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Dados da Licença:
a rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-
nd/2.5/br/"><img alt="Creative Commons License" style="border-
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rel="license" href="http://creativecommons.org/licenses/by-nc-
nd/2.5/br/">Licença Creative Commons</a>
A Medida das Saudades
Geraldo Pereira
Recife, 2006
EDITORA
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Ficha
catalográfica
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Aos que me ensinaram a não desistir nunca.
Àqueles com os quais aprendi a cultivar
as minhas saudades
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Sumário _____________________
Apresentação .....................................................
Prefácio .............................................................
Tragam as Vasilhas .................................................
Preciosos Alfarrábios .............................................
Assum Preto ................................................ ..........
Floresta dos Leões ..................................................
O Altar dos Rochedos .............................................
Encontros e Reencontros ........................................
Tampa-de-Chaleira .................................................
Tipos do Recife .......................................................
Macaxeira Rosa ......................................................
Consertador de Panelas .......................................
Pregões do Recife ...................................................
Uma Sociologia do Parque ......................................
Sociologia da Gafieira ............................................
Sociologia do Mercado Público ...............................
O Doidinho da Católica ............................................
Prenome e Cognome ...............................................
No Mundo da Lua ....................................................
Mordomia Extravagante ..........................................
Quarto de Hotel ......................................................
Um Papa Tupiniquim ...............................................
O Tio do Boy ...........................................................
Riso Sardônico .......................................................
O Trem Bala ............................................................
Cerejeiras Desfolhadas ...........................................
Em Tempos Assim ...................................................
O Texto e o Vírus .....................................................
Cão sem Gravata ....................................................
O Mata-Borrão ........................................................
A Porta do Avião .....................................................
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O Gordo e o Magro ..................................................
O Gordo e o Código.................................................
Contrastes do Cotidiano ..........................................
Fiando Conversa
...................................................
O Big Brother e outros Horrores ..............................
A Mangueira e a Cerejeira .......................................
A Medida das Saudades ..........................................
Almanaques e Boletins ............................................
Comadre Fulozinha .................................................
Na Esplanada do Derby ...........................................
Um Basta aos Desencontros ...................................
Diálogo com o Leitor ...............................................
Do Luto e das Esperanças .......................................
Ladrão de Galinhas .................................................
Folhas Secas .......................................................
O Recife de Agora ...................................................
O Terceiro Zé .........................................................
O Vagabundo da Praça ...........................................
Os Brotinhos ...........................................................
O Feitiço Religioso ..................................................
Jorge Regueira .......................................................
A Finitude Humana ..................................................
Mãe Desesperada ...................................................
Respeita Januário ...................................................
A Proximidade do Inexorável ...................................
Os Ares da Jaula .....................................................
Convívios com meu Pai ............................................
Barão de Guaporé ...................................................
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Apresentação
Este livro não foi pensado ou não foi forjado para reunir idéias
e ideais numa seqüência lógica das coisas e das reflexões. Aqui estão
crônicas de jornal publicadas no Jornal do Commercio do Recife ,
em grande parte rememoram um cotidiano que se foi encantado nas
brumas da globalização crescente, a padronização de tudo e de todos,
desde o uso corriqueiro dos equipamentos domésticos aos costumes da
gente urbana e até da gente matuta. Hoje, não se entra numa moradia,
por mais simples que seja, para deixar de encontrar uma televisão de
boa marca e um telefone, sem falar no celular que veio para ficar e ser
largamente vendido nas esquinas das metrópoles. A máquina de
escrever foi aposentada, sem a menor possibilidade de resgate, e foi
mesmo necessário, o computador de casa a substituiu com vantagens.
O que vai escrito nessas páginas são lembranças das ruas e dos
becos da cidade, com os seus personagens típicos, atores, tantas vezes,
das cenas recifenses na década de 1950/1960. Os hábitos e os costumes
da época, de um pós-guerra conturbado. O dono da rua do Imperador e
conhecido Lolita, homossexual declarado, o célebre Chá Preto e Pente,
vendendo as suas meizinhas? E da estirpe mais fina, na Rua Nova, na
parede da Matriz de Santo Antônio, o quiosque do Wilson, fotógrafo e
amante do burgo em que nascera tinha o prazer de expor figuras de
proa na política ou na sociedade. Onde andará tão importante acervo?
Impossível não escrever sobre os vendedores e os prestadores
de serviço. O homem da verdura, que em sua carrocinha de cor azul ou
verde comercializava a cenoura e a vagem, o pimentão e o jerimum. O
mascate passava mais tarde, um cavalo lhe fazia as vezes, puxando
uma carroça cheia de gavetinhas, nas quais guardava linhas, dedais,
agulhas e outros apetrechos para as senhoras costureiras e bordadeiras.
O sapateiro ajudava as famílias a economizar um pouco mais com a
meia-sola que aplicava ou com o salto de borracha. Para menino com o
torto, não havia dúvidas, um pedaço de ferro que protegesse o
calçado e ia o penitente com a sua ferradura nos pés. Usei mais de
uma vez! O consertador de panelas anunciava de longe a sua passagem
e o fazia com um ruído ritmado de um ferro sobre a caçarola velha e
muito usada. O amolador de facas e tesouras, também, anunciava de
longe seus serviços.
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No final do livro estão algumas das minhas lamentações,
confissões das minhas tristezas e de meus clamores quando perdi meu
pai, declarações, por certo, da orfandade estabelecida, mesmo que
incompleta. Outras confissões traduzem os meus momentos de
inquietação e o meu desassossego na difícil tarefa do existir. Momentos
de alegria e horas de profunda introspecção: assim é a vida.
Se o leitor desejar ler que o faça e depois comente, critique ou
deixe qualquer observação.
Geraldo Pereira
pereira@elogica.com.br
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Prefácio
São muitos os cronistas que não deixam morrer as coisas do
Recife. Que falam da poesia de suas ruas, com seus nomes tão
evocativos - Rua da Aurora, Rua do Sol, Rua da Saudade, Rua das
Águas Verdes -, que nunca esquecem dos tipos populares, alguns dos
quais deixaram a vida para entrar na história - Chá Preto, Lolita,
Colaço, Tenente da Rua do Imperador - que perpetuam, nos seus
escritos, o perene caminhar de uma cidade que se transforma e se
renova, infelizmente nem sempre para melhor.
Um desses cronistas, com presença constante no Jornal do
Commercio, é o médico e professor Geraldo Pereira, cujo pai, o mestre
Nilo Pereira, durante quase meio século teve espaço cativo em sua
página de Opinião. Pois bem, com o olhar arguto de quem observa no
cotidiano os pequenos dramas que a visão comum às vezes não vê,
Geraldo, em suas crônicas, redescobre anônimos personagens sem os
quais o se constrói a vida de um burgo, relembra o sapateiro da
esquina e o vendedor de peixe do subúrbio, o violão que plange sua
dor nas horas mortas de uma noite de luar. E tece, numa linguagem
limpa e agradável, a suave teia com a qual protege dos desavisados a
crônica lírica de um Recife pouco conhecido. Traz, também, em
algumas linhas, lembranças da vida familiar onde era muito forte a
presença do pai, jornalista, professor, escritor, político e intelectual de
mão cheia, que um dia deixou seu Rio Grande do Norte para se tornar,
no Recife, cidadão do mundo. Sente-se, ainda hoje, nas crônicas de
Geraldo, o quanto foi forte na sua formação a influência de Nilo.
pessimismo em alguns dos seus escritos? Certamente não...
há, como o poderia deixar de ser, em algumas crônicas, um certo
desalento ou desencanto diante de tantas iniqüidades que se pelo
mundo, de tanta violência gratuita que atemoriza e desassossega a
classe média, das injustiças, da perversa desigualdade social que
esgarça a cada dia o frágil tecido de nossa convivência. Tudo isso
Geraldo retrata com segurança, lirismo, intimidade quase.
Creio que não poderia ter sido melhor a iniciativa de Geraldo
Pereira ao reunir, em livro, parte de suas crônicas publicadas ao longo
de anos no Jornal do Commercio do Recife, a exemplo do que
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fizeram cronistas da cidade iguais a ele, como Rostand Paraíso, Arthur
Carvalho, Nelly Carvalho e José de Souza Alencar (Alex), entre muitos
outros. Sabemos todos de quanto é efêmera a vida de um exemplar de
jornal - dura apenas 24 horas - e não houvesse essa preocupação de
trazer para o livro aquilo que se registrou na imprensa, muito de nossa
história se perderia (veja-se o exemplo maior de Os Sertões, que
Euclides da Cunha publicou inicialmente como uma série de
reportagens no jornal O Estado de São Paulo, do qual foi
correspondente no episódio de Canudos). Está aí, portanto, à
disposição dos leitores, um pouco de um Recife que se apresentará
desconhecido para alguns, mas perfeitamente íntimo para outros. Um
Recife que continua seu processo de permanente mudança, interagindo
com todos os ditames da modernidade, mas também conservando o
lirismo de suas praças e o mistério dos becos e ruas por onde caminha
a pequena burguesia, sem a qual nenhuma cidade teria alma.
Ivanildo Sampaio
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Tragam as Vasilhas
Sou do tempo dos encantadores pregões, de antigos vendedores
que ofereciam seus produtos com a musicalidade da voz, grave ou
aguda, a depender de cada um. De poetas do dia-a-dia das coisas,
cantores das ruas, com rima ou sem rima, contanto que mostrassem a
variedade ou a qualidade e obtivessem o desejado retorno das moradias
de classe média. De meninos ou de meninas, das senhoras bem trajadas
ou daquelas de roupas cosidas e até cozidas com a crueza da chita, que
nas casas serviam como domésticas, tangidas dos canaviais distantes.
Como esquecer do que me falou Sílvio Costa, que pras bandas de Pau
Amarelo corteja saudades: “Espanador/Vasculhador/Colher de
pau/Esteira d’Angola/Rapa Coco/E grelha/Eu tenho quartinha”. Foram
coisas assim, mais do que puras, que preencheram tardes mornas de
sábado. Ou foram os acordes tirados da gaita do amolador de tesouras,
que a tudo amolava ou as notas do homem do pirulito que embalaram
sonhos e devaneios da meninada de outros anos ou de outras eras.
Detesto essa modernidade do hoje, do microfone instalado em
velhas e carcomidas "Kombis" anunciando ovos e verduras, uvas e
bananas, laranjas aos borbotões e abacaxis em quantidade. Até o
sorvete de fato artesanal no meu antes vem sendo comercializado
assim: "Olha o sorveteiro barateiro! Dez bolas por um Real! Tragam as
vasilhas! Tragam as Vasilhas!". Ninguém agüenta mais a repetição, que
lembra um certo apresentador de televisão dizendo: "Abram as
cortinas! Abram as cortinas!". E se vou mudar de casa, deixando de
assistir neste canto para morar num recanto, o Rosarinho, lugar de
onde emergem muitas das reflexões de Fátima Quintas - o Quintas da
Jaqueira -, não me livrarei do sorveteiro barateiro. Dia desses por
ouvi a indiscreta loa e mais do que perplexo confidenciei aos meus
botões: "Eu não acredito numa coisa dessas!". Mas, é verdade,
responderam! Lamento o desaparecimento de toadas como esta: "Eu
tenho de barriguda/ Para travesseiro/...". Ou : “Olha a bolinha de
cambará/Dois pacotes é um vintém/...”
O cavaquinho de agora vende-se aos pacotes, enrolados no
plástico translúcido, sem a sonoridade do velho triângulo, equilátero,
sobretudo, que pendia do indicador esquerdo, tocado, na mais
sincrônica das formas, com vareta bem temperada de aço acalmado à
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mão direita, a percorrer cada um dos lados, tirando as notas dos desejos
infantis. E o cuscuz matinal, despertando as famílias com o silvo forte
do vendedor, em tudo, madrugador? Desapareceu, quase, deste Recife
contemporâneo, desses dias que correm mais que aqueles, de criança!
Um ou outro remanescente percorre as ruelas das periferias urbanas,
sustentando tradições! O sino do vendedor de bolos, de broas e de
outros acepipes, que carregava na cabeça a produção doméstica, em
móvel envidraçado, com quatro longas pernas de cor azul, silenciou na
distância dos muitos anos contados pra trás! O homem que gritava a
macaxeira e que ouvia de nós outros a indagação cavilosa “Como se
chama a sua mãe?” -, calou-se, vive a mudez das lembranças, apenas,
na surdez das impiedosas mudanças!
Mudou tudo, afinal, mudaram as pessoas da rua e os parentes,
há filhos jovens e sobrinhos novos contados em maioria! Morreram os
velhos! E morreram, do mesmo jeito, os autores e os atores dos antigos
pregões, dos matinais e dos vespertinos, anônimos cantadores das ruas,
de cujas transformações nasceram muitas das dores d'alma e das
saudades. Sequer existem babás a cantarolarem a própria desdita:
"Quem faz o bem/Recebe sempre o mal/...". E nem meninas brincando:
"Eu sou rica/Rica/Rica/...". Tampouco adolescentes em flor entoando:
"...Serei eu rico/Ou muito pobre?/ Que será/Será/Aquilo que for/Será/O
futuro não se vê/Que será/Será....". Morreram as tias velhas, viúvas e
mal-amadas, que versejavam: "Nos cigarros que eu fumo/Te vejo nas
espirais/Nos livros que eu tento ler/Em cada página tu estás/Me deixa
ao menos/Por favor/Pensar em Deus...".
"Tragam as vasilhas/Tragam as vasilhas...", na verdade, é o
refrão das manhãs ou das tardes dos sábados e dos domingos e "Abram
as cortinas! Abram as cortinas!" encerra, afinal, o domingo,
antecipando inquietudes.
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Preciosos Alfarrábios
Este lixo que sai assim, de meu gabinete de trabalho, em casa,
na preparação para a mudança, de um velho sobrado para um
apartamento novo e bem cuidado, guarda muito das minhas saudades,
nostálgicas lembranças de meus ganhos e de minhas perdas! Livros
que se desatualizaram na corrida do desenvolvimento da ciência e da
técnica, sublinhados ainda, grifados, na importância e na valia das
citações e que me serviram de roteiros definitivos, na condução
profissional e no magistério. Mas, sobretudo, os meus papeis, que não
cabem mais no espaço da acomodação moderna, manifestações de meu
espírito, paridas nas horas de meus enlevos e de minhas dores. Aqui e
ali expressões dos ardores d'alma, recordações da infância, vivida e
revivida, então, da adolescência inquieta e da juventude, do mesmo
jeito, irrequieta. Recordações, até, dos amores e dos desamores, de
encontros e de desencontros!
Retratos, também, fotografias que o tempo marcou,
descolorindo personagens e camuflando paisagens, fisionomias
mudadas, agora, recantos transmudados, igualmente, crianças que
cresceram e adultos que envelheceram, gente, enfim, sofrendo a
metamorfose do tudo. Velhos que se foram, tangidos da vida! Cartões
de todo tipo, os de Natal e os de cumprimentos, de aniversários
passados e de idades vencidas ou aqueles dos sentimentos e do pesar.
Convites, os de formatura, a do colégio e a da faculdade ou aqueles do
matrimônio, que me trouxe da família a graça! E os afetos das filhas,
em letras dos inícios, fazendo do pai o herói que não é, os de agosto e
os de outubro, o Dia dos Pais e o natalício. Telegramas e cartas,
escusas e saudações, parabéns e congratulações. Nada ou quase nada
que possa reanimar traços do sofrimento, reduzido às cinzas, pois!
Mexendo e remexendo esses alfarrábios, alguns carcomidos já,
identifico as primeiras de minhas crônicas, escritas à o, antes da
modernidade do hoje, do computador e do teclado, do monitor
expondo palavras e juntando vocábulos, armando frases e construindo
períodos. Crônicas, inclusive, de um começo tão precoce, que sequer
foram publicadas, devaneios, então, dos verdes anos. Resgates, vejo
agora, de meus pretéritos, nessa nostalgia de meus tempos. Reflexões
daqueles antanhos! Discursos, também, que fiz nos princípios, aqui no
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Recife, mesmo, no Colégio brega, de tantas lembranças e em o
Paulo, quando fui eleito orador da turma, representando os alunos
brasileiros. Um tupiniquim falando para quatrocentões! Coragem que
a juventude deixa expor, em considerações, sobretudo, a propósito
da pátria que é o Nordeste,o injustiçado!
o quatro décadas, pelo menos, de recordações e de
lembranças, coisas trazidas de casa, ainda, do sobrado azul onde nasci,
onde pontificou meu pai e pontifica a minha mãe, a permearem a vida
e as coisas do meu ontem mais recente, de dez ou de vinte anos pra
trás, de casa, também, mas da minha do agora! Pedacinhos de saudades
que se juntam, então, no grande quebra-cabeças do existir humano,
dando por resultado o ganho das vitórias, que suplanta aquele das
perdas experimentadas e sentidas. Um quebra-cabeça que ao final,
depois de armado e completado, em parte já, mostra uma grande
estrada, larga e asfaltada, mas repleta de percalços, de pedras no
caminho e de enormes buracos no passeio dos andantes, nos quais os
tropeços são inevitáveis e nos quais sucumbem os incautos, penitentes
deste mundo de Deus e dos homens! Mas, é possível prever: "Vim, vi e
venci!".
Lixo que não é lixo e luxo que não é luxo! Somente aqueles
que experimentaram o deleite e o êxtase da existência, na manjedoura
ou no doirado leito, mesmo que em momentos mais que efêmeros,
podem se permitir o sentimento e as reminiscências. Ninguém resgata
o, inteiramente, pesaroso, senão nas horas do pranto. E ninguém
recupera na memória o tempo da aflição, sem que novamente esteja
sob os impulsos dos humores pessimistas. Sou assim, gosto de rebuscar
o passado e sei de tudo e de todos, até os meus limites! Tenho profundo
interesse pelos amigos do outrora, pela gente que comigo foi gente e se
os perdi de vista, francamente, não foi pelo querer de meus afetos!
A vida é bela, afinal! Vale a pena, com tudo que é ruim e com
tudo que perturba! Viva a vida, então!
Assum Preto
Estou me preparando para uma mudança a mais na minha vida.
Sou um nômade, quase! Antes da virada do século, que arrasta um
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milênio, vou me fixar em prédio novo e bem-acabado, pago tostão por
tostão, no lugar onde morou o mestre Amaro Quintas e, certamente, o
lugar onde Fátima Quintas viveu parte do que hoje evoca: o Quintas da
Jaqueira! Ignoro, todavia, se por aquelas bandas, ainda, o sab que
o patrono de minha rua, o homem que nome ao rincão em que
assisto agora Bernardo Guimarães –, invocou em seu poema de
mestre? Se é possível dizer como ele disse: “...Quem te inspira o doce
acento,/Sabiá melodioso?/Que mágoas tristes lamentas/Nesse canto
suspiroso?...”. Por cá, em homenagem ao poeta, o amanhecer é
anunciado dessa forma, pelos sinfônicos acordes de pássaros assim,
derradeiras espécimes da sonoridade natural. E ao entardecer, como
disse Guimarães, ouve-se o trinar distante, da anunciação, também, de
um tempo que emerge, à noite, pois, com a negritude do tudo. Vez ou
outra, um canário-da-terra, desgarrado da fauna que sucumbe, emite a
musicalidade que me faz voltar no tempo; no tempo e nos anos,
quando este velho bairro de Santo Amaro das Salinas acolhia bandos e
mais bandos de uma passarada, com as penas da cor do ouro e a cabeça
rubínica.
De todos os bichos do mundo, somente os pássaros possuem o
sentimento da falta alheia: a saudade! Cantam, porque buscam o
mavioso encontro com a fêmea que se foi, dando enlevo à perda.
Assim, o tratador, habituado com o canário, quando o separa da
canária, coruja, por vezes e por isso de boa estirpe, deseja ouvir as loas
de todas as lembranças, o estralar nostálgico dos desejos de que as
rupturas sejam, apenas, separações passageiras nos ares da vida. E
quando o passarinho vislumbra a companheira do imaginário ninho,
mesmo que noutra gaiola, abre as asas e dispara um canto diferente, em
corrida, se diz, antecipando o acasalamento, numa demonstração, mais
do que inequívoca, de que o resgate dos amores muda os humores. Era
isso que via e ouvia, na infância e na adolescência, na juventude e na
maturidade, ainda, por aqui, nos arredores da Boa Vista. Na pinheira
de casa ou na mangueira da vizinha, no enorme jambeiro do quintal ou
no oitizeiro que parecia tomar o caminho dos céus. O sabiá também
sofre, como está em Guimarães: “...Ou nessas notas sentidas,/Exalando
o terno ardor,/Tu contas à meiga tarde/Segredos do teu amor?...”. Ah,
que dor deve sentir! Que saudades! Que lembranças! As do efêmero
que a felicidade traz? Ou a vontade de perpetuação das coisas?
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Somente os machos cantam, porque aos machos é dado
perenizar lembranças e eternizar saudades. Um pintassilgo aprisionado
em gaiola, apartado de sua fêmea, entoa as loas da perda até que a
morte lhe roube as forças. É capaz, até, de ensaiar os acordes da
separação e das rupturas, se na escuridão da noite acende-se uma luz.
Foi assim com um deles, que dormia na cozinha de casa, em noite de
Ano-Novo, mas que despertou, com o antigo costume de minha avó, o
de clarear tudo à chegada do tempo próximo. Encantou a todos naquela
hora, com a sinfonia dos sentimentos e das perdas. E de tanto cantar,
em busca da fêmea que ficara nas distâncias de Caruaru, um dia
sucumbiu, morreu de amores, por falta de ardores ou entregou-se à
solidão em que vivia, na gaiola nunca hospitaleira. E o aca das
cantigas de Luiz Gonzaga, o Rei do Baião? Canta chamando a chuva lá
pro sertão, para aplacar os horrores da seca. Mas, o “... assum
preto/cego dos olhos/não vê a luz/canta de dor...”, diz o poeta do povo,
decantando o sofrer do pássaro. Depois, vai e se associa do mesmo
jeito ao padecer das perdas: “...também roubaram o meu amor/que era
a luz dos olhos meus/...”. Eis que o homem, parente dos pássaros, sabe
entoar o sentimento da falta e das ausências.
Mas, se “...salvar sonhos é como salvar vidas...”, na palavra de
um outro poeta, Flávio Chaves, os pássaros vivem a salvar sonhos e
portanto vidas. Sonham porque amam e amam porque sonham. Fazem
dos amores e dos ardores o perpetuar da existência. Mas, induzem a
criatura a salvar, igualmente, os sonhos e assim a vida. Que cantem o
sab e o canário, o pintassilgo e o acauã, o assum preto e todos os
outros, para a garantia dos amores e dos humores, para que o
imaginário possa divagar pelos ares da vida!
Floresta dos Leões
Por essas bandas de cá, do Nordeste do Brasil, as crendices
preenchem as festas de São João. muitas formas e fórmulas para se
antecipar os tempos e os amores. Assim, quem não fizer fogueira na
noite do santo e não enxergar as labaredas rubínicas, com o dourado
halo das esperanças, por certo não chegará à data do próximo ano. A
faca virgem, na bananeira enfiada, no dia seguinte trará as iniciais do
amado ou da amada e os papelotes dobrados e imersos n’água hão de
16
mostrar, também, as letras do escolhido ou da escolhida. Comigo,
confesso, deu certo e a eleita dos meus dias foi anunciada, pela
consoante do prenome, quatro anos antes, se pouco! Quando a festa vai
acabando, no entanto, aqueles de oração forte tiram os sapatos e
passam no braseiro, sem uma queimadura, que seja, deslumbrando os
circunstantes. Já passei várias vezes. Hoje não passo mais. Diminuíram
os meus créditos nos céus, com certeza.
No interior, como acabo de ver em Carpina, a antiga Floresta
dos Leões, ninguém dispensa a noite de Santo Antônio, casamenteiro
como é. E na propriedade de amigo meu, a Granja Turbilhão, assisti,
de camarote, aos hábitos e aos costumes, da gente nova e daqueles
outros, maduros na vida. Encontrei, até, pescador amigo meu, dado às
incursões em alto-mar, mas transmudado ali em matuto estilizado. Vi a
moçada dançando ao som do fole e da rabeca, a quadrilha se
espraiando, como se fora a grande cobra das matas e o povo se
misturando, uns de e outros de cá, da capital buliçosa. Provei do
milho assado e docinho, da pamonha bem cozida e do pé-de-moleque
brejeiro. pras tantas, depois que se abraçaram os ponteiros do
relógio, o professor Hermino Ramos, docente da Economia, não
economizou os esforços e soltou quantos balões desejou. Somente um
fez do homem o desbravador dos ares! E subiu, assoprado pelo fogo!
Na terra do poeta Flávio Chaves, que por também é vice-
prefeito, cantou no dia seguinte o nosso Dominguinhos e a população
quase toda ocupou a rua principal, passeando de um para outro lado,
alguns vestidos a caráter, com os trajes matutos dos outroras perdidos e
muitos sem caracterização, que fosse. Interessante essa relação, em
tudo coletiva, de pobres misturados aos remediados da sorte, todos,
enfim, participando do folguedo. Aqui e ali uma chuvarada para
marcar a época, para que ninguém se esquecesse do tempo das águas e
sob a coberta de uma barraca qualquer, sentado à vontade do corpo,
abriguei-me da manifestação das nuvens. Uma garçonete, porém, que
destoava do conjunto, desejosa como estava de ser a sósia preferida de
Madona, despertava nos meninos, imberbes ainda, fantasias e sonhos
que se esvaíam com as correntezas de junho. Paulista de nascimento,
adotara Carpina para viver, disse e se explicou.
O melhor da festa, todavia, foi encontrar velho companheiro
dos anos de menino João Trindade –, hospedado, por coincidência,
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apenas, no mesmo hotel. Fiamos conversa noite a dentro, rebuscando o
baú das lembranças, fazendo o rol das indagações, das perguntas que
esclarecem os caminhos daqueles que partilharam conosco dos
convívios pretéritos: “Onde está Sérgio Jibóia?” ou “O que é feito de
Erivaldo e Eduardo, de Biu e de Léo?” Quase cantávamos os versos de
um outro poeta: “Onde andará Mariazinha?/Meu primeiro amor/Onde
andará?” Ou quase fazíamos perguntas, um ao outro, para saber dos
destinos das nossas Idalinas e de uma certa Conceição, como o poeta
também fez, armando versos e musicalizando a inspiração. Estão, na
verdade, encantadas, todas, na distância que marca o tempo, que separa
e que isola, promovendo a metamorfose do inteiramente diferente, do
desconhecimento presente. Rimos, às bandeiras despregadas, dos
outroras e desses dias!
Ah, Floresta dos Leões de uma de minhas rias, muitos anos
atrás! Da casa de porta-e-janela em que morava meu tio! Do trem
passando nos horários bem certos! Dos jogos de gamão do mesmo tio,
espírita por convicção, com o vigário da cidade! Era proibido, durante
as partidas da antiga e lúdica distração com as pedras, discutir temas
polêmicos, à semelhança de liturgia, santidade, reencarnação e outros
assuntos mais. Se assim não fosse, iriam às turras todas as horas. Ah,
Floresta dos Leões de meus alumbramentos iniciais, de Severina,
nascida em Lagoa do Carro, empregada doméstica por necessidade do
pão, mas cheia de devaneios, que faziam flutuar desejos e vontades na
largueza do imaginário! De Maria da Anunciação, morena da cor do
jambo, de ancas mais do que protundentes, rebolando as cadeiras, no
cadenciado passo das ruas de Carpina, o seu paço, na verdade, de
rainha sem trono e sem tiara!
Santo Antônio e São João, das tradições do Nordeste, moram,
em realidade, na antiga Floresta dos Leões e ali são embalados pelo
povo hospitaleiro, com a cantoria de época, saudando um e outro, a
fogueira e o balão, o milho verde bem assadinho, a pamonha e a
canjica. Da sonoridade da rabeca e da melosidade do fole nascem os
acordes do tempo, musicalizando o cantar. Ali, na cidade de Carpina, a
cordialidade emerge em cada esquina. Até os guardas da Polícia
Rodoviária Federal foram de uma polidez surpreendente, diante da
infração, de um farol queimado, sem alumiar a negritude da noite.
Iluminaram, na verdade, o meu respeito por essa gente fardada, guard
18
das estradas, anjos do asfalto e dos caminhos. Bom São João para
todos, para Hermino e para Flávio Chaves, o poeta, para João
Trindade, o velho “Amigo/Meu irmão camarada!”. E para os mais do
que polidos vigilantes da junina rodovia! Para todos, afinal!
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O Altar dos Rochedos
A Academia de Artes e Letras de Pernambuco, a cujo sodalício
pertenço, por generosidade de sua gente, publica, todos os meses, mais
do que interessante Informativo, veiculando notícias e sobretudo
excertos de palestras e artigos dos consócios. O mestre Carlos Ferraz
cuida de tudo, da organização geral à seleção das matérias, da redação
dos informes à digitação. Confesso que recebo o periódico com muito
gosto. É a forma que tenho de participar da Casa, haja vista a minha
dificuldade em compatibilizar os horários das reuniões com os meus,
preenchidos, agora, por tantos afazeres, nesses prazeres de meu labor.
Particularmente, venho sendo honrado com a transcrição de parte das
minhas crônicas, publicadas aqui, sempre, no JC. Agradou-me, em
tudo, a veiculação de um discurso de Jamesson Ferreira Lima, que fala
da “Lenda da Alamoa”, contada em Fernando de Noronha, retratando a
paixão ardente de certo varão, de cujo ciúme nasceu o ódio e de cujo
ódio materializou-se o crime. A mulher lindíssima, como se refere o
médico e escritor, loura e por certo de cabelos longos e viçosos, dança
na praia, em noites de tempestade, desnuda, inteiramente, reacendendo
a chama dos amores perdidos, injustamente.
E é no altar dos rochedos que a musa aparece. Emerge dos
mares, para, novamente, dançar e encantar os homens de boa vontade,
sob o som dos trovões e a claridade dos relâmpagos, como se o
sacrifício da morte pudesse ser repetido assim, tantas vezes, ao rugido
dos ventos, quando a chuva engrossa o tempo e a negritude encobre os
céus. Mas, volta, na verdade, como diz o autor, para rever o amante,
preso, como ficou, na ilha, chorando o pranto dos arrependidos,
derramando as lágrimas de todos os remorsos, que marcam as rupturas
mais do que definitivas, irreparáveis. E um outro de Pernambuco,
Ferreyra dos Santos, cantou a “Alamoa” em versos do perdão:
“...Alamoa/Alamoa/Sai dos olhos/Do pobre pecador/Tu que és
mulher/Tem pena do homem/Que o crime dele/É crime de amor”. E
muitos naquela ilha, que do Atlântico é a esmeralda, têm visto, em
noites de temporal, a figura feminina bailando nos ares, de cabelos
doirados, esvoaçantes, buscando nas areias cálidas o gesto, que seja, de
entendimento, afinal. A reconciliação impossível, pois, do fantasma,
condenado à diluição no etéreo das coisas, com o amante reduzido à
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condição de traste humano, arrastando, nos pedregulhos do lugar,
fragmentos de vida.
Ali mesmo, na ilha de Fernando de Noronha, outros amores
impossíveis nasceram e não floresceram. Feneceram, então! Um
desses, o da loira vinda das distâncias sulinas, trazendo na genética o
traço europeu Uma “Alamoa também! –, com o nativo amorenado,
cafuzo de origem, metade negro e metade índio. Os gestos finos da
mulher, de unhas aparadas e ainda pintadas, faziam o contraponto com
a forma embrutecida, quase, do ilhéu. E quando o comandante da
aeronave, estacionada no pátio, avisou da impossibilidade em levar
toda a gente, os olhos do nativo brilharam de felicidade e a moça, ao
telefone, comunicou à família o adiamento inesperado, mesmo que
desejado. Na Praia do Este, sob o sol poente, depois, perdidamente se
amaram. Mas, ao primeiro sinal do dia, a despedida outra vez aflorou,
separando agora para todo o sempre, aqueles amantes de efêmeros
amores. O avião tomou posição na pista, rolou em velocidade elevada e
alçou, finalmente, o vôo e nos ares da ilha foi promovendo a
metamorfose de uma realidade assim, sentida e muito curtida,
transformando tudo em lembranças, apenas, em saudades paridas de
sonhos vividos. Devaneios, então, a preencherem vazios!
