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Versão eletrônica do livro “Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da
Natureza”
Autor: Francis Bacon
Tradução e notas: José Aluysio Reis de Andrade
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/
A distribuição desse arquivo (e de outros baseados nele) é livre, desde que se dê os créditos da
digitalização aos membros do grupo Acrópolis e se cite o endereço da homepage do grupo no corpo
do texto do arquivo em questão, tal como está acima.
NOVUM ORGANUM
Francis Bacon
PREFÁCIO DO AUTOR
Todos aqueles que ousaram proclamar a natureza como assunto exaurido para o
conhecimento, por convicção, por vezo professoral ou por ostentação, infligiram
grande dano tanto à filosofia quanto às ciências. Pois, fazendo valer a sua
opinião, concorreram para interromper e extinguir as investigações. Tudo mais
que hajam feito não compensa o que nos outros corromperam e fizeram
malograr. Mas os que se voltaram para caminhos opostos e asseveraram que
nenhum saber é absolutamente seguro, venham suas opiniões dos antigos
sofistas, da indecisão dos seus espíritos ou, ainda, de mente saturada de
doutrinas, alegaram para isso razões dignas de respeito. Contudo, não
deduziram suas afirmações de princípios verdadeiros e, levados pelo partido e
pela afetação, foram longe demais. De outra parte, os antigos filósofos gregos,
aqueles cujos escritos se perderam, colocaram-se, muito prudentemente, entre a
arrogância de sobre tudo se poder pronunciar e o desespero da acatalepsia.
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Verberando com indignadas queixas as dificuldades da investigação e a
obscuridade das coisas, como corcéis generosos que mordem o freio,
perseveraram em seus propósitos e não se afastaram da procura dos segredos da
natureza. Decidiram, assim parece, não debater a questão de se algo pode ser
conhecido, mas experimentá-lo. Não obstante, mesmo aqueles, estribados
apenas no fluxo natural do intelecto, não empregaram qualquer espécie de regra,
tudo abandonando à aspereza da meditação e ao errático e perpétuo revolver da
mente.
Nosso método,
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contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de se
aplicar. Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o alcance exato
dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da mente, calcado
muito de perto sobre aqueles, abrindo e promovendo, assim, a nova e certa via
da mente, que, de resto, provém das próprias percepções sensíveis. Foi, sem
dúvida, o que também divisaram os que tanto concederam à dialética.
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Tornaram também manifesta a necessidade de escoras para o intelecto, pois
colocaram sob suspeita o seu processo natural e o seu movimento espontâneo.
Mas tal remédio vinha tarde demais, estando já as coisas perdidas e a mente
ocupada pelos usos do convívio cotidiano pelas doutrinas viciosas e pela mais
vã idolatria.
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Pois a dialética, com precauções tardias, como assinalamos, e em
nada modificando o andamento das coisas, mais serviu para firmar os erros que
descerrar a verdade. Resta, como única salvação, reempreender-se inteiramente
a cura da mente. E, nessa via, não seja ela, desde o início, entregue a si mesma,
mas permanentemente regulada, como que por mecanismos. Se os homens
tivessem empreendido os trabalhos mecânicos unicamente com as mãos, sem o
arrimo e a força dos instrumentos, do mesmo modo que sem vacilação atacaram
as empresas do intelecto, com quase apenas as forças nativas da mente, por
certo muito pouco se teria alcançado, ainda que dispusessem para o seu labor de
seus extremos recursos.
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Considere-se, por um momento, este exemplo que é como um espelho. Imagine-
se um obelisco de respeitável tamanho a ser conduzido para a magnificência de
um triunfo, ou algo análogo, e que devesse ser removido tão-somente pelas
mãos dos homens. Não reconheceria nisso o espectador prudente um ato de
grande insensatez? E esta não pareceria ainda maior se pelo aumento dos
operários se confiasse alcançar o que se pretendia? E, resolvendo fazer uso de
algum critério, se se decidisse pôr de lado os fracos e colocar em ação unica-
mente os robustos e vigorosos, esperando com tal medida lograr o propósito
colimado, não proclamaria o espectador estarem eles cada vez mais caminhando
para o delírio? E, se, ainda não satisfeitos, decidissem, por fim, os dirigentes
recorrer à arte atlética e ordenassem a todos se apresentarem logo, com as mãos,
os braços e os músculos untados e aprestados, conforme os ditames de tal arte:
não exclamaria o espectador estarem eles a enlouquecer, já agora com certo cál-
culo e prudência? E se, por outro lado, os homens se aplicassem aos domínios
intelectuais, com o mesmo pendor malsão e com aliança tão vã, por mais que
esperassem, seja do grande número e da conjunção de forças, seja da excelência
e da acuidade de seus engenhos; e, ainda mais, se recorressem, para o
revigoramento da mente, à dialética (que pode ser tida como uma espécie de
adestramento atlético), pareceriam, aos que procurassem formar um juízo
correto, não terem desistido ainda de usar, sem mais, o mero intelecto, apesar de
tanto esforço e zelo. E manifestamente impraticável, sem o concurso de
instrumentos ou máquinas, conseguir-se em qualquer grande obra a ser
empreendida pela mão do homem o aumento do seu poder, simplesmente, pelo
fortalecimento de cada um dos indivíduos ou pela reunião de muitos deles.
Depois de estabelecermos essas premissas, destacamos dois pontos de que
queremos os homens claramente avisados, O primeiro consiste em que sejam
conservados intactos e sem restrições o respeito e a glória que se votam aos
antigos, isso para o bom transcurso de nossos fados e para afastar de nosso
espírito contratempos e perturbações. Desse modo, podemos cumprir os nossos
propósitos e, ao mesmo tempo, recolher os frutos de nossa discrição. Com
efeito, se pretendemos oferecer algo melhor que os antigos e, ainda, seguir al-
guns caminhos por eles abertos, não podemos nunca pretender escapar à
imputação de nos termos envolvido em comparação ou em contenda a respeito
da capacidade de nossos engenhos. Na verdade, nada há aí de novo ou ilícito.
Por que, com efeito, não podemos, no uso de nosso direito que, de resto, é o
mesmo que o de todos , reprovar e apontar tudo o que, da parte daqueles,
tenha sido estabelecido de modo incorreto? Mas, mesmo sendo justo e legítimo,
o cotejo não pareceria entre iguais, em razão da disparidade de nossas forças.
Todavia, visto intentarmos a descoberta de vias completamente novas e
desconhecidas para o intelecto, a proposição fica alterada. Cessam o cuidado e
os partidos, ficando a nós reservado o papel de guia apenas, mister de pouca
autoridade, cujo sucesso depende muito mais da boa fortuna que da
superioridade de talento. Esta primeira advertência só diz respeito às pessoas. A
segunda, à matéria de que nos vamos ocupar.
É preciso que se saiba não ser nosso propósito colocar por terra as filosofias ora
florescentes ou qualquer outra que se apresente, com mais favor, por ser mais
rica e correta que aquelas. Nem, tampouco, recusamos às filosofias hoje aceitas,
ou a outras do mesmo gênero, que nutram as disputas, ornem os discursos,
sirvam o mister dos professores e que provejam as demandas da vida civil. De
nossa parte, declaramos e proclamamos abertamente que a filosofia que ofe-
recemos não atenderá, do mesmo modo, a essas coisas úteis. Ela não é de pronto
acessível, não busca através de prenoções a anuência do intelecto, nem
pretende, pela utilidade ou por seus efeitos, pôr-se ao alcance do comum dos
homens.
Que haja, pois talvez seja propício para ambas as partes, duas fontes de geração
e de propagação de doutrinas. Que haja igualmente duas famílias de cultores da
reflexão e da filosofia, com laços de parentesco entre si, mas de modo algum
inimigas ou alheia uma da outra, antes pelo contrário coligadas. Que haja,
finalmente, dois métodos, um destinado ao cultivo das ciências e outro
destinado à descoberta científica. Aos que preferem o primeiro caminho, seja
por impaciência, por injunções da vida civil, seja pela insegurança de suas
mentes em compreender e abarcar a outra via (este será, de longe, o caso da
maior parte dos homens), a eles auguramos sejam bem sucedidos no que
escolheram e consigam alcançar aquilo que buscam. Mas aqueles dentre os
mortais, mais animados e interessados, não no uso presente das descobertas já
feitas, mas em ir mais além; que estejam preocupados, não com a vitória sobre
os adversários por meio de argumentos, mas na vitória sobre a natureza, pela
ação; não em emitir opiniões elegantes e prováveis, mas em conhecer a verdade
de forma clara e manifesta; esses, como verdadeiros filhos da ciência, que se
juntem a nós, para, deixando para trás os vestíbulos das ciências, por tantos
palmilhados sem resultado, penetrarmos em seus recônditos domínios. E, para
sermos melhor atendidos e para maior familiaridade, queremos adiantar o
sentido dos termos empregados. Chamaremos ao primeiro método ou caminho
de Antecipação da Mente e ao segundo de Interpretação da Natureza.
Para algo mais chamamos a vossa atenção. Procuramos cercar nossas reflexões
dos maiores cuidados, não apenas para que fossem verdadeiras, mas também
para que não se apresentassem de forma incômoda e árida ao espírito dos
homens, usualmente tão atulhado de múltiplas formas de fantasia. Em
contrapartida, solicitamos dos homens, sobretudo em se tratando de uma tão
grandiosa restauração do saber e da ciência, que todo aquele que se dispuser a
formar ou emitir opiniões a respeito do nosso trabalho, quer partindo de seus
próprios recursos, da turba de autoridades, quer por meio de demonstrações
(que adquiriram agora a força das leis civis), não se disponha a fazê-lo de
passagem e de maneira leviana. Mas que, antes, se inteire bem do nosso tema; a
seguir, procure acompanhar tudo o que descrevemos e tudo a que recorremos;
procure habituar-se à complexidade das coisas, tal como é revelada pela
experiência; procure, enfim, eliminar, com serenidade e paciência, os hábitos
pervertidos, já profundamente arraigados na mente. Aí então, tendo começado o
pleno domínio de si mesmo, querendo, procure fazer uso de seu próprio juízo.
AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA E O REINO
DO HOMEM
LIVRO I
AFORISMOS
I
O homem, ministro e intérprete da natureza, faz e entende tanto quanto constata,
pela observação dos fatos ou pelo trabalho da mente, sobre a ordem da natureza;
não sabe nem pode mais.
II
Nem a mão nua nem o intelecto, deixados a si mesmos, logram muito. Todos os
feitos se cumprem com instrumentos e recursos auxiliares, de que dependem,
em igual medida, tanto o intelecto quanto as mãos. Assim como os instrumentos
mecânicos regulam e ampliam o movimento das mãos, os da mente aguçam o
intelecto e o precavêm.
III
Ciência e poder do homem coincidem, uma vez que, sendo a causa ignorada,
frustra-se o efeito. Pois a natureza não se vence, se não quando se lhe obedece.
E o que à contemplação apresenta-se como causa é regra na prática.
IV
No trabalho da natureza o homem não pode mais que unir e apartar os corpos. O
restante realiza-o a própria natureza, em si mesma.
V
No desempenho de sua arte, costumam imiscuir-se na natureza o tísico, o
matemático, o médico, o alquimista e o mago. Todos eles, contudo no
presente estado das coisas , fazem-no com escasso empenho e parco sucesso.
VI
Seria algo insensato, em si mesmo contraditório, estimar poder ser realizado o
que até aqui não se conseguiu fazer, salvo se se fizer uso de procedimentos
ainda não tentados.
VII
As criações da mente e das mãos parecem sobremodo numerosas, quando vistas
nos livros e nos ofícios. Porém, toda essa variedade reside na exímia sutileza e
no uso de um pequeno número de fatos já conhecidos e não no número dos
axiomas.
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VIII
Mesmo os resultados até agora alcançados devem-se muito mais ao acaso e a
tentativas que à ciência. Com efeito, as ciências que ora possuímos nada mais
são que combinações de descobertas anteriores. Não constituem novos métodos
de descoberta nem esquemas para novas operações.
IX
A verdadeira causa e raiz de todos os males que afetam as ciências é uma única:
enquanto admiramos e exaltamos de modo falso os poderes da mente humana,
não lhe buscamos auxílios adequados.
X
A natureza supera em muito, em complexidade, os sentidos e o intelecto. Todas
aquelas belas meditações e especulações humanas, todas as controvérsias são
coisas malsãs. E ninguém disso se apercebe.
XI
Tal como as ciências, de que ora dispomos, são inúteis para a invenção de novas
obras, do mesmo modo, a nossa lógica atual é inútil para o incremento das
ciências.
XII
A lógica tal como é hoje usada mais vale para consolidar e perpetuar erros,
fundados em noções vulgares, que para a indagação da verdade, de sorte que é
mais danosa que útil.
XIII
O silogismo não é empregado para o descobrimento dos princípios das ciências;
é baldada a sua aplicação a axiomas intermediários, pois se encontra muito
distante das dificuldades da natureza. Assim é que envolve o nosso
assentimento, não as coisas.
XIV
O silogismo consta de proposições, as proposições de palavras, as palavras são
o signo das noções. Pelo que, se as próprias noções (que constituem a base dos
fatos) são confusas e temerariamente abstraídas das coisas, nada que delas
depende pode pretender solidez. Aqui está por que a única esperança radica na
verdadeira indução.
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Não há nenhuma solidez nas noções lógicas ou físicas. Substância, qualidade,
ação, paixão, nem mesmo ser, são noções seguras. Muito menos ainda as de
pesado, leve, denso, raro, úmido, seco, geração, corrupção, atração, repulsão,
elemento, matéria, forma e outras do gênero. Todas são fantásticas e mal
definidas.
XVI
As noções das espécies inferiores, como as de homem, cão, pomba, e as de
percepção imediata pelos sentidos, como quente, frio, branco, negro, não estão
sujeitas a grandes erros. Mas mesmo estas, devido ao fluxo da matéria e
combinação das coisas, também por vezes se confundem. Tudo o mais que o
homem até aqui tem usado são aberrações, não foram abstraídas e levantadas
das coisas por procedimentos devidos.
XVII
Não é menor que nas noções o capricho e a aberração na constituição dos
axiomas. Vigem aqui os mesmos princípios da indução vulgar. E isso ocorre em
muito maior grau nos axiomas e proposições que se alcançam pelo silogismo.
XVIII
Os descobrimentos até agora feitos de tal modo são que, quase só se apoiam nas
noções vulgares. Para que se penetre nos estratos mais profundos e distantes da
natureza, é necessário que tanto as noções quanto os axiomas sejam abstraídos
das coisas por um método mais adequado e seguro, e que o trabalho do intelecto
se torne melhor e mais correto.
XIX
Só há e só pode haver duas vias para a investigação e para a descoberta da
verdade. Uma, que consiste no saltar-se das sensações e das coisas particulares
aos axiomas mais gerais e, a seguir, descobrirem-se os axiomas intermediários a
partir desses princípios e de sua inamovível verdade. Esta é a que ora se segue.
A outra, que recolhe os axiomas dos dados dos sentidos e particulares,
ascendendo contínua e gradualmente até alcançar, em último lugar, os
princípios de máxima generalidade. Este é o verdadeiro caminho, porém ainda
não instaurado.
XX
Na primeira das vias o intelecto deixado a si mesmo acompanha e se fia nas
forças da dialética. Pois a mente anseia por ascender aos princípios mais gerais
para aí então se deter. A seguir, desdenha a experiência. E tais males são
incrementados pela dialética, na pompa de suas disputas.
XXI
O intelecto, deixado a si mesmo, na mente sóbria, paciente e grave, sobretudo se
não está impedida pelas doutrinas recebidas, tenta algo na outra via, na
verdadeira, mas com escasso proveito. Porque o intelecto não regulado e sem
apoio é irregular e de todo inábil para superar a obscuridade das coisas.
XXII
Tanto uma como a outra via partem dos sentidos e das coisas particulares e
terminam nas formulações da mais elevada generalidade. Mas é imenso aquilo
em que discrepam. Enquanto que uma perpassa na carreira pela experiência e
pelo particular, a outra aí se detém de forma ordenada, como cumpre. Aquela,
desde o início, estabelece certas generalizações abstratas e inúteis; esta se eleva
gradualmente àquelas coisas que são realmente as mais comuns na natureza.
XXIII
Não é pequena a diferença existente entre os ídolos da mente humana e as idéias
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da mente divina, ou seja, entre opiniões inúteis e as verdadeiras marcas e
impressões gravadas por Deus nas criaturas. tais como de fato se encontram.
XXIV
De modo algum se pode admitir que os axiomas constituídos pela argumentação
valham para a descoberta de novas verdades, pois a profundidade da natureza
supera de muito o alcance do argumento. Mas os axiomas reta e ordenadamente
abstraídos dos fatos particulares, estes sim, facilmente indicam e designam
novos fatos particulares e, por essa via, tornam ativas as ciências.
XXV
Os axiomas ora em uso decorrem de experiência rasa e estreita e a partir de
poucos fatos particulares, que ocorrem com freqüência; e estão adstritos à sua
extensão. Daí não espantar que não levem a novos fatos particulares. Assim, se
caso alguma instância
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não antes advertida ou cogitada se apresenta, graças a
alguma distinção frívola procura-se salvar o axioma, quando o mais verdadeiro
seria corrigi-lo.
XXVI
Para efeito de explanação, chamamos à forma ordinária da razão humana voltar-
se para o estudo da natureza de antecipações da natureza (por se tratar de
intento temerário e prematuro). E à que procede da forma devida, a partir dos
fatos, designamos por interpretação da natureza.
XXVII
As antecipações são fundamento satisfatório para o consenso,
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pois, se todos os
homens se tornassem da mesma forma insanos, poderiam razoavelmente
entender-se entre si.
XXVIII
Ainda mais, as antecipações são de muito mais valia para lograr o nosso
assentimento, que as interpretações; pois, sendo coligidas a partir de poucas
instâncias e destas as que mais familiarmente ocorrem, desde logo empolgam o
intelecto e enfunam a fantasia; enquanto que as interpretações, pelo contrário,
sendo coligidas a partir de múltiplos fatos, dispersos e distanciados, não podem,
de súbito, tocar o intelecto, de tal modo que, à opinião comum, podem parecer
quase tão duras e dissonantes quanto os mistérios da fé.
XXIX
Nas ciências que se fundam nas opiniões e nas convenções é bom o uso das
antecipações e da dialética, já que se trata de submeter o assentimento e não as
coisas.
XXX
Mesmo que se reunissem, se combinassem e se conjugassem os engenhos de
todos os tempos, não se lograria grande progresso nas ciências, através das
antecipações, porque os erros radicais perpetrados na mente, na primeira
disposição, não se curariam nem pela excelência das operações nem pelos
remédios subseqüentes.
XXXI
Vão seria esperar-se grande aumento nas ciências pela superposição ou pelo
enxerto do novo sobre o velho. É preciso que se faça uma restauração da
empresa a partir do âmago de suas fundações, se não se quiser girar
perpetuamente em círculos, com magro e quase desprezível progresso.
XXXII
A glória dos antigos, como a dos demais, permanece intata, pois não se
estabelecem comparações entre engenhos e capacidades, mas de métodos. Não
nos colocamos no papel de juiz, mas de guia.
XXXIII
Seja dito claramente que não pode ser formulado um juízo correto nem sobre o
nosso método nem sobre as suas descobertas pelo critério corrente as
antecipações; pois não nos podem pedir o acolhimento do juízo cuja própria
base está em julgamento.
XXXIV
Não é, com efeito, empresa fácil transmitir e explicar o que pretendemos,
porque as coisas novas são sempre compreendidas por analogia com as antigas.
XXXV
Disse Bórgia, da expedição dos franceses à Itália, que vieram com o giz nas
mãos para marcar os seus alojamentos, e não com armas para forçar passagem.
Nosso propósito é semelhante: que a nossa doutrina se insinue nos espíritos
idôneos e capazes. Não fazemos uso da refutação quando dissentimos a respeito
dos princípios, dos próprios conceitos e formas da demonstração.
XXXVI
Resta-nos um único e simples método, para alcançar os nossos intentos: levar os
homens aos próprios fatos particulares e às suas séries e ordens, a fim de que
eles, por si mesmos, se sintam obrigados a renunciar às suas noções e comecem
a habituar-se ao trato direto das coisas.
XXXVII
Coincidem, até certo ponto, em seu inicio, o nosso e o método daqueles que
usaram da acatalepsia. Mas nos pontos de chegada, imensa distância nos separa
e opõe. Aqueles, com efeito, afirmaram cabalmente que nada pode ser
conhecido. De nossa parte, dizemos que não se pode conhecer muito acerca da
natureza, com auxílio dos procedimentos ora em uso. E, indo mais longe, eles
destroem a autoridade dos sentidos e do intelecto, enquanto que nós, ao
contrário, lhes inventamos e subministramos auxílios.
XXXVIII
Os ídolos e noções falsas que ora ocupam o intelecto humano e nele se acham
implantados não somente o obstruem a ponto de ser difícil o acesso da verdade,
como, mesmo depois de seu pórtico logrado e descerrado, poderão ressurgir
como obstáculo à própria instauração das ciências, a não ser que os homens, já
precavidos contra eles, se cuidem o mais que possam.
XXXIX
São de quatro gêneros os ídolos que bloqueiam a mente humana. Para melhor
apresentá-los, lhes assinamos nomes, a saber: Ido/os da Tribo; Ido/os da
Caverna; Ídolos do Foro e Ido/os do Teatro.
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XL
A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o
remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos. Será, contudo, de grande
préstimo indicar no que consistem, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver
com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos
com a dialética vulgar.
XLI
Os ídolos da tribo estão fundados na própria natureza humana, na própria tribo
ou espécie humana. E falsa a asserção de que os sentidos do homem são a
medida das coisas. Muito ao contrário, todas as percepções, tanto dos sentidos
como da mente, guardam analogia com a natureza humana e não com o
universo. O intelecto humano é semelhante a um espelho que reflete
desigualmente os raios das coisas e, dessa forma, as distorce e corrompe.
XLII
Os ídolos da caverna
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são os dos homens enquanto indivíduos. Pois, cada um
além das aberrações próprias da natureza humana em geral tem uma
caverna ou uma cova que intercepta e corrompe a luz da natureza: seja devido à
natureza própria e singular de cada um; seja devido à educação ou conversação
com os outros; seja pela leitura dos livros ou pela autoridade daqueles que se
respeitam e admiram; seja pela diferença de impressões, segundo ocorram em
ânimo preocupado e predisposto ou em ânimo equânime e tranqüilo; de tal
forma que o espírito humano tal como se acha disposto em cada um é
coisa vária, sujeita a múltiplas perturbações, e até certo ponto sujeita ao acaso.
Por isso, bem proclamou Heráclito
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que os homens buscam em seus pequenos
mundos e não no grande ou universal.
XLIII
Há também os ídolos provenientes, de certa forma, do intercurso e da
associação recíproca dos indivíduos do gênero humano entre si, a que
chamamos de ídolos do foro devido ao comércio e consórcio entre os homens.
Com efeito, os homens se associam graças ao discurso,
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e as palavras são
cunhadas pelo vulgo. E as palavras, impostas de maneira imprópria e inepta,
bloqueiam espantosamente o intelecto. Nem as definições, nem as explicações
com que os homens doutos se munem e se defendem, em certos domínios,
restituem as coisas ao seu lugar. Ao contrário, as palavras forçam o intelecto e o
perturbam por completo. E os homens são, assim, arrastados a inúmeras e
inúteis controvérsias e fantasias.
XLIV
Há, por fim, ídolos que imigraram para o espírito dos homens por meio das
diversas doutrinas filosóficas e também pelas regras viciosas da demonstração.
São os ídolos do teatro: por parecer que as filosofias adotadas ou inventadas são
outras tantas fábulas, produzidas e representadas, que figuram mundos fictícios
e teatrais. Não nos referimos apenas às que ora existem ou às filosofias e seitas
dos antigos. Inúmeras fábulas do mesmo teor se podem reunir e compor, por
que as causas dos erros mais diversos são quase sempre as mesmas. Ademais,
não pensamos apenas nos sistemas filosóficos, na universalidade, mas também
nos numerosos princípios e axiomas das ciências que entraram em vigor, mercê
da tradição, da credulidade e da negligência. Contudo, falaremos de forma mais
ampla e precisa de cada gênero de ídolo, para que o intelecto humano esteja
acautelado.
XLV
O intelecto humano, mercê de suas peculiares propriedades, facilmente supõe
maior ordem e regularidade nas coisas que de fato nelas se encontram. Desse
modo, como na natureza existem muitas coisas singulares e cheias de
disparidades, aquele imagina paralelismos, correspondências e relações que não
existem. Daí a suposição de que no céu todos os corpos devem mover-se em
círculos perfeitos, rejeitando por completo linhas espirais e sinuosas, a não ser
em nome. Daí, do mesmo modo, a introdução do elemento fogo com sua órbita,
para constituir a quaderna com os outros três elementos que os sentidos
apreendem. Também de forma arbitrária se estabelece, para os chamados
elementos, que o aumento respectivo de sua rarefação se processa em proporção
de um para dez, e outras fantasias da mesma ordem. E esse engano prevalece
não apenas para elaboração de teorias como também para as noções mais
simples.
XLVI
O intelecto humano, quando assente em uma convicção (ou por já bem aceita e
acreditada ou porque o agrada), tudo arrasta para seu apoio e acordo. E ainda
que em maior número, não observa a força das instâncias contrárias, despreza-
as, ou, recorrendo a distinções, põe-nas de parte e rejeita, não sem grande e
pernicioso prejuízo. Graças a isso, a autoridade daquelas primeiras afirmações
permanece inviolada. E bem se houve aquele que, ante um quadro pendurado no
templo, como ex-voto dos que se salvaram dos perigos de um naufrágio, instado
a dizer se ainda se recusava a aí reconhecer a providência dos deuses, indagou
por sua vez: “E onde estão pintados aqueles que, a despeito do seu voto,
pereceram?”
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Essa é a base de praticamente toda superstição, trate-se de
astrologia, interpretação de sonhos, augúrios e que tais: encantados, os homens,
com tal sorte de quimeras, marcam os eventos em que a predição se cumpre;
quando falha o que é bem mais freqüente , negligenciam-nos e passam adian-
te. Esse mal se insinua de maneira muito mais sutil na filosofia e nas ciências.
Nestas, o de início aceito tudo impregna e reduz o que segue. até quando parece
mais firme e aceitável. Mais ainda: mesmo não estando presentes essa
complacência e falta de fundamento a que nos referimos, o intelecto humano
tem o erro peculiar e perpétuo de mais se mover e excitar pelos eventos
afirmativos que pelos negativos, quando deveria rigorosa e sistematicamente
atentar para ambos. Vamos mais longe: na constituição de todo axioma
verdadeiro, têm mais força as instâncias negativas.
XLVII
O intelecto humano se deixa abalar no mais alto grau pelas coisas que súbita e
simultaneamente se apresentam e ferem a mente e ao mesmo tempo costumam
tomar e inflar a imaginação. E a partir disso passa a conceber e supor,
conquanto que imperceptivelmente, tudo o mais, do mesmo modo que o
pequeno número de coisas que ocupam a mente. Contudo, para cumprir o
percurso até os fatos remotos e heterogêneos, pelos quais os axiomas se provam
como pelo fogo a não ser que duras leis e violenta autoridade o imponham ,
mostra-se tardo e inepto.
XLVIII
O intelecto humano se agita sempre, não se pode deter ou repousar, sempre
procura ir adiante. Mas sem resultado. Daí ser impensável, inconcebível que
haja um limite extremo e último do mundo. Antes, sempre ocorre como
necessária a existência de mais algo além. Nem tampouco se pode cogitar de
como a eternidade possa ter transcorrido até os dias presentes, posto que a
distinção geralmente aceita do infinito, como comportando uma parte já
transcorrida e uma parte ainda por vir, não pode de modo algum subsistir, em
vista de que se seguiria o absurdo de haver um infinito maior que outro, como
se o infinito pudesse consumir-se no finito. Semelhante é o problema da
divisibilidade da reta ao infinito, coisa impossível de ser pensada. Mas de
maneira mais perniciosa se manifesta essa incapacidade da mente na descoberta
das causas: pois, como os princípios universais da natureza, tais como são
encontrados, devem ser positivos, não podem ter uma causa. Mas, mesmo
assim, o intelecto humano, que se não pode deter, busca algo. Então, acontece
que buscando o que está mais além acaba por retroceder ao que está mais
próximo, seja, as causas finais, que claramente derivam da natureza do homem
e não do universo. Aí está mais uma fonte que por mil maneiras concorre para a
corrupção da filosofia. Há tanta imperícia e leviandade dessa espécie de
filósofos, na busca das causas do que é universal, quanto desinteresse pelas
causas dos fatos secundários e subalternos.
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XLIX
O intelecto humano não é luz pura,
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pois recebe influência da vontade e dos
afetos, donde se poder gerar a ciência que se quer. Pois o homem se inclina a ter
por verdade o que prefere. Em vista disso, rejeita as dificuldades, levado pela
impaciência da investigação; a sobriedade, porque sofreia a esperança; os
princípios supremos da natureza, em favor da superstição; a luz da experiência,
em favor da arrogância e do orgulho, evitando parecer se ocupar de coisas vis e
efêmeras; paradoxos, por respeito à opinião do vulgo. Enfim, inúmeras são as
fórmulas pelas quais o sentimento, quase sempre imperceptivelmente, se insinua
e afeta o intelecto.
L
Mas os maiores embaraços e extravagâncias do intelecto provêm da obtusidade,
da incompetência e das falácias dos sentidos. E isso ocorre de tal forma que as
coisas que afetam os sentidos preponderam sobre as que, mesmo não o afetando
de imediato, são mais importantes. Por isso, a observação não ultrapassa os
aspectos visíveis das coisas, sendo exígua ou nula a observação das invisíveis.
Também escapam aos homens todas as operações dos espíritos latentes nos
corpos sensíveis. Permanecem igualmente desconhecidas as mudanças mais
sutis de forma das partes das coisas mais grossas (o vulgo sói chamar a isso de
alteração, quando na verdade se trata de translação) em espaços mínimos.
16
Até
que fatos, como os dois que indicamos, não sejam investigados e esclarecidos,
nenhuma grande obra poderá ser empreendida na natureza. E ainda a própria
natureza do ar comum, bem como de todos os corpos de menor densidade (que
são muitos), é quase por completo desconhecida. Na verdade, os sentidos, por si
mesmos, são algo débil e enganador, nem mesmo os instrumentos destinados a
ampliá-los e aguçá-los são de grande valia. E toda verdadeira interpretação da
natureza se cumpre com instâncias e experimentos oportunos e adequados, onde
os sentidos julgam somente o experimento e o experimento julga a natureza e a
própria coisa.
LI
O intelecto humano, por sua própria natureza, tende ao abstrato, e aquilo que
flui, permanente lhe parece. Mas é melhor dividir em partes a natureza que
traduzi-la em abstrações. Assim procedeu a escola de Demócrito, que mais que
as outras penetrou os segredos da natureza. O que deve ser sobretudo
considerado é a matéria, os seus esquematismos, os metaesquematismos, o ato
puro, e a lei do ato, que é o movimento. As formas são simples ficções do
espírito humano, a não ser que designemos por formas as próprias leis do ato.
17
LII
Tais são os ídolos a que chamamos de ídolos da tribo, que têm origem na
uniformidade da substância espiritual do homem, ou nos seus preconceitos, ou
bem nas suas limitações, ou na sua contínua instabilidade; ou ainda na
interferência dos sentimentos ou na incompetência dos sentidos ou no modo de
receber impressões.
LIII
Os ídolos da caverna têm origem na peculiar constituição da alma e do corpo de
cada um; e também na educação, no hábito ou em eventos fortuitos. Como as
suas espécies são múltiplas e várias, indicaremos aquelas com que se deve ter
mais cuidado, por se tratar das que têm maior alcance na turbação da limpidez
do intelecto.
LIV
Os homens se apegam às ciências e a determinados assuntos, ou por se
acreditarem seus autores ou descobridores, ou por neles muito se terem
empenhado e com eles se terem familiarizado. Mas essa espécie de homens,
quando se dedica à filosofia e a especulações de caráter geral, distorce e
corrompe-as em favor de suas anteriores fantasias. Isso pode ser especialmente
observado em Aristóteles que de tal modo submete a sua filosofia natural à
lógica que a tornou quase inútil e mais afeita a contendas. A própria estirpe dos
alquimistas elabora uma filosofia fantástica e de pouco proveito, porque
fundada em alguns poucos experimentos levados a cabo em suas oficinas.
Assim também Gilbert,
18
que, depois de laboriosamente haver observado o
magneto, logo concebeu uma filosofia toda conforme ao seu principal interesse.
LV
A maior e talvez a mais radical diferença que distingue os engenhos, em relação
à filosofia e às ciências, está em que alguns são mais capazes e aptos para notar
as diferenças das coisas, outros para as suas semelhanças. Com efeito, os
engenhos constantes e agudos podem fixar, deter e dedicar a sua atenção às
diferenças mais sutis. De outra parte, os engenhos altaneiros e discursivos
reconhecem e combinam as mais gerais e sutis semelhanças das coisas. Mas
tanto uns como outros podem facilmente incorrer no exagero, captando em um
caso a graduação das coisas, em outro as aparências.
LVI
É desse modo que se estabelecem as preferências pela Antiguidade ou pelas
coisas novas. Poucos são os temperamentos que conseguem a justa medida, ou
seja, não desprezar o que é correto nos antigos, sem deixar de lado as
contribuições acertadas dos modernos. E é o que tem causado grandes danos
tanto às ciências quanto à filosofia, pois faz-se o elogio da Antiguidade ou das
coisas novas e não o seu julgamento. A verdade não deve, porém, ser buscada
na boa fortuna de uma época, que é inconstante, mas à luz da natureza e da
experiência, que é eterna. Em vista disso, todo entusiasmo deve ser afastado e
deve-se cuidar para que o intelecto não se desvie e seja por ele arrebatado em
seus juízos.
LVII
O estudo da natureza e dos corpos em seus elementos simples fraciona e abate o
intelecto, enquanto que o estudo da natureza e da composição e da configuração
dos corpos o entorpece e desarticula. Isto se pode muito bem observar na escola
de Leucipo e Demócrito, se se compara com as demais filosofias. Aquela, com
efeito, de tal modo se preocupa com as partículas das coisas que negligencia a
sua estrutura; as outras, por seu turno, ficam de tal modo empolgadas na
consideração da estrutura que não penetram nos elementos simples da natureza.
Assim, pois, se devem alternar ambas as formas de observação e adotar cada
uma por sua vez, para que se torne a um tempo penetrante e capaz e se possam
afastar os inconvenientes apontados, bem como os ídolos deles provenientes.
LVIII
Essa seja a prudência a ser adotada nas especulações para que se contenham e
desalojem os ídolos da caverna, os quais provêm de alguma disposição
predominante no estudo, ou do excesso de síntese ou de análise, ou do zelo por
certas épocas, ou ainda da magnitude ou pequenez dos objetos considerados.
Todo estudioso da natureza deve ter por suspeito o que o intelecto capta e retém
com predileção. Em vista disso, muito grande deve ser a precaução para que o
intelecto se mantenha íntegro e puro.
LIX
Os ídolos do foro são de todos os mais perturbadores: insinuam-se no intelecto
graças ao pacto de palavras e de nomes. Os homens, com efeito, crêem que a
sua razão governa as palavras. Mas sucede também que as palavras volvem e
refletem suas forças sobre o intelecto, o que torna a filosofia e as ciências
sofisticas e inativas. As palavras, tomando quase sempre o sentido que lhes
inculca o vulgo seguem a linha de divisão das coisas que são mais potentes ao
intelecto vulgar. Contudo, quando o intelecto mais agudo e a observação mais
diligente querem transferir essas linhas para que coincidam mais
adequadamente com a natureza, as palavras se opõem. Daí suceder que as
magnas e solenes disputas entre os homens doutos, com freqüência, acabem em
controvérsias em torno de palavras e nomes, caso em que melhor seria
(conforme o uso e a sabedoria dos matemáticos) restaurar a ordem, começando
pelas definições. E mesmo as definições não podem remediar totalmente esse
mal, tratando-se de coisas naturais e materiais, posto que as próprias definições
constam de palavras e as palavras engendram palavras. Donde ser necessário o
recurso aos fatos particulares e às suas próprias ordens e séries, como depois
vamos enunciar, quando se expuser o método e o modo de constituição das
noções e dos axiomas.
LX
Os ídolos que se impõem ao intelecto através das palavras são de duas espécies.
Ou são nomes de coisas que não existem (pois do mesmo modo que há coisas
sem nome, por serem despercebidas, assim também há nomes por mera
suposição fantástica, a que não correspondem coisas), ou são nomes de coisas
que existem, mas confusos e mal determinados e abstraídos das coisas, de forma
temerária e inadequada. À primeira espécie pertencem: a fortuna, o primeiro
móvel, as órbitas planetárias, o elemento do fogo e ficções semelhantes, que
têm origem em teorias vazias e falsas. Essa espécie de ídolos é a mais fácil de se
expulsar, pois se pode exterminá-los pela constante refutação e ab-rogação das
teorias que os amparam. Mas a outra espécie é mais complexa e mais
profundamente arraigada por se ter formado na abstração errônea e inábil.
Tome-se como exemplo a palavra úmido e enumerem-se os significados que
pode assumir. Descobriremos que esta palavra úmido compila notas confusas de
operações diversas que nada têm em comum ou que não são irredutíveis.
Significa, com efeito, tudo o que se expande facilmente em torno de outro
corpo; tudo o que é em si mesmo indeterminável e não pode ter consistência;
tudo o que facilmente cede em todos os sentidos; tudo o que facilmente se
divide e dispersa; tudo o que se une e junta facilmente; tudo o que facilmente
adere a outro corpo e molha; tudo o que facilmente se reduz a liquido, se antes
era sólido. De sorte que se pode predicar e impor a palavra úmido em um
determinado sentido, “a chama é úmida”; em outro, “o ar não é úmido”; em
outro, “o pó fino é úmido”; e em outro, ainda, “o vidro é úmido”. Daí facil-
mente transparece que esta noção foi abstraída de forma leviana apenas da água
e dos líquidos correntes e vulgares, sem qualquer adequada verificação posterior
Há, contudo, nas palavras certos graus de distorção e erro. O gênero menos
nefasto é o dos nomes de substâncias particulares, em especial as de espécies
inferiores, bem deduzidas. Assim as noções de greda e lodo são boas; a de terra,
má. Mais deficientes são as palavras que designam ação, tais como: gerar,
corromper, alterar. As mais prejudiciais são as que indicam qualidades (com
exceção dos objetos imediatos da sensação), como: pesado, leve, tênue, denso,
etc. Todavia, em todos esses casos pode suceder que certas noções sejam um
pouco melhores que as demais, como ocorre com as que designam coisas que os
sentidos humanos alcançam com mais freqüência.
LXI
Por sua vez, os ídolos do teatro não são inatos, nem se insinuaram às ocultas no
intelecto, mas foram abertamente incutidos e recebidos por meio das fábulas dos
sistemas e das pervertidas leis de demonstração. Porém, tentar e sustentar a sua
refutação não seria consentâneo com o que vimos afirmando. Pois, se não
estamos de acordo nem com os princípios nem com as demonstrações, não se
admite qualquer argumentação. O que, ademais, é um favor dos fados, pois
dessa forma é respeitada a glória dos antigos. Nada se lhes subtrai, já que se
trata de uma questão de método. Um coxo (segundo se diz) no caminho certo,
chega antes que um corredor extraviado, e o mais hábil e veloz, correndo fora
do caminho, mais se afasta de sua meta, O nosso método de descobrir a
verdadeira ciência é de tal sorte que muito pouco deixa à agudeza e robustez dos
engenhos; mas, ao contrário, pode-se dizer que estabelece equivalência entre
engenhos e intelectos. Assim como para traçar uma linha reta ou um círculo per-
feito, perfazendo-os a mão, muito importam a firmeza e o desempenho, mas
pouco ou nada importam usando a régua e o compasso. O mesmo ocorre com o
nosso método. Ainda que seja de utilidade nula a refutação particular de
sistemas, diremos algo das seitas e teorias e, a seguir, dos signos exteriores que
denotam a sua falsidade; e, por último, das causas de tão grande infortúnio e tão
constante e generalizado consenso no erro. E isso para que se torne menos
difícil o acesso à verdade e o intelecto humano com mais disposição se
purifique e os ídolos possa derrogar.
LXII
Os ídolos do teatro, ou das teorias, são numerosos, e podem ser, e certamente o
serão, ainda em muito maior número. Com efeito, se já por tantos séculos não
tivesse a mente humana se ocupado de religião e teologia; e se os governos civis
(principalmente as monarquias) não tivessem sido tão adversos para com as
novidades, mesmo nas especulações filosóficas a tal ponto que os homens que
as tentam sujeitam-se a riscos, ao desvalimento de sua fortuna, e, sem nenhum
prêmio, expõem-se ao desprezo e ao ódio; se assim não fosse, sem dúvida,
muitas outras seitas filosóficas e outras teorias teriam sido introduzidas, tais
como floresceram tão grandemente diversificadas entre os gregos. Pois, do
mesmo modo que se podem formular muitas teorias do céu
19
a partir dos
fenômenos celestes; igualmente, com mais razão, sobre os fenômenos de que se
ocupa a filosofia se podem fundar e constituir muitos dogmas. E acontece com
as fábulas deste teatro o mesmo que no teatro dos poetas. As narrações feitas
para a cena são mais ordenadas e elegantes e aprazem mais que as verdadeiras
narrações tomadas da história.
Mas em geral supõe-se para matéria da filosofia ou muito a partir de pouco ou
pouco a partir de muito. Assim, a filosofia se acha fundada, em ambos os casos,
numa base de experiência e história natural excessivamente estreita e se decide
a partir de um número de dados muito menor que o desejável. Assim, a escola
racional
20
se apodera de um grande número de experimentos vulgares, não bem
comprovados e nem diligentemente examinados e pensados, e o mais entrega à
meditação e ao revolver do engenho.
Há também outra espécie de filósofos que se exercitaram, de forma diligente e
acurada, em um reduzido número de experimentos e disso pretenderam deduzir
e formular sistemas filosóficos acabados, ficando, estranhamente, os fatos
restantes à imagem daqueles poucos distorcidos.
E há uma terceira espécie de filósofos, os quais mesclam sua filosofia com a
teologia e a tradição amparada pela fé e pela veneração das gentes. Entre esses,
há os que, levados pela vaidade, pretenderam estabelecer e deduzir as ciências
da invocação de espíritos e gênios.
21
Dessa forma, são de três tipos as fontes dos
erros e das falsas filosofias: a sofística, a empírica e a supersticiosa.
LXIII
O mais conspícuo exemplo da primeira é o de Aristóteles, que corrompeu com
sua dialética a filosofia natural: ao formar o mundo com base nas categorias; ao
atribuir à alma humana, a mais nobre das substâncias, um gênero extraído de
conceitos segundos;
22
ao tratar da questão da densidade e da rarefação, com que
se indica se os corpos ocupam maiores ou menores extensões, conforme suas
dimensões, por meio da fria distinção de potência e ato; ao conferir a cada corpo
apenas um movimento próprio, afirmando que, se o corpo participa de outro
movimento, este provém de uma causa externa; ao impor à natureza das coisas
inumeráveis distinções arbitrárias, mostrando-se sempre mais solícito em
formular respostas e em apresentar algo positivo nas palavras do que a verdade
íntima das coisas. Isso se torna mais manifesto quando se compara a sua
filosofia com as filosofias que eram mais celebradas entre os gregos. Sem
dúvida, as homeomerias, de Anaxágoras; os átomos, de Leucipo e Demócrito; o
céu e a terra, de Parmênides; a discórdia e a amizade, de Empédocles; a
resolução dos corpos na adiáfora natureza do fogo e o seu retorno ao estado
sólido, de Heráclito, sabem a filosofia natural, a natureza das coisas, experiência
e corpos.
23
Mas na Física, de Aristóteles, na maior parte dos casos, não ressoam
mais que as vozes de sua dialética. Retoma-a na sua Metafísica, sob nome mais
solene, e mais como realista que nominalista. A ninguém cause espanto que no
Livro dos Animais e nos Problemas, e em outros tratados, ocupe-se
freqüentemente de experimentos. Pois Aristóteles estabelecia antes as conclu-
sões, não consultava devidamente a experiência para estabelecimento de suas
resoluções e axiomas. E tendo, ao seu arbítrio, assim decidido, submetia a
experiência como a uma escrava para conformá-la às suas opiniões. Eis por que
está a merecer mais censuras que os seus seguidores modernos, os filósofos
escolásticos, que abandonaram totalmente a experiência.
LXIV
A escola empírica de filosofia engendra opiniões mais disformes e monstruosas
que a sofistica ou racional. As suas teorias não estão baseadas nas noções
vulgares (pois estas, ainda que superficiais, são de qualquer maneira universais
e, de alguma forma, se referem a um grande número de fatos), mas na estreiteza
de uns poucos e obscuros experimentos. Por isso, uma tal filosofia parece, aos
que se exercitaram diariamente nessa sorte de experimentos, contaminando a
sua imaginação, mais provável, e mesmo quase certa; mas aos demais
apresenta-se como indigna de crédito e vazia. Há na alquimia, nas suas
explicações, um notável exemplo do que se acaba de dizer. Em nossos dias não
se encontram muitos desses casos, exceção feita talvez à filosofia de Gilbert.
Contudo, em relação a tais sistemas filosóficos, não se pode renunciar à cautela.
Desde já, prevenimos e auguramos que quando os homens, conduzidos por
nossos conselhos, se voltem de verdade para a experiência, afastando-se das
doutrinas sofisticas, pode ocorrer que, devido à impaciência e à precipitação do
intelecto, saltem ou mesmo voem às leis gerais e aos princípios das coisas. Um
grande perigo, pois, pode advir dessas filosofia e contra ele nos devemos
acautelar desde já.
LXV
Mas a corrupção da filosofia, advinda da superstição e da mescla com a
teologia, vai muito além e causa danos tanto aos sistemas inteiros da filosofia
quanto às suas partes, pois o intelecto humano não está menos exposto às
impressões da fantasia que às das noções vulgares. A filosofia sofistica, afeita
que é às disputas, aprisiona o intelecto, mas esta outra, fantasiosa e inflada, e
quase poética, perde-o muito mais com suas lisonjas. Pois há no homem uma
ambição intelectual que não é menor que a ambição da vontade. Isso acontece,
sobretudo, nos espíritos preclaros e elevados.
Na Grécia, encontram-se exemplos típicos de tais filosofias, sendo o caso, antes
dos demais, de Pitágoras, onde aparecem aliadas a uma superstição tosca e
grosseira. Mais perigoso e sutil é o exemplo de Platão e sua escola.
24
Encontra-
se também este mal, parcialmente, nas restantes filosofias, onde são
introduzidas formas abstratas, causas finais e causas primeiras, omitindo-se
quase sempre as causas intermediárias. Diante disso, toda precaução deve ser
tomada, pois nada há de pior que a apoteose dos erros, e como uma praga para o
intelecto a veneração votada às doutrinas vãs. Alguns modernos incorreram em
tal inanidade que, com grande leviandade, tentaram construir uma filosofia
natural sobre o primeiro capítulo do Gêneses. sobre o Livro de Jó e sobre outros
livros das Sagradas Escrituras, buscando assim os mortos entre os vivos.
25
É da
maior importância coibir-se e frear esta inanidade, tanto mais que dessa mescla
danosa de coisas divinas e humanas não só surge uma filosofia absurda, como
também uma religião herética. Em vista do que é sobremodo salutar outorgar-
se, com sóbrio espírito, à fé o que à fé pertence.
LXVI
Já falamos da falsa autoridade das filosofias fundadas nas noções vulgares,
sobre poucos experimentos e na superstição. Deve-se falar, igualmente, da falsa
direção que toma a especulação particularmente na filosofia natural. O intelecto
humano se deixa contagiar pela visão dos fenômenos que acontecem nas artes
mecânicas, onde os corpos sofrem alterações por um processo de composição e
separação, daí surgindo o pensamento de que algo semelhante se passa na
própria natureza. Aqui tem a sua origem aquela ficção dos elementos e de seu
concurso para a constituição dos corpos naturais. De outro lado, quando o
homem contempla o livre jogo da natureza, logo chega ao descobrimento das
espécies naturais, dos animais, das plantas e dos minerais; donde ocorre pensar
que também na natureza existem formas primárias das coisas, que a própria
natureza tende a tornar manifestas, e que a variedade dos indivíduos tem sua
origem nos obstáculos e desvios que a natureza sofre em seu trabalho ou no
conflito de diversas espécies ou na superposição de uma sobre a outra. A
primeira dessas cogitações nos valeu as qualidades elementares primárias, a
segunda, as propriedades ocultas e as virtudes específicas. Ambas constituem
um resumo das explicações sem sentido, com as quais se entretém o espírito,
distanciando-se das coisas mais importantes.
É maior o êxito do trabalho que os médicos dedicam ao estudo das qualidades
secundárias das coisas e de suas operações como a atração, a repulsão, a
rarefação e a condensação, a dilatação, a contração, a dissipação e a
maturação e outras análogas. E tirariam muito maior proveito, se não
comprometessem, com os conceitos mencionados de qualidades elementares e
de virtudes específicas, os fenômenos bem observados, reduzindo-os a
qualidades primárias e às suas combinações sutis e incomensuráveis,
esquecendo-se de levá-los, com maior e mais diligente observação, até às
qualidades terceiras ou quartas, sem romper intempestivamente a linha da
observação. Virtudes, se não idênticas, pelo menos semelhantes, devem ser
buscadas não apenas nas medicinas para o corpo humano, mas também nas
mudanças de todos os demais corpos naturais.
Maior prejuízo acarreta o fato de se limitar a reflexão e a indagação aos
princípios quiescentes dos quais derivam as coisas, e não considerar os
princípios motores pelos quais se produzem as coisas, já que os primeiros
servem aos discursos, os segundos à prática. Tampouco, têm qualquer valor as
distinções vulgares do movimento que sob o nome de geração, corrupção,
aumento, diminuição, alteração e translação se admitem na filosofia natural.
Pois, em última instância, não dizem mais que o seguinte: há translação quando
um corpo, sem sofrer outra mudança, muda de lugar; alteração quando, sem
mudar de lugar, nem espécie, muda de qualidade; se, em virtude da mudança, a
massa e quantidade de corpo não permanecem as mesmas, então, há aumento ou
diminuição; e se a mudança é de tal ordem que transforma a própria espécie e
substância da coisa em outra diferente, então há geração e corrupção. Mas tudo
isso é meramente popular e não penetra a natureza, pois indica as medidas e os
períodos e não as espécies de movimento. Indica até onde e não como e de que
fonte surgem. E tais conceitos nada dizem acerca da tendência natural dos
corpos e nem do processo de suas partes. Eles apenas são aplicáveis quando o
movimento introduz modificações evidentes na coisa, a ponto de serem
imediatamente sensíveis, e é dessa forma que também estabelecem as suas
distinções. Mesmo quando procuram dizer algo a respeito das causas do
movimento e estabelecer uma divisão em. virtude das mesmas, apresentam,
revelando uma absoluta negligência, a distinção entre movimento natural e
violento, que também tem sua origem em conceitos vulgares, posto que
realmente, todo movimento violento é também natural, pelo fato de um agente
externo reduzir uma coisa da natureza a um estado diferente do que antes tinha.
Mas, deixando de lado tais distinções, pode-se constatar que representam
verdadeiras espécies de movimento físico os seguintes casos: quando se observa
que há nos corpos um esforço para o mútuo contato de forma a não permitir que
se rompa a continuidade da natureza, ou se desloquem, ou se produza o vácuo;
quando se manifesta nos corpos tendência a recobrar o seu volume natural ou
extensão de modo que, se se comprimem, diminuindo-os, ou se se distendem,
aumentando-os, agem de forma a recuperar e voltar ao seu primitivo volume e
extensão; ou quando se diz que há nos corpos uma tendência à agregação das
massas de natureza semelhante e que os corpos densos tendem à esfera terrestre
e os leves ao espaço celeste, etc. Os primeiros movimentos enumerados, por sua
vez, são meramente lógicos e escolásticos, como fica manifesto, ao serem
comparados com estes últimos.
Não é menos ruinoso que em suas filosofias e especulações os seus esforços se
consumam na preocupação e na investigação dos princípios e das causas últimas
da natureza, pois toda a possibilidade e utilidade operativa se concentram nos
princípios intermediários. A conseqüência disso é que os homens não cessam de
fazer abstrações sobre a natureza, ate atingir a matéria potencial e informe; nem
cessam de dissecá-la até chegar ao átomo. Tudo isso, ainda que correspondesse
à verdade, pouco serviria ao bem-estar do homem.
LXVII
Também se deve acautelar o intelecto contra a intemperança dos sistemas
filosóficos no livrar ou coibir o assentimento, porque tal intemperança concorre
para firmar os ídolos, e, de certo modo, os faz perpétuos, sem possibilidades de
remoção.
Há no caso um duplo excesso: o primeiro é o dos que se pronunciam
apressadamente, convertendo a ciência em uma doutrina positiva e doutoral; e
outro é o dos que introduziram a acatalepsia e tornaram a investigação vaga e
sem um termo. O primeiro deprime, o segundo enerva o intelecto. Assim, a
filosofia de Aristóteles, depois de destruir outras filosofias (à maneira dos
otomanos, com seus irmãos) com suas pugnazes refutações, pronunciou-se
acerca de cada uma das questões. Depois, inventou ele mesmo, ao seu arbítrio,
questões para as quais a seguir apresentou soluções, e dessa forma tudo ficou
definido e estabelecido e é o que passou a ser atendido ainda hoje por seus
sucessores.
A escola de Platão, de sua parte, introduziu a acatalepsia, a princípio como ardil
e ironia, por desprezo para com os velhos sofistas, Protágoras, Hípias e os
demais, os quais nada temiam mais que aparentar terem dúvidas a respeito de
algo. Mas a Nova Academia transformou a acatalepsia em dogma e dela fez
profissão. E, ainda que esta seja uma atitude mais moderada que a dos que se
achavam no direito de se repronunciarem sobre tudo já que os acadêmicos
dizem que não pretendem confundir a investigação (como o fizeram Pirro e os
céticos) e que se limitam ao provável, quando de fato nada aceitavam como
verdadeiro , contudo, quando o espírito humano se desespera da busca da
verdade, o seu interesse por todas as coisas se torna débil; daí resultando que os
homens passam a preferir as disputas e os discursos amenos, distantes da
realidade, em vez de se comprometerem com rigor na investigação. Contudo,
como dissemos a principio e sustentamos sempre, os sentidos e o intelecto
humano, pela sua fraqueza, não hão de ser desmerecidos em sua autoridade,
mas, ao contrário, devem ser providos de auxílios.
LXVIII
Já falamos de todas as espécies de ídolos e de seus aparatos. Por decisão solene
e inquebrantável todos devem ser abandonados e abjurados. O intelecto deve ser
liberado e expurgado de todos eles, de tal modo que o acesso ao reino do
homem, que repousa sobre as ciências. possa parecer-se ao acesso ao reino dos
céus, ao qual não se permite entrar senão sob a figura de criança.
26
LXIX
As demonstrações falhas são as fortificações e as defesas dos ídolos. E as que
nos ensina a dialética não fazem muito mais que subordinar a natureza ao
pensamento humano e o pensamento humano às palavras. As demonstrações, na
verdade, são como que filosofias e ciências em potência, porque, conforme
sejam estabelecidas mal ou corretamente instituídas, assim também serão as
filosofias e as especulações. Errados e incompetentes são os que seguem o
processo que vai dos sentidos e das coisas diretamente aos axiomas e as
conclusões. Esse processo consiste de quatro partes e quatro igualmente são
seus defeitos. Em primeiro lugar. as próprias impressões dos sentidos são
viciosas; os sentidos não só desencaminham como levam ao erro É pois
necessário que se retifiquem os descaminhos e se corrijam os erros. Em segundo
lugar, as noções são mal abstraídas das impressões dos sentidos, ficando
indeterminadas e confusas. quando deveriam ser bem delimitadas e definidas.
Em terceiro lugar. é imprópria a indução que estabelece os princípios das
ciências por simples enumeração, sem o cuidado de proceder àquelas exclusões,
resoluções ou separações que são exigidas pela natureza. Por último, esse
método de invenção e de prova, que consiste em primeiro se determinarem os
princípios gerais e, a partir destes, aplicar e provar os princípios intermediários,
é a matriz de todos os erros e de todas as calamidades que recaem sobre as
ciências. Mas desse assunto, que tocamos de passagem, trataremos mais
amplamente quando propusermos o verdadeiro método de interpretação da
natureza, depois de cumprida esta espécie de expiação e purgação da mente.
LXX
A melhor demonstração é de longe, a experiência, desde que se atenha
rigorosamente ao experimento. Se procuramos aplicá-la a outros fatos tidos por
semelhantes, a não ser que se proceda de forma correta e metódica, é falaciosa.
Mas o modo de realizar experimentos hoje em uso é cego e estúpido. Começam
os homens a vagar
27
sem rumo fixo, deixando-se guiar pelas circunstâncias;
vêem-se rodeados de uma multidão de fatos, mas sem qualquer proveito; ora se
entusiasmam, ora se distraem; presumem sempre haver algo mais a ser
descoberto. Dessa forma, ocorre que os homens realizam os experimentos
levianamente, como em um jogo, variando pouco os experimentos já
conhecidos e, se não alcançam resultados, aborrecem-se e põem de lado os seus
desígnios. E mesmo os que se dedicam aos experimentos com mais seriedade,
tenacidade e esforço acabam restringindo o seu trabalho a apenas um
experimento particular. Assim fez Gilbert com o magneto, e os alquimistas com
o ouro. Um tal modo de proceder é tão inexperto quanto superficial, pois
ninguém investiga com resultado a natureza de uma coisa apenas naquela
própria coisa: é necessário ampliar a investigação até as coisas mais gerais.
28
E mesmo quando conseguem estabelecer formulações científicas ou teóricas, a
partir dos seus experimentos, demonstram uma disposição intempestiva e
prematura de se voltarem para a prática.
29
Procedem dessa forma não apenas
pela utilidade e pelos frutos que essa prática propicia, como também para obter
uma certa garantia de que não serão infrutíferas as investigações subseqüentes e,
ainda, para que as suas ocupações sejam mais reputadas pelos demais. Por isso
acaba acontecendo com eles o que aconteceu a Atalanta:
30
desviam-se de seu
caminho, para recolherem os frutos de ouro, interrompendo a corrida e deixando
escapar a vitória. Para se topar com o verdadeiro caminho da experiência e a
partir daí se conseguir a produção de novas obras, é necessário tomar como
exemplos a sabedoria e a ordem divinas. Deus, com efeito, no primeiro dia da
criação criou somente a luz, dedicando-lhe todo um dia e não se aplicando nesse
dia a nenhuma obra material. Da mesma forma, em qualquer espécie de
experiência, deve-se primeiro descobrir as causas e os axiomas verdadeiros,
buscando os axiomas lucíferos e não os axiomas frutíferos.
31
Pois os
experimentos, quando corretamente descobertos e constituídos, informam não a
uma determinada e estrita prática, mas a uma série contínua, e desencadeiam na
sua esteira bandos e turbas de obras. Mais adiante falaremos dos verdadeiros
caminhos da experiência, que, por sua vez, não se encontram menos obstruídos
e interceptados que os do juízo; por ora falaremos da experiência vulgar.
considerando-a como uma má espécie de demonstração. Mas, para o momento,
a ordem das coisas exige que falemos algo mais acerca dos signos a que antes
nos referimos graças aos quais se pode concluir que as filosofias e as
especulações ora em uso andam muito mal , como também das causas desse
fato, à primeira vista espantoso e inacreditável. O conhecimento dos signos
prepara o assentimento, e a explicação de suas causas dissipa qualquer sombra
de milagre. Ambas as coisas concorrem para a extirpação, de maneira fácil e
suave, dos ídolos do intelecto.
LXXI
As ciências que possuímos provieram em sua maior parte dos gregos. O que os
escritores romanos, árabes ou os mais recentes acrescentaram não é de monta
nem de muita importância; de qualquer modo, está fundado sobre a base do que
foi inventado pelos gregos. Contudo, a sabedoria
32
dos gregos era professoral
33
e pródiga em disputas que é um gênero dos mais adversos à investigação da
verdade. Desse modo, o nome de sofistas, que foi aplicado depreciativamente
aos que se pretendiam filósofos e que acabou por designar os antigos retores,
Górgias, Protágoras, Hípias e Polo, compete igualmente a Platão, Aristóteles,
Zenão, Epicuro, Teofrasto; e aos seus sucessores Crisipo, Carnéades, e aos
demais. Entre eles havia apenas esta diferença: os primeiros eram do tipo
errante e mercenário, percorriam as cidades, ostentando a sua sabedoria e
exigindo estipêndio; os outros, do tipo mais solene e comedido, tinham moradas
fixas, abriram escolas e ensinaram a filosofia gratuitamente. Mas ambos os
gêneros, apesar das demais disparidades, eram professorais e favoreciam as
disputas, e dessa forma facilitavam e defendiam seitas e heresias filosóficas, e
as suas doutrinas eram (como bem disse, não sem argúcia, Dionísio, de Platão)
palavras de velhos ociosos a jovens ignorantes.
