Embora os proprietários que tenham uma única casa para moradia, tenham a
propriedade como um bem de consumo, esta propriedade também tem em si um valor de
troca, que poderá concretizar-se no momento de venda no mercado.
Há, sem dúvida, diferenças visíveis para qualquer observador no tamanho dos lotes
e das casas construídas, na qualidade da moradia, nos bairros onde se situam, nos
equipamentos existentes em diferentes bairros, nas ruas asfaltadas ou não, nos lugares de
circulação de veículos e no tipo de veículo que circula. Tal diferença, como já dito, depende
da capacidade de pagar pela terra e pela habitação, que depende do lugar ocupado na
produção e reprodução do modo de produção capitalista. Mas o proprietário de uma casa
que a utiliza como moradia não é proprietário capitalista. Possuir uma mercadoria (mesmo
que seja uma mercadoria ‘sui generis’) não é ser proprietário capitalista.
Diz Topalov:
“A propriedade do solo é uma pluralidade de relações sociais e não uma. Em outros
termos, ser proprietário de um terreno ou de um imóvel o significa o mesmo segundo a
posição de classe que se tenha. Esta posição confere um conteúdo social específico à
relação jurídica da propriedade. A propriedade do solo é uma relação jurídica que abarca
uma pluralidade de relações sócio-econômicas concretas. E estas de maneira nenhuma se
esgotam na relação jurídica. Podemos ilustrar esta proposição: não é a mesma coisa ser
proprietário de imóvel em que se mora ou ser proprietário de um terreno agrícola que se
arrenda a um colono, ou ser proprietário de um estabelecimento comercial no centro da
cidade. A relação jurídica é a mesma, é o ‘direito de usar e abusar’ de seu próprio bem,
segundo a fórmula típica do primeiro código civil burguês, o código de Napoleão. Sem
dúvida, como é sempre o caso em matéria de direito, isto indica e esconde por sua vez
relações sociais: define como formalmente idênticas relações sociais fundamentalmente
diferentes.”
(Topalov, op. cit., p.173)
55
No caso da Metrópole paulistana, são as unidades familiares com rendimentos
superiores a 5 salários mínimos, onde está a maior concentração de proprietários de casa
própria (ver tabela 5). Embora seja um dado importante é bom que se avalie que não se
adquire uma casa apenas num momento de tempo, mas sim em períodos de tempo, que
podem ser de até 25 anos (prazo de financiamento do SFH).
TABELA 5 Região Metropolitana de São Paulo Domicílios Particulares Permanentes,
por condição de ocupação – por Classes de Rendimento Mensal
DOMICÍLIOS PERMANENTES
RENDIMENTO
Próprios
Alugados
Cedidos
Total
Até 1 salário 47,1 29,3 23,6 3,4
De 1 a 2 salários 45,4 35,5 19,1 9,3
De 2 a 5 salários 46,2 40,7 13,1 32,6
Mais de 5 salários
63,3 31,6 5,1 52,7
Sem renda 38,1 40,5 21,4 1,0
Sem declaração 75,0 33,7 2,3 1,0
TOTAL 55,4 34,8 9,8
FONTE: PNAD – vol. 9, 1985
É interessante verificar que nos domicílios onde a renda familiar é de até um salário
mínimo, uma parte significativa mora em casa própria. Por este rendimento familiar pode-
se ter uma idéia das características da casa. Nos Censos oficiais considera-se casa própria
desde o barraco de favela, porque não se pesquisa a legalidade jurídica da propriedade da
terra e dos imóvel nela identificados, até as mansões. Inclui-se também as casas que,
embora sejam denominadas próprias ainda estão sendo pagas (como dito, muitas vezes
por longos períodos de tempo). uma grande porcentagem de casas cedidas por
empréstimo, o que significa também que muita gente mora em casa de parentes ou amigos.
E assim entendemos, como Topalov, que propriedade do solo/casa é uma pluralidade de
relações sociais e não uma só.
56
Por outro lado, também é muito importante destacar que os possuidores de casa
própria são percentualmente menos significativos em 1980 que em 1970, tanto na cidade de
São Paulo, como na cidade de Osasco. Embora seja um dado relativamente precário, pode
indicar ainda maiores dificuldades na aquisição de casa própria. Em São Paulo, passaram
de 54% em 1970 para 51% em 1980, em Osasco de 58,2% em 1970 para 51,9% em 1980.
Neste período a população da Cidade de São Paulo aumentou em 44,5% e a população
favelada em 446%, em Osasco a população favelada mais do que dobrou; como os
proprietários de barracos de favelas estão incluídos entre os moradores de casa própria,
tem-se uma diminuição, ainda mais evidente, de proprietários de casas próprias
consideradas de qualidade no mínimo razoável.
9
A apropriação do espaço urbano para moradia tendo como referência a casa própria
reveste-se também de uma pluralidade de formas: compra-se casa pronta, compra-se o
terreno e contratam-se empresas para a construção ou o próprio comprador, auto-constroe-
se (depende do extrato de renda e da classe a que pertence), compra-se casa pronta e se
reforma, etc. Quando a compra não é possível, também ocupam-se edifícios ou ocupam-se
terras, onde constroem-se barracos as favelas e as ocupações coletivas. Para os que não
moram em “casa própria” a forma de conseguir moradia é predominantemente o aluguel. Aí
se trata de buscar um lugar onde haja casas para alugar compatíveis com o salário. A cessão
de imóveis, compreende uma forma de resolução da questão da moradia, baseada
principalmente em relações pessoais ou familiares. Nos casos de imóveis cedidos, tanto
pode haver uma concentração de famílias/pessoas numa mesma unidade, como, quando o
cedente tem mais de um imóvel, caracteriza-se um empréstimo da casa. Nas classes com
maior rendimento é comum a cessão da casa, mantendo-se a propriedade que continua a
“valorizar”.
10
Como foi visto na tabela 3, apenas 3,1% da PEA era empregadora, o que pode
significar que esta parcela é também proprietária da casa onde mora, da casa própria. Não é
possível, no entanto, saber se estes empregadores são também proprietários de imóveis
alugados ou mesmo de terrenos ociosos. Existem pesquisas realizadas com trabalhadores
9
Vide Censos do IBGE de 1970 e 1980 e CEDEC – 1987 e Rodrigues, A. M., 1981.
10
Além das formas usuais de comprar terreno e construir, comprar casa pronta, alugar um imóvel, ou ter um
imóvel cedido, constata-se que alguns que não têm onde morar e passam a fazê-lo debaixo de pontes.
Deve-se ter em conta que os dados da tabela 5, baseados em dados do PNAD referem-se a uma amostragem,
estando aí inclusos, favelas, cortiços, ocupações, casas e apartamentos e mansões.
57
que demonstram que os moradores de casa própria não podem de maneira alguma ser
denominados de proprietários capitalistas. Há, contudo, falta de pesquisas sobre a situação
de propriedade da grande maioria dos imóveis alugados e dos terrenos vazios.
Correspondem, seus proprietários, pelo menos em princípio, aos que lucram com a cidade.
Ou seja, quem aluga, aluga de quem? O proprietário do imóvel alugado tem apenas um
imóvel que funciona como uma espécie de poupança, ou é proprietário de muitos imóveis?
Ou seja, são os proprietários rentistas, quem são os proprietários de terras deixadas vazias
aguardando um aumento do preço da terra?
É muito comum encontrar proprietários de um único lote que moram na parte da
frente do imóvel e alugam a parte dos fundos. Na situação de penúria em que vivem pode-
se considera-los como proprietários capitalistas? No sentido utilizado por Topalov
(Topalov, op., cit.), de que são proprietários capitalistas os que têm a propriedade como
suporte de valorização de capital, não seriam proprietários capitalistas. Neste caso, embora
suas casas sejam ‘usadas’ como valor de troca, não as considero simplesmente como um
suporte para a valorização do capital, pois, na maior parte desses casos, é uma forma de
garantir a sobrevivência do proprietário. Ou seja, há uma pluralidade de relações na
propriedade urbana para a moradia, mas é importante salientar que aqueles que de fato
lucram com a cidade são uma minoria.
A fragmentação do espaço, para compra e venda, poderia pressupor que cada
proprietário queira retirar o máximo de rendimento possível, de cada espaço de terra. Mas,
importa também salientar que há na pluralidade relações dos proprietários de terra/casa para
moradia e os que de fato investem na terra/casa, visando diretamente o lucro, constituem-se
em minoria. Para uns a cidade é principalmente fonte de lucro, para outros a maioria é
principalmente fonte de uso. Para os que podem e os que não podem pagar, os aspectos de
procura e de apropriação do espaço são diferentes. Para os que buscam lucrar com o espaço
urbano esta procura faz “criar” novos espaços. Os que buscam apenas um canto para morar
também “criam novos espaços. Embutida e inerente a esta nova produção, tem-se a
reprodução do espaço urbano e a reprodução das condições de existência, relativas à
questão da moradia.
Em todas as formas de apropriar-se do espaço urbano está implícita, na cidade
capitalista, o pagamento pelo uso e pela propriedade de terra e da moradia. Na apropriação
58
da cidade capitalista está embutido o pagamento. A cidade é dividida em parcelas e cada
parcela tem um preço, que corresponde ao consumo do lugar.
A troca no mercado de terras e de casas ocorre num ‘momento do tempo’ mas seu
uso se estende por um longo período de tempo. Este aspecto da mercadoria terra/casa não é
peculiar apenas ao solo e às benfeitorias, mas a proporção de freqüência de troca em
relação à duração do uso é baixa. Além disso, direitos de consumo para um período longo
do tempo são obtidos com grande desembolso de recursos num momento do tempo.
Consequentemente, as instituições financeiras tendem a desempenhar um papel muito
importante no funcionamento do mercado do uso do solo urbano e da propriedade na
economia capitalista (Harvey, op. cit.). O grande desembolso que ocorrerá num momento
do tempo é referido à compra e venda da mercadoria e não ao aluguel, já que, no aluguel, o
desembolso é realizado durante todo o tempo de uso da mercadoria. Por outro lado, é
importante salientar que, muitas vezes, este desembolso só aparentemente ocorre num
‘momento’ de tempo, pois de fato significa ‘poupança’ por um longo período. Além disso,
um fechamento de contrato de compra e venda não tem necessariamente quitação no
momento de compra e venda, mas sim após um longo número de anos.
De qualquer modo, o trabalhador não poderá contar com recursos advindos do
salário apenas no momento do tempo em que se efetua a compra e venda. O salário
assegura, na maior parte dos casos, precariamente a reprodução imediata da força-de-
trabalho. É pago ao assalariado o que garante os meios para viver hoje e não amanhã. “Para
que a reprodução seja contínua, a venda de força de trabalho, deve renovar-se
permanentemente, o que assegura a renovação contínua da subordinação do trabalho ao
capital.” (Topalov, op. cit., com modificações).
Efetivamente, o salário é computado o “suficientepara satisfazer as necessidades
imediatas e fracionáveis da mercadoria força-de-trabalho. Não se reconhecem as
necessidades não-imediatas, não-fracionáveis e não-uniformes dos produtores. O capital
pagará o salário para a habitação do dia trabalhado (ou quando o pagamento for mensal, do
mês já trabalhado). Ora, se a compra desta mercadoria ocorre num momento de tempo, mas
seu uso se por um longo período de tempo, com grande desembolso, e como no salário
está incluída a moradia de um momento do tempo o já trabalhado –, é de pensar-se nas
forma de pagamento desta mercadoria. Quando se pesquisa a situação salarial de um dado
59
momento e a propriedade desta mercadoria casa própria –, tem-se apenas um instantâneo
da situação. É necessário ater-se ao processo pelo qual foi possível obter a casa própria para
compreender a questão em toda a sua complexidade.
O texto do decreto-lei n.399 que regulamentou o salário mínimo brasileiro em 1938
diz:
“O salário mínimo brasileiro será determinado pela soma das despesas diárias com
alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte necessários à vida do trabalhador
adulto. A parcela correspondente à alimentação terá um valor mínimo igual aos valores da
lista de provisões necessárias à alimentação do trabalhador adulto.”
Depreende-se do texto do decreto-lei, que um trabalhador deve receber por uma
jornada diária, um salário para suprir as despesas imediatas, apenas do dia em que
trabalhou. Mas, é evidente que não se pode considerar estes termos no sentido restrito, pois
nesta legislação também estão implícitos o “descanso remunerado” quando cumprida a
jornada semanal –, e as férias – quando cumprida a jornada anual. O que se quer salientar é:
no salário está implícito o pagamento pelo uso de uma casa, o aluguel, pois este sim é
calculado por curtos períodos de tempo, e não a compra da casa. No entanto, incentiva-se a
compra da casa própria, o que contrasta com a forma explicitada, no texto da lei citada.
A Constituição Federal desde a primeira até a de 1988 determina que o salário
mínimo, que é a base da remuneração do trabalho assalariado desenvolvido na sociedade,
deve atender às necessidades do trabalhador e de sua família. A média dos salários
acompanha sua evolução porque é através de seu montante que se estabelece o preço da
contratação da mão-de-obra e assim será calculado sempre com base na reposição diária da
força de trabalho. Como exposto na tabela 4: 76,4% dos empregados e 72,7% dos
trabalhadores por conta própria ganham no máximo 5 salários mínimos. Ora, o valor atual
do salário mínimo sequer cobre as despesas com alimentação; é muito difícil a quem o
recebe pagar pela moradia, seja alugando, seja comprando uma casa e pagando por longos
anos uma prestação. Nesse sentido é importante destacar alguns dados sobre o valor do
salário mínimo e sua possibilidade de suprir as necessidades de reprodução do trabalhador e
sua família.
60
Em 1959, o tempo necessário de trabalho para adquirir a ração alimentar básica era
de 65h e 05m; em 1969 de 110h e 23m; em 1979 de 153h e 04; em 1984 de 194h e 38m.
11
Ou seja, em 25 anos, TRIPLICOU o número de horas de trabalho necessárias para suprir as
despesas com alimentação básica.
Como pagar o aluguel, alimentar-se, deslocar-se, cuidar da saúde, se o trabalho está
sendo quase que inteiramente consumido com uma alimentação muito precária? Em julho
de 1988 quem recebia o piso nacional de salários (nova denominação para o salário
mínimo) gastou 80,44% do seu orçamento na compra da cesta básica de alimentos, ou seja
Cz$9.159,04. Isto significa que sobrou” menos de 20% do salário, ou seja, Cz$3.284,96,
para as despesas de moradia, vestimenta, higiene, transporte, saúde. Quando se considera
que o piso salarial deveria suprir as necessidades do trabalhador e de sua família, calcula-se
que deveria ter sido em julho de 1988 de Cz$79.686,19, apenas para manter-se com um
padrão mínimo de sobrevivência e não de Cz$12.444,00 (DIEESE pesquisa de julho de
1988).
Mesmo os trabalhadores que ganhavam, nesta data, até 5 salários, estariam abaixo
do limite de sobrevivência previsto no Decreto Lei 399 e na Constituição em vigor, pois
representam um valor até Cz$62.220,00, portanto abaixo do mínimo considerado
necessário, nos cálculos realizados pelo DIEESE.
Fica, assim, demonstrado que o salário é insuficiente para pagar pelo uso de uma
casa, pois os aluguéis de casas precárias, localizadas em áreas sem infra-estrutura e
equipamentos de consumo coletivo, situam-se em torno de Cz$5.000,00. Segundo a
Embraep, os aluguéis subiram, em 1986, 500% em relação a 1981 (Maricato, E., 1988) e só
no ano de 1987, subiram mais de 400%. É possível para a maioria dos trabalhadores pagar
aluguel ou comprar uma casa? Além disso, é bom relembrar que os componentes da cesta
básica de alimentos foram estabelecidos em 1938, portanto nas características de produção
e de consumo deste período. “Modernizaram-se” a produção e o consumo, mas a maioria
dos trabalhadores pode consumir aquilo que é determinado e na especificação do que é
determinado, por exemplo, o quando deve consumir de carne para se manter no limite da
reprodução, qual é a casa onde é possível morar. Aumentam-se as variedades de
11
DIEESE – 1985. Veja-se também tabelas anuais in Kowarick, L. e Campanário, M., op.cit.
61
mercadorias. “Moderniza-se” a metrópole e limita-se a capacidade de consumo.
Concentração da riqueza e da pobreza.
oOo
62
2.2. A Constituição da Propriedade da Terra no Brasil
Desta ligeira abordagem sobre a contradição entre o fato de o salário expressar,
teoricamente, uma remuneração que permita suprir as necessidades de reprodução da força
de trabalho e o seu valor real, insuficiente para garantir as mínimas necessidades básicas,
entre as quais a moradia, fica evidente que uma falácia nas tentativas de resolver o
problema de moradia. Todavia, incentiva-se o “ideal da casa própria”, ainda que seja
necessário pagar pelo direito de morar que não está contido no valor do salário, nem para o
aluguel, quanto mais pela compra. Para compreender melhor a questão, considero
necessário analisar alguns aspectos da propriedade da terra urbana, pois a necessidade de
morar pressupõe terra pra edificar moradia sobre ela. Esta terra é uma mercadoria “sui
generis” do modo de produção capitalista.
Sucintamente, é importante retomar alguns aspectos da constituição da propriedade
da terra no Brasil, pois, no século XIX, ao mesmo tempo em que o espaço-territorio-
brasileiro se tornava mais conhecido, em que se ampliava a produção do café e se tinham
amplas possibilidades de plantio solo, clima faltavam braços para a lavoura. Significa
que, se terras havia em abundância, eram necessários braços para torná-la produtiva. E
como a abolição da escravatura estava em pauta, incentivou-se a imigração de colonos
europeus. Havia amplas extensões de terras desocupadas, mas era necessário, torná-las
acessíveis, pelo menos de imediato, aos imigrantes que foram atraídos para o cultivo do
café, bem como para os escravos libertos.
Até 1850 a terra no Brasil não contava como valor monetário, pois:
“A primeira lei que regulou a apropriação das terras brasileiras foi o regime de doações de
terras pelas sesmarias. Inspirada na legislação do Império Romano, a Lei das Sesmarias foi
aprovada em Portugal no ano de 1375 e estabelecia a praxe da concessão de terras a
particulares, objetivando a efetiva ocupação. A lei das sesmarias portuguesas visava o
aproveitamento total das terras em grande parte inculta e abandonada. (...) O regime de
doações de terras no Brasil é introduzido oficialmente com as Capitanias Hereditárias,
visando o povoamento, a ocupação e principalmente a defesa das terras brasileiras, devido
às tentativas de invasão.”
(Jahnel, T. 1988, p.105)
Os portugueses entraram na posse do solo brasileiro em nome e sob o domínio da
Coroa, não respeitando a forma de ocupação anterior, a relação comunitária e natural dos
63
índios com a terra. Transpuseram para o Brasil as leis de organização do território
português, “adaptando-os” para as características da extensão do território, para consolidar-
se como colonizador nas terras conquistadas. Porem, ao transportar-se para o Brasil,
engendrado pelo modo de produção feudal, o Instituto Jurídico da Enfiteuse, que era
temporário em Portugal tornou-se perpétuo no Brasil, para adaptar-se ao projeto
colonialista desta etapa mais primitiva da acumulação de capitais (Baldez, M.L. 1986
com modificações).
A terra não contava como valor. Não era sobre a terra que se formava o monopólio
indispensável à produção. Assim, não se sentiu necessidade de constituir-se, através de
normas e medidas legais, um monopólio de classe sobre a terra, o que também não ocorreu
quando da suspensão das concessões de sesmarias (em 11/6/1822). De todo modo, era um
monopólio de classe, pois as sesmarias não eram doadas a indivíduos de poucos recursos,
mas somente aos que cultivariam as terras. Como a o de obra era escrava e o principal
produto era o açúcar, destinado à exportação, considerava-se que somente os possuidores
de recursos poderiam arcar com o escambo de escravos e com a produção e exportação do
produto, se não havia um preço de compra e venda, havia um monopólio de classe. Como
explica T. Jahnel:
“Não se tratava apenas do domínio do solo e sim também de poderes políticos, de
jurisdição, de governo mesmo... Além do que se deveria pagar um dízimo à ordem de Cristo
e explorar a terra num período de 5 anos. Posteriormente se introduz o pagamento de um
foro, definido pela ‘grandeza, qualidade e bondade da terra’, sem, no entanto, especificar o
quantum a ser cobrado.”
(Jahnel, T., op. cit., p.106-7)
A partir da independência, de 1822 a 1850 a terra brasileira, com plena
compreensão do governo, ficou à disposição de quem pudesse ocupá-la. A terra pertencia a
quem a ocupasse, sem maiores riscos, pois sendo escravista o regime de trabalho, a
ocupação não poderia ser feita pelo próprio trabalhador o escravo. O termo ocupação é
hoje considerado problemático, mas nesse período a ocupação era norma geral e
caracterizava o modo de se obter terra, acessível às classes dominantes, sem nenhuma
contestação da legitimidade. Não se pode neste período falar em propriedade privada da
terra. Não podia ser compra e vendida. Não era mercadoria.
64
No entanto
12
, dada à proibição do tráfico negreiro e à presença cada vez mais
marcante do trabalho assalariado, era fundamental submeter formalmente a terra ao capital.
Em 1842 é cristalina a consideração do Conselho de Estado:
“Como a profusão de datas de terra tem, mais do que outras causas, contribuído para a
dificuldade que hoje se sente em obter trabalhadores livres, é seu parecer que d’ora em
diante sejam as terras vendidas sem exceção alguma. Aumentando-se, assim o valor das
terras e dificultando-se, consequentemente, a sua aquisição, é de se esperar que o imigrante
pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de obter os meios de se
fazer proprietário.”
(In: Baldez, op. cit., p.4)
Buscava-se assim coibir o acesso do trabalhador pobre à terra. Deveria este vender
sua força de trabalho na produção. O que conta não é a extensão de terras, pois estas havia
em abundância, o que conta é impedir o acesso à terra.
Acrescenta Baldez:
“A lei n.601 de 18.09.1850, conhecida como a Lei das Terras, veio compor no plano
jurídico a nova relação especifica imposta pelo modo de produção para impedir, num
momento historicamente importante da ascensão do capitalismo, o acesso do trabalhador
sem recursos à terra.”
(Baldez, M.L., ibid., p.4)
O artigo I da lei diz que ficam proibidas as aquisições de terra devolutas que não
sejam por compra e venda. No artigo II, a lei estabelece a ilegalidade das futuras
ocupações, como diz José de Souza Martins:
“A lei das terras, com a definição e universalização da propriedade capitalista da terra, o
cativeiro da terra, foi a forma de assegurar a sujeição do trabalho ao capital na transição do
trabalho escravo para o livre... A renda capitalizada no escravo, transformava-se em renda
territorial capitalizada.”
(Martins, op. cit.)
Estava assim sancionado, como lei maior, o principio que baniu o trabalhador da
terra. Tanto o trabalhador rural como, com o avanço do processo de
industrialização/urbanização, o trabalhador urbano. Ou seja: “O capital desenvolveu-se a
ponto de politicamente impor a lei que reconhecia a apropriação da terra.” (Baldez, M.,
12
Veja-se a este respeito, Martins – O cativeiro da terra, 1978.
65
op.cit., p.5). Fica estabelecida a terra como mercadoria, não como valor moral, mas
também como valor econômico e social.
Tem que se pagar pela terra. Ela se torna uma mercadoria, sancionada e reconhecida
pela Lei das Terras, do modo de produção capitalista. Aos que “receberam” grandes
parcelas de terra, pelas sesmarias até 1822 e pela posse de 1822 a 1850 garante-se esta
propriedade, que agora pode também entrar no mercado de compra e venda. Determina-se
pela lei um preço que terá como requisito básico impedir o acesso do trabalhador à terra.
Era preciso, fazendo uma comparação extremamente rústica, fechar os campos os
“enclousure”, como na Inglaterra do século XVIII, para tornar a mão-de-obra livre.
“O termo ‘enclousure’ designa o movimento de variadas causas pelas quais os campos
livres ou baldios, pertencentes às comunidades rurais ou simplesmente abertos, o
vedados, isto é, adquirem proprietário ou explorador agrícola individual. A primeira grande
vaga de vedação nos tempos modernos deu-se no século XVI... Mas o seu principal aspecto
deve-se à transformação dos terrenos livres ou arrendados em pastagens vedadas para
alimentação de rebanhos para a produção de lã. Os terrenos dedicados às pastagens exigiam
escassa mão-de-obra, e assim a vedação provocou a expulsão dos rendeiros e uma vaga de
desemprego agrícola.
(Ashton, T., 1971, p. 45)
Se no caso brasileiro as leis de terra não expulsaram mão-de-obra, impediram-na de
ter acesso à terra. Se na Europa os rebanhos utilizavam pouca mão-de-obra e a liberavam
para a produção industrial nas cidades, no caso do Brasil necessitava-se de mão-de-obra
livre para a produção do café e também para a produção industrial que, embora incipiente,
começava a desenvolver-se. Dizia Thomas Morus, referindo-se aos “enclousures”:
“Carneiros se fizeram devoradores de homens e despovoaram aldeias”. Diz José de Souza
Martins: “A mão-de-obra tornou-se ‘livre’ e a terra cativa do capital.”
Mão-de-obra livre e terra cativa. Isto pode explicar o preço inicial desta mercadoria
especial que é a terra. Como a Lei das Terras é uma lei que compreende todo o território,
também vai se expressar nas cidades. Define-se um mercado de compra e venda de terra,
tanto no meio urbano como no meio rural. A legislação sobre o parcelamento do solo, na
área urbana, até 1937, era realizada inicialmente através de ordenações e, posteriormente,
pelas posturas municipais, portanto interessando ao governo de âmbito local.
66
Em 1937, o decreto lei n.58/37 regulava no território nacional, as relações entre o
loteador e os adquirentes de lotes (ver Mukai, T., 1988). Com relação as características
desse decreto, se expressa Baldez:
“Em 1937, a recém-inaugurada ditadura populista de Getúlio Vargas, preocupada com o
processo de exploração urbana que absorvia, para expandir-se, áreas rurais, e atenta para a
necessidade de modernizar, também no campo de reprodução do capital, as relações de
classe, baixou o Decreto-Lei 58, que simplificou o loteamento em áreas urbanas,
submetendo-a a tratamento específico, aparentemente mais benéfico aos trabalhadores,
principais usuários, como adquirentes de lotes, do sistema de parcelamento do solo. O
Decreto-Lei 58 é mais um instrumento tendente a controlar, submetendo-o a regras
específicas, a venda em retalho de terra, do que uma forma de dar proteção ao interesse do
trabalhador na moradia. Uma forma, em suma, de assegurar que uso das áreas urbanas
ficaria sujeito às regras de um modo de produção na cidade, compatível com a
modernização do modo de produção capitalista. Esse Decreto-Lei, ao estender aos negócios
de compra e venda a prazo de terrenos rurais e urbanos as garantias da compra e venda
(direito de haver o imóvel independente da vontade do compromitente-vendedor), criou
condições para a formação de mercado de terras que a produção capitalista da cidade,
mesmo em seu estágio primitivo, o poderia descartar. Era indispensável tornar os
recursos destinados pelo Capital à habitação do trabalhador compatíveis com seu efetivo
acesso à habitação.”
(Baldez, M.L., op.cit., p. 6-7)
De qualquer modo a compatibilização de recursos expressa que a terra foi tornada
cativa para impedir o acesso do trabalhador, mas este enfim precisa morar, então é preciso
pagar por um pedaço de chão, já que todos são livres e iguais de acordo com a sua
capacidade de pagar, o que significa que cada um mora como pode pagar. E, para que isso
seja possível, a terra é desmembrada e vendida em parcelas. A Lei de Terras de 1850 nos dá
o início do processo de definição do preço da terra. O Decreto-Lei 58/37 as características
de um desmembramento do solo urbano.
oOo
67
2.3. A terra urbana – mercadoria “sui generis” e/ou assemelhada ao capital
Merece especial atenção, no contexto deste trabalho, a discussão sobre a
especificidade da mercadoria terra urbana e da habitação nela edificada. Destaque-se que,
embora não se consiga detectar uma classe de proprietários capitalistas da terra urbana,
quando se compara com a terra rural, toda uma polêmica sobre a questão da propriedade
da terra.
Um aspecto da questão diz respeito à ideologia da casa própria. Os setores
conservadores argumentam que o possuidor de casa própria é também um defensor da
ordem “capitalista”, caso das declarações do então Ministro Roberto Campos, quando da
criação do BNH. Na verdade, os setores conservadores têm incentivado, se não a conquista,
pelo menos o sonho da casa própria. Acredito, pelo menos em princípio, que esta bandeira
dos setores conservadores caracteriza-se pelo medo de uma revolução socialista e que busca
aliados nesta luta fazendo o trabalhador acreditar que, após uma revolução, perder-se-ão
todas as propriedades, inclusive a casa própria. É interessante contrapor a este aspecto, o
fato da propriedade de outras mercadorias não ser utilizada da mesma maneira que a
propriedade da casa onde se mora.
Ao se analisar a questão da propriedade da moradia em Cuba, veremos que este
temor é infundado. Aliás, os conservadores sabem muito bem disso, porém utilizavam as
informações apenas da maneira que consideram convenientes (veja-se Santos, M., 1987,
sobre a distribuição desigual da comunicação). A Lei da Reforma Urbana em Cuba
(outubro de 1960), definiu o fim dos lucros na exploração da habitação, no entanto não
definiu o fim da propriedade da casa onde se morava, e inclusive estabeleceu que o Estado
viabilizaria a amortização da casa em que cada família morava, fixando pagamentos de
acordo com o que se pagava de renda em períodos entre 5 e 20 anos, definidos de acordo
com o ano de construção da unidade. Além disso, a Lei estabelecia uma escala de
pagamento de indenizações aos antigos proprietários com valores ajustados e vitalícios,
dependendo de terem ou não outras fontes de renda. Para as moradias construídas após este
período foram fixadas cotas de pagamento de aluguel. Pela Lei General de la Vivienda
(julho de 1985), transformaram-se os aluguéis pagos em quitação de imóveis e os novos
passaram a pagar a quitação da casa.
68
Portanto, verifica-se que é irreal o temor da perda da casa própria se houver uma
revolução socialista no Brasil, tipo cubana, o que mostra o uso ideológico da questão pelos
setores conservadores. O temor é da perda da grande propriedade, mas se fitichiza a casa
para moradia. O que realmente mudou em Cuba foi a não possibilidade de exploração da
moradia como fonte de renda e da cidade como fonte de lucro (Rodrigues, A. M., 1986).
Mas utiliza-se e camufla-se a situação para tentar transformar o proprietário da casa onde
mora num “aliado da ordem capitalista”.
Setores progressistas também consideram que a obtenção da moradia, através da
casa própria, é um fator de conformismo da população trabalhadora, que fica menos
propensa a envolver-se em atos públicos, com medo de que haja uma transformação que a
faça perder sua casa. Há, assim, discursos que não buscam compreender a origem da
difusão da ideologia da casa própria e apenas se contrapõem a ela (mas nada coloca-se em
troca). Diz-se que o proprietário da casa onde mora passa a ser um defensor da propriedade.
Se a moradia não for própria, o que propõe é apenas a continuidade do aluguel? Para não
citar uma lista enorme de argumentos, penso que Milton Santos e David Harvey sintetizam
alguns aspectos desta questão
13
.
Milton Santos, ao analisar a questão de que em lugar do cidadão formou-se no
Brasil o consumidor, diz que:
“O consumismo frequentemente se em uma das suas múltiplas metamorfoses, muitas
inaparentes. A casa própria não é a necessidade, esta é a de morar decentemente. A casa
própria insere o indivíduo no circuito do consumo da mercadoria, fetichizando no ato de
compra e venda o que é necessidade social essencial. A ideologia do consumo, mediante
suas múltiplas aparências, esfortemente impregnada na população. Uma boa parcela do
conteúdo dos movimentos sociais urbanos defende mais o consumidor que mesmo o
cidadão. O direito à moradia se confunde com o direito de ser proprietário. Este termina
sendo imposto ideologicamente como o certo, como se fosse um objetivo do cidadão... Ser
proprietário é um elemento essencial na ideologia do consumidor...”
(Santos, 1987, p.126)
Santos considera que a casa própria insere o individuo no consumo. Será que não se
está devidamente inserido no consumo da mercadoria quando paga-se pelo “uso” da casa
no aluguel? Qual será a diferença fundamental entre o ter dinheiro para pagar o consumo da
13
Veja-se também, entre outros, Bolaffi, G. 1979; Azevedo, S. e Andrade, L.A.G., 1982; Valadares, L., 1983;
Pradilha, E., 1985.
69
casa como aluguel ou ter para comprar uma casa? A diferença estaria em ser proprietário?
Mas não é proprietário da roupa que se veste, do prato onde se come, da panela ou do fogão
onde se cozinha? Será a diferença do preço desta mercadoria, ou na verdade, absorve-se a
questão da forma como é proposta pelos setores conservadores e se retruca apenas
considerando que não se deve ser proprietário? Ou a consideração do consumismo está
mais relacionada com os valores das características das casas, das chamadas classes médias
e com a questão dos valores-de-uso no interior das casas? Há, sem dúvida, um padrão
estético, de “status”, de valores relacionados, por exemplo, com os tipos de vasos sanitários
e dos azulejos, em cores, em modelos diferentes, etc., que são mais caros que os
tradicionais em branco, sem nenhuma mudança qualitativa no uso. O status” das grades
par proteção das casas, tornando-as verdadeiras prisões, dos “conjuntos de condomínios
fechados” com total segurança e “muito verde”, que correspondem em geral a uma ou duas
árvores, um tanque, chamado de piscina, etc. Penso que estes aspectos transformam mais o
indivíduo em consumidor cidadão, do que a casa própria em si.
Harvey analisa esta questão do ponto de vista da classe capitalista afirmando que o
incentivo à casa própria é uma maneira de manter o sacrossanto princípio da propriedade
privada:
“Uma luta bem desenvolvida entre inquilinos e senhorios, com os primeiros reclamando por
propriedade pública, municipalização ou coisa semelhante, coloca todo o princípio da
questão (da luta contra o poder monopolístico da propriedade privada). Consequentemente,
a vulgarização da casa própria, individualizada, é vista como vantajosa para a classe
capitalista porque ela estimula a fidelidade de pelo menos uma parcela da classe operária ao
princípio da propriedade privada, além de promover a ética de um ‘individualismo
possessivo’ bem como a fragmentação desta classe em ‘classes de habitação’, constituída de
inquilinos e proprietários. Isto à classe capitalista uma bem vinda alavanca ideológica a
ser usada contra a propriedade blica e exigências de nacionalização, porque é fácil dar a
estas a aparência de que elas pretendem tirar dos trabalhadores as suas casas próprias.
(Harvey, 1982, p.15)
Harvey especifica porque, em princípio, se incentiva o apego ou a luta pela casa
própria. Também coloca a luta o por aluguéis baixos, mas pela propriedade pública e
sim seria uma luta contra o poder monopolístico da propriedade privada, na medida que
fosse um bem público e assim a renda seria apropriada coletivamente. Importa ressaltar que
neste artigo Harvey analisa as sociedades capitalistas desenvolvidas.
70
Nabil Bonduki, ao analisar as condições concretas do Brasil, considera que a
aspiração da casa própria é legítima, não fruto da propaganda, mas condição prévia para
a melhoria da vida urbana:
“Nas cidades a propriedade da terra não garante o direito à cidade (enquanto acesso e
equipamentos coletivos), mas ao menos confere o direito de lutar por ele e a certeza de tê-lo
quando é obtido (certeza de não ser expulso pelo aumento do aluguel, quando chegam as
melhorias)... A aspiração pela propriedade da moradia nas condições concretas de
sobrevivência, decorre da situação da exploração do trabalho presente no Brasil, onde
inexistem garantias contra o desemprego, velhice, doenças e uma política salarial
compatível com as necessidades básicas.
(Bonduki, 1986, p.227-8)
Nabil Bonduki faz também uma análise da dimensão econômica da propriedade da
casa própria, mas penso que é necessário analisar, além da situação concreta dos
trabalhadores, também a questão das características da mercadoria terra urbana.
O que torna esta mercadoria tão inaparente? muitas outras mercadorias neste
modo de produção, que quando o indivíduo a compra torna-se proprietário. Por que para as
outras mercadorias não há, pelo menos reconhecidamente, uma função ideológica
semelhante? É necessário analisar e entender a especificidade da terra urbana para
compreender os termos da questão. Diz Harvey:
“O solo e as benfeitorias o, na economia capitalista contemporânea, mercadorias. Mas o
solo e as benfeitorias não o mercadorias quaisquer: assim, os conceitos de valor de uso e
de troca assumem significado mais que especial.”
(Harvey, 1980, p.135)
Na parte anterior vimos que é a partir de 1850 que se constitui um mercado de
compra e venda de terras no Brasil, cujo preço é definido para impedir o acesso dos
imigrantes e dos escravos libertos à terra, enfim, ao trabalhador. É definido o preço inicial
como uma forma de garantir o monopólio da terra à classe detentora dos meios de
produção. Como não havia separação entre o proprietário de terras urbano e o rural, a terra
para as edificações urbanas, inclui-se nesse processo. Para o trabalhador urbano,
numericamente pouco expressivo no período, a questão colocada era a necessidade de
morar. Para os proprietários industriais, desde o século XX, importava ter moradias para os
trabalhadores, com a finalidade de atrair ou fixar mão-de-obra necessária às atividades
71
industriais. A questão colocada não era ainda a casa própria, pois a maior parte dos imóveis
de moradia são alugados, mas condições de produção de casas para alugar aos
trabalhadores urbanos
14
.
Um primeiro ponto a ser abordado, com relação a esta mercadoria, refere-se ao fato
de não ser criada pelo trabalho. Em que pese a ausência de solo urbano intocado pelos
homens, o preço da terra se define sem que haja nenhum trabalho produtivo diretamente na
própria terra, no próprio terreno. A terra aumenta de preço pelo trabalho social realizado
nas suas imediações, na cidade, seja através, e principalmente hoje, da atuação do Estado,
com as obras de infra-estrutura, dos equipamentos coletivos, ou mesmo da produção de
habitação estatal, individual – autoconstrução ou empreendimento capitalista.
A especificidade desta mercadoria terra/habitação leva Paul Singer (1978) a colocar
que a terra urbana é disputada para diferentes usos que se pautam pelas regras do jogo
capitalista, que se fundamenta na propriedade do solo e por isso, e por isso, proporciona
renda e em conseqüência é assemelhada ao capital. Mas o capital gera lucro na medida em
que preside, orienta e domina o processo social de produção, o que não acontece com o
‘capital imobiliário’, porque o espaço é condição necessária à realização de qualquer
atividade mas não se constitui como meio-de-produção, o que o torna um falso capital. Ele
é valor que se valoriza, mas a origem de sua valorização não é a atividade produtiva, mas a
monopolização do acesso a uma condição indispensável da produção – a edificação.
Singer também considera a terra urbana como uma mercadoria “sui generis”, cujo
acesso pode ser obtido pela compra de um direito de propriedade. A “valorização” desta
mercadoria não ocorre de imediato. Na maior parte das vezes, a propriedade urbana é
dotada de certas “benfeitorias”, ou seja, é desmatada, arruada e, às vezes, construída, o que
dá a impressão que seu “valor” resulta das inversões feitas nessas benfeitorias. Porém, basta
lembrar que imóveis com as mesmas benfeitorias podem ter preços muito diferentes
dependendo da sua localização, para considerar que esta “valorização” não decorre desta
produção. Considerando estas questões, a Lei sobre a Venta Forzosa de los Solares Yermos
(Cuba abril de 1959) explicita que o alto preço da terra urbana e suburbana constitui o
14
Sobre as necessidades de produção e uso de moradias neste período, veja – Bonduki, Nabil -1982;
Kowarick, Lúcio e Ant, Clara, 1982; Blay, Eva Altmam, 1985; Rodrigues, A. M. e Seabra, Manoel, 1986.
Veja-se também no capítulo 2 deste trabalho, as questões sobre a Reforma Urbana na Constituinte e a
“aliança” entre proprietários de terras urbanos e rurais.
72
mais alto obstáculo para o desenvolvimento dos planos de construção de habitação. O
objetivo desta lei foi eliminar a especulação proveniente da venda de terrenos vazios,
regulando o valor do terreno sobre a base do custo do trabalho investido em sua
urbanização (Pa, Alquimira, 1982).
Desse modo define-se um preço que tem como base o valor trabalho. Mas os setores
conservadores temem exatamente que a terra deixe de ser uma forma de apropriação de
renda/lucros gerada pela sociedade e investem na defesa da casa própria (como valor-de-
uso) como se fosse este o aspecto fundamental da propriedade capitalista.
O que define o preço da terra? O preço da terra não é definido pelo trabalho
produtivo realizado na terra nua. Discutir o preço original da terra é analisar como diz
Topalov:
“... o preço de um bem sem valor.” O que é um preço?: “...é ponto de equilíbrio instantâneo
entre uma lei de oferta e uma lei de procura, se estabelece graças à mediação do dinheiro,
uma relação de troca entre um produto qualquer e o resto dos produtos. O terreno, como os
outros bens, tem um preço e se troca por dinheiro. Entretanto, o preço do terreno é um
fenômeno especifico, diferente de outras mercadorias, especialmente das mercadorias
reproduzíveis graças à máquina econômica, pela própria produção.”
(Topalov, 1978, pg. 163)
É necessário considerar que o solo é permanente e que o tempo de vida das
mercadorias edificadas sobre ele é muitas vezes considerável. Com o passar do tempo a
terra não diminui o seu preço, pelo contrario, sue preço é sempre maior. É, sem dúvida,
uma especificidade ser uma mercadoria que não envelhece, que não acaba. Claro que em
limites extremos esta afirmação pode ser contestada, pois um terreno alagado perde seu uso
como moradia (portanto acaba”, ou melhor, perde seu valor-de-uso para moradia e
consequentemente altera o de troca). Mas a terra é entendida como uma fonte segura de
renda; sempre se te garantido ao investir dinheiro numa terra, que este retornará, no
mínimo, no mesmo valor investido. Não é o que acontece com todas as outras mercadorias,
por exemplo, um automóvel mesmo que seu preço seja redefinido pela produção de novas
unidades: o uso provocará uma queda no preço. E, em casos extremos, acidentes podem
destruir de uma única vez todo o dinheiro investido. Esta permanência do solo, mesmo
quando as edificações se deterioram, é uma característica importante, a tal ponto que é
73
possível comprar-se um terreno com edificação e destruí-la, pois é, muitas vezes, um
terreno caro sobre uma edificação barata, - pagou-se pelo terreno que nunca se estraga.
Considera-se também que: a “especificidade” desta mercadoria está em que o preço
do terreno é estabelecido num mercado de concorrência imperfeita. O mercado não é
transparente, ou seja, os agentes que atuam na compra e na venda não têm conhecimento do
conjunto de ofertas e demanda, porque indivíduos que fazem particularmente a
transação. Desse modo, argumentam, não seria possível estabelecer um preço resultado de
uma concorrência. Este argumento estabelece que o preço é definido pelo mercado. Mas,
para contestar, bastaria citar que em todas as outras mercadorias, pelo menos após a
primeira venda (mercadorias usadas), ou produtos com grande variedade de produtores, o
mercado também desconhece toda a produção, no entanto, têm um preço definido pela sua
produção e por uma oferta de produtos produzidos e reproduzíveis.
Os terrenos não se transportam. A terra é uma mercadoria fixa, que lhe dá uma outra
especificidade, não é uma mercadoria que circula. O que circula é um título de propriedade,
é um papel, que garante o direito de propriedade em uso ou não. outras mercadorias em
que também circula o título de propriedade, mas para o terreno/casa, só circula o título. E aí
entram aspectos importantes na discussão dos processos de reintegração de posse, contra
favelados e ocupantes. Utiliza-se mecanismos jurídicos de garantia da propriedade que se
denominam Reintegração de Posse. Este instrumento jurídico garante a propriedade e não a
posse. É utilizado para desocupar áreas por aqueles que detêm a posse. Quem detém a
propriedade, o título e não a posse, é que será reintegrado na posse. Voltaremos a esta
questão.
Os terrenos têm localização fixa, o que confere privilégios de monopólio a quem
tem o direito de determinar o uso nessa localização (Harvey, op. cit.). Mas, quem tem o
privilégio de um ganho elevado, tem também o privilégio de uso. Ou seja, privilégios na
definição de uso, mas também os no próprio uso, já definido. É o consumo do lugar no
dizer de Lefebvre.
De modo geral, não dois terrenos que tenham exatamente a mesma localização.
Embora possam ser muito parecidos e vizinhos, a própria definição de vizinhança será
diferente. Não possibilidade de substituí-lo por outros, ou seja, cliente não satisfeito”
não troca por outra mercadoria igual, dizem os corretores de imóveis, tentando mostrar a
74
localização privilegiada aos seus possíveis compradores e os inconvenientes da localização
aos possíveis vendedores. Mas este aspecto é importante. A análise dos privilégios do
monopólio na apropriação da renda será discutida no próximo item. Com diz Harvey:
“O solo e as benfeitorias são mercadorias indispensáveis. Não posso existir sem ocupar
espaço, não posso existir sem um tipo qualquer que seja de moradia.
(Harvey, op. cit., 135)
Esta necessidade tem que ser analisada do ponto de vista fisiológico e do ponto de
vista social. E verificamos que a especificidade também está relacionada com o fato da
não-fracionalidade da moradia. Não é possível viver sem ocupar espaço, não é possível
morar um dia e outro não (Rodrigues, A. M., 1988). Diz ainda Harvey:
“O solo e as benfeitorias mudam de mãos relativamente com pouca freqüência, mesmo que
estejam constantemente em uso, como em certos tipos de realização de negócios, no
planejamento de muitas facilidades públicas e setores estáveis do mercado de moradias com
ocupantes proprietários. no setor do aluguel do mercado de moradias, assumem a forma
de mercadoria com muito mais freqüência.
(Harvey, op.cit., p.135)
Este aspecto assume maior importância quando agregado ao fato, já indicado, de
que esta mercadoria não perde valor, sendo usada ou não. Não fica depreciada, é
permanente. Tem sido uma das formas mais freqüentes de acumular riqueza: “É claro que
não é atributo exclusivo, porém o solo e as construções, têm sido historicamente, o
repositório mais simples e importante de receber bens de herança.” (Harvey, ibid., p. 136).
Para a classe trabalhadora tem sido uma forma de tentar garantir uma vida mais tranqüila na
velhice e que se constitui um longo período de poupança e sacrifícios. Como seu preço é
elevado se entende porque mudam de mãos com pouca freqüência
15
.
Como observa Topalov, em geral abordam-se aspectos importantes da terra urbana,
mas que não tocam o essencial, ou seja, que esta mercadoria tem um preço, mas é uma
mercadoria sem valor. Embora o capital monopolista possa comercializar mercadorias
abaixo do valor de produção para eliminar concorrências, ou mesmo para lançar novos
produtos de mercado, fazendo um fluxo de um para outro ramos ou circuito de capital, as
15
No essencial, nessa análise, foram utilizados argumentos de Harvey, ampliados por questões que achamos
relevantes.
75
mercadorias têm um preço cujo valor é determinado pela produção. O preço da produção
corresponde ao tempo de trabalho socialmente necessário para sua reprodução. No caso da
terra urbana, essa regulação não é determinada pelo valor da produção, e o preço não é
determinado pelo tempo de trabalho necessário, pois a mercadoria terra não se reproduz,
pois a terra:
“...tem um preço, mas não tem valor, porque não é um produto de trabalho privado,
controlado pelo capital, não tem custo de produção privado.”
(Topalov, op. cit., p.164)
A terra urbana não é reproduzível. Cada lugar é único e pode ter vários usos, mas
não se pode criar um novo pedaço de terra.
Singer argumenta que os preços no mercado imobiliário tendem a ser determinados
pelo que a demanda estiver disposta a pagar, que os preços não estão relacionados à
produção. Tanto Singer como Topalov consideram como importantes, para contestar a
questão da definição por um mercado de compra e venda, o fato de que novos terrenos
colocados à venda para a produção de casas ou mesmo novas casas não fazem baixar os
preços. Isto significa que aumentar a oferta não tem sido suficiente para diminuir os preços,
pois estes não estão regulados pelo preço de produção. Assim, o que determina o preço da
terra é a propriedade monopolística desta terra e a capacidade de pagar dos compradores.
De modo geral, esta mercadoria “sui generis” tem seu preço determinado não pela
produção, mas pela taxa média de lucro de aplicação dos capitais. O trabalhador, ao
adquirir um terreno para construir uma casa, ou uma casa pronta, estará assim remunerando
ao capital, no preço da terra, a taxa média de lucro do capital em geral. A remuneração do
capital empregado na aquisição estará garantida e embutida na mercadoria terra urbana. A
terra urbana, espécie de mercadoria, tem um preço que aparece como ditado pelo mercado,
quando originalmente foi definido como monopólio de propriedade e posteriormente é
constantemente redefinido pela produção social da cidade. Não é o que acontece com todas
as mercadorias do modo de produção capitalista? O preço das mercadorias aparece ditado
pelo mercado, quando o é essencialmente na produção. O que é determinado pela
competição é o lucro. No caso da mercadoria terra não preço de produção da terra nua, o
preço é redefinido pela produção social da cidade, porém aparece como se fosse definido
76
pelo mercado. Mas o que é definido pelo mercado é a renda. Nas afirmações dos moradores
que buscam compra casa/terreno ou alugar um imóvel fica evidente que o mercado aparece
como o determinante do preço:
“Não posso pagar o que eles querem; tão pedindo um absurdo nos aluguéis.”
(depoimentos)
Ao considerar como o cativeiro da razão é no século XIX entendido no mundo
social, S. P. Rouanet detém-se na análise crítica de Marx sobre as ilusões da consciência.
Para tanto, enfatiza em alguns aspectos o fetiche da mercadoria, colocando que:
“Não é apenas o tempo de trabalho não-remunerado que é removido da consciência, mas a
categoria geral do tempo de trabalho como fator determinante do excedente. A competição
pela qual as mercadorias são vendidas a veis que não correspondem necessariamente ao
valor gerado na esfera da produção, reforça a tendência a ignorar o papel do trabalho e a
sobreestimar o papel do mercado na determinação do excedente.
(Rouanet, 1987b, p.98)
No caso da mercadoria terra urbana é ainda mais fácil esta tendência a ignorar o
papel do trabalho, por ser trabalho social e porque é “um bem que se valoriza” pelos
mecanismos do mercado. O fetiche transparece claramente, da mesma forma que os juros,
pois:
“O capital em seu funcionamento real, apresenta-se de fato sob este aspecto, e parece produzir
juros, não como capital em funcionamento, mas como capital em si, como capital dinheiro.”
(Marx, in Rouanet, ibidem, p. 98)
É o que ocorre com os que colocam dinheiro na “poupança” e obtêm dele uma
remuneração que é o juro do dinheiro em funcionamento, mas que parece ser proveniente
do dinheiro em si. E assim:
“A renda da terra é a forma aparente na qual se manifesta o fato de que parte da mais valia
total produzida é transferida para os proprietários. Simples fração da massa total da mais
valia, extorquida dos capitalistas pelos proprietários. A propriedade fundiária não tem
absolutamente nada que ver com o processo efetivo da produção... A mistificação, aqui, é
maior porque o industrial pode justificar seu lucro alegando o esforço feito na mobilização
dos fatores de produção, e o capitalista financeiro alegando o risco assumido ao emprestar
77
seu capital, ao passo que o proprietário, sendo manifestadamente inútil, não pode usar
racionalizações plausíveis possíveis. Em conseqüência, é a própria terra que parece gerar
valor...Com a renda da terra o processo de fetichização chega ao seu clímax.”
(Rouanet, idem, p.98)
A terra aparece como uma fonte misteriosa e autogeradora de renda. É muito
comum a frase: “Tenho um terreno que estou deixando ‘valorizar’” ou um grande
proprietário de terra dizer: Estou deixando esta terra de herança para o meu filho. Estava
aqui guardada, valorizando, vocês querem me tirar” (pesquisa de campo). Parece que a terra
germina, come se fosse uma semente.
Continuando sua análise, diz Rouanet:
“Com a renda fundiária, conclui-se o exame das formas aparentes em que se projetam e
anulam as formas essenciais do modo de produção capitalista. Salário, lucro, juros e renda
constituem rendimentos distribuídos ao trabalhador, ao capitalista e ao proprietário, não na
imaginação dos agentes, mas na realidade. Ilusória, apenas, é a suposição de que esses
rendimentos constituem a remuneração pela participação de cada um deles, em partes
iguais, na criação do produto e do valor... Na consciência espontânea dos agentes,
entretanto, e na análise dos economistas vulgares, essa realidade é transposta de forma
aparente – a forma trinitária pela qual o trabalho, o capital e a terra participam do
processo de criação do valor, recebendo em troca, sob forma de salário, lucros (juros) e
renda a remuneração correspondente...”
(Rouanet, p.99 a101, ao analisar Marx)
De modo geral, este fetiche da mercadoria terra foi incorporado também como se ao
ser proprietário de uma casa onde se mora mudasse a qualidade de trabalhador para
capitalista. Uma mercadoria fetichizada, ainda mais, pelo fato de não ser produzida pelo
trabalho na própria mercadoria, mas pelo trabalho social. O alicerce do capitalismo, a
propriedade dos meios de produção, passou para a mercadoria terra e casa para morar,
como se fosse também o mesmo alicerce.
oOo
78
2.4. Renda da Terra – Absoluta de Diferencial
Em síntese, a terra e as edificações sobre ela tem na aparência um preço determinado
pelo mercado. Na essência o preço é determinado pela produção social da existência. Ser
proprietário de um pedaço de terra permite, pelo menos em princípio, apropriar-se de uma
renda. Devo ressaltar, como dito anteriormente, que o fato de ser proprietário de uma
casa para morar uma mercadoria não implica em ser capitalista e nem necessariamente
em ser defensor da ordem capitalista. No entanto, permite apropriar-se de uma renda.
O problema teórico da renda da terra urbana é extremamente difícil. Henri Lefebvre diz
que:
“A teoria marxista da propriedade do solo capitalista não está completa. Como e por que uma
classe de proprietários de bens imobiliários se perpetua no capitalismo onde predomina
acentuadamente a propriedade capitalista mobiliária (do dinheiro e do capital)? Qual é a origem
da renda da terra? Que implica esta? Neste problema estão englobados os problemas da
agricultura, da pecuária, das minas, das águas e, bem entendido, das áreas edificadas da
cidade.
(Lefebvre, 1972, p. 129)
É necessário muito caminhar para entender a questão da propriedade do solo no
capitalismo. Sem entrar profundamente na questão, utilizo a definição de renda absoluta
como o tributo que é pago ao proprietário fundiário para que se use a terra aluguel ou
então se compre o direito de monopólio venda e compra; e de renda diferencial, como a
renda de sobrelucro que provém das vantagens de terrenos melhor localizados.
16
Nos
limites deste trabalho, a questão que se torna mais evidente é que a terra que tem seu preço
definido não pelo valor da produção em si, mas pela produção social, é apropriada
individualmente. Em que pese o preço original da terra ter sido a maneira de se impedir o
acesso do trabalhador a esta terra, este mesmo trabalhador é incentivado a ser proprietário
do pedaço de terra onde se edifica a moradia. Como compreender este incentivo quando as
edificações sobre estes terrenos ficam imobilizadas por longo período de tempo? Esta é
também uma contradição do capitalismo: cativa-se a terra, permite-se que poucos tenham
acesso, mas incentiva-se teoricamente que todos tentem obter a casa própria.
16
Veja-se: Maricato, E. e Lipietz, A., entre outros.
79
Mas a obtenção da casa própria, ou melhor, as edificações sobre o solo e o próprio solo
ficam “imobilizados” por longos períodos de tempo, ficando fora do circuito do capital. A
forma de circulação passa a ser principalmente a da produção da cidade, dos insumos para
construção, melhoria e utensílios para a casa própria e equipamentos de consumo coletivo
que permitem que esta mercadoria “imobilizada” aumente de preço (continue a se
“valorizar”).
Como diz Marx:
“A propriedade fundiária não tem absolutamente nada que ver com o preço afetivo da
produção. Seu papel se limita a transferir parte da mais valia produzida, dos bolsos do
capital para o do proprietário... É por isso que a ordem social capitalista é um mundo
encantado e pervertido, invertido, em que Monsieur le Capital e Madame la Terre dançam
sua roda fantasmagórica como personagens sociais e ao mesmo tempo como meras coisas.
(in Rouanet, ib., p.99)
A renda da terra é a parte do valor que se destina ao proprietário. No caso da terra
urbana, como suporte de atividade e não como meio de produção, a renda constitui-se num
tributo que se paga ao proprietário da terra e que resulta do monopólio da terra por uma
classe ou fração de classe.
Este tributo pago ao proprietário da terra constitui-se na renda absoluta. Ser
proprietário permite usufruir de uma renda, não importando, em primeiro momento, a
localização desta propriedade. Cabe uma indagação: a renda da terra em sua forma
absoluta, também está contida no preço do feijão, e, no entanto, é possível teoricamente –
ao trabalhador comprar o feijão e não a terra/habitação. Um aspecto importante refere-se à
característica da terra/habitação, cujo preço é elevado e que deve ser pago num momento de
tempo, mas cujo uso dar-se-á por longos períodos de tempo, na maioria das vezes superior
ao tempo de vida de um indivíduo. O feijão pode ser comprado em parcelas diárias, tem seu
preço definido pelo valor da produção; é uma típica mercadoria do modo de produção
capitalista. Explica Regina B. Santos:
“A renda fundiária urbana não é um tributo anual como a renda agrícola, a qual é extraída toda vez
que se vende o produto. A venda do imóvel urbano pode ser considerada uma transação definitiva
ou válida por um espaço de tempo muito longo.”
(Santos, R. Bega, 1982, p.118)
80
Além disso, que se acrescentar à análise proposta por Lefebvre, da
“imobilização” do capital no solo e na terra, pagando-se de uma só vez toda a renda
produzida socialmente. No caso dos aluguéis, em que a renda é paga fracionadamente,
poderiam ser acessíveis ao trabalhador, dependendo principalmente dos salários e da
localização no espaço urbano. Mas, é bom relembrar que apenas teoricamente é calculada
no salário as necessidades de sobrevivência, entre as quais a moradia, como já analisado no
item 2.1 deste capítulo. Relativamente à questão da localização no espaço urbano, é bom
destacar alguns aspectos, embora sucintamente, da renda diferencial.
vimos que a renda é parte do valor de troca que se destina ao proprietário, cujo
montante não é igual em todos os terrenos e em todas as edificações. As diferenças de
preço decorrem de uma produção social de existência. Esta renda-diferencial surge num
espaço relativo, no contexto da instituição da propriedade privada, e na operação do modo
capitalista, na produção da cidade. As diferenças de preço que darão, portanto, rendas
diferentes são tanto de ordem natural como sócio-econômicas: facilidades ou dificuldades
para um determinado acesso com um determinado uso, existência de equipamentos, de
edificações para usos definidos, as condições técnicas para domínio desta natureza e, enfim,
as características da distribuição da população (em classes sociais e no espaço) da produção
e do consumo.
Estas diferenças de preço definem-se, na atividade individual e na produção social.
Por que fazer esta distinção entre atividade individual e social? Quando um indivíduo
constrói sua casa está contribuindo para a produção da cidade, no entanto, isto é
considerado apenas uma atividade pessoal. É comum ouvir-se que o indivíduo está
trabalhando para aumentar seu pecúlio, valorizar sua propriedade, mas não um
entendimento sobre esta participação na produção social. No máximo compreende-se a
interferência na vizinhança imediata. Isto porque, como observado, parece que a renda
surge da terra ou da natureza, assim como salários, lucros/juros e renda parecem ser a
remuneração pela participação de cada um deles em partes iguais na criação do produto e
do valor.
Assim, quando de várias maneiras se constrói, promovendo-se a manutenção de
uma casa, não se tem idéia de que este trabalho está contribuindo para aumentar a riqueza
social e consequentemente aumentar o preço da terra e das edificações. Tem-se apenas a
81
impressão de que é o Estado ser acima de tudo que, com sua atividade de produção e
gestão dos equipamentos valoriza a cidade, ou então os loteamentos de alto padrão, como
saídos do nada. É a terra “valorizando-se” como coisa em si. Ou, então, mudou o preço,
acredita-se, porque ao lado uma escola, uma favela ou uma mansão ou um conjunto
habitacional de alto padrão, etc. As diferenças de preço têm contido um trabalho individual
e social. Individual, pois ao produzir sua casa, reformá-la, contribui-se para a produção
social, sendo esta produção incorporada à produção da cidade. É social, pois é com os
recursos advindos da arrecadação de impostos e tributos que o Estado produz a infra-
estrutura e os equipamentos de consumo coletivos, que serão também apropriados
individual e socialmente.
A renda diferencial, como a absoluta, é difícil de ser mensurada, visto que, o solo e
suas benfeitorias não se deslocam, têm uma localização fixa no espaço, que confere
privilégios de monopólio a quem tem o direito de determinar o uso nessa localização. A
explicitação destas questões poderia indicar se uma classe de proprietários, entendidos
como tal, que deixem mais evidente a dificuldade de avanço de uma reforma urbana.
17
Um primeiro ponto a analisar refere-se a incorporação às áreas urbanas de glebas
que antes tinham uso agrícola. Diz Singer que o custo desta incorporação é equivalente à
renda (agrícola) da terra que se deixa de auferir. Mas que não uma relação necessária
entre este:
“...custo e o preço corrente no mercado imobiliário. Claro que este custo quer dizer o preço
pago pelo novo proprietário, mesmo porque a ‘valorização’ da gleba é antecipada em
função de mudanças na estrutura urbana que ainda estão por acontecer.
(Singer, 1979, p.23)
O processo de expansão das cidades não ocorre necessariamente num “continuum”
urbano; em gera grandes extensões de glebas vazias, mesmo assim o perímetro urbano
amplia-se. A expansão do perímetro urbano, no caso brasileiro, deve ser aprovada nas
câmaras municipais de cada Município. Este princípio deveria garantir que a incorporação
de novas glebas ocorresse num continuum, o que possibilitaria, pelo menos em teoria, a
expansão das redes de serviços a cargo do poder público a preços mais baixos. No entanto,
como o poder municipal não legisla e não arrecada impostos sobre áreas rurais, é comum
17
Veja-se alguns aspectos sobre esta questão no item 3.5 deste trabalho.