E outras “Alamoas” existem, muitas, infelizmente, condenadas
à perpetuidade da dimensão do eterno. Muitas, também, vivendo as
dores das chagas d’alma, que é uma forma de matar o espírito,
preservando a matéria. Para todas, os versos, ainda, do poeta: ...De
vento no açoite/Uma sombra de gente/Se põe a
dançar/Alamoa/Alamoa/Foi homem que pecou...” que os homens não
pequem assim, com a morte e o maltrato das musas do tempo! as
flores podem açoitar da amada a face!
E a Jamesson Ferreira Lima, novo acadêmico de todas as
olindas, esta crônica.
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Encontros e Reencontros
Foi o bem-te-vi, com o seu trinar metálico, que me avisou da
terminalidade das festas, naquela tarde morna e tropical de um
dezembro em começos, apenas. Quando o sol estava na posição de
todas as verticalidades, inibindo as sombras, as pessoas foram se
recolhendo aos pouquinhos, deixando livre a piscina e desocupando o
chamado entorno do mar, um oceano enorme, na verdade, que acolhia
a gente forasteira, interessada nas comemorações ou voltada para a
fraternidade dos convívios. Na varanda do hotel, então, terminei
fazendo a reflexão dos meus retornos ao dia-a-dia atribulado de minhas
coisas. Impossível ter evitado o pranto na hora da valsa das
lembranças, que resgatava um outro momento assim, distante já, três
décadas para trás. Ali, também, com a mesma musa do hoje, ensaiei
passos mal dados, para acompanhar a sonoridade daquela despedida. O
homem, em realidade, despede-se várias vezes na vida e vai mudando a
condição do existir, promovendo ritos de passagem que trazem a
liturgia das metamorfoses. Assim com a formatura e assim com a
ligação matrimonial ou assim com o nascimento do primeiro filho e
depois, de um por um, até o derradeiro. Mas, o último desses ritos
marca a debacle.
Companheiros dos bancos de universidade, vindos de longe,
alguns, cumpriram o desiderato do reencontro, por três dias seguidos.
Permitiram-se o exercício, mais que salutar, do fiar conversa
indefinidamente, resgatando feitos e fatos de um pretérito que se
encanta, agora, na longitude dos anos. O espírito de cada um regrediu
no tempo, voltaram a ser acadêmicos de Medicina, com o humor
diferenciado que caracteriza a jovialidade e que significa a leveza de
vida ou a ausência, ainda, do peso de um existir assim, na honrada
prática da profissão hipocrática, entre o sopro do Criador, que faz gerar
e nascer, e a morte. Risos e mais risos, gargalhadas enormes, sonoras,
com vivências e convivências daquele passado de estudantes, histórias
dos provindos das brenhas, que enfrentaram sol e chuva, se almoçavam
não jantavam e se jantavam não tinham almoçado. Gente morando em
pensões, que desapareceram do cenário urbano deste Recife nas
fronteiras de um novo milênio, mal acomodada, mesmo que adaptada,
contanto que se pudesse freqüentar o sacrário desses saberes
23
sacrossantos. Ou gente com um sapato apenas furado, ainda mais,
remendado por dentro com a sagacidade dos fortes, por uma tira de
esparadrapo branco.
E os apelidos foram lembrados, também, desde a viagem de
ônibus, do Recife a Maragogi. O mestre Baré, das larguezas
amazônicas, encarou o microfone e quase faz a chamada, nomeando os
presentes: Pluto e Gia, Fofa e Rita Pavone, Ovelha e Da Galinha.
alguns impublicáveis e outros respeitados, como aqueles que
nomeavam as moças, médicas, agora, integrantes das rodas de
Esculápio. Falou de suas lendas e de suas matas, mostrou as
mitológicas interpretações do boto cor-de-rosa, que encanta as
meninas-moças. Mas, ninguém esqueceu os outros, roubados de nossos
convívios, como foi o caso do Poeta, cuja vida terminou nos inícios do
curso ou o caso de Cachorrão, privado, igualmente, do existir terreno,
além de Timbu, levado há poucos anos, na plenitude de sua maturidade.
E ninguém esqueceu os que faltaram ou não puderam ir por vários
motivos, à semelhança de Tampa-de-Chaleira e de Chupa-Osso. Como
se não bastassem as fotografias tiradas de minuto em minuto, antigos
retratos foram levados nas bagagens, além de certos adereços do
tempo, como a boina do vestibular, que Ivo de Oliveira usou pelos três
dias consecutivos, com a inscrição que padronizava a vitória: FMUR
(Faculdade de Medicina da Universidade do Recife).
Foi um não acabar de lembranças e de recordações, nas
conversas fiadas noite a dentro ou com as fotos amareladas, em preto-
e-branco, assinalando momentos, marcando a felicidade do ontem. A
hora do trote pelas ruas da cidade, na Imperatriz ou na Rua Nova, na
avenida Guararapes ou na Conde da Boa Vista, manifestação estudantil
que durante muito tempo fez a crítica bem-humorada dos governos e
dos governantes. Instantâneos, também, das salas e das aulas, além
daqueles da primeira de todas as despedidas, a formatura. Lágrimas
vertidas desde a missa, que abriu, com a necessária prece ao Criador,
todas essas festas ou durante os pronunciamentos bem cuidados de
Luiz Fernando e de Claudeci Gomes. Sem esquecer que na hora do
jantar dançante, o nosso orador da turma Paulo Dantasfalou com a
verve dos grandes e agradeceu a Moacir Novaes, mentor das
lembranças e timoneiro das recordações, o denodo com que organizou
tudo. E eu agradeço assim, deixando-me tomar pelas inspirações e
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descrevendo o meu sentimento com palavras paridas das intimidades
d'alma. A oportunidade que tive, confesso, foi das mais felizes de
minha vida.
Benditos sejam Moacir e todos os outros que promoveram o
enlevo do coração!
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Tampa-de-Chaleira
Nos meus inícios na Faculdade de Medicina, na fase em que
estudava o esqueleto humano, colega meu dos bancos acadêmicos,
visto, distraidamente, de olhos fechados, quase, passando a mão,
levemente, numa tíbia, apoiada entre o seu próprio queixo e a mesa de
dissecação, o se livrou do cognome para o resto da vida: Chupa-
Osso. Na realidade, fazia ali, daquela forma e daquele jeito, o
necessário exercício no aprendizado dos segredos da Anatomia,
percorrendo com o tato as saliências e as reentrâncias ou identificando
orifícios por onde emergiram ou imergiram nervos, veias e artérias.
Afinal, sabia da importância dessas bases morfológicas para o mister
hipocrático e não podia descuidar dos esforços paternos, com os quais
se sustentava, oriundo como era dos contrafortes da Borborema.
Muitos anos depois, em congresso importante, outro colega me indaga:
“Como é o nome, mesmo, de Chupa-Osso?” Não podia, com certeza,
tratar o companheiro daqueles anos pelo apelido, simplesmente, em
ambiente assim, de ciência e de pesquisa. E não tratou, porque do
prenome, pelo menos, eu sabia.
Os apelidos foram, realmente, a tônica daqueles convívios. Por
qualquer motivo, que fosse, surgia um cognome a mais e de pronto a
turma toda 165 alunos, se pouco adotava essa imposição de um
batismo improvisado e até desavisado. Fosse rapaz ou fosse moça,
dado a bincadeiras ou sisudo, na forma da lei, cada qual carregava um
e ainda hoje, nas reuniões de aniversário dos anos de formado, assina-
se uma lista, parecida com a do passado e de quebra se acrescenta o
nome dessas eras. Alguns, todavia, o de todo impublicáveis, mas
outros, francamente, despregam as bandeiras, socializando o riso.
Como esquecer do nosso Fofa, do Defunto ou do Gia, do Velho e de
Bico de Ouro, conterrâneos, esses dois, amigos até na morte? E a morte
levou Cachoro e carregou, do mesmo jeito, o caríssimo Timbu. A
outros levou, também, roubando, de todos nós, a chance desses
convívios. Ou ainda, como não lembrar de Todo Feio, virado hoje e
muito bem, num poeta de boa rima, prosador dos melhores? Esquecer
de Mongrô, é atentar contra a paz, a serenidade e os bons costumes.
Pior do velho Barney? E o Pluto, vejam só?
27
O maior de todos os cognomes dessa turma, na emergência
dos trinta anos de formada, não poderia ser outro, senão o de Tampa-
de-Chaleira. Ora que o homem, chovesse ou fizesse sol, estivesse na
sala de aula ou nos laboratórios, nas ruas do Recife ou nos anfiteatros
de Anatomia, suava feito um desadorado. Molhava a camisa em
grandes rodas e chegava, até, a umedecer o pano das calças, dizia!
Certa vez, o velho Tampa, chegando a um representante farmacêutico,
acompanhando um périplo de estudantes, numa romaria em busca de
amostra grátis, sem saber que remédio pedir, perguntou ao colega mais
próximo o nome de um produto qualquer. E o companheiro,
irreverente como era, não titubeou, lembrou-se da recepcionista,
mulher quarentona e viçosa, de ancas mais do que largas e busto
considerável, com prenome diferente e recomendou que pedisse
Fulana. O Tampa, na inocência do gesto, ainda insistiu mais,
indagando se pedia em comprimidos ou em pó, em xarope ou injetável.
Quase apanha da figura! Queria, de qualquer forma, aquela
farmacêutica fórmula e não entendeu a mulher, que raivosa e
impiedosa, sustentando-lhe pela breca, perguntava-lhe, em voz alta:
“Como se chama a sua mãe?”
Guardei o necessário sigilo das relações biunívocas, sempre,
entre o apelido e o nome. Não vou, agora, apontar colegas que na
prática do dia-a-dia são expoentes da ciência, pelo cognome, então. E
tampouco dizer o meu próprio, escrito por cima. Guardei também
para mim, apenas, os demais apelidos, aqueles atribuídos às moças, por
hesitação da consciência. Mas desses, pode crer o leitor, há alguns que
são deliciosos, simplesmente. E por aí vai.
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Tipos do Recife
Noutros tempos, neste Recife dos rios e das pontes, quando a
gente grã-fina e os remediados da sorte circulavam pelo centro
comercial, pontificavam por lá, também, certos e determinados tipos
mais do que peculiares, pois que mesmo sendo diferentes, engajavam-
se, perfeitamente, na paisagem urbana. Alguns apresentavam nítidos
sinais do desvario, mas outros não. Eram mais contidos ou eram menos
exaltados. A verdade é que se tornaram personagens constantes do
grande espetáculo do centro, com especialidade nos períodos de festas,
de Natal, por exemplo, ou de Carnaval, perambulando nas calçadas e
nos passeios da cidade. Hoje, não os vejo mais e ignoro de todos o
destino. Compreendo, todavia, que não possam fazer o footing, como
dantes se dizia, nos ambientes refrigerados de um shopping, para onde
acorrem, agora, as elites, as bem estabelecidas e as demais, em franca
debacle.
De todos, certamente, o Dono da Rua do Imperador parece ter
sido o mais interessante, vestido a caráter, misturando peças de roupa
das corporações militares e de outras instituições, desarmadas essas.
Coberto de medalhas, de condecorações diversas ou de comendas
variadas, orgulhava-se das honrarias todas, passando a mão no peito e
acariciando cada uma daquelas circunferências de bronze. Muitas e
muitas vezes, na Festa da Mocidade, pude fiar conversa com esse
figurante inusitado das animadas noites, ali, no Parque 13 de Maio.
Dizia-se integrante da cavalaria submarina e assumia no imaginário,
mais do que fértil, a segurança do lugar, ignorando, por certo, a ação,
firme e segura, de Marcha-Lenta, sargento da Rádio Patrulha
destacado por lá, na ambiência da festa. Havia comprado a rua da qual
se dizia dono e não vendia a ninguém, por dinheiro nenhum,
justificava. E fazia muitíssimo bem. Cada qual que cultive a sua
fantasia!
E Lolita? Quem não lembra? Com o andar afeminado e cheio
de trejeitos, andava a cidade de ponta a ponta, se requebrando e
cantando, muitas vezes, ou simplesmente cobrindo de pilhérias os
incautos passantes, que coravam de tanta vergonha, com as espirituosas
graças do homem que gostaria de ter nascido mulher e bem mulher.
Mas, se o transeunte menos avisado cuidasse em reagir, apanhava pra
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valer, levando todos os socos do mundo e as pesadas todas, também, a
que se arriscara. Foi preso uma centena de vezes e recolhido aos
porões da Sorbone da Rua da Aurora, como chamava o nosso saudoso
Paulo Malta a sede da Secretaria de Segurança, de onde, aliás, foi
delegado e dedicado servidor. O próprio Paulo deve ter recolhido
Lolita e posto em liberdade pela manhã, logo cedo, como costumava
fazer, encerrando o plantão e liberando toda a gente detida na noite
anterior, para o descontentamento, geral e irrestrito, de seus colegas da
polícia.
Outro, mais recatado e nem por isso menos popular, era o Chá
Preto e Pente, que vendia as folhas prontas para a infusão doméstica,
suficientemente capazes de curarem os males da família inteira e da
vizinhança, também. Lembro-me, ligeiramente, do homem de certa
idade gritando o seu slogan: Chá Preto e Pente! É que misturava as
coisas e as vendas, acrescentando o apetrecho apropriado ao pentear
dos cabelos aos seus princípios medicinais da Botânica tupiniquim.
Interessante, contudo, era o Reitor da Universidade Livre, um
homem negro, alto e gordo, que costumava andar de paletó e gravata,
vestido à risca para a sua condição magnífica. De certa feita, tendo
comparecido a uma reunião acadêmica e não incluído na mesa,
zangou-se verdadeiramente, prometendo vingança com as ausências
futuras. Nunca mais tomou assento nos encontros assim, da ciência e
da cultura. Pregava a liberdade para aprender, simplesmente. E estava
certo, embora complicado.
Finalmente, uma figura estranha, sorridente e falante, de cujo
nome ou cognome não recordo, mas de cuja fisionomia tenho, ainda
hoje, a imagem exata. Descobrira ou inventara, como afirmava, muita
coisa. A caneta que nunca esvaziava, a cura das doenças venéreas e
mais uma dezena de outras besteiras. Chegou a escrever aos institutos
estrangeiros de pesquisa, dos quais recebia respostas encorajadoras.
Mulheres, quase não havia neste capítulo dos tipos da cidade, senão
uma: Soninha! Solteirona, sem convicção nenhuma, andava à caça,
sempre, de um penitente, que fosse. Confesso o meu desespero com a
paixão de Soninha, nos tempos em que trabalhava no Centro de Saúde
Gouveia de Barros e era estudante. Mulher de todos os pudores, não
insistiu nas investidas mais, depois que lhe disse de meus desejos em
antecipar os amores. Disse-me horrores e sumiu. Nunca mais a vi no
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cenário urbano, andando rápida, como quem vai a um encontro
qualquer, imaginário, infelizmente! Nada me custou trocar aqui o seu
prenome, em respeito à vida e às fragilidades da criatura.
Deus olhe por todos!
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Macaxeira Rosa
O Recife do antes, dos meus anos de calças curtas e dos meus
tempos de juventude, era muito diferente desta cidade do hoje.
Naqueles dias, as compras de casa eram feitas na venda da esquina e a
caderneta da bodega servia para intermediar as negociações todas, da
farinha e do feijão, do sal e do açúcar, do pão que ia para a mesa e do
milho para alimentar as galinhas do terreiro. Aos sábados, porém, a
feira de Santo Amaro encantava os olhos do menino. Carrinhos de
tábua com rodinhas de flandre, brinquedos de todo tipo, da borboleta
que batia as asas de madeira, fazendo barulho, aos cavalinhos-de-pau.
Ali, minha mãe abastecia a despensa, com a féria do pai, comprando
frutas e verduras, escolhendo a galinha gorda e o charque ao gosto
muito particular das criadas, como costumava chamar a minha avó.
Depois, Pássaro Triste, o carregador efetivo da família, reunia tudo no
balaio e trazia para casa, arriando o peso na soleira da porta da
cozinha, para alimentar a parentada: pai e mãe, filhos em número de
seis e mais a avó e a tia velha, além da tia viúva e mais três
empregadas. Família numerosa, pois! Nunca vi tanta gente junta numa
casa só! Não se fechava a porta de frente, tal o movimento, senão à
noite, para a proteção de todos e desgosto dos gatunos.
Nas ruas, entretanto, passavam vendedores variados, a
oferecerem produtos diferentes, também. E disso me lembrei,
poucos dias, quando encontrei o homem da macaxeira, que traz o
tubérculo em carroça de metal, estilizando a venda ou modernizando a
oferta. “Macaxeira Rosa”, ainda grita, preservando a tradição. Foi
Raimundo, nascido e criado nas margens do rio das capivaras, em
Limoeiro, e que dirige o automóvel em que trafego, ultimamente, quem
me chamou atenção, fazendo alusão à permanência do tipo mais do
que peculiar no Recife dos antanhos. Sendo interiorano – o motorista –
, sabe dos costumes todos e dos hábitos da gente matuta, como das
crenças e das crendices. Conheceu vendedor de tudo, do doce japonês e
do cavaquinho, do cuscuz e das frutas, de verduras, também, como do
amendoim torrado e cozinhado, triturado, às vezes, em deliciosa
farinha. Ora, mais novo que eu década e meia, se pouco, ainda pôde
conviver com regionalismo assim, mostrando o quanto o Recife foi
provinciano outrora e como é frio e desumanizado, agora. Quase não
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se , mais, gente de tabuleiro à cabeça gritando o produto da terra ou
gente carregando balaios de frutas tropicais, de manga ou de caju, de
pinha ou de cajá, de jabuticaba ou de pitomba.
As crianças de hoje não se incomodam mais com o refrão:
“Chora menino/Pra comer pitomba...”. E nem as mães da pós-
modernidade conhecem a cantiga. Ninguém sabe mais que naqueles
outroras o verdureiro passava logo cedo, empurrando uma carrocinha
de cor, azul ou verde, toda em madeira, com tela de arame trançado e
entrançado protegendo e arejando o espaço do chuchu e do maxixe, da
cenoura e do jerimum, do quiabo e da batata inglesa, que é tubérculo,
como do tomate, fruta por derradeiro. Mais tarde, vinham os
vendedores de laranja, um deles gritando o produto e o outro
carregando dois sacos, com a mimo-do-céu e a baía, muito raramente a
laranja-da-terra, para o doce apetitoso ou a lima, que curava barriga de
menino e de marmanjo. Depois, o vendedor de miúdo, com parada
obrigatória por casa, onde o miolo de boi servia para manter a
inteligência paterna e permitir o exercício diário da crônica.
Finalmente, na boquinha da noite, o amendoim, chamado em
vernáculo deturpado de “midubim”, torrado e cozinhado, com a
farinha embalada em saquinhos coloridos, dando água na boca. Todos
os dias, porém, a matraca do mascate anunciava a variedade de suas
miudezas: «linha pra coser e dedal, agulhas de todos os tipos, alfinetes
e tesouras».
E o doce japonês, anunciado com o trinar de um apito, ou o
cavaquinho, de cujo triângulo de metal o vendedor musicalizava a
oferta? E o homem do cuscuz, madrugador, sempre, trazendo a comida
em rodelas, molhando com leite de coco e dando gosto ao acepipe?
Ninguém vê mais! Maçã e pêra eram frutas raras e somente aos doentes
servidas, uva o se via, morango muito menos e ameixa de lata.
Nas esquinas do Recife de hoje ou nos semáforos das grandes
avenidas, vende-se o exótico, as frutas do frio e do sul. Agora, o
abacaxi, que quebra o jejum ou a laranja-cravo para distrair o
estômago, mostrando da regra a exceção.
Consertador de Panelas
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O último artigo que escrevi nesta página do Jornal do
Commercio – “Macaxeira Rosa” –, fazendo um comentário a propósito
de antigos vendedores de rua da cidade, desaparecidos, em maioria,
nesses tempos de globalização e de mundialização do tudo e de todos,
obteve junto ao leitor generosa repercussão. Recebi alguns telefonemas
e outros tantos cumprimentos pessoais, pelo resgate, sobretudo, de
figuras assim, típicas da cidade provinciana, ainda, como era o Recife
em décadas passadas. Foram muitas as contribuições sobre
personagens que terminei omitindo, por falha mesmo da memória, haja
vista os 53 anos bem vividos, . Outros, também, pediram que
continuasse a crônica, seguindo o tema e a tônica anterior, para
complementar a lista. Faço isso, pois, em atenção àqueles que se
ocupam de meus escritos e com isso me dão satisfação especial.
Como esquecer do consertador de panelas, que passava
oferecendo os seus préstimos às custas do toque cadenciado e peculiar
de um pequeno varão de ferro sobre uma frigideira usada? O simples
escutar dessa musicalidade característica, produzia na cozinha um
rebuliço e as peças de alumínio furadas eram, de logo, selecionadas e
entregues ao especialista na arte do remendo. Voltavam novas,
praticamente, trazendo no fundo, sempre, o acréscimo de que
precisavam e tinham a destinação habitual, a do cozimento, a depender,
apenas, da receita do dia. Quando a galinha ia para a mesa, por certo
que fora comprada ao homem que a cavalo trazia dois caçuás de
penosas, um de cada lado. Cabia ao comprador sustentar a ave pelas
asas e optar pela de peso maior, pois que o preço era unitário somente,
não interessando os quilogramas a mais, de um ou de outro exemplar.
Musicalidade mais apurada, entretanto, era a do amolador de
tesouras, de facas, também, que usava um instrumento assemelhado a
um realejo, do qual nasciam as notas da oferta. Um desses tinha parte
do antebraço amputada, mas com um revestimento de couro, uma luva
apropriada, manuseava a peça, cega por hora. Usava um carrinho que
vinha empurrando e ao primeiro sinal de serviço a ser realizado,
invertia a posição, alinhava a polia grande de borracha e com o pé num
pedal artesanal girava o esmeril. Na realidade, terminava desgastando
as lâminas a serem amoladas e em casa de toda a gente algumas das
facas não serviam mais para atender às visitas ou aos mais
cerimoniosos da família. Eram facas da cozinha. O vendedor de
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pirulitos, com uma tábua toda furada e os doces cônicos encaixados,
usava um apito e ia passando adiante o seu produto de fabricação
caseira, que pregava nos dentes.
o homem das vassouras e dos espanadores era diferente,
trazia um material de cabos coloridos e de pilosidade formando
desenhos, para o chão da casa e a poeira dos móveis, além de vender,
também, o vasculhador, que passado no teto sacudia as aranhas,
afugentando-as das teias. Tinha um grito característico, chamando a
atenção para a sua variedade em material assim, destinado à coleta do
lixo doméstico, o grosso e o fino. Mas a oferta da de barriguda para
travesseiro era cantada em versos sem muita rima: “Eu tenho de
barriguda/Para travesseiro.” E como não havia a espuma de hoje,
sintética e mais prática, conseguia boa freguesia nas ruas por onde
passava. Era preciso encher esses apetrechos, que nos servem à cabeça,
para um bom e reparador sono, a intervalos de tempo certos.
O peixe, do mesmo jeito, chegava à porta de casa, vinha em
dois balaios, os quais, sustentados por cordas à ponta de um suporte de
madeira carregado às costas, pendiam livres, quase, balançando, pra
e pra cá, à medida que o vendedor andava pelas ruas e oferecia o
produto gritando. Alguns desses homens do peixe faziam verdadeiros
malabarismos com os balaios. Paravam, então, e apresentavam as
espécies e as espécimes de que dispunham, utilizando-se depois de
uma tábua para preparar as postas, tudo segundo as preferências do
freguês. Peixe fresco, ao tempo, sem a ação, às vezes deletéria, do gelo,
que da carne branca rouba o sabor. Com os anos, apareceram os
frigoríficos e a albacora popularizou-se na mesa do recifense. Mas, o
nome desse bicho dos mares era muito aplicado como apelido para as
mulheres gordas, ricas em adiposidades.
E foi de Leda Alves a lembrança do vendedor de cambará:
“Olha a bolinha de cambará/Dois pacotes é um vintém...” E do poeta
Paulo Montezuma a saudade do acendedor de lampiões nas ruas do
Recife, iluminando os passeios da gente faceira. Não esqueço, todavia,
do acendedor das lâmpadas, já, nos velhos postes de meu bairro,
ligando as chaves e alumiando o tempo.
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Pregões do Recife
Escrevi por aqui dois artigos sobre vendedores e prestadores de
serviço das ruas do Recife e, confesso, não esperava a repercussão que
houve. Onde chego, as pessoas falam e comentam, acrescentam alguma
coisa e sobretudo dizem da saudade desses tempos distantes, já, na
contagem dos anos. O meu ilustre amigo Silvio Costa, que morou em
todas as olindas, teve o cuidado de fazer umas anotações a propósito,
reunindo pregões e citando outros detalhes dessas curiosidades locais.
Uma página inteirinha de referências sobre o tema, o que me leva a
ensaiar, outra vez, uma crônica abordando a questão. Em respeito, até,
aos leitores todos, que gostaram e falaram e aos que gostaram e não
puderam falar. Silvio começa por um dos pregões mais comuns da
cidade: “Espanador/Vasculhador/ Colher de pau/Esteira
d’Angola/Rapa Coco/E grelha.../Eu tenho quartinha”. E vinha o
homem carregado de apetrechos assim, apropriados à casa, às
arrumações domésticas e à cozinha. Andava com tudo isso às costas,
com os cabos enormes, de madeira, sempre, apontando para os céus e
trazia um colorido peculiar, expondo os cabelos do material que
vendia, com riqueza nos desenhos e nos contornos.
Outra dessas contribuições de Silvio Costa é a do boleiro, que
vendia a broa e o grude, balançava um pequeno sino anunciando a
chegada e trazia os seus produtos em uma espécie de mesa envidraçada
e sem gavetas, com quatro pernas, carregada na cabeça. Ao primeiro
sinal de um comprador qualquer, arriava aquele móvel, e servia o
penitente com o auxílio de um garfo de dois dentes, apenas. Na minha
rua passava um desses, tinha o cognome de Criança, não sei bem por
que razão e conforme os meninos do bairro, carregava bolos que
davam, habitualmente, dor de barriga. Mas, toda a gente comprava. A
minha mãe, todavia, nunca me deixou provar dessas delícias de
Criança, tinha medo do resultado, das cólicas e da febre, da doença,
enfim, que lhe atormentava as noites. Nem o doce japonês, cujo
vendedor não descuidava em passar, pude provar e tinha inveja da
molecada comendo o produto caseiro, que grudava nos dentes e
arrancava as obturações. O verdureiro, também, aparecia empurrando
uma carroça de cor verde ou azul, e oferecia verduras e frutas,
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“Maracujá para o ponche!” Conhecia todos, as empregadas de casa e as
madames, chamando pelo nome, mesmo.
O mascate era uma beleza, usava uma mala recheada de coisas
ou vinha na carroça puxada a cavalo. Anunciava-se com uma matraca,
isto é, uma peça feita de dois pedaços de madeira unidos por uma tira
de couro e ia batendo, batendo, para vender as miudezas. Linhas de
todos os tipos, agulhas a valer, alfinetes-de-segurança e outras
quinquilharias. A minha avó gostava de escolher a linha própria para o
seu croché ou linha de tricotar e com esse material enchia o tempo e a
vida, produzindo toalhas e panos diversos, os quais, por vezes até,
vendia. Era homem de parada certa na minha casa e já estacionava a
carroça antes de qualquer chamado, abastecendo a cesta de costura
materna e a caixa de sapato na qual uma de minhas tias guardava a
matéria-prima de seus predicados manuais. O mascate, anotou Silvio
Costa, vendia também banha para alisar os cabelos e perfumes
produzidos, artesanalmente, por ele mesmo, de qualidade nem sempre
satisfatória. Para o meu pai comprava-se, habitualmente, uma Quina,
de cuja oleosidade sustentava o negro de seus cabelos, penteados com
todo o cuidado de quem tinha orgulho da pilosidade craniana. Para os
meninos, a brilhantina Glostora!
O vendedor de galinhas dizia: “Galinha e capão gordo!” E
ninguém sabia direito o que era capão, porque sobre essas variantes da
espécie não se assuntava com os meninos! Outro se oferecia assim:
“Eita jabuticaba!/Já caiu cajá!” Ou assim: “Chora menino/Pra comprar
pitomba!” E o homem do miúdo, que vinha gritando – “Miúuuuuudo!”
–, enquanto o auxiliar carregava na cabeça o tabuleiro com fígado,
coração e miolo de boi, além das tripas. Como esquecer o homem do
algodão-doce, fazendo flocos de açúcar na carrocinha, rodando um
veio com a mão direita e recolhendo o produto com a esquerda, num
pedacinho de papel colorido? E o vendedor de pipocas, estourando o
milho na chapa quente, em frente aos cinemas, permitindo assistir ao
seriado do dia com a opção barata e gostosa ou na saída dos colégios,
para chegar em casa sem fome e ouvir a reclamação de hábito:
“Menino! Você come porcaria fora e o almoça!” Muitos dos meus
amigos não dispensavam, à saída dos clubes, nas madrugadas do
Recife, o cachorro-quente de rua, preparado ali, à vista de toda a gente,
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com salsicha cozida em vasilhame de alumínio e pão dormido, de um
sabor inigualável!
A Sílvio Costa, companheiro de jornadas à beira-mar,
nostálgicas horas das lembranças do tudo, esta crônica, nascida sob a
inspiração de suas notas, em tarde assim, morna e sobretudo feliz...
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Uma Sociologia do Parque
Nos outroras da vida, confirme o leitor se quiser, o lema era
outro, bem distinto das atualidades correntes. Saúde e gordura, dizia-
se, associando-se, então, a higidez com a adiposidade. Quanto mais
dobras se tivesse, melhor seria. Até a mulher dos antanhos caprichava
nas celulites e noutros qualificativos resultantes dos excessos
alimentares, exibindo as formas nas enormidades do corpo. Três delas
que conheci, irmãs de sangue, receberam da irreverente rapaziada, hoje
prateando as têmporas, o apelido coletivo, mesmo que no plural, de
albacoras, tal o volume que ostentavam, observadas, porém,
individualmente, no singular, portanto. Eram disputadas pela gente do
bairro e admiradas com olhos pidões pelos meninos impúberes naquele
desfilar, de idas e vindas, ao parque ou à Festa da Mocidade. Amigo
meu, de prenome bíblico Moisés –, sonhava com elas em grandes
mergulhos nos oceanos das paixões irresistíveis.
Hoje, não,um culto ao corpo e a malhação tomou conta dos
jovens, dos amadurecidos no carbureto dos anos e dos incluídos, agora,
na chamada terceira idade, às vezes, até, terceirizados, para usar o
linguajar da pós-modernidade. Nos ambientes abertos, para tanto
preparados, anda-se loucamente, corre-se ou pratica-se a ginástica das
perdas de calóricos e bem degustados manjares. No Parque da
Jaqueira, por exemplo, um batalhão de pessoas caminhando pela
pista de cooper, no sentido anti-horário, a maioria, como se estivessem,
também, contestando o passado e do jeito que segue o relógio, poucos,
rigorosos com os princípios e os tempos, imagina-se. Faz gosto reparar
nos trajes e prestar atenção às conversas ou entender sentimentos
expostos, naquele ponto verde que se insere na selva de pedra do
Recife.
Descubro que sou, na verdade, o mais desengonçado dos
andarilhos, pois que a bermuda e a camisa, como as meias e os tênis,
nada têm em comum, não combinam, enfim, diferente do companheiro
sem alusão a partido político apressado, à minha frente. Todos,
então, vestem-se a caráter nesses dias de inverno emergente, ostentando
grifes e marcas que não conheço. As senhoras, pior, capricham no
visual e são no parque, ao que parece, representantes, as mais
elegantes, da finura provinciana. Dia desses, galega oxigenada, embora
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bonita, usava uma blusa marrom-claro e uma bermuda da mesma cor,
escura, porém, fazendo o gênero tom sobre tom. A loira de preto
passa-me um rabo de olho, de soslaio. Não ligo. Considera-me um
intruso, com certeza, posto assim no seio da elite. Como estava usando
camisa com inscrição muito apropriada à reação “Não adianta me
seqüestrar: Sou professor.” –, presente, aliás, de meu ilustre amigo Edir
Carneiro Leão, que vem se especializando em convívios, desprezo o
imaginário e sigo a seta, contando metros e quilômetros.
A mulher, quase ariana, que anda com o marido e os filhos, tem
um quadril enorme, à moda das cadeiras, como se dizia dantes, em
alusão às partes femininas protundentes, mas não inteiramente
pudendas. Por certo, traz nas veias sangue d’África! A outra, na
contramão, tem os cones lácteos balouçantes e extremamente
volumosos, como se fossem grandes bolas prestes a vencer a
resistência da intimidade da centenária peça: o sutiã. O barbudo
cinqüentão anda de mãos dadas com moça de morenidade gilbertiana à
mostra, a tirar pelas pernas que exibe e pela cintura pélvica que
movimenta, na casa dos vinte. À saída, não resiste ao côco, mas atende
ao marido e se resguarda no carro, esperando a água e a polpa,
abrigada de possíveis flechadas de cupidos ocasionais. Não sabe o
colega de pista o trabalho que sustentar ligação assim, de muitos
anos contados na diferença dos cônjuges. Vai ter que freqüentar as
discotecas todas da vida e rebolar o corpo cansado, já, no merengue da
esquina. E com esse ciúme todo, piorou! Quietinha no automóvel
sorveu o líquido mágico, pediu uma laranja e sumiu, como todos os
outros do parque, por um dia, apenas.
Depois da caminhada, a parada obrigatória no estabelecimento
do Baixinho, uma carroça, na verdade, com laranjas-mimo e
exemplares do fruto com o sobrenome de outro, a pêra. Ele e a mulher
atendem à clientela com presteza, descascando e cortando, recebendo o
Cruzeiro Real em agônicos suspiros e fazendo projetos para a nova
moeda.
Sociologia da Gafieira
Em tempos priscos, idos e vividos, a gafieira era, sem dúvida
alguma, uma instituição diferente. Toda a gente sabe disso, se dos
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quarenta já passou e nos cinqüenta encostou. Reunia o proletariado, em
maioria, mas admitia, muito a gosto da diretoria, a rapaziada de classe
média, remediada da sorte, permitindo a dança e facilitando a corte.
Abria as portas, solene e religiosamente, quase, nas noites de sexta,
repetindo a dose no sábado, incursionando pelo domingo, das 10 às 15,
nada mais, nada menos. A moral do tempo e a ética da gafieira eram
defendidas, ardentemente, pelo fiscal de salão, não sendo permitido ao
cavalheiro aproximar-se da dama mais do que o necessário ao rodopio
no salão.
Hoje es tudo mudado. A gafieira é lugar de gente fina, de
gente carregada nos anos, quarentões e quarentonas largados da
família: separados, desquitados e divorciados. A intenção é uma só,
independentemente dos sexos, da idade e da cor, a caça às bruxas ou
aos bruxos. Nas mesas de pista, basta uma dama levantar um copo de
cerveja e o marmanjo aparece, faz o convite e se joga na lambada. Aos
cavalheiros cabe fazer o reconhecimento estratégico da mulherada,
anotando, aqui e ali, uma figurinha ou uma figurona mais atraente em
disponibilidade – sem alusão aqui às medidas provisórias –, preparar o
bote e aproveitar o mote, que a noite é menina. A noite, aliás, nunca
fica velha.
Na verdade, quem bem definiu a situação reinante nesses
recantos modernos gafieiras estilizadas foi cunhado meu, quando
disse, conceituando o caso: “A Noite dos Desesperados!” E era
mesmo! Uma loura empeiticada, de longe, levantou a bandeira de luta
o copo de cerveja –, fazendo ao cunhado o convite, sem esperar da
mulher, legítima, casada e sacramentada, a reação: um muxoxo,
sonoro, aos ouvidos de quem quisesse ouvir.
De outra feita, um camarada boa-pinta, adepto do machismo
dos anos 1960, mas verdadeiro cultor do rabo-de-cavalo, usado e
abusado na mesma década usa o adorno em homenagem a um amor
perdido –, foi confundido por um bêbado. Pensava o seguidor de Baco
tratar-se de uma dama e confidenciou aos cochichos a choradeira toda
da vida. Depois, tomou um susto desgraçado, quando viu que a figura,
de rabo-de-cavalo e tudo, era machão desgraçado, brabo feito uma
capota, capaz de um safanão se a conversa não findasse, se o papo
fosse adiante.
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Outrora, a rapaziada chegava da casa do sogro, deixando a
namorada envolta pela coberta dos sonhos, e ganhava a rua. Ia baixar
no primeiro terreiro que encontrasse e dentro ensaiar o bolero, o
tango e o samba. Ia dançar com a ama de casa, com a babá do vizinho
ou a empregada do melhor amigo. Tudo, rigorosamente, nos trinques.
Quando dava, o amor pintava e o casal se mandava para os recantos
bucólicos que cercavam a gafieira. Haja capim pela frente, lama para
botar medo em qualquer um e carrapicho para denunciar ao velho, de
manhã cedo, as artimanhas da noite.
Mas, toda gafieira que se preza tem lei, tem ética e tem fiscal de
salão, como bem me explicou Lígia, da assessoria doméstica aqui de
casa. Mulher na pista, dando bobeira, não pode recusar convite. Se o
fizer, merece a repreensão justa do fiscal e na reincidência, o destino é
a rua. Agarradinho, piorou, só do portão para fora e tanto faz se casado,
amancebado ou amigado.
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Sociologia do Mercado Público
Um mercado público é um mercado blico, nada mais que
isso, quer dizer, um lugar, simplesmente, no qual são vendidos
centenas de itens domésticos e assemelhados, da cenoura e da laranja
aos equipamentos elétricos e outras bugigangas. Vende-se de um tudo,
diria o matuto brejeiro, desligado dos shoppings e de recantos
parecidos do consumo urbano. Mas, no mercado blico é possível
encontrar certas e determinadas peculiaridades do comportamento
humano, conforme, mesmo, o segmento social do freguês e segundo o
dia da semana. Sei das coisas que acontecem, especificamente, nas
manhãs de sábado ou de domingo, pois, vez ou outra, preciso
complementar a culinária de casa com mais um quilo de tomate ou
trazer pimentões verdinhos, verdinhos, para encher de carne moída e
degustar ouvindo a Rádio Universitária. Aí, amigo leitor, para
desparecer, para afugentar a irritação emergente, o há outro
caminho, senão o da observação detalhada da gente do mercado. É o
que conto agora:
O domingo é, ainda, mais bucólico que o sábado nos mercados
públicos do Recife, na Encruzilhada ou na Madalena e no de São José
por certo que também. Mais bucólico e de alguma forma mais
nostálgico. As pessoas circulam vagarosas pelos corredores,
verdadeiras alamedas sentimentais do intercâmbio comercial, olhando
para todo o lado, fazendo do momento, ao que parece, uma hora da
saudade. Um tio meu Sileno Marques faz isso, com toda a certeza,
quando observa cada um dos boxes e se lembra dos passeios matinais,
aos sábados e aos domingos, de irmão seu, encantado na noite dos
tempos, mas assíduo freqüentador do Mercado da Madalena, enquanto
viveu e pôde carregar a sacola de plástico estilizada. Muitos recordam
tempos pretéritos, quando o caminho das compras tinha por guia a mão
zelosa, cuidadosa, da mãe ou a voz atenciosa, da vida a diretriz, do pai
ou estão se lembrando da feira bem escolhida, feita sem muita
dificuldade, com a féria do mês. Eu não! Não tenho essas lembranças!
Sou nascido e criado fazendo feira aos sábados, mas em Santo Amaro
das Salinas, com direito a ser, devidamente, acolitado por um
carregador especial, ssaro Triste, o único ser humano que perdeu o
humor definitivamente.
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No mercado gente de todo o tipo, gente pobre, miserável na
forma da lei, vagabundos, como os que vi em Londres, encapotados e
falando inglês, literalmente, certo. Ou os remediados da sorte e o povo
de classe média, em maioria. Rico não entra em mercado público, em
virtude da proibição antiga, secular e bíblica, de não entrar, também,
no reino dos céus. Do reino, mesmo, estão ligados à pimenta e ao
queijo. Ao bacalhau ou à sardinha ligam-se, de igual forma, contanto
que sustentem o hábito velho dos colonizadores de Portugal, da comida
fina, mais temperada que tropical, propriamente. Tudo fedendo a
tempo!
Os vagabundos carregam pelo mercado o fardo da vida,
representam, naquele sistema de multiplicidade social, bólidos
errantes, cujas órbitas não foram, inteiramente, limitadas. A cada passo
e em cada box mendigam um naco, que seja, de alimento sólido,
duradouro ou um trago, que se beba, do líquido capaz de embriagar a
mente. Dessa forma, não se sente e ao sentimento se mente!
De estilo, somente, as senhoras, madonas desta vida, sem vida,
por vezes, que passeiam no mercado para escapulir, por certo, das
horas de casa. Quarentonas convictas e efusivas cinqüentonas, cientes
dos atributos passados todas elas –, guardados anos a fio, para um
passeio como esse, fosse onde fosse. Pernas marcadas e coxas pintadas
pelo varicoso azul dos tempos vividos e das horas sofridas. Padecer
esmaecido, quando o olhar masculino denota agrado e traduz o afago.
Maridos desatentos, sonolentos, ainda, distantes, desconhecem que a
semana tem um vestíbulo e toda estória mesmo no mercado tem um
epílogo.
Os homens nas compras, pode crer o leitor e acreditar, com
todo o respeito às leitoras, prestam mais atenção à moda que aos
modos. Eu fico com a moda e os modos da mulherada, trago as
compras de quebra, apenas, porque criação maior que a da mulher, eu
estou para ver, dar recibo e pagar o imposto devido.
É isso aí, o mercado público e sua gente! Dava para escrever o
dobro, mas o espaço tem limite por aqui e eu passei da conta,
contando nos dedos a linha que posso contar.
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O Doidinho da Católica
Ensina o mestre Ariano Suassuna, de todos os saberes e de
todas as artes, que em cidade pequena, do interior, sempre um
doidinho pelas ruas. Na metrópole, igualmente, em cada bairro
pontifica uma dessas figuras de maluquices emergentes. Aqui na Boa
Vista, nos domínios pombalinos, como diz o nosso cronista-mor, Paulo
Malta, havia o Calixto, cujo ponto preferido, durante muitos anos, foi a
Universidade Católica. Ali, na Unicap, atendia aos mandados de
muitos, de funcionários e de alunos. Comprava um lanche aqui e outro
acolá, abastecia assim os estômagos alheios e se reservava para fazer a
derradeira refeição em casa de conhecido. Fosse por cá, na minha
moradia ou mais para lá, onde assiste a filósofa maior, Maria do
Carmo Tavares de Miranda. Comia e depois pedia um calhamaço de
jornal, indo agasalhar-se para as bandas da Sossego, como se o nome
desse paz à rua, num terraço qualquer, de uma clínica ou de uma
empresa de comércio.
Gostava Calixto Piuíte por apelido - de imitar artistas de
circo, de se munir com dois pedaços de cabo de vassoura e fazer girar,
assim, um terceiro, andando, loucamente, pelas ruas do bairro. o
ligava para os carros ou para os ônibus, muito menos para os veículos
menores, motocicletas ou bicicletas. Passava por todos os perigos do
mundo e saía sempre ileso. Quando na cidade se instalava um
picadeiro qualquer, batia palmas por aqui e pedia o dinheiro da
entrada, deliciando-se com o espetáculo, fosse o que fosse. Voltava no
dia seguinte e contava tudo, com detalhes, arremedando o palhaço e
fazendo as piruetas do macaco. Só não voltou, de logo, naquela vez em
que instado a comprar, imediatamente, duas pilhas para a máquina de
fotografias, num sábado de aniversário infantil, retornou no domingo,
já, com o material e a desculpa amarela de não ter encontrado, de
pronto, os apetrechos energéticos. Quase puxo-lhe as orelhas!
Tinha, porém, um exagerado cuidado para não tocar em
dinheiro, reconhecendo a sujeira, certamente, a das cédulas e a do
metal, vil, sempre, razão para se munir de sacos de leite, postos à
semelhança de luvas em suas mãos, que eram muitas e muitas vezes
lavadas. Uma mania de suas inúmeras maluquices! Inofensivo, porém,
não causava pânico aos transeuntes, mesmo que desavisados, fazendo
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um tipo diferente, a saltar o tempo todo, quase, com as mãos enluvadas
pelos sacos, batendo palmas, simplesmente, para a vida e para o
mundo. Quando solicitado, dava apitos, qual a locomotiva de Ascenso,
“danada pra Catende com vontade de chegar”, lembrando, por certo,
tempos da infância na Mata-Sul, no meio do canavial brabo,
apanhando de relho do pai, que não compreendia as suas deficiências.
Um dia fugiu, ganhou o mundo e veio, como toda a gente faz, assistir
no Recife, onde conheceu o mar, em Boa Viagem, dando mergulhos
enormes, buscando outros mundos Quem sabe?
Uma certa vez comentei: Piuíte! Você está ficando velho,
cheio de cabelos brancos!” Respondeu no ponto: “É sinal!” Não
acreditou quando lhe disse que todos estamos marcados para morrer e
falou, na perplexidade das interrogações e das exclamações infantis,
ainda: “E morre, morre? Sabia não!” E morreu sem saber! Contam que
durante um assalto estava nas proximidades e passou a fazer as piruetas
todinhas que sabia, levando do ladrão assombrado uma bala maldita e
mortal.
Hoje, virou corredor das nuvens, aplaudindo o éter!
OBS: Piuite reapareceu e explicações não deu de onde teria ido
e passado tantos meses, como passou.
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Prenome e Cognome
Em reunião mais do que sacrossanta, porque realizada em
salão, reservado e restaurado, de velho convento da Olinda de todos os
mares, o telefone celular tocou ou vibrou, simplesmente. Não costumo
atender o equipamento da modernidade em momentos assim, de
grande concentração mental e sobretudo exigentes em decisões
duradouras, mas dessa vez cedi à tentação. Do outro lado, o
interlocutor fez uma saudação ruidosa, de quem conhece o semelhante
muitos carnavais e deu o prenome, somente: “É Walter! Ora,
ninguém se identifica, apenas, pelo primeiro nome, omitindo o
sobrenome, especialmente quando o se o penitente mais de
vinte anos. O personagem desse drama que aflorava, todavia, insistiu:
“Não está me conhecendo?” Respondi, meio sem jeito: “Ainda não.
Faço, porém, um grande esforço de memória e dentro em pouco chego
a você. Tentou continuar a conversa e adiantou mais da sua
identidade: “Sobrinho do finado Wilson!” Piorou! Fui aos escaninhos
da imaginação e não consegui juntar nada com nada, isto é, o prenome
ao parentesco, pior o falecido e seu nome. Como não havia jeito,
complementou, soletrando, quase, em voz forte: É Coruja!
Ora, de Coruja me lembro! É claro! Amalucado, desde a mais
tenra e incompleta idade, ajudou-me a fazer poucas e boas com a gente
do bairro e com os forasteiros que namoravam as vizinhas e roubavam
a mulherada da redondeza. Certa vez, trouxe da Matriz de Santo
Antônio um retrato deixado no lugar das promessas. As pessoas faziam
o pedido e a fotografia ficava, encarregada de continuar pedindo ali a
graça desejada e pretendida. Era uma senhora muito gorda, com uma
papada avantajada, de vestido colorido, estampado com flores.
Horrível, coitada! Mandei, então, o Coruja procurar primo meu que
vinha namorando uma moça na Visconde de Suassuna, para entregar a
foto, dizendo que a antiga sogra, saudosa, ainda, mandava como
recordação o seu busto, vestindo a chita que recebera de presente dele
mesmo, do primo. Foi uma encrenca séria! A minha intervenção sanou
a questão e hoje vivem casados e bem casados, parece! De outra feita, o
Coruja assumira a condição de pregador dos Evangelhos e andava com
uma Bíblia, acima e abaixo, candidato à condição que hoje tem, a de
pastor enlouquecido! Por cinco cruzeiros pregou a Palavra e apanhou!
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No meu gabinete, com hora marcada e audiência aprazada,
contou a desdita. Viajando a São Paulo, de ônibus, pra fazer um curso e
melhor falar do púlpito, foi vítima de um acidente e não terminou
despachado para os céus, porque tinha ligações com São Francisco de
Assis, dos tempos de católico e a ele recorreu, disse. Precisava, agora,
de uma cirurgia que lhe corrigisse a coluna! Devidamente
encaminhado, então, fez o relato de seus anos todos. Vivia do dízimo
alheio em igreja que edificara num subúrbio pobre e por isso, mesmo,
estava providenciando um dormitório no primeiro andar, contanto que
tirasse um pouco mais em sua eclesiástica féria, para atender à feira
dos meninos. Casara uma filha, não ele, propriamente, pois não sabe,
ainda, das palavras e das formas, dos ritos e da liturgia. Um velho
álbum de fotografias documentava tudo, da casa em que morava ao
templo de seus ofícios, a família e a esposa, o matrimônio da filha e a
igreja ainda não concluída, com o andar de cima em construção. Ora
pastor Coruja, indaguei: “Onde se viu igreja com dormitório? É um
templo ou um motel?” Não gostou e retrucou, de logo: “Doutor! Sou
um homem decente, agora!
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No Mundo da Lua
Trabalha aqui pela redondeza, sob as ordens de Gilberto, o
Diretor da Rua, como se julga, pois que instalado em área cercada pelo
gelo baiano, tem gabinete funcionando em mesa de dominó. Vive pra
e pra cá, pastorando os carros, lava um aqui e outro acolá, mas
quando chega o meio-dia, não suporta mais a jornada e a labuta, toma o
ônibus de volta e vai para o aconchego doméstico. Mora com a mãe, já
me disse, porque apartado da mulher, como se encontra, virou um sem-
teto e retornou ao recesso do lar. Tem prenome diferente Gildásio –,
por isso mesmo, sugeri a mudança! Passasse a adotar Gerbásio
Fioravante e dessa forma assumisse uma nobreza diferente, de quem só
precisa trabalhar metade do dia, queixando-se, todavia, da falta de
dinheiro o dia inteirinho. Respondeu: “O meu nome é Gildásio, mas o
senhor pode me chamar como quiser.” Todas as vezes, então, que o
trato com a nominação diferente, diz a mesma coisa: “O meu nome é
Gildásio, mas...” Vive no mundo da lua, desligado de tudo e de todos.
Dia desses, tocou a campainha e, ao entrar, comunicou a boa
nova: tinha sido pai. É que deixara a patroa, a qual, sem que soubesse,
restara grávida e o animava, agora, com o rebento chorando horrores.
Precisava, pois, de mais uns trocados para a feira, o leite e o açúcar, o
engrossante e a fuba. não dava mais a féria que recebe. Pediu para
assumir a lavagem do carro e se comprometeu a vir todos os sábados.
Conseguiu a proeza em dois, apenas, mas veio num domingo qualquer
fazer um extra. Afinal, precisava comprar um ursinho de pelúcia para a
criança e com aquele dinheiro cumpriria a despesa. Marcara, inclusive,
com a dona da loja do bairro a visita dominical e ela o esperaria até as
dez horas. No momento de ajustar o preço, disse que, de hábito, cobra
R$5,00, mas para mim, seu freguês e amigo, era somente R$4,00.
Pedia, porém, R$1,00 emprestado, para fazer face à despesa contratada.
Ora, seu Gerbásio, retruquei, de que serve o desconto, se tenho que lhe
devolver em empréstimo? “O meu nome é Gildásio, mas...
Inventou, agora, de raspar a cabeça, usando a máquina zero.
Com isso, explicou, pode passar mais tempo sem gastar o apurado no
barbeiro. Essa depilatória medida deixou de fora cicatriz muito grande
na têmpora direita, resultante de uma queimadura há mais de dez anos.
Quando o vejo, não descuido: seu Gerbásio! Está melhor da
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queimadura?” E ele: “O meu nome é...! Estou melhor, obrigado! Faz
por aqui uns mandados a pedido de Lígia, que muito tempo
movimenta o fogão e exerce o mister da faxina, lavando e passando,
também, a roupa de todos os dias. Providencia o pão e traz o café,
compra o remédio e procura o s. Carrega a feira da garagem à
despensa, mas não dispensa a gorjeta, R$ 1,00, que seja, justifica-se,
sem lembrar de todos os empréstimos resultantes de seus abatimentos e
de suas contas, de diminuir e de somar. Indagado se teve,
recentemente, um filho, o deixa passar a perplexidade que assume
com a inusitada pergunta e responde: “Foi a mulé!”
Dia desses, chegando muito cansado, de reuniões e reuniões, fiz
questão de perguntar se de encontros assim, coletivos, já participara? O
Gilberto, Diretor da Rua, antecipou-se. Já havia participado de uma, há
muitos anos, na escola Gigantes do Samba, para escolher o enredo. Foi
de pale e gravata, um conjunto do casamento, ainda, mas, depois,
sem suportar o calor e os apertos no pescoço, deu quase tudo de
presente e cortou as calças, fez do restante uma bermuda. E fez muito
bem! É de Gilberto, também, a explicação das posses de um certo
senhor, conviva das conversas fiadas da rua, contou-me Saulo,
motorista do automóvel em que ultimamente trafego: “O homem é tão
rico, mas tão rico, que comprou um cotonete em Boa Viagem para
receber as gatinhas.” Ora, Gilberto, o nome do apartamento que é, na
verdade, um aperto é outro: “quitinete”.“O meu nome é Gildásio, mas
o senhor pode me chamar como quiser!”
Gildásio ou Gerbásio Fioravante morreu assassinado na porta
de casa. Meteu-se com mulher casada e pagou o preço da vida, que
preço não tem.
52
Mordomia Extravagante
Um amigo meu, muito sério e muito puro, integrante, aliás, da
confraria dos Veranistas Descalços de Pau Amarelo, se bem que
meio distanciado do papo e da areia da praia, me contou uma
suficientemente capaz de fazer o leitor cair para trás mais de trinta
vezes. Disse que residia perto de um motel aqui mesmo no Recife e
embora para as bandas do recanto do amor não olhasse, senão com os
olhos do perdão, anotou fatos e casos dignos de registro. O mais
extravagante eu conto agora.
De hábito, às segundas, quartas e sextas, no pátio dessa
moderna casa, na qual se pratica o exercício do amor, estacionava uma
ambulância e dela saía um casal, o motorista e a atendente,
invariavelmente. Ora, sendo o veículo alto, grandalhão, não havia
como se acomodar numa das garagens de prédio assim, cujos cômodos
têm destinação tão específica. Ficava ao sol, expondo o letreiro
vermelho, cor de sangue, a sirene com a luz encarnada e a placa oficial.
Com as medidas saneadoras do uso e do abuso de carros do
governo, o ilustre amigo resolveu meter o bedelho na questão, isto é,
interrogar o motorista sobre as incursões que fazia ali, em tempos
como esses, de tantos rigores. Queria, também, detalhes a propósito da
morena bonita, faceira, tipo dona boa dos anos 1950, assídua, de igual
forma, naquele lugar. O barnabé municipal justificou-se como pôde,
dizendo que fazia viagem longa e estafante, do Agreste até aqui,
agüentando o frio de manhã cedo e o calor o resto do dia e quando
chegava ao Recife, depois de se desobrigar dos doentes, desejava
sombra e água fresca. Escolhera o motel por ser mais isolado, mais
aprazível, lembrando um pouco, pelo menos por seus jardins, o recanto
agrestino onde nascera. Admirava, também, a tecnologia avançada do
videocassete e de outros aparelhos mais, os quais não chegaram, ainda,
para os lados em que morava. No lugarejo em que sobrevive, explicou:
“não havia motel e muito menos filme com enredo erótico.”
Conversa vai e conversa vem , à sombra de um “ficus
benjamim”, na beira da calçada, confessou a sua paixão pela morena
de belos contornos. Era casada e bem casada, além de ser carinhosa e
bem apetrechada. Mas, em cabine de ambulância, viajando pra cima e
pra baixo, léguas e mais léguas, não quem resista a uma conversa
53
bem fiada. Conhecia outros casos, envolvendo sempre motoristas do
Agreste ou do Sertão. Nunca com a gente litorânea ou com o povo da
Mata. Não que seus colegas do litoral, os matutos criados com cana-
caiana sejam desprovidos da arte de fiar conversa ou as mulheres sejam
feias e pouco atraentes. A pouca distância, o trânsito engarrafado e o
movimento exagerado atrapalham o papo, botam gosto ruim na
conversa.
Assim, tomou-se de amores pela morena e passou a bater ponto
naquele motel. Chova ou faça sol, às segundas, quartas e sextas aparece
por ali. Vai tomar um deforete da vida puxada que leva.
É isso aí, amigo leitor, se a moda pega, vamos ter camburões da
polícia, carros de bombeiros e até veículos funerários fazendo ponto
em motéis. pensaram num rabecão com o coveiro e a zeladora do
cemitério, estacionado no pátio de casa assim, especializada em amor?
Das duas uma: ou os motéis se adaptam, construindo grandes garagens,
verdadeiros galpões, ou os administradores públicos tomam jeito. As
mordomias federais estão se diluindo, ao bater do martelo, mas ficaram
as periféricas: as estaduais e as municipais.
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Quarto de Hotel
Aqui, neste quarto de hotel, distante de tudo e de todos, faço o
exercício da solidão ou a prática do diálogo interior, que é o monólogo
d’alma. Sou ao mesmo tempo, descubro, duas pessoas: uma que
pergunta, apenas, e outra que responde, somente. Rejeito as
companhias que tenho, os trovões e os relâmpagos nos céus de Belo
Horizonte e vou à janela convocar parceiros para a longa jornada do
absolutamente nada. Afinal, os programas de televisão não passam dos
desenhos inteiramente desanimados e dos filmes de monstros. Nenhum
diretor de TV considera, com razão, que no horário da tarde um
marmanjo qualquer possa ligar o receptor. Ora, cheguei com 12 horas
de antecedência e não há o que fazer, senão isso, refletir e olhar os ares
do mundo. Há gente, todavia, como posso identificar, nos arredores do
imenso prédio em que me encontro. À direita e à esquerda, em frente,
especialmente: cumprem todos as rotinas do dia-a-dia das coisas. Uma
senhora muito velha, a jogar baralho, e uma moça findando o banho,
um casal, o chefe e a secretária, encerrando o expediente e finalmente
um jovem digitador, ao computador, mas com fones de ouvido, para
esquecer da labuta o tédio!
A idosa mulher distribui as cartas sobre a mesa e fiel às regras
do jogo realiza, com paciência, a união dos valetes e das damas, dos
reis de copas e de outros naipes, também. Tem muita dificuldade em
juntar as peças da sua partida solitária, mas vai fazendo como pode,
coçando a cabeça branca, vez por outra, num princípio de desespero
que não lhe toma o espírito. Por certo, é viúva, já viveu dias melhores e
pôde dispor de companhia em horas assim, de isolamento estabelecido.
Se foi feliz no casamento, se teve filhos ou não, é impossível concluir
dessa distância, numa visão simplória de seu apartamento, tão apertado
quanto a gaiola de seu pássaro. Um canário belga, então, trinando os
acordes das saudades, porque as aves encarceradas cantam em louvor à
fêmea imaginária, sempre. Desiste do baralho e liga o aparelho de
televisão, sintoniza o canal desejado e se deita numa cadeira enorme. É
gorda, descubro, obesa mesmo, imagino, enquanto lhe observo o jeito,
alisando o imenso ventre, posto assim, à curiosidade de forasteiro
como eu, sem ocupação, que seja. Abre a boca, fortemente, arriscando
deslocar a mandíbula, tal o sono de que é tomada. Faz o sinal-da-cruz
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na cavidade oral, aberta como está, virada para o mundo. Apaga a luz e
se recolhe. Vai dormir, imagino! Não tem insônia, reflito! É diferente
de mim!
À esquerda, porém, há mais vida e mais movimento, na larga
vivenda do quarto andar. A empregada, vestida a caráter, de azul-
marinho e golas brancas, arruma a cama do casal, bate o lençol e forra
a colcha que me parece de cor vermelha. A moça, ao banheiro, por trás
do vidro quase fosco, deixa aparecer do pescoço para cima, apenas,
com a toalha posta à semelhança dos lutadores de boxe e passa o pente
nos longos cabelos negros. Lembro-me de Sophia, então, musa dos
meus anos de menino, trancafiada em casa, para não mostrar a beleza a
toda a gente da rua. Olha, da forma mais fixa possível, em direção à
janela do hotel, assistindo, de longe, à minha solidão. Termina o
exercício com o largo e bem cuidado, parece, manto piloso e sai, vai
assistir televisão, também, na sala de casa. Não chegaram os pais,
compreendo, ocupados ainda com os ardores do trabalho e a telinha
ajuda a matar o tempo. A escuridão da noite, entretanto, vai acendendo
as luzes da moradia, uma na frente e outra atrás, a do corredor e a da
varanda, a da área, finalmente, onde vive a criada, fantasiando o porvir,
nutrindo os devaneios da metamorfose da criatura, cujos horizontes,
socialmente estreitos, reclamam larguezas.
Diante de mim, bem na frente, um escritório vive o final de
mais um dia e o chefe, de gravata encarnada, salpicada com detalhes
que não posso divisar, exatamente, faz o balanço da jornada com a
jovem secretária, cuja blusa, percebo, é da mais pura seda, champanhe
na cor. Noto que ajeita os cabelos, bem soltos, com as mãos, dando um
jeito, que seja, no penteado armado e arrumado pela manhã, ainda.
Ouve as palavras nascidas na boca da autoridade competente e sustenta
o diálogo, uma observação ou outra, mostra um papel e anota um
lembrete, reúne formulários diversos e encerra o expediente, penso.
Pelo menos, desliga a iluminação por inteiro. Vou descendo para
jantar, quase informo, não fosse a distância dessa separação dos
convívios. Escolho o prato à sugestão do garçom, que em Portugal se
chama escarção, dizia Paulo Malta, e de logo retorno à solidão do
quarto. À janela, outra vez, posso flagrar acesas todas as luzes do
escritório. E a mais do que jovem secretária, terminando de vestir a
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blusa, passa o pente, agora, na beleza de seus cabelos, dando adeus ao
chefe. Pareço ouvir: “Aamanhã!
A cama é grande e fria. O sono é bem maior e os sonhos
inebriam o espírito. A amanhã, também!
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Um Papa Tupiniquim
Bateu palmas no portão de casa como qualquer pessoa normal
costuma fazer, desejando ter acesso à moradia escolhida. Apresentava-
se, todavia, vestido a caráter, em trajes episcopais, o que me fez
reconhecer, de pronto, a condição de bispo, de príncipe da igreja,
imaginei. Eu era jovem, muito jovem e estava sentado no alpendre, em
cadeira de balanço dos hábitos de meu pai, fiando conversa com o tio
Cícero, figura folclórica, quase, cujos inícios profissionais, insistia em
dizer, fora no exercício do mister de “Cachorro”, cujos direitos e
deveres, francamente, ignoro. Levantei-me, de logo, para fazer as
honras da família ao cura emergente, sobretudo porque na situação em
que vivíamos, com o mestre Nilo Pereira o meu pai assim, doente,
sob os cuidados de fiel sacerdote da ciência médica local, Ovídio
Montenegro, nada mais salutar, parecia, que uma visita dessa. Fiz,
então, todas as mesuras da hora e da praxe e entronizei o novo
figurante no terraço de casa.
Observei, de logo, que a presença do prelado não agradava, de
todo, ao tio Cícero, pois que sendo espírita por convicção, andava às
turras com toda a gente vestida em batina, fosse preta ou branca,
marrom, como costumavam usar os frades, ou rubínica, a dos bispos e
arcebispos. Abria uma exceção, mais do que honrosa, para o nosso
Emérito, a quem enviava, regularmente, os livros de Alan Kardec, na
ilusão de converter aos seus princípios o homem do Giriquiti.