34
Mas os mais antigos dos
filósofos gregos, Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Parmênides,
Heráclito, Xenófanes, Filolau e outros (omitimos Pitágoras, por se ter entregue à
superstição), não abriram escolas, ao que saibamos: ao contrário, e, no maior
silêncio, com rigor e simplicidade, vale dizer, com menor afetação e aparato, se
consagraram à investigação da verdade. E a nosso juízo, melhor se saíram, só
que suas obras, com o decorrer do tempo, foram sendo ofuscadas por outras
mais superficiais, mas mais afeitas à capacidade e ao gosto do vulgo; pois o
tempo, como o rio, trouxe-nos as coisas mais leves e infladas, submergindo o
mais pesado e consistente. Contudo, nem mesmo eles foram imunes aos vícios
de seu povo, pois propendiam mais que o desejável à ambição e à vaidade de
fundarem uma seita e captarem a aura popular. Nada se há de esperar, com
efeito, da busca da verdade, quando distorcida por tais inanidades. E, a
propósito, não se deve omitir aquela sentença, ou melhor, vaticínio, do
sacerdote egípcio a respeito dos gregos: “Sempre serão crianças, não possuirão
nem a antiguidade da ciência, nem a ciência da Antiguidade”.
35
Os gregos, com
efeito, possuem o que é próprio das crianças: estão sempre prontos para
tagarelar, mas são incapazes de gerar, pois, a sua sabedoria é farta em palavras,
mas estéril de obras. Aí está por que não se mostram favoráveis os signos
36
que
se observam na gente e na fonte de que provém a filosofia ora em uso.
LXXII
Os signos que se podem retirar das características do tempo e da idade não são
muito melhores que os das características do lugar e da nação. Naquela época
era limitado e superficial o conhecimento histórico e geográfico, o que é muito
grave sobretudo para os que tudo depositam na experiência. Não possuíam,
digna desse nome, uma história que remontasse aos mil anos, e que se não
reduzisse a fábulas e rumores da Antiguidade. Na verdade, conheciam apenas
uma exígua parte dos países e das regiões do mundo. Chamavam
indistintamente de citas a todos os povos setentrionais e de celtas a todos os
ocidentais. Nada conheciam das regiões africanas, situadas além da Etiópia
setentrional, nem da Ásia de além Ganges, e muito menos ainda das províncias
do Novo Mundo, de que nada sabiam, nem de ouvido, nem de qualquer tradição
certa e constante. E mais, julgavam inabitáveis muitas zonas e climas em que
vivem e respiram inumeráveis povos. As viagens de Demócrito, Platão,
Pitágoras, que não eram mais que excursões suburbanas, eram celebradas como
grandiosas. Em nossos tempos, ao contrário, tornaram-se conhecidas não apenas
muitas partes do Novo Mundo, como também todos os extremos limites do
Mundo Antigo, e assim é que o número de possibilidades de experimentos foi
incrementado ao infinito. Enfim, se se devem interpretar os signos à maneira
dos astrólogos, os que se podem retirar do tempo de nascimento e de concepção
daquelas filosofias indicam que nada de grande delas se pode esperar.
LXXIII
De todos os signos nenhum é mais certo ou nobre que o tomado dos frutos. Com
efeito, os frutos e os inventos são como garantias e fianças da verdade das
filosofias. Ora, de toda essa filosofia dos gregos e todas as ciências particulares
dela derivadas, durante o espaço de tantos anos, não há um único experimento
de que se possa dizer que tenha contribuído para aliviar e melhorar a condição
humana, que seja verdadeiramente aceitável e que se possa atribuir às especu-
lações e às doutrinas da filosofia. É o que ingênua e prudentemente reconhece
Celso
37
ao falar que primeiro se fizeram experimentos em medicina, e depois
sobre eles os homens construíram os sistemas filosóficos, buscando e
assinalando as causas, e não inversamente, ou seja, que da descoberta das
causas se tenham estabelecido e deduzido os experimentos da medicina. Por
isso não deve parecer estranho que entre os egípcios, que divinizavam e
consagravam os inventores, houvesse mais imagens de animais que de homens,
pois os animais com seu instinto natural produziram muito no caminho de
descobertas úteis, enquanto os homens, com os seus discursos e ilações
racionais, pouco ou nada concluíram.
Os alquimistas com sua atividade fizeram algumas descobertas, mas como que
por acaso e pela variação dos experimentos (como fazem com freqüência os
mecânicos), não por arte e com método, e isso porque a sua atividade tende
mais a confundir os experimentos que a estimulá-los. Mesmo aqueles que se
dedicaram à chamada magia natural fizeram algumas descobertas, mas poucas
em número e sobretudo superficiais e frutos da impostura. Devemos, em suma,
aplicar à filosofia o princípio da religião, que quer que a fé se manifeste pelas
obras, estabelecendo assim que um sistema filosófico seja julgado pelos frutos
que seja capaz de dar; se é estéril deve ser refutado como coisa inútil, sobretudo
se em lugar de frutos bons como os da vinha e da oliva produz os cardos e
espinhos das disputas e das contendas.
LXXIV
Outros signos se podem retirar do desenvolvimento e do progresso da filosofia e
das ciências, porque aquilo que tem o seu fundamento na natureza cresce e se
desenvolve, mas o que não tem outro fundamento que a opinião varia, mas não
progride. Por isso, se aquelas doutrinas em vez de serem, como são,
comparáveis a plantas despojadas de suas raízes tivessem aprofundado suas
raízes no próprio seio da natureza e dela tivessem retirado a própria substância,
as ciências não teriam permanecido por dois mil anos estagnadas no seu estádio
originário; e quase no mesmo estado permanecem, sem qualquer progresso
notável. Dessa forma. foram pouco a pouco declinando à medida que se
afastaram dos primeiros autores que as fizeram florescer. Nas artes mecânicas,
que são fundadas na natureza e se enriquecem das luzes da experiência, vemos
acontecer o contrário, e essas (desde que cultivadas), como que animadas por
um espírito, continuamente se acrescentam e se desenvolvem, de inicio
grosseiras, depois cômodas e aperfeiçoadas, e em contínuo progresso.
LXXV
Deve-se considerar ainda um outro signo (se se deve colocar entre os signos um
fato que é mais uma prova e entre as provas, ainda, a mais certa), seja, a
confissão daqueles autores que ora estão em grande voga. De fato, mesmo
aqueles que com tanta confiança pronunciam o seu juízo sobre a realidade,
mesmo eles, quando mais conscienciosos, põem-se a lamentar a respeito da
obscuridade das coisas, da sutileza da natureza, da fraqueza do intelecto
humano. Ora, se se limitassem a isso, certamente os mais tímidos seriam
dissuadidos de ulteriores investigações, mas os que têm o engenho mais álacre e
confiante receberiam mais incitamento e sugestão para progredirem
ulteriormente. Mas, não contentes de falarem deles próprios, põem fora dos
limites do possível tudo o que tenha permanecido ignorado e inatingível para si
e para os seus mestres, e declaram-no incognoscível e irrealizável, quase sob a
autoridade da própria arte. Com suma presunção e malignidade fazem de sua
fraqueza razão de calúnia para com a natureza e desespero para com todos os
demais. Assim, a Nova Academia professou a acatalepsia e condenou os ho-
mens à perpétua ignorância. Daí surge a opinião de que as formas, que são as
verdadeiras diferenças das coisas, isto é, as leis efetivas do ato puro, são
impossíveis de serem descobertas, porque colocadas além de qualquer alcance
humano. Daí surgem as opiniões, acolhidas na parte ativa e operativa da ciência,
de que o calor do sol e o do fogo são diferentes por natureza; que tendem a
tolher na humanidade a esperança de poder extrair ou construir, por meio do
fogo, qualquer coisa de semelhante ao que acontece na natureza.
38
E ainda mais,
que a composição é obra do homem, enquanto que a mistura é obra apenas da
natureza: o que equivale a tolher toda esperança de poder realizar, com meios
artificiais, os processos de geração e de transformação dos corpos naturais. Por
este signo não deverá ser difícil persuadir os homens a não misturarem as suas
sortes e fados com dogmas não apenas desesperados, mas destinados à
desesperação.
LXXVI
Merece ainda ser considerada como signo a grande e perpétua disparidade de
idéias que tem reinado entre os filósofos, e a própria variedade das escolas de
filosofia. Essa disparidade mostra que a via que conduz dos sentidos ao
intelecto não foi bem traçada, já que a própria matéria da filosofia, ou seja, a
natureza, foi rompida e dividida em tantos e tão diversos erros. Em tempo mais
recente, as dissenções e as disparidades de pontos de vista em torno dos
próprios princípios da filosofia e das filosofias parece terem cessado; mas
restam ainda inumeráveis problemas e controvérsias nas várias partes da
filosofia, donde resulta claro que não há nada de certo e de rigoroso nem nas
doutrinas filosóficas nem nos métodos de demonstração.
LXXVII
Crê-se comumente que a filosofia de Aristóteles obteve o consenso universal
pelo fato de que, quando de sua divulgação, todas as outras filosofias dos
antigos morriam ou desapareciam, e pelo fato de que nos tempos subseqüentes
não se encontrou nada melhor; dessa forma, a filosofia aristotélica parece tão
bem fundada e estabelecida, pois canalizou para si o tempo antigo e o tempo
moderno. A isso se responde: primeiro, o que se pensa em relação à cessação
das antigas filosofias depois da divulgação das obras de Aristóteles é falso, por-
que muito tempo depois, até a época de Cícero e mesmo nos séculos seguintes,
as obras dos antigos filósofos ainda subsistiram. Mas, depois, no tempo das
invasões bárbaras do Império Romano, após toda doutrina humana ter, por
assim dizer, naufragado, então, se conservaram apenas as doutrinas de
Aristóteles e de Platão, como tábuas feitas de matéria mais leve e menos sólida,
flutuando no curso dos tempos. Segundo: por pouco que se aprofunde tal ponto,
também o argumento do consenso universal vai-se mostrar falho, O verdadeiro
consenso é, antes de tudo, uma coincidência de juízos livres sobre uma questão
precedentemente examinada. Mas, pelo contrário, a grande massa dos que
convêm na aprovação de Aristóteles é escrava do prejuízo da autoridade de
outros, a tal ponto que se deveria falar, mais que de consenso, de zelo de
sequazes e de espírito de associação. E mesmo no caso em que tenha havido
verdadeiro e aberto consenso, o consenso está sempre longe de se constituir em
autoridade verdadeira e sólida, mas faz, ao contrário, nascer uma vigorosa
opinião em relação à opinião oposta. Com efeito, o pior auspício é o que deriva
do consenso nas coisas intelectuais, excetuadas a política e a teologia, para as
quais, ao contrário, há o direito de sufrágio.
39
A muitos apraz só o que tolhe a
imaginação e aprisiona o intelecto pelos laços dos conceitos vulgares, como já
foi dito antes.
40
Vem a propósito aquele dito de Fócion que, dos costumes, pode
ser transposto às questões intelectuais: “Os homens devem perguntar que coisa
disseram ou fizeram de mal quando o povo os enche de apoio e aplauso”.
41
Este
é, pois, um signo dos mais desfavoráveis. Concluamos dizendo que os signos da
verdade e da sensatez das filosofias e das ciências, ora em uso, são péssimos,
quer se procurem nas suas origens, nos seus frutos, nos seus progressos, nas
confissões dos autores ou no consenso.
LXXVIII
Tratemos agora das causas dos erros e de sua persistência que se prolongou por
séculos. Elas são muitas e muito poderosas. Em vista disso, não há motivo para
se admirar de que tenham escapado e tenham permanecido ocultas dos homens
as coisas que vão agora ser expostas. O que seria de causar espanto é como,
finalmente, tenham podido cair na mente de um determinado mortal para serem
objeto de suas reflexões; o que, de resto (segundo cremos), foi mais uma ques-
tão de sorte que de excelência de alguma faculdade. Deve ser tido mais como
parto do tempo que parto do engenho.
42
Bem consideradas as coisas, um número tão grande de séculos reduz-se a um
lapso efetivamente exíguo. Das vinte e cinco centúrias em que mais ou menos
estão compreendidos a história e o saber humano, apenas seis podem ser
escolhidas e apontadas como tendo sido fecundas para as ciências ou favoráveis
ao seu desenvolvimento. No tempo como no espaço há regiões ermas e solidões.
De fato só podem ser levados em conta três períodos ou retornos na evolução do
saber:
43
um, o dos gregos; outro, o dos romanos e, por último, o nosso, dos
povos ocidentais da Europa; a cada um dos quais se pode atribuir no máximo
duas centúrias de anos. A Idade Média, em relação à riqueza e fecundidade das
ciências, foi uma época infeliz. Não há, com efeito, motivos para se fazer
menção nem dos árabes, nem dos escolásticos. Estes, nos tempos intermédios,
com seus numerosos tratados mais atravancaram as ciências que concorreram
para aumentar-lhes o peso. Por isso, a primeira causa de um tão parco progresso
das ciências deve ser buscada e adequadamente localizada no limitado tempo a
elas favorável.
LXXIX
Em segundo lugar, surge uma causa de grande importância, sob todos os
aspectos, a saber, mesmo nas épocas em que, bem ou mal, floresceram o
engenho humano e as letras, a filosofia natural ocupou parte insignificante da
atividade humana. E leve-se em conta que a filosofia natural deve ser
considerada a grande mãe das ciências. Todas as artes e ciências, uma vez dela
desvinculadas, podem ser brunidas e amoldadas para o uso, mas não podem
crescer.
44
É manifesto que desde o momento em que a fé cristã foi aceita e
deitou raízes no espírito humano, a grande maioria dos melhores engenhos se
consagrou à teologia, e para isso concorreram poderosamente os prêmios e toda
sorte de estímulos a eles reservados. E o cultivo da teologia ocupou
principalmente o terceiro lapso de tempo, o nosso, isto é, o dos povos ocidentais
da Europa; tanto mais que no mesmo período começaram a florescer as letras, e
as controvérsias a respeito de religião começaram a se propagar. Na idade
anterior, no segundo período, o correspondente aos romanos, as mais
significativas reflexões e os melhores esforços se ocuparam e se consumiram na
filosofia moral (que entre os pagãos substituía a teologia) e, ainda, os talentos
daquele tempo se dedicaram aos assuntos civis, necessidade oriunda da própria
magnitude do Império Romano, que exigia a dedicação de um grande número
de homens. Mesmo naquela idade em que se viu florescer ao máximo, entre os
gregos, a filosofia natural corresponde a uma pequena parte, não contínua, de
tempo. Nos tempos mais antigos, aqueles que foram chamados de Sete Sábios,
todos eles afora Tales, se aplicaram à filosofia moral e à política. Nos tempos
seguintes, depois que Sócrates fez descer a filosofia do céu à terra,
45
prevaleceu
mais ainda a filosofia moral e mais se afastaram os engenhos humanos da
filosofia natural.
Contudo, aquele mesmo período em que as investigações da natureza ganharam
vigor foi corrompido pelas contradições e pela ambição de se emitirem novas
opiniões, ficando, assim, inutilizado. Dessa forma, durante esses três períodos, a
filosofia natural, abandonada e dificultada, não é para se admirar que os
homens, ocupados por outros assuntos, nela pouco tenham progredido.
LXXX
Deve-se acrescentar, ademais, que a filosofia natural, mesmo entre os seus
fautores, não encontrou um único homem inteira e exclusivamente a ela
dedicado, particularmente nos últimos tempos, a não ser o exemplo isolado de
elucubrações de algum monge, em sua cela, ou de algum nobre, em sua mansão.
A filosofia natural servia a alguns de passagem e de ponte para outras
disciplinas.
Dessa forma, a grande mãe das ciências foi relegada ao indigno oficio de serva,
prestando serviços à obra de médicos ou de matemáticos, ou devendo oferecer à
mente imatura dos jovens o primeiro polimento e a primeira tintura, para
facilitação e bom êxito de suas posteriores ocupações. Que ninguém espere um
grande progresso nas ciências, especialmente no seu lado prático,
46
até que a
filosofia natural seja levada às ciências particulares e as ciências particulares
sejam incorporadas à filosofia natural. Por serem disso dependentes é que a
astronomia, a óptica, a música, inúmeras artes mecânicas, a própria medicina, e,
o que é espantoso, a filosofia moral e política e as ciências lógicas
47
não
alcançaram qualquer profundidade, mas apenas deslizam pela superfície e
variedade das coisas. De fato, desde que as ciências particulares se constituíram
e se dispersaram, não mais se alimentaram da filosofia natural, que lhes poderia
ter transmitido as fontes e o verdadeiro conhecimento dos movimentos, dos
raios, dos sons, da estrutura e do esquematismo dos corpos, das afecções e das
percepções intelectuais, o que lhes teria infundido novas forças para novos
progressos. Assim, pois, não é de admirar que as ciências não cresçam depois de
separadas de suas raízes.
LXXXI
Ainda há outra causa grande e poderosa do pequeno progresso das ciências. E
ei-la aqui: não é possível cumprir-se bem uma corrida quando não foi
estabelecida e prefixada a meta a ser atingida. A verdadeira e legítima meta das
ciências é a de dotar a vida humana de novos inventos e recursos.
48
Mas a turba,
que forma a grande maioria, nada percebe, busca o próprio lucro e a glória
acadêmica. Pode, eventualmente, ocorrer que algum artesão de engenho agudo e
ávido de glória se aplique a algum novo invento, o que realiza, na maior parte
dos casos, com os seus próprios recursos. A maior parte dos homens está tão
longe de dedicar-se ao aumento do acervo das ciências e das artes, que, do
acervo já à sua disposição, apanham e são atraídos tão-somente o suficiente para
os usos professorais, para lograr lucro, consideração ou outra vantagem análoga.
Contudo, se de toda essa multidão alguém se dedica com sinceridade à ciência
por si mesma, ver-se-á que se volta mais para a variedade das especulações e
das doutrinas que para uma inquirição severa e rígida da verdade. Ainda mais,
se se encontra um investigador mais severo da verdade, também ele proporá,
como sua condição, que satisfaça sua mente e intelecto na representação das
causas das coisas que já eram conhecidas antes, e não a de conseguir provas
para novos resultados e luz para novos axiomas. Em suma, se ninguém até
agora fixou de forma justa o fim da ciência, não é para causar espanto que tudo
o que se subordine a esse fim desemboque em uma aberração.
LXXXII
Ademais, o fim e a meta da ciência foram mal postos pelos homens. Mas, ainda
que bem postos, a via escolhida é errônea e impérvia. E é de causar estupefação,
a quem quer que de ânimo avisado considere a matéria, constatar que nenhum
mortal se tenha cuidado ou tentado a peito traçar e estender ao intelecto humano
uma via, a partir dos sentidos e da experiência bem fundada, mas que, ao invés,
se tenha tudo abandonado ou às trevas da tradição, ou ao vórtice e torvelinho
dos argumentos ou, ainda, às flutuações e desvios do acaso e de uma
experiência vaga e desregrada.
Indague agora o espírito sóbrio e diligente qual o caminho escolhido e usado
pelos homens para a investigação e descoberta da verdade. Logo notará um
método de descoberta muito simples e sem artifícios, que é o mais familiar aos
homens. E esse não consiste senão, da parte de quem se disponha e apreste para
a descoberta, em reunir e consultar o que os outros disseram antes. A seguir,
acrescentar as próprias reflexões. E, depois de muito esforço da mente, invocar,
por assim dizer, o seu gênio para que expanda os seus oráculos. Trata-se de
conduta sem qualquer fundamento e que se move tão-somente ao sabor de
opiniões.
Algum outro pode, talvez, invocar o socorro da dialética, que só de nome tem
relação com o que se propõe. Com efeito, a invenção própria da dialética não se
refere aos princípios e axiomas fundamentais que sustentam as artes, mas
apenas a outros princípios que com aqueles parecem estar em acordo. E quando,
cercada pelos mais curiosos e importunos, é interpelada a respeito das provas e
da descoberta dos princípios e axiomas primeiros, a dialética os repele com a já
bem conhecida resposta, remetendo-os à fé e ao juramento que se devem prestar
aos princípios de cada uma das artes.
Resta a experiência pura e simples que, quando ocorre por si, é chamada de
acaso e, se buscada, de experiência. Mas essa espécie de experiência é como
uma vassoura desfiada, como se costuma dizer, mero tateio, à maneira dos que
se perdem na escuridão, tudo tateando em busca do verdadeiro caminho, quando
muito melhor fariam se aguardassem o dia ou acendessem um archote para
então prosseguirem. Mas a verdadeira ordem da experiência, ao contrário,
começa por, primeiro, acender o archote e, depois, com o archote mostrar o
caminho, começando por uma experiência ordenada e medida nunca vaga e
errática -, dela deduzindo os axiomas e, dos axiomas, enfim, estabelecendo
novos experimentos. Pois nem mesmo o Verbo Divino agiu sem ordem sobre a
massa das coisas.
Não se admirem pois os homens de que o curso das ciências não tenha tido
andamento, visto que, ou a experiência foi abandonada, ou nela (os seus
fautores) se perderam e vagaram como em um labirinto; ao passo que um
método bem estabelecido é o guia para a senda certa que, pela selva da
experiência, conduz à planura aberta dos axiomas.
LXXXIII
Esse mal foi espantosamente aumentado pela opinião tornada presunção
inveterada, conquanto vã e danosa de que a majestade da mente humana fica
diminuída se muito e a fundo se ocupa de experimentos e de coisas particulares
e determinadas na matéria, mormente tratando-se de coisas, segundo se diz,
laboriosas de inquirir, ignóbeis para a meditação, ásperas para a transmissão,
avaras para a prática, infinitas em número, tênues em sutileza. Chegou-se ao
ponto em que a verdadeira via não só foi abandonada, mas foi ainda fechada e
obstruída. A experiência não foi apenas abandonada ou mal administrada, como
também desprezada.
LXXXIV
A reverência à Antiguidade, o respeito à autoridade de homens tidos como
grandes mestres de filosofia e o geral conformismo para com o atual estádio do
saber e das coisas descobertas também muito retardaram os homens na senda do
progresso das ciências, mantendo-os como que encantados. Desse tipo de
consenso já falamos antes.
49
No tocante à antiguidade, a opinião dos homens é totalmente imprópria e, a
custo, congruente com o significado da palavra. Deve-se entender mais
corretamente por antiguidade a velhice e a maturidade do mundo e deve ser
atribuída aos nossos tempos e não à época em que viveram os antigos, que era a
do mundo mais jovem. Com efeito, aquela idade que para nós é antiga e madura
é nova e jovem para o mundo.
50
E do mesmo modo que esperamos do homem
idoso um conhecimento mais vasto das coisas humanas e um juízo mais maduro
que o do jovem, em razão de sua maior experiência, variedade e maior número
de coisas que pôde ver, ouvir e pensar, assim também é de se esperar de nossa
época (se conhecesse as suas forças e se dispusesse a exercitá-las e estendê-las)
muito mais que de priscas eras, por se tratar de idade mais avançada do mundo,
mais alentada e cumulada de infinitos experimentos e observações.
Por outra parte, não é de se desprezar o fato de que, pelas navegações
longínquas e explorações tão numerosas, em nosso tempo, muitas coisas que se
descortinaram e descobriram podem levar nova luz à filosofia. Assim, será
vergonhoso para os homens que, tendo sido tão imensamente abertas e
perlustradas em nossos tempos as regiões do globo material, ou seja, da terra,
dos astros e dos mares, permaneça o globo intelectual
51
adstrito aos angustos
confins traçados pelos antigos.
No que respeita à autoridade, é de suma pusilanimidade atribuir-se tanto aos
autores e negar-se ao tempo o que lhe é de direito, pois com razão já se disse
que “a verdade é filha do tempo, não da autoridade”.
52
Não é, portanto, de se
admirar que esse fascínio da Antiguidade, dos autores e do consenso tenha de
tal modo assoberbado as forças dos homens que não puderam eles se
familiarizar com as próprias coisas, como que por artes de algum malefício.
LXXXV
Mas não foi somente a admiração pela Antiguidade, pela autoridade e o respeito
pelo consenso que compeliram a indústria humana a contentar-se com o já
descoberto, mas, também, a admiração pelas aparentemente copiosas obras já
conseguidas pelo gênero humano. Quem puser ante os olhos a variedade e o
magnífico aparato de coisas introduzidas e acumuladas pelas artes mecânicas,
para o cultivo do homem, estará, certamente, muito mais inclinado a admirar-se
da sua opulência que da penúria. Isso sem se dar conta de que os primeiros
resultados da observação e as primeiras operações da natureza, que são como
que a alma e o principio motor dessa variedade, não são nem muitos, nem bem
fundados. O restante pode ser atribuído unicamente à paciência humana e ao
movimento sutil e bem ordenado da mão ou dos instrumentos. A confecção de
relógios, por exemplo, é certamente mister delicado e trabalhoso, de tal modo
que as suas rodas parecem imitar as órbitas celestes ou o movimento contínuo e
ordenado do pulso dos animais. No entanto, depende de apenas um ou dois
axiomas da natureza.
Ainda mais, quem atente para o refinamento próprio das artes liberais ou, ainda,
o das artes mecânicas, na preparação de substâncias naturais e leve em conta
coisas como a descoberta dos movimentos celestes em astronomia, da harmonia
em música, das letras do alfabeto (ainda não em uso no reino dos chineses) em
gramática; e igualmente, na mecânica, o descobrimento das obras de Baco e
Ceres, ou seja, a arte da preparação do vinho, da cerveja, da panificação, das
destilações e similares, e de outras delícias da mesa; e também reflita e observe
quanto tempo transcorreu para que essas coisas (todas, exceto a destilação, já
conhecidas dos antigos) alcançassem o avanço que em nosso tempo desfrutam;
e, ainda, o quão pouco são baseadas (o mesmo que já se disse dos relógios) em
observações e em axiomas da natureza; e, indo um pouco mais longe, como
essas coisas facilmente poderiam ter sido descobertas em circunstâncias óbvias
ou por observações casuais.
53
Quem assim proceder, facilmente se libertará de qualquer admiração, antes se
compadecerá da condição humana, por tantos séculos em tão grande penúria e
esterilidade de artes e invenções. E aqueles mesmos inventos de que fizemos
menção são mais antigos que a filosofia e as artes intelectuais
54
e, pode-se dizer
que, quando tiveram inicio as ciências racionais e dogmáticas, cessou a
invenção de obras úteis.
E o mesmo interessado, uma vez que passe das oficinas às bibliotecas, ficará
admirado da imensa variedade de livros. Mas, detendo-se e examinando com
mais cuidado a sua matéria e conteúdo, certamente a sua admiração volver-se-á
em sentido contrário, ao aí constatar as infinitas repetições e que os homens
dizem e fazem sempre o mesmo. De sorte que, da admiração pela variedade,
passará ao espanto pela indigência e pobreza das coisas que têm prendido e ocu-
pado a mente dos homens.
Quem, ainda, se disponha a considerar aquelas coisas tidas mais por curiosas
que sérias e passe a examinar mais a fundo as obras dos alquimistas, acabará
não sabendo se estes são mais dignos de riso ou de lágrimas.
O alquimista, com efeito, alimenta eterna esperança e quando algo falha atribui
a si mesmo os erros, acusando-se de não haver entendido bem os vocábulos de
sua arte ou dos autores (por isso, com tanto ânimo se aplica às tradições e aos
sussurros que chegam aos seus ouvidos), ou que suas manipulações careceram
de escrúpulos quanto ao peso ou ao exato tempo, em vista do que repete ao
infinito os experimentos. Se, nesse ínterim, em meio aos azares da experimen-
tação, topa com algo de aspecto novo ou de utilidade não desprezível, contenta-
se com esses resultados, muito os celebra e ostenta. E a esperança se encarrega
do resto. Não se pode negar, contudo, que os alquimistas descobriram não
poucas coisas e deram aos homens úteis inventos. Bem por isso não se lhes
aplica mal a fábula do ancião que legou aos seus filhos um tesouro enterrado em
uma vinha e cujo sítio exato simulava desconhecer. Os filhos, com afinco,
revolveram toda a vinha, não encontrando nenhum tesouro, mas a vindima,
graças a tal cultivo, foi muito mais abundante.
Os cultores da magia natural,
55
que tudo explicam por simpatia e antipatia,
deduziram, de conjunturas ociosas e apressadas, virtudes e operações
maravilhosas para as coisas. E mesmo quando alcançaram resultados, estes são
da espécie dos que mais se prestam à admiração e novidade que a proporcionar
frutos e utilidade.
Quanto à magia supersticiosa (se dela é preciso falar), antes de tudo deve ser
dito que em todas as nações, em todos os tempos e, mesmo religiões, suas
estranhas e supersticiosas artes só puderam afetar em algo apenas um porção
reduzida e bem definida de objetos. Em vista disso, deixemo-la de lado,
lembrando que nada há de surpreendente que a ilusão da riqueza tenha sido
causa da pobreza.
LXXXVI
A admiração dos homens pelas doutrinas e artes, por si mesma bastante singela
e mesmo pueril, foi incrementada pela astúcia e pelos artifícios dos que se
ocuparam das ciências e as difundiram. Pois, levados pela ambição e pela
afetação, apresentam-nas de tal modo ordenadas e como que mascaradas que, ao
olhar dos homens, pareciam perfeitas em suas partes e já completamente
acabadas. Com efeito, se se consideram as divisões e o método, elas parecem
compreender e esgotar tudo o que possa pertencer a um assunto. E, ainda que as
partes estejam mal concluídas, como cápsulas ocas, ao intelecto vulgar
oferecem a forma e o ordenamento da ciência perfeita.
Mas os primeiros e mais antigos investigadores da verdade, com mais fidelidade
e sucesso, costumavam consignar em forma de aforismos,
56
isto e, de breves
sentenças avulsas e não vinculadas por qualquer artificio metodológico, o saber
que recolhiam da observação das coisas e que pretendiam preservar para uso
posterior, e nunca simularam, nem professaram haver-se apoderado de toda a
arte. Por isso, visto ser esse o estado de coisas, não é de se admirar que os ho-
mens não inquiram de questões tidas há tempo como resolvidas e elucidadas em
todas as suas peculiaridades.
LXXXVII
Além disso, a sabedoria antiga foi tornada mais respeitável e digna de fé, graças
à vaidade e à leviandade dos que propuseram coisas novas, principalmente na
parte ativa e operativa da filosofia natural. Com efeito, não têm faltado espíritos
presumidos e fantasiosos a cumularem, em parte por credulidade, em parte por
impostura, o gênero humano de processos tais como: prolongamento da vida,
retardamento da velhice, eliminação da dor, reparação de defeitos físicos,
encantamento dos sentidos, suspensão e excitação dos sentimentos, iluminação
e exaltação das faculdades intelectuais, transmutação das substâncias, aumento
e multiplicação dos movimentos, compressão e rarefação do ar, desvio e
promoção das influências dos astros, adivinhação do futuro, reprodução do
passado, revelação do oculto, e alarde e promessa de muitas outras maravilhas
semelhantes. Portanto, não estaria longe da verdade, acerca de espíritos tão
pródigos, um juízo como o seguinte: há tanta distância, em matéria filosófica,
entre essas fantasias e as artes verdadeiras, quanto em história, entre as gestas
de Júlio César ou de Alexandre Magno e as de Amadis de Gaula ou de Artur da
Bretanha.
57
É notório, pois, que aqueles ilustres generais realizaram muito mais
que as façanhas atribuídas a esses heróis espectrais, em forma de ações reais,
nem um pouco fabulosas ou prodigiosas. Não obstante, não seria justo negar-se
fé à memória do verdadeiro porque tenha sido lesado e difamado pela fábula.
Mas, tampouco, se deve estranhar que tais impostores, quando tentaram
empresas semelhantes, tenham infligido grande prejuízo às novas proposições,
principalmente às relacionadas com operações práticas. O excesso de vaidade e
de fastígio acabou por destruir as disposições magnânimas para tais
cometimentos.
LXXXVIII
A pusilanimidade, a estreiteza e a superficialidade com que a indústria humana
se impõe tarefas causaram à ciência ainda maiores danos e com a agravante
dessa pusilanimidade não se apresentar sem pompa e arrogância. Destaca-se, em
primeiro lugar, aquela cautela já familiar a todas as artes, que consiste em
atribuírem os autores à natureza a ineficiência de sua própria arte, e o que essa
arte não alcança, em seu nome, declararem ser “por natureza” impossível. Em
conseqüência, jamais poderá ser condenada uma arte que a si mesma julga.
Também a filosofia que hoje se professa abriga certas asserções e conclusões
que, consideradas diligentemente, parecem compelir os homens à convicção de
que não se deve esperar da arte e da indústria humana nada de árduo, nada que
seja imperioso ou válido acerca da natureza, como já se disse antes
58
a respeito
da heterogeneidade do calor do sol e do fogo e sobre a combinação dos corpos.
Tudo isso, bem observado, procura maliciosamente limitar o poder humano e
produzir um calculado e artificioso desânimo que não só vem perturbar os
augúrios da esperança, como amortecer todos os estímulos e nervos da indústria
humana e também interceptar todas as oportunidades de experiência. E, ao
mesmo tempo, tudo fazem por parecer perfeita a própria arte, entregando-se a
uma glória vã e desvairada que consiste em pensar que o que até o momento
não foi descoberto ou compreendido não poderá tampouco ser descoberto ou
compreendido no futuro.
Alguém que se acerque das coisas com intento de descobrir algo novo propor-
se-á e limitasse-a a um único invento, e não mais. Por exemplo: a natureza do
ímã, o fluxo e o refluxo do mar, o sistema celeste e coisas desse gênero, que
parecem esconder algum segredo, e coisas que, até agora, tenham sido tratadas
com pouco êxito. Mas é indício de grande imperícia o fato de se perscrutar a
natureza de uma coisa na própria coisa, pois a mesma natureza
59
que em alguns
objetos está latente e oculta, em outros é manifesta e quase palpável, num caso
provocando admiração, em outro, nem sequer chamando a atenção. É o que
ocorre com a natureza da consistência, que não é notada na madeira ou na pedra
e que é designada genericamente com o nome de solidez, sem se indagar acerca
da sua tendência de se furtar a qualquer separação ou solução de continuidade.
De outra parte, esse mesmo fato nas bolhas de água parece mais sutil e
engenhoso. As bolhas se constituem de películas curiosamente dispostas em
forma hemisférica de tal modo que, por um momento, evita-se a solução de
continuidade.
De fato, há casos em que as naturezas das coisas estão latentes, enquanto em
outros são manifestas e comuns, o que jamais será evidente se os experimentos
e as observações dos homens se restringirem apenas às primeiras.
Em geral, o vulgo tem por novos inventos, ou quando se aperfeiçoa algo já antes
inventado ou este se orna com mais elegância, ou quando se juntam ou
combinam partes dele antes separadas, ou quando se torna de uso mais cômodo,
ou, ainda, se alcança um resultado de maior ou menor massa ou volume que o
costume, e coisas do gênero.
Por isso não é de se admirar que não saiam à luz inventos mais nobres e dignos
do gênero humano, uma vez que os homens se contentam e se satisfazem com
empresas tão limitadas e pueris. E supõem terem buscado e alcançado algo de
grandioso.
LXXXIX
Não se deve esquecer de que, em todas as épocas, a filosofia se tem defrontado
com um adversário molesto e difícil na superstição e no zelo cego e
descomedido da religião.
60
A propósito veja-se como, entre os gregos, foram
condenados por impiedade os que, pela primeira vez, ousaram proclamar aos
ouvidos não afeitos dos homens as causas naturais do raio e das tempestades.
61
Não foram melhor acolhidos, por alguns dos antigos padres da religião cristã, os
que sustentaram, com demonstrações certíssimas que não seriam hoje
contraditas por nenhuma mente sensata , que a Terra era redonda e que, em
conseqüência, existiam antípodas.
62
Além disso, nas atuais circunstancias, as condições para a ciência natural se
tornaram mais árduas e perigosas devido às sumas e aos métodos da teologia
dos escolásticos. Estes, como lhes cumpria, ordenaram sistematicamente a
teologia, e lhe conferiram a forma de uma arte, e combinaram, com o corpo da
religião, a contenciosa e espinhosa filosofia de Aristóteles, mais que o
conveniente.
Ao mesmo resultado, mas por diverso caminho, conduzem as especulações dos
que procuraram deduzir a verdade da religião cristã dos princípios dos filósofos
e confirmá-la com sua autoridade, celebrando com grande pompa e solenidade,
como legítimo, o consórcio da fé com a razão e lisonjeiam, assim, o ânimo dos
homens com a grata variedade das coisas, enquanto, com disparidade de
condições, mesclam o humano e o divino. Mas essas combinações de teologia e
filosofia apenas compreendem o que é admitido pela filosofia corrente. As
coisas novas, mesmo levando a uma mudança para melhor, são não só repelidas,
como exterminadas.
Finalmente, constatar-se-á que, mercê da infâmia de alguns teólogos, foi quase
que totalmente barrado o acesso à filosofia, mesmo depurada. Alguns, em sua
simplicidade, temem que a investigação mais profunda da natureza avance além
dos limites permitidos pela sua sobriedade, transpondo, e dessa forma
distorcendo, o sentido do que dizem as Sagradas Escrituras a respeito dos que
querem penetrar os mistérios divinos, para os que se volvem para os segredos da
natureza, cuja exploração não está de maneira alguma interdita. Outros, mais
engenhosos, pretendem que, se se ignoram as causas segundas
63
será mais fácil
atribuir-se os eventos singulares à mão e à férula divinas o que pensam ser
do máximo interesse para a religião. Na verdade, procuram “agradar a Deus
pela mentira”.
64
Outros temem que, pelo exemplo, os movimentos e as mudanças da filosofia
acabem por recair e abater-se sobre a religião. Outros. finalmente, parecem
temer que a investigação da natureza acabe por subverter ou abalar a autoridade
da religião, sobretudo para os ignorantes. Mas estes dois últimos temores
parecem-nos saber inteiramente a um instinto próprio de animais, como se os
homens, no recesso de suas mentes e no segredo de suas reflexões,
desconfiassem e duvidassem da firmeza da religião e do império da fé sobre a
razão e, por isso, temessem o risco da investigação da verdade na natureza.
Contudo, bem consideradas as coisas, a filosofia natural, depois da palavra de
Deus, é a melhor medicina contra a superstição, e o alimento mais substancioso
da fé. Por isso, a filosofia natural é justamente reputada como a mais fiel serva
da religião, uma vez que uma (as Escrituras) torna manifesta a vontade de Deus,
outra (a filosofia natural) o seu poder. Certamente, não errou o que disse:
“Errais por ignorância das Escrituras e do poder de Deus”
65
onde se unem e
combinam em um único nexo a informação da vontade de Deus e a meditação
sobre o seu poder. Ademais, não é de se admirar que tenha sido coibido o
desenvolvimento da filosofia natural, desde que a religião, que tanto poder
exerce sobre o ânimo dos homens, graças à imperícia e o ciúme de alguns, viu-
se contra ela arrastada e predisposta.
XC
Por outro lado, nos costumes das instituições escolares, das academias, colégios
e estabelecimentos semelhantes, destinados à sede dos homens doutos e ao
cultivo do saber, tudo se dispõe de forma adversa ao progresso das ciências. De
fato, as lições e os exercícios estão de tal maneira dispostos que não é fácil
venha a mente de alguém pensar ou se concentrar em algo diferente do
rotineiro. Se um ou outro, de fato, se dispusesse a fazer uso de sua liberdade de
juízo, teria que, por si só, levar a cabo tal empresa, sem esperar receber qualquer
ajuda resultante do convívio com os demais. E, sendo ainda capaz de suportar
tal circunstância, acabará por descobrir que a sua indústria e descortino
acabarão por se constituir em não pequeno entrave à sua boa fortuna. Pois os
estudos dos homens, nesses locais, estão encerrados, como em um cárcere, em
escritos de alguns autores. Se alguém deles ousa dissentir, é logo censurado
como espírito turbulento e ávido de novidades. Mas, a tal respeito é preciso
assinalar que. com efeito, há uma grande diferença entre os assuntos políticos e
as artes
66
: não implicam o mesmo perigo um novo movimento e uma nova luz.
Na verdade, uma mudança da ordem civil, mesmo quando para melhor, é
suspeita de perturbação, visto que ela descansa sobre a autoridade, sobre a
conformidade geral, a fama e sobre a reputação e não sobre a demonstração.
Nas artes e nas ciências, ao contrário, o ruído das novas descobertas e dos
progressos ulteriores deve ressoar como nas minas de metal. Assim pelo menos
devia ser conforme os ditames da boa razão, mas tal não ocorre na prática, pois,
como antes assinalamos, a forma de administração das doutrinas e a forma de
ordenação das ciências costumam oprimir duramente o seu progresso.
XCI
Mesmo que viesse a cessar essa ojeriza, bastaria para coibir o progresso das
ciências o fato de a qualquer esforço ou labor faltar estímulo. Com efeito, não
estão nas mesmas mãos o cultivo das ciências e as suas recompensas. As
ciências progridem graças aos grandes engenhos, mas os estipêndios e os
prêmios estão nas mãos do vulgo e dos príncipes, que, raramente, são mais que
medianamente cultos. Dessa maneira, esse progresso não é apenas destituído de
recompensa e de reconhecimento dos homens, mas até mesmo do favor popular.
Acham-se as ciências acima do alcance da maior parte dos homens e são
facilmente destruídas e extintas pelos ventos da opinião vulgar. Daí não se
admirar que não tenha tido curso feliz o que não costuma ser favorecido com
honrarias.
XCII
Contudo, o que se tem constituído, de longe, no maior obstáculo ao progresso
das ciências e à propensão para novas tarefas e para a abertura de novas
províncias do saber é o desinteresse dos homens e a suposição de sua
impossibilidade. Os homens prudentes e severos, nesse terreno, mostram-se
desconfiados, levando em conta: a obscuridade da natureza, a brevidade da vida,
as falácias dos sentidos, a fragilidade do juízo, as dificuldades dos experimentos
e dificuldades semelhantes. Supõem existir, através das revoluções do tempo e
das idades do mundo, um certo fluxo e refluxo das ciências; em certas épocas
crescem e florescem; em outras declinam e definham, como se depois de um
certo grau e estado não pudessem ir além.
Se alguém espera ou promete algo maior, é acusado como espírito
descontrolado e imaturo e diz-se que em tais iniciativas o início é risonho, árduo
o andamento e confusa a conclusão. E, como essa sorte de ponderações acodem
facilmente aos homens graves e de juízo superior, devemos nos prevenir para
que, por amor de uma empresa soberba e belíssima, não venhamos relaxar ou
diminuir a severidade de nossos juízos. Devemos observar diligentemente se a
esperança refulge e donde ela provém e, afastando as mais leves brisas da espe-
rança, passar a discutir e a avaliar as coisas que pareçam apresentar firmeza.
Seja, aqui, invocada e aplicada a prudência política,
67
que desconfia por
princípio e nos assuntos humanos conjetura o pior. Falemos, pois, agora de
nossas aspirações. Não somos pródigos em promessas, nem procuraremos
coagir ou armar ciladas ao juízo humano, mas tomar os homens pela mão e
guiá-los, com a sua anuência. E, ainda que o meio, de longe mais poderoso de
se encorajar a esperança,
68
seja colocar os homens diante dos fatos particulares,
especialmente dos fatos tais como se acham recolhidos e ordenados em nossas
tabelas de investigação
69
tema que pertence parcialmente à segunda, mas
principalmente à quarta parte de nossa Instauração , já que não se trata mais,
no caso, de esperança, mas de algo real, todavia, como tudo deve ser feito
gradualmente, prosseguiremos no propósito já traçado de preparar a mente dos
homens. E nessa preparação não é parte pequena a indicação de esperanças.
Porque, afora isso, tudo o mais levaria tristeza ao homem ou a formar uma
opinião ainda mais pobre e vil que a que possui ou a fazê-lo sentir a condição
infeliz em que se encontra, em vez de alguma alegria ou a disposição para a
experimentação. Em vista disso, é necessário propor e explicar os argumentos
que tornam prováveis as nossas esperanças, tal como fez Colombo que, antes da
sua maravilhosa navegação pelo oceano Atlântico, expôs as razões que o
levaram a confiar na descoberta de novas terras e continentes, além do que já
era conhecido. Tais razões, de início rejeitadas, foram mais tarde comprovadas
pela experiência e se constituíram na causa e no princípio de grandes empresas.
XCIII
Porém, o supremo motivo de esperança emana de Deus. Com efeito, a empresa
a que nos propomos, pela sua excelência e intrínseca bondade, provém
manifestamente de Deus, que é Autor do bem e Pai das luzes. Pois bem, nas
obras divinas, mesmo os inícios mais tênues conduzem a um êxito certo. E o
que se disse da ordem espiritual, que “O reino de Deus não vem com aparência
exterior”,
70
é igualmente verdadeiro para todas as grandes obras da Divina
Providência. Tudo se realiza placidamente, sem estrépito e a obra se cumpre
antes que os homens a suponham ou vejam. Não se deve esquecer a profecia de
Daniel a respeito do fim do mundo: “Muitos passarão e a ciência se
multiplicará”,
71
o que evidentemente significa que está inscrito nos destinos, isto
é, nos desígnios da Providência, que o fim do mundo o que, depois de tantas e
tão distantes navegações parece haver-se cumprido ou está prestes a fazê-lo e
o progresso das ciências coincidam no tempo.
72
XCIV
Segue a mais importante das razões que alicerçam a esperança. É a que procede
dos erros dos tempos pretéritos e dos caminhos até agora tentados. Excelente é o
julgamento, feito por alguém, ao responsável por desastrosa administração do
Estado, com as seguintes palavras: “O que no passado foi causa de grandes
males deve parecer-nos princípio de prosperidade para o futuro. Pois, se
houvésseis cumprido perfeitamente tudo o que se relaciona com o vosso dever,
e, mesmo assim, não houvesse melhorado a situação dos vossos interesses, não
restaria qualquer esperança de que tal viesse a acontecer. Mas, como as más
circunstâncias em que se encontram não dependem das forças das coisas, mas
dos vossos próprios erros, é de se esperar que, estes corrigidos, haja uma grande
mudança e a situação se torne favorável”.
73
Do mesmo modo, se os homens, no
espaço de tantos anos, houvessem mantido a correta via da descoberta e do
cultivo das ciências, e mesmo assim não tivessem conseguido progredir, seria,
sem dúvida, tida como audaciosa e temerária a opinião no sentido de um
progresso possível. Mas uma vez que o caminho escolhido tenha sido o errado,
e a atividade humana se tenha consumido de forma inoperante, segue disso que
a dificuldade não radica nas próprias coisas, que fogem ao nosso alcance, mas
no intelecto humano, no seu uso e aplicação, o que é passível de remédio e
medicina. Por isso, estimamos ser oportuno expor esses erros. Pois, quantos
foram os erros do passado, tantas serão as razões de esperança
74
para o futuro.
Embora se tenha antes falado algo a seu respeito, é de toda conveniência expô-
las brevemente, em palavras simples e claras.
XCV
Os que se dedicaram às ciências foram ou empíricos ou dogmáticos. Os
empíricos, à maneira das formigas, acumulam e usam as provisões; os
racionalistas, à maneira das aranhas, de si mesmos extraem o que lhes serve
para a teia.
75
A abelha representa a posição intermediária: recolhe a matéria-
prima das flores do jardim e do campo e com seus próprios recursos a
transforma e digere. Não é diferente o labor da verdadeira filosofia, que se não
serve unicamente das forças da mente, nem tampouco se limita ao material
fornecido pela história natural ou pelas artes mecânicas, conservado intato na
memória. Mas ele deve ser modificado e elaborado pelo intelecto. Por isso
muito se deve esperar da aliança estreita e sólida (ainda não levada a cabo) entre
essas duas faculdades, a experimental e a racional.
XCVI
Ainda não foi criada uma filosofia natural pura. As existentes acham-se
infectadas e corrompidas: na escola de Aristóteles, pela lógica; na escola de
Platão, pela teologia natural; na segunda escola de Platão, a de Proclo e outros,
pela matemática,
76
a quem cabe rematar a filosofia e não engendrar ou produzir
a filosofia natural. Mas é de se esperar algo de melhor da filosofia natural pura e
sem mesclas.
XCVII
Até agora ninguém surgiu dotado de mente tão tenaz e rigorosa que haja
decidido, e a si mesmo imposto, livrar-se das teorias e noções comuns e aplicar,
integralmente, o intelecto, assim purificado e reequilibrado, aos fatos
particulares. Pois a nossa razão humana
77
é constituída de uma farragem e
massa de coisas, procedentes algumas de muita credulidade, e outras do acaso e
também de noções pueris, que recebemos desde o início.
É de se esperar algo melhor de alguém que, na idade madura, de plena posse de
seus sentidos e mente purificada, se dedique integralmente à experiência e ao
exame dos fatos particulares. Nesse sentido prometemo-nos a fortuna de
Alexandre Magno: que ninguém nos acuse de vaidade antes de constatar que o
nosso propósito final é o de banir toda vaidade.
Com efeito, de Alexandre e de suas façanhas assim falou Ésquines:
“Certamente, não vivemos uma vida mortal; mas nascemos para que a
posteridade narre e apregoe os nossos prodígios”, como que entendendo por
milagrosos os feitos de Alexandre.
78
Mas, em época posterior, Tito Lívio, apreciando e compreendendo melhor o
fato, disse de Alexandre algo como: “Em última instância, nada mais fez que ter
a ousadia de desprezar as coisas vãs”.
79
Cremos que nos tempos futuros far-se-á
a nosso respeito um juízo semelhante: De fato nada fizemos de grandioso;
apenas reduzimos as proporções do que era superestimado. Todavia, como já
dissemos, não há esperança senão na regeneração das ciências, vale dizer, na
sua reconstrução, segundo uma ordem certa, que as faça brotar da experiência.
Ninguém pode afirmar, segundo presumimos, que tal tarefa tenha sido feita ou
sequer cogitada.
XCVIII
Os fundamentos da experiência já que a ela sempre retomamos até agora
ou foram nulos ou foram muito inseguros. Até agora não se buscaram nem se
recolheram coleções
80
de fatos particulares, em número, gênero ou em exatidão,
capazes de informar de algum modo o intelecto. Mas, ao contrário, os doutos,
homens indolentes e crédulos, acolheram para estabelecer ou confirmar a sua
filosofia certos rumores, quase mesmo sussurros ou brisas
81
de experiência, a
que, apesar de tudo, atribuíram valor de legítimo testemunho. Dessa forma,
introduziu-se na filosofia, no que respeita à experiência, a mesma prática de um
reino ou Estado que cuidasse de seus negócios, não à base de informações de
representantes ou núncios fidedignos, mas dos rumores ou mexericos de seus
cidadãos. Nada se encontra na história natural devidamente investigado,
verificado, classificado, pesado e medido. E o que no terreno da observação é
indefinido e vago é falacioso e infiel na informação. Se alguém se admira de
que assim se fale e pensa não serem justos os nossos reclamos, ao se lembrar de
Aristóteles, homem tão grande ele próprio e apoiado nos recursos de um tão
grande rei,
82
que escreveu uma tão acurada História dos Animais; e de alguns
outros que a enriqueceram com mais diligência, mas com menos estrépito; e de
outros ainda, que fizeram o mesmo em relação às plantas, os metais, os fósseis,
com história e descrições abundantes, ele não se dá conta, não parece ver ou
compreender suficientemente o assunto de que tratamos. Pois uma é a marcha
da história natural, organizada por amor de si mesma,
83
outra, a que é destinada
a informar o intelecto com ordem (método), para fundar a filosofia. Essas duas
histórias naturais se diferenciam em muitos aspectos, principalmente nos
seguintes: a primeira compreende a variedade das espécies naturais e não os
experimentos das artes mecânicas. Com efeito, da mesma maneira que na vida
política o caráter de cada um, sua secreta disposição de ânimo e sentimentos
melhor se patenteiam em ocasiões de perturbação que em outras, assim também
os segredos da natureza melhor se revelam quando esta é submetida aos assaltos
84
das artes que quando deixada no seu curso natural. Em vista disso, é de se
esperar muito da filosofia natural quando a história natural que é a sua base e
fundamento esteja melhor construída. Até que isso aconteça nada se pode
esperar.
XCIX
Por sua vez, mesmo em meio à abundância dos experimentos mecânicos, há
grande escassez dos que mais contribuem e concorrem para informação do
intelecto. De fato, o artesão, despreocupado totalmente da busca da verdade, só
está atento e apenas estende as mãos para o que diretamente serve a sua obra
particular. Por isso, a esperança de um ulterior progresso das ciências estará
bem fundamentada quando se recolherem e reunirem na história natural muitos
experimentos que em si não encerram qualquer utilidade, mas que são
necessários na descoberta das causas e dos axiomas. A esses experimentos
costumamos designar por lucíferos, para diferenciá-los dos que chamamos de
frutíferos.
85
Aqueles experimentos têm, com efeito, admirável virtude ou
condição: a de nunca falhar ou frustrar, pois não se dirigem à realização de
qualquer obra, mas à revelação de alguma causa natural. Assim, qualquer que
seja o caso, satisfazem esse intento e assim resolvem a questão.
C
Deve-se buscar não apenas uma quantidade muito maior de experimentos, como
também de gênero diferente dos que até agora nos têm ocupado. Mas é
necessário, ainda, introduzir-se um método completamente novo, uma ordem
diferente e um novo processo, para continuar e promover a experiência. Pois a
experiência vaga, deixada a si mesma, como antes já se disse,
86
é um mero
tateio, e presta-se mais a confundir os homens que a informá-los. Mas quando a
experiência proceder de acordo com leis seguras e de forma gradual e constante,
poder-se-á esperar algo de melhor da ciência.
CI
Todavia, mesmo quando esteja pronto e preparado o material de história natural
e de experiência, na quantidade requerida para a obra do intelecto, ou seja, para
a obra da filosofia, nem assim o intelecto estará em condições de trabalhar o
referido material espontaneamente e apenas com o auxílio da memória. Seria o
mesmo que se tentasse aprender de memória e reter exatamente todos os
cálculos de uma tábua astronômica. E até agora, em matéria de invenção, tem
sido mais importante o papel da meditação que o da escrita, e a experiência não
é ainda literata.
87
Apesar disso, nenhuma forma de invenção é conclusiva senão
por escrito. E é de se esperar melhores frutos quando a experiência literata for
de uso corrente.
CII
Além disso, sendo tão grande o número dos fatos particulares, quase um
exército, e achando-se de tal modo esparsos e difusos que chegam a desagregar
e confundir o intelecto, não é de se esperar boa coisa das escaramuças, dos
ligeiros movimentos e incursões do intelecto, a não ser que, organizando e
coordenando todos os fatos relacionados a um objeto, se utilize de tabelas de
invenção idôneas e bem dispostas e como que vivas. Tais tabelas servirão à
mente como auxiliares preparados e ordenados.
CIII
Contudo, mesmo depois de se haver disposto, como que sob os olhos, de forma
correta e ordenada a massa de fatos particulares, não se pode ainda passar à
investigação e à descoberta de novos fatos particulares ou de novos resultados.
Se, não obstante, tal ocorrer, não é de se ficar satisfeito com apenas isso.
Todavia, não negamos que depois que os experimentos de todas as artes forem
recolhidos e organizados e, depois, levados à consideração e ao juízo de um só
homem, seja possível, pela simples transferência dos conhecimentos de uma
arte para outra, com auxílio da experiência a que chamamos de literata, chegar
a muitas novas descobertas úteis à vida humana e às suas condições. Todavia,
tais resultados, a bem dizer, são de menor importância. Na verdade muito
maiores serão os provenientes da nova luz dos axiomas, deduzidos dos fatos
particulares, com ordem e por via adequada, e que servem, por sua vez, para
indicar e designar novos fatos particulares. Atente-se para isto: o nosso caminho
não é plano, há nele subidas e descidas. É primeiro ascendente, em direção aos
axiomas, é descendente quando se volta para as obras.
CIV
Contudo, não se deve permitir que o intelecto salte e voe dos fatos particulares
aos axiomas remotos e aos, por assim dizer, mais gerais que são os chamados
princípios das artes e das coisas e depois procure, a partir da sua verdade
imutável, estabelecer e provar os axiomas médios. E é o que se tem feito até
agora graças à propensão natural do intelecto, afeito e adestrado desde há muito,
pelo emprego das demonstrações silogísticas. Muito se poderá esperar das
ciências quando, seguindo a verdadeira escala, por graus contínuos, sem
interrupção, ou falhas, se souber caminhar dos fatos particulares aos axiomas
menores, destes aos médios, os quais se elevam acima dos outros, e finalmente
aos mais gerais. Em verdade, os axiomas inferiores não se diferenciam muito da
simples experiência. Mas os axiomas tidos como supremos e mais gerais
(falamos dos de que dispomos hoje) são meramente conceituais ou abstratos
88
e
nada têm de sólido. Os médios são os axiomas verdadeiros, os sólidos e como
que vivos, e sobre os quais repousam os assuntos e a fortuna do gênero humano.
Também sobre eles se apoiam os axiomas generalíssimos, que são os mais
gerais. Estes entendemos não simplesmente como abstratos, mas realmente
limitados pelos axiomas intermediários. Assim, não é de se dar asas ao
intelecto, mas chumbo e peso para que lhe sejam coibidos o salto e o vôo. É o
que não foi feito até agora; quando vier a sê-lo, algo de melhor será lícito
esperar-se das ciências.
CV
Para a constituição de axiomas deve-se cogitar de uma forma de indução diversa
da usual até hoje e que deve servir para descobrir e demonstrar não apenas os
princípios como são correntemente chamados como também os axiomas
menores, médios e todos, em suma. Com efeito, a indução que procede por
simples enumeração é uma coisa pueril, leva a conclusões precárias, expõe-se
ao perigo de uma instância que a contradiga. Em geral, conclui a partir de um
mero de fatos particulares muito menor que o necessário e que são também os
de acesso mais fácil. Mas a indução que será útil para a descoberta e
demonstração das ciências e das artes deve analisar a natureza, procedendo às
devidas rejeições e exclusões, e depois, então, de posse dos casos negativos
necessários, concluir a respeito dos casos positivos. Ora, é o que não foi até hoje
feito, nem mesmo tentado, exceção feita, certas vezes, de Platão, que usa essa
forma de indução para tirar definições e idéias. Mas, para que essa indução ou
demonstração possa ser oferecida como uma ciência boa e legítima, deve-se
cuidar de um sem-número de coisas que nunca ocorreram a qualquer mortal.
Vai mesmo ser exigido mais esforço que o até agora despendido com o
silogismo. E o auxílio dessa indução deve ser invocado, não apenas para o
descobrimento de axiomas, mas também para definir as noções. E é nessa
indução que estão depositadas as maiores esperanças.
CVI
Na constituição de axiomas por meio dessa indução, é necessário que se
proceda a um exame ou prova: deve-se verificar se o axioma que se constitui é
adequado e está na exata medida dos fatos particulares de que foi extraído, se
não os excede em amplitude e latitude, se é confirmado com a designação de
novos fatos particulares que, por seu turno, irão servir como uma espécie de
garantia. Dessa forma, de um lado, será evitado que se fique adstrito aos fatos
particulares já conhecidos; de outro, que se cinja a sombras ou formas abstratas
em lugar de coisas sólidas e determinadas na sua matéria. Quando esse
procedimento for colocado em uso, teremos um motivo a mais para fundar as
nossas esperanças.
CVII
E aqui deve ser recordado o que antes se disse
89
sobre a extensão da filosofia
natural e sobre o retorno ao seu âmbito dos fatos particulares, para que não se
instaurem cisões ou rupturas no corpo das ciências. Pois sem tais precauções
muito menos há de se esperar em matéria de progresso.
CVIII
Tratou-se, pois, da forma de se eliminar a desesperação, bem como a de se
infundir a esperança, eliminando e retificando os erros dos tempos passados.
Vejamos se há ainda mais alguma coisa capaz de gerar esperanças. Tal de fato
ocorre, a saber: se foi possível a homens que não as buscavam descobrirem
muitas coisas, por acaso ou sorte, e até quando tinham outros propósitos, não
pode haver dúvida de que quando as buscarem e se empenharem com ordem e
método,
90
e não por impulsos e saltos, necessariamente muitas mais haverão de
ser descerradas. Por outro lado, pode ocorrer também, uma ou outra vez, que
alguém, por acaso, tope com algo que antes lhe escapou quando o buscava com
esforço e determinação. Mas na maior parte dos casos, sem dúvida, ocorrerá o
contrário. Por conseguinte, pode-se esperar muito mais e melhor e a menores
intervalos de tempo, da razão, da indústria, da direção e intenção dos homens
que do acaso e do instinto dos animais e coisas semelhantes, que até agora
serviram de base para as invenções.
CIX
Pode-se também acrescentar como argumento de esperança o fato de que muitos
dos inventos já logrados são de tal ordem que antes a ninguém foi dado sequer
suspeitar da sua possibilidade. Eram, ao contrário, olhados como coisas
impossíveis. E tal se deve a que os homens procuram adivinhar as coisas novas
a exemplo das antigas e com a imaginação preconcebida e viciada. Mas essa é
uma maneira de opinar sumamente falaciosa, pois a maioria das descobertas que
derivam das fontes das coisas não flui pelos regatos costumeiros.
Assim, por exemplo, se antes da invenção dos canhões alguém, baseado nos
seus efeitos, os descrevesse: foi inventada uma máquina que pode, de grande
distância, abalar e arrasar as mais poderosas fortificações, os homens então se
poriam a cogitar das diferentes e múltiplas formas de se aumentar a força de
suas máquinas bélicas pela combinação de pesos e rodas e dispositivos que tais,
causadores de embates e impulsos. Mas a ninguém ocorreria, mesmo em
imaginação ou fantasia, essa espécie de sopro violento e flamejante que se
propaga e explode. A sua volta não divisavam nenhum exemplo de algo
semelhante, a não ser o terremoto e o raio, que, como fenômenos naturais de
grandes proporções, não imitáveis pelo homem, seriam desde logo rejeitados.
Do mesmo modo, se antes da descoberta do fio da seda
91
alguém houvesse
falado: há uma espécie de fio para a confecção de vestes e alfaias que supera de
longe em delicadeza e resistência e, ainda, em esplendor e suavidade, o linho e a
lã, os homens logo se poriam a pensar em alguma planta chinesa, ou no pêlo
muito delicado de algum animal, ou na pluma ou penugem das aves; mas
ninguém haveria de imaginar o tecido de um pequeno verme tão abundante e
que se renova todos os anos. Se alguém se referisse ao verme teria sido objeto
de zombaria, como alguém que sonhasse com um novo tipo de teia de aranha.
Do mesmo modo, se antes da invenção da bússola
92
alguém houvesse falado ter
sido inventado um instrumento com o qual se poderia captar e distinguir com
exatidão os pontos cardeais do céu; os homens se teriam lançado, levados pela
imaginação, a conjeturar a construção dos mais rebuscados instrumentos
astronômicos, e pareceria de todo incrível que se pudesse inventar um
instrumento com movimentos coincidentes com os dos céus, sem ser de
substância celeste, mas apenas de pedra ou metal. Contudo, tais inventos e ou-
tros semelhantes permaneceram ignorados pelos homens por tantos séculos, e
não foram descobertos pelas artes, mas graças ao acaso e oportunidade. Por
outro lado, são de tal ordem (como já dissemos), são tão heterogêneos e tão
distantes do que antes era conhecido que nenhuma noção anterior teria podido
conduzir a eles.
Desse modo, é de se esperar que há ainda recônditas, no seio da natureza,
muitas coisas de grande utilidade, que não guardam qualquer espécie de relação
ou paralelismo com as já conhecidas, mas que estão fora das rotas da
imaginação. Até agora não foram descobertas.
Mas não há dúvida de que no transcurso do tempo e no decorrer dos séculos
virão à luz, do mesmo modo que as antes referidas. Mas, seguindo o caminho
que estamos apontando, elas podem ser mostradas muito antes do tempo usual,
podem ser antecipadas, de forma rápida, repentina e simultaneamente.
CX
Mas há outra espécie de invenções que são de tal ordem que nos levam a pensar
que o gênero humano pode preteri-las, e deixar para trás nobres inventos
praticamente colocados a seus pés. Pois, com efeito, se, de um lado, a invenção
da pólvora, da seda, da agulha de marear, do açúcar, do papel e outras do gênero
parecem se basear em propriedades das coisas e da natureza, de outro, a
imprensa nada apresenta que não seja manifesto e quase óbvio.
De fato, os homens não foram capazes de notar que, se é mais difícil a
disposição dos caracteres tipográficos que escrever as letras à mão, aqueles,
uma vez colocados, propiciam um número infinito de cópias, enquanto que as
letras à mão só servem para uma escrita. Ou talvez não tenham sido capazes de
notar que a tinta poderia ser espessada de forma a tingir sem escorrer
(mormente quando se faz a impressão sobre as letras voltadas para cima). Eis
por que por tantos séculos não se pôde contar com essa admirável invenção, tão
propicia à propagação do saber.
93
Mas a mente humana, no curso dos descobrimentos, tem estado tão desastrada e
mal dirigida que primeiro desconfia de si mesma e depois se despreza. Primeiro
lhe parece impossível certo invento; depois de realizado, considera incrível que
os homens não o tenham feito há mais tempo. É isso mesmo que reforça os
nossos motivos de esperança, pois subsiste ainda um sem-número de
descobrimentos a serem feitos, que podem ser alcançados através da já
mencionada experiência literata, não só para se descobrirem operações
desconhecidas, como também para transferir, juntar e aplicar as já conhecidas.
CXI
Há ainda um outro motivo de esperança que não pode ser omitido. Que os
homens se dignem considerar o infinito dispêndio de tempo, de orgulho e de
dinheiro que se tem consumido em coisas e estudos sem importância e
utilidade! Se apenas uma pequena parte desses recursos fosse canalizada para
coisas mais sensatas e sólidas, não haveria dificuldade que não pudesse ser
superada. Parece oportuno acrescentar isso porque reconhecemos com toda
franqueza que uma coleção de história natural e experimental, tal como a
concebemos e como deve ser, é uma empresa grandiosa e quase real, que requer
muito trabalho e muitos gastos.
94
CXII
Contudo, ninguém deve temer a multidão de fatos particulares que, na verdade,
pode ser tida como mais um motivo de esperança. Pois os fenômenos
particulares das artes e da natureza, quando afastados e abstraídos da evidência
das coisas, são como manípulos para o trabalho do espírito. E a via dos
particulares conduz ao campo aberto e não está longe de nós. A outra não tem
saída e leva a emaranhados sem fim. Os homens, até agora, pouco e muito
superficialmente se têm dedicado à experiência, mas têm consagrado um tempo
infinito a meditações e divagações engenhosas. Mas se houvesse entre nós
alguém pronto a responder às interrogações incitadas pela natureza, em poucos
anos seria realizado o descobrimento de todas as causas e o estabelecimento de
todas as ciências.
CXIII
Pensamos também que o nosso próprio exemplo poderia servir aos homens de
motivo para esperanças e dizemos isso não por jactância, mas pela sua utilidade.
Os que desconfiam considerem a mim, que sou dentre os homens de meu tempo
o mais ocupado dos negócios de Estado,
95
com saúde vacilante o que
representa grande dispêndio de tempo e pioneiro deste rumo, pois não sigo as
pegadas de ninguém, e sem comunicar estes assuntos a qualquer outro mortal.
96
E no entanto prossegui constantemente, pelo caminho verdadeiro, submetendo o
meu espírito às coisas, tendo assim conseguido, segundo penso, algum
resultado. Considerem em seguida quanto se poderia esperar (tomando o meu
exemplo) de homens com todo o seu tempo disponível, associados no trabalho,
tendo pela frente todo o tempo necessário e levando-se em conta também que se
trata de um caminho que pode ser percorrido não apenas por um indivíduo
(como no caminho racional)
97
mas que permite que o trabalho e a colaboração
de muitos se distribuam perfeitamente (em especial para a coleta de dados da
experiência). Aí então os homens começarão a conhecer as suas próprias forças,
isto é, não quando todos se dediquem à mesma tarefa, mas quando cada um a
uma tarefa diferente.
98
CXIV
Finalmente, ainda que não tenha soprado mais que uma débil e obscura aura de
esperança procedente desse novo continente,
99
entendemos deva ser feita a
prova, se não quisermos dar mostras de um espírito completamente abjeto. Pois
não há paridade entre o risco que se corre ao não se tentar a prova e o
proveniente do insucesso. No primeiro caso nos expomos à perda de um imenso
bem; no segundo, há uma pequena perda de trabalho humano. Assim, tanto do
que se há dito como do que não se disse, parece subsistirem grandes motivos
para que o homem destemido se disponha a tentar e para que o prudente e
comedido adquira confiança.
CXV
Expusemos até aqui as diversas formas de se tolher a desesperação,
100
apontada
como um dos principais obstáculos e causas poderosas de retardamento do
progresso das ciências. Concluímos também nossa explanação a respeito dos
signos e causas dos erros, da inércia e da ignorância até agora predominantes.
Deve ser lembrado também que as causas mais sutis desses óbices, que se
acham fora do alcance do juízo e observação popular, devem ser buscadas no
que já se disse a respeito dos ídolos do espírito humano.
Aqui termina igualmente a parte destrutiva de nossa Instauração,
101
que
compreende três refutações: refutação da razão humana natural e deixada a si
mesma, refutação das demonstrações e refutação das teorias, ou dos sistemas
filosóficos e doutrinas aceitos. Essa refutação foi cumprida tal como era
possível, isto é, por meio dos signos e dos erros evidentes. Não podíamos
empregar nenhum outro nero de refutação, por dissentirmos das demais
quanto aos princípios e quanto às formas de demonstração.
É tempo, pois, de passarmos à arte e às normas de interpretação da natureza.
Mas há ainda algo a ser lembrado. Como nosso propósito neste primeiro livro
de aforismos foi o de preparar a mente dos homens tanto para entender quanto
para aceitar o que se seguirá, e estando já limpo, desbastado e igualado o terreno
da mente, é de se esperar que ela se coloque em boa postura e em disposição
benévola em relação ao que a ela iremos propor.
Com efeito, quando se trata de coisa nova, induz ao prejuízo não apenas a
preocupação de uma eminente opinião antiga, como também a falsa concepção
ou representação antes formada a respeito do assunto. Por isso nos esforçaremos
para conseguir que sejam consideradas como corretas e verdadeiras as nossas
opiniões, mesmo que por algum tempo, como que em confiança, até que se
tenha adquirido conhecimento da coisa mesma.
CXVI
Em primeiro lugar, pedimos aos homens que não presumam ser nosso
propósito, à maneira dos antigos gregos, ou de alguns modernos, como Telésio,
Patrizzi e Severino, fundar alguma nova seita de filosofia.
102
Não temos tal
desígnio, e nem julgamos de muito interesse para a fortuna dos homens saber
que opiniões abstratas pode ter alguém sobre a natureza ou os princípios das
coisas. Não há dúvida de que muitas opiniões dos antigos podem ser
ressuscitadas e outras novas introduzidas, assim como se podem supor muitas
teorias dos céus que, embora guardando muito bom acordo com os fenômenos,
difiram entre si.
Mas não nos ocuparemos de tais coisas suscetíveis de opiniões e também
inúteis. Ao contrário, a nossa disposição é de investigar a possibilidade de
realmente estender os limites do poder ou da grandeza do homem e tornar mais
sólidos os seus fundamentos. Ainda que isoladamente e em alguns aspectos
particulares tenhamos alcançado, assim nos parece, resultados mais verdadeiros,
mais sólidos, e ainda mais fecundos que aqueles a que chegaram os homens que
deles até agora se ocuparam (o que resumimos na quinta parte da nossa
Instauração),
103
todavia não pretendemos propor qualquer teoria universal ou
acabada. Não parece ter chegado ainda o momento de fazê-lo. Por isso, não
nutrimos esperanças de que a duração de nossa vida chegue para concluir a
sexta parte de nossa Instauração,
104
que está destinada a contar a filosofia
descoberta a partir da legítima interpretação da natureza. Mas nos daremos por
satisfeitos se conseguirmos agir com sobriedade e proficiência nas partes
intermediárias, e lançar aos pósteros as sementes de uma verdade mais sincera,
e não nos furtamos pelo menos ao início das grandes empresas.
CXVII
E do mesmo modo que não somos fundadores de uma escola, não nos propomos
a prometer ou desenvolver obras de caráter particular.
105
Contudo, poderia
alguém nos exigir, como penhor, que apresentássemos de nossa parte alguma
produção, já que tanto falamos de obras e a elas tudo relacionamos. O nosso
plano e o nosso verdadeiro procedimento como já o dissemos muitas vezes e
de bom grado o repetimos consiste em não extrair obras de obras e
experimentos de experimentos, como fazem os artífices. Pretendemos deduzir
das obras e experimentos as causas e os axiomas e depois, das causas e
princípios, novas obras e experimentos, como cumpre aos legítimos intérpretes
da natureza.
Mas em nossas tábuas de descoberta
106
que compreendem a quarta
parte
107
da nossa Instauração e também pelos exemplos particulares que
constam da nossa segunda parte e ainda nas nossas observações sobre
história que estão na terceira parte
108
qualquer pessoa de mediana
perspicácia e engenho notará aqui indicações e designações de muitas obras
importantes. Mas confessamos abertamente que a história natural de que
dispomos, seja a recolhida dos livros, seja a resultante de nossas próprias
investigações, não é nem tão abundante nem tão comprovada a ponto de satis-
fazer e bastar às exigências da legítima interpretação.
Assim, se há alguém mais apto e preparado para a mecânica e mais sagaz para a
busca de novos resultados só com o uso dos experimentos, consentimos e
confiamos à sua indústria a coleta de minha história e de minhas tábuas, muitas
coisas pelo caminho, conferindo-lhe um uso prático e recebendo um interesse
provisório, até que alcance o êxito definitivo. Quanto a nós, na verdade, como
pretendemos mais, condenamos toda demora precipitada e prematura em coisas
como essas a exemplo das maçãs de Atalanta,
109
como muitas vezes costumo
dizer. Com efeito, não procuramos puerilmente os pomos dourados, antes tudo
depositamos na marcha triunfal da arte sobre a natureza. Não nos apressamos a
colher o musgo ou as espigas ainda verdes: é a messe sazonada que
aguardamos.
CXVIII
Examinando nossa história natural e nossas tábuas de descoberta certamente
ocorrerá a alguém a existência, em nossos experimentos, de aspectos não bem
comprovados, ou, mesmo, serem eles totalmente falsos. Em vista disso, passará
a refutar os novos descobrimentos como se apoiados em fundamentos e
princípios duvidosos ou falsos. Na verdade, isso nada significa, pois é
necessário que tal aconteça no início. Seria como se na escrita ou na impressão
uma ou outra letra estivessem mal colocadas (ou fora do lugar), o que não
chegaria a confundir muito o leitor, uma vez que o próprio sentido acaba facil-
mente por corrigir os erros. Da mesma maneira, reflitam os homens que na
história natural muitos falsos experimentos podem ser tomados e aceitos como
verdadeiros, e mais tarde facilmente rejeitados e expurgados, quando da
descoberta de causas e de axiomas. É igualmente verdadeiro que se encontra na
história natural e nos experimentos uma série longa e contínua de erros que,
todavia, não poderão ser corrigidos pela boa disposição do engenho.
Em vista disso, se a nova história natural que foi coligida e comprovada com
tanta diligência, severidade e zelo quase religioso deixa passar algum erro ou
falsidade nos fatos particulares, o que se poderá dizer então da história natural
corrente que é, em comparação com a nossa, tão negligente e superficial? Ou da
filosofia codificada sobre a areia ou sirtes? Portanto, ninguém se deve preocupar
com o que foi dito.
CXIX
Serão também encontradas em nossa história natural e em nossos experimentos
muitas coisas superficiais e comuns, outras vis e mesmo grosseiras, finalmente
outras sutis e meramente especulativas e quase sem qualquer utilidade. Coisas,
enfim, que poderiam afastar os homens do estudo, bem como desgostá-los.
Quanto às coisas que parecem comuns, reflitam os homens em sua conduta
habitual que não tem sido outra que referir e adaptar as causas das coisas que
raramente ocorrem às que ocorrem com freqüência, sem, todavia, indagar das
causas daquelas mais freqüentes, aceitando-as como fatos admitidos e
assentados.
Dessa forma, não buscam as causas do peso, da rotação dos corpos celestes, do
calor, do frio, da luz, do duro, do mole, do tênue, do denso, do líquido, do
sólido, do animado, do inanimado, do semelhante, do dessemelhante, e nem
tampouco do orgânico. Antes, tomam tais coisas por evidentes e manifestas e se
entregam à disputa e à determinação das que não ocorrem com tanta freqüência
e não são tão familiares.
Mas, quanto a nós, que sabemos não se poder formular juízos acerca das coisas
raras e extraordinárias e muito menos trazer à luz algo de novo, antes de se
terem examinado devidamente e de se haverem descoberto as causas das coisas
comuns, e as causas das causas, fomos compelidos, por necessidade, a acolher
em nossa história as coisas mais comuns. Por isso, estabelecemos que não
nada tão pernicioso à filosofia como o fato de as coisas familiares e que
ocorrem com freqüência não atraírem e não prenderem a reflexão dos homens,
mas serem admitidas sem exame e investigação das suas causas. Disso resulta
que é mais freqüente recolherem-se informações sobre as coisas desconhecidas
que dedicar-se atenção às já conhecidas.
CXX
Com referência a fatos considerados vis e torpes, aos quais (como diz Plínio),
110
é necessário render homenagem, devem integrar, não menos que os mais
brilhantes e preciosos, a história natural. Não será a história natural maculada:
do mesmo modo que também não se macula o sol que penetra igualmente
palácios e cloacas. Não pretendemos dedicar ou construir um capitólio ou uma
pirâmide à soberba humana. Mas fundamos no intelecto humano um templo
santo à imagem do mundo. E por ele nos pautamos. Pois tudo o que é digno de
existir é digno de ciência, que é a imagem da realidade. As coisas vis existem
tanto quanto as admiráveis. E indo mais longe: do mesmo modo que se
produzem excelentes aromas de matérias pútridas, como o almíscar e a algália,
também de circunstâncias vis e sórdidas emanam luz e exímias informações. E
isso é suficiente, pois esse gênero de desagrado é pueril e efeminado.
CXXI
Há ainda outro assunto que deve merecer o mais acurado exame. É que muitas
das coisas da nossa história parecerão, ao intelecto vulgar e a qualquer mente
afeita às coisas presentes, curiosas e de uma sutileza inútil. Disso já tratamos e
vamos repetir o que antes dissemos: de início e por certo tempo, buscamos
apenas os experimentos lucíferos e não os experimentos frutíferos, tomando por
exemplo a criação divina que, como temos reiterado, no primeiro dia produziu
unicamente a luz, a ela dedicando todo um dia, não se aplicando nesse dia a
nenhuma obra material.
Se alguém reputa tais coisas como destituídas de uso, seria o mesmo que
entendesse não ter também a luz qualquer uso, por não se tratar de uma coisa
sólida ou material. E, a bem da verdade, deve ser dito que o conhecimento das
naturezas simples,
111
quando bem examinado e definido, é como a luz, que abre
caminho ao segredo de todas as obras, e com o poder que lhe é próprio abrange
e arrasta todas as legiões e exércitos de obras e as fontes dos axiomas mais
nobres, não sendo, contudo, em si mesma de grande uso. Da mesma forma, as
letras do alfabeto, em si e tomadas isoladamente, nada significam e a nada
servem. Contudo, são como que a matéria-prima para a composição e
preparação de todo discurso. Assim também as sementes das coisas têm
virtualmente grande poder, mas fora de seu processo de desenvolvimento para
nada servem. E os raios dispersos da própria luz, se não convergentes, não
produzem beneficio.
Se alguém se ofende com as sutilezas especulativas, o que dizer então dos
escolásticos que, com tanta indulgência, se entregaram às sutilezas? Tais
sutilezas se consumiam nas palavras ou, pelo menos, em noções vulgares (o que
dá no mesmo), não penetravam nas coisas ou na natureza. Não ofereciam
utilidade não só em suas origens, como também em suas conseqüências. E não
eram, enfim, de tal forma que, como as de que nos ocupamos, não tendo
utilidade no presente, oferecem-na infinita em suas conseqüências. Tenham os
homens por certo que toda sutileza nas disputas ou nos esforços da mente, se
aplicada depois da descoberta dos axiomas, será extemporânea e que o
momento próprio, pelo menos precípuo do uso de sutilezas, é aquele em que se
examina a experiência, para a partir dela se constituírem os axiomas. Com
efeito, aquele outro gênero de sutileza persegue e procura captar a natureza, mas
nunca a alcança e submete. É muito certo, se transposto para a natureza, o que
se diz da ocasião e da fortuna, “que tem fartos cabelos vista de frente e é calva
vista de trás”.
112
Enfim, a propósito do desprezo que se vota, na história natural, às coisas
vulgares, vis ou muito sutis ou de nenhuma utilidade, em sua origem, são como
oraculares as palavras de uma pobre mulher, dirigidas a um príncipe arrogante,
que rejeitara sua petição por ser indigna de sua majestade: “Deixa, pois, de ser
rei”.
113
Pois é absolutamente certo que ninguém que deixe de levar em conta
essas coisas, por ínfimas e insignificantes que sejam, conseguirá e poderá
exercer domínio sobre a natureza.
CXXII
Costuma-se objetar também ser espantoso e muito rigoroso querermos, de um
só golpe, rechaçar todas as ciências e todos os autores e, isso, sem recorrer a
nenhum dos antigos, para auxílio ou defesa, valendo-nos apenas de nossas
próprias forças.
Entretanto, sabemos perfeitamente que, se quiséssemos agir com menos boa fé
não nos seria difícil relacionar o que vamos expor com os tempos antigos
anteriores aos dos gregos, nos quais as ciências, especialmente as da natureza,
mais floresceram, ainda em silêncio, antes de passarem pelas trombetas e flautas
dos gregos; ou, mesmo ainda que em parte, com alguns dentre os próprios
gregos, neles recolhendo apoio e glória, à maneira dos novos-ricos que, com
ajuda de genealogias, forjam e inventam a sua nobreza, a partir da descendência
de alguma antiga linhagem. Quanto a nós apoiados na evidência dos fatos,
rejeitamos toda sorte de fantasia ou impostura. E não reputamos de interesse
para o que nos ocupa o saber-se se o que vai ser descoberto já era conhecido dos
antigos ou se está sujeito às vicissitudes das coisas ou às circunstâncias desta ou
daquela idade. Tampouco parece digno da preocupação dos homens o saber-se
se o Novo Mundo é aquela ilha Atlântida, conhecida dos antigos, ou se foi des-
coberta agora pela primeira vez. A descoberta das coisas deve ser feita com
recurso à luz da natureza e não pelas trevas da Antiguidade.
Quanto à censura universal que fizemos, é inquestionável, bem considerado o
assunto, que parece mais plausível e mais modesta se feita por partes. Pois, se
os erros não se tivessem radicado nas noções primeiras, não teria sido possível
que certas noções corretas não tivessem corrigido as demais (portadoras de
erros). Mas como os erros são fundamentais e não provenientes de juízos falhos
ou falsos, mas da negligência e da ligeireza com que os homens trataram os
fatos, não é de se admirar que não tenham conseguido o que não buscaram e que
não tenham alcançado a meta que se não tinham proposto, e, ainda, que não
tenham percorrido um caminho em que não entraram ou de que se transviaram.
E, se nos acusam de arrogantes, cumpre-nos observar que isso seria verdadeiro
de alguém que pretendesse traçar uma linha reta ou um círculo, melhor que
algum outro, servindo-se apenas da segurança das mãos e do bom golpe de
vista. No caso, haveria uma comparação de capacidade. Mas se alguém afirma
poder traçar uma linha mais reta e um círculo mais perfeito servindo-se da régua
e do compasso, em comparação a alguém que faça uso apenas das mãos e da
vista, esse com certeza não seria um jactancioso. O que ora dizemos não se
refere somente aos nossos primeiros esforços e tentativas, mas também aos dos
que se seguiram com os mesmos propósitos. Pois o nosso método de descoberta
das ciências quase que iguala os engenhos e não deixa muita margem à
excelência individual, pois tudo submete a regras rígidas e demonstrações. Eis
por que, como já o dissemos muitas vezes, a nossa obra deve ser atribuída mais
à sorte que à habilidade, e é mais parto do tempo que do talento. Pois parece não
haver dúvidas de que uma espécie de acaso intervém tanto no pensamento dos
homens quanto nas obras e nos fatos.
CXXIII
Assim, diremos de nós o que alguém, por gracejo, disse de si: “Não podem ter a
mesma opinião quem bebe água e quem bebe vinho”.
114
Com efeito, os demais
homens, tanto os antigos como os modernos, beberam nas ciências um licor cru,
como a água que mana espontaneamente de sua inteligência, ou haurido pela
dialética, como de um poço, por meio de roldanas. Mas, de nossa parte,
bebemos e brindamos um licor preparado com abundantes uvas, amadurecidas
na estação, de racemos escolhidos, logo espremidas no lagar, e depois
purificado e clarificado em vasilhame próprio. Em vista disso, não é de se
admirar que não nos ponhamos de acordo com eles.
CXXIV
Podem fazer-nos ainda outra objeção: a de que mesmo nós não prefixamos para
as ciências a meta e o escopo melhores e mais verdadeiros, fato que censuramos
em outros. E que a contemplação da verdade é mais digna e elevada que a
utilidade e a grandeza de qualquer obra,
115
e também que essa longa, solícita e
instante dedicação à experiência, à matéria e ao fluxo das coisas particulares
curva a mente para a terra ou mesmo a abandona a um Tártaro de confusão e
desordem e a afasta e distancia da serenidade e tranqüilidade da sabedoria
abstrata, que é muito mais próxima do divino. De bom grado assentimos nessas
observações, pois tratamos, precipuamente e antes de mais nada, de alcançar o
que os nossos críticos indicam e escolhem. Efetivamente construímos no
intelecto humano um modelo verdadeiro
116
do mundo, tal qual foi descoberto e
não segundo o capricho da razão de fulano ou beltrano. Porém, isso não é
possível levar a efeito, sem uma prévia e diligentíssima dissecção e anatomia do
mundo. Por isso, decidimos correr com todas essas imagens ineptas e simiescas
que a fantasia humana infundiu nos vários sistemas filosóficos. Saibam os
homens como já antes dissemos a imensa distância que separa os ídolos da
mente humana das idéias da mente divina.
117
Aqueles, de fato, nada mais são
que abstrações arbitrárias; estas, ao contrário, são as verdadeiras marcas do
Criador sobre as criaturas, gravadas e determinadas sobre a matéria, através de
linhas exatas e delicadas. Por conseguinte, as coisas em si mesmas, neste
gênero, são verdade e utilidade,
118
e as obras devem ser estimadas mais como
garantia da verdade que pelas comodidades que propiciam à vida humana.
119
CXXV
Pode ser também que sejamos tachados de fazer algo já feito antes e que mesmo
os antigos seguiram já semelhante caminho. Assim, qualquer um poderá tomar
como verossímil que, depois de tanta agitação e esforço, acabamos por cair em
uma daquelas filosofias instituídas pelos antigos. Também eles partiam em suas
meditações de grande quantidade e acúmulo de exemplos e fatos particulares e
os dispunham separadamente segundo os assuntos. A seguir compunham as
suas filosofias e as suas artes e, depois de procederam a uma verificação,
enunciavam as suas opiniões, não sem antes ter acrescentado, aqui e ali,
exemplos, a título de prova ou de elucidação. Todavia, consideraram supérfluo e
fastidioso transcrever suas notas de fatos particulares, apontamentos e
comentários e, dessa forma, imitaram o procedimento usado na construção:
depois de terminado o edifício foram removidos da vista as máquinas e os
andaimes. Não há motivo para crer que tenham procedido de outra forma. Mas
quem não se esqueceu do que dissemos antes, facilmente responderá a essa
objeção, que é, na verdade, mais um escrúpulo. A forma
120
de investigação e de
descoberta própria dos antigos, e sabemo-lo bem, se encontra expressa em seus
escritos. E essa forma não consistia em mais que galgar de um salto, a partir de
alguns exemplos e fatos particulares (juntamente com noções comuns e talvez
uma certa porção das opiniões mais aceitas), às conclusões mais gerais ou aos
princípios das ciências, Depois, a partir dessas verdades tidas como imutáveis e
fixas, por meio de proposições intermediárias, estabeleciam as conclusões
inferiores e, a partir destas, constituíam a arte. Se, porventura, surgissem novos
fatos particulares e exemplos que contrariassem as suas afirmações, por meio de
distinções ou da aplicação de suas regras encaixavam-nos em suas doutrinas ou,
quando não, grosseiramente os descartavam como exceções. E as causas dos
fatos particulares, não conflitantes com os seus princípios, essas eram pertinaz e
laboriosamente a eles acomodadas. Aquela experiência e aquela história natural
não eram, pois, o que deviam ser, estavam antes muito longe e, ademais, esse
vôo súbito aos princípios mais gerais punha tudo a perder.
CXXVI
Ainda nos pode ser endereçado o reparo de que, sob o pretexto de admitirmos
unicamente a enunciação de juízos e o estabelecimento de princípios certos, só
depois de se terem alcançado as verdades mais gerais, rigorosamente a partir de
graus intermediários, sustentamos a suspensão do juízo e acabamos assim por
cair em uma espécie de acatalepsia. Mas, em verdade, não cogitamos e nem
propomos a acatalepsia, mas a eucatalepsia,
121
pois não pretendemos abdicar
dos sentidos, mas ampará-los; nem desprezar o intelecto, mas dirigi-lo. Enfim, é
melhor saber-se tudo o que ainda está para ser feito, supondo que não o
sabemos, que supor-se que bem o sabemos, e ignorar totalmente o que nos falta.
CXXVII
Ainda nos pode ser indagado, mais como dúvida que como objeção, se
intentamos, com nosso método, aperfeiçoar apenas a filosofia natural
122
ou
também as demais ciências: a lógica, a ética e a política. Ora, o que dissemos
deve ser tomado como se estendendo a todas as ciências. Do mesmo modo que
a lógica vulgar, que ordena tudo segundo o silogismo, aplica-se não somente às
ciências naturais, mas a todas as ciências, assim também a nossa lógica, que
procede por indução, tudo abarca. Por isso, pretendemos constituir história e
tábuas de descobertas para a ira, o medo, a vergonha e assuntos semelhantes; e
também para exemplos das coisas civis e, não menos, para as operações
mentais, como a memória, para a composição e a divisão,
123
para o juízo,
124
etc.
E, ainda, para o calor, para o frio, para a luz, vegetação e assuntos semelhantes.
Porém, como o nosso método de interpretação, uma vez preparada e ordenada a
história, não se dirige unicamente aos processos discursivos da mente, como a
lógica vulgar, mas à natureza de todas as coisas, tratamos de conduzir a mente
de tal modo que possa se aplicar à natureza das coisas, de forma adequada a
cada caso particular. É por isso que na doutrina da interpretação indicamos
muitos e diversos preceitos que, de alguma forma, ajustam o método de
investigação às qualidades e condições do assunto que se considera.
CXXVIII
Mas no que não pode pairar qualquer dúvida é quanto à nossa pretensa ambição
de destruir e demolir a filosofia, as artes e as ciências, ora em uso. Antes pelo
contrário, admitimos de bom grado o seu uso, o seu cultivo e o respeito de que
gozam. De modo algum nos opomos a que as artes comumente empregadas
continuem a estimular as disputas, a ornar os discursos, sirvam às conveniências
professorais e aproveitem os reclamos da vida civil e, como as moedas, circu-
lem graças ao consenso dos homens. Indo mais longe, declaramos abertamente
que tudo o que propomos não há de ser de muito préstimo a esse tipo de usos,
uma vez que não poderá ser colocado ao alcance do vulgo, a não ser pelos seus
efeitos e pelas obras propiciados. São testemunho de nossa boa disposição e de
nossa boa vontade, para com as ciências ora aceitas, nossos escritos já
publicados, especialmente os livros sobre O Progresso das Ciências.
125
Não
intentamos, por isso, prová-lo melhor com palavras. Contudo, advertimos de
modo claro e firme que com os atuais métodos não se pode lograr grandes
progressos nas doutrinas e nas indagações sobre ciências, e bem por isso não se
podem esperar significativos resultados práticos.
CXXIX
Resta-nos dizer algumas palavras acerca da excelência do fim proposto. Se as
tivéssemos dito logo de início, poderiam ser tomadas por simples aspirações.
Mas, uma vez que firmamos as esperanças e eliminamos os iníquos prejuízos,
terão certamente mais peso. Se tivéssemos conduzido e realizado tudo sem
invocar a participação e a ajuda de outros para a nossa empresa, nesse caso,
abster-nos-íamos de quaisquer palavras, para que não fossem tomadas como
proclamadoras de nossos próprios méritos. Mas, como é necessário estimular a
indústria dos outros homens, e mesmo excitar e inflamar-lhes o ânimo, é de toda
conveniência fixar certos pontos em suas mentes.
Em primeiro lugar, parece-nos que a introdução de notáveis descobertas ocupa
de longe o mais alto posto entre as ações humanas. Esse foi também o juízo dos
antigos. Os antigos, com efeito, tributavam honras divinas aos inventores,
126
enquanto que concediam aos que se distinguiam em cometimentos públicos,
como os fundadores de cidades e impérios, os legisladores, os libertadores da
pátria de males repetidos, os debeladores das tiranias, etc., simplesmente honras
de heróis. E, em verdade, a quem estabelecer entre ambas as coisas um
confronto correto, parecerá justo o juízo daqueles tempos remotos. Pois, de fato,
os benefícios dos inventos podem estender-se a todo o gênero humano, e os
benefícios civis alcançam apenas algumas comunidades e estes duram poucas
idades, enquanto que aqueles podem durar para sempre. Por outro lado, a
reforma de um Estado dificilmente se cumpre sem violência e perturbação, mas
os inventos trazem venturas e os seus benefícios a ninguém prejudicam ou
amarguram.
Além disso, os inventos são como criações e imitações das obras divinas, como
bem cantou o poeta:
Primum frugiferos foetus mortalibus aegris
Dididerant quondam praestanti nomini Athenae
Et RECREAVERUNT vitam legesque rogarunt.
127
E é digno de nota o exemplo de Salomão, eminente pelo império, pelo ouro,
pela magnificência de suas obras, pela escolta e famulagem, pela sua frota, pela
imensa admiração que provocava nos homens, e que nada dessas coisas elegeu
para a sua glória, e em vez disso proclamou: “A glória de Deus consiste em
ocultar a coisa, a glória do rei em descobri-la”.
128
Considere-se ainda, se se quiser, quanta diferença há entre a vida humana de
uma região das mais civilizadas da Europa e uma região das mais selvagens e
bárbaras da Nova Índia.
129
Ela parecerá tão grande que se poderá dizer que “O
homem é Deus para o homem”,
130
, não só graças ao auxílio e benefício que ele
pode prestar a outro homem, como também pela comparação das situações. E
isso ocorre não devido ao solo, ao clima ou à constituição física.
Vale também recordar a força, a virtude e as conseqüências das coisas
descobertas, o que em nada é tão manifesto quanto naquelas três descobertas
que eram desconhecidas dos antigos e cujas origens, embora recentes, são
obscuras e inglórias. Referimo-nos à arte da imprensa, à pólvora e à agulha de
marear. Efetivamente essas três descobertas mudaram o aspecto e o estado das
coisas em todo o mundo: a primeira nas letras, a segunda na arte militar e a
terceira na navegação. Daí se seguiram inúmeras mudanças e essas foram de tal
ordem que não consta que nenhum império, nenhuma seita, nenhum astro
tenham tido maior poder e exercido maior influência sobre os assuntos humanos
que esses três inventos mecânicos.
A esta altura, não seria impróprio distinguirem-se três gêneros ou graus de
ambição dos homens. O primeiro é o dos que aspiram ampliar seu próprio poder
em sua pátria, gênero vulgar a aviltado; o segundo é o dos que ambicionam
estender o poder e o domínio de sua pátria para todo o gênero humano, gênero
sem dúvida mais digno, mas não menos cúpido. Mas se alguém se dispõe a
instaurar e estender o poder e o domínio do gênero humano sobre o universo, a
sua ambição (se assim pode ser chamada) seria, sem dúvida, a mais sábia e a
mais nobre de todas. Pois bem, o império do homem sobre as coisas se apóia
unicamente nas artes e nas ciências. A natureza não se domina, senão
obedecendo-lhe.
131
E mais ainda: se a utilidade de um invento particular abalou os homens a ponto
de levá-los a considerar mais que homem aquele que ofereceu à humanidade
inteira apenas um único beneficio, que excelso lugar não ocupará a descoberta
que vier abrir caminho a todas as demais descobertas? Contudo, e para dizer
toda a verdade, assim como devemos dar graças à luz, mercê da qual podemos
praticar as artes, ler e reconhecermo-nos uns aos outros, devemos reconhecer
que a própria visão da luz é muito mais benéfica e bela que todas as suas
vantagens práticas. Assim também a contemplação das coisas tais como são,
sem superstição e impostura, sem erro ou confusão, é em si mesma mais digna
que todos os frutos das descobertas.
Por último, se se objetar com o argumento de que as ciências e as artes se
podem degradar, facilitando a maldade, a luxúria e paixões semelhantes, que
ninguém se perturbe com isso, pois o mesmo pode ser dito de todos os bens do
mundo, da coragem, da força, da própria luz e de tudo o mais. Que o gênero
humano recupere os seus direitos sobre a natureza, direitos que lhe competem
por dotação divina. Restitua-se ao homem esse poder e seja o seu exercício
guiado por uma razão reta e pela verdadeira religião.
CXXX
Já é tempo de expor a arte de interpretar a natureza. A propósito devemos deixar
claro que, embora acreditemos ai se encontrarem preceitos muito úteis e
verdadeiros, não lhe atribuímos absoluta necessidade ou perfeição. De fato,
somos da opinião de que se os homens tivesssem à mão uma adequada história
da natureza e da experiência, e a ela se dedicassem cuidadosamente, e se, além
disso, se impusessem duas precauções: uma, a de renunciar às opiniões e noções
recebidas; outra, a de coibir, até o momento exato, o ímpeto próprio da mente
para os princípios mais gerais e para aqueles que se acham próximos; se assim
procedessem, acabariam, pela própria e genuína força de suas mentes, sem
nenhum artifício, por chegar à nossa forma de interpretação. A interpretação é,
com efeito, a obra verdadeira e natural da mente, depois de liberta de todos os
obstáculos. Mas com os nossos preceitos tudo será mais rápido e seguro.
Não pretendemos que nada lhe possa ser acrescentado. Ao contrário, nós, que
consideramos a mente não meramente pelas faculdades que lhe são próprias,
mas na sua conexão com as coisas, devemos presumir que a arte da invenção
robustecer-se-á com as próprias descobertas.
AFORISMOS SOBRE A INTERPRETAÇÃO DA NATUREZA E O REINO
DO HOMEM
LIVRO II
I
Engendrar e introduzir nova natureza ou novas naturezas
1
em um corpo
2
dado,
tal é a obra e o fito do poder humano. E a obra e o fito da ciência humana é
descobrir a forma
3
de uma natureza dada ou a sua verdadeira diferença ou
natureza naturante
4
ou fonte de emanação (estes são os vocábulos de que
dispomos mais adequados para os fatos que apresentamos). A estas empresas
primárias subordinam-se duas outras secundárias e de cunho inferior. A
primeira é a transformação de corpos concretos de um em outro, nos limites do
possível;
5
a segunda, a descoberta de toda geração e movimento do processo
latente,
6
contínuo, a partir do agente manifesto até a forma implícita
7
e
descobrir, também, o esquematismo latente
8
dos corpos quiescentes e não em
movimento.
II
A infeliz situação em que se encontra a ciência humana transparece até nas
manifestações do vulgo. Afirma-se corretamente que o verdadeiro saber é o
saber pelas causas.
9
E, não indevidamente, estabelecem-se quatro coisas: a
matéria, a forma, a causa eficiente, a causa final.
10
Destas, a causa final longe
está de fazer avançar as ciências, pois na verdade as corrompe; mas pode ser de
interesse para as ações humanas.
11
A descoberta da forma tem-se como impossí-
vel.
12
E a causa eficiente e a causa material (tal como são investigadas e
admitidas, isto é, como remotas e sem o processo latente no sentido da forma)
são perfunctórias e superficiais, em nada beneficiando a ciência verdadeira e
ativa. Não nos esquecemos, porém, de antes ter notado e procurado sanar o erro
da mente humana que consiste em atribuir à forma o afirmado da essência.
13
Ainda que na natureza, de fato, nada mais exista que corpos individuais que
produzem atos puros individuais, segundo uma lei, na ciência é essa mesma lei,
bem assim a sua investigação, na descoberta e explicação, que se constitui no
fundamento para o saber e para a prática. Pelo nome de forma entendemos essa
lei e seus parágrafos,
14
mormente porque tal vocábulo é de uso comum e se
tornou familiar.
III
Quem conhece a causa de alguma natureza (como a da brancura ou do calor),
somente em determinados sujeitos, possui uma ciência imperfeita, que pode
produzir um efeito em apenas determinadas matérias (entre as que são
suscetíveis), esse possui igualmente um poder imperfeito. E quem conhece
apenas a causa eficiente e a causa material (que são causas instáveis e não mais
que veículos que em certos casos provocam a forma), esse pode chegar a novas
descobertas em matéria algo semelhante e para isso preparada, mas não
conseguir mudar os limites mais profundos e estáveis das coisas. Mas o que
conhece as formas abarca a unidade da natureza nas suas mais dissímeis
matérias e, em vista disso, pode descobrir e provocar o que até agora não se
produziu, nem pelas vicissitudes naturais, nem pela atividade experimental, nem
pelo próprio acaso e nem sequer chegou a ser cogitado pela mente humana.
Assim é que da descoberta das formas resultam a verdade na investigação e a
liberdade na operação.
IV
Ainda que as vias que levam ao humano poder e à humana ciência estejam
muito ligadas e sejam quase coincidentes, apesar do pernicioso e inveterado
hábito de se propender para as abstrações, é muito mais seguro urdir e derivar as
ciências dos mesmos fundamentos apropriados para o lado prático e deixar que
esta designe e determine o lado contemplativo. Em vista disso, para se gerar ou
introduzir em um corpo dado uma certa natureza, é necessário se considere
devidamente o preceito ou direção ou dedução que deve ser escolhido, e isso
deve ser feito em termos claros e não abstrusos.
Por exemplo, se alguém se propõe a dotar a prata da cor amarela do ouro ou
aumentar-lhe o peso (observando as leis da matéria) ou tornar transparente uma
pedra não transparente, ou dar resistência ao vidro, ou vegetação a um corpo
não vegetal, deve averiguar a regra ou a dedução mais conveniente para o caso.
Com tal propósito, em primeiro lugar, estará, sem dúvida, interessado em um
procedimento que não frustre a empresa, nem leve ao malogro o experimento.
Em segundo lugar, estará igualmente interessado em um procedimento que não
o constranja nem o force ao uso de certos meios e modos particulares de
proceder. Pois pode ocorrer que não disponha de tais meios ou não tenha
possibilidade ou condições de consegui-los. E se há outros meios ou modos para
reproduzir a natureza desejada (além daqueles preceitos), eles poderiam estar ao
alcance do operador. E este poderia, pela rigidez dos preceitos, anular os
resultados. Em terceiro lugar, desejará que lhe seja indicado algo que não seja
tão difícil quanto a própria operação investigada, mas que seja mais próximo da
prática.
A regra verdadeira e perfeita para o operar pode ser assim enunciada: que seja
certa, livre e predisposta ou que esteja ordenada para a ação.
15
O mesmo deve
ser levado em conta para a descoberta da forma. Pois a forma de uma natureza
dada é tal que, uma vez estabelecida, infalivelmente se segue a natureza. Está
presente sempre que essa natureza também o esteja, universalmente a afirma e é
constantemente inerente a ela. E essa mesma forma é de tal ordem que, se se
afasta, a natureza infalivelmente se desvanece; que sempre que está ausente está
ausente a natureza, quando totalmente a nega, por só nela estar presente.
Finalmente, a verdadeira forma é tal que deduz a natureza de algum princípio de
essência
16
que é inerente a muitas naturezas e é mais conhecido (como se diz)
na ordem natural que a própria forma.
17
Por conseguinte, o enunciado e a regra
do verdadeiro e perfeito axioma do saber: que se descubra outra natureza que
seja conversível à natureza dada e que ainda seja a limitação de uma natureza
mais geral, à maneira de um verdadeiro gênero.
18
Estes dois enunciados, um
ativo e outro contemplativo, são a mesma coisa, pois o que é mais útil na prática
é mais verdadeiro no saber.
19
V
A regra
20
ou axioma para a transformação dos corpos é de duas espécies. A
primeira considera o corpo como um conjunto ou conjugação de naturezas
simples. Veja-se, no ouro estão reunidas as seguintes características: ser
amarelo, ter um determinado peso, ser maleável e dúctil até determinado limite,
não ser volátil ou perder a sua quantidade sob a ação do fogo, liquefazer-se com
determinada fluidez, separar-se e solver-se por determinados meios, e outras
naturezas semelhantes que se encontram no ouro. Desse modo, tal axioma
deduz a coisa das formas das naturezas simples. Quem conhecer as formas e os
modos de se introduzir o amarelo, o peso, a ductilidade, a fixidez, a fluidez, a
solução, etc., e suas graduações e modos, saberá como proceder para conjugar
em um único corpo essas qualidades, para conduzi-las à transformação em
ouro.
21
Essa espécie de operação pertence à ação primária. Pois o método de se
produzir uma única natureza simples é o mesmo que o de muitas; apenas o
homem se sente mais limitado e tolhido nas suas operações, quando se trata de
várias, em vista da dificuldade de coordenar essas naturezas que não se unem
tão facilmente, como pelas trilhas ordinárias do mundo natural. Contudo, deve
ser lembrado que tal método de operar
22
que distingue as naturezas é constante,
eterno e universal, e abre amplas vias ao poder humano, e isso a um ponto tal
que, no estado atual das coisas, a mente humana pode sequer cogitar ou
representar.
A segunda espécie de axiomas (a que depende da descoberta do processo
latente)
23
não procede das naturezas simples, mas dos corpos concretos, tal
como se encontram na natureza em seu curso ordinário. Por exemplo, se se trata
de investigar, a partir de sua origem, o modo e o processo de formação do ouro
ou de qualquer outro metal ou a pedra, a partir de seus primeiros mênstruos
24
ou
de seus rudimentos até o estado acabado de mineral; ou apreender o processo
pelo qual se gera a erva, a partir das primeiras concreções do suco na terra ou a
partir da semente até a planta formada, acompanhando toda a sucessão de
movimentos e todos os diversos e continuados esforços da natureza; igualmente,
investigar a geração dos animais, discernindo a partir do coito até o parto. E
proceder da mesma forma em relação aos demais corpos.
Mas, na verdade, essa investigação não se restringe à geração dos corpos, mas
se estende aos outros movimentos e operações da natureza. Assim, por exemplo,
se se trata de investigar a série completa e contínua da ação da nutrição, a partir
da ingestão inicial do alimento até a sua perfeita assimilação; ou o movimento
involuntário dos animais, a partir da primeira impressão da imaginação e dos
continuados esforços do espírito
25
até as flexões e movimentos dos membros;
ou os distintos movimentos da língua, dos lábios e dos demais instrumentos até
a emissão de vozes articuladas, tudo isso, com efeito, também respeita às
naturezas concretas ou coligadas e conjugadas. Estas podem ser consideradas
como modos de ser habituais, particulares e especiais da natureza e não como
leis fundamentais e comuns que constituem as formas. Não obstante, deve-se
reconhecer que este segundo procedimento é mais expedito, mais disponível e
oferece mais esperanças que o primeiro.
E da mesma forma, a parte operativa, que corresponde a esta especulativa,
estende e promove a operação, a partir do que ordinariamente se descobre na
natureza, indo para as mais próximas, até as que se não distanciam muito destas.
Mas as operações mais profundas e mais radicais na natureza dependem sempre
dos primeiros axiomas. Em vista disso, onde não é dada ao homem a faculdade
de operar, mas apenas de saber, como em relação às coisas celestes pois não
é possível ao homem agir sobre as coisas celestes, para mudá-las ou transformá-
las , a investigação do próprio fato ou da verdade da coisa, bem como o
conhecimento das causas e dos consensos, refere-se tão somente àqueles
axiomas primários e universais,
26
relativos às naturezas simples (como os
relacionados à natureza da rotação espontânea, da atração ou virtude magnética
e de muitas outras coisas, ainda mais comuns que os próprios corpos celestes).
E que ninguém espere resolver a questão de que se o movimento diurno é da
terra ou do céu antes de haver compreendido a natureza da rotação espontânea.
VI
O processo latente de que falamos está longe daquilo que pode ocorrer à mente
dos homens, com as preocupações a que ora se entregam. Não o entendemos, de
fato, como medidas, ou signos ou escalas dos processos visíveis dos corpos,
mas como um processo continuado, que na maior parte escapa aos sentidos.
Por exemplo, em toda geração ou transformação de corpos, e necessário
investigar o que se perde e volatiliza; o que permanece ou se acrescenta; o que
se dilata e o que se contrai; o que se une e o que se separa; o que continua e o
que se divide; o que impele e o que retarda; o que domina e o que sucumbe; e
muitas outras coisas.
E essa investigação não se deve limitar à geração e às transformações dos
corpos, mas deve estender-se, igualmente, ao que antecede e ao que sucede; ao
que é mais veloz e ao que é mais lento; ao que produz e ao que regula o
movimento; e assim por diante. Todas essas coisas são desconhecidas e
deixadas intactas pelas ciências, de textura grosseira e inábil,
27
como as que se
professam. De vez que toda ação natural se cumpre em mínimos graus,
28
ou pelo
menos em proporções que não chegam a ferir os sentidos, ninguém poderá
governar ou transformar a natureza antes de havê-lo devidamente notado e
compreendido.
VII
A investigação e a descoberta do esquematismo latente
29
é igualmente coisa
nova, à semelhança da descoberta do processo latente e da forma. Ainda nos
encontramos nos átrios da natureza e não estamos preparados para adentrar-lhe
os íntimos recessos. E nenhum corpo pode ser dotado de uma nova natureza, ou
ser transformado, com acerto e sucesso, em outro corpo, sem um completo
conhecimento do corpo que se quer alterar ou transformar. Sem o que, acabarão
sendo usados procedimentos vãos, ou pelo menos difíceis e penosos e
impróprios para a natureza do corpo em que se opera. Daí ser necessária a nova
via, adequadamente provida.
Na anatomia dos corpos orgânicos (como os do homem e dos animais) foram
adotados procedimentos bastante acertados e fecundos; trata-se de tarefa
delicada e que efetua um ótimo escrutínio da natureza. Mas esse gênero de
anatomia dependendo do visível e dos sentidos, em geral, só vige para os corpos
orgânicos. E isso é, aliás, algo óbvio e pronto, em comparação com a verdadeira
anatomia do esquematismo latente dos corpos tidos por similares, especialmente
das coisas específicas e de suas partes, como o ferro e a pedra, nas partes
similares da planta e do animal, como a raiz, a folha, a flor, a carne, o sangue, o
osso, etc. E é de se notar que mesmo nesse gênero não se interrompeu a
indústria humana. Assim o indica a separação dos corpos similares pela
destilação, bem como outros modos de separação, que procuram fazer aparecer
a dessemelhança interna, congregando as partes homogêneas, e isso que é usual
atende também ao que buscamos; conquanto seja algo falaz, uma vez que
muitas naturezas são imputadas e atribuídas à separação, como se antes
existissem no composto, na verdade foram estabelecidas e superinduzidas
recentemente
30
pelo fogo, e pelo calor e por outros métodos de separação. Mas,
ademais, esta é uma pequena parte do trabalho de descoberta do verdadeiro
esquematismo do composto, uma vez que o esquematismo é algo tão sutil e
preciso que a ação do fogo mais confunde que elucida.
Em vista disso, a separação e solução dos corpos não devem ser feitas pelo
fogo, mas pela razão e pela verdadeira indução, com auxílio de experimentos; e
por meio da comparação com outros corpos e pela redução a naturezas simples
e a suas formas que se juntam e combinam no composto.
31
Enfim, deve-se
deixar Vulcano por Minerva, se se almeja trazer à luz as verdadeiras contexturas
dos corpos e os seus esquematismos, de que dependem todas as propriedades
ocultas e, como se costumam chamar, propriedades e virtudes específicas das
coisas e donde, também, se retiram as normas capazes de conduzir a qualquer
alteração ou transformação.
Por exemplo, é de se investigar o que em todo corpo corresponde ao espírito
32
e
o que corresponde à essência tangível; e se esse mesmo espírito é copioso e
túrgido ou jejuno e parco; se é tênue ou espesso; se mais próximo do ar ou do
fogo; se é ativo ou apático; se é delgado ou robusto; se em progresso ou em
regresso; se é partido ou continuo; se concorde com as coisas exteriores e com o
ambiente ou em desacordo, etc. O mesmo deve ser feito em relação à essência
tangível (que não é menos passível de diferenciações que o espírito), e seus
pêlos, fibras e sua múltipla contextura, bem como a colocação do espírito na
substância do corpo e seus poros, condutos, veias e células, e os rudimentos ou
tentativas de corpo orgânico. Tudo isso faz parte da mesma investigação. Mas
mesmo aqui, como em toda investigação do esquematismo latente, a luz
verdadeira e clara, que desfaz toda obscuridade e sutileza, só pode provir dos
axiomas primários.
VIII
E nem por isso se deve recorrer aos átomos que pressupõem o vazio e matéria
estável
34
(ambos falsos), mas às partículas verdadeiras,
35
tal como se encontram.
Tal sutileza, tampouco, é de causar espanto, como se fosse inexplicável. Ao
contrário, quanto mais a investigação se dirige às naturezas simples tanto mais
se aplainam e se tornam perspicazes as coisas, passando o objeto do multíplice
ao simples, do incomensurável ao comensurável, do insensível ao calculável, do
infinito e vago ao definido e certo, como ocorre com as letras do alfabeto e com
as notas da música. Todavia, a investigação natural se orienta da melhor forma
quando a física é rematada com auxílio da matemática.
36
E então, que ninguém
se espante com as multiplicações e com os fracionamentos, pois, quando se trata
com números, tanto faz colocar ou pensar em mil ou em um, ou na milésima
parte ou no inteiro.
IX
Das duas espécies de axiomas
37
antes estabelecidas
38
origina-se a verdadeira
divisão da filosofia e das ciências, devendo-se, bem entendido, ajustar
vocábulos comumente aceitos (os mais apropriados para indicar o que
pretendemos) ao sentido que lhes emprestamos.
Assim, a investigação das formas que são (pelo seu princípio e lei)
39
eternas e
imóveis constitui a Metafísica.
40
A investigação da causa eficiente, da matéria,
do processo latente e do esquematismo latente (que dizem respeito ao curso
comum e ordinário da natureza, não a leis fundamentais e eternas) constitui a
Física. E a elas subordinam-se duas divisões práticas: à Física, a Mecânica; à
Metafísica, a Magia (depois de purificado o nome), em vista das amplas vias
que abrem e do maior domínio sobre a natureza que propiciam.
X
Uma vez estabelecido o escopo da ciência, passamos aos preceitos e na ordem
menos sinuosa e obscura possível. E as indicações acerca da interpretação da
natureza compreendem duas partes gerais: a primeira, que consiste em
estabelecer e fazer surgir os axiomas da experiência; a segunda, em deduzir e
derivar experimentos novos dos axiomas.
41
A primeira parte divide-se em três
administrações,
42
a saber, administração dos sentidos, administração da
memória e administração da mente ou da razão.
43
Em primeiro lugar, com efeito, deve-se preparar uma História Natural e
Experimental que seja suficiente e correta (exata), pois é o fundamento de tudo
o mais. E não se deve inventar ou imaginar o que a natureza faz ou produz, mas
descobri-lo.
Mas na verdade, a história natural e experimental é tão vária e ampla que
confunde e dispersa o intelecto, se não for estatuída e organizada segundo uma
ordem adequada. Por isso devem ser preparadas as tábuas e coordenações de
instâncias,
44
dispostas de tal modo que o intelecto com elas possa operar.
Mas, mesmo assim procedendo, o intelecto abandonado a si mesmo e ao seu
movimento espontâneo é incompetente e inábil para a construção dos axiomas,
se não for orientado e amparado. Daí, em terceiro lugar, deve ser adotada a
verdadeira e legítima indução, que é a própria chave da interpretação. Contudo,
devemos começar pelo fim e depois retroceder em direção ao resto.
45
XI
A investigação das formas assim procede: sobre uma natureza dada deve-se em
primeiro lugar fazer uma citação perante o intelecto
46
de todas as instâncias
conhecidas que concordam com uma mesma natureza, mesmo que se encontrem
em matérias dessemelhantes.
47
E essa coleção deve ser feita historicamente,
48
sem especulações prematuras ou qualquer requinte demasiado. Como exemplo,
imagine-se uma investigação sobre a forma do calor:
49
Instâncias conformes (convenientes) na natureza do calor
50
1. Os raios do sol, sobretudo no verão e ao meio-dia.
2. Os raios do sol refletidos e condensados, como entre montes ou por
muros e sobretudo sobre espelhos.
3. Meteoros ígneos.
4. Raios flamejantes.
5. Erupções de chamas das crateras dos montes, etc.
6. Chamas de todas as espécies.
7. Sólidos em combustão.
8. Banhos quentes naturais.
9. Líquidos ferventes ou aquecidos.
10. Vapores e fumaças quentes, e o próprio ar que adquire um calor
fortíssimo e violento, quando fechado, como nas fornalhas.
11. Certos períodos de seca causados pela própria constituição do ar, fora de
estação.
12. O ar fechado e encerrado em certas cavernas, sobretudo no inverno.
13. Todos os corpos cobertos por pêlos, como a lã, os pêlos dos animais, a
plumagem, têm sempre alguma tepidez.
14. Todos os corpos sólidos, líquidos, densos ou rarefeitos (como o próprio
ar) aproximados por algum tempo do fogo.
15. As faíscas produzidas por fortes impactos da pedra ou do aço.
16. Todo corpo que tenha um forte atrito, como a pedra, a madeira, o pano,
etc; como os lemes ou os eixos das rodas que às vezes provocam chamas, ou
como costumam fazer fogo os índios ocidentais, por atrito.
17. As ervas verdes e úmidas, juntadas e amassadas, como as rosas,
comprimidas nos cestos; como o feno que, guardado úmido, às vezes produz
fogo.
18. O ferro pode começar a dissolver com água forte (ácido) em recipiente de
vidro sem uso do fogo; e mesmo o estanho sob as mesmas condições, mas
menos intensamente.
19. A cal viva, aspergida com água.
20. Os animais, especialmente nas partes internas, ainda que o calor dos
insetos, pela sua pequenez, não seja percebido pelo tato.
21. O esterco do cavalo e semelhantes excrementos recentes de animais.
22. O óleo forte do enxofre e do vitríolo produzem o efeito do calor,
queimando linho.
23. O óleo de orégão, e outros semelhantes, produz os efeitos do calor,
queimando a parte óssea dos dentes.
24. O espírito do vinho forte e bem retificado produz os efeitos do calor, e
isso a tal ponto que, se lhe jogar uma clara de ovo, esta endurece e se torna
branca, quase como que ocorre com o ovo cozido, e também o fato, que fica
ressecado e com crosta, como quando é tostado.
25. Os aromas e as ervas quentes como o estragão, o mastruz velho, etc.,
ainda que na mão não pareçam quentes, nem inteiros ou em pó, mas quando
mastigados são quentes e parecem queimar à língua e ao paladar.
26. O vinagre forte e todos os ácidos, aplicados a partes sem pele, como o
olho, a língua, ou sobre uma parte ferida, produzem uma dor não muito
diferente da produzida pelo calor.
27. Mesmo o frio quando agudo e intenso produz sensação de queimadura.
51
28. Outras instâncias.
A esta chamamos de Tábua de essência e de presença.
XII
Em segundo lugar, deve-se fazer uma citação perante o intelecto, das instâncias
privadas da natureza dada, uma vez que a forma, como já foi dito, deve estar
ausente quando está ausente a natureza, bem como estar presente quando a
natureza está presente.
52
Contudo, se se fosse examinar todas as instâncias, a investigação iria ao infinito.
Por isso, é necessário que se limite o recolhimento das instâncias negativas em
correspondência com as positivas e considerem-se as privações apenas naqueles
objetos muito semelhantes a aqueles em que elas estão presentes e são
manifestas.
53
E a esta resolvemos chamar de Tábua de desvio (ou declinação)
ou de ausência em fenômenos próximos.
54
Instâncias em fenômenos próximos, privados da natureza do calor.
55
Primeira instância negativa oposta à primeira instância afirmativa.
1. Os raios da lua, das estrelas e dos cometas não trazem calor ao tato, mas,
ao contrário, é no plenilúnio que se observam os frios mais rigorosos. Todavia,
acredita-se que quando há conjunção entre o sol e as estrelas fixas maiores, ou
quando delas está próximo, há aumento do calor solar; é o que ocorre quando o
sol está no signo de Leão e nos dias de canícula.
56
2. (Oposta à segunda afirmativa.) Os raios solares na chamada região
intermediária não produzem calor; para o que o vulgo dá uma razão não de todo
má: esta região não está nem próxima do sol, donde vêm os raios, nem da terra,
que os reflete. É o que se observa nos picos das montanhas (a não ser quando
muito altos), onde se encontram neves eternas. Por outro lado, observou-se que
no pico de Tenerife, bem como nas cumieiras dos Andes do Peru, os cumes não
apresentam neve, que se fixa nas partes mais baixas. Fala-se ainda que no
vértice desses montes o ar não é frio, mas rarefeito e penetrante, e isso a tal
ponto que, nos Andes, magoa e ofende os olhos, pela sua intensidade, e irrita a
boca do estômago e provoca vômitos. Foi notado pelos antigos que no vértice
do Olimpo era tal a tenuidade do ar que obrigava aos que o escalavam a levarem
esponjas embebidas em água e vinagre, para aplicação na boca e no nariz, por
não ser o ar suficiente à respiração.
57
Relatam, ainda, aqueles que era tal a
serenidade e tranqüilidade do ar e ausência de chuvas, neves e ventos,
58
que as
letras escritas com o dedo nas cinzas, sobre o altar de Júpiter, pelos fautores de
sacrifícios, duravam todo um ano, sem se alterarem. E ainda hoje os que sobem
aos cimos do pico de Tenerife caminham à noite e não à luz do dia; e ao surgir
do sol os guias os apressam a descer rapidamente, ante o perigo (segundo
parece) de que a rarefação sufoque e dissolva o espírito.
3. (Oposta à segunda afirmativa.) A reflexão dos raios do sol nas regiões
próximas dos círculos polares é muito fraca e ineficaz em calor, e os belgas que
invernaram na Nova Zembla
59
esperando a liberação e o desencalhe de sua
nave dos gelos (que a aprisionavam), no início do mês de julho, viram
frustradas as suas esperanças e tiveram que recorrer a botes. Assim os raios do
sol diretos parecem de pouco poder, mesmo sobre terreno plano; nem também
os seus reflexos, a não ser quando são multiplicados e reunidos, o que ocorre
quando o sol bate perpendicularmente, pois, em tal caso, os ângulos formados
pelos raios incidentes são mais agudos, e assim as linhas dos raios ficam mais
próximas entre si. E de outro lado, nas posições muito oblíquas do sol, os
ângulos são muito obtusos e por isso as linhas dos raios estão mais distantes
entre si. Mas deve ser notado que muitas podem ser as operações dos raios do
sol, com respeito ao problema da natureza do calor, que não estão ao alcance do
nosso tato, e, mesmo assim, afetam outros corpos.
4. Faça-se o seguinte experimento:
60
Tome-se uma lente,
61
feita de forma
contrária aos espelhos e seja ela colocada entre as mãos e os raios do sol.
Observe-se que nessa posição o calor do sol é diminuído, da mesma forma que
o espelho o aumenta e intensifica. Pois é manifesto que os raios ópticos, em um
espelho que apresenta diferença de espessura entre o centro e as partes laterais,
oferecem imagens
62
mais difusas ou concentradas. O mesmo deve ocorrer em
relação ao calor.
5. Faça-se cuidadosamente o experimento de se os raios da lua, passando
por espelhos ustórios bastante fortes e bem constituídos, podem produzir algum
grande calor, mesmo que diminuto. Mas como essa grande tepidez é de tal
forma sutil e fraca a ponto de não ser percebida pelo tato, seria necessário
recorrer àqueles vidros que indicam o estado frio ou quente do ar,
63
de modo
que os raios da lua, caindo em um espelho ustório, fossem refletidos sobre a
superfície do vidro, para se verificar a ocorrência do abaixamento do nível da
água, devido ao calor.
6. (À segunda instância.) Experimente-se colocar um vidro ustório sobre um
corpo quente que não seja nem radiante, nem luminoso, como o ferro ou a pedra
aquecidos, mas não em ignição, ou água fervente e coisas semelhantes, e
observe-se se ocorre um aumento ou intensificação do calor, como nos raios do
sol.
64
7. (À segunda instância.) Experimente-se ainda colocar um espelho ustório
sobre a chama comum.
8. (Em oposição à terceira instância.)
65
Não se pode deixar de observar o
constante e manifesto efeito dos cometas (se se reconhece como estando
compreendidos entre os meteoros)
66
no aumento do calor na época de sua
oposição, embora tenha sido notado que em seguida surge um período de seca.
Contudo, as traves
67
ou colunas luminosas e as aberturas do céu
68
e fenômenos
semelhantes parecem mais freqüentes no inverno que no verão e especialmente
em épocas de intensos frios, acompanhados de seca. Mas os raios, os
relâmpagos e os trovões dificilmente ocorrem no inverno, mas na época dos
grandes calores. As chamadas estrelas cadentes supõe-se vulgarmente
constituídas de uma matéria viscosa, resplandecente e acesa, em lugar de
qualquer outra matéria ígnea mais consistente. Mas isso deve ser verificado
posteriormente.
9. (Oposição à quarta instância.) Há certas coruscações que produzem luz,
mas não queimam. E ocorrem sempre sem (troar) trovão.
10. (Em oposição à quinta instância.) As ejeções e erupções de chamas
ocorrem tanto nas regiões frias como nas quentes, como na Islândia e
Groenlândia. Por outro lado, as árvores das regiões frias são mais inflamáveis,
mais resinosas e de mais pez que as das regiões cálidas, como é o caso do abeto,
pinho e outras. Mas não se investigou satisfatoriamente em que lugares e em
que natureza de solo costumam ocorrer essas erupções, para que possamos opor
a negativa à afirmativa.
11. (Em oposição à sexta instância.) Toda chama é sempre mais ou menos
quente, não havendo assim instância negativa a se lhe opor; mas fala-se que o
chamado fogo-fátuo que às vezes é observado nas paredes não tem muito calor,
assim também a chama do espírito do vinho que é clemente e suave. Mas ainda
mais suave parece ser a chama que, conforme certas histórias fidedignas e
sérias, apareceu em torno da cabeça de meninos e meninas e que, sem queimar,
apenas circulava à sua volta.
69
De qualquer forma, é absolutamente certo que,
em volta do cavalo que sua, durante viagens noturnas e em épocas de seca,
aparece certa fulguração, sem calor manifesto. Há pouco tempo ficou famoso, e
quase tomado como milagre, o fato do peito de uma menina, depois de algum
movimento e fricção ter emitido faíscas. Isso talvez tenha acontecido devido ao
alúmen ou aos sais com que se tinha tingido a veste e que acabaram colados e
incrustados, formando assim uma espécie de copa, que se abriu. Também é
igualmente certo que todo açúcar, tanto o refinado quanto o natural, quando se
encontra endurecido e é quebrado ou raspado no escuro, produz fulgor.
Da mesma forma, a água marinha e salgada, à noite, fortemente esbatida pelos
remos, pode fulgurar. E também, durante as tempestades, a espuma do mar,
fortemente agitada, produz fulgor (fachos) e a que os espanhóis costumam
chamar de pulmão marinho. Nem foi adequadamente investigada aquela chama
que os antigos navegantes chamavam por Castor e Pollux e os modernos
designam por fogo de Santelmo.
70
12. (Em oposição à sétima instância.) Todo corpo (ígneo) incandescente que
tenha o rubor do fogo, mesmo sem chama, é em qualquer caso quente, e para tal
instância afirmativa não há correspondente negativa. Mas o que parece mais se
aproximar desse fato é o da madeira podre, que resplandece à noite e não parece
conter calor. As escamas dos peixes em putrefação também resplandecem à
noite e não apresentam calor ao tato. Da mesma forma, o corpo do vaga-lume
ou mosca chamada Lucíola não oferece calor ao tato.
13. (Em oposição à oitava instância.) Não foi adequadamente investigado o
lugar de origem e a natureza do solo donde emanam as águas termais e por isso
não se lhes contrapõe instância negativa.
14. (Em oposição à nona instância.) Aos líquidos ferventes contrapõe-se a
instância negativa da peculiar negativa dos líquidos em geral. Pois não se
encontra na natureza que seja em si mesmo quente e assim permaneça. Ao
contrário, o calor ocorre por tempo determinado, como natureza que lhe é
acrescentada. Assim é que os líquidos que no seu poder e nos seus efeitos são
muito quentes, como o espírito do vinho, os óleos químicos aromáticos, e ainda
os óleos do vitríolo e do enxofre e outros mais, que queimam após certo tempo,
são frios ao primeiro contato. E a água termal, colocada em um recipiente e
longe de sua origem, perde a efervescência, como a água levada ao fogo. De
outro lado, é verdade que os corpos oleosos parecem ao tato menos frios que os
aquosos; da mesma forma o óleo menos que a água, a seda menos que o linho.
Mas isso de fato pertence à Tábua de Graus do Frio.
15. (Em oposição à décima instância.) De idêntica maneira, ao vapor quente
opõe-se a instância negativa derivada da própria natureza do vapor, tal como é
comumente encontrado. As exalações dos corpos oleaginosos, mesmo sendo
facilmente inflamáveis, não são quentes, quando não são exalações recentes de
um corpo quente.
16. (Em oposição à décima primeira instância.) De idêntica maneira, ao ar
quente se opõe a instância negativa derivada da própria natureza do ar. Não
encontramos entre nós ar quente, a não ser quando encerrado, submetido à
fricção ou aquecido pelo sol, pelo fogo ou por qualquer outro corpo quente.
17. (Em oposição à décima primeira instância.) A instância negativa das
estações frias é oposta mais devido aos outros períodos do ano, como acontece
quando sopram Euro ou Bóreas.
71
O contrário acontece quando sopra o Austro
ou o Zéfiro.
72
Mas uma tendência para a chuva, especialmente no inverno, vem
acompanhada de temperaturas tépidas, e o gelo, de temperaturas frias.
18. (Em oposição à décima segunda instância.) Contrapõe-se a instância
negativa do ar confinado nas cavernas no verão. E a respeito desse ar confinado
é necessária uma cuidadosa investigação. Em primeiro lugar, há dúvidas, não
sem motivo, a respeito da natureza do ar relacionado ao frio e ao calor. Pois o ar
manifestamente recebe o calor dos corpos celestes; o frio, ao contrário, talvez
por exalação da terra, e na chamada região intermediária dos vapores das neves.
Dessa forma, não se pode estabelecer um juízo sobre a natureza do ar através do
ar a céu descoberto e exposto, mas é possível um juízo mais seguro a respeito
do ar confinado. Mas é necessário que o ar seja colocado em um recipiente de
material de tal ordem que não venha a impregná-lo de calor ou frio de sua
própria natureza e também que não receba influência do ar exterior. Faça-se,
pois, o experimento com um recipiente de argila, revestido várias vezes com
couro para protegê-lo do ar exterior e mantenha-se bem fechado por três ou
quatro dias. Uma vez aberto o recipiente, verificar-se-á a temperatura com a
mão e com o vidro graduado.
73
19. (Em oposição à décima terceira instância.) Subsiste igualmente a dúvida a
respeito da tepidez da lã das peles, das plumas e coisas semelhantes; se é
resultante de algum débil calor que lhe é imanente, devido à sua origem animal
ou da matéria graxa e oleaginosa que por sua própria natureza é afim ao calor
ou simplesmente do ar fechado e separado, mencionado no parágrafo
anterior, O ar separado do ar externo parece guardar algum calor. Para tanto,
faça-se experimentar com material fibroso de linho, em vez da lã ou pluma ou
seda que são de origem animal. Deve ainda ser observado que todos os pós
(manifestamente misturados ao ar) são menos frios que os corpos íntegros de
que provêm. Pelo mesmo motivo, acreditamos que toda espuma (como tudo que
contém ar) seja menos fria que o liquido que lhe deu origem.
20. (Em oposição à décima quarta instância.) Não há instância negativa a se
lhe opor. Com efeito, não se encontra entre nós nenhuma coisa tangível ou
gasosa que aproximada do fogo não adquira calor. Contudo, mesmo aí, é
necessário distinguir-se entre coisas que adquirem calor mais rapidamente,
como o ar, o azeite e a água, e outras mais lentamente, como a pedra e os
metais. Mas esses fatos pertencem à Tábua de Grau.
21. (Em oposição à décima quinta instância.) A esta instância não se opõe
qualquer outra negativa, exceção feita da observação de que não se conseguem
cintilações (ou fagulhas) do sílex ou do aço ou de outra substância dura, a não
ser com a fragmentação de pequenas partículas dessa substância, seja pedra ou
metal. Também o ar não pode produzir cintilações pelo simples atrito, como
julga o vulgo. Dessa forma, essas cintilações, devido ao peso do corpo em
ignição, tendem mais para baixo que para cima, e, depois de extintas, resultam
numa espécie de grãos de fuligem.
22. (Em oposição à décima sexta instância.) Pensamos não haver negativa a
ser oposta a essa instância. Não há entre nós corpo tangível (ou palpável) que
manifestamente não se aqueça pelo atrito. Tanto que os antigos imaginaram que
os corpos celestes não tinham outro caminho ou possibilidade de aquecimento
que o atrito do ar provocado pela sua rápida rotação.
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Neste assunto deve ainda
ser investigado se os corpos arruinados por máquinas, como as balas dos
canhões, pela própria percussão contraem algum grau de calor, que depois de
caídas ainda conservam, O ar agitado antes se resfria que aquece, como se
observa nos ventos, com o fole e com o sopro forte da boca. Mas tais
movimentos não são suficientemente rápidos a ponto de provocarem calor e
trata-se de movimentos do todo e não partículas, daí não ser de estranhar por
não haver ocorrência de calor.
23. (Em oposição à décima sétima instância.) A respeito desta instância, é
necessária uma investigação mais acurada. Com efeito, tudo indica que as ervas
e os vegetais verdes e úmidos encerram uma espécie de calor oculto. Mas é algo
tão tênue que em nenhuma planta isolada é perceptível ao tato, mas só depois de
reunidas e fechadas, e de tal forma que as suas exalações não se comuniquem
com o ar exterior, mas se misturem entre si, é que surge um calor perceptível e
às vezes flamas, se a matéria a tanto se presta.
24. (Em oposição à décima oitava instância.) Também a respeito desta
instância é necessária uma investigação mais acurada. De fato, parece que a cal
viva, quando aspergida de água, produz calor, ou pela concentração do calor
que antes estava disperso (tal como se diz ocorrer com as ervas abafadas) ou
pela irritação ou exasperação do espírito do fogo, em contato com a água, que
provoca uma espécie de conflito e antiperístase.
75
Para se saber qual das duas é
a verdadeira causa, basta colocar-se óleo no lugar da água. O óleo vale tanto
quanto a água para concentrar o espírito encerrado, mas não para irritá-lo. E o
experimento deve ser ampliado às cinzas e aos resíduos de diversos corpos e
fazendo-se uso de vários líquidos.
25. (Em oposição à décima nona instância.) A esta instância se opõe a
negativa de alguns metais que são mais moles e instáveis. Assim, as lâminas de
ouro dissolvidas pela água-régia
76
não provocam qualquer calor ao tato quando
dessa operação, o mesmo se dando com o chumbo quando dissolvido em água-
forte
77
e, pelo que recordamos, também com o mercúrio. Mas a prata provoca
algum calor e também o cobre, pelo que me lembro, e ainda de forma mais
manifesta o estanho, e os que vão mais longe são o ferro e o aço, que não só
produzem um forte calor ao se dissolverem como também uma violenta
ebulição. Dessa forma, tudo parece indicar que o calor se produz pelo conflito,
graças ao qual a água forte penetra, funde e desprende as suas partículas,
enquanto o corpo, por seu turno, resiste. Mas, quando os corpos cedem com
facilidade, a custo se produz o calor.
26. (Em oposição à vigésima instância.) Não se podem opor instâncias
negativas ao calor dos animais e nem tampouco ao dos insetos em vista das
reduzidas dimensões de seus corpos, como antes já foi dito.
78
Com efeito, os
peixes, comparados com animais terrestres, apresentam algum grau de calor, em
lugar de sua absoluta ausência. Nos vegetais e nas plantas não se observa
qualquer grau de calor perceptível ao tato, o mesmo acontecendo em relação às
suas resinas e à sua medula recentemente aberta. Todavia, nos animais observa-
se uma grande variedade de calor, tanto em suas partes (de fato, não é o mesmo
o calor do coração, o do cérebro e o das partes externas do corpo) quanto em
seus estados acidentais, como nos exercícios veementes ou nas febres.
27. (Em oposição à vigésima primeira instância.) A esta instância é
muito difícil opor-se uma negativa. Pois mesmo os excrementos animais não
recentes têm manifestamente um calor potencial, como pode ser verificado pelo
untamento do solo.
28. (Em oposição à vigésima segunda e vigésima terceira instân cias.) Os
líquidos (chamem-se águas ou óleos) que têm grande e intensa acidez operam
com o calor na fragmentação dos corpos e queimam-nos depois de algum
tempo. Mas em princípio não são quentes quando em contato com a mão. Agem
por analogia
79
e segundo a porosidade dos corpos com os quais se unem. De
fato, a água-régia dissolve o ouro, mas não a prata; por outro lado, a água-forte
dissolve a prata, mas não o ouro. E nem um nem outro dissolve o vidro. O
mesmo acontecendo com os demais.
29. (Em oposição à vigésima quarta instância.) Faça-se experimento com o
espírito do vinho sobre madeira, ou sobre manteiga, cera ou peixe, para verificar
se o seu calor os liquefaz e até que ponto. De fato, a instância vinte e nove
mostra que este espírito tem um poder análogo ao do calor, em relação às
incrustações. Por isso deve ser feito o mesmo experimento para a liquefação.
Proceda-se também com o vidro graduado,
80
côncavo na extremidade superior
externa. Coloque-se nessa cavidade exterior o espírito do vinho bem retificado e
tampe-se para que melhor retenha o calor e observe-se se o seu calor faz descer
o nível da água.
81
30. (Em oposição à vigésima quinta instância.) As ervas aromáticas e as ervas
ácidas são cálidas ao paladar e isso é mais sentido nas partes internas do
organismo. Por isso é necessário que se verifique em quais outras matérias
igualmente provocam calor. Contam os navegantes que quando se abrem
subitamente montes ou maços de ervas aromáticas, guardados durante muito
tempo, os primeiros que as movem ou pegam correm perigo de febres ou de
inflamações.
82
Igualmente poder-se-ia fazer experimento com o pó dessas ervas
para verificar se seca o toucinho e a carne, como a fumaça do fogo.
31. (Em oposição à vigésima sexta instância.) A acidez ou força penetrante
também pode ser encontrada seja em corpos frios, como o vinagre e o óleo de
vitríolo, seja em corpos quentes como o óleo de orégão e outros semelhantes.
Tanto uns como outros provocam dor nos animais e nos corpos inanimados,
fundem e consomem suas partes. A isso não se opõe instância negativa, pois nos
corpos animados não ocorre dor sem alguma dose de calor.
32. (Em oposição à vigésima sétima instância.) O frio e o calor têm muitas
ações em comum, ainda que em formas e proporções diferentes. Com efeito,
mesmo a neve parece queimar, depois de algum tempo, as mãos das crianças e o
frio preserva as carnes da putrefação
83
tanto quanto do fogo. E, tanto quanto o
frio, o calor contrai os corpos. Mas na verdade é mais oportuno tratar deste
assunto e de outros semelhantes quando da investigação do frio.
84
XIII
Em terceiro lugar, é necessário fazer-se citações perante o intelecto
85
das
instâncias cuja natureza, quando investigada, está presente em mais ou em
menos, seja depois de ter feito comparação do aumento e da diminuição em um
mesmo objeto, seja depois de ter feito comparação em objetos diversos. Pois
sendo a forma de uma coisa a coisa em si mesma
86
e posto que a coisa difere da
forma tanto quanto difere a aparência da existência, o exterior do interior e o
relativo ao homem do relativo ao universo,
87
segue-se necessariamente que se
não pode tomar uma natureza pela verdadeira forma, a não ser que sempre
decresça quando decresce a referida natureza e, igualmente, sempre aumente
quando aumenta a natureza. A esta tábua denominamos Tábua de Graus ou de
Comparação.
Tábua de Graus ou de Comparação do Calor
Em primeiro lugar, trataremos dos corpos que não apresentam qualquer calor ao
tato, mas que parecem possuir um calor potencial ou uma disposição ou
preparação para o calor. A seguir, consideraremos os corpos que são quentes em
ato, ou seja, ao tato, sua intensidade e seus graus.
1. Não há entre os palpáveis e sólidos nenhum corpo que seja naturalmente
quente. Não há uma única pedra, um único metal, nem enxofre, nem fóssil, nem
madeira, nem água, nem cadáver dos animais, que se apresentem com calor. As
águas quentes dos balneários parecem aquecer-se por acidente, ou por alguma
chama ou fogo subterrâneo, como os que vomitam o Etna e muitas outras
montanhas, ou por conflito de corpos, como ocorre com o calor produzido na
dissolução do ferro e do estanho. Dessa forma, não há qualquer espécie de calor
nos corpos inanimados perceptível ao tato do homem, e esses corpos se
diferenciam entre si pelos graus (de frio) de frigidez. Com efeito, não são iguais
o frio da madeira e o do metal. Mas esse assunto pertence à Tábua de Graus do
Frio.
2. Todavia, encontram-se muitos corpos inanimados com calor potencial e
com predisposição à chama, como é o caso do enxofre, da nafta e do petróleo.
88
3. O que antes estava quente, como o esterco eqüino, ou a cal, ou talvez as
cinzas, ou a fuligem provocados pelo fogo, conserva latentes resíduos do calor
anterior. Por isso se fazem certas destilações e separações de corpos,
enterrando-os em esterco eqüino, e o calor da cal pode ser provocado com a
aspersão de água.
89
4. Entre os vegetais não há qualquer planta ou parte (como resinas ou
medula) que se mostre quente ao tato humano. Mas, como foi antes dito,
90
as
ervas verdes quando abafadas se aquecem, e parecem quentes ao tato interno,
isto é, ao paladar e ao estômago e mesmo a partes externas, depois de algum
tempo, como ocorre com emplastros e ungüentos vegetais que podem parecer
quentes ou frios.
5. Não há qualquer calor nas partes separadas dos animais mortos
perceptível pelo tato humano. Nem mesmo o esterco eqüino, se não for coberto
e abafado, conserva o calor. Contudo, todo esterco parece possuir
potencialmente calor, como se observa nas marcas que ficam pelos campos. E,
igualmente, os cadáveres dos animais parecem possuir também um calor latente
e potencial, e isso a tal ponto que nos cemitérios em que todos os dias se fazem
sepultamentos a terra conserva um calor oculto, que consome os cadáveres
recentes muito mais rapidamente que na terra comum. Segundo se diz, os
orientais usam um certo tipo de tecido tênue e suave, feito de plumas de aves,
que por qualidades próprias dissolve e derrete a manteiga. quando por ele
levemente envolvida.
6. Tudo o que aduba os campos, como todos os tipos de esterco, a greda, a
areia do mar, o sal e coisas semelhantes,
possui alguma disposição ao calor.
7. Todo processo de putrefação possui traços de um tênue calor. ainda que
não alcance ser percebido pelo tato. Nem mesmo aquelas coisas, que na
putrefação se transformam em animálculos,
91
como a carne e o queijo, chegam a
ser perceptíveis ao tato. Nem tampouco a madeira podre, que brilha à noite,
parece quente ao tato. Mas, às vezes, o calor das coisas em putrefação se faz
sentir por meio de odores fortes e repugnantes.
8. Assim, o primeiro grau de calor, entre as coisas perceptíveis ao tato
humano, parece ser o calor animal, que por sua vez se desdobra em muitos
graus. No seu grau mais baixo, como no caso dos insetos, é muito mal
percebido pelo tato, O seu grau mais alto é atingido pelo calor solar, nas zonas e
nos climas tropicais, mas não chega a ser tão forte a ponto de não ser tolerado
pela mão. Contudo, conta-se que Constâncio
92
e alguns outros tinham certo tipo
de temperamento e hábitos físicos de tal modo secos que, atacados por febre
agudíssima, ficaram quentes a ponto de parecerem queimar as mãos de quem
deles se aproximasse.
9. Os animais aumentam o próprio calor pelo movimento e pelos exercícios
físicos, pelo vinho, pelos banquetes, pelo sexo, pelas febres ardentes e pela dor.
10. Os animais, durante os acessos de febres intermitentes, inicialmente são
acometidos de frio e tremores, mas depois adquirem um calor muito intenso. E
o mesmo acontece no início das febres ardentes e nas febres pestilentas.
11. Façam-se ulteriores investigações sobre o calor em animais diversos,
como peixes, quadrúpedes, serpentes, aves e também em suas diversas espécies,
como o leão, o abutre, o homem. Pois, conforme a opinião vulgar, a parte
interna dos peixes é pouco quente, as aves são mais quentes, especialmente as
pombas, os falcões e as avestruzes.
12. Façam-se ainda investigações ulteriores acerca dos diversos graus de
calor nas partes e nos membros do mesmo animal. Com efeito, o leite, o sangue,
o esperma, os ovos, são moderadamente quentes e menos quentes que as partes
externas de um animal em agitação e movimento. Ainda não foi feita uma
investigação do mesmo teor para se saber o grau de calor do cérebro e do
estômago, do coração, etc.
13. Todos os animais, no inverno e nas épocas frias, são frios nas partes
externas, mas nas partes internas crê-se encerrarem mais calor.
14. O calor dos corpos celestes, mesmo na região mais quente e durante a
estação e o dia mais quente, não atinge nunca um grau tal que chegue a
incendiar e queimar a madeira bem seca ou a palha ou um pedaço de trapo, a
não ser que seja auxiliado por espelhos ustórios. Mas pode sempre provocar
vapores das coisas úmidas.
15. Segundo a tradição dos astrônomos, algumas estrelas são mais quentes
que outras. Dentre os planetas, depois do sol, Marte é o mais quente, depois
vem Júpiter e depois Vênus. Estabelecem-se como os mais frios primeiro a Lua
e, mais que todos, Saturno. Entre as estrelas fixas estabelece-se como a mais
quente Sírio, vindo depois Coração de Leão, e a seguir Canícula,
93
etc.
16. O sol mais aquece quanto mais se inclina na perpendicular ou no zênite; o
que também é de se crer verdadeiro para os demais planetas, em relação ao seu
próprio calor. Júpiter, por exemplo, aquece mais quando se encontra sob Câncer
ou Leão que quando sob Capricórnio ou Aquário.
17. Tudo leva a crer que o sol e os outros planetas aquecem mais quando
atingem o seu perigeu, pela maior proximidade da Terra, que quando do seu
apogeu.
94
E se acontecer que, em alguma região, o sol esteja ao mesmo tempo
no perigeu e mais próximo à perpendicular, necessariamente será aí mais quente
que na região em que o sol também esteja em seu perigeu, mas em posição
oblíqua. Por isso deve ser notada a situação relativa de altitude dos planetas, nas
diversas regiões, em relação à sua posição vertical ou obliqua.
18. Supõe-se ainda que o sol, como os outros planetas, aqueça mais quando
se aproxima das estrelas fixas maiores. Assim, quando o sol se encontra em
Leão, mais próximo ao Coração de Leão, à Cauda de Leão, à Espiga da Virgem,
a Sírio, à Canícula, aquece mais que quando se encontra em Câncer, onde,
contudo, está mais na posição perpendicular. E é para se crer que as partes do
céu infundem um calor tanto maior (ainda que não perceptível ao tato) quanto
mais são ornadas de estrelas e especialmente das estrelas maiores.
19. Em suma, o calor dos corpos celestes pode ser aumentado em vista de três
fatores, ou seja, pela posição perpendicular, pela proximidade ao perigeu e pela
conjunção ou combinação das estrelas.
20. Em verdade, há uma grande diferença entre o calor dos animais e dos
raios dos corpos celestes, tal como chegam a nós, e o da mais tênue chama, e
mais ainda o dos corpos incandescentes, o dos líquidos e do próprio ar comum
aquecido pelo fogo. De fato, a chama do espírito do vinho, ainda que rarefeita e
difusa, pode incendiar a palha, um pano ou o papel. E tal nunca ocorre com o
calor animal ou solar, sem o emprego de espelhos ustórios.
21. Contudo, as chamas e as coisas incandescentes têm calor e múltiplos
graus, tanto em intensidade quanto em tenuidade. Mas sobre o fato ainda não foi
feita uma indagação diligente e, por isso, só é possível tratá-los de passagem.
Entre as várias espécies de chamas, a do espírito do vinho parece ser a mais
débil, a não ser que as chamas ou a luminescência produzidas pelo suor animal
sejam ainda mais débeis. A seguir, segundo nos parece, seria a chama dos
vegetais leves e porosos, como a palha, o junco e as folhas secas, cujas chamas
não estão muito longe das produzidas por pêlos ou penas. A estas seguem-se as
chamas das madeiras que não possuem resinas ou pez. Deve ser observado,
porém, que a chama proveniente de madeiras delgadas, que comumente são
juntadas em feixes, é mais fraca que a produzida por troncos de árvores e por
raízes. E isso pode ser facilmente experimentado nos fornos que fundem ferro,
onde o fogo produzido por feixes e ramos de árvores não tem utilidade. A
seguir, assim pensamos, vem a chama produzida por óleo, sebo, cera e por
outras substâncias oleosas e graxas, que não possuem muita força. Contudo, o
calor mais forte é encontrado no pez e na resina; mais forte ainda no enxofre e
na cânfora, na nafta, no petróleo, bem como nos sais, uma vez eliminada a sua
matéria crua, e em seus compostos, como a pólvora, o fogo grego (conhecido
como fogo selvagem)
95
e seus diferentes tipos, todos portadores de um calor
obstinado, que não se extingue facilmente com água.
22. Cremos também que a chama produzida por certos metais imperfeitos é
sobremaneira forte e aguda. Mas sobre tudo isso são necessárias investigações
ulteriores.
23. A chama dos raios
96
parece superar todas as demais em potência, a ponto
de chegar a fundir o ferro perfeito, reduzindo-o a gotas, o que os outros tipos de
chamas não conseguem fazer.
24. Há nos corpos incandescentes diversos graus de calor, que ainda não
foram diligentemente investigados, O calor mais fraco pensamos ser o do pano
queimado, usado comumente para acender o fogo e também o proveniente das
madeiras esponjosas e das cordas secas que servem de rastilho para disparar a
artilharia. A seguir vem o carvão vegetal ou mineral, ou ainda o dos tijolos
queimados e coisas semelhantes. Cremos que, de todos os corpos
incandescentes, os mais quentes são os metais, quando acesos, caso do ferro, do
cobre, etc. Também esse caso deve ser investigado ulteriormente.
25. Entre os corpos incandescentes, alguns há muito mais quentes que certas
chamas. De fato, é muito mais quente o ferro em brasa que a chama do espírito
do vinho.
26. Entre os corpos não incandescentes, mas aquecidos pelo fogo, como a
água fervente e o ar encerrado nos fomos, há alguns que superam em calor, e
em muito, corpos incandescentes e mesmo inflamados.
27. O movimento aumenta o calor, como se pode ver pelos foles e pelo sopro;
por isso os metais mais duros não se fundem ou derretem com fogo morto e
parado, sendo necessário excitá-lo com o maçarico.
97
28. Faça-se com espelhos ustórios o experimento seguinte, conforme
recordamos:
98
coloca-se o espelho à distância, por exemplo, de um palmo, de
um objeto combustível. Não queimará ou inflamará tanto o objeto quanto se se
colocar o espelho a uma distância de, por exemplo, meio palmo e deslocá-lo
gradual e lentamente até a distância inicial de um palmo. O cone de
convergência e o feixe dos raios são os mesmos e é o próprio movimento que
aumenta o efeito do calor.
29. Acredita-se que os incêndios, quando acompanhados de fortes ventos,
mais progridem contra que a favor do vento. Isso porque as chamas se movem
mais rapidamente quando o vento as rechaça que quando as impele.
30. A chama não brilha, nem se produz, a menos que alcance algo de côncavo
em que se possa movimentar e dançar; exceção feita das chamas detonantes da
pólvora e análogas, caso em que a compressão e o aprisionamento da chama
aumentam o seu furor.
31. A bigorna se torna muito quente ante os golpes do malho. Se a bigorna
fosse feita de um metal mais mole, acreditamos que chegaria a ficar rubra, por
força dos duros e repetidos golpes do malho. Disso se deve fazer mais
experimentos.
32. Nos corpos incandescentes que são porosos, de tal forma que haja espaço
para o movimento do fogo, se o seu movimento for coibido por forte
compressão, logo o fogo se apagará. Assim, quando um pano queimado, o pavio
aceso de uma vela ou lâmpada, um pedaço de carvão vegetal ou uma brasa, são
abafados ou pisados, ou algo semelhante, interrompe-se subitamente a ação do
fogo.
33. A aproximação de um corpo quente de outro aumenta o calor na própria
razão dessa proximidade. Também é o que ocorre com a luz, pois quanto mais
próximo da luz é um objeto mais visível ele se torna.
34. A união de calores de origens diversas aumenta o calor, desde que se não
misturem com corpos. Com efeito, um grande fogo e um fogo menor ateados no
mesmo local aumentam igualmente o calor tanto de um quanto de outro; mas
água morna misturada à água fervente esfria -a.
35. A permanência do calor em um corpo aumenta o calor. Pois o calor que
constantemente circula e emana mistura-se ao calor preexistente e assim
multiplica o calor. Por isso, o fogo aceso durante meia hora, em um cômodo,
não o aquece da mesma forma que um que dura uma hora inteira. Mas não se dá
o mesmo com a luz, que uma lâmpada ou uma vela acesa não ilumina mais
determinado lugar durante um dia inteiro que logo no inicio.
36. A irritação produzida por um ambiente frio aumenta o calor,
99
como se
observa no fogo aceso durante uma forte nevasca. Supomos que tal sucede não
apenas devido à concentração e contração do calor, que é uma espécie de união,
mas devido à exasperação, como ocorre com o ar muito comprimido ou um
bastão violentamente desviado de sua posição natural anterior, que não
retornam ao mesmo ponto em que estavam, mas muito além dele, em uma
posição oposta. Faça-se um diligente experimento com um bastão, ou com algo
semelhante, colocando-o no fogo, para verificar se não se consome mais
rapidamente nas extremidades que no meio da chama.
37. Há grande diversidade de graus de suscetibilidade ao calor. Sobre isso
note-se, em primeiro lugar, que o calor, mesmo pequeno e fraco, sempre acaba
por afetar e aquecer um pouco até os corpos a ele mesmo receptivos. Assim é
que o mesmo calor da mão que aquece um pouco uma bola de chumbo ou de
outro metal qualquer, por ela segurada por algum tempo, facilmente se
transmite e se provoca o calor, sem que haja aparência de modificação nos
corpos.
38. De todos os corpos conhecidos, o ar é o que mais facilmente recebe e
transmite o calor, o que é bem visível pelos termômetros,
100
cuja confecção é a
seguinte: toma-se um tubo de vidro delgado e oblongo. Submerge-se o tubo
com a boca para baixo em outro recipiente de vidro, com água, de modo que o
seu orifício alcance o seu fundo, apoiando-se o seu gargalo na sua borda. Para
mantê-lo nessa posição, coloca-se um pouco de cera nas bordas internas do reci-
piente, sem, contudo, obstrui-lo, evitando-se, dessa forma, que falte o ar que é
indispensável ao movimento sumamente sutil e delicado de que vamos falar.
Deve-se, porém, aquecer ao fogo, antes de submergi-lo, a parte superior do
tubo. Depois de colocado o vidro, na forma indicada, o ar que foi aquecido vai-
se pouco a pouco contraindo, durante o tempo necessário para a completa
eliminação do calor adquirido do exterior, até alcançar as mesmas dimensões do
ar circunstante no momento em que foi submergido na água, o que provocará a
subida da água, na mesma proporção. Deve-se ainda fixar ao longo do tubo uma
tira de papel comprida e estreita e graduada, conforme se queira. Verificar-se-á
então que, quando a temperatura do dia é fria, o ar se contrai em menor espaço,
e quando é quente, ele se expande. E isso será percebido através da água que
sobe, quando o ar se contrai, ou desce, quando o ar se dilata. A sensibilidade do
ar, tanto para o frio quanto para o calor, é sutil e delicada a ponto de superar de
muito a capacidade do tato. Pois um raio de sol ou o calor da respiração ou o
calor da mão, dirigido para a extremidade do tubo, faz baixar a água de modo
manifesto. Pensamos, todavia, que o espírito dos animais possui uma
sensibilidade ainda mais sutil, em relação ao calor ou ao frio, desde que não seja
impedida ou embotada pela massa do corpo.
101
39. Depois do ar, acreditamos que os corpos mais sensíveis ao calor sejam os
que foram há pouco modificados e contraídos pelo frio, como a neve e o gelo,
pois, com apenas uma leve tepidez começam a dissolver e liqüefazer-se. A
seguir, vem o mercúrio. Em seguida, os corpos graxos, como o óleo, a manteiga
e similares; depois a madeira, depois a água e, por fim, as pedras e os metais,
que se não aquecem com facilidade, especialmente na parte interior. Mas estes,
depois de contraído o calor, conservam-no por muito tempo, como é o caso do
tijolo, da pedra, ou do ferro incandescentes colocados ou mergulhados na água
fria, que retêm o calor durante perto de um quarto de hora, a ponto de não
poderem ser tocados.
40. Quanto menor é a massa de um corpo tanto mais rapidamente se aquece
pela aproximação de um corpo quente; o que demonstra que todo calor
conhecido é infenso aos corpos tangíveis.
41. O calor, em relação ao tato e aos demais sentidos humanos, é coisa
variável e relativa. Por isso a água tépida, se a mão que a toca está fria, parece
quente; se a mão está quente, parece fria.
102
XIV
O quanto é pobre a nossa história natural, qualquer um pode facilmente
perceber pelo fato de que nas tábuas precedentes inserimos simples tradições e
relatos de terceiros (mas sempre acrescentando e pondo em dúvida mesmo a
mais segura autoridade), em lugar da história provada e das instâncias certas. E
ainda tivemos que nos servir muitas vezes de locuções como a seguinte: “É
necessário fazer o experimento”, “é necessário comprová-lo com ulterior
experimento”.
XV
Objetivo e oficio destas três tábuas é o de fazer uma citação de instância
perante o intelecto
103
(como usualmente as designamos). Uma vez feita a
citação, é necessário passar-se à prática da própria indução. É necessário, com
efeito, descobrir-se, considerando atentamente as tábuas e cada uma das
instâncias, uma natureza tal que sempre esteja presente quando está presente a
natureza dada, ausente quando aquela está ausente, e capaz de crescer e
decrescer acompanhando-a; e seja, como se disse antes, uma limitação da
natureza mais comum.
104
Assim, se a mente procura desde o início descobrir
essa natureza afirmativamente, como ocorre quando abandonada a si mesma,
ocorrem fantasias, meras opiniões e noções mal determinadas, e axiomas
carentes de contínuas correções, se não se quiser, segundo o costume das
escolas, combater em defesa de falsidade.
105
Mas certamente os resultados serão
melhores ou piores conforme a capacidade e a força do intelecto que opera.
Contudo, só a Deus, criador e introdutor das formas,
106
ou talvez aos anjos e às
inteligências celestes compete a faculdade de apreender as formas
imediatamente por via afirmativa, e desde o início da contemplação. Certamente
essa faculdade é superior ao homem, ao qual é concedida somente a via
negativa de procedimento, e só depois no fim, depois de um processo completo
de exclusões, pode passar às afirmações.
1O7
XIV
Em vista disso, é necessário analisar e decompor, de forma completa, a
natureza, não certamente pelo fogo, mas com a mente, que é uma espécie de
centelha divina.
108
A primeira obra da verdadeira indução, para a investigação
das formas, é a rejeição ou exclusão das naturezas singulares que não são
encontradas em nenhuma instância em que está presente a natureza dada, ou
encontram-se em qualquer instância em cuja natureza dada não está presente, ou
cresçam em qualquer instância em cuja natureza dada decresce, ou decrescem
quando a natureza dada cresce. Depois de ter feito as convenientes rejeições ou
exclusões na forma devida, restará no fundo, como resíduo donde se evolaram
como fumaça as opiniões, a forma afirmativa, sólida, verdadeira e bem
determinada. Tudo isso é breve para ser dito, mas é conseguido depois de
muitas tentativas. De nossa parte, acreditamos nada negligenciar do que é
necessário ao nosso propósito.
XVII
Devemos, no entanto, prevenir sem demora os homens de que se acautelem de
confundir as formas, de que falamos, com as que as suas especulações e
reflexões tratam habitualmente,
109
o que pode ocorrer em vista da importância
que reconhecem às formas.
Em primeiro lugar, e por esse motivo, não nos ocuparemos das formas
compostas,
110
que são, como se disse, combinações das naturezas simples
conforme o curso comum do universo, como a do leão, da águia, da rosa, do
ouro, e de muitas outras. Elas serão devidamente consideradas quando nos
ocuparmos dos processos latentes, dos esquematismos latentes e de sua
descoberta, na medida em que se encontram nas chamadas substâncias ou
naturezas concretas.
De outra parte, mesmo em relação às naturezas simples, não se devem confundir
as formas de que tratamos com as idéias abstratas, ou seja, com as idéias mal ou
não determinadas na matéria.
111
Com efeito, quando falamos das formas, mais
não entendemos que aquelas leis e determinações do ato puro, que ordenam e
constituem toda e qualquer natureza simples, como o calor, a luz, o peso, em
qualquer tipo de matéria ou objeto a elas suscetível. Falar em forma do calor ou
da luz é o mesmo que falar da lei do calor ou da luz;
112
não nos afastamos ou
abstraímos do aspecto operativo das coisas. Assim, por exemplo, quando
falamos na investigação da forma do calor: rechace-se a tenuidade ou a
tenuidade não é a forma do calor; é como se disséssemos: o homem pode
introduzir o calor em um corpo denso ou o homem pode retirar ou colocar à
parte o calor de um corpo tênue.
Por conseguinte, se as nossas formas parecerem a alguém com algo de abstrato,
pelo fato de misturarem e combinarem coisas heterogêneas (pois parecem, sem
dúvida, heterogêneos o calor dos corpos celestes e do fogo; o vermelho fixo da
rosa ou similares, e o que aparece no arco-íris ou nos sais da opala ou do
diamante; a morte por submersão e a por cremação, a por um golpe de espada e
a por apoplexia e a por atrofia; e isso apesar de todos esses caracteres perten-
cerem à natureza do calor, do vermelho e da morte), reconheça ele que seu
intelecto está inteiramente preso e estacado pelo hábito, pelas coisas como um
todo
113
e pelas opiniões.
Está fora de dúvida que tais coisas, ainda que heterogêneas e diversas entre si,
coincidem na forma ou lei que ordena o calor, o vermelho ou a morte; e que ao
homem não é dado o poder de se emancipar e liberar-se do curso da natureza e
aventurar-se a novas causas eficientes e a novas de operar, afora da revelação e
da descoberta de tais formas. Porém, depois de haver considerado a natureza em
sua unidade, que é o principal, depois no seu devido lugar, tratar-se-á das
divisões e ramificações da natureza, tanto das ordinárias quanto das internas e
mais verdadeiras.
XVIII
É agora oportuna a apresentação de um exemplo de exclusão ou de rejeição de
naturezas, que nas tábuas de presença aparecem como não pertencendo à forma
do calor; mas também não deixando de se ter em mente que não apenas é
suficiente uma das tábuas de exclusão de uma natureza qualquer, mas que é
suficiente apenas uma das instâncias singulares nelas contidas. De fato, é
manifesto, pelo que se disse, que mesmo apenas uma só instância que
contradiga destrói qualquer conjetura sobre a forma. De qualquer maneira,
sempre que necessário, para maior evidência e para a demonstração clara do uso
das tábuas, repetiremos e duplicaremos as exclusões.
Exemplo da Exclusão, ou Rejeição de Naturezas da Forma do Calor
1. Pelos raios do sol exclua-se a natureza elementar.
2. Pelo fogo comum e, mais ainda, pelos fogos subterrâneos, que estão
muito longe e muito distantes dos raios dos corpos celestes, exclua-se a natureza
dos corpos celestes.
3. Pela propriedade de se aquecerem que têm todos os corpos (minerais,
vegetais, as partes externas dos animais, água, azeite, ar e similares) pela
simples proximidade do fogo de outro corpo quente, exclua-se toda variedade e
delicadeza de textura dos corpos.
4. Pelo ferro e pelos metais incandescentes que aquecem todos os outros
corpos, sem, contudo, diminuírem de peso ou de substância, exclua-se a
comunicação ou a mescla de outro corpo quente.
5. Pela água fervente e pelo ar e ainda pelos metais e outros sólidos
aquecidos, mas não até a ignição e a incandescência, excluam-se a luz ou o
lume.
114
6. Pelos raios da lua e de outras estrelas (com exceção do sol), excluam-se
ainda a luz e o lume.
7. Pela tábua comparativa do ferro incandescente e da chama do espírito do
vinho (que conclui que o ferro incandescente tem mais calor, mas menos luz, e a
chama do espírito do vinho, mais luz e menor calor), excluam-se também a luz e
o lume.
8. Pelo ouro e por outros metais incandescentes, que são corpos de grande
densidade, quando considerados como um todo, exclua-se a tenuidade.
9. Pelo ar, mais comumente encontrado frio, mas sempre permanecendo
tênue, exclua-se também a tenuidade.
10. Pelo ferro incandescente, cuja massa não se dilata, mas permanece em sua
dimensão visível, exclua-se o movimento local ou expansivo do todo.
11. Pela dilatação do ar nos termômetros
115
e coisas semelhantes, onde o ar
manifestamente tem um movimento local e expansivo, mas nem por isso contrai
qualquer manifesto aumento de calor, exclua-se também o movimento local e
expansivo do todo.
12. Pela facilidade com que todos os corpos se aquecem, sem qualquer
destruição ou alteração digna de nota, exclua-se a natureza destrutiva ou a
introdução violenta de qualquer natureza nova.
13. Pelo consenso e conformidade dos efeitos semelhantes produzidos pelo
calor e pelo frio, exclua-se o movimento, tanto de expansão quanto o de
contração do todo.
14. Pelo aumento do calor oriundo do atrito dos corpos, exclua-se a natureza
principal.
116
Chamamos de natureza principal a que se encontra positivamente
na natureza e não é causada por uma natureza precedente.
Há ainda outras naturezas (a serem excluídas), pois não fizemos tábuas
perfeitas, mas apenas exemplos.
Todas, e cada uma das naturezas enumeradas, não estão compreendidas na
forma do calor. E de todas essas naturezas mencionadas, o homem deve estar
livre ao operar sobre o calor.
XIX
Com as tábuas das exclusões estão colocados os fundamentos da verdadeira
indução; que, contudo, não será perfeita se não se apoiar na afirmativa. Mas
nem a própria exclusiva está completa, mormente logo de início. Com efeito, a
exclusiva (como é evidente) representa a rejeição das naturezas simples; mas se
ainda não possuímos noções justas e verdadeiras das naturezas simples,
117
como
pode o procedimento exclusivo ser correto? Algumas das noções antes
mencionadas (como a noção da natureza elementar, como a noção da natureza
celeste, como a noção de tenuidade)
118
são noções vagas e não bem
determinadas. Por isso, de vez que não ignoramos, nem nos esquecemos da
magnitude da obra que empreender (qual seja, a de colocar o intelecto humano
ao nível da natureza e das coisas), de nenhum modo nos podemos contentar com
o que até agora preceituamos; ao contrário, intentamos oferecer e subministrar
ao intelecto os mais poderosos auxílios, que é o que passaremos a indicar. E,
certamente, na interpretação da natureza deve-se formar e preparar o ânimo na
interpretação da natureza, de modo que, de um lado, detenha-se devidamente
nos vários graus de certeza e, de outro, pense também, especialmente no início,
que o que lhe é permitido examinar depende sobremaneira do que ainda está
para ser examinado.
xx
Contudo, como a verdade emerge mais rapidamente do erro que da confusão,
reputamos ser útil permitir-se ao intelecto, depois de elaboradas e devidamente
consideradas as três tábuas de primeira citação (ou comparecimento ou de
apresentação, tal como o fizemos), o empreendimento da obra de interpretação
da natureza na afirmativa,
120
a partir das instâncias contidas nas tábuas, ou das
que ocorrerem fora delas. A essa espécie de tentativa continuamos a chamar de
Permissão ao Intelecto ou de Interpretação Inicial ou ainda de Primeira
Vindima.
121
Primeira Vindima da Forma do Calor
Deve ter-se presente que a forma é inerente (o que deve ter ficado claro pelo
que antes foi dito) a todas e a cada uma das instâncias particulares, nas quais se
encontra a própria coisa; de outra maneira não seria forma, pois não pode
ocorrer nenhuma instância contraditória. Todavia, a forma é muito mais visível
em algumas instâncias que em outras; ou seja, nas que a natureza da forma está
menos coibida e impedida pelas outras naturezas e reduzida à sua ordem. A
estas instâncias costumamos chamar de instâncias luminosas ou instâncias
ostensivas.
122
Em todas e em cada uma das instâncias em que a limitação é o calor, a natureza
parece ser o movimento. Isso é manifesto na chama, no seu perpétuo mover, nos
líquidos aquecidos ou ferventes, também sempre em movimento. Fica
igualmente claro, quando se excita o calor pelo movimento, como acontece com
os foles e com o vento (veja-se instância 29, tábua 3). O mesmo pode ser dito de
outros tipos de movimento, a cujo respeito veja instâncias 28 e 31, tábua 3. Isso
também se observa na extinção do fogo e do calor, por qualquer forte
compressão que refreia e interrompe o movimento (veja instâncias 30 e 32,
tábua 3). Fica igualmente claro que todos os corpos se destroem ou, pelo menos,
se alteram consideravelmente, por qualquer fogo ou calor forte e veemente, daí
se seguindo que o calor produz um movimento forte, um tumulto ou
perturbação nas partes internas do corpo, que gradualmente caminham para a
dissolução.
O que dissemos a respeito do movimento (ou seja, que é como o gênero em
relação ao calor) não deve ser entendido como significando que o calor gera o
movimento ou que o movimento gera o calor (embora nisso haja alguma
verdade), mas que o calor é em si,
123
ou que a própria qüididade do calor
124
é
movimento e nada mais; observando-se, porém, as diferenças específicas que a
seguir enumeraremos, depois de indicar algumas precauções contra os
equívocos.
O calor, enquanto coisa sensível, é algo relativo ao homem e não ao universo, e
é corretamente estabelecido como sendo efeito (do calor) sobre o espírito
animal. Pelo que, em si mesmo, é coisa variável, pois em um mesmo corpo
(conforme a disposição dos sentidos) produz tanto sensação de calor quanto de
frio, o que deve ter ficado patente pela instância 41, tábua 3.
Contudo, não se pode confundir a comunicação do calor, ou seja, a sua natureza
transitiva, graças à qual um corpo aproximando-se de outro quente, também se
aquece, com a forma do calor. Pois uma coisa é o quente e outra é o que
esquenta. E, como, com um movimento de atrito, se produz calor sem a
existência de um calor precedente, é necessário que se exclua o que se aquece
da forma do quente. É mesmo quando o calor sobrevém, pela aproximação de
algo quente, isso não se deve à forma do quente, mas resulta inteiramente de
uma natureza mais alta e comum, isto é, da natureza da assimilação ou da
multiplicação de si mesmo, o que deve ser investigado separadamente.
125
A noção de fogo é vulgar e de nada vale; é composta de combinação do calor e
da luz de um corpo, como na chama e nos corpos aquecidos até a
incandescência.
Uma vez afastado todo equívoco, passemos às diferenças verdadeiras, que
limitam o movimento e constituem-no na forma do calor.
126
A primeira diferença é a seguinte: o calor é movimento expansivo, pelo qual o
corpo se dilata e tende a dilatar-se ou a passar para uma esfera ou dimensão
maior que a antes ocupada. Esta diferença se mostra sobretudo na chama, onde
o fumo e o vapor espesso se dilatam e convertem-se em chama.
O mesmo se observa em todo líquido fervente que se intumesce, de maneira
manifesta, eleva-se e emite borbulhas, e o processo de expansão se estende até
alcançar uma extensão muito superior e muito mais ampla que a do próprio
líquido, quer dizer, convertendo o líquido em vapor, fumo ou ar.
Observa-se também em toda madeira ou matéria combustível, em que às vezes
ocorre exsudação e sempre evaporação.
Observa-se ainda na fusão dos metais que como corpos muito compactos que
são) não se intumescem nem se dilatam com facilidade, porém, o seu espírito,
depois de se ter dilatado, tendendo dessa forma a uma maior expansão, força e
leva as partes mais graxas ao estado liquido. E se for aumentado em muito o
calor, dissolve e torna volátil grande parte delas.
Observa-se igualmente no ferro e nas pedras: que, embora não se liqüefaçam ou
fundam, tornam-se mais moles. O que também ocorre com varas de madeira,
que se tornam flexíveis quando aquecidas em cinza quente. E esse movimento
se observa de modo mais evidente possível no ar, que com pouco calor se dilata
de modo continuo e manifesto, como se pode ver pela instância 38, tábua 3.
Observa-se, ainda, na natureza contrária, que é o frio. Com efeito, o frio contrai
todos os corpos e leva-os a se encolherem. Isso vai ao ponto de, por ocasião de
intenso frio, os pregos caírem das paredes, o bronze se dessoldar, e o vidro
aquecido, e subitamente colocado no frio, arquear-se e quebrar. Igualmente o ar,
submetido a um ligeiro resfriamento, se contrai em volume mais restrito, como
aparece na instância 38, tábua 2. Mas, sobre esse assunto, alongar-nos-emos
mais quando da investigação do frio.
Não é de estranhar que o calor e o frio produzam muitas ações comuns (a
respeito, veja-se instância 32, tábua 32), pois duas das diferenças que vêm a
seguir pertencem igualmente às duas naturezas; ainda que nesta diferença (a de
que estamos tratando) as ações sejam diametralmente opostas pois o calor
engendra um movimento expansivo e dilatador, e o frio, ao contrário, engendra
um movimento de contração e de condensação.
A segunda diferença é uma modificação da precedente e reza que o calor é um
movimento expansivo ou orientado para a circunferência, mas com a condição
de que, ao mesmo tempo, o corpo tenda para o alto. Não há dúvida de que se
podem produzir muitos movimentos mistos. Por exemplo, uma seta ou um
dardo gira enquanto caminha e caminha enquanto gira. Da mesma maneira, o
movimento do calor é expansivo e ao mesmo tempo voltado para o alto.
Esta diferença fica bastante evidente ao serem colocadas tenazes ou atiçadores
de ferro no fogo. Se são colocados perpendicularmente, segurando-se na outra
extremidade, o calor rapidamente queimará as mãos, mas se são colocados
horizontalmente ou em nível inferior ao do fogo, as mãos se vão aquecer muito
depois.
É também evidente nas destilações, per discensorium, que são usadas pelos
homens para flores muito delicadas cujos aromas rapidamente se evolam. De
fato, a indústria humana descobriu uma maneira de colocar o fogo não por
baixo, mas por cima, para aquecimento mais lento. Não apenas a chama mas
também toda espécie de calor tende para o alto.
Faça-se um experimento disso, na natureza contrária do frio, para se verificar se
o frio não provoca a contração dos corpos para baixo, da mesma maneira que o
calor dilata os corpos para o alto. Para isso, tomem-se duas barras de ferro, ou
dois tubos de vidro, iguais em todos os outros aspectos, e levem-nos ao fogo
para se aquecerem um pouco; coloque-se uma esponja embebida em água fria
ou neve, em cima de uma e embaixo de outra respectivamente. Supomos que o
resfriamento no sentido das extremidades será mais rápido na barra em que a
neve esteja em cima do que naquela em que a neve venha colocada embaixo, ou
seja, exatamente o contrário do que ocorre com o calor.
A terceira diferença é a seguinte: o calor é um movimento expansivo, não
uniforme segundo o todo, mas segundo as menores partículas do corpo, e ao
mesmo tempo reprimido, repelido e afastado, de maneira que adquire um
movimento alternado e continuamente trêmulo e irritado pela repercussão
127
e
do qual se origina o furor do fogo e do calor.
Esta diferença aparece sobretudo na chama e nos líquidos ferventes, que
continuamente tremem e nas menores partes se intumescem e repentinamente
esmorecem.
Ocorre ainda nos corpos que têm tal densidade que aquecidos ou incandescentes
não se intumescem, nem se dilatam em sua massa; esse é o caso do ferro
candente, em que o calor é muito intenso.
Ocorre ainda no fato de o fogo arder mais intensamente por ocasião da estação
fria.
Ocorre ainda no fato de que, quando o ar se dilata, no termômetro, sem qualquer
impedimento ou força repulsiva, isto é, com uniformidade e conformidade, não
se percebe qualquer calor. Ainda nos ventos fechados, mesmo irrompendo com
a máxima força, mesmo assim não se percebe um calor significativo; isso
porque o movimento ocorre segundo o todo e não alternadamente nas partículas.
Faça-se um experimento a esse respeito para se verificar se a chama não queima
mais fortemente nos lados que no centro.
Ocorre também de forma clara no fato de que toda a combustão penetra pelos
diminutos poros do corpo, que se queima; de modo que a combustão o abate,
penetra, atravessa e perfura como se possuísse infinitas pontas de agulha. É por
isso que também todas as águas-fortes (se são adequadas ao corpo sobre o qual
agem) produzem os efeitos do fogo, devido à sua natureza corrosiva e
penetrante.
Esta diferença (a de que estamos falando) é comum à natureza do frio, no qual o
movimento de contração é contido pela força expansiva; do mesmo modo que
no calor é reprimido o movimento expansivo pela força de contração.
Por isso, tanto faz se as partículas do corpo o penetrem para dentro ou no
sentido do exterior, o processo é o mesmo, embora o grau de intensidade seja
muito diferente, pois, mesmo aqui bem perto de nós, na superfície da Terra,
nada temos que seja puramente frio (veja-se instância 27, tábua 1).
A quarta diferença é uma modificação da anterior, ou seja, o movimento
estimulante ou penetrante deve ser rápido, e não lento, e provir por partículas
não extremamente pequenas, mas um pouco maiores.
Observa-se esta diferença no confronto dos resultados que produz o fogo com
os resultados que produz o tempo ou a idade. O tempo tanto quanto o fogo
queima, consome, alui e reduz a cinzas, mas de forma sutil e delicada, isso
porque trata-se de um movimento muito lento, que procede por partículas
minúsculas e onde não se percebe o calor.
Ocorre também na comparação entre a dissolução do ferro e do ouro. O ouro de
fato dissolve sem provocar calor, enquanto o ferro produz um calor fortíssimo,
mesmo durante um tempo mais ou menos igual. Tal ocorre porque, com a
introdução da água, a solução se processa mais naturalmente e a dissolução das
partes advém sem esforço, mas com o ferro, ao contrário, a presença da água é
áspera e contrastante, porque as partes do ferro opõem uma maior resistência.
Ocorre ainda até certo ponto em certas gangrenas ou decomposições da carne
que não produzem grande calor, nem dor, mas cumprem-se pelo processo sutil
da putrefação.
Seja esta, pois, a primeira vindima ou interpretação inicial da forma do calor,
obtida por permissão do intelecto.
Desta primeira vindima, obtêm-se a forma ou verdadeira definição do calor (o
calor em relação ao universo e não apenas em relação aos sentidos), que pode
ser expressa brevemente do seguinte modo: O calor é um movimento expansivo,
reprimido e que atua sobre as partículas menores. A expansão pode ser
definida: Pela natureza de expandir-se em todas as direções, mas que, apesar
disso, se inclina um pouco mais para o alto. E o esforço sobre as partículas se
define dizendo: Que não se trata de algo lento, mas apressado e impetuoso.
Em relação à parte operativa, é a mesma coisa. De fato, o seu enunciado é o
seguinte: Se em algum corpo natural pode produzir-se um movimento de
dilatação e expansão e se se puder reprimi-lo e fazê-lo voltar sobre esse
movimento, de modo que a dilatação não transcorra uniformemente, mas por
partes e que seja em parte repelida, nesse caso, sem dúvida, se engendrará
calor. É indiferente se se trata de corpo elementar (como se diz) ou se recebe as
suas qualidades dos corpos celestes; se é luminoso ou opaco; se é tênue ou
denso; se aumentado em seu volume ou contido nos limites da primeira
dimensão; se tendente a dissolver-se ou a permanecer no seu estado; se animal,
vegetal ou mineral; se água, óleo ou ar; ou de qualquer outra substância
suscetível do movimento mencionado. O calor sensível é, pois, a mesma coisa
que o calor em si, mas em relação aos nossos sentidos.
128
Mas agora é
necessário passar aos outros auxílios do intelecto.
XXI
Depois das tábuas de primeira citação, depois da rejeição ou exclusão e depois
da primeira vindima, feita segundo aquelas tábuas, é necessário passar aos
outros auxílios do intelecto na interpretação da natureza, bem como à indução
verdadeira e perfeita. Nessa exposição, se se fizer necessário o uso das tábuas,
retomaremos as do calor e do frio. Mas quando houver necessidade de apenas
alguns poucos exemplos, esses serão recolhidos aqui ou ali, para que não se
torne confusa a investigação e a exposição muito restrita.
Em primeiro lugar, trataremos das instâncias prerrogativas;
129
em segundo
lugar, dos adminículos da indução;
130
em terceiro lugar, da retificação da
indução;
131
em quarto lugar, da variação da investigação segundo a natureza
do assunto;
132
em quinto lugar, das prerrogativas da natureza
133
em relação à
investigação, ou seja, daquilo que se deve investigar antes e depois; em sexto
lugar, dos limites da
134
investigação ou sinopse de todas as naturezas do
universo; em sétimo lugar, da dedução à prática,
135
ou seja, daquilo que está
relacionado como o homem; em oitavo lugar, dos preparativos para a
136
investigação; em último lugar, da escala ascendente e descendente dos
axiomas.
137
XXII
Entre as instâncias prerrogativas, em primeiro lugar, proporemos as instâncias
solitárias. Solitárias são aquelas instâncias que apresentam a natureza que se
investiga, em coisas que nada têm em comum com outras, a não ser aquela
natureza; ou que não apresentam a natureza que se investiga em coisas que são
semelhantes a outras em tudo, exceto em relação a essa natureza. É claro que
estas instâncias eliminam palavras inúteis e aceleram e reforçam a exclusão;
bem por isso algumas poucas valem por muitas.
Assim, por exemplo, na investigação da natureza da cor, as instâncias solitárias
são os prismas e os cristais que fazem aparecer a cor, não somente em si
mesma, mas também a refletem sobre paredes externas, sobre o orvalho, etc.
Tais instâncias nada têm em comum com as cores fixas nas flores, com as cores
das gemas, dos metais, das madeiras, etc.; exceção feita da própria cor. Daí
facilmente se estabelece que a cor nada mais é que uma modificação da imagem
luminosa introduzida no corpo e recebida, no primeiro caso, com diversos graus
de incidência, no segundo como efeito de estrutura e esquematismos diversos.
Estas instâncias são solitárias por semelhança.
Ainda, na mesma investigação, os veios do branco e do negro e as variações de
cor, em flores da mesma espécie, constituem instâncias solitárias. Efetivamente,
o branco e o negro do mármore e as manchas de branco e de vermelho de certas
espécies de cravo parecem-se em quase tudo, exceto na cor. Daí facilmente se
conclui que a cor não tem muito em comum com as naturezas intrínsecas dos
corpos, mas que consiste tão-somente na disposição tosca e quase mecânica das
partes. A estas instâncias que são solitárias, por diferença a um e outro gênero,
chamamos de instância solitária, ou Ferinos,
138
usando o termo astronômico.
XXIII
Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em segundo lugar as instâncias
migrantes.
139
São aquelas em que a natureza investigada migra ou passa a um
processo de existência
140
se antes não existia, ou, ao contrário, migra no sentido
da corrupção, se antes existia. Em ambos os casos, simétricos da alternância, as
instâncias são duplas, ou uma única instância em movimento ou trânsito, que se
estende ao ciclo contrário. As instâncias desse tipo não apenas aceleram e
reforçam o processo de exclusão como também delimitam o afirmativo, isto é, a
própria forma investigada. É necessário, com efeito, que a forma da coisa seja
algo que, por meio das migrações, de um lado manifeste-se, de outro, destrua-se
e seja eliminada. E ainda que toda exclusão promova a afirmação, isso se
cumpre mais diretamente considerando-se um mesmo objeto, em vez de muitos.