82
utilizar-se o artifício para aumentar a arrecadação – de ampliar-se o perímetro urbano,
embora grandes extensões de terras permaneçam vazias (Rodrigues, A. M., 1986). Além do
fato de que os grandes proprietários de terras também têm nas câmaras municipais,
representantes que se esforçam por aprovar esta expansão do perímetro urbano. No ‘custo’
está, muitas vezes, incluído todo o processo de tramitação desta mudança. Procurando
limitar esta forma de expansão da cidade, as propostas de reforma urbana prevêem
mecanismos que tentam coibir abusos.
18
Porém, até agora, quem determina este preço é o
proprietário ou o incorporador imobiliário.
Na França, buscando limitar-se uma expansão desenfreada e facilitar a expansão dos
serviços blicos, em 1985, a Lei de Amennagement Differé estabeleceu que o preço de
venda das áreas que ficam no limite entre a zona rural e urbana deve ser o preço da terra
agrícola. Mas é possível observar que, desde a definição do uso rural-urbano, a
localização será um componente da renda diferencial.
Há ainda que se considerar que o solo urbano comporta diferentes usos: o industrial,
o residencial, o comercial, o institucional, equipados ou não com os meios de consumo
coletivo, que fazem com que a procura por espaço na cidade seja realizada por empresas,
por indivíduos, por organismos estatais. Em cada um dos usos está contida a procura de
determinadas localizações, que se referem à acessibilidade, ao uso de equipamentos, à
proximidade ou troca de mercadorias, etc. Busca-se a utilização dos efeitos úteis da
aglomeração. As diferenças de preço dependentes da localização levaram Paul Singer a
analisar a renda diferencial da terra urbana na sua relação com a localização das empresas,
considerando a possibilidade de rotação de estoques e a margem de lucro daí decorrente.
Esta análise deixa explícita a renda diferencial obtida em relação as empresas industriais
ou comerciais e não a comercialização do próprio solo urbano. Mas, é preciso considerar
também que a maior parte do espaço urbano é utilizada para fins habitacionais e que, nestes
casos, o que se leva em conta na determinação do valor dos aluguéis, da compra e venda de
imóveis, é o conjunto da cidade e da vizinhança e não, evidentemente, a circulação de
estoques das empresas.
É preciso também considerar a questão da renda de monopólio. Harvey distingue
adequadamente a renda de monopólio propriamente dita, operando ao nível individual – um
18
Projeto de lei 775/83 e Proposta de Reforma Urbana da Iniciativa Popular na Constituinte.
83
proprietário em particular tem algo que alguém particularmente deseja –, da renda absoluta
que decorre das condições gerais de produção em algum setor, mas ligada ao monopólio de
classe que afeta a condição de todos os possuidores de propriedade de terra. Na renda
absoluta ou na renda de monopólio, o monopólio esta presente, mas com significado
diferente. A renda diferencial surge em um espaço relativo no contexto da instituição da
propriedade privada do monopólio de classe da propriedade e na operação do modo de
produção capitalista.
Na procura de solo urbano para moradia, também lugares considerados
privilegiados, determinados principalmente pelo maior ou menor acesso aos serviços
urbanos, como transporte, escolas, rede de água e esgoto, comércio, telefone, etc., além da
hoje já conhecida busca de “ar puro”, do “ambiente saudável”, da “segurança” e das
características das casas do conjunto do bairro ou mesmo da rua ou até do conjunto
habitacional.
Singer e Fernandez consideram que uma diferença entre a renda diferencial para
habitação e para as empresas produção/comércio/serviços dizendo que, no segundo
caso, a renda diferencial é paga pelas empresas tendo em vista o superlucro que cada
localização específica lhes proporciona e, no primeiro, pelos indivíduos, que dependem de
sua quantidade, da repartição da renda pessoal e das necessidades míticas que promoção
imobiliária cria (Singer, op. cit, 18? e Fernandez, N.).
Surge uma questão: a renda das empresas e dos indivíduos é paga a quem e por
quem? E se a propriedade da empresa coincidir com a da terra? É preciso esclarecer quem
recebe a renda, para detectar se há ou não uma classe de proprietários de terras urbanas, que
expliquem alianças dos proprietários rurais com urbanos, pois, em última análise, a renda
produzida socialmente fica com o proprietário da terra.
O solo e as benfeitorias, como diz Harvey, no caso da habitação, têm usos diferentes
que não são mutuamente exclusivos: abrigo, quantidade de espaço para seus ocupantes,
privacidade, localização relativa em relação a lugares de trabalho, de compras, de poluição,
congestionamentos, status, etc.; meio pra aumentar a riqueza e também como meio de obter
uma “poupança” para a velhice.
Todos esses usos, conjuntamente constituem o valor de uso para seus ocupantes ou
possuidores, que não é o mesmo para todas as pessoas em residências comparáveis, nem é,
84
no tempo, constante para a mesma pessoa na mesma moradia (Harvey, op.cit.). Assim, os
valores de uso têm uma grande variedade de um indivíduo para outro, no que se refere à
habitação em sentido amplo ou à cidade. A possibilidade de apropriar-se destes valores de
uso confere privilégios de localização a quem pode pagar por um uso escolhido.
Mas, na cidade capitalista, a maior parte dos moradores não tem “direito” de
apropriar-se dos seus valores de usos, e vive em arremedos de cidade, sujas, com ruas
esburacadas, pagando um preço mais elevado pelos produtos que consome, sem direito a
um mínimo de modernidade” tão apregoada nos meios de comunicação. Basta ir até a
“periferia” para verificar que os produtos têm qualidade inferior e custam muito mais
caro.
19
Não podem ter “direitos”, já que foi definido que não “deveriam” ter acesso à
propriedade e que seu salário deveria apenas ser “suficiente” para a sua sobrevivência
imediata. Não podem, porque a cidade é produzida socialmente, mas a renda é apropriada
individualmente.
Mais do que justo e legítimo, a luta pelo acesso à casa própria é uma forma de
resistência e de vencer um obstáculo imposto pelo capital. A luta por alugueis justos”
também perpetua a propriedade e a apropriação privada da produção social sem sequer
poder usufruir, por um mínimo que seja desta produção. A não ser que a luta fosse pela
apropriação coletiva ou pública do solo, como proposto por Harvey e citado logo acima.
Como não uma classe de capitalistas pelo menos conhecida proprietária do solo
urbano, tenta-se transformar o proprietário de uma casa em um defensor da ordem,
utilizando-se de argumentos que colocam a casa própria como resultado da ordem
capitalista e que a mudança desta ordem retirará a garantia de morar. Como se incentiva a
casa própria, como o processo para obtê-la é longo e penoso, compreende-se porque os
conservadores querem que o proprietário da casa seja aliado da ordem. Os setores
progressistas devem reavaliar esta questão.
oOo
19
O termo periferia é usado para designar os limites, as franjas da cidade. Indica não apenas a distancia, mas a
carência de serviços públicos. Substitui o antigo termo “subúrbio e tem a sua origem na expansão das
cidades e no binômio loteamentos irregulares-autoconstrução. Vide Caldeira, T., 1984.
85
2.5. A Produção da Cidade – Individual e Social
As diferenças de preço da terra para moradia pressupõem uma produção da cidade, que
é necessário analisar. Diz Topalov:
“A urbanização capitalista é antes de tudo uma multitude de processos privados de apropriação
do espaço urbano. E cada um deles está determinado pelas próprias regras de valorização de
cada capital em particular, de cada fração do capital. Em conseqüência a reprodução mesma
dessas condições gerais, urbanas (socialização das forças produtivas), da produção capitalista se
transforma em problema. Daí a contradição é fundamentalmente expressa no espaço deste modo
de produção.”
(Topalov, op.cit., p.20)
Esta multiplicidade de processos privados de apropriação do espaço urbano capitalista,
determinados pela propriedade privada da terra, são analisados por vários autores,
demonstrando as formas como se dá no circuito imobiliário urbano esta produção, tentando
compreender a lógica do capital na produção do espaço urbano e da miséria humana.
20
Neste trabalho, serão feitas apenas observações sobre esta produção que levem a
compreender algumas formas de segregação espacial urbana, em relação à moradia,
buscando verificar como os diversos agentes interagem entre si num processo conflitante e
muitas vezes contraditório e como este processo é cada vez mais mediatizado pelo Estado.
Nesta produção está inicialmente a questão da propriedade da terra. Como dito,
para uns é priorizado o valor-de-uso da propriedade, para outros o valor-de-troca. Os que
têm na propriedade o objetivo do valor-de-troca, podem agir de varias maneiras. Deixam a
terra vazia, sem uso, aguardando que a produção da cidade faça com que sua terra tenha um
preço maior. Estes produzem também um espaço, na medida em que a produção da cidade
implica na existência de glebas vazias. É o caso de São Paulo, onde dos 70.000 ha. de área
urbanizada, cerca de 24.000 estão desocupados, representando cerca de 40% da área da
cidade (Seabra, M. e Rodrigues, A. M., 1986).
Poder-se ia argumentar que quem deixa a terra vazia, sem uso, não está produzindo
a cidade, mas a simples estatística acima mostra contrario, pois a cidade comporta os
espaços vazios, cuja incorporação como espaço construído permitirá a obtenção de maiores
rendas aos que detém a propriedade.
20
Veja-se, entre outros, Harvey, D.; Castels, M.; Topalov, C.; Maricato, E.; Odette, C.L.; Seabra (já citados).
86
É também freqüente o argumento de que a chamada especulação imobiliária deixa
propositadamente glebas inteiras vazias para “valorizar”, neste caso, sem dúvida, fica
evidente que produzem a cidade. Como não existem pesquisas para saber se as glebas
vazias são dos mesmos proprietários das glebas vizinhas loteadas, é de supor-se que, não
sendo os mesmos, alguns proprietários apropriam-se de rendas geradas por outros. Não há,
assim, uma “orquestração perfeita” dos proprietários de terra urbana (Rodrigues, A. M.,
1988). Mesmo porque, não há nas cidades uma classe de capitalistas proprietários de terras.
Não há, também, instrumentos legais que obriguem o proprietário a ocupar as glebas de
terras contíguas ou os lotes vagos, embora, desde a primeira Constituição se fale no Brasil
de função social da propriedade.
Buscando impor limites ao direito abusivo do uso, ou melhor, do não uso das terras,
o Projeto de Lei 775/83 propõe que o município tenha o direito de obrigar o proprietário da
terra a loteá-la ou utilizá-la, caso contrário poderá proceder à desapropriação. Este projeto
tramita desde 1983, o que demonstra as forças que tentam impedi-lo de ser aprovado. Ao
deixar a terra vazia, no momento de utilizá-la (seja vendendo, seja construindo) seu preço
ter-se-á elevado e muito – graças à produção da cidade como um todo.
ainda, entre os têm a terra como um objeto de troca, os que vão construir sobre
ela. Constituem-se no circuito imobiliário urbano, onde estão na maioria das vezes
representados os proprietários de terras, a promoção imobiliária, a indústria de construção e
o financiamento imobiliário. Neste circuito, a terra, como objeto de troca, será parcelada e
vendida aos pedaços (os lotes ou terreno) com ou sem edificações (as casas e os
apartamentos). Se é o proprietário das terras que faz o loteamento, obtém renda e lucro,
pois trabalho incorporado ao próprio terreno/lote, seja através do loteamento,
desmatamentos, abertura de ruas, terraplanagens, etc., seja através da edificação.
A venda destes lotes/terrenos ocorre num momento do tempo, embora para o
comprador possa significar uma “poupança” por longos períodos. Mas, dado o preço
elevado, o mais comum é o pagamento a ser realizado em parcelas. Sendo assim, as
instituições financeiras desempenham papel importante no mercado de moradia. Adiciona-
se então aos custos, os lucros, a renda e os juros e ter-se-á uma mercadoria de preço
elevado. No caso dos aluguéis, computam-se também a renda, os lucros e os juros, porém o
87
pagamento dar-se-á em parcelas mensais. Mantém-se a propriedade e a “valorização” e o
investimento é recebido em parcelas.
No caso dos aluguéis, paga-se de modo fracionado, em parcelas mensais, pelo uso
da propriedade. O cálculo do aluguel mensal é baseado não no custo da produção, mas no
preço de mercado de um bem eu ser valoriza também sem trabalho. A edificação
corresponde ao processo de trabalho, portanto é uma mercadoria do modo-de-produção.
Como todas as mercadorias, com o passar do tempo, sobre um ‘desgaste natural’ e deveria
diminuir de preço, pois se considera que o capital utilizado já foi “amortizado”. No entanto,
como a casa está localizada na cidade, cujos terrenos aumentam de preço pela produção
social desta cidade, seu preço é também crescente. Assim, ganha a especificidade de sofrer
um aumento de preço constante, muito embora os materiais de construção possam ser até
considerados inutilizados. Desse modo, os aluguéis que representam o uso do imóvel são
calculados não pelo valor-de-produção em si, mas pela localização na cidade, pelo preço da
terra e pela “valorização” futura. Portanto, o preço dos aluguéis chega a ser totalmente
independente das condições de produção da casa (Rodrigues, A. M., 1988).
As formas de proceder o parcelamento do solo e as edificações são muito variadas.
Compreendem empreendimentos individuais ou associados, contratação de empresas que
projetam e acompanham toda a execução, empreiteiras, sub-empreiteiras, financiamentos
bancários, etc. já que há uma multitude de processos privados de apropriação e produção do
espaço urbano. Topalov sugere que uma forma simples de estudar a formação dos preços
dos terrenos urbanos loteados, seria de fazer um calculo, levando-se em conta o
programa de aproveitamento do terreno, dos gastos com a construção e com a urbanização,
e dessa forma ter-se-ia também o cálculo do lucro. Diz Azevedo:
“Simplificamente, para o incorporador o lucro mínimo aceitável seria o mesmo obtido pelo
capital de promoção do próprio aplicado a taxas médias de juros no mercado financeiro,
pelo mesmo período de imobilização (lucro médio do capital de promoção). Assim,
deduzido esse lucro médio do capital de promoção do lucro interno de operação, o restante
será motivo de disputa entre o incorporador e o proprietário do solo.
(Azevedo Sérgio, 1982, p.77)
21
21
Veja-se Topalov, op.cit, que analisa o ciclo do capital no setor imobiliário, Ermínia Maricato, op.cit., que
analisa as indústrias de Construção-edificação, Odette, C.L. Seabra, op.cit. que mostra como se dá a definição
do preço das edificações na orla marítima.
88
Neste processo de produção da cidade é preciso levar em conta os incorporadores
imobiliários e a indústria de construção que estão envolvidos no processo de produção de
criação de valores-de-uso para outros (visando o valor-de-troca). O processo de
parcelamento compreende também diversidade em relação ao tipo” e ao lugar onde se
inserem: (a) os loteamentos de alto padrão” com lotes individuais para a construção de
“grandes casarões”, em áreas distantes ou em áreas vazias da cidade. Nas áreas distantes,
projeta-se um espaço que definirá o uso futuro; nos espaços vazios, no interior do espaço
construído, que é resultado de uma ocupação realizada, tem-se a apropriação de um
quadro construído. De um modo geral, tanto em um, como no outro caso, as edificações
são realizadas pelos futuros moradores, garantindo a individualidade de escolha e projeção
de como morar. Processo semelhante ocorre com os apartamentos de “luxo” e casas
construídas com “segurança, conforto, equipamentos comerciais, vizinhos da mesma classe
de renda, jardins, ar puro”, etc. O lugar da edificação também pode ser em áreas vazias
ocupadas ou em áreas no limite da cidade, que também marcará diferenças na apropriação
do espaço, já edificado ou a edificar.
No caso dos apartamentos, a venda/compra dá-se quando o edifício está pronto, ou
quase pronto (mas sempre se pode dar um retoque no acabamento) ou então se compra
parte do edifício ainda no chão e se paga em parcelas a preço de custo”. No preço de custo
está incluída a renda, os lucros e os juros. Fica de certo modo excluída a “valorização”
futura. No momento em que uma casa ou um apartamento termina de ser construído, a
venda não se dará pelo preço, incluído juros, renda, lucro de todos os participantes, mas sim
por um preço mais elevado que corresponde à valorização” futura e que caracteriza uma
apropriação da produção individual já incluída na da cidade.
No caso dos loteamentos, em geral, dá-se a venda de alguns lotes a um preço x.
Quando começam as primeiras construções o preço dos demais aumenta. As edificações
realizadas individualmente produzem a cidade. É interessante observar que a chamada
especulação imobiliária tem sido remetida apenas aos loteamentos ditos populares, mas é
também um processo que ocorre cotidianamente com os loteamentos de “alto padrão”. A
forma mais usual é vender alguns lotes, aguardar o início das construções e posteriormente
vender os demais lotes a um preço mais elevado. E se vende também o “status” de
89
pertencer a uma fração privilegiada que morará num lugar que mostra, pelos tipos de
edificações, quem serão os vizinhos.
Em geral, nestes trechos (ou pedaços) de cidades, o parcelamento do solo atende às
exigências da legislação, com tamanhos de lotes até superiores ao mínimo de lei. Vida de
regra, nestas áreas, os loteamentos estabelecem restrições de uso do solo (recuos laterais ou
frontais), e do imóvel (uso estritamente residencial). A indústria da construção provê as
edificações com material de qualidade, de durabilidade comprovada, pois os compradores
podem pagar. No caso dos apartamentos, compra-se uma fração ideal do solo urbano onde
está edificado o prédio. Como se compra apenas uma fração ideal do terreno, o preço
deveria ser mais baixo do que quem compra o lote. No entanto, isto não acontece, seja
porque se venda “segurança”, “localização”; seja também porque, se afirma, o custo das
construções é mais elevado
22
. Tais situações caracterizam a produção de lugares para os,
como diz Milton Santos, “cidadãos” transformados em consumidores mais que perfeitos.
Mas os espaços produzidos para os indivíduos que são “apenas” parcialmente
cidadãos, porque não são perfeitos consumidores, ou pelo menos consomem mercadorias
que não dão “status” de consumidor perfeito. São os que apenas conseguem comprar
lotes/terrenos nos chamados loteamentos populares. Em geral, estes loteamentos estão
localizados em áreas que não têm acesso por vias asfaltadas, onde não equipamentos de
consumo coletivo nas proximidades, onde não luz ou sobretudo água de rede, nem
esgotamento sanitário e na sua maioria não obedecem às normas de parcelamento do solo
(Lei 6766/79). São os arremedos de cidades.
O processo de loteamento e venda é semelhante ao anterior. Vendem-se alguns lotes
e quando começa a construção os demais são vendidos a um preço mais elevado.
Argumentam os loteadores que se fossem seguidas as normas das leis o preço seria
inacessível aos trabalhadores que ganham baixos salários. No entanto, logo que se começa
a construir os preços sobem, tornando-se também inacessível a outros trabalhadores.
22
A afirmação de que o custo nesse caso é mais elevado carece, neste trabalho, de maior fundamentação, pois
pesquisando revistas especializadas em construções, se encontram referências ao preço do metro quadrado
de construção, sem especificar se edifícios, sobrados ou casas térreas. Em pesquisa complementar no setor
construtivo, as informações são de que o processo construtivo é mais caro.
90
É de ressaltar-se onde ficam esses loteamentos ditos populares, ou seja, as
características de infra-estrutura e de equipamentos de consumo coletivo.
23
Quem se “interessa” por morar nestes lugares são os que não podem morar em
outros. Por pior que seja o lugar, sempre quem, precisando morar, pague por este uso.
Quem pode pagar escolherá lugares que oferecem mais “status”, mais conforto, etc. Como a
maioria dos trabalhadores ganha baixos salários (vide tabela 4), constituindo-se em um
amplo mercado mas que é qualitativamente restrito. Não pode pagar por diversas
mercadorias do modo de produção capitalista. Não pode pagar pela casa inserida
espacialmente em determinados lugares.
Como o parcelamento do solo visa obter renda e lucro, ele tem que ser feito de uma
tal forma que haja mercado, que possa pagar. Define-se, pela capacidade de pagar, a
“qualidade” do lugar onde se mora. São poucos os que podem pagar por uma mercadoria de
qualidade superior a casa e o lugar. Se estes fossem colocados no mercado em grande
quantidade poderia significar uma diminuição do preço tornando-o acessível a um maior
número de pessoas; perder-se-ia, assim, a monopolização deste bem tornado escasso e caro.
A produção da casa nestes loteamentos pode ser realizada por empreendimentos
capitalistas, mas, via de regra, será feita pelo trabalhador e sua família auto construção
em um processo demorado e penoso. Mas, assim que parte da casa fica pronta e começa a
ser ocupada, iniciam-se processos organizativos para obter serviços necessários à moradia
na cidade. Cerca de 70% das unidade da área Metropolitana de São Paulo são produzidas
desta forma, no chamado binômio: loteamento e autoconstrução. Mas, com o passar do
tempo, este aspecto o visível do processo de auto-construtivo desaparece. Tem-se a
aparência de casas construídas num curto período de tempo. quando se acompanha o
processo de produção da cidade tem-se a dimensão de que, na sua grande maioria, as casas
são produzidas em um longo período de tempo.
24
Este processo de produção da moradia individual coletiviza-se na luta pela obtenção
de água, luz, transporte, escolas, etc. Ao se unirem e buscarem as formas de obter tais
23
A lei 6766/79 considera comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e
similares, e urbanos os equipamentos públicos de abastecimento de água, serviços de esgoto, energia elétrica,
coletas de águas pluviais, rede telefônica e gás encanado. Para designar este conjunto, neste trabalho os
termos utilizados são: equipamentos de consumo coletivo ou meios de consumo coletivo.
24
Sobre a autoconstrução, veja-se Maricato, E., 1979.
91
equipamentos, estão também produzindo a moradia, na sua inserção na cidade, equipando-a
com valores-de-uso e de troca.
Estão presentes neste processo de produção da cidade todos os habitantes desta.
Também produzem a cidade os favelados que cotidianamente ocupam um pedaço de terra,
constroem seus barracos e no seu conjunto a favela. Os ocupantes chamados de invasores,
que se organizam, encontram espaços vazios, ocupam-no com rapidez, construindo seus
barracos. Também, individualmente construindo um barraco ou coletivamente quando se
unem para reivindicar os equipamentos públicos para a favela e ocupações, estão
produzindo a cidade. Mesmo quando não é possível permanecer, pois são despejados,
considero que produzem a cidade (vide cap.III). Todos os agentes citados aparentemente
produzem individualmente a apenas para si. Na verdade, é produção social, pois dada à
própria distribuição da população em classes sociais, a divisão social e territorial do
trabalho traduz-se em formas diferentes de apropriar-se deste espaço. São formas
individuais, mas não independentes.
Mantendo-se a terra vazia, aguardando a edificação nas vizinhanças, ou realizando-
se um parcelamento do solo obedecendo-se ou não à legislação –, edificando-se moradias
no circuito imobiliário ou fora dele para uso próprio ou para venda, tem-se como
resultado uma produção social de existência. A localização na cidade define quem mora, o
lugar de cada um, dependendo do poder pagar:
“Enquanto o custo da moradia de igual tamanho e tipo de acabamento é quase o mesmo em
qualquer lugar de uma determinada cidade, o preço dos terrenos, a mesma metragem varia
consideravelmente em função de sua localização na malha urbana.
(Azevedo, A. op.cit., p.82)
Pois a cidade tem “um valor-de-uso específico, diferente do valor-de-uso de cada uma de
suas partes, é um valor-de-uso complexo que nasce do sistema espacial, da articulação no
espaço de cada um dos valores de uso elementares” (Topalov, op. cit., p.21). Topalov está,
nesse caso, referindo-se às condições gerais da produção e do valor-de-uso global da
cidade, onde a produção da moradia está inserida.
Considerando que no circuito imobiliário urbano são edificados 25% das unidades
habitacionais das grandes cidades, podemos afirmar que o que melhor caracteriza a
apropriação do espaço urbano para moradia são as unidades construídas fora deste circuito
92
que compreendem: o binômio loteamento/autoconstrução as favelas e mais recentemente as
ocupações de terras.
oOo
93
2.6. Os meios de consumo coletivos
Como o capital não produz elementos necessários aos valores de uso do complexo
urbano que não estejam diretamente vinculados às condições de sua rentabilidade, tais
como a infra-estrutura e os equipamentos de consumo coletivo; como os salários pagos à
maioria dos trabalhadores não permitem adquirir todas as mercadorias necessárias (por
mínimas que sejam) à reprodução da força-de-trabalho, será o Estado, através de todas as
suas instancias, que se encarregará do financiamento, da produção e do gerenciamento,
enfim, da provisão de determinados valores de uso os meios de consumo coletivos
necessários à produção, que viabilizem a cooperação capitalista e a reprodução da força de
trabalho
25
.
A expressão “meios de consumo coletivo” será utilizada neste trabalho, do mesmo
modo que Samuel Jamarillo:
“...como uma séria de valores de uso, que por algumas de suas características são difíceis de
serem providas pelo capital individual sendo porém indispensáveis para a acumulação do
capital em geral.
(Jamarillo,Samuel – 1986, p.19)
E também produção da força-de-trabalho. Entre os consumos coletivos mais
importantes, estão os serviços públicos, o sistema viário e os espaços coletivos, os serviços
de saúde, de educação, de transporte, de habitação, etc. para os setores de baixos salários,
pois não para estes produção capitalista de mercadorias, que não e constituem em
demanda solvente para o capital.
Trato aqui, em especial, do modo como, ao definir onde e o que produzir e ao
administrar, o Estado (re)produz e (re)define os valores de uso da cidade e portanto também
a renda diferencial dos terrenos nas cidades.
Como diz Topalov:
25
Em que pese a importância de discutir e aprofundar a análise do Estado Capitalista, em todos os níveis, este
trabalho ficará restrito a autuação do Estado em relação à questão da habitação. Veja-se a respeito entre
outros: Carnoy, M., 1984; Lechner, N., 1993; Martins, L., 1985; Afonso, C.A. e Souza, H., 1977; Leclerq, Y.,
1977; Salama, M. e Mathias, G., 1983; Lojkine, J., 1981.
94
“O consumo mercantilizado é consumo de um objeto isolado, independente de outros: é um
consumo de mercadorias. Mas valores-de-uso complexos que resultam de valores-de-uso
elementares...A conexão espacial de valores-de-uso elementares é necessária à produção e
circulação do capital e também à reprodução dos trabalhadores. Suas necessidades estão ligadas
entre si e não podem ser satisfeitas de forma totalmente independente: os processos de consumo
de produtos estão estreitamente ligados entre si. A salubridade da moradia condiciona
diretamente o estado de saúde de seus ocupantes. Condiciona também indiretamente o conjunto
da sociedade: as epidemias surgem primeiro nos ‘tugúrios’ dos bairros populares, porém
chegam a afetar os burgueses.”
(Topalov, op.cit, p.66)
A produção de alguns valores-de-uso, como a moradia, embora mercantilizáveis,
produzidos e consumidos unifamiliarmente não são independentes, constituem um valor-
de-uso complexo.
Vimos que ao produzir a moradia qualquer que seja a forma se está produzindo
valores-de-uso complexo, se está produzindo a cidade. Ora, se isto é verdadeiro para a
produção/consumo individual é mais ainda para a atuação do Estado. Como a urbanização
capitalista compreende uma multitude de processos privados de apropriação do espaço,
como cada capitalista investirá no que é diretamente rentável para a sua apropriação,
como uma série de valores de uso que pela suas características interessam a todos os
capitalistas, mas a nenhum em particular, como ainda estes valores-de-uso são necessários
para a reprodução da força de trabalho, será o Estado que proverá estes valores-de-uso
complexos, através das chamadas políticas públicas.
Um primeiro aspecto diz respeito ao fato de que, na aparência, o Estado situa-se
acima das classes, sendo o provedor das necessidades do capital e do trabalho. Ou seja, o
Estado aparece como aquilo que ele não é, que busca atender ao interesse geral, acima das
classes. Para atender aos interesses de todos, deveria suprir as necessidades da acumulação
do capital e da reprodução da força de trabalho. Sendo assim, investiria para equilibrar as
diferenças sociais e propiciar a socialização da reprodução capitalista. Mesmo
considerando-se que o Estado investiria em áreas necessárias para dar um maior equilíbrio,
o que facilitaria a produção e o consumo, não disponibilidade dos capitalistas para
arregimentar fundos para essa realização. Estes recursos são provenientes de diferentes
formas de tributação. Direta, sobre a propriedade os impostos territoriais, prediais, de
transmissão e indireta impostos sobre produtos industrializados, sobre a circulação e
consumo, de renda, depósitos compulsórios, etc. Cria-se, assim, um “fundo” de recursos
95
que deveria propiciar uma intervenção do Estado nas áreas mais necessárias. No entanto, o
Estado não define as inversões em função das necessidades, mas da sua importância no
plano político. Permanece, na aparência, como se fosse um mecanismo regulador aplicado a
um sistema em desequilíbrio, porém investirá principalmente nas áreas de interesses das
classes dominantes (veja-se Preteceille, E., 1986).
Se o Estado fosse regulador para propiciar um maior equilíbrio, as inversões seriam
feitas, por exemplo, na produção de habitação. Mas o é o que ocorre, pois no caso do
Brasil, alegando-se falta de recursos, foi em 1967, criado um mecanismo de captação destes
para o BNH Banco Nacional de Habitação, criado em 1964 visando à produção de
moradias populares, através do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço FGTS
26
. Após
20 anos de recursos considerados elevados o BNH foi durante muito tempo o segundo
banco em volume de recursos no Brasil –, os resultados foram muito modestos. 18% do
FGTS foram destinados à habitação de “interesse social” (Bolaffi e Cherkezian, 10/85). Ao
final deste período de 20 anos, o déficit habitacional é calculado oficialmente me 4,9
milhões e extra oficialmente em 11 milhões de unidades. Os recursos do Estado têm sido
aplicados principalmente nos setores e nas áreas que interessam ao capital. que se
ressaltar, também, que os investimentos estiveram relacionados com a tentativa de legitimar
o governo militar e propiciar um crescimento econômico, pois se elegeu a indústria de
construção como prioridade, dado que é um dos setores que mais utilizam a mão-de-obra
não qualificada. Ao mesmo tempo, procuravam oferecer benefícios para os moradores das
cidades, dizia-se com a erradicação da “sub-habitação”. Como se os habitantes das sub-
habitações” não fossem também citadinos.
Porém, os resultados mostram que não foi privilegiada a habitação para os
chamados setores populares. Além disso, como mostra Ermínia Maricato, também é
enganosa a questão da assimilação dos trabalhadores na industria da construção, dadas as
próprias condições de trabalho (Maricato, E., 1987). Neste trabalho importa ressaltar que ao
ser criado, o BNH tinha como pressuposto melhorar as condições de vida urbana, através da
produção da habitação para as classes populares (veja-se Benício, Schimidt, op.cit.).
26
Sobre BNH, SFH e FGTS, veja-se Azevedo, A.; Maricato, E.; Veras, M.; Bolafi, G., já citados, entre
outros.
96
Voltemos à questão: se o Estado fosse realmente regulador dos desequilíbrios, a
aplicação dos recursos na cidade deveria procurar, como diz o discurso oficial, a eficiencia
urbana, a justiça social e a modernização dos equipamentos. Mas o que se tem visto são
investimentos principalmente em obras pontuais e que atendem apenas a interesses de
frações da classe dominante, como a construção da ponte Rio-Niterói, prédios luxuosos
para abrigar a sede do BNH, etc., além de obras para a renovação urbana-CURA e infra-
estrutura. Construções que provocaram, de um lado, uma expansão na indústria de
construção e, de outro, um aumento exagerado dos preços de insumos para este tipo de
indústria, provocando um encarecimento das construções, limitando assim as condições de
aquisição de imóveis para habitação principalmente das classes populares, objetivo para
qual teria sido criado.
Em que lugares se investirá? Os maiores investimentos serão realizados onde
existe, para terrenos e edificações, um preço elevado. Nos bairros onde moram os que
ganham baixos salários, há carência de escolas, de postos de saúde, de postos policiais, de
ruas asfaltadas, de ônibus – em quantidade e qualidade – , de consultórios médicos, etc. e aí
se investe muito pouco. Isto significa que o Estado privilegia áreas onde as necessidades
estão supridas, pois, nas áreas onde moram estratos de classe média ou mesmo alta,
escolas de boa aparência, posto de saúde, vias asfaltadas, etc. e se busca complementar ou
melhorar estes equipamentos. Estes aspectos são visíveis na cidade de São Paulo, onde a
conservação das vias, para ficar num aspecto, contrasta com os parcos recursos
investidos nas ruas da periferia pobre, completamente esburacadas.
também a ocorrência de investimentos em áreas ditas deterioradas, buscando-se
a renovação urbana (Projeto CURA). Nestes lugares tem-se em conseqüência dos
investimentos a expulsão dos moradores pobres que não podem pagar por estas
transformações no espaço.
27
De modo geral, o investimento ocorre em áreas equipadas, mas, quando também
se investe em áreas carentes, a tendência é a expulsão dos mais pobres, pois aumenta o
preço da terra, das habitações. Este aumento está relacionado muitas vezes aos impostos
sobre a terra – caso os proprietários que moram em casa própria e vendem para comprar em
outro bairro, onde os impostos são mais baixos aos aluguéis, que se tornam incompatíveis
27
Veja-se Vilarinho Neto, C. S., 1987.
97
com os que moravam e que mudam para outros lugares mais ‘pobres’. Mas, também ao
fato que, com a mudança da aparência, com a ‘chegada dos melhoramentos’, perde-se a
identidade no bairro: “Agora é todo mundo diferente, muito rico, eu não posso mais
morar aqui” (depoimento).
Um outro aspecto diz respeito ao investimento em novas áreas, por exemplo, com a
construção de conjuntos habitacionais e seus necessários equipamentos, aumentando o
preço das terras e das moradias nas vizinhanças. Também altera-se significativamente o
preço dos terrenos nas áreas onde, após muitas reivindicações, o Estado atua ampliando ou
equipando com meios de consumo coletivo determinados bairros. Ou seja, são duas faces
do mesmo processo: de um lado procura-se equipar-se melhor onde existe equipamento,
o que um aumento de preço da terra e das construções existentes, expulsando para ainda
mais longe os que não podem pagar; de outro, onde não existem equipamentos e se
planejam e executam determinados projetos, também se altera o preço da terra e das
edificações tornando, em um caso como no outro, difícil o acesso aos trabalhadores que
ganham salários baixos, exceto muitas vezes no próprio lugar, como é o caso dos conjuntos
habitacionais.
Quando os moradores de determinadas áreas carentes de equipamentos de consumo
coletivo se reúnem para reivindicar junto aos poderes públicos estes equipamentos e têm
atendidas suas reivindicações, o processo é semelhante. Para alguns é possível ficar, para
outros também uma expulsão e outros que ainda não conseguiram chegar, terão de ir
para lugares ainda menos equipados
28
.
É bom frisar também que os investimentos estatais para provisão de meios de
consumo coletivos não se localizam apenas nas cidades. As usinas hidroelétricas, as
reservas de abastecimento de água, se localizam em áreas distantes, mas redefinem nas
cidades o preço da terra, pois a existência ou não de abastecimento de água, de
fornecimento de luz elétrica-domiciliar e pública alteram o preço da terra e das moradias.
Tem-se no Brasil questionado, com muita propriedade, a canalização de vultosos recursos
para a construção de enormes represas que não atendem necessariamente aos interesses da
maioria dos trabalhadores, principalmente os que moram na região atingida pelas obras. Ao
28
Para análise dos meios de consumo coletivos, veja-se Jamarillo, S., 1986; Preteceille, E, 1986; Topalov,
op.cit.; Castels, M., 1977; Habermans, J., 1984.
98
analisar os impactos provocados pelas construções das grandes represas no vale do Rio São
Francisco, Manoel C. de Andrade demonstra que para as 70.000 pessoas que viviam na área
inundada pelo lago do Sobradinho, não houve melhoras nas condições de vida. Demonstra,
também, que, muito embora nas grandes cidades a população tenha sido beneficiada pela
ampliação da rede de luz elétrica, os maiores beneficiários das construções das barragens
foram grupos econômicos que participaram da produção das mesmas (empreiteiras,
vendedores de máquinas, de combustíveis, de peças, etc.) e aqueles que se beneficiaram do
consumo de energia elétrica, constante e barata para as suas atividades industriais,
comerciais e agrárias (Andrade, M. C. , 1984, p.198). Do mesmo modo, José Matias Pereira
analisa o impacto das hidroelétricas na ecologia da Amazônia. Com relação à hidroelétrica
de Tucuruí, ao que tudo indica o principal objetivo foi o de viabilizar os empreendimentos
econômicos instalados no Projeto Grande Carajás (Pereira, M. – FSP, 04.11.1987).
No âmbito deste trabalho, estas informações têm apenas o objetivo de indicar que a
produção da cidade, também ocorre em áreas não-urbanas como parte do processo de
urbanização capitalista, de um processo que interfere no preço da terra urbana, que pela
idéia de progresso tem utilizado recursos advindos do FGTS. Odette C. L. Seabra, ao
analisar as formas de incorporação das várzeas dos rios Tietê e Pinheiros, mostra com
clareza o processo de transformação dessas áreas com a produção de energia elétrica pela
LIGHT (Seabra, C. L. Odette – 1987).
A atuação do Estado reforça tendências presentes na economia de mercado. Se a
atuação fosse realmente para suprir carências obter-se-ia um “reordenamento urbano”. No
entanto, é preciso atentar que além de reforçar estas tendências, o Estado, ao legislar,
define que os pobres” precisam de menos espaço que os ricos. A Lei 6766/79 define que
lotes menores de 125 m
2
podem ser implantados nos loteamentos de “interesse social”. O
próprio BNH, estabeleceu que os moradores dos conjuntos do PROMORAR (Programa de
Erradicação de Favelas) teriam lotes de 70m
2
e as casas com áreas de 30m
2
. Em Osasco, o
Programa “Casa para Todos” prevê lotes de até 90m
2
, enquanto uma casa no Morumbi, em
São Paulo, tem cerca de 2.000m
2
.
A produção e a implantação de determinados equipamentos provoca diferenças no
preço da terra e habitações. Se o preço dos terrenos varia fundamentalmente pela sua
localização na malha urbana, se o Estado é o grande provedor dos valores de uso meios
99
de consumo coletivo, é mais do que obvio que se reforçam tendências presentes nas formas
de apropriação do espaço urbano. Fica mais evidente a produção social de existência e a
apropriação da renda diferencial por aqueles que detêm a propriedade da terra.
Quais os mecanismos que fazem ainda com que a maioria da população considere o
Estado acima das classes e com características de investir para contrabalançar os
desequilíbrios urbanos? Penso ser esta uma questão relevante, que não consegui ainda
aprofundar. Penso, ainda, que esta analise deve levar em conta a trajetória da produção de
cada um dos consumos coletivos em sua multiplicidade de determinantes. Restou a
constatação de que o Estado, ao atuar no urbano, mantém e (re)produz o “equilíbrio” das
segregações espaciais. A cada um o que é possível pagar. Para o trabalhador com baixos
salários o lugar é um pequeno lote com casas construídas com material de fácil
deterioração, ao longo de muitos anos, de muitas horas de “descanso”, em lugares onde não
equipamentos e meios de consumo coletivos que garantam um mínimo de qualidade de
vida.
Os movimentos reivindicatórios por luz, água, transporte e moradia – casa própria –
traduzem os antagonismos econômicos em conflitos políticos, pois tentam obter do Estado,
condições um pouco mais dignas de existência, através da canalização de recursos para o
atendimento das suas reivindicações.
Começa a evidenciar-se para os participantes dos movimentos que Estado não está
acima das classes, nem atua para corrigir desequilíbrios. Em Osasco, por exemplo, ao
mesmo tempo em que o Prefeito, alegando falta de verbas recusava-se a desapropriar uma
área ocupada, que daria para cerca de 600 lotes, pelo valor venal de oito milhões de
cruzados, trazia por algumas horas um apresentador de TV, para a comemoração do
aniversario da cidade, pela bagatela” de um milhão de cruzados. Para os participantes do
movimento, este fato evidenciou que o Prefeito: “...só atende os interesses dos poderosos”,
“ele, o prefeito, prometeu que ia entrar com o último recurso, que nóis não ia ficá na rua, e
num cumpriu nenhuma palavra do prometido, mas trouxe esse tal de Gugu para divertir a
gente, só que nós precisamos é de casa e não do tal do Gugu” (depoimentos).
Como ilusoriamente o salário, o lucro, os juros e a renda constituem a remuneração
pela participação de cada um deles em partes iguais, na criação do produto e do valor,
também ilusoriamente o Estado, ao atuar na cidade, distribui a cada um de acordo com a
100
sua capacidade de trabalho, que é de igual à sua remuneração. E fica evidente o fetiche
da cidade. Como pelo trabalho recebe-se pouco (ilusoriamente recebe pelo que se vale),
pode usufruir de determinada qualidade de vida. Como quem detém a propriedade tem uma
remuneração maior, porque “contribui mais”, pode-se usufruir de uma qualidade de vida
melhor. É a mistificação da realidade: a cada um o lugar que merece na cidade.
Considerando a analise acima que evidencia a divisão em classes sociais e, na classe
trabalhadora, a divisão em faixas salariais, ou seja, em camadas de classes que têm formas
diferentes de se apropriar do espaço urbano, face as condições salariais, objetivas, mas
também as condições objetivas do modo e condição de vida; considerando a características
da mercadoria terra urbana, da habitação e dos equipamentos de consumo coletivos, ou
seja, da produção e consumo da cidade, constatamos que várias formas de se apropriar
do espaço urbano.
os desbravadores da cidade, que chegam antes dos equipamentos e meios de
consumo coletivos, onde se incluem aqueles que compram um lote, em áreas não dotadas
de infra-estrutura e auto-constróem sua casa; os favelados e os ocupantes. Após a ocupação,
ou construção de suas casas, lutam para obter os serviços blicos. Utilizam-se de um
espaço para nele cristalizar seu tempo de trabalho e encontrar um lugar onde morar, viver
sua condição de trabalhador de uma cidade. São os produtores e os consumidores da cidade
que desbravam.
aqueles que chegam depois que estes equipamentos estão instalados: podem
pagar por essa mercadoria nesse lugar. Usufruem desta cidade produzida, pagando por ela.
É difícil separar os que produzem dos que consomem a cidade. É melhor separar os que
lucram, os que usufruem e os que vivem em arremedos de cidades. Em todos está presente
o cidadão-consumidor, ou o consumidor cidadão.
É necessário tentar analisar de que maneira se compreende a cidade e os excluídos
do acesso à terra e moradia nas cidades. Como se situam, também, os participantes dos
movimentos de ocupações de terra, face aos discursos sobre a cidade e a moradia, no
processo de apropriação cotidiana do espaço.
101
FOTO a – Concomitância de tempos e ritmos diferentes
102
Foto b – Para as necessidades “biológicas” também é preciso ter um pedaço de chão
103
CAPÍTULO III
OS DISCURSOS SOBRE O ACESSO À TERRA
E
MORADIA NA CIDADE
104
1. ALGUNS ASPECTOS DAS FALAS SOBRE AS CIDADES
Neste breve apanhado das falas sobre a cidade, entendo, como Eder Sader, que as
falas (ou discursos) dizem respeito ao uso ordenado da linguagem em que um sujeito,
através de textos ou falas, dirige-se a um público. Todo discurso é obrigado a lançar mão de
um sistema de referências compartido pelo que fala e por seus ouvintes (Veja-se Sader,
Eder, op.cit., p. 28-32).
Nas falas aqui referidas, fica nítida a articulação entre o poder e o saber, que não se
referem a um discurso uniforme e estável, mas que tem sido a fala dos representantes do
poder instituído sobre a cidade e sobre o pobre na cidade.
É possível perceber que nos estudos das falas sobre as cidades vários caminhos.
Maria Stella Bresciane coloca que para os estudiosos da historia das cidades nas primeiras
décadas do século XX, existem pelo menos dois caminhos. Um é o do percurso cronológico
do crescimento das cidades, das definições dos sítios e das funções urbanas, onde as teorias
estão em geral encobertas pela descrição. O outro caminho é analisar as teorias, que
colocam na cidade o seu objeto de estudo e ou de trabalho, no momento em que as
concentrações, necessárias à produção e ao consumo, são consideradas problemas. Aí se
explicita a cidade como um laboratório para o exercício de políticas, relacionadas à questão
técnica. Neste segundo grupo, diz Maria Stella, toda uma variedade de trabalhos
desenvolvidos na esteira de teorias diferentes. No contexto da visualização da cidade como
um problema e ao mesmo tempo como um lugar de progresso representativo da sociedade
como um todo, as
“propostas de intervenção nas cidades deslizam rapidamente para se tornarem
propostas de intervenção na sociedade.
29
É necessário aprofundar os estudos para tornar mais explícitas as propostas de
intervenção na cidade. E também, como diz Francisco de Oliveira, é necessário investigar a
relação entre o Estado e o urbano, o que significa também analisar as teorias de intervenção
na cidade e na sociedade (Veja-se Oliveira, F., 1982).
Marcela Delle Donne elaborou uma síntese das principais teorias sobre as cidades,
onde fica evidente que a especialização disciplinar não tem dado conta da complexidade do
urbano, mas, pelo contrario, tem resultado em imagens fragmentadas e parciais, pois o
29
Veja-se Bresciane, M. S., 1988, mímeo, que analisa sucintamente estas teorias do século XVIII ao início do
século XX.
105
fenômenos urbanos são geralmente vistos através de esquemas racionalmente pré-
constituídos, isto é, utilizando-se de modelos, de moldes onde se procura encaixar a
realidade. Embora tais teorias não se refiram “strito senso” ao objeto deste estudo, importa
ressaltar que, na maior parte das vezes, a cidade é entendida como um organismo, ou como
um objeto em si: tem seu sítio, sua situação, tem uma função, está inserida numa rede de
cidades e se hierarquiza de acordo com esta inserção (levando-se em conta sua produção e
consumo). Diz-se também: “A Cidade tem um crescimento elevado; A Cidade é pobre; A
Cidade tem problemas de saneamento, etc.”. A população é, em geral, uma abstração. De
um lado, analisa-se o crescimento da população, sua divisão em atividades profissionais,
seus lugares de moradia e, de outro, as funções da cidade, a forma como se estruturam os
espaços, através das teorias concêntricas e de setores. Mas, em geral, um aspecto não é
relacionado a outro.
30
Neste trabalho importa salientar a presença dos “excluídos” dos equipamentos e
serviços coletivos, da habitação, daqueles que são considerados propagadores das doenças
físicas e da degradação moral, morando em partes de cidades que fogem aos padrões dos
modelos ideais pré-estabelecidos. A presença dos excluídos nas análises é visível, seja
quando se descrevem as cidades, os sítios onde estão localizados –, seja quando se
procura, através da técnica, “resolver” os problemas urbanos que aparecem como sendo
resultado da concentração dos pobres nas cidades.
Quando a cidade deixa de ser considerada nociva à saúde do corpo e da alma do
homem, passa-se a atribuir aos pobres das cidades este papel de contaminadores da moral e
da saúde. Não é mais a cidade, com seu ambiente, tido como artificial, que provoca tal
degradação, mas aqueles que moram em lugares fétidos, onde as casas são insalubres, que
são responsabilizados pela propagação de doenças. Nestes lugares procura-se uma solução
técnica tentando desaglomerar as pessoas, ou pelo menos, confiná-las em lugares não
visíveis, em verdadeiros guetos.
Produzidos na segunda metade do século XIX, uma série de estudos que
procuram demonstrar a relação entre os problemas sociais e o meio ambiente.
Expressavam-se na Inglaterra de então com o Public Health Act, base de uma legislação
30
Veja-se Delle Donne, M., 1979, que estuda, num quadro referencial histórico, as teorias sociológicas – com
ênfase na escola de Chicago –, a abordagem geográfica, a econômica, a política e a cultural da cidade.
106
sanitária e urbana; tendo sido criado, em seguida, o primeiro comitê de saúde que propõe
como medidas para solucionar os problemas de higiene pública a construção de casas para
trabalhadores nas cidades com mais de 10.000 habitantes; e, em 1890, o Housing of Worker
Class Act que unificou todas as leis sanitárias sobre a construção de casas populares (Ver
Bresciane, M.S., op.cit.).
Tem-se, assim, uma dimensão dos estudos que, desde o século XIX, consideram a
área habitada pelos pobres como carecendo de um saneamento, sendo pois considerada
lugar de propagação de doenças.
No caso de São Paulo, objeto de estudo do presente trabalho, em a893, portanto
no início do processo de crescimento mais expressivo da cidade, e em função de surtos
epidêmicos, foi formada uma comissão que elaborou o “Relatório da Comissão de Exame e
Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Districto de Santa Ephigênia”, pois, sem
dúvida, tais áreas eram focos privilegiados de epidemias que poderiam alastrar-se para a
cidade como um todo, principalmente pelo padrão de adensamento do casario urbano.
Assim, é decretado pelo Estado, em 1894, o Código Sanitário que estabelece quais as
condições básicas de edificação das moradias populares (o lugar: fora das aglomerações
urbanas; a contigüidade: de quatro a seis casas geminadas no máximo) e, em 1898,
determina-se a demolição dos cortiços infectos e insalubres (Veja-se Nabil, B., 1982).
Ao nível dos discursos, é sempre destacada a necessidade de extirpar-se os lugares
considerados contaminadores de maus costumes e doenças. Sabe-se que não se atua
efetivamente para acabar com os cortiços, com as favelas, mas se tem como proposta esta
erradicação da pobreza, pois é a pobreza considerada causa de “contaminação física e
moral (foco de promiscuidade, de imoralidade e de violência). Nestes discursos não fica
evidente onde se situa o limite entre o grupo social dos trabalhadores pobres e o das
“classes perigosas”, pois é o lugar onde se mora que é definido como foco de
contaminação. Assim, o lugar proposto para a edificação de novas moradias é fora das
aglomerações urbanas, o que demonstra a tendência da segregação espacial e da
visibilidade da segregação.
Quanto à visibilidade da segregação em São Paulo, basta cada um de nós fazer um
passeio pela cidade, através das ruas e avenidas principais e procurar ver a concentração do
casario urbano da pobreza. Teremos a surpresa de o achá-la em grandes concentrações
107
num largo círculo próximo ao centro.
31
A pobreza é visível, o que o é muito visível é a
concentração de unidades habitacionais dos pobres, ao longo das grandes avenidas.
Engels, na análise da situação da classe trabalhadora da Inglaterra na metade do
século XIX aponta para esta não-visibilidade da pobreza, ou seja, para a segregação da
pobreza e seu isolamento, pois seus sinais não são visíveis nos bairros burgueses (Engels,
F., 1975). A análise de Engels faz parte de uma preocupação com a condiçao de vida dos
trabalhadores e com o movimento operário, demonstrando a precariedade da vida e da
moradia.
Sem dúvida, esta tentativa de afastar a pobreza e os pobres da ‘área principal’ da
cidade é um dos objetivos da urbanização levada a efeito pelo Barão Haussmann, na
metade do século XIX, em Paris:
O Barão de Haussmann substituiu as ruas tortuosas, mas vivas, por longas avenidas, os
bairros sórdidos, mas animados, por bairros aburguesados. Se ele abre ‘boulevards’, se
arranja espaços vazios não é pela beleza das perspectivas, é para ‘pentear Paris com as
metralhadoras.’”
(Lefebvre, H., 1969, p.20)
ainda que se considerar, pelo menos para São Paulo do fim do século XIX e
início do XX, o tipo de habitação que é proposto com a preocupação de sanear a cidade.
Como padrão de moradia, desenham-se miniaturas das casas burguesas, definindo-se o
tamanho, sempre menor, mas com as separações em cômodos, para evitar a promiscuidade
no interior da moradia. Busca-se também limitar a contigüidade das unidades. Como as
casas da burguesia são isoladas entre si, elaboram-se desenhos de casas com pequenos
jardins, com recuos que possibilitam um isolamento (Veja-se Rolnick, R., 1983). Fica
evidente o princípio de cada um no seu lugar, no tamanho e na forma, proposto pelo poder
instituído e considerado competente para ditar as normas. Tem-se um demonstrativo de
que a intervenção na cidade representa a intervenção na sociedade e que esta se dá com a
intervenção do Estado, através de seus diversos agentes.
31
Um grupo de pesquisadores de outros Estados alertou-me sobre este aspecto por ocasião de uma “excursão-
pesquisa” pela cidade, onde buscava-se a diversidade de moradia, como parte do simpósio A Metrópole e a
Crise, em 1985. Estavam procurando a habitação da pobreza que não era visível. A pergunta era: “São Paulo
não tem pobreza ou não estão nos mostrando?”.
108
O processo de saneamento das bricas, visando uma maior produção, expande-se
para as cidades, com as disciplinas dos corpos nos espaços e as disciplinas dos espaços.
Verifica-se toda uma configuração de um campo teórico que privilegia a técnica
como recurso para resolver” os problemas urbanos e tornar habitável a cidade, para quem,
é claro, “merece”, pois, como referido várias vezes, o salário, o lucro, a renda e os juros
aparecem como a justa remuneração pela participação de cada um. Se o salário aparece
como a justa remuneração do trabalho, quem merece ganha um salário que lhe permite
usufruir da cidade com certa qualidade de vida; isto, é claro, além dos proprietários dos
meios de produção e dos proprietários de terras. E assim tem-se uma parte da cidade
equipada para os que podem pagar, pois “merecem”. Como resultado, várias cidades na
mesma cidade, segregadas entre si pela riqueza e pobreza de seus moradores. Nesse
sentido, todos os argumentos da escola keneysiana de bem-estar social, da distribuição da
riqueza, da intervenção, para minorar os problemas de pobreza e, portanto, de
contaminação, parecem ser um beneficio que é “dado”, pelos que produzem a riqueza aos
que não a produzem.
A concentração de pobreza, das massas despossuídas faz com que se modifique
substancialmente a forma de percepção da pobreza em relação à idade clássica, na qual a
pobreza era vista como virtuosa e próxima de Deus; uma vez concentrada no espaço
urbano, passa a ser considerada ameaçadora e perigosa. Torna-se, então, necessário
(re)conhecer o novo fenômeno. A medicina sanitária lidará com este novo meio-foco de
doenças, apontando para a necessidade de regulamentar condições de moradia e dos
diferentes usos urbanos, e para tanto vai associar-se à engenharia sanitária (Veja-se Cunha,
M.C.P., 1986).
É através dos discursos dos sanitaristas médicos e engenheiros que é possível
analisar como o meio é considerado determinante para moldar o indivíduo na sociedade.
Parece, pelo menos em relação às cidades, que o discurso geográfico do homem
relacionado ao meio (físico) das correntes de pensamento alemã e francesa é adaptado para
a visão de que o homem é produto do meio social. Enquanto a geografia se detém na
relação homem-meio (físico), a intervenção na cidade e na sociedade se concretizam nesta
mesma relação homem-meio (social). Lugares fétidos, escuros, promíscuos, com gente
amontoada, degeneram o homem, ou pelo menos não formam homens capazes; enquanto
109
lugares arejados, iluminados, separados formam homens sadios. Do mesmo modo, as
regiões tropicais, nos mitos de uma certa geografia, produz homens indolentes e países
subdesenvolvidos, enquanto nas regiões temperadas os homens são mais fortes, mais
trabalhadores e os países são mais desenvolvidos. Este aspecto da relação do homem com o
meio (social) carece ainda de ser avaliado pelos estudiosos de geografia humana. foram
encontrados, nos autores do período, referências mais explícitas à produção e à divisão em
classes sociais nas cidades em Kropotkin e Reclus (Kropotkin, P., 1986 e 1987; Reclus, E.,
1985).
Com relação a disciplinarização nas cidades brasileiras relacionadas à ideologia do
progresso, diz Maria Clementina que os cortiços foram tratados como:
“uma espécie de síntese do ‘mal’, objeto de todos os temores-alvo de um combate
sistemático e ininterrupto desde o final do século XIX. A imprensa paulista está repleta de
queixas, reclamações, notícias dirigidas contra aquilo que as famílias do bem’
consideravam – assim como os médicos e representantes do poder público um atentado à
higiene e à moral... Oposto da família, o cortiço abriga tudo que é ameaçador ao meio
urbano... lugar de desordem e da imoralidade da ‘ralé das ruas’, antro da sífilis e doenças
‘do mundo’”
(Cunha, C. M. P. – op. Cit. p. 36)
Assim, a promiscuidade é vista como doença social, uma ameaça à saúde pública. O
meio aqui não é mais o meio físico, mas o social. O homem como produto do meio social,
que é necessário sanear.
Instituem-se falas sobre a cidade. E nas cidades, as falas que propõem a solução
técnica dos problemas, que são consideradas eficazes para solucionar os problemas
urbanos. As falas dos engenheiros e dos médicos sanitaristas do século XIX, deixam
evidente que o meio urbano não saneado, que é predominantemente o lugar do pobre, é
causa de desequilíbrio social. Como os discursos destas categorias profissionais são, grosso
modo, as falas competentes, eles representam o “saber sobre a cidade”
32
.
Os discursos competentes sobre a cidade, no caso do Brasil, serão ampliados a partir
da década de 60 com novos personagens, os planejadores urbanos, que traduzirão nas
propostas para as cidades a ideologia desenvolvimentista. Será através do desenvolvimento,
onde se destaca o urbano, que se darão, segundo essa concepção, as soluções aos problemas
32
Veja-se Chauí, M. Cultura e Democracia. São Paulo: 1982, p. 7 e seguintes sobre o discurso competente.
110
que se intensificam. Para o planejamento urbano, principalmente no pós-64, os homens na
cidade são abstrações, a tecnocracia controlará a distribuição dos investimentos nas
cidades, onde se elabora todo um aparato que tentará regular os “vetores” de crescimento
da economia. Sinteticamente sobre essa questão, se expressa Luiz C. R. Ribeiro:
“Em nossa história política o urbano foi desde muito cedo investido pelo discurso
competente: a partir do final do século passado, com efeito, os higienistas impuseram uma
visão sobre a cidade que fundamentou importantes intervenções do Estado na cidade, em
seguida, os médicos sanitaristas dão lugar aos engenheiros que assumem a tarefa de pensar
a cidade física e morfologicamente requerida pela acumulação industrial; recentemente
sobretudo a partir dos anos 60, entra em cena um novo personagem – o planejador urbano –
que passa a construir um complexo aparato governamental que objetivava traduzir na
cidade a ideologia do desenvolvimentismo”
(Ribeiro, L. C. Luiz, 1986, p. 6)
O Estado investirá para remover os obstáculos a um pleno desenvolvimento do
capitalismo, tendo como lugar privilegiado a cidade
33
.
Com a aceleração do crescimento explosivo das metrópoles do Terceiro Mundo,
onde a par da concentração de riqueza se tem a concentração da pobreza, ampliam-se as
“necessidades de planejar” a expansão das cidades
34
. E ainda para planejar e dotar a cidade
de equipamentos e serviços é necessário, segundo algumas correntes, controlar o
crescimento da população, pois para essas é o crescimento populacional que ocasiona a
pobreza da cidade
35
.
Ao mesmo tempo que o capital necessitava da concentração da população seu
crescimento exacerbado é considerado foco de degradação física das cidades e moral de
seus habitantes. Nestas falas está presente o fato de considerar-se o trabalhador pobre como
aquele que apenas despesas ao país. Não é considerado produtor, apenas um frágil
consumidor. Como diz Milton Santos não é considerado um cidadão, pois não consome.
De modo geral, o trabalhador pobre está sempre presente nas falas não porque é
indivíduo que produz, mas porque um ‘fraco’ consumidor da cidade. E, no caso da tentativa
de sanear a sociedade e a cidade são referidos pelo lugar que ocupam na cidade. Está,
33
Sobre a intervenção estatal no urbano, veja-se Schmidt, B. 1982, 1983 e 1984.
34
Muito embora os estudos sobre a concentração de riqueza e da pobreza em São Paulo sejam extremamente
expressivos como pode ser visto em: Kowarick, L. Op. Cit.. Vários São Paulo Crescimento e Pobreza
1975, o discurso oficial continua a falar em crescer para acabar com a pobreza.
35
Veja-se, Relatório da FNUAP – 1986, já citado.
111
também, cada vez mais presente nas falas a técnica como a possibilidade de sanear as
cidades e o crescimento econômico como o que anulará o atraso das áreas ‘carentes’ de
serviços públicos nas mesmas. Novos termos são também utilizados: o moderno é a parte
rica, equipada das cidades; o atrasado, a parte onde mora o pobre. Cidades modernas são
ricas e as arcaicas são pobres, quando o que se deriva levar em conta seria a riqueza e a
pobreza de seus habitantes.
Embora considere extremamente analisar as diversas teorias sobre as cidades, neste
trabalho elas servem apenas de referência para verificar como é tratada a população pobre.
Sinteticamente, verifica-se que, na maioria destes estudos, uma descrição visual, ou
matemática, da produção no espaço (e não do espaço) e análises da segregação espacial.
Penso que necessidade de ampliar os estudos sobre a segregação espacial urbana, com a
questão política de dominação do espaço.
Mas é bom destacar que, cada vez mais, os estudos sobre o urbano têm abordado a
cidade como uma forma produzida por seus moradores, forma que afeta o próprio
desenvolvimento futuro das relações sociais e a organização da produção. Em que pese ter-
se procurado compreender a cidade na sua complexidade, a maior parte dos trabalhos têm
sido, como é o caso deste, parciais. Considero, no entanto, que tem contribuído para o
entendimento da totalidade.
E, ao mesmo tempo, permanece uma continuidade dos discursos planejadores que
consideram a diversidade do urbano como uma questão técnica a ser resolvida com o
crescimento econômico. Que continuam a considerar que cada um deve ficar em seu lugar
na cidade e que este lugar depende da sua capacidade de pagar, que continua a parecer
como a justa remuneração do trabalho, do capital, da renda e do juro.
oOo
112
2. AS FALAS E AS PRÁTICAS SOBRE OS FAVELADOS E OS OCUPANTES: OS
PERSONAGENS E AS IMAGENS (DOS FAVELADOS E DOS OCUPANTES)
O modo como a grande imprensa trata da questão das favelas e das ocupações
parece ser indicativo das falas sobre os sem-terra / sem-casa. Pesquisei, assim, as noticias
que diziam respeito direta ou indiretamente às favelas e às ocupações de terra urbana
tentando compreender as concepções presentes nas noticias. Paralelamente, é também
analisado o discurso oficial, através dos planos de intervenção habitacional, com destaque
para a atuação nas áreas ocupadas por favelas, síntese das propostas de intervenção nas
chamadas habitações sub-normais, pois as ocupações são mais freqüentes na década de 80.
Considero, como Portes, que um dos caminhos para a compreensão da atuação do
Estado é fazer uma análise detalhada da evolução de sua política em relação aos diferentes
setores da sociedade, principalmente aos agrupados em unidades espacialmente distintas
(Portes, A. 1977). Compreender a atuação do Estado em relação às favelas e ocupações
permitirá também compreender as questões gerais colocadas pela sociedade em relação a
estes segmentos compartimentados no espaço urbano.
