admissão do Uno decorressem as mais escarninhas conseqüências, que invalidam
de raiz sua doutrina. É um escrito de combate contra os que defendem a existência
do múltiplo, em que os golpes são devolvidos com usura e com a intenção
manifesta de mostrar como decorrem conseqüências muito mais absurdas da
hipótese do múltiplo, por eles defendida, do que da do Uno, para quantos a
examinarem a preceito. O trabalho é produto do pendor para as disputas mito
próprio do jovens; porém alguém mo roubou depois de pronto, antes de se me ter
facultado o ensejo de considerar a sós comigo, se conviria ou não entregá-lo ao
público. Foi o que não percebeste, Sócrates, por admitires que ele houvesse sido
composto sem aquele espírito combativo, mas com a ambição da idade madura. No
mais, conforme disse, tua apreciação não foi de todo má.
III - Bem; aceito a explicação, teria falado Sócrates, e admito que seja
conforme declaraste. Porém dize-me o seguinte: não reconheces a existência em si
mesma da idéia de semelhança, e a de uma outra, oposta a essa, de dissemelhança
em si mesma, e que delas duas eu e tu participamos e todas as coisas a que damos a
denominação de múltiplo? E que as coisas que participam da semelhança se tornam
semelhantes, a esse respeito e na medida em que participam da dissemelhança, e
uma e outra coisa as que participam das duas a um só tempo? Se todas as coisas
participam dessas idéias, contrárias, e, pelo próprio fato dessa participação, ficam,
no mesmo passo, semelhantes e dissemelhantes a elas mesmas: que há de
surpreendente em tudo isso? Se alguém mostrasse semelhantes no ato de se
tornarem dissemelhantes, ou o inverso: dissemelhantes passando a ser semelhantes,
isso sim, eu tomaria como verdadeira maravilha! Porém dizer que as coisas que
participam de uma e de outra apresentam ambos os caracteres, é o que não se me
afigura, Zenão, contraditório; é como se alguém afirmasse que tudo é um pela
participação da unidade e que esse mesmo todo é múltiplo por sua participação da
pluralidade. Mas se me provassem que é múltipla a simples unidade, ou que o
múltiplo é um: eis o que me surpreenderia sobremodo. E tudo o mais pelo mesmo
estilo. Se me demonstrassem, outrossim, que os gêneros e as espécies apresentam
em sua esfera própria esses caracteres opostos, haveria de que maravilhar-me. Mas,
que há de extraordinário dizer alguém que eu sou ao mesmo tempo uno e múltiplo?
Seria o caso, para provar minha pluralidade, de mostrar a diferença entre o lado
direito e o esquerdo, a frente e o dorso, a porção superior e a inferior, pois de
muitas maneiras, quero crer, participo da pluralidade. Ou então, para insistir na
unidade, dizer que eu sou um dos sete indivíduos aqui presentes, visto participar da
unidade. De onde se colhe que as duas assertivas são igualmente verdadeiras. A
este modo, sempre que um se abalança a demonstrar a simultaneidade do Uno e do
múltiplo em coisas com seixos, pedaços de madeira e outras mais da mesma
natureza, dizemos que essa pessoa provou simplesmente a existência de unidades e
da multiplicidade, não que o Uno seja múltiplo, e o inverso: o múltiplo, Uno. Com
isso, não terá dito nada extraordinário, senão algo em que todos convirão. Porém se
alguém, como afirmei neste momento, começar por distinguir umas das outras as
idéias de si mesmas: semelhança e dissemelhança, pluralidade e unidade, repouso e
movimento, e tudo o mais do mesmo gênero , e demonstrar, em seguida, que todas
elas são capazes de unir-se umas com as outras o de separar-se: isto sim, Zenão,
continuou a falar, é que me deixaria contentíssimo. A meu parecer, argumentaste
neste domínio com bastante firmeza e decisão. Porém num ponto, torno a dizer, e
que muito mais me alegrara, seria poder um demonstrar que tais perplexidades se