A forma (como deve ter ficado claro por tudo o que foi dito), depois de
observada em um único, estende-se a todos os objetos. Quanto mais simples é a
migração tanto mais significativa é a instância. Além disso, as instâncias
migrantes são de grande utilidade na parte operativa (ou prática) do saber; isso
porque, mostrando a forma juntamente com a causa que a faz ser ou não ser,
141
indicam de forma mais evidente a prática a ser seguida em certos casos, dos
quais é fácil passar a outros, mas há ai um perigo a ser evitado que exige
cautela, ou seja, tais instâncias conectam muito estreitamente a forma à causa
eficiente,
142
confundindo assim o intelecto, ou pelo menos iludindo-o com uma
falsa opinião da forma, ao divisar a causa eficiente. E esta, para nós, nada mais
é que o veículo ou o condutor da forma. Mas se o procedimento de exclusão é
feito de maneira legítima, o remédio será facilmente encontrado.
Exporemos agora um exemplo de instância migrante. Seja a natureza a ser
investigada o candor ou a brancura: a instância migrante para a produção é o
vidro inteiro e o vidro pulverizado. Também a água comum e a água agitada, até
transformar-se em espuma. De fato, o vidro inteiro e a água comum são
transparentes, mas não são brancos; o vidro pulverizado e a água transformada
em espuma são brancos, mas não são transparentes. Por isso torna-se necessário
descobrir o que aconteceu ao vidro e à água por força dessa migração. É claro
que a forma do branco é comunicada e introduzida pela pulverização, no caso
do vidro, e pela agitação, no caso da água. Constatamos, então, que o que
ocorreu foi a comunicação das partículas do vidro e da água e a penetração do
ar. E não foi pouco o alcançado, com isso, para o descobrimento da forma do
branco, ao isolar o fato de que dois corpos em si transparentes, sendo um mais e
outro menos (ou seja, o ar e a água, o ar e o vidro), colocados juntos em
minúsculas partículas, produzem a brancura, devido à refração desigual dos
raios de luz.
Mas, a esse respeito, devemos ainda expor um exemplo do perigo antes
mencionado, bem como a forma de evitá-lo. Ao intelecto corrompido pelas
causas eficientes, facilmente pode ocorrer o pensamento de que a forma do
branco é sempre necessária ao ar, e que a brancura é engendrada unicamente por
corpos transparentes. O que é inteiramente falso e demonstrado por muitas
exclusões. Ver-se-á, por outro lado (deixando de lado o ar e coisas análogas),
que corpos inteiramente iguais, nas partículas visíveis, produzem a
transparência; que corpos desiguais, com estrutura simples, engendram o
branco; que os corpos desiguais, com estrutura complexa, mas ordenada,
engendram outras cores, com exceção do negro; que os corpos desiguais, com
uma estrutura complexa, mas desordenada e confusa, engendram o negro.
Assim apresentamos o exemplo de instância migrante, na geração da natureza
do branco. A instância migrante, para a corrupção da própria natureza do
branco, obtém-se com a espuma ou com a neve em dissolução. De fato, a água
perde o branco e retoma a transparência quando retorna ao seu estado íntegro,
sem ar.
De modo algum pode deixar de ficar bem explícito que, sob o nome de instância
migrante, compreendem-se não apenas as que migram passando à geração ou à
privação, mas ainda as que migram passando ao aumento ou à diminuição, uma
vez que também tais instâncias levam à descoberta da forma, como se observa
manifestamente pela, antes enunciada, definição da forma e pela tábua de graus.
Por isso o papel, quando seco, é branco; mas quando é molhado (ou seja,
quando se elimina o ar e se introduz a água), é menos branco e mais próximo da
transparência. O seu comportamento é semelhante aos indicados nas instâncias
anteriores.
XXIV
Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em terceiro lugar as instâncias
ostensivas, de que fizemos menção na primeira vindima do calor e a que
também chamamos de luminosas ou instâncias libertadas e predominantes.
143
São as que mostram a natureza investigada nua e por si subsistente,
144
e
ostentam-na no mais alto grau de sua potência, ou seja, emancipada e liberta de
impedimentos, ou pelo menos a eles se impondo pela força de sua virtude,
suprimindo-os e contendo-os. Pelo fato de todo corpo conter muitas formas de
naturezas combinadas e unidas no concreto, ocorre que cada uma entorpece,
deprime, quebranta e submete a outra, e com isso as formas singulares se
obscurecem. Mas objetos há em que a natureza investigada é predominante em
relação a outras naturezas, seja pela falta de impedimento, seja pela
predominância de sua própria virtude. Estas são as instâncias mais ostensivas
da forma.
145
Mas, mesmo neste caso, é necessário o uso de cautela e da
moderação do ímpeto do intelecto. Com efeito, tudo o que apresenta uma forma,
e ostenta-a diretamente ao intelecto, deve ser tido por suspeito e deve ser
submetido a um rigoroso e diligente procedimento de exclusão.
Por exemplo, seja o calor a natureza a ser investigada. A instância ostensiva do
movimento de expansão, que (como se disse antes) é propriedade específica do
calor, é a do termômetro de ar. De fato, a chama, ainda que manifestamente
apresente expansão, contudo, pela sua grande facilidade de extinção, não
apresenta bem o processo dessa expansão. E a água fervente, pela sua facilidade
de se transformar em vapor e ar, não revela a expansão da água na sua própria
massa. Mesmo o ferro candente, assim como outros corpos semelhantes, está
muito longe de mostrar a expansão, porque o espírito é submetido pelas partes
compactas e densas, a ponto de refrear, conter o movimento expansivo, e assim
o processo não é perceptível pelos sentidos. Contudo, o termômetro mostra
claramente a expansão do ar de modo visível, progressivo, durável e
ininterrupto.
Por exemplo, seja o peso a natureza da instância investigada. A instância
ostensiva do peso é o mercúrio. Este supera de longe em peso todas as outras
substâncias, com exceção do ouro; e mesmo o ouro não é muito mais pesado
que ele. Mas a instância que melhor indica a forma do peso é o mercúrio e não o
ouro. Pois o ouro é sólido e consistente, e tais qualidades se relacionam com a
densidade; enquanto o mercúrio é líquido e prenhe de espírito, e mesmo assim
tem peso muitos graus acima do diamante, e de todos os sólidos que se
conhecem. Daí se depreende claramente que a forma do peso predomina
simplesmente na quantidade da matéria e não em uma dimensão restrita.
XXV
Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em quarto lugar as instâncias
clandestinas,
146
a que também costumamos chamar de instâncias do
crepúsculo.
147
São, por assim dizer, as instâncias opostas às ostensivas; exibem,
de fato, a natureza investigada na sua ínfima força e, por assim dizer, em estado
de incubação e nos seus rudimentos; mostram-na nas suas primeiras tentativas e
ensaios, mas obscurecida e submetida por uma natureza contrária. Tais
instâncias são de grande importância para a descoberta da forma, pois, se as
ostensivas orientam facilmente a identificação das diferenças específicas, de sua
parte as instâncias clandestinas conduzem e facilitam a identificação dos
gêneros, ou seja, das naturezas comuns de que as naturezas investigadas são
simples limitações.
Por exemplo, seja a consistência a natureza a ser investigada: ou seja, aquilo
que fixa os limites do corpo e cujo contrário é a liquidez ou a fluidez. As
instâncias clandestinas são aquelas que mostram um grau ínfimo de consistência
em um fluido; é o caso da bolha de água que é uma espécie de película
consistente e delimitada, feita de água. O mesmo ocorre com as goteiras que,
quando há água suficiente para correr, formam um fio muito tênue e de tal
modo que a água não se interrompe; mas quando não há água suficiente para
cair numa sucessão continua a água cai em gotas redondas, a figura que melhor
se presta para evitar qualquer descontinuidade da água. Contudo, no exato
instante em que cessa o fio de água e tem inicio a queda das gotas, a água se
retrai em relação a si mesma para evitar a descontinuidade. Mesmo nos metais
que, em fusão, são líquidos mais espessos, muitas vezes as próprias gotas se
retraem em si mesmas e assim ficam. E semelhante à instância representada
pelos pequenos espelhos que as crianças costumam fazer com dois juncos,
unidos pela saliva, no meio dos quais se pode notar uma película consistente
feita de água. O mesmo fato pode melhor ser observado em outro brinquedo
infantil em que se usa a água (tornada mais consistente pelo sabão) e, com um
canudo, sopra-se, fazendo com essa água um verdadeiro castelo de bolhas; e
estas, pela intromissão do ar, conservam um grau de consistência capaz de
manter certa continuidade, mesmo que muitas bolhas se rompam. Isso é ainda
bem visível na espuma e na neve, que adquirem tal consistência que chegam
quase a ser passíveis de cortes, mesmo sendo corpos formados de ar e de água,
ambos líquidos. Todos esses exemplos indicam de maneira nada obscura que o
líquido
148
e a consistência são noções vulgares e relativas aos sentidos;
149
mas
também que em todos os corpos está presente a fuga ou a tendência no sentido
de evitar a própria descontinuidade e que tal tendência nos corpos homogêneos,
como nos líquidos, é débil e frouxa; enquanto que nos corpos compostos de
partes heterogêneas é muito mais forte e viva. E isso porque a presença de um
corpo heterogêneo une os corpos, enquanto a introdução de um corpo
homogêneo os dissolve e relaxa.
Da mesma maneira, procure-se investigar, por exemplo, a natureza da atração
ou coesão dos corpos.
150
A mais notável instância ostensiva dessa forma é o
magneto. A natureza contrária à atração é a não-atração, como a que existe em
substâncias semelhantes. O ferro não atrai o ferro, o chumbo não atrai o
chumbo, a madeira não atrai a madeira, a água não atrai a água, etc. Mas a
instância clandestina é o magneto armado de ferro, ou melhor, o ferro armado
em um magneto. A natureza é tal que o magneto, armado a uma certa distância,
não exerce mais atração sobre o ferro que o magneto desarmado. Mas se o ferro
é aproximado do magneto, armado até tocá-lo, então o magneto armado
sustentará um peso de ferro muito maior que um magneto simples e sem
armação, em vista da semelhança da substância do ferro com o ferro. Essa
propriedade de operar era completamente clandestina ou latente no ferro, antes
que o magneto dele fosse aproximado. Daí fica claro que a forma de coesão dos
corpos é algo de vivo e intenso no magneto, fraco e latente no ferro. Deve,
ainda, ser notado que pequenas flechas de madeira, sem ponta de ferro, dispara-
das por bestas grandes, penetram mais a madeira (como os flancos do navio ou
coisas semelhantes) que essas mesmas flechas armadas com a ponta de ferro;
isso devido à semelhança da substância da madeira com a madeira, embora essa
propriedade antes estivesse latente na madeira. Da mesma maneira, apesar de
o ar manifestamente não atrair o ar e a água, água, uma bolha aproximada de
outra bolha dissolve-se mais facilmente que se tal não tivesse ocorrido, isso
devido ao apetite de coesão que tem a água para com a água e o ar para com o
ar. Tais instâncias clandestinas (que são de notável utilidade, como foi dito)
tornam-se visíveis sobretudo em porções pequenas e sutis dos corpos. As
massas maiores seguem formas mais gerais e universais, como se dirá no devido
lugar.
XXVI
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em quinto lugar as instâncias
constitutivas,
151
a que também costumamos chamar de manipulares.
152
São as
que se constituem numa espécie da natureza investigada, à maneira de forma
menor. Com efeito, como as formas legítimas (que são sempre conversíveis nas
naturezas investigadas) são muito latentes e não são facilmente descobertas, a
vacilação e a fragilidade do intelecto humano requerem que as formas
particulares, que reúnem alguns punhados de instâncias, mas não todas em uma
noção comum, não sejam negligenciadas, antes notadas com toda diligência.
Pois tudo o que serve para conferir unidade à natureza, ainda que de modo
imperfeito, abre caminho à descoberta das formas. Portanto, as instâncias que
são úteis a esse propósito não podem ser desprezadas quanto à sua força e têm
até certas prerrogativas.
Mas o seu emprego deve ser feito com diligente cautela, para se evitar que o
intelecto humano, depois de ter descoberto muitas dessas formas particulares e
de ter estabelecido as partições ou divisões da natureza investigada, acabe se
contentando apenas com isso e não prossiga na investigação legítima da forma
grande;
153
mas acabe supondo que a natureza, na sua própria raiz, é múltipla e
dividida, e descure e suponha a ulterior unidade da natureza como uma sutileza
vã, que conduz a meras abstrações.
Estabeleça-se, por exemplo, que a natureza a ser investigada seja a memória ou
aquilo que excita e ajuda a memória. As instâncias constitutivas são a ordem ou
a distribuição que manifestamente ajudam a memória, como também é o caso
dos tópicos
154
da memória artificial,
155
que podem ser lugares, no seu
significado verdadeiro e próprio, como a porta, o ângulo, a janela e coisas
parecidas, e podem ser pessoas, familiares e conhecidas; podem ser, ainda,
outras coisas (desde que dispostas em uma determinada ordem), como animais
ou ervas; podem ser, ainda, palavras, letras, caracteres, personagens históricas,
etc. Para cada caso devem ser verificados os que são mais ou menos aptos e
cômodos. Tais tópicos ajudam significativamente a mente e predispõem-na em
relação a forças naturais. Por essa razão os versos permanecem e prendem mais
facilmente a memória que a prosa. O conjunto ou manípulo dessas três
instâncias, ou seja, a ordem, os tópicos da memória artificial e os versos,
constitui uma só espécie de ajuda à memória de tal espécie que pode chamar-se
justamente de corte do infinito.
156
Com efeito, quando se procura recordar
alguma coisa ou buscá-la na memória, se não se conta com nenhuma prenoção
ou percepção do que se busca, a procura se cumpre de maneira errante, indo-se
aqui e ali, e assim quase ao infinito. Mas, se se dispõe de alguma prenoção
segura, subitamente é interrompido o vagar ao infinito e o discurso da memória
se torna mais próximo. Pois bem, na três instâncias supracitadas a prenoção é
evidente e certa: na primeira, trata-se de algo que retoma certa ordem; na
segunda, trata-se de uma imagem que tem alguma relação ou conveniência com
os tópicos estabelecidos; na terceira, trata-se de palavras que formam um verso.
E assim é que se interrompe o vagar ao infinito. Outras instâncias nos
oferecerão a seguinte segunda espécie: tudo o que conduz o que é do intelecto à
impressão dos sentidos
157
ajuda a memória (conforme uma regra muito seguida
pela memória artificial). Outras instâncias oferecerão esta terceira espécie: tudo
o que provoca uma impressão, sob um intenso afeto,
158
ou seja, o que infunde
medo, admiração, vergonha, deleite, ajuda a memória. Outras instâncias
oferecerão esta quarta espécie: tudo o que se imprime na mente pura ou antes de
estar ocupada ou despreocupada de algo, como o que se aprende na infância ou
o que se pensa antes do sono e ainda o que acontece pela primeira vez, melhor
se fixa na memória. Outras instâncias oferecerão esta quinta espécie: o grande
número de circunstâncias e de ocasiões ajuda a memória como o hábito de
escrever-se por partes descontínuas e a leitura e recitação em voz alta. Outras
instâncias, finalmente, oferecerão esta sexta espécie: tudo o que se espera e que
excita a atenção grava-se na mente muito mais que o que transcorre sem
preocupação. Por isso, se se ler um escrito vinte vezes, não será aprendido de
memória com a facilidade resultante de dez leituras, nas quais se procure dizer o
texto de memória, apenas retomando o escrito quando aquela falhar.
Assim, seis são as formas menores de ajuda à memória: a interrupção ou corte
do vagar ao infinito, a redução do intelectual ao sensível, a impressão recebida
sob intensa vibração de ânimo, a impressão feita em uma mente pura, a
multidão de ocasiões, a expectativa prévia.
Da mesma maneira, tome-se, por exemplo, para a investigação, a natureza do
gosto ou da degustação. As instâncias que se seguem são constitutivas: os
indivíduos que por natureza são destituídos do olfato são também providos do
gosto, assim não distinguem o alimento rançoso ou podre, como também não
distinguem o cheiro do alho ou da rosa e coisas semelhantes. Mesmo os
indivíduos que ficam com o nariz obstruído por catarro não distinguem nem
percebem o podre, o rançoso ou o odor da água de rosas aspergida sobre algo.
Porém, se se provocar a desobstrução do nariz com violento sopro, no mesmo
instante terão a percepção do mau cheiro ou do odor de qualquer coisa que
tenham na boca. Estas instâncias darão e constituirão esta espécie ou parte do
gosto, tornando claro que o sentido do gosto nada mais e, em parte, que um
olfato interno que passa e desce, dos canais superiores do nariz à boca, e ao
paladar, e, em contrapartida, o salgado, o doce, o acre, o ácido, o seco, o amargo
e semelhantes, tais sabores, todos eles são totalmente percebidos pelos que são
desprovidos do olfato ou o tenham obstruído. Assim, torna-se evidente que o
sentido do gosto é algo composto do olfato interno e de uma espécie de tato
delicado, do qual não cabe tratar aqui.
Ainda, do mesmo modo, tome-se, por exemplo, a investigação da natureza da
comunicação sem mescla de substância. A instância das luzes oferecerá ou
constituirá uma espécie de comunicação; o calor e o magneto uma outra. Com
efeito, a comunicação das luzes é momentânea e, subitamente, se desvanece
quando se tolda sua fonte de irradiação. Por seu turno, o calor e a força
magnética depois de transmitidos, ou melhor, excitados em corpo, aderem a ele
e nele permanecem por algum tempo, mesmo na falta do objeto que originou o
movimento.
Em suma, é sobremaneira grande a prerrogativa das instâncias constitutivas, por
serem de grandíssima valia no estabelecimento das definições (especialmente
particulares) e nas divisões ou partições da natureza, e a cujo respeito disse com
acerto Platão “que se deve considerar como um Deus o que bem souber definir e
dividir”.
159
XXVII
Entre as instâncias prerrogativas, colocaremos em sexto lugar as instâncias
conformes ou proporcionadas,
160
a que costumamos também chamar de
paralelas ou semelhanças físicas.
161
E são as instâncias que ostentam as
semelhanças e as conjunções das coisas, não nas formas menores, como as
instâncias constitutivas, mas simplesmente no concreto. Constituem por isso
como que os primeiros e mais baixos graus de unificação da natureza. Não
constituem imediatamente, logo de início, um axioma, mas tão-somente indicam
e observam certa conformidade entre os corpos. Mesmo não sendo de grande
valia para o descobrimento das formas, revelam, contudo, de maneira útil, as
estruturas das partes do universo, perfazendo quase a anatomia de seus
membros; por isso, dirigem-se quase pelas mãos aos axiomas nobres e sublimes
e especialmente àqueles que se relacionam com a configuração do mundo, e
muito pouco servem para se chegar às naturezas ou formas simples.
Por exemplo, são instâncias conformes as seguintes: o espelho e o olho; a
estrutura do ouvido e dos lugares que produzem eco. A partir dessa
conformidade, deixando-se de lado a mera observação da semelhança, bastante
útil para muitas coisas, é fácil recolher e estabelecer o axioma de que os órgãos
dos sentidos e os corpos que comportam os reflexos sobre os sentidos são
semelhantes por natureza. Com isso em conta, o intelecto se eleva sem
dificuldade a um axioma mais alto e nobre, que é o seguinte: não há, entre os
consensos ou simpatias dos corpos dotados de sensação e os inanimados e
privados de sensação, outra diferença que a que os primeiros possuem um corpo
disposto de tal forma a poder receber o espírito animal, os segundos não. Assim,
quantos sejam os consensos nos corpos inanimados outros tantos poderão ser os
sentidos nos corpos dos animais, desde que para isso haja espaço no corpo
animado, suficiente para o espírito animal em um membro adequadamente
ordenado como um órgão idôneo. E, ainda, tantos sejam os sentidos dos animais
quantos serão, sem dúvida, os movimentos em um corpo inanimado, desprovido
do espírito animal. Mas é necessário que os movimentos nos corpos inanimados
sejam em muito maior número que os dos sentidos nos corpos animados, em
vista da pequenez dos órgãos dos sentidos. E disso há um exemplo bastante
manifesto nas dores. Pois, existindo muitos gêneros de dores nos animais e, por
assim dizer, distintos caracteres delas (uma é a dor da queimadura, outra a do
frio intenso, outra a de uma pontada, outra a de uma distensão e outras do
mesmo tipo), é absolutamente certo que todas ocorram em corpos inanimados,
em relação ao movimento. E o caso, por exemplo, da madeira e da pedra,
quando queimadas, ou quando contraídas pelo gelo, ou quando furadas, ou
quando partidas, ou quando dobradas, ou quando golpeadas, e assim por diante;
embora não haja sensação, devido à ausência do espírito animal.
Do mesmo modo (embora estranho para ser dito), as instâncias conformes são
as raízes e os ramos da planta. De fato, todo vegetal, crescendo, aumenta de
volume e tende a estender suas partes em círculo, tanto para cima quanto para
baixo. Não há outra diferença entre as raízes e os ramos que o fato de as raízes
estarem sob a terra, enquanto os ramos se estenderem pelo ar e ao sol. Tome-se
um ramo tenro e verde e coloque-se em uma pequena porção de terra; mesmo
antes de se fixar ao terreno, o que logo aparece não é um ramo mas uma raiz. E
vice-versa, se se coloca terra na parte superior e por meio de uma pedra ou de
uma substância dura se arruma a planta de tal forma que ela fique comprimida e
não possa brotar para cima, ela soltará ramos no ar existente na parte de baixo.
Do mesmo modo, são instâncias conformes a resina das árvores e muitas gemas
de rubi. Umas e outras, de fato, são exsudações e filtrações de sucos, no
primeiro caso de árvores, no segundo, de seixos. Daí a existência em ambos do
esplendor e brilho causados, sem dúvida, pela filtração delicada e perfeita. Daí
procede também o fato de os pêlos dos animais não serem tão belos e de cores
tão vivas como as penas das aves pois os sucos não se filtram pela pele com
a mesma delicadeza que pelos pequenos tubos das penas.
Do mesmo modo, são instâncias conformes o escroto nos animais masculinos e
a matriz nas fêmeas. Pois a notável estrutura que permite ao sexo se diferenciar
(pelo menos os animais terrestres) não parece ser outra coisa que a diferença
entre o interno e o externo; ou seja, o calor, que tem maior força no sexo
masculino, impele para fora as partes genitais; ao passo que nas fêmeas tal não
ocorre, porque o calor é mais fraco e as partes genitais ficam contidas no
interior.
162
Do mesmo modo, são instâncias conformes as barbatanas dos peixes,
os pés dos quadrúpedes, os pés e as asas das aves, ao que Aristóteles acrescenta
as quatros flexões que fazem as serpentes.
163
Assim, na estrutura do universo o
movimento dos seres vivos parece poder ser explicado com dois pares de
artelhos ou membros flexíveis.
E do mesmo modo são instâncias conformes os dentes dos animais terrestres e o
bico das aves: em vista do que se torna claro que todos os animais perfeitos têm
algo de duro na boca.
Do mesmo modo, não é absurda a semelhança e conformidade graças às quais o
homem parece uma planta invertida. De fato, a raiz dos nervos e das faculdades
dos animais é a cabeça; as partes seminais são as mais baixas, sem se levar em
conta as extremidades das pernas e dos braços. Na planta, ao contrário, é a raiz
que está no lugar da cabeça, que está situada na parte mais baixa, e as sementes
na parte mais alta.
Finalmente deve ser sempre lembrado que todas as investigações diligentes e
toda coleta de fatos empreendidas pela história natural devem mudar de direção
e voltarem-se para um fim contrário àqueles para os quais ora são dirigidas. Até
agora os homens tiveram grande curiosidade por conhecer a verdade das coisas
e por explicar de modo apurado as diferenças existentes entre os animais, entre
as ervas e entre os fósseis. Tais diferenças, na sua maior parte, são como que
caprichos da natureza e não coisas de alguma utilidade para a ciência. Prestam-
se, certamente, ao divertimento, às vezes servem à prática, mas muito pouco ou
nada para a prospecção da natureza. Por isso toda obra deve voltar-se
inteiramente para a investigação e a observação das semelhanças e das
analogias, seja no todo ou nas partes. Estas são, com efeito, as que conferem
unidade à natureza e dão início à constituição da ciência.
Mas em tudo é absolutamente necessário observar-se uma grave e severa
cautela, pois se aceitam como instâncias conformes e proporcionadas apenas as
que denotam, como antes foi dito, semelhanças físicas, isto é, reais e
substanciais e fundadas na natureza, e não as meramente casuais e especiosas,
como as que exibem os escritores de magia natural (homens levianos que não
mereciam ser mencionados nos assuntos graves de que tratamos), os quais, com
grande vaidade e ignorância, descrevem imaginárias semelhanças e fictícia
simpatia entre as coisas, que eles mesmos inventam.
Mas, deixando isso de lado, acrescentamos que nem mesmo na configuração do
mundo, nos seus mais amplos espaços, devem-se negligenciar as instâncias
conformes. A África e a região do Peru, com seu continente que se estende até o
estreito de Magalhães, apresentam istmos e promontórios semelhantes, o que
não pode ocorrer por acaso.
Também o Novo e o Velho Mundo se correspondem no fato de que ambos se
alargam no sentido setentrional e, ao contrário, nos meridianos são estreitos e
terminam em ponta.
Do mesmo modo, notáveis instâncias conformes são os frios intensos que
reinam na chamada região média do ar, bem como os fogos fortíssimos que
muitas vezes irrompem das regiões subterrâneas; duas coisas que são limites e
extremas, ou seja, a natureza do frio que tende para a região do céu, e a natureza
do calor, que tende para as entranhas da terra. Isso ocorre por antiperístase ou
repulsão da natureza contrária.
Finalmente, é digna de nota, nos axiomas das ciências, a conformidade das
instâncias. Assim o tropo da retórica chamado Praeter Expectatum
164
está de
acordo com o tropo musical chamado Declinatio Cadentiae.
165
Da mesma
maneira, o postulado matemático de que “os ângulos iguais a um terceiro são
iguais entre si” é conforme à estrutura lógica do silogismo, que une as coisas
que concordam ou convêm a um termo médio. É de muita utilidade, em
numerosas investigações, a sagacidade no descobrir e no indagar as
conformidades e as semelhanças físicas.
XXVIII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em sétimo lugar as instâncias
monádicas,
166
a que também costumamos chamar de irregulares ou
heteróclitas,
167
tomando o vocábulo dos gramáticos. São aquelas que mostram
ao concreto os corpos que parecem extravagâncias ou quase inesperados na
natureza e que não estão de acordo com as outras coisas do mesmo gênero.
Enquanto as instâncias conformes são semelhantes umas às outras, as instâncias
monádicas só são semelhantes a si mesmas. O seu uso é idêntico ao das
instâncias clandestinas, ou seja, servem para ressaltar e unir a natureza, na
identificação dos gêneros ou naturezas comuns, que depois devem ser
delimitados pelas diferenças verdadeiras. Não se deve desistir da investigação
enquanto as propriedades e as qualidades que se encontram nas coisas, e podem
ser consideradas espantosas na natureza, não fiquem reduzidas ou
compreendidas segundo alguma forma ou lei certa, de maneira a ficar indicado
que todo fenômeno irregular e singular depende de alguma forma comum; e que
o milagre, enfim, seja colocado na dependência de apenas algumas diferenças
específicas bem determinadas, e num grau e numa proporção raríssimos, e não
na dependência da própria espécie. Mas atualmente as preocupações dos
homens não vão mais longe que a determinação de tais coisas, como se fossem
segredos e significativas manifestações da natureza,
168
como se se tratasse de
fatos sem causa, e assim acabam sendo consideradas como exceções das regras
gerais.
São exemplos de instâncias monádicas, entre os astros, o sol e a lua; o magneto,
entre as pedras; o mercúrio, entre os metais; o elefante, entre os quadrúpedes; a
sensibilidade erótica, entre as espécies de tato; o faro da caça nos cães, entre os
gêneros de olfato. Também a letra S entre os gramáticos é tomada como uma
letra monádica pela facilidade que tem de se combinar, seja com duas outras,
com outras três consoantes, o que não ocorre com nenhuma outra letra. As
instâncias deste tipo devem ser levadas em grande conta, porque aguçam e
estimulam a investigação e corrigem o intelecto depravado pelo hábito e pelas
ocorrências rotineiras.
XXIX
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em oitavo lugar as instâncias
desviantes,
169
ou seja, os erros da natureza, as coisas vagas e monstruosas, nos
quais a natureza rompe e se desvia do seu curso natural. Os erros da natureza e
as instâncias monádicas diferem no fato de que os primeiros são milagres dos
indivíduos enquanto que as segundas são milagres da espécie. Mas o seu uso é
quase o mesmo, pois retificam o intelecto da experiência habitual e revelam as
formas comuns. Também aqui não se deve abandonar a investigação até que se
descubra a causa do desvio. Na verdade, essas causas não alcançam
propriamente qualquer forma, mas chegam até ao processo latente que conduz à
forma; e quem conhece com familiaridade os caminhos da natureza facilmente
observará os seus desvios. Por outro lado, aquele que está familiarizado com os
desvios mais acuradamente descreverá aqueles caminhos. As instâncias
monádicas também se diferenciam pelo fato de serem muito mais instrutivas
para a prática e para a parte operativa. De fato, seria algo muito difícil o
surgimento de novas espécies; mas a variação das espécies já conhecidas e, com
isso, a produção de uma infinidade de coisas raras inusitadas, seria tarefa menos
árdua. Com efeito, fácil é o passo dos milagres da natureza aos milagres da
arte.
170
Uma vez que se surpreenda a natureza em uma variação, e se indique
claramente a sua razão, será depois fácil, pela arte, repará-la em seu descaminho
acidental. E não apenas em relação a este erro, mas ainda em relação a outros;
pois os erros em um determinado passo abrem caminho a erros e desvios por
toda parte. E aqui não é o caso de se indicar exemplos, dada a sua grande
abundância: deve-se proceder a uma coleta ou a uma história natural de todos os
monstros e partos prodigiosos da natureza; de tudo o que na natureza é novo,
raro e excepcional. Mas a escolha deve ser muito severa para que mereça fé.
Sobretudo devem considerar-se como suspeitos os milagres que se originam de
alguma maneira das superstições, como os prodígios relatados por Tito Lívio,
como também os que se encontram nos escritores de magia natural e de
alquimia, e pessoas do gênero, que são próceres e amantes das fábulas. Os
referidos fatos devem ser buscados em histórias sérias e em tradições seguras.
XXX
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em nono lugar as instâncias
limítrofes e as que também costumamos chamar de partícipes.
171
São as que
revelam aquelas espécies de corpos que parecem compostos de duas espécies ou
de rudimentos entre uma espécie e outra. Estas instâncias podem também ser
incluídas entre as monádicas ou heteróclitas, pois são raras e extraordinárias no
universo. Mas quanto ao seu valor devem ser consideradas à parte e por si
mesmas. Elas servem para indicar a estrutura e a composição das coisas, e
sugerem as causas do número e da qualidade das espécies ordinárias no
universo, e orientam o universo, daquilo que é para o que pode ser.
Como exemplos, têm-se: o musgo, que fica entre a matéria podre e a planta;
certos cometas, que ficam entre as estrelas e os meteoros incandescentes; os
peixes voadores, entre os pássaros e os peixes; os morcegos, entre as aves e
quadrúpedes; e também
“O símio, tão repugnante entre os animais
quanto próximo de nós”;
172
e os partos de animais biformes ou mistos de diversas espécies; e coisas
semelhantes.
XXXI
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo lugar as instâncias de
potestade ou do cetro
173
(tomando o vocábulo das insígnias de império), as
quais também costumamos chamar de engenho ou das mãos do homem. São as
obras mais nobres e perfeitas e quase sempre as últimas de qualquer arte. Pois,
se se busca acima de tudo fazer com que a natureza atenda às necessidades e às
comodidades humanas, é natural que se considerem e enumerem as coisas que
já se encontram em poder do homem como muitas outras províncias já ocupadas
e antes subjugadas; especialmente as que são mais completas e perfeitas, pois
destas é mais fácil e próxima a passagem às obras novas e ainda não inventadas.
De fato, se alguém quiser, pela consideração atenta de tais obras, progredir nas
suas próprias com acuidade e inventividade, certamente acabará por conseguir
desviar aquelas até um ponto próximo das suas ou conseguirá aplicá-las ou
transferi-las para um uso mais nobre.
E não é tudo. Assim como das obras raras e fora da rotina da natureza o
intelecto se levanta e eleva-se até a investigação e o descobrimento de formas
capazes de incluir também aquelas, da mesma forma vê-se ser isso aplicável em
obras de arte excelentes e dignas de admiração; e isso é tanto mais verdadeiro
quando se sabe que o modo de realizar e executar tais milagres da arte é, na
maior parte dos casos, simples, enquanto que na maior parte das vezes é
obscuro nos prodígios da natureza. Contudo, em tais casos devem-se tomar
todos os cuidados para que não deprimam o intelecto e, por assim dizer,
ponham-no por terra.
Há perigo de que por meio de tais obras de arte, que são consideradas como os
cumes e os píncaros da indústria humana, o intelecto humano chegue a ficar
atônito e atado e como que embaraçado em relação a elas, e isso a tal ponto que
não se habitue a outras, mas pense que nada mais pode ser feito naquele setor a
não ser com o uso do mesmo procedimento com que aquelas foram executadas,
desdenhando, assim, o emprego de uma maior atenção e de uma mais cuidada
preparação.
Mas, na verdade, é certo que os caminhos e procedimentos relacionados com as
obras e as coisas, inventadas e até agora observadas, em sua maior parte são
muito pobres. Pois todo poder realmente grande depende e emana, de forma
ordenada, das formas, e nenhuma delas foi até agora descoberta.
Assim (como já dissemos),
174
se se pensa nas máquinas de guerra e nas alhetas
usadas pelos antigos, ainda que em tal meditação se consuma toda a vida,
jamais se chegará à descoberta das armas de fogo que atuam por meio da
pólvora. Do mesmo, modo, quem puser toda a sua atenção e aplicação na
manufatura da lã e do algodão nunca alcançará, por tais meios, a natureza do
bicho-da-seda, nem a da seda.
A esse respeito, pode observar-se que todas as descobertas, dignas de serem
consideradas como mais nobres, quando bem examinadas, não poderão ser
tomadas como o resultado do desenvolvimento gradual e da extensão, mas do
acaso. E nada há que possa substitui-lo, pois o acaso só atua a longos intervalos,
através dos séculos, e não intervém na descoberta das formas.
Não é necessário aduzirem-se exemplos particulares dessas instâncias, em vista
de sua grande quantidade. É suficiente passar em revista e examinar-se
atentamente todas as artes mecânicas e inclusive as artes liberais, quando
relacionadas com a prática, e delas se retirar uma coleção de história particular
das maiores, das mais perfeitas obras de cada uma das artes, ao lado dos
respectivos procedimentos de produção e execução.
Em tal coleção não queremos, porém, que o cuidado do investigador se limite a
recolher unicamente as consideradas obras-primas e os segredos desta ou
daquela arte, que é o que provoca admiração. Pois a admiração é filha da
raridade e as coisas raras, mesmo que em seu gênero procedam de naturezas
vulgares, provocam a imaginação.
E, ao contrário, as que deveriam realmente provocar admiração, pela
diversidade que revelam em relação a outras espécies, são pouco notadas e
tornam-se de uso corrente. As instâncias monádicas da arte devem ser
observadas com a mesma atenção que as da natureza, de que já falamos antes.
175
Como entre monádicas da natureza colocamos o sol, a lua, o magneto, etc.,
coisas muito conhecidas, mas de natureza quase única, o mesmo deve ser feito
em relação às monádicas da arte.
Exemplo de instâncias monádicas da arte é o papel, coisa sobremaneira
conhecida. Com efeito, se bem observadas, ver-se-á que as matérias artificiais
são ou simplesmente tecidas, por urdidura com fios retos e transversais, como é
o caso dos gêneros de seda, de lã ou de linho e coisas semelhantes, ou são
placas de sucos endurecidos, como o ladrilho, a argila de cerâmica, o esmalte, a
porcelana e substâncias semelhantes, que, quando são bem unidas, brilham, e
quando o são menos, brilham, embora igualmente duras. Mas todas essas coisas
que se fazem de sucos prensados são frágeis e não possuem aderência ou
tenacidade, O papel, porém, é um corpo tenaz, que pode ser cortado e rasgado, e
tanto se parece com a pele do animal quanto com as folhas da planta, ou com
algum produto semelhante da natureza. E não é frágil como o vidro; não é
tecido como o pano; mas possui fibra e não fios separados, à maneira das
matérias naturais; entre as matérias artificiais não se encontra nenhuma
semelhante: bem por isso trata-se de uma instância monádica. Entre as
substâncias artificiais, devem preferir-se as que mais se aproximam da natureza,
em caso contrário devem ser preferidas as que a dominam e, com vigor,
modificam-na.
Entre as instâncias de engenho ou da mão do homem, não devem ser
desprezados a prestidigitação e os jogos de destrezas; muitos deles, mesmo
sendo de uso superficial e como diversão, podem propiciar informações úteis.
Finalmente, não podem também ser omitidas as coisas supersticiosas e mágicas
(no sentido vulgar da palavra). Ainda que se trate de coisas recobertas de uma
pesada massa de mentiras e de fábulas, mesmo assim devem ser observadas
para se verificar, mesmo por acaso, alguma operação natural. Referimo-nos a
fatos como o do ilusionismo ou do fortalecimento da imaginação, ou da
simpatia das coisas a distância, o da transmissão de um espírito a outro, como
de um corpo a outro, e fatos semelhantes.
176
XXXII
De tudo que foi dito antes, fica claro que as cinco instâncias de que tratamos (a
saber: instâncias conformes, instâncias monádicas, instâncias desviantes,
instâncias limítrofes e instâncias de potestade) não devem ficar guardadas até
que se estude uma natureza adequada (como deve ser feito com as outras
instâncias propostas e com outras que vêm a seguir); ao contrário, deve-se
imediatamente fazer uma coleção delas como uma espécie de história particular,
pois servem para digerir as coisas que penetram no intelecto e para corrigir a
própria constituição do intelecto, que não está infenso à perversão e à
deformação nas suas incursões cotidianas e rotineiras.
Essas instâncias devem ser utilizadas como uma espécie de remédio
preparatório para retificação e purificação do intelecto. Pois tudo o que afasta o
intelecto das coisas habituais aplaina e nivela a sua superfície para a recepção
da luz seca e pura das noções verdadeiras.
Além disso, essas instâncias abrem e preparam o caminho para a parte
operativa; como diremos no lugar próprio quando tratarmos das deduções para a
prática.
177
XXXIII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo primeiro lugar as
instâncias de acompanhamento e as instâncias hostis,
178
a que costumamos
também chamar de instâncias das proposições fixas. São essas instâncias que
revelam algum corpo ou matéria, com o qual a natureza investigada sempre se
apresenta como com uma companheira inseparável; mas do qual, por seu turno,
a natureza se afasta sempre e procura exclui-lo como estranho e inimigo. A par-
tir de tais instâncias formam-se proposições certas e universais, afirmativas ou
negativas, nas quais o sujeito será o referido objeto concreto e o predicado a
própria natureza investigada. As proposições particulares não são de modo
algum fixas; em vista disso a natureza investigada se encontra, fluida e móvel,
em um corpo concreto ou assentada em condições de ser adquirida ou se
interrompe e é deposta. Por isso, deve ser lembrado que as proposições
particulares não têm maior prerrogativa, com exceção dos casos de migração de
que antes já falamos.
179
Apesar disso, as proposições particulares, confrontadas
e comparadas com as universais, são de grande ajuda, como mais adiante
diremos. Contudo, nessas proposições universais já não se requer uma
afirmação ou negação absolutas, pois são suficientes para o seu uso, ainda que
haja alguma rara exceção.
O uso das instâncias de acompanhamento é o delimitar a investigação
afirmativa da forma. Como as instâncias migrantes delimitam a investigação
afirmativa da forma, estabelecendo como condição necessária que a forma seja
qualquer coisa que por qualquer ato de migração se adquire ou se perde, assim
também, as instâncias de acompanhamento estabelecem como condição
necessária que a forma seja qualquer coisa que penetre a concreção do corpo, ou
que dela se afaste. Em vista disso, quem conhece bem a constituição ou
esquematismo de um corpo não estará muito longe de trazer à luz a forma da
natureza investigada.
Por exemplo, suponha-se que a natureza investigada é o calor; instância de
acompanhamento é a chama. Na água, no ar, na pedra, no metal e em
muitíssimos outros corpos, o calor é móvel e pode ou não se exercer, mas toda
chama é quente e o calor é sempre encontrado na concreção da chama. Mas
entre nós não se encontra qualquer instância hostil ao calor. Os nossos sentidos
não conhecem com segurança a temperatura das entranhas da terra, mas de
todos os corpos conhecidos não há qualquer concreção que não seja suscetível
de calor.
Suponha-se, agora, que a natureza a ser investigada seja da consistência;
instância hostil é o ar. De fato, o metal pode ser fluido e pode ser consistente;
igualmente o vidro; e até a água pode se tornar sólida quando gela; mas é
impossível que o ar se torne consistente e perca a sua fluidez.
Restam-nos duas observações ou advertências sobre as instâncias dessas
proposições fixas, que são de utilidade para o nosso trabalho. A primeira é a de
que, se falta completamente a universal afirmativa ou negativa, com cuidado
nota-se como não existente; tal como fizemos com o calor, no qual falta uma
universal negativa (pelo que se conhece) na natureza das coisas. Assim, se a
natureza investigada é o eterno ou o incorruptível, entre nós falta a universal
afirmativa, pois não se pode predicar o eterno e o incorruptível de nenhum dos
corpos que se encontra sob o céu ou sobre a crosta da terra. A segunda
advertência é a de que às proposições universais, tanto negativas quanto
afirmativas, devem juntar-se aquelas instâncias concretas que parecem aderir ao
que é inexistente, como no caso do calor as chamas muito fracas e que queimam
muito pouco; e no da incorruptibilidade, o ouro é o que dela mais se aproxima.
Todas essas coisas, de fato, indicam os limites da natureza entre o existente e o
não existente e constituem as circunscrições das formas,
180
para que não se
desprendam e ponham-se a vagar fora das condições da matéria.
XXXIV
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo segundo lugar as
instâncias subjuntivas,
181
a que já nos referimos no aforismo anterior e a que
costumamos chamar também de instâncias da extremidade ou do termo.
182
Tais
instâncias não são úteis apenas se juntas a proposições fixas, mas também por si
mesmas e em suas próprias propriedades. Indicam, de um modo não obscuro, as
dimensões das coisas e as verdadeiras divisões da natureza, o limite até o qual
atua a natureza e produz algo, e, enfim, a passagem da natureza a outra coisa. É
o caso do ouro em relação ao peso; do ferro em relação à dureza; da baleia em
relação ao tamanho dos animais; do cão em relação ao olfato; da inflamação da
pólvora em relação à expansão violenta; e coisas semelhantes. Tais coisas se
colocam no grau mais elevado, mas não se deve deixar de ter em igual conta as
coisas que estão nos graus inferiores mais baixos, como o espírito do vinho em
relação ao peso; a seda em relação à suavidade; os vermes da pele em relação ao
tamanho dos animais, etc.
XXXIV
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo terceiro lugar as
instâncias de aliança ou de união.
183
São as que confundem e reúnem naturezas
consideradas como heterogêneas, e que as divisões usuais designam e
consideram como tal.
As instâncias de aliança mostram que as operações e os efeitos que se atribuem
como próprios de qualquer das naturezas heterogêneas pertencem também a
outras naturezas heterogêneas. Com isso se comprova que aquela suposta
heterogeneidade não é verdadeira ou essencial, nada mais sendo que uma
modificação da natureza comum. Bem por isso, são de grande utilidade para
conduzir e elevar o intelecto das diferenças específicas aos gêneros, e para
dissipar as falsas imagens das coisas que constituem a máscara com que a nós se
apresentam as naturezas nas substâncias concretas.
Por exemplo, tome-se para investigação a natureza do calor. Tome-se como
completamente consagrada e autorizada a distinção do calor em três gêneros: o
calor dos corpos celestes, o calor dos animais e o calor do fogo, e que tais
gêneros de calor diferem, entre si, pela própria essência e pela espécie, ou pela
natureza específica, sendo dessa forma completamente heterogêneos.
Especialmente o calor do fogo se comparado com os outros dois, uma vez que o
calor dos animais e dos corpos celestes engendra e reanima enquanto o do fogo
destrói e consome. Pertence por isso às instâncias de aliança o conhecido
experimento no qual se introduz o ramo de vinha em uma casa onde permanece
aceso um foco de fogo, o que faz com que a uva amadureça até um mês antes do
que se estivesse fora. Assim, o amadurecimento da fruta ainda presa à árvore
pode ocorrer graças ao fogo, quando parecia um efeito reservado à ação do sol.
Desde o início o intelecto, deixando de lado a teoria da heterogeneidade essen-
cial, dispõe-se facilmente a investigar as verdadeiras diferenças que há na
realidade entre o calor do sol e o do fogo, das quais resulta que suas operações
sejam tão diversas, embora em si mesmos participem de uma natureza comum.
As diferenças são em número de quatro. A primeira é a de que o calor do sol,
comparado com o calor do fogo, é muito mais leve e moderado; a segunda é de
que em qualidade é muito mais úmido, especialmente porque chega até nós
através da atmosfera; a terceira (que é a mais importante) é sumamente
desigual: quando se aproxima aumenta, quando se distancia diminui, o que
contribui muito para a geração dos corpos. Aristóteles com razão assegura que a
causa prin cipal das gerações e das corrupções que ocorrem sobre a superfície da
terra reside no curso oblíquo do sol sobre o zodíaco,
184
ocasião em que o calor
solar, quer durante a aproximação do dia e da noite, quer durante a sucessão das
estações, resulta sempre estranhamente diverso. Mas Aristóteles não deixa de
desfigurar e corromper essa correta sentença, porque, colocando-se como
árbitro da natureza, como era de seu feitio, indica, de modo autoritário, como
causa da geração a aproximação e como causa da corrupção o distanciamento
do sol. Na verdade, a proximidade e o distanciamento do sol, indiferentemente,
são causas tanto da geração como da corrupção. Pois a diversidade do calor
ajuda tanto a um como a outro processo, enquanto a sua constância serve apenas
para a conservação dos corpos. Mas há ainda uma quarta diferença entre o calor
do sol e o do fogo e que é muito importante: a de que as operações do sol se
desenvolvem durante um lapso bastante longo, enquanto a duração do fogo,
atiçada pela impaciência humana, desenvolve-se e é levada a termo em lapso
breve. Porém, se se procura amainar e reduzir o calor do fogo a um grau mais
moderado e mais leve de intensidade, o que é possível de muitas maneiras,
aspergindo ar úmido para reproduzir a diversidade do calor solar, depois de um
processo lento (não tão lento como o que ocorre devido às operações do sol,
mas mais longo do que o que ocorre comumente pelas operações comuns do
fogo), será então observado o desaparecimento de toda a heterogeneidade entre
os dois gêneros de calor, e será possível imitar a ação do sol e, até mesmo, em
alguns casos, superá-lo com o calor do fogo. Uma outra instância de aliança é a
revivescência, colocada em estado letárgico e quase morta pelo frio, graças à
ação de um débil torpor do fogo. Daí facilmente se retira a conseqüência de que
o fogo tanto serve para restituir a vida aos animais como para sazonar os frutos.
Também é célebre a invenção de Fracastoro,
185
da ventos a muito quente, que os
médicos colocam na cabeça dos apopléticos em gravíssimo estado, a qual lhes
devolve a vida, colocando em movimento os espíritos animais, comprimidos e
sufocados pelos tumores e pelas obstruções do cérebro. É exatamente como age
o fogo sobre a água ou sobre o ar. Ainda, às vezes, o calor do fogo abre os ovos,
reproduzindo o próprio calor animal. E há ainda muitos exemplos semelhantes
que não são passíveis de dúvida, de que o calor do fogo em muitas ocasiões
pode ser substituído eficazmente pelo calor dos corpos celestes e pelo calor dos
animais.
Igualmente, tomem-se para investigação as naturezas do movimento e do
repouso. Parece haver uma solene diferença, extraída dos arcanos da filosofia,
de que os corpos naturais ou giram ou seguem em linha reta, ou ficam em
repouso e quietos. Pois pode ocorrer o movimento sem término ou o repouso
sem término, ou movimento para o término. Pois bem, o movimento de rotação
perene parece ser próprio dos corpos celestes, o repouso ou a quietude parecem
pertencer ao globo terrestre; e os outros corpos que são chamados pesados e
leves, colocados fora do seus lugares naturais, movem-se em linha reta no
sentido da massa ou agregado dos corpos semelhantes, isto é, leves, para cima,
em direção ao sol; os pesados, para baixo em direção à terra. E são belas
palavras para serem ditas!
186
Uma instância de aliança é um cometa qualquer, mesmo dos mais baixos, que,
apesar de estar muito abaixo do céu, mesmo assim tem movimento circular. E já
foi abandonado o juízo de Aristóteles,
187
segundo o qual haveria um
encadeamento de cometas, ligando-os a alguma estrela, o mesmo não
acontecendo com os satélites. Não só as suas razões são improváveis como
também a experiência mostra o percurso errante e irregular que têm os cometas
no céu.
Outra instância semelhante de aliança sobre esse assunto é o movimento do ar,
que nos trópicos (onde os círculos de rotação são mais amplos) gira do oriente
para o ocidente.
E uma outra instância poderia ser o fluxo e o refluxo do mar, se se conseguisse
averiguar que as próprias águas têm um movimento de rotação (ainda que débil
e lento), do oriente para o ocidente; mas de forma tal que haja um movimento
completo duas vezes por dia. Se assim são as coisas, é evidente que o
movimento de rotação não se limita aos corpos celestes, mas que também se
comunica ao ar e a água. Também a propriedade dos corpos leves de tenderem
para o alto é duvidosa. Em relação a isso pode-se tomar uma bolha de água
como instância de aliança. De fato, quando se introduz ar debaixo da água,
aquele sobe rapidamente para a superfície, por um movimento de percussão,
como o chama Demócrito,
188
isto é, graças ao próprio golpe da água que desce é
que o ar é expelido, e não por alguma força própria. E, quando chega à
superfície, o ar é impedido pela própria água de sair rapidamente, pois, mesmo
que a resistência da água seja muito débil, ela não suporta com muita facilidade
a interrupção da sua continuidade, por mais forte que seja o impulso do ar no
sentido das regiões superiores.
Tome-se igualmente para a investigação a natureza do peso. A distinção,
comumente aceita, é a de que os corpos densos e sólidos movem-se em direção
ao centro da terra e os corpos leves e tênues em direção aos céus, como seus
lugares naturais. Mas tal opinião (ainda que bem aceita nas escolas), de que os
lugares têm alguma força, é inteiramente estúpida e pueril. Provoca o riso dos
filósofos que afirmam que, se a terra fosse perfurada, os corpos pesados
parariam ao chegar ao centro. Na verdade seria uma grande força do nada, ou de
um ponto matemático, a de atrair para si os corpos, ou o que se queira! Um
corpo só pode ser afetado por um outro corpo e a tendência a subir e a descer
está ou no esquematismo que se move ou no seu consenso ou simpatia com um
outro corpo. E, se se encontrasse um corpo denso e sólido que caísse para a
terra, estaria já refutada essa distinção. Mas se se aceita a opinião de Gilbert
189
de que a força magnética da terra para atrair os corpos graves não vai além da
órbita de sua atividade (pois ela atua sempre até uma certa distância e não
mais), e se se pudesse provar isso com algum exemplo, teríamos por fim uma
instância de aliança nessa matéria. Contudo, até agora não se observou nenhuma
instância certa e evidente a esse respeito. Uma instância próxima é dada pelos
caracteres do céu conhecidos dos navegantes do oceano Atlântico a caminho
das Índias Orientais ou Ocidentais. Repentinamente vertem os céus tanta água
que parece se ter formado, nessas alturas, com antecedência, uma porção de
água, que ai permaneceu suspensa, e que foi desalojada e arremessada por uma
causa violenta, não parecendo dever-se o fenômeno ao movimento natural da
gravidade. Em vista disso pode-se chegar à conclusão de que uma massa de
matéria densa e compacta, colocada a grande distância da terra, continuaria
suspensa, como a própria terra, sem cair, a não ser se provocada. Mas não se
pode ter muita certeza disso. Deste e de outros exemplos pode-se chegar à
conclusão do quanto falta à história natural de que dispomos, pois somos
obrigados a servirmo-nos de seus exemplos no lugar de instâncias certas.
Igualmente, tome-se como exemplo para investigação o discurso da razão.
190
Parece bem fundada a famosa divisão da racionalidade do homem e da
instintividade dos animais. Contudo, algumas ações das bestas parecem indicar
que elas quase que sabem fazer uso do silogismo. Conta-se, por exemplo, que
um corvo, estando quase morto de sede, devido a grande seca, encontrou água
na cavidade de um tronco de árvore, e como não pudesse penetrar pela estreita
abertura, pôde a jogar pedras até que, subindo o nível da água, por fim, pôde
matar a sede, passando tal fato a provérbio.
191
Da mesma maneira, proceda-se à investigação da natureza do visível. Para não
comportar objeções, a distinção entre a luz, que é o meio comum que permite a
visão dos objetos, e a cor, que é o meio subordinado, porque não pode surgir
sem a luz, da qual parece nada mais ser que uma imagem ou modificação: a
respeito, constituem instâncias de aliança, de um lado a neve em grande
quantidade, e de outro, a chama do enxofre. No primeiro caso parece haver uma
cor primariamente reluzente, no segundo, uma luz em vias de assumir uma cor.
XXXVI
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo quarto lugar as
instâncias cruciais,
192
vocábulo tomado às cruzes que se colocam nas estradas
para indicar as bifurcações. Também as costumamos chamar de instâncias
decisivas e judiciais
193
e, em alguns casos, de instâncias de oráculo e
mandato.
194
São elas descritas como se segue. Quando, na investigação de uma
natureza, o intelecto se acha inseguro e em vias de se decidir entre duas ou mais
naturezas que se devem atribuir à causa da natureza examinada, em vista do
concurso freqüente e comum de mais naturezas, em tais situações, as instâncias
cruciais indicam que o vínculo de uma dessas naturezas com a natureza dada é
constante e indissolúvel, enquanto o das outras é variável e dissociável. A
questão é resolvida e é aceita como causa da primeira natureza, enquanto as
demais são afastadas e repudiadas. Tais instâncias são muito esclarecedoras e
têm uma significativa autoridade. Muitas vezes, nelas termina o curso da
investigação ou em muitas outras este é por elas completado. Mas às vezes as
instâncias cruciais aparecem entre as instâncias antes indicadas; mas, em sua
maior parte, são buscadas, aplicadas intencionalmente e estabelecidas com
trabalho árduo e diligente.
Como exemplo para a investigação, tome-se o fluxo e o refluxo do mar, que se
repete duas vezes por dia, durante seis horas o fluxo e seis horas o refluxo, com
intervalos regulares, e com alguma diferença que coincide com o movimento da
lua. Tem-se aí uma bifurcação ou encruzilhada.
Esse movimento necessariamente é provocado por uma das seguintes causas: ou
pelo movimento da água de um lugar para outro, como acontece quando se agita
uma vasilha, ou pela subida e descida da água a partir do fundo, como acontece
com a água fervente, que sobe borbulhando e depois se acalma. O problema
reside em se relacionar o fluxo e o refluxo a uma dessas causas. Se é a primeira
escolhida, segue-se que enquanto há fluxo de um lado do mar em algum outro,
ao mesmo tempo, deve haver refluxo. E necessário verificar se isso é
verdadeiro. Contudo, as observações feitas por Acosta,
195
ao lado das de outros
observadores cuidadosos, testemunham que o fluxo ocorre ao mesmo tempo
sobre as costas da Flórida e nas costas do lado oposto, da Espanha e da África, o
mesmo ocorrendo com o refluxo. Ao contrário, portanto, do que se poderia
esperar, ou seja, havendo fluxo na costa da Flórida teria de haver refluxo nas
costas da Espanha e da África. Examinando o assunto mais atentamente, não
fica rechaçado o movimento de progressão em favor do movimento de elevação.
De fato, poderia ocorrer que o movimento de progressão provocasse, ao mesmo
tempo, a inundação das praias opostas de um mesmo leito, como acontece nos
rios, quando as águas trazidas de outra parte sobem e baixam em ambas as
margens nas mesmas horas. Mas, assim mesmo, trata-se de um movimento de
progressão. Desse modo, pode ocorrer que as águas provenientes em grande
quantidade do oceano Oriental Indico sejam lançadas no leito do oceano Atlân-
tico, provocando a inundação simultânea das praias opostas. O fluxo poderia
assim se verificar no mar Austral, que na verdade não é menor que o Atlântico,
mas mais largo e extenso.
Com isso chegamos, finalmente, a uma instância crucial. Se soubéssemos
seguramente que, quando ocorre o fluxo nas duas praias opostas da Flórida e da
Espanha no Atlântico, o mesmo ocorre no Peru e no dorso da China, no mar
Austral, então, essa seria uma instância decisiva que conduziria ao repúdio do
movimento progressivo como causa, pois não haveria outro mar ou lugar onde
pudesse ocorrer o retorno ou o refluxo ao mesmo tempo. Tal fato pode
facilmente ser verificado através dos habitantes do Panamá e de Lima (onde se
localiza o pequeno istmo que separa o oceano Atlântico do Austral), que podem
observar se o fluxo e o refluxo ocorrem ao mesmo tempo em uma e outra face
do istmo ou não. Esta seria a solução, considerando-se a terra como imóvel; mas
se a terra gira, poderia ocorrer, devido à desigualdade do movimento de
velocidade e de aceleração da terra e das águas do mar, que isso provocasse
violenta agitação das águas, que seriam arremessadas para o alto, produzindo o
fluxo; e que depois, caindo, abandonadas a si mesmas, ocasionariam o refluxo.
Mas esse seria assunto para outra investigação. Porém, deve ficar assentado que,
se ocorre o fluxo em algum lugar, há necessidade de que em algum outro ocorra
o refluxo ao mesmo tempo.
Semelhantemente, tome-se como objeto de investigação a natureza do
movimento que acabamos de supor, ou seja, o movimento marinho de subida e
de descida das águas, para que se possa (depois de um diligente exame)
rechaçar o mencionado movimento progressivo. Deparamo-nos, então, com
uma trifurcação. É necessário que este movimento, graças ao qual as águas
sobem e descem, sem o concurso do impulso das águas de outro mar, ocorra de
uma dessas três maneiras seguintes. Que tal quantidade de água surja das
entranhas da terra e para elas de novo se recolha; ou que não haja qualquer
quantidade maior de água, mas que as mesmas águas, sem aumentar a sua
quantidade, dilatem-se ou rarifiquem-se a ponto de ocupar maior espaço e
dimensão, e depois se contraiam para o volume inicial; ou que não haja aumento
nem de quantidade e nem de extensão, mas que as mesmas águas (tal como são
em quantidade, densidade e rarefação) subam e depois desçam em razão de uma
força magnética que as atrai para o alto e por simpatia. Assim, deixando de lado
os dois primeiros movimentos, vamos restringir a questão (se assim se desejar)
a este último movimento, procurando investigar se há a elevação por consenso,
simpatia ou força magnética.
196
Em primeiro lugar, é manifesto que a totalidade
das águas contidas no vão do mar não se pode elevar de uma vez, por falta de
algo que a substitua no fundo; se houvesse nas águas uma tendência nesse
sentido, ela seria reprimida e interrompida pela força de coesão das coisas ou
(como se diz vulgarmente) para se evitar a produção do vazio. Em
conseqüência, o que resta é que as águas se elevam de um lado e de outro
diminuem e abaixam. Donde, também, a necessidade de que a força magnética,
não podendo exercer-se sobre o todo, atua mais intensamente no centro, de
maneira a atrair as águas que se elevam e deixam livres e descobertas as praias.
Chegamos, com isso, a uma instância crucial sobre esse assunto, e que é a
seguinte: se se descobrir que no refluxo a superfície do mar é mais arqueada e
redonda, elevando-se as águas no centro do mar e retirando-se das praias;
enquanto que no fluxo a superfície é mais plana e lisa, voltando as águas à sua
posição anterior; então, em virtude dessa instância decisiva, pode ser aceita a
força magnética como causa das marés; caso contrário, deverá ser inteiramente
afastada. Esse experimento não deveria apresentar dificuldade se levado a efeito
nos estreitos, por meio de sonda, e possibilitaria estabelecer se o mar no refluxo
no centro é mais alto, ou seja, mais profundo que no fluxo. É necessário, porém,
observar, se este for o caso, que, ao contrário da opinião corrente, as águas se
elevam no refluxo e se abaixam no fluxo, banhando o litoral.
Da mesma maneira, tome-se para a investigação a natureza do movimento
espontâneo de rotação e procure-se verificar especialmente se o movimento
diurno, pelo qual o sol e as estrelas nascem e põem-se diante dos nossos olhos,
corresponde a um verdadeiro movimento de rotação daqueles corpos celestes,
ou trata-se de um movimento aparente causado pelo movimento da terra.
