terdes receio de eu estar agora com ânimo diferente. Pelo que vejo, considerais-me inferior
aos cisnes, pois quando estes percebem que estão perto de morrer, por terem cantado a vida
toda, mais vezes e melhor põem se a cantar, contentes de partirem para junto do deus de
que são os servidores. Porém com seu medo característico da morte, os homens caluniam os
cisnes, com afirmarem que eles cantam por chorarem a morte, de tristeza, sem refletirem
que nenhum ave canta quando tem fome ou frio, ou quando presa de outra angústia, nem
mesmo o rouxinol, a andorinha ou a poupa, cujo canto, segundo dizem, serve de alimentar a
dor. Porém não creio que nenhum deles cante por estarem tristes, muito menos os cisnes.
Ao contrário: por pertencerem a Apolo, segundo penso, têm o Dom da profecia, e por
preverem as delícias do Hades, cantam e se alegram nesse dia muito mais do que antes. Eu,
de minha parte, também me considero servidor igual da divindade, como os cisnes, e a ela
consagrado, e por ser dotado pelo meu senhor de não menor Dom de profecia, não deixarei
a vida com menos coragem do que eles. Por isso, podeis falar à vontade e formular as
perguntas que entenderdes todo o tempo que o permitirem os onze cidadãos de Atenas.
Perfeito, falou Símias, pois então vou dizer-te quais são as minhas dúvidas, para
depois indicar este aqui os pontos de tua exposição com que ele não concorda. Sobre esses
assunto, Sócrates, creio estar de acordo contigo, que se nesta vida não for impossível saber
a essa respeito algo definitivo, é extremamente difícil. Mas também será prova de fraqueza
deixar de analisar por todos os modos o que foi dito, e não abandonar o assunto enquanto
não sentirmos cansaço. Neste passo vemo-nos ante o dilema: aprender e descobrir o de que
se trata, ou, no caso de não ser isso possível, adotar a melhor opinião e a mais difícil de
contestar, e nela instalando-nos à guisa de jangada, procurar fazer a travessia da vida, na
hipótese de não conseguir isso mesmo com maior facilidade e menos perigo numa
embarcação mais firme, ou seja, com alguma palavra divina. Assim, não ficarei acanhado
agora de interrogar-te, já que tu próprio mo aconselhas, nem precisarei censurