LEAR - Ouve-me, biltre! Por teu dever de vassalagem, ouve-me! Já que tentaste provocar a quebra de
nosso voto - o que jamais fizemos - e com teimoso orgulho te meteste entre nossa sentença e nosso trono
- o que não pode suportar a nossa natureza, nem menos nosso posto - de pé nosso poder, toma tua paga:
cinco dias te damos, porque possas contra os males do mundo premunir-te; ao sexto voltarás o dorso
odioso a todo o nosso reino; e se no décimo esse corpo banido for achado dentro de nossas terras, esse
instante será tua morte. Já daqui! Por Júpiter, não haverá revogação agora.
KENT - Adeus, rei. Declarar quero a verdade: o exílio é aqui, e longe, a liberdade.
(A Cordélia.)
Possam os deuses te amparar, menina, cujo pensar com o bom discurso afina.
(A Regane e Goneríl.)
Que por bons atos sejam confirmados vossos largos discursos e empolados. - Kent, assim, se despede dos
presentes e a novas terras leva os pés dolentes.
(Sai.)
(Fanfarra. Volta Gloster com França, Burgúndia e pessoas do séqüito.)
GLOSTER - Senhor, França e Burgúndia estão presentes.
LEAR - Milorde de Burgúndia, primeiramente a vós nos dirigimos, que sois rival, com este soberano, na
corte à nossa filha. Qual o mínimo que exigis como dote e em cuja falta desistis do pedido?
BURGÚNDIA - Muito nobre majestade, não peço nada acima do que já ofereceu Vossa Grandeza, que
menos não dará.
LEAR - Nobre Burgúndia, quando cara nos era, nós a tínhamos nesse preço; mas ora baixou muito.
Senhor, ali está ela. Se algum traço dessa coisinha de nenhum realce ou até mesmo ela toda, redobrada de
nosso desfavor, sem mais acréscimo, pode do agrado ser de Vossa Graça: ela aqui está; pertence-vos.
BURGÚNDIA - Ignoro que responder.
LEAR - Quereis, com as faltas todas que lhe são próprias, sem nenhum amigo, adotada por nosso recente
ódio, com toda nossa maldição por dote, expulsada por nosso juramento, levá-la ou recusá-la?
BURGÚNDIA - Real senhor, perdão; mas nessas condições, é claro, ninguém faz uma escolha.
LEAR - Então deixai-a, senhor; porque vos assevero, em nome do poder que me criou, que toda a sua
fortuna é o que vos disse. (A França.) Vós, potente soberano, de vosso amor não quero tão longe me
afastar, que almeje ver-vos unido a quem odeio. Assim, suplico-vos desviar vossa afeição para um objeto
mais digno do que a mísera criatura que a natureza quase se envergonha de declarar por sua.
FRANÇA - É muito estranho que aquela que, até há pouco, era a mais rara jóia de vosso afeto, o tema
excelso de vossos elogios, vosso bálsamo na velhice, a melhor, a mais querida, pudesse cometer assim,
de pronto, um crime tão monstruoso que desmanche tantas pregas da graça. Com certeza mui contrário à
natura foi seu crime, e muito a deturpou, se vosso afeto tão notório não é o que antes era. Acreditar tal
coisa a seu respeito, só com o auxílio da fé, pois, sem milagre, a isso a razão jamais me levaria.
CORDÉLIA - Suplico entanto a Vossa Majestade - pois careço dessa arte lisa e untuosa de falar em
contrário ao próprio intento, pois o que fazer quero já realizo, mesmo antes de falar - que deixeis claro
não ter sido nenhum vício infamante, velhacaria alguma, ato impudico, nem qualquer passo menos