Durante a década de 60, as notícias sobre favelas são mais expressivas no Rio de
Janeiro, pois é nessa cidade que se concentra o maior contingente de favelados. Um grande
marco destas pesquisas das favelas cariocas é o estudo sócio-econômico – da SAGMACS –
Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas aplicadas aos Complexos Sociais - ,
publicado em encartes especiais pelo Jornal “O Estado de São Paulo”, que o encomendou
(ESP, 13 e 15 de abril de 1960). Neste trabalho, enfatizou-se a condição de vida nas favelas
e as características de urbanização do Rio de Janeiro. A favela é relacionada diretamente à
migração rural-urbana; embora seja considerado um problema urbano suas causas não
foram colocadas como restritas à cidade do Rio de Janeiro, pois o estudo destacava que
eram três os principais fatores que originavam as favelas: migração rural-urbana, elevado
preço dos terrenos e das casas construídas e os baixos salários pagos aos trabalhadores.
Ao ser analisada a situação de vida e de trabalho dos moradores das favelas
cariocas, começa a ser visível que o favelado não é simplesmente um marginal, um
bandido, mas sim um trabalhador marginalizado, que não pode pagar o preço dos terrenos,
pois recebe baixos salários. Em que pese que se busque compreender a condição de vida
113
dos favelados, através de pesquisa que não é meramente quantitativa, a favela é vista nas
conclusões do trabalho como algo a ser extirpado, porque não é “típica do meio urbano”.
Propôs-se:
“que seja efetuado um estudo das relações das favelas com o aglomerado urbano, afim de
serem avaliadas as possibilidades de redistribuição de suas populações em relação aos
locais de trabalho e outros centros de interesse; que seja organizada uma campanha de
melhoramentos das habitações das condições das favelas através de um programa de ‘ajuda
mútua’, orientado pelos órgãos técnicos e realizado com o auxilio dos próprios favelados”.
(Modesto, H., p. 43)
(Proposições para a urbanização do Distrito Federal – In: SAGMACS, 1960)
Procura compreender-se as causas da favela, mas busca extirpar-se ou a própria
favela, ou a sua aparência, quando se quer saneá-las.
Está implícito neste discurso, de modo sutil, toda uma concepção sobre lugares que
devem ser extirpados, porque comprometem a vida citadina, porque favorecem caminhos
de crime a formação do delinqüente e também o lugar de demagogia, porque circulam
os candidatos e seus cabos eleitorais. É evidente que o trabalho da SAGMACS não é o
primeiro estudo sobre favelas, mas é sem dúvida o mais conhecido pelos órgãos públicos e
estudiosos do assunto
36
.
Em São Paulo, as favelas começam a ser mais visíveis a partir da segunda metade
da década de 60. Em 1968, o PUB (Plano Urbanístico Básico), estimava que a população
favelada do município correspondia a 0,7% da população total do município, enquanto no
Rio de Janeiro, em 1960, 16% da população era favelada. Mesmo não sendo na época
considerada como um grande problema, impunha-se uma política de atuação nas favelas,
pois as remoções para a execução de obras públicas eram uma necessidade. A atuação era
realizada através da Divisão de Serviço Social da PMSP, muitas vezes em conjunto com
associações comunitárias como o MUD (Movimento Universitário de Desfavelamento) e
ACB (Ação Comunitária do Brasil). Esperava-se com essa atuação “criar entre os favelados
um espírito de auto-ajuda e torná-los cidadãos úteis, portanto integrá-los na sociedade. Em
1966, a Divisão de Serviço Social da Prefeitura ganha “status” de Secretaria: Secretaria de
Bem Estar Social, pois aumentam as favelas na cidade de São Paulo.
36
Veja-se a este respeito, Valla, V. Vincent, Org., 1986, que faz uma retrospectiva sobre a atuação nas favelas
do Rio de Janeiro e Portes, A. Op. Cit, para o período de 1962 a 1972.
114
A concepção dominante em relação à favelas é que “é lugar de transição do rural ao
urbano”, que o favelado é migrante recente, que o primeiro lugar de moradia na cidade é a
favela e que, à medida que se adapta no meio urbano, que encontra um trabalho, ascende na
escala social, muda-se para a casa de alvenaria. Considera-se assim, que a favela embora
localizada no meio urbano, tem as características de vizinhança, de vida e de proximidade
do meio rural. Ou seja, que a favela é lugar de transição do rural para o urbano, o
favelado precisa ser educado para trabalhar e morar descentemente na cidade. Atuava-se
nas favelas para educar os favelados, mas principalmente para remover as favelas que
estavam localizadas em áreas que prejudicavam a expansão das cidades ou que expunham a
risco de vida seus moradores
37
.
No Suplemento Especial da Folha de São Paulo, sobre a grande São Paulo: o desafio
do ano 2000, as referências a favelas e cortiços não são muito extensas, inclusive no
caderno dedicado à situação de moradia (Pobre Cidade Grande cad. 7), onde se afirma
que o déficit de moradia é de 133.000 casas.
No Suplemento Especial, sobre Habitação e Urbanismo, também da Folha de São
Paulo, fez-se toda uma retrospectiva das habitações desde o tempo da moradia em cavernas
e enfatizou-se a criação do BNH com o objetivo de solucionar o problema de moradia.
Algumas frases, que em geral acompanham fotos, são cristalinas em relação à concepção da
favela: derramadas pelas encostas dos morros, as favelas são nódoas negras na paisagem
urbana”; “onde aparecem, os barracos são sempre símbolo de degradação”; e a síntese final
do documento mostra que se atribui ao desenvolvimento a forma eficaz de se acabar com as
favelas: “os números frios e o bom senso indicam que a chama das favelas talvez seja
minorada (com a atuação do BNH) mas, sem desenvolvimento econômico, ainda está longe
de ser resolvido” (p. 24 FSP. Supl. Esp. março 1969).
Em síntese, nesse documento as favelas são consideradas nódoas, símbolo de
degradação. É preciso então extirpá-las, mas isto será possível se houver progresso,
crescimento econômico, o que deixa evidente que não se considera o trabalho dos favelados
suficiente para garantir uma vida um pouco mais digna. (Considera-se que isto será
garantido pela atuação do Estado – via BNH – e pelo progresso econômico).
37
Sobre o crescimento das favelas e atuação desta Secretaria veja-se Rodrigues, A. M., 1981.
115
No final da década de 60, nas noticias, quase diárias, de jornais aparece com
freqüência a preocupação com o crescimento das favelas, seja nos editoriais, seja em cartas
ou reportagens sobre a cidade. Deve-se destacar que desde a criação do BNH em 1964, se
pretendia erradicar as favelas com a construção de casas populares, que se entendia que
um dos fatores do crescimento das favelas era a carência de habitações. Se aumentassem as
construções de moradias populares, diminuiria os números de favelas. Com isto, encontra-
se uma outra maneira de mistificar o problema da existência das favelas e dos cortiços. É a
falta de construções que provoca o aparecimento das favelas, pois se atribui as causas das
favelas e cortiços à falta de produção de moradias. Assim, se o Estado produzir habitações
em número suficiente para os que não podem pagar, ter-se-á resolvido o problema da
moradia.
Mas o Estado não resolverá essa questão, pois argumenta-se que não recursos
suficientes. Assim, em1967, o BNH passa a utilizar os recursos do então criado FGTS
(Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e das Cadernetas de Poupança para investir nas
áreas de habitação de interesse social. Mas as favelas continuam a crescer, pois não se
atacam as causas, os trabalhadores continuam a ficar cada vez mais pobres. O processo de
empobrecimento intensifica-se. Além disso, mesmo o BNH não produz unidades
habitacionais destinadas a quem não pode pagar. Só serão produzidas unidades para aqueles
que podem arcar com um pagamento mensal, o que significa não atuar também em todas as
conseqüências pois produz-se unidades para as “faixas de interesse social”, desde que
possam arcar com um pagamento mensal. Se todo o salário é utilizado para alimentação,
vestuário, transporte, etc. então não será possível comprar para morar, nem casas
financiadas pelo SFH.
que com a intervenção indireta produzindo habitações não se ameniza o
crescimento das favelas e cortiços, busca-se novos programas de atuação em áreas
especificas: o Projeto CURA recuperação de áreas deterioradas. Em 1979 define-se um
programa dirigido especialmente para os favelados, o PROMORAR. Mas, mesmo assim, as
favelas continuam a crescer em ritmo cada vez mais acelerado e no final da década de 70
surgem as ocupações de terras.
A produção habitacional pela Constituição brasileira é privilégio da iniciativa
privada. O Estado só pode intervir em caráter suplementar. Só pode atuar em setores
116
econômicos que não interessam à empresa privada, seja pela necessidade de vultosos
investimentos, seja pela inexistência de lucratividade. Cabe, assim, ao Estado a promoção
de unidades habitacionais para as faixas de interesse social. Mesmo assim, é preciso levar
em conta, afirmam, que haja retorno do investimento realizado nesta produção para pagar o
FGTS ao trabalhador e remunerar os depósitos das Cadernetas de Poupança. Portanto, é
possível produzir para um mercado pagante.
As notícias mais comuns sobre as favelas, ainda na década de 60 e início da de 70,
além do medo do crescimento explosivo, referem-se às remoções de favelas. Atuam, nas
favelas a serem removidas, a Secretaria de Bem Estar Social, o MDV (Movimento das
Organizações Voluntárias), cuja filosofia é desvelar, concedendo auxilio financeiro ao
favelado e a A.C.B. (Associação Comunitária do Brasil), que também tem a filosofia do
desfavelamento, mas que considera que é a própria comunidade que deve assumir alguns
encargos que caberiam ao poder público. Acompanhando-se as noticias de uma remoção
(favela da USP que se localizava onde hoje é a Raia Olímpica do Conjunto Esportivo da
USP), constata-se que, após um longo período, os moradores são convencidos de que
devem sair e ir para a favela do Jaguaré, onde os moradores (Vila Nova Jaguaré), não se
consideram favelados e onde se faz também um trabalho de persuasão para que aceitem os
novos moradores.
O tom é basicamente o mesmo, “é preciso remover a favela e, na maior parte das
vezes, mandá-la para áreas distantes, ou mandar seus moradores de volta para a sua terra de
origem”. Embutida na alternativa de mandá-los de volta ao lugar de origem, está a questão
de limpar a cidade dos pobres e de considerar como causa da favela a migração rural.
Embutida na remoção está a mudança da favela para onde não possa ser vista. Muito
embora considere-se que a principal causa das remoções seja a execução de obras públicas,
deve-se ressaltar que estas são comumente realizadas em áreas ocupadas ou em áreas
para onde se planeja um novo uso, o que significa que as favelas serão expulsas para áreas
menos visíveis aos olhos da riqueza.
Remoções são diferentes de mudanças de casa. Basta refletir sobre um aspecto:
quando as obras públicas atingem proprietários, mesmo que de casa própria, há uma
“indenização”, um depósito prévio por menor que seja o valor. Será o morador o
responsável por sua mudança, por seu deslocamento. O lugar de moradia permanece,
117
mudam os moradores, mas a casa é fixa, pois, como já apontado, esta é uma das
características da mercadoria habitação. No caso do barraco de favela, além do morador ser
removido (remoção e não mudança), isto é feito de modo a ir junto a casa, os móveis e o
próprio morador. É como se se efetuasse a erradicação de um mal, de uma cirurgia no
urbano, onde não fica vestígio da ocupação anterior. Como a favela é considerada um
câncer urbano, deve ser pela norma vigente, extirpada pela raiz. Embora o barraco, tal
como a casa de alvenaria num lote, seja também uma habitação, as especificidades da
mudança e da remoção são diferentes.
Quando começam a lutar contra as remoções, os favelados contestam esta
extirpação, essa destruição da sua casa, que mesmo sendo um barraco, foi destruída, na
maior parte das vezes, pelo próprio morador. Aceitam, muitas vezes, o deslocamento, a
mudança, mas não a remoção. No Jardim Piratininga, em Osasco, os moradores utilizam o
termo “deslocamento” para enfatizar a mudança que fizeram de um lugar para outro, na
mesma área, decorrente do processo de reintegração de posse da COHAB – SP.
Um outro conjunto de notícias refere-se à participação da comunidade favelada na
edificação conjunta, como em maio de 1971, quando os destaques foram dados pela
construção de um Posto de Saúde na Favela Vila Nova Jaguaré, realizada pela população,
juntamente com a A.C.B.. As notícias enfatizam que este processo “promove a integração
do favelado na comunidade, seja através da construção de escolas, seja pelos projetos de
mutirão de casas que começam a tomar forma em São Paulo”. São projetos que enfatizam
dois aspectos: “o trabalho coletivo e o aprendizado de uma profissão”. Além disso, aparece
embutida a questão repisada. Como o trabalhador parece receber no seu salário o valor
correspondente ao seu trabalho, o poder público não consegue arcar com todas as suas
necessidade. Assim, o próprio favelado poderá contribuir para a solução do seu problema,
ao mesmo tempo que estará “efetivamente” contribuindo para a sociedade. É este fetiche
que está embutido também na questão da participação da comunidade que produz
equipamentos para a cidade.
O financiamento para a autoconstrução com assistência técnica ‘gratuita’, que
começa a esboçar-se no final da década de 60, através da Secretaria de Bem Estar Social, é
direcionada aos favelados que deverão ser removidos. Tal proposta é tida como uma
atuação individual e numa forma que se considera eficaz para resolver o problema da
118
moradia. De certo modo, busca-se uma solução mais digna do que a remoção pura e
simples do barraco. Deve-se ressaltar, no entanto, que serão poucos os que têm condições
de comprar o material ou muitas vezes parte do terreno. Ficam alguns aspectos a serem
discutidos, que serão retomados quando for abordada a questão da autoconstrução em si.
Fica aqui registrado que estes casos não atingem mais de cem famílias e que os terrenos
foram comprados em áreas muito distante. As notícias evidenciavam o seguinte: os
favelados já eram proprietários e moravam na favela por economia par conseguir auxílio do
governo. Ou seja, usa-se o argumento de que moram na favela porque querem. Na verdade,
todos os terrenos foram comprados pela Prefeitura, mas isso não importa, pois as notícias
evidenciavam o fato de construírem em terreno próprio e não quando e quem comprou o
terreno. Sem dúvida, é ainda hoje muito comum afirmar-se que muitos favelados têm até
casas alugadas e que escolhem morar nas favelas. A questão do aprendizado de construir a
casa de alvenaria, que era um dos objetivos da Secretaria, ficou neste caso em segundo
plano.
Na primeira metade da década de 70, os projetos da Secretaria de Bem Estar Social
deixam mais evidente a concepção do favelado como migrante recente, que deve ser
integrado ao meio urbano. Projetam-se Vilas de Habitação Provisória, que seriam
construídas em alvenaria. Os favelados seriam removidos para esses conjuntos onde
morariam um certo tempo e seriam educados para poderem morar em outras casas.
Nenhuma VHP foi construída, mas muitos projetos foram elaborados. Paralelamente, ter-
se-iam os “Alojamentos Provisórios” de madeira, com caráter emergencial, ou seja, no caso
de remoção rápida de favelas, os favelados iriam para os tais alojamentos (AP) e
posteriormente para as VHP. Contava-se também, com a ampliação de conjuntos de casas
populares, após o estágio nas VHPs. Resolver-se-iam assim os problemas de favelas do
Município. Pela educação, o favelado seria integrado e depois poderia morar dignamente,
pois estaria resolvido o déficit habitacional
38
.
Tenta-se extirpar as favelas: com a remoção para áreas distantes, com a construção
de vilas de habitação provisória onde os favelados serão educados -, com a construção de
casas de alvenaria, através do processo de autoconstrução, com a construção de conjuntos
38
Vejam-se planos de VHPs, Aps da Prefeitura de São Paulo e Programa Municipal de Habitação do IBAM –
1976.
119
habitacionais que devem cobrir o déficit de moradia. De todo modo, busca-se acabar com
este câncer urbano. Mas, não obstante, as favelas continuam crescendo.
A partir da segunda metade da década de 70, a favela começa a ser notícia quase
diária nos jornais, seja para tratar dos planos de desfavelamento com a construção de
conjuntos habitacionais, seja com estudos de outras alternativas, como os planos de
melhoria e de urbanização de favelas. Em 1978 é criado o FUNAPS (Fundo de
Atendimento à população moradora em habitação sub-normal): “com dotação orçamentária
a fundo perdido para atender individualmente às famílias: na aquisição do terreno, compra
de material de construção e reconstrução de barracos em situações emergenciais”. (PMSP –
FUNAPS 1980). Subsidiária também do valor de aquisição de casas da COHAB SP, para
famílias que precisavam ser removidas para execução de obras (convênio COBES
COHAB).
No primeiro momento, o FUNAPS é alternativa individual, e não prevê retorno, ou
seja, aqueles que o receberem não devolverão o valor recebido. Um processo demorado
evidencia-se no caso de compra de terreno e ou financiamento do material de construção.
Demora-se tanto que poucos serão beneficiados. Aparentemente seria apenas mais um
programa de atendimento. Mas, há notícias e sinais evidentes de um outro modo de utilizar
o dinheiro do FUNAPS. Pelos termos de sua criação, só poderia ser utilizado para a
construção de alvenaria em terreno próprio. Em terreno público, poderia ser construído
em madeira, nos casos previstos de emergência. Ora, os moradores da favela do Jardim
Robru Zona Leste, vão ao depósito de construção e solicitam uma troca: ao invés de
“madeirit” querem receber em blocos (complementando o preço) e constroem em alvenaria
no terreno público. Novas formas de resistência, de resolver problema de moradia, tornam-
se explícitas. Busca-se obter uma moradia em melhores condições mesmo que ainda não se
tenha resolvido o problema da legalidade jurídica da posse da terra.
Posteriormente, o próprio poder público altera o FUNAPS e, além do retorno
pagamento por parte dos “beneficiados” -, também se financia material para construção de
alvenaria, mesmo que em terreno público. Ana Fani, ao estudar os movimento que ocorrem
em Cotia, considera que:
120
“os movimentos sociais não questionam a lógica do sistema, suas contradições intrínsecas, a
relação de dominação-subordinação que ele contém, nem a regularização do ritmo do
cotidiano, imposta pelo sistema de valores burgueses”
(Carlos, A. Fani, 1987)
No entanto, as “alterações” do uso de verba do FUNAPS, mostram que estas colocações
não são aplicáveis na sua totalidade, pois, nesta cotidianidade de luta, uma contestação,
pelo menos das normas impostas pelo sistema de valores.
Foram construídos vários alojamentos provisórios, alguns deles contestados pelos
vizinhos das áreas. Através de trabalhos das Assistentes Sociais da Prefeitura, acabam
sendo “aceitos”. O trabalho de persuasão da Prefeitura implica em esclarecer porque a
favela existe, que os moradores não tem para onde ir, etc., tentando fazer com que os
moradores mudem sua opinião sobre a favela. Criou-se todo um discurso sobre favela
“antro de marginais” e agora á preciso atuar para mudar a opinião formada, para
viabilizar a própria ação da Prefeitura. E. posteriormente, quando se incorpora, em parte, a
nova fala, é preciso acabar com a Secretaria que tem uma interação com os moradores
espoliados
39
.
Esta é uma das contradições das falas da cidade. Mas em alguns bairros não
funciona este novo discurso e a Prefeitura atende a reivindicação e muda o lugar do projeto
original de alojamento (Jardim Ester Dezembro de 1972). O argumento mais freqüente
dos vizinhos é a sujeira, o mal cheiro, a contaminação de doenças e de vícios. Fica evidente
que o discurso sobre favela: “lugar de contaminação física e moral”, é incorporado pelos
moradores da cidade. Um outro argumento, baseado na própria legislação dos loteamentos,
é de que a área onde se constroem os alojamentos são reservadas para parques, jardins e
equipamentos públicos (leis 7085/72 e 6766/79). Estas áreas são pagas pelos compradores
de lotes, ficam sob a guarda da Prefeitura, que deverá construir praças e equipamentos
coletivos e, dizem os moradores, não para construir favelas. Algumas noticias são
cristalinas a este respeito:
17/11/72 Alojamento provisório combatido pelos vizinhos. As assistentes sociais
explicam que será provisória a permanência – ESP.
39
Há muitas tentativas de desativar a Secretaria de Bem Estar Social, quando se constata uma alteração no
discurso dos técnicos que lidam diretamente com a população. Uma fala imbuída da justiça social. Esta
desativação ocorre logo após as eleições do Prefeito Jânio Quadros.
121
19/12/72 Prefeito sustou o projeto do alojamento do Jardim Ester área reservada para
parque infantil e, diz o prefeito, que está muito próxima das residências – FSP.
Fica evidente a luta pelo espaço na cidade. Ao remover uma favela, o poder público
libera o espaço ocupado para outros usos, em geral, em áreas equipadas com meios de
consumo coletivos. Ou então, a remoção libera estes espaços antes ocupados para a
construção dos equipamentos. A favela será removida para áreas mais distantes, sem
equipamentos coletivos, em terrenos destinados aos equipamentos que ainda não chegaram.
O que significa que os moradores vizinhos e os favelados ficarão numa área carente, sem
espaços vazios para os equipamentos coletivos. A atuação do poder público define que
áreas terão prioridade para serem equipadas e assim definem, também, preços da terra e
condição de vida na cidade.
A contestação também se dá pelas características do barraco: “se ainda fossem casas
de tijolo, a gente não se incomodaria” (Depoimentos de moradores).
Na questão da moradia está contida a aparência do barraco, a não obediência às
regras de construção da cidade e a conseqüente “desvalorização” da vizinhança. É o medo
de perder toda uma vida de sacrifícios na compra da casa própria. O outro argumento, o de
ser área de equipamento, também leva em conta a “valorização” que o mesmo propicia. Em
ambos os argumentos está presente a luta por condição de vida digna na cidade, pois, se a
favela é tida como antro de marginais, não quem a queira perto; se a favela impede que
se construa equipamentos, quem a quer do lado de casa? Algumas manchetes são
expressivas em relação a este conflito:
25/04/75 – Em Carapicuíba o medo continua – Os moradores do conjunto da COHAB estão
em vigília e prontos para o reinício do movimento de protesto. Não confiam que os
favelados não sejam removidos para Carapicuíba. (Inicialmente a PMSP tinha selecionado o
conjunto de Carapicuíba, onde seria construída uma VHP, como o lugar para onde seriam
removidos os moradores da Favela Ordem e Progresso da Barra Funda) – FSP.
28/07/77 – Em vez de casas favelas? A ineficiência da COHAB e SEHAB, leva a Prefeitura
a construir barracos em vez de casas. – ESP
.
Na ocupação cotidiana realizada pelos próprios favelados a forma com que vizinhos
os contestam é diferente. Escrevem cartas aos jornais reclamando da incompetência do
poder público que não fiscaliza as áreas livres. Pedem atuação urgente para impedir a
122
proliferação de mais favelas. Quando a favela está instalada, pedem a remoção, através
de abaixo-assinados dirigidos à Prefeitura e aos jornais, intermediados, até recentemente,
pelos “vereadores” eleitos pelo bairro. Este procedimento ocorre até os dias atuais, embora
nos últimos anos de forma não muito acentuada, pois a tendência é ir resolvendo sozinho e
tentando mudar de bairro, quando isto é possível. Quando se conversa com moradores de
casas de alvenaria, tem-se como resposta uma pergunta esclarecedora: “Eu pessoalmente
não tenho nada contra, tem até algumas pessoas que conheço que são trabalhadoras, mas
todos dizem que tem muito marginal, né?”. E acrescentam: E você, gostaria de ter uma
favela vizinha da sua casa?” (Depoimentos).
Nas ocupações coletivas não tem havido grandes mobilizações de vizinhos para
obstar a entrada, o que está relacionado, de um lado, ao impacto da ocupação, sempre muito
rápida da noite para o dia e com muita gente: a forma de contestação mais visível é o
aviso imediato à policia, “porque foi tanto barulho que pensamos que eram uns
maloqueiros” (Depoimento de morador). De outro lado, nas ocupações delimita-se mesmo
que precariamente, um arruamento e dependendo do tamanho da área, prevêm-se as áreas
livres para praças e equipamentos comunitários. Além disso, as ocupações em geral
ocorrem em áreas relativamente extensas, mais distantes, com poucos vizinhos, mas,
mesmo assim, no caso das ocupações de Osasco, divulga-se no dia seguinte, uma carta
explicando os motivos da ocupação: a situação do aluguel e dos despejos e o descaso das
autoridades com relação à moradia. Isto representa, pelo menos como principio para os
vizinhos, que os ocupantes não são favelados, mas sim moradores de casas de alvenaria,
que não estão mais podendo pagar aluguel. Como uma grande parte da vizinhança é
também inquilina, é em geral, solidária com os ocupantes. Tanto para os ocupantes como
para os vizinhos que pertencem a mesma classe do favelado “a favela é lugar de sujeira,
doenças, de marginais, muito embora tenham bons amigos na favela”. Ou seja, como diz
Marilena Chauí, a ideologia dominante é da classe dominante. A fala “competente” torna-se
a fala da maioria dos moradores da cidade.
Mas não é só através da ação da Prefeitura que ocorrem deslocamentos forçados dos
ocupantes. È muito comum ocorrerem os despejos através das Ações de Reintegração de
Posse. Até o início da década de 70, as remoções por reintegração de posse ocorrem sem
pelo menos aparentemente – resistência. Sobre estas ações, esclarece Baldez:
123
“Os dois grandes guardiões da propriedade no arcabouço da normatividade jurídica são: a
desapropriação (garantia de indenizabilidade) e as chamadas ações possessórias ou
interditos possessórios.
A desapropriação protege o bem em si mesmo como valor econômico, e as ações
possessórias, fazendo o papel de sentinelas avançadas do sistema, dão pronta garantia à
simples relação factual entre homem, possuidor, e a propriedade, pela simples razão de
aquele homem parecer o proprietário... Quanto às ações possessórias, ou interditos
possessórios, assemelham-se a um grande cobertor estendido pelo Estado em torno da
posse, que o direito define como aparência da propriedade. Essas ações são de três espécies,
cada uma delas envolvendo momentos distintos do confronto entre o destituído, os “sem-
terra”, e aquele que, tendo a posse, é ou parece ser o proprietário.
No primeiro momento, é considerada a mera ameaça, conferindo-se a quem se diga
ameaçado (o aparente dono da terra ou o grileiro) a medida judicial de interdito proibitório,
uma ordem dada pelo juiz para impedir que se toque na posse; no segundo momento, leva-
se em conta o fato possível de que a posse (ou propriedade) já vinha sendo tocada, turbada,
diz a lei, e aí o direito concede ao dono da terra, ou ao grileiro, a ação de manutenção na
posse, meio judicial de impedir as ocupações não consumadas; no terceiro e último
momento, dá-se a medida de reintegração de posse, que, como o próprio nome diz, tem a
força de reverter os fatos já consumados, servindo na hipótese das ocupações, para o
despejo da comunidade.
Vê-se pois, que a vontade da lei, que juizes e tribunais aplicam no concreto dos conflitos de
posse, é evitar a ocupação ou, se consumada, a de despejar prontamente os ocupantes. Por
isso, para tornar essa vontade mais forte e eficaz, sempre que os atos de ocupação datem de
menos de um ano e um dia a lei autoriza os juizes a concederem a manutenção ou
reintegração de posse liminarmente, sem ouvir a outra parte, isto é, os ocupantes”.
(Baldez, 1986 – Op. Cit. p. 10-16 – grifos meus)
Assim, em ocupações recentes (menos de um ano e um dia) os proprietários
solicitam a liminar de reintegração de posse e sumariamente os ocupantes o despejados.
(sintomaticamente os ocupantes dizem eliminar). Como norma geral, é necessária a
presença de forte aparato policial para a desocupação, pois a resistência acaba ocorrendo
pela necessidade de não ter para onde ir. Destaca-se que a ação chama-se reintegração de
posse, quando quem está na posse são os ocupantes. Como dito na parte 1, o que circula,
no caso da terra, é o tulo de propriedade e não a terra, pois não tem valor ou uso e sim o
papel, que é título de propriedade.
As ações possessórias ocorrem tanto nas ocupações cotidianas e individuais das
favelas como nas coletivas. No caso das favelas, não tem sido líquido e certo que o pedido
seja julgado procedente. Em 1979 um pedido de reintegração de posse foi indeferido
porque o proprietário havia autorizado, em 1912, a ocupação da área por um dos moradores
(Favela do Coroados da Vila Prudente). No caso das ocupações esses pedidos têm sido
124
considerados procedentes, pois a visibilidade das ocupações ocorrem já num primeiro
momento. O receio de que as ocupações tornem-se norma nas áreas vazias, leva a que se
procure não dar-se tempo de concretizar as ocupações coletivas.
alguns casos em que o Judiciário tenta conciliar as partes envolvidas. Em
Osasco, houve tentativa de mediar as negociações, pois o movimento propôs a compra da
área, que acabou não se concretizando. O parecer do Juiz ao conceder a liminar exatamente
após um mês do terreno ocupado, é sintomático:
“O poder judiciário, por sua vez, também está sensível ao problema de moradia e não está
alheio à triste realidade nacional, esperando também que urgentes soluções surgem em
socorro a aflição do povo. Porém não pode o poder judiciário permitir que eventuais
distorções e discordâncias políticas e de classe tumultuem a ordem social e legal na alegada
pretensão de resolver o problema de moradia e de reforma agrária, invadindo-se áreas
particulares. Lamentavelmente os ocupantes da área em questão terão que desocupá-la
que, pelo menos para esta fase, ficou suficientemente demonstrada a posse anterior dos
autores e o esbulho que aqueles praticaram”
(Osasco, 26/02/88 – Niwton Azevedo – Juiz de Direito)
E assim, mesmo reconhecendo a necessidade de moradia, a propriedade é garantida,
na defesa da ordem. Como pode o poder judiciário ser “sensível ao problema de moradia” e
decretar despejo? Além do mais, não se questiona o fato de que pelas posturas municipais
deveriam as terras vazias estarem muradas e conservadas. Questiona-se apenas a ocupação
por parte dos sem casa, ao mesmo tempo, em que o fato dos proprietários entrarem com
pedido de liminar no primeiro dia útil após a ocupação, “ser um demonstrativo da
vigilância sobre a área”.
Nas favelas, ocupações solidificadas, quando ocorre o despejo, são chamados a
intervir: a polícia, para garantir a desocupação e o poder público municipal para evitar
calamidades públicas, encontrando um novo lugar para instalar os favelados. (Pela Lei
Orgânica dos Municípios é responsabilidade da prefeitura zelar pelo bem estar da
população local).
Tem sido comum conseguir-se a ampliação dos prazos de despejo até arrumar-se
um outro lugar para alojar os despejados. Os processos de reintegração de posse tramitam
na esfera do poder judiciário, onde se define a propriedade que confere o direito de uso do
terreno e o despejo dos ocupantes que não têm o título. Resolve-se um conflito garantia
da propriedade – e cria-se um novo que deverá ser resolvido em uma outra esfera do poder:
125
o executivo local. Um novo abrigo para os despejados deverá ser providenciado, com várias
alternativas de atendimento, sendo que a mais comum é a remoção das famílias para um
outro lugar. A “liberação da área” não ocorre sem conflito, sem tentativa de permanência
dos ocupantes. Existe também um conflito entre os diversos segmentos do aparelho estatal,
no caso aqui citado, entre o Judiciário e o Executivo. Mas, sem dúvida, garante-se o título
de propriedade.
nas ocupações coletivas é mais rara a intervenção do poder público municipal
para encontrar um outro lugar para os moradores, pois a liminar de reintegração é
executada em curto prazo e “presume-se” que os ocupantes podem voltar para o lugar de
onde vieram.
Nas falas dos proprietários é comum dar-se grande ênfase à questão jurídica,
utilizando-se termos desconhecidos para garantir sua propriedade. No Jardim Veloso, o
proprietário da área, (12 horas após a ocupação) enfatizava que tinham o direito de usar
suas próprias forças para retirar os ocupantes, pois estava sendo esbulhado. No texto de
Baldez, acima citado, fica evidente que é necessária uma medida judicial quando há
ameaças (o interdito proibitório); quando esta se efetivou, pode-se impedir a entrada de
outros (ação de manutenção de posse), mas para os que estavam na área restava a
liminar. Mas havia todo um aparato de intimidação, inclusive com trator para derrubar os
barracos já construídos.
A outra fala muito visível era de alguns policiais que a todo momento buscavam
avisar as pessoas que deveriam sair, pois estavam em área particular. Ou seja, nas falas
sobre a propriedade, o respeito a quem detém o titulo jurídico, o papel, é muito forte, mais
do que a própria necessidade, pois parece um direito que nasce com o individuo.
Embora em todas as Constituições se coloque como fundamental a função social da
propriedade (Rodrigues, A. M., 1988), o valor do título jurídico é muito maior do que a
necessidade. O discurso sobre a função social da propriedade tem esbarrado nas leis
menores (do que a Constituição) que representam uma proteção à propriedade. Ou seja,
uma falácia sobre a função social, que é cristalizada na prática pela proteção pura e simples
da propriedade. Ou talvez seja melhor explicitar que a propriedade vazia tem uma “função”
social no capitalismo, que é a de conferir aos proprietários individuais uma renda que
decorre da produção social da cidade.
126
Com a aprovação do usucapião urbano, após cinco anos de ocupação sem
contestação, vamos ver frutificar com rapidez as contestações de áreas ocupadas para
impedir a permanência em muitas áreas já ocupadas. Na favela Jaqueline, instalada em área
particular, no período de discussão sobre o usucapião urbano, o suposto proprietário da
área, em aliança com o Presidente da Sociedade Amigos da Favela, começou a oferecer os
lotes ocupados para compra, exigindo documentos de comprovação de salários, como uma
forma de pressão sobre os desavisados, pois o direito de usucapir é diferente de compra
40
.
Deve ficar registrado que o poder público também entra no judiciário com pedidos
de reintegração de posse, embora deva zelar pelos seus munícipes e encontrar um outro
lugar para alojar os que foram desalojados pelo próprio município. No caso de Osasco, o
prefeito argumenta que, se não proceder desse modo, a cidade vira um caos, com todo
mundo ocupando terra, tornando-a o paraíso das ocupações. Diz ainda que as terras da
prefeitura são para construir casas, quando se tiver dinheiro, e até devem ficar
desocupadas, se não vai dizer: “É o prefeito de Osasco que estimula as invasões”. E,
acrescenta, a terra é de todos os que moram na cidade e não apenas de um bando de
invasores (depoimento – pesquisa de campo). O discurso da defesa da propriedade é
incorporado por todos os moradores da cidade pois não se tem a dimensão de que produz a
cidade e de quem “valoriza” as terras vazias ou mesmo as ocupadas. É preciso deixar
evidente este processo e desmistificar o fetiche da propriedade da terra.
Esta defesa da propriedade, apresenta alguns aspectos contraditórios. Embora a
indústria da construção civil seja considerada um dos esteios da economia, para construir é
preciso espaço. Ora, muitos proprietários deixam suas terras vazias, aguardando um
aumento de preço. Para a indústria de construção civil, tal fato é prejudicial, pois as terras
em estoque não estão disponíveis para a produção de unidades habitacionais. Alem do
mais, quem lucra com este “deixar a terra vazia” é o proprietário das terras, muitas vezes às
custas também do trabalho da indústria de construção. É preciso então, para uma produção
mais “equilibrada do espaço”, que se tenha mecanismos de controle sobre a propriedade
abusivamente vazia e concentrada.
40
Veja-se parte subseqüente, em que relatamos a questão da iniciativa popular sobre a Reforma Urbana, nesta
favela.
127
Nesse sentido, a indústria de construção, principalmente a de edificações de
moradias, tem tentado mudar a legislação. Somam-se às vozes dos movimentos na questão
da função social da propriedade. Mesmo porque o alto preço exigido pelos proprietários
acaba tornando a produção final da habitação inacessível para os trabalhadores, reduzindo,
portanto, o mercado real para a compra de unidades habitacionais.
Em que pese que as atividades de produção sejam privilegiadamente da iniciativa
privada, é sempre com recursos do Estado que se conta para a produção da unidades das
chamadas classes desfavorecidas. O mais comum, na produção de unidades para as faixas
de interesse social pelo SFH, é de que a compra das terras seja iniciativa dos agentes
promotores Cohabs, Inocoops, Prefeituras - , o que permite que a indústria de construção
seja liberada deste ônus, as edificações têm sido realizadas pela indústria de construção,
contratadas pelo SFH, e a comercialização das unidades é iniciativa do agente promotor.
Fica resguardada assim, para a indústria de construção o seu lucro e para o proprietário da
terra a sua renda.
Mas o SFH não tem atuado de forma contínua na produção de habitações, o que faz
com que a indústria de construção se mobilize para demonstrar sua importância, sob o
argumento de que gera um grande número de empregos e de que é vital para o crescimento
econômico elevado:
“Se pretende obter uma taxa de crescimento econômico per capita da ordem de 5% a 7%, é
necessário que o setor da construção participe com 7% a 9% da economia nacional”.
(Azevedo, A.L. – 24/3/88).
Propõe que este investimento seja realizado de várias maneiras, entre as quais a
simplificação do financiamento, o incentivo à indústria de construção e não ao mutirão, a
canalização de recursos para a iniciativa privada, e a dotação orçamentária para o FUNAPs.
É também cristalina a defesa realizada pelos empresários da indústria de construção
para a existência de instrumentos mais “modernos” na Constituinte:
“A questão urbana já está colocada como de Segurança Nacional. Para superar essa
dramática realidade devem ser tomadas atitudes sérias, firmes e responsáveis. ... Uma
Constituição cujo texto não adote uma postura moderna sobre as questões ideológicas,
como as da propriedade, do Estado, etc. corre o risco de ser um retrocesso ... Diversas são
as propostas, mas a sociedade e o governo só poderão avançar a partir do momento em que
128
o setor da construção for reconhecido como a engrenagem principal para a expansão do
PIB, e como uma das mais importantes fontes geradoras de empregos”.
(Azevedo, J.A. FSP – 10/2/88)
Em artigo mais recente, o mesmo autor enfatiza que o problema habitacional é um
problema político e: “todos os recursos do sistema devem ser aplicados no custeio de
programas de conteúdo social” (FSP, 16/6/88).
O que não explicitam, é que os recursos de que falam são recursos públicos e que ao
longo dos últimos 20 anos, foram, com os mesmos argumentos, utilizados para aplicar na
indústria de construção.
Muito embora os representantes da indústria de construção civil considerem que as
favelas, cortiços, ocupações sejam apenas uma questão de carência de unidades
habitacionais no mercado, verifica-se que seus interesses colidem com os interesses dos
proprietários de terras, pois, para estes, interessa a terra vazia (que aumenta de preço devido
à produção social), de onde extraem suas rendas. Para a indústria interessa a
disponibilidade de terras a preço baixo no mercado, pois é da produção que extrai seus
lucros. Buscam, assim incentivar, que o Congresso Constituinte aprove medidas como a
taxação territorial progressiva que poderá traduzir-se em incentivo à ocupação dos espaços
urbanos vazios e como outra forma de viabilizar o aumento do número das construções.
Esperam que, aumentando-se o número das unidades construídas, se resolva o problema das
moradias em cortiços, favelas e ocupações coletivas. vimos que o aumento do número
das unidades produzidas não provocará uma diminuição dos preços das unidades, pois o
preço das novas unidades redefinirá o preço das antigas. A produção de um novo espaço
provocará com certeza o aumento do preço da terra. Não será o aumento do número de
empregos na indústria da construção civil que possibilitará a compra da casa própria, pois
neste setor os salários pagos aos trabalhadores são extremamente baixos
41
. Quanto ao
crescimento econômico, tão alardeado quando da criação do BNH, e do período do
“Milagre Econômico”, não permitiu melhor condição de vida aos trabalhadores que lhes
possibilitasse adquirir ou alugar uma moradia decente.
41
Veja-se Maricato, E. op. cit.
129
oOo
130
3. AS ALTERAÇÕES NAS FALAS E NAS PRÁTICAS SOBRE OS FAVELADOS E OS
OCUPANTES – OS MESMOS PERSONAGENS E AS NOVAS IMAGENS
São visíveis a partir da segunda metade da década de 70, as mudanças nas
referências sobre o favelado, que se expressam nas notícias de jornais e nos planos
governamentais. São notícias sobre caravanas de favelados que se dirigem aos gabinetes de
prefeitos, para expressar suas reivindicações e sobre os encontros: locais, regionais e
nacionais de favelados, demonstrando uma nova visibilidade política, ocupando um ‘novo’
espaço nos jornais, nos órgãos públicos e secretarias de estado. Ganham expressão também
alguns ‘novos’ interlocutores: a igreja, os estudiosos do assunto de moradia, os partidos
políticos de oposição e os novos planos de habitação, nas esferas federal, estadual e
municipal. Começam favelados e ocupantes a serem entrevistados nos jornais e revistas,
passando a ser também interlocutores.
É importante frisar que um maior conhecimento da realidade começa a tornar-se
visível, com os estudos sobre marginalidade, pobreza urbana, uso do solo, enfim sobre as
chamadas questões urbanas. As discussões teóricas, baseadas principalmente em pesquisas
empíricas, sobre a realidade urbana e nacional são realizadas, em geral, no âmbito da
academia
42
. Mas, como se inserem na produção social de existência, não se restringem aos
seus limites; pelo contrário, fazem parte da produção social como um todo. No mínimo,
porque uma parte considerável dos técnicos que trabalham nos setores públicos, é
constituída por universitários, facilitando o intercâmbio entre a pesquisa acadêmica e a
realidade de trabalho.
As discussões sobre o conceito de marginalidade e sobre a população favelada
atingem, desde o início da década, algumas agências governamentais e tenta-se, através de
pesquisas empíricas, delimitar o universo de favelas, a situação de trabalho e de moradia
dos favelados. citamos alguns trabalhos que desde o início da década de 60 são
realizados no Rio de Janeiro. Em São Paulo, os estudos eram mais restritivos, vinculados à
relativamente pequena dimensão do fenômeno favela, mas, no início da década de 70
realizou-se um cadastramento/pesquisa oficial de favelas (1972/73), um recadastramento
42
Veja-se principalmente os trabalhos de Kowarick, Lúcio, sobre a marginalidade urbana.
131
em 1974/75 e, em 1976, foram feitas pesquisas em cortiços, tentando caracterizar o
universo dos moradores de sub-habitação da cidade.
A maioria dos grandes municípios também realiza cadastramento das favelas e, em
1980 pela primeira vez na Sinopse do Censo Estatístico do IBGE, consta o número de
favelas, de barracos e de população favelada. Muito embora os números sejam
considerados modestos em relação à dimensão do fenômeno favela, é importante constatar
que passa a ser de domínio público a existência e o número de favelas. Mas nos
mapeamentos oficiais ainda constam as áreas ocupadas como áreas “livres”, exceto nos
mapeamentos especiais de favelas.
Como um dos resultados das pesquisas, dos debates e da participação dos favelados
na vida política, muda a concepção dominante que se tem dos favelados. Não se considera
mais a favela como um lugar de transição do rural ao urbano. Afinal, prova-se que 59% das
favelas tinham em 1975 mais de 5 anos de existência. Na sua maioria, quem chegou ficou,
ou seja, não era um lugar de passagem, mesmo porque, indagados sobre a razão de morar
na favela, a maioria respondeu: não podia pagar aluguel. As pesquisas também mostraram
que não eram migrantes que moravam nas favelas, mas que, cada vez mais, devido ao
processo de empobrecimento da classe trabalhadora como um todo, a alternativa viável
para garantir a sobrevivência era a favela, ficando evidente que uma grande maioria dos
favelados tinha morado numa casa melhor que o barraco de favela (Rodrigues, A.M.,
1981).
Mas, apesar de aprofundar-se o conhecimento sobre as características do morador da
favela, mudando a concepção dos estudiosos e de algumas agências estatais
43
, ainda
predomina, como senso comum, a concepção de favelado como marginal, como não
trabalhador e como migrante recente. Arraigou-se esta concepção que, como já dito, é
facilmente percebida até mesmo nos ocupantes de terra. E a favela é entendida como: lugar
de promiscuidade, de degradação moral. O que não quer dizer que não houve mudanças nas
concepções; no entanto constata-se que tais mudanças não atingiram a sociedade como um
todo. O próprio Prefeito de São Paulo, em afirmações recentes, mostra-se disposto a:
“liberar as áreas e acabar com os focos de moradias irregulares e verdadeiros focos de
contaminação moral” conforme publicado no Diário Oficial do Município. Alerta também
43
Em geral aquelas que trabalhavam diretamente com as favelas e cortiços.
132
que nenhuma favela deverá receber melhoria, mas sim que se deve erradicar este mal (FSP
– 11/5/88).
Notícias como estas mostram que, apesar do conhecimento sobre os moradores da
favela e sobre a própria favela ter aumentado, ainda permanecem os conceitos que
desconhecem a realidade. Poder-se-ia pensar ser esta uma voz isolada, mas na verdade,
representa o poder municipal eleito e expressa o que pensa pelo menos uma parcela da
população da cidade de São Paulo. Afirma o Prefeito Jânio Quadros que a favela é uma
ignomínia, mas o que: “não é verdade é que há nelas ‘muitos viciados, meretrizes e
vagabundos profissionais’, que deformam o caráter de menores de setores amplos da
população” (Suplicy, E.M. 1988).
O Prefeito quer erradicar todas as favelas do município, cujo crescimento foi de
1039% em 14 anos
e que em 1987 representam, segundo os dados oficiais, 150.497
barracos, correspondendo a 818.872 pessoas, ou seja, aproximadamente 8% da população
morando em 1.594 favelas (FSP 11/5/88 – grifos meus).
É possível então afirmar que o conhecimento sobre as causas da favela não atinge a
todos os moradores da cidade, pois, para mudar esta concepção seria necessário procurar
compreender a produção espacial da cidade. E está uma tarefa para nós pesquisadores:
como tornar visível a realidade que é tão intransparente? Pois mesmo o Secretário Especial
do Meio Ambiente do Ministério do Desenvolvimento Urbano afirma que embora os
migrantes sejam os menos culpados, já que:
“chegam e encontram para se assentar apenas os terrenos marginais: os altos de morro, as
ares de mangue ou de baixadas mal saneadas ... constroem desordenadamente arremedos de
casas, desmatando e agravando as situações de instabilidade de encostas ou, quando nas
áreas baixas e mal drenadas, criando focos insuportáveis de poluição e doenças”
(FSP, 15/6/88).
Ora, falta analisar os porquês da ocupação de tais encostas, etc. Mas fica evidente
que continuam a ser considerados, os favelados, como causadores de doenças e problemas
urbanos.
Mas é importante também frisar o que mudou, pois como diz Peter Burger, “uma
nova época se instaura antes que se chegue a formular a questão de quão decisivas são as
alterações do momento” (citado por Rouanet, 1987). Muito embora não esteja tratando de
133
mudanças de épocas, penso que é importante assinalar as alterações que ocorrem nas falas,
sabendo que o novo e o velho estão juntos, ou seja, que não uma ruptura nas falas
ocorrendo para todos e ao mesmo tempo. Célia Sakurai, ao analisar as relações das SABs
Sociedades Amigos de Bairros com o poder local, conclui que o novo e o velho estão
presentes ao mesmo tempo, na nova forma de articulação das SABs com o poder público.
Ou seja, que uma modificação do velho discurso, da concepção de fazer política como
os movimentos sociais da segunda metade da década de 70. O velho discurso muda
incorporando o novo (Sakurai, C. 1984).
No período que estende de 1977/78 até os dias atuais (exceto para o município de
São Paulo, cujas mudanças parecem ter estacionado ou mesmo “regredido” em 1985, com a
eleição do novo prefeito), houve alterações nos planos de governo. Já foi dito da criação do
FUNAPs e das novas formas utilizadas pela população na utilização desse recurso. Um
outro modo de utilização dos recursos, pelo próprio poder público, foi através dos
programas de melhorias nas favelas (Pró-luz, Pró-água e Melhorias simples).
Evidenciam-se, especialmente no início da década de 80 os planos que visavam
atender de maneira mais ampla as favelas do Município. Embora muito alardeadas no
período pré-eleitoral de 1982 pelo PDS, o único implementado em larga escala foi o
Programa de Energização das Favelas, o Pró-luz, que atendeu inicialmente às favelas
localizadas em áreas públicas e posteriormente as localizadas em áreas particulares, desde
que autorizadas pelo proprietário ou em áreas de litígio. Esta restrição inicial às favelas
instaladas em áreas particulares explica-se: considerava-se que a colocação de luz era uma
garantia e um reconhecimento de permanência. A ampliação da instalação de luz nas
favelas localizadas em áreas particulares foi resultado de um longo processo reivindicatório
dos moradores.
Estes programas são divulgados e ocorrem em um período de ampla mobilização
dos favelados que se dirigiam em caravanas ao gabinete do prefeito, reivindicando a posse
da terra e melhorias de infra-estrutura. Na época, a “palavra de ordem” do prefeito, era de
que não haveria mais desfavelamento e remoção. No entanto, estes continuaram em áreas
consideradas necessárias para a realização de obras públicas ou de riscos de vida para a
população. Tentou-se, no processo de remoções, incluir os favelados nos programas da
COHAB SP, nos conjuntos habitacionais e no PROMORAR, ou então em favelas onde
134
havia espaços vazios (as “favelas adensáveis”). Transferir os barracos para áreas onde
existiam favelas provocavam menor resistência da vizinhança e a prefeitura não era
responsabilizada pelo aparecimento das mesmas. Incluir no PROMORAR, seria dar conta
de atender reivindicação antiga dos favelados, isto é, ter casa de alvenaria e o papel de
propriedade da terra. Ao mesmo tempo a favela é erradicada, muito embora as novas
unidades tivessem apenas 20 m
2
de área construída em lotes de apenas 70 m
2
.
Explicita-se em vários documentos e notícias que ter luz e água são direitos da
população citadina, pois a água de poço está geralmente contaminada pela fossa,
provocando o aparecimento de uma série de doenças. Portanto, promover o abastecimento
de água potável através de rede pública é uma forma de garantia da saúde dos favelados,
mas é também um aspecto positivo para a população como um todo, pois as áreas deixam
de ser um foco de doenças contagiosas. Quanto ao abastecimento de luz, também
considerado um direito, leva-se em conta que a vela, lamparina, lampião, podem provocar
incêndios.
Estes projetos estão respaldados em uma “nova” interpretação da Lei Orgânica dos
Municípios que obriga a Prefeitura a zelar pela saúde, higiene e bem-estar da população.
Mas também vozes contrárias à instalação de luz e água nas favelas, pois consideram,
que ao assim proceder, o poder público está “promovendo” a fixação da favela, além de
atrair outros migrantes para estas áreas faveladas. A urbanização deve ser vista como uma
solução provisória.
O editorial do jornal “O Estado de São Paulo” de 26/9/79 afirma que a urbanização
de favelas não é o caminho certo para acabar com elas. Argumenta que o favelado, pelo
fato de não pagar aluguel, compra televisão e outros utensílios e se for para casa da
COHAB vai ter que abrir mão do consumo, portanto o objetivo do plano habitacional do
município deveria ser o de acabar com as favelas e não mantê-las, não devendo também
melhorá-las. Para isso, argumentam, foi criado o FUNAPs. No mesmo sentido, o editoria
da FSP de 26/9/79 adverte para o risco de , com as melhorias, institucionalizarem-se as
favelas, afirmando também que a ação de urbanizar deveria ser acompanhada de educação.
O argumento de que instalar água e luz na favela provoca a fixação e o aumento das
favelas é irreal, pois mesmo sem água e sem luz as favelas não pararam de crescer. No
mesmo período em que se discute esta implantação de serviços nas favelas, o presidente do
135
Banco Mundial (Mac Namara) fica surpreso com o número de favelas em São Paulo (FSP,
9/11/79). Portanto, não se desconhecia que o crescimento das favelas não estava vinculado
à instalação desses serviços. O temor era o de que mudasse a concepção da favela, pois isto
poderia significar uma melhor compreensão da produção do urbano. O discurso sobre as
favelas mantêm-se para continuar a mistificar as causas da pobreza urbana, pois interessa a
permanência da concepção de que a favela existe por opção do morador, pois se quiser
trabalhar poderá mudar de vida.
Para os favelados, a obtenção desse direito é uma vitória, um reconhecimento: “se a
prefeitura nos deu água e luz, se nos der o esgoto está nos dizendo com isso que tem gente
morando na favela. Eu acho que esse é o primeiro passo para se conseguir a posse do
terreno” (depoimento – FSP, 30/12/80 – grifos meus). Há nesta fala vários aspectos a serem
ressaltados. Os programas de água, luz e melhorias são implantados em um período de
ampla mobilização dos favelados que se dirigiam em caravanas ao Gabinete do Prefeito,
reivindicando a posse da terra e as melhorias de infra-estrutura. Ora, obteve-se
fundamentalmente água e luz que , para alguns movimento de favela representavam uma
garantia do reconhecimento de sua existência e possibilitavam a continuidade das lutas.
Para outros, significavam uma forma de desmobilizar, pois acreditavam que, garantida uma
condição de vida um pouco melhor, os participantes dos movimentos se acomodariam.
A verdade é que obtidos a água e a luz, continuou-se a luta para que a cobrança
desses serviços fosse feita por uma taxa única para todos. E fica mais uma questão:
porque se considera que viver um pouco melhor acomoda o indivíduo? O utilizar o discurso
da acomodação não significa que se incorporou o mito da apatia do povo brasileiro? Viver
um pouco melhor não pode propiciar ter condições de pensar sua condição de vida e deixar
de ter “memória fraca”, para poder melhor atuar? No bojo desta questão, parece que é
melhor, para adquiri-se consciência, uma vida das mais precárias. Os setores dominantes
nascem com uma qualidade de vida invejável, tendo possibilidades de pensar sua condição
de vida. Porque para o trabalhador significa acomodação?
Um outro aspecto que chama a atenção é o de que os favelados compreendem que, à
medida que o poder blico promove a instalação de equipamentos de consumo coletivo,
reconhece a sua existência como trabalhadores que podem pagar pelo consumo da água e
da luz. Reconhece que existe gente morando, como diz o entrevistado acima citado.
136
A instalação de água e luz nos barracos tem várias implicações:
a) reorganiza o espaço interno da favela, tornando-o mais parecido com a urbanização
em geral, pois para colocar os postes de luz é necessária a abertura de vias mais
largas do que muitas das vielas existentes, o que permite um maior controle do
espaço;
b) para a instalação de água, também que se abrir vias que prevejam o escoamento
das águas servidas (há uma diferença entre os dois tipos de redes, pois a elétrica é
aérea e a de água e esgoto são subterrâneas, implicando em deslocar os barracos
para abertura de vias e também instalar uma rede que muitas vezes está sob os
barracos);
c) tanto em um caso como no outro, desmontar os barracos para que se instalem as
redes, pode significar não poder mais remontá-los, pois as madeiras se estragam.
Isto de um lado tem facilitado para alguns a construção de casas de alvenaria
aproveitando a necessidade de deslocamento; e para outros tem resultado em
maiores dificuldades de reconstrução;
d) possibilita a incorporação de novos compradores ao mercado de eletrodomésticos,
mas também os inclui como consumidores de água e luz. Exige-se em muitos
lugares, como comprovação de residência, a apresentação das contas de luz e/ou
água. Ora, esta instalação torna assim os indivíduos moradores, verdadeiros
cidadãos-consumidores;
e) atende a uma parte de reivindicação dos moradores;
f) há um reconhecimento tácito da ocupação, mesmo ilegal, das terras;
g) uma busca de legitimação no plano político pelo Estado, pois mostra sua
capacidade de atendimento, esperando ser reconhecido na próxima eleição.
Acrescente-se à expansão de luz e água os projetos de melhoria e urbanização nas
favelas. Em São Paulo, em 1983, é divulgado o plano habitacional da PMSP, que propõe:
“intervenção em favelas através da urbanização de núcleos em áreas cujas condições físicas
e legais permitam sua consolidação e integração à cidade. Para aquelas não passíveis de
urbanização, serão realizadas melhorias de modo a minorar os problemas da baixíssima
137
qualidade de vida de seus moradores, permitindo-lhes suportar a espera pela solução
definitiva de seu problema de moradia”
(PMSP – 83 – grifos meus).
Em Osasco o “Programa Casa para Todos” prevê a urbanização das 94 favelas do
município, com permanência local, quando for possível, ou em outras áreas do município.
Na verdade, hoje em Osasco são 116 núcleos de favelas, mas o projeto prevê apenas o
atendimento das favelas conhecidas na data de sua elaboração.
Em todos os planos é visível uma mudança de concepção do favelado. É visto como
um trabalhador que “mora mal”, não porque quer, mas sim porque seus baixos salários, ou
o desemprego, impedem-no de adquirir uma habitação digna. Porém, de modo geral,
permanece a idéia de que aumentando-se a produção de habitação para a população de
baixos salários resolver-se-á o problema de moradia. Sem dúvida a produção de habitação é
insuficiente, mas não é com o aumento do número de unidades produzidas que se dará
conta das favelas e das ocupações. Na verdade, o próprio poder público reconhece esta
questão, pois considera que as melhorias de equipamentos públicos nas favelas é uma
forma de atenuar as precárias condições de vida.
Mas continua a considerar-se como necessária a integração da favela ao tecido
urbano. A favela precisa ser integrada ao tecido urbano e à legalidade de ocupação da terra.
A integração ao tecido urbano dar-se-á pela retirada das “características” insalubres de sua
ocupação, fazendo-se um loteamento, definindo tamanho de lotes (embora, como
dissemos, sempre de tamanho menor do que as casas de outros segmentos sociais),
construindo casas de alvenaria. Esta integração favorece também a circulação interna e
assim, dizem, “os marginais não mais poderão esconder-se nestes lugares hoje saneados”.
A disciplina na forma de ocupação do espaço se impõe. A integração à legalidade dar-se-á
pela definição da propriedade.
A definição da propriedade foi tentada pelo PROMORAR, mas as construções
foram em número tão pequeno que sequer esbarram na questão. Programa ambicioso com
resultados modestos, significou mais uma tentativa de legitimação do governo militar. Nas
duas propostas acima (SP e Osasco) a definição de propriedade também dar-se-ia pela
Concessão do Direito de Uso.
138
O Movimento dos Favelados de São Paulo lutava pela Concessão de Direito Real de
Uso, sem pagamento de taxa por um período de 90 anos, na mesma forma de concessão
feita aos clubes esportivos. Reivindicavam também a desafetação de todas as áreas de uso
comum ocupadas. Foi encaminhada para aprovação na Câmara Municipal a proposta de
estabelecimento do Direito de Uso, por um período de 40 anos, com pagamento de taxa
mensal e apenas referente a 56 áreas de uso comum. Projeto que não é votado por falta de
quorum e posteriormente é retirado (D.O. do Município de São Paulo 23/12/85). Com a
mudança de prefeito em São Paulo em 11/1/86, houve mudanças substanciais nas propostas
e, como visto, o atual prefeito propõe acabar com as favelas, removendo-as e não as
urbanizando. hoje, lideranças que reavaliam a forma como encaminharam a questão,
pois significou uma perda muito grande a não aprovação do projeto mesmo que na forma
proposta pelo executivo.
Em Osasco, a proposta continua em andamento, mas ao final de quase 6 anos de
governo, nenhuma favela conseguiu ainda a regularização fundiária ou a construção de
casas. Em Diadema, também município vizinho de São Paulo, foi, em 14/10/85, aprovada
pela Câmara Municipal a Concessão de Direito Real de Uso, que ainda não se efetivou pela
demora no encaminhamento da questão jurídica.
Nas notícias e nos planos mudanças e permanências. Permanece a concepção
fundamental de favela como lugar de sujeira que possibilita a degradação física e moral.
Mas é também, nas novas falas, o lugar onde moram os trabalhadores. É preciso urbanizar,
integrar no tecido urbano, tornar um lugar higiênico, disciplinar pelas normas vigentes, para
tornar o lugar mais adequado à vida na cidade. É erradicar nos sentidos das características e
não mais da população ser removida, arrancada para outro lugar. Estas mudanças estão
relacionadas tanto com a questão da incapacidade de resolver-se a questão da moradia,
como com a necessidade de tornar as cidades tão higiênicas como as fábricas. Mas as
notícias também mostram a permanência das velhas falas, pois cartas de moradores
colocam a necessidade de tirar as favelas, de limpar as áreas que são redutos de marginais.
Nos documentos elaborados pelos favelados também é visível a fala de que
urbanizar as favelas é vantagens para os proprietários dos bairros. Justificando o projeto de
Concessão de Direito Real de Uso, diz o documento dos favelados de Diadema:
139
“1 A favela vai acabar. Ela será urbanizada e as casas construídas de alvenaria. Isto
significa que os imóveis dos proprietários ao redor das favelas de hoje serão muito mais
valorizados;
2 – a favela deixará de ser um eventual esconderijo de ‘desocupados’ Nela morará as
famílias que de fato necessitem estar ali;
3 – Os proprietários terão um novo aliados na luta pelas melhorias do bairro, como: esgoto,
pavimentação, escolas, postos de saúde e outros. Estas melhorias também são do interesse
dos favelados e moradores do bairro”.
(Diadema, setembro de 1985)
O atual Prefeito de São Paulo propôs um projeto, combatido pela oposição e
aprovado pelo artifício do decurso de prazo, que possibilita à iniciativa privada construir
unidades habitacionais para favelados que serão removidos pela prefeitura. Em troca a
iniciativa privada poderá construir no terreno liberado, ou em outro de sua propriedade,
alterando-se a lei de zoneamento. As implicações são muito numerosas: a) atribuir-se a um
pequeno grupo, sem respaldo, mudar o zoneamento da cidade, sem levar em conta a
capacidade do abastecimento dos serviços públicos;
b) atribui-se a apenas um grupo o apropriar-se de um índice de construção, um
acréscimo no coeficiente de aproveitamento dos terrenos, que pode ser excessivo,
sem considerar os moradores da cidade;
c) retoma a questão da favela “antro” que precisa ser abolido da cidade;
d) atribuir-se a existência da favela apenas ao “déficit” habitacional;
e) impede-se mais uma vez que a população participe de seus destinos, sendo
removida, provavelmente para áreas distantes e desprovidas de de equipamento
públicos;
f) a Prefeitura arcará com o deslocamento da população;
g) impedir-se-á a consumação de um direito, que passa atualmente de 20 para 5 anos,
adquiridos no Congresso Constituinte – o usucapião urbano;
h) propiciar-se-á a apropriação de renda diferencial por um grupo privilegiado, que
deixou a terra sem uso, vazia, e que por isso foi ocupada.
