PRIMEIRO ATOR: Qual será, príncipe?
HAMLET: De uma feita ouvi-te declamar um trecho que nunca foi levado à cena, ou, quando muito, uma
única vez. Lembra-me perfeitamente; a peça não agradou aos milhões; era caviar jogado ao povo. Mas,
segundo o meu modo de ver e o de pessoas, cuja opinião no assunto é mais autorizada do que a minha,
era uma peça excelente, com boa disposição de cenas e escrita com tanta sobriedade quanta argúcia.
Recorda-me ter ouvido a alguém que os versos não continham nada de picante para torná-los aceitáveis,
e que nenhuma expressão traía afetação por parte do autor; o estilo foi qualificado de honesto, tão sadio
quanto agradável, e aprazível sem rebuscamentos. Apreciava muitíssimo certa passagem, e fala de Enéias
a Dido, especialmente quando ele trata do assassínio de Príamo. Se a tens de memória... Começa pela
frase... Espera um pouco... Deixa ver...
Como tigre da Hircânia, o feroz Pirro... Não, não é isso. Começa com Pirro: Esse Pirro feroz, que armas
trazia da cor do próprio intenso, igual à noite. que o envolvia no ventre do cavalo sinistro e malfadado, a
negra forma com brasões mais sinistros ora cobre: da cabeça até aos pés é todo rubro; enfeita-o
horrendamente o triste sangue dos pais, das mães, das filhas, dos filhinhos, ressecado nas ruas abrasadas,
que emprestam uma luz maldita e bárbara a seus crimes nefandos. A arder de ira, empastado de sangue
coagulado, os olhos a brilharem quais carbúnculos, Pirro, o maldito, busca o venerando Príamo. Agora
prossegue.
P0LÔNI0: Por Deus, príncipe; muito bem declamado; boa cadência e discrição.
PRIMEIRO ATOR: Conseguiu por fim achá-lo, a lutar sem vantagem contra os gregos. Sua antiquada
espada, ao braço infensa, fica onde cai, rebelde a seus mandados. Em duelo desigual, Pirro o acomete;
mas ao simples sibilo de seu gládio, tomba o velho enervado. Exânime, Ílio pareceu ressentir-se desse
golpe: dobra até à base o pico de suas chamas, e com medonho estrondo prende o ouvido de Pirro. Vede!
A espada que já vinha baixando sobre a cândida cabeça do venerando Príamo, parece que o próprio ar a
detém: desta arte, Pirro, qual tirano em pintura, fica imóvel, como que neutro entre a vontade e o braço,
sem fazer nada.
Mas, tal como pouco antes das tormentas silêncio em todo o céu, calmas as nuvens, os ventos sem falar,
e a terra embaixo tão quieta quanto a morte - quando o raio de súbito fuzila: assim, depois da parada de
Pirro, a despertada vingança o compeliu para outros feitos. Os malhos dos Ciclopes nunca as armas de
Marte percutiram, fabricadas para ampararem sempre, com tão pouco remorso, como bate a espada rubra
de Pirro sobre Príamo. Fortuna! fora, meretriz! Ó deuses do conselho geral, tirai-lhe a força! Quebrai
pinas e raios de seu carro, e fazei do alto céu rolar o cubo para o centro do inferno!
P0LÔNI0: Acho muito comprido.
HAMLET: Enviai-a, então, ao barbeiro, para que a corte juntamente com vossa barba. Continua, peço-te
eu; a não ser em farsas ou histórias obscenas, ele adormece logo. Prossegue; cheguemos logo a Hécuba.
PRIMEIRO ATOR: Oh! Quem visse a rainha encapuzada!
POLÔNI0: Não fica mal; rainha encapuzada; vai muito bem.
PRIMEIRO ATOR: Descalça corre, as chamas ameaçando; as lágrimas a cegam; por diadema cinge
apenas um trapo, e, como vestes, sobre os lombos delgados e sofridos, um cobertor, às pressas apanhado.
Quem visse tal, com língua envenenada, acusara a Fortuna de traidora. Mas se os deuses, nessa hora, a
contemplassem, quando ela a Pirro deparou no esporte maligno de cortar do esposo os membros: o
clamor subitâneo de sua mágoa - se os mortais não lhe são de todo estranhos - faria enlanguescer os