Instância crucial a respeito poderia ser a seguinte: se se puder constatar sobre o
oceano um movimento de oriente a ocidente, mesmo muito fraco; se tal movi-
mento parece um pouco mais rápido no ar, especialmente entre os trópicos,
onde é mais perceptível pela maior amplitude da volta, se se torna ainda mais
vivo e visível nos cometas mais próximos da terra; se também aparece nos
planetas com intensidade crescente, proporcional à sua distância da terra,
tornando-se muito veloz no céu estrelado; então se estabelecerá como certo que
o movimento diurno é próprio do céu e se o recusará à terra; pois tornar-se-á
claro que o movimento de oriente a ocidente pertence aos céus, na sua
universalidade, e diminui aos poucos à medida que se distancia das alturas do
céu, finalmente se interrompendo com a terra imóvel.
197
Da mesma maneira, tome-se para a investigação o movimento de rotação que é
difundido entre os astrônomos, que vai no sentido contrário ao do movimento
diurno, isto é, de ocidente a oriente; movimento que os astrônomos antigos
atribuíam aos planetas e ao céu estrelado, mas Copérnico e seus seguidores
também o atribuem à terra. Observe-se desde logo se se encontra na natureza
um movimento desse tipo, ou se foi suposto e estabelecido pela comodidade e
pela brevidade dos cálculos científicos, ou seja, para explicar os movimentos
celestes com círculos perfeitos. Contudo, não se pode provar que se encontre,
nas regiões celestes, um verdadeiro movimento desse gênero; nem pelo fato de
que o movimento diurno num planeta não retorna ao mesmo ponto do céu
estrelado, nem com a posição diversa dos pólos do zodíaco em relação ao da
terra, que são os dois caracteres pelos quais esse movimento se nos apresenta. O
primeiro fenômeno pode muito bem ser explicado pelo adiantamento do céu
estrelado que deixa para trás os planetas, o segundo pelas linhas espirais, de
modo a haver desigualdade no retorno dos planetas e a sua inclinação no sentido
dos trópicos pode ser antes modificação do movimento único diurno, que
movimentos recalcitrantes em volta de pólos diversos. E é mais do que certo
que aos sentidos esse movimento se apresenta exatamente na forma que
indicamos, sempre que queremos contemplar um pouco o céu com olhos de
leigo, sem nos dar conta do que dizem os astrônomos e as escolas, que com
freqüência ambicionam contradizer injustamente os sentidos, preferindo o que é
mais obscuro, O sentido do movimento, antes, já representamos como fios de
ferro como em uma máquina.
Instância crucial nesse assunto poderia ser a seguinte: se em alguma história
fidedigna for indicado um cometa, mais alto ou mais baixo, que não tenha
girado de acordo com o movimento diurno (ainda que de forma irregular), mas
que tenha tomado uma direção contrária, então, com certeza, poder-se-á
estabelecer a realidade daquele movimento. Se, contudo, nada for encontrado de
semelhante, será necessário duvidar, e ter-se-á que recorrer a outras instâncias
cruciais a respeito do assunto.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza do peso e da
gravidade. De imediato, apresentam-se duas orientações. Ou os corpos pesados
e graves tendem, por natureza, ao centro da terra, isto é, graças ao seu
esquematismo; ou são atraídos e arrastados pela força da própria massa
terrestre, como por efeito de agregação dos corpos de igual natureza e a ela
levados pelo consenso. Se se tomar por verdadeira a segunda hipótese, segue-se
que quanto mais os graves se aproximam da terra tanto maiores são a força e o
ímpeto com que são impelidos para ela; enquanto, quanto mais se distanciam
tanto mais fraca e lenta torna-se essa força, exatamente como acontece na
atração magnética. Por outro lado, a atração deve ocorrer a partir de uma certa
distância, senão o corpo se distanciaria da terra a ponto de fugir ao seu influxo e
permaneceria suspenso como a própria terra, sem nunca cair.
198
A respeito desse assunto, poderia ser a seguinte a instância crucial: seja o caso
de dois relógios, um dos quais movido por contrapeso de chumbo, outro movido
por compressão de uma mola de ferro; verifique-se se um é mais veloz que o
outro; coloque-se o primeiro no ápice de algum templo altíssimo, tendo antes
sido regulado com o outro de forma a funcionarem de modo correspondente,
deixando o outro embaixo; isso para se verificar cuidadosamente se o relógio
colocado no alto se move mais devagar em vista da menor força de gravidade.
A experiência deve ser repetida com a colocação do relógio nas profundezas de
alguma mina situada muito abaixo da superfície da terra, para ser verificado se
ele se move mais velozmente que antes, em razão de maior força de atração. Se
se verificar que efetivamente o peso dos corpos diminui com a sua colocação no
alto e que aumenta embaixo, quando mais próximos do centro da terra, então
estará estabelecido que a causa do peso é a atração da massa terrestre.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza de polaridade que tem
a agulha de ferro quando tocada pelo magneto. A explicação a respeito de tal
natureza se bifurca na ordem seguinte: é necessário que seja o magneto que
comunique à agulha a sua capacidade de se voltar para o pólo; ou que o ferro
simplesmente seja excitado e predisposto pelo magneto, mas que o movimento
em si mesmo tenha sido causado pela presença da terra; é o que Gilbert afirma e
procura demonstrar com muitos exemplos. Pois para isso tendem as
observações que levou a efeito com muita perspicácia e que foram por ele
colecionadas. Uma é a de que um cravo de ferro que tenha permanecido por
muito tempo na posição norte-sul adquire uma tendência à polaridade, sem ter
sido tocado pelo magneto; como se a própria terra, que pela sua distância atua
muito debilmente (estabelece Gilbert que de fato a superfície ou crosta terrestre
é desprovida de força magnética), apesar disso, fosse capaz de substituir o toque
do magneto da excitação do ferro, pela longa permanência e depois de excitado
ser capaz de dirigi-lo e voltá-lo no sentido do pólo. A outra explicação é a de
que o ferro vermelho ou branco de calor colocado a esfriar na direção dos pólos,
contrai a capacidade de para ele voltar-se sem o contato do magneto; como se as
partes do ferro colocadas em movimento pelo fogo, quando de sua retração à
posição original, isto é, durante o processo de esfriamento, fossem mais aptas e
mais sensíveis à virtude emanada pela terra, permanecendo excitadas. Mas tais
observações, embora cuidadosas, não chegam a provar de fato o que ele
sustenta.
A propósito desse assunto, poderia ser a seguinte a instância crucial: tome-se
um magneto esférico como a terra. Assinalados os seus pólos, voltem-se-nos,
não a norte e a sul, mas a oriente e a ocidente, mantendo-o nessa posição; sobre
ele coloque-se depois uma agulha de ferro, ainda não tocada pelo magneto,
assim permanecendo durante seis ou sete dias. A agulha, depois de colocada
sobre o magneto, perde contato com os pólos do mundo, tornando seus os do
magneto (sobre isso não há qualquer dúvida); por isso, enquanto permanece
nessa posição, volta-se a oriente e ocidente do mundo; mas se a agulha tirada do
magneto e colocada sobre um eixo voltar-se na direção do eixo da terra
subitamente ou se tomar essa posição pouco a pouco, pode-se dizer, sem
dúvida, que a causa é a presença da terra; mas se a agulha se voltar como antes,
na posição oriente-ocidente, ou perder sua capacidade de apontar para os pólos,
se isso ocorrer, considere-se a causa como duvidosa e prossiga-se na
investigação.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a substância corpórea que forma
a lua, a fim de se verificar se se trata de uma substância tênue, feita de fogo ou
de ar, como muitos dentre os primeiros filósofos acreditaram; ou se é sólida,
consistente, como Gilbert e muitos modernos e não poucos dentre os antigos
asseveram. As razões desta última opinião residem sobretudo no argumento da
reflexão dos raios solares por parte da lua, porque não parece possível uma tal
reflexão a não ser nos sólidos. A respeito desse assunto, poderiam ser (se é que
as há) instâncias cruciais todas as que demonstram a possibilidade de haver
reflexão em um corpo tênue como a chama, mas com espessura suficiente. Entre
outras, uma das causas do crepúsculo é a reflexão dos raios do sol na região
superior do ar. Em tardes calmas pode-se, às vezes, observar os raios solares
refletidos nas bordas das nuvens radiosas, de resplendor não menor, mas até
mais brilhante e mais majestoso que o proveniente do corpo da lua. E, contudo,
não se tem prova de que tais nuvens encerrem um corpo denso de água. Vê-se
também que o lume da vela, à noite, reflete-se na escuridão de fora da janela,
como se se tratasse de um corpo sólido. Poderia ser tentado o experimento de se
fazerem passar os raios do sol por um furo sobre uma chama azulada. É sabido
que os raios solares, incidindo a céu aberto sobre uma chama não muito clara,
ofuscam-na a ponto de parecer mais uma fumaça branca que uma chama. Essas
são as instâncias cruciais que ora ocorrem a propósito do assunto em questão,
mas certamente se podem encontrar outras e melhores. Mas, em qualquer caso,
deve-se considerar como estabelecido que apenas a chama de uma determinada
espessura é capaz de refletir os raios; em caso contrário, eles se desvanecem na
transparência. E tenha-se como certo que um raio luminoso, caindo sobre um
corpo plano, ou é refletido para trás ou é recebido e enviado para outro lado.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza dos corpos projetados
ao ar, como dardos, flechas e balas. Os escolásticos, segundo o seu costume,
tratam esse movimento com muita negligência, satisfazendo-se com dizer que é
um movimento violento, mas distinto daquele que chamam de movimento
natural. Descartam o problema da causa ou do primeiro impulso dado nesse
movimento refugiando-se no axioma que diz que “dois corpos não podem estar
no mesmo lugar sem se penetrarem”. E não se preocupam com o modo de se
desenvolver desse movimento. E, a propósito dessa questão, tem-se a bifurcação
seguinte: esse movimento, ou é produzido pelo ar que atua sobre o corpo
arremessado, como a correnteza sobre o casco da nave ou vento sobre a palha;
ou é produzido pelas partes do corpo, que, não podendo agüentar a violenta
pressão, lançam-se sucessivamente à frente para dela se libertarem. Com a
primeira solução está Fracastoro
199
e quase todos os outros que estudaram a
fundo o assunto. Não há dúvida de que o ar toma parte, e muito, nesse
movimento, mas há infinitos experimentos que confirmam a segunda como
verdadeira causa. Entre outras, poderia se constituir na instância crucial do
assunto a seguinte: uma lâmina ou um arame de ferro um pouco resistente, ou
uma pena de ave, encurvados, por pressão do dedo polegar e do indicador, que
em tal circunstância saltam bruscamente. E claro que esse fenômeno não resulta
do ar que se reúne atrás do corpo em movimento, porque o ponto preciso em
que o movimento se manifesta é o centro e não a extremidade.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza do movimento súbito
e violento de expansão, que é provocado pela pólvora, graças à qual massas tão
grandes são levantadas e pesos tão consideráveis são arremessados como se
observa nas grandes minas e nos canhões. Eis a bifurcação a respeito dessa
natureza: o movimento ou é produzido por mero desejo do corpo em expandir-
se, logo que pega fogo ou é produzido pelo desejo misto do espírito cru
200
em
fugir rapidamente do fogo, pelo qual é circundado, e por isso escapa
violentamente como de um cárcere. Os escolásticos e a opinião vulgar só
conhecem a primeira causa e acreditam estar fazendo boa filosofia dizendo que
a chama eclode em virtude da própria forma de seu elemento, na sua
necessidade de se expandir para ocupar um espaço maior do que o que ocupava
o corpo quando se encontrava sob a forma de pólvora, e que daí advém aquele
movimento. Não pensam, no caso, que se isso fosse verdadeiro poder-se-ia
impedir a chama com corpo que tivesse uma massa capaz de comprimi-la e
sufocá-la, e, assim sendo, não haveria a necessidade do que falamos. Estão cor-
retos ao pensar que se se produz a chama é necessário que se produza uma
expansão e que daí segue-se uma explosão ou a remoção do corpo que se opõe.
Mas tal necessidade será evitada se a massa do corpo pesado chegar ao ponto de
sufocar a chama antes que se produza. Observa-se que a chama, especialmente
no seu início, é débil e leve, e requer uma cavidade na qual se possa exercitar e
ganhar forças. Com efeito, não se pode atribuir à chama, tomada isoladamente,
qualquer força extraordinária. Mas é verdade que as chamas explosivas, ou seja,
os ventos inflamados, são produzidas pelo contraste de dois corpos que possuem
naturezas contrárias, completamente inflamável um, como é o caso do enxofre;
e não inflamável outro, como é o caso do nitro; daí se produzindo um violento
contraste (uma vez que o terceiro corpo, isto é, o carvão de sálcio, não tem outra
função que a de amalgamar e juntar os outros dois corpos), tendendo o enxofre,
a todo custo, a se inflamar, e procurando subitamente o espírito do nitro fugir
com toda força e, ao mesmo tempo, se dilatando (como o fazem também o ar, a
água e todas as demais substâncias cruas que se dilatam pelo calor), e nessa
fuga, unida à erupção, alimenta-se de todos os lados a chama do enxofre, como
por meio de foles ocultos.
De dois tipos podem ser as instâncias cruciais a respeito. Uma é oferecida pelos
corpos que são inflamáveis ao máximo, como o enxofre, a cânfora, a nafta e
semelhantes, como também os seus compostos. São mais aptos e mais fáceis de
se inflamarem que a pólvora, se não são impedidos; o que demonstra que a
simples tendência para se inflamar não é suficiente para a produção daquele
espantoso efeito. A segunda é oferecida pelos corpos infensos à chama e que a
incomodam, como é o caso de todos os sais. Estes, jogados no fogo, emitem um
espírito aquoso com peculiar ruído antes de se inflamarem; o mesmo, mas
menos intensamente, acontece com as folhas, ainda não completamente secas,
que se liberam da parte aquosa antes de pegarem fogo. Esse fenômeno observa-
se ainda no mercúrio, que não de todo mal é chamado de água mineral. O
mercúrio, realmente, sem se inflamar só com a explosão e a expansão, quase se
iguala à pólvora; e a ela misturado diz -se que multiplica a sua violência.
Da mesma maneira, tome-se como objeto de investigação a natureza transitória
da chama e a sua extinção momentânea. Com efeito, parece a nós, que a
natureza da chama não se fixa, nem adquire consistência, e que se renova a cada
instância e continuamente se vai extinguindo. E, de fato, manifesto que, nas
chamas que persistem e duram, tal duração não é a continuação ininterrupta de
uma mesma determinada chama, mas sucessão de chamas novas, que se engen-
dram em série e, na verdade, não permanecem idênticas em nenhum momento;
como se depreende do fato de sua súbita extinção, se se corta o sebo ou o
alimento. E, a respeito, defrontamo-nos com a seguinte bifurcação: ou a duração
momentânea deriva da interrupção da causa que engendra a chama, como
acontece com a luz, os sons, os movimentos tidos por violentos; ou a chama é
levada a persistir pela sua natureza, mas é afetada e destruída pelas naturezas
contrárias.
A tal respeito a instância crucial poderia ser a que segue. Nos grandes incêndios
notam-se chamas altas; tanto mais altas quanto maior a área incendiada. A causa
da extinção parece situada nas bordas dos lados, onde a chama parece reprimida
e combatida pelo ar. Mas as chamas do meio, não circundadas pelo ar mas
unicamente por outras chamas, permanecem idênticas e não se extinguem, até
que o ar se acerque e acabe por ocupar, pouco a pouco, toda a área. Isso faz com
que a chama se assemelhe a uma pirâmide, mais ampla na base, onde está o
alimento, e mais estreita no vértice, onde o ar a combate. A fumaça, ao
contrário, é mais estreita na base, aumentando depois, formando uma espécie de
pirâmide invertida; isso porque o ar acolhe o fumo e comprime a chama.
Ninguém pode supor que a chama acesa seja feita de ar, uma vez que são dois
corpos, sem dúvida, heterogêneos.
Uma instância crucial mais acurada poderia ainda ser a da chama de duas cores.
Coloque-se no fundo de um recipiente de metal uma pequena vela acesa;
coloque-se o recipiente em uma vasilha e jogue-se em volta espírito de vinho
em quantidade suficiente para alcançar a borda da vasilha; a seguir acenda-se o
espírito de vinho. A sua chama será mais azulada e a da vela mais amarelada
(como as chamas, ao contrário dos líquidos, não se fundem rapidamente, será
fácil observar a diferença das cores). Nota-se, então, se a chama da vela
permanece em forma piramidal ou tende mais para a forma de um globo, desde
que não haja nada que a destrua ou constranja. Se assume a forma de um globo,
é necessário tomar-se por certo que ainda dura a mesma chama, mesmo inserida
na outra e dessa maneira protegida de força contrária do ar.
E aqui deixamos as instâncias cruciais. Foram tratadas um pouco longamente
para, aos poucos, habituar a mente humana a julgar por seus próprios meios e
segundo experimentos lucíferos, e não a partir de razões prováveis.
201
XXXVII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo quinto lugar as
instâncias de divórcio,
202
que indicam a separabilidade de naturezas que em
grande parte se encontram juntas. Diferem das instâncias que se ligam às
instâncias de acompanhamento
203
pelo fato de que estas indicam a
separabilidade de uma natureza de um corpo concreto, que parece familiar, ao
passo que as de divórcio indicam a possibilidade de separação de uma natureza
de outra natureza. Diferem também das instâncias cruciais porque nada
determinam, apenas se limitam a indicar a separabilidade de uma natureza de
outra. Servem para a indicação de formas falsas e para refutar especulações
levianas, nascidas de coisas óbvias; constituem uma espécie de peso ou lastro
para o intelecto.
204
Por exemplo, tomem-se para a investigação as quatro naturezas que Telésio
considera como companhias indivisíveis (ou inseparáveis)
205
e da mesma
morada, que são as do calor, da luz, da tenuidade e da mobilidade ou da
prontidão para o movimento. Encontram-se entre elas muitas instâncias de
divórcio, tais como: o ar é tênue e móvel, mas não quente, nem luminoso; a lua
fornece luz, mas não calor; a água fervente é quente, mas não fornece luz; a
agulha de ferro, presa a um eixo, é ágil e móvel, embora se trate de um corpo
frio, denso e opaco, etc.
Da mesma maneira, tomem-se para investigação a natureza corpórea e ação
natural.
206
Parece não poderem ser encontradas, a não ser subsistindo em um
corpo natural. Mas há entre elas um grande número de instâncias de divórcio.
Por exemplo, a ação magnética, pela qual o ferro é atraído pelo magneto e os
corpos pesados pelo centro da terra. Podem-se também acrescentar algumas
outras operações a distância. Tal ação atua no tempo, em momentos sucessivos,
e em um instante, no espaço, por graus e distâncias. Há, pois, um momento no
tempo e um intervalo no espaço no qual essa virtude ou ação permanece em
suspenso entre os dois corpos que provocam o movimento. O problema fica,
assim, colocado nos seguintes termos: os dois corpos que são os termos do
movimento dispõem ou modificam os corpos intermediários de modo a passar a
virtude, insensivelmente, de um termo a outro, por uma série de contatos reais,
não deixando de subsistir, nesse entretempo, no corpo intermediário, ou nada se
passa entre os dois corpos além da troca da sua virtude através do espaço. Em
todo caso, através dos raios luminosos, dos sons e através de outras virtudes que
atuam a distância, é possível que os corpos intermediários sejam dispostos e
alterados, tanto mais que se exige um meio adequado para levar a cabo a
operação, como vetor da força atuante. Mas a virtude magnética, ou de união
dos corpos, admite indiferentemente qualquer corpo intermediário e a força não
é por ele impedida, qualquer que seja a sua natureza. Se, pois, essa virtude ou
ação não tem necessidade de nenhum corpo intermediário, segue-se que se trata
de uma virtude ou ação natural que, por algum tempo e em algum lugar,
subsiste sem corpo, uma vez que não subsiste num dos corpos terminais nem
nos intermediários. Em vista disso, a ação magnética pode ser considerada uma
instância de divórcio entre a natureza corpórea e a ação natural. Pode-se
acrescentar como corolário ou vantagem, a não ser desprezado, o seguinte:
mesmo quem faz filosofia segundo os sentidos
207
pode encontrar a prova da
existência de entes ou substâncias separadas e incorpóreas. Com efeito, se uma
virtude ou ação natural, que emana de um corpo, pode subsistir, por algum
tempo, em algum lugar, separada do corpo, pode ser também que na sua origem
possa emanar de uma substância incorpórea. E isso contra a opinião de que
compete à natureza corpórea não apenas a conservação e a transmissão da ação
natural mas também a sua estimulação e produção.
XXXVIII
Seguem-se cinco ordens de instâncias a que costumamos chamar, com o mesmo
termo genérico, de instâncias de lâmpada ou de primeira informação,
208
pelo
socorro que prestam aos sentidos. Toda interpretação da natureza começa pelos
sentidos e, das percepções dos sentidos e por uma via direta, firme e segura
alcança as percepções do intelecto, que constituem as noções verdadeiras e
axiomas. Em vista disso, quanto mais copiosas e exatas forem as representações
e provisões dos sentidos necessariamente tanto mais felizes e fáceis serão os
resultados finais.
Dentre os cinco tipos de instâncias de lâmpada, o primeiro revigora, amplia e
retifica as ações imediatas dos sentidos; o segundo torna sensível o que não é
diretamente sensível; o terceiro indica os processos continuados ou séries de
coisas e de movimentos que (em sua maioria) apenas são notados ao seu final
ou periodicamente; o quarto fornece matéria aos sentidos, quando o objeto se
encontra completamente ausente; o quinto estimula a atenção dos sentidos, a sua
vigilância e ao mesmo tempo limita a sutileza das coisas. Trataremos, a seguir,
de cada um deles.
XXXIX
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo sexto lugar as
instâncias deporta ou entrada.
209
Com esse nome indicamos as instâncias que
ajudam as ações imediatas dos sentidos. A vista é manifestamente dos sentidos
o mais importante para a investigação, daí ser importante procurar
proporcionar-lhe ajuda. Estas podem ser de três espécies: as que podem
possibilitar-lhe perceber o que é invisível; as que lhe possibilitam ver mais
longe; as que lhe permitem perceber mais exata e distintamente.
Do primeiro gênero são (deixando de lado os óculos e similares, que apenas
servem para corrigir e atenuar a insuficiência da vista ou a má conformação do
órgão e, por isso, não nos oferecem nada de novo) as lentes recentemente
inventadas
210
que revelam as minúcias invisíveis e latentes dos corpos, seus
ocultos esquematismos e delicados movimentos, com um considerável aumento
das imagens. Com esse concurso, distinguem-se, não sem espanto, a figura do
corpo, os seus delineamentos, como também as cores e os movimentos antes
invisíveis da pulga, da mosca e dos vermes. Diz-se que uma linha reta traçada
com lápis ou pena, através dessas lentes, parece desigual e torta, pois nem os
movimentos da mão, ajudados pela régua, nem a tinta ou a cor são realmente
iguais, embora tais diferenças sejam tão minúsculas que não podem ser
percebidas sem o auxílio dessas lentes. Os homens, a tal respeito, logo fizeram a
observação supersticiosa (como ocorre com todas as coisas novas e estranhas)
de que aquelas lentes iluminam as obras da natureza, mas deturpam as da arte,
O que demonstra somente o seguinte: que as estruturas naturais são muito mais
sutis que as da arte. De fato, aquelas lentes só servem para as coisas diminutas;
e se as tivesse conhecido Demócrito, ter-se-ia alegrado muito, pensando ter
encontrado a forma de ver os átomos, que ele considerava invisíveis.
211
Mas elas
só são de utilidade em relação aos corpos pequenos. Se servissem para observar
corpos grandes ou partes pequenas desses para fazerem ver, por exemplo, o
tecido da tela como uma rede ou as particularidades ou irregularidades das pe-
dras preciosas, dos líquidos, da urina, do sangue, dos ferimentos e muitas outras
coisas, em tais casos se constituiriam em grande vantagem.
Do segundo gênero são as lentes inventadas com admirável esforço por
Galileu,
212
por meio das quais é possível entrar em mais estreito contato com os
corpos celestes, como o fazem as naves nas instâncias marítimas. Por seu
intermédio sabemos que a Via Láctea não é mais que um aglomerado de
pequenas estrelas, distintas em número e natureza, fato de que os antigos mal
suspeitaram. Por seu intermédio fica demonstrado que os espaços dos chamados
mundos planetários não estão vazios de outras estrelas, mas que o céu começa a
se tornar cheio de estrelas antes do próprio céu estrelado; embora se trate de
estrelas menores, invisíveis sem esses instrumentos. Por eles pode-se observar o
movimento de rotação das pequenas estrelas em torno de Júpiter, o que nos leva
a supor a existência de vários centros dos movimentos estrelares. Por seu
intermédio, podem-se observar e determinar claramente as diversas zonas de luz
e de sombra da lua; bem como se torna possível uma descrição aproximada de
seu corpo.
213
Por seu intermédio, descobrimos, também, as manchas solares e
coisas semelhantes. Trata-se, sem dúvida, de descobertas notáveis, se se puder
dar crédito a tais demonstrações. Mas estas são tanto mais passíveis de suspeita
quanto o experimento se atém a esses poucos descobrimentos e por seu
intermédio não foram descobertas outras coisas igualmente dignas.
Do terceiro gênero são os bastões usados para medir as superfícies, os
astrolábios e outros instrumentos semelhantes próprios para dirigir e retificar,
mas não ampliar, a vista. As outras instâncias, que servem de auxílio aos outros
sentidos, em suas operações imediatas e particulares, se não aumentam a sua
capacidade de percepção, nada dizem ao nosso propósito. Por isso, não nos
ocuparemos delas.
XL
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo sétimo lugar as
instâncias de citação,
214
vocábulo tomado dos tribunais civis, que citam para
comparecimento o que ainda não compareceu, e a que também costumamos
chamar de instâncias evocantes,
215
porque tornam sensível o que antes não o
era.
As coisas escapam aos sentidos devido a várias causas: pela distância em que
está colocado o objeto; pela intervenção de outros corpos entre o objeto e os
sentidos; pela natureza do objeto não facilitar a sua percepção; pela dimensão
muito pequena do objeto, não chegando a impressionar os sentidos; por não
haver tempo suficiente para impressionar os sentidos; pela prévia ocupação dos
sentidos por outro objeto, não possibilitando nova impressão. Tudo isso se rela-
ciona principalmente com a vista e um pouco com o tato, que são os sentidos
mais informativos em relação a tais objetos, enquanto os outros sentidos quase
não dão informação, a não ser imediatamente e de objetos que lhes são próprios.
No primeiro gênero, não há meios de se fazer redução ao sensível, a não ser que
a uma coisa que não pode ser vista, em razão da sua distância, se acrescente ou
se substitua outra que possa impressionar os sentidos, mesmo de longe: é o caso
de quando se faz uso de fogueiras, sinos e coisas semelhantes para se comunicar
alguma coisa.
No segundo gênero, pode-se obter a redução ao sensível por meio de alguma
coisa que se encontre na superfície de um corpo, e que revele o que se passa em
seu interior; isso numa posição em que não é possível a observação direta, em
vista da interposição de outras partes do referido corpo, que se não podem
remover. E o caso do estado geral do corpo humano, que se conhece pelo pulso,
pela urina e outros signos semelhantes.
O terceiro e o quarto gêneros são os mais freqüentes e, por isso, é possível
encontrar-se um grande número de exemplos. Assim, o ar, o espírito e coisas
semelhantes, que estão em todos os corpos sutis, mas que se não podem ver,
nem tocar. Por essa razão, o estudo desses corpos não pode prescindir das
deduções.
Por exemplo, tome-se para investigação a natureza da ação e do movimento do
espírito encerrado nos corpos tangíveis. Pois não há corpo tangível sobre a terra
que não cubra um espírito invisível, como uma veste. Aí tem origem a tríplice
fonte tão admirável e poderosa do processo do espírito em um corpo tangível: se
o espírito se desprende, o corpo se contrai e seca; se permanece dentro dos
corpos, abranda-os e os torna fluidos; se não se desprende nem nele permanece
por c ompleto, empresta forma, cria membros, assimila, digere, etc.. tornando-se
um organismo. Todas essas coisas se manifestam aos sentidos por seus efeitos
aparentes.
Com efeito, em todo corpo tangível e inanimado, começa por se multiplicar,
como que se nutrindo das portas tangíveis que são mais fáceis e estão para isso
preparadas; assimila-as, consome-as, convertendo-as em espírito, e depois
escapam juntos. Essa consumação e multiplicação do espírito se torna sensível
pela diminuição de peso. Em toda dessecação, efetivamente, ocorre perda de
uma parte da quantidade; e isso não tanto pelo espírito que aí antes se
encontrava, posto que o espírito por si mesmo não tem peso, mas devido ao pró-
prio corpo, que antes era tangível, mas que agora não o é mais. A saída ou
emissão do espírito se faz sensível pela ferrugem dos metais e outras
putrefações do gênero que ficam em seu início e não chegam ao ponto em que
começa a vivificação, e essas coisas pertencem ao terceiro gênero de processo.
De fato, nos corpos mais compactos, o espírito não encontra furos ou poros por
onde escapar; portanto, vê-se obrigado a empurrar e pressionar as partes
tangíveis, de maneira a fazê-las sair juntamente para a superfície, onde formam
a ferrugem e incrustações semelhantes. Os sinais sensíveis da contração das
partes tangíveis, depois da emissão de parte do espírito (que é a causa da
dessecação do corpo), são dados pela sua própria dureza, e mais ainda pelas
fendas, gretas, enrugamentos, dobras, etc., que são efeitos que a ela se seguem.
Por isso, as partes da madeira arqueiam-se e contraem-se; as peles se enrugam.
E não é só isso: sob a ação do fogo, que acelera a emissão do espírito, a
contração chega a fazer com que os corpos se dobrem e enrolem.
Se, ao contrário, o espírito é retido, mas se dilata e se excita pelo calor, e por
outras causas (como ocorre com os corpos duros), então os corpos amolecem,
como o ferro candente; outros metais se fluidificam, liqüefazem-se, como as
resinas, a cera e outras substâncias semelhantes. E as operações contrárias do
calor, endurecendo certos corpos e liquefazendo outros, conciliam-se facilmente
ao ser levado em conta que no endurecimento o espírito se evapora, na
liquefação é agitado, mas retido no corpo; é que, enquanto a liquefação é ação
própria do calor e do espírito, o endurecimento é ação das partes tangíveis
motivada pela saída do espírito.
Mas quando o espírito não está nem completamente retido nem completamente
desprendido, mas apenas faz esforços e tentativas na sua prisão corpórea, e se
depara com as partes tangíveis que lhe são obedientes e inclinadas a
acompanhar as suas operações e de fato o seguem, disso resulta a formação do
organismo, com seus membros e demais ações vitais, quer animal, quer vegetal.
Tal desenvolvimento pode ser tornado sensível especialmente com a cuidadosa
observação dos primeiros movimentos e das primeiras manifestações ou nas ori-
gens da vida, nos animálculos que nascem da putrefação, como, por exemplo, os
ovos das formigas, vermes, moscas ou rãs que surgem depois da chuva, etc.
Para lhes dar a vida, é necessário um calor tênue e uma certa viscosidade da
matéria, para que o espírito não escape e para que a rigidez das partes não lhe
ofereça excessiva resistência e possa plasmá-las e modelá-las como à cera.
Outra diferenciação do espírito, respeitável e de freqüente aplicação (ou seja,
interrompido, ramificado e, ao mesmo tempo, ramificado e celulado,
216
sendo o
primeiro o espírito de todos os corpos inanimados, o segundo o dos vegetais, o
terceiro o dos animais). Também essa diferenciação pode ser colocada diante
dos olhos, por várias instâncias de redução.
É evidente que as mais sutis configurações e os esquematismos das coisas
(mesmo que os corpos sejam inteiramente visíveis e tangíveis) não se pode nem
ver nem tocar. Por isso também aqui a informação procede por redução.
Contudo, a diferença fundamental primária dos esquematismos é obtida pela
maior ou menor massa de matéria que possa ocupar um mesmo espaço ou
dimensão. Os demais esquematismos que consistem na diversidade das partes
contidas em um mesmo corpo e na sua diversa colocação ou posição são
secundários em comparação com o primeiro.
Tome-se, pois, para investigação a natureza da expansão ou força de coesão da
matéria em relação aos vários corpos, para saber que quantidade de matéria se
contém em uma mesma dimensão de cada corpo. Nada há de mais verdadeiro na
natureza que a proposição “do nada nada provém” e que a outra sua parceira
“nada há que se reduza ao nada”; quer dizer, a quantidade em si da matéria ou a
sua soma total permanece inalterada, sem aumentar ou diminuir.
217
E não é
menos verdadeiro que “essa quantidade total de matéria se contém, mais ou
menos, nos mesmos espaços ou dimensões, conforme a diferente natureza dos
corpos”; assim é que a água contém mais, o ar menos; de modo que, se alguém
assegurasse que um mesmo volume de água pode ser convertido em um volume
igual de ar, seria o mesmo que dissesse que se pode reduzir algo a nada; e, no
caso inverso, se alguém dissesse que um volume de ar pode ser convertido em
um igual volume de água, seria o mesmo que dissesse que se pode produzir algo
a partir do nada. É dessa diferente distribuição de matéria que se formam os
conceitos de raro e denso, usados depois de várias e confusas maneiras. Deve-
se também tomar como axioma a asserção bastante acertada: o mais ou o menos
da matéria deste ou daquele corpo pode ser reduzido a proporções exatas ou
quase exatas por meio de cálculos comparativos. Pelo que não estaria enganado
quem dissesse que em um determinado volume de ouro há tal acumulação de
matéria que o espírito do vinho necessitaria, para igualar tal quantidade de
matéria, de um espaço vinte e uma vezes maior que o ocupado pelo ouro.
A acumulação da matéria e suas proporções se tornam sensíveis pelo peso. O
peso, de fato, corresponde à quantidade de matéria em relação às partes de uma
coisa tangível, mas o espírito e a sua quantidade de matéria não podem ser
computados pelo peso, já que o corpo se torna mais leve e não mais pesado.
Mas elaboramos com bastante cuidado uma tábua disso, na qual são expostos os
pesos e os respectivos volumes de cada um dos metais, das principais pedras,
das madeiras, dos líquidos, dos óleos e de muitos outros corpos naturais e
artificiais. É um verdadeiro policresto, para fornecer tanta luz às informações
quanto as normas das operações e que pode levar à descoberta de muita verdade
insuspeitada. E não se deve subestimar o fato de que a referida tábua demonstra
que o peso específico dos corpos tangíveis observados (referimo-nos aos corpos
bem unidos, não os esponjosos, ou cavernosos e em boa proporção cheios de ar)
não ultrapassa a relação de vinte para um (um a vinte), já que assim limitada é a
natureza, pelo menos nos aspectos com que nos preocupamos.
Sentimos também que o espírito de exatidão de que nos ufanamos obriga-nos a
tentar descobrir uma proporção entre os corpos não tangíveis ou pneumáticos e
os tangíveis. E o tentamos da seguinte maneira: tome-se uma ampola de vidro
de uma onça de capacidade, aproximadamente, pequena o suficiente para
conseguir evaporação com pouco calor; coloque-se quase até o gargalo espírito
de vinho (que é o corpo mais rarefeito e o que contém menos quantidade de
matéria entre os corpos tangíveis da tábua precedente, pelo menos entre os bem
unidos e não cavernosos) e se anote cuidadosamente o peso. Depois disso,
pegue-se uma bexiga que contenha uma ou duas pintas;
218
retire-se todo o ar
possível da bexiga, até que os seus dois lados se toquem em todas as partes.
Antes a bexiga deve ter sido friccionada com azeite para tapar todos os poros. A
seguir, coloque-se a boca da bexiga em torno do gargalo da ampola, amarrando-
o bem, com fios encerados, para melhor vedação. Depois disso, aqueça-se o
frasco sobre carvões, em um pequeno forno. Pouco depois, a evaporação ou
exalação do espírito do vinho, dilatado e tornado pneumático pelo calor, começa
a inchar lentamente a bexiga por todos os lados, como uma vela ao vento. A
seguir, retire-se o frasco do fogo, colocando-o sobre um tapete, para que o
resfriamento rápido não o quebre, e faça-se imediatamente um furo na parte
superior da bexiga, para evitar que o vapor, esfriando, retorne ao estado líquido,
atrapalhando os cálculos. Depois disso, desamarre-se a bexiga e pese-se o
espírito restante na ampola; compare-se o seu peso atual com o inicial, compu-
tando-se quanto se transformou em vapor ou se tornou pneumático. Compare-se
também o volume da substância, quando em estado de espírito do vinho, com o
espaço que ocupou na forma de vapor. Dessa maneira, chegar-se-á ao resultado
de que a substância transformada adquiriu um volume e ocupou um espaço cem
vezes maior que o volume inicial.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza do calor ou do frio;
mas em grau bem baixo, a ponto de não serem percebidos pelos sentidos: serão
tornados sensíveis por meio do termômetro, a que antes já nos referimos, O
calor e o frio, por si mesmos, não são perceptíveis pelo tato; mas o calor
expande o ar e o frio o contrai. E a expansão e a contração, mesmo não sendo
perceptíveis pela vista, podem ser observadas na depressão e no levantamento
da água produzidos respectivamente pela expansão ou pela contração do ar. Só
assim se torna visível, nem antes, nem em outra forma.
Da mesma maneira, tome-se para investigação a natureza da mistura dos corpos;
a saber, quanto de água, de óleo, de espírito, de cinza, e de sais e outras
substâncias semelhantes; ou, em particular, investigue-se quanto de manteiga
tem no leite, quanto de coágulo, quanto de cera, etc. Tudo isso pode ser tornado
sensível por meio de separações competentes e artificiais. Mas a natureza do
espírito, por si mesma, não pode perceber diretamente, mas tão-somente por
meio dos vários movimentos e dos esforços dos corpos tangíveis, no próprio
ato e processo de sua separação; e também pelos sinais das acidulações, das
corrosões, das diversas cores e sabores que os corpos adquirem depois da
separação. Na execução de destilações e separações, por meios artificiais,
trabalharam, certamente, os homens com grande dedicação, mas com tão pouco
êxito quanto nos processos ora em uso, onde agem por tateios e às cegas, com
mais esforço que inteligência; e o pior é que, sem procurarem imitar e estimular
a natureza, mas, ao contrário, têm acabado por destruir, com o uso de calores
demasiado fortes, e forças muito poderosas, os delicados esquematismos, onde
em especial, se encerram as virtudes ocultas e os consensos das coisas. Não é
levada em conta, por outro lado, durante os experimentos, a advertência por nós
já muitas vezes levantada, ou seja, que na separação dos corpos pela ação do
fogo, muitas qualidades estranhas ao composto acabaram interferindo, daí
advindo enganos espantosos. Pois, nem todo vapor que é desprendido pela água
colocada ao fogo era antes vapor ou ar no corpo da água; mas se formou, em
sua maior parte, na ocasião em que a água foi rarefeita pelo fogo.
Do modo por nós preconizado, devem ser feitas comparações mais preciosas,
tanto com corpos naturais quanto com corpos artificiais, procedendo-se à
separação entre o que é verdadeiro e o falso, entre o que é mais nobre e o mais
vil; o que é aqui lembrado, por promover a redução ao sensível, do que não é
sensível. Por isso, tais experimentos devem ser colecionados por toda parte,
com o maior cuidado.
Em relação ao quinto gênero de ocultação,
219
é evidente que a ação dos sentidos
se processa no movimento, e o movimento, no tempo. Assim, se o movimento
de um corpo é muito lento ou muito rápido para ser percebido, o objeto acaba
por escapar aos sentidos, o que ocorre com o movimento do ponteiro do relógio
ou da bala do mosquete. O movimento que não pode ser percebido, por ser
muito lento, torna-se facilmente perceptível pela soma de vários movimentos;
mas o que escapa, por ser muito veloz, ainda não pode ser medido com
exatidão; e a investigação natural exige o seu cálculo, em alguns casos.
No sexto gênero, em que os sentidos deixam de perceber o objeto, em vista de
seu grande impacto, promove-se a redução ou por ummaior distanciamento
do objeto; ou atenuando-se os efeitos do objeto pela interposição de algum
meio, mas que não chegue a anulá-los; ou limitando-se à consideração de
apenas os efeitos reflexos do objeto, não afetando a sua intensidade original,
como a imagem do sol refletindo em um espelho d’água.
O sétimo gênero de ocultação, em que os sentidos ficam tão sobrecarregados e
tomados pelo objeto, a ponto de não permitirem a percepção de nenhum outro,
acontecendo apenas com o olfato e os odores; e não são de importância para o
que ora consideramos. E assim enumeramos o que diz respeito às reduções do
não-sensível ao sensível.
Às vezes, porém, a redução se processa não nos sentidos do homem, mas nos
sentidos de algum outro animal, que em alguns casos são mais penetrantes que
os humanos; é o caso de alguns odores percebidos pelo olfato dos cães, ou da
luz, que fica impregnada no ar exterior não iluminado, e que é percebida pelo
gato; é o caso da coruja e outros animais que vêem à noite. Como bem o indica
Telésio, há no ar uma certa luminosidade que lhe é própria, embora fraca e
tênue, e insuficiente para ser percebida pela maior parte dos animais, inclusive
pelo homem; assim, é possível aos animais com sentidos mais aptos verem à
noite, pois não se pode admitir que vejam sem luz ou com alguma luz interna.
Deve ser lembrado que nos estamos ocupando tão-somente das deficiências dos
sentidos e de seus remédios. As falácias dos sentidos, por sua vez, pertencem a
uma investigação própria sobre os sentidos e sobre a sensibilidade,
220
afora
aquela magna falácia que consiste em estabelecer as linhas das coisas por
analogia com o homem e não por analogia com o universo, que só pode ser
corrigido pela razão e por toda a filosofia.
221
XLI
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo oitavo lugar as
instâncias de caminho,
222
a que também costumamos chamar de instâncias
itinerantes e instâncias articuladas.
223
São as que indicam os movimentos
uniformes e graduais da natureza. Esse gênero de instância escapa mais à
observação que aos sentidos, pois é espantosa a negligência dos homens a seu
respeito. Só estudam a natureza a intervalos ou periodicamente e quando os
corpos já estão acabados e completos, e não em sua operação. Pois bem, se
alguém se dispusesse a considerar o talento e a habilidade de um artífice, teria
que observar não apenas o material empregado e depois a obra acabada, mas
teria que presenciar também as operações do artífice e o desenvolvimento de
sua obra. Esse mesmo comportamento deve ser observado em relação à
natureza. Por exemplo, na investigação sobre a vegetação das plantas, é
necessário começar pelas sementes, observando-as quase diariamente,
enterradas, e retirando-as da terra a intervalos crescentes, primeiro depois de um
dia, a seguir depois de dois, a seguir depois de três, para se poder lobrigar de
que modo e em que momento as sementes começam a inchar e intumescer-se, a
encher-se de espírito; depois, a romper o revestimento emitindo os primeiros
brotos para fora da terra, se estes não forem impedidos pela dureza do terreno;
para se verificar de que modo se lançam as fibras, como as raízes para baixo,
como os ramos para cima, que às vezes se prendem lateralmente, se o terreno
assim o facilita; e assim por diante. Da mesma maneira, devem-se observar os
ovos, nos quais é possível ver os processos de vivificação e organização de
todas as partes, distinguir as partes que procedem da gema das partes que
procedem da clara e outras coisas semelhantes. Da mesma maneira, observar os
animais que nascem da putrefação. No caso dos animais superiores, seria
crueldade abrir continuamente o ventre da mãe, para extrair o feto do útero; a
não ser em casos de aborto ocasional, caça e situações semelhantes. Finalmente,
é necessário iniciar uma espécie de vigília noturna para a observação da
natureza, que mais se mostra à noite que durante o dia. De qualquer forma, o
estudo da natureza, em vista da pequenez e da intermitência da lâmpada, pode
ser considerado como empresa noturna.
O mesmo procedimento deve ser tentado com as coisas inanimadas, como o
fizemos por ocasião das observações sobre a expansão dos líquidos ao fogo. De
fato, a expansão ocorre de maneira diversa no leite, no óleo, etc. Isso é mais
fácil de ser observado fervendo-os lentamente em um recipiente de vidro, que
deixa à mostra todas as operações. Todavia, tratamos disso tudo apenas de
passagem, deixando para fazê-lo de maneira mais detida e exata quando
abordarmos o problema da descoberta do processo latente das coisas.
224
Deve-se
sempre ter em conta que, aqui, não tratamos das coisas em si mesmas, mas
apenas aduzimos exemplos.
XLII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em décimo nono lugar as
instâncias suplementares ou substitutivas,
225
a que também costumamos chamar
de instâncias de refúgio.
226
São as instâncias que oferecem informações em
circunstâncias em que os sentidos faltam completamente, servindo, portanto, de
refúgio quando não se dispõe de instâncias adequadas. A substituição ocorre de
duas maneiras: por graduação ou por analogia. Por exemplo: não se dispõe de
qualquer meio que iniba completamente a força magnética em relação ao ferro;
nem com a interposição do ouro, ou da prata, ou da pedra, ou do vidro, ou da
madeira, ou da água, ou do óleo, ou do pano, ou de corpos fibrosos, ou do ar, ou
da chama, etc. Contudo, através de ensaios meticulosos, pode ser que se
encontre um meio, em proporção e em grau, mais eficiente que outros, de
atenuar a sua virtude. Não chegamos a fazer nenhum experimento nesse sentido,
que se poderia processar segundo o exemplo seguinte: procurando verificar se o
magneto atrai igualmente o ferro, com a interposição de porções da mesma
espesssura de ouro, de ar, ou de prata candente e de prata natural, etc.,
igualmente, ainda não se descobriu nenhum corpo que, aproximado do fogo,
não retenha calor. Mas o ar se aquece muito mais rapidamente que a pedra. E tal
é a substituição que se processa por graus.
A substituição por analogia é, sem dúvida, útil, mas é menos segura, por isso
deve ser aplicada com critério. É a que ocorre quando se coloca o não-
perceptível ao alcance dos sentidos, não através de operações do próprio corpo
não-perceptível, procurando torná-lo sensível, mas através da observação de um
corpo sensível análogo. Por exemplo, tome-se para investigação a mistura de
espíritos, que são corpos não-visíveis, supondo que há certa afinidade entre os
corpos e os seus nutrientes ou alimentos. Os alimentos da chama parecem ser o
óleo e as substâncias graxas; os do ar, a água e os líquidos; de vez que a chama
se multiplica sobre os vapores do óleo e o ar, sobre os vapores da água. Por isso
deve-se observar a mistura da água com o óleo, que se manifesta aos sentidos,
visto que a mistura da chama com o ar se lhes escapa. Por meio da composição
e da agitação, a água e o óleo se misturam de modo muito imperfeito; mas nas
ervas, no sangue e nos organismos em geral, eles se misturam de modo acurado
e delicado. O mesmo pode acontecer em relação à mistura da chama com o ar,
nas substâncias espirituosas; embora não se misturem bem, por meio de fusão,
no espírito das plantas e dos animais, misturam-se perfeitamente. A propósito,
veja-se que todo espírito animado se alimenta do úmido, seja em forma de água,
seja em forma de óleo.
Igualmente, procure-se considerar, não as misturas mais perfeitas dos corpos
espirituosos mas os seus componentes, para se verificar os que se incorporam
com facilidade; ou se há algum gás ou outros corpos espirituosos que não se
misturam com o ar comum, mas permanecem suspensos e flutuam em forma de
pequenos globos ou gotas; e que se espessam e pulverizam no ar, mas nele não
se fundindo ou se incorporando, devido à sua tenuidade tais corpos não podem
ser percebidos pelos sentidos, no ar comum ou em outras substâncias
espirituosas. Mas uma imagem dessa ocorrência, que permite recolherem-se
algumas características do fenômeno, pode ser conseguida através do que
sucede com o mercúrio, o óleo ou a água, como também com o ar, quando se
rompe na água e sobe em forma de pequenas bolhas; como também com fumaça
de tipo mais espesso; situações todas elas em que não ocorre a incorporação. A
representação que se acabou de descrever não é descabida para o caso, desde
que tenha sido prévia e cuidadosamente averiguada a existência entre os corpos
espirituosos da mesma heterogeneidade que entre os líquidos. Só então se
poderá fazer de maneira útil o uso de imagens por analogia.
E o que dissemos antes sobre as instâncias suplementares, que servem de
refúgio para a informação quando não há possibilidade de extrai-las de
instâncias próprias, queremos que seja entendido no sentido de que são de
grande uso ainda na existência de instâncias apropriadas, para corroborarem as
informações destas. Mas sobre isso discorreremos mais amplamente quando
tratarmos dos adminículos da indução.
XLIII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo lugar as instâncias
secantes,
227
a que também costumamos chamar de instâncias velicantes.
Velicantes porque beliscam a inteligência, e secantes porque dividem a
natureza, pelo que também, às vezes, as chamamos de instâncias de
Demócrito.
228
Tais instâncias previnem o intelecto da admirável sutileza da
natureza, para que desperte e estimule a atenção, a observação e a investigação
no sentido devido. Por exemplo: de como uma pequena gota de tinta é suficiente
para um tão grande número de letras e linhas; de como uma pequena porção de
prata dourada pode formar um tão longo fio dourado, de como um verme tão
pequeno, como o que ataca a pele, pode ter espírito e um corpo organizado; de
como uma mínima porção de açafrão é suficiente para tingir um tonel de água;
de como um pouco apenas de algália ou erva aromática pode inundar todo o
ambiente circundante com o seu perfume; de como apenas uma pequena porção
de matéria combustível levanta um tão grande volume de fumaça; de como as
mínimas diferenças de sons, como a voz articulada, propagam-se pelo ar, em
todas as direções, penetrando e repercutindo pelos poros e interstícios da
madeira, velozes e distintamente; de como, passando por refrações e reflexões, a
luz e o calor penetram corpos sólidos como o vidro e a água, a distância e com
grande rapidez, formando miríades de imagens, diversificadas ao infinito; de
como o magneto atua através dos corpos mais compactos. Mas o que é ainda
mais espantoso é que, em todas essas operações, que se desenvolvem em um
meio transparente como o ar, nada haja que ofereça resistência; pois, no mesmo
instante em que são transportadas, pelo ar, tantas imagens visuais, tantas
impressões de sons articulados, tantos odores diferentes, de violeta, de rosa, etc;
e ainda calor, frio, influências magnéticas; tudo isso, e não se chocam como
se tivessem caminhos e direções distintas a seguir.
Costumamos, todavia, juntar a essas instâncias secantes estas outras, a que
chamamos de instâncias de divisão.
229
Com efeito, nas coisas de que vimos
falando, uma ação não perturba, nem impede outra ação de gênero diverso, mas
submete e extingue as que são do mesmo gênero. A luz do sol domina e
extingue a luz do pirilampo, um tiro de canhão faz o mesmo em relação à voz;
um odor mais intenso suprime o mais fraco; o mesmo faz o calor; uma lâmina
de ferro colocada entre o magneto e um outro ferro extingue a ação magnética.
Mas voltaremos a essas questões mais demoradamente e no lugar próprio,
quando tratarmos dos adminículos da indução.
XLIV
Dissemos o que competia sobre as instâncias que ajudam os sentidos e que são
de uso precípuo para a parte informativa. Com efeito, a informação tem início
nos sentidos. Mas todos os assuntos se completam na prática. Acrescentamos,
pois, aquelas instâncias que são de uso precípuo na parte operativa, que são de
dois gêneros e em número de sete, mas costumamos chamá-las em conjunto de
instâncias práticas. Há dois tipos de defeitos a serem corrigidos na parte
operativa e, por isso, dois tipos de instâncias prerrogativas, a saber, a operação
ou é falha, ou é muito onerosa. Mesmo depois de um diligente exame da
natureza, a operação pode falhar em razão da errada valorização e medida das
forças e das ações dos corpos. Pois bem, as ações e as forças dos corpos são
delimitadas e medidas, ou segundo o esforço, ou segundo o tempo, ou segundo
a quantidade, ou segundo a predominância de virtude. Quando esses quatro
aspectos não forem considerados com diligência e probidade, certamente
teremos ciências belamente ornadas de especulações, mas ineficazes na parte
operativa. E as quatro instâncias que devem ser mencionadas, vamos designá-
las com o único nome de instâncias matemáticas e de instâncias de medida.
230
A operação prática torna-se muito onerosa, ou pela mistura de coisas inúteis ou
pela multiplicação dos instrumentos, ou pelo peso excessivo da matéria ou das
substâncias que intervêm na operação. Portanto, devem ser tidas como da maior
valia as instâncias que orientam a prática para as operações que são de maior
interesse para o homem, ou que reduzem o número dos instrumentos, ou
poupam materiais ou ferramentas. Esses três tipos de instâncias que servem ao
fim ora indicado, designamos com o único nome de instâncias propícias ou
instâncias benévolas.
231
Logo a seguir, trataremos detalhadamente de todas as
sete e com isso daremos por terminadas as instâncias prerrogativas.
XLV
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo primeiro lugar as
instâncias da Vara
232
ou do Raio,
233
a que também costumamos chamar de
alcance
234
ou de non ultra.
235
Pois, de fato, as forças e os movimentos das
coisas não se desenvolvem em espaço indefinido ou acidental, mas em espaço
definido e determinado; por isso, no estudo das naturezas singulares, é de
grande importância para a prática determinar esses espaços, não só para evitar
que venha a malograr, como também para torná-la mais ampla e eficaz. Por seu
intermédio, às vezes, é possível aumentar artificialmente a sua força e, por
assim dizer, aproximar as distâncias, tal como ocorre com o uso dos óculos (ou
telescópios).
Essas forças, em sua maioria, só agem quando há contato manifesto, como
ocorre no choque dos corpos, onde o corpo se move comunicando o movimento
unicamente por contato. Também nas medicinas para aplicação externa, como
os ungüentos, os emplastros, exercem as suas forças através do contato. Enfim,
os objetos não são percebidos quando ficam pelo menos em continuidade com
os órgãos respectivos.
Há ainda outras forças ou virtudes que operam a distância e até agora só
algumas poucas foram notadas, embora muito mais numerosas do que se possa
pensar. Como, para citar exemplos comuns, o âmbar e o azeviche, que atraem
felpas; as bolhas de água, que aproximadas se fundem; algumas medicinas
purgativas arrastam os humores das partes superiores do corpo, etc. E, ao
contrário, a virtude magnética, pela qual o magneto atrai o ferro, o magneto
atrai o magneto, atua num limite circunscrito do espaço; enquanto que, por seu
turno, a virtude magnética, que emana da terra, um pouco abaixo da superfície,
fazendo a agulha do ferro voltar-se para o pólo, age a grande distância.
Se há uma força magnética que atua, por consenso, entre o globo terrestre e os
corpos pesados, ou entre o globo da lua e as águas do mar (que seria de se supor
em vista dos fluxos e refluxos quinzenais), ou entre o céu estrelado e os
planetas, pela qual são levados aos seus apogeus; se assim for, essa força atua a
uma enorme distância. Há ainda matérias que se incendeiam a grande distância,
como se diz da nafta da Babilônia.
236
Também a comunicação do calor, como a
do frio, se cumpre a grande distância. Por exemplo, os habitantes do Canadá
sentem de longe o frio que emana dos blocos de gelo, que se desprendem e que
flutuam no oceano Atlântico, em direção às suas praias. O mesmo se pode dizer
dos odores de pontos longínquos (embora em tais casos ocorra a emissão de
corpúsculos) e disso têm prova os que navegam próximo às costas da Flórida ou
de certas regiões da Espanha, com os odores que se desprendem dos bosques de
limoeiros, laranjeiras e outras árvores aromáticas, ou de área coberta de árvores
aromáticas, como alecrim, manjerona e plantas semelhantes. Finalmente, sejam
lembrados os raios de luz e os sons que agem a grandes distâncias.
Todavia, todas essas forças, atuem a grande ou a pequena distância, certamente
agem a distâncias limitadas e determinadas segundo sua natureza, de modo que
constituem algo de não mais; e isso em proporção à massa ou à quantidade do
corpo, à força ou a pouca intensidade da virtude, bem como aos corpos
interpostos que a impedem ou auxiliam, tudo deve ser calculado e anotado.
Também a mistura dos chamados movimentos violentos, como os de projéteis,
canhões, rodas e coisas semelhantes, tem os seus movimentos fixos, pelo que
também devem ser anotados com precisão.
Há, por outro lado, movimentos ou virtudes que agem melhor a distância que
por contato, e ainda outros que operam com maior intensidade de longe que de
perto. Por exemplo, a vista não funciona bem por contato, exigindo certo meio e
distância. Isso a despeito de termos ouvido de alguém digno de fé que, enquanto
era operado de catarata por um cirurgião (pela introdução de uma agulha de
prata sob a córnea do olho, para desprender a película que forma a catarata e
empurrá-la para um dos cantos do olho), via claramente a agulha movendo-se
diante da pupila. De qualquer maneira, parece manifesto que os corpos maiores
não podem ser distinguidos claramente senão no vértice do cone formado pelos
raios que partem dos objetos a uma certa distância do olho; dessa forma, os
velhos vêem melhor de longe que de perto. No caso dos projéteis, eles são mais
fortes de longe que de perto. Este e outros exemplos, a propósito da medida dos
movimentos, em relação à distância, devem ser anotados. Mas não pode ser
desprezado um outro modo de se misturar os movimentos especiais. Não se
trata dos movimentos lineares, progressivos, mas esféricos, ou seja, que se
expandem em uma esfera maior, ou que se contraem em uma esfera menor.
Com efeito, é necessário que se investigue em tais medidas de movimentos qual
é o grau de compressão ou extensão que os corpos, segundo sua natureza,
suportam facilmente e sem violência, e em que grau começam a resistir até que
não a güentam um não mais além, será o caso se se comprimir uma bexiga cheia,
que suporta certa compressão de ar, mas, se aumentada, a bexiga não suporta e
se rompe.
Procuramos, com um experimento delicado, e com mais exatidão, esse mesmo
fenômeno. Tomamos uma campânula de metal, muito fina e leve, como as que
se usam para saleiro; submergimo-la em uma cuba com água, de tal maneira a
levar consigo ao fundo o ar encerrado em seu bojo. Colocamo-la lá no fundo,
sobre um pequeno globo, antes já mergulhado, e obtivemos os seguintes dois
resultados: sendo a esfera pequena em relação ao bojo da campânula, o ar se
contrai, ocupando um menor espaço, sendo muito grande para que o ar
facilmente recuasse; este, não suportando a grande pressão, elevava um dos
lados da campânula, subindo à tona em pequenas bolhas.
Igualmente, para provar o maior grau de expansão do ar (como a sua
compressão), procedemos da seguinte forma: pegamos um ovo de vidro, furado
numa das pontas; por meio de forte sucção foi extraído o ar pelo orifício,
tapando-o com o dedo; em seguida, mergulhamo-lo na água, retirando o dedo;
com isso o ar, deformado pela tensão causada pela sucção e dilatado fora de sua
dimensão natural, procurando, com isso, se contrair e se reduzir (de tal forma
que, se o ovo não estivesse mergulhado na água, o ar teria sido atraído com um
silvo), atraiu água em quantidade suficiente para que o ar ocupasse igual espaço
ao que ocupava antes.
Assim, fica estabelecido que os corpos mais tênues, como o ar, também
suportam uma notável contração (como dissemos); ao passo que os corpos
tangíveis, como a água, muito mais dificilmente suportam a compressão e em
menor extensão. Em outro experimento procuramos verificar até que ponto a
suporta. Mandamos confeccionar uma esfera de chumbo oca, de uma ou duas
pintas de capacidade, e seus lados eram grossos o suficiente para resistir com
grande força: enchemo-la com água por um orifício, que foi, em seguida, tapado
com chumbo derretido, de modo a ficar bem vedada; depois achatamo-la, com
um martelo, em dois lados opostos. Com tal achatamento, necessariamente a
água ocupava menor espaço, posto que a esfera e a figura eram de maior
capacidade. Ficando já o martelo ineficaz, em vista da resistência da água,
colocamo-la em uma prensa, apertando-a até o momento em que, não
suportando mais a pressão, a água começou a destilar-se das paredes sólidas do
chumbo, como delicada exsudação. Finalmente, calculamos o espaço perdido
pela compressão e concluímos que a água se havia comprimido outro tanto,
suportando uma pressão bastante violenta.
Os corpos mais sólidos, secos e compactos, como a pedra, a madeira e metais,
suportam uma compressão muito menor e quase imperceptível, mas livram-se
da violência a que são submetidos partindo-se, alongando-se ou com outros
movimentos, como se observa no arqueamento da madeira e do metal, nos
relógios que se movem por uma mola, nos projéteis, no martelamento de metais
e em muitos outros movimentos. E tudo isso deve ser investigado e anotado no
estudo da natureza, seja por cálculo direto, seja por estimativa ou por
comparação, conforme o caso.
XLVI
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo segundo lugar as
instâncias de currículo,
237
a que também costumamos chamar de instâncias da
água,
238
tomando o nome das clepsidras, usadas pelos antigos, em que punham
água em lugar de areia. Elas medem a natureza conforme os instantes do tempo,
como fazem as instâncias da vara em relação às distâncias do espaço. Com
efeito, todo movimento ou ação natural ocorre no tempo; é mais rápido ou mais
lerdo que outro, mas sempre conforme durações fixas, notadas na natureza.
Mesmo as ações súbitas à primeira vista têm causado maior ou menor duração
temporal.