Agora, quando a cidade se expandiu, se produziram muitos valores de uso,
propicia-se um benefício: explicitamente a apropriação diferencial de renda. É o prêmio
pelo nada fazer-se por ter a propriedade - . Cálculos realizados mostram em um exemplo
que:
140
“propõe-se dobrar a área permitida para a construção em um terreno de 3.732 m2, situado
no Ibirapuera, Zona de alto padrão em São Paulo, em troca de 19 mil OTNs, quantia
suficiente para a construção de apenas 19 casas populares. Isto significa que, se
concretizada a operação, o metro quadrado do terreno estará custando para este
empreendedor apenas 5OTNs, menos de 10% do seu valor de mercado”.
(FSP – 23/5/88).
E, seria preciso definir quem lucraria com estas mudanças. Possivelmente apenas os
proprietários de terras e as empreiteiras. A primeira proposta aprovada, refere-se a um
terreno de 2.000 m2 aonde serão construídos 17 casas para favelados. Cabe indagar se o
objetivo é realmente desfavelar e quem lucraria com estas mudanças. É bom frisar, mais
uma vez, que aqueles que produziram o espaço onde moram serão removidos para áreas
distantes; será o castigo por não terem propriedade.
Mesmo aqueles que têm a propriedade e construíram sobre ela serão penalizados
por esta forma de apropriação de renda diferencial promovida pelo poder público, com o
objetivo de ‘desfavelar“. que se levar em conta que o aumento do índice de ocupação
provoca a necessidade, a curto prazo, de ampliação das redes de água, luz, telefone, etc.,
que significa transtorno para a população ali moradora.
Há, sem dúvida, mudanças nos discursos em relação aos sem terra/sem casa,
expresso nos planos de habitação, tanto ao nível municipal como ao vel estadual e
federal. No âmbito federal, em 1980, é instituído pelo BNH o PROMORAR Proposta de
Erradicação da Sub-Habitação, cuja proposta é agir nas favelas, mocambos e palafitas,
recuperando-as e construindo habitações, provendo as áreas de infra-estrutura e de
equipamentos. E, na maioria, a construção de um embrião de cerca de 20 m2. Neste
programa esta implícito que o favelado é um trabalhador que recebe baixos salários, pois
prevê financiamento em prazos de até 25 anos. Ora, para ser financiado é preciso ter um
salário, mesmo que baixo, é preciso também comprovar uma relação de trabalho (mesmo
como autônomo).
Fica evidente que mudanças de falas com relação ao morador de áreas ocupadas,
pois a pretensão é retirar a ilegalidade da ocupação e não mais, como em outros períodos,
retirar a própria população. É verdade que os resultados são muito modestos, pois, até o
final de 1985, em todo o Brasil, haviam sido construídas apenas 151.811 unidades e 22 mil
estavam em construção. Só em São Paulo, levando-se em conta apenas o número de
141
barracos de favelas, seriam necessárias em 1985 mais de 150.000 unidades do Promorar e,
no Brasil, mais de meio milhão de novas unidades. Há, por parte do poder público, uma
busca de legitimação, no plano político, mas também uma legitimação do morador da
favela como um trabalhador que poderá ter acesso ã casa própria de limitadas dimensões.
Incluída na maior parte dos planos governamentais está a ênfase no processo
construtivo por mutirão ou autoconstrução. A autoconstrução processo de trabalho
calcado na cooperação entre as pessoas intensifica-se na área urbana na década de 50,
vinculada ao processo de industrialização e crescimento urbano e à transformação do
sistema de transporte, com a ampliação da malha viária a ser percorrida por ônibus. Na
grande São Paulo, estima-se que 63 % das habitações foram produzidas pelo processo auto-
construtivo.
Desde a década de 60 tem ocorrido algumas tentativas dos governos em atuar nos
programas de autoconstrução, inclusive com financiamentos de aparências internacionais
como a “Aliança para o Progresso” e o Banco Mundial. Em São Paulo, na década de 60,
como já dito, uma parte das remoções foi realizada através do auxílio financeiro para
compra de terreno e supervisão técnica para autoconstrução. Posteriormente, com
financiamento da COHAB ampliam-se tais programas, que não se concretizaram em larga
escala, pois, na avaliação da própria COHAB, os terrenos são dispersos, o que dificulta e
encarece a assistência técnica “gratuita”aos moradores-construtores. Neste programas de
atendimento, elaboram-se cursos de formação de mão-de-obra a cada interessado
financiado pela COHAB constrói sua casa sozinho, ou com a ajuda da família. Na década
de 70, amplia-se este processo para áreas onde concentração de população, onde as
construções possam ser realizadas no sistema de mutirão.
No Rio de Janeiro, a primeira experiência em larga escala foi realizada na Favela
Brás de Pina, com a urbanização da área e a construção das casas em alvenaria pelo
processo de mutirão
44
. Em São Paulo, encontraram-se várias referências, principalmente a
partir da regulamentação, pelo BNH, do FICAM Financiamento de Construção.
Aquisição, Melhoria da Habitação de Interesse Social.
No período de 1983 a 1985, ao atuar especificamente nas áreas de favelas, a
Prefeitura de São Paulo subsidiou a construção de 6.246 unidades, em 40 projetos, através
44
Veja-se Santos, Carlos. N. , 1981 e Blank, Gilda, 1980.
142
do financiamento da FUNAPS. foi feita referência a este mecanismo que inicialmente
funcionava a fundo perdido. A partir de 83, passou a: “ser operado como um modelo de
financiamento, acessível para a aquisição de lotes, matérias de construção e moradias em
embrião” (FABS, PMSP, 1986). A ênfase na maior parte dos financiamentos via FUNAPS
é para a construção em mutirão. No caso do BNH, em um período de 25 anos foram
financiados de construção para 43.940 famílias. Números extremamente modestos, quando
se constata a dimensão das auto-construções (Rodrigues, A.M., 1988, op. cit).
Em outros programas do BNH, embora não explicitadas, também propostas de
autoconstrução. No caso do PROMORAR, a construção inicial de 20m2
poderá ser
ampliada com recursos do próprio morador, ou mesmo com financiamento de material de
construção. Ou seja, comercializa-se um lote e um cômodo que abriga a família de modo
provisório. E considera-se que, com o tempo, dependendo de cada um, sejam construídos
outros cômodos. É esta também a proposta contida no PROFILURB Programa de
financiamento de lotes Urbanizados que prevê a comercialização de lotes dotados de
infra-estrutura que devem ser ocupados em um prazo de seis meses. A forma de
ocupação/construção prevista é através da autoconstrução e do financiamento do material
de construção pelo FICAM. Portanto, embora não sejam especificamente programas de
autoconstrução, eles têm embutido esta forma de produção de habitação.
um discurso implícito nestas atuações. De um lado, reconhece-se o modo como
os trabalhadores tentam resolver seu problema de moradia. Mas ao financiar o material de
construção, inclui-se a assistência técnica “gratuita” para melhorar o padrão construtivo. Ou
seja, reconhece-se o saber popular, mas procura enquadra-lo no saber constituído. E, além
disso, o gratuito é irreal, pois o pagamento destes especialistas sairá das taxas
desembolsadas pelo financiado, pois na aparência são gratuitas. E, assim, disciplina-se o
modo produzir. De outro, procura-se ensinar uma profissão àqueles que obtêm um
financiamento, o que os levará a melhorar de vida, pois estarão mais aptos para o trabalho
na área de construção. Portanto, permanece, ainda que de forma não muito nítida, a
concepção de que precisam ser treinados para o trabalho na cidade e que consegue
financiamento de material de construção porque tem como pagar a construção mensal.
Esta forma de produzir novas unidades favorece e legitimação do poder político,
pois, como os “custos” são menores, pode-se “produzir” mais e, assim, aumentar nas
143
estatísticas oficiais o número de unidades entregues para a população, ou seja, tenta-se
demonstrar uma maior competência na produção da habitação.
É preciso também considerar que a autoconstrução dilapida os trabalhadores. Ao
findar um dia de trabalho exaustivo trabalha-se mais algumas horas para poder suprir a
necessidade de morar. Como está, teoricamente, computado no salário o pagamento da
moradia, significa que se trabalha duas vezes para que conste do salário a parte da moradia
e a outra no descanso para que seja possível morar. Trabalho duplo para obter-se lugar para
morar. Considerando que os recursos, quando vinculados ao SFH-BNH, são provenientes,
em sua maior parte, do fundo de garantia FGTS, é o próprio trabalhador que financia os
recursos para produzir sua habitação. Como paga, o financiamento com juros e correção
monetária (para que quando os trabalhadores desempregados retirem o Fundo de Garantia,
tenha-se coberto a inflação), o trabalhador financia sua própria habitação.
Há uma série de questões muito controvertidas, sobre a autoconstrução:
a) o tempo de trabalho investido o é calculado monetariamente, não
faz parte do salário. No entanto faz parte do tempo de trabalho
necessário para a sobrevivência. Dá-se então de forma encoberta em
aumento de mais-valia absoluta, disciplinada pelo Estado em relação
aos salários, pois é este que define o mínimo exigido para a
sobrevivência do trabalhador e regulamenta as relações de trabalho.
b) Contribui para fazer com que o custo da habitação pese cada vez mais
sobre as costas do trabalhador, embora deixe de fazer parte (real) do
custo do salário. É muito comum o trabalhador que não paga aluguel
e está desempregado, dizer: ainda bem que não pago aluguel, porque
senão não poderia sobreviver”. Mesmo nas ocupações constata-se
que ao cabo de um mês sem pagar aluguel, os integrantes do
movimento consideram que os companheiros podem dispor de algum
dinheiro para começar a construir em alvenaria ou mesmo fazer um
cimentado no barraco. Se o Estado incentiva esta forma de produzir
habitações, utiliza a força de trabalho dos próprios trabalhadores para
poder legitimar-se junto aos mesmos.
144
c) Ao incluir os projetos de autoconstrução nos seus programas de
governo, o Estado acaba por impulsionar a autoconstrução. Ao
mesmo tempo, isto faz com que os trabalhadores deixem de incluir a
habitação nas suas reivindicações e passem a reivindicar os
programas de autoconstrução. Este procedimento é visível em
Osasco, pois em alguns momentos da discussão, os ocupantes
colocam que como a Prefeitura não tem dinheiro para construir e
vender casas prontas e, como fica mais barato autoconstrução porque
não vão pagar mão-de-obra, o jeito é o poder público fazer o
arruamento e eles mesmos construírem.
muitos outros aspectos a serem discutidos em relação à autoconstrução: é uma
atitude reacionária em relação ao processo construtivo em si, pois impede uma forma mais
racional de produzir habitação; tem elevados custos sociais e individuais que recaem sobre
os setores mais pauperizados; provoca um alargamento da jornada de trabalho, o que
desgasta rapidamente a força-de-trabalho; significa a manutenção da força-de-trabalho na
reserva, que beneficia o capital, pois deixa de entrar, cada vez mais, no computo do salário.
E ajuda a manter as relações de dependência em relação ao Estado. Diz Emílio Pradilha,
que a autoconstrução pelo Estado tem todos os vícios e nenhuma das virtudes, desta forma
de produzir moradias
45
.
Mas para os movimentos organizados não se pode falar de autoconstrução e sim de
mutirão: um processo de trabalho conjunto, que é considerado uma forma de organização,
de discussão de problemas e de avanço para solucionar os problemas de moradia. (Veja
Bonduki, Nabil, 1987, Op. Cit.). E também uma forma de contestar as empresas de
construção civil que fazem encarecer a produção da habitação.
Neste último período do governo estadual, iniciado em março de 1987 e no
municipal iniciado em janeiro de 1985, verifica-se uma ênfase na construção de unidades
por empreiteras, pois se considera que as unidades são mais rapidamente construídas e de
45
Citei apenas alguns pontos da discussão sobre a autoconstrução que estão relacionados com a mudança em
relação a favela, para um maior aprofundamento veja-se entre outros: Maricato, E. 1979 e 1987; Oliveira, F.
1972; Pradilha, E. 1985; Xavier, P.P.C.X. ,1985.
145
melhor qualidade
46
. A razão principal, no entanto, está relacionada com a ênfase dada às
empreiteiras. Possivelmente também está embutida uma forma de desarticulação dos
movimentos que se organizam para produzir habitação para os integrantes do grupo. É claro
que tal organização pode efetivar-se para controlar a qualidade do processo construtivo; no
entanto, como fica mais caro, o trabalhador terá que trabalhar mais horas para garantir o
pagamento da prestação mensal, tendo assim menos tempo para controlar a produção da
habitação.
sem dúvidas mudanças nos discursos explicitados nos projetos do poder local,
mudanças de referências sobre a concepção do favelado, que deixa de ser considerado
marginal e passa a ser um trabalhador que recebe baixos salários. Busca-se minorar os seus
males, através de projetos que tentam corrigir os “desvios” da concentração da riqueza, do
“desequilíbrio” urbano. Muitas dessas alterações estão ligadas ao maior conhecimento da
realidade do processo de urbanização, das condições de vida na cidade, da situação de
trabalho, das relações de trabalho dos moradores das favelas e da produção e reprodução do
espaço urbano. também alterações que estão mais diretamente vinculadas aos interesses
da produção: aumento do mercado consumidor para determinados produtos, por exemplo, a
instalação da rede de eletricidade permitindo o aumento do consumo de eletrodomésticos; a
construção em alvenaria nas favelas, permitindo os consumos dos insumos industriais. Mas
há também a permanência das falas e das praticas que continuam considerando os favelados
como marginais e as favelas como lugar foco de contaminação moral, sendo necessário
extirpá-las. Há também a persistência do velho nessas mudanças de discurso.
oOo
46
Vide depoimento do Secretário da Habitação do Estado – in: FSP, 02/06/1988.
146
3.1. Os partidos políticos nos movimentos
Considero de extrema importância a compreensão das características da atuação dos
partidos políticos nas favelas e ocupações coletivas. Não é objetivo deste trabalho analisar a
formação dos partidos políticos, as diferente concepções partidárias e, consequentemente, a
forma de atuação em geral. Assim, vou apenas apontar algumas características da atuação
partidária nas áreas de estudo.
Para analisar todos os partidos políticos, seria necessário verificar os programas
partidários vinculados a esta atuação. Em geral os programas partidários são muito amplos,
genéricos e dizem respeito principalmente a propostas governamentais, se e quando eleitos
os candidatos. Não também diretrizes partidárias explicitas em todos os partidos para a
questão da atuação em favelas e ocupações. Em um documento elaborado pelo CPV
Centro Pastoral Vergueiro - , são analisados os programas partidários do PDS, PDT,
PMDB, PTB e PT, além de entrevistas com lideres destes mesmos que tem uma atuação
junto aos movimentos populares (CPV, 1982). Utilizo este documento por considerá-lo
uma síntese dos programas partidários.
Ao analisar o programa do PDS, o documento do CPV, conclui que:
“sempre que coloca algum benefício à população, frisa que os empresários, o que quer dizer
eles próprios, não seriam prejudicados e para isso receberiam benefícios fiscais ou as
vantagens que forem necessárias para manterem seus lucros e garantias de poder (...) Os
movimentos ligados a este partido, são em geral ligados a pessoas com vínculos aos
políticos e governantes”.
(p. 21)
A liderança entrevistada, Manoel Queiroz Filho (candidato à vereador), diz que discorda
“da participação das SABs em campanhas ou atuação político-partidária” (p. 8), no entanto
era até a sua candidatura presidente da SAB de Parelheiros.
O PTB, tem seu programa mais voltado ao trabalhismo. Não nenhuma referência
especifica aos movimentos de bairros, mas: “apenas o compromisso em reconhecer todas as
147
‘associações’ e garantir a liberdade de organização popular” (p. 21). Fabio de Castro,
militante de movimentos e candidato a deputado federal por este partido, diz que:
“todo movimento popular aparece geralmente em torno de uma pessoa ou um grupo que
está usando aquilo para atingir uma certa meta que ele tem na cabeça. O movimento não
tem nunca uma consciência dos objetivos finais que detonaram o processo”.
Diz ainda:
“eu não participei de movimentos populares, eu os criei”.
(p. 16)
Estas duas entrevistas, mostram a postura destes partidos em relação aos movimentos. Em
um caso, a participação embora seja visível, é negada. No outro considera apenas a
possibilidade de manipulação pelas lideranças dos movimentos. Diz ainda a liderança do
PTB, que, após as eleições, poderá ou não permanecer no PTB, o que pode indicar que não
necessariamente as afirmações deste líder sejam condizentes com a postura do partido a que
pertence.
No seu programa, o PMDB afirma que seu objetivo é o de promover alternativas
para que a população indique suas prioridades. Mas, diz a analise da CPV:
“Só que indicar prioridades não significa decidir, e o seu programa traz soluções prontas
sobre todas as questões que afligem a população”.
(p. 21 e 22)
Manoel Espíndola, presidente da SABs da favela da Vila Prudente, considera que na
favela onde mora e atua, os partidos não têm muita influencia, e embora seja candidato pelo
PMDB, diz que sua candidatura é de tipo raro, pois é candidatura de favelado. Afirma que:
“não é que o favelado se envolva com os partidos, os partidos é que envolvem os
favelados” (p. 13 e 14). Embora seja um candidato da favela e de um partido, considera os
148
favelados facilmente manipuláveis, quando estão desorganizados, pois os partidos
envolvem os favelados. Tem claro que é necessário que os favelados tenham
representantes:
“nós temos um milhão de favelados que vivem no anonimato, e ninguém fala neles; nem
oposição, nem situação falam desse mundo do favelado, que é marginalizado e muito mal
julgado... Quem procura o favelado, procura não com aquela vontade de promover o
favelado e eleger os seus próprios representantes”.
(p. 15)
Considera que o partido que tem mais tradição para promover o favelado é o PMDB.
O programa do PDT explicita que seu comportamento é:
“reconhecer todas as formas de auto-organização da sociedade”, prega uma reforma urbana
“baseada na planificação de conjuntos de assentamentos humanos que se ajuste a um novo
projeto nacional de desenvolvimento que atenda às necessidades do povo. Esta planificação
(...), deverá articular-se com as organizações populares”.
(p. 23)
O programa não explicita de que modo se dará esta articulação entre planificação e
organizações populares. A liderança entrevistada, João Lima, candidato à vereador, um dos
fundadores e primeiro presidente da Federação das SABs de Osasco, considera que a
maioria dos participantes das SABs não tem mesmo participação partidária, o que julga um
equívoco:
“Eu acho que as SABs, seus militantes devem se filiar a um partido, seja de oposição ou do
partido do governo, não interessa. O que interessa é ter conhecimento das coisas”.
(p. 7)
Verifica-se uma mesma fala entre o programa do partido e esse líder, pois no
programa se coloca o reconhecimento de todas as formas de auto-organização da sociedade
e a fala de João Lima não explicita qual é o melhor partido, mas que importa conhecer. Diz
149
ainda que esse conhecimento é muito importante, pois “os partidos políticos exploram os
movimentos, que são até comprados através de oferta de empregos”... Considera que este
processo vai demorar para acabar, mas que deve ser continuamente trabalhado. (p. 8)
O programa do PT é o mais explícito em relação aos movimentos populares, pois:
“o objetivo do movimento popular é que ele deixe saldos organizativos e políticos, portanto
não se restringe ao caráter meramente reivindicatório” (p. 10). Considera: “que não
quem melhor saiba o que atende mais os interesses do povo que os trabalhadores
organizados em suas entidades de classe e associações por local de moradia” (p. 12). Não se
trata: “apenas de considerar a participação popular como boa, mas de lutar para que o povo
possa dispor de canais concretos para participar das decisões” (p. 22).
Em 1987, o PT deixa mais explicita a importância do Movimento Popular e a pouca
compreensão de seu significado em relação aos objetivos socialistas do partido, pois:
“O movimento sindical é bem mais compreendido, por ser mais permanente, por ter um
caráter mais nítido de luta de classes e por existir uma vasta teoria a respeito. O grande
drama dos trabalhadores é que suas vitórias sindicais no interior do processo são anuladas
na hora de consumir os bens de serviço, que é o campo da luta popular. Por isso, o
desenvolvimento e a relação dos dois movimentos tem não só importância política e
ideológica. Tem ainda uma base material...”
(PT – 1988, p. 25-6)
A liderança entrevistada pelo CPV, Delcisa Staufackar Movimento de Transporte
e Saúde –, coloca que:
“existe uma preocupação dentro do nosso movimento de que nenhum partido venha a
aparelhar o trabalho que fazemos. Isto porque o movimento não é feito por pessoas que
tem militância ou opção partidária: o movimento tem que ter característica popular mais
ampla. É aos poucos que os participantes dos movimentos estão escolhendo os seus
partidos”.
(p. 12)
150
A proposta é de conscientizar e de promover a organização dos movimentos. Muitas vezes
isto colide com a proposta partidária, pois os participantes do movimento não reconhece os
partidos que aí milita para votarem nele.
O PC do B considera que:
“O programa é um instrumento pratico de trabalho para os comunistas, porque ajuda a levar
as idéias do partido às massas. É a ferramenta de trabalho.... Afirma que os comunistas
devem: “participar ativamente de todos os movimentos democráticos, patrióticos e sociais
nas formas condizentes com os interesses das grandes massas da população (...) Propugna
os seguintes objetivos(...) Reforma Urbana que assegure condições de moradia digna e
acessível aos trabalhadores e as massas populares (...)”
(PC do B – 1988 e Rabelo, R. 1988)
Não ficam explicitas no Programa as formas de participação nas lutas populares,
mas é de conhecimento a participação dos militantes na ocupação de Terra na Zona Leste
da cidade de São Paulo, pois:
“(...) a solidariedade à ação direta dos posseiros urbanos deve articular-se com a
apresentação de propostas mais abrangentes para o problema da moradia (...)
(Jornal O Movimento – 12
a 18/10/1981)
As considerações acima foram limitadas aos partidos que têm maior representação
nas áreas estudadas. Se o objetivo fosse analisar os partidos políticos através de seus
programas esse seria um caminho a ser percorrido mais detalhadamente, pois, na verdade,
as propostas são muito amplas.
Um aspecto que a dimensão da generalização dos programas partidários refere-se
à votação do capitulo sobre a reforma urbana no Congresso Constituinte, onde, em que
pesem as diferenças partidárias de PDS ao PT e PCs, em que pese também um resultado
conservador, a proposta foi aprovada por 322 votos favoráveis contra um voto contrário (do
senador Roberto Campos PDS). Um outro modo de analisar as propostas partidárias nas
peculiaridades de atuação nas áreas de favelas e de ocupações coletivas poderia ser através
dos programas de governo pré-eleitoral e a efetiva atuação, após a eleição. Neste caso o
151
espectro fica reduzido, pois se conseguiria apenas definir alguns partidos, os vencedores
das eleições. Por outro lado, poder-se-ia também, realizar apenas uma análise quantitativa
das metas propostas e das metas atingidas.
Um outro entrave está ligado ao processo eleitoral. No caso da cidade de São Paulo,
considerada “área de segurança nacional”, após um período de 20 anos, em 1985 com
posse em janeiro de 1986 –, elegeu-se por voto direto um prefeito. E neste caso, o prefeito
eleito, Jânio da Silva Quadros, do PTB, não tinha um programa explícito de atuação em
relação as ocupações e favelas. O que se pode observar foi a retomada das propostas de
desfavelização, através das remoções de favelas para áreas distantes, bem como a criação
de uma guarda municipal, que, sob as ordens de um Coronel (José Ávila da Rocha), tem
auxiliado a desocupação de áreas de favelas e de ocupações coletivas, mostrando que são
considerados “casos de polícia”.
O comandante da guarda metropolitana foi secretário da Secretaria da Família e
Bem-Estar Social, durante a gestão do prefeito indicado pelo PDS
47
. Ora, o prefeito
Reinaldo de Barros alardeava que na sua administração não ocorreriam remoções. O
secretário de então é o mesmo que vai viabilizar a remoção de hoje, na administração de
outro partido.
Estes são alguns aspectos que nos indicam que a análise não pode estar vinculada
apenas às propostas partidárias de um governo municipal eleito pelo voto direto. Quero
ressaltar que, em Osasco, as eleições municipais realizaram-se regularmente com voto
direto. Mas é digna de nota a ausência de planos específicos para as áreas de pesquisa, pois
as ocupações coletivas em Osasco ocorrem a partir de fevereiro de 1987. Considerando
ainda as alterações que ocorreram na política municipal em relação as ocupações e as
favelas durante a mesma administração (PMDB prefeito Parro, 1982 a 1988), a análise da
atuação será realizada no decorrer do próximo capitulo.
É verdade, que este caminho pode ser ampliado analisando-se as propostas de
governos do Estado, que indicavam o prefeito do município de São Paulo. No entanto,
também em 1982 foi eleito por voto direto ao Governo Estadual, após 20 anos de
47
O prefeito na época era o Sr. Salim Curiatti, quando do afastamento do Sr. Reinaldo de Barros, também do
PDS, que licenciou-se para candidatar-se ao governo do Estado.
152
indicação pelo Governo Federal. Assim, a análise da atuação s eleição, embora por um
período maior, também ficaria prejudicada. Por outro lado, indicamos, embora
sucintamente, as propostas da administração municipal, realizada logo após a eleição do
governador e indicação do prefeito no período de 1983 a 1985. Já enfatizamos as diferenças
em relação ao período anterior, principalmente em relação às favelas. Busca-se urbanizá-
las, dotando-as de infra-estrutura básica e tentando-se solucionar os aspectos legais da
questão da terra, bem como a utilização de financiamento através do FUNAPs compra de
terras e financiamento para os moradores, com ênfase ao mutirão.
O maior embate em relação às favelas esteve vinculado à Concessão de Direito Real
de Uso, extensivo a todas as favelas, com prazo de 90 anos e a título garantido, como
reivindicado pelo MUF Movimento Unificado de Favelas e MDFMovimento de Defesa
do Favelado
48
, e a proposta do Executivo de Concessão de Uso, para 56 áreas ocupadas, por
40 anos, definindo-se uma taxa para pagamento mensal. O Executivo, do PMDB,
considerou como interlocutor o CORAFASP Conselho Coordenador de Favelas
49
. De
modo geral, as demais propostas eram similares aos dos movimentos, com a urbanização
das favelas, construção em mutirão, não vinculação ao BNH, mas sim ao FUNAPS
50
.
Em 1986 o Governo Municipal é assumido por Jânio Quadros, pela sigla do PTB.
Não havia, como dito, programas a serem analisados. Assim resta fazer menção à efetiva
atuação. As propostas são de acabar com as favelas e impedir a consolidação das ocupações
coletivas. Desativou-se a Secretaria do Bem-Estar Social, que tinha como objetivo trabalhar
com a população carente do município. Ao atuar com a população mais carente, fazendo
pesquisas nas favelas e cortiços, atendendo situações emergenciais, os técnicos, na sua
maioria, defendiam as propostas advindas dos moradores de cortiços e favelas. Como muda
a proposta de atuação em relação às favelas, é preciso desarticulá-los e isto ocorre com a
extinção da Secretaria.
Considera, a administração de Jânio Quadros, que é a falta de moradias que
ocasiona as favelas e busca, com o auxilio da iniciativa privada, acabar com as favelas,
através do “projeto de desfavelamento”. Neste projeto, em troca da mudança da lei de
48
Ligados à Igreja e de certo modo ao PT.
49
Ligado inicialmente o PTB e posteriormente ao PMDB e PC do B.
50
Vide Plano de atuação do Município – 1983-1985.
153
zoneamento, os proprietários de áreas ocupadas devem construir casas para remover os
favelados, o que implicará, como citado, em retalhar a cidade, não trazendo nenhum
beneficio aos favelados e premiando os que deixaram a terra vazia, sem nada produzir
51
.
Mas não na esfera municipal houve mudanças, pois o Governo do Estado, eleito
em 1986, do mesmo partido anterior PMDB –, também mudou sua atuação. A ênfase
agora é a produção de habitações, pois acreditam que a causa das favelas é a falta de
moradias. O atual governo ênfase também a forma de produção capitalista e não mais à
autoconstrução-mutirão, beneficiando as grandes empresas de construção civil. O governo
projeta a construção de 400.000 novas casas no Estado de São Paulo. O Secretário da
Habitação, ao ser questionado sobre a carência e a forma de produzir as habitações, critica
o governo anterior, do mesmo partido, afirmando:
“(...) a tese de resolver todo o problema habitacional por mutirões foi o grande apanágio do
quadriênio anterior; mas concluiu tão somente 1.450 casas no interior, das 5.000 lançadas
no Programa Municipal de Habitação e 1.707 da Capital, estas feitas pela Prefeitura. A
nossa Companhia de Desenvolvimento Habitacional (CDH) ficou na média de duas mil
unidades por ano (em todas as modalidades), tendo um custo administrativo superior ao
valor das duas mil casas produzidas; e, quando assumimos, tivemos que suplementar
recursos para todos os mutirões do interior (...) Portanto, o projeto não foi eficaz, nem
eficiente e muito menos econômico. (...)”
Critica também a forma do governo anterior relacionar-se com os movimentos de
ocupação de terra:
“Os ‘movimentos’ da capital e adjacências fizeram mil acordos com o CDH, durante 3
anos; não receberam uma casa. No nosso primeiro ano de gestão, fizeram conosco um
acordo para a construção de 12 mil habitações na zona leste, prometendo não prosseguir nas
invasões. s estamos construindo lá 6.097 casas e temos mais 9.657 licitadas; eles
invadiram mais 187 terrenos, cujos proprietários obtiveram a reintegração de posse de seus
imóveis na Justiça, desalojando-os. Portanto, nós não os iludimos e nem os reprimimos; a
polícia apenas cumpriu ordens judiciais conseqüentes da irresponsabilidade de certas
lideranças dos movimentos”
51
Este projeto foi debatido pela Câmara Municipal. O PT e parcela do PMDB eram contrários, mas ele pode
ser aprovado, pelo artifício do decurso de prazo, pois os projetos encaminhados pelo Executivo, considerados
prioritários, mesmo não sendo votados, são aprovados por “omissão”, ou seja, os vereadores que estão com o
prefeito não discutem o projeto e não dão quorum para a discussão, tentando se eximir da responsabilidade de
serem coniventes com o prefeito.
154
(Branco, Adriano – FSP 02/06/88)
Esta longa citação, esclarece alguns aspectos mencionados, como o fato do
mesmo partido ter propostas diferentes em relação às ocupações e favelas. Em um caso
privilegiam-se as organizações por mutirão, noutro, as empreiteiras, considerando-se,
inclusive, a ineficácia e ineficiência dos governos de um mesmo partido. Além disso,
responsabilizou-se os movimentos pelas ocupações. Mas há também embutida uma
critica à administração anterior, que não deu conta de produzir habitações em número
suficiente para acabar com as ocupações. Mais ainda, fica evidente que considera-se que o
governo anterior ludibriou os movimentos, pois fizeram mil acordos com o CDH durante
3 anos e estes não receberam uma casa”. Cumpre esclarecer que este Secretário da
Habitação, que no artigo citado, critica o governo anterior, foi Secretário dos Transportes
do governo que está criticando. Esta breve síntese uma amostra das dificuldades para se
analisar a atuação dos partidos, via poder executivo, pois além de parcial obedece aos jogos
de interesses não explícitos nos programas partidários.
Um outro modo de se analisar mais especificamente a atuação dos partidos seria
através da pesquisa das eleições de vereadores e deputados estaduais e federais com suas
características de atuação. Esta seria uma outra pesquisa, sem dúvida muito importante,
mas que foge ao proposto neste trabalho, inclusive porque seria difícil conseguir verificar
se, concretamente, foram os participantes de um determinado movimento que elegeram, ou
votaram, num determinado vereador.
Um outro, que poderia complementar este encaminhamento de pesquisa, diz
respeito à atuação diferenciada dos vereadores em relação aos casos concretos. Logo após a
eleição do governador, deputados estaduais e vereadores e indicação do prefeito, foi
constituída, em abril de 1983, na Câmara Municipal de São Paulo, uma “Comissão Especial
de Melhoria de Vida nas Favelas” CEI de favelas, com o objetivo de analisar os
problemas da favela e do favelado, tendo como presidente o vereador Antonio Carlos
Fernandes do PTB.
A CEI de favelas relata os problemas dos favelados e, ao seu final, transformou-se
no projeto Novos Rumos, que: “visa a ação comunitária nas favelas na busca de solução de
155
seus problemas prioritários” (CEI de favelas, 1984). Fez-se uma série de levantamentos de
prioridades e se tirou como forma de atuação a criação do Conselho Coordenador de
Favelas CORAFASP que visava um trabalho com as lideranças das mesmas
52
.
Posteriormente, o CORAFASP realiza encontros locais e congressos, paralelos aos do
MDF.
Incorporam-se ao CORAFASP os movimentos de favelas ligados ao PMDB e ao PC
do B, dele afastando-se o vereador que o iniciou, pois tinha como projeto ser candidato à
Prefeitura de São Paulo, pelo PTB. Como sua candidatura não se viabilizou por este
partido, criou um novo partido: PMC – Partido Municipalista Comunitário – para implantar
sua proposta que, iniciada na favela, pretendia passar para a cidade como um todo: a
Prefeitura da Super Quadra, através do Movimento Comunitário Brasileiro
53
.
Criou-se, também, no âmbito da mesma Câmara, para analisar de modo mais
abrangente o problema da habitação, a CEI de habitação Comissão Especial de Inquérito
sobre os problemas de Moradia na Cidade de São Paulo, sob a presidência da vereadora do
PT Luiza Erundina de Souza, e que se estende de novembro de 83 a dezembro de 1984.
Na apresentação da conclusão dos trabalhos evidenciam-se as seguintes propostas:
1) baixar o preço da terra urbana em São Paulo, através da: atualização do valor venal,
criação de um sistema de alíquotas diferenciadas, criar um IPTU progressivo sobre terrenos
vazios, criar leis que dêem ao município poderes para impor aos proprietários dos terrenos
uma destinação social, promover um plano diretor, promover um programa de destinação de
recursos públicos para a construção de habitações populares em áreas urbanizadas; 2)
ocupar as terras vazias com infra-estrutura: com promoção de loteamentos públicos e
privados, reconhecimento de posse aos ocupantes sem terra na capital, promover uma
política de assentamento nas áreas vazias centrais da cidade; 3) controlar as decisões da
prefeitura quanto aos investimentos públicos; 4) orientar os investimentos públicos para
atender às necessidades sociais postas pelos trabalhadores.
(D.O.M. 24/12/1984)
A CEI de habitação levanta questões retomadas frequentemente pelos movimentos e
incluídas na proposta da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana. Não propõe e nem
implanta nenhum mecanismo articulador dos movimentos como o fez a CEI de favelas com
52
Entrevista com o vereador Antonio Carlos Fernandes.
53
Vide MCB – Prefeitura de Super Quadra e Projeto Novos Rumos - C.M.S.P.
156
o projeto “Novos Rumos” e o CORAFASP, deixando evidente diferenças de atuação
parlamentar, de acordo com a vinculação partidária. Mas, um estudo detalhado e mais
aprofundado pode dar conta de todas as especificidades destas questões.
Cumpre ainda relembrar que esta atuação pode também ser analisada através da
aprovação dos projetos do Executivo por omissão. Um processo de aprovação que só
depende da omissão, da ausência dos vereadores, como foi o caso da aprovação do Projeto
de Desfavelamento do prefeito Jânio Quadros, que conta com a maioria da Câmara a seu
favor, pois embora esteja partidariamente pouco numerosa a representação do PTB, o
prefeito aliciou aliados do PDS, PFL, além dos vereadores sem partido
54
e encontra
opositores em parcelas do PMDB e do PT como um todo.
É importante ainda situar um outro aspecto na relação entre os movimentos e os
partidos políticos. Em geral, nos movimentos não aceitação de vinculação partidária,
pelo menos explícita, nem pelas lideranças, nem pela maioria dos participantes, pois
consideram que esta vinculação retira-lhes a autonomia. As interpretações feitas nos
últimos anos vêem na ação autônoma dos movimentos um alargamento da esfera do
político, sem o monopólio político dos partidos. E, nesse sentido, paralelamente a
emergência de novos campos de ação política, surgem novas formas de fazer política e
também novos agentes políticos. É uma nova forma de produzir espaços citadinos
55
.
Mesmo considerando que os movimentos tentam “resguardar-se” dos partidos
políticos e dos poderes constituídos, para manter sua autonomia, sua nova forma de fazer
política e de produzir espaços, foi possível observar ao longo da pesquisa de campo uma
vinculação dos partidos com os movimentos e não o inverso, a vinculação dos movimentos
aos partidos. Como afirma Manoel Seabra:
“(...) na forma predominante de fazer política a presença de lideranças partidárias tem
significado ausência de autonomia. Por outro lado autonomia não pode ser confundida com
isolamento, pois a questão da autonomia tem que ser resolvida sem negar o direito de cada
um dos membros do grupo de vincular-se politicamente a formas de organização social
mais amplas a que constitui o referido grupo”.
54
Os vereadores “sem partido” foram eleitos pela sigla do PMDB mas, dada sua vinculação explicita com o
prefeito, dele foram expulsos.
55
Sobre a autonomia dos movimentos veja-se, entre outros, Leschner, 1984; Tilman Evers, 1984; Cardoso,
Ruth, s/ data. Durham, Eunice, 1984.
157
Tento agora fazer uma exposição sucinta da participação partidária nas áreas
pesquisadas. De início esclareço que, embora o CORAFASP tenha representação em várias
favelas de São Paulo, a pesquisa em algumas delas, como na favela Jaqueline no Butantã,
não pode ser realizada com as lideranças, pois fui identificada com o Partido dos
Trabalhadores
56
. Como a liderança está ligada ao PMDB, fica a questão: se os movimentos
consideram mesmo sua autonomia, qual seria o sentido de barrar uma pesquisadora por ter
sido identificada com um partido diferente do das lideranças? Ou seja, trata-se de
autonomia ou de isolamento?
A tentativa de pesquisa na favela Jaqueline foi realizada no período de coleta de
assinaturas para a proposta da Emenda Popular na Constituinte Reforma Urbana. As
lideranças foram procuradas para organizar debates com os moradores, explicando quais as
propostas contidas no documento. Como isto não foi possível, alguns moradores levaram a
proposta para ser assinada por seus vizinhos e amigos. Quando o presidente da Sociedade
de Amigos da Favela Jaqueline viu foi logo dizendo:
“esse negócio da Constituinte não serve para nada, não adianta nada assinar. E os vizinhos
que achavam boa a proposta, ficaram desanimados. Não assinaram, porque também ficaram
com medo, né? (...) é que é o presidente que distribui o ‘ticket’ do leite”.
(Cida, moradora da favela)
Na favela, Vila Operária, embora também tivesse sido identificada com o Partido
dos Trabalhadores, fui apresentada por um militante do PMDB, o que nos colocava numa
situação privilegiada, pois duas pessoas de dois partidos diferentes estavam com a mesma
preocupação: a pesquisa acadêmica, e a proposta da Iniciativa Popular para a Reforma
Urbana
57
.
Nesta favela também predomina uma organização vinculada ao CORAFASP. A
liderança é “reinaldista” (PDS) atribuindo ao ex-prefeito Reinaldo de Barros o fato da
56
Inadvertidamente tinha em meu carro uma propaganda do PT. Além do que, a Iniciativa Popular pela
Reforma Urbana foi elaborada principalmente com representantes de movimentos ligados ao PT e à Igreja.
57
A apresentação foi feita por Célia Sakurai, pesquisadora das transformações na SABs no Butantã e que
tinha um trabalho anterior na área.
158
favela ter sido urbanizada. Esta foi a primeira favela em que os barracos foram construídos
em alvenaria na cidade de São Paulo, com recursos do FUNAPS. Conta com água, luz, e
uma forma precária de esgotamento sanitário. Não se consideram favelados, e sim
moradores de uma vila.
As lideranças femininas ligadas ao PMDB afirmaram que estavam cansadas de o
pessoal só ir lá em época de eleição. Consideram a urbanização da favela como um direito e
como resultado de uma luta e não como um privilegio dado pelo Prefeito. Acham que o
movimento não pode ser partidário e que devem utilizar-se de todas as formas possíveis de
auxilio para melhorar a vida na favela.
As favelas da região estão organizadas com o CORAFASP, e ao que tudo indica a
relação com os partidos é a mesma em toda a região, ou seja, os partidos buscam o
movimento para conseguir sua legitimação (seja o poder público, seja a busca do voto) e o
movimento os utiliza para conseguir benefícios que melhorem sua condição de vida.
Em Osasco, são os militantes do Partido dos Trabalhadores que atuam como grupo
de apoio nas ocupações coletivas de terras do “Movimento Terra e Moradia”. um outro
grupo, conhecido como Grupo de Floriza, ligado ao PTB, em especial ao ex-prefeito e atual
candidato à Prefeitura Francisco Rossi. A análise da atuação partidária do “Movimento
Terra e Moradia” será realizada no terceiro capítulo deste trabalho.
oOo
159
3.2. As Alterações na Fala: A Igreja
DO: Vendeu fiado para Deus, vai receber depois da morte (Tom – música:
pecado rifa e revista)
PARA: A constituição de sujeitos imbuídos de numa luta terrena pela justiça
social (Eder Sader).
No processo de constituição desses novos sujeitos coletivos nas ocupações
cotidianas (as favelas) e coletivas (as organizadas) a Igreja é um dos protagonistas
principais. É possível analisar a atuação da Igreja nas favelas desde praticamente a criação
da Fundação Leão XIII em 22/01/1947, pelo Decreto Presidencial 22.498/47. Em estudo
que visa principalmente a compreensão das políticas de Estado e da Igreja Católica para as
favelas do Rio de Janeiro, Vicente Valla e outros deixam evidente as mudanças que se
produzem na atuação da Igreja
58
.
Mostram esses autores, como a atuação da Fundação Leão XIII caracteriza uma
mudança na relação classe dominante/população favelada na época em que esta instituição
é criada.
Os favelados deixam de ser vistos como elementos que vivem uma vida perniciosa e
passaram a ser considerados como indivíduos que têm valor humano e que devem ser amados de
modo todo especial. O princípio metodológico de atuação junto aos favelados é dirigido para a
formação de uma consciência segundo a qual a população trabalhadora seria a responsável pelas
suas condições de vida, consequentemente pela sua superação (Valla, op. cit., p. 48 a 53 grifos
meus).
De modo geral, durante um longo período, busca-se a reeducação social do favelado,
de modo a promover sua integração ao urbano.
Dizem ainda os mesmos autores que, com a criação da Cruzada São Sebastião (no
Congresso Eucarístico de 1955), uma relativa desativação e descaracterização da
Fundação Leão XIII. As diferenças entre as duas também são apontadas pois:
58
Em “Educação e Favela” V. Valla e outros analisam como as políticas modificam-se de uma conjuntura
para outra. Buscam compreender a proposta educacional contida nos programas e na atuação da Igreja no
período 1940-1985, desde a Fundação Leão XIII até a Pastoral de Favelas - veja-se Valla, V. (Org.), 1986.
160
“Para a Fundação, a finalidade era dar assistência material e moral à população favelada
através da manutenção de escolas, ambulatórios, creches, maternidades, cozinhas e vilas
populares. para a Cruzada, a finalidade perseguida era ‘dar solução racional, humana e
cristã ao problema das favelas’. Para tanto traçou como objetivo desenvolver uma ação
educativa de humanização e cristianização no sentido comunitário, partindo da urbanização
como condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e
econômica (...) De modo simplificado, tem-se a Fundação como mais assistencialista e a
Cruzada, embora também o fosse, incorpora novos elementos que visam a perspectiva de
integração social das populações mais carentes, tais como a urbanização”
(Valla, op. cit, pp. 64-65)
Embora a análise destes autores esteja vinculada às propostas da Igreja para o Rio
de Janeiro (dada a própria dimensão das favelas nesta cidade), então imbricadas com a
atuação em São Paulo. Pois, como dito, a proposta de educação como uma forma de
integrar o favelado ao urbano, está contida nos projetos de Vilas de Habitação Provisória da
Prefeitura de São Paulo. Ora, as VHPs são propostas da Prefeitura de São Paulo e estamos
falando da Igreja. Mas, tanto a Fundação como a Cruzada são criadas pelos poderes
públicos para atuar nas favelas e podem também ser consideradas tanto atuação da Igreja
como do Estado. Além disso, a atuação em favelas, pelo menos em São Paulo, tem sido
realizada por instituições municipais onde predominam como técnicos os profissionais que
fizeram o curso de Serviço Social. Foi nas escolas de Serviço Social onde se deu a
penetração e a ampliação das atividades de desenvolvimento comunitário.
O desenvolvimento comunitário é definido pela ONU em 1965 como sendo:
“um processo através do qual os esforços do próprio povo se unem aos das autoridades
governamentais, com o fim de melhorar as condições econômicas, sociais e culturais das
comunidades, integrar essas comunidades na vida nacional e capacitá-las a contribuir
plenamente para o progresso do país”.
(In: Valla, op. cit. pp. 67-68)
Fica mais uma vez evidenciado que trabalhadores são considerados culpados por não terem
um lugar decente para morar, pois não estão contribuindo “plenamente para o progresso do
161
país”. E a ação comunitária-educacional colocá-los-ia em condições de contribuir para a
sociedade, como se ainda não contribuíssem.
Assim, embora nem a Fundação, nem a Cruzada atuassem em São Paulo, está
presente a mesma concepção na atuação tanto do Serviço Social, como posteriormente, na
ação da Secretaria de Bem-Estar. Ao mesmo tempo, a Ação Comunitária do Brasil também
estará atuando nas favelas. De certo modo, diz Vicente Valla, a Ação Comunitária do Brasil
é parte da concretização da proposta de desenvolvimento comunitário da USAID – Aliança
para o Progresso. A ACB, procura mostrar que, se educado, o favelado tem condições de
resolver seus próprios problemas. A ação comunitária fundada em 30/12/1966 tinha como
uma das finalidades demonstrar a eficácia do desenvolvimento comunitário e de como o
setor privado se organiza, junto com o governo, para atacar as deficiências sociais urbanas.
Ficam também implícito que uma forma de educar o favelado é: ensiná-lo a construir sua
casa, pois ao mesmo tempo passa a ter um abrigo e uma profissão.
Não é possível atribuir apenas ao período pós-Encontro dos Bispos em Medellín, em
1968, uma posição da Igreja francamente posicionada em prol dos pobres e oprimidos,
como atesta Francisco de Oliveira, ao analisar as condições de crescimento das forças
populares e de criação da SUDENE:
“os sucessivos encontros dos Bispos do Nordeste, o primeiro em Campina Grande em 1956
e o segundo em Natal em 1959, no acender da luzes da própria SUDENE, questionam o
direito a uma propriedade socialmente inútil. Pode-se dizer que isso não era mais que um
distante eco da Rerum Novarum, mas mesmo assim foi a maior parte da hierarquia católica
da região que assumiu as novas posições” (de defesa dos interesses populares).
(Oliveira, F., 1981, p. 12)
Mas será sem dúvida a partir de Medellín que ficará mais evidente a nova proposta
de atuação da Igreja. Para situar a atuação da Igreja, pós Medellín, recorri e me apoiei em
Eder Sader que, ao analisar a matriz discursiva da Igreja na América Latina –, diz que:
“a ‘salvação’ é anunciada na instauração de condições de vida mais humana. O humano’
não está aqui contraposto ao divino’, mas pelo contrario, parece como manifestação de
Deus. E as ões dos grupos comunitários da periferia, expressavam novos valores
162
vinculados às reivindicações feitas. No lugar do pedido de um favor aparecem reclamações
de um direito. Os discursos pastorais aplicaram as categorias de discursos religiosos (a
verdade, a justiça, a palavra de Deus e o Povo de Deus, o Pecado e a Libertação) aos temas
da vida cotidiana: Constituíram assim sujeitos imbuídos de fé numa luta terrena pela justiça
social
(Sader, Eder. Op. cit, pp. 139-160)
Na sua nova forma de atuação, a Igreja tem sido uma presença importante nos
movimentos populares, pois, em fevereiro de 82, no Encontro dos Favelados de
Campinas, foi elaborado o “documento dos favelados sobre a terra”, encaminhado como
subsídio dos favelados à 20º Assembléia Geral da CNBB. A posição da Igreja é explicitada
no documento Solo Urbano e Ação Pastoral”, elaborado na 20º Conferência dos Bispos
Brasileiros – CNBB, em Itaici – 1982, que aborda o problema da terra nas cidades.
Neste documento, a moradia é colocada como um direito e a luta pelo acesso a ela é
uma luta, que se expressa cotidianamente, pela justiça social. Analisam-se as características
de crescimento das cidades, alerta-se sobre o processo concentrador de terras (e de rendas)
e sobre a necessidade de alterar-se tal situação para evitar-se a continuidade de um
sofrimento aos despossuídos. Explicita-se o direito à propriedade para todos:
“A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Quer dizer que a propriedade não constitui
para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o direito de reservar para
si aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário”.
(CNBB – 1982, p.25)
Explicita-se assim a questão da chamada função social da propriedade. Não uma
contestação da propriedade em si, mas sim a contestação da concentração abusiva de terras,
que deixa sem terra muita gente e muita terra sem gente.
Coloca também o documento o modo como a Igreja deve entender as ocupações de
terra, pois:
“o direito ao uso de parcela do solo urbano que garanta a moradia adequada é uma das
primeiras condições para a realização de uma vida autenticamente humana. Portanto, no
caso de muitas ocupações lentas e até nas ‘invasões’, o titulo legitimo da propriedade,
163
derivado e secundário, deve ser julgado diante do direito fundamental e primário de morar,
decorrente das necessidades vitais das pessoas”
(idem, p. 27)
E cita o Concílio Vaticano II, pois: “aquele que deve se encontrar em extrema necessidade,
tem o direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita” (ibidem, p. 28).
Fica evidenciado, neste documento, que o humano, na sua vida terrena, como
manifestação divina, deve ter condições de vida digna, e não apenas esperar o depois da
morte”.
Colocando-se coerentemente com a opção preferencial pelos pobres, assumida em
Puebla, a Igreja, de acordo com o documento sobre o solo urbano, se propõe a uma ação
evangelizadora, caminhando e lutando ao lado dos pobres, apoiando as diversas formas de
organização e mobilização populares e ao mesmo tempo, denunciando a mistificação que
confunde a luta do pobre pela justa posse do solo com subversão. Pelo contrário, é
considerada subversão a situação de extrema miséria em que vive a maioria dos
trabalhadores brasileiros.
É evidente a mudança de matriz discursiva da Igreja, que se consubstancia na
atuação das Comunidades Eclesiais de Bases, e nas instituições da Igreja que se empenham
em colaborar na solução do problema de moradia, tais como as comissões de Justiça e Paz,
Comissão de Pastoral da Terra, Pastoral de Favelas, Pastoral da Periferia, Centros de
Defesa de Direitos Humanos, e construção de casas em processo de mutirão, que se tornou
possível, segundo o documento, pela atuação da Cáritas do Brasil.
Esta mudança é visível na periferia da cidade de São Paulo e em Osasco, áreas
objeto de nossa pesquisa. Em qualquer concentração pela defesa da moradia, sempre um
representante da Igreja local, um padre ou um Centro de Defesa dos Direitos Humanos,
comprometido com as lutas populares, fornecendo assessoria, um lugar para reuniões e
discussões de seus problemas comuns.
É importante também lembrar que não há um bloco monolítico na Igreja; pelo
contrário, uma diversidade de atuação. Mas esta análise refere-se à atuação dos setores
da Igreja comprometidos com os pressupostos de Puebla, com os despossuídos; assim a
164
atuação nas áreas de favelas e das ocupações apresenta características semelhantes, através
das pastorais da terra, da periferia e das favelas. Para os setores mais conservadores da
Igreja, a atuação permanece assistencialista, com características semelhantes às da cruzada
São Sebastião.
Em São Paulo, para subsidiar o trabalho de grupos de base, dos agentes pastorais,
foi elaborado um documento-cartilha sobre o “Solo Urbano e Ação Pastoral”, cujo item o
“que a Igreja tem feito e pode fazer” procura esclarecer a atuação da Igreja, e por isso o
transcrevo:
“Na busca de soluções para questão do solo urbano, a Igreja já tem feito: a) casas populares
na base do mutirão, com apoio da Cáritas Brasileira; b) doação de terrenos da Igreja para o
povo construir suas casas; c) formação de Comissões de Justiça e Paz, de Pastoral da Terra,
Centros de Defesa dos Direitos Humanos, serviços de assistência jurídica - tudo em defesa
dos direitos dos moradores; d) trabalho de conscientização das comunidades populares.
Vejam quanta coisa ainda podemos fazer:
a) Levar todos os cristãos a conhecerem melhor a situação das favelas e suas causas; b)
difundir o principio cristão de que a propriedade tem função social. O direito de uma
família morar está acima da lei que regula a propriedade do terreno; c) lutar para acabar
com a idéia de que morador de favela é marginal; d) nunca aceitar que a luta do pobre pela
posse do solo não seja um direito seu e, portanto, não é subversão; e) formar comunidades
de base na periferia e nas favelas; f) mostrar que a dificuldade de se ter um terreno está
ligada aos baixos salários e ligar sempre mais a luta pelo terreno com a luta dos
trabalhadores por melhores salários; g) levar a Igreja a ser a primeira a dar um bom
testemunho nesta questão do solo, não fazendo especulação imobiliária”
(Província Eclesiástica de São Paulo, 1982, p. 50-51)
No contexto da mudança de falas da Igreja, surge, em 1978 o “Movimento de
Defesa do Favelado” MDF , em Santo André – município vizinho de São Paulo e
integrante da Região Metropolitana e logo se estende por toda a região do ABC e São
Paulo.
165
Nas notícias de jornais, a partir de 1979 a Igreja se faz presente, principalmente
junto com o MDF
59
. Em maio de 1980 estes realizaram seu primeiro Encontro Nacional,
onde concluem que seus objetivos devem ser:
“denunciar as condições de opressão, miséria e exploração do povo; organizar os moradores
em favelas, conscientizando-os de sua situação; lutar para o direito de moradia, não
aceitando o despejo, a remoção ou a reintegração de posse, bem como lutando pela
urbanização de favelas”.
Em 1983, o MDF realizou o 3º Encontro Nacional onde fica mais claramente
sistematizado que moradia é um direito, que deve impor limites à propriedade e que as leis
devem ser feitas com a opinião da maioria para beneficiar a todos e não somente uma
minoria. O Encontro Nacional, foi realizado após divulgação do documento da CNBB,
“O Solo Urbano e a Ação Pastoral”, e contém explicitamente os mesmos princípios de
direitos, de justiça social e de limites à propriedade individual.
Em 1987, o MDF realizou o seu Encontro Nacional, ao qual estiveram presentes
representantes de 12 Estados. Durante o ano de 1987 sua grande bandeira de luta foi a
Reforma Urbana, participando com seus representantes leigos na elaboração, na coleta de
assinaturas e na entrega das propostas ao Congresso Constituinte, em Brasília. Durante este
processo, as lideranças de favelas fizeram-se representar por moradores e não por
representantes da Igreja, o que não significa que sua vinculação tenha desaparecido. Na
continuidade das lutas, em junho de 1988 foi realizado o 8º Encontro Nacional.
Com uma vinculação menos estreita com a Igreja, tem-se também o MUF
Movimento Unificado de Favela e Promorar, que, em São Paulo, começou a organizar-se
em 1983, para reivindicar a Concessão de Direito Real de Uso e a cobrança de taxa mínima
pelos serviços de luz e água (1% do salário mínimo) nas favelas, áreas urbanizadas e
conjuntos do PROMORAR.
As premissas do MUF e MDF são semelhantes: não aceitar a remoção; propor a
urbanização de favelas; a concessão de direito real de uso aos favelados que ocupam áreas
59
O MDF foi incluído nesta parte do trabalho, pois são padres da Igreja Católica que assinam as
convocatórias para os primeiros Encontros Nacionais. Veja-se Dossiê 1983-CPV.
166
públicas – por um prazo de 90 anos e sem pagamento; usucapião urbano para as favelas que
ocupam áreas de propriedade particular. Consideram a moradia digna um direito e propõem
que seja definida a função social da propriedade. Não são oponentes nas suas
reivindicações e propostas, mas enquanto o MDF está mais vinculado à Igreja, o MUF está
mais vinculado aos leigos cristãos que atuam principalmente no PT Partido dos
Trabalhadores.
Em síntese, a Igreja tem estado presentes nos movimentos de favelas e ocupações,
seja oferecendo o lugar das reuniões, seja fornecendo uma assessoria jurídica aos
movimentos dos favelados, seja ainda, levando a palavra de e esperança aos espoliados.
Mas é também criticada, tanto pelos não-cristãos, como pelos cristãos-proprietários, com
afirmações ou indagações do tipo:
“A Igreja incentiva os movimentos e os favelados continuam sem pagar aluguel, enquanto
nós trabalhamos duro para ter uma casa e dela retirar um pequeno aluguel” ou: “porque a
Igreja não distribui suas terras, em vez de ficar incentivando ocupar terras dos outros”, ou
ainda: “esta Igreja está errada, porque olha o que faz com vocês, agora vão perder o que
gastaram em madeira e telhas, porque vão ter que sair”
(Depoimentos)
Muitas vezes é o próprio movimento que solicita a participação da Igreja, como em
Diadema:
“Em 1978 nasceu o movimento de favela de Diadema, por ocasião de um despejo que a
gente sofreu na favela União II... Nós procuramos a Igreja e os padres iam rezar missa lá.
Depois a gente começava a discutir e tal, e assim começou...” (depoimento). A Igreja foi
também procurada como uma forma de obter apoio jurídico, pois os “oficiais de justiça,
chegavam assim na porta, nos barracos, intimando o pessoal, queria saber o nome de um
por um. A princípio os companheiros começaram a dar o nome e depois aí veio a intimação
no nome. Aí, depois a gente arranjou um advogado (da Igreja), que orientou que não
podia dar o nome... Então o movimento começou assim, nessa favela...”
(Depoimento)
É evidente que a mudança de atuação da Igreja comprometida em lutas contra as
causas sociais da miséria é visível em múltiplos discursos, e como diz Eder Sader:
167
“As transformações ocorridas na Igreja, não podem ser subestimadas. De um lado a
formação das comissões pastorais e das comunidades de base não devem ser vistas como
simples sucedâneos de organizações anteriores...”
(Sader, E. Op. Cit. p. 154)
Também não pode ser considerada como uma atuação homogênea e permanente
através dos tempos, pois da proposta de educar o favelado: “buscando torná-lo capaz de
integrar-se na vida urbana e de se tornar útil para a sociedade”, ao momento atual de se:
“lutar para esclarecer as causas da miséria, de forma mais abrangente, e da favela em
especial”, uma transformação que não é a continuidade da Fundação Leão XIII ou da
Cruzada São Sebastião para as comunidades Eclesiais de Base e pastorais de favelas.
uma transformação visível que ser expressa nas falas oficiais da Igreja, mas
também um atuar difuso, dos cristãos leigos, como no MUF, MDF, e nos casos dos Centros
de Defesa dos Direitos Humanos uma ligação com a Igreja, mas não há necessariamente
um vínculo, entre os que atuam nos Centros de Defesa e a Igreja. Verifica-se também que
os mesmos participantes se vinculam a diversas entidades ou organizações partidárias ou
sindicais. No caso de Osasco, ligam-se, embora não explicitamente, ao PT e à CUT.
Cumpre ainda esclarecer que nossa análise esteve ligada à Igreja Católica, muito
embora nos movimentos haja uma presença marcante de cristãos de outra igrejas. Não há,
contudo, nas área pesquisadas, uma atuação direta destas, muito embora façam parte dos
movimentos e auxiliem os moradores das áreas.
Em alguns momentos tornou-se visível a presença de sub-grupos numa das áreas de
pesquisa de Osasco, com a liderança de um membro de uma igreja dos crentes”, como
eram conhecidos. Este sub-grupo contestava as lideranças da área ocupada, marcando
inclusive entrevista com o Secretário da Habitação do Município, sem avisar as lideranças.
Mas estas foram avisadas e participaram da reunião, pois se ninguém era dono do
movimento” havia uma coordenação eleita que os representava. Qual o objetivo deste
grupo? Quando da reunião verificou-se que predominava, em sua maioria, membros da
igreja a que pertencia o líder do grupo; desse modo, o questionamento não se dava apenas
em relação à forma de encaminhamento da luta, mas também em termos da liderança
168
religiosa. Por não aceitar e não querer discutir o modo como deveriam comportar-se junto
ao poder público, esta liderança foi ‘convidada’ a retirar-se da área, pois ao ser
acompanhada pelo grupo de coordenação, perdeu legitimidade junto aos seus seguidores, já
que a própria Secretaria de Habitação reconheceu como interlocutores os membros da
Coordenação do Movimento, entre os quais um padre da Igreja Católica.
Em que pesem todas as alterações nas falas e atitudes da Igreja em relação aos sem
terra/sem casa urbanos, a maior parte da Igreja Católica não optou para discutir com
prioridade a Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana, embora tanto o MUF como o MDF
fossem parte integrante do movimento nacional que elaborou, discutiu e coletou assinaturas
para a proposta da reforma urbana. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco,
que tem um grupo que atua na questão da terra e moradia na cidade, tinha como prioridade
a discussão da reforma agrária. É também importante destacar que a Igreja atua
considerando os favelados capazes de construir suas casas em processo de mutirão, com o
auxilio de técnicos, conforme documento da Zona Leste. Pode significar, como já dissemos,
uma forma de sobre-trabalho e de continuar a jogar sobre os ombros dos trabalhadores a
responsabilidade de sua pobreza.
Gostaria também de argumentar, que apesar da mudança, é patente ainda a presença
de discursos como o bem e o mal: “O estoque de terra em São Paulo com fins especulativos
é imoral, indecente e insensato” (Carta dos católicos de Guaianases).
Como dissemos acima, a atuação da Igreja não coloca em xeque a propriedade,
apenas enfatiza que a concentração abusiva é um mal, pois a propriedade deve cumprir sua
função social. No modo como estão distribuídas as terras há uma função social implícita,
própria do capitalismo, de propiciar a acumulação de riquezas, para os detentores dos meios
de produção e da terra. O que se tem discutido na função social da propriedade é a
concentração abusiva de terras nas mãos de uns poucos proprietários. Para evitar a
continuidade das mistificações, o documento sobre o solo urbano faz colocações mais
abrangentes, deixando explícito que é necessário mudar esta concentração de riqueza, de
realizar-se uma justiça social. Assim, apesar das grandes mudanças, as lutas pela justiça
social, não significam propostas de luta pela derrubada da propriedade da terra.