Mudou de idéia, porém, quando do visitante ouviu as devidas
explicações. É que não era, em realidade, da Igreja Católica, justificou-
se, mas de uma nova denominação, dissidente e criada por ele mesmo,
após uma visão que tivera de um anjo do paraíso. Dessa forma,
apresentava-se como papa, Dom Sebastião I, e ali estava com a
finalidade de comunicar o ato e o fato, desejando ficar à disposição de
meu pai para o que desse e viesse. Ora, refleti, prontamente, se uma
figura dessa chega ao quarto, Nilo Pereira tem nova complicação e
vai tudo outra vez!
Sustentei a conversa, então, no alpendre de casa, com o
indispensável auxílio de Cícero, muito interessado agora na
dissidência. O papa tupiniquim residia em pensão e templo não tinha
para executar os ofícios, senão uma capela muito modesta para as
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bandas de Água Fria. Precisava, entretanto, de nossa ajuda, com o
objetivo, mais do que relevante, dizia, de exercer o seu papel. Pedia,
pois, a indicação, aos amigos e parentes, de seu nome, para batizados
ou casamentos, crismas e até para a unção dos enfermos. Afinal, tendo
sido seminarista católico, aprendera a liturgia e os ritos, não
envergonhando os circunstantes, como podia garantir. Não precisa
também dizer que o tio Cícero, tomado pela piedade de seu jeito de ser
e mais, considerando o homem seu aliado mais novo, providenciou um
dízimo de última hora e uma coleção de livros especializados. Ao
bispo ou ao papa D. Sebastião I parece ter agradado mais o dízimo que
os livros. Contou, ainda, que táxi não pagava, haja vista o número de
caronas, de padres e de leigos católicos, iludidos pela batina e o
báculo!
Ora, onde se viu um papa nascido e criado no Recife, com
esse nome provinciano de Dom Sebastião I, arriscado, sempre, ao
apelido corriqueiro de Bastião. Ainda mais, residindo em pensão, no
centro da cidade, assistindo nas proximidades do mundano, sem igreja
e sem ocupação, que fosse. Papa, ao que sei, nasce em terras gélidas,
nunca nessa tropicalidade nordestina e habita um palácio, cercado de
uma corte inteirinha, com seus cardeais e seus bispos, às vezes com as
suas freiras, também. o se sustenta de dízimos e não corre atrás de
convites para a celebração dos sacramentos. Vive, na verdade, às voltas
com milhões de problemas e tempo não tem para o comum das coisas.
Mas, fomos levando o homem na conversa, explicando que o mestre
Ovídio Montenegro proibira visitas, restringindo preocupações e outras
injunções do espírito. O tio Cícero e o Dom Sebastião I fizeram, então,
um pacto do cisma e o papa se despediu. Nunca mais apareceu!
E como não era pedra, em Pedro não virou e nada edificou.
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O Tio do Boy
Folclórica figura também, essa que pontificou por aqui, na
minha rua. Passou anos e anos freqüentando a redondeza nos fins de
semana, apenas. Vinha, na realidade, fazer um bico, ganhar um
dinheiro qualquer nas cercanias, nos bares, cuja proliferação, de uns
tempos para cá, tem sido crescente. Tomava conta dos carros e vendia
jornal ou preparava o cachorro-quente e servia à clientela. Tinha,
porém, a mania de me incomodar, quando a noite embalava a
madrugada ou pela manhã, no domingo, já. Pedia um copo d’água bem
gelado ou implorava um trocado, oferecia os jornais do dia, mesmo
sabendo da minha condição de assinante ou inventava uma estória
qualquer, de ladrão rondando a casa ou de suspeitos pela vizinhança
vagando. Queria lavar o automóvel a todo custo ou fazer um mandado.
o usava o nome próprio – ignoro seu prenome –, preferia o cognome
e se apresentava assim, como Boy, simplesmente. À porta de casa,
quando indagado de quem se tratava, respondia da forma mais sonora
que pudesse: “É o Boy!” E de nada serviam as advertências para evitar
os incômodos.
Uma certa noite, eu nem havia percebido a ausência do Boy,
embora me admirasse da hora correndo e do silêncio no portão, tocou
o telefone celular. Ora, esse apetrecho da modernidade é de muita valia
nos chamados dias úteis, mas costuma deixar o penitente em paz nos
feriados nunca inúteis. Atendi e na perplexidade do momento,
identifiquei o meu interlocutor de ocasião: “Aqui é o tio do Boy!
Imediatamente, antes mesmo de prosseguir no diálogo, fui ver se tinha
jogado uma pedra na cruz, porque um padecimento desse só pode se
reservar, mesmo, aos que apedrejam o crucifixo. Diga-me lá, meu
senhor, perguntei: “Quem lhe deu o número deste telefone? Não
obtive resposta, antes ouvi, com igual perplexidade, a precisão do
homem. É que morrera a avó do Boy, em cidade do interior, quando
estava a passeio e o filho, tio, portanto, do personagem mais que
folclórico, desejava trazer o corpo para o Recife. Gostaria, explicou, de
contar com a minha colaboração, conseguindo uma camioneta e
fazendo o transporte da urna funerária.
Pouco ou nada serviu a justificativa de não contar em casa com
o veículo desejado e mais, o longo esclarecimento da ilegalidade dessa
61
remoção. O moço insistia com o pedido, dizia tratar-se de uma
caridade e se não tinha a condução pretendida, pedisse a um amigo,
falava, para atender a uma família assim, enlutada e chorosa, vivendo o
pranto da perda. Confesso que não agüentei mais e terminei dando o
número de outra pessoa, de um colega aqui das meninas, Alexandre de
prenome, Fofurinha por apelido, passando adiante a questão. Fosse
pedir a ele, que sendo dono de uma empresa dispõe de uma frota. E o
danado do tio do Boy fez a ligação, mas não teve a sua desdita bem
interpretada. O rapaz, diante da solicitação, imaginou tratar-se de
brincadeira e levou o seu interlocutor na graça. Mostrou caminhos e
ofereceu remédios, na galhofa, sempre! Mandou que solicitasse da
falecida a colaboração, ressuscitando por algumas horas, apenas, e
deixando para morrer na segunda-feira, quando tudo é mais fácil, ou
que pegasse um ônibus e viesse morrer no Recife. Ou aplicasse, na veia
da “véia”, a melhor penicilina, para levantar-lhe as forças.
É dispensável dizer que o tio, filho da defunta, desligou o
telefone na cara e foi se resolver de outra forma. E do Boy,
verdadeiramente, não se tem notícias. Ignora-se o destino. Se vive hoje
dos bens da falecida avó ou se aproveita a pensão da previdência e vai
levando. O certo é que por aqui, nos domínios pombalinos, metade
Boa Vista e metade Santo Amaro das Salinas, nunca mais apareceu.
Graças a Deus, aos anjos e aos santos.
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Riso Sardônico
Era um hipocondríaco de livro, não havia dúvidas, a tirar pelas
inquietações e pelos medos que apresentava. Pior assim, na condição
de estudante de Medicina, em contato diário com os textos clínicos e
sobretudo vendo e seguindo, de perto, os doentes do velho Hospital
Pedro II. Com o aprofundamento dos nossos convívios ali, numa das
salas do posto de saúde, veio a confirmação de que não suportava ler o
quadro sintomatológico de uma doença qualquer, sem apresentar as
mesmas queixas. Ora, aquela garrafa de coca-cola vazia, examinada
com presteza, e que tinha uma pequena falha no contorno, foi a
primeira de suas manifestações diante de nós. “Engoli o vidro!” gritou
para toda a gente, suspendendo as atividades e produzindo uma
inquietação geral e irrestrita. o houve quem lhe convencesse do
contrário e à noite, internado no Pronto Socorro da Fernandes Vieira,
viveu a glória dos que se julgam enfermos e exigem cuidados alheios.
A estudantada, porém, matreira sempre, não dispensou do homem a
neurose e daí por diante fez da hipocondria a bandeira de luta, levando
ao desespero, quase, o neófito na arte de Hipócrates.
Em certa reunião noturna, na qual se estudava em detalhes as
posições, em tudo, antecipadoras do professor Bezerra Coutinho, um
dos alunos lia para o grupo a apostilha gravada e transcrita das
digressões filosóficas do mestre. Combinaram, então, apagar a luz e
simular um blackout, depois que uma parte do texto fosse decorada,
para que a leitura pudesse, aparentemente, continuar. Um dos
acadêmicos foi à cozinha, alegando a sede emergente, e nesse
momento desligou a chave geral. “Faltou luz”, disse ele, o nosso
personagem, agora, de todas as hipocondrias! E os demais, a rogo,
pediram-lhe silêncio, para o melhor entendimento do conteúdo, difícil
e complexo. Com a insistência da falta de claridade suficiente, foi
admoestado da forma mais severa possível. Não incomodasse, por
favor, ou estaria se responsabilizando pelas notas baixas e a reprovação
até, na disciplina do sábio pernambucano. Com isso, certificou-se de
mais um problema e se levantou, bradando para todos, em voz alta e
forte: “Estou cego! Dispensável seria dizer que a risadaria foi geral e
o estudo virou uma pândega, verdadeiramente!
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Numa sexta-feira qualquer, chegou tenso para o trabalho. É que
assistira a uma aula sobre tétano e aprendera os sinais e os sintomas da
doença. Aprendera, sobretudo, que a contração dos músculos da face
ao doente um aspecto peculiar, de permanente riso: o Riso
Sardônico! Olhava-se, seguidamente, no espelho e esboçava aquela
forma, mais do que patológica, de rir, e não suportando tanta
ansiedade, terminou confessando: “Estou com tétano!” De imediato,
armamos uma cilada, pedimos, então, ao nosso chefe que ao chegar
simulasse, também, admiração com a postura assim, risonha, do nosso
colega. E foi dito e feito: “Admaldo! Que riso é esse?” Não obteve
resposta, senão a que se esperava, aos gritos, que encheram os espaços
todos do posto de saúde: “Estou com tétano! Vou morrer! Levem-me
ao Hospital Oswaldo Cruz”. E rimos às bandeiras despregadas, para
perplexidade dos pacientes postos na fila dos exames e das consultas.
Foi um expediente dos mais divertidos, naqueles encargos de antanhos
encantados, dos quais restaram muitas e muitas histórias assim,
engraçadas.
E Admaldo formou-se, viajou para bem longe daqui, onde
ninguém desconfiasse de seus males ou de suas hipocondrias. Soube-
se, depois, que a Medicina deixou, para não ter que adoecer todos os
dias, chovesse ou fizesse sol. tinha tido um milhão de infartos e
outros dois milhões de derrames, além de muitos e diferentes achaques.
Nunca mais, entretanto, apresentara o Riso Sardônico do Tétano.
Curara disso, pelo menos. Vive da criação de gado da boa raça, de
corte e de leite, praticando um pouco da veterinária que ignora. Fez dos
livros dos tempos de estudante uma fogueira bem grande e dos
equipamentos de consultório entulho do quarto dos fundos. E vai
vivendo, sem querer saber de moléstias ou de outras coisas
assemelhadas.
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O Trem Bala
Quando eu era menino e usava calças curtas, gostava de fazer
escavações no quintal de casa. Tomava a colher de jardineiro com que
minha mãe cultivava as rosas do jardim e cavava o que podia no
fundo do terreiro. Mal começava a operação, já minava água por todos
os lados, assegurando-se, então, mais e mais, as origens do Recife,
plantado sobre os manguezais dos outroras. Mas, na minha cabeça e no
meu imaginário de criança era possível chegar ao outro lado da terra,
abordando o Japão, assim, de forma tão artesanal. Fantasiava que de
repente, não mais que de repente, um homem de olhos apertados ou
uma mulher bonita, de feições orientais, surgiria dos fundos daquele
buraco, emergindo nos meus domínios, naquela ambiência das minhas
divagações lúdicas. Não imaginava, também, que um dia tomaria o
aeroplano das invenções nacionais e dos sonhos de Santos Dumont e
rumaria à Terra do Sol Nascente. Pois é, amigo leitor, viajei,
cumprindo o inverso da trajetória infantil e surgi nas distâncias
nipônicas, dos céus, ao contrário de minhas fantasias, de telúricas
emergências. No aeroporto, a minha mãe, no habitual das coisas e das
despedidas, disse: “Deus o leve!” Depois, lembrou-se que por lá, nas
friorentas paragens do Oriente, quem manda é Buda e fez o reparo:
“Buda o traga de volta!” Saiu-se bem e foi política, sobretudo,
agradando às duas correntes, das crenças e da fé.
Tenho sobre os meus ombros, maduros, agora, a missão de
observar o sistema de saúde, as razões pelas quais o Estado pode
sustentar a chamada atenção universalizada, oferecendo a toda a gente,
independentemente da classe social, a merecida assistência às injúrias
do corpo e da alma, que acolhe o psiquismo humano. Como devo, de
igual modo, visitar as instituições acadêmicas, conhecendo o evoluir
das pesquisas no campo das doenças, principalmente aquelas de
natureza infecciosa e de cunho parasitário, objeto de meus estudos,
também, tantos anos. Vou rever, da mesma maneira, companheiros
que estiveram no Recife em tempos pretéritos, iniciando o intercâmbio
na década gica dos anos 1960, quando por aqui aportaram os
desbravadores dessa ligação tão forte, já, no âmbito dos males dos
trópicos e da implementação do sistema de atenção à saúde tupiniquim,
embrionário, ainda. De trem bala, então, viajarei, pra e pra cá,
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cumprindo a destinação da missão. Não significa, porém, que perca as
minhas características de observador simples do cotidiano das coisas e
dos costumes. Das pessoas, sobretudo, da criatura humana plantada de
forma diferente, sempre, em cada recanto do globo, mas, com as
mesmas qualidades e com as mesmas fragilidades da condição de
gente, apenas, sujeita às intempéries do mundo de fora e do mundo de
dentro, dos interiores, pois!
Quando a segunda-feira nasceu – o dia 3 de março –, parida das
entranhas do feriado de fim de semana, na madrugada, ainda, em São
Paulo, tomei o Jumbo da JAL e pelos ares do mundo faço como o
poeta: “Vou danado pra Catende/Vou danado pra Catende/Com
vontade de chegar...” Cuido em levar, a tiracolo, os agasalhos todos de
que disponho e os que dispõem, igualmente, os amigos diletos, os
meus companheiros de batente, da faina diária, os quais têm mais horas
de vôo e se habituaram, já, à e à linha dos casacos de frio. Pela
internet, todavia, comuniquei-me com brasileiro largado para aquelas
bandas e soube de seus tremores quando o dia amanhece em Tóquio e
confesso os meus temores. Ora, sou nascido e criado no calor dos
trópicos, acostumado ao suor pingando no rosto, de dia e de noite, e
costumo bater o queixo diante das temperaturas baixas ou abaixadas.
o ligo o condicionador de ar, senão no mínimo da potência,
puxando o lençol, de logo, para cima de mim, isolando-me do vento e
da aragem artificial. Imagine ao natural!
Depois, à volta, hei de escrever as impressões de viagem. Fazer,
como toda a gente que se preza e ensaia a arte do registro, um diário,
assinalando as benesses e os tropeços.
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Cerejeiras Desfolhadas
Ainda é madrugada em Tóquio, descubro agora, nesta hora da
antecipação de meu despertar, de um levantar mais do que precoce. E
um vento frio, gélido, quase, vindo das montanhas distantes, sobretudo
da enormidade do Fuji, assobiando a melodia de todos os zunidos,
açoita as árvores e parece espantar a noite. Executa, em verdade, a
lúgubre musicalidade do recolher dos fantasmas, com o clarear do dia,
aos porões dos castelos abandonados, onde antigos casais enamorados,
às escondidas dos censores, amaram-se, perdidamente! Ou anuncia, em
realidade, o nascer de mais outra manhã de sábado, nesta prolongada
estadia em terras nipônicas. É hora, também, de aproveitar o momento,
de se deixar mergulhar, com a integralidade do ser, nas reflexões do
Eu, para que não se perca um minuto, sequer, da existência humana,
tão efêmera, já! À falta de um interlocutor, pois que todos dormem, no
hotel e fora dessas acomodações transitórias, exercito o monólogo ou
pratico o diálogo virtual do homem só, que enfrenta indesejadas
vigílias. Ensaio, pois, perguntas ao léu e eu mesmo as respondo,
cumprindo o destino das insônias, de conotações orientais, agora.
Fazendo, então, da vigília a tela da minha única pintura, a qual vou
emoldurando assim, com as minhas expressões de neófito, sempre, na
literária arte de tomar a inspiração e transbordar o coração. Permito-
me, dessa forma, que o imaginário ganhe as asas do lúdico mundo das
fantasias e possa bailar na enormidade da criação.
Para quem os galhos das cerejeiras desnudas, ao de minha
janela, estão dando adeus? Não imagino. Será para o forasteiro
ocidental, posto em quarto de hotel, depois de se alevantar, a fazer
divagações d’alma em torno da parição dos dias? Por certo que não!
Ou esses movimentos largos, de braços desfolhados, mas repletos de
botões, representam uma esperança de um novo florescer das cores? É
isso aí, imagino agora! Com as flores de março, resgatam-se os amores
e são banidas as dores para a tumba do nada. As paixões desesperadas,
que se mostraram impossíveis aos olhos do mundo, o ressurgir,
espero, no emergir das saudades, sobre um arco-íris enorme de pétalas
largadas ao sabor dos ares, que depois hão de flutuar à distância, em
mares do sul, onde os afetos e os afagos se encontram. E as sereias,
amantes do imaginário poético, abrem os braços e recebem os versos,
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como se fossem abraços de jovens silentes ou ósculos de maduros
senhores, de cabelos prateados e de corpos a vergarem na conta dos
anos, apaixonados, ainda. A nudez da sereia é diferente daquela da
cerejeira a sakura dos japoneses –, pois que dura a vida inteira e
representa a utopia da beleza feminina, da cintura para cima. É preciso
perseguir a utopia, buscando, porém, em cada uma das mulheres do
mundo, o tanto de sereia que possuem. Ninguém se apresenta ao jogo
da vida, desprovida, inteiramente, desses atributos míticos. Aos olhos
de cada um emerge a beleza, sempre. Basta olhar e ver.
E numa dessas nuvens de agora, na madrugada de Tóquio,
flutua, entretanto, o poeta, exercitando o verso e arrematando a rima,
mais e mais. Inspirando-se no porvir muito próximo das cerejeiras, a
florescerem na largueza urbana, vai buscando as cores que marcam os
sentimentos todos. Lembra-se do lilás e vincula a mansidão do tom à
nostalgia das perdas, sentidas, mas aceitas, enfim! A conformação das
rupturas, pois. E de logo vem à mente o amarelo, do ouro que reluz,
trazendo de volta a esperança de encontros e de reencontros, do rever,
então, de certas faces dos outroras ou de transbordantes carícias,
resgatadas, então. Do vermelho, tira o fervor, com o qual um dia amou,
loucamente, esmaecendo os arroubos d’alma na paz do róseo, de cuja
placidez nascem os carinhos. E o azul? É a tonalidade das serenidades
estabelecidas, reflete, enquanto vai colorindo os céus com o grande
pincel dos amores, afugentando o cinza do firmamento, ameaçador, em
tudo, aos ares do mundo e aos pares, amantes em flor, apartados,
muitas vezes, na hora e no momento dos amplexos. O que dizer,
todavia, do preto? É a ausência de cor, pensou o poeta, a falta completa
de esperanças, a entrega do homem às frustrações da vida! Dessa
forma, estão as criaturas que acusam os outros por seus fracassos,
creditando a terceiros as próprias incapacidades do existir humano.
Preenchem o dia-a-dia com a ocupação alheia, julgando o próximo,
acusando o semelhante e descuidando de si, sem atentarem para a
maior das lições, a que impede a interpretação dos sentimentos, das
fragilidades de outrem.
E o dia foi clareando, alumiando o tempo, afugentando
fantasias e tangendo os devaneios. A realidade se fez presente e matou
os sonhos. As divagações desapareceram num sopro e se aninharam
nas nuvens da cidade grande e o ruído da vida voltou. E o inverno, em
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estertores, cede lugar à primavera em flor. Amanheceu, finalmente, em
Tóquio.
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Em Tempos Assim
Sentado assim, diante do computador, vendo as letras
emergirem, fluorescentes, da intimidade da máquina, lembro-me dos
velhos e muito distantes anos do grupo escolar, quando sequer
imaginava avanço tão grande. Ah, como as coisas mudaram nesse
interregno de tempo quatro décadas, pouco menos! A professora, D.
Maria do Carmo de Albuquerque Mello, ia todos os dias ao quadro
escrever o ponto, isto é, a matéria a ser explicada e depois estudada;
ponto, aliás, cuidadosamente copiado por todos nós. Por mim e por
Luiz Fernando Salazar de Oliveira, meu colega dos bancos de todas as
escolas; por Silvio Romero Marques e por Carmen Sylvia; por
Walfrido Antunes e por Carmen Chaves, ela musa das aulas e dos
recreios. Havia uma inglesa, de nome Ana, parece, que no dia da
coroação da Rainha Elizabeth II me deu de presente um lápis com o
clássico God save de Queen. Nunca entendi aquilo, a lembrança e a
escolha Onde andará, em que terras, aquela figura loira, de cabelos
quase brancos? E a outra colega, das morenidades provincianas? Vera,
de prenome, cujo sobrenome não declino por hesitação da consciência.
Nunca mais a vi! Perdeu-se, penso eu, na longa noite das décadas,
trevas das lembranças. Perdidos, também, ficaram os devaneios de
todos os meninos. Sonhos pueris.
Nesses princípios de meus convívios, sinceramente, tudo era
bom ou quase tudo. Deliciosa infância a minha! Camisa branca com o
monograma da escola, calças azuis e sacola de lanche levando o de
sempre pão com ovo frito e guaraná. Era jovem a minha mãe, o meu
pai muito novo, eu não tinha os cabelos brancos de hoje e nem as rugas
na face. O tempo passa e a gente marca! Sou da geração do pós-guerra,
dos que nasceram sob o signo da beligerância mundial, daqueles
amamentados em pleno blackout, criados e educados na linha-dura,
pesada, das confrarias cristãs. Jesuítas e maristas, salesianos ou
beneditinos deixaram nessas almas o sinete da carne, sem muito das
virtudes do homem, da caridade e da fraternidade. Das proximidades,
enfim, dos valores d’alma.
Geração da metamorfose do tudo, das ciências e dos costumes,
posta como recheio do sanduíche da modernidade, entre o antigo dos
anos 1950 e o avanço da década seguinte e da outra, assistindo, agora, à
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materialização do progresso de que falava o meu pai, antecipando
futuros. Pena que não os veja mais! Desatualizando-se, pois! Saudades,
agora, de um porvir que na verdade não veio. Nostálgicas digressões de
um órfão, na segunda-feira, passado o domingo dos pais, de todos,
viventes e não-viventes. A caderneta da venda de seu João rendeu-se à
tecnologia dos grandes supermercados, nos quais o simples digitar de
senhas e de meros para a conta e o banco desconta. E o livro dos
estabelecimentos bancários, enormes, outrora, deram lugar às
máquinas da modernidade, contabilizando cruzeiros reais e a
irrealidade dos ganhos. O fax chegou e não mais como reverter o
progresso, como rebuscar nas gerações que chegam vocações para as
cartas de amor, epístolas dos sentimentos.
No computador, porém, não escrevo; não posso criar, confesso!
Nego-me a tanto! A padronização do écran inibe a criação, impede a
expressão dos sentimentos no abraço das letras e na inclinação da
escrita, segundo os afetos. Pode o amante digitar seus amores nesse
teclado das friezas emergentes? Ou pode a saudade tomar corpo no
branco desta tela, sem macular, assim, purezas virginais do alvo que
tem o papel? Não como ler, aos cochichos, a crônica impressa no
vídeo, detectando sonoridades e afastando barbaridades, choques
indesejados. Antes as rimas, nas tintas, sempre!
Obs.: Criava no papel e depois digitava, mas logo passei a fazer
tudo no computador de casa.
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O Texto e o Vírus
O texto nasce do imaginário depois que a inspiração aflora,
trazendo as idéias e dando forma aos ideais. E a inspiração pode chegar
a qualquer momento, em qualquer lugar deste mundo de Deus, no
trabalho ou em casa, na hora de dormir e de sonhar com os anjos ou no
minuto preciso do despertar pela manhã. As noites de insônia,
entretanto, o pródigas na parição das idéias, especialmente porque
nutrem as fantasias dos amores perdidos e das dores sofridas. E se o
tempo vai passando, indiferente, deixando insone o penitente, não
solução melhor que aquela, a de sentar diante da telinha do
computador e reunir as palavras, juntando as frases e criando os
períodos. Quando menos se espera, está pronto o texto por inteiro, com
a possibilidade de se mexer, aqui e ali, contanto que o desejado
aperfeiçoamento das sentenças e a troca de vocábulos por outros, mais
bem adaptados, se passe, sem os traumas do passado, de uma máquina
de escrever determinando finalizações e sem as chances de mudanças
ou de reparos. Sou do tempo, na verdade, da pena molhada no tinteiro,
algumas decoradas no cabo com motivos coloridos, resultantes da
combinação de fios de algodão ou de cordões de variadas cores.
Depois, chegou a caneta tinteiro, a de marca Compactor, a mais
popular entre os estudantes ou a Parker 21 e a Parker 51, outras mais de
boa procedência e preços salgados, à época. Quando comecei a
escrever, então, criava o manuscrito e passava à máquina depois, mas
inquietava muito apagar os erros, usando, sempre, a borracha bicolor,
azul e vermelha, um lado servindo para a tinta das canetas e outro para
a impressão da máquina de escrever, cuja vida útil encontra-se em
extinção irreparável. Peças de museu, doravante!
Mas, se o meu notebook, comprado em loja nipônica, nas ruas
de Tóquio, em domingo de muito movimento, com o meu cartão de
crédito tupiniquim, um Pentium75, me traz muita satisfação e alegria,
às vezes me perturba o espírito. Agora, mesmo, depois de preparado o
texto, descubro que um vírus no contexto: o wazzu. O diabo do
intrometido agente virtual contaminou o que escrevi, não apenas
mudando a posição das palavras, mas sobretudo inscrevendo o seu
estranho nome em todo o conteúdo das idéias: wazzu, wazzu,
wazzu...Fiquei desesperado, quase, ligando para toda a gente conhecida
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e tendo a mesma resposta, sempre, a da mais completa ignorância a
propósito do inusitado e virtual micróbio. Finalmente, usando, ainda, a
invenção de Grahan Bell, mais do que aperfeiçoada, agora, encontro
uma santa mandada dos céus da cibernética – Jacy Borba –, cujos dotes
voltados para os segredos da informática superam os meus e com um
programa simples destruiu o diabo do wazzu. Ora, sou de outras eras,
quase digo, de outros vírus, simplesmente, da catapora e da papeira, do
sabugo de milho sob a cama para apressar as manchas do sarampo e da
vacina anti-variólica marcando o braço de toda gente, às vezes, as
pernas das meninas. “Mostra a marca de tua vacina”, dizia-se,
fortuitamente, jogando verde para colher maduro. Muito raramente a
moça concordava com a solicitação, em tudo, real, de se vislumbrar a
seqüela daquele vírus atenuado. Hoje, apareceram os agentes da Aids e
o Ebola, outros mais estão surgindo a cada dia, com os nomes mais
estranhos do mundo, causando danos enormes às criaturas humanas,
sem jeito, ainda, de cura e de outros enfrentamentos.
Essa transmissão viral, de algum computador doente, já, para o
meu decantado notebook, francamente, o sei como se passou, em
outras palavras, ignoro o caminho epidemiológico da virose. Talvez
tenha sido a internet a fonte de contaminação, haja vista a minha
constante presença naquela rede internacional de informações,
navegando, de biblioteca em biblioteca, à cata de minhas atualizações,
em todos os campos dos meus desejos e dos meus pretendidos saberes,
carentes, sempre, de mais informes. Tenho visto, às vezes, em minhas
viagens virtualizadas, alusões a isso, à passagem viral de um a outro
equipamento no ambiente da rede, mas não havia pegado, ainda, a
enfermidade da cibernética moderna. A verdade é que depois de ter
feito a retirada de uma revista inteirinha, com 146 páginas, deu a louca
na máquina e o danado do wazzu quase não me deixa mais em paz.
Resultado, não pude, como desejava, ler o periódico e se o remédio de
Jacy Borba não tivesse efeito imediato, sinceramente, restava-me a
decepção do nada a consultar mais. Aí contaminou tudo, incluindo um
conto que estou escrevendo, sob o título As Confissões de Sophia,
transmudando palavras e tirando o sentido de muitas das digressões da
personagem dessa ficção emergente. No fim, no fim, com tanta
mudança, foi difícil recompor a estória, restaurar a descrição dos dotes
físicos da moça, seus pensamentos, palavras e obras, seus pecados
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assim, contados ao padre Libório, o cura do lugar imaginário, Santana
do Norte. Finalmente, Sophia renasceu das cinzas virais e vai se
completando a cada noite maldormida ou em cada uma das
madrugadas insones. Há de se tornar mulher de todas as ardências!
Sou amante do computador, reconheço, gosto das artimanhas
da máquina, dos segredos pouco a pouco descobertos e dos novos
comandos apreendidos com os meus convívios. Reclama a Dona
Patroa e reclamam as meninas, mais da linha telefônica ocupada com
as incursões à internet e menos com as ligações à virtualidade do
equipamento. E eu vou administrando tudo isso, como se fora bígamo,
agora, casado duas vezes, portanto, com a mulher, que é a companheira
de todas as horas, e a máquina, companheira, também, das horas todas.
A verdade, porém, é que depois do invento, francamente, tenho
produzido muito mais e com a facilidade toda do mundo, além de me
ligar com o resto da humanidade. A aos museus tenho chegado,
aportando com a nau das minhas curiosidades, para ver, de perto, as
obras-de-arte todas. Sem falar em nossos artistas, como o João Câmara,
meu colega nos tempos do colégio, dos jesuítas da antiga observância,
vestidos a caráter, de batina preta e quente.
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Cão sem Gravata
Acontecem umas coisas aqui por casa, francamente, que o
diabo duvida de costas. No entendimento de certos amigos meus,
inclusive, tenho particular atração pelo inusitado, pelo diferente, nas
chamadas ocorrências da vida. Dia desses, até, um sábado à noite, os
ponteiros do relógio se preparavam para o derradeiro abraço ou para o
primeiro dos amplexos de um domingo emergente, quando bateram à
porta. Fui receber temeroso, pois que a hora era aquela das entregas
aos braços de Morpheu, o deus mitológico do sono e dos oníricos
devaneios. Era um homem, então, com sinais mais do que evidentes de
comprometimento etílico e a indagação foi das mais complicadas de
meu tempo nesses convívios terrenos: “Meu senhor, por favor! Onde
eu moro?” Ora, prezado amigo, respondi a rogo, “como posso saber
disso, se o senhor, mesmo, ignora a rua e a casa!” O penitente das
exigências de Baco explicou-se assim: “É que fizeram a mudança hoje
e sei, apenas, das características do lugar. Nada mais!” E fez a
descrição precisa, levando-me à identificação, com sucesso, de seu
novo apartamento. Recomendei, todavia, a aquisição do guia que
escreveu o Mestre de Apipucos, para as suas futuras incursões farristas.
Foi pior, pois quase me leva ao debate da obra inteirinha do sociólogo
pernambucano, a quem conhecia pelos escritos.