Em primeiro lugar, vemos que as revoluções dos corpos celestes ocorrem
segundo períodos fixos; assim também o fluxo e refluxo do mar. A queda dos
corpos pesados no sentido da terra e a subida dos corpos leves para o céu
cumprem-se em tempos determinados, conforme a natureza do corpo e o meio
em que se movem. Da mesma forma, os velejos dos navios, o movimento dos
animais, o arremesso dos projéteis ocorrem em tempos calculáveis no seu
conjunto. Em relação ao calor, no inverno as crianças “lavam” as mãos nas
chamas sem se queimarem, e os malabaristas, com movimentos ágeis e
uniformes, colocam com a boca para baixo e para cima copos cheios de vinho
ou água, sem derramar; e há muitas outras coisas semelhantes. Ainda mais, a
expansão, a compressão e a erupção dos corpos ocorrem mais ou menos
velozmente, segundo a natureza do corpo e do movimento, mas sempre em
instantes determinados. Sabe-se que o ribombar dos canhões, que pode ser
ouvido até a trinta milhas, é ouvido primeiro pelos que se acham perto e depois
pelos que se acham distantes do local do disparo. E até a vista, cuja ação é
rapidíssima, também exige instantes certos para sua atuação; como está provado
pelo fato de que a uma certa velocidade os corpos não são mais distinguidos,
como é o caso da bola disparada por um mosquete que passa ante a vista em um
tempo menor que o exigido para a imagem impressionar a vista.
Esse exemplo e outros semelhantes fizeram surgir uma dúvida verdadeiramente
espantosa, ou seja, a de que o aspecto do céu estrelado e sereno é visto no
momento mesmo em que existe ou um pouco depois; e também, se existem, na
contemplação dos corpos celestes, um tempo real e um tempo aparente, um
espaço real e um espaço aparente, tal como é indicado pelos astrônomos nas
paralaxes. Pois pareceria, de fato, inacreditável que as imagens dos corpos
celestes pudessem atravessar, com seus raios, em um instante, espaços celestes
tão vastos sem o emprego de qualquer tempo. Mas essa dúvida relacionada com
um intervalo de tempo entre o tempo verdadeiro e o tempo aparente desvanece-
se completamente quando se leva em conta a imensa perda de grandeza que
devem ter as estrelas na sua imagem aparente, em razão da distância e também
pelo fato de os corpos esbranquiçados, aqui na terra, poderem ser percebidos
imediatamente, mesmo a uma distância de sessenta milhas. Não pode haver
vida de que a luz dos corpos celestes ultrapassa em muito, em força de
radiação, a cor viva da brancura, como também a luz de qualquer chama
conhecida. Além disso, a imensa velocidade dos corpos celestes, que não é
percebida em seu movimento diurno, o que chegou ao ponto de espantar mesmo
os varões graves, levando-os a sustentar que o movimento da terra torna mais
crível esse movimento de emissão dos raios deles saídos (embora com
extraordinária rapidez, como foi dito). Finalmente, tomamos por confirmada
definitivamente a falsidade de se admitir um intervalo entre um tempo
verdadeiro e um tempo aparente, pelo fato de que, nesse caso, uma nuvem ou
outra perturbação atmosférica qualquer confundiriam com muita freqüência as
imagens. E é o que tínhamos a dizer a respeito das medidas simples de tempo.
Mas é necessário investigar, além das medidas simples dos movimentos e das
ações e muito mais, a medida comparativa, que é muito usada e que se relaciona
com muitas coisas. Com efeito, a chama que segue à detonação de uma peça de
artilharia é vista antes da audição do disparo, mesmo andando a bala mais
rapidamente que a chama, e isso porque o movimento da luz é mais rápido que
o do som. Sabemos igualmente que as imagens são recebidas pela vista muito
mais rapidamente do que se desvanecem. E por isso também que as cordas de
um instrumento, quando vibrados pelo dedo, parecem duplas ou triplas, porque
se recebe uma nova imagem antes da perda da anterior; um mal em rotação
parece uma esfera, e uma tocha movida rapidamente, à noite, parece possuir
uma cauda de fogo. Dessa desigualdade fundamental da velocidade dos
movimentos extrai Galileu a causa do fluxo e do refluxo do mar. Sendo a terra
de rotação mais veloz que a água, deve surgir, segundo ele, a acumulação e a
elevação das águas, e vice-versa, em sua descida, como acontece com um
recipiente de água fortemente agitado.
239
Mas tal opinião se fundamenta em uma
hipótese arbitrária,
240
isto é, que a terra se move, isso sem ter bem observado o
movimento regular de cada seis horas do oceano.
Mas para se dispor de um exemplo de misturas comparativas dos movimentos
(assunto de que tratamos) e de seu notável uso (do qual falamos há pouco),
tomemos as minas subterrâneas, que com uma mínima quantidade de pólvora
são capazes de lançar para o ar imensas massas de terra, edifícios e muralhas de
toda espécie. A causa de tal fenômeno é certamente o fato de que o movimento
de expansão da pólvora é muito mais rápido que o movimento da gravidade, que
pode oferecer alguma resistência. Dessa forma, o movimento de expansão
chegou ao fim antes de começar o movimento contrário, e por isso desde seu
início o movimento de expansão não encontra qualquer resistência, se assim se
pode dizer. Por igual razão, no lançamento de um projétil, mais vale um golpe
súbito e violento que um forte. Pela mesma razão, uma pequena quantidade de
espírito animal não poderia animar e mover o corpo dos animais, especialmente
dos avantajados de corpo, como a baleia e o elefante, se o espírito não fosse
dotado de uma espantosa velocidade, para poder percorrer toda a massa
compacta do corpo, sem encontrar qualquer resistência.
Ademais, há um princípio, que constitui um dos fundamentos dos experimentos
mágicos (de que trataremos logo depois), que é o seguinte: uma pequena
quantidade de matéria supera e reduz à sua ordem um corpo de massa muito
maior apenas quando, assim o cremos, se pode fazer com que um movimento,
pela sua velocidade, se antecipe ao surgimento de outro movimento.
Por último, em toda ação natural deve-se ter em conta a distinção entre o antes e
o depois; veja-se, por exemplo, que, em uma infusão de ruibarbo, primeiro se
consegue uma ação purgante e depois uma ação adstringente; algo de
semelhante notamos em uma infusão de violetas em vinagre, onde primeiro se
percebe o perfume suave e delicado da flor e depois a parte mais terrosa e
agreste da flor, que abafa o perfume. Pela mesma razão, se se submergem
violetas em vinagre por todo um dia, percebe-se o aroma com muito menos
intensidade que se forem submergidas por apenas um quarto de hora, e como o
espírito aromático dessa planta é diminuto, se são colocadas violetas frescas, em
cada quarto de hora, até seis vezes, dessa forma finalmente, é enriquecida a
infusão de tal maneira que, ainda não tendo as violetas frescas permanecido no
vinagre mais que uma hora e meia, ele adquire um aroma raro, em nada inferior
à violeta, por todo um ano. Mas deve ser lembrado que o aroma só alcançará
toda a sua intensidade depois de um mês de infusão. Nas destilações de aromas
postos a macerar no espírito do vinho, ao contrário, em primeiro lugar surge um
humor denso, aquoso e sem valor; e depois, a água mais impregnada do espírito
do vinho, finalmente a água mais impregnada de aroma. Há sempre nas
destilações muitas coisas, como essas, dignas de nota. Mas bastam essas como
exemplo.
XLVII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo terceiro lugar as
instâncias de quantidade,
241
a que costumamos também chamar de dose da
natureza,
242
tomando o termo da medicina. São aquelas que medem as virtudes
e, pelas quantidades dos corpos, indicam quanto intervém a quantidade do corpo
sobre o modo dessas virtudes. Em primeiro lugar, há virtudes que só subsistem
em uma quantidade cósmica, isto é, uma quantidade tal que tenha um consenso
com a configuração e a estrutura do universo. Desse modo, a terra está firme,
mas suas partes caem. As águas marinhas sofrem fluxos e refluxos; o que não
acontece com os rios, a não ser em sua embocadura, por penetração do mar. Em
segundo lugar, quase todas as virtudes particulares agem segundo a maior ou
menor quantidade do corpo. As grandes extensões de água não se corrompem
facilmente como as poças que logo apodrecem. O mosto e a cerveja fermentam
e tornam-se potáveis com mais facilidade em pequenos recipientes que em
grandes tonéis. Se se coloca uma erva em grande quantidade em um
líquido, obtém-se uma infusão e não uma impregnação; se se coloca uma
pequena quantidade, obtém-se uma impregnação e não uma infusão. Também
no corpo humano, uma coisa é um banho e outra, uma simples aspersão. Do
mesmo modo, o orvalho espargido pelo ar não chega a cair e acaba se
incorporando no ar. E, soprando-se sobre uma pedra preciosa, pode observar-se
a ligeira umidade dissolver-se imediatamente, como uma pequena nuvem já
citada, dissipada pelo vento. Igualmente, um pedaço de magneto não atrai tanto
ferro quanto um magneto inteiro. De outro lado, há virtudes que agem melhor
na pequena quantidade que na grande; o estilete agudo fura e penetra mais
facilmente que o obtuso, um diamante pontiagudo corta o vidro; e assim por
diante.
De fato, não nos devemos deter em coisas genéricas, pois é necessário que se
faça uma investigação a respeito da efetiva relação da quantidade do corpo com
o modo da virtude. Poder-se-ia crer que seriam proporcionais; assim, uma bola
de chumbo de duas onças deveria cair com o dobro da velocidade de uma bola
de uma onça, o que é absolutamente errado.
243
Dessa forma, as relações são
muito diversas e segundo os gêneros da virtude e, por isso, tais medidas devem
ser determinadas nas próprias coisas, e não segundo verossimilhanças e
conjeturas.
Enfim, em toda investigação da natureza deve ser observada a quantidade do
corpo (a sua dose) que é exigida para um determinado efeito, e toda cautela
deve ser empregada em relação ao muito e ao pouco.
XLVIII
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo quarto lugar as
instâncias de luta,
244
a que também costumamos chamar de instâncias de
predomínio.
245
Indicam-nos o predomínio ou a inferioridade entre as virtudes,
ou seja, qual entre elas é mais forte e prevalece, e qual é mais fraca e sucumbe.
Os movimentos e os esforços dos corpos, tanto quanto os próprios corpos,
também se compõem e decompõem-se e complicam-se. Em primeiro lugar,
enumeraremos e definiremos as principais espécies de movimentos e de virtudes
ativos, para tornar mais clara a comparação do seu poder e, com isso, a
descrição das instâncias de luta e de predomínio.
O primeiro é o movimento de resistência
246
da matéria, existente em toda
parte, em que a matéria não quer ser inteiramente anulada, de tal modo que não
há incêndio, pressão, qualquer espécie de violência, nem passagem ou duração
de tempo que possam reduzir qualquer coisa a nada; por menor que seja a parte
da matéria, nada há que a impeça de ser algo, de ocupar algum lugar; e qualquer
que seja a dificuldade em que se encontre, acabará se libertando, ou mudando
de forma ou de lugar, ou permanecendo como é ou está, não havendo outra
possibilidade; mas nunca chegando a não ser nada ou não estar em parte
alguma. A Escola (que na maior parte dos casos, designa e define as coisas
pelos seus efeitos ou desvios e não pelas suas causas íntimas), para esse
movimento, recorre ao axioma de que “dois corpos não podem estar no mesmo
lugar”, ou designa esse movimento como “a impenetrabilidade das dimensões”.
Não encontramos exemplo adequado para esse movimento; mas é inerente a
todo corpo.
O segundo movimento é o que chamamos de conexão, pelo qual os corpos não
suportam ser desagregados, e aspiram a permanecer reunidos e em contato
direto. É o movimento que a Escola designa como “horror ao vazio” e graças ao
qual a água é atraída por sucção ou por bombas e a carne por ventosas. Em
virtude de tal movimento, a água contida em um vaso furado no fundo nele
permanece até que faça entrar ar por uma abertura superior, e inúmeras coisas
do mesmo gênero.
O terceiro movimento é o que chamamos de liberdade, pelo qual os corpos se
esforçam por se libertar da pressão ou tensão que não seja natural e retornar à
dimensão que lhes convém na natureza. Há, também deste movimento,
inumeráveis exemplos: a água se livra de uma pressão, escorrendo; o ar, pelo
vôo; a água, formando ondas; o ar, ondulando no soprar do vento; a mola dos
relógios, esticando-se. Exemplo interessante do ar comprimido nos oferecem os
pequenos canhões que as crianças fazem para brinquedos. Tomam um pedaço
de álamo ou madeira semelhante, fazem um furo no sentido do comprimento e,
em cada extremidade, colocam à força um tampo de raiz polposa; em seguida,
com a ajuda de um êmbolo, empurram uma das tampas em direção à outra; a
uma certa altura, antes de ser tocada, a que permanece na extremidade oposta
volta-se, fazendo ruído. Em relação ao modo de se livrar da tensão, considere-se
o que acontece com o ar que permanece no ovo de vidro, depois de forte sucção;
considerem-se também as cordas, o couro, o pano e outros tecidos, que voltam
ao estado inicial se a tensão não for muito longa, etc. A Escola indica esse
movimento como produzido pela forma do elemento; e isso de forma muito
imprópria, pois esse movimento não se relaciona unicamente ao ar, à água, à
chama, mas é comum a todos os corpos, seja qual for a sua consistência, tal
como a madeira, o ferro, o chumbo, o pano, a membrana, etc., nos quais cada
corpo apresenta o seu limite particular de dimensão, além do qual vão muito
pouco. Mas, como o movimento de liberdade é muito freqüente, e sendo de
infinitos usos, é oportuno distingui-lo perfeitamente dos demais. Pois há quem o
confunda, lamentavelmente, com os movimentos antes descritos de resistência e
conexão; ou seja, o de evasão da pressão com o movimento de resistência e o de
evasão de tensão com o movimento de correção; como se os corpos
comprimidos cedessem ou se esticassem para que não se produzisse penetração
de dimensões, e os corpos distendidos se encolhessem para evitar o vazio. Mas
se o ar comprimido tivesse que se contrair até a densidade da água, ou a madeira
até a densidade da pedra, não seria necessária a penetração de dimensões;
contudo, a compressão nesses corpos chegaria a ser muito maior que a que
suportam, por qualquer meio, tais como são. Igualmente, se a água pudesse
dilatar-se até chegar ao estado de rarefação que tem o ar, ou a pedra até o da
madeira, não haveria necessidade do vazio; e, nesse caso, a extensão que neles
teria lugar seria muito maior que a que alcançam, por quaisquer meios, tais
como são. Dessa forma, não se chega à questão da penetração de dimensões ou
à do vazio, a não ser nos limites de condensação e rarefação; contudo, tais
movimentos se encontram muito mais aquém desses limites e nada mais
representam que desejos dos corpos de se conservarem em sua consistência ou,
diriam os escolásticos, em suas formas, e dessa maneira não se separarem
subitamente delas e sem que sejam alterados com modos suaves e com seu
consentimento. Contudo, muito mais necessário, pelas conseqüências em que
importa, é advertir os homens de que o movimento violento (por nós chamado
mecânico, e por Demócrito, que a respeito de movimentos, deve ser ainda colo-
cado entre os filósofos medíocres, de movimento de golpe) outro não é que o
movimento de liberdade, ou seja, o movimento da compressão à distensão. Na
verdade, a nem toda ação ou desvio no ar corresponde uma mudança de lugar,
se as partes do corpo não forem forçadas e comprimidas um pouco além do
suportável por sua natureza. Então, as partes, comunicando reciprocamente o
impulso, provocam o movimento, não apenas linear do corpo, mas também ao
mesmo tempo o rotatório, procurando, dessa forma, libertar as partes da
pressão, ou melhor suportá-la, pela sua melhor distribuição. É o suficiente para
esse movimento.
O quarto movimento é o que demos o nome de movimento de matéria,
247
que,
de certo modo, é o oposto ao de liberdade, de que falamos. Pelo movimento de
liberdade, os corpos tendem com todas as suas forças a retomar a sua
consistência original, evitando, fugindo, mostrando repugnância para com
qualquer nova dimensão ou nova esfera, ou nova expansão, ou contração
(significando todas essas palavras a mesma coisa). Pelo movimento de matéria,
ao contrário, os corpos tendem a passar a uma nova esfera ou dimensão, e o
fazem de maneira voluntária e facilmente, e às vezes até com ímpeto furioso,
como acontece com a pólvora. Instrumentos desse movimento certamente não
os únicos, mas os mais potentes, ou pelo menos os mais freqüentes, são o
quente, o frio. Por exemplo, o ar, dilatado por qualquer tensão ou aspiração
(como nos ovos de vidro), tem uma notável tendência a retomar o anterior
estado de densidade. Aquecido, tende, ao contrário, a dilatar-se e aspira a passar
para uma nova esfera e a ela passa com facilidade, como para uma nova forma
(como se diz), e depois de alcançar certo grau de dilatação não se preocupa com
o retorno, a não ser quando convidado pelo frio; não se trata porém, de retorno,
mas de uma nova transformação. Da mesma maneira, a água comprimida resiste
e tende a retomar a dimensão anterior, procurando dilatar-se; mas sob a ação do
frio interno e continuo transforma-se em gelo espontaneamente e
voluntariamente se condensa; se prosseguir o frio intenso, sem qualquer
intromissão de calor (como acontece nas cavernas profundas), transforma-
se em cristal, não voltando ao estado anterior.
O quinto movimento é o da continuidade, que corresponde, não à simples e
fundamental continuidade entre um corpo e outro (nesse caso, trata-se de
movimento de conexão), mas a continuidade interna de um corpo dado. Com
efeito, é coisa certa que todos os corpos se desgostam com toda solução de
continuidade; alguns mais, outros menos, mas de qualquer forma todos. Nos
corpos duros (como o aço, o vidro, etc.) a reação à interrupção dos seus corpos é
mais forte; e, mesmo, no líquido onde essa resistência parece cessar ou ser
muito fraca, ela não deixa de existir, ainda que em ínfimo grau; fato contado,
que é demonstrado por inúmeros experimentos, basta considerarem-se as bolas,
a esfericidade das gotas e os fios delgados que caem das goteiras, a consistência
dos corpos gelatinosos e outros semelhantes. Mas tal tendência é mais evidente
sobretudo quando se procura introduzir a descontinuidade em um corpo já
reduzido a partes extremamente pequenas. E o que acontece nos morteiros,
depois de um certo grau de trituração, e nos pilões; também a água não penetra
nas frinchas muito pequenas; o próprio ar, apesar da sutilidade de sua natureza,
não penetra os poros de um vaso um pouco mais sólido, a não ser depois de
muito tempo.
O sexto movimento é o que chamamos de movimento para lucro ou de
indigência. Por seu intermédio, os corpos, quando colocados no meio de outros
de natureza diversa ou até mesmo hostil, encontram o meio de se afastarem e de
se reunirem a outros mais afins (mesmo que essa afinidade não seja grande) e a
estes se juntam imediatamente e os antepõem como preferíveis; dai o lucro
indicado no nome do movimento, lucro esse buscado como uma necessidade
dos corpos. Por exemplo, o ouro ou qualquer outro metal não gosta de ser
envolvido ou cercado pelo ar, quando na forma de lâminas; por isso, quando
encontra um corpo duro e denso (um dedo, um pedaço de papel ou algum
outro), a ele adere subitamente, não se separando facilmente. Mesmo o papel, o
pano e todo corpo análogo não se adaptam bem ao ar que os penetra e se insinua
pelos seus poros; por isso, absorvem com facilidade a água ou outro liquido,
com o fito de se distanciarem do ar. O açúcar ou uma esponja submergida em
água ou em vinho, mas com uma parte de fora, atraem gradualmente a água ou
o vinho, embebendo-se completamente.
Daí deduzimos a excelente norma para abertura e dissolução dos corpos. Pois,
deixando-se à parte os corrosivos e as águas-fortes, que abrem a estrada pela
força, se se encontra um corpo proporcionado com algum sólido e com mais
afinidade e amizade que o com que está misturado por necessidade, aquele se
abre, relaxa-se, recebe o primeiro corpo e exclui e afasta o outro. Esse
movimento de ganho não opera unicamente por contato direto; pois a força
elétrica (sobre a qual Gilbert e seus seguidores tanto fantasiaram) não passa de
uma tendência provocada por ligeira fricção, pela qual um corpo, não
suportando mais o ar circundante, prefere outro corpo tangível que esteja ao seu
alcance.
O sétimo movimento é o que chamamos de movimento de congregação maior,
graças à qual os corpos se movem no sentido das massas de seus congêneres,
sendo os mais pesados para o centro da terra e os mais leves para o céu. Os
Escolásticos, de maneira superficial, indicaram-no como “movimento natural”,
por não terem encontrado nada de externo e visível que pudesse provocá-lo, e o
consideravam inato e inerente às próprias coisas, talvez pelo fato de ser
perpétuo, o que não seria de se espantar. Com efeito, o céu e a terra estão
sempre presentes enquanto que as causas e as origens da maior parte dos outros
movimentos algumas vezes estão presentes e outras estão ausentes. Por isso,
porque não cessa nunca e os outros cessam, os Escolásticos o consideravam
como o único movimento próprio e perpétuo e os outros como movimentos
exteriores e acidentais. Mas, na verdade, trata-se de um movimento débil e
pouco ativo, e, não sendo o caso de corpos de grande volume, cede e se submete
aos outros movimentos enquanto eles se desenvolvem. Apesar de os homens se
terem ocupado desse movimento a ponto de deixarem de lado os outros, pouco
conhecem a seu respeito, incorrendo em muitos erros a seu respeito.
O oitavo movimento é o que chamamos de congregação menor, que faz com
que, em todos os corpos, as partes homogêneas se separem das heterogêneas,
juntando-se umas às outras; por ele, os corpos inteiros se enlaçam e conjugam-
se, conforme a sua substância e às vezes atraem-se de uma certa distância,
aproximando-se uns dos outros. O leite, colocado em repouso, faz subir o
creme, depois de certo tempo a borra e o tártaro precipitam-se no vinho. Tais
efeitos não são só produzidos pela gravidade ou pela leveza (graças às quais
alguns corpos vão para baixo e outros para o alto), mas sobretudo pelo desejo
dos corpos homogêneos de se unirem e associarem-se. Esse movimento difere
do movimento de indigência de duas maneiras: em primeiro lugar, porque
naquele movimento a tendência do corpo é fugir de qualquer natureza maligna e
inimiga, enquanto que, no que nos ocupa (quando não há obstáculos ou
vínculos), as partes se unem por amizade, sem uma natureza estranha para
provocar o combate; em segundo lugar, porque a conjunção aqui é mais estreita,
cumprindo-se com maior eleição. No primeiro caso, corpos embora não muito
afins compõem-se para fugirem de um corpo hostil; enquanto que no caso
presente as substâncias se unem levadas por uma estreitíssima semelhança e
constituem praticamente um todo. Esse movimento é encontrado em quase
todos os corpos compostos, mas não se mostra facilmente, porque os corpos
estão ligados e tomados por outras tendências e por vínculos que perturbam a
união.
Particularmente três causas podem embaraçar esse movimento: o torpor dos
corpos, o freio do corpo predominante e o movimento externo. Quanto à
primeira causa, é sabido que os corpos tangíveis têm uma preguiça, maior ou
menor, e uma aversão à mudança de lugar; assim é que só se movem se
impelidos, caso contrário preferem continuar como estão, mesmo que seja para
mudar para melhor. Podem ser sacudidos desse torpor por uma tríplice ajuda:
pelo calor, pela atração de qualquer corpo semelhante ou por um impulso enér-
gico e vigoroso. O calor é comumente definido como “o que separa os
heterogêneos e une os homogêneos”; mas tal definição dos peripatéticos é, com
razão, ridicularizada por Gilbert, que a declara semelhante à de alguém que
procurasse definir o homem “aquele que semeia o trigo e planta os vinhos”, que
é uma definição pelos efeitos e pelos particulares. Mas a definição é mais errada
no fato de que os efeitos, quaisquer que sejam, não derivam da natureza do
calor, mas por acidente, ou seja, dos desejos das partes homogêneas de se uni-
rem; enquanto que o calor nada mais faz que ajudar o corpo a sacudir o torpor
que antes oferecia resistência ao desejo. O mesmo acontece com o frio, como
mais adiante exporemos. A ajuda que pode oferecer a virtude de um corpo afim
manifesta-se de maneira admirável no magneto armado, que produz no ferro a
virtude de atrair o ferro por semelhança de substância, depois de sacudido o
torpor do ferro. A ajuda proveniente do movimento se observa nas flechas de
madeira, com ponta de madeira, que penetram melhor certas madeiras do que se
tivessem ponta de ferro, o que acontece em vista da semelhança de substância,
depois de sacudido o torpor da madeira, pelo movimento veloz das flechas. Já
foi feita menção desses experimentos no aforismo das instâncias clandestinas.
A dificultação do movimento de congregação menor, que advém do corpo
predominante, observa-se na decomposição do sangue e da urina pelo frio. Pois
enquanto esses corpos estiverem cheios de espírito ativo que os governa e
mantém coesas suas partes, essas mesmas partes não se associam por coerção.
Mas tão logo se tenha aquele espírito evaporado ou tenha sido abafado pelo frio,
então as partes liberadas do freio se associam, seguindo o seu desejo natural.
Assim, acontece que todos os corpos que contêm um espírito acre (como os sais
e coisas semelhantes) perduram sem se dissolverem, em razão do freio
permanente e durável representado pelo espírito dominante e imperioso.
A dificultação do movimento de congregação menor que ocorre por causa do
movimento externo observa-se sobretudo nos corpos nos quais a agitação
impede que apodreçam. De fato, toda putrefação baseia-se na agregação dos
homogêneos, pela qual pouco a pouco ocorre a corrupção da primeira forma a
produção da nova (conforme a linguagem comum). Por isso, a putrefação que
abre caminho à produção de uma nova forma é precedida da dissolução da
forma anterior, ou seja, da reunião das partes homogêneas. Não havendo
qualquer obstáculo ocorre apenas a dissolução da forma anterior; mas, havendo
qualquer coisa que se oponha, advém a putrefação, que é a origem de nova
geração. Se, depois, acontecer uma forte agitação proveniente de um
movimento externo (que é o nosso assunto), então o movimento de agregação é
perturbado e cessa (pois se trata de um movimento leve e delicado que exige a
quietude externa), como se pode observar através de inúmeros exemplos. Por
exemplo, a contínua e cotidiana agitação e a correnteza da água impedem a sua
putrefação; os ventos impedem a concentração de substâncias pestilentas no ar,
do mesmo modo os grãos, quando revolvidos nos celeiros, melhor se
conservam, enfim, todas as coisas, quando agitadas do exterior, não se
putrefazem interiormente com facilidade.
Também não pode ser omitida a união das partes dos corpos que constitui a
principal causa do seu endurecimento e dissecação. Pois, quando o espírito, ou a
parte úmida transformada em espírito, é evaporada de um corpo poroso (como a
madeira, o osso, membranas e outras semelhantes). as partes mais grossas se
contraem e encolhem-se mais fortemente; em seguida, advém o endurecimento
e a dessecação, efeitos provocados, segundo entendemos, não por um
movimento de conexão que tende a evitar o vazio, mas por este movimento de
amizade e de união.
A união a distância é pouco freqüente e rara, mas, de qualquer maneira, é mais
freqüente do que comumente se observa. Como exemplo, veja-se a bolha que
rompe a outra; as medicinas que pela semelhança de substâncias extraem os
humores; quando em diversos instrumentos uma corda move-se com outra; e
outros semelhantes. Somos levados a crer que esse movimento também é
encontrado no espírito dos animais, mas permanecendo completamente
incógnito. E encontra-se, com certeza, no magneto e no ferro magnetizado. E, já
que estamos falando de movimento magnético, é necessário distinguirem-se
quatro espécies de virtudes ou operações que devem ser distinguidas, embora os
homens, levados pela admiração e pela estupidez, confundam-nas. A primeira
em virtude de atuação do magneto, pelo magneto, ou do ferro pelo magneto, ou
do ferro pelo ferro magnetizado. A segunda é a sua propriedade de dirigir-se
para o norte e para o sul, e também a sua inclinação. A terceira é a virtude
magnética de atravessar o ouro, a pedra e qualquer corpo. A quarta é a virtude
de magnetizar o ferro e o ferro outro ferro, sem comunicação de substância.
Mas aqui só nos ocupamos da primeira dessas virtudes, ou seja, de atração.
Igualmente notável é o movimento de atração existente entre o mercúrio e o
ouro, e de tal modo forte que o ouro atrai o mercúrio, mesmo estando na forma
de ungüento; e os operários que trabalham entre vapores de mercúrio costumam
ter na boca um pedaço de ouro, para recolher as suas exalações, que de outra
forma penetrariam nos ossos e no crânio. E o pedaço de ouro em pouco tempo
se torna branco. É o suficiente para o movimento de congregação menor.
O nono movimento é o magnético, do mesmo gênero que o de congregação
menor, mas que age a grande distância e sobre grandes massas, e merece uma
investigação particular, especialmente se não começa com o contato, como
muitos outros movimentos, nem leva ao contato, como todos os movimentos de
congregação, mas eleva e infla os corpos, não indo além. Pois se a lua eleva as
águas ou faz com que os corpos úmidos inchem, ou o céu estrelado atrai os
astros para o apogeu; ou o sol submete os astros Vênus e Mercúrio para que
dele não se afastem além de uma determinada distancia; em vista disso, não se
pode classificá-los corretamente como movimento de congregação maior ou
menor, de vez que se trata de movimentos de congregação intermediários e
imperfeitos, que formam uma espécie à parte.
O décimo movimento é o de fuga, contrário ao de congregação menor. Por ele
os corpos se distanciam entre si por antipatia e mantêm-se separados de seus
inimigos, recusando misturar-se com eles. É verdade que em certos casos pode
parecer um movimento por acidente ou em conseqüência do movimento de
congregação menor, porque também aqui as partes homogêneas só se conjugam
depois de terem excluído e afastado as heterogêneas. Mas isso deve ser conside-
rado em si mesmo e deve formar uma espécie distinta, pois em inúmeros casos a
tendência para fuga supera a tendência para a união.
Esse movimento se manifesta especialmente nos excrementos dos animais e em
qualquer objeto repugnante aos sentidos, em particular ao olfato e ao gosto, O
olfato recusa tão decididamente qualquer tipo de fedor que por consenso
provoca um movimento de repulsão na boca do estômago; o paladar e a
garganta recusam tanto qualquer alimento amargo e áspero de sabor que
provocam por consenso um tremor de toda a cabeça. Mas ainda em outras
coisas é possível encontrar-se esse movimento. São observados em alguma
antiperístase, como, por exemplo, na região média do ar, onde o frio parece
efeito da expulsão da natureza do frio, da zona limítrofe com os corpos celestes,
como os grandes calores, e as massas de lava candente que se encontram nas
regiões subterrâneas, que parecem ser resultado das expulsões da natureza do
quente, das entranhas da terra. O calor e o frio em pequenas quantidades se
destroem mutuamente, mas, em grandes quantidades e, como exércitos
regulares, ao final da refrega, ou se expulsam ou deslocam um ao outro. Fala-se
que a canela e outras substâncias aromáticas, colocadas nas latrinas e nos
lugares fedorentos, conservam mais os seus aromas, pois estes se recusam a sair
para não se misturarem com o fedor circundante. E certo que o mercúrio, que de
outra forma, se uniria em um corpo compacto, e impedido pela gordura de
porco, pela terebentina e outras substâncias semelhantes, isso devido à falta de
consenso que guarda em relação a esses corpos, dos quais procura se afastar
quando é por eles envolvido; de sorte que a tendência para a fuga dos corpos
interpostos é mais forte que a tendência para a união de todas as partes em um
todo homogêneo. E é a esse fenômeno que chamam de mortificação do
mercúrio. Da mesma maneira, o fato de o óleo não se unir à água não depende
do peso específico diverso das duas substâncias, mas do seu precário consenso;
o que é provado pelo fato de que o espírito do vinho, mais leve que o óleo, une-
se perfeitamente à água. Mas o movimento de fuga manifesta-se, sobretudo, no
nitrato e em outros corpos crus, inimigos das chamas, como a pólvora, o
mercúrio e o ouro. Mas a fuga do ferro, do outro pólo do magneto, não é, como
muito bem lembra Gilbert, um movimento de fuga propriamente dito, mas
conformidade e tendência a ocupar um lugar mais conveniente.
O décimo primeiro movimento é o movimento de assimilação ou de
multiplicação de si mesmo ou ainda de geração simples. Deve-se entender por
geração simples não a dos corpos inteiros que ocorre nas plantas e nos animais,
mas aquela dos corpos similares. Por meio desse movimento, os corpos
similares convertem em sua própria substância e natureza outros corpos afins,
ou pelo menos bem dispostos e preparados. É o caso da chama, que se
multiplica alimentando-se de exalações de matérias oleosas e engendra nova
chama; do ar, que se multiplica pela água e pelos vapores aquosos e engendra
novo ar; do espírito vegetal e animal, que, se alimentando das partes mais
tênues, tanto aquosas quanto oleosas, engendra novo espírito; das partes sólidas,
das plantas e dos animais, folhas, flores, carne, osso, etc., que assimilam o suco
nutritivo e engendram substância reparadora continuamente. E ninguém tomaria
o lugar de Paracelso em suas fantasias, pois, obcecado com suas destilações,
pretendia que a nutrição só se realizava por separação e que no pão ou em
qualquer outro alimento encontram-se olhos, varizes, cérebros, fígados, e no
humus da terra, raízes, folhas e flores. Tal como o escultor tira de uma massa
tosca de pedra ou de madeira, por eliminação e reparação do supérfluo, folhas,
flores, olhos, varizes, mãos, pés, etc.; da mesma maneira, afirma Paracelso, o
artífice interno (o que chama de Arqueu) extrai, por separação e eliminação dos
alimentos, cada um dos membros e partes. Mas, deixando de lado tais
futilidades, acreditamos como certo que as diversas partes, tanto as orgânicas
como as similares, tanto nos vegetais quanto nos animais, primeiramente atraem
os sucos dos alimentos, escolhem os que são quase comuns a todos ou os que
não são muito diversos, depois os assimilam convertendo-os na própria natu-
reza. E tal assimilação ou geração simples não ocorre somente nos corpos
animados, mas também nas coisas inanimadas, como se depreende do exemplo
da chama e do ar. Assim, o espírito morto,
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que se encontra em toda coisa
tangível e animada, faz com que as partes mais duras sejam digeridas e
transformadas em espírito, que logo depois se exala, daí resultando uma
diminuição e uma dissecação de peso, como já foi assinalado. Também não
pode ser desprezada a forma de assimilação que se costuma vulgarmente
distinguir da nutrição; como é o caso do barro que se endurece entre duas
pequenas pedras e transmuda-se essa matéria pétrea ou da crosta que se forma
entre os dentes e se transforma em substância quase tão dura quanto eles, etc.
Sustentamos a opinião de que em todos os corpos está latente a tendência à
assimilação tanto quanto a tendência a união dos homogêneos; mas, mesmo esta
tendência, como aquela, está vinculada, ainda que não da mesma maneira. E
necessário que se investigue, com todo cuidado, como isso ocorre e como é
possível remover o obstáculo, pois ajuda bastante ao revigoramento da velhi-
ce.
249
Por último, devemos observar que nos primeiros nove movimentos aqui
tratados os corpos procuram unicamente a conservação de sua natureza, no
décimo buscam a sua propagação.
O duodécimo é o movimento de excitação, que parece uma espécie de
assimilação e por isso às vezes assim também o chamamos. Pois, à semelhança
daquele, é capaz de se difundir, comunicar-se, transferir-se a outro e se
multiplicar. E, apesar de o modo de operar e de a substância sobre a qual opera
serem diversos, o efeito é o mesmo. Em relação ao modo de operar, de fato, a
assimilação procede com autoridade e quase com império, obriga o alimento
assimilado a transformar-se na substância que o assimilou; por seu turno, o
movimento de excitação composta quase com arte e com circunspecção,
furtivamente se insinuando, não obriga o alimento a transformar-se na
substância que o excitou, O movimento de assimilação multiplica e transforma
os corpos e as substâncias: por isso, a chama, o ar, o espírito, a carne,
aumentam, O movimento de excitação, de sua parte, multiplica unicamente a
virtude e transfere-a de um corpo a outro, com isso levando mais calor, mais
magnetismo, mais podridão. Esse movimento é especialmente constatado no
calor e no frio, de vez que o calor não se difunde no aquecimento em razão de
um calor precedente, mas somente pela excitação das partes do corpo até aquele
movimento que é a forma do calor, como se viu na primeira vindima da
natureza do calor. É por isso que o calor se propaga muito mais dificilmente e
mais tarde na pedra ou no metal que no ar, pela inaptidão e lentidão desses
corpos para com o movimento de excitação. Bem por isso, pode-se supor que
nas entranhas da terra encontram-se matérias sobremodo incapazes de receber o
calor, reduzidas certamente a tal grau de densidade que acabaram por perder o
espírito, no qual o movimento de excitação, pelo menos, tem início. Do mesmo
modo, o magneto dota o ferro de uma nova disposição das partes e infunde um
movimento conforme ao seu, e isso sem perder nada da sua virtude. Do mesmo
modo, o fermento do pão e o lêvedo da cerveja, o coalho do leite e alguns
venenos excitam e introduzem um movimento sucessivo e continuado na
farinha, na cerveja, no queijo e no corpo humano. E isso ocorre não tanto por
sua virtude excitante mas sobretudo pela predisposição e pelo abandono do
corpo excitado.
O movimento décimo terceiro é o da impressão, que também é uma espécie do
movimento de assimilação e é o mais tênue dos movimentos difusivos.
Constituímo-lo em uma espécie distinta em razão de uma notável diferença que
guarda em relação aos dois primeiros. O movimento de assimilação simples
transforma os corpos a tal ponto que, mesmo que se suprima o primeiro móvel,
a operação continua. Da mesma maneira que a primeira inflamação da chama,
ou a primeira conversão em ar, não tem qualquer efeito sobre a chama e sobre o
ar, que vão surgindo sucessivamente, o movimento de excitação continua,
mesmo depois da remoção do primeiro móvel, por um tempo considerável,
como um corpo aquecido, que assim permanece, mesmo depois de cessada a
causa do calor; como a virtude do ferro imantado, mesmo depois de eliminado o
magneto; e a da massa da farinha, afastado o fermento. Ao contrário, o
movimento de impressão é capaz de se difundir, de se transferir para outros
corpos, mas permanece sempre ligado ao primeiro móvel e, com o cessar deste,
também cessa. Por isso, deve produzir-se em um momento ou em um tempo
muito breve. Foi disso que retiramos a razão de designar os dois movimentos de
assimilação e de excitação por movimentos de geração de Júpiter, porque são
duráveis; e, ao último, de movimento de geração de Saturno, porque logo que
nasce é imediatamente devorado e absorvido. Esse movimento se torna
manifesto em três casos: nos raios de luz, nas percussões dos sons, no
magnetismo, pelo que se relaciona com a comunicação. De fato, removida a luz,
imediatamente cessam as cores e as suas outras imagens; cessada a primeira
percussão e a vibração do corpo que a produziu, imediatamente também cessa o
som. E embora os sons se propaguem mesmo no vento, como por ondas através
do espaço, é, contudo, necessário observar-se com mais cuidado o fato de que o
som não dura tanto quanto a sua repercussão. Quando se tange um sino, o som
parece prolongar-se pelo tempo da repercussão; mas é de todo falso que o som
se tenha prolongado durante todo aquele tempo, como pode ser notado pelo ar,
pois em seu ressoar o som não permanece idêntico em número, mas se renova.
O que pode ser facilmente verificado detendo-se o movimento do corpo
percutido. Pois se pararmos e determos as vibrações do sino, no mesmo instante
pára o som e não ressoa mais. O mesmo acontece com os instrumentos de corda,
se depois do primeiro acorde tocar-se a corda ou com o dedo, como na lira, ou
com o arco, como no violino: cessa imediatamente o som, O mesmo ocorre se
se afasta o magneto: o ferro cai. A lua, todavia, não pode ser separada do mar,
nem a terra de um corpo pesado, e, por isso, não se pode fazer com eles
qualquer experimento; mas o princípio permanece o mesmo.
O décimo quarto movimento é o de configuração ou de posição, graças ao qual
os corpos parecem buscar não uniões ou separações mas uma determinada
posição ou colocação e uma configuração particular, comum a outros. Esse
movimento é bastante abstruso, e tem sido mal estudado. Às vezes parece sem
causa, embora, no nosso entender, a causa exista. Assim, se se perguntasse a
razão pela qual o céu gira de oriente a ocidente e não do ocidente para o oriente;
ou por que gira ao redor dos pólos, que estão perto da Ursa Maior e não em
volta de Orion ou de alguma outra constelação, tais questões parecem mal
colocadas, por se referirem a fatos que devem ser investigados sobretudo pela
experiência, da mesma maneira que outros fatos positivos. Mas não se pode
negar a existência na natureza de fenômenos últimos e sem causa, mas não
parece que o que tratamos seja desse gênero. Entendemos que tais fatos
procedem de uma certa harmonia ou consenso universal, que ainda nos escapa à
observação. De fato, mesmo supondo o movimento da terra do ocidente para o
oriente como certo, permanecem intactas as mesmas questões. Se ela se move
em torno de certos pólos, por que esses pólos devem encontrar-se onde estão e
não em outro lugar? Também o movimento, a direção e a declinação do
magneto relacionam-se com o movimento de posição. Nos corpos naturais e nos
corpos artificiais, especialmente nos sólidos, não-fluidos, encontra-se uma certa
colocação harmônica de suas partes, e (por assim dizer) certos pêlos e fibras que
estão a exigir um estudo mais profundo, pois sem o seu conhecimento não é
possível de maneira eficaz manejar e controlar esses corpos. Mas a circulação
dos líquidos que, comprimidos, antes de se libertarem, elevam-se por igual para
melhor suportarem o peso da compressão, relacionamo-la ao movimento de
liberdade.
O décimo quinto movimento é o de transição, ou movimento conforme a
passagem, pelo qual as virtudes dos corpos são mais ou menos sofreadas ou
solicitadas pelo próprio meio em que agem, segundo a natureza dos corpos e das
virtudes operantes, e também do meio. Com efeito, é bem diferente o meio que
convém à luz, ao som, ao calor e ao frio, às virtudes magnéticas e outras em
relação às outras virtudes.
O décimo sexto movimento é o que chamamos de régio ou político, graças ao
qual, em um corpo, as partes predominantes e imperantes subjugam, domam,
dirigem e refreiam as demais, obrigam-nas a se unirem, a separarem-se, a
pararem, a moverem-se e colocarem-se não segundo o arbítrio de cada uma mas
segundo a ordem e o bem-estar da imperante. Assim é que há quase um governo
e um domínio exercido pela parte dominante sobre as que estão submetidas.
Esse movimento se manifesta sobretudo no espírito dos animais, movimento
que, enquanto dura, regula os movimentos das outras partes. E encontrado
também em outros corpos, mas em grau inferior; como no sangue e na urina,
que não se dissolvem antes que o espírito que neles se encontra e penetra não
tenha sido retirado ou sufocado. E não se trata de um movimento próprio apenas
dos espíritos, embora em muitos corpos o espírito domine pela sua celeridade e
penetração. Nos corpos mais densos, incapazes de um espírito ativo e móvel
(como o do mercúrio e o do vitríolo), dominam, por seu turno, as partes mais
espessas; de modo que se não se encontra um caminho para sacudir, por meio
de alguma arte, esse jugo servil, nada se pode esperar a respeito de qualquer
nova transformação desses corpos. Toda essa enumeração e classificação de
movimentos não tem outro fito que o de induzir a uma investigação mais exata
de suas forças predominantes, por meio da instância de luta. Mas não se pense
que nos tenhamos esquecido do nosso assunto, por não termos feito menção das
forças predominantes entre os próprios movimentos. Mas, ao falarmos deste
movimento régio, não tratamos do predomínio nos movimentos e nas virtudes,
mas da força predominante nas partes dos corpos. Esta última espécie de
predomínio é a que constitui o movimento particular de que falamos.
O décimo sétimo é o movimento espontâneo de rotação, graças ao qual os
corpos que são capazes de movimento e são oportunamente colocados no
espaço gozam de sua própria condição, tendendo para si mesmos e não para os
outros corpos, e procuram enlaçar-se. Assim, os corpos se comportam
diversamente, ou movem-se sem termo, ou estão em absoluto repouso, ou
tendem a um termo, onde, segundo a sua natureza, ou estão em repouso ou
começam a rodar. Os que estão bem situados movem-se em linha reta, que é a
mais curta, para se juntarem aos seus semelhantes. Nesse movimento de rotação
há nove diferenças, a saber: a primeira, em relação ao centro em torno do qual
esses corpos se movem; a segunda, em relação aos pólos que sustentam a
rotação; a terceira, em relação à circunferência, conforme a distância do centro;
a quarta, em relação ao grau de aceleração maior ou menor; a quinta, em relação
à direção do movimento, se de oriente para ocidente ou se de ocidente para
oriente; a sexta, em relação ao desvio do círculo perfeito, considerando a maior
ou menor distância do centro da aspiral; a sétima, em relação ao desvio do
círculo perfeito, considerando a maior ou menor distância dos pólos da espiral;
a oitava, em relação à maior ou menor distância das espirais entre si; a nona e
última, em relação ao desvio dos pólos, se são móveis; mas esta última não
entra propriamente na rotação se não ocorre ela própria circularmente. O
movimento de rotação, conforme a crendice comum e inventada, é atribuído
como próprio dos corpos celestes. Mas há a propósito uma grave controvérsia,
pois alguns autores antigos e modernos atribuíram a rotação à terra. Mais
razoável seria verificar (se o assunto não está fora de discussão) se esse
movimento, na hipótese de a terra estar em repouso, só ocorre nos céus, ou
também no ar, na água, por comunicação dos céus. Quanto ao movimento de
rotação nos projéteis, como nos dardos, nas flechas, nas balas dos mosquetes e
coisas semelhantes, faz parte inteiramente do movimento de liberdade.
O décimo oitavo movimento é o da trepidação, no qual (da maneira como é
entendido pelos astrônomos) depositamos muita fé. Mas se se estuda com
seriedade todos os aspectos dos apetites dos corpos naturais, este movimento é
encontrado por toda parte, daí merecer uma espécie distinta. Trata-se de um
movimento de eterna escravidão, que ocorre quando os corpos, não bem
situados, segundo a sua natureza, mas ainda não completamente deslocados,
trepidam sem cessar, irrequietos, não satisfeitos, mas sem ousar saírem de seu
estado. E o movimento que se observa no coração e no pulso dos animais e deve
existir em todos os corpos incertos, entre uma posição cômoda e incômoda.
Tentam libertar-se e são rechaçados, e, assim mesmo, prosseguem
perpetuamente em suas tentativas.
O décimo nono movimento é aquele que à primeira vista não parece digno desse
nome, mas trata-se de um autêntico movimento. A esse movimento é necessário
chamar de movimento de repouso ou de aversão ao movimento. Devido a esse
movimento a terra permanece imóvel com toda a sua mole, enquanto se movem
os seus extremos tendendo para o meio, não para um centro imaginário, mas
para manter-se unida. Pela mesma razão, os corpos mais densos têm aversão ao
movimento e todo o seu apetite se concentra no sentido de se não moverem; o
repouso é a sua natureza, natureza que conservam para opô-la a todo
movimento em sentido contrário. Mas, se são compelidos ao movimento,
tendem sempre à recuperação de quietude, como seu estado próprio, para dela
não mais saírem. E, em tal caso, esforçam-se muito rapidamente, mostrando-se
muito ágeis, como se estivessem irritados e impacientes por toda e qualquer
demora. Uma imagem de tal apetite só é possível parcialmente, de vez que
todos os corpos tangíveis da face da terra encontram-se sob o influxo e o calor
dos corpos celestes, não se encontram em seu mais alto grau de condensação e
todos acham-se mesclados com alguma dose de espírito.
Procuramos, assim, enumerar as espécies ou elementos simples dos
movimentos, os apetites e as virtudes ativas, que são mais comumente
encontrados na natureza, o que reputamos de grande importância para a ciência
natural. Não pretendemos negar, por outro lado, que podem ser acrescentadas
outras espécies, ou divisões, diferentes das aqui propostas, mais próximas das
ramificações das coisas, ou em menor número. Leve-se em conta que não
falamos de divisões abstratas, como as que dissessem que os corpos querem ou
a conservação, ou a exaltação, ou a propagação, ou o desfrute da própria nature-
za; ou que dissessem que o movimento das coisas tende à conservação e ao bem
do universo, como o de resistência ou de conexão, ou das grandes massas, como
os de congregação maior, de rotação e de aversão ao movimento; ou das formas
particulares, como remanescentes. Todas as afirmações verdadeiras, mas que se
não determinam na matéria e não se reduzem a outra estrutura, conforme
distinções verdadeiras perdem-se em especulações destituídas de utilidade.
Todavia, por ora é suficiente a medida da virtude predominante e a investigação
das instâncias de luta, sobre a qual estamos discorrendo.
Com efeito, dos movimentos enumerados, alguns são absolutamente
insensíveis; outros são mais fortes e desencadeiam, interrompem e governam
aqueles outros. Outros agem a distância, outros em menor tempo e com maior
celeridade; outros, enfim, servem para reforçar, outros servem para,
reciprocamente, reforçarem-se, acrescentarem-se, ampliarem-se e acelerarem-
se.
O movimento de resistência (antitipia) é tão invencível quanto o diamante. Mas
não podemos afirmar com certeza que o movimento de conexão seja invencível,
pois não temos como certa a existência do vácuo, tanto em estado puro quanto
mesclado.
250
Mas entendemos ser falso o argumento expresso por Leucipo e
Demócrito,
251
de que os mesmos corpos não poderiam, se o vazio não existisse,
abarcar e preencher ora maior, ora menor espaço. Pois a matéria é como se fosse
plissada,
252
de maneira a se poder alargar ou encolher no espaço, dentro de certo
limite, sem possibilitar o vácuo; e não é verdadeiro que o ar possua em si o
vácuo duas vezes mais que o ouro, como se pretende. Disso temos certeza pelo
conhecimento de potentíssimas virtudes dos corpos pneumáticos, os quais
aqueles pretendem tratar-se de minúsculas partículas de pó no vácuo, e ainda
muitas outras demonstrações. Os outros movimentos dominam e são dominados
reciprocamente na proporção da energia, da massa, da velocidade, do impulso e
dos auxílios ou obstáculos que se encontram.
Por exemplo, um magneto armado é capaz de atrair ferro na proporção de
sessenta vezes o próprio peso; a prevalência do movimento de congregação
menor sobre o de congregação maior: com um peso maior o magneto não atua.
Uma alavanca de uma certa força levantará um certo peso; o movimento de
liberdade domina a tal ponto o movimento de congregação maior que, com um
peso maior, a alavanca cede. Um pedaço de couro se deixará esticar até certo
ponto, sem se rasgar, pois depois desse ponto o movimento de continuidade
domina o movimento de tensão; mas mais esticado o couro se rompe, e então o
movimento de continuidade sucumbe. A água pode passar por certa fissura, de
tal modo que o movimento de congregação maior domine o de continuidade,
mas se a fissura é muito diminuta, prevalece o movimento de continuidade e a
água deixará de passar. De uma arma de fogo com apenas pó de enxofre e sem
fogo, a bala não será expelida, porque o movimento de congregação maior
vence o movimento de matéria, mas, se ela é carregada com pólvora, o
movimento de matéria vence no enxofre, estimulado pelo movimento de
matéria e pela fuga do nitro. E assim, outros exemplos semelhantes. Com bas-
tante e assídua diligência devem-se recolher sempre as instâncias de luta, que
indicam o predomínio das virtudes e em que modo e proporção elas
predominam ou sucumbem.
Mais ainda, devem-se buscar com diligência os modos e as razões do próprio
sucumbir dos movimentos; se cedem completamente ou se continuam a resistir,
mas contidos. Pois nos corpos por sobre a terra não há um verdadeiro repouso,
nem no todo, nem nas partes dos corpos, mas apenas aparência. Essa quietude
aparente e causada ou pelo equilíbrio ou por um predomínio absoluto de movi-
mento; por equilíbrio, tal como ocorre nas balanças, que ficam paradas quando
os pesos são iguais; por predomínio, como nos cântaros perfurados, em que a
água fica em repouso, sem sair, em vista do predomínio do movimento de
conexão. Mas deve ser observado, como já dissemos, até que ponto resistem
esses movimentos que sucumbem. Pois, quando alguém em luta é arremessado
ao solo, depois os pés e as mãos amarrados ou imobilizados de alguma forma,
mesmo assim ele luta com todas as suas forças para se pôr de pé e mesmo que
não o consiga o seu esforço não é menor do que em luta. As condições descritas
(ou seja, se o movimento que sucumbe é como que aniquilado pelo predomínio,
ou se continua em uma resistência latente) valem para o caso de concorrência de
movimento, mas no caso de conflito de movimentos o que é latente se tornará
potente. Por exemplo, suponha-se uma prova de tiro; verifiquemos num alvo,
em linha reta, o seu alcance de tiro, depois procuremos saber se o golpe dessa
bala será mais fraco, disparado de baixo para cima, quando o arremesso será o
efeito de um movimento simples, que o disparado de cima para baixo, quando o
arremesso será o efeito de um movimento composto com a força de gravidade.
Também devem ser coligidos os cânones a respeito de predomínio. É o caso
seguinte: quanto mais comum é o bem que se almeja tanto mais forte será o
movimento; assim, o movimento de conexão, que diz respeito à inteira
comunidade do universo, é mais forte que o movimento de gravidade, que diz
respeito apenas à comunidade dos corpos densos. Ou ainda: os apetites do bem
privado não prevalecem na maioria dos casos sobre os apetites do bem público.
Que assim também fosse nos assuntos civis!
XLIX
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo quinto lugar as
instâncias indicadoras,
253
que são as que indicam ou assinalam tudo aquilo que
pode ser útil aos homens. Com efeito, o poder e o saber em si mesmos
engrandecem a natureza humana, mas não a beatificam. Em vista disso,
proceda-se, na universalidade das coisas, à escolha daquilo que melhor serve
aos usos da vida. Voltaremos a esse assunto quando tratarmos das reduções à
prática. Pois na própria obra da interpretação, em cada assunto particular,
sempre reservamos um lugar para a carta da humanidade ou carta de apetência
(ou daquilo que se deseja).
254
Pois o querer e o apetecer judiciosamente fazem
parte integrante da ciência.
L
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo sexto lugar as
instâncias policrestas.
255
São as instâncias que se referem a vários casos e
ocorrem com freqüência e que por isso dispensam não pouco trabalho e muitas
demonstrações. Dos instrumentos e dos engenhos trataremos, por ocasião do
estudo das reduções à prática e dos modos de se proceder aos experimentos.
Dessa forma, aqueles que são conhecidos e muito usados serão descritos na
história de cada uma das artes em particular. Contudo, alinhamos, a seguir,
algumas observações gerais a título de exemplo das instâncias policrestas.
Opera, pois, o homem sobre os corpos naturais (afora a simples aproximação e
remoção dos corpos) de sete modos principais, que são: pela exclusão dos que
impedem e perturbam, por compressões, extensões, agitações, etc.; pelo calor e
pelo frio, por persistência em lugar conveniente, detendo ou guiando os
movimentos; por meio de consensos especiais; pela pertinente e oportuna
alteração, disposição e sucessão de todos esses modos ou de apenas alguns
deles.
Começando pelo primeiro modo: o ar comum que é encontrado e insinua-se por
toda parte e os raios dos corpos celestes são causa de muitas perturbações. Tudo
o que servir para eliminá-los pode ser considerado instância policresta. Seria
esse o caso da matéria e da espessura dos recipientes nos quais são colocados os
corpos para a feitura de experimentos; assim também os meios de obturação
desses recipientes, soldadura ou por meio de barro de sabedoria,
256
como dizem
os químicos. De muita utilidade é ainda o uso de líquidos para encerrar os
líquidos, separando-os do exterior, como a colocação de azeite ou sucos
vegetais sobre o vinho, que se expande sobre a superfície como uma tampa,
preservando-o do ar. Mesmo o pó é inútil, embora sempre esteja misturado a
uma certa quantidade de ar, e tem a virtude de preservar coisas do ar ambiental,
por isso a uva e a fruta são bem conservadas se colocadas na farinha ou na areia.
Também a cera, o mel, o pixe e outras substâncias adesivas são úteis para se
conseguir perfeita vedação e separação da influência do ar e dos raios celestes.
Fizemos algumas experiências submergindo o recipiente, ou algum outro corpo,
em mercúrio, que é de longe o mais denso de todos os corpos que se expandem.
Também as covas e as cavernas subterrâneas são de grande utilidade para a
proteção em relação ao calor e ao nefasto ar, como são usadas na Alemanha do
Norte para cereais. O mesmo resultado busca-se pela submersão na água, como
ouvi o relato de odres de vinho colocados para refrescar em um poço profundo,
lá esquecidos e encontrados muitos anos depois, tendo como resultado que o
vinho não apenas tinha conservado o seu sabor e força como também se tinha
tornado mais fino e generoso, em razão certamente da melhor combinação de
suas partes. Assim, se se colocar um objeto em um receptáculo no fundo da
água dos rios ou do mar rodeado de ar, mas sem contato com a água, obtém-se
uma boa forma para o trabalho em navios afundados, com a possibilidade de o
trabalhador respirar sem vir à tona. E a seguinte a máquina, bem como o seu
uso, tal como se conhece: preparava-se um recipiente côncavo de metal que se
deixava descer perpendicularmente à superfície até a superfície da água, ou seja,
de tal maneira que o seu orifício, localizado na sua base, ficasse sempre paralelo
à mesma; nessa posição, fazia-se com que ele submergisse, levando para o
fundo do mar todo o ar contido em seu bojo. Em seguida, era colocado em um
tripé um pouco menor que a altura de um homem. Tal disposição permitia ao
mergulhador, quando disso tivesse necessidade, respirar, enfiando a cabeça na
cavidade e continuar trabalhando. Ouvimos também falar da invenção de uma
máquina, em forma de navio, que possibilita a condução de homens, sob a água,
a uma certa distância. Mas o nosso fito na experiência descrita é indicar a
possibilidade, com o uso de um recipiente como o que foi descrito, de serem
colocados objetos sob a água sem fechá-los.
Há outra utilidade no completo e perfeito fechamento dos corpos, não apenas a
de preservá-los do ar (o que já foi tratado), mas também a de impedir a exalação
do espírito do corpo no interior do qual se opera. É necessário, para quem
manipula corpos naturais, ter certeza de sua quantidade total, isto é, de que nada
se evaporou ou transpirou. Pois ocorrem profundas transformações nos corpos
quando a natureza impede a sua aniquilação e a arte, a dispersão e a evaporação
de suas partículas. A este respeito, é aceita uma opinião falsa (a ser verdadeira,
eliminaria a possibilidade dessa conservação de quantidade, sem qualquer
diminuição), ou seja, a de que os espíritos dos corpos e o ar rarefeito devido ao
calor muito elevado não podem ser contidos em qualquer recipiente, já que
escapam pelos furos. Muitos homens foram induzidos a essa opinião pelos
experimentos muito conhecidos do copo colocado de boca para baixo na água
de uma bacia, onde é colocada uma vela ou um papel aceso, com o que a água é
atraída para dentro do copo, nele se elevando até certa altura; ou igualmente
pelo experimento das ventosas, que, aquecidas e depois aplicadas, atraem a
carne. Vulgarmente se acredita que tanto em um como em outro experimento o
ar rarefeito escapa e, em conseqüência, diminuindo a quantidade, a água e a
carne elevam-se pelo movimento de conexão. Trata-se, sem dúvida, de um erro.
Pois o ar não diminui a quantidade, apenas contrai o seu volume; nem tem
início o movimento de ascensão da água antes que a chama esteja extinta e o ar
tenha esfriado; e os médicos, para tornarem mais eficazes as ventosas,
costumam colocar esponjas embebidas em água fria. Em vista disso, não se
justifica o temor dessa fuga do ar ou dos espíritos. É fato que os corpos sólidos
possuem poros, mas igualmente que o ar ou os espíritos não se deixam
facilmente reduzir a ponto de poderem escapar, da mesma maneira que a água
não escorre por uma fenda demasiado estreita.
Passando-se ao segundo modo, dos sete descritos, desde logo deve-se observar
que as compressões e os demais meios violentos são os mais eficazes em
relação aos movimentos locais ou em relação a outros movimentos do mesmo
gênero; é o que se verifica nas máquinas e nos projéteis bem como nas causas
da destruição dos corpos orgânicos e das virtudes que residem inteiramente no
movimento. Toda vida, e ainda mais, toda ignição, podem ser destruidas por
compressão, o mesmo acontecendo com qualquer espécie de máquina que é
destruída ou gasta. Serve ainda para a destruição das virtudes que consistem em
uma certa disposição e disparidade das partes dos corpos, como as cores (pois a
cor não é a mesma em uma flor inteira e uma murcha, no âmbar inteiro e no
âmbar em pó) e os sabores (pois o sabor não é o mesmo numa pêra ainda verde
e na pêra espremida e pisada, ainda que se torne mais doce). Mas para se obte-
rem transformações e operações mais relevantes nos corpos uniformes, as
violências desse tipo não são de muita serventia, por não oferecerem aos corpos
uma consistência durável, mas apenas momentânea e tendente sempre a libertar-
se e a retornar à situação anterior. Mas não estaria fora de propósito a realização
de experimentos mais cuidadosos sobre o assunto para se verificar se a
condensação e a rarefação dos corpos uniformes, como a água, o ar, o óleo e
outros que tais, quando provocados pela violência, conseguem torná-los
duráveis, como com a transformação natural. A experiência poderia ser feita
primeiramente deixando-se passar o tempo e depois através de artifícios e do
consenso natural dos corpos. Ter-lo-íamos levado a cabo se nos tivesse ocorrido
por ocasião da compressão da esfera cheia de água, para condensá-la antes da
sua exsudação. De fato, teria sido necessário deixar a esfera achatada por alguns
dias e extrair a água logo a seguir, para se verificar se ela retomava o volume
anterior, antes da condensação. Se não voltasse a ocupar o mesmo volume, nem
depois de algum tempo, estaria demonstrado que a condensação ter-se-ia
tornado constante; caso contrário, teria sido momentânea, O mesmo poderia ter
sido visto nos ovos de vidro; teria sido necessário, depois de uma forte sucção,
fechar os ovos rápida e firmemente, deixando-os assim, por alguns dias, para se
verificar se, depois de abertos, o ar seria atraído com um silvo ou se,
mergulhados na água, poderia a atração do líquido ser da mesma quantidade de
liquido, que no caso de não se ter esperado esse tempo. É provável que se
alcançasse esse efeito, o que deveria ser verificado com cuidado, pois em corpos
menos uniformes acontece o mesmo, depois de certo tempo. Assim é que,
encurvando-se uma vara, por compressão, depois de um certo tempo ela não
retoma a posição inicial. E isso não ocorre devido à diminuição da madeira,
causada pelo tempo, pois o mesmo ocorre com uma lâmina de ferro (em tempo
maior), onde não ocorre qualquer desgaste. Mas se não se consegue o
experimento apenas com o transcorrer do tempo, não deve nem por isso ser
abandonado, mas pensar-se em outros meios; pois não é de pouca utilidade a
obtenção de novas naturezas fixas. e duráveis nos corpos usando-se meios vio-
lentos. Pois por esse caminho o ar poderia, pela condensação, ser transformado
em água, como também poderiam ser obtidos muitos outros efeitos do mesmo
gênero. Na verdade, mais que os outros, os movimentos violentos estão no
poder do homem.