169
oOo
170
3.3. As Várias Ênfases dos Moradores Citadinos
É claro que, quando se está analisando as notícias contidas nos jornais, nos
programas do poder público, da igreja, dos partidos, está se analisando também o processo
de mudanças, de permanência, de transformação da sociedade, em todas as suas parcelas.
Nesta parte do trabalho, são destacadas as falas dos moradores, organizados ou não, como
uma forma de expressão. Procuro compreender a forma de apropriação do espaço cotidiano,
no que diz respeito à moradia.
uma diversidade muito grande nas formas de apropriar-se do espaço da moradia.
Em qualquer delas, é patente a importância atribuída à casa própria. Estas formas
compreendem a compra de terreno e construção da casa, construção que pode ser realizada
com a contratação de empresas, em vários níveis, até autoconstrução. Compra de casa
pronta, de particulares, em unidades isoladas, - com ou sem financiamento -, em conjuntos
habitacionais financiados pelo SFH, tanto os construídos pelas COHABS, INOCOOPS,
como os conjuntos de prédios de alto padrão
60
.
Um outro conjunto de formas de apropriar-se do espaço urbano compreende as
favelas, as ocupações coletivas de terras e a moradia com pagamento de valor mensal dos
aluguéis. No caso das favelas e ocupações coletivas não há legalidade jurídica da ocupação.
Vou aqui apenas situar algumas formas de apropriação do espaço urbano, não no
seu processo como um todo, mas enfatizando as diferentes formas de referir-se às favelas e
ocupações coletivas.
Entendo a favela como espaço produzido e parte integrante da vida urbana e da
realidade brasileira. Diferencio favela de ocupação coletiva, porque em geral na favela a
ocupação é individual e cotidiana, e as ocupações coletivas ocorrem num curto período de
tempo e são previamente definidas em grupo.
Este trabalho tem a preocupação de mostrar o significado crescente das lutas pela
moradia nas áreas de favelas e nas ocupações coletivas, e se detém nos aspectos que
60
Sobre as características de cada uma dessas formas de apropriar-se do espaço urbano, veja-se Rodrigues, A.
M., 1988.
171
evidenciam o conflito entre favelados e os moradores de casas de alvenaria, entre favelados
e ocupantes coletivos, entre moradores de casas de alvenaria e ocupantes coletivos,
tentando verificar a heterogeneidade ou homogeneidade na produção cotidiana do espaço
da moradia. Procuro assim compreender tanto a produção destes espaços como a sua
representação.
Para o proprietário da casa de alvenaria, vizinha de uma favela, esta representa uma
forma de “desvalorizar” sua casa, principalmente se a favela apareceu depois da casa. Neste
caso, em geral, os vizinhos tentam impedir o surgimento e a expansão da favela. Remetem
ao pode público cartas, com abaixo-assinado, solicitando que se impeça o aparecimento ou
o crescimento da favela. Só mais recentemente, na segunda metade da década de 70,
surgiram, em alguns bairros, as caravanas de moradores que se dirigiam ao gabinete do
prefeito, representando novas formas de reivindicar o fim da favela ou sua não-instalação:
“Moradores do Sacomã, pedem fim da Favela moradores forma à Prefeitura protestar
contra os barracos que estão surgindo num terreno perto do Hospital de Heliópolis” – FSP –
7/1/78.
Se a favela pré-existia à construção ou aquisição da casa, impede a “valorização”.
Neste caso, aturam a favela”, pois ela estava no bairro, mas querem impedir o
crescimento da mesma.
Não unanimidade dos vizinhos em relação às favelas e favelados, pois em um
mesmo bairro as condições de vida são variadas, tanto em termos de faixas salariais como
em termos de situação de trabalho, de composição familiar, do momento em que a casa foi
comprada ou construída, ou se a condição é de inquilino ou de proprietário. Mas em todas
as entrevistas ficou evidente que a favela “desvaloriza” o lugar onde moram. uma
compreensão de que a moradia não é a casa, mas também o lugar onde esta se situa.
Encontrei inúmeras referências sobre o preço da casa ser diferente dependendo do lugar,
inclusive explicitando as condições de equipamentos e meios de consumo coletivo.
O aspecto mais visível de diferenças entre os moradores de casas de alvenaria nas
vizinhanças de favelas está relacionado com a questão de ser ou não proprietário da casa
172
em que se mora. Os inquilinos têm menor restrição à favela do que os proprietários,
mobilizam-se menos quando a questão é a “valorização” da casa, do bairro, pois também
sabem que se o bairro “melhora” os aluguéis aumentam e terão que mudar para outra região
mais pobre. Na maioria das vezes as casas dos inquilinos e proprietários são muito
semelhantes em relação ao padrão construtivo e, também no mais das vezes, no mesmo lote
moram na frente o proprietário e, nos fundos, mais dois ou três inquilinos.
O fato de ser inquilino ou proprietário diferencia a atuação, quando os moradores
tentam organizar movimentos para retirar a favela. A mobilização em caravanas, os abaixo-
assinados serão realizados principalmente pelos proprietários. Alguns inquilinos assinam:
“para não ficar mal com o dono, senão ele vai pensar que tenho interesse” (depoimento).
Nas representações sobre favelas não conta apenas a questão da “valorização”.
Conta também que favela é foco de irradiação de doenças, pois: é um lugar onde há muita
sujeira, já que o caminhão do lixo não entra nas vielas, não esgoto e as águas servidas
correm a céu aberto; não água em todas as casas e os moradores bebem água do poço,
em geral contaminada.
Estes aspectos sintetizam o que os vizinhos acham da sujeira que propicia o
aparecimento de doenças. Mas é interessante também destacar que nestas falas o favelado é
o grande culpado por esta situação: “não tem caminhão de lixo, mas eles podiam muito
bem, comprar saco de lixo e colocar na ‘caçamba’”; “vai me dizer que eles não podem
comprar uns sacos de lixo”; ou “é eles pedirem, que qualquer vizinho ‘empresta’ água.
Era eles comprarem um tamborzão e irem carregar água, afinal também não pagam nada
para morar porque não carregam um pouco de água?” (depoimentos). uma evidente
separação entre “nós” e “eles”. E, eles”, os favelados, que não pagam aluguel, podem
comprar saco de lixo, trabalhar para levar o lixo até a caçamba, comprar tambor de água,
carregar água, etc. O que evidencia, que atrás das falas sobre “valorização”, aspectos de
uma sociedade disciplinada para o trabalho e para o fato do trabalhador ser o responsável
pela condição de vida que tem.
Um outro aspecto diz respeito ao fato da favela ser lugar propício para os marginais
esconderem-se. As vielas são estreitas e sinuosas, o que impede a entrada da polícia, de
estranhos à favela. A abertura de vias para a instalação de luz nas favelas tem, segundo os
173
moradores, diminuído o perigo de se esconderem marginais. Isso significa dar ênfase ao
fato de que a luz nas favelas implica numa disciplinarização do espaço, em conformidade
com as normas de ocupação do solo urbano.
Mas também a menção, de modo muito sutil, de que os próprios favelados são
bandidos, ou se não são, então escondem bandidos. Esta fala é visível não nas
vizinhanças mas é “senso comum”, ou seja, costuma-se dizer que todo mundo sabe disso,
até a polícia. É evidente a fala, “se tem bandido que mora eu o sei, mas tem bandido
escondido lá, tem sim. Agora me diz, quem esconde bandido não é bandido também?”
(Depoimento)
61
.
Ora, como compatibilizar a fala geral de que favelado não é bandido, com o fato de
ser a favela lugar preferencial de bandido? Marilena Chauí, ao analisar a ambigüidade do
conformismo e resistência analisa as falas dos operários, onde estes:
“atribuem a pobreza à injustiça social, à ganância dos ricos, à migração. Mas muitos
também incorporando a ideologia dominante, atribuem a pobreza à falta de vontade para
enfrentar a dureza do trabalho, seja este qual for.”
(Chauí, M. 1986, p. 137)
um misto de mudança e de permanência nas falas dos vizinhos sobre a favela e
os favelados, pois a culpa ora é do favelado, ora é do poder público, ora é dos dois, ora é
dos ‘grandes’ que deixam as terras “valorizando”.
Alguns argumentos sobre mudanças das características das favelas, quando ocorre a
urbanização, são destacados não só pelos vizinhos, como pelos próprios favelados. As
vielas são menos sinuosas e, quando alargadas para a instalação de luz e água, permitem a
entrada de veículos, que tanto podem ser de particulares, como veículos da polícia ou de
ambulâncias. Para os vizinhos é considerado fundamental o acesso de veículos, pois isto
impede que continue como o lugar de “esconderijo” de bandido. Para o poder público
significa um enquadramento nas posturas municipais de urbanização. Os moradores das
favelas, ao serem consumidores-pagantes de água e de luz -, passam também a serem
61
Vejam-se também as notícias sobre a favela da Rocinha no Rio de Janeiro – maio/junho de 1988.
174
considerados trabalhadores. Mas há ainda o valor simbólico da abertura de vias e das contas
de luz e água. É usual comprovar-se o endereço através da apresentação de contas de água
ou luz, o que adquire um significado importante para o morador da favela. A luta por
instalação destes serviços compreende, pois, não apenas a necessidade material, mas
também o fato de ao ser um consumidor destes serviços, ser incluído na categoria de
cidadão. Ao que tudo indica, mora quem consome. é cidadão quem é consumidor
(Santos, Milton, op.cit).
também outros aspectos da urbanização das favelas que importa salientar.
Quando se urbaniza uma favela, retiram-se as características de insalubridade, de lugar de
esconderijo. Alteram-se, assim, as características do visível no espaço urbano. Hoje, em
algumas favelas como a São Jorge Posto ou Vila Operária principalmente nas ruas
lindeiras as características fisionômicas parecem semelhantes ao restante do bairro. Mas
limite de integração, pois o processo de crescimento e mudanças, no torvelino da cidade,
fará com que mude bastante a fisionomia dos edifícios destes bairros, mesmo considerando
os lotes padrões de 125 m2. Com o passar dos anos, através de pesquisas que procurem
verificar a forma de aprovação das plantas, ou de inquéritos junto aos antigos moradores é
que poder-se-á verificar que se trata de bairros onde as casas foram edificadas pelo sistema
de autoconstrução. Já nas favelas urbanizadas, edificadas em alvenaria, as dimensões muito
diminutas dos lotes imporão uma permanência das construções e consequentemente da
fisionomia.
Essa mudança do bairro, tanto pode ocorrer pela permanência dos moradores da
casa própria, que ao longo de muitos anos, constroem, aumentam e reformam a casa, como
também pela mudança de morador, que “expulso” para uma área mais pobre, é substituído
por moradores de renda mais elevada. De qualquer modo não uma visibilidade infinita
do processo construtivo. Este aspecto está intimamente ligado com a questão da terra
urbana e com o tamanho do lote. Considera-se que aqueles que não podem pagar
“merecem morar em lotes muito exíguos; assim, define-se uma “urbanização” para os
moradores favelados, em lotes de até 70 ou 90 m2, que imporá limites mais rígidos à
própria mudança.
175
Por outro lado, até hoje, apenas em alguns poucos municípios a questão da
legalidade da terra ocupada pelas favelas tem sido colocada pelo poder público. Para os
participantes dos movimentos de favelas concepções e questões diferentes em relação à
terra. O tamanho do lote não tem sido muito discutido. Em geral, quer-se o reconhecimento
de posse, da ocupação. Mas, quando se trata da forma deste reconhecimento da ocupação,
as diferenças são patentes.
O MDF Movimento de Defesa do Favelado e o MUF Movimento Unificado
de Favela e Promorar – consideram que o mais correto é, nas terras públicas de uso comum,
lutar pela concessão de Direito Real de Uso, sem pagamento de taxa. Consideram que
morar é um direito e que é dever do poder público garanti-lo. Consideram que moram em
favelas porque não podem pagar. Argumentam que não querem a propriedade e assim não
tem sentido pagar taxa para o Estado. Lutam também pela posse coletiva, ou seja, que suas
associações sejam reconhecidas como intermediadoras entre o poder público e o favelado,
sendo administradoras das áreas.
Mas é bom destacar, estas concepções são das lideranças que expressam a vontade
de parte apenas dos seus representados, pois, para a maioria, ainda interessa pagar pela
propriedade individual. Em geral, afirmam:
“não quero nada de graça, quero pagar, como puder”; a posse a gente tem, o que eu
quero é ter o papel dizendo que a terra e o barraco é meu, senão daqui a pouco, eles querem
expulsar a gente de novo”; “o que me interessa é a garantia que não vou sair, sem o papel
qual é a garantia?”
(Depoimentos)
Para as associações como o CORAFASP – Conselho Coordenador de Favelas -, esta
discussão sequer se coloca, pois aceitam inclusive pagar taxas pelo direito de uso.
Para as favelas que ocupam terrenos de propriedades particular, ou terrenos de bens
dominiais, a proposta dos movimentos é de obtenção do direito de usucapião. Os
movimentos pretendiam que este direito fosse atribuído após 3 anos de posse. No
Congresso Constituinte foi aprovado 5 anos de posse sem contestação por parte do
176
proprietário. Considera-se uma vitória poder ter no papel a garantia de usufruir de um
direito, que de fato já existe.
Após esta aprovação, que especifica o direito de usucapir apenas nas propriedades
particulares, fica a seguinte questão: Se os moradores pagarem pelo direito de uso nas áreas
públicas de uso comum, como será o usucapião de áreas particulares?
62
Sem dúvida, a proposta de Concessão de Direito Real de Uso, sem pagamento de
taxa e por um período de 90 anos é mais democrática, pois considera morar um direito e
que, dadas as características do lugar que ocupam e do tamanho do lote, é justo que não
paguem por um direito. Considerar ainda que não seria posse individual, mas da associação
que os representa seria ainda mais um avanço, no sentido da cooperativação, da
administração democrática. Mas como exigir de uma camada de trabalhadores, a mais
espoliada do meio urbano, que assuma este tipo de proposta, quando a todo o momento se
joga nos seus ombros a responsabilidade de não ter conseguido ser proprietário da casa
onde mora ou não ter subido na vida, por responsabilidade pessoal? Eis um desafio para as
lideranças dos movimentos. Penso que é também um desafio para melhor compreender a
questão da casa própria.
É preciso tentar não incorporar uma visão romântica, ou até idealista, das lutas pela
moradia. É necessário entendê-la como uma forma de expressão, pelo direito à cidadania,
não como a busca da propriedade que apenas aliena. Considerar que se vive no mesmo
modo de produção, na mesma sociedade, e imaginar que o sofrimento de morar e viver mal,
torna os indivíduos superiores, é ter uma visão idealista e romântica: sofrer purifica a
consciência. É considerar que a casa própria que conforto, também aliena. Significa que
são privilegiados aqueles que moram bem e mesmo assim não se alienam? É possível ao
morador espoliado compreender o fetiche da mercadoria terra e habitação, mesmo
considerando que não tem tempo de pensar sua condição de vida? Se vive-se em um modo
de produção que procura individualizar, como esperar que estes segmentos sociais prefiram
a cooperativação e a posse coletiva de uma casa/terreno? É preciso compreender o
significado das lutas pela moradia em sua complexidade. Entendê-la como uma luta
democrática pelo direito à cidade.
62
É bom frisar que para utilizar como moradia áreas de uso comum é necessário que o Executivo encaminhe e
que as Câmaras Municipais aprovem: Processo de desafetação das áreas.
177
Nas ocupações de terra, mantém-se a ambigüidade. Os proprietários utilizam
instrumentos jurídicos que permitem desocupar rapidamente a terra, com força policial,
através da Liminar de Reintegração de Posse; o poder público serve muitas vezes de
intermediário, e quando a desocupação demora, tem, como nas favelas, que arrumar um
lugar para os ocupantes despejados. Quando a ocupação ocorre em áreas de propriedade do
poder público, fica o receio, de que ao atender a população – que neste caso não é
considerada marginal e permitir a permanência nas áreas ocupadas, se constitua uma
forma de fazer proliferar as invasões. O termo invasão é utilizado pela grande imprensa e
pelo poder público. Os participantes dos movimentos se denominam ocupantes, o
invasores.
Apesar das tentativas de impedir a concretização das ocupações, estas não param de
crescer. Em Osasco, no movimento “Terra e Moradia”, há mais de mil famílias que
ocuparam três áreas. também as ocupações de um outro grupo, com número de
ocupantes desconhecido.
Em São Paulo, de 1981 a 1984, ocorreram 65 ocupações, sendo 18 em áreas
particulares e 27 em áreas do poder público, com 9.358 famílias (PMSP 1984). Mas, em
1987, já se calculavam 222 ocupações com 32.181 famílias (Revista Afinal, 1987). Assim,
apesar das tentativas de impedir as ocupações, estas não param de crescer, pois não é o
“fechamento de fronteiras”, ou seja, as desocupações, os muros e as cercas físicas e
ideológicas, que podem impedir a procura e o encontro de um lugar para morar.
Os ocupantes são, em geral, considerados trabalhadores que procuram um lugar para
morar. A repercussão dos vizinhos das áreas ocupadas depende do segmento social no qual
se inserem. Quando pertencem ao mesmo segmento, quando são inquilinos, manifestam-se
favoravelmente: “o terreno tava vazio, cheio de ratos, eles até tão limpando”; “este lugar
aí tinha até bandido escondido, o dono é poderoso, mas acho que eles fizeram bem”.
É claro que também contestações do tipo: “tem um ali que tem carro, porque ele
não compra uma casa?”. Indagado sobre se sabia o preço da casa e do carro (aliás uma
perua Kombi, adaptada para transportes), respondeu: “não sei, mas sei que pelo menos
para a entrada”. E como vai viver se utiliza o carro para transportar mercadorias e
178
sobreviver? “É, mas que ele tem carro tem, e que podia comprar uma casa podia”
(depoimentos).
Quando pertencem a segmentos sociais diferentes, consideram a ocupação coletiva
como favela e os moradores como marginais: “Se fosse trabalhador eu acharia correto,
mas tem muita gente aí no meio que não gosta de trabalhar” (depoimentos).
Embora a situação de moradia, do preço dos aluguéis, seja de domínio público, logo
após uma ocupação os integrantes dos movimentos e as comunidades CEBs procuram
mostrar, através de carta distribuída aos vizinhos, que a ocupação foi feita com
arruamentos, que os barracos logo serão substituídos por casa de alvenaria. Além disso,
explicam que não são favelados. Há, assim,entre os ocupantes uma visão, ao mesmo tempo,
da favela como lugar de trabalhador e de marginal. Se indagados sobre quais as diferenças
entre eles (ocupantes e favelados) não sabem dizer, apenas afirmam que é diferente.
Mas, ao mesmo tempo, no processo de organização, alguns participantes desistem
porque não podiam mais esperar e encontraram lugar na favela. Para os que puderam
esperar mais um pouco, esta atitude é criticada. “Deus me livre, ir pra favela. Olha, ta
perigando eu ficar com os móveis na rua, mas pra favela eu não vou” (depoimento). o
favelado quer ir para a ocupação. Considera que o povo é melhor, pois ta organizado: “Não
é como aqui (na favela), que é cada um por si, sem união” (depoimento). E, mais do que
isso, vê mais próxima a possibilidade de ter sua casa própria.
Em uma série de depoimentos, na favela vizinha ao Jardim Veloso, área ocupada em
Osasco, constatei que muitos favelados esperavam poder mudar da favela para a ocupação,
pois também verificavam a possibilidade de comprar um lote. Os ocupantes têm clareza que
estão provisoriamente sem pagar, mas que deverão comprar a terra ocupada. E, via de
regra, querem pagar pela terra a quantia que seu salário permitir. As lutas são pelo direito à
moradia, que compreende num primeiro momento a ocupação da terra. Esses movimentos
consideram que a luta pela justiça social passa pelo direito de ter uma casa digna para
morar.
oOo
179
3.4. O Processo de Resistência as Falas e as Práticas dos Ocupantes e dos Favelados A
Constituição dos Novos Sujeitos
Embora esteja presente nas partes anteriores deste trabalho o processo de resistência
dos favelados e dos ocupantes, pois na realidade todos fazem parte do mesmo processo,
faço aqui um breve apanhado das mudanças visíveis nas falas e nas práticas destes grupos.
A impossibilidade de pagar aluguel, de comprar casa ou terreno, mesmo que em
áreas distantes, torna necessário buscar uma alternativa para morar. Individualmente a
favela acaba sendo a solução. Mesmo para os que acham que favela é lugar de marginal,
esta acaba sendo uma solução “natural”. Muda-se para a favela e tenta-se conviver com
quem não é marginal.
Doracy Resuenho relata como foi o seu processo de ir morar na favela: chegando
em São Paulo em dezembro de 1975, mora com o marido e crianças em pensões, até
conseguir um quarto de aluguel. O quarto onde morava tinha uma favela nas vizinhanças.
Começa a verificar o que acontece nesta favela. Procura contatos com os moradores, vê que
não são marginais e, à revelia do marido, começa a procurar um barraco para comprar. Seu
marido, completamente contrário à idéia, pois considera que favela é lugar de marginal,
acaba sendo convencido pela necessidade a ir morar na favela (Resuenho, Doracy,, 1983).
O processo de chegar à favela é semelhante ao de muitos outros, como pude ver na
pesquisa de campo. A diferença fundamental é que Doracy pensa a sua condição de
moradora da cidade que não pode pagar aluguel e escreve um verdadeiro livro sobre sua
condição de vida, onde relata como se a mudança para a favela, as lutas por água e luz,
os conflitos com os vizinhos, a atuação da Igreja, da Prefeitura e a urbanização das favelas.
Pensa a sua condição de favelada, expressa no documento supra citado, o que permite,
junto com os resultados da pesquisa de campo, com outros moradores, tecer uma série de
considerações.
A produção da favela pressupõe um conhecimento da cidade e de certa forma da
legislação do uso do solo urbano, que possibilita saber quais áreas ou terrenos podem ser
“ocupados”, com a construção de um barraco, “burlando” a legislação vigente,
apropriando-se de um espaço de propriedade definida, porém sem uso. Um indicador desse
180
conhecimento da cidade refere-se ao fato de que, em São Paulo, 45,5% dos barracos
ocupam áreas de propriedade do poder público municipal (em geral, áreas de uso comum
sob a guarda da Prefeitura); 30,8% estão instalados em áreas, em que parte é particular e
parte do poder público
63
.
Outro aspecto, refere-se às características dos terrenos ocupados: margens de
córregos com inundações freqüentes; áreas de alta declividade com deslizamentos
constantes, etc. (Rodrigues, A. M., 1981). Os favelados ocupam os “piores” terrenos, pois a
própria existência de vida lhes ensinou que nestes lugares é possível permanecer por
mais tempo, pois a longa peregrinação de bairro a bairro, da alvenaria para a favela,
ensinou que nestes lugares é possível permanecer. “Não adianta a gente querer um lugar
sem enchentes, lá não deixam a gente ficar por muito tempo” (Depoimentos).
A “descoberta” destes espaços é dada por indicação de parentes e conhecidos, por
olhar e procurar um jeito de construir um barraco. Amigos, conhecidos ou parentes, podem
indicar uma favela, porque moram no local: pode-se conversar com os moradores da
favela, expondo sua situação e conseguindo permissão para construir um barraco ou
comprando, quando barracos para a venda; pode-se pesquisar uma área desocupada
conversando com os moradores da vizinhança -, caso dos moradores que iniciaram favelas.
O processo de começar individualmente uma ocupação, não tem sido usual nos últimos
anos, pois tanto as áreas “possíveis” já estão ocupadas, como o processo atual mais
freqüente tem sido o de organizar-se coletivamente para ocupar uma área vazia.
A ocupação cotidiana e individual não é a norma geral, mesmo nas favelas antigas.
Na favela São Jorge Posto, hoje Vila Operária, os primeiros moradores descobriram” a
área e individualmente foram ocupando-a. No entanto, na metade da década de 70, os
demais moradores entraram todos ao mesmo tempo, organizando as ruas, e alocando-se de
acordo com a determinação do então “líder”, que posteriormente foi eleito Presidente da
Favela, sendo considerado por todos os moradores um verdadeiro lutador e benfeitor.
As declarações das lideranças femininas mostram como foi esta chegada conjunta:
“Eu morava lá na favela São Jorge, e era um lugar ruim, quando soube dessa organização,
vim aqui conversar e peguei meu barraco e mudei para ”; “Eu morava com minha filha
63
Via de regra, a ocupação inicia-se nas áreas municipais e expande-se para as vizinhanças.
181
casada, era duas famílias num barraco pequeno, num fundo de um terreno, então vim aqui
para ver. em casa todo mundo dizia, você ta maluca, ir morar na favela. E, se os
homens da Prefeitura vão tirar todo mundo? Mas eu tive coragem e mudamos todos,
estamos aqui faz mais de 10 anos. Minha casa é metade de madeira e metade de bloco, mas
devagar a gente vai construindo”. (Depoimentos).
Os primeiros moradores descobriram a área, olhando e procurando um lugar para
morar: “Quando s viemos para cá, era tudo um barro só. Nem o bairro tinha qualquer
melhoramento. A gente pegava um caminhão, da empresa – tal e ia até o ponto de ônibus.
Depois foi chegando mais gente e se organizando, entrou o resto, tudo de uma vez só.
Era bonito todo mundo construindo e o presidente dizendo onde se podia construir”
(Depoimento).
Verifica-se, então, que tanto a ocupação pode ser a construção de um barraco de
cada vez, como de um conjunto de barracos de uma vez. Difere do movimento coletivo
no qual uma organização prévia. É saber que isto está sendo permitido e entrar com
autorização do Presidente. Este processo de entrada coletiva ocorreu na administração do
Prefeito Reinaldo de Barros, e depoimentos que afirmam que este procedimento era
usual e que fazia parte da sua campanha para governador. dissemos, também, que nesta
área, a atual liderança é reinaldista (mais do que do PDS), o que pode indicar, mas não
comprovar, ter sido esta ocupação incentivada, ainda mais que esta foi a primeira favela a
ser “urbanizada” em São Paulo.
Este processo cotidiano e individual não é independente, pois pressupõe saber onde
encontrar uma área, como construir um barraco e como permanecer na própria área.
Entendo, como Agnes Heller, que:
“A vida cotidiana não está ‘fora’ da história, mas no centro do acontecer histórico: é a
verdadeira ‘essência’ da substância social... A vida cotidiana é a vida do indivíduo. O
indivíduo é sempre ser material e ser genérico... enquanto indivíduo o homem é ser
genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do
desenvolvimento humano...”
(Heller, A., 1985, p. 20 e 21)
182
Portanto, ao produzir, cotidianamente, o lugar de moradia, está-se produzindo e
reproduzindo as condições sociais de existência, expressão de relações sociais.
Em momentos de conflito, torna-se mais visível o processo de organização dos
moradores de áreas ocupadas. As lutas dos favelados começam a expressar-se quando
negam a remoção, pois sabem o seu significado: ir para longe, o ter nas proximidades
nenhuma forma de obter luz e água, escolas; a possibilidade de, muitas vezes, perder o
emprego, etc. “Descobrem” que a resolução individual de obter água e luz empréstimo
dos vizinhos faz com que paguem altas taxas por este serviço. Então, é hora de organizar-
se, fazer “peregrinações” para a expansão das redes nas favelas, pois sabem que serão
atendidos pela força de pressão. Se a gente juntar muitos interessados e ir todo mundo,
pode ser que os homens atendem a gente, porque se for meia dúzia, eles não atendem
mesmo” (depoimentos). Lutam pela permanência no lugar já ocupado, ficando implícitas as
garantias de “direitos” e de cidadania. É claro que estão presentes nesta organização, a
igreja, os partidos, a esquerda, as diferentes experiências de vida e de moradia nas cidades.
A luz e a água são direitos, a “conta” de luz e de água transformam-no cidadão
poder comprovar o endereço, comprar a prazo, receber cartas, etc. Esta “cidadania”
expressa-se de várias formas. Quando da pesquisa de campo, perguntei por uma moradora
de uma favela do Butantã. Como resposta obtive a pergunta: “Qual é o endereço?”. Eu não
sabia o endereço, aliás estava procurando no bairro errado: “Todo mundo, aqui tem
endereço. Com o endereço é fácil, mas assim, ninguém sabe onde é, pois a gente não fica
sabendo da vida uns dos outros, os vizinhos próximos se conhecem, o resto do pessoal
com endereço, certo. Olha lá (apontando para um barraco com uma placa) rua tal. E as
casas todas numeradas”,
Deduz-se, assim, que não a luz e a água, mas também, o endereço conferem
cidadania aos favelados. Além disso, ao frisar que nem todo mundo se conhece, foi
colocado claramente que os favelados o ficam na rua, sabendo da vida de todo mundo,
mas que conhecem alguns. Mas: “vai até a casa do sr. Fulano, que é da Sociedade
(diretoria da favela), que ele é que distribui as contas de luz e o ‘ticket’ de leite. Ele talvez
conheça pelo nome”.
183
Fica evidente que ter endereçoconfere uma cidadania, pois o favelado é, como
todos os moradores da cidade, encontrável por seu endereço. Mas é preciso também
compreender que esta cidadania é parcial, pois se nos bairros a distribuição da conta de luz
é serviço público, na favela fica por conta dos moradores, que não ganham pelo trabalho
realizado. Passam a serem responsáveis pela administração e pelo trabalho, enquanto nas
demais áreas esta administração é serviço público.
Entra na conversa um outro vizinho, que diz: “qual é profissão da pessoa? Sabe
dona, aqui, todo mundo é conhecido pela profissão”.
Esta fala demonstra que é preciso frisar que os favelados são trabalhadores, que são
conhecidos pela sua profissão. Paul Singer, em uma análise sobre as estratégias de combate
ao desemprego, diz que um diagnóstico antigo é dizer que o desemprego é causado pela
deficiência de oferta da força de trabalho, ou seja, estão desempregados porque não
desejam trabalhar. Consequentemente o combate ao desemprego consiste no combate à
vadiagem. (Singer, 1985). Este “combate à vadiagem” é expresso nas batidas policiais, nas
quais são “detidos para averiguações” aqueles que não têm carteira assinada.
Ora, tradicionalmente favela é “lugar de vadio”. Na favela deste morador, as
pessoas são conhecidas pela sua profissão. Quem não tem profissão, ou não mora na favela,
ou não é conhecido, pois vadio não se conhece.
A luta pela cidadania tem sua representatividade tanto nas falas sobre o trabalho
como sobre a sua inserção no urbano. Na constituição desses novos sujeitos coletivos, na
busca de um lugar para morar, está presente o encontro de uma identidade, de moradores
que buscam obter direitos, de moradores que não são marginais. Mas, é preciso considerar
que as mistificações continuam presentes. A distribuição das contas de luz é um encargo
dos moradores. Para os demais cidadãos é um serviço público. O que fica evidente é que
são cidadãos de uma “categoria” inferior.
Voltamos às questões iniciais deste trabalho. Parece que recebem pouco, o
merecem ser cidadãos completos, e devem, portanto, arcar com um sobre-trabalho, para
obter um serviço, o serviço público se torna privado (ou o público de um grupo
responsável). Embora na maioria das favelas tenham-se realizado arruamentos, inclusive
com endereços, eles não são oficiais, não constam dos guias oficiais e nem de mapeamentos
184
da cidade. É uma cidadania ainda restrita, o espaço é sempre muito reduzido. As ruas são
estreitas, as casas/barracos pequenas, mal construídas, sujas, os serviços ficam restritos às
ruas “principais”. Nas outras vielas, embora seja possível o trânsito de veículos, o caminhão
de coleta de lixo não entra, o carteiro, mesmo a pé, também não.
Fica evidente que são obtidos apenas parcialmente os direitos pelos quais lutam.
Mas, nesse processo, constituem-se com uma identidade de cidadãos. Nas ocupações o
arruamento tem sido pensado pelos próprios ocupantes, estes se incluindo como
categoria que sabe pensar a cidade, que compreende a cidade, que sabe organizar-se do
mesmo modo que o setor público e a classe dominante. Definem-se ruas com largura
oficial, lotes com a metragem de lei, deixam reservados os lugares para praça, escolas, etc.
Inclusive não aceitam metragens de lotes inferiores quando negociam com a Prefeitura,
pois argumentam que se o lote for menor que 125 m2, serão considerados favelados, não
terão o título de propriedade, o que: “não é de lei e de direito” (depoimentos).
As discussões teóricas sobre a constituição dos sujeitos coletivos nos movimentos
sociais urbanos; a representação e a representatividade destes novos sujeitos coletivos; a
identidade pública e a identificação dos novos sujeitos coletivos com a política e com os
políticos partidários; os aspectos que fazem eclodir com intensidade na década de 70 estes
movimentos reivindicatórios; a revelação do novo e o velho contidos nos movimentos, das
novas falas e das novas matrizes discursivas, foram feitas por vários autores, que tem
desvendado algumas questões importantes
64
.
Considero que os movimentos por moradia permitem uma nova representação do
urbano para os moradores espoliados. A amplitude da organização destes movimentos na
década de 70, aumenta sua representatividade política. Constituem-se nesse processo como
sujeitos políticos, ampliando e até criando novos espaços de visibilidade pública, sendo
entrevistados pela imprensa (jornais, rádio e TV), trazendo para o espaço da riqueza as lutas
das periferias distantes, concentrando-se em gabinetes de prefeitos, de empresas públicas
de serviços de água e de luz, de secretarias de habitação. Trazem, em São Paulo, por
exemplo, para o Parque do Ibirapuera ou para a Avenida Paulista, lugares onde imperam os
64
Veja-se a respeito, entre outros: Sader, Eder 1987, 1984; Evers, Tilman – 1984
a, 1984 b; Valla, Vicent
1986; Kowarick, Lúcio – 1979, 1983; Silva, L.A.M e Ribeiro, A.C.T. – 1986, Teles, Vera S. – 1986; Durhan,
Eunice – 1984.
185
serviços ou as moradias de alto padrão, um pouco da pobreza da periferia. Ao mesmo
tempo deparam-se com uma situação de riqueza, não visível na periferia (exceto é claro,
pela televisão).
Passam a ter nova representação e representatividade. Constituem-se como sujeitos
coletivos com uma identidade elaborada e reelaborada, onde está presente o novo dessa
constituição e o velho das elaborações sobre a terra e a moradia na cidade. Constituem-se
novos sujeitos e novas matrizes discursivas.
Nesse processo, o interlocutor privilegiado é o Estado, principalmente representado
pelo poder público local.
O poder público é considerado o provedor e o inimigo. O provedor, pois é o Estado,
que se encarregará da produção dos valores-de-uso, necessários à reprodução do capital e
da força-de-trabalho: dos meios e equipamentos de consumo coletivo. Quando as
reivindicações são atendidas, há várias formas de se colocar a questão. Para uns, é resultado
da luta: “Não fez mais do que seu dever com a gente”; “Foi a gente que conquistou”; “Foi o
fruto dessa caminhada”. Outros, embora também participantes da luta, dizem: “Nunca mais
o fulano perde uma eleição aqui”; “Se não fosse o prefeito..., que deu para a gente a
urbanização, não sei não”; “Se o prefeito quiser ele nos tira daqui, então é ele que ta
deixando a gente ficar”. Para outros, mesmo considerando a diferença de governos
municipais, é evidente que o poder público só age sob pressão: “Se a gente não pressiona, o
prefeito não faz nada”; “Se fosse outro governo, como é em São Paulo com o Jânio, a
gente não conseguia nada” (depoimentos).
Faz-se toda uma série de considerações sobre a institucionalização dos movimentos
e seu conseqüente aprisionamento pelo Estado. Quando o Estado define que se lida com
lideranças, ou com representantes das associações, está induzindo a institucionalização.
Mas este ponto é também importante para os movimentos. Construir associações
independentes, promover eleições, é um processo democrático, considerado muito
importante pelos movimentos. A cooptação é considerada um problema, mas isto depende
de um processo de conscientização.
Sem dúvida, é visível nos depoimentos acima a ligação contraditória com o Estado
provedor/inimigo. Em algumas áreas pesquisadas, detectei a indignação dos moradores pela
186
ligação de presidentes de associações com o governo: O presidente daqui é safado, tem
ligação com o pessoal do prefeito”. Mas quando esta ligação significa obter o
atendimento, a indignação, embora exista, é mais contida: “Ele é ligado no governo,
quando precisa chama a gente e nós vamos todos, porque é para conseguir melhoria
né?”(depoimentos).
Seria reduzir o processo de organização da população considerá-la como mero
instrumento de manipulação, não compreendendo que neste processo de mudança o próprio
Estado também se modifica (Castels, 1974). Se não na sua totalidade, pelo menos em
relação a alguns setores ou agências estatais, pois como diz Benício Schmidt:
“Há processos contraditórios da ação do Estado entre os segmentos do aparelho estatal que
representam interesses das classes dominantes e os que representam os das “dominadas”.
(Schmidt, B., 1983)
Mesmo porque, como já vimos, trabalha-se nas agências estatais, nas diferentes
esferas do poder, com diferentes setores da população, que também fazem parte de um
processo de contínua mutação.
Quando se institucionalizam programas como os de mutirão, corre-se o risco de
retirar as características organizativas da população, deixando para os trabalhadores apenas
o difícil encargo de trabalhar duplamente: para garantir a sua subsistência, recebendo um
salário baixo; e trabalhar no seu “descanso” para conseguir uma moradia. Ora, pela lei do
salário mínimo, este deveria garantir o direito à moradia (Rodrigues, A. M., 1988)
Quando o Estado atua atendendo as reivindicações, colocando água e luz nas
favelas, priorizando a autoconstrução (fornecendo os técnicos para definir padrões
construtivos), está sem dúvida fazendo com que apareça como um “benfeitor” que fornece
ao trabalhador uma forma de melhorar de vida. Mantêm assim o fetiche da mercadoria em
sua complexidade. Pois parece que não é o trabalhador que, pelo seu trabalho, contribui
para receber uma parte do seu direito, mas sim o Estado que lhe dá, por vontade dos
governantes, um forma de melhorar de condição de vida, desde que trabalhe mais um
pouco.
187
Mas é importante salientar que os movimentos de moradia consideram o processo
construtivo em mutirão como uma forma organizativa importante. Preferem o mutirão, pois
além da habitação ficar mais acessível ao seu bolso (pois não são computados os custos do
seu trabalho), retiram-se os ganhos elevados das empreiteras e podem em cada etapa da
construção discutir com seus pares o processo construtivo e a sua organização (vide
Bonduck, Nabil, op. cit. e Maricato, E. op. cit.).
Os movimentos ganham uma expressão e visibilidade política através de suas
organizações, de suas lutas, de seus encontros locais, regionais e nacionais, que passam a
ser noticiados em jornais e revistas. Ainda, dada a própria dificuldade de se compreender a
cidade, ocorrem fragmentadamente. Não há, em um primeiro momento, encontros de vários
tipos de moradores: reúnem-se os favelados de um lado, os inquilinos de outro, os
mutuários da COHAB em outro lugar, os moradores de bairro nas SABs, etc. Cada
agrupamento discute questões e reivindicações específicas, para o lugar onde moram, ou,
quando se reúnem por regiões e Estados, ou para o tipo de moradia agrupado.
Durante o ano de 1987, a cidade é discutida em toda a sua complexidade, no
processo de elaboração da Proposta de Iniciativa Popular na Constituinte sobre a Reforma
Urbana. É um momento privilegiado em que representantes dos diversos movimentos a
nível nacional se encontram para debater suas necessidades e sua condição de vida urbana.
Discutem-se estas necessidades, as carências urbanas, no processo de produção da cidade e
da moradia em seu conjunto. Extrapola-se nas discussões a visão fragmentada do espaço
urbano. Passa-se para um conhecimento da produção, da ocupação do espaço em sua
complexidade. Discute-se a competência e a atuação do poder blico, a participação dos
partidos políticos e da Igreja nessa luta. Os temas abordados na proposta levam em conta os
direitos urbanos, a necessidade de imposição de limites à propriedade imobiliária, a política
habitacional, os transportes e os serviços públicos e a gestão democrática das cidades
(Rodrigues, A. M., 1988).
Embora aparentemente restrita fundamentalmente à questão da moradia e dos
transportes coletivos, trata-se de proposta de uma política urbana anti-segregativa, o oposto
dos espaços segmentados da cidade capitalista. Trata-se de um momento de encontro das
reivindicações sobre o urbano em uma proposta comum em que inquilinos, mutuários do
188
SFH, favelados, encortiçados, ocupantes, se uniram para debater a cidade em que
pretendem morar.
As práticas cotidianas de apropriação e produção do espaço urbano deixam, através
de um processo organizativo, de ser entendidas apenas como resultado de um esforço
individual, segmentado, para assumir sua verdadeira feição de uma luta pela produção do
espaço não segmentado, cuja produção é social. Mas seria ilusório pensar que todos os
moradores de favelas, cortiços, ocupantes de terra tenham esta dimensão da cidade. Mesmo
os que participam de movimentos organizados não tem a mesma compreensão da produção
do espaço urbano, mas é necessário continuar o processo para redefinir a compreensão da
produção e do consumo da cidade.
oOo
189
3.5. O Congresso Constituinte e a Reforma Urbana
Uma das questões muito debatidas desde a década de 60, tem sido o crescimento
populacional urbano, a carência dos meios de consumo coletivos, denominados por crise
urbana e as formas para resolver estas carências, através do planejamento urbano.
Embora seja um tema bastante debatido, há muitas abordagens diferentes. Para
determinadas vertentes, como o FNUAP Fundo das Nações Unidas para Atividades em
Matéria de População, a pobreza urbana está diretamente relacionada com o crescimento
considerado explosivo da população urbana. Para resolver o problema das carências de
serviços públicos e da pobreza, consideram necessário, planejar o crescimento das cidades.
Mas, para que o planejamento seja eficaz, definem, também, a necessidade de limitar o
crescimento das cidades, através da fixação da população no campo e de um controle do
crescimento demográfico (FNUAP Op. cit.). Limitar o crescimento da população através
do controle do crescimento vegetativo, não está explícito em todos os que consideram que a
crise urbana será resolvida pelo planejamento e desenvolvimento urbano. Mas, de qualquer
modo, avaliam que a crise urbana é causada tanto pelo crescimento populacional elevado
como pela ausência de investimentos estatais, ou seja, um planejamento para as cidades.
Para uma outra vertente, a crise urbana não seria resolvida pelo planejamento das
cidades, pois, como diz Castels:
“a crise urbana é conhecida por todos os habitantes da cidade e provém da crescente
incapacidade da organização capitalista em assegurar a produção, distribuição e gestão dos
meios de consumo coletivos, necessários à vida cotidiana, das moradias às escolas,
passando pelos transportes, saúde, áreas verdes, etc.
Mas essa crise não é a simples deficiência do sistema econômico: é uma conseqüência
necessária à lógica do desenvolvimento capitalista, a menos que essa lógica seja
contraditada historicamente pelos efeitos produzidos na luta de classes”.
(Castels, M., 1980, p. 20)
A crise urbana é inerente ao desenvolvimento do sistema capitalista, pois, como
foi visto, o processo de urbanização capitalista caracteriza-se por ter uma multitude de
190
processos privados de apropriação do espaço, cada um deles com seu modo especifico de
valorização do capital, que será expresso nas cidades capitalistas.
A crise urbana é a crise do capitalismo expressa nas cidades. Tem sido, para os
países da América Latina, considerada mais profunda do que a própria crise do capitalismo
dos anos 80, pois como implicação da própria crise internacional, e por ingerência dos
credores internacionais, tem havido uma sistemática redução dos investimentos do setor
público na área urbana, consequentemente a deficiência dos serviços públicos se agudiza.
Evidentemente, pelo menos ao nível dos discursos, procura-se sanear as crises,
através de um instrumental técnico adequado, investindo-se no processo de expansão das
cidades. Desenvolve-se toda uma tecnologia para procurar resolver os problemas urbanos.
O termo desenvolvimento urbano, tão usual desde a década de 60: “integra e veicula uma
visão ideológica que tecnifica a discussão sobre a realidade urbana” (Ribeiro, L. C. Q., Op.
cit., p. 6). Busca-se corrigir os desvios” através de um aparato institucional que elabora
normas para o planejamento urbano.
No caso do Brasil, relacionado às questões de moradia, elaboram-se uma série de
instrumentos de análises, de planos, de projetos, para “organizar” a produção das cidades e
nas cidades, buscando-se uma nova ordenação espacial. No s-64, as medidas de
intervenção no espaço urbano consubstanciam-se na criação do Banco Nacional de
Habitação, que determinará as normas gerais para intervenção nas cidades, privilegiando a
política habitacional
65
.
Busca-se, através do planejamento urbano, resolver as “carências”. Têm-se tratado a
questão como eminentemente técnica. uma dissimulação da questão política, pois
sempre se tem colocado que: “a proposta é a mais viável tecnicamente; é a mais
eficiente...”. O Estado, ao atuar no urbano, politiza a questão da produção, da distribuição e
do uso deste espaço, mas disfarça, tentando fazer com que suas intervenções sejam tomadas
como ideologicamente neutras. A suposta neutralidade do Estado não resiste a uma análise
mais profunda, pois como diz Benício Schmidt:
65
Veja-se a respeito das políticas de urbanização: Davidovich. P., 1984; Schmidt, B., Op. Cit.; Levy, E.,
1984.
191
“O Estado, ao intervir pelo planejamento e pelos investimentos, especialmente quando
redefine os padrões de uso do solo das cidades ou quando estabelece normas, pelas quais as
áreas urbanizáveis deverão ser ocupadas, está politizando a questão urbana”.
(Schmidt, B., 1982, p. 29)
O Estado politiza as questões urbanas quando, ao definir os padrões de uso do solo,
delimita também quais os tamanhos de lotes que “cabema cada um nas cidades; quando
define em que áreas deverão ser priorizadas a instalação de redes de abastecimento dos
equipamentos e serviços coletivos; quando define que a terra deve ter um preço (como
ocorreu em 1850, por exemplo, com a Lei de Terras), e quem não puder pagar por ela,
mesmo que esteja em sua posse, deve ser desalojado; quando define que a terra é de quem
tem o título e não de quem a ocupa.
Mas se o Estado aparece como um suposto mecanismo neutralizador das disputas,
das disparidades sociais expressas nas cidades, o mesmo não se pode falar dos movimentos
reivindicatórios urbanos. Sem dúvida, como diz ainda Benício Schmidt:
“a mobilização por interesses concretos face ao uso e acesso a equipamentos coletivos, por
exemplo, o maneiras de politizar o espaço. É o uso e as disponibilidades de bens no
espaço que estão em jogo”.
(idem, p. 29)
E esta politização, tornou-se evidente na discussão do Congresso Constituinte.
Utilizando-se de um dispositivo regimental que permitia que 30.000 eleitores
encaminhasses propostas de Emendas à Constituição, com a garantia que seriam debatidas,
os movimentos por moradia, transportes, elaboraram uma proposta de Reforma Urbana que
contou com o apoio de mais de 160.000 eleitores, que a assinaram. A elaboração de várias
propostas de Iniciativa Popular na Constituinte, centralizadas no Plenário Pró-Participação
na Constituinte, mostrou a disposição de setores populares de intervir nos destinos do país.
No caso da Proposta da Reforma Urbana é uma plataforma que expressa as forças sociais
que participaram da sua elaboração. Diz Ermínia Maricato, que:
192
“sua formulação seria inviável se não fosse precedida de um certo acumulo de proposições
e reflexões, realizadas por entidades ligadas às lutas urbanas: mutuários, inquilinos,
posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados, etc. ... Cumpre
assinalar que esta proposta reflete um momento do processo de discussão da reforma urbana
e expressa muito mais as questões relacionadas às moradias... Constituem um primeiro
passo para pensar a cidade”.
(Maricato, E., 1988, p. 10)
As propostas contidas nas Iniciativas Populares foram debatidas em plenário
praticamente vazio. Estabeleceu-se que cada proposta de Emenda Popular deveria indicar
um relator para defender a proposta no horário noturno. Os deputados e senadores eleitos
para elaborar a Constituição deram pouca importância a estas apresentações e defesas das
propostas. Os meios de comunicação também deram destaques apenas a alguns aspectos ou
algumas propostas. Viu-se mais na imprensa a iniciativa popular que defendia a volta da
monarquia do que a discussão da reforma urbana, da agrária ou de ensino.
A Universidade Estadual de São Paulo, promoveu em outubro de 1987, um
simpósio sobre: O Brasil Urbano na Constituição. Foram distribuídos aos participantes
documentos muito valiosos e volumosos, no entanto, a proposta da Iniciativa Popular sobre
a Reforma Urbana que com as 160.000 assinaturas -, havia sido entregue em Brasília,
não constou dos documentos, o que mostra também uma desvinculação entre setores da
sociedade que se propuseram a discutir a Reforma Urbana no Congresso Constituinte. Da
proposta da Iniciativa Popular, alguns aspectos foram incorporados, embora com redação
diferente, na proposta da Comissão de Sistematização, poucos foram os avanços
conseguidos em relação à proposta elaborada pelos movimentos populares.
A discussão entre os movimentos levou a uma superação da visão compartimentada
do espaço urbano e da visão urbano-rural. A função social da propriedade foi discutida
entre os movimentos rurais e urbanos e redigidos de modo a não ser antagônica nas duas
propostas. É evidente que, se os movimentos populares se organizaram para esta superação
da compartimentação, os setores dominantes também o fizeram. Aprovar alguns aspectos
de proposta da Reforma Urbana, mesmo atendendo interesses dos setores da indústria da
construção, iria “ferir” os interesses dos proprietários de terras rurais, organizados na auto-
denominada UDR União Democrática Ruralista. Mesmo considerando que não uma
“classe” de proprietários urbanos de terra, organiza-se nas cidades um segmento da UDR o
193
chamado MDU Movimento Democrático Urbano -, pois admitem, que abrir “brechas”
para a questão da desapropriação urbana, para a intervenção pública, seria também uma
possibilidade de intervir-se na área rural. E se tem como resultado frágeis e pequenas
conquistas relacionadas à questão urbana em que pese que mais de 70% da população
brasileira more nas cidades, em que pese a situação precária de vida da maioria desta
população, a questão urbana teve, no Congresso Constituinte, poucos avanços, muito
embora a Emenda Popular da Reforma Urbana nada tivesse de socializante.
Além disso, é bom frisar, que mesmo os partidos comprometidos com as classes
populares” m dado pouca atenção a questão urbana. É possível que esta pouca atenção
dos partidos políticos mais progressistas esteja vinculada ao fato de considerar-se a luta
pela moradia, como uma luta pelo consumo, sendo assim uma questão secundária. Mas a
luta pela reforma urbana não está limitada à luta pela casa própria. Extrapola em muito esse
limite, como se pode observar pelos principais pontos propostos pela Emenda Popular:
1) regime de propriedade:
A proposta da Emenda Popular, submete a propriedade à função social estabelecendo os
critérios e as bases para definir se a propriedade está cumprindo esta função. Uma
discussão importante que os movimentos tiveram é que não basta dizer função social da
propriedade: “se uma terra vazia, se a lei diz que esta terra não pode ficar vazia, então o
cara coloca um barraco e usa como estacionamento, então ta cumprindo a função
social?” (depoimento). Fica evidente que é necessário definir o que é entendido por função
social da propriedade. Esta questão, na Emenda Popular, está relacionada com a
desapropriação.
Mas é bom relembrar, que a propriedade, abusivamente concentrada ou não,
improdutiva ou não, está na verdade cumprindo a função social que lhe é inerente, ou seja,
permitir que alguns indivíduos se apropriem da produção social.
Foi aprovado que a propriedade urbana cumpre sua função quando atende ao
estabelecido pelo Plano Diretor, a ser elaborado nas cidades com mais de 20.000 habitantes.
194
Portanto é preciso esperar para saber se as glebas vazias, sem uso, cumprem ou não sua
função social. Ou então, no caso de São Paulo, em que como diz Cândido Malta:
“veremos que na cidade de São Paulo, se aprovada esta proposta do Plano Diretor da
Administração Jânio Quadros, estaremos... definindo como função social o uso da
propriedade em excesso, que joga os custos da infra-estrutura adicional requerido por este
excesso sobre a maioria da população: os assalariados”
(Malta, Cândido., FSP – 7/7/88)
Com a necessidade de elaboração de Plano Diretor, possivelmente aumentarão os
escritórios de representação e de elaboração dos planos diretores, criando muitos empregos
de nível técnico. Existem grandes defensores desta questão, retomando-se o planejamento
urbano como solução para os problemas urbanos, tais como o secretário da Sociedade
Brasileira de Direito Ambiental, que afirma:
“O principal mérito dos nossos constituintes, na aprovação do capítulo da Política Urbana,
foi o de obrigar que os Municípios com mais de 20.000 habitantes possuam um Plano
Diretor, aprovado por Lei, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana. O planejamento urbano tão decantado nos idos de 1960 e anos
posteriores, embora uma necessidade racional agudamente sentida pelos técnicos e pelos
juristas, havia caído em total esquecimento”.
(Mukai, Toshio. FSP, 30/6/1988)
2) Desapropriação:
Na proposta da Iniciativa Popular, quando fosse necessário, a desapropriação da
casa própria, o pagamento deveria ser prévio, em dinheiro e pelo valor justo. Como
consideram morar um direito, como entendem que muitas vezes é necessário desapropriar
para abrir avenidas ou construir equipamentos, é preciso prever que muita gente, quando é
desapropriado, não consegue comprar outra casa para morar. Indagados se não importava o
tamanho da casa, a discussão foi no sentido de alertar “que quem mora em mansão, antes de
195
construir, até tinha tudo perto, o mais difícil é para quem mora num lugar sem nada e
quando chegam os serviços ele tem que sair” (depoimentos).
Nos demais casos, o pagamento da indenização poderia ser em títulos de dívida
pública, pagável em 20 anos. É patente a importância atribuída à casa própria e à função
social, pois as outras áreas, por não estarem cumprindo sua função social, poderiam ser
pagas ao longo do tempo.
Foi aprovado que o pagamento será sempre em prévia e justa indenização em
dinheiro, exceto para as áreas ociosas ou subutilizadas que serão definidas pelo Plano
Diretor.
3) Solo Urbano Ocioso ou Subutilizado:
A Emenda Popular, propunha tributação progressiva, desapropriação por interesse
social ou
parcelamento e edificação compulsórios como uma forma de induzir a
ocupação, aumentar o valor dos recursos municipais, diminuir o déficit de equipamentos
urbanos, com a construção da cidade em um “continuum” urbano, diminuindo os custos de
infra-estrutura
66
.
Aprovou-se a aplicação sucessiva de parcelamento ou edificação compulsória,
imposto progressivo no tempo e desapropriação em títulos de dívida pública em 10 anos,
pelo valor real e juros legais. Costuma-se debitar à falta de recursos para desapropriações o
principal motivo da fraca produção de habitação para a faixa de interesse social”. Com
estes dispositivos aprovados, pode manter-se a mesma falácia da falta de recursos.
Manteve-se intacta a propriedade, apenas limitou-se um pouco o seu não uso.
4) Usucapião Urbano:
66
Uma parte destas propostas está implícita no Projeto de Lei 775/83 que tramita cinco anos, com dois
substituivos.
196
Propunha, a Emenda Popular, o direito de usucapir após 3 anos de posse, ficando, a
partir do momento da proposta, suspensas e proibidas ações reivindicatórias sobre o imóvel.
O usucapião urbano é um forma de resolver a questão de regularização fundiária das áreas
ocupadas.
Aprovou-se o usucapião após 5 anos, desde que não tenham sido contestados. Não
fica explícita até que momento será considerada a contestação, nem se juridicamente ou se
apenas verbalmente. O que vai fazer proliferar os processos de reintegração de posse.
5) Política Habitacional:
A Emenda Popular propunha fixar responsabilidades do Estado na promoção de
habitações; eliminação de agentes privados nos programas habitacionais populares;
implementação de políticas e projetos habitacionais pelos municípios, cabendo o controle
direto da aplicação dos recursos à população, através de suas entidades representativas;
equivalência salarial nos reajustes dos aluguéis e prestação da casa própria; proibição de
aplicação de recursos públicos ou sob administração pública para financiar investimentos
privados.
Nada consta do Projeto. Exceto que a produção, - inclusive de habitações é da
iniciativa privada. Ao Estado cabe agir complementarmente, para relevante interesse
coletivo ou quando atende aos imperativos da segurança nacional. O que significa que a
produção de habitação continuará a ser atribuição da iniciativa privada.
Este é um aspecto muito importante, pois empresários, inclusive da Indústria da
Construção Civil, têm sistematicamente sido contrários à atuação do Estado no que
consideram competência da iniciativa privada. No entanto, têm sido, cada vez mais
freqüentes, as solicitações de recursos do SFH para que a iniciativa privada possa produzir
novas habitações
67
. assim interesse em que o Estado capte e libere recursos, mas não
que invista na produção. Este ponto leva a discutir a questão da privatização da economia.
Na verdade, deveria tratar-se de tornar público os recursos que captados, pelo Estado são
67
Como foi visto na parte 2 deste capítulo.
197
privatizados. Penso que esta é uma questão relevante, mas que não será desenvolvida no
corpo deste trabalho. Importa aqui ressaltar que, em sua maior parte, são recursos dos
trabalhadores – FGTS -, que financiam as empresas de construção.
6) Serviços Públicos:
A Emenda Popular centrou-se nos serviços públicos de transporte, pois era o que
constava da sub-comissão de assuntos urbanos. A questão da localização dos equipamentos
de saúde, de educação, saneamento, em que pese sua importância para a Reforma Urbana,
não foram incorporadas ás discussões.
Com relação aos transportes coletivos, considerou a Emenda Popular que a
prestação de serviços blicos é monopólio do Estado. A operação por concessão pela
iniciativa privada não receberia nenhum subsídio. Definia-se também que o gasto com
transporte não poderia exceder 6% do salário mínimo aplicação da Lei do Salário
Mínimo. Além do que, para evitar a continuidade dos desmandos, propõe-se que os
aumentos de tarifas só fossem realizados com a aprovação do Legislativo.
Aprovou-se o que existe. O transporte coletivo urbano é serviço público essencial
de responsabilidade do Município, podendo ser operado através de concessão ou permissão.
No último ano, o governo para suprir uma deficiência salarial institui o “vale
transporte”, que tal como o “ticket do leite” representa uma forma de subsidiar a iniciativa
privada, pois, ao regulamentar as relações de trabalho, define um valor de salário
insuficiente para manter o trabalhador e sua família. O vale transporte parece ser um
“auxilio” do governo para os trabalhadores mais carentes, quando na verdade, caracteriza
um subsidio do poder público à iniciativa privada.
Quando os movimentos propõem que recursos públicos não sejam canalizados para
a iniciativa privada, seja nos transportes seja na educação, há uma grita geral, pois
significaria tornar público o que é canalizado, via Estado, para o setor privado, ou seja,
tornar público o que é hoje privatizado.
198
7) Gestão Democrática da Cidade:
A Emenda Popular previa a iniciativa popular com 0,5% do eleitorado e também
que 5% poderiam vetar projetos do Executivo.
Aprovou-se as Iniciativas Populares com 5% do eleitorado, não exclusiva às
questões urbanas. A não aprovação do poder de veto aos projetos do Executivo limitou as
propostas de gestão das cidades, pois, se for mantido a aprovação de projetos do Executivo
por decurso de prazo, muitos projetos contrários aos interesses da maioria da população
serão aprovados por “omissão”.
Foram elaborados neste item, apenas os aspectos que estão diretamente relacionados
à questões polêmicas contidas na Emenda Popular sobre a Reforma Urbana. Destaco ainda
a questão dos transportes coletivos
68
.
Mas em que pese que as propostas aprovadas são ainda instrumentos muito
precários para se ter uma produção mais justa do espaço urbano, uma serie de aspectos
que permitiram um avanço em relação ao período anterior, entre os quais a explicitação da
politização das questões urbanas, cujas propostas ainda deverão ser debatidas a nível
estadual e municipal, para a elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas
Municipais.
oOo
68
Para verificar e analisar todas as questões propostas na Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana, veja-se
Rodrigues, A.M., op, cit, Edição Especial do Jornal Arquiteto; Maricato, Ermínia, 1988, op.cit.
199
3.6. As permanências nas falas e nas práticas
É importante ressaltar a permanência dos discursos e das práticas, embora como
dito façam parte do mesmo processo. O relato de um acontecimento recente permitirá
verificar algumas das permanências.
No final do mês de agosto de 1988, os moradores da Favela da Vila Prudente
manifestaram-se contra os freqüentes atropelamentos que ocorrem nas ruas lindeiras. No
dia seguinte, o prefeito de São Paulo “determinou” a retirada da favela, noticia que
surpreendeu os moradores mas que, sem dúvida, mostra que os favelados não tem o direito
de expressar-se.
A Favela da Vila Prudente é uma das mais antigas do Município de São Paulo, seu
primeiro registro é de 1945. Nesta favela cerca de 1.500 barracos, que ocupam uma área
de 30.000 m2 onde moram aproximadamente 7.500 pessoas.
A determinação do prefeito não tem nenhum valor jurídico. Tem apenas a “força”
de intimidar os moradores que passaram a solicitar sua permanência como se fosse um
favor. Para que os moradores fossem retirados seria necessário um Processo de
Reintegração de Posse que, no nimo, levaria alguns anos para efetivar-se, pois basta
lembrar que esta favela tem mais de 40 anos. Poder-se-ia contestar a ação, considerando-se
o direito de usucapir expresso na Constituição de 1969 (20 anos) e proposta na atual (5
anos). Mas, o prefeito determinou que em 15 dias fosse iniciado o processo de remoção,
possível, na verdade, em acordo com os moradores. Explicita-se, desse modo, a ênfase para
amedrontar. Além disso consta que a área é, no maior trecho, propriedade do Instituto
Brasileiro do Café e não da prefeitura o que significa que esta não é parte interessada em
uma possível ação.
O secretário municipal de Negócios Jurídicos de São Paulo afirma que, se o juiz
conceder a Liminar, a saída é rápida. Ora, será que este secretário (Cláudio Lembo)
desconhece que Liminar de Reintegração de Posse não se aplica a este caso ou é apenas
mais uma forma de fazer pressão?
200
Por outro lado, o desconhecimento dos moradores sobre os seus direitos, torna-os
presa fácil destas práticas intimidativas. Ficam em dúvida se tem mesmo o direito de
permanecer se não quiserem/puderem sair. Buscam através de tentativas de diálogo com o
prefeito encontrar uma solução, acreditando que as remoções dependem apenas da
determinação do mesmo. Algumas lideranças, como Manuel Spinola
69
tem conhecimento e
segurança para afirmar que: “deverão esperar a notificação oficial para determinar as
medidas a serem tomadas”. Mas a maioria dos moradores fica temerosa. Os partidos e
parlamentares que acompanham os moradores nas suas tentativas de diálogo, embora
tentem também esclarecer estes aspectos, não são bem sucedidos, pois a força de pressão
ainda é maior.