Muito pior tem sido lidar com o o daqui de casa, Yuri de
prenome, sem pedigree e sem sobrenome, dado à pesquisa sistemática
nas latas de lixo e noutros depósitos parecidos. O bicho não pode sair à
rua, porque ladra para toda a gente que passa, causando pânico,
verdadeiramente, dentre os traseuntes, às vezes pacatos, mas noutras
ocasiões, enfurecidos e com razão. Tem por costume desaparecer e
vagar pela Boa Vista ou pelos bairros adjacentes, especialmente
quando encontra parceira canina disposta aos amores nas praças do
lugar. Nas primeiras experiências do animal, tomado agora por
vagabundo, ouvia-se por o pranto desesperado das meninas, mas
depois todos se acostumaram com as fugas não aprazadas. Num sábado
à noite, também, bateu à porta um dos vigias da redondeza e expressou
as suas questões em relação ao cachorro. É que estando em seu local de
trabalho, mesmo que às voltas com repetidas doses do produto
derivado da cana-de-açúcar, contando com os serviços auxiliares de
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uma cadela, viu-se invadido pelo danado do canídio. Assim, seqüestrou
o animal e para a sua liberação arbitrara resgate de R$1,00. Mostrei
que estava inflacionando o mercado e contribuindo para a falência da
estabilização da moeda, mas não houve jeito: “O resgate ou a vida!
Paguei, então, porque tempo é ouro e discutir com seqüestrador nem
por telefone!
De outra feita, estava bem sentado numa solenidade na
Sociedade de Medicina, posto à mesa da presidência, por generosidade
do professor Miguel Doherty, inglês de nascimento, mas
pernambucanizado já, quando surge o endiabrado do cão, à porta,
fazendo força com o focinho para abrir e por certo que entrar. Não sei
se, na verdade, tomaria assento comigo, no lugar da pompa, ou se pelo
auditório faria opção. Fiz como muita gente faz com o semelhante,
quando tomada pelo poder ou por outros ganhos e benesses da
existência: virei a cara, fazendo que não via a inusitada figura. O
cachorro, notando o desprezo emergente, retirou-se e foi me aguardar
na rua, pastorando o povo que do teatro vinha saindo. Soubesse desse
desejo do animal, tinha dado um numa gravata velha e muito usada
e com esse adereço pedido ao Doherty a entronização do canídeo. Ao
tomar o carro para voltar, o flanelinha, integrante dessa nova maneira
de ser e de ganhar a vida, indagou: “O cachorro é do senhor? Sim,
respondi. É que desde sua chegada que o espera, depois de ter entrado,
mais de uma vez, na Sociedade. Ainda quis tomar o automóvel comigo
e fazer o caminho de volta, mas companhias assim, dispenso! Bicho
danado esse! Chegou a derrubar uma porta, na casa de veraneio,
contanto que se juntasse à cadela, uma poodle das estimas da patroa.
Ah porta vagabunda!
E o cão sem gravata vive assim, enlouquecido e enlouquecendo
toda a gente.
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O Mata-Borrão
Nesses meus sábados ou nesses meus domingos,
imperceptíveis, quase, tal a atribulação do meu cotidiano, faço questão
de aproveitar a emergência da inspiração e vou transbordando o
coração assim, escrevendo. tempo para tudo, está escrito, também,
para que a alma seja tomada pelas saudades ou pelas lembranças
nostálgicas e tempo para que o espírito se encha de satisfação e
plenitude. Como momentos de quedas do humor e outros, de
elevação desses sentimentos! Agora, com um computador novo, ganho
de presente, da consorte – Com sorte, sempre! Graças a Deus! –, tenho
condições diferenciadas para o meu processo, mais do que simples, de
criar o texto, pois que ouvindo Josefina Aguiar e Henrique Annes,
antecipando os grandes da música universal, Mozart e Tchaikovsky ou
Beethoven e Chopin, vou sendo invadido por essa sensação de paz
interior, com a sonoridade dos meus conterrâneos ou com os acordes
do inteiramente clássico.
Ora, quem como eu fez uso da velha pena, que molhada no
tinteiro a intervalos regulares permitia transferir para o papel o
pensamento, é muito diferente sentar diante do monitor e observar as
letras se juntando em abraços fraternais, formando palavras, as quais se
reúnem nas frases e vão dando gosto ao período. Dantes, quando era
menino e usava calças curtas, saía de casa para a escola com a minha
caneta Compactor e o meu frasco de tinta, da marca Parker e de
qualidade Azul Real Lavável! Mas, fiquei maior e na idade de rapaz
cheguei, como todos os meus companheiros e não esqueceram os meus
pais da lembrança que fazia crescer, também, no reconhecimento dos
colegas, por isso me deram uma Parker 51, de cor azul, com a tampa
dourada. Usei por anos a fio e tinha a satisfação de dizer a toda a gente
que nunca escarrapichou. quem saiba mais que verbo é esse? Nem
o computador aceita de bom grado a grafia.
E se tudo está mudado, mesmo, na pós-modernidade do tempo,
a máquina de escrever desapareceu do habitual das coisas e as
delegacias de polícia resistem à antigüidade do velho equipamento. Era
um sacrifício datilografar, diretamente, as minhas crônicas, nem
sempre agradáveis ao leitor, para quem transmito as minhas dores e os
meus ardores, os meus amores, igualmente, muitas vezes de maneira
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tão enrustida, que os de casa ou aqueles de meus convívios
compreendem! Sempre usei os dedos todos das duas mãos em meus
trabalhos, pois que na década de 1960, nos inícios desses doces anos,
quase tirei o diploma de datilógrafo, para me garantir, dizia meu pai, e
trabalhar no comércio, se preciso fosse! Se errasse, todavia, era um
problema e a borracha de duas cores azul e vermelha entrava em
cena, apagando o vocábulo e permitindo a nova escrita, mas ficava
tudo borrado, sujo, verdadeiramente.
Um belo dia contei isso por aqui –, a minha mãe
comunicou a todos, na hora do jantar, que tinha visto uma caneta nova,
diferente, sobretudo, e trocando o nome, chamou de “Caneta
Estereográfica”, cuja característica mais importante, explicou, em alto
e bom som, era a de não exigir o tinteiro e a de não esvaziar nunca,
senão de uma vez só. Uma beleza! E de pronto, todo mundo no Recife
adotou a invenção, com o efeito colateral de ter o bolso, quase sempre,
completamente molhado pela tinta da novidade emergente. Eram rodas
azuis na camisa de muitos pelas ruas, apontando o defeito dos
começos, o vazamento comum desses apetrechos que chegavam. As
marcas populares ganharam fama e ainda hoje a Bic anda por aí,
mostrando a cor azul-escuro da tampa e o transparente do corpo.
Rabisca o bom e o ruim, risca os discursos da elite e faz o jogo do
bicho, aposta no carneiro e termina dando touro, converte gente e
promove a descrença. É paradoxal, então!
E o mata-borrão? Há quem se lembre disso? Só os mais velhos.
É que depois da frase escrita, havia a necessidade de secar a tinta, de
enxugar os excessos e para tanto funcionava o então conhecido papel
de natureza porosa, com o poder de sugar os excedentes da mancha
gráfica daqueles antanhos. Eram promocionais, inclusive, porque
veiculavam propagandas, de remédios, por exemplo. Estas, distribuídas
aos médicos, como ao meu tio Hênio, de Campina Grande, faziam a
mídia da época. E ele trazia em boa quantidade para nós outros, para o
meu pai e para mim, para os meus irmãos e para a minha tia velha, que
fazia de suas cartas a forma de resgate dos pretéritos perdidos em terras
potiguares. Em casa havia uma peça de madeira bem cuidada, na qual
se colocava o mata-borrão, propriamente, fixando-se fortemente e
assim era possível usar de maneira mais ampla, no texto por inteiro,
quase!
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Tudo isso passou! O tempo mudou ou mudaram os homens? E
agora, a máquina substitui a criatura, despreza a pena e aposenta a
caneta, vai dispensando o papel e diminuindo as distâncias, dando ao
penitente do hoje condições de acessar o mundo inteirinho, da baixaria
à nobreza, da pornografia descuidada aos textos da ciência. E viva a
pátria, o computador e os avanços! Mas, viva, sobretudo, o mata-
borrão!
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A Porta do Avião
Eu jamais poderia contar àquela moça, comissária de bordo do
pequeno avião em que estava, as minhas experiências pregressas em
aeronaves assim, com tão reduzida capacidade. Ela não compreenderia
os meus traumas e as minhas tensões, diante de suas recomendações:
“Senhor, por favor! Assuma a responsabilidade desta porta de
emergência! Em caso de necessidade, puxe a alavanca, movimente
para fora e abra!” Quase tomei um susto, confesso, arrependido de ter
sentado junto à saída mais do que diferenciada daquele pássaro de aço.
Mesmo assim indaguei, em tom de blague: “É preciso abrir esta porta a
cada o?” E ela: “Não senhor, pelo amor de Deus! Somente em caso
de necessidade!” Dessa maneira, então, assumi o encargo, daqui, do
Recife, até a paradisíaca ilha de Fernando de Noronha. Não tinha outra
alternativa. Enfim, precisava assistir à solenidade e voltar mais tarde,
como fiz, neste exercício, às vezes complicado, do meu cargo do hoje e
dos meus encargos do agora.
Ora, que certa vez, sendo eu menino bem novo, com 5 ou 6
anos de idade, 7, se muito, acompanhei pai e mãe numa viagem ao
interior de Pernambuco, a Pesqueira, imagino, ou a Nazaré da Mata,
não sei mais. A verdade é que meu pai atendia a um convite do bispo
local e foi disposto a fazer uma conferência, como aliás fez, para o
clero e para os fiéis da cidade. Não compreendo a razão de sua opção
pelo meio de transporte, sendo como era, realmente, uma pessoa que
não suportava avião e chegava mesmo a ter medo das viagens aéreas.
Na ida, as coisas correram às mil maravilhas no teco-teco emprestado,
de quatro lugares, somente, o piloto e o meu pai à frente, eu e a minha
mãe atrás. No auditório, enquanto falava o mestre Nilo Pereira, eu
descobri, sob o palco, os instrumentos da banda e não dispensei a
sonoridade do bombo, causando o maior dos impasses para se ouvir a
palestra.
Na volta, todavia, sentia-me incomodado com o cinto de
segurança a me apertar, fortemente. E como era levado da breca, tomei
a decisão de me soltar sem dizer a ninguém. Mexi pra lá e mexi pra cá,
até que dei com o trinco da porta, de cujo movimento esperava a
almejada liberdade. Foi pior, abriu-se a porta nos céus e a aeronave
quase volta à terra, fazendo cumprir a lei da gravidade. O piloto,
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entretanto, foi um herói e conseguiu fechar a abertura de saída,
virando-se para trás. Não precisa dizer que levei um carão a duas vozes
e que somente o comandante ficou calado como um coco, perplexo
com a ocorrência, única, penso eu, em tantas horas de vôo. Fiquei
inteiramente molhado, porque chovia muito e o aguaceiro dos ares
entrou no teco-teco, lavando o avião e dando banho nos ocupantes.
Quando, afinal, chegamos ao antigo aeroporto do Encanta-
Moça, a minha mãe rasgou a meia na descida, na asa da aeronave.
Reclamou, de pronto, contabilizando a perda do adereço feminino,
queixando-se do fio arrancado, que inutilizava, pois, a peça, de cujo
preço igualmente se queixava. O meu pai retrucou, de logo: “Depois do
que se passou, você vem reclamar da meia?” E eu, ator e autor da
façanha, terminei perturbado com tudo, com a proximidade do
acidente e a da morte nem sabia direito o que era a morte! e a
meia. Acho que a inquietação de minha mãe me deixou mais
preocupado que a porta do avião. Assim, no interior do Brasília em que
viajei e onde recebi da comissária a missão de atender à emergência,
lembrei-me de tudo isso e contei ao companheiro de poltrona, rindo do
meu encargo naquela hora.
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O Gordo e o Magro
Tem gente no mundo mais do que interessante, pois que o
descuida dos outros, mas não cuida de si mesma! Quando o
semelhante, penitente deste mundo de Deus, engorda um pouco - o
meu caso agora -, é impossível livrar-se dos comentários nascidos de
todos os lados. Vai pra e vem pra cá, ouve, sempre, uma observação
nunca cautelosa! A mais simples de todas: “Você engordou!”. Alguns,
entretanto, deixam de passar as mãos nas costas do amigo e adotam o
alisar da protuberância abdominal - da emergente barriga -, como se o
lugar dos afagos e dos carinhos tivesse mudado. Poucos o aqueles
que fazem como o gazeteiro - Mané do jornal -, há muito desaparecido
dessas paragens pombalinas e que voltando a gritar os jornais pelo
nome, disse: “Quase não lhe conheço, de o gordo e bonito!”. Ai,
também, já é exagero!
A verdade é que às custas dos acepipes e de outras guloseimas,
degustados nas recepções e nas festas que ando freqüentando, por conta
dos meus deveres do aqui e do agora, os do ofício, o mostrador da
balança mudou de número. E, inevitavelmente, mudaram os
comentários! Ora, sou de outros tempos, pois que nascido e criado nos
meados do século, cresci ouvindo a máxima: “Saúde e Gordura!”.
Menino novo, naqueles anos, tinha dobras e mais dobras e até
participava de concurso nas emissoras de rádio, vencendo o mais
rechonchudo. As mulheres, também, eram massudas! Na minha rua,
nos idos de sessenta, andavam tres irmãs de dotes assim, protundentes
e a meninada, de logo, criou o apelido apropriado à época e à mesa:
“As Albacoras!”. Não que se desdenhasse das moças, mas pela
indiferença à rapaziada do lugar! Vingança, pois!
As madonas de avantajadas formas tinham admiradores certos e
uma delas até, posta diante do prédio dos correios, esperando o marido,
que fora ali postar uma carta, quase protagoniza uma briga. É que
estando o cônjuge do outro lado da rua e encontrando amigo muito
distante, ouviu do velho companheiro a observação definitiva: “Olha
pra ali! Vê que mulher!”. É minha esposa, respondeu, sem graça mais,
o interlocutor de ocasião! E quase vão às turras! Hoje em dia, pode-se
deixar, à vontade, na av. Guararapes ou noutro lugar qualquer, uma
gordinha, que seja, sem risco algum de gracejos ou de sedutoras formas
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de verbais elogios. Ninguém presta mais atenção aos culotes, o
decantados nos meus outroras ou ninguém liga mais para as pernas
volumosas, de cujas batatas nasceram tantas das fantasias pueris,
naqueles pretéritos!
Contabilizo, na memória dessas sensualidades perdidas,
diversas figuras femininas que marcaram época, com essas obesas
características! Gente do porte de uma Marinete, que mesmo tendo um
busto contido, dentro das proporções das adequações nacionais,
avolumava-se daí pra baixo! Aquela mulher não tinha cadeiras, mas
poltronas - Isso sim! - e guardava, nos longos e protetores vestidos,
pernas tão grossas, que despertavam as tentações todas do mundo. Por
essa razão, não podia ir pra casa sozinha, tal o cuidado do amante, que
na garupa da lambreta transportava a Vênus do tempo, desfilando
desejos nas ruas do Pombal. Ainda hoje, nas brumas perdidas, pairam
os devaneios e os sonhos, enquanto ela, a musa encantada, cumpre o
bailado sagrado da feminilidade. Vez ou outra, nas nuvens dos céus,
senta-se no divã de algodão dos deuses e acomoda no colo todos os
anjos. Ouve-se, então, o som das trombetas, em louvor à deusa dessas
tupiniquins origens. Um ode à beleza das celulites!
Vive-se, entretanto, neste presente da globalização, um tempo
diferente, o reinado dos magricelas. Se uma modelo qualquer,
esquálida, que seja, desfila na telinha de casa, mostrando os ossos e as
saliências, é incluída, de pronto, dentre as belas. Louva-se a caquexia e
sobretudo a anorexia, desprezando-se, então, grandeza do paladar!
Tem gente por ai que não conhece o sabor de uma “Mão de Vaca” ou
de uma “Dobradinha com Feijão Branco”, que ignora o “Sarapatel” e a
“Galinha de Cabidela”, que dá de ombros se chega à mesa um “Cozido
a Brasileira”! Ninguém se arrisca ao caldinho da feijoada, pior o de
porco, o paio e a charque. Em toda farmácia que se preza, de outra
parte, há, sempre, uma balança digital, com os números em vermelho
bem vivo, determinando sentenças. Se o resultado supera as
expectativas, instala-se a depressão e se restringe o prato. Quando
dinheiro sobrando, o socorro está nas clínicas sofisticadas de
emagrecimento. É a escravidão das verduras!
Mas, os verdureiros de outrora, que usavam balaios ou
empurravam carroças, repletos de cenouras, de xuxu e de alface ou
cheios de jerimum, de vagem e de tomate, que na verdade é fruta, se
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reaparecessem agora, fariam a festa, a feira e a féria, tal a procura nos
dias que correm, céleres, como se fossem contados em minutos,
apenas! E o homem do miudo, com o tabuleiro carregado por seu
auxiliar, negociando o fígado e a passarinha e entregando o miolo de
boi, que garantia a inteligência e o talento de meu pai, na crença da
época? Morreria de fome! Bom seria para o vendedor de laranjas, com
dois sacos enormes, carregados da cítrica fruta.
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O Gordo e o Código
O novo Código de Trânsito, contando com algumas medidas
que chegam em boa hora, especialmente aquelas voltadas para a
diminuição dos acidentes, cujo rescaldo não está, apenas, nas mortes
que provocam, mas, sobretudo, nas deficiências que produzem, tem um
lado engraçado, quase diria, como muita das coisas deste Brasil
enorme, de diferenças regionais marcantes. Tenho presenciado atos e
fatos dignos de registro, na interpretação, às vezes, hilariante do povo,
cuja desinformação preside os dias. Ninguém a bula de nada, nem
dos remédios que toma e nem dos equipamentos domésticos, pior o
documento legal, cuja extensão inibe a gente não, inteiramente,
habituada a esse exercício intelectual. Ora, compramos uma televisão
nova ou um aparelho de vídeo e vamos, de pronto, instalando em casa,
sem o conhecimento devido, até, dos recursos de que vem dotado o
apetrecho doméstico. gente que não acredita nas mudanças e gente
que vai deixando o aprendizado para o dia-a-dia, sem prestar muita
atenção, também, às explicações do governo ou das autoridades
interessadas. Até os fiscais do trânsito e do tráfego de nada sabem!
Assim, leva-se a vida, sem maiores detalhes, trabalhando-se com o
geral!
Dia desses, vinha na estrada de Pau Amarelo e nas
proximidades da Polícia Rodoviária, um homem gordo, muito gordo,
que ia na carroceria de uma camioneta, deitou-se, literalmente e
desapareceu, simplesmente, da visibilidade de todos. Ora, deitado
assim, em lugar tão desconfortável, esperei -lo, de logo, passado o
posto de fiscalização, mas para surpresa minha não reapareceu mais.
Por certo, com aquela gordura toda, pesando mais de 100 quilos,
imagino, não teve como se levantar e precisou esperar que
estacionassem o veículo para retomar à posição original, com a ajuda
alheia. Fiz questão de seguir o utilitário, além do meu destino,
inclusive, para saber do resultado e não adiantou nada, porque o
homem continuava mergulhado em seu inusitado esconderijo. No
domingo, um caminhão, também, transportava muita gente na
carroceria grande; gente sentada em volta do gradil de madeira, bem
acomodada, silente e quieta. Nas proximidades do posto de polícia, a
um sinal do motorista, todos fizeram igual exercício, o de deitar-se,
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sumindo dos olhos da lei. Vencido o obstáculo, todavia, ressurgiram no
horizonte das coisas e mais adiante desceram para chamado banho
salgado e na condição de forasteiros ou de farofeiros, apenas, curtiram
a praia.
E o ciclista, meu conhecido? Vai matricular o pequeno veículo,
me disse, colocar uma placa sob a sela e dirigir com o maior dos
cuidados, pois de numerário não dispõe para o pagamento das multas
previstas no Código! o de percorrer mais as grandes avenidas da
cidade, de tráfego intenso e com a mais rigorosa fiscalização! Quando
era menino havia essa exigência para as bicicletas e em diversas
ocasiões levei carreira dos antigos inspetores de veículos, como se
chamava, por falta da plaquinha. Na frente da fábrica de tecidos TSAP,
na Visconde de Suassuna, havia um desses guardas da época, mais do
que implicante, bastava me ver para usar do apito e mandar parar.
Nunca parei e por conta dessas investidas oficiais e de minhas fugas
nunca formais, chegava em casa com as pernas doendo de tanto
esforço, sendo obrigado ao repouso fora de hora. Ao tempo, ainda me
lembro, deviam estar, devidamente, matriculadas as carroças de tração
animal e aquelas de tração manual. Essas, puxadas por um homem
qualquer, do povo, mereciam da molecada os apupos todos em voga.
“Burro sem Rabo!”, gritava-se, para irritar o condutor e se aceitava,
então, as respostas envolvendo a mãe do penitente: É a mãe!” Dona
Lila nunca soube dessas manifestações contra ela!
Multar o pedestre é que vai ser difícil! Como chamar o incauto
andarilho das ruas? Apitando ou gritando? Correndo atrás e deixando o
movimento ao léu? E o pagamento do tributo devido? Os infratores -
Coitados! - serão, com toda certeza, os pobres, não os de Paris, mas
aqueles desta cidade de Maurício! E a meninada ou a rapaziada das
esquinas da Agamenon Magalhães, cujo interesse repousa no trocado
do motorista? de se ter, doravante, polícia pra duas coisas, para o
condutor do veículo e para espantar o assédio, a masculina e a
feminina, de gestos mais fortes a primeira e de postura mais delicada, a
segunda! Uma questão, somente, de reconhecidas diferenças entre os
sexos!
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Contrastes do Cotidiano
Acomodado na sala de espera de um laboratório qualquer,
esperando a vez, como tantos outros, nunca pensei testemunhar
diálogos que me permitissem ensaiar reflexões quase sociológicas, a
propósito do difícil exercício da vida, quando a idade vai marcando o
tempo com a prata dos anos. A senhora, na casa dos oitenta, era cliente
aprazada, imagino, fazendo-se acompanhar da filha e de mais um filho,
além de uma neta muito jovem, ainda. Conversavam a respeito dos
incômodos provocados por ela, pela mulher de idade avançada, de
corpo vergando à força das décadas e de bengala à mão. Desfiavam um
rosário de queixas, desde o sono precoce no cair da tarde à insônia das
madrugadas, sem falar nas impos-sibilidades fisiológicas de retenção
das excreções orgânicas. Falavam como se estivessem imunes à
senectude.
A moça era a mais loquaz. Morava com a avó e por isso vinha
presenciando cenas com as quais não concordava; não concordava em
-la sedentária, na sala do apartamento, entregue à artrose, enquanto o
avô, todos os dias, descia e fiava boa conversa com o porteiro do
prédio. Que fosse, também, àquele passeio matinal, entre o andar de
cima e o térreo e ouvisse do empregado as suas histórias, mazelas de
uma outra vida. E não podia se conformar, também, com o cochilo
vespertino, transformado em sono profundo até, com roncos e outros
ruídos, à boquinha da noite. Por isso, às quatro já estava de pé, andando
pra e pra cá, insone. É que ao despertar daqueles inícios oníricos na
varanda de casa, não cuidava em sair correndo para a cama, como
desejava a nunca cuidadosa neta, mas tomava banho e lanchava.
Assim, perdia o sono e os sonhos!
A filha, mais cautelosa, pouco dizia, mesmo que não reagisse.
O filho, entretanto, malhava a mãe com todas as culpas. Não se
cuidava! Deveria tomar três remédios distintos para a hipertensão de
que era portadora, mas esquecia. Tomava dois ou tomava um. Nada
tomava, por vezes. Um absurdo, insistia! Pior quando a neta abriu a
boca para falar da incontinência urinária da pobre mulher, a manchar o
sofá da sala e a deixar um rastro, como se bicho fosse, antes de chegar
ao banheiro. Tinha que sair atrás, com o pano de chão, a enxugar tudo
e era preciso providenciar para se levar ao sol a peça em que
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costumava sentar-se, impregnada, como estava, pelo líquido das
excreções humanas. Procedia assim porque queria, afirmava com todas
as letras e com todas as sílabas, pois nada a impedia de se levantar
antes das urgências orgânicas. Fosse mais cuidadosa, portanto!
A a, que cumpriu, como se imagina, uma trajetória longa,
palmilhada de sacrifícios e preenchida por doações que as es
podem oferecer, nada respondia e nada comentava, ouvia tudo com
uma fisionomia de profunda tristeza. Em que estaria pensando? Que
reflexão fazia ali, naquele momento de tantas reclamações e de tantas
queixas? Quase me aproximo e intercedo em favor da mulher idosa.
Ou quase chego perto e verbalizo o futuro que está reservado à toda a
gente, de uma forma ou de outra. Por que se ocupavam de comentários
assim, tão vazios de conteúdo existencial? Que benefícios poderia Ter,
fiando conversa com o porteiro? O homem do prédio teria o que lhe
acrescentar à vida vivida? E o sono? Não sabem que é da idade,
mesmo, essa sonolência precoce e a insônia do despertar antecipado? E
não conhecem a fragilidade dos esfíncteres humanos na velhice?
Lembrei-me de uma outra cena que vi, há poucos dias, num
hospital público do Recife, tão diferente daquela interlocução de
ocasião. No leito da emergência uma senhora de cabelos brancos
também, ao lado do marido, de idade próxima, como parecia,
agradando-lhe os braços e confortando-lhe o espírito. Gente simples,
penso eu, sem muito estudo e sem muita cultura, mas dotada de
afetividade, de amor ao próximo, sobretudo assim, no sofrimento e na
dor. Viveram juntos Quem sabe? anos a fio na contabilidade do
tempo e talvez se despedissem, mas a palavra que os uniu e os afagos
que os aproximaram confortavam a derradeira hora. Sei de quem
adoeceu gravemente em noite alta e antes de ser levada à emergência
virou-se para o marido e beijou-lhe a fronte. Foi o derradeiro ósculo!
Despediu-se, afinal!
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Fiando Conversa
Atendo, com gosto, ao que me pede colega da Sociedade de
Medicina de Pernambuco, para contar neste espaço histórias pitorescas,
vividas ou sabidas por mim numa trajetória de vida de seis décadas,
quase. Confesso que guardo na memória uma experiência larga desse
exercício dos convívios; experiência de fatos do cotidiano, alguns da
realidade humana, do sofrimento da criatura, outros de características
inusitadas, às vezes divertidos. Talvez tenha me tornado um contador
de histórias, como dizem certos amigos. Pois, vamos ao que guardei:
A moça chegara naquele dia e sendo funcionária terceirizada,
como tantas outras deste Brasil do hoje, ignorava as rotinas do lugar.
Solicitei, então, duas ligações telefônicas, uma para o Hospital das
Clínicas (HC) e outra para o Banco do Brasil, queria falar com o
diretor e o gerente, respectivamente. Eis que de pronto retorna e diz
não ter encontrado, propriamente, o diretor do HC, mas estava ao
telefone o substituto imediato. Atendi e a voz era de um jovem. Julguei
tratar-se de um residente de plantão e fui ao assunto. Uma senhora
estava em processo de abortamento e se dirigia ao HC, fizesse então o
rapaz as honras da casa, recebendo a criatura e a encaminhando à
obstetrícia. O meu interlocutor não gostou da recomendação e
justificou o quanto seria melhor se eu mesmo fosse por e resolvesse
o impasse. o posso, expliquei, faça o que lhe peço para evitar mais
aflição à paciente. E ele: “Olhe, Dr. Geraldo! Vou fazer porque o
senhor está me pedindo, mas continuo achando que melhor seria pedir
diretamente. Meu amigo, por que tudo isso? Porque eu sou o
subgerente do Banco do Brasil. Seguiram-se mil desculpas e mil
perdões. Depois, escrevi um artigo sobre o caso no JC e o gerente
distribuiu centenas de cópias.
O moço, precocemente aposentado por insanidade mental,
continuava a freqüentar o trabalho quase todos os dias. Sentava em
aconchegante sala de espera e ali ficava um expediente inteiro, pelo
menos. As secretárias, porém, entraram em pânico certa vez, pois que o
flagraram em visita à toalete feminina, agachado, em posição de
observador imediatista. Fui escolhido para resolver o impasse,
ignorando as razões, senão o fato de ser o único médico daquele
gabinete. Expliquei que não entendia de tarados e muito menos das
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chamadas perversões sexuais, das quais cuidaram Freud e seus
discípulos. Mas, cedi e concordei em conversar com a criatura.
Convidado à minha sala ouviu, atentamente, a explicação inicial:
“Olhe! um tarado rondando o banheiro das meninas! Estão
pensando que é o senhor!” Respondeu, como esperava, negando o
desvio de conduta e se colocando à disposição, inclusive, para me
ajudar na identificação do intruso e na reprimenda. “Veja bem! Confio,
inteiramente, em sua palavra, mas um risco: vão chamar a polícia.
Por via das dúvidas e para se garantir, melhor será desaparecer agora
mesmo e nunca mais voltar.” O pobre do penitente achou a idéia ótima
e levantou-se da cadeira disposto a cumprir o pedido. Nunca mais
voltou e em paz ficaram as dedicadas secretárias, recepcionistas, tantas
vezes, em lugar de inusitado movimento.
Entrou por uma perna de pinto, saiu por uma de pato. Senhor
rei mandou dizer que contasse quatro.
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O Big Brother e outros Horrores
A modernidade ou a pós-modernidade, como se costuma dizer,
trouxe extraordinários benefícios ao homem, com os avanços todos da
ciência e o progresso da técnica. Realmente, não se pode comparar a
vida de agora com aquela dos anos cinqüenta ou mesmo a da década
seguinte. Na verdade, tem sido um desenvolvimento de tal forma
vertiginoso que se acrescentam ganhos, quase se pode dizer, a cada
mês, ultimamente. A globalização da economia e a mundialização da
informação estão na base de tudo isso, na gênese das mudanças e das
transformações. O humanismo, entretanto, vem sendo sepultado na
tumba das distâncias, na cripta dos esquecimentos! O risco da
internacionalização da cultura ameaça a estabilidade das manifestações
dos povos e talvez aqueça o caldeirão do descaso da criatura por seu
semelhante. Quem sabe?
Os contrapontos reúnem algumas das mazelas dos tempos do
hoje. O desemprego, a pobreza, a falta de acesso à educação e à saúde,
a violência urbana, o vício e as drogas são alguns dos exemplos mais à
vista. Ninguém se preocupa com o próximo, sequer com aqueles das
relações parentais, os programas sociais contemplam os excluídos de
maneira fugaz, sem a continuidade esperada para a inclusão e a renda
se mantém concentrada no segmento dos incluídos da classificação de
Gilberto Dupas. A internet, que faz o mundo se comunicar com uma
rapidez inusitada, restringe-se às elites e com isso separa, ainda mais,
os desprovidos das camadas mais bem aquinhoadas, da classe média e
da burguesia. A televisão fomenta o consumismo em novelas bem
cuidadas e estimula o ter mais que o ser, contribuindo, também, para
estimular os desejos e os interesses, encorajando a violência.
O nível da programação da TV chegou às raias do insuportável,
os apresentadores ignoram as regras de comportamento diante do
público e ferem a língua de uma maneira absurda. Têm apelidos que os
compara aos animais nunca agradáveis ao convívio humano Ratinho
e Leão -, mostram na telinha figuras deformadas, obesas ou esquálidas,
caracterizadas de maneira horripilante. Um desses o Ratinho -,
reagindo às críticas da imprensa, chegou a dizer que são condenados os
que produzem para os pobres. Não pode haver uma cultura dos ricos e
outra do proletariado. Isso de pensar que a gente simples não gosta do
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que é bom discrimina, demonstra profunda ignorância. Prova do
agrado são as apresentações da Orquestra Sinfônica do Recife. Certa
vez, com o teatro de portas abertas na UFPE, disse-me Raimundo da
Silva, motorista que ainda me serve por lá, havia uma fila tão grande,
com pessoas calçadas até com sandálias japonesas, que muitos
voltaram.
Acharam pouco tudo isso e inventaram um novo Big Brother,
com todas as pompas e baboseiras possíveis ou imagináveis, com a
totalidade das baixarias de que se tem notícia neste mundo. Revogaram
os recatos femininos e os pudores dos homens. Vale tudo no cotidiano
dos segregados, nos jardins e na sala, na cozinha e nos quartos. Nem as
antigas mulheres, que faziam do bairro do Recife o lugar da sofrida
sobrevivência, eram tão sem-vergonhas, antes o contrário, pois que
zelavam pela privacidade das intimidades. Participantes, de certa
forma, divididos por castas, conforme as classes e de certa forma a
etnia. Uma modelo portenha e uma babá paciente, um atleta das lutas
livres e um tratador de cemitérios, agressores contumazes dos costumes
e dos hábitos, quase analfabetos nas frases e nos períodos, incapazes de
tecerem comentários aproveitáveis. Lamentável!