O terceiro dos sete modos refere-se àquele grande instrumento de
transformação, tanto da natureza quanto das artes, ou seja, o calor e o frio. E
aqui o poder humano como que coxeia de um pé. Possuímos, realmente, o calor
do fogo, que é infinitamente superior em intensidade (pelo que percebemos), e o
calor dos animais; mas não podemos dispor do frio fora as estações de inverno,
das cavernas ou por revestimento de neve ou gelo no que se pretende gelar. Tal
frio seria no máximo comparável ao calor reinante ao meio-dia em uma região
de zona tórrida, ainda aumentado por reflexão dos muros e montanhas. Tais
intensidades de calor e de frio são suportáveis pelos animais durante algum
tempo, mas não podem ser comparadas com o calor de um forno ardente ou
com um frio em grau equivalente. Dessa forma, todas as coisas tendem aqui na
terra à rarefação, à dessecação e à consumpção: quase nada à condensação e ao
amolecimento, se não forem usados misturas ou meios, por assim dizer,
espúrios. As instâncias do frio devem ser buscadas com a máxima diligência,
expondo-as ao frio no alto das torres, durante as nevascas ou nas cavernas
subterrâneas, ou cobrindo de neve ou de gelo outras galerias, ou cavando poços
para esse fim, ou mergulhando-as no mercúrio e outros metais, ou em águas que
tenham a propriedade de petrificar a matéria, ou enterrando-as como fazem os
chineses quando querem formar a porcelana, que fica enterrada durante
cinqüenta anos, legando-se aos herdeiros como se fossem minas artificiais;
257
ou
ainda com outros procedimentos semelhantes. É necessário que se observem
também as condensações que se formam na natureza em conseqüência do frio,
para, depois de conhecidas as suas causas, transferi-las para as artes. Trata-se
dos fenômenos seguintes: a exsudação do mármore e das pedras, no
embaciamento dos vidros das janelas depois de uma noite de geada, os vapores
formados no seio da terra que se convertem em água, dando origem a
numerosas fontes, e de muitos outros semelhantes.
Além dos corpos que são frios ao tato, há também outros, com poder de frio,
que se condensam mas parecem agir unicamente sobre os corpos dos animais,
indo muito pouco além disso. Como desse tipo podem ser apontadas muitas
medicinas e muitos emplastros; outros condensam a carne e partes tangíveis,
como os medicamentos adstringentes e os coagulantes; outros condensam os
espíritos, o que se observa especialmente nos soporíferos, ou que provocam o
sono; num caso por sedação do movimento e em outro pela dispersão dos espíri-
tos. A violeta, a rosa seca, a alface e outras substâncias semelhantes, benignas
ou malignas, com seus vapores delicados, refrescam e convidam os espíritos a
se unirem, aplacando o seu movimento desordenado e inquieto. Do mesmo
modo, a água de rosas, aplicada ao nariz, nos desmaios, reaviva e congrega os
espíritos dispersos. Mas o opiato e as substâncias afins, ao contrário, põem a
correr os espíritos, pela sua natureza maléfica e hostil: basta aplicá-lo em uma
parte externa e os espíritos afastam-se, sem mais retornarem. Se tomado pela
boca, os seus vapores sobem à cabeça, afugentam, por todos os lados, os
espíritos localizados nos ventrículos do cérebro; mas não podendo nem se
retraírem, nem fugirem para outro lugar, reúnem-se e se adensam e às vezes se
extinguem, sufocados. O opiato, tomado em quantidade moderada (como uso
secundário, ou seja, pela condensação que se segue à reunião), serve para curar
os espíritos, tornando-os mais vigorosos e diminuindo a sua inútil agitação.
Dessa forma, cura as moléstias e auxilia no prolongamento da vida.
Por isso, não se deve descuidar dos modos de preparação dos corpos, na
recepção do frio: a água morna gela mais rapidamente que a completamente
fria; e coisas da mesma ordem.
Por outro lado, desde que a natureza é tão avara de frio, torna-se necessário usar
o recurso dos boticários, que, na falta de um elemento simples, adotam um
substitutivo ou quod pro qua, como chamam: o aloés pelo bálsamo, a cássia
pela canela. Do mesmo modo devemos também investigar, com todo cuidado,
quais são as coisas capazes de substituir o frio natural, conseguindo os mesmos
efeitos que são próprios do frio, ou seja, a condensação dos corpos. As
condensações, pelo que se sabe, devem-se a quatro causas: a primeira, por
simples compressão, que pode muito pouco no caso dos corpos de densidade
permanente, mas que sempre serve como auxiliar; a segunda, por contração das
partes mais grosseiras de um corpo, depois da retirada das partes mais leves,
como acontece com o endurecimento pelo fogo, ou nos resfriamentos repetidos
dos metais e outros do mesmo gênero; a terceira, da reunião das partes
homogêneas, que são as mais sólidas, em um corpo, que antes foram
dispensadas e mescladas com outras menos sólidas, como na restauração do
mercúrio sublimado em líquido, que em pó ocupa um espaço muito maior que o
mercúrio simples, e de modo semelhante na purificação de metais e de suas
escórias; a quarta, por simpatias, aplicando substâncias que condensam por
alguma força oculta. A manifestação de tais simpatias é rara, o que não é de se
estranhar, pois até que descubram as formas e os esquematismos não se pode
esperar muito das simpatias. Pois em relação aos corpos dos animais há
inúmeras medicinas, de uso interno ou externo, que têm a capacidade de
condensar como por simpatia, como já foi dito. O difícil é operar sobre corpos
inanimados. Por escrito e por tradição, fala -se de uma árvore das ilhas Terceiras
(dos Açores ou Canárias, não nos recordamos bem) que destila continuamente
uma quantidade de água suficiente para suprir as necessidades de seus
habitantes. Paracelso fala de uma planta, chamada “orvalho do sol”, que se
cobre de umidade mesmo sob o calor do meio-dia, enquanto as outras ervas
permanecem secas. Entendemos por fabulosos ambos os relatos; mas, se fossem
verdadeiros, haveria no caso instâncias de grande uso e dignas da maior
consideração. O orvalho que se observa, em maio, sobre as folhas de carvalho,
não concebo que se forme e condense por simpatia ou por alguma propriedade
da própria planta, pois também cai sobre outras folhas, mas se conserva nas
folhas do carvalho por serem bem úmidas e não esponjosas, como as demais.
Em relação ao calor, o homem dispõe de abundantes recursos à sua disposição,
mas faltam observações e investigações, mesmo em casos muito necessários,
apesar dos alquimistas se vangloriarem de conhecê-los. São bem conhecidos os
efeitos do calor intenso, mas os do calor moderado, mais freqüente na natureza,
não são conhecidos. Facilmente se verifica como o uso de calores fortíssimos
muito exalta os espíritos dos corpos, como nas águas fortes e em muitas outras
substâncias oleosas produzidas quimicamente; as partes tangíveis se endurecem
e até se petrificam, depois de evaporado o resto; as partes homogêneas se
separam; os corpos homogêneos ligam-se e incorporam-se; e, sobretudo, é
destruída a conexão dos corpos compostos e perdem-se os esquematismos mais
sutis. O que deve ser posto à prova é o efeito do calor mais fraco, por meio do
qual se podem provocar, como faz o sol na natureza, as mais sutis misturas e os
esquematismos ordenados, como ficam indicados no aforismo das instâncias de
aliança.
É seguro que a natureza age por meio das partes mais diminutas, distribuídas e
dispostas por maior riqueza e variedade que as que se poderia obter por meio do
fogo. Muito seria aumentado o poder do homem se por meio do calor se
conseguisse produzir artificialmente as obras da natureza, por participação do
tempo, na sua espécie, aperfeiçoadas na sua virtude e modificadas na sua massa.
Pois a ferrugem forma-se lentamente no ferro, mas a origem do açafrão de
Marte é súbita, como o verdete e o chumbo branco. Os depósitos cristalinos for-
mam-se depois de muito tempo; o vidro, ao contrário, é feito rapidamente. As
pedras fazem-se com o tempo, os tijolos brevemente; e assim por diante. Em
resumo, é necessário que se colecionem todas as espécies de calor, cada uma
com os seus respectivos efeitos, e tal trabalho deve ser o mais cuidadoso e
diligente possível; deve-se, assim, distinguir os corpos celestes conforme os
seus raios diretos, reflexos, refratados e recolhidos em espelhos ustórios; os
raios, as chamas, o fogo do carvão; o fogo segundo as várias matérias que o
produzem e segundo as suas qualidades: fogo livre, fogo aprisionado, transbor-
dando como uma corrente e segundo os diversos tipos de forno que o produzem;
o fogo avivado pelo sopro e o fogo parado; o fogo colocado a diversas
distâncias; o fogo filtrado por vários meios; calores úmidos, como banho-maria,
o esterco animal, o calor animal interno e externo, o feno amontoado; o calor
dos corpos secos, da cinza, da cal, da areia caldeada; enfim, todos os tipos de
calor com as suas respectivas graduações.
Mas, sobretudo, é necessário indagar-se e descobrir-se os efeitos e as operações
do calor que variam, conforme os graus, com ordem e periodicamente, com
distâncias e intervalos adequados. Essa descontinuidade ordenada do calor é
certamente fruto do céu, pois é a matriz de toda geração; e não é de se esperar
um efeito igual no calor intenso, no calor violento e no calor irregular. Tudo
isso é evidentíssimo nos vegetais e também no útero dos animais; há essa
descontinuidade do calor, conforme os períodos de movimento, de repouso, de
nutrição e segundo os desejos das gestantes. Essa descontinuidade ocorre
mesmo no próprio seio da terra, onde se produzem os metais e se formam os
fósseis. Isso deixa mais clara ainda a estupidez dos alquimistas, da escola
reformada, que imaginaram que, valendo-se de calores de lâmpadas e coisas
semelhantes em ignição perpetuamente igual, alcançariam os seus propósitos. A
respeito da produção e dos efeitos do calor, resta dizer que estas investigações
devem prosseguir até as descobertas das formas das coisas e dos esquematismos
dos corpos, pois será o momento de se buscarem, aplicarem e adaptarem-se os
instrumentos quando os modelos estiverem claramente estabelecidos.
O quarto modo de operar é o tempo que é o verdadeiro dispenseiro e depositário
da natureza. O tempo (a demora), neste sentido, ocorre quando um corpo é
confiado a si mesmo por um lapso considerável, mas protegido e defendido de
toda força externa. Nesse caso só se manifestam e aperfeiçoam os movimentos
interiores, de vez que os estranhos e externos estão interrompidos. pois as obras
do tempo são muito mais sutis que as obras do fogo. Não ocorre a clarificação
do vinho pelo fogo, nem as cinzas produzidas pelo fogo são tão acabadas como
as destruições realizadas pelos séculos. Mesmo as incorporações e misturas que
ocorrem subitamente por meio do fogo são muito mais fracas que nas que
intervém o tempo. Isso se deve a que o fogo e o calor muito forte destroem as
partes dessemelhantes e os esquematismos internos, enquanto que o tempo
constrói (como na putrefação). Em vista disso, seria de interesse observar-se
que os movimentos dos corpos, completamente fechados, escondem alguma
violência: isso acontece porque a segregação não impede qualquer movimento
espontâneo. Por isso em um recipiente aberto age melhor para as separações, em
um recipiente completamente fechado para as misturas; em um recipiente
fechado, mas com entrada para ar, para as putrefações. E necessário, contudo,
que se colecionem, em todos os lugares, com diligência, as instâncias das
operações e dos efeitos do tempo sobre os corpos.
O quinto modo de operar é o da direção do movimento, que ocorre quando um
corpo, encontrando outro, impede, repele, admite ou dirige o seu movimento
espontâneo. Muitas vezes isso ocorre na forma e na disposição dos recipientes.
Por exemplo, o de forma cônica e em pé facilita a condensação dos vapores nos
alambiques; em posição contrária, serve para refinar o açúcar. As vezes é
exigida uma curvatura ou um estreitamento ou dilatações sucessivas, e outras
coisas semelhantes. A operação do calor consiste em proceder-se de tal modo
que um corpo, encontrando-se com outro, deixe uma parte passar, enquanto que
a outra é segura. A passagem de um corpo por outro, na filtração, não ocorre
sempre exteriormente; algumas vezes um corpo infiltra-se no interior de outro,
coisa que ocorre quando colocamos pequenas pedras na água para recolher o
sedimento ou quando se clarificam os xaropes por meio da clara de ovo, que só
absorve as partes mais grossas, permitindo a sua eliminação. Para a direção do
movimento Telésio atribuiu figuras de animais, mas sem critério e sem
conhecimento de causa, apenas porque observou a presença de rugosidades e
canais na matriz. Mas deveria ter notado uma conformação semelhante nas
cascas dos ovos, onde não se notam rugosidades ou desigualdades. Tem-se a
direção do movimento nas formações obtidas entre modelos ou formas
plásticas.
Quanto às operações que ocorrem por consenso ou fuga (que constituem o sexto
modelo), na maior parte estão profundamente escondidas. Tais propriedades
ocultas, e específicas, simpatia e antipatia, são em sua maioria corruptelas da
filosofia. E não se pode esperar encontrarem-se os consensos das coisas antes
das descobertas das formas e dos esquematismos simples. Pois o consenso nada
mais é que a mútua simetria das formas e dos esquematismos.
Os consensos maiores e quase universais das coisas não são completamente
obscuros. A primeira diversificação a ser notada é a de que alguns corpos se
diversificam muito entre si devido à densidade ou à rarefação da massa, mas
concordam na estrutura interna, ou seja, nos esquematismos; outros, pelo
contrário, diferem nos esquematismos e concordam na massa. Os químicos
observaram com propriedade três princípios: que o enxofre e o mercúrio acham-
se esparsos por todo o universo e por todos os corpos. O sal, contudo, foi
introduzido para explicar os corpos secos, terrosos e duros, e não deve ser
considerado como terceiro. Apenas nos primeiros dois é possível descobrir-se
um dos consensos mais gerais da natureza. Consensos são encontrados de fato
entre o enxofre, o óleo ou vapor graxo, a chama e, talvez, corpo das estrelas. Por
outro lado, consentem entre si o mercúrio, a água e os vapores aquosos, o ar e
talvez também o puro éter disseminado entre as estrelas. Nas primeiras quatro
substâncias gêmeas, como nas outras quatro substâncias que se estendem por
duas ordens diferentes, abarcando quase toda a natureza, encontram-se notáveis
diferenças quanto à massa e à densidade da maté ria, mas não quanto ao
esquematismo. E disso há numerosas provas. Por sua vez, os metais convêm
entre si na diversidade da matéria e na densidade (sobretudo se comparados aos
vegetais e aos animais), mas diferem bastante quanto ao esquematismo; já os
animais e os vegetais variam quase que infinitamente no esquematismo, pouco
diferindo na densidade ou quantidade de matéria.
Vejamos outro consenso, que contudo não é tão bem entendido quanto o
primeiro, que é o que há entre os corpos principais e aqueles que os estimulam,
ou seja, os mênstruos
258
e os seus alimentos. A seu respeito, deve-se investigar
em qual clima, em qual região e a qual profundidade produzem-se os vários
metais e as pedras preciosas que nascem nas rochas e nas minas, e em que
terreno se produzem os vários tipos de árvores, das árvores de frutos às várias
espécies de ervas, quais devem ser os melhores adubos, se o esterco, se a cal, se
a areia, se a cinza, etc., segundo as várias espécies de terreno. Também o
enxerto das árvores e das plantas, bem como os seus tipos, muito depende do
consenso, ou seja, saber qual a planta que se pode enxertar com outra com
maior sucesso. Há um experimento, do qual ouvimos falar recentemente, que se
faz pelo enxerto em plantas silvestres (que até agora se costuma fazer mais com
as árvores de horta) e com que se tem conseguido aumentar notavelmente folhas
e frutos bem como a copa das árvores. Devem ser observados, também, os
respectivos alimentos dos animais em geral, separando-se os nocivos. Por
exemplo, os animais carnívoros não toleram as ervas, e por isso os monges da
ordem Cisterciense de Feuillans
259
(apesar de a vontade humana ter mais poder
sobre o corpo que os outros animais) quase desapareceram, de vez que o feito
não podia ser tolerado pela espécie humana. Igualmente devem ser observadas
as diversas matérias das putrefações, das quais se engendram certos
animálculos.
Os consensos gerais dos corpos com os seus subordinados, assim podem ser
considerados os que observamos, estão bastante claros. A eles podem ser
acrescentados os consensos dos sentidos com os seus objetos. Esse tipo de
consenso é muito conhecido, mas pode ser melhor estudado, com o que se
poderia levar luz aos outros consensos.
Mas os consensos internos dos corpos e as fugas, ou seja, a amizade e as
discórdias dos corpos (preferimos não usar os termos simpatia e antipatia, que
se ligam a vás superstições), ou são falsos, ou fabulosos, ou muito raros, por
falta de cuidado dos homens, que não fizeram observações adequadas. Pode ser
observado que entre a vinha e a couve há discórdia pelo fato de que, plantada
uma perto da outra, não se desenvolvem; a razão é que se trata de plantas que
absorvem muito humor e que uma usurpa a outra. Por outro lado, pode ser dito
que há consenso e amizade entre o trigo, a centáurea e a papoula porque essas
ervas quase que se desenvolvem nos campos cultivados, quando deveria ser dito
que entre elas haveria discórdia, pois a centáurea e a papoula alimentam-se e
desenvolvem-se da substância da terra que foi eliminada e expulsa pelo trigo;
por isso a semeadura é a melhor preparação do seu terreno. Considerações
falaciosas como essas há em grande número. Quanto às fabulosas, essas devem
ser completamente eliminadas. Resta um pequeno número de consensos
suscetíveis de serem comprovados pelo experimento, e entre eles devem ser
anotados os do magneto e o ferro, o ouro e o mercúrio, e outros semelhantes.
Entre os experimentos químicos com metais, nenhum há que mereça destaque.
Mas a maior abundância (no meio de tanta escassez) pode ser encontrada em
certas medicinas, que pelas suas chamadas propriedades ocultas e específicas
guardam relação ou com os membros do corpo, ou com os humores, ou com as
doenças, ou até com as naturezas individuais. E não devem ser desprezados os
consensos entre os movimentos e os efeitos da lua e as paixões dos corpos aqui
da terra, que podem ser extraídos dos experimentos agrícolas, náuticos, médicos
e outros, que devem ser avaliados com muito discernimento e colecionados em
conjunto. Mas, quanto mais raras são as instâncias dos consensos mais
recônditos, tanto maior cuidado se deve ter em só acolher relatos e tradições
fidedignos e seguros, evitando-se qualquer superficialidade e credulidade,
sempre concedendo uma confiança inquieta e quase propensa à dúvida. Resta
tratar do consenso dos corpos, cujo modo de operar é muito simples, mas que,
estando sujeito a um múltiplo uso, não deve ser de maneira alguma desprezado,
mas ao contrário, estudado com cuidadosas observações. Ele consiste na
propensão ou relutância que têm os corpos para se unirem ou conjugarem-se,
seja pela mistura ou por simples aposição. Alguns corpos se misturam e
incorporam-se com facilidade e de maneira voluntária, outros com dificuldades
e com repugnância. Por exemplo, os corpos em forma de pó se incorporam
melhor à água; a cal e a cinza, ao óleo; assim por diante. Não se pode dar como
terminado o trabalho de investigação depois da coleta das instâncias de
propensão e de aversão à mistura: deve-se passar a investigação da colocação e
distribuição das partes e disposição depois de misturadas; e, depois de concluída
a mistura, ao predomínio resultante.
Finalmente, como último dos sete modos de operar, é necessário falar-se da
aplicação alternada dos seis modos precedentes. Sobre isso, não é oportuno
aduzirem-se exemplos até que a sua investigação tenha progredido
significativamente. Essa recíproca e ordenada alternância é tão difícil de ser
entendida quanto é útil às operações. Todavia, os homens são muito
impacientes, tanto na investigação quanto na prática; mesmo que aí esteja o
verdadeiro fio do labirinto para a descoberta de obras mais importantes. Tais
exemplos são suficientes para as instâncias policrestas.
LI
Entre as instâncias prerrogativas, colocamos em vigésimo sétimo e último lugar
as instâncias mágicas.
260
Com tal nome designamos as instâncias em que a
matéria ou causa eficiente é fraca e pequena em relação à grandeza da obra e
dos efeitos alcançados. Estes, embora comuns, parecem quase milagrosos;
alguns logo à primeira vista, outros mesmo depois de um exame atento. A
natureza, de si mesma, e avara nessas maravilhas, mas no futuro surgirão em
grande número, quando tiverem sido colocados à luz as formas, os processos e
os esquematismos. Pelo que até agora se conhece, os efeitos mágicos ocorrem
de três modos: ou pela multiplicação de si mesmo, como acontece no fogo, nos
chamados venenos específicos e nos movimentos que aumentam de força ao
passarem de roda em roda; ou por excitação ou convite de um outro corpo,
como ocorre com o magneto, que excita numerosas agulhas sem perder ou
diminuir nada de sua virtude; e como ocorre no lêvedo e nas substâncias
semelhantes; ou por antecipação do movimento, como se indicou ao falar-se da
pólvora, dos canhões e das minas. Dos dois primeiros movimentos é necessário
que se indaguem os consensos; do terceiro, as medidas. Da possibilidade de se
modificar, por algum modo, os mínimos elementos dos corpos (como se
costuma dizer), transformando os mais sutis esquematismos da matéria, o que
significaria operar todos os gêneros de transformações nos corpos, e a arte,
então, poderia fazer em breve tempo aquilo que a natureza perfaz durante muito
tempo, a esse respeito ainda não se pode adiantar nada de preciso. De nossa
parte, declaramos que, como aspiramos ao supremo grau dos conhecimentos
sólidos e verdadeiros, do mesmo modo votamos perpétuo ódio a toda vaidade e
toda pretensão vã, combatendo-as de todas as nossas forças.
LII
Aqui encerramos a enumeração das dignidades ou instâncias prerrogativas. Mas
deve-se ter em conta que neste Organon foi nosso propósito tratar de lógica, não
de filosofia; mas, como a nossa lógica procura ensinar e guiar o intelecto e não
agarrar e segurar as abstrações da realidade com as frágeis escoras da mente
(como a lógica vulgar), mas realmente esquadrinhar a natureza, voltando-se
para a descoberta das virtudes e dos atos dos corpos, bem como de suas leis
determinadas na matéria, dependendo, em resumo, esta ciência, não apenas da
natureza do intelecto, mas também da natureza das coisas, não é para espantar
que tenha sido ilustrada, continuamente, com observações sobre a natureza, que
devem servir de exemplos da nossa arte. Do que foi exposto, são em número de
vinte e sete as instâncias prerrogativas, a saber: instâncias solitárias, instâncias
migrantes, instâncias ostensivas, instâncias clandestinas, instâncias constitu-
tivas, instâncias conformes, instâncias monádicas, instâncias desviantes,
instâncias limitativas, instâncias da potestade, instâncias de acompanhamento e
hostis, instâncias subjuntivas, instâncias de aliança, instâncias cruciais,
instâncias de divórcio, instâncias da porta, instâncias de citação, instâncias do
caminho, instâncias suplementares, instâncias secantes, instâncias da vara,
instâncias do currículo, instâncias de dose da natureza, instâncias de luta,
instâncias indicadoras, instâncias policrestas e instâncias mágicas. Os usos
dessas instâncias, no que se sobrepõem às instâncias vulgares, relacionam-se em
geral ou com a parte informativa ou com a parte operativa, ou com ambas.
Quanto à parte informativa, auxiliam ou os sentidos ou o intelecto. Auxiliam os
sentidos as cinco instâncias de lâmpada. Auxiliam o intelecto ou aceleram o
processo exclusivo da forma, como a solitária; ou limitando e indicando de mais
perto o procedimento afirmativo como as migrantes e as ostensivas, as de
companhias e as subjuntivas; ou indicando e conduzindo aos gêneros e às
naturezas comuns, e isso, ou imediatamente, como as clandestinas, as monádi-
cas e de aliança; ou de modo próximo, como as constitutivas; ou em grau
inferior, como as conformes; ou corrigindo o intelecto da experiência comum,
como as de desvio; ou conduzindo à descoberta da forma maior ou da estrutura
do universo, como as limitativas; ou preservando-o das formas e causas falsas,
como as cruciais e de divórcio. Em relação à parte operativa, essas instâncias
servem para ordenar a prática, ou medindo-a ou facilitando-lhe a execução, e
depois indicam por onde se deve começar para evitar a repetição do que já foi
feito com as instâncias de potestade; a que se deve tentar chegar, se possível,
com as indicativas. Servem para a medida da prática as quatro matemáticas;
facilitam a execução as multiformes e as mágicas.
Algumas dessas vinte e sete instâncias exigem que se faça (como já foi dito
antes a respeito de algumas delas) imediata coleta, sem se aguardar a
investigação particular da natureza. Estão nesse caso as instâncias conformes, as
monádicas, as de desvio, as limitativas, as de potestade, as da porta, as
indicativas, as policrestas e as mágicas, elas, de fato, oferecem auxílios e
remédios aos sentidos e ao intelecto, e informam a prática em geral. As outras
devem ser recolhidas, quando se chegar à formação de tábuas de citação,
estabelecidas pelo intérprete através da investigação de uma natureza particular.
As instâncias estabelecidas e oferecidas com essas prerrogativas são como a
alma das instâncias vulgares de citação e, como já foi dito no início, umas pou-
cas delas valem por muitas das outras; e devem ser tratadas com o máximo
cuidado na formação das tábuas em que devem ser inscritas. Seria necessário
mencioná-las a seguir e para isso seria preciso expor previamente o seu uso.
Agora é necessário passar, por ordem, aos adminículos e às retificações da
indução e depois ao concreto; e aos processos e esquematismos latentes e a tudo
mais que indicamos no aforismo vinte e um. Só então poderemos dizer ter
colocado nas mãos dos homens, como justo e fiel tutor, as suas próprias
fortunas, estando o intelecto emancipado e, por assim dizer, liberto da
menoridade; daí, como necessária, segue-se a reforma do estado da
humanidade, bem como a ampliação do seu poder sobre a natureza.
Pelo pecado o homem perdeu a inocência e o domínio das criaturas. Ambas as
perdas podem ser reparadas, mesmo que em parte, ainda nesta vida; a primeira
com a religião e com a fé, a segunda com as artes e com as ciências. Pois a
maldição divina não tornou a criatura irreparavelmente rebelde; mas, em virtude
daquele diploma: Comerás do pão com o suor de tua fronte,
261
por meio de
diversos trabalhos (certamente não pelas disputas ou pelas ociosas cerimônias
mágicas), chega, enfim, ao homem, de alguma parte, o pão que é destinado aos
usos da vida humana.
NOTAS:
Prefácio do Autor e Livro I dos “Aforismos sobre a Interpretação da Natureza
e o Reino do Homem
1 Literalmente, incompreensibilidade; estado resultante do princípio cético de
dúvida à possibilidade da verdade, Nova Academia. Arcesilau (3 16-241 a.C.) e
seus discípulos. Ver mais adiante Aforismo 126, livro I.
2 Bacon não usa, ao contrário de Descartes, o termo methodus, transcrição
latina do grego, possivelmente para não se comprometer com o seu uso anterior.
Prefere ratio ou via. Acompanhamos, no caso, a unanimidade dos tradutores
modernos.
3 Usada no sentido escolástico, uma das partes do Trivium, equivalente à lógica
formal e. mais tecnicamente, como sinônimo de método dedutivo. Em algumas
passagens toma o sentido pejorativo, já usado por Aristóteles, de exercício
inócuo.
4 Original: vanissimis idolis. Relacionado à doutrina dos ídolos ou falsas idéias,
exposta no livro I, a partir do Aforismo 38.
5 O termo “axioma” é usado por Bacon no sentido de proposição geral.
6 Idéia, nesta, passagem, tem sentido platônico, talvez mais próximo dos
neoplatônicos renascentistas.
7 Original: instantia, termo de origem judiciária. Preferimos instância mesmo
em português. Aparece com freqüência no sentido de “caso”, “exemplo”,
“ocorrência”, etc., sempre relacionado com a realidade natural
8 Original: consensum. O consenso, para Bacon. tem origem num traço comum
a todos os homens e serve de base para o seu acordo como termo de várias
questões, mas não como fundamento legitimo para a ciência.
9 Original: Idola Tribus. Idola Specus, Idola Fori e Idola Theatri.
10 A expressão tem origem no conhecido Mito da Caverna, da República de
Platão. A correlação é metafórica, de vez que o sentido preciso é diferente.
11 Heráclito, fragmento 2 (n.º de Diels): “Por isso convém que se siga a
universal (razão, logos), quer dizer a (razão) comum: uma vez que o universal é
o comum. Mas, embora essa razão seja universal, a maioria vive como se
tivesse uma inteligência absolutamente pessoal”.
12 Original: sermones.
13 Cf. Cícero, De Natura Deorum, III. 37, § 89.
14 Original: subalternis, sentido lógico.
15 Original: lumen siccum. Possivelmente sugerida por expressão de Heráclito
(fragmento 118), através de comentadores romanos.
16 Esse aforismo trata, de passagem, de assunto altamente controvertido da
teoria natural de Bacon e que vai ser exposta no livro II, a propósito da teoria da
forma.
17 Original: schematismi, meta-schematismim actus purus, lex actus. Vide nota
anterior.
18 William Gilbert (1540-1603). autor do célebre De Magnete.
19 Original: Themata Coeli.
20 Original: rationale genus philosophantium. Preferimos o termo racional a
outros também usados para o caso, por entender que as confusões que se
procura evitar ficam suficientemente afastadas pelo contexto.
21 Referência a Paracelso e às concepções mágicas.
22 Trata-se da distinção, existente em lógica formal, entre: voces secundae
intentionis e voces primae intentionis. A alma, para Aristóteles (De Anima II.
1.412 A. 27-28), está na primeira espécie, quando Bacon entende que devia
estar na segunda.
23 Filósofos pré-socráticos, cujo naturalismo entusiasma mais Bacon que os
sistemas posteriores.
24 Referência mais à Nova Academia e possivelmente ao neoplatonismo de
Proclo.
25 Lucas, 24,5. Alusão a Robert Fludd, teósofo e rosa-cruz, contemporâneo de
Bacon.
26 Original: in quod, nisi sub persona infantis intrare non datur (Mateus, 18.3).
27 Original: mera palpatio.
28 Original: ad magis.
29 Original: ad praxim.
30 História da filha de um rei de Ciros, célebre pela sua rapidez e que disse se
casar com quem a vencesse em uma corrida. Hipómenes, com auxílio de uma
deusa, conseguiu sucesso jogando pomos de ouro para trás, sempre que Atalanta
estava prestes a alcançá-lo.
31 Original: experimenta lucifera e experimenta fructifera.
32 Original: sapientia.
33 Original: professoria. O saber professoral para Bacon tem o sentido de
saber acadêmico, transmitido de mestre a discípulo, sem recurso às fontes.
34 Apud Diógenes Laércio, sobre Platão.
35 Platão, Timeu, 23 B.
36 Signa, termo tomado por metáfora à astrologia, indicando os auspícios para
um empreendimento.
37 Celso, em De Re Medica.
38 Alusão à teoria de Galeno.
39 Vide nota 8.
40 Cf. aforismos 28 e 47.
41 Plutarco, na Vida de Fócion.
42 Esse tipo de consciência histórica já aparece no opúsculo de 1608, cujo título
Temporis Partus Masculus usa as mesmas expressões.
43 Bacon parece aceitar a concepção difundida entre os renascentistas de que a
um período de esplendor deveria seguir-se um período de decadência da cultura.
44 A filosofia primeira, tal como a entendia, repositório dos axiomas gerais da
natureza, estabelecidos por via indutiva, era a responsável pela unidade do
saber.
45 Célebre expressão cunhada e divulgada por Cícero, cf. Tusculanae
Disputationes, V, 4. § 10.
46 Original: in parte operativa.
47 Original: scientiae logicae.
48 Original: novis inventis et copiis.
49 No aforismo 77 fala Bacon também do consensus que encobria o verdadeiro
valor da filosofia de Aristóteles.
50 Passagem célebre onde é evidente a analogia com a idade dos homens.
51 Original: Orbis Intellectualis, também nome de obra inacabada de Bacon.
52 Expressão que teve origem em Aulo Gélio, Noctes Atticae, XII, 11, mas
modernamente vulgarizada por Bacon com sentido mais rico.
53 Original: contemplationes incurrentes.
54 Original: artes intellectualis que se diferenciam das scientias rationalis,
que vêm a seguir.
55 Bacon distingue a “magia natural” da “magia supersticiosa”.
56 Em várias passagens (cf. também De Augmentis Scientiarum, 1. VI, cap. 2).
Bacon mostra as vantagens dos aforismos. A propósito, lembrem-se a sua
admiração pelos pré-socráticos, as referências a Hipócrates, e as suas leituras
bíblicas.
57 Referência ao Rei Artur e ao herói do romance cavalheiresco português,
atribuído a Vasco de Loubeira (século XlV) e vulgarizado em várias outras
versões.
58 Cf. aforismo 75.
59 Natureza, para Bacon, tem o sentido amplo de aparência exterior e
perceptível dos objetos, qualidades secundárias das coisas.
60 Tais expressões não significam da parte de Bacon ateísmo ou coisa
semelhante, mas sua aversão por certo tipo de interferência da religião em
assuntos de conhecimento natural. No De Augmentis deixa clara a separação
entre assuntos divinos, objeto da teologia, e os naturais, objeto da filosofia e das
ciências.
61 Aristófanes Nuvens, versos 372. 55.
62 A propósito do assunto, houve acesa polêmica entre teólogos, filósofos e
sábios, até prevalecerem as novas concepções sobre o globo terrestre.
63 Original: media ignorantur.
64 Jó, 13,7 “Porventura por Deus falareis perversidade? E por ele falareis
engano?
65 Mateus, 22,29.
66 Original: res civiles et artes. Cf. Aristóteles Política, II,8. 1268 B. e ss.
67 Original: prudentia civilis.
68 A esperança (spes) de que Bacon vai falar corresponde a uma espécie de
interesse pelo novo e ao mesmo tempo um inconformismo em relação ao
admitido e estabelecido.
69 Original: tabulis inveniendi.
70 Lucas, 17,20.
71 Daniel, 12,4 Essa expressão se encontra no frontispício da primeira
edição do Novum Organum.
72 Esta passagem tem provocado interpretações diferentes. De qualquer forma,
a letra do texto parece indicar que Bacon entendia o fim do mundo num sentido
geográfico, o que é improvável, dada a sua competência em assuntos teológicos.
73 Demóstenes, Filípicas, III, 5 e 1, 2. A citação de Bacon, como muitas outras,
é livre, tudo indicando ter sido de memória.
74 Original: spei argumenta.
75 Passagem famosíssima, que tem servido como o exemplo mais sensível da
posição de Bacon.
76 Essa passagem é indicada como um exemplo da incompreensão de Bacon
para com o verdadeiro papel das matemáticas nas ciências experimentais
nascentes.
77 Original: ratio humanae.
78 Ésquines, De Corona. apudJ. Spedding, op. cit. vol. I, pág. 202.
79 Tito Lívio, in Ab Urbe Condita, IX, 17, in fine.
80 Original: Sylva No fim da vida Bacon se dedicou ao recolhimento de tais
coleções. Os resultados estão em obra póstuma, Sylva Sylvarum.
81 Original: rumores quosdam experientiae et quasi famas et auras eius.
82 Consta em comentadores da época que Alexandre teria dado a Aristóteles
oitocentos talentos para essa empresa Ap. Lasaíle op. cit. pág. 334, vol. 1.
83 Espécie de “naturalismo” frívolo que vigorou inclusive até o século XIX.
84 Original: vexationes.
85 Original: experimenta lucifera e fructiferorum.
86 Cf. aforismo 82.
87 Há dois sentidos para experiência literata. Um. de registro sistemático de
resultados, e outro, de um metodo intermediário entre a mera palpatio e o
Novum Organum. O segundo sentido aparece logo a seguir no af. 103.
88 Original: notionalia.
89 Cf. aforismo 80.
90 Original: idque via et ordine.
91 Original: fili bombyeini.
92 Original: acus nauticae.
93 A tinta usada antes da imprensa era muito fina. Assim, essa modificação
também foi condição para o novo invento.
94 Na Nova Atlântida Bacon fornece o exemplo vivo da sua concepção de
trabalho científico como trabalho coletivo, no sentido de exigir a dedicação de
muitos e no sentido de promoção oficial.
95 Veja-se o fascículo que acompanha esta obra.
96 Original: Mortalium communicantum. A quem considera a ciência como
trabalho coletivo, não mais natural que o problema da comunicação dos seus
resultados e sua discussão. Mas o grande drama de Bacon foi exatamente esse: o
seu isolamento estritamente científico. Enquanto homem do mundo, não teve
condições de se informar da verdadeira ciência do seu tempo, apesar de suas
idéias gerais serem proféticas.
97 Racional (original: in via illa rationali) aqui é tomado no sentido já antes
indicado, como oposto a experimental, tendo, assim, uma conotação pejorativa.
98 Antecipação de problemas ligados ao trabalho científico. Vide especialmente
a Nova Atlântida.
99 Alusão aos ventos que de oeste sopravam sobre Portugal e que teriam levado
Colombo a firmar suas idéias de que nessa direção havia terras que os geravam.
100 Original: desperatione. Desesperação embora pouco usado, nos pareceu o
correspondente mais adequado para um termo com conotação ao mesmo tempo
de desânimo e desinteresse. Desespero tem cargas mais recentes muito
consolidadas.
101 Original: pars destruens.
102 Três filósofos antiaristotélicos do Renascimento. Os dois primeiros
italianos, mais conhecidos, e o terceiro dinamarquês.
103 Essa parte deveria constituir-se, conforme o seu plano na distribuição das
obras, Instauratio Magna, no Pródromos ou Antecipações da Filosofia
Segunda.
104 Ainda segundo o plano referido, a sexta parte deveria constituir-se da
Filosofia Segunda ou Da Ciência Ativa.
105 No sentido de fazer alguma invenção na forma antes definida: de
combinação de coisas conhecidas.
106 Original: tabulis inveniendi. Refere-se ao procedimento a ser descrito no
livro II da obra. Quanto à tradução de inveniendi e das formas correlatas, pode
tanto ser no sentido de invenção quanto de descoberta ou investigação. Usamos
uma ou outra conforme as conveniências do contexto.
107 Refere-se a Scala Intellectus.
108 Refere-se a Phenomena Universi sive Historia Naturalis et Experimentalis
ad Contendam Philosophiam.
109 Vide nota anterior sobre Atalanta.
110 Plínio, Naturalis Historia, I.
111 Original: simplicium naturarum. As naturezas simples constituem para
Bacon os elementos últimos dos fenômenos e estão ligados à sua forma.
112 Fedro, Fábulas, I.V, 8.
113 Essa história aparece em Plutarco, referindo-se a Filipe da Macedônia.
114 Filócrates, falando de si e de Demóstenes, apud De Mas, op. cit. pág. 334,
vol. I.
115 Esta passagem deve ser comparada a outra que aparece no cap. 1, 1. VI, do
De Dignitate et Augmentis Scientiarum, para indicar as dificuldades de
interpretação da exata posição de Bacon, a respeito de problema tão importante:
“Este princípio resolve a famosa questão da maior importância a ser dada à vida
ativa ou a vida contemplativa, e a decide contra a opinião de Aristóteles. Pois
todas as razões que ele oferece em favor da vida contemplativa relacionam-se
somente ao bem individual e ao prazer e à dignidade do indivíduo. Sob esse
aspecto certamente a vida contemplativa carrega a palma da vitória.. Mas os
homens devem saber que só a Deus e aos anjos cabe serem espectadores no
teatro da vida humana”. Lembre-se também que esse texto é posterior ao Novum
Organum.
116 Original: verum exemplar mundi.
117 Cf. aforismo 23.
118 Original: Itaque ipsissimae res sunt (in hoc genere) veritas et utilitas.
divergéncias quanto à tradução de ipsissimae res. Acompanhamos os que
entendem como tendo o sentido de “as coisas em si mesmas”. Vide De Mas, op.
cit., pág. 335, vol.I.
119 Esta passagem cria os problemas de coerência já indicados na nota 114.
120 Onginal: formam inquirendi.
121 Bacon aqui opõe à acatalepsia a eucatalepsia, com sentido de “boa
compreensão dos fatos”.
122 Filosofia natural tem aqui sentido restrito, próximo de física, enquanto tem
sentido amplo nos aforismos 79 e 80.
123 Ou: síntese e análise.
124 Apesar de certa timidez, em passagens anteriores (cf. aforismos 29, 77 e
128). aqui Bacon claramente estende o seu método de investigação natural aos
assuntos humanos.
125 Os dois livros do Advancement of Learning Divine and Human foram
publicados em 1605. Essa obra foi refundida por Bacon, consideravelmente
aumentada e publicada em latim sob o titulo de De Dignitate et Augmentis
Scientiarum, em 1623, três anos depois do Novum Organum.
126 Original: rerum inventionibus.
127 Sic. no original, inclusive o destaque do terceiro verso em maiúsculas. Os
versos, certamente citados de memória, em algumas passagens não conferem
com o original de Lucrécio, De Rerum Natura, VI, 1-3 primum por primae e
praestanti por praeclaro. Traduzidos livremente: “Atenas de nome famosa, que
pela primeira vez ofereceu aos pobres mortais as sementes frutíferas e, dessa
forma, recriou a vida e promulgou as leis”.
128 Cf. Provérbios, 25,2.
129 Referia-se, sem dúvida, à América, cujo nome ainda não se tinha firmado.
130 De Cecílio Estácio, transcrito por Símaco, in Epístolas, X, 104, apud De
Mas, op. cit., vol II, pág. 340.
131 Repete, com pequena variação, expressão do aforismo 3.
Livro II dos “Aforismos sobre a Interpretação da Natureza e o Reino do
Homem
1 Original: naturas. Natureza significa ou equivale à propriedade ou qualidade
predicável de um corpo.
2 Original: corpus. Corpo concreto.
3 Original: formam (a). A forma é a condição essencial da existência de
qualquer propriedade. (Vide Livro I.)
4 Original: naturam naturantem. Natureza naturante em oposição a (natura
naturata) natureza naturada. Distinção de Averróis que passou à tradição
escolástica. Simplificadamente, a natureza naturante é o agente produtor e
naturante é o produto. Natureza naturante é expressão difundida durante a
Renascença, indicando o processo ativo e dinámico da natureza. Bacon,
identificando-a com a forma, torna difícil pensá-la á maneira de Aristóteles.
Lembre-se ainda que Bacon não usa a expressão oposta, natureza naturada.
5 Original: transformatío corporum concretorum. Expressão e idéia que devem
sua origem à alquimia, para depois se “laicizar”.
6 Original: Latentis processus. Conjunto de operações internas, que em boa
parte escapa aos sentidos, e que faz com que uma substáncia passe de um estado
a outro.
7 Original: formam inditam.
8 Original: latentis schematismi. O esquematismo corresponde á maneira de
ordenação das partículas que constituíram os objetos materiais. A idéia de
pequenas partículas se aproxima de Demócrito, salvo no fato de que Bacon não
admitia a sua indestrutibilidade e nem o “vazio”. O esquematismo é latente por
escapar aos sentidos; à transformação de suas configurações Bacon dá o nome
de processo latente (latens processus).
9 Aristóteles, Analíticos Segundos, I, 2, 71 B.
10 Bacon não admite qualquer finalismo no processo natural. A sua
concordância com Aristóteles em relaçâo às demais causas deve ser entendida
ao nível puramente terminológico. Sem a causa final, o mundo natural perde
qualquer aristotelismo.
11 O assunto no De Augmentis Scientiarum (Do Progresso das Ciências) é
remetido à teologia.
12 Confrontem-se as principais passagens desta obra sobre o conceito
baconiano de forma, seguramente o de mais difícil interpretação em seu
pensamento. Aforismos 51 e 75, Livro 1, e Aforismo 4. 5, 13, 17 e 20. Livro II.
1 3 Original: essentiae.
1 4 Original: paragraphos. Linguagem jurídica, transposta para a natureza.
15 Original: ul sit certum, liberum et disponens sive in ordine ad actionem.
16 Original: ex fonte essentiae. Seria a substância originária capaz de
diferenciação.
17 É indispensável, para a compreensão do pensamento dc Bacon. o
esclarecimento da conexão entre forma e natureza tanto para a filosofia natural
em geral quanto para alguns aspectos técnicos da indução, como o
funcionamento das tábuas. A questão reaparece muitas vezes no texto. De
qualquer modo, guarde-se que forma, no caso, não pode ser entendida como
causa, pelo menos no sentido mais amplo, pois forma e natureza coexistem ao
mesmo tempo.
18 Original: ut inveniatur natura alia, quae sit cum natura data convertibilis et
tamen sit limitatio naturae notioris. instar generis veri.
19 Original: quod in Operando utilissimum, id in Sciendo verissirnum. Cf.
Aforismos 1 e 3, Livro I.
20 Spedding (op. cit., vol. 1, página 231) lembra que ainda Leibniz pensava na
obtenção artificial do ouro.
21 Original: transformatio in aurum.
22 Original: modus operandi.
23 Grifo no original.
24 Original: primis menstruis, expressão usada em alquimia.
25 Original: spiritus.
26 Original: prima illa et catholica axiomata.
27 Original: pinguissima Minerva et prorsus inhabili contexuntur.
28 Original: per minima.
29 Original: latentis schematismi. vide nota 8, supra.
30 Original: de novo inducunt et superinducunt.
31 o processo latente parece ser a “conseqüência dinâmica” do esquematismo
latente, que está em estreita conexão com a forma.
32 Original: spiritus. O espírito, por ser intangível e invisível, distingue-se de
toda essência tangibilis e está no interior de todo corpo tangível. Cf. Aforismo
50, Livro 1.
33 Original: vacuum. Aqui se tem uma idéia da posição de Bacon em relação ao
atomismo, assunto que retoma no Aforismo 48. Aceita a constituição atômica
dos corpos, mas não aceita o vazio e a imutabilidade das partículas.
34 Original: materiam nonfluxam.
35 Original: particulas veras.
36 Original: quando physicum terminatur in mathematico. Bacon pensa na
aplicação da matemática para a determinação das últimas “partículas da
matéria”.
37 Original: duobus generibus axiomatum.
38 Cf. Aforismo 5, Livro II.
39 Spedding discute a adequação dos termos do original, entendendo que no
lugar de ratione et sua lege Bacon teria pensado em ratione sua et lege.
40 o sentido de metafísica não é o tradicional. Bacon nele inclui a teologia, bem
como o estudo das causas finais. Cf. De Augmentis Scientiarum, III, 4.
41 Indução e dedução, esta não chega a ser tratada no Novum Organum.
42 Original: ministrationis.
43 Indicação para o problema da divisão das ciências e sua correlação com a
organização da mente, tema tratado no De Augmentis Scientiarum.
44 Tabulae et coordinationes instantiarum.
45 Bacon entende dever começar pelo método de interpretação baseado na
indução, por exclusões, e depois retornar para o tratamento das demais
administrações.
46 Original: comparentia ad intellectum. O primeiro sendo termo de uso
jurídico, preferiu-se citação em português, termo da mesma origem e
significando “colocar em presença”.
47 Nessa tábua devem ser anotados todos os casos em que aparece o fenômeno
que é objeto de estudo. Se os exemplares forem dessemelhantes, será mais
segura a identificação da natureza respectiva.
48 “Historicamente” tem o sentido de: à medida que os fatos vão aparecendo,
em oposição a qualquer antecipação especulativa.
49 Original: forma calidi. “Forma”, nesta passagem, é também traduzida por
natureza, por causa. Cf. E. de Mas, op. cit. vol. I, página 354.
50 A partir desta altura, tornam-se numerosas e minuciosas as descrições de
exemplos e experimentos.
51 O original acrescenta o verso de Virgilio: Nec Boreae penetrabile frigus
adurit, As Geórgias, I, 93.
52 Vide nota 17 supra.
53 Na Tábua de Ausência, ao Contrário que na de presença, devem ser anotados
os casos semelhantes, em que a natureza ou o fenômeno objeto de estudo não
aparece.
54 Tabulam Declinationis, sive Absentiae in proximo.
55 Em grifo e corpo maior no original.
56 Suposição da época, de origem astronómica.
57 História relatada por Agostinho, De Generi Contra Manichaeos, Livro I,
capítulo 15.
58 Homero. Odisséia, VI, 41-46.
59 O fato teria ocorrido em junho de 1597, na expedição de Barentz, que
buscava uma passagem a nordeste, apud E. de Mas, op. cit., página 358.
60 Os experimentos descritas nesta segunda parte foram criticados por
Mersenne por já terem sido realizados antes de Bacon. Lembre-se que Bacon
não nutria qualquer pretensão de originalidade a respeito. Cf. Ellis, op. cit.
página 241, vol. I, nota 3.
61 Original: speculum.
62 Original: simulacra.
63 A invenção do termômetro é atribuida a Galileu em 1597, ao médico
holandês Drebbel em 1609, ao Frei Paulo Sarsi em 1609, e ainda ao médico
italiano Santório em 1610.
6 4 Idem nota 60 supra.
65 Há divergência quanto a esse parágrafo, se se opôe à segunda ou á terceira
instância.
66 Os antigos astrônomos discutiam se os cometas deveriam ser considerados
meteoros (produzidos na atmosfera) ou da mesma substância dos planetas. O
assunto foi retomado por Galileu.
67 Original: trabes et columnae lucidae.
68 Também seriam fenômenos de eletricidade.
69 Virgílio, Eneida, II.
70 Camões em: Lume vivo, que a marítima gente
Tem por santo em tempo de tormenta,
Os Lusíadas, Canto V.
71 Ventos do leste e do norte.
72 Ventos do sul e do oeste.
73 Termômetro tosco do tempo.
74 Aristóteles, Meteorologia, I, 2, 341A; e De Caelo (Sobre o céu), II, 7, 288A.
75 Tem significado de contraposição. Aparece em Aristóteles, Física VIII, 10,
267A, com o sentido tomado usual de “mudança em sentido contrário”.
76 Original: acqua regia.
77 Original: acquafortis.
78 Vide Aforismo 11, supra.
79 Original: secundum analogiam.
80 Original: vitrum graduum sive calendare.
81 O experimento reaparece no Aforismo 38, Livro II.
82 Original: inflamationibus spiritus. De Mas traduz por “inflamações
respiratórias”
83 Foi de uma molêstia, adquirida em uma experiência sobre a conservação da
carne pelo frio, que Bacon veio a falecer.
84 Bacon não deixou qualquer trabalho sistemático sobre o frio, salvo o
fragmento Calor et Frigus, in Works, III, pp. 641-652.
85 Original: comparentia ad intellectum.
86 Original: ipsissima res, com sentido de a coisa em si mesma, considerada em
sua essência singular.
87 Original: in ordine ad hominem et in ordine ad universum.
88 Original: petrolaeum.
89 Cf. Aforismos 11, 18, Livro II.
90 Cf. Aforismos 12, 30.
91 Original: animalcula. A putrefação era entendida como um processo de
geração e copulação.
92 Constãncio II, filho de Constantino.
93 Canícula ou Cão Menor.
94 Termos usuais na astronomia anterior a Copérnico.
95 O chamado fogo grego era conhecido no Oriente muito antes da pólvora.
96 Em contraposição ao indicado nos Aforismos 12, 9.
97 Ou com foles (flatu).
98 Ver nota 84.
99 A idéia de “irritação” é considerada fantástica pelos comentadores.
100 Original: in vitris calendaribus.
101 O espírito é a parte mais sutil do corpo, dele são dotadas mesmo as coisas
inanimadas.
102 Original: calidum, quatenus ad sensum et tactum humanum, res varia est et
respectiva.
103 Original: Comparentiam instantiarum ad intellectum.
10 4 Distinção escolástica.
10 5 Referência ao sistema escolástico de defesa dos dois lados de uma questáo.
10 6 Original: inditor et opifex formarum.
107 Segundo De Mas, falta ao homem o intelecto intuitivo, op. cit. página 381.
108 Original: ignem divinum.
109 Referência às formas platônicas.
110 Original: de formis copulatis.
111 Ainda referência às idéias platônicas.
112 Original: Lex Calidi sive Lex Luminis.
113 Original: integralitate.
114 Original: Lucem aut lumen.
115 Original: in vitris calendariis.
116 Original: Naturam principalem.
1 1 Original: naturarum simplicium.
118 Original: notio tenuitatis.
119 Original: fiat permissio intellectui.
120 Original: in affirmativa.
121 Original: Permissionem Inteilectus sive Interpretationem Inchoatam, sive
Vindemiationem Primam.
1 22 Original: elucescentias vel instantias ostensivas.
123 Original: ipsissimus calor.
124 Original: quid ipsum caloris.
125 Aforismo 48, 11.
126 Linguagem escolástica, a diferença limita o gênero e constitui a espécie.
127 Original: ex repercussione irritatum.
128 Original: qualis competit sensui.
129 Original: Prerogativis Instantiarum.
130 Original: Adminiculis Inductionis.
131 Original: Rectificatione Inductionis.
132 Original: Variatione Inquisitionis pro Natura Subjecti.
133 Original: Prerogativis Naturarum.
134 Original: Terminis Inquisitionis.
135 Original: Deductione ad Praxim.
136 Original: Parascevis ad Inquisitionem.
137 Original: Scala Ascensoria et Descensoria Axiomatum.
138 Original: Ferinas.
139 Original: Instantias Migrantes.
140 Original: adgenerationem.
141 Original: cum efficiente aut privante.
142 Como já foi indicado, Bacon distingue a forma da causa eficiente.
143 Original: Instantias Liberatas et Predominantes.
144 Original: substantivam.
145 Original: maxime ostensivae formae.
146 Original: Instantias Clandestinas.
147 Original: Instantias Crepusculi.
148 Original: Liquidum et Consistens.
149 Original: plebeas et ad sensum.
150 Original: Attractio, sive Coitio Corporum.
151 Original: Instantias Constitutivas.
152 Original: Manipulares.
153 Original: inventionem legitimam Formae Magnae.
154 Original: Laci.
155 Original: Mnemotécnica. Era uma arte muito difundida no
Renascimento.
156 Original: abscyssio infiniti.
157 Original: deducat intellectuale ad ferendum sensum.
158 Original: in affectu forti.
159 Platão, Fedro, 266B.
160 Original: Instantias Conformes, sive Proportionatas.
161 Original: Similitudines Physicas.
162 Concepçâo difundida por Telésio e recolhida em Galeno.
163 Aristóteles, História dos Animais, I, 5, 490A.
164 “Iludir a espera.”
165 “Escorregar na cadência.”
166 Original: Instantias Monadicas.
167 Original: Irregulares sive Heteroclitas.
168 Original: pro secretis et magnalibus naturae.
169 Original: Instantias Deviantes.
170 Aristóteles, Ética a Nicômaco, VI, 4, 1140A.
171 Original: Instantias Limitaneas, Participia.
172 Ênio, apud De Mas. op. cit. página 411.
173 Instantias Potestatis, sive Fascium.
174 Cf. Aforismo 109, Livro 1.
175 Cf. Aforismo 3, Livro II.
176 Deve ser lembrado tratar-se de uma época de prestígio para a magia e
coisas semelhantes.
177 Original: Deductionibus ad Praxim.
178 Original: Instantias Comitatus atque Hostiles.
179 Cf. Aforismo 23, supra.
180 Original: circumscriptiones formarum.
181 Original: Instantias Subjunctivas.
182 Original: Instantias Ultimitatis.
183 Original: Instantias Foederis sive Unionis.
184 Aristóteles, Meteorologia I, 14, 35 lA.
185 Gerolamo Fracastoro (1483-1553), físico, médico e poeta italiano
conhecido.
186 Teoria de Aristóteles, De coelo, 1, 2. 268B, 269B, Física VIII, 9, 265A-B.
187 Meteoros I, 7, 344.
188 Cícero, De Fato (O Destino) 20,46.
189 Gilbert explica a gravitação como resultado do magnetismo.
190 Original: discursus Ingenii.
191 Aviano, Fabulae, XXVII, apud De Mas, op. cit. página 422.
192 Original: Instantias Crucis.
193 Original: Instantias Decisorias et Judiciales.
194 Original: Instantias Oraculi et Mandati.
195 Refere-se Bacon ao Padre José de Acosta, S.J. (1539-1600) que escreveu
uma difundidíssima Historia Natura ly Moral de las Índias (1590).
196 Era opinião corrente na época.
197 É assunto controverso a posição de Bacon em relação à teoria de
Copérnico. De que lhe era contrário parece não haver dúvidas. A discussão se
desenvolve em torno dos motivos reais.
198 Por esse exemplo pretendeu-se ter Bacon antecipado a explicação sobre a
atração, como Voltaire; mas certamente utilizou a obra de Gilbert, que bem
conhecia.
199 Bacon conheceu diretamente pelo menos suas obras sobre fisica e medicina.
200 Original: spiritus crudi. Substãncias aeroformes, como a água, em oposição
às inflamáveis.
201 Original: et non per rationes probabiles
202 Original: Instantias Divortii.
203 Cf. Aforismo 33, supra.
204 Cf. Aforismo 104, Livro I.
205 Original: contubernales.
206 Original: actio naturalis.
207 Original: secundum sensum philosophanti.
208 Original: Instantias Lampadis.
209 Original: Instantias Januae sive Portae.
210 Seriam os primeiros microscópios.
211 Aristóteles, Da Geração e Corrupção, I, 8, 325A.
212 O telescópio foi construído em 1608 por Galileu, a partir de um modelo do
holandês H. Lippershey.
213 Essa passagem parece mostrar que Bacon conhecia o Sidereus Nuncius de
Galileu.
214 Original: Instantias Citantes.
215 Original: Insiantias Evocantes.
216 Original: spiritus abscissi.
217 Conhecidas expressões originadas em Parmênides e muito difundidas no
Renascimento.
218 Antiga medida, também usada em Portugal, e correspondente a mais ou
menos dois litros.
219 Original: latitantiae.
220 Assunto tratado no De Augmentis Scientiarum, IV, 3.
221 Original: per rationem et philosophiam universalem.
222 Original: Instantias Viae.
223 Original: Instantias Articulatas.
224 Bacon não chegou a desenvolver esse assunto.
225 Original: Instantias Supplementi.
226 Original: Instantias Perfugii.
227 Original: Instantias Persecantes, Instantias Vellicantes
228 Cf. Aforismo 51, Livro 1.
229 Original: Instantiae Persecationis.
230 Original: Instantias Mathematicas e Instantias Mensurae.
231 Original: Instantias Propitias sive Benevolas.
232 Original: Instantias Virgae.
233 Original: Radii.
234 Original: Instantias Perlationis.
235 Original: Non Ultra.
236 Heródoto, História, I, 179.
237 Original: Instantias Curriculi.
238 Original: Instantias ad Acquam.
239 Para Galileu a maré é produzida pela diferença de velocidade dos vários
pontos da terra, devido à composição dos dois movimentos, de rotação e de
revolução.
240 Original: sed hoc commentus est concesso non concessibili.
241 Original: Instantias Quanti.
242 Original: Doses Naturae.
243 Essa passagem indicaria o conhecimento de Bacon das experiências de
Galileu feitas na torre de Pisa.
244 Original: Instantias Luctae.
245 Original: Instantias Praedominantiae.
246 Original: motus antitypiae.
247 Original: motus hyles.
248 Original: spiritus emortuus ou mortualis, em contraposição ao spiritus
vitalis, próprio dos corpos animados.
249 O rejuvenescimento é uma preocupação constante na obra de Bacon
(senectutis refociliatio).
250 Original: vacuum, sive coacervatum sive permistum.
251 Aristóteles, Física, IV, 6, 213B.
252 Original: iste enim plane plica materiae.
253 Original: Instantias Innuentes.
254 Original: Chartae humanae ou Chartae optativae.
255 Original: Instantias Polychrestas.
256 Original: lutum sapientiae, mistura empregada para fechar recipientes.
257 Fato relatado por Marco Polo.
258 Original: menstrua seria uma substância geradora dos metais.
259 Ordem fundada por Jean de La Barrière, em 1573, derivada da Ordem de
Cister.
260 Original: Instantias Magicas.
261 Gênesis, 3, 19.
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