Ao fim de uma semana, o prefeito parece conceder a permanência afirmando que irá
promover a urbanização da área e que serão removidas cerca de 200 famílias e que a
área não será mais desapropriada. O que é um direito para a ser visto como se fosse um
favor. O que poderia ser obtido, com a nova Constituição, através do direito de usucapir
será anulado com a proposta de urbanização, pois vários moradores serão removidos.
Mas, os favelados fazem até uma festa porque a favela será urbanizada e somente
parte dos moradores serão removidos. Afirma o atual Presidente da Sociedade Amigos da
Favela da Vila Prudente que: “foi uma vitória difícil”. Mas que agora se reunirão com
técnicos da prefeitura para elaborar o projeto de urbanização.
Estas permanências nas mudanças indicam que para atingir-se na plenitude a
constituição de sujeitos coletivos, ainda um longo caminho a percorrer, para que estes
moradores espoliados consigam pensar sua condição de existência.
oOo
69
Veja-se entrevista com este líder, de 77 anos, no item 3.1. neste capítulo.
201
CAPÍTULO IV
O COTIDIANO DO PROCESSO DE OCUPAÇÃO DE TERRAS – OSASCO
202
1. JUSTIFICATIVA
Que o saber fazer possa ser também
o saber pensar sobre o saber fazer.
Neste capítulo, busco fazer uma reflexão sobre a história das ocupações coletivas de
terra em Osasco, do “Movimento Terra e Moradia”.
Para resgatar a memória do processo de ocupação, optei por um resumo
cronológico. Ao descrever a produção espacial contida nesse processo, tento compreender
esta produção na sua complexidade, levando em conta as características apontadas da
questão da terra e da moradia.
As ocupações coletivas de terra diferem das ocupações individuais em favelas, pela
forma prévia como se organizam. São, como as favelas, produto da conjugação de vários
processos e representam também uma tentativa de encontrar um lugar para morar. Ocupar a
terra para moradia, sem o título de propriedade, não é um processo novo. O novo é a
proliferação das ocupações coletivas a partir do final da década de 70. Importa, aqui, reter
seu significado e avaliar a constituição dos novos sujeitos coletivos
70
.
O início operacional desta pesquisa foi caracterizado pelas entrevistas gravadas com
as lideranças do movimento: “Esta Terra é Nossa”, do Jardim Piratininga em Osasco.
Posteriormente, passei a compor o grupo de apoio ao “Movimento Terra e Moradia”,
acompanhando o segundo grupo (Jardim Conceição) nas preparações finais e o terceiro em
todas as etapas, buscando compreender os recantos da realidade que não estavam
recobertos pelos discursos instituídos e nem estabelecidos nos cenários da vida pública
(vide Sader, Eder, op.cit).
Como afirmei na introdução, comprometi-me com o movimento a escrever sua
história, imprimi-la, para que eles pudessem contá-la para outros. Esta história foi escrita.
70
Sobre as ocupações de terra no período de 1981 a 1985, no município de São Paulo, veja-se Bava, S.
Caccia, 1987.
203
Novos dados foram-se agregando, pois o movimento se ampliou, e a história foi ficando
longa para ser escrita de modo legível para, como dizem, “pessoas de pouca leitura”.
Contar a história do Jardim Piratininga é também ter que contar a história da
ocupação do Jardim Conceição e do Jardim Veloso, pois um grupo, após ocupar uma terra,
passa a ser apoio de um novo grupo. Consideram que a melhor forma de passar a
experiência é contando-a aos que vivem em situação semelhante. Fica, assim, evidente que
formas de comunicação que não são estabelecidas no grande cenário público e que se
constituem em diferentes experiências de vida, que moldam novas formas de atuação,
novos sujeitos políticos. O objetivo desta parte do trabalho é analisar estas diferentes
experiências.
Considerando: que foram filmados alguns eventos das ocupações; o número de
analfabetos do próprio movimento e de outros, para quem se queria contar a história e a
experiência acumulada; a possibilidade de se verem e serem vistos; a possibilidade de
utilizar uma nova forma educativa transformou a história escrita em visual, em um vídeo. A
utilização do vídeo no processo educativo, em que pese o custo dos equipamentos, é
evidente, pois a leitura” é em geral realizada em grupos, o que permite ampliar a
discussão.
Este processo educativo, foi ressaltado também pelo comandante da Ação de
Despejo dos ocupantes da área do Jardim Veloso, que, após saber que a filmagem tinha
“um objetivo de estudo” e que éramos do grupo de apoio ao movimento, indagou da
possibilidade de obter uma cópia do vídeo para treinar seus comandos. O interesse do
Major Vlandir era o fato da desocupação estar ocorrendo sem violência. Imputava este fato
ao treinamento dado aos seus soldados e também à organização do movimento. Mas
atribuiu o despejo sem violência, ao fato de ter ido várias vezes à área, avisar a população
que teriam que sair. Considerava que o vídeo daria uma dimensão melhor aos seus
comandados de como ocorre uma desocupação sem violências.
Nosso objetivo é servir aos movimentos e não ao despejo, mas ficou evidente a
importância dessa forma de comunicação, que pode ser utilizada evidentemente tanto pelo
poder instituído como pelos que a ele se opõem. Esta constatação nos levou a tomar
precauções para o expor detalhes organizativos do movimento, tanto no vídeo como na
204
história escrita. Mas o poder instituído, tem como diz Yves Lacoste, o domínio sobre o
espaço como um todo (Lacoste, Yves, 1988). E auxiliar os dominados na compreensão e no
domínio do espaço pode ser uma forma de fazer a Geografia, pois, como diz o mesmo
Lacoste, ele conseguiu entender o processo de bombardeamento do diques do Vietnã,
quando utilizou o mesmo instrumental de análise, ou seja, a análise geográfica. Mas a
história escrita não é dispensável, pois permite uma reflexão sobre a realidade e sobre a
própria elaboração do vídeo como instrumento educativo.
No percurso do trabalho, colocaram-se muitas dúvidas. O receio de estar “invadindo
os invasores” “usando” o movimento apenas para desvendá-lo e concluir uma etapa de
trabalho acadêmico; o receio de colocar a nu, para o poder instituído, as formas
organizativas da população. Venceu a perspectiva, espero que correta, de estar com este
trabalho auxiliando os participantes dos movimentos a pensar sua condição de vida.
Penso que é também uma ilusão imaginar-se que os processos organizativos, de
modo geral, não sejam conhecidos. Destaco um fato: quando se aproximava a data de uma
ocupação, a imprensa local noticiou até a data em que esta deveria ocorrer, o que indica um
certo conhecimento do processo. No grupo de apoio, debate-se a questão e ressalta-se o
seguinte aspecto: como são feitas reuniões da população, sabe-se que se trata de processos
organizativos. Como a questão habitacional é candente, pode refletir-se sobre este
significado. E imaginar-se uma data provável para que ocorra uma ocupação, pelo tempo
em que o processo de reuniões se desenrola, é tarefa não muito difícil. E quanto à data e
lugar, basta lançarem-se balões de ensaio. Portanto, indicações de que o processo é
conhecido pelos poderes instituídos. Porém, é ainda pouco conhecido pelos movimentos,
ou pelos que, esgotados pelas suas condições de vida, não têm condições de refletir sobre
elas. Embora domine todos os detalhes organizativos, farei considerações sobre aqueles
que já tem uma visibilidade externa, ou seja, o que não é considerado sigiloso pelos
integrantes do “Movimento Terra e Moradia”.
oOo
205
2. ESTA TERRA É NOSSA – HISTÓRICO DO MOVIMENTO
O Movimento “Esta Terra é Nossa”, refere-se ao primeiro grupo do “Movimento
Terra e Moradiade Osasco, formado por 421 famílias que, em fevereiro de 1987,
ocuparam uma área vazia, no Jardim Piratininga.
2.1. Início
O Movimento “Esta Terra é Nossa” surgiu, quando em maio de 1986, os moradores
da Favela do Braço Morto do Rio Tietê, após serem atingidos por muitas enchentes,
começaram a discutir seus problemas de moradia. Construíram um barracão para chamar a
atenção das autoridades. Cerca de 350 famílias moradoras na favela participaram do
movimento. O barracão chamou a atenção de centenas de pessoas com problemas de
habitação (Jornal da Terra e depoimentos).
A favela do Braço Morto situa-se em um meandro abandonado do Rio Tietê, na sua
planície sedimentar, que se prolonga desde a montante do bairro da Penha em São Paulo, ao
Município de Osasco:
“através de uma faixa orientada de Leste para Oeste, apresentando largura média de 1,5 a
2,5 km. As planícies sedimentares com seu relevo praticamente nulo, o sujeitas a
inundações anuais nas cotas entre 719 metros e periódicas entre 722 e 724 metros”
71
.
(Ab’Saber, A., 1957)
Pelo Código de Águas de 1934, o antigo leito do rio Tietê é propriedade do Poder
Público Municipal (Seabra, Odette, C.L., op. cit.). As piores áreas para moradias, como o
antigo leito do Rio Tietê, com enchentes periódicas, são as que podem ser ocupadas. São
terras públicas, o que indica um conhecimento da legislação e também da dinâmica do rio:
71
Sobre a retificação do Rio Tietê, o sistema hidráulico criado pela LIGHT, no processo de incorporação das
várzeas ao urbano, veja-se Seabra, Odette, 1986; sobre o processo de sedimentação das planícies aluvionais,
Ab’Saber, op. cit.
206
“as terras foram abandonadas pelo rio, tavam vazias, nós viemos para cá...” Explicam
também como descobriram quem era proprietário: “margem de rio é do governo; é da
prefeitura, porque é rio” (depoimentos).
que considerar-se, também, que a cidade é entendida apenas como um conjunto
de lugares, sem ligação entre si. Mesmo na conjuntura do “planejamento urbano”, que é o
tom dos discursos oficiais pós década de 50, atua-se apenas pontualmente na cidade.
Promove-se, por exemplo, a retificação ou o desassoreamento do Rio Tietê, em áreas
densamente ocupadas e com problemas de enchentes. E, a jusante e a montante do trecho
retificado e mesmo desassoreado, as enchentes no período das chuvas aumentam, o que
leva a população, cansada de ter várias enchentes por ano, a começar sua luta por melhores
condições de moradia.
A continuidade de enchentes incorpora-se ao cotidiano e pode servir para
compreender que aqueles que moram nas áreas atingidas pelas enchentes estão entre os
mais pobres. O que ocorre em um período do ano, acompanha o cotidiano dos moradores
despossuídos. Estes perdem: móveis, madeiras do barraco, roupas, etc., o que significa que
devem trabalhar ainda mais o resto do ano para tentar repor as perdas. Além disso, na
favela do Braço Morto, alguns moradores utilizavam trechos para cultivar uma horta. Com
as enchentes perdiam também seu meio de sobrevivência.
207
2
08
Podem, estes aspectos, propiciar a discussão da moradia e do seu lugar na cidade.
Mostram que o cotidiano individual se amplia, pois muitos outros em situação igual.
Inicia-se a passagem do individual para o coletivo, do lugar isolado para a cidade.
As eleições para a prefeitura realizaram-se em 1982 (posse em março de 1983), e
se estava em maio de 1986, ou seja, três anos tinham-se passado. Na época das eleições
houve promessas de mudar a condição de vida nas favelas, urbanizando-as. Mas nada havia
melhorado, as enchentes continuavam a ocorrer duas ou três vezes por ano. Este fato leva
também a tentativa de chamar a atenção coletivamente para a sua situação de vida.
oOo
209
2.2. Ampliação do movimento
As reuniões realizadas aos domingos na área, no barracão construído para tal fim,
chamaram a atenção de mais de 2000 famílias, moradores em cortiços e pequenas
habitações. Estas famílias buscavam orientação para suas dificuldades de moradia (Jornal
da Terra – op. cit.). Viram que a situação era semelhante: os favelados morando em
barracos, atingidos por enchentes; os moradores de aluguel não estavam mais conseguindo
pagar.
Estava-se em 1986, época do Plano Cruzado, os salários estavam congelados, mas
os aluguéis subiam dia a dia. A forma de fazer aumentar o valor do aluguel era considerar o
contrato de locação como um produto novo, pois na maioria dos casos, o imóvel não era
novo. Como o que circula, no caso dos imóveis alugados, é o contrato de locação, é a este
que se atribui o título de novo. O preço dos imóveis antigos é redefinido pelo preço dos
imóveis novos, colocados no mercado, muito embora não tenham a ver com o seu próprio
custo de produção e muito menos, dadas as características apontadas, com o valor da
produção
72
.
Várias foram as artimanhas para se “pedir a casa”, e conseguir um novo contrato de
aluguel, embora as ações de despejos estivessem congeladas. Na maioria dos casos dos
moradores de aluguel na periferia, o contrato de aluguel por escrito o é uma norma
73
.
Mesmo quando os contratos existem, os reajustes são também definidos através de acordo
entre as partes.
Além disso, uma desinformação sobre os procedimentos em relação aos
processos de despejo. Acredita-se que o fato do proprietário pedir, nos contratos verbais, é
suficiente para que desocupem os imóveis. Quando um contrato, basta uma carta de um
advogado em papel timbrado, especificando um prazo para desocupação do imóvel, para
parecer aos inquilinos como a última palavra, o despejo eminente.
72
Vide Rodrigues, A. M., 1988, p. 51-52.
73
Pesquisa de campo – 30% dos cadastros tinham apenas certos verbais; 30% tinham um contrato escrito,
mas não registrado, ou apenas um documento assinado.
210
Esta falta de conhecimento dos seus direitos, leva a que muitas famílias fiquem
numa situação difícil antes até do prazo que lhes é concedido pela lei. É também comum os
proprietários recusarem-se a receber os aluguéis, quando os inquilinos não aceitam acordos
para aumentá-los ou quando dão um prazo para desocuparem os imóveis, o que caracteriza,
e pouco tempo, o despejo por falta de pagamento. A conjuntura como um todo, acirrada
pelos salários arrochados e aumento abusivo dos aluguéis, faz com que rapidamente, o
movimento inicial dos favelados do Braço Morto, seja engrossado com a participação dos
inquilinos.
O barracão foi construído com as madeiras de três antigas sedes da favela do Braço
Morto, porque todos se uniram nessa luta. Colocaram uma faixa “Esta Terra é Nossa”, o
que começou a atrair muita gente:
“se escrevia o nome de cada um no caderno e se viu que o caderno não dava, então
começaram as fichas. Foi um susto, ver quanta gente vinha se inscrever. Foram mais de
3000 fichas”; “era tanta gente que tinha que fazer duas reuniões, uma com a favela e outra
com os aluguéis”
(depoimentos)
O pessoal da favela foi deixando de ir às reuniões. Para alguns participantes, este
afastamento foi:
“porque preferiram ficar nos barracos, aguardando uma solução”; “a ocupação ia ter lotes
menores do que alguns na favela, que tinham até plantação”.
Ou então:
“lá eles estavam instalados era só continuar”.
Para outros participantes, o que ocorreu é que os:
211
“favelados foram ficando em minoria, se sentiram sem condições de continuar”.
É bom relembrar que a concepção de favela como lugar de bandido e o favelado
como um bandido em potencial, é um discurso que permeia todas as classes sociais, pois é
o discurso da classe dominante. Por outro lado, nesse período, o poder público municipal
começa a apresentar para os movimentos de favelas o projeto “Casa para Todos”, que prevê
a urbanização das favelas, no próprio lugar ocupado. Até hoje, em todas as falas do poder
público e dos ocupantes, fica explícito que a favela do Braço Morto será incluída no projeto
de urbanização da área.
O movimento começou com a favela que solicitava, devido às enchentes, medidas
para mudar de área; ampliou-se com os moradores das casas de aluguel; os favelados
afastam-se do movimento mas para as lideranças da ocupação, eles continuam a fazer parte
do movimento, pois quando negociam com o poder público, incluem as 350 famílias
moradoras na favela do Braço Morto. No entanto, esta inclusão é parcial: significa apenas,
que quando o projeto final for concluído, eles poderão comprar suas casas de alvenaria. Os
integrantes do Movimento “Esta Terra é Nossa”, acreditam que devem discutir e participar
do projeto como um todo. aqui, portanto, uma contradição. A discussão é realizada
apenas entre os ocupantes – que vieram do aluguel, pois os favelados irão no final para a
área já pronta.
Vários aspectos estão contidos no afastamento dos favelados e a ampliação do
movimento com os inquilinos: a concepção de favela e favelado; a atuação do poder
público propondo atender às reivindicações das favelas, dividindo o movimento, pois a
procura do lugar para morar é diferente para quem já ocupou um lote – como os favelados –
e para quem ainda tem que ocupar; o risco de perder um lugar conquistado o da
favela – para um lugar ainda a conquistar – a ocupação.
Ou seja, é possível que os favelados tenham optado por não mudar o barraco de
lugar, mas por conseguir melhorar sua condição de moradia no lugar já ocupado. Enfatizar,
como fazem, que o projeto inclui as 350 famílias da favela do Braço Morto pode ser uma
forma de reconhecer e legitimar os iniciadores desta luta, ficando implícita uma mudança
na concepção sobre os favelados, por parte dos integrantes do movimento “Esta Terra é
212
Nossa”. A inclusão da favela do Braço Morto no projeto de urbanização pelo poder público
pode ser também uma forma de conseguir a legitimação do projeto “Casa para Todos” e da
atuação da prefeitura nas favelas. Todos estes componentes estão contidos ao mesmo tempo
nesse processo.
O movimento, na verdade, passou a ser de moradores de casas de aluguel à procura
de um lugar para morar, pois não estavam mais conseguindo pagá-lo.
oOo
213
2.3. A descoberta do “movimento” – Organização Inicial
Os atuais moradores da área ocupada no Jardim Piratininga conheceram o
movimento principalmente pela faixa colocada na área e também por informações de
amigos e parentes que estavam indo às reuniões:
“Eu passava do meu serviço e vi escrito lá também: ‘A Terra é Nossa’. Aí, eu entrei um dia,
interessado, porque eu também pagava aluguel, hoje não pago mais.. cheguei lá, falaram
que era para deixar os documentos, dar o nome e tal... Continuei indo nas reuniões. Depois
entrei na comissão”;
“Eu conheci o movimento através de um conhecido meu de serviço, que me deu o endereço
de onde era a próxima reunião que ia ter... A gente tinha medo de ser descoberto...”;
“Eu conhecia o movimento. , um dia, eu vi a placa: ‘A Terra é Nossa’, pensei: Nossa
Senhora, essa terra é nossa, vou chegar nela! Cheguei em casa e disse: eu tenho certeza que
esta terra vai também me pertencer. Fui e fiquei sabendo que a pessoa para participar
dessa terra tem que participar de todas as reuniões e não pode faltar nenhuma, tem que estar
em todas elas”.
(depoimentos)
Em todas as entrevistas, com os moradores da “Terra”
74
que são da comissão, a
forma de conhecer o movimento foi ou um amigo, ou vizinho, mas principalmente a própria
faixa na “Terra”. Isto mostra que formas de comunicação, recantos da realidade, que não
estão cobertos pelos canais considerados instituídos. A comunicação pelo “correio cipó”,
em que a informação passa para amigos e conhecidos é muito comum e foi cantada por
Tom Zé – “O Correio da Estação do Brás”.
Procurar saber o que a faixa “ESTA TERRA É NOSSA” quer dizer; acreditar nesse
grupo organizado e incluir-se nessa organização, indica a procura de espaços para
manifestar-se e tentar resolver a sua situação de moradia. Mas este proceder é muitas vezes
demorado:
74
Os moradores utilizam a palavra “Terra” para designar o lugar que ocupam.
214
“No início quem participava era a minha mulher. Eu o acreditava não. Esse negócio de
invadir terra de outro não tava certo, eu pensava... resolvi ver... E pensei: aqueles caras
são de luta e eu não tenho nada a perder mesmo”;
“Pra dizer a verdade eu achava que era coisa de político, pensei vou esperar passar a
eleição. Se continuar então é pra valer”.
(depoimento)
Portanto, não é em um acender de luzes, mas sim em um processo de constituição
de sujeitos políticos que se a participação. Divulgar o movimento na própria área que
será ocupada, com uma faixa, é peculiar a esta ocupação, pois, em geral, após uma primeira
organização, procura-se uma área que possa ser ocupada. Nesse caso o lugar era
conhecido. Sabia-se ser propriedade da COHAB, que nunca pagou os impostos; sabia-se ter
a área 300.000m2. Na mesma área tinham sido construídas, através de financiamento da
SFH, 3.430 unidades através do INOCOOP SP. Na verdade, quando as unidades ficaram
prontas a maior parte dos “cooperados” não podia pagar as prestações e apenas 579
apartamentos foram comercializados pelo INOCOOP. Os demais foram financiados pelo
Bradesco, em outra linha de financiamento, pelo SBPE
75
. Nesta vasta área que, segundo a
COHAB SP, aguardava recursos para a construção de mais unidades, é que os integrantes
do movimento fazem suas reuniões, constroem o barracão e posteriormente ocupam-na com
seus barracos.
O barracão é considerado pelo movimento como um marco, pois foi incendiado
duas vezes, começou-se então a construí-lo de bloco e foi derrubado por um trator. Estes
incêndios, considerados propositais, representavam uma tentativa de destruir o movimento.
Perderam-se nos incêndios as fichas cadastrais que tiveram que ser refeitas:
“aí tinha aquele barracão até bonito, grande; tocaram fogo. a turma desesperançada, a
maioria sumiu, foram embora. Aí voltamos novamente, mas num barraquinho pequenininho
e continuamos... tocaram fogo... Resolvemos fazer de bloco, então o pessoal, se reuniu
todo mundo, e compramos um bocado de bloco e nós estava construindo, tinha já meia
parede levantada, eles vieram e derrubaram o barracão com o trator”;
“Quando derrubaram o barracão, a gente criou a idéia e tomou coragem e resolveu tomar
uma atitude... O povo estava achando que a gente tinha enganado eles, então nós tomamos
75
São 2.502 unidades no conjunto Morro do Farol r 928 no Jardim Piratininga totalizando 3.430 unidades.
Sobre as carteiras de financiamento do SFH veja-se Azevedo, S., Andrade, L.A.G, 1982.
215
uma atitude e começamos a se reunir em várias partes: lá na Matriz, no Centro de Vivência
e em outros lugares por aí, que a gente reunia com o pessoal”.
(depoimentos)
A reconstrução do barracão significou para os integrantes do movimento uma forma
de resistência, para demonstrar que não se esmorece por pouco. Ficou visível que muitos
participantes ficaram com medo e se retiraram. Mas, como os indivíduos entrevistados
representam, a comissão eleita pelos companheiros, trata-se da fala das lideranças, da fala
de quem ficou. o foi possível saber dos que não ficaram os principais motivos da sua
saída do movimento. A coordenação do movimento, denominada Comissão, sente o desafio
e procura manter a confiança dos que permaneceram e chamar de volta os que estavam
desistindo. De um modo geral, cria-se com o tempo uma confiança na comissão eleita. O
incêndio no barracão, se afasta da luta uma parte dos inscritos solidifica, para outros, a
continuidade do processo.
Mostra também as formas alternativas” que os proprietários utilizam para defender
sua propriedade, impedindo-se até que seja um lugar de reuniões da população. Nos
argumentos da COHAB – SP a derrubada do barracão consistia no impedimento das
ocupações. Mas, estes fatos fazem aumentar a solidariedade para com o movimento, pois
novos lugares passam a ser utilizados como ponto de encontro.
Os representantes indicados pelo coletivo são eleitos em Assembléia. Reuniam-se
todos os domingos, em assembléias, para discutir o que fazer. Além disso, a Comissão
passa a ter reuniões extras para definir os rumos do movimento e levar as propostas para
todos os inscritos.
Foram feitas várias reuniões com as autoridades públicas. O movimento chamou
também os vereadores para uma reunião na área; apareceram os dois do PT e um do
PMDB. O prefeito pede que o movimento aguarde, pois está criando uma Secretaria da
Habitação para cuidar do assunto. Mas como muitos estão sendo despejados, os integrantes
do movimento consideram que não mais para esperar e resolvem ocupar a área onde
se reuniam desde maio de 1986.
oOo
216
2.4. A ocupação
“Lá fora tava todo mundo batucando, nós aqui tava
batendo o martelo, para construir nosso barraco”.
(depoimento)
O fim do Plano Cruzado foi um momento considerado especial pelo movimento
para ocupar a terra. Tudo já tinha começado a subir, menos os salários. Planejou-se a
ocupação para a noite de 28/2/87, sexta feira de “carnaval”. O lugar é conhecido, desde
maio de 1986, afinal é o lugar onde construíram o barracão e onde se reuniam aos
domingos. Área sem enchentes, cheia de mato e ratos. Somente a comissão tinha
conhecimento prévio da hora e dia da ocupação.
A escolha do dia e hora demonstra um processo organizativo, pois tempo ao
movimento de construir seus barracos. Na noite de carnaval as autoridades estão
preocupadas em manter a ordem contra as arruaças. O policiamento será ostensivo em
clubes ou ruas onde desfiles e maior movimento carnavalesco. Mesmo assim, os
policiais apareceram, deram uma olhada, mas não impediram a ocupação. A COHAB SP,
proprietária da área, só poderia pedir a Liminar de Reintegração de Posse na quarta-feira de
cinzas, após as 14:00 horas, pois aos sábados e domingos o Fórum não funciona e segunda
e terça-feira de carnaval também não, por ser Ponto Facultativo. Com um trabalho intenso,
os ocupantes teriam tempo de construírem os barracos, tornando efetiva a ocupação e
necessário um processo de Liminar de Reintegração de Posse para retirá-los (vide Baldez,
M. op.cit)
Esta organização mostra que, apesar das dificuldades, é possível encontrar-se
válvulas de escape, mesmo que temporárias, quando se dispõe de informações corretas.
Nesse caso, as informações provêm da assessoria dos advogados do Centro de Defesa dos
Direitos Humanos de Osasco, ligados à Igreja Católica.
Ocupam a área 412 famílias, apesar de terem sido cadastrados cerca de 2000. O que
foram ocupar também tinham medo de repressão. Situação difícil esta de procurar seu lote,
já marcado, à noite e começar a construir. O fato de ser à noite também é peculiar:
217
“à noite o pessoal não sabe direito o que está acontecendo,dá tempo da gente se organizar”;
“a gente já conhecia cada palmo aqui da terra, então podia ser de noite, de dia, nós
resolvemos que de noite era melhor”.
(depoimentos)
Nesta ocupação predominou, nos primeiros dias, o uso de alguns pontaletes
recobertos por lonas, embora não fosse considerada a melhor alternativa, pois barraco
construído é casa, é moradia. Mas, chuvas intensas caíram nos dias subseqüentes,
dificultando a construção dos barracos.
Alguns depoimentos explicam o processo:
“Aí chegou o dia 28, a gente teve coragem de entrar na terra mesmo, enfrentar essa luta,
enfrentamos, sofremos muito embaixo de chuva e de sol quente também”; “... na noite
que a gente invadiu, a gente loteou tudo, cada qual pegou o seu, apareceu até parte do povo
que também tinha sumido do movimento”;
“aí, quando foi no dia 28 de fevereiro, que foi pra nós vir para cá, nós viemos à noite, o
maior escuro, levando tombo pelos barrancos aí. Passei a noite inteira com a esposa
derrubando barranco para construir o barraco... passei uns 15 dias embaixo da lona
esperando o tempo melhorar para fazer o barraco tomando chuva direto”;
“Tinha um colega meu que disse que eu era maluco, pois ‘só maluco pega a mulher e duas
crianças e fica no barrão direto, terreno sem nada’. E eu falei, maluco nada, é precisão
mesmo. É a precisão que força a gente fazer tudo que não é possível. A gente tem que
fazer”.
(depoimentos)
Em todos os depoimentos é visível uma alegria muito grande de ter tentado, de ter
lutado, de ter ido no dia da ocupação, de ter conquistado a terra. Sentem-se donos do seu
destino. Alguns inclusive entraram sozinhos, pois o/a companheiro/a não quis acompanhar.
Mas afinal, concluem, acabaram vendo que a luta era correta e mudaram depois:
“No dia da ocupação, dispus até a separar do marido, que não queria vir. Vim sozinha, um
vizinho e a comissão me ajudou, depois o marido veio”.
(depoimento)
Há também casos em que a mulher é que não queria ir, mas acabou sendo convencida.
218
também alguns casos em que descobriram na hora o que estava acontecendo,
pois tinham deixado de ir às reuniões e quiseram voltar. A estes, dependendo do número de
faltas, foi permitida a entrada:
”Eu estava todo enfeitado para o carnaval, vi todo mundo com um pauzinho nas costas
e... Eu conhecia o movimento, mudou a minha idéia e pensei ‘eu prefiro ficar por
aqui... foi o melhor carnaval da minha vida”.
também um sentido de aprendizado: eu sinceramente, eu gostei de ter vindo.
Aprendi, aprendi muito, aprendi até a ser um pouco mais solidário... Por isso eu acho que
todos os companheiros que estão aqui dentro aprenderam bastante”. (depoimentos).
um sentir-se em família, pois se conhecem há um longo tempo, desde as
reuniões para decidir o que fazer, para resolver o onde e o como morar. É um sentimento de
que o lugar de moradia foi construído passo a passo com os vizinhos, desde a definição do
que fazer até o onde fazer e, no lugar, definir a largura das ruas, o tamanho dos lotes, a
construção dos barracos, muitas vezes em mutirão:
“... os barracos que tão prontos, não é pra ficar enfeitando, agora é ajudar as mulheres
sozinhas para construir o seu barraco”; “junta três ou quatro e levanta um barraco, depois
vai pra outro, porque tem que ser rápido”; “... barraco coberto com gente morando é mais
difícil de derrubar, por isso todo mundo tem que ajudar”.
(gravação em vídeo)
Este processo cria uma identidade muito forte entre os moradores. Sentem-se
integrantes da mesma luta.
oOo
219
2.5. A reintegração de posse
No dia 6 de março, o Poder Judiciário concede à COHAB SP a Liminar de
Reintegração de Posse, ordenando despejo sumário. O Oficial de Justiça chega na área logo
após as 18:00 horas. Não pode fazer a citação, pois os ocupantes sabiam que passado este
horário, só poderiam ser citados após as 8:00 do dia seguinte.
O como proceder faz parte também do processo de organização. Quando começa
uma ocupação todos os participantes são chamados e atendem pelo nome de
‘companheiro/a’, isto porque as citações/intimidações só podem ser nominais. Quando
coletivizadas é preciso citar pelo menos um: “fulano de tal e outros”. Evitar que o nome dos
participantes seja conhecido é uma forma de ganhar tempo para negociações. Significa,
também, uma socialização das informações que, via de regra, são restritas ao discurso
competente. Referem-se, os integrantes do movimento a este conhecimento de modo
límpido:
“aí o Oficial de Justiça chegou. s távamos esperando e torcendo para ele chegar
depois das 6:00 da tarde. E, foi isso que aconteceu. Então ele não pode aplicar a eliminar”;
“todo mundo sabia né, que a gente não devia dar o nome, para se proteger, e além disso
também todo mundo sabia da hora que o Oficial de Justiça podia vir aqui e que hora ele não
podia”;
“eles tentam enganar a gente, mas nós sabemos o que fazer”.
(depoimentos)
Aumenta a confiança do que fazer, quando se tem conhecimento, um certo domínio
das etapas que estão por vir. Como enfatiza Élisée Reclus, referindo-se ao conhecimento
dos territórios:
“os monstros ficam restritos aos espaços misteriosos que se estendem além dos limites do
mundo explorado”.
(Reclus, E., 1985, p.42)
220
O saber favorece a atuação, joga mais longe a possibilidade de ser enganado.
No Jardim Piratininga, do dia 6 ao dia 10 o movimento ficou sob forte tensão:
“A COHAB SP, e o Juiz José Antonio Pereira se mantinham inflexíveis: queriam o
despejo” (Jornal da Terra). A advogada da COHAB –SP, Dra. Benedita argumentava que
todos iriam sair. “Não nenhum caso em que a COHAB SP, perdeu uma ão de
reintegração de posse”.
(entrevista – vídeo)
É interessante destacar que esta área estava destinada à construção de casas
populares. Para isso foi adquirida pela COHAB SP, utilizando recursos do BNH. Como
nunca pagou os impostos, o prefeito declarou, em 26/12/85, a área como de utilidade
pública para desapropriação. Segundo o decreto, no local seriam construídos conjuntos
habitacionais de interesse social e equipamentos públicos.
Ou seja, a COHAB SP utilizou recursos públicos na compra da área e seriam
necessários novos recursos blicos para “indenizá-la”, recebendo assim um prêmio por
deixar a área vazia, especular com o dinheiro público e com a produção social da cidade,
pois alegava não ter recursos para iniciar qualquer construção de habitações na área. Nos
projetos e mapeamentos da COHAB SP, constava que na, Gleba Osasco, seriam
construídos 8.330 apartamentos e 2.780 embriões totalizando 11.110 novas unidades
(COHAB – SP)
Da falta de recursos a COHAB SP reclamava do BNH, demonstrando em
documento interno que, no período de janeiro de 1979 a dezembro de 1982, obteve apenas
0,62% dos recursos em contratos do BNH, enquanto a COHAB MG, obteve 10,6%; a
COHAB RS, 8,18%; a COHAB CE, 7,78% e a URBIS BA, 6,87%. Esta distribuição
de recursos privilegia áreas onde seria mais provável que o partido do governo ganhasse as
eleições para governador.
Se, de um lado, a COHAB SP poderia ter recursos escassos para construir novas
unidades, de outro, utilizava-se deste argumento para não saldar impostos e deixar amplas
áreas vazias, sem uso, não possibilitando nenhuma forma de ocupação: pelo contrário,
impedindo seu uso pelos sem-casa e, ainda mais, querendo obter a maior renda possível
221
destas glebas. E, não deixa transparecer que a falta de recursos é decisão política e não
econômica.
A prefeitura não estava de posse da área, pois não depositou em juízo os 20% do
valor venal como exige a lei, alegando também falta de recursos. Este é um exemplo da
utilização dos recursos destinados à produção da habitação para as faixas chamadas de
interesse social. Se a prefeitura não depositou o valor exigido por lei, como afirma que fará
as habitações?
Se os participantes do movimento estavam relativamente informados sobre alguns
aspectos da questão jurídica e financeira, não houve manifestações explícitas, em
documentos ou entrevistas, sobre a questão política da utilização de recursos do BNH e da
apropriação pela COHAB da produção social da cidade. Denunciam o não pagamento dos
impostos, a utilização dos recursos do FGTS, mas de forma apenas local, como se a
dimensão desta questão não extrapolasse a área que pretendiam obter para moradia. A luta
pela permanência na área ocupada representa para a maioria a resistência, tentando obter
um lugar para morar. Não ainda a dimensão da inserção do lugar na produção espacial
como um todo.
oOo
222
2.6. A conquista da terra
Após alguns dias de muita tensão, a luta pela permanência na área ocupada é
vitoriosa. Firma-se um acordo entre a COHAB – SP e a prefeitura:
“a COHAB SP, transferiu para o Município uma área de 71 mil m2 em troca do ‘perdão’
da dívida fiscal e anistia do IPTU futuro. Em contrapartida a prefeitura concordou com a
construção pela COHAB – SP, de um conjunto de apartamentos para funcionários públicos
na área do acampamento”.
(Jornal da Terra)
Até hoje, o único documento existente é uma “carta de princípios” entre o PMO e a
COHAB SP. A ocupação desta área pelo movimento, se não define um novo uso, que
estava previsto nos projetos, acelera a ocupação, produz um novo espaço na cidade. O
receio de novas ocupações faz com que a área passe a ser vigiada e hoje está cercada,
demonstrando a “posse” pela COHAB – SP. A prefeitura e a COHAB definiram uma forma
não usual de quitação de impostos atrasados, legitimando e “premiando” o não uso da terra,
e o não pagamento de imposto devido.
A prefeitura não recebeu em valor dinheiro os impostos, recebeu em terra, mas não
construirá porque não tem dinheiro. Permitiu-lhe, este fato, uma legitimação no plano
político, pois atendeu à reivindicação das famílias organizadas. Possibilitou-lhe demonstrar
aos munícipes que tenta resolver o problema de moradia, mas: “o governo federal não
favorece, não está enviando os recursos necessários” (depoimento). Parece uma “legião de
boa vontade”, onde a falta de recursos é o único “mal”. Mantém-se, no plano mais geral,
intacta a questão da propriedade de terra, pois apenas se estabeleceu uma forma de
pagamento de impostos em terra.
A área, de 71 mil m2 destinada a alojar provisoriamente as famílias, até que o
projeto de urbanização seja concretizado, é parte da gleba total, distante cerca de 100
metros da área originalmente ocupada, e que significou um deslocamento dos ocupantes. A
COHAB SP, estabeleceu um prazo de 10 dias para esta mudança, prazo que começou a
ser contado após a execução de algumas obras: desmatamento do terreno, instalação de
223
água, arruamento e demarcação de lotes, bem como fornecimento de caminhão para o
transporte.
Logo após este deslocamento, começam novas etapas de luta: “uma conquista é o
início da luta seguinte” (depoimento). Conseguir luz é uma delas. após cinco meses
completa-se a ligação de luz nos barracos. Hoje, após mais de um ano, continuam
aguardando a urbanização para mudarem para os lotes definitivos.
A conquista significou o direito de ficar aguardando a urbanização da área, o que
representa para os integrantes do movimento uma espera sem pagar aluguel. Considerando
as condições de promoção das habitações chamadas de interesse social, esta é uma grande
vitória, pois enquanto se mora mal, se tem pelo menos, o direito de não pagar pelo uso da
terra, pois os barracos foram construídos pelos próprios moradores. Mas o movimento não
para aí, pois seus participantes querem mudar rapidamente para a casa de alvenaria, já que
consideram que o barraco de madeira é igual à favela.
Quando a urbanização chegar, vão estar juntos com os moradores da Favela do
Braço Morto. Mas, então, nenhum deles será mais favelado. E, enquanto se espera a
urbanização da gleba total, a área fica em “pousio”, aguardando um aumento de preço.
oOo
224
2.7. Vizinhança
A vizinhança imediata é constituída por moradores do conjunto INOCOOP
Bradesco, cujas unidades foram financiadas pelo SFH
76
. A movimentação contrária à
ocupação partiu desta vizinhança, que avisou a polícia na noite da ocupação. O medo de
que seus imóveis fossem depreciados é um fator importante para se colocarem contra a
ocupação.
Muito embora, para a maioria faltem muitos anos para terminar de pagar o imóvel,
cujas prestações não se alterarão em função da ocupação do espaço circunvizinho, já que os
reajustes são definidos pelo valor do financiamento inicial e para os mutuários do SFH
como um todo, pensa-se numa valorização futura”, em um prazo não inferior à 15 anos,
exceto, é claro, se o imóvel for comercializado, vendido, antes do término das prestações.
Fica assim evidente o fetiche da “valorização”.
Estas questões não são discutidas com a comunidade como um todo, ressalta-se
apenas a questão da necessidade, a falta de condições dos ocupantes em poder comprar ou
alugar uma moradia, através de uma carta à comunidade, publicada no Jornal da Terra:
“Quem somos nós, os “Sem-Terra”
- somos trabalhadores como você e moradores de várias regiões de Osasco.
- Somos assalariados de baixa renda, vítimas dos altos aluguéis, como milhões de outros
brasileiros;
- Muitos de nós estão, no momento, recebendo salários iguais ou inferiores aos pedidos
pelos proprietários. Não temos condições de viver dessa maneira;
- Muitos de nós já foram despejados das suas moradias; muitos dentre nós estão
desempregados. Temos família a quem alimentar, vestir, dar assistência médica;
- Somos marginalizados, mas o marginais, aproveitadores ou vagabundos. Não
estamos querendo terra de graça;
- Há um ano fundamos o movimento “Esta Terra é Nossa” e desde então tentamos
comprar os lotes, de acordo com nossa renda. As autoridades (Prefeitura e COHAB)
recusaram-se a negociar conosco até o último 10, mas nós resistimos.
76
Vide nota 75 sobre a comercialização destas unidades.
225
- Não temos a ilusão de vir a resolver o problema da falta de moradia popular. Mas
iniciamos uma luta que é de muitos. Você pode conhecer outras pessoas na mesma
situação”.
(Jornal da Terra – Osasco)
Neste documento, distribuído pelos ocupantes, eles colocam-se como trabalhadores
que, recebendo baixos salários, não tem condições de pagar a moradia. É preciso evidenciar
que a fala dominante é de que não conseguem porque não trabalham. Além disso, a maioria
dos moradores vizinhos está pagando altas prestações mensais para, ao final de muitos e
muitos anos, ser proprietária da casa própria. A maioria dos moradores dos conjuntos
habitacionais vizinhos acredita que foi apenas a luta individual, seu trabalho e o da família,
que lhes possibilitou obter a casa própria.
É preciso, assim, repensar de que modo podem ser esclarecidas mais efetivamente
as causas que impedem o acesso à terra/casa.
Como deixar mais evidente que a própria construção dos imóveis que estão pagando
foi realizada com o dinheiro do trabalho em geral, considerando que foram financiadas pelo
SFH? A carta elaborada pelos ocupantes atinge, na verdade, aos que estão na mesma
situação deles. No caso dos moradores vizinhos desta área, seria necessário tornar claro o
que é turvo na vida diária. E esta carta não o faz. Este é um outro desafio para os
movimentos. Embutida nesta questão, permanece o medo de assaltos, de sair de casa à
noite, pois se acredita que os não-trabalhadores é que estão nessa situação, ou então
aqueles que acabaram de vir do campo: “Com uma ‘favela’ tão perto, eu tinha até medo de
sair de casa” (depoimento). A pressão, a denúncia é feita pelos moradores dos prédios de
apartamentos. Mas após o deslocamento as vozes se calam, pois a ocupação ficou mais
distante de suas casas.
Mas é também da vizinhança que virá o apoio. De moradores do conjunto de
prédios, chegam doações de roupas, remédios, moveis. Dos moradores do conjunto do
IAPI, próximo à área ocupada, chegam, além das doações, apoio em documentos escritos.
Desse modo evidencia-se que à condição objetiva de classe (ou pelo menos de faixa de
renda) deve-se adicionar as condições subjetivas, uma condição vivida e continuamente
reelaborada:
226
“Tinham-me dito que quem apoiasse a ocupação seria preso... Fui no ougue e vi que o
preço da carne tinha subido. As pessoas estavam conversando enraivecidas e, a polícia
apareceu para dispersar. Parei para pensar. ‘Ué, abusar dos preços pode e ninguém vai
preso. Vai preso só que reclama. Ocupar uma área por necessidade não pode’? resolvi
ajudar o movimento e entrar como apoio ao pessoal”
(depoimento)
A vizinhança também manifesta-se através das Comunidades Eclesiais de Base e
dos padres da Igreja Católica, que além do apoio organizativo, explicam em documentos o
porque dessa situação e do apoio da Igreja a movimentos dessa natureza, demonstrando
uma vinculação com as características expressas no documento da CNBB sobre o Uso do
Solo Urbano. A ocupação de terra pode ser um caminho para, como diz o movimento,
iniciar uma luta que pode ser de muitos. Iniciar pelo menos uma contestação das formas
que regem o direito de acesso ao uso do solo.
oOo
227
2.8. Os partidos políticos
A maioria do grupo de apoio ao movimento é constituída por militantes do Partido
dos Trabalhadores. No entanto, estes não divulgam para o movimento que pertencem a
partidos políticos. Consideram que, se houver um conhecimento prévio de que há militantes
de partidos, muitos deixariam de participar. Alguns depoimentos deixam explícito este
aspecto:
“Achava que era coisa de político... de político para a classe besta (classe besta é o pobre,
né, que acredita em tudo). Fiquei observando, se aquelas coisas continuassem depois das
eleições, sim teria a certeza. Depois que passou as eleições e continuou, aí eu vim”
(depoimento).
“Eu vi a faixa e pensei, é coisa lá do pessoal da política, da Floriza, do Rossi, então eu não
vou. Depois eu vi um pessoal que não era da Floriza, então eu resolvi vir”
77
.
Há, assim, motivos para não explicitar a presença partidária. Mas com o tempo, fica
claro para os participantes que militantes partidários. Talvez não ganhe expressão
pública ou garantia de votação, mas passa a ser conhecido: “Nunca votei em ninguém.
Como você vai saber onde está a verdade? Mas agora, depois dessa luta a gente já tem uma
base, já sabe pensar e ver quem é de luta” (depoimento).
Alguns militantes, moradores do Jardim Piratininga, acreditam que dever-se-ia
explicitar que é o Partido dos Trabalhadores que está com eles nessa luta, pois tem uma
proposta política em relação à moradia. Para outros, a proposta partidária não precisa ficar
explícita, pois o movimento conduz-se sozinho. Se deixar evidente que há um partido muita
gente se afasta. E, nessa luta é preciso muita gente. A moradia é considerada a questão
central, e nesse processo de luta pela casa acreditam que se desenvolva a consciência
política. Para o primeiro grupo a consciência política é a mais importante de ser explicitada
77
Há, como dito, um outro grupo em Osasco que também discute a questão da moradia e organiza-se
ocupando. É conhecido como o grupo da “Floriza” e considerado, pelos participantes do movimento Terra e
Moradia, como um grupo que usa as pessoas para poder eleger candidatos do PTB. O processo de ocupação é
diferente, pois apenas um pequeno grupo organiza e chama os demais para entrarem. A Igreja Católica local
também não apóia este grupo.
228
logo de início, pois sabe-se porque se luta. Mas também a questão da autonomia do
movimento, de não vinculá-lo a nenhum partido.
Após a ocupação, ficou evidenciada a participação do PT, pelo apoio explícito,
através da executiva municipal e dos vereadores eleitos que estiveram presentes ao
movimento. Atualmente um dos moradores desta área é candidato a vereador pelo Partido
dos Trabalhadores. Após mais de um ano de ocupação, dois anos de trabalho conjunto,
explicita-se a questão partidária. Mas, para a maioria, o fato é que são estas pessoas que
estão no partido, não é o partido que participa do movimento.
oOo
229
2.9. A relação com o Poder Municipal
uma descontinuidade de comunicação entre o Movimento e o Poder Público
Municipal, mas é possível observar que ora o Movimento enfatiza seu lado contestador, ora
o negociador. A proposta inicial do Movimento era chamar a atenção das autoridades para a
precária situação de moradia em que se encontravam os moradores da Favela do Braço
Morto: “que pressionou tanto o prefeito, com passeata e tudo, até que eles desapropriassem
essa terra aí” (depoimento). Consideram que o processo de declarar de utilidade pública a
área da COHAB foi um resultado da pressão do movimento. Reconhecem como o principal
interlocutor a Prefeitura, o poder local.
No discurso do poder local, é salientado que a questão habitacional não é da esfera
do município, mas da esfera do poder central, o que dificulta qualquer atuação, pois “as
verbas dependem do BNH”. De fato, após 1964, a centralização das decisões políticas e
econômicas, consubstancia-se, no caso das políticas urbanas, no BNH.
O governo municipal e o governo estadual, são do mesmo partido e alinhados em
uma mesma proposta, mas não têm esta mesma relação com o poder central, o que implica
numa menor parcela de recebimento de recursos do BNH. Isto porque, a política
governamental não é a de atender às “necessidades ou corrigir desvios”, mas, através dos
financiamentos para a produção de habitações, buscar formas de manutenção no poder,
premiando as áreas onde apoio ao bloco no poder, garantindo assim a sua
continuidade
78
.
Se as manifestações dos movimentos pressionam o poder local, servem também de
pressão utilizada por estes, como demonstrativo da necessidade de recursos para atender às
“necessidades” dos moradores e assim manter a ordem. Ao mesmo tempo, permitem que o
atendimento das reivindicações legitime o poder local. Para os movimentos organizados o
atendimento das reivindicações representa também uma vitória. Para o poder local, ter
declarado a área da COHAB SP, de utilidade pública, mesmo que não tenham
concretizado a desapropriação, foi também uma tentativa de legitimação no plano político.
78
Veja-se a distribuição de recursos já citada.
230
O que se esperava com a faixa e o barracão era legitimar a atuação do movimento e
chamar a atenção das autoridades:
“a gente achava que o Prefeito ia expulsar a gente ou vinha negociar, mas ocorreu
interesse de quem pagava aluguel e também aconteceu o incêndio do barracão”.
(depoimentos)
O movimento continuou pressionando as autoridades, chamando-as para reuniões,
organizando passeatas:
“No dia 5 de agosto fizemos a primeira passeata... 15 de outubro outra; conseguimos
algumas promessas da administração, ficou meio assim. Voltamos lá na véspera das
eleições, dia 14 de novembro; na semana da eleição tocaram fogo no barracão”
(depoimentos)
Utilizam, também, como forma de pressionar o poder público, os espaços
institucionais para reivindicar; assim dirigem-se em passeata até a prefeitura, pois é lá que
está instalado o poder. Procuram uma maior visibilidade ao concentrar-se nestes espaços.
Alguns aspectos da atuação do poder público ficam nebulosos neste período pré-
eleitoral, que se estende até a posse do novo governador, pois o prefeito “apoiou” ainda que
não explicitamente e até o mês de outubro, o candidato do PTB Antonio Ermírio de
Moraes -, ao governo do Estado, embora seu partido, o PMDB, estivesse apoiando, o
candidato Orestes Quércia (pressionado pelo partido, o prefeito passou a apoiar Orestes
Quércia). Não é possível afirmar que estes acontecimentos sejam causas de alteração da
política da prefeitura em relação aos sem-terra: no entanto fazem parte de todo um jogo
político não explicitado. Mas, sem dúvida, alteraram a possibilidade de receber verbas para
habitação do governador eleito.
No começo do ano de 1987, após tantas idas e vindas, os participantes do
movimento, concluem que:
231
“ou fazemos alguma coisa ou paramos de se reunir, pois estava dando desânimo”; “a
gente ficou o ano passado correndo atrás deles, se a gente invadir, eles é que vão vir
correndo atrás da gente,a gente também vai saber quem é mesmo o dono da terra”.
(depoimento)
O poder público cria a Secretaria de Habitação, para tentar dar conta da produção da
habitação no município e também negociar com os movimentos organizados. Cria-se assim,
um novo espaço para intermediar as questões de moradia na cidade de Osasco.
No entanto, até hoje, a área da COHAB continua vazia. Resta ainda a seguinte
questão: se a área é propriedade da COHAB, se esta é uma Companhia Mista cuja
atribuição é produzir e comercializar casas para a faixa de interesse social, não seria já uma
área de interesse público? Declarar a área em questão como de utilidade pública não é uma
forma de, demagogicamente, o prefeito dizer que está fazendo o que lhe compete, ao
mesmo tempo culpando o mesmo governo de não fazer o que lhe é devido? Deslegitima-se
um órgão público para tentar legitimar um outro, sem alteração real de política.
Aos movimentos cabe desvendar estes aspectos que estão difusos no cotidiano e
tentar compreender que uma ação do Poder Público pode representar mais do que a
tentativa de “solução” ou mesmo de “resposta”, mas também a busca de sua própria
legitimação na disputa entre os blocos que estão no poder.
A descontinuidade de comunicação entre o Movimento e o Poder Público será
visível neste trabalho, pois, como optei por manter a cronologia dos fatos, por vária vezes,
serão retomadas as formas de negociação entre o “Movimento Terra e Moradia” e a
Prefeitura de Osasco.
oOo
232
2.10. A continuidade do movimento “ESTA TERRA É NOSSA”
Na forma cronológica proposta, é possível analisar a continuidade do movimento
por duas vertentes. Uma delas diz respeito à incorporação de novos interessados e a outra à
organização interna do Jardim Piratininga, que na verdade, são duas faces da mesma
moeda. A incorporação dos novos não é realizada na própria área. De um lado, porque
desde o início negociou-se com o poder público de que haviam 412 famílias de ocupantes
na área; de outro, porque se trata de um movimento que ao longo do tempo foi discutindo
as formas de sua organização. A incorporação dos novos dará origem a outro grupo de
ocupantes, que tratarei a seguir.
Na área do Jardim Piratininga, enquanto aguardam a execução do projeto da área
como um todo, continua o processo organizativo. Os moradores elegem representantes por
quadra: ao todo são 22 representantes que formam a “Comissão”. Discutem e encaminham
questões para resolver o abastecimento de luz e água, do futuro projeto das casas, etc.
Reúnem-se semanalmente.
A sede do movimente é construída logo após a mudança. É nela que se instala a
cozinha coletiva, enquanto os moradores estão construindo seus barracos, é nela que se
realizam as reuniões. É o ponto de encontro do movimento. Transforma-se também em
escola, em lugar para as crianças. Os recursos para construir, ampliar a sede, cimentá-la
vem da contribuição de todos os moradores: em dinheiro para a compra de material e em
trabalho nos fins de semana. A escola que funciona na sede, e cujo projeto foi elaborado
pelos moradores, tem 90 crianças inscritas. um projeto de alfabetização para adultos,
que ainda não se viabilizou por falta de local, e que também será gerido pelo próprio
movimento, pois um dos moradores é professor primário e está empenhado em alfabetizar
os companheiros.
Após a conquista da terra, o projeto considerado mais importante pelo movimento
foi a compra de uma máquina de fazer blocos. Consideram que morar em barraco o é
“muito bom”, principalmente em lotes tão pequenos como estão instalados:
233
“chega sábado e domingo, você quer dormir até mais tarde, mas seu vizinho descansa
ouvindo musica eo barulho vai de um lugar para outro, isto é ruim, porque até agora nós
somos uma família, mas depois cansa, né!”
(depoimentos)
A compra da máquina de fazer blocos foi discutida em várias reuniões, assembléias.
Na votação sobre a compra não houve unanimidade, mas a maioria optou por ela, através
da contribuição das famílias moradoras, mediante uma taxa que não é a mesma para todos:
“Tem famílias grandes, onde trabalha um, outras que trabalham vários, outras famílias
são pequenas e a gente tem que respeitar as diferenças”.
(depoimento)
A máquina está na área, faltam ainda algumas peças e o local adequado para o
funcionamento. O movimento vai tentando caminhar por suas próprias forças, preparando-
se para mudança e para a construção em alvenaria no lote definitivo. Este projeto prevê a
socialização da produção, ou seja, a produção será para todo o movimento, e o produto
comercializado a preço de custo, independentemente do valor da contribuição de cada um
na compra da máquina. Procuram organizar-se de modo a construir em alvenaria em
processo de mutirão. Ao que tudo indica, a máquina ficará em condições de funcionar antes
que se dê início ao loteamento da área. Se assim for, a produção será socializada para todo
o movimento. Possivelmente a primeira área a utilizar será a Vila da Conquista, que será
tratada a seguir.
Discutem, se devem ou não, esperar que o poder público realize o projeto da área.
Indagam se não seria o caso, deles se organizarem para: contratarem um topógrafo; fazerem
o levantamento da área; providenciarem a terraplanagem, o projeto de ocupação, o
arruamento e a distribuição dos lotes, pois dizem que estão cansados de esperar. Esta tem
sido uma longa discussão. Para alguns a questão é que o poder público não tem dinheiro e
eles estão cansados de esperar, significando que incorporam o discurso dominante. Para
outros, a questão não é financeira, mas política.
234
É correto o movimento tomar em suas mãos o que é atribuição do poder público?
não contribuem para a produção social com o seu trabalho? Os movimentos, ao tomarem
para si a deliberação de construir com seus “próprios meios”, estão sedimentando ainda
mais o fetiche da produção da cidade. Não é com recursos do trabalho (FGTS), que se
promove, ou pelo menos se deveria promover, a habitação de interesse social?
À medida que o trabalhador toma em suas mãos também esta parte da produção do
urbano, considerando que o poder público não tem recursos para a realização de obras
necessárias à reprodução da força de trabalho, está considerando que com o seu trabalho
não contribui para a sociedade? Por acaso consideram que recebem o justo salário e que,
portanto, devem trabalhar mais para ter garantida uma moradia digna? A discussão
continua.
Porém, ao que tudo indica, venceu a proposta de continuar pressionando o poder
público, para que realize a urbanização da área. Permanece a organização para discutir o
projeto que querem, tanto do arruamento, como da casa e do modo como podem e devem
atuar para fiscalizar a ação do poder público. Nesse sentido contam com o apoio do
Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, através da Assessoria que este presta aos
movimentos populares. Busca-se, assim, uma outra forma de estar interagindo com o poder
público, sem tomar em suas próprias mãos, mais uma vez o sobre-trabalho.
A questão do mutirão para construir sua casa, é ainda, apesar da discussão sobre o
trabalho adicional, considerada, como já lembrado, a forma mais barata para construir-se a
moradia.
É evidente que este processo aparece como “mais barato”, pois não é computado
nos custos a mão-de-obra do próprio futuro morador, que é utilizada no processo
construtivo, o que serve para camuflar o seu preço real. Serve também para se considerar
que o trabalho que realizam não é “bom” o suficiente para que tenham acesso a uma
moradia digna.
O movimento mantém-se praticamente com os mesmos participantes, pois pelos
estatutos, aprovados por todos, não venda de barracos. Casos limites são discutidos pela
comissão. Em alguns casos é possível vender a madeira, mas o o lugar e nem a terra.
Mesmo assim uma nova família para entrar na área passa por todo um processo de
235
discussão. casos também de barracos que foram demolidos, pois não foram ocupados.
Ou seja, no processo de ocupação, construíram o barraco, mas efetivamente não mudaram:
“Quem não mudou logo de cara, não precisa vir morar aqui, então é deixar o lugar para
quem precisa” (depoimento).
Não tem sido permitido nenhum tipo de comércio dentro da área. Acreditam que o
lugar foi conquistado para a moradia e não para o comércio. Muito embora, para muitos
moradores, pudesse significar a forma de sobrevivência, é preciso garantir-se a unidade do
movimento sem privilegiar ninguém dentro da área. Além disso, em qualquer tipo de
comercio se teria a venda de bebida alcoólicas o que poderia causar problemas de
embriagues, provocar brigas e depor, fora da área, contra o movimento. Luta-se para
preservar a imagem dos mais corretos entre os corretos, para poderem ser respeitados e não
serem considerados marginais.
oOo
236
3. INCORPORAÇÃO DOS NOVOS INTERESSADOS
3.1. GRUPO 2 – Jardim Conceição
Refere-se ao Grupo do Movimento Terra e Moradia que em Junho de 1987,
ocuparam uma área desapropriada pela Prefeitura para a construção de Moradias
Populares.
Logo após a ocupação do Jardim Piratininga, o Movimento “Terra e Moradia” é
procurado por um grande número de pessoas, que estavam também uma situação de
despejo eminente. São tanto famílias que tinham desistido e agora retornam como “novos”
que descobrem uma possibilidade de organizarem-se para resolver seu problema de
moradia.
Assim que a ocupação se solidifica, que os barracos estão prontos, começa a
organização desse novo grupo. As famílias que ocuparam a área, representadas
principalmente pela Comissão, dão apoio ao novo grupo. O processo é semelhante. A
descoberta do movimento ocorre tanto por indicação de amigos e conhecidos como também
pelo fato da ocupação do Jardim Piratininga já ser conhecida.
Tento, respeitando a cronologia dos fatos, apenas situar as especificidades do novo
grupo, sem me alongar em aspectos já apontados.
Esse novo grupo reúne-se em igrejas próximas da área ocupada do Jardim
Piratininga, o que indica que decorre de um conhecimento mais localizado. As informações
contidas na grande imprensa, além de, via de regra, enfatizar mais os despejos do que a
permanência, não esclarecem como chega-se a organização do movimento. O próprio
movimento não esclarece para a imprensa suas características de liderança, mesmo porque
não se consideram banquinha de imobiliária”. Somente quem mora perto sabe qual é o
lugar onde ocorreu a ocupação. A forma de vivenciar a cidade é pontual, está relacionada
ao cotidiano do morador, que se desloca da casa para o trabalho, escolas, hospitais, creches,
etc. não tendo um conhecimento espacial da cidade como um todo. Além disso, deslocar-se
para discutir a situação de moradia e o que fazer implica gastos adicionais de transporte que
237
pesam no orçamento familiar. Desse modo, as discussões interessam prioritariamente a
quem mora perto da área.
O terreno a ser ocupado será “descoberto” e conhecido no processo de
organização do movimento. Este é o aspecto mais comum nas ocupações coletivas, pois é
apenas no processo que se decide se vai ou não haver uma ocupação e em qual área de
dará
79
.
O grupo de apoio ao movimento amplia-se com a participação dos ocupantes do
Jardim Piratininga, que têm uma história para contar e podem ajudar na organização, para
que os erros não sejam repetidos. O processo é semelhante: reúnem-se semanalmente por
alguns meses, elegem representantes (comissões); discutem o porquê de estarem nessa
situação. Pensam o que fazer: a proposta é encontrar uma forma de resolver seu problema
de moradia. Os aluguéis disparam, os salários não aumentam na mesma proporção. Os
despejos intensificam-se. Tentam formas de resolver a situação pressionando o poder
público; fazem passeatas pela cidade em direção à Prefeitura; a Comissão marca reuniões
com o Prefeito e com o Secretário da Habitação. O poder público é o opositor; deveria ser
também provedor: dar atendimento às necessidades dos moradores da cidade. Como o
movimento não obtém resposta, procura resolver sua precária situação de moradia
ocupando uma nova área.
oOo
79
Difere, pois, do Jardim Piratininga, na qual os participantes, ao decidirem pela ocupação, já conheciam a
área, que era o próprio lugar onde se reuniam.
238
3.2. A procura do lugar
Procurar uma área para ocupar, significa conhecer áreas vazias no município. Os
participantes da comissão contam como foi difícil encontrar esta área. Às vezes saiam
olhando, às vezes iam com endereço certo. A uma gleba foram em grupo e a vizinhança
queria saber o que tinham ido fazer lá. Logo em seguida começou um processo de
terraplanagem no local; acham que o dono foi avisado. Numa outra, que foi indicada: “por
alguém lá da Prefeitura, vimos que era uma ‘fria’. Era área particular e o proprietário era
muito influente. Acho que era a gente: ocupar e desocupar, no mesmo dia” (depoimentos).
Havia a preocupação de procurar área pública, pois assim, julgavam, seria mais fácil
conseguir a permanência.
Após um longo processo, selecionam uma área de 350.000 m2, desapropriada pela
Prefeitura de Osasco com o objetivo de construir casas populares.