É mais recente o reaparecimento em cena do costureiro e
comunicador, como se nomeia, Clodovil, de prenome. Esse ai – Valha-
me Deus! -, passa o programa inteiro se elogiando e oferecendo ao
expectador desavisado0 lições de psicologia. Cose e cozinha, como
cabia outrora às moças casadoiras, entrevista convidados e dialoga com
uma personagem que faz a empregada da casa, ora ralhando e ora
pregando as benesses de seus exemplos. duas grandes exceções à
regra ainda, a TV Cultura e a nossa, a Universitária, agora sob a batuta
de Paulo Jardel, carioca pernambucanizado, que precisam ser
preservadas e mantidas, que ameaçadas pelos fantasmas dos
orçamentos minguados.
O papel da televisão no dia-a-dia da sociedade é outro e não
parece ignorado!
A Mangueira e a Cerejeira
Em tarde assim, de suave tropicalidade, com os ventos alísios
assoprando o frescor dos ares, mesmo que a ansiedade fustigue a
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intimidade d’alma, antecipando momentos de tensão emergente, nada
pode ser melhor que saborear uma manga Rosary, presente de Oswaldo
Martins de Souza, leitor habitual desses meus escritos. Ainda mais, se a
morosidade das horas permite a leitura atenta das contribuições do
agrônomo ao estudo dessas frutas da Ilha de Itamaracá. Considerações
de caráter cnico e ao mesmo tempo sociológico ou antropológico,
pelo que traz dos convívios pretéritos, das superstições e das crenças.
Prendo-me, particularmente, à lenda da manga Primavera, uma das
mais saborosas daquele recanto, nascida dos amores frustrados de um
padre por uma moça.
Corriam os anos do século XVII e o jovem Saldanha
apaixonara-se, perdidamente, pela moiçola casadoira de nome Sancha,
cortejando-a o mais que podia ou o mais que lhe permitiam as regras
do tempo. Decidido, foi à presença do pai e decantou os sentimentos,
recebendo, todavia, a maior de todas as negativas de que se tem notícia
pras bandas de Itamaracá. Voltou cabisbaixo e por certo chorou
baixinho as lágrimas de todas as perdas, o pranto da decepção
estabelecida. Mas, não desistiu, antes buscou o caminho das glórias,
para impressionar o resistente sogro. Lutou contra os holandeses e
venceu batalhas, matou gente e quase morreu, levantou-se ninguém
sabe como, depois de ter sido considerado destinado à outra
dimensão da vida. Bateu à porta do seminário e se fez sacerdote.
Um dia, sem esquecer nunca do semblante de Sancha, mandado
trabalhar em terras da Ilha, tomou-se da coragem que anima os
amantes condenados à sina das rupturas e procurou a velha amiga, que
solteira ainda vivia em companhia de um irmão e sua prole. Bateu à
porta vestido a caráter, de batina e barrete! Foi ela quem se achegou e o
recebeu, ouvindo-lhe pronunciar o nome que agora tinha: Pe. Aires
Ivo. Não resistiu à identificação do antigo amor, da face que mostrava
ainda traços da juventude e da voz, cuja tonalidade apontava a idade,
mas conservava o timbre dos outroras vividos. Caiu por terra,
fulminada, inerte, diante da inesperada visita, da surpresa e da
condição que adotara, a de celibatário. Morreu, porque se morre
mesmo, quando a decepção faz consolidar o desgosto!
Foi sepultada em cova rasa, rodeada de jasmins e numa das
vezes em que o cura por voltou, para retomar imaginárias
aproximações, com as quais convivera a existência inteira, plantou
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uma semente de manga no canto desses seus proibidos encantos. A
mangueira desabrochou viçosa, cresceu em busca dos céus e deu o
mais doce de todos os frutos de que se sabe em terras assim,
quinhentona já: a manga Primavera. Plantada em solo diferente daquele
das origens, fora da Ilha e longe daquela fada, que é madrinha também,
não repete o sabor de mel, o adocicado do gosto, pra que não se fale de
Aires, o padre ou de Sancha, a musa! Nem a ciência e nem a técnica
conseguiram explicar a lenda ou mudar de hábitos a árvore dos amores
rompidos.
E nessa mesma tarde, de suave tropicalidade, encontro no
computador uma correspondência de lugar distante, bem distante.
Chega de quio, assinada por amiga minha, Harumi de prenome,
dando conta que a sakura, a cerejeira dos japoneses, floresceu e encheu
as ruas da cidade com a beleza das pétalas. gente sentada na relva
admirando as flores, jovens e velhos, casais enamorados e errantes
solitários. Se que existem homens como o cura de Itamaracá ou
mulheres como Sancha embevecidos com o efêmero fenômeno,
rebuscando passados e fantasiando amores? Talvez sim! Talvez não!
Mas, por todo o tempo em que este mundo durar, quer queiram ou quer
não queiram, amantes embevecidos o de chorar as perdas,
derramando as silentes lágrimas das distâncias, com as quais regam as
árvores de bons frutos das lembranças eternizadas.
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A Medida das Saudades
Um ano se esvaiu no buraco negro dos tempos e outro se
acrescentou ao calendário da vida, o espaço do existir! Tem sido
sempre assim, ao longo da história toda da humanidade. Lembranças
guardadas dos dias vividos e esperanças renovadas com o porvir das
coisas, às vezes ingratas. Palavras dos afetos verbalizadas sem os
escrúpulos d'alma e abraços apertados, enlaces que dispensam os
pudores do espírito ou os impulsos da matéria. Manifestações dos
desejos expressas dessa forma, na verbalização dos sentimentos ou no
aflorar dos gestos, sem que o recato das inibições possa impedir o
emergir dos amores, que afogam as dores. Ilusões necessárias, por uma
noite, que seja, contanto que sustentem os humores e despertem os
ardores. Hipocrisias, nunca! Desnecessárias realidades! Mancham o
sentimento com a negritude do despudor!
E se a muitos cumprimentei, permitindo-me os afagos, a outros
não pude ver - Ah! A quantos gostaria de ter visto! -, por motivos
variados, pelas distâncias, sobretudo, que vão se juntando, reunindo o
tempo e o espaço, como se fosse possível somar os anos do pretérito
aos quilômetros do hoje, tendo por resultado a enormidade das
saudades. Metamorfose parida do imaginário. Transformações mágicas
ou lúdicas, das vivências e das convivências. uma pessoa, neste
mundo de Deus e dos homens, foi capaz de promover esse poético
somatório, Zefinha, por apelido, que me servia o café na Diretoria do
Centro de Ciências da Saúde e que me disse: "O homem não inventou,
ainda, uma fita métrica que possa medir as saudades que tenho do
senhor!". Marejei os olhos! Francamente! Nunca ouvi frase tão linda!
Ora, se tenho sido, ultimamente, um modesto personagem das
cenas do poder, estou habituado com os cumprimentos de todos os
segmentos sociais, do homem simples ao governante mais importante,
do aperto de mão à continência bem cuidada, mas nenhum desses
como aquele, o de Zefinha, que por telefone me levou à lágrima silente
e à reflexão sobre a grandeza das pessoas, mesmo que singelas. Uma
declaração, tão franca e tão forte, como a que ouvi, pode me servir
de alimento d'alma para o ano inteiro, renovando as minhas forças,
nutrindo o meu espírito inquieto, para que possa trabalhar com a
mesma disposição de sempre. Vou buscar caminhos e rebuscar
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veredas, inventar formas de crescer e de desenvolver com os meus, os
de casa e os outros, aqueles de todos os meus afetos. Sendo como sou,
um homem inquieto e por isso trabalhador ferrenho, nutrido assim,
com essa medida das saudades, hei de me agitar ainda mais, na busca
das realizações do meu espírito.
De ninguém - Graças a Deus! - guardo mágoas, sequer dos que
me feriram com a lança das indisposições pessoais. Talvez, o colorir
dos anos, que deu aos meus cabelos a cor da prata ou o peso de minha
própria história, que fez vergar o meu corpo, tenham sido os fiéis
catalisadores desses meus dias! Vou palmilhando o tempo com as
armas do meu aprendizado, acrescentando, aqui e ali, o que vejo e sinto
ou o que não vejo e o sinto, apreendendo afetos e desprendendo
afagos. Vou, afinal, descortinando horizontes, abrindo picadas na
imensa floresta da existência humana, contabilizando ganhos e perdas,
fazendo dos meus saldos o grande estímulo para não desistir nunca.
Tenho procurado entender as vitórias de meus companheiros como a
minha vitória, balizando os combates na prudência de um
comportamento nunca belicoso. E isso vem dando certo!
E se no final da ligação telefônica Zefinha verbalizou o restante
de seus desejos, dizendo das suas intenções ou das suas emoções - "O
novo século chegará, para que trabalhemos juntos outra vez! Eu, o
senhor e Mariza!" -, digo-lhe, do fundo d'alma, não sei do porvir, mas
creio, firmemente, nessas vontades, como influenciadoras das decisões
do espírito, materializadoras até, das determinantes ou das
deliberações, tão difíceis, sempre. Aqui ou ali, de um ou de outro lado
do viaduto, separados por uma distância pequena, no espaço das coisas,
mas enorme, na contagem de seu tempo, juntos continuamos,
100
Almanaques e Boletins
preciosidades que não podem ser desprezadas, porque são
resquícios da história, transmitem o que se viveu. Assim tem sido com
alguns dos objetos das feiras de antiguidades. As canetas Compactor,
por exemplo, tão em moda na década de cinqüenta ou aquela da pena
fininha: a Parker51. Uma jóia, quase, para presentear os filhos quando
já matriculados no Curso Científico ou no Clássico. As louças também,
evocam gerações. Sem falar nos veis, em cristaleiras e petisqueiras
ou cômodas e penteadeiras, em desuso hoje, nos apartamentos
pequenos e contidos. Os lustres de cristal, a deixarem pendentes
reluzentes pingentes, nos quais os raios de sol dançavam o balé das
horas: pra lá e pra cá! E os espelhos grandes e brilhantes, a refletirem a
infância e depois a adolescência?
pouco recebi do Dr. João Veiga um raro presente. Um
Almanaque do Biotônico, publicado em 1954, com o furinho e o cordão
com o qual certamente foi pendurado na cozinha de uma casa qualquer
pras bandas do Sertão, de onde veio este humanista, como cabe ser.
Colecionador dos nunca ultrapassados discos de vinil, que rodaram nas
vitrolas o jogo das sedutoras aproximações humanas. Secções as mais
diversas, desde aquelas da cultura às do bom humor, com inocentes
piadas, passando pelo calendário com os santos do dia e a lavoura do
mês, recomendando o plantio e sugerindo a colheita. Na brochura
podiam os ancestrais do agora adquirir o conhecimento vigente e se
orientarem no tempo e nas coisas. Que beleza!
Fiz a leitura de um fôlego só, da primeira à última página, sem
pestanejar. Viajei no tempo, voltei aos anos das calças curtas e lembrei
da farmácia, na avenida Visconde de Suassuna, onde pontificava o Sr.
Belmiro, homem de poucas palavras e de mão pesada, espetando a
afiada agulha da velha seringa de vidro, bem esterilizada, por certo.
Injeções de Bismuto ou de Penicilina, contanto que os meninos não se
queixassem da garganta doendo ou das amídalas inchadas. Quando foi
embora, trocando a Boa Vista pela Bomba do Hemetério, assumiu a
missão o Sr. Domingos, figurante, por anos a fio, dos cenários da
meninice, enorme na estatura, mas doce no trato. Funcionário da antiga
fábrica TSAP passava às onze para o almoço, hora de ser convocado e
de logo picar o inquieto doente.
101
Fui à estante para guardar o Almanaque do Biotônico em boa
companhia, junto ao Boletim da Cidade e do Porto do Recife, uma
generosa lembrança de Paulo Brusky, mais um colecionador de
raridades e cuidei em novamente folhear a brochura. Publicação que
data de 1945, quando tinha um ano de idade somente e a guerra urrava
os estertores que antecedem o armistício. Periódico mimeografado
ninguém sabe mais o que é isso!-, editado pelo esforço de Césio
Regueira Costa, Diretor do Departamento de Documentação e Cultura.
Personagem de outros cenários da juventude, das visitas à repartição da
cidade, onde se tinha à disposição um estúdio, para ouvir os melhores
discos da época. E o meu amigo Biriba onde estará ele? não
deixava de freqüentar!
Uma preciosidade, pelo que traz de conteúdo! Um dos artigos
transcreve o depoimento de Vauthier sobre o Recife. Que lindo! E o
engenheiro francês prestou atenção a tudo, às casas e às ruas, como
seria de se esperar, mas às mulheres, da mesma forma, das quais
gostou e não gostou. E está Silvino Lopes, a quem conheci na
Redação da Folha da Manhã, penso, jornal do qual o meu pai tirou o
seu e o meu sustento. A poesia do velho Ascenso Ferreira foi dissecada
no que tem de popular. Antigo poeta do chapelão, que muitas vezes
bateu em minha casa e foi por mim recebido.
Para terminar essa caminhada das saudades, ligou João
Trindade, companheiro de jornadas no campo de futebol do Deputado
das Vovozinhas: Alcides Teixeira. Mas, não falou do jogo de botão e
tampouco se ocupou com as peripécias da época! Que pena!
Com tanta emoção assim, só redigindo sob os acordes maviosos
de Altemar Dutra evocando o velho, mesmo que o computador trave e
reclame que as nostalgias melhor estariam no teclado da máquina de
escrever! É verdade!
102
Comadre Fulozinha
Tenho me ocupado, ultimamente, em refletir a propósito do que
se vem chamando qualidade de vida, sobretudo a respeito do esforço
de certos setores em oferecer à criatura um desejado bem-estar, cuja
expressão envolve a saúde física e a tranqüilidade de espírito. Indago-
me, especialmente, se a classe dia, tão exigente com o consumo,
sente-se melhor que a gente simples, a qual nos interiores do País, por
exemplo, pode ter acesso ao mínimo necessário à sobrevivência e até
que ponto se deve, realmente, intervir na vida de quem se sente em paz,
acenando com bens materiais e outros ganhos próprios daqueles que
Gilberto Dupas considera os “incluídos” ou mesmo os “ainda
incluídos”. A televisão faz isso!
Cuido em observar os modos de vida dos que no dia-a-dia do
existir humano não ostentam: os modestos ou os singelos. Não me
refiro aos paupérrimos e aos miseráveis, aos “excluídos”, afinal. Ora,
será que o Sr. Zezinho, de Chã de Cruz, tem uma qualidade de vida
inferior aos habitantes urbanos, postos em moradias verticais e
trancafiados o tempo todo? Creio que não! Tenho visto a sua satisfação
d’alma em sair de casa e de bicicleta chegar ao condomínio da pequena
burguesia, em Aldeia, atendendo um aqui e outro acolá, juntando essa
féria extra ao que percebe por mês como salário! Não deixa de sorrir e
de comentar com humor os fatos corriqueiros. Joga futebol e toma a
sua caipirinha, de leve!
Ignoro os seus horizontes de futuro, mas nunca ouvi dele
palavra que fosse assemelhada àquelas dos interesses dos meus
convivas. Um carro novo ou uma bicicleta do último modelo, um
equipamento de vídeo, uma viagem pra fora de seus domínios, mesmo
que seja à Carpina. Não enjeita, porém, um piquenique a Natal, pelo
passeio ou pela bagunça no ônibus de aluguel. Por certo, nunca ouviu
falar nas excursões à Europa, para ver os museus de Paris e os parques
de Londres. Vive assim, pra e pra cá, entre a Chã e o condomínio.
Quase nunca vai a Vera Cruz ou a Tabatinga. Assistiu ao espetáculo do
circo, porque a trupe instalou-se nas cercanias de sua casa e a entrada
custava um real, nada mais.
Assim com a Dona Cecília, vizinha, quase, do Zezinho, que fez
do terreiro de casa uma sementeira e vive do cultivo das flores, das
103
orquídeas bem cuidadas e dos girassóis viçosos, de bromélias imunes
ao Aedes aegypti e das avencas verdes e pendentes. Aprendeu tudo isso
no colégio de freiras em que estudou e se vai a Garanhuns, vez ou
outra, é para comprar novas mudas, diferentes, que se acrescentam ao
seu jardim. Sustenta a família, mas tem os filhos empregados,
trabalhando para os que passam os finais de semana fazendo um
churrasco com carne importada e tomando o whisky das bandas
escocesas. Não suporta o inteiramente urbano e detesta, como
expressou, a avenida Agamenon Magalhães.
Compare o leitor a vida dessa gente com a dos remediados pela
sorte, entregues ao labor mal o sol desponta, voltando ou não voltando
para almoçar e retomando jornadas, de trabalho e mais trabalho.
Recepções e formalidades, no trajar e no tratar, cumprimentos forçados
e vênias inúteis. Quando a semana finda, uma ida ao “shopping”, às
compras ou a passeio, para admirar vitrines ou se empanturrar nas
praças de alimentação. Mas, há os que se contaminam com os males da
civilização, como aquela dedicada secretária dos afazeres domésticos.
quina de lavar roupas e vídeo, conjunto estofado bem forrado e
celular. Resultado, carnês e mais carnês a juros de mercado! Agiotas e
assemelhados na porta!
E o Sr. Zezinho, quando disse que um computador poderia ser
posto à sua disposição na portaria do conjunto habitacional,
conformou-se com a justificativa de que a sua cultura seria esmagada.
Um homem crente nas coisas da natureza, cuja crença ultrapassa a flora
e a fauna, para chegar às lendas, como a da “Comadre Fulozinha”, não
pode e não deve ocupar-se de um teclado ou mexer num mouse! O que
seria de Dona Cecília, com um banco de dados informatizado das
plantas de seu quintal?
Entende-se que limites que o podem e não devem ser
transpostos e horizontes diferentes para uns e para outros. Mas,
compreende-se que muitos estão largados pela sociedade e é preciso
integrar essa massa desprezada ao exercício mavioso da vida, do existir
humano.
Na Esplanada do Derby
Na esplanada do Derby, em terreno onde funcionara o hotel do
grande Delmiro Gouveia, tão desbravador quanto foi Octávio de
104
Freitas, guardadas as proporções das especialidades e das artes,
levantou-se o prédio da Faculdade de Medicina do Recife. Naquelas
salas ou naqueles anfiteatros centenas de jovens foram forjados para a
hipocrática arte, um misto do humano que o sacerdócio inspira e da
técnica que o tempo cuida em moldar. O cadáver desconhecido, em
fotografias amareladas pelos anos das distâncias, documenta muito
bem a prática do aprendizado no aflorar dos começos, no
conhecimento dos segredos da Anatomia Humana, naquela inércia
estabelecida da vida finita, em contraste com a dinâmica do exercício
da dissecação. Músculos expostos à vista dos neófitos ou vasos
cuidadosamente apresentados, como que irrigando o saber desses
inícios de curso.
Faz gosto assistir o filme, resgatado, aliás, pelo Prof. Geraldo
Gomes, rodado na cada de vinte ainda, mostrando cenas daqueles
antanhos. Da chegada ruidosa dos alunos, acomodados, como vinham,
nos bondes do Derby, de cujos bancos “tiravam linhadas” com as
moças casadoiras da época. Gente que fazia questão de passear aos
pares, como convinha mesmo às adolescentes de então, pra ver o bonde
chegar ou pra ver passar o loré apinhado de rapazes, embriões, na
verdade, dos doutores. É de se imaginar quantos amores nasceram
assim, na troca de olhares ou na fixação lúdica dos gestos das paixões
nascentes. Ou as tomadas depois, rodadas nos principais laboratórios,
de Física e de Química, em experimentos, por certo, deslumbrantes
para os calouros da ciência, mesclas de substâncias ainda hoje
utilizadas nas bases das pesquisas sistemáticas e sistematizadas.
Antecipações, com certeza, do que realiza hoje a Biofísica e a
Bioquímica, como a Fisiologia e a Farmacologia, conjunto de
disciplinas dos princípios da formação.
E o autor de tão interessante roteiro cinematográfico cuidou de
ir mais adiante, em adentrar por terrenos misteriosos, tantas vezes, do
Hospital de Alienados, pra filmar o figurante mais do que pioneiro das
cenas da Psiquiatria: Ulisses Pernambucano. Pai poder-se-ia dizer -,
pelas inspirações todas que deixou, de um José Lucena ou de um
Galdino Loreto, inscritos, ambos, no rol dos sábios, permitam. E as
velhas enfermarias do Hospital de Santo Amaro, como aquelas do
Hospital Pedro II, onde pude circular as minhas angústias e as minhas
ansiedades de aspirante, igualmente e depois de artífice da prática e da
105
arte, estão inseridas, da mesma forma, no celulóide que tomou, com a
modernidade das coisas, os ares das fitas de vídeo. Quantas vidas -
Meu Deus! - ali estiveram transitando doenças, fazendo fenecer a
chama da existência frente à injúria que maltrata e mata! E quantas
outras vidas, encantadas muitas, lutaram com parcos recursos pra
recuperar e curar! Longos intervalos de tempo, então, dedicados ao
sofrimento do corpo e ao padecer d’alma, dos pacientes e dos doutores.
Abnegados anos!
Agora, o velho prédio está a vergar as paredes, quase, sem
poder sustentar a coberta, danificada como se encontra! Ameaça, pois,
ruir as saudades todas e a desabar as lembranças, sepultando pretéritos
e convívios. E é pra restaurar tudo isso, a tradição da província e da
ciência, que se alevantaram as vozes de Pernambuco, das lideranças da
academia, que transfere o conhecimento e da classe, de cujo suor
renascem as esperanças da vida. A Universidade e o Cremepe, a
Academia e os Ex-Alunos, os dicos escritores e a Sociedade de
Medicina, tão precisada hoje também do contributo pecuniário dos
seus sócios, num grito mais do que uníssono do chamamento à
comunidade. Estão simpáticos à idéia os governos, o estadual e o
municipal, resta à iniciativa privada acenar, então, em tempos assim, de
vacas na engorda, com a largueza do gesto, ao gesto da largueza de se
resgatar pretéritos.
Um espaço vivo é o que se deseja, juntando ciência e arte,
cultura e humanismo, na beleza do prédio e no estilo da arquitetura em
desuso, mas de toda forma grandiosa!
NB – O prédio do Hospital Pedro II foi cedido em comodato ao
IMIP pela Santa Casa de Misericóridia, em 2006 e a instituição criada
Fernando Figueira começou o processo de restauração.
Um Basta aos Desencontros
Vive-se um tempo diferente, um tempo duplo, talvez! O
progresso da ciência e o desenvolvimento da técnica ultrapassaram as
expectativas, inclusive aquela da ficção, a qual, tantas vezes, antecipou
os avanços. A esperança de vida aumentou e o homem agora chega aos
setenta ou aos oitenta e tem uma qualidade diferenciada no exercício
do existir terreno. O paradigma da reprodução está superado e não
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mais necessidade de um macho e de uma fêmea para o emergir de um
novo ser. Parece muito próxima a hora do nascimento de cópias
humanas completas e o cotidiano poderá se transformar em tediosa
repetição dos indivíduos: gente que é gente e gente que será espelho,
somente! Mas, o homem está brutalizado, isolado e medíocre, fanático
e mítico, incapaz de melhor aproveitar os ganhos! As angustias e as
ansiedades preenchem os espíritos.
Há uma crise em relação ao semelhante, demonstra o
psicanalista Jurandir Freire Costa, pernambucano ilustre. O próximo
tornou-se um estorvo, insiste o médico, complementando, sem saber o
que disse Nilo Pereira na década de setenta, quando afirmou que a
tragédia humana é como um filme, passada a película passa também o
sentimento. Realmente, ninguém tem mais a capacidade de entender a
dor alheia, ouve o interlocutor de ocasião, para logo esquecer as
lamúrias e deixar de enxergar as grimas pendentes da face sofrida.
De outra parte, a agressão está solta, nas palavras duras do trânsito, no
dia-a-dia dos afazeres e até no lazer dos feriados. Mata-se por nada,
pobres e remediados, ricos e burgueses, agnósticos ou ateus, crentes e
incréus. Nos elevadores não se cumprimentam os vizinhos, sequer com
um movimento de cabeça. Uma pena!
A situação de gregário cedeu lugar à solidão. A casa rendeu-se
à moradia vertical e não cadeiras nas calçadas, não se vai mais fiar
conversa na mercearia da esquina ou na farmácia da rua. Os canais de
comunicação mudaram, integram uma rede de computadores e a
fantasia substitui a realidade, moldando os tipos e o psiquismo. Cada
um que mostre o seu próprio sonho na tela do monitor! Pior com o
conhecimento, propriamente, vulgarizado nas estações de televisão, as
quais teimam em apresentar quadros do mais baixo nível, com
roedores enfurecidos e leões ignorantes ou com louras burras a
tropeçarem no vernáculo. A Casa dos Artistas reuniu a audiência toda
e há quem ligue e vote, sustente o Supla ou a mulher do Supla! Não
pode resistir a qualquer analise o fato de que pobre gosta disso; pobre
gosta de cultura e arte, mas não tem oportunidades e disso se
beneficiam as elites!
Na busca desenfreada pelo bem estar, a criatura se encontra
com o fanatismo, cujo crescimento assusta. Aproxima-se de Alá dessa
maneira e promove, em nome do Criador, a destruição. Instiga a ira de
107
outros fanáticos, os quais fazem a guerra de um país inteiro contra um
homem escondido numa caverna. Inocentes a se entregarem de ambos
os lados, uns imaginando sete virgens e sete esposas, todas vestidas
com a burca dos costumes e outros riscando nos torpedos setecentos
mortos. Vingança, apenas! Nos recantos do subdesenvolvimento ou
nos cantos da pobreza, proliferam as novas seitas. Prêmios a
contemplarem os humildes com o sucesso imediato, nada dos céus,
nada da eternidade distante. Tudo aqui, no planeta em que se vive,
contanto que se justifique o dízimo e se explique o salário depositado
no banco dos templos. Pra tudo isso alertou Hélio Jaguaribe!
Desisto de minhas saudades do futuro! Quero que volte a
nostalgia dos meus convívios no outrora dos anos, que se ligue a
radiola antiga e faça girar o vinil desgastado das minhas lembranças
nas alamedas do Parque 13 de Maio, na sonoridade da Festa da
Mocidade, onde Núbia Lafayete cantava os amores e Dalva de Oliveira
decantava as perdas e os desamores. Ou então que me deixem entender
os versos de “Minha linda normalista/Rapidamente conquista/ Meu
coração sem amor/...”.
Não gosto da beligerância, notei! Detesto os desencontros!
Sou da paz, prefiro os encontros e os reencontros! Basta!
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Diálogo com o Leitor
Escrevo por aqui duas décadas, quase! Reconheço que sou
um neófito sempre, na arte e no estilo, mas confesso que me esforço
para aperfeiçoar a expressão dos meus sentimentos, as minhas
reflexões e os meus resgates. Gosto de me sentar assim, ouvindo uma
boa música, os discos de Elyanna Caldas e Marcos Caneca, um piano
de celestiais acordes, estimulando o imaginário a fazer nascer o texto,
parido das entranhas dos ideários. Sei muito bem que a inspiração
aflora em qualquer lugar, a qualquer hora, às vezes até em momentos
impeditivos do ato e do fato da criação. Anotações em pedacinhos de
papel simulam uma sintonia com a hora, mas na realidade representam
a substituição da memória orgânica, geneticamente determinada. No
restaurante, o guardanapo faz as vezes do antigo bloco espiral vendido
nas mercearias, esquecido em casa ou nunca adquirido na livraria da
esquina.
Tenho mantido, ao longo do tempo, um silente diálogo com o
leitor. Afinal, o jornal não fala e não ouve! Com aquela senhora dos
esturricados agrestes, que se ocupa com as minhas divagações, a
indagar com propriedade: Ele é velho? Ele lembra da Festa da
Mocidade?” Não sou velho! disse! Sou do tempo do antes! Velhos
são os que se entregam às forças do nada! Lembro, entretanto, de tudo,
dos detalhes, dos afetos, dos passeios, dos flertes, das minhas
desconcertadas conquistas, dos meus amores e dos meus desamores.
Posso falar da gente que conheci, dos que perdi e daqueles que
desapareceram. Sei de todos, pelo nome ou pelo cognome! Tenho tido
o prazer, vez ou outra, de reencontrar alguém desses convívios!
Confesso que me entrego! Seria capaz de sair, de voltar aos cenários do
ontem, tão deformados hoje, para rever os atores dos meus antanhos!
Mas, aos jovens que recortaram a crônica da sexta-feira santa e
numa comunidade qualquer desta cidade de Maurício adotaram o tema
da ressurreição para as discussões em grupo e que terminaram
formulando a definitiva pergunta: “Será que ele pratica tudo que
prega?” Claro que não! Sou como vocês todos: humano e frágil!
Eivado de erros! Tenho a doutrina como resultado das minhas leituras
e das minhas reflexões, das minhas vivências e das minhas
convivências! Sou um produto do meio também, resultado de um
109
somatório de ganhos e de perdas, mas faço comigo toda manhã o
exercício do renascer. Neste mundo de Deus e dos homens a ninguém
cabe atirar a primeira pedra. A ninguém deve caber – pelo menos isso!
o julgamento alheio! Essas coisas, entretanto, demoram a chegar e é
preciso esperar que os cabelos pintem de branco as cores do tempo!
A crônica que intitulei da forma quase metafórica Folhas
Secas -, levada à sala de aulas de um dos nossos cursinhos, mostrava,
na verdade, o quanto aquela mulher, germânica de nascimento, muito
idosa já, podia dispor ainda, em termos de viço e de vida, para o
enfrentamento desse exercitar do mister maior: a existência humana. É
que as folhas secas, desprezadas pelos ventos no solo das florestas e de
seus entornos, tinham todas marcas verdes, símbolo da fortaleza
interior dos que chegam à senectude, mas guardam da juventude o
destemor, aquilo que aprendi com o meu professor: “Não desista
nunca!” E ela não desistiu, seguiu os seus caminhos, fazendo dos
percalços alamedas de uma busca constante da felicidade. A felicidade,
porém, é um estado de espírito, efêmero sempre, não ultrapassa pelo
geral as vinte e quatro horas do dia e por isso mesmo deve ser
aproveitada e vivida. sempre pedras nos caminhos! E desses
momentos nascem as saudades!
A vida é um livro de muitas histórias e de estórias também. A
crônica do cotidiano vai sendo escrita pela criatura a cada minuto e a
memória acolhe esses sentimentos, de plenitude d’alma ou de
insatisfação do ego, mas ninguém gosta de lembrar das amarguras e
dos tropeços, prefere os bons momentos. Assim, as recordações
emergem para mostrar ao homem que existem qualidades na vida
vivida.
Eis o meu diálogo, mais que silente, com o leitor, a minha
cumplicidade!
110
Do Luto e das Esperanças
A grande roda do tempo o calendário – há de parar outra vez,
para assinalar do Cristo a paixão e a morte. Vestidas de preto, as
mulheres do templo o chorar o pranto da perda. E os homens de boa
vontade, circunspectos com o mistério do insondável, hão de repetir
promessas de resgate do bem. Crentes ou incréus, por um momento,
que seja, se deixarão tomar pela reflexão interior, do que se fez e do
que se faz, se de bom ou de ruim. O amor ao próximo, do exemplo do
Homem que deu a vida em favor do semelhante, será, novamente,
considerado, no pensamento, pelo menos, de cada um. A esperança da
ressurreição renova os espíritos e a criatura se alevantará do fosso
dos sofrimentos, nesse aqui e nesse agora, às vezes, tão cruel. Vencido
o luto e de alma renovada, os percalços do caminho ou as pedras nas
estradas serão enfrentados com o destemor dos justos. Espera-se!
É preciso, então, parar, ver e rever posições e posturas, das
escutas e das palavras, dos atos e dos fatos, dos gestos, enfim, do dia-a-
dia, cada qual por si, no introjetar conclusivo da meditação que o
tempo inspira. A ciência e a técnica promoveram os avanços e o
extraordinário desenvolvimento da humanidade, mas brutalizaram o
único ser que na superfície do planeta tem a capacidade de pensar, de
refletir, de decidir. A aproximação com o outro vai, pouco a pouco,
desaparecendo, engolida pelas rotinas, tragada pelos mares de um
cotidiano corrido. uma incapacidade ou uma incompetência para
ouvir e falar, para se ocupar com o drama alheio, com a tragédia de
todos os dias daqueles que foram excluídos do comum das coisas, de
quem carrega um fardo mais pesado sobre os ombros débeis da
condição de fragilidade que o homem traz.
O infortúnio do semelhante parece um filme de enredo triste,
depois da projeção a tela escurece e as luzes são acesas, apaga-se, pois,
da memória a lágrima que correu silente e a expressão de dor
verbalizada de forma pungente. Dali pra frente inquietações outras,
diferentes, diversas das anteriores, que nutrem e fazem crescer o
sentimento nefando do egoísmo. Cada um cuida de si próprio e pouco
ou nada se incomoda com o próximo, mesmo quando o semelhante
está junto todos os dias e todas as horas, em casa, no trabalho, nas ruas
da cidade grande ou no lazer. As explicações interiores, nos momentos
111
de solidão, quando a reflexão aflora e cobra, o justificativas ainda
mais egocêntricas. Bastam as preocupações pessoais, as inquietudes da
família e os tropeços vividos nas rotinas da profissão! Tantas vezes o
afeto, uma palavra ou uma escuta, mitiga o padecer de outrem!
E se a paixão e a morte levam à meditação e à reflexão sobre a
vida, a ressurreição deve trazer de volta as esperanças em dias
melhores. Expectativas e desejos da utopia posta adiante, sempre, de
quem ajuda a construir um novo mundo e vai se engajando nos
esforços para fazer crescer a humanidade. Cada um deve e pode ser um
operário do todo, juntar tijolos com a argamassa do compromisso, para
contribuir na obra da completude. Ninguém está dispensado de
participação, a ninguém é dado deixar de lado as injustiças sociais e as
distorções econômicas que os anos consolidaram. O outro não pode
continuar sendo um estorvo que se suporta, apenas ou que as
indisposições do ego impedem a compreensão; o outro é humano,
também, submetido a toda sorte de pressões e de circunstâncias, com
igual destinação e desígnios assemelhados.
Nunca é tarde, porém, para se começar ou se recomeçar a vida,
mudar o comportamento é das qualidades mais importantes do homem.
O amanhecer diário deve ser, todas as vezes, uma retomada no difícil
mister do existir terreno. E as datas têm essa característica, servem para
a renovação do espírito, para a reengenharia da alma, tudo na
humildade de quem neste mundo de Deus não passa da simples
condição humana de criatura, mesmo que semelhante ao Criador. É o
reconhecimento dessa fragilidade que engrandece, que promove o
ressuscitar de todos os dias, mas sobretudo permite o entendimento do
próximo, do semelhante que está junto e daquele distante, longe dos
ouvidos e dos sentimentos.
Boa Páscoa!
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Ladrão de Galinhas
A tirar pela voz, aquele interlocutor de ocasião era novo, um
jovem repórter interessado em colher dados a propósito dos
impedimentos sociais de agora, diante da violência crescente e
desenfreada. Em outras palavras: o que o se pode mais fazer em
conseqüência do medo, do pavor que a sociedade enfrenta? Pedi um
tempo e o endereço eletrônico, como cabe fazer na
contemporaneidade, em vinte minutos, prometi, responderia. E
respondi! Bastou uma reflexão curta sobre o ontem das coisas e o hoje
do cotidiano, para encontrar as diferenças e nas vinte linhas das suas
exigências redigi o texto. Parece muito fácil a qualquer cinqüentão
fazer isso! As lembranças de um Recife que se foi, embalado nas
toadas de todas as saudades, facilitam declarações assim!
Ora, não se pode mais andar no centro urbano, fazer compras
na Imperatriz ou passear simplesmente passear na velha rua Nova,
voltar pela Guararapes e apreciar da ponte o rio passando lento,
enchendo ou vazando. o se pode mais sentar no Quem-me-Quer e
admirar o desfile das moças, indo e vindo das compras ou esperando a
sessão de cinema no São Luiz. De um lado, o da rua da Aurora, as
meninas casadoiras, umas comprometidas e outras não, livres e
desimpedidas e do outro as que da vida viviam, vendendo o corpo e os
amores. Metade e metade lá, como o imaginário da rapaziada,
fantasiando vontades que eram desejos nem sempre realizados. Um
sorvete no Gemba ou um sanduíche na Confiança serviam para
encerrar a tarde buliçosa. E haja sonhos!
Os rituais também se foram. Quem se atreve a percorrer a pé as
sete igrejas das tradições da Semana Santa, partindo da Matriz da
Soledade e chegando à de Santo Antônio, uma por uma, beijando o
Senhor Morto. O jeito é fugir de casa, correr para o campo ou se
esconder na praia, estirar-se na rede ou sentar-se na espreguiçadeira e
ao sabor da cerveja gelada ou do vinho à temperatura ambiente fazer a
opção entre um livro, um clássico da música e uma conversa a ser fiada
em alpendre ventilado. Até o Carnaval mudou, o corso acabou e as
colombinas estão refugiadas nas grades de todos os medos, a lágrima
do pierrô enxugou e o mais arlequins saltitantes. Um ou outro
113
bloco de rua se atreve em percorrer o centro, na sexta-feira gorda ou no
sábado de Zé Pereira. Depois, recolhem-se!
No tempo do São João tornou-se impossível visitar os
arrabaldes, passar nos largos e observar as quadrilhas matutas
repetindo o dançar ritmado das cortes européias. Muito pior se o
penitente saudosista, mesmo de carro, desejar conferir as fogueiras de
Santo Amaro e os fogos coloridos que enfeitavam os céus da cidade
vindos do Clube Português, onde muitos não podiam entrar, mas
podiam ver, das calçadas do Parque Amorim, a beleza espraiada nos
ares, dando cor à paz. As antigas carroças puxadas a cavalo, que
traziam os noivos em noites assim, não circulam mais antecedendo o
préstito e os pares estão desfeitos, separados para todo o sempre,
pairam nas nuvens das recordações, como se fossem fantasmas de
muitas lembranças. Sequer há retretas em palanquins de subúrbios!
As brincadeiras de meio de rua, o pega e o pega-soltou, o
queimado e a academia estão proibidas às crianças. Empinar papagaio
e jogar uma pelada são atividades tangidas do imaginário infantil, mais
do que ocupado com a Internet e os desenhos da televisão. Ninguém sai
de casa para apanhar manga, tirar oiti e recolher cajá ou a azeitona
caída do pé! O velocípede circula na sala dos apartamentos e de
bicicleta não se vai ao colégio, tampouco a passeio nos entornos da
moradia onde estava, recatada e reclusa, a musa da adolescência. As
alamedas do parque 13 de Maio vivem um silêncio que assusta os
antigos amantes. Nem o senhor bem cuidado, de carro importado, da
marca Skoda, com a mão esquerda estirada pra fora da janela, a tirar a
aliança da denúncia, teria mais coragem de cortejar a jovem de longos
cabelos, lisos e negros!
Sou do tempo do ladrão de galinhas e do batedor de carteiras!
Tenho saudades do tudo, das cadeiras no portão e das casas
escancaradas, dos retornos em grupo pelas ruas do Recife, de antigos
saraus e dos aniversários domésticos, dos assustados e das festas de
bairro. Sou assim!
Folhas Secas
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Li e reli a carta de uma senhora alemã, de 79 anos, à sua nora,
pernambucana deste rincão e tirei dali lições que vou guardando para o
meu doravante. Diz a missivista que vive o outono da existência,
sentindo a lentidão a lhe tomar o todo, pouco a pouco, no pensar,
sobretudo. Mas, recomenda com sabedoria à jovem nora que guarde os
domingos para o Criador ou os reserve à família. E conta que em seus
passeios aos bosques germânicos, vez ou outra, recolhe uma folha solta
ao vento, largada ao léu. Nota que é seca, amarelada, embora traga,
sempre, pequenas manchas verdes, as quais desaparecem depois de
guardada por entre as páginas de um livro qualquer. A dona Ângela
Efken, certamente, não imaginava que um aprendiz de cronista fosse
tomar as reflexões de sua missiva e aproveitá-las em ocasião assim, de
recolhimento d'alma e meditação do espírito, num domingo qualquer
de tropicalidade aflorando. Uma reconciliação com o sentimento,
então!
Eis a plenitude da idade, o ápice da experiência existencial!
Foram anos e mais anos contados em décadas reunindo vivências e
convivências, convívios, afinal, sintetizados assim, num filosofar,
posso dizer, doméstico, a sagrada forma de se apontar veredas a serem
seguidas, caminhos a percorrer e estradas a passar. E é nesse outono ou
nesse ocaso e nunca por acaso, que o conhecimento do dia-a-dia, das
práticas de vida, deve ser transferido, mesmo que haja a lentidão no
gesto ou mesmo que o ato e o fato de pensar exijam um desusado
sacrifício. A maturidade tem isso, traz o dano e a debacle, o declínio,
pois, mas promove a serenidade e a paz, permite que a reflexão
conduza os destinos e inibe a pressa irrefletida, tão comum na
juventude e uma constante, quase, na adolescência dos anos. E a dona
Ângela Efken enaltece a família, a célula mater e recomenda Deus, que
é tudo, a concórdia e a humildade, a harmonia e o sossego.
A lição maior, todavia, está nas folhas secas recolhidas ao léu,
nas gélidas paragens germânicas, todas com manchas verdes e que
murcham, quando deixadas por entre páginas de livros. Toda gente, do
começo ao fim dos tempos, preserva nos interiores marcas assim, do
viço e da força, para se alevantar dos baques ou para superar
obstáculos, pedras do caminho e percalços nos atalhos da vida. Há
sempre um recomeço! Uma mudança, uma transformação, a
metamorfose da criatura, numa readequação aos cenários da
115
existência! Verdadeira reengenharia humana! Ninguém, todavia, deve
se encolher e restar prisioneira, de si ou dos outros, sob o risco de
murchar, de perder o brilho e a cor, de se tornar um nada, que a nada
pode criar. a criatividade realiza o homem, porque o aproxima,
mais e mais, do Criador, que fez a tudo e a todos, que estabeleceu as
leis da natureza e sustenta o Universo em sincrônicos movimentos de
rotação e translação.
Viver é um exercício difícil, uma sucessão ou uma alternância
de ganhos e de perdas que inquietam profundamente o ser. uma
cruz reservada a cada um! Algumas mais pesadas, lenhos de madeira
bruta, à semelhança de rochas, que tornam a trajetória penosa e sofrida,
que abrem incuráveis chagas! Outras, mais leves! A criatura, porém,
enfrenta tudo isso, vai contornando momentos e dando a volta em
minutos, desespera-se e chora o pranto sentido, rasga-se em lágrimas e
parece sucumbir. Sente-se, por vezes, um palhaço no picadeiro da vida,
arremedando humores que não tem e achando graça no nada do nada!
Reconhece, afinal, as dificuldades da hora e se ergue! Há, sempre, um
sorriso guardado, uma expressão de afeto reservada e um afago
emergente! Aos que foram melhor aquinhoados e cuja aflição é menor,
que não cumpriram a paixão e a morte, cabe compreender, entender a
inquietude alheia, sem exigências, pois.
O verde da esperança de vencer a palidez amarelada dos
fracassos estabelecidos e das ruínas sentidas, afastando as ameaças do
cinza de todas as derrotas e do preto de outras desgraças funestas.
116
O Recife de Agora
O Recife, como as metrópoles do mundo, vem experimentando
nos últimos 50 anos o que tenho chamado de metamorfose do tudo, isto
é, mudanças e transformações que ultrapassam o simplesmente físico e
o apenas urbano, para ter também uma natureza sociológica ou
antropológica. A paisagem da cidade contemporânea é diferente,
inteiramente diferente daquela de meio século atrás, desde as
periferias, nas quais proliferam favelas e palafitas ocupadas por
migrantes e seus descendentes, tantas vezes desempregados e
deseducados. Na selva de pedra e cal aglomeram-se os prédios de
apartamentos, apertando as famílias em quatro paredes. O ser humano
mudou também e hoje as relações de amizade ou de vizinhança não
reconhecem mais a proximidade dos anos que ficaram encantados nas
brumas do tempo. E quando aproximação, nota-se o exagero e a
ausência de limites. Prova disso está nos namoros e nos filhos de mães
adolescentes.
Desapareceram as antigas moradias, tangidas pelos enormes
edifícios, arranha-céus do presente. Com isso, levaram as cadeiras da
calçada, postas em fins de tarde pelos netos, para que sentassem as
avós e fiassem conversa com os parentes e os vizinhos. O mascate, que
passava vendendo a matéria prima da costura, do crochê e do bordado,
muito do agrado das senhoras idosas, afastou-se do cotidiano, do
mesmo jeito e agora tudo está disponível nos shoppings e nas lojas que
proliferam em galerias dos bairros finos, ao lado da verticalidade das
residências. O vendedor de amendoim, torrado e cozinhado, mestre-
cuca da deliciosa farinha do grão, encostou os balaios, deixou de gritar
chamando a garotada para degustar aquela preciosidade artesanal. Foi
substituído pelos meninos que nos bares da vida ofertam o produto sem
gosto, faltando o tempero do bem-querer.
Nos bancos assusta, às vezes, a quantidade de máquinas que
fazem o serviço do estabelecimento. Assim, é possível sacar, depositar
e cumprir os compromissos do mês. uma luz que sabe ler,
dispensando as antigas filas, de voltas e voltas no salão, as quais nem
sempre fluíam com a desejada rapidez. Estão dispensadas as cenas que
vi na infância, dos grandes livros sendo abertos no balcão, para o
funcionário identificar o nome do correntista e fornecer o saldo do dia.
117
E foram demitidos os empregados considerados excedentes, com a
estréia do computador e a automação das operações, dessa forma com
outras empresas, na indústria e no comércio. De tal maneira que no
tempo do hoje, quem não tem uma especialização, uma profissão, está
fadado à perda, ao desemprego ou ao subemprego.
E o comércio do centro, o movimentado no pretérito, com
lojas e mais lojas à disposição da clientela: a Sloper, a Viana Leal, as
Lojas Seta para homens, a Personal e muitas outras? Era na Viana Leal
que íamos escolher os presentes de aniversário ou do Natal, adquiridos
com todo o sacrifício por meu pai. Ali, também, visitávamos o Papai
Noel e nos embalávamos nas fantasias do velhinho, absolutamente
crentes em sua passagem na noite do nascimento de Jesus. Sumiram,
da mesma forma, as vendas que abasteciam os bairros de classe média
e vendiam fiado, usando uma caderneta, na qual se anotavam as
despesas a serem cobradas no final do mês. Era um ponto de encontro
dos passantes, onde se podia provar o bacalhau e o fígo de alemão,
comidas não recomendáveis aos remediados da sorte. Os
supermercados ganharam a concorrência!
Freqüentava-se o cinema São Luiz ou o Moderno, o Trianon ou
o Art Palácio, de seletos expectadores. Esperava-se a namorada à porta
e assistia-se o filme do dia. La Violetera fez sucesso e era
repetidamente visto pela rapaziada, uma outra película, cujo nome não
me ocorre, na qual a trilha sonora incluía a música Relógio - “Por que
não páras relógio/Não me faças padecer/...” -, abalou os corações da
moçada. Depois das duas horas sentado, o sorvete no Gemba era
indispensável e muitos amores nasceram assim, diante de um
casquinho do gelado de ameixa ou de graviola. Agora, os cinemas
estão embutidos no corre-corre dos shoppings, para que todos se
protejam da violência.
Eis o Recife de agora ou eis aqui a metamorfose do tudo!
118
O Terceiro Zé
Há certas coisas na vida que exigem um ritual apropriado. Uma
dessas a leitura de um livro. A depender do texto, a liturgia a ser
cumprida deve se estabelecer por inteiro. Se técnico, convém abrir o
volume em superfície dura, numa mesa ou nas antigas escrivaninhas,
mas se for leve e agradável ao espírito, não custa sentar-se em cadeira
de balanço num alpendre bem cuidado. Com o Terceiro fiz
diferente, acomodei-me na cama com travesseiro alto e de um fôlego
só li toda a autobiografia de José Lira Guedes. A vida do homem é uma
lição, dos começos aos dias de hoje, pois que nascido nos esturricados
sertões paraibanos, na cidade de Cajazeiras, filho de um caminhoneiro,
chegou a promotor de justiça. Que beleza!
O autor, entretanto, embora ligado às leis e aos decretos, às
voltas, tantas vezes, com questões de polícia, pois que foi delegado em
Goiana, sem vocação alguma para trancafiar o próximo, é de uma
sensibilidade humana extraordinária. Cultiva o hábito da música como
um hobby que lhe ocupa o tempo do ócio. Bastou lhe dizer que gostava
de ouvir As Pastorinhas, na sonoridade retumbante da Banda de
sica do Corpo de Bombeiros, para receber de presente um CD
trazendo uma série de gravações dos meus anos de adolescente. Ora,
dispõe em casa de equipamento próprio para esse resgate e com isso
vai atendendo à curiosidade dos amigos interessados nesta volta ao
pretérito. Imaginária volta! Ignoro se dispõe da letra de Diana: “...Não
te esqueças meu amor/Que quem mais te amou fui eu....”
Mas, o que encanta mesmo é o sentimento de gratidão, que
aflora em cada página do livro, lembrando a todos que de uma forma
ou de outra o ajudaram, desde a genitora aos companheiros de agora. O
pai, que talvez não tenha sido um marido exemplar, tem o seu papel
destacado na educação de quem foi menino, como todos os mortais
deste mundo de Deus. A força de seu caráter e de sua retidão ficou na
personalidade do filho, com toda certeza. E o irmão, de tantas ajudas
nos seus inícios, aparece na saudade de quem cumpriu o desiderato de
um mister sublime, o de sair dos agrestes e crescer pelas mãos do
saber, sempre. Foi com um sacrifício enorme que estudou no Ginásio
Pernambucano e depois na Casa de Tobias.
119
O Jo Guedes, que se intitula O Terceiro , porque os dois
primeiros foram chamados à dimensão do eterno, merece a promoção à
condição de primeiro Zé, pelo que é. Trabalhou no balcão de várias das
casas comerciais do Recife e foi mudando de emprego, levado por
indicações fraternas de seus colegas, fixando-se com prazer numa loja
de discos, onde fazia o que gostava: ouvir música. Findou bacharel e ai
fez os concursos todos que apareceram, tornando-se, a contragosto, um
agente da lei e depois um integrante orgulhoso do Ministério Público.
não se deu bem nos júris de que participou, por certo pela timidez
que carrega ou porque não lhe apetece condenar o réu, por pior que
seja. A bondade da criatura parece impedir as colocações, às vezes
cruéis, do algoz!
Numa viagem de férias a Garanhuns, hospedado no SESC,
encantou-se no café da man com uma bonita e agitada hóspede,
elegendo ali a sua musa de todos os anos: Matilde. E com Matilde
ficou, na saúde e na doença! As filhas cresceram e se formaram,
casaram e trouxeram os netos pra casa do avô transformado em coruja.
Os genros são filhos, no dizer de Guedes, juntaram-se à família e
experimentam a amizade sincera deste artífice do humano. O Terceiro
desmoralizou a cantoria de Maria Baixinha, a babá de casa em
décadas já passadas e por isso vencidas, cuja flexão da voz dava vazão,
todos os dias, à choradeira: “Quem faz o bem/Recebe sempre o
mal.....” Ele, que recebeu e agradeceu, merece confetes dourados e
serpentinas de cetim. E viva o Terceiro Zé!
120
O Vagabundo da Praça
Aproximou-se a passos lentos, como se estivesse medindo as
distâncias, mesmo conhecendo esses entornos de cor e salteado.
Escolheu um dos bancos e estendeu no encosto o paletó surrado,
sentando-se em seguida, não sem antes acomodar a seu lado a caixa de
leite em cheia de revistas. Abriu uma dessas e passou rapidamente
as ginas, detendo-se, aqui e ali, numa foto qualquer, sem que lhe
importassem os textos. Retratos da sensualidade feminina à vista de um
homem como outro qualquer, diferenciado, apenas, pela condição
humilhante do analfabetismo, que inibe a cidadania. O cão ajeitou-se
no chão, abriu a boca preguiçoso, fechou as pálpebras, jurando
lealdade que tantos desconhecem e quase ronca. O passante, que
empurrava a carroça repleta de latinhas usadas - o lixo do luxo da
burguesia -, com o filho a lhe ajudar no ofício, decidiu parar e
descansar. Tirar um deforete, diriam os antigos!
Cumprimentaram-se e um diálogo nasceu! O vagabundo falava
e gesticulava, argumentando com segurança, explicando, certamente,
as suas idéias e os seus ideais. O interlocutor de ocasião retrucava o
quanto podia, discordando, então, do pensamento alheio. A criança,
absorta, acompanhava os dois na conversa, sem compreender bem de
que falavam e o que discutiam. Não houve acordo e o moço forasteiro
se alevantou, virou-se para o menino e fez o gesto universal, tocando a
fronte com o indicador da o direita: “É doido!” Seguiu em frente
com a sua carroça, voltou à faina da reciclagem do alumínio,
garantindo a féria. Outra vez o vagabundo abriu uma revista, folheou
com a mesma rapidez e se deteve na visão da nudez! O menino de rua,
cheirando cola quase senta, não fossem os latidos do cachorro. O
cavalo que passou pachorrento, como cabe ser aos eqüinos, nem ligou
para os dois, mas por pouco não provocou um acidente grave, graças à
precisão dos freios do automóvel novo.
Do outro lado da rua, o vigia do prédio em acabamento
descansava a sua monotonia sentado em cadeira de plástico,
desdobrando um pedaço de papel com o qual se ocupou. Leu com
vagar uma, duas, três vezes se pouco e novamente acomodou aquilo
que parecia um bilhete no bolso da camisa. Seria uma carta de amor,
como aquela que amigo meu enviou para a mulher amada nos tempos
121
da adolescência? Copiou de um livro especializado em declarações o
conteúdo de uma: “A perspicácia que te caracteriza margens a que
meu amor por ti se concretize...” E veio me pedir para corrigir!
Imaginem! Sequer sabia o que era perspicácia! Ou as palavras e as
frases daquele bilhete expressavam rupturas de uma paixão? O que lera
e o que sentira ninguém sabe, ninguém viu, tampouco ouviu! Mas,
preferiu distrair-se com as maluquices do personagem à sua frente,
falando baboseiras coitado! -, o discurso dos loucos de qualquer um
dos logradouros do mundo!
Um homem aproveitava o domingo para um extra e descia a
fachada do edifício em equipamento de segurança duvidosa,
rejuntando as pastilhas. O vagabundo prestou atenção à cena e não se
conteve, versejou assim: “Se você cair/Não vai se ferir/Pois estou
aqui/Para lhe acudir/...” Dava esperanças ao pobre peão, dependurado
como estava, sustentado por um cabo de aço. O empregado gritou lá de
cima, repetidamente: “Doido! Doido! Doido!...”. Diante desse vozerio
todo, a mulher de um prédio mais antigo, de amplos e bem divididos
apartamentos, apareceu na sacada. Vestia roupa de dormir, ainda, uma
camisola curta, de transparência parcial, mas tinha as formas bem
desenhadas de quem fora bonita na juventude. ia pelos quarenta,
pouco mais ou pouco menos. O marido, mais ciumento que cuidadoso,
puxou-a de volta. Afinal, não valia a pena essa exposição matinal!
Quase repito a crônica de Veríssimo: “Uma Vizinha Maravilhosa”.
E os ponteiros do relógio se abraçaram: hora de se procurar o
restaurante e degustar o bode bem passado. Mas, o maluquinho ficou,
porque não tem o direito dos outros, o de se alimentar! O vigia também
e o peão. Só a mulher de beleza pretérita sentou-se à mesa e pôde
almoçar! Depois, foi dormir a sesta da tropicalidade. Acordou tarde e
perdeu o sono à noite. Arrumou todo o guarda-roupa. Valha-me Deus
do céu! Quantas peças?
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Os Brotinhos
Os meninos eram tomados como exemplo em minha rua,
porque enfrentavam os livros com vigor e o meu pai dizia assim:
"Vocês deviam estudar como os filhos de seu José Diniz!". Ora, é que
Maurício sabia os segredos da Matemática e quase vai ao desespero
para me ensinar a conta de dividir, depois de minha mãe entrar em
parafuso, verdadeiramente, sem conseguir repassar os mistérios do
divisor e do dividendo. Marcos, também, enveredou pela agronomia e
fez carreira, trabalhou pras bandas da Universidade Rural e hoje se
refastela na dignidade do ócio. Meus amigos fraternais, todavia, eram
Moisés e Mozar, figuras quase gêmeas, que aprontaram tudo o que
puderam na vida, sobretudo o primeiro, com o cognome de Coca-Cola,
sem alusão ao arcebispo de então. É que Moisés, com a Kombi de que
dispunha, aceitava ajudar os amigos em certas rotas dos amores. O
penitente e a namorada no último banco, aos beijos e aos abraços,
enquanto o carro serpenteava pela cidade inteira. Muitos daqueles
ósculos ficaram nos ares das rupturas e dos desejos frustrados!
Quando eram menores, entretanto, fundaram uma troça
carnavalesca com o sugestivo nome de época: Os Brotinhos. E saiam
tamborilando pelas ruas das redondezas do Pombal, entrando nas casas
e fazendo paródias. Na minha, não descuidavam do intelectual e
cantavam: "Se esta rua fosse minha/Eu mandava ladrilhar/Com
pedrinhas de brilhante/Pra Dr. Nilo passar/...". E Nilo Pereira ficava
orgulhoso, integrando assim, a letra improvisada da tocata! Era uma
festa no alpendre do sobrado azul, quando o sábado de Carnaval
aflorava, na cadência de todas as fanfarras. Dona Lila, cuidadosa com
as coisas, servia um ponche de maracujá, evitando do álcool dos
excessos. Como sabia do movimento, comprava logo cedo, na feira
de Santo Amaro das Salinas, a fruta que ssaro Triste carregava no
balaio enorme, mandando encher o depósito apropriado: a poncheira. E
a gente miúda daqueles antanhos se esbaldava na pureza das estrofes e
dos acordes! Seguiam pela avenida acompanhando os trilhos do bonde
e voltavam pela Afonso Pena, no circuito do frevo de bloco.
Foi com Mozar que estudei para o vestibular; Mozar e outros
mais, um desses, cujo nome omito por hesitação da consciência, muito
engraçado, porque decorava as coisas todas das apostilhas e dos livros,
123
sem corrigir os erros de revisão. Foi assim que, repetitivamente,
insistia que o paramércio - um protozoário - tinha a forma de “chilelo”,
chinelo, na verdade. Era uma gozação geral com a explicação do
colega, que sequer sabia do significado desse “chilelo” do cão. E juntos
terminamos a faculdade, ele vestiu a farda da Marinha de Guerra e
nunca foi à belicosidade do combate e eu fiquei por mesmo, nos
muros da academia. Vez ou outra nos vemos e o marinheiro abre a
boca pra cantar e resgatar saudades dos tempos idos e vividos,
rebuscando pretéritos, que são como as águas do rio que Fernando
Pessoa viu junto com Lídia, não voltam mais. Misturam-se, ao final,
com outras águas, as do grande oceano das perdas! E ninguém sabe
daquelas lembranças e daquelas recordações, que são gotas, apenas, na
largueza do imaginário!
A prole de Diniz ultrapassa as expectativas do hoje, tanta
gente quanto um time de futebol, contando os que ficaram para o
banquete da vida e os que se foram, encantados na dimensão do eterno.
Moacir, por exemplo, chorado por todos, até por Gata Preta, folclórica
figura que deplorava a voz de Sabará, o ébrio da rua, cantando de
Vicente Celestino o próprio destino. Cresceu no banco e virou gerente,
comprou uns carros e fez uma frota, foi político no município e não se
elegeu, trabalhou até o momento derradeiro e se entregou. Marta e
rcia fazem o contraponto, dão graça à casa de marmanjos. Mas,
Murilo, o detalhista, de relojoeiro tornou-se empresário, acerta de toda
gente a hora e os minutos. E José Diniz Filho - o Dinizinho -, adotou
o Paulo como pátria!vem a Recife pra ver o Galo, pra dançar no
Lili e sambar nas avenidas todas da cidade!
Diniz olhou pra trás, viu o filme da vida e fez 85 anos,
lembrou da caldeira da fábrica em que trabalhou, dos suores e dos
percalços, conferiu enlevos e desfraldou o estandarte da antiga troça -
Os Brotinhos -, gritando a pulmões plenos: "Vim! Vi! E venci!". Ouve,
agora, na varanda do apartamento, os ecos da vitória, repetindo a
assertiva, a contabilidade dos saldos.
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O Feitiço Religioso
Em nossas televisões admira a quantidade de programas sob o
patrocínio das chamadas novas seitas, igrejas que não prometem o
reino eterno, mas acenam com o sucesso imediato de cada um, desde
que o dízimo seja recolhido em dia e conforme os preceitos. Ora, a
criatura humana, solicitada o tempo todo pelos comerciais que
seduzem a população com roupas de marca, carros do ano e outras
benesses materiais, pode contaminar-se e conseqüentemente ainda
mais brutalizar-se, desumanizando-se de forma crescente. Mas, toda
gente está assim! Até o médico de plantão naquela noite dos meus
horrores deixou de me atender enlouquecido de dor como estava,
sequer quis me ver, olhar o meu semblante sofrido. Ele era na ocasião
o rei do nada e a majestade do muito pouco. Depois, nem uma visita,
um telefonema que fosse! Cruel! Crudelíssimo!
Além dos apelos ao consumismo e ao crescimento pessoal,
curas mirabolantes de doenças cujo tratamento resta ignorado pela
ciência. Isso se constitui em perigo iminente para as comunidades
religiosas, crentes nessa reparação milagrosa. Mais do que isso, alguns
males que caminham para um indesejável desfecho são envolvidos no
feitiço em massa, os doentes, então, abandonam os tratamentos, os
hospitais e os leitos, refugiando-se nos bancos dos templos e nas filas
das mágicas e mirabolantes metamorfoses da reparação orgânica.
Exercício ilegal da hipocrática profissão, passível de inquérito nas
hostes da Policia Federal e depois o competente processo na Justiça. E
ninguém faz nada, nem as famílias e tampouco as autoridades. São
mais competentes que os médicos todos, dispostos ou não em
especialidades. Nunca vi tanta versatilidade com a cura!
Chama a atenção, também, a suntuosidade dos prédios
ocupados por alguns templos. Agora, inaugurou-se um com
climatização central Imagine o leitor! -, quando as igrejas
tradicionais do Recife demoraram tanto a alcançar essa modernização
da globalização e dos avanços da técnica. Nota-se, então, que a renda é
alta e o lucro, o excedente da arrecadação, além de qualquer
expectativa. E o pior é que são os pobres, os excluídos, sobretudo, que
sustentam o luxo e a grandeza. uma demanda exponencial do povo
em busca dos cultos e o pagamento do sucesso vai sendo feito mais e
125
mais. Paga-se como no passado se pagou, pela tranqüilidade dos céus e
a paz de espírito. Isso pode até estimular um ou outro no sentido do
empreendedorismo de que se fala, mas não é como o maná caído das
alturas celestiais para alimentar a tantos e não pode ser.
Observa-se que os pastores, conhecendo a situação brasileira, a
precariedade social do povo e cada um dos problemas que aflige a
família, direcionam os seus milagres no sentido certo do econômico.
Se tudo isso fosse verdade, se ninguém disso duvidasse, o governo não
teria ministros de Estado, bastava contratar bispos, pastores e
presbíteros para os serviços de planejamento e execução das medidas e
dos milagres. E cardeais, pois o sepultamento do Papa encantou os
homens das religiões com os paramentos cardinalícios e começam a
pensar na possibilidade de príncipes assim vestidos. Mas, o que dói é
assistir na televisão o convite aos desempregados, aos que têm filhos
jogados no vicio, aos sem teto e tantos mais a comparecerem munidos
dos respectivos documentos, mostrados à assistência inteira. A Carteira
Profissional, então, traz um colorido especial ao templo.