Para desapropriar esta área, a Prefeitura celebrou um convênio, autorizado pela
Câmara Municipal, com o governo do Estado, visando a obtenção de recursos (Lei 1943
O Diário 03/12/86). Publicada a Lei no Diário Oficial do Município, alardeada como
prova de boa vontade” de poder municipal em resolver o problema de moradia, a
desapropriação da área passa para domínio público.
Definem o dia e hora, que é veiculada pela imprensa, principalmente pela Rádio
Difusora.
80
Altera-se a data. Como a imprensa foi informada? Participam do movimento
diferentes categorias de trabalhadores, entre os quais funcionários da Prefeitura, que podem
inadvertidamente contar para os amigos. Mas, talvez o mais importante, é que chama a
atenção de tanta gente (mais de 400 famílias), reunindo-se por tanto tempo. Além disso,
este grupo foi várias vezes à Prefeitura e à Secretaria da Habitação. Por outro lado, os
participantes conhecem o movimento por amigos e conhecidos. Se é desse modo que se
conhece, um conta para o outro, sucessivamente, até que algum amigo pode estar
“interessado”, por vários motivos, que a ocupação não ocorra. O que se detectou, na
verdade, é que também alguns participantes das reuniões acharam que iam ganhar” a
80
Propriedade do Rossi, que articula um outro grupo de ocupações.
239
terra e como não tinham dinheiro para comprar o barraco, foram até a Prefeitura pedir o
barraco
81
.
Este fato também mostra que não há uma homogeneidade na participação dos
integrantes do movimento. Embora tenham tido várias reuniões, assembléias, discussões,
passeatas, alguns se mantêm apenas buscando uma forma de conseguir uma moradia,
enquanto outros passam a compreender o porquê moram tão mal. no caminhar, embora
a trilha seja mesma, muitas maneiras de compreender o processo de preparação de uma
ocupação coletiva. Para evitar grandes problemas, a comissão e o apoio elaboraram uma
carta para os próprios ocupantes, explicando como deveriam se comportar no dia da
ocupação: resistir pacificamente, sem brigas, evitar atritos.
oOo
81
Veja-se também “explicações” na justificativa desse trabalho.
240
3.3. Ocupação da gleba – Jardim Conceição
Na noite de 26 de junho de 1987, inicia-se a ocupação da área do Jardim Conceição.
uma única entrada na área que possibilita o acesso de veículos. É preciso muita gente
para empurrar os caminhões. Estão lá para ajudar todos os integrantes do grupo de apoio.
Afinal é preciso chegar, descarregar rápido para que entrem outros caminhões
carregados. Cada um deles traz três ou quatro mudanças. Cada um que chega vai indo
para o seu lote. É um grande alvoroço. Quem sabe onde é seu lote deveria começar a
construir, mas o terreno é acidentado, recoberto por uma vegetação secundária e alguns
eucaliptos e, antes de começar a construir é preciso limpar o lote. É um intenso trabalho,
com pouca luz, pois são poucos os que têm lampiões. O apoio ajuda a descarregar e a
limpar o terreno. Muitos trouxeram ajuda de familiares, outros não trouxeram nada.
Há também que construir-se rapidamente o galpão da sede, cujas madeiras são
compradas com a arrecadação de dinheiro de todos os participantes. É um mbolo do
movimento. O simbolismo do barracão do início do movimento mantém-se. É na sede que
se atenderá “os de fora”, onde se alojarão, provisoriamente, os mais carentes; que se fará a
cozinha coletiva e que será depois a escola, creche e local das reuniões. É noite de muito
frio, muito trabalho, muita solidariedade e também muito receio de que não dê certo.
Ocupam a parte da gleba voltada para a área já construída da vizinhança, pois a área
é muito extensa e estar no fundo da gleba dificultaria a entrada e a saída do pessoal e os
isolaria da vizinhança. Cada lote mede 102,00 m2 (6,00 por 27,00) e as ruas têm largura de
8,00 metros. Planejam a ocupação da área, antes de iniciar a construção dos barracos.
Embora para o movimento como um todo os lotes devam ser oficiais, ou seja, ter 152 m2,
as características topográficas do terreno impedem, sem terraplanagem, uma ocupação com
lotes desse tamanho. Respeitam-se assim as características da área.
A experiência do Jardim Piratininga é utilizada, pois se ocupa a gleba numa sexta
feira à noite, o que significa ter o sábado e o domingo para construir os barracos ou, no caso
do Jardim Conceição, limpar os lotes, antes que os proprietários tenham tempo de impedir a
entrada dos moradores.
Antes que se completem as mudanças chega a policia, avisada não se sabe por
quem, que tenta impedir novas entradas na área. Pela legislação, o proprietário da área,
241
com autorização judicial pode impedir a consumação da posse. No entanto, a polícia fica de
prontidão para impedir a posse da área. Quando se indaga de quem é a ordem, a resposta é
sempre a mesma: “são ordens superiores”. Não se sabe quem deu. Usam argumentos não
reais para impedir a entrada de mais famílias; o que efetivamente conseguem é impedir a
entrada de novos caminhões. O movimento encontra duas outras entradas e à custa de mais
cansaço continuam a entrar as madeiras, telhas e móveis, nas costas dos futuros moradores.
Como muitas famílias tem filhos pequenos e a noite é muito fria, é preciso alojar as
crianças, que são levadas para o salão da igreja católica. Lugar também pobre, que sequer
conta com um fogão para aquecer leite para as crianças. Conseguem-se alguns colchões e
as crianças, dormem amontoadas, mas a salvo do frio.
A atividade de construção é intensa nos dois primeiros dias; durante a semana é
preciso ir trabalhar e deixar alguém tomando conta do lugar. Não se pode deixá-lo sozinho,
pois se a polícia chegar, para tentar tirar, é necessário juntar todo mundo: “Muitas vezes a
gente consegue a terra e perde o emprego, pois é preciso faltar no serviço para terminar de
construir e garantir o terreno” (depoimentos). No processo de consolidação das construções
é preciso estar atento. E a cada novo fato as questões são analisadas e discutidas.
oOo
242
3.4. A vizinhança
Os participantes do movimento tiveram a preocupação de comunicar-se com os
novos vizinhos através de carta aos moradores, explicando porque estavam ocupando, que
não eram favelados e que gostariam de contar com a solidariedade dos vizinhos. O grupo de
apoio também elaborou uma carta para ser lida nas missas da região, solicitando o apoio da
comunidade, inclusive em gêneros alimentícios, vestimentas e dinheiro.
É bem verdade que as Igrejas da região já estavam apoiando o movimento: já
haviam sido local de reuniões, as crianças ficaram provisoriamente alojadas no salão da
Igreja, mas era preciso reforçar e conseguir doações, pois a maioria dos ocupantes tinha
gasto o salário do mês para comprar o barraco. Além disso, estavam perdendo dias de
serviço, que seriam descontados do salário.
A ocupação da vizinhança é muito rarefeita. As casas, em processo de
autoconstrução, na sua maioria, são extremamente precárias. Algumas, embora de
alvenaria, são tão ou mais precárias que os barracos de madeira (veja-se fotos). As
diferenças estão relacionadas a que os vizinhos são proprietários das casas onde moram,
enquanto os ocupantes vieram do aluguel. Não pelas características das casas é visível
esta semelhança. Logo após a ocupação começam a chegar alguns vizinhos com suas
doações. Faz muito frio, vestem roupas leves, rotas: vão levar solidariedade e sua
contribuição, que possivelmente fará falta para a família doadora. Parecem acreditar como
diz Adoniran Barbosa, na musica Saudosa Maloca: “Deus o frio conforme o cobertor”.
Alguns vizinhos explicitam seu pensamento: “Eu tenho certeza que o pessoal é
trabalhador, que não é vagabundo. Eu vi como eles trabalham a noite toda, o dia todo de
sábado, de domingo. Não é vagabundo quem trabalha tanto” (depoimento). Alguns vizinhos
solidarizaram-se com o movimento, emprestam água, primeiro pega-se da torneira, depois
arruma-se uma mangueira. Posteriormente uma outra falia empresta “um bico” de luz
para a sede. A água é um problema muito sério em toda a região: “Tem torneira, mas a água
que é bom... vem de noite, e as vezes nem vem, nem dá para encher a caixa. A noite que
vier podem vir pegar” (depoimento).
Alguns esperam que tendo mais gente possam ir juntos reivindicar água na
Prefeitura CAEMO Cia, Água e Esgoto do Município de Osasco, pois é muito difícil
243
viver sem água. Havia também o receio de alguns vizinhos de que: “aquilo virasse um
favelão”. Mas não há manifestações contrarias como no Jardim Piratininga.
Um aspecto merece destaque. Na parte mais plana da área havia um campo de
futebol. O movimento decidiu que não iria ocupá-lo, pois: “nós temos tão pouca coisa
pra se distrair e temos que respeitar o lugar do futebol de nossos novos vizinhos, que são
trabalhadores como nós” (depoimento). Ocorre que este campo estava sendo utilizado como
deposito de lixo e lugar de encontro de marginais. Os vizinho dizem que é para ocupar,
assim vão ficar livre dos ratos e de marginais. Deslocam-se os moradores, cujos lotes
estavam localizados em áreas mais íngremes para a parte plana do campo de futebol. A
atitude de respeito foi mútua.
Quem também se solidariza com os ocupantes são os proprietários dos dois bares
existentes na área. Sendo uma região ainda de ocupação rarefeita, em uma área onde não há
concorrentes para o abastecimento de neros de consumo cotidiano como leite, pão, etc
–, as novas famílias, representam uma ampliação do número de consumidores no comercio
local. Efetivamente, um ano depois aumentou o comércio da região. O bar e a mercearia
original permanecem sem ampliação visível. Mas, muitos outros surgiram, algumas casas
mudaram sua frente para poder instalar um ponto de comércio. É um comércio, com
produtos de qualidade duvidosa e preços elevados.
82
Em um ano não foi o comércio que
cresceu, o número de unidades construídas nas vizinhanças também cresceu muito.
Aumentou também a própria área de ocupação, com a vinda de mais 300 famílias, fato que
trataremos no item seguinte.
oOo
82
Engels alerta para as características do comércio de produtos de qualidade duvidosa e de preço muito
elevado, quando analisa a situação da classe trabalhadora em Inglaterra – Engels, op. cit.
244
3.5. Os ocupantes: Um pouco do cotidiano
A situação de vida nos primeiros dias de ocupação é de extrema penúria. É preciso
construir rapidamente, ao mesmo tempo dar conta das atividades cotidianas. Instala-se a
cozinha coletiva, que tem várias finalidades: permitir a liberação dos barracos; utilizar as
doações de alimentos da comunidade, pois a maioria gastou seu dinheiro na compra do
barraco e está perdendo dias de serviço não tendo como sustentar-se; não ainda barracos
montados para cozinhar-se. Constrói-se um grande fogão de lenha, arruma-se emprestado
um fogão industrial a gás. Algumas mulheres ajudam na cozinha, enquanto outros
constroem os barracos. Quando a comida fica pronta, os moradores trazem seus pratos ou
panelas e almoçam na própria sede ou levam para os barracos. Quando os barracos
começam a ficar prontos, desativa-se a cozinha comunitária, distribuem-se os alimentos
recebidos em doação para os mais necessitados.
Consideram, os participantes, que o que os une é a questão da moradia que também
é lugar de cozinhar. Se está pronta a casa não é mais necessário produzir a comida em outro
lugar. Esta é uma questão importante, pois a casa é o lugar onde se vive, onde se cozinha,
onde se come. É preciso ter uma casa, e quando esta já existe, deve-se começar a utilizá-la.
A desativação da cozinha comunitária foi mais rápida no Jardim Conceição (15
dias) do que no Piratininga 1 (mês). Para os integrantes do grupo de apoio, a cozinha
comunitária ao mesmo tempo que une, que permite que cada um cuide da construção de seu
barraco, não pode ser eternizada, senão vira uma atitude paternalista. Por outro lado, no
Jardim Piratininga, as doações foram em maior quantidade, o que mostra mesmo a
continuidade do processo de empobrecimento dos trabalhadores.
O que mais aflige os moradores do Jardim Conceição é a falta de água. Após uma
semana conseguiu-se que a Prefeitura fosse abastecer a área com caminhão pipa. Mas
outro problema: ninguém tem panelas grandes ou vasilhas para armazenar água. Cada
morador faz várias viagens até o caminhão, com canecas, pequenas panelas, latas. Demora-
se um certo tempo para poder organizar-se na nova vida, no novo lugar. Uma outra forma é
procurar água no lençol freático, furando um poço. No entanto dadas as características
topográficas da área, após cavar vários dias é preciso desistir: Não achamos o veio de
245
água”. É todo um trabalho coletivo inútil, pois falta um conhecimento sobre a área, sobre as
características do lençol freático em áreas de topografia elevada.
É preciso continuar lutando pelo abastecimento através do caminhão pipa e, mais
ainda, pedir que a prefeitura instale a rede de água.
Foram, durante a primeira semana, construídos dois banheiros coletivos, pois
enquanto se constroem os barracos não dá tempo de pensar: cada família com seu banheiro.
Só depois que se construíram banheiros individuais é que os coletivos foram desativados.
Após o dia 10 duas semanas após a ocupação intensificam-se as construções,
porque: “é quando o pessoal recebe e pode comprar suas madeiras”. Aumentará ainda mais
depois “do dia 14, pois o pessoal encomendou madeiras” (depoimento). As construções são
rápidas, principalmente nos fins de semana.
É possível observar que diferenças significativas entre os barracos. Alguns são
pobres, outros miseráveis. Um dos ocupantes montou” seu barraco duas vezes. Os
remendos eram tantos que, após “ficar em pé”, demonstrava-se uma incrível fragilidade e
precisou ser remontado”. barracos bem construídos e com Madeirit. Estas
características dependem do ganho mensal de cada um. A igualdade é dada pela procura do
lugar onde morar, mas as características do barraco variam de acordo com as possibilidades
de cada um.
Desde o dia da ocupação uma fila de interessados em ir morar na área. A maioria
é de moradores da vizinhança, que a ocupação não foi noticiada pela grande imprensa.
Como norma, entra na área quem tiver participado das reuniões preparatórias, quem foi
cadastrado. No Jardim Conceição, talvez pela distância, alguns cadastrados não foram
ocupar (veja-se o mapa de localização da áreas). Outros não conseguiram chegar no dia; os
que não conseguiram chegar foram incorporados.
O número de lotes demarcadas é de cerca de 140, falava-se em 250 famílias. E, os
interessados continuam a aumentar. aqui alguns pontos discordantes entre os
participantes do apoio e da comissão. Para alguns deve-se deixar entrar os novos
interessados, pois quanto mais gente maior é a força de pressão. A comunidade e Sociedade
de Amigos de Bairro também pressionam, dizendo que, se o pessoal do bairro não puder
ocupar, o povo vai retirar o apoio ao movimento. A diretoria da Sociedade de Amigos do
Bairro é em sua maioria do PMDB e seu apoio é considerado muito importante para o
246
movimento. Mas, por outro lado, também receiam, os integrantes da Comissão, que esta
inclusão possa significar que a área passe a ser considerada de “influencia” da Diretoria da
Sociedade de Amigos do Bairro ou do próprio Prefeito ou dos deputados e vereadores que
tiveram votação significativa na região para se eleger.
Propõe-se que esta questão seja discutida com todos os que ocuparam e com os
que estão se inscrevendo. Faz-se uma plenária com todos os novos interessados, cerca de
200 famílias. Verifica-se que poucos teriam condições de entrar de imediato na área, pois
não tem barraco e nem dinheiro para comprar. assim tempo para que o movimento
delibere sobre a entrada dessas novas famílias. A discussão passa pela necessidade de
conscientizá-las do significado do processo, como deve ocorrer, etc. Define-se, em
assembléia, que devem entrar, mas antes devem fazer uma série de reuniões preparatórias.
Este grupo entra na área em conjunto e é, aparentemente, incorporado no processo
como um todo. Explica-se, para todos, que não garantias que fiquem, mas também
ninguém garante que vão sair. E enquanto o processo de reintegração de posse não vem, os
moradores da região apressam-se para comprar suas madeiras e mudar para a área.
Para estes a ocupação tem características diferentes, pois a área já estava ocupada, já
era conhecida, moravam no bairro. Aceitam, desde o primeiro momento, as lideranças-
comissão do grupo de ocupantes. Hoje na área do Jardim Conceição moram 297 famílias. É
possível verificar que os que participaram das reuniões antes da entrada são mais
combativos, estão sempre presentes, discutem seus pontos de vista com mais firmeza,
quando não concordam com a comissão expressam-se mais claramente, respeitam as
deliberações do coletivo. A maioria dos que entraram depois do dia 26 de junho são menos
participantes. Se a questão, colocada por alguns é: “quanto maior o número, maior a
pressão”, este não parece ser o caso dos moradores do Jardim Conceição
83
. O movimento
“Terra e Moradia”, ao analisar este aspecto passou a ter maior clareza de que para ocupar
uma terra tem-se que passar por todas as tentativas e por todas as etapas de lutas para
poderem constituir-se como sujeitos coletivos.
oOo
83
Veja-se a parte 3.7. sobre as diferenças.
247
3.6. Jardim Conceição: Vila da Conquista
A relação do Movimento com o Poder Público
Desde a madrugada da ocupação um policiamento ostensivo na entrada da gleba.
Tentam impedir que a ocupação continue. Uma viatura permanece, dia e noite, estacionada
em frente à única entrada da área, que aliás, foi feita pelos próprios ocupantes. Justificam o
policiamento, argumentando que a área tem dono e que eles não podem deixar ninguém
entrar. Indagados sobre quem mandou vigiar, não sabem responder.
Há um fato a ser destacado: no sábado, primeiro dia de ocupação, quando as
famílias estão construindo seus barracos, dois policiais entram na área; começam a anotar o
número da chapa de um carro, perguntam quem é o proprietário; se a ocupação está sendo
promovida pela CUT, CGT ou PT. Estavam presentes no local padres que apóiam o
movimento, iniciando-se uma discussão entre os policiais e os padres. Os ocupantes
argumentam: se os policiais estavam ali para não deixar entrar mais ninguém – com
mudança -, então o lugar deles é ficar na rua, não dentro da área aborrecendo os moradores.
Os policiais são “expulsos” da área.
84
Um dos objetivos, não mencionado pelos policiais, é tentar conseguir nomes, que
são fundamentais para os processos de reintegração de posse. É difícil esquivar-se de dar o
nome aos policiais, embora o processo de esclarecimento, sobre dar ou não o nome seja o
mesmo da ocupação do Piratininga. Buscavam, os policiais, também descobrir qual a
organização “subversiva” ou partido que estava promovendo a ocupação.
Castels, afirma que os movimentos sociais urbanos ganham legitimidade face à
opinião pública pela dificuldade de considerar-se subversiva a reivindicação de melhoria
das condições de vida (Castels, 1980). Castels refere-se explicitamente aos movimentos
reivindicativos por água, luz, saneamento, legitimação dos títulos, em casos de loteamento
clandestinos, pois, no caso das ocupações coletivas de terra, embora se coloque a questão
da necessidade, como a situação conflita com a propriedade da terra, ela é considerada fora
84
Como este fato foi filmado em vídeo, os moradores da área contam com orgulho, como expulsaram os
guardas da área e sempre dizem: “foi até filmado, não é mesmo?” As filmagens mostram essas cenas com
nitidez.
248
da legalidade, portanto até mesmo subversiva, procurando descobrir-se qual é o agente da
subversão.
Em todas as ocupações estão presentes os policiais, como os guardiões da
propriedade, seja ela pública, seja privada. No Brasil, a defesa da propriedade é garantida
por todos os meios, e como a sobrevivência é “questão de polícia”, esta é chamada na
defesa da propriedade contra a luta pela sobrevivência, que tenta invadir a propriedade. É
função pública defender o cidadão e torna-se também função pública proteger a
propriedade de alguns cidadãos. É o serviço público garantindo a propriedade da terra, a
apropriação da renda diferencial, a terra vazia, sem uso.
Os ocupantes sabem que para conseguir permanecer na área, devem continuar sua
luta junto ao executivo local. Após a ocupação, continuam a procurar contatos com a
Prefeitura e com o Secretário da Habitação. Em boletim para a comunidade informam:
“Já fizemos três reuniões com o Secretário da Habitação (Ivan Carmona), porém nenhuma
solução foi tomada. Decidimos então fazer uma passeata para falar com o Prefeito. No dia
20 de julho estivemos em passeata em 400 pessoas na prefeitura. O Prefeito, após o dia
todo, só nos recebeu às 17,00 horas, e não nos deu uma solução imediata.
Comprometeu-se em estar reunido com todos os moradores da área no próximo dia 16 de
agosto para estar tentando solucionar o nosso caso”. (carta a comunidade)
O que o prefeito irá dizer ao movimento é nesse momento uma incógnita, pois ao
mesmo tempo informou que o juiz concedeu a Liminar de Reintegração de Posse, mas
que não iria acionar a policia para retirá-los antes de sua ida à área.
O poder público, na defesa da propriedade, utiliza os mesmos instrumentos jurídicos
da iniciativa privada. Enquanto o Secretário da Habitação “conversa” com o movimento, a
Secretaria de Negócios Jurídicos manda executar a ordem judicial. Eis outra contradição. Já
foi analisada a contradição entre o Judiciário e o Executivo, pois aquele manda desocupar e
este é premido a achar um lugar para os desocupados. Neste caso é o mesmo setor do poder
público que manda desocupar e que deve achar um outro lugar para aqueles que forem
despejados. Deve ainda garantir a vida no momento do despejo e chamar a policia para
garantir o despejo. É neste caso muito evidente a contradição: o poder público é ao mesmo
tempo e no mesmo momento inimigo e o provedor.
O movimento prepara a reunião com o prefeito. Estão ansiosos, não sabem direito o
que vai acontecer: “noticia ruim não pode ser, senão ele atenderia a gente na Prefeitura.
249
Vir aqui para dizer que a gente tem que sair, não vem não”; “ele não é louco de vir aqui na
terra pra dizer que vai tira nóis”; “você acha que ele tem coragem de dizer que vai tirá nois
daqui e vai mandá pra onde?” (depoimentos). Mas, é preciso, estar preparado para discutir
todas as propostas que virão. A mais provável, pensam, é que o prefeito proponha que eles
se mudem, em parte para o Jardim Piratininga e em parte para as áreas livres ocupadas.
85
Estão preparadas para não dar nenhuma resposta. Querem ficar na área e reivindicam para a
mesma luz e água.
DOMINGO: 16/08 o prefeito, acompanhado de seus assessores, Secretários da
Habitação e Obras, e do Deputado Estadual pelo PMDB Tonca Falseti comparece à área
do Jardim Conceição. O prefeito explica, detalhadamente, que a área foi desapropriada com
verbas financiadas pelo governo anterior. Enfatiza essa questão para deixar nas entrelinhas
que teve apoio do governo Montoro e que não tem do governo Quércia, pois isto justifica o
fato de não ter recursos, de imediato, para fazer a urbanização da área, e que o governo do
Estado não vai auxiliar.
Compromete-se a deixá-los na área, a retirar o pedido de reintegração de posse, se
eles se comprometerem a não deixar entrar mais ninguém na mesma. Explica que o projeto
da área ainda não está pronto, mas que talvez eles tenham que ser deslocados, dentro dela.
Falam ainda o Secretário da Habitação e o Deputado Estadual, cujo eleitorado é
basicamente de Osasco e que na época era considerado o candidato do prefeito para
substituí-lo em 1988 (hoje é candidato pelo PSDB desmembrado do PMDB). O prefeito
elogia a urbanização, o fato de não ser uma favela e disse esperar que eles todos construam
em alvenaria, o que é muito importante para os integrantes do movimento. Consideram que
são reconhecidos como ocupantes e não como favelados.
Sobre o processo de reintegração de posse, afirma que a prefeitura tem o dever de
abrir esse processo porque senão: “vão dizer que é o prefeito que promove as invasões”.
Argumenta que na área serão construídas mais de 2.000 casas, que são muito importantes
para todos os moradores de Osasco.
86
85
Em Osasco o termo “área livre”, significa favelas, que a maioria das favelas ocupa as áreas-livres de
loteamentos: as áreas de uso comum do povo.
86
indícios de que não colocou força policial para retirá-los, pois havia ainda repercussões negativas pela
morte de um ocupante na Zona Leste, em São Paulo, assassinado pela Guarda Metropolitana do prefeito Jânio
Quadros. O PMDB tem propostas de mudanças, de dialogar com os movimentos, e agir com força policial
para desocupar a área não seria uma boa estratégia política. Há também pressões dos movimentos populares
250
Pelo movimento, falam os integrantes da Comissão, e do grupo de apoio, que
embora emocionados pela garantia de permanência, aproveitam a oportunidade para
reivindicar água e luz. Destacam que esta “vitória é fruto de toda uma caminhada”.
Conseguem obter do prefeito a promessa de enviar mais caminhões de água por dia para
abastecer os moradores enquanto se providencia ligação da rede de água.
O movimento é vitorioso. Vão ficar na área, poderão construir em alvenaria. Fica
explicito, também, que deverão deslocar-se na gleba para possibilitar a execução do projeto
de urbanização da mesma. Deixam evidente que querem pagar pela terra, de acordo com o
que puderem, mas querem pagar, quando receberem o título de propriedade. Não querem
“nada de graça”. Como se não tivessem com todo o seu trabalho mal remunerado e tanta
luta pelo direito à moradia o direito de morar.
Todos estão felizes e emocionados. O que mais destaca é a palavra: “Deus ajudou”;
“foi tanta a luta”; “agora é a gente conseguir a água e luz”; “Deus do céu, como estou
contente” (depoimentos). Tem-se a impressão também que a vitória veio de fora, de Deus,
ajudada pelo prefeito.
Mas ficou evidente, pelo menos para os mais atuantes, que essa vitória só foi
possível porque lutaram e contaram com o apoio: da Igreja, do PT principalmente na
figura do vereador João Paulo Cunha -, CDDHO e outros partidos e entidades que
estiveram presentes na luta. É tanto verdade que nomes de ruas com figuras
representativas do apoio. Não há assim uma simples captação da luta pelo prefeito, embora
os integrantes do movimento considerem sua atitude democrática, principalmente quando é
comparado com a do prefeito de São Paulo. A área ocupada passa a chamar-se: VILA DA
CONQUISTA.
que destacar-se também o jogo populista do prefeito, o que tinha sido
percebido pelo movimento: ele foi a área porque tinha como resposta a permanência
dos ocupantes. Buscava aliados na própria área, pois seria muito difícil dar uma resposta
negativa para o povo todo reunido.
O poder público considera o movimento como seu interlocutor. Pede que o
movimento, em troca da permanência na área não deixe mais ninguém entrar. Este é outro
para mostrar ao governo do Estado, as necessidades de verbas, tanto para o projeto “Casa Para Todos” como
para a urbanização da área em que estão.
251
aspecto importante. Se o movimento deixar entrar novas famílias o prefeito não se sente na
obrigação de manter o prometido e tirá-los da área. Encontra assim uma saída, pois uma
“fiscalização” diuturna para a área. Ao mesmo tempo, não nenhum custo a pagar por
este trabalho. Ainda mais, mantém o movimento pressionado a não fazer novas ocupações,
pois, o prefeito sabe que este grupo originou-se da ocupação do Jardim Piratininga.
Para os integrantes do movimento, que lutam para encontrar um lugar onde morar,
que acham que as terras vazias não cumprem sua função social, tornarem-se “fiscais” da
área é uma questão difícil. No entanto, aceitam a incumbência, pois será a única forma de
permanecer no lugar ocupado. Como o continuamente procurados para que permitam a
entrada na área de novos ocupantes, esta troca” com o prefeito, passa a ser também um
argumento para dizerem que o modo mais correto é organizarem-se e discutirem em
conjunto a melhor forma para conseguirem, eles também, um lugar para morar. É uma
forma de mostrar também a luta organizada: “olha, é melhor vocês todos que estão aqui se
organizem. Se a gente conseguiu, vocês também conseguem”; “é preciso se unir. Nós se
unimos, conversamos e vimos que só tinha este jeito. Vocês aí conversam, e resolvem o que
vocês fazem”. (depoimentos).
Sobre esta questão é preciso também levar em conta outros argumentos, pois
participantes do grupo que se recusam a fazer papel de “fiscais da área”: “eu acho que todo
mundo devia entrar, porque esta história da gente tomar conta não certo”; “a gente sabe
que o povo todo ta precisando e nós é que vamos impedir?”; “devia era abrir as porteiras”.
(depoimentos)
também quem argumente que, ao conseguir uma vitória, o povo se acomoda.
Nestes casos considera-se que os movimentos sociais refluem quando são atendidas as
reivindicações. Para que analisa este movimento de ocupação de terras, verifica-se uma
preocupação tanto com a continuidade da luta do movimento em si como da expansão dos
movimentos para os que vivem em situação semelhante.
Foram convidados, por integrantes do movimento, a comparecer à área no domingo
da ida do prefeito alguns deputados federais e estaduais do PT. No entanto, estes não
quiseram ir. Consideraram que estiveram ausentes durante todo o processo de organização
e ocupação e não seria em um momento de possível vitória que iriam para capturar o
resultado da luta. Este fato mostra a contradição da atuação partidária nas áreas dos
252
movimentos sociais. A maior parte do grupo de apoio é militante petista, mas os
representantes partidários no parlamento não se fazem presentes na hora da vitória.
Indagados se iriam no caso de ocorrer o despejo a resposta foi positiva:
“Nesse caso sim, pois o trabalhador estaria necessitando de apoio parlamentar para sua
organização e quem sabe até ser protegido de violências policiais”.
(Deputado Federal pelo PT José Genuíno Neto)
É assim possível ver que há dois comportamentos diferentes de atuação partidária.
De um lado, o Deputado Estadual, Tonca Falsetti do PMDB, partido do governo, que
acompanha o prefeito na área, (quem sabe para canalizar o resultado da luta), pois pertence
ao partido que está no poder, e aí se confundem governo e partido. De outro o representante
de um partido que está na luta e que avalia que não deve enquanto parlamentar, comparecer
apenas no dia de uma possível vitória, revelando o receio de aparecer como tentando
canalizar os efeitos das lutas. Parece-me equivocada, esta última decisão, pois impede que
os movimentos vejam e façam comparações pelo menos entre partidos que teriam de
alguma forma uma representação na área e retira-se também, a retaguarda dos militantes do
partido que atuam nos movimentos
87
.
O resultado da assembléia deste domingo, deixa também muito contente todo o
grupo de apoio, que, no entanto, fica atento para a continuidade do trabalho na área
ocupada e conquistada. E mesmo não se considerando uma “banquinha de imobiliária”, a
procura é tanta que se tornou necessário formar um novo grupo, um novo trabalho que
contará agora com mais participantes, pois os moradores da Vila da Conquista vão auxiliar
com a sua experiência este novo grupo.
oOo
87
Sobre o comparecimento dos parlamentares em momentos de crise, veja a parte 4.4.
253
3.7. Vila da Conquista continua sua luta
O rompimento, em junho de 1988, das três adutoras, que abastecem de água uma
grande parte da população da Grande São Paulo, colocou na pauta do dia as dificuldades
para se sobreviver numa cidade sem regularidade de abastecimento de água. Um jornal
diário, a “Folha de São Paulo”, criou até uma coluna, para tratar “dos sem água”. Embora
sejam noticiadas frases satirizando a falta de água: “bebo vinho e uso perfume francês”, a
verdade, é que a falta de água nas torneiras causa transtornos para a maioria da população
em São Paulo, pois é preciso, além de economizar água, gastar tempo para coletá-la em
alguns baldes.
Os moradores da Vila da Conquista sofrem deste “flagelo” desde junho de 1987.
após 3 meses, depois de muitas idas à Prefeitura, instalam-se nove torneiras: “é três não é
nove. Olha só, você tem um cano e deste cano pequeno sai três torneiras. É uma torneira
que distribui para três” (depoimento).
Mesmo considerando que são nove torneiras, estas deveriam abastecer 300 famílias;
deveriam porque a água vem, dia sim, dia não, mas chega na terra à noite, de madrugada
mesmo:
“Sabe o que é levantar com este frio, duas horas da manha para pegar os baldes e ir fora
no vento pegar água? De noite, no verão é mais fácil, mas água tem menos, e todo mundo
gasta mais”; “conquistamos a terra mas falta de água deixa a cabeça da gente quente, né?”
(depoimentos)
Os setores próprios da Prefeitura explicam a falta de água: a região é muito alta e a
pressão não é suficiente para abastecê-la. Colocar canos na área ocupada seria um gasto
inútil, pois seriam canos vazios. Mas como dizem os moradores: “pelo menos a gente não
tinha que sair de casa prá ter alguns baldes de água”.
O outro argumento forte é: o movimento vai mesmo ter que mudar de lugar, pois
ocuparam exatamente a área onde estava prevista a construção da caixa de água que servirá
(quando ficar pronta) para abastecer toda a região e o conjunto que será distribuído na
gleba. Se vão sair, instalar uma rede de água é um gasto inútil.
É bom destacar que: a) a caixa de água referida só será construída quando a
Prefeitura tiver recursos. Como não tem, pode demorar alguns anos; b) um projeto de
254
implantação de casas na área será viável quando a questão jurídica da propriedade da
terra for resolvida; c) a inutilidade de gastos referes-se aos equipamentos utilizados; o
desgaste do trabalhador para conseguir um abastecimento precário de água não é levado em
conta. O que importa é a provável eficiência da prestação de serviços das secretarias.
Parece que importa dar conta dos gastos da prefeitura aos “pagantes”, como se estes
moradores também não fossem cidadãos, como se também não fossem pagantes.
Receberiam um “benefício dado pelo Estado”. Penso ser esta a “lógica” embutida e não
explicitada.
Na Vila da Conquista também não luz domiciliar. Usa-se o mesmo argumento do
desperdício: “terão que sair”. Como faz um ano que o movimento aguarda o projeto
definitivo, acabou conseguindo alguns “bicos” de luz na vizinhança. A iluminação é muito
fraca e não da para ter TV ou geladeira ligados, pois estragam-se os aparelhos que não
funcionam adequadamente. Por este empréstimo do “bico” de luz as contas são muito altas
e nem todos podem pagar. Mas é preciso lembrar que a grande maioria das favelas tem
luz por rede pública oficial e que estas ligações não podem ser feitas por iniciativa dos
movimentos, sem antes passar pelo aval das prefeituras.
Quando o poder público argumenta que a área ocupada é aquela onde deverá ser
construída a caixa de água para abastecer a região, está embutida na sua fala a tentativa de
responsabilizar o movimento pela continuidade da falta de água na região. Força-o aceitar
os projetos de mudança de lugar. Pois é importante para os integrantes da Vila da Conquista
o abastecimento da região como um todo; interessa-lhes também não serem
responsabilizados pela continuidade da falta de água. Não colocar uma rede, mesmo
precária, para o abastecimento de água e de iluminação, mostra que o poder público
considera-os cidadãos de categoria inferior. Além disso, força-os a aceitar os seus projetos.
Ao mesmo tempo, ao não atender as reivindicações de luz e água, provocou no
movimento, cisões, pois o grupo que entrou depois da ocupação
88
, considera que é a falta
de mobilização e de luta da Comissão que impede o atendimento das reivindicações.
Após 6 meses de ocupação, a Prefeitura explica qual é afinal o seu projeto para os
ocupantes. Propõe ao movimento ser incluído no projeto “Casa para Todos”, que é: “Um
programa habitacional para moradores de favelas com o objetivo de cunho eminentemente
88
Referido no item logo acima.
255
social de propiciar à população favelada do município a conquista de habitação permanente
e digna(Programa Casa para Todos – P. M. O.).
Prevê ainda que este acesso será realizado no próprio local ocupado, mediante
urbanização ou em novos locais, mediante a produção de unidades para relocação dos
favelados. Diz ainda o projeto que cada núcleo deverá ter um Plano de Urbanização
Específico, considerando-se que os loteamentos de interesse social não precisam seguir os
parâmetros dos loteamentos comuns. E que o preço de cada unidade será apurado com base
na avaliação efetuada pelo setor competente. O número de prestações não poderá ser
inferior a 48 parcelas mensais e o valor da prestação não poderá exceder a 5% do salário
mínimo vigente. (PMO – 1986).
O projeto denomina-se “Casa para Todos”. Estão sendo implantados LOTES de 90
metros quadrados com água e luz. Os favelados removidos reconstroem os seus barracos.
Como diz um integrante do movimento, o projeto deveria chamar-se LOTE para POBRE.
Os integrantes do movimento reúnem-se para analisar quais as implicações em
aceitar ou não o projeto. Discutem os seguintes pontos:
a) Alterar o tamanho do lote, implica que a casa tão sonhada tenha que ser menor e
que no futuro não possa crescer. E se a família aumentar?
b) Mudar da área em que já estão assentados, significa perder a metade das madeiras já
utilizadas; perder móveis, pois os que existem, são podres e frágeis.
c) Nos lotes de 102 metros, uma parte fez uma pequena horta. Se mudar para um de 90
a sobrevivência fica prejudicada, pois é a horta, uma forma de complementar a
alimentação;
d) Significa aceitar o mesmo projeto dos favelados. Os ocupantes confessam: “não
tenho nada contra, mas 90 m é metragem que só vale para a favela”. Também
consideram que os pobres tem “direito” a menor terreno/casa?
e) Todos consideram 90 metros de terreno muito pouco, porque vai dificultar ainda
mais, quando forem construir de alvenaria: “a gente muda pra baixo, monta o
barraco. Depois quer construir alvenaria. Como fazer se o barraco toma o lote
inteiro?”
Mas também consideram que:
f) Estão cansados de carregar água, isto quando tem;
256
g) A prefeitura está dizendo que a continuidade da falta de água está sendo causada
pelo movimento que não quer mudar;
h) Também estão preocupados com as eleições que deverão ocorrer em 1988. O
prefeito deu uma garantia “só de boca, de palavra” e a ação de reintegração de posse
só está suspensa. E se após as eleições a ação for consumada e eles despejados?
Estes aspectos, pensados e repensados, leva a que o movimento “troque os 12
metros” (de 102 onde estão para 90), desde que o projeto do prefeito seja executado em 90
dias (três meses), tenha água, luz, esgoto, área para construírem sua sede, área prevista para
creche, posto de saúde. Formarão uma sub-comissão para acompanhar o projeto. Quando
estiver pronto o arruamento vão construir em alvenaria (veja-se croquis das áreas).
E começa uma nova fase para os moradores de Vila da Conquista. Acompanhar o
projeto, organizarem-se para ir para os novos lotes. Discutir o projeto da casa de alvenaria.
Organizarem-se, em conjunto com o Jardim Piratininga, para a produção dos blocos da
máquina já comprada.
Mas, o tempo passa e o arruamento não fica pronto. Em agosto de 1988, ficam
parcialmente prontos 120 lotes (ainda sem água e sem luz), mas, são 297 famílias. O
movimento decide que começará o processo de mudança com a construção das casas em
alvenaria. Pensam que seria uma forma de consolidar um processo de formação de grupos
de vizinhança. À medida que os lotes fossem sendo entregues, ver-se-ia quem poderia
começar a construir de imediato e formar-se-iam grupos de vizinhança.
No entanto, alguns integrantes do grupo que entrou depois de 26/06
89
, pressionam
para que a mudança seja feita rapidamente. Utilizam de subterfúgios, percorrendo todos os
barracos, dizendo que se não mudarem de imediato vão perder os “direitos”. Organizam
uma lista que levam à Secretaria da Habitação, afirmando que serão estes os primeiros a
mudarem, marcam a data e pedem caminhões para fazer a remoção. Atribuem a demora na
conclusão à inércia da Comissão.
Muito embora a Comissão e o apoio tenham conseguido reverter parte dessa
situação, fazendo um sorteio por ruas e não obedecendo a “lista” realizada pelo sub-grupo,
a verdade é que, 120 famílias da Vila da Conquista estão mudando para o que consideram
terreno definitivo. A maioria muda com o seu barraco, ou seja, é removida. Alguns estão
89
Veja-se 3.5.
257
construindo em alvenaria, mas o processo é alto-construção e não mutirão. As demais 180
famílias aguardam que a prefeitura termine os lotes para iniciar o processo de mudança.
Estes, mais organizados provavelmente construirão em alvenaria no processo de mutirão.
De qualquer modo é visível a cisão do movimento, pois os que entraram depois não se
constituíram como sujeitos coletivos integrados no processo de mudança da sociedade.
Considero que imputar-se a demora na execução do projeto à causa de dinamismo
da Comissão, é uma demonstração que o discurso competente, que atribui ao trabalhador a
causa da sua pobreza está incorporado nas próprias atitudes do trabalhador. Aceitar ser
removido de modo tão precário, após tanta luta, significa aceitar os parâmetros de moradia
impostos ao pobre. Propor que os primeiros 120 lotes sejam destinados àqueles que
assinarem primeiro a lista é aceitar o discurso de que o problema é a falta de recursos para
atender a todos, de modo que é preciso ser esperto para ser contemplado. É aceitar que
alguns sejam pinçados para servir de exemplo, em que pese que entraram na luta depois
da terra conquistada.
Este tem sido também um outro desafio para o movimento: como tornar claro o que
é tão turvo na vida diária.
Mas a continuidade da luta, para parcelas dos ocupantes da Vila da Conquista, está
também relacionada com a formação e ocupação do terceiro grupo do “Movimento Terra e
Moradia” de Osasco.
oOo
258
4. A CONTÍNUA PROCURA DO LUGAR PARA MORAR
Logo após a ocupação da área no Jardim Conceição, começa a formar-se um novo
grupo. O compromisso, com a prefeitura, de não ampliar o número de ocupantes na área,
para que não se inviabilizem os projetos; o compromisso de “divulgar” o resultado de sua
luta para mostrar que a possibilidade de grupos organizados conquistarem um lugar para
morar, leva a que, aos novos interessados, explicite-se o que o movimento considera
correto: a organização de novos movimentos, que devem conduzir o seu caminho.
O processo de discussão é semelhante aos anteriores. Mas busca-se, também, uma
forma de dar maior consistência e aprofundamento às discussões. Formam-se pequenos
grupos e os assuntos a serem debatidos o previamente elaborados pelo grupo de apoio.
Foram reuniões onde se tentou aprofundar questões sobre a terra e a moradia na cidade.
Propõe-se que os integrantes visitem as duas áreas do movimento, pois, assim, podem
conversar com os moradores, ver como estão alojados e saber como foi o processo do início
até a ocupação. Esta “novidade” propiciou informações adicionais aos integrantes do grupo
3: “eu vi que a luta é demorada, mas disposto”; “o pessoal que mora na Vila da
Conquista sofre demais, ainda não tem água, mas mesmo que for para ir para eu vou”
(depoimentos).
Permitiu assim, aos novos participantes, conhecer uma ocupação no lugar onde
ocorreu, pois até aquele momento, eram os integrantes do grupo 1 e 2 que iam até onde
estava o novo grupo.
Este novo grupo também elege seus representantes, busca as autoridades
constituídas para explicar a situação que está vivendo. Fazem manifestações, passeatas,
para sensibilizar o poder público. Conseguem marcar entrevistas com o Secretário da
Habitação. Na última delas, em dezembro de 1987, este pede que esperem seis meses até
que fique pronto o projeto do Jardim Conceição. Mas os participantes já estão se reunindo
desde agosto, alguns foram despejados e estão morando com parentes. Outros na
eminência dos despejos.
Não se pode esquecer que os aumentos de aluguéis no ano de 1987 foram de mais
de 400%, e os salários não acompanharam tal aumento. Se era difícil pagar aluguel,
agora começou a ser quase impossível. Em dezembro de 1987 o salário nimo era de Cz$
259
2.200,00. Cálculos realizados pelo DIEESE consideravam necessário, nessa época, para
suprir as necessidades básicas do trabalhador e sua família, um salário de Cz$ 18.383,00.
Ora, os componentes desse grupo ganhavam, como a maioria dos trabalhadores brasileiros,
menos de dois salários mínimos, portanto quantia insuficiente para suprir gastos mínimos
com alimentação e pagar aluguel.
Os integrantes do grupo 3 moravam predominantemente de aluguel em sua maioria,
em casas de dois cômodos e cozinha (57%) com mais de uma casa construída no mesmo
lote, demonstrando que o tipo de moradia predominante era o cortiço ou casa coletiva
90
.
Quanto se paga por estas unidades? Em outubro de 1987, no tipo de moradia acima
referido predominava aluguéis entre Cz$ 2.000,00 a 3.000,00 cruzados para contratos
antigos. Os aluguéis novos estavam acima de Cz$ 5.000,00. Como pagar estes aluguéis e
continuar sobrevivendo? Não dava mais para esperar, e assim, procura-se uma área para
ocupar.
oOo
90
Sobre as diferenças entre cortiços e casas coletivas, veja-se Rodrigues, A. M. e Seabra, M. 1987. Veja-se
também tabelas anexas sobre pesquisa de situação de moradia com este grupo.
260
4.1. A procura do novo lugar
Face à impossibilidade de ocupar a área ainda livre do Jardim Conceição, pois,
apesar de ser um novo grupo, o Secretário da Habitação informou-os que, se ampliassem a
área ocupada inviabilizariam o projeto como um todo. É evidente que se fosse atribuído ao
movimento a inviabilidade do projeto haveria repercussão negativa para a ocupação.
Mesmo porque, o movimento está também interessado que se construam muitas e muitas
casas, que possam atender às necessidades dos trabalhadores. Além disso, como parte do
mesmo movimento, seus membros sabem que podem prejudicar os moradores da Vila da
Conquista, pois o prefeito, por represália, poderia executar a liminar de reintegração de
posse retirando todos os ocupantes da área. foi citado que os fatores que estão
inviabilizando o projeto da área do Jardim Conceição não é a ocupação de Vila da
Conquista mas é preciso cuidar das repercussões negativas aos movimentos de ocupação.
Procuram uma nova área e encontram uma gleba de cerca de 70.000 m2 no Jardim
Veloso em Osasco. A área é de propriedade particular, porém, como a situação está cada
vez mais difícil, resolve-se ocupar assim mesmo. De um lado, como forma de pressionar a
prefeitura a construir novas unidades habitacionais; de outro, pela necessidade que se torna
mais aguda. O processo de organização para a ocupação é semelhante ao da área do Jardim
Conceição.
oOo
261
4.2. A nova ocupação:
“Vim ver uma cidade nascer da noite para o dia”
(depoimento)
Em 29 de janeiro de 1988 inicia-se, no período da noite, a ocupação da área.
Demarcar lotes, descarregar caminhões, levar os materiais para os lotes, construir os
barracos. Trabalho intenso e febril, que se estende até de manha e que continua nos dias
seguintes.
Ao perceber toda a movimentação surge uma vizinha que contempla espantada esse
processo e diz a frase acima.
Realmente é um nascimento. aparece em um dado momento, mas tem em seu
bojo todo um processo de gestação. Para chegar a produzir este novo espaço, esta nova
cidade da noite para o dia, muitas coisas são produzidas anteriormente. Parece que é um
momento que produz este espaço, em que se inclui a própria dinâmica da produção
capitalista do espaço, a fragmentação do espaço vendido em parcelas, os interesses
diferentes na produção e no consumo do espaço. Todo o processo de organizar-se, escolher
formas para chamar a atenção do poder público, providenciar mudança, comprar madeira,
escolher uma área, limpá-la, marcar os lotes, construir um barraco, mostram em um
momento de tempo toda uma produção espacial anterior.
O projeto do loteamento é feito no papel pelos próprios ocupantes ou por integrantes
do grupo de apoio. Constata-se um conhecimento prévio do lugar a ser ocupado, da
legislação que define o tamanho dos lotes, das ruas, das áreas de lazer e institucionais. Mas,
como a ocupação é feita à noite, como não é possível chamar a atenção marcando os lotes
antes, a ocupação revela uma forma mais espontânea de seguir os arruamentos propostos
(vide croquis).
262
263
Nesta ocupação está mais visível, do que nas duas anteriores, a
miserabilidade. Há muitos ocupantes que não tem a mínima condição de comprar um
barraco, ou mesmo quatro pontaletes e um pedaço de lona. Muitos são os casos em que
buscam o grupo de apoio para tentar uma solução. Isto significa que ainda os mais
pobres que sequer conseguem comprar madeira para construir um barraco.
Uma parte não desprezível dos ocupantes comprou os barracos de um vendedor de
barracos semi-montados, tanto de madeira nova, como de usada. Alguém o conhecia e logo
em seguida passou o contato para os demais. Aparentemente este vendedor faz até um
preço mais em conta para o movimento, fez doações de parte da madeira para construir a
sede. Isto implica em desvendar também diferenças de interesse no processo de ocupação.
O fornecedor de madeira, do barraco, é solidário com o movimento, apenas porque
este representa um meio de colocar os seus produtos no mercado? Se o vendedor de
barracos tivesse uma terra vazia que estivesse com possibilidade de ser ocupada, qual seria
a sua atitude?
Penso que ficaria mais interessado na defesa da propriedade do que na venda do
barraco. Pois para comprar o seu barraco, muitas outras terras, muitos outros indivíduos
que vão para as favelas e que podem comprar. Neste caso, como a terra é de outrem, é até
possível dizer ao movimento que se é solidário, e que se esta vendendo o barraco mais
barato, etc. Mas, argumenta este vendedor:
“Se eu tivesse altos rendimentos com este comércio, viria pessoalmente trazer os barracos,
conversar com o pessoal? É claro que não, assim como é claro que jamais serei um grande
proprietário de terras vazias. Faço os barracos para que o pessoal ocupe mesmo”.
(Depoimento)
Isto demonstra as contradições de classe, presentes entre os detentores dos meios de
produção, mas também mostra o processo de gestação de uma ocupação.
Com as experiências anteriores organiza-se melhor um lugar para abrigar as
crianças; a chegada na área; a comunidade de apoio. Este processo aparece apenas no
momento em que a ocupação ocorre. Mas neste caso, este desabrochar, este nascer, teve,
logo no dia seguinte, repercussões muito intensas, por parte dos proprietários da terra
ocupada.
oOo
264
4.3. A luta pela permanência do grupo 3 no Jardim Veloso – área particular.
Logo após a ocupação da área, os proprietários são avisados por moradores
vizinhos, alguns deles trabalhadores de suas empresas. Sábado de manhã, já há tentativas de
desocupação e de impedir a continuidade das mudanças. Um dos proprietários alegava
saber, sendo advogado, que poderia derrubar os barracos, usando forças próprias em um
prazo de 12 horas, que depois passou para 24 horas.
Na parte anterior foi citado o texto de Miguel Baldez, jurista, que explica que
quando a propriedade está ameaçada cabe um interdito possessório, uma ordem dada pelo
Juiz para impedir que se toque na posse; ou, então, como a propriedade estava sendo
tocada, o direito concede ao dono da terra a ação de manutenção de posse, meio judicial de
impedir as ocupações não-consumadas. Estas seriam as medidas a serem efetivadas.
Necessitariam de ordem judicial. Mas era sábado e esta medida poderia ocorrer
na segunda-feira. Fato que mostra a importância de um processo de organização prévia para
efetivar-se uma ocupação, pois saber que barraco construído e habitado demonstra uma
posse efetivada é fruto de uma organização. As duas experiências anteriores
demonstraram ser necessário ir com todos os móveis e com o barraco pronto para ser
montado, e também chegar todo mundo na mesma hora. O que é confirmado na área do
Jardim Veloso: quem não chegou na hora, não pode mais entrar.
Mas os proprietários não desistem. Continuam a pressionar, durante o dia todo.
Tentam “negociar”: “Parem de construir que eu não derrubo nada. Espero vocês tirarem.”
Ameaçam: “se não quiserem sair por bem, vou mandar um trator. A lei me permite retirar
por forças próprias”. Faz-se uma comissão de “negociação”. Buscar-se-á o prefeito para
que ele intermedeie a negociação. Como este não se encontra na cidade, um grupo do apoio
vai conversar com ele, enquanto outro fica dando cobertura aos ocupantes.
Atuando de forma a pressionar ostensivamente, um dos proprietários manda vir um
trator de sua propriedade, com ordens de entrar na área para derrubar os barracos e destruir
tudo. Sabe que é contra a lei, mas tem a força ao seu lado. Como a aplicação destas leis de
despejo está sempre relacionada com a prática policial, estes proprietários sentem-se no
direito de usar força “própria”. Para ter-se dimensão desta “força” de pressão, é importante
salientar que o bairro denomina-se Jardim Veloso e a área é propriedade da família Veloso.
265
A força policial pública se faz presente. várias viaturas o tempo todo na área. As
ordens são para observar. se houver conflito devem intervir. Na verdade, os
delegados de polícia o advogados, e sabem que é contra a lei agir sem ordem judicial,
para desalojar as famílias. No entanto os policiais principalmente um deles (Tenente
Matos), fica o tempo inteiro conversando com os ocupantes, tentando mostrar que estão
errados em ocupar uma área de propriedade particular. Justifica a terra vazia, aconselha
todos saiam da área, pois o direito é do proprietário:
“Afinal é terra de herança. Além disso, os homens aí são poderosos. Melhor vocês pararem
de construir... Por que vocês não procuram uma área pública?”
(Tenente Matos)
Sem dúvida, evidencia-se o discurso dominante. A intocabilidade da propriedade. O
direito da terra ficar sem uso, mesmo não sendo para agir, alguns policiais consideram que
não custa tentar convencer as pessoas. É claro que esta atitude não é geral. Quando os
proprietários mandam o trator entrar, a policia se afasta: vai ficar vendo de longe.
intervirá se for necessário. Como afirma Stoyanovitch, citado por Baldez:
“é na prática da submissão à ideologia dominante, ou na prática de opressão jurisdicional ,
que o direito cumpre, no concreto, sua função de controle da classe trabalhadora em todos
os seus aspectos de atuação”.
(Baldez, M. L., Op. Cit. p. 11)
O movimento resiste. Enquanto o grupo de apoio trata com os proprietários, os
ocupantes, continuam a construir seus barracos. O teto precisa ficar pronto para poderem
dormir. Resistem também à entrada do trator. Formam uma corrente e afirmam que não
sairão da frente. se passarem por cima. O impasse permanece durante algum tempo.
Finalmente, os proprietários mandam o trator recuar. Os integrantes do movimento
acreditam em uma vitória. Foi, pelo menos, uma demonstração de organização e de
empenho na luta, pois estavam presentes não apenas os ocupantes da área, mas também boa
parte dos moradores do Jardim Piratininga e Vila da Conquista. A intermediação do poder
público municipal far-se-á presente ao final da tarde. Marca-se uma reunião para segunda-
feira, com representantes do movimento e dos proprietários. Intermediação também
realizada com o delegado de polícia que comparece à área. O movimento comprometeu-se
266
a não deixar entrar mais ninguém. Mesmo assim ficou acertado que haveria um
policiamento ostensivo, para evitar novas entradas. Mas também conseguiu-se que os que
estavam na área pudessem completar os seus barracos, para ter onde dormir, desde que não
entrasse nenhum material novo.
oOo
267
4.4. A presença partidária no processo de despejo
Durante este primeiro dia o grupo de apoio considerou que deveriam ser chamados
representantes dos partidos políticos, de preferência parlamentares, e demais entidades para
estarem presentes na área. Compareceram dois deputados estaduais pelo PT: Luiza
Erundina de Souza e José Dirceu. Um vereador do PT, de Osasco, esteve presente desde o
início da ocupação e foi o intermediador com o prefeito. Os demais partidos políticos não
se fizeram representar.
A presença de parlamentares em momentos de muita pressão deixa o movimento
mais tranqüilo para continuar sua luta. Sentem-se apoiados e reconhecidos como sujeitos
políticos. Mas a visibilidade desta presença, apenas em momentos de conflito, não permite
pensar a prática cotidiana como política. Nesse sentido, é bom destacar as diferenças de
postura diante dos movimentos. O PMDB, como já dito, esteve presente na hora da vitória
no Jardim Conceição, mas nos momentos difíceis para o movimento esteve ausente. Isto
pode explicar os motivos para que os movimentos não aceitem a interferência partidária e
lutem por sua autonomia.
Tradicionalmente o “político” só aparece na hora do voto. Em uma hora de conflito,
aparecer pode significar antepor-se ao poder constituído e, possivelmente, dada à própria
tensão, não arregimentar votos. Estes fatos talvez expliquem porque os movimentos
consideram seus atos como não políticos, pois como diz Eder Sader: Um ato político é
compreendido por interesses escusos e implica em manipulação” (Sader, Eder. Op. Cit.).
Como o mais visível é a tentativa de manipulação, de cooptação ou mesmo de
captação para seus objetivos, os movimentos, em geral, negam a participação dos partidos e
negam sua característica política. Penso ser necessário que os partidos políticos
comprometidos com as lutas dos movimentos populares deixem mais evidente a sua
participação, nos diversos momentos em que estão atuantes, sem “tentar capturar” os
participantes para os quadros partidários, ou para uma legitimação no poder. Isto é
importante para diminuir a compreensão da política como a prática de interesses escusos e
aumentar, ao mesmo tempo, a compreensão de que os atos praticados pelos movimentos
são atos políticos.
oOo
268
4.5. A continuidade da luta – apesar da tensão, novos interessados
Os participantes da ocupação entendem que o compromisso de intermediação da
Prefeitura garantirá uma vitória ao movimento. Logo após a retirada dos proprietários das
vizinhanças, realiza-se a primeira assembléia do movimento na terra ocupada, no Jardim
Veloso. Sentem-se cansados e vitoriosos. Acreditam, por informações incorretas, que após
24 horas na terra ocupada, com os barracos construídos, ninguém mais os tira de lá. Sabem,
no entanto, que devem continuar a organização, a luta, a construção dos barracos ainda
inacabados e organizar-se para ir conversar com os proprietários e com o Prefeito. Mas,
também é preciso vigiar a área, pois embora a policia esteja ali para não deixar nenhum
barraco ou mudança entrar, todos estão apreensivos com a atitude dos proprietários. Monta-
se guarda para evitar a entrada de estranhos.
Apesar do sábado ter sido tenso, os vizinhos descobrem o movimento, querem
inscrever-se, querem entrar na área com os seus barracos também. Mas o movimento
tinha deliberado, por entender ser esta a melhor forma, que só entra na terra quem tiver
participação.
Mas quem já não está participando do processo não consegue entender tal
mecanismo. Tentam ocupar as áreas remanescentes da gleba, limpando o terreno e trazendo
o seu barraco. Por não compreenderem o processo, não entendem que firmado um
compromisso de não entrar mais ninguém. Não entendem que podem prejudicar as
negociações do movimento. Não entendem também que não garantia de permanência.
Acreditam que a “expulsão do trator” resolveu o problema. Alguns até afirmam que,
como ajudaram a ficar na frente do trator, também já fazem parte do movimento.
também que acrescentar que os “empregados” dos proprietários que estiveram
na área, a serviço dos mesmos e contra os ocupantes, no dia seguinte de manhã tentam
entrar com madeiras para construir um barraco, na esteira do próprio movimento. Ora,
como os participantes do grupo 3 não conhecem todos os moradores que estão tentando
limpar os lotes, torna-se necessário vigiar a área e não deixar ninguém entrar, para garantir
a continuidade do próprio movimento.
Mas também é uma proposta do movimento ampliar a participação nas lutas pela
moradia. Começam a indicar o salão da Igreja próxima para que os novos interessados se
269
reúnam e discutam o que fazer. na primeira reunião são mais de 200 famílias, que não
cabem no pequeno salão da Igreja local. Dividem-se em grupos, em dias diferentes, para
iniciar um processo de discussão. Este aspecto é de extrema importância, pois, apesar das
incertezas que uma ocupação traz, da forte tensão, o movimento de luta por terra e moradia
passa a ser conhecido. Divulga-se uma possibilidade de luta. Alertam-se mais trabalhadores
sobre a necessidade de discutirem coletivamente seus problemas, de organizarem-se para
tentar resolve-los. Os participantes do movimento tomam consciência desse processo e
sentem-se agentes da história. Passam a ter a história, da sua vida, para contar.
Os proprietários continuam a fazer pressão. Para o Processo de Liminar de
Reintegração de Posse é necessário nomes. Assim:
“apareceu de manhã, dois moços, bem vestidos, para fazer uma pesquisa da Faculdade
dos advogados. Aí, nos pensamos, como eles chegaram aqui neste fim de mundo? E
falamos: ‘moços, vocês podem fazer a pesquisa, mas um de nós da comissão ou do apoio
acompanha vocês’. Aí, eles foram embora e não quiseram mais pesquisar e foram embora”.
(Depoimento)
Os ditos pesquisadores retiram-se, pois seus objetivos foram frustrados. Fatos como
esse fazem com que os movimentos permitam a entrada nas terras ocupadas, em
momentos de conflito, de pessoas conhecidas, o que mostra, também que, como estão
alertados para os mecanismos jurídicos defendem-se da melhor forma, pelo tempo que for
possível.
A manhã de domingo traz um novo problema: “O sufoco foi tão grande que todo
mundo ficou sem comer, agora é preciso pensar em terminar a construção da sede e
organizar a cozinha coletiva” (depoimento).
As doações de alimentos são muito pequenas, pois, além da comunidade ser pobre,
a ajuda foi orientada para garantir a permanência. A organização da cozinha coletiva faz-se
nos mesmos moldes das duas ocupações referidas. Mas aqui dura pouco, pois poucas
doações, já que os trabalhadores ficam cada vez mais pobres. Para fazer as primeiras
refeições da cozinha coletiva: “nós fizemos uma coleta na Vila da Conquista; os
companheiros que puderam doaram um ovo e um punhado de arroz” (depoimento – apoio).
Este mesmo procedimento é realizado pela comunidade através de pedidos de
doações em missas. Mas, para tentar permanecer na área, há, neste caso, muitas atividades a
270
serem feitas, e a cozinha coletiva acaba tendo mais a função de suprir necessidades, do que
caracterizar uma proposta coletiva de trabalho, muito embora este aspecto estivesse
presente.
oOo
271
4.6. A Liminar de Reintegração de Posse
No primeiro dia útil, os proprietários entraram com o pedido de Liminar de
Reintegração de Posse. Mas, caso inédito, o Juiz de Direito, Newton de Azevedo, não a
concede de imediato e tenta verificar as negociações que estão em andamento.
interesse do proprietário em vender e o movimento dispõe-se a comprar. Tenta-
se um acordo entre as partes, com a intermediação do Executivo e de Judiciário. Os
integrantes do movimento fazem uma pesquisa sócio-econômica para verificar, qual é a
parcela mensal que os ocupantes podem pagar. Verifica-se que, em média, poder-se-á pagar
o valor mensal de Cz$ 2.200,00 por família, o que representaria, considerando o número
total de moradores que poderiam ser alocados (450), a possibilidade de pagar uma primeira
parcela no início do mês de abril. Os proprietários queriam, de imediato, o pagamento de
Cz$ 25.000.000,00. que correspondia a 50% do preço atribuído no mercado. Mas, os
integrantes do movimento poderiam, pagar 20%, pois a área só contava com as 300 famílias
dos ocupantes iniciais, e, além disso, haviam gasto o dinheiro na compra dos barracos e na
mudança. As demais famílias, que já estavam se reunindo, só entrariam caso as negociações
dessem resultados positivos. O impasse continuava, até que finalmente o juiz concedeu a
Limiar de Reintegração de Posse citada à pág. 153, onde explica também porque
demorou tanto tempo (1 mês) para dar a sentença.