A liberdade de culto, assegurada pela Constituição Federal, tem
certos limites, pois que tudo na vida deve reconhecer pontos a serem
respeitados, sobretudo aqueles que ferem a coletividade e chegam a
invadir a privacidade alheia ou se aproveitam a ingenuidade do povo.
Melhor sintonizar a TV-Universitária e assistir uma programação de
nível, do erudito ao popular.
126
Jorge Regueira
Escrevo, meu caro Jorge, porque compromissos aos quais
não se pode faltar, mas pelo meu gosto eu deixaria a coluna em branco
ou mandaria passar uma tarja preta, o mais negro que pudesse,
cobrindo o espaço inteiro. Infelizmente, continuam por aqui as
obrigações, mesmo quando o preço é o de hoje - o imponderável pesar!
Nem sei como vou arrumar as letras e construir frases para encher o
papel todo. Há um branco, completo branco, a me tomar o processo de
criação. A folha, pequena no dia-a-dia, parece ter o a medida do jornal.
A lágrima que rolou na minha face, exprimindo a dor e
traduzindo a saudade, foi somente uma gota neste mar de sofrimento
dos parentes, colegas, amigos e clientes. Pingou no chão, como todas
as outras que traduzem a irreparável perda, a separação perpétua. A sua
dor, a sua saudade, eu sei, eu compreendo muito bem, foram,
infinitamente, maiores do que a nossa.
Nesse mundo cão, de tanto padecer, meu caro Jorge, não vou
guardar a lembrança amarga da hora final, como não desejo a
recordação da intimidade natural recebendo-o de volta. Guardarei o
outro lado, a alegria, o otimismo e a segurança dos momentos do
existir, trazendo à luz tantas e tantas vidas.
Vou lembrar do dia do nascimento de Ana Carolina. Nós dois,
na sala que antecede o ambiente do parto, nos preparando para o
momento sublime. Eu me vestindo meio perturbado, temeroso e você
fazendo graça, brincando com a ocasião. Depois, o primeiro choro,
forte e o rebento de pronto entregue ao pai - a mim. Uma agulha no
chão furou-lhe o e a risadaria tomou conta da sala. É essa
gargalhada que me fica!
em paz, caro amigo, hão de o receber outros que, como
você, sofreram nesse vale de lágrimas!
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A Finitude Humana
O homem nasce e precisa encher os ares do mundo com o
choro forte dos inícios, para que toda a gente creia, firmemente, no ato
da parição humana ou para que se aceite o novo conviva neste
banquete largo da vida. Cresce e se desenvolve, a depender de muitas
variáveis, das internas e sobretudo biológicas e das externas, da
ambiência em que vive e sobrevive, em casa e na rua. Depois, declina e
se entrega, definitivamente, ao pó, restaurando o ciclo da natureza, da
conservação e da manutenção de uma lei ou de uma máxima: nada se
cria, nada se perde, tudo se transforma! Eis a metamorfose da criatura,
também, dos começos às finitudes. Todos, porém, deixam, no grande
livro da vida, uma história escrita e inscrita, boa ou má, de contributo
positivo ou de injunções maléficas à comunidade, à sociedade e até à
humanidade. Se lega um filho à descendência, cumpre o destino da
perpetuação do sangue e da espécie e se planta uma árvore, revolvendo
a terra, promove a antecipação dos retornos à definitiva morada do ser,
que é a solidão ou o isolamento derradeiro. Escrevendo um livro, pode
gravar o saber, transferindo à posteridade a experiência dos anos.
Dessa forma, não morre.
Olhando, então, o homem, o meu mais do que ilustre mestre
Paulo Borba, definitivamente inerte e entregue assim aos desígnios do
Criador, pronto, inteiramente pronto, para a viagem ao infinito de todas
as coisas, para a outra dimensão da vida, evito lembranças ruins,
aquelas da terminalidade, dos sofrimentos e dos padecimentos. Faço,
na realidade, o exercício da ressurreição, mesmo que imaginária, do
professor e do colega, revivendo então outros momentos, de tantos
anos para trás. Vou às enfermarias do velho Hospital Pedro II e o
encontro, estetoscópio aos ouvidos e tensiômetro à mão, examinando
cuidadosamente os doentes. Um diagnóstico aqui e outro acolá, a
prescrição de digitalina ou de reserpina, como cabia fazer à época, ou
de um diurético qualquer, recurso mais ou menos recente, ao tempo, no
trato das elevações da pressão. Antecipador da Cardiologia no Recife,
fazendo milagres, quase, com as insuficiências do órgão que é a bomba
da circulação e uma bomba, tantas vezes, na vida de toda a gente.
Depois, na sala de aula, no Teatrinho, como chamavam os estudantes,
129
teorizando a prática das prescrições, recomendando dietas e outros
procedimentos. Fazendo o discurso da negação do sal.
O tempo passou rápido, tornei-me colega de Paulo, na profissão
e no magistério, e tive uma das mais sadias convivências com o mestre,
de lições sempre, mas de muito bom humor. Ora que fazíamos parte de
um mesmo conselho e nas reuniões, até, discordávamos um do outro,
não sem antes combinar uma polêmica durante a sessão. Acertávamos
os detalhes, quem deveria pedir a palavra primeiro e como seria a
réplica e depois a tréplica. Isso tirava a monotonia das pautas enormes,
pelo menos para nós dois. O então presidente do colegiado olhava com
perplexidade o debate e tomava medidas acauteladoras, cuidando em
dissolver a aparente discórdia. Posto em votação o pleito, vencia Paulo
Borba, sempre, e eu alegava a sua condição hierárquica superior, para
ganhar assim, as disputas todas. Ele ria às bandeiras despregadas. “Da
próxima vez, deixo você vencer”, dizia, e voltávamos juntos, às
brincadeiras, caçoando do mundo. O bom humor de Paulo era, para
mim, uma constante e muitas vezes lhe disse: “Paulo, você foi
brabo!” “Eu nunca fui brabo.” Respondia. “Se não tivesse posto muito
de vocês no pau, ninguém tinha aprendido a Terapêutica
complementava.” E era isso mesmo! Valeu a dedicação do homem à
ciência, aos alunos e ao doente, especialmente!
Certa vez, porém, eu era recém-formado, praticamente, e fui
convocado para uma junta médica, na qual o mestre estaria. Ora,
pensei com meus botões: “O que vou fazer com o Dr. Paulo Borba
junto de mim? Homem de experiência e de ciência?” Mas, fui! O
médico, maduro já, cumpriu rigorosamente os preceitos determinados
pelo Código em casos assim, de junta, e a seguir nos reunimos os três:
Ruy João Marques, que era o assistente, eu e ele. Pois o homem aceitou
a minha argumentação no mais elevado nível e o doente sarou.
Grandeza de quem chega ao mundo para viver a integralidade da vida,
fazendo da simplicidade o estandarte e da humildade a bandeira. Por
essa e por outras, quando aportou nos domínios de São Pedro, não
precisou pedir para entrar e nem bateu, tinha nas mãos a chave enorme
da paz de espírito e da tranqüilidade d’alma. Será convidado para as
reuniões dos conselhos e me aguardará, para combinarmos novas e
polêmicas discussões. Há de continuar rindo, caçoando das besteiradas
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da vida, das preocupações indesejadas e desnecessárias, na nuvem da
eternidade! Um anjo, de paletó e gravata!
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Mãe Desesperada
Nesses últimos dias, confesso, não tenho conseguido tirar de
meu pensamento a tua imagem. Não a de hoje Não a tenho! –, a dos
dias que correm, mas aquela mesma dos muitos e muitos anos
deixados para trás, tempos de felicidades paridos em simples
manifestações dos afetos, inocentes, quase, e dos afagos de
adolescentes em flor e tempos, também, de rupturas nunca inteiramente
justificadas. A vida é interessante e bruta, às vezes, separa as criaturas
definitivamente, apartando dos convívios velhos companheiros da fase
do lúdico e determinando impedimentos aos que um dia se deixaram
levar pelo carinho das palavras ou pela ternura dos ósculos puros. Não
sei, sinceramente, como és agora, como é a tua face e o jeito da tua
inteireza. Não pode ser a mesma coisa daquela década mágica, a sexta
deste século, porque peso, sempre, no correr da idade. Sei, todavia,
das expressões dos teus sofrimentos, do choro convulsivo, forte, no
momento crudelíssimo em que a verdade materializou-se como perda
irreparável e do prosseguir padecendo, dia após dia, no pranto
baixinho, que é o cochicho do desespero, o introjetar da mais completa
e absoluta sensação de finitude. De quem se foi e da mãe que fica,
vivendo, então, o vazio de todos os vazios! Perdeste uma filha!
Amputaram-te os membros todos e a cabeça até, nessa abrupta ruptura
do amor materno e da maternagem, também, que por toda a vida segue.
Que consolo poderei te dar?
Elevando para os céus as minhas orações silentes, aqui e agora,
nesta noite de insônia emergente, não evoquei o Pai senão por ti. Por ti
que vives o tempo sem desejos, subsiste em função do bem maior, da
crença dos teus anos de adolescente, quando o terço tomava-te as mãos
finas, num dedilhar dos mistérios, uns gozosos e outros dolorosos,
antecipando então momentos de vida. São aqueles princípios e aquelas
posturas, aquelas esperanças, enfim, surgidas da piedade cristã, de
futuros a serem cumpridos, ainda, na plenitude da graça, que podem te
alevantar os ânimos. Nem tudo es perdido neste reino da aparente
desgraça, a luz que alumia o fim do túnel mostra os caminhos do
resgate, acende a chama de novos encontros, quando tudo estiver
consumado. Deus, que é sobretudo Pai, traça as vertentes, determina os
ganhos e as perdas da existência humana, mas forças para que se
133
possa enfrentar horas assim, de tanto luto, do sentimento de impotência
total diante do inexorável. o remédio, bem sei, capaz de sarar
tamanha ferida, tamanho dano, especialmente quando está vitimada
uma mãe. Contudo, é preciso buscar nas entranhas d’alma a resistência
para se recompor e continuar cumprindo o desiderato da vida! Difícil
avaliar a dor dessa punhalada que te derrubou o espírito, para quem
como eu nunca se aproximou de tão grande perda a impedir caminhos.
Chorar é preciso, todavia, para que sejam extravasados todos os
horrores, para que se possa recuperar a paz, afinal! Deves chorar o
mais que puderes, em casa e na rua, em qualquer lugar do mundo, sem
os pudores do pranto, só assim hão de enfraquecer as marcas da perda.
Apagar não, nunca!
Quando estiveres só, na tênue penumbra de teu quarto, onde
cumpres a viuvez dos teus anos de maturidade, eleva a Deus o
imaginário e pede forças para de novo iniciar. Há nos teus destinos um
Sol diferenciado, desde os começos, que iluminará os dias do porvir.
Tu sabes de tudo isso! A vida é assim, infelizmente, tropeços que
pensamos nunca superar e num momento qualquer notamos que
estamos, outra vez, na batalha da existência. É necessário, sempre,
iniciar! Retomar as alamedas que nos conduzem à busca perpetuada da
felicidade e da paz, da tranqüilidade, enfim. Alamedas como aquelas
do parque e dos passeios da juventude, de tantas lembranças, então! Os
meus pedidos e as minhas rezas são insuficientes, nunca ouvidos,
pecador contumaz, como tenho sido, mas, creias, não esquecerei de ti
na hora de me acomodar, todos os dias. Os céus honrarão as
promessas.
Recebas assim, nesta forma de expressão dos meus
sentimentos, minha solidariedade amiga, as minhas orações e o meu
pranto, também, de um choro dos afetos deixados para trás, nos mais
de trinta anos contados na esteira do tempo e das distâncias. Creio,
firmemente, na tua recuperação, num renascer das coisas e dos
espaços.
134
Respeita Januário
O velho Gonzaga se foi, encantou-se no infinito das coisas.
Levou a alma montada num jegue e largou o espírito cheio de toadas,
para impregnar o éter de nossa intimidade com as cantigas todas do
sertão. Bateu forte na janela e viu Januário andando, calçando os
tamancos de secas e secas vividas, trazendo na mão o mesmo copo
d’água daquele retorno primeiro, da volta ao ninho antigo. Gonzaga
chegou, gritou Januário para toda a gente ouvir, para que santos e
arcanjos compreendessem o valor do gibão e a importância da sanfona.
Convocou Santana e a filharada para ouvirem os oito baixos, os baixos
todos de que se tem direito na eterna dimensão da vida.
Pois é, amigo leitor, o rei se foi, sumiu, desapareceu de nosso
convívio, como todos nós um dia. Mas, deixou nesta terra de Deus um
livro enorme de lições; livro cujas ginas são discos e discos de
cantoria do sertão. Louvou a asa-branca, o assum preto, o mandacaru e
a lama que virou pedra. Cantou do vaqueiro a sina de uma morte
injusta, fez a louvação da mulher e gritou aos quatro ventos, com a
goela forte de sertanejo, o amor pelo pai, por Januário. Esta a lição
maior de Luiz!
Todos nós temos um Januário na vida, um pai que fincou os pés
junto da gente e terminou, também, legando o saber. Nem sempre o
saber é de natureza cultural ou científica, mas todas as vezes é a
transmissão da experiência vivida em anos e anos de existência terrena.
Ai de quem não contou com isso, de quem não teve a voz firme,
grossa, sonora, mas afetuosa e generosa, para guiar-lhe os passos.
Muitos não viram o pai ou não puderam absorver o lado humano da
criatura, a parte boa que todo mundo tem. Faz falta, muita falta mesmo!
Lembro sempre a lição de Gonzaga nas palavras de Marcelo
Gomes, leitor fiel, fidelíssimo, deste espaço: “Você pode escrever e
apurar, mas nunca chegará aos pés de Nilo Pereira!” Eu não chego, não
chego e não chegarei. Não posso chegar. Creio, firmemente, no que
Marcelo gostaria de dizer, aplicando a mim os ensinamentos de
Gonzaga: “Geraldo, respeita a Olivetti de teu pai!” É foi com ele
mesmo, com o meu pai, o aprendizado de escrevinhador destas linhas.
Nos tempos de menino, as redações do colégio passavam pelo crivo
paterno e o velho, depois, nos meus primeiros discursos, nunca deixou
135
de oferecer um pitaco a mais ou um pitaco a menos. Frases compactas
e períodos curtos eram as recomendações que procuro seguir até hoje,
para não cansar a generosidade do leitor. E eu vou por aí, na trilha,
somente, do mestre Nilo, que completa agora 35 anos de batente neste
jornal, escrevendo todos os dias, o dia todo. Não tenho pretensões
maiores, além da afetuosa acolhida do leitor.
Sobre a questão, quer dizer a propósito do respeito a Januário,
que o Gonzagão manteve a vida inteirinha, conversei com Melquisedec
Pastor do Nascimento, bibliófilo deste recanto bucólico da Boa Vista.
E o mestre, ardente defensor dos livros envelhecidos, enaltecia a figura
usada, também, de Januário, do pai de cabelos brancos, de voz
enfraquecida e de corpo vergando, mas presente, sempre presente na
vida dos filhos. Luiz, que superou Januário, nunca deixou de respeitar
a sanfona, os oito baixos do pai.
Falar de Gonzaga é difícil, sem conhecer o que diz Jo de
Jesus Ferreira, em seu livro Luiz Gonzaga - O Rei do Baião, em cuja
obra o autor destaca o quanto a “...jovem Santana, uma moreninha
doce e singela, de andar faceiro e pele suave...”, inquietava o espírito
de Januário, menino, quase. É o Januário amante, sensual.
136
A Proximidade do Inexorável
Meu querido e mui amado pai, nesta hora de tanto padecer, de
tanto sofrer, num machucar constante, quase, da carne e do espírito,
inquieta-me a impotência do meu ser e do meu saber diante da tua dor.
A ciência que aprendi às custas do teu suor, derramado, gota a gota,
sobre o teclado da máquina de escrever, falece, frente à proximidade
do inexorável desgraçada proximidade. Sou agora uma desesperada
criatura e o meu desespero não pode mais chegar aos teus ouvidos,
como dantes. Não suportarias este problema, esta questão que guardo e
que vivo!
Tudo mudou, meu pai, em tão pouco tempo! Ontem, menino de
calças curtas, ouvia as tuas recomendações e às vezes nem as seguia,
peralta que fui. Depois, na metamorfose da existência, os conselhos
rejeitados na inquietude que marca a adolescência serviram de guia na
maturidade, para a escolha dos caminhos, das trilhas da vida. Adulto,
mesmo, quantas vezes fui à tua procura, quantas vezes ouvi a tua bem
pesada opinião! Hoje, pai, precisas de mim perto, bem perto, como se
dispusesse eu, pobre mortal, da porção mágica, quase, que restaura a
injúria orgânica, tão larga, já. Ah, se eu pudesse! Ah, se Deus me
ouvisse!
O meu sentimento é de profunda depressão, é de incapacidade
para enfrentar a perda que vai chegando, pouco a pouco, vergando-te o
corpo mais e mais, roubando-te a voz e incapacitando-te. Somente a
inteligência, atributo superior da criatura, está preservada, numa
lucidez impressionante dos fatos e das coisas, da percepção, inclusive,
desta proximidade com o imponderável. Ouvir de tua boca que
preferes o desenlace à vida assim, com as dores da doença, cortou-me
o coração, deu-me a mais absoluta certeza de que estamos perto, bem
próximos da eterna distância. Saber o quanto admiras, agora, os outros,
andando ágeis, de um quarto para outro, subindo e descendo escadas,
enquanto tu, que foste assim, quase não podes mais caminhar, leva-
me às lágrimas. É isso mesmo, pai, são os desígnios do Criador, é a
vida em sua seqüência cruel, amputando com lentidão as funções,
dificultando a normalidade das coisas.
Gostaria de poder, ainda, ouvir palavras tuas sobre as grandes
questões que enfrento daqui para frente no meu ofício, que foi sempre
137
o teu, o de transmitir o conhecimento, o de preparar a juventude, de
formar as pessoas. De conversar sobre o passado, sobre os nossos
passeios, de mãos dadas, ao velho Parque 13 de Maio, por alamedas da
infância; sobre o nosso debruçar diante do Capibaribe, vendo passar a
água célere e um barquinho pequenino. Ou sobre as nossas reuniões de
fim de ano, interrompidas agora, em 1991, numa antevisão tua do
futuro imediato, de um porvir diferente.
Guardo, ainda, o teu derradeiro telefonema, para falar de mim,
para dizer: “Meu filho! Você é um vitorioso!” As minhas vitórias, pai,
obtidas a sangue, suor e lágrimas, reconhecem na gênese primeira o teu
papel de condutor, de educador, dando-me a rota das coisas e
mostrando a turbulência dos mares da vida. Pena não possas mais
assistir ao esforço que faz teu filho agora, primogênito da prole, no
galgar de mais um degrau, em cuja base te vê, verdadeiramente.
Durmo contigo esta noite e te ofereço, ainda, o que puder, com
os olhos marejados, já, pois que pressinto o fim. Um dia, contigo, nas
brumas do eterno, outras estórias hão de rolar e vamos rir às bandeiras
despregadas, novamente!
PS: Texto escrito dois dias antes do falecimento de meu pai
Nilo Pereira.
138
Os Ares da Jaula
A jaula, como chamava meu pai o seu gabinete de trabalho em
casa está definitivamente aberta e desocupada não aprisiona mais as
idéias, permitindo a metamorfose da palavra e a gênese diária da
crônica bem cuidada, no peculiar estilo da ironia fina. Jaz ali, mesmo,
silente sobre a mesa, a velha máquina de escrever, sem tocar a sinfonia
das letras se aglutinando em vocábulos, construindo frases e reunindo
parágrafos. O papel não vai mais perder o branco virginal e servir de
veículo, como fez por seis décadas quase, ao pensamento materializado
no milagre da tinta, para brindar o leitor de todos os dias, chovesse ou
fizesse sol. A poesia e a prosa deixaram de tomar forma, agora, nas
quatro paredes da jaula, infelizmente!
A cadeira de balanço, de tantas leituras, tanto tempo, jaz
igualmente inerte, parada e não embala mais, em noites insones, o
entendimento fácil de romances, biografias e outras peças da literatura
deste mundo de Deus. Não embala, também, o manufaturar constante
de pensamentos, palavras e obras. Ali, naquele canto, um recanto,
reunia-se com os filhos, ouvindo angústias e escutando ansiedades,
participando, enfim, das inquietações de cada um, expondo a
experiência vivida em soluções alternativas para os grandes embates da
existência. Às vezes, ainda, mesmo que doente, contava estórias,
resgatando passados, falando de fatos, pessoas e coisas de sua longa
vivência. Dois dias antes de se encantar, relatou em detalhes
interessante passeio que fez às intimidades atlânticas, quando
declamou no local exato do naufrágio do vapor Bahia o poema de
Segundo Wanderley. E naquela noite repetiu o feito, buscando na
memória os versos e as rimas, falando da aurora boreal e de outros
encantos do poeta.
A família, por dentro de casa, vaga absorta, identificando
marcas que ficaram, observando na jaula os detalhes de tudo, dos livros
e dos móveis. Livros colecionados segundo a temática, alguns, ou
dispersos inteiramente, como cabe, sempre, ao escritor de boa pena. O
preciso lugar em que morreu Na jaula, onde viveu! –, sentado na
cadeira de balanço, depois de ter lido Josué Montello e os jornais do
dia. Atualizou-se antes de morrer, na literatura nacional e nos fatos,
para contar na dimensão eterna as coisas deste Brasil, o bom e o ruim
139
da pátria. O leito da sesta de todos os dias está vazio e o radio-receptor
desligado, apagado, verdadeiramente, sem veicular mais a música do
meio-dia, tocatas que embalaram o sono reparador para mais uma tarde
de labor.
Resta-me o consolo dos que ficaram, da mãe que não se afastou
um instante, sequer, do esposo de cinqüenta anos de convivência. Há
nove meses sem lazer, no batente da proximidade humana, é ela, agora
sempre ela quem forças na hora do pranto. Da família toda, de
Ana Carolina, em particular, caçula de minha casa, com 9 anos,
apenas, a colecionar com títulos próprios tudo o que sai na imprensa,
sem esquecer a forma carinhosa como era tratada: “Senhora Dona de
Carol!” E da esposa, fraterna amiga, lado a lado neste percalço.
Há um vazio muito grande nos ares da jaula!
140
Convívios com meu Pai
A roda do tempo essa forma humana de marcar os dias e as
noites é implacável. Vai girando e vai girando, antecipando os
segredos, as surpresas, muitas vezes, agradáveis, algumas, e
desagradáveis, tantas, do porvir e pior, distanciando os convívios. Eis
que se repete, agora, neste janeiro, o mês entrante do ano, a mesma
manhã, cálida, embora nublada, do encantamento de meu pai.
Momentos de minhas maiores perplexidades! Minutos dos horrores da
perda estabelecida e irreparável!
Por mais que haja distância ou por mais que a temporalidade
faça aumentar este já enorme vazio, não hei de olvidar a figura de meu
pai! Guardo comigo, no sacrário das lembranças, as minhas ligações
fortes na infância, os afetos e os carinhos, os afagos, também. O
tratamento, de tanta proxi-midade, enfim, que me dispensava, sendo eu
o primogênito da prole. Aquele menino de calças curtas e que vai se
achegando, agora, ao meio século de existência, conheceu o prazer dos
carrosséis e dos balanços, das burricas e dos barquinhos, levado
sempre pelas mãos paternas. Como conheceu o intrincado mundo das
redações dos jornais, da Folha da Manhã, onde pontificava o mestre
Silvino Lopes, e do Jornal do Commercio, de cujas oficinas trazia,
todas as vezes, o presente dos gráficos, o nome formatado em chumbo
para servir de carimbo. Era, pois, o único aluno da sala de aula a
ensaiar a assinatura com direito a carimbar em seguida.
Dos tempos da adolescência, igualmente, nos inícios das
indagações existenciais e nos começos das reflexões transcendentais.
Meditações conjuntas, tantas vezes, sobre amores emergentes e paixões
pungentes. Recomendações ouvidas e acatadas para desencadear
rupturas, vínculos desaconselhados, ligações, sobretudo, frágeis,
resultantes dos impulsos, mais do que do espírito, propriamente.
Outras, do mesmo jeito, nascidas dos afetos, contemplativas, até,
porém, sem as perspectivas de futuro ou de solidez no porvir.
Conflitos, também, sobre a criatura e o Criador, inclinações, inclusive,
para abraçar o sacerdócio, inibidas por ele – as inclinações –, diante da
pouca idade e do compromisso de perpetuidade, da vida inteirinha
voltada para as coisas da alma. Não teria sido um virtuoso sacerdote,
reconheço!
141
Na maturidade da vida, a relação com ares adultos.
Discordância, em certas ocasiões, quanto às posições políticas ou às
posturas socializantes, nunca socialistas. Mas, antes de tudo, o fervor
em reconhecer os poucos méritos do filho, nos telefonemas após ter
lido o artigo ou ter encontrado a crônica. “Gostaria de ecsrever como
você”, dizia, lisonjeando o primogênito, neófito sempre na arte. O
abraço amigo quando sabia da vitória, do ganho profissional, da
ascensão na carreira, do crescimento sendo materializado, mais e mais.
“Você é um vitorioso”, me disse certa vez, ao saber de minha eleição
para cargo importante na Universidade. E na hora do desalento, o
ombro para chorar as goas e contar as dores. Era com ele que
combinava determinadas ações mais fortes, reações necessárias no dia-
a-dia conturbado da vida. Tudo isso faz falta, esse apoio de todas as
horas, essa presença, esse convívio! Às vezes, ocorre-me, ainda, dois
anos, já, depois de seu encantamento, ter o ímpeto de discar o seu
número de telefone e contar as últimas. O velho amigo que encontrei
ou um fato auspicioso. Nada mais é possível, infelizmente, desde
aquele 23 de janeiro!
E assim é a vida! A roda do tempo vai girando, vai girando e
distanciando os convívios!
142
Barão de Guaporé
Todos os anos, agora, quando janeiro vai findando e as férias se
acabando, volta ao pensamento a imagem de meu pai Nilo Pereira –,
de seus últimos dias, de suas despedidas, enfim! Este ano, porém,
quinto aniversário daquele encantamento paterno, , a 23 do mês,
ocorre-me lembrar de outras coisas, menos dos sofrimentos e mais dos
bons convívios, dos momentos salutares, das conversas e dos casos,
dos personagens, até, e dos enredos das histórias! Nilo era, sobretudo,
um contador de histórias, bastava um mote, que fosse, para
imediatamente buscar nas raízes da memória, um fato ou um ato,
contanto que ilustrasse a hora e a convivência. Meu pai conheceu
muitos, do acendedor de lampiões Boca de Ur e do molecote de
rua – Manoel Batata –, ao Presidente da República – João Café Filho e
outros. Falava sobre todos, sem esquecer da Nega Maluca dos
carnavais potiguares, mulher que mesclava o medo à sedução,
certamente.
De Boca de Ur, que às seis da noite, todos os dias, acendia,
com a sua tocha incandescente, os lampiões todos do Ceará-Mirim,
contava a reação quando da chegada da luz elétrica. Ora, a população
toda esperou o instante mágico e viveu a perplexidade do avanço, mas
o homem não, reagiu de forma diferente. Vendo o clarão todo, disse,
simplesmente: “Ah! É isso! Pensei que fosse coisa melhor!
Desdenhou da técnica, porque o adiantamento traz sempre a dor da
perda, como sendo um contraponto necessário ao crescimento e ao
desenvol-vimento. No caso em particular, trouxe o desemprego do
acendedor de lampiões. Manoel Batata era um artífice no trabalho
com o flandre e juntamente com Nilo montava os caminhões de
brinquedo do lúdico de suas infâncias. Carregavam de areia esses
veículos minúsculos e trafegavam nos caminhos do terreiro, que são as
estradas do imaginário, tantas vezes. Tinham ferramentas apropriadas,
inclusive, para o corte do vidro com que faziam os faróis, razão para a
beleza das peças e o orgulho que carregava dessa metalúrgica mirim!
A Nega Maluca reinava, somente, no chamado tríduo momesco
e fazia a meninada correr, cantando: “Eu plantei Maxixe/Nasceu
Quiabo/ Menina Pequenina/Do Cabelo Arrepiado ... Dentre as lições
todas dos tempos de criança, aprendi essa toada, das antigas ruas de
143
meu pai, de seus folguedos e de suas carreiras amedrontadas, mas
lúdicas. De João Café Filho, finalmente, contava muitas, mas tinha
particular predileção pela visita que fizera ao conterrâneo preso, na
Fortaleza dos Reis Magos, em Natal. Nilo foi dos poucos amigos que
por estiveram, levando conforto ao ilustre filho da terra, detido
assim, após um movimento revolucionário. Contava isso com a
satisfação dos homens fiéis, daqueles que ignoram a situação da hora,
que desconsideram o risco e sobretudo desprezam a perda do poder e
da riqueza. Café, na verdade, fora pobre, sempre, investido ou não do
cargo que exerceu. Mas, especialmente, repetia o fato e o feito para
mostrar aos filhos a importância da amizade e da fidelidade, da
proximidade, enfim, com os deserdados pelos direitos fundamentais da
cidadania! Assim, sustentou as amizades todas, na saúde e na doença,
na riqueza e na pobreza!
Grande ligação, porém, teve com Luís da Câmara Cascudo, o
Cascudão, pai de outro enorme, também, o Cascudinho, desterrado, da
mesma forma, como Nilo, aqui no Recife. O mestre Cascudo tratava
Nilo por Bao do Guaporé, uma alusão à casa-grande do engenho em
que passara parte da infância, fazendo questão de grafar, nos envelopes
da correspondência, o tulo imaginário. Um belo dia, o carteiro me
indagou: “O seu pai é barão?” Não houve como explicar o contrário ou
justificar detalhes da vinculação potiguar, rebuscando as origens. A
saudação dos dois, nos encontros em Natal, era interessante, pois que
repetitivamente verbalizavam no ouvido, um do outro: “Bó, Bó, Bó...
Cinco, seis, oito, dez vezes! O nosso Marcos Vilaça, figura que de
Limoeiro tomou as asas do mundo, adotou a forma peculiar de saudar e
se dirigia a Nilo Pereira assim, como o Cascudão! Dia desses me
emocionei, confesso, quando o Cascudinho cumprimentou-me dessa
forma, com o “Bó” dos encontros paternos, em número
suficientemente capaz de resgatar vínculos de amizade e admiração.
Certa vez, no entanto, Nilo estava em Natal e engraxava os
sapatos numa rua da cidade, não sendo ali muito bem tratado pelo
homem da graxa e da escova. Eis que passa um transeunte qualquer e
confunde meu pai com um militar, fazendo, então, ruidosa saudação ao
general de ocasião. Ora, o tratamento mudou e ao final, na hora do
pagamento, ouviu daquele artífice do brilho o seguinte: “General não
paga!” E não houve jeito! Mesmo se desvinculando da patente e dos
144
galões, terminou sem despender o metal, que é vil, sempre! Pior
quando desceu de um carro, durante uma crise brutal de labirintite,
percebendo o comentário: “Um homem desse! Velho já! Bêbado a essa
hora!” Meu pai tinha horror a álcool e nunca passou da sangria aos
domingos, mas absorveu a crítica, renegando a idade e o tempo, mas
sobretudo renegando o trato alheio!
E hoje, o Barão do Guaporé trafega nas brumas do tempo,
contando histórias nas nuvens, que são paradas obrigatórias no infinito
das coisas. Lugar de se fiar conversa na eternidade da vida. Nilo, que se
encantou na emergência de muitos avanços, se atualiza, então, com a
modernidade e de longe olha o fax e observa a internet, sem
compreender bem o que é o telefone celular. Descobre, afinal, que
perdeu, por pouco, o computador, substituindo a máquina de escrever e
servindo para tudo e a todos!
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