Um aspecto a destacar é que o movimento tentou, por todos os meios, adquirir a
área. No levantamento dos dados ficou evidente que todos queriam pagar até o limite do
possível (vide no anexo, levantamento sócio-econômico).
O valor venal do imóvel era de Cz$ 8.000.000,00. Nas negociações, o prefeito
havia-se comprometido com o movimento para em último caso, fazer a desapropriação, se
fossem esgotados os recursos de negociação para a compra da área: “não cumpriu uma
palavra do que prometeu. Esgotamos todas as alternativas” (depoimento).
Decretada a Liminar, todos os integrantes do movimento se dirigem à Prefeitura
para cobrar a promessa do prefeito. Propunham a desapropriação da área. Mesmo porque
esta área constava de uma relação encaminhada pela prefeitura à Cia. de desenvolvimento
Habitacional do Estado – CDH - , solicitando verbas para a desapropriação. Como a
prefeitura alegava falta de recursos, o movimento propõe pagar a desapropriação. Ou seja, a
272
prefeitura desapropriaria a área e o movimento devolveria o dinheiro, em parcelas, no
exercício em curso. Num primeiro momento o prefeito parece concordar, mas vai consultar
seu Conselho Político e o Departamento Jurídico da Prefeitura. Volta com a resposta, no
final da tarde do dia seguinte, após o despejo ter sido decretado, afirmando não ser
possível: “O jurídico viu que a prefeitura não podia fazer nada”.
Algumas considerações precisam ser feitas:
a) o argumento principal era que, se a prefeitura desapropriasse a área, estaria
incentivando outros movimentos a ocuparem área particulares e pressionarem a
prefeitura para desapropriar, tornando a cidade de Osasco “o paraíso das
ocupações”. toda uma pressão para que a prefeitura não dialogue com os
movimentos. A imprensa havia notificado, dias antes que os: “proprietários de terra
incentivavam as ocupações das ares” (ESP, 20/01/88). Esta forma de agir não é
conhecida pelos movimentos como interessando aos proprietários, porque, em geral,
o valor venal (que será o valor da desapropriação), é muito menor que o valor de
compra/venda.
b) O movimento, Terra e Moradia” é conhecido como tendo participado do Partido
dos Trabalhadores. Ora, se o prefeito desapropriasse a área, mesmo sendo a
Prefeitura ressarcida posteriormente, provocaria, possivelmente, um conflito interno
no seu partido, pois estaria privilegiando movimentos organizados por outro partido
que, possivelmente, captaria os votos em eleições futuras.
c) Ao argumento de que a prefeitura não tem recursos para adiantar o valor da
desapropriação, o movimento propõe a ida conjunta a ida ao governo do Estado para
sensibilizá-lo, o que não é aceito, pelos mesmos motivos apontados no item acima.
Além disso, ao responsabilizar as esferas federal e estadual, o prefeito passa a não
ser responsável, como se não fizesse parte da sociedade da sociedade e
principalmente do governo. São assim responsabilizados: o movimento de
ocupação, que não esperou os seis meses combinados e os poderes distantes que não
liberaram verbas: “eu não criei esta situação e não vou fazer nada” (Depoimento do
prefeito).
d) Na eminência do despejo, os ocupantes dirigem-se ao gabinete do prefeito. Ficam
alojados nos corredores, esperando uma resposta do prefeito, que os manda para um
273
salão: “onde ficarão melhor alojados, de haver lugar para sentar, etc.”
(Depoimento). Mas que também fica distante e de os ocupantes são visíveis para
quem entra e sai da prefeitura. Ao final de um dia inteiro de espera, o prefeito pede
para voltarem no dia seguinte. Mas vem a comissão: “se não fica o mundo mal
alojado” (Depoimento). Ao virem em grandes grupos para o espaço público, torna
mais visíveis o conflito. Passam a ser mais conhecidos. No entanto, o poder público
define quais espaços devem ser utilizados e quando devem vir.
Os espaços também são apropriados, pelos sem-casa, apenas quando lhe é dado este
direito? Ao ocuparem estes espaços públicos não obedecem à ordem estabelecida. Mas
como afirmar que o prefeito da cidade não os quer no pátio da prefeitura? Explicando que:
“ficam melhor alojados em casa”. Na angústia da espera do barraco prestes a ser demolido,
se não for tomada nenhuma medida, o lugar definido é o próprio barraco. O espaço público
é utilizável de modo diferente, dependendo a qual grupo se pertença.
Apesar de todas as tentativas do movimento, o despejo é realizado. Como proceder,
ir para onde? Tentou-se também, como ultimo recurso, negociar um novo lugar. De inicio,
nas vésperas do despejo, o próprio prefeito citou a possível ida para o Jardim Conceição. O
movimento queria garantir a permanência no lugar ocupado, como não foi possível,
espera que o prefeito autorize a remoção para o Jardim Conceição, o que não ocorreu.
muita idas e vindas em dois dias de muita tensão. Por parte do movimento aguarda-
se uma solução que poderia ser a desapropriação e depois a autorização para a ida ao
Jardim Conceição. Nada disso aconteceu. A resposta negativa do prefeito é dada às 20:00
horas do dia 2/3/88. O despejo inicia-se dia 3/3/88 às 5:00 horas da manhã, um mês e três
dias da noite da ocupação. Porque se esperou até o último momento uma resposta positiva?
O poder público, em que pese a organização do movimento, é ainda considerado o poder.
Mas, ao final, fica sendo o inimigo mais visível:
“O prefeito foi pior que o dono da terra. Ele ainda ta no direito, mas o prefeito não cumpriu uma
palavra, deixou a gente na rua”.
(Depoimento).
oOo
274
4.7. A resistência do despejo
Esgotadas todas as alternativas de permanecer na terra ocupada, é preciso achar um
lugar para morar. É preciso resistir, mudando de lugar. Os integrantes do movimento
articulam-se, procurando analisar qual seria o melhor lugar; definem que é o Jardim
Conceição, onde parte da área está ocupada pelo grupo 2: - Vila da Conquista. Correm-se
riscos: a prefeitura pode acionar a Liminar de Reintegração de posse, pode não dar início ao
processo de urbanização, culpabilizando o movimento. Aliás foi por estes mesmos motivos
que grupo 3, que está sendo despejado, procurou uma nova área e não foi, de imediato, para
o Jardim Conceição. Se alguns participantes do Jardim Conceição estão temerosos de
perder as: “coisas que conquistamos”, a maioria se expressa com a solidariedade de que
sabe que a luta é mesma:
“Nós estamos esperando os companheiros de braços abertos, se tiver que sair saímos todos
juntos, mesmo porque mais gene é mais difícil tirar”.
(Depoimento)
Para os participantes da assembléia na noite que antecede aos despejos estas
palavras trazem uma certa tranqüilidade, pois embora estejam tensos, é possível ver muita
solidariedade entre os companheiros do “Movimento Terra Moradia”.
Todos sabem que a resistência deve ser pacífica. Discute-se o que fazer, quando e
como arrumar os pertences, que barracos deverão sair primeiro, etc. Deve-se agir sem
afobação, tomar cuidado ao desmanchar os barracos, que deverão ser marcados ao se
carregar as madeiras. As crianças devem ir para o mesmo lugar onde ficaram no primeira
noite da ocupação. Haverá gente para cuidar delas e alimentá-las, pois a comunidade quer
ajudar, foi solidária na ocupação, fez abaixo assinado, que encaminhou ao Juiz, colocando-
se a favor dos ocupantes, não vai abandoná-los agora. Estes aspectos mostram que, apesar
da derrota, a organização permanece. Que a mudança é uma outra forma de resistência no
cotidiano.
Logo de manhã há todo um aparato policial para garantir o despejo: policiais,
bombeiros, polícia feminina, duas ambulâncias, assistentes sociais. Os advogados do centro
de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco solicitam acompanhamento do Juizado,
275
considerando o número de crianças na área. Como estão acompanhando o movimento
desde o início, entram com um Mandado de Segurança contra a liminar. A sentença mostra
com clareza a defesa que o poder judiciário faz da propriedade: quem está do lado dos
invasores não merece crédito” (despacho no mandato de segurança).
Esgotados todos os recursos, os avisos para que desocupem a área, com grandes
megafones, instalados em veículos oficiais, começam a cinco horas da manhã. Os
caminhões são responsabilidade do proprietário, para ajudar a desmontar os barracos e
carregar a mudança, significa uma despesa elevada para os proprietários que não quiseram
concordar com a venda para o movimento.
Enquanto os barracos da área mais próxima a rua são desmanchados e
transportados, a resistência cotidiana continua: lava-se roupa, louça, até se cozinha. Os
desmanches dos barracos são cuidadosos, para estragar o mínimo possível o material. Estão
presentes muitos companheiros, para dar apoio neste momento difícil, mas há muita tensão,
pois não se sabe se haverá repressão ao chegar-se com as mudanças no Jardim Conceição.
Quando os caminhões estão prontos para transportar as primeiras mudanças, vem a
pergunta: ir para onde? Embora em momentos posteriores o Prefeito negue, ele mesmo
autorizar “Comandante da Operação” que os policiais levassem as mudanças para o jardim
conceição, inclusive definindo qual o lugar que poderiam ficar.
As primeiras mudanças chegam na área e encontram funcionários da secretária da
habitação, que impedem a entrada apenas no trecho que estava sendo terraplanado, mas não
na gleba. Isto é importante, pois tranqüiliza um pouco os despejados. Posteriormente, o
poder público, afirmará que não autorizou a entrada na área, ameaçando-os com a liminar
de Reintegração de Posse.
Enquanto se marcam os lotes as madeiras do barraco, os móveis, e próprios
integrantes do movimento ficam “depositados” em um campo de futebol (vide foto no
anexo). O processo de reconstrução dos barracos é mais demorado do que a ocupação, pois
estão todos cansados, mal alimentados e vindos de um longo processo: “chego a ta com as
pernas tremendo de cansaço”; “tem hora, que vontade de desistir, mas também não tem
outro lugar para ir”. Mas há também muita coragem: “agora eu só saio daqui morta
(depoimentos). Muita gente vai perder o emprego, pois faltou para ocupar, para ir a
Prefeitura e agora para mudar e reconstruir o barraco.
276
Embora de modo precário, é preciso montar a cozinha coletiva, o que é feito na sede
e na casa de companheiros da Vila da Conquista. Mas não é possível esquecer que os
moradores sofrem com a dificuldade de abastecimento. Agora são mais de quinhentas
famílias que utilizam nove torneiras, que tem água apenas de madrugada e alguns dias da
semana. Cozinhar pra tanta gente, com tão pouca água, é uma grande dificuldade.
O movimento continua a sua resistência organizada.Começa-se a montar com
dificuldade os barracos, pois a topografia é acidentada, é coberta por uma vegetação
secundária e algumas árvores, em geral, eucaliptos. É preciso limpar os lotes começar a
construir.
A cerca de trezentos metros do trecho ocupado uma nascente, e é lá, sem antes
saber a qualidade da água, que o grupo 3 começa a abastecer-se. Mas a luta por água não
para aí. Continuam a lutar pela instalação de torneiras no local. Finalmente, em julho (4
meses após a instalação na área) conseguem a colocação de um cano de torneiras. Agora
pensar num modo de construir um reservatório de água, para ter água durante o dia.
oOo
277
4.8. A continuidade do Movimento
No cotidiano agora é preciso a saber lidar com as informações contraditórias.
Afinal, o Prefeito vai ou não tentar tirá-los de lá? Está em andamento um processo de
Reintegração de Posse. Mas há também que verificar como fica o gripo 2 – Vila da
Conquista, já que a Secretaria de Habitação parece estar pressionando a remoção dos
moradores para a nova área. Mas os moradores de Vila da Conquista, sabem que, para
proteger os companheiros, é importante que permaneçam na área até o dia 27 de junho.
Após um ano e um dia de ocupação, não é mais possível obter liminar para Reintegração de
Posse. Este prazo já passou. Agora é lutar para ir para o terreno definitivo, pois estão
cansados da vida sem água. Mas as máquinas da Prefeitura param de fazer terraplanagem, o
que exige novas mobilizações e idas a Prefeitura.
As formas de atuação do Poder Público não param aí. Logo após o despejo e a
realocação dos moradores no Jardim conceição, o Prefeito distribui um “panfleto”
explicando à todos moradores da cidade que a:
“Integridade e o futuro da cidade estão ameaçados. Políticos e eleitoreiros...
aproveiando-se da miséria alheia, estão incentivando, promovendo e coordenando a
invasão em todas as áreas livres de Osasco e até de alguns terrenos particulares...
transformando nossa cidade em uma imensa favela... inviabilizando espaço para
sempre – a construção de novas creches, escolas, postos de saúde, etc.”.
Confirma-se o que o movimento temia. Acabam sendo culpabilizados pela situação
de insolvência da administração pública. Mas o panfleto não para aí, pede que a população
fiscalize as áreas, pois:
“Os cidadãos de Osasco habitantes regulares e que cumprem os seus deveres e pagam
seus tributos têm o direito e reivindicar melhorias. E, nesse momento tem o dever de
defender nossas áreas livres”.
Ora, isto significa que os ocupantes de terra não são cidadãos. Isto significa dizer
que os postos de saúde, escolas, creches, não estão sendo realizados por culpa dos que não
pagam impostos, dos cidadãos de categoria inferior. Continua a parecer que recebe, os
que têm direito, um baixo salário que os permite uma condição de vida indigna.
278
Além disso, ao culpabilizar o movimento de ocupação de terra: “Pois estão
entravando o desenvolvimento do ‘Casa para Todos’”, que, como dito, é o projeto de
‘urbanização de favelas` reconhece como cidadãos os que ocuparam uma área atribui-se-
lhes o “status” de cidadão, sua situação de moradia, são considerados marionetes” nas
mãos de políticos eleitoreiros (vide panfleto no anexo).
Têm, assim, os participantes dos movimentos, no seu cotidiano, além de garantir a
sua sobrevivência, que lidar com a insegurança do lugar para morar. Procuram responder ao
poder público, explicando, com um outro panfleto, aos moradores da cidade porque
ocuparam terra para a moradia, tentando mostrar que quem faz política eleitoreira é o
prefeito da cidade. Aprendem na prática que seu movimento é político, mas também, são
obrigados a reconhecer que um documento assinado pelo prefeito da cidade tem muito mais
força para convencer os demais cidadãos do que um panfleto assinado pelo movimento dos
“sem-terra” (Vide panfleto do movimento em anexo). Ainda mais, descobrem que a
prefeitura esperava resposta e, assim, no dia seguinte, recolocava nas ruas o panfleto
citado, parecendo que o panfleto do prefeito é resposta ao do movimento e não o contrário.
Aos integrantes do movimento o prefeito garante que o panfleto estava dirigido ao
pessoal da “Floriza”. Porém, os participantes do “Movimento Terra e Moradia” de Osasco
sabem que é dirigido ao blico da cidade em geral e que foi uma forma de dizer que não
dialoga com movimentos que não estejam vinculados ao seu partido.
É bom destacar que os padres da Igreja Católica estiveram reunidos com o prefeito,
pressionando-o para atender as reivindicações dos grupos do Movimento Terra e
Moradia”, deixando explicito que apóiam este movimento e que um processo de
reintegração de posse não seria bem vindo e a Igreja denunciaria, pois os padres são
testemunhas de que o prefeito indicou a área do Jardim Conceição para ser ocupada, após o
despejo. Isto significa uma tomada de posição em relação à ocupação de terras que
estabelece explicitamente a forma de apoio colocada no documento da CNBB: “A luta pelo
Solo Urbano” (CNBB - doc. já citado).
Mas movimento continua sua luta cotidiana, na qual se incluem também
reivindicações dirigidas à própria prefeitura. Quando em meados de julho as máquinas
foram retiradas da gleba, os moradores de Vila da Conquista, estiveram no Paço Municipal,
279
onde tiveram que forçar a entrada e o atendimento: “ficamos o dia todo na prefeitura, os
banheiros foram fechados, não deixavam ninguém entrar” (Depoimentos).
Ao final da tarde, foram finalmente atendidos, com a promessa de que as máquinas
iam voltar logo e que em breve mudariam. Como foram “confundidos” com o grupo 3, a
prefeitura solicitou que a sigla CAEMO fizesse novas ligações de água, que foram
colocadas em um trecho mais próximo ao segundo grupo na área ou terra 3. E, assim, Vila
da Conquista permanece sem água. As medidas dúbias do poder público têm tornado os
integrantes das áreas muito arredio e com disputas internas
91
.
Enquanto isso, o abastecimento de água do grupo 3, é realizado na mina e nas
torneiras recém-ligadas que quer pela localização quer pelo diâmetro do material que foi
utilizado, tem tido água praticamente o dia todo. Mas tiveram, também, que impedir que as
torneiras fossem colocadas em uma área que ficaria distante 600 metros das casas. Estão
ainda fazendo as ligações de luz por conta própria, colocando postes e puxando os fios.
que o poder público não se define, os proprietários moradores vão resolvendo de
forma precária o abastecimento de luz e água, simplificando a vida cotidiana. Se o despejo
provocou um baque no movimento como um todo, este tenta rearticular-se repensando suas
formas de organização.
Em que pese que na gleba do Jardim Conceição morem mais de 500 famílias,
manteve-se a organização em dois grupos: Vila da Conquista, com 279 famílias e Jardim
Conceição 2, com 250 famílias. Embora tenha se tentado fazer um único grupo, os
integrantes destas duas ocupações consideram que dadas as especificidades é necessário
manter duas Comissões e as sedes de cada área. A união é dada pela participação na
coordenação.
No inicio de agosto, o prefeito faz uma visita a área e, promete não despejá-los,
embora já tenha parecer favorável do juiz para a Liminar de Reintegração de Posse.
Promete também incluí-los no Projeto de Urbanização da Gleba. Para acompanhar a
elaboração do projeto, forma-se uma comissão de projeto. Embora contentes, consideram
que esta vitória foi fruto da luta. Querem garantia de permanência com documentos
assinados.
oOo
91
Vide parte anterior sobre as disputas no Jardim Conceição 1.
280
4.9. É preciso que tudo mude (na aparência) para que tudo permaneça como está (na
essência)
(Lampeduzza in o Leopardo)
A área de mais de 70.000m2 localizada no Jardim Veloso, agora de novo vazia,
apresenta um nova aparência. Foi construído um muro, colocada uma placa indicando ser a
área de propriedade particular e proibindo a entrada de estranhos. Foi também aberta uma
grande “valeta”, separando o muro do passeio (calçada). A finalidade desta valeta é impedir
que caminhões derrubem o muro e entrem na área. A lei que define que os proprietário de
terrenos desocupados devam providenciar muro, limpeza do terreno e conservação do
passeio público, está agora sendo cumprida.
Na essência a terra continua vazia, permitindo que os proprietário apropriem-se da
renda gerada pela produção social da cidade. Na essência,o poder público,não atua de modo
a facilitar a organização dos movimentos que lutam por terra e moradia, pois, se assim
fosse, tentar-se-ia colocar em prática o que estabelece a Constituição em vigor (de 1969)
sobre a função social da propriedade. Agora é esperar que o Plano Diretor previsto na nova
Constituição, defina se esta área está ou não em descompromisso com função social.
Na essência a propriedade foi mantida intacta. Nada mudou. Mas na aparência é um
novo lugar.
O movimento de ocupação de terra, mesmo quando é despejado, (re)produz um
novo espaço.O que antes era uma área inteiramente abandonada, agora é uma propriedade
definida, cercada, murada. Mudou a aparência, o que deixa mais evidente a essência. Passa
a ser mais visível o confronto da terra vazia com a proibição da entrada, terra sem gente,
mas com o título de propriedade muito bem definido.
Para os que de algum modo têm notícias obre o ocorrido também mudanças na
compreensão desta produção do espaço. No dia em que proprietário tomou contato com a
ocupação, utilizou uma casa da vizinhança, de melhor aparência, como um lugar onde
poderia telefonar, etc. Ao que tudo indicava havia uma certa proximidade de classe,ou pelo
menos o interesse dos moradores em estarem mais próximos do poder. No entanto, após o
despejo, estes moradores explicitam que foram contrários ao despejo. A questão colocada é
que o terreno vazio é lugar de encontro de marginais:
281
“agora vão ser protegidos pelo muro, agente tem muito medo, pois não se sabe o que pode
acontecer atrás dos muros, na valeta pode aparecer gente morta”; “antigamente tinha a
valeta, mas s (os moradores do bairro) fomos jogando entulho para ir fechando, porque
de vez em quando aparecia um ‘presunto’
(Depoimento)
Não era possível, no primeiro momento, colocar-se a favor da ocupação, contra os
proprietários das terras, mas com o tempo e após o convívio com os ocupantes, é possível
compreender a questão do significado do espaço vazio: “Nos primeiros dias não sabia quem
era, mas depois que agente conhece que todo mundo é trabalhador” (Depoimento). Esta
compreensão possível porque, pelo menos durante um mês, tempo que durou a
ocupação, mudou a configuração do bairro.
Os movimentos ao produzirem um novo espaço de moradia, mesmo que não
consigam fixar-se, produzem um novo espaço, um novo conhecimento sobre a cidade e sua
produção.
oOo
282
5. O ENCONTRO DA IDENTIDADE
No percurso da luta para a obtenção de uma moradia constitui-se o “Movimento
Terra e Moradia de Osasco” que hoje representa as 3 áreas de ocupação: “Esta Terra é
Nossa” com 412 famílias Jardim Piratininga; “Vila da Conquista” com 297 famílias no
Jardim Conceição e Movimento “Jardim Conceição 2” com 250 famílias. Integram também
o Movimento, 350 famílias que moram na Favela do Braço Morto, bem como, 32 famílias
do grupo quatro.
O grupo quatro, começou a reunir-se na época da ocupação do Jardim Veloso, pois
como dito, logo após a ocupação, formou-se um novo grupo de interessados de mais de
400 famílias. No entanto, o despejo provocou um desarticulação deste novo grupo e do
apoio ao movimento, permanecendo organizadas apenas as famílias mencionadas. O grupo
quatro continua a reunir-se contando com a participação dos integrantes do grupo de apoio.
Havia uma proposta de incluir este grupo nas áreas onde foram instaladas as
famílias, despejadas, ou seja, no Jardim Conceição 2. Mas, a experiência de Vila da
Conquista, mostrou que importante ter todo um processo de constituição de sujeitos
coletivos, de reivindicar uma solução do poder blico, de esgotar todas as possibilidades,
antes de ocupar uma área, para evitar que o movimento seja uma “banquinha de
imobiliária”, pois o objetivo do movimento não é apenas o de que a população espoliada
consiga um lugar para morar, mas também, que estes movimentos, deixem saldos políticos
e organizativos. Que compreendam o processo de produção e consumo do espaço urbano.
Que a esfera do cotidiano seja compreendida na esfera do político.
Os integrantes do grupo de apoio consideraram inoportuno iniciar novos grupos de
trabalho para a ocupação coletiva de terra, tendo em vista: a) a derrota sofrida com o
despejo das famílias moradoras na área do Jardim Veloso. Além de ser uma derrota
política, é também muito difícil ver os companheiros na rua, cansados, sem expectativa de
conseguir um lugar decente para morar; b) a necessidade de continuar um trabalho iniciado
com estas famílias pois é preciso despender um duplo esforço para reconstruir os barracos,
rediscutir a organização do movimento, mostrar as questões importantes, que no processo
de luta pela permanência, ficara obscurecidas pelo cansaço; c) as dificuldades dos
283
moradores de Vila da Conquista, onde as famílias que não passaram por todo o processo,
acabaram não se integrando no movimento com um todo e a necessidade do grupo de apoio
estar rediscutindo as questões da construção das unidades e dos grupos de vizinhança; d) a
proximidade das eleições para vereadores e prefeito com o aumento de trabalho dos
integrantes do grupo de apoio, pois como dito, são militantes do Partido dos
Trabalhadores. Além disso, um militante morador do Jardim Piratininga é candidato a
vereador.
Desse modo, os integrantes do Movimento Terra e Moradia” optaram por
continuar a solidificar nas área ocupadas um trabalho mais efetivo de conscientização
política.
O “Movimento Terra e Moradia” organizou uma Coordenação Municipal, com
representantes, eleitos, das três áreas ocupadas e do grupo de apoio. Ele integra-se a “União
dos Movimentos de Moradia” da cidade de São Paulo e com a “Articulação Nacional do
Solo Urbano”. participam das deliberações e discutem com outros movimentos as formas
de lutas. Participam de manifestações com estes movimentos.
De início, pela necessidade socialmente determinadas, de buscar uma moradia
digna, os integrantes do movimento organizam-se na busca de um lugar para morar.
Constituem-se como grupo sujeitos coletivos e, na medida em que o processo de
produção do urbano torna-se nítido, não apenas buscam resolver a sua situação de moradia,
mas procuram difundir sua luta, os seus conhecimentos, ampliando o número de indivíduos
que participam dos movimentos. Encontram, assim, uma identidade. Constituem-se como
sujeitos coletivos que buscam a transformação da sociedade.
oOo
284
5.1. O vídeo: Movimento Terra e Moradia – Osasco
Além da importância que o vídeo possa ter para contar a história desse movimento
para outros movimentos, quero ressaltar a forma como tem sido vivenciado nas áreas
ocupadas “ver-se no vídeo”. Não apenas contam a sua historia, mas também “mostram” sua
participação naquela história. Vêem-se e são vistos pelos companheiros de caminhada.
Em geral, a emoção toma conta, dos que viveram a história, embora possam não
aparecer no vídeo. Lembram-se em detalhes das assembléias, das reuniões, da polícia, etc.
Até perguntam porque aquela parte não apareceu? Gostam de ver todas as fitas gravadas.
Uma das músicas do vídeo foi gravada pelo Fernando e seu filho Fabio. Em dia de
muita tensão, na espera da resposta do prefeito sobre a possibilidade de desapropriação da
área, quando a Liminar de Posse da área do Jardim Veloso já havia sido concedida, alguém
diz: “vamos cantar para ‘espairecer’ e ao mesmo tempo fazer barulho para o prefeito
atender a gente”.
A música cantada pelo Fernando é incorporada ao vídeo do movimento; ela mostra
um momento difícil o processo de migração mas, ao mesmo tempo, representou para o
Fernando, para o Fabio, para mim e para os integrantes do movimento como um todo, uma
nova experiência de vida:
“O urubu, que foi que disse a tu, que a tua vida lá no sul ia melhorá?
O urubu eu tenho dó de ti, homem, é melhor tu não saí daqui do teu lugar.
Tem muita gente que vive enganado, vive aperreado, pensando em riqueza.
Eu vivo sozinho, mas vivo calado, eu não merecia, a minha fortaleza”.
(Ludogério)
O vídeo tem sido parte integrante de reuniões, de festas. Foi o ponto alto da festa de
primeiro aniversário de Vila da Conquista, que significa a permanência. Para retirá-los
agora, seria necessário um Processo de Reintegração de Posse. O deo mostrava todo o
processo de luta para obtenção da moradia.
285
Na véspera da ida do prefeito ao Jardim Conceição 2, em agosto de 1988, o vídeo
foi passado várias vezes, para que todos pudessem assistir. Foi considerado pela Comissão
e pelo apoio uma forma muito importante de resgatar a própria história vivida, a memória
do movimento, pois a visita do prefeito poderia significar a possibilidade de permanência
ou a luta por esta permanência. O que se observou na visita do prefeito era que não estavam
empolgados com promessas. Comenta um morador da Vila da Conquista:
“Nem parece que eles ficaram contentes. Quando o prefeito falou para nós (em agosto de
1987), que a gente podia ficar, foi uma emoção só. Mas o povo daqui de baixo não sei não,
parece mais frio”.
(Depoimento)
É evidente que os moradores do Jardim Conceição 2 tiveram um processo de luta
acirrado. Afinal, ocuparam uma área, lutaram pela permanência, foram despejados e
passaram a ocupar esta nova área, já que estava com pedido de Liminar de Reintegração de
Posse. Formaram-se como sujeitos coletivos nesse longo processo, no qual o prefeito não
atendeu às suas reivindicações. O vídeo, assim, parece ter auxiliado no resgate da própria
história. De lembrar quantas promessas não forma cumpridas e como foi a luta para obter
uma moradia. Afinal a resistência, sintetizada no cotidiano da música: “Te entrega corisco,
eu não me entrego não, me entrego na morte de parabelo na mão” (Resistência: do filme
Deus e o Diabo na Terra do Sol, cantada por Neusa Pinheiro no vídeo).
Não ver-se e ser visto é importante para os movimentos. Em todo o processo a
imprensa de modo geral é presença que interessa aos movimentos. Mesmo sabendo que as
noticias nem sempre relatam fielmente os fatos, a presença de jornalistas, da televisão,
uma certa garantia de não-violência. Os proprietários das terras ocupadas, em geral, não
querem aparecer como mandantes de ato violentos. Como nem sempre a grande imprensa
atende aos apelos dos movimentos, a própria filmagem, que deu origem ao vídeo do
movimento, acabou significando esta garantia aos integrantes dos movimentos.
Procurei neste capitulo, contar um pouco do desenrolar dos fatos que marcaram a
ocupação das terras do movimento Terra e Moradia de Osasco. muitas historias vividas
para contar, muitas historias de vida, que espero estejam contidas sinteticamente nestas
286
paginas e no vídeo. Historia que mostra a resistência que caracteriza a vida cotidiana dos
trabalhadores espoliados, que ganham maior visibilidade em momentos de conflito. É esta
resistência cotidiana, é este conflito explicito, na luta pela moradia, que gesta, também um
encontro de identidade. Identidade de classe em movimentos de classe. São manifestações
de luta de classe.
oOo
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
288
As cidades capitalistas, nas quais se inclui a Metrópole Paulista, tem sido abordada,
em geral, como um lugar de todos, ou seja, a produção e o consumo como dirigido aos
cidadãos em geral. Na cidade, tida como de todos, é necessário pensar na “ordem e na
disciplina”, na organização espacial citadina, definindo os compartimentos espaciais aos
quais devem ter acesso os cidadãos.
A segregação espacial urbana mostra os lugares aos quais os diferentes cidadãos
podem ter acesso. Este acesso depende da classe ou parcela de classe a que permanecem.
Não mais cidadãos em geral, mas definidos pela classe social a que pertencem.
nas cidades capitalistas uma multitude de formas e processo de apropriação do
espaço urbano, todas elas em conformidade com as normas impostas para o “bem estar
comum” dos cidadãos em geral. Normas estas definidas pela propriedade capitalista dos
meios de produção e da terra urbana, onde, parece, que cada um tem a justa remuneração
pela sua contribuição à sociedade. Assim parece que cada um usufrui da cidade a qual tem
direito. Os capitalistas, que parecem produzir sozinhos a cidade, têm o direito a usufruírem
de uma cidade que conta com todos os equipamentos e meios de serviços coletivos, da
mesma forma que os proprietários de terra e o capital financeiro.
Os trabalhadores, que parecem ter nos salários a justa remuneração pelo trabalho,
terão direito a usufruir de uma cidade equipada, ou não, dependendo de sua “contribuição”
à sociedade e portanto do seu salário. Ou seja, uma divisão da classe trabalhadora por
faixas salariais que permite, para alguns, ter acesso a essa cidade equipada mas, para a
maioria, apenas usufruir de arremedos de cidade.
Como o salário parece ser a justa remuneração pelo trabalho, o fato da maioria dos
trabalhadores ganhar baixos salários (tabela 4) mesmo que acima do limite estabelecido
por lei como remuneração mínima necessária –, significa uma impossibilidade de ter
supridas as necessidades básicas, entre as quais a habitação, o que parece ser
responsabilidade, em primeiro lugar, do próprio trabalhador, pois este é considerado
incapaz de obter pela sua “capacidade” um salário maior.
Em segundo lugar, é responsabilidade do Estado, pois ao regulamentar as relações
de trabalho, define o necessário para a sobrevivência mesmo que irreal do trabalhador.
Mas como este salário é insuficiente, o Estado para suprir os baixos salários que ele mesmo
289
definiu, tenta suprir parte das carências alimentares com a distribuição do leite ticket do
leite –; das carências de transporte – passe de ônibus para os trabalhadores de até 2 salários,
pois pela lei, que este Estado mesmo definiu, o trabalhador deveria gastar apenas 6% do
salário em transportes; das carências de moradia com a produção de habitação dita de
interesse social; ou instituindo taxas mínimas de luz e água para os moradores das
chamadas habitações sub-normais, pois o preço cobrado por estes serviços, por este mesmo
Estado, é considerado superior ao que estes trabalhadores podem pagar. Assim a
responsabilidade do Estado parece uma doação aos incapazes de suprir suas “necessidades”
básicas.
O leite subsidiado é da mais baixa qualidade, as casas para atendimento da
população de baixa renda são definidas em pequenos lotes, com qualidade construtiva de
baixa durabilidade e resistência. Pois o trabalhador com o seu salário parece merecer
produtos de categoria inferior.
Mas mesmo a estas unidades não tem acesso a maioria dos trabalhadores, como
demonstram Nabil Bonduki e Maura Véras:
“De 1960 a 1985 formaram-se ou instalaram-se na Região Metropolitana da Grande São
Paulo, cerca de 2,44 milhões de famílias, das quais 1,56 milhão apenas no Município de
São Paulo: frente a tal magnitude a COHAB-SP, desde a sua criação até maio de 1985,
havia entregue apenas 65.850 unidades, ou seja, menos de 3% do que seria necessário.
Considerando que cerca de 67% das famílias da Grande São Paulo dispunham de
rendimentos mensais até cinco salários mínimos, conclui-se que cerca de 1,61 milhão
ficaram sem qualquer alternativa de habitação produzida com trabalho pago... De acordo
com critérios do SFH, a COHAB-SP estabelece como requisitos para sua clientela uma
série de procedimentos e documentos que poucos conseguem cumprir. Entre estes destaca-
se pelo menos dois: renda e estabilidade no emprego. A própria instituição declarava que
cerca de 50% das pessoas recebidas em postos de inscrição eram eliminados por
apresentarem renda inferior ao exigido e a proporção dos efetivamente atendidos era de
2,6%. Este dado, por si, revela o quanto de direito à habitação inexiste entre nós; a política
habitacional criada para atender a população de baixa renda, utiliza-se do critério de renda
para eliminar os que necessitam de uma moradia popular.”
(Bonduki, N. e Véras, M. 1986, p. 59)
Estes dados mostram com toda a clareza o discurso que se cria e recria em relação à
atuação do Estado, pois mesmos aos lotes diminutos não é possível ter acesso. Mas de
alguma maneira é preciso morar. Proliferam as soluções à margem mas integrante do
290
uso do solo urbano. Aumentam o número de favelas, de cortiços e ocupações coletivas de
terra. A luta pela garantia da terra ocupada, as lutas pela obtenção de água, de luz, de
transporte, caracterizam-se por serem movimentos de classe. São manifestações da luta de
classes que tentam obter o direito à cidadania.
Nas ocupações coletivas de terra, o início do processo caracteriza-se pela procura de
um lugar para morar. O termo lugar é utilizado pelos movimentos como sinônimo de casa,
de terreno para construir uma casa. Mas também deve ser compreendido no sentido de que
lugar não é um terreno em si, não é uma gleba não loteada em si, mas é um elemento da
totalidade concreta na produção espacial, como diz Marx: é a síntese de múltiplas
determinações.
Na busca de uma solução para o problema de moradia, inicia-se um processo de
compreensão da produção espacial. Esta compreensão é variável de um indivíduo para
outro, caracterizando as condições subjetivas da condição de classe. Esta compreensão é
resultado da troca de experiências, como também da interferência dos grupos de apoio aos
movimentos, que ajudam a pensar a condição de vida dos cidadãos que não conseguem
pagar o aluguel ou comprar uma casa/terreno e que, de tão espoliados, não tem condições
objetivas de refletir sobre suas condições objetivas e subjetivas de existência.
O processo organizativo tem como objetivo encontrar uma forma adequada de
moradia. Como o discurso oficial atribui grande importância à casa própria; a forma
considerada adequada pelos movimentos para obter uma moradia é a luta pela casa própria.
Como o discurso oficial atribui ao Estado suprir as necessidades de moradia da população
de baixa renda através de financiamento da casa própria –, é ao Estado que os
movimentos se dirigem para conseguir seu objetivo.
se explicita a contradição entre o que é incentivado teoricamente e o atendimento
real. Ao mesmo tempo que se incentiva a aquisição da casa própria, não produção para
quem não pode pagar. Os salários não conseguem suprir as necessidades de alimentação, de
saúde, de transportes, nem do aluguel, quanto mais a da compra da moradia.
A luta pela casa própria tem deixado mais evidente aos movimentos esta
contradição. Tem sido, também, uma forma de resistência, uma forma de vencer um
obstáculo imposto pelo capital.
291
Dirigir-se ao Estado e não ser atendido permite aos movimentos compreender que o
Estado não está acima das classes como se apregoa. Permite também iniciar um processo de
compreensão sobre de onde vem e para onde vai o dinheiro. Analisar a criação do BNH, o
uso dos recursos do FGTS, dos impostos em geral, é uma forma de compreender a
produção do espaço. Permite também analisar quais as áreas das cidades equipadas e não
equipadas com os serviços públicos e quem mora em cada um destes lugares.
É possível também, neste processo, perceber qual é o lugar onde devem concentrar-
se para reivindicar. Passa-se do bairro, da Igreja para a sede do poder local Prefeitura e
Secretaria de Estado. São assim os “Edifícios Públicos” conhecidos. E os movimentos
ganham visibilidade quando se dirigem a estes espaços públicos. Como, via de regra, estes
espaços públicos são privatizados, são barrados ao público em geral, no processo de
organização, os movimentos descobrem formas de pressão para que seus representantes
sejam atendidos. Publiciza-se o que de direito deveria ser público, mas que está privatizado.
Procurar uma área para ocupar significa compreender a cidade. Ver que – ao lado de
amplas áreas vazias, com asfalto, ônibus, luz, água –, outras áreas distantes em que
gastam-se horas nos ônibus para chegar em lugares sem água, luz, asfalto, etc. Significa
apropriar-se de um conhecimento sobre a produção da cidade. Significa também conhecer
os mecanismos jurídicos que regem a propriedade da terra.
As ocupações de terra têm maior visibilidade política do que as que ocorrem
cotidianamente nas favelas, pois mostram uma organização anterior. A visibilidade é
constatável pela grande procura que ocorre logo no dia seguinte a uma ocupação. A
visibilidade é constatável pelo seu oposto: nas noticias de rádio e TV, a última palavra é
dada ao poder público que sempre solucionará o caso”, resguardando o direito de
propriedade. A visibilidade é constatável pela ênfase dada à desocupação, quando esta
ocorre.
Uma ocupação conta uma história de um processo organizativo para aqueles que
estão na mesma situação. As ocupações coletivas de terra permitem, pela sua visibilidade,
romper com a visão de “povo” amorfo e facilmente cooptável. A resistência cotidiana
individual não adquire a mesma visibilidade da coletiva.
292
Os movimentos de ocupação coletiva de terra não tem sido cooptáveis, pois torná-
los aliados do poder constituído é premiar os que se colocam contra as normas
institucionais que regem o direito ao uso do solo. O que tem ocorrido é o poder público
tentar capturar, como campanha eleitoral, a possibilidade de atender às reivindicações dos
movimentos, sem prejuízo de atender aos demais moradores.
Apropriar-se da cidade no processo de ocupação coletiva de terra, permite que a
defesa da propriedade, pelos proprietários de terra e pelo poder público, torne-se mais
explicita. Fica mais evidente a contradição entre o que se diz sobre a função social da
propriedade e o que efetivamente aparece. Em geral, após um despejo, que conta com
grande aparato policial o poder público defendendo a propriedade privada os
proprietários tomam posse da mesma, cercam a área, passam a cumprir a legislação. Torna-
se mais evidente a propriedade vazia, com dono, enquanto há muita gente sem terra.
Para a maioria dos participantes dos movimentos de ocupação coletiva de terra
muda a dimensão da cidade. Passam a ter uma certa consciência de formas de produzir e
consumir as cidades. Verificam que como eles uma infinidade de outros moradores
espoliados. Gesta - se uma mudança, cria-se um possível repensar da condição de classe.
Cria-se uma identidade nesse processo.
Embora a manifestação apareça como fragmentada em um momento de tempo,
todo um processo de gestação desse momento. Questionam-se as formas estabelecidas a
partir da noção de justiça social, pois há direitos que estão sendo negados aos trabalhadores.
Evidentemente não resolve a situação de moradia digna para os cidadãos em geral.
Mesmo para os grupos participantes das ocupações a casa própria raramente tem sido
obtida. Mesmo, quando isso ocorre, são casas localizadas em arremedos de cidades, onde é
preciso continuar a luta, para obter os equipamentos e meios de consumo coletivo.
Esta identidade, na procura do lugar para morar tem mostrado que, para adquirir os
direitos reais de cidadania, é necessário compreender que a luta na esfera do consumo é
parte da luta na esfera da produção. Os movimentos de ocupação de terra têm considerado
que, muitas vezes, o que conseguem obter na luta salarial é consumido rapidamente na
moradia, vestimenta, alimentação; portanto, torna-se necessário compreender que as lutas
da esfera do consumo e da produção inserem-se na luta pelo direito à cidadania.
293
No processo de discussão dos problemas de moradia, que compreendem a inserção
do trabalhador na produção e consumo, gesta - se um processo de compreensão da
produção do espaço. Cria-se uma identidade de luta que amplia o conhecimento da
produção, da distribuição. Identidade de grupo, pois em cada uma das três áreas ocupadas
em Osasco, explicitam-se lideranças que, eleitas passam a representar o grupo como um
todo. Explicita-se uma luta comum, um pertencer a uma classe que luta pelo direito à
moradia.
O Movimento “Terra e Moradia” de Osasco deixa evidente que o fato de conseguir
obter um lugar para morar não faz esmorecer a luta. Pois, assim que os integrantes da
ocupação do Jardim Piratininga, obtiveram sua vitória e puderam permanecer na gleba,
foram participar como apoio para a Vila da Conquista. A ocupação do grupo 3 Jardim
Veloso, que despejado, teve que mudar para o Jardim Conceição 2, contou com o apoio dos
dois grupos anteriores. É uma demonstração de encontro de identidade na procura do lugar
para morar. Caracterizam a constituição de sujeitos coletivos, que não ocorre em um passe
de gica, mas em um longo processo de resistência de vida, de organização, de luta que
tive o privilegio de ver acontecer e participar enquanto geógrafa, tentando contribuir para
tornar mais evidente as contradições da produção e do consumo do espaço urbano.
Sem considerar ser este um único caminho de pesquisa, encontrei nesse processo
também a minha identidade. O conhecimento científico, para mim, só tem sentido se
colocado à disposição da classe trabalhadora, para contribuir, quem sabe, para que os
grilhões sejam rompidos.
oOo
294
APÊNDICE – Fotos
295
c) Movimento: “Esta Terra é Nossa” – março/87. são moradores do Conjunto
(INOCOOP) que virão pedidos de retirada.
d) Movimento: “Vila da Conquista” junho/87. Trabalha-se noite e dia para construir
a casa e a cidade.
296
e) Acesso à Vila da Conquista casas vizinhas tão ou mais precárias que os barracos
(julho/87).
f) J. Conceição – a auto construção predomina em toda a vizinhança (julho/87).
297
g)Jardim Veloso: Igreja lugar encontro. Construção tão precária como as moradias
(fevereiro/88).
g) Jardim Veloso: moradias auto-construídas; área vizinha à ocupação. (fevereiro/88)
298
i) É preciso resistir. Os integrantes do movimento “Terra e Moradia” impedem que o trator
derrube os barracos. (30/01/88)
j) A retirada dos ocupantes em 03/03/88 com forte aparato policial.
299
k) Só sobrou o terreno cimentado (03/03/88)
l) o muro depois do despejo dos ocupantes, (08/03/88), garantia da propriedade.
300
m) É preciso que tudo mude (na aparência) para que tudo fique como está (na
essência) (08/03/88). Terra vazia sem gente morando.
n) Muita gente morando sem terra (04/03/88). Jardim Conceição.
301
o) As mudanças e os despejos sucessivos acabam com os moveis, sempre muito
pobres (04/03/88). Despejo: Jardim Veloso.
p) Vila da Conquista/Jardim Conceição 2 Quando tem água de dia a fila é grande
(agosto/88)
302
q) Assembléias, reuniões: o encontro de iguais na luta para obter a moradia.
303
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316
ANEXOS
317
ANEXO I
PESQUISA DE CAMPO
Após um levantamento de áreas, visitas, vistorias, contactos com moradores e com
lideranças foram pesquisados os moradores das seguintes favelas e áreas vizinhas:
FAVELA JAQUELINE Localizada na Administração Regional do Butantã, Município de
São Paulo – acesso: Rodovia Raposo Tavares Km. 14.
Em 1980, segundo o IBGE, tinha 266 barracos, ocupando um terreno de
propriedade particular. Em 1987, segundo os moradores, contavam com mais de 600
barracos.
A vizinhança imediata é constituída de casas de alvenaria, construídas no processo
de mutirão e bastante precárias, que por sua vez é vizinha de um “condomínio fechado” de
alto padrão construtivo, uma espécie de “Portão de Entrada” na rodovia.
Os moradores da favela tem um nível de organização incipiente. Fiz várias
entrevistas com moradores, contatos com vizinhança e com as lideranças locais.
Foram marcadas várias reuniões com a Diretoria da Associação da Favela do Jardim
Jaqueline, mas os diretores não compareceram. A pesquisa foi realizada com os moradores
da favela e da vizinhança imediata.
FAVELA DO SAPÉ Localizada na Administração Regional do Butantã em São Paulo
Rio Pequeno em 1980, segundo o IBGE, tinha 860 barracos, e em 1987 já contava com
mais de 1000 barracos. A área é de propriedade da Prefeitura Municipal de São Paulo.
Nesta favela, no início da década de 80, foi executado um programa de urbanização
com verbas do FUNAPS.
Com relação ao nível de organização, conta com lideranças integrantes do
Movimento de Defesa do Favelado MDF –, porém, com pouca participação dos
moradores nas discussões mais amplas.
318
Os contatos e as entrevistas foram realizadas com lideranças e com os moradores
para debater a Iniciativa Popular na Reforma Urbana, bem como discutir o processo de
urbanização que já havia sido realizado na área.
O projeto de urbanização, realizado em 1980, não é sequer lembrado pelos
moradores, o que é compreensível pois o que foi considerado um projeto de urbanização:
construção de escadarias nas vielas, arruamento, colocação de luz domiciliar e torneiras
coletivas, escoramento com estacas do córrego, foi vencido pelo tempo. não é mais
visível.
A vizinhança imediata é constituída de casas de alvenaria, onde apenas parcialmente
é ainda visível o processo de autoconstrução que caracterizou a ocupação do bairro.
FAVELA SÃO JORGE POSTO/VILA OPERÁRIA Localizada na Administração
Regional do Butantã em São Paulo Jardim Arpoador com 250 barracos em área da
Prefeitura Municipal.
As unidades, em sua maior parte, estão quase que totalmente construídas em
alvenaria. Não se consideram favela, mas uma Vila. Em 1980, foi executado um projeto de
urbanização, com verba da FUNAPS, que contou com um remanejamento de barracos e
reconstrução dos mesmos em alvenaria.
A área ocupada pela favela, constava do Projeto de Desafetação e Direito e Uso de
1984.
A pesquisa foi realizada com os moradores, com as lideranças femininas e com a
Diretoria da Associação de Moradores.
MOVIMENTO TERRA E MORADIA DE OSASCO
Osasco Município vizinho da Grande São Paulo e parte integrante da Metrópole,
conta com vários movimentos de ocupação de terra. Foi analisado o Movimento Terra e
Moradia de Osasco.
319
GRUPO 1 – “Esta Terra é Nossa” – 412 famílias – Jardim Piratininga.
GRUPO 2 – “Vila da Conquista” – 297 famílias – Jardim Conceição
GRUPO 3 – “Jardim Conceição 2” – cerca de 250 famílias.
A pesquisa contou com entrevistas, acompanhando de reuniões, participação no
grupo de apoio ao movimento.
Produção do vídeo Movimento Terra e Moradia, co-autoria com vert-vídeo:
Nelson Akio Fujimoto. Filmagens do Padre Xavier, Nelson Fujimoto e Kozo Fujimoto.
ENTREVISTAS com lideranças dos Movimentos:
Diadema – Movimento de Favelas
Guarulhos – Movimento de Favelas
Campinas – Assembléia do Povo
Movimento de Defesa dos Favelados – MDF
Movimento Unificado de Favelas, Cortiços e PROMORAR – MUF
CORAFASP – Conselho Coordenador de Favelas de São Paulo
Movimento dos Loteamentos Clandestinos em São Paulo
PESQUISA EM JORNAIS E REVISTAS
320
Realizada no Centro Pastoral Vergueiro que conta com um arquivo especializado
em movimentos sociais urbanos.
oOo
321
TABELA 1
– Vencimento do contrato – verbal ou escrito por valor do Aluguel.
500 a
999
1.000 a
1.999
2.000 a
3.000
3.000 a
4.000
4.000 a
5.000
+ de
5.000
TOTAL
Não tem contrato.......... 3 9 11 4 1 - 28 (28%)
Vencido......................... 1 4 7 8 2 2 24 (24%)
Vence: dez/87, jan/88.. - 4 12 3 2 1 22(22%)
Vence fev/88, março/88..
3 2 6 7 1 - 19 (19%)
Vence abril em diante.....
1 - 3 1 2 - 7 (7%)
TOTAL...........................
8
(8%)
19
(19%)
39
(39%)
23
(23%)
8
(8%)
3
(3%)
100
(100%)
Fonte: Pesquisa de campo – nov./87.
Tabela 2 – Valor do Aluguel por número de cômodos
Camadas
500
a
999
1000
a
1499
1500
a
1999
2000
a
2499
2500
a
2999
3000
a
3499
3500
a
3999
4000
a
4499
4500
a
4999
5000
a
5999
Mais
de
6000
TOTAL
1 1 3 2 7 4 1 1 - 1 1 -
21
(17,4)
2 2 8 4 22 10 12 7 2 - - -
67
(55,4)
3 - 1 5 1 3 5 1 5 4 - 1
26
(21,5)
4 - - 1 - - 2 - - - - 2
5
(4,1)
5 - 2 - - - - - - - - -
2
(1,6)
TOTAL
3
(2,5)
14
(11,6)
12
(9,9)
30
(24,9)
17
(14,0)
20
(16,5)
9
(7,4)
7
(5,8)
5
(4,1)
1
(0,8)
3
(2,5)
121
Fonte: Pesquisa de campo – nov./88.
Salário Mínimo em nov. /87 = Cz$ 2.200,00.
322
Tabela 3
– Número de Casas no lote e Número de Cômodos.
CASAS NO LOTE Nº de
cômodos
1 2 3 4 5 6 7 8
TOTAL
%
1 2 5 5 3 3 3 - -
21
(19,4)
2 9 12 14 3 10 4 3 4
59
(54,6)
3 4 5 8 2 2 1 - -
22
(20,4)
4 2 1 1 - - - - - 4 (3,7)
5 2 - - - - - - - 2 (1,9)
TOTAL
19
(17,6)
23
(21,3)
28
(25,9)
8
(7,4)
15
(13,9)
8
(7,4)
3
(2,8)
4
(3,7)
108
Fonte: Pesquisa de campo – Nov./88.
Tabela 6 – Jardim Conceição 2 – Situação de trabalho de menores de 18 anos
SITUAÇAO DE TRABALHO IDADE
(anos)
TRABALHA NÃO TRABALHA
TOTAL
11 a 13 43 (97,7) 1 (2,3) 44
14 a 16 16 (64,0) 9 (36,0) 25
17 a 18 21 (65,6) 11 (34,4) 32
TOTAL 80 (79,2) 21 (20,8) 101
Fonte: Cadastro do Movimento – Jardim Conceição 2 – abril/maio, 1988.
Obs.: 1) Muito embora o início do trabalho remunerado seja para a maioria na faixa dos 14
anos, muitos não estavam trabalhando na data do cadastro, pois haviam perdido o emprego
por terem faltado muito na época da desocupação/despejo. Por outro lado, para as mulheres
nessa faixa de idade, a tendência é ficar cuidando da casa/irmãos, enquanto os pais saem
para o trabalho.
2) Dos que estavam trabalhando nesta data: 63,6% tinha registro em carteira.
323
Tabela 4
Cadastro : ocupantes do Jardim Veloso – Salário Mensal e proposta de prestação
para a compra.
SALÁRIO MENSAL PRESTAÇÃO
Valor Famílias % Valor Famílias %
S/ renda 5 3,0 - 13 8,0
Até
Cz$5.000,00
13 8,0
Até Cz$
1.000,00
20 12,2
De 5.000,00 a
Cz$10.000,00
82 50,0
De 1.000,00 a
Cz$2.000,00
57 34,7
De 10.000,00
a
Cz$15.000,00
43 26,2
+ de
Cz$2.000,00
74 45,1
De 15.000,00
a
Cz$20.000,00
9 5,5
+ de
Cz$20.000,00
12 7,3
TOTAL 164 100,0
Média pagamento mensal – Cz$2.250,00
TOTAL 164 100,0
Fonte: Pesquisa de campo/área ocupada – fevereiro de 1988 – SM Cz$5.280,00.
Tabela 5 Cadastro: Famílias interessadas/moradoras da região Salário Mensal e
proposta de prestação.
SALÁRIO MENSAL PRESTAÇÃO
Valor Famílias % Valor Famílias %
S/ rendimento
1 0,7 Até Cz$1.000
40 29,0
Até Cz$5.000
5 3,7
De 1.000 a
Cz$2.000
50 36,2
De 5.000 a
Cz$10.000
39 28,2
+ de
Cz$2.000
48 34,8
De 10.000 a
Cz$15.000
45 32,6
+ de
Cz$15.000
48 34,8
Média Pagamento Mensal Cz$2.250,00
TOTAL 138 100,0
Fonte: Pesquisa de campo Igreja do Jardim Veloso fevereiro de 1988 SM
Cz$5.280,00.
324
Tabela 7
– Jardim Conceição 2 – Escolaridade por faixa de idade
ESCOLARIDADE
IDADE
(anos)
Creche e
Pré-escola
1º a 4º série
5º a 8º série
Colegial Não Estuda
TOTAL
Até 1 - - - - 43 43 (11,6)
De 2 a 4 - - - - 88 88 (23,7)
5 a 7,5 2 12 - - 60 74 (20,0)
7 a 10 - 37 - - 28 65 (17,5)
11 a 13 - 23 1 - 20 44 (11,9)
14 a 16 - 3 5 - 17 25 (6,7)
17 a 18 - 1 3 5 23 32 (8,6)
TOTAL 2 (0,5) 76 (20,5) 9 (2,4) 5 (1,4) 279 (75,2) 371 (100,0)
Fonte: Cadastro do Movimento – Jardim Conceição 2 – abril/maio, 1988.
Obs.: 1) Há um grande número de crianças (55,3%) na faixa de até 6,5 anos de idade, o que
mostra famílias em expansão.
2) Na faixa de 7 a 13 anos, embora seja significativo o número de crianças que estudam,
(56%), há também uma grande parcela que não estava freqüentando a escola.
325
Tabela 8
: Jardim Conceição 2 – Renda Familiar e Número de pessoas por família
Nº DE PESSOAS NA FAMÍLIA SALÁRIOS
(Cz$)
1 2 3 4 5 6 7 8
TOTAL
Até 5.000 2 2 1 4 1 - 1 1 12 (7,0)
De 5.000 a
8.000
5 2 4 2 4 1 1 2 21 (12,2)
De 8.000 a
10.000
3 2 1 3 3 2 - - 14 (8,1)
De 10.000 a
12.000
7 4 3 6 7 2 1 2 32 (18,6)
De 12.000 a
14.000
5 2 7 1 3 - - - 18 (10,5)
De 14.000 a
16.000
5 1 8 2 1 1 1 - 19 (11,1)
De 16.000 a
18.000
6 1 2 3 - - - - 16 (9,3)
De 18.000 a
20.000
4 1 4 3 2 - - - 14 (8,1)
Mais de 20.000
4 3 6 7 5 1 - - 26 (15,1)
Sub-total 41 18 36 31 30 7 4 5 172 (100,0)
S/renda ou s/inf.
7 5 13 5 6 6 1 2 45
TOTAL
48
(22,1)
23
(10,6)
49
(22,6)
36
(16,6)
36
(16,6)
13
(6,0)
5
(2,3)
7
(3,2)
217
Fonte: Cadastro – Jardim Conceição 2.
326
Tabela 9:
Jardim Conceição 2 – Renda Familiar por número de pessoas que trabalham
QUANTAS PESSOAS
TRABALHAM
SALÁRIO
FAMILIAR
(CZ$)
1 2
TOTAL
Até 5.000 11 - 11 (6,4)
De 5.000 a 8.000
22 - 22 (12,8)
De 8.000 a
10.000
16 - 16 (9,3)
De 10.000 a
12.000
30 - 30 (17,4)
De 12.000 a
14.000
16 - 16 (9,3)
De 14.000 a
16.000
16 2 18 (10,5)
De 16.000 a
18.000
15 3 18 (10,5)
De 18.000 a
20.000
11 - 11 (6,4)
+ de 20.000 25 5 30 (17,4)
TOTAL 162 (94,2) 10 (5,8) 172 (100,0)
Fonte: Cadastro – Jardim Conceição 2 – pesquisa – abril/maio de 1988.
(Observações válidas para as tabelas 8 e 9)
Obs.: 1) O salário mínimo do mês de abril era de Cz$7.260,00, de maio Cz$8.712,00 e o de
junho Cz$10.368,00.
2) 67,5% das famílias ganhavam até dois salários mínimos e a totalidade até 3 salários
mínimos.
3) As famílias são, em geral, numerosas, onde trabalha fora na sua grande maioria uma
pessoa. Os filhos são em geral pequenos e as mulheres ficam em casa para cuidar deles
(vide tabela 8).
4) um grande número de pessoas sós, que correspondem, em grande parte, aos que
ocupam uma terra sozinho e depois a família muda.
(Observações válidas para as tabelas 8 e 9)
327
Tabela 10:
Jardim Conceição 2 – Idade/sexo dos chefes
SEXO
IDADE (anos)
H M
TOTAL
De 18 a 22 anos 13 22 35 (11,4)
De 23 a 27 anos 37 31 68 (22,1)
De 28 a 32 anos 44 21 65 (21,10)
De 33 a 37 anos 22 22 44 (14,3)
De 38 a 43 anos 19 18 37 (12,0)
De 43 a 47 anos 6 7 13 (4,2)
Mais de 48 anos 43 3 46 (14,9)
TOTAL 184 124 308 (100,0)
Fonte: Cadastro do movimento – Jardim Conceição 2.
Obs.: 1) Os chefes de famílias apresentam a seguinte composição:
Casal: 45,8%
Homem: 9,12%
Mulher: 24,4%
Pessoa só (homens ou mulheres): 20,6%
2) A faixa de idade da maioria dos chefes de família, situa-se no que se denomina famílias
jovens.
328
Tabela 11:
Jardim Conceição 2 Local de Nascimento dos chefes, por Unidade da
Federação.
CHEFES DE FAMÍLIA
ESTADO
NA %
Amazonas/Pará 2 0,7
Piauí 45 15,2
Maranhão 1 0,3
Rio Grande do Norte 9 3,0
Paraíba 5 1,7
Pernambuco 41 13,9
Alagoas 9 3,0
Sergipe 4 1,4
Ceará 25 8,4
Bahia 61 20,6
Minas Gerais 25 8,4
Espírito Santo 2 0,7
Paraná e Rio Grande
do Sul
15 5,1
Goiás 2 0,7
Brasília 1 0,4
São Paulo 49 16,5
TOTAL 296 100,0
S/ informação 28
Cadastro do Movimento – Jardim Conceição 2.
Obs.: Não nenhum caso de migração direta para a área ocupada, no entanto a maioria
é proveniente dos Estados do Nordeste.
329
- Material distribuído pela Prefeitura de Osasco em 05/03/88 logo após o
despejo da área do Jardim Veloso e a “mudança” para o Jardim Conceição.
- Redistribuído após 10/03/88.
330
- Material distribuído pelo movimento em 10/03/88.
331
- Carta entregue pelo Clube de Mães Dona Zilda à esta pesquisadora.
332
CARTA ABERTA
AOS MORADORES DO JARDIM VELOSO
Somos mais ou menos 200 famílias que não suportando o sufoco do
aumento do aluguel, que atingiu o patamar de 540% não estamos mais
conseguindo sobreviver. Ou pagamos o aluguel e morremos de fome, ou nos
alimentamos e ficamos na rua.
Para não morrer de fome, muitos de nós fomos despejados e outros
estão para ser, por não poder pagar o aluguel.
Diante deste sofrimento, resolvemos criar coragem e nos unir para
conseguir um canto para morar; por isso, estamos dentro dessa terra que há muito
tempo está desabitada e portanto inutilizada.
Somos trabalhadores que aqui chegamos de surpresa e como seus novos
vizinhos estamos nos apresentando.
Com muita dificuldade viemos para este chão com nossos filhos, na
esperança de poder criá-los com um pouco mais de dignidade.
Os barracos de madeira são provisórios, pois nossa luta é para
construirmos uma vila bem organizada de boa pra se viver.
Como vocês sabem, entramos na terra com a cara e a coragem, e, nos
primeiros dias, até acontecer a negociação da terra, nossas condições são
totalmente precárias; por isso, além de nos apresentarmos; estamos pedindo sua
compreensão e apoio. Estamos sem água, luz e até alimentos podem faltar.
Agradecemos a sua atenção e esperamos contar com sua solidariedade.
COMISSÃO DO MOVIMENTO
DOS SEM TERRA-OSASCO.
- Carta entregue aos vizinhos da área ocupada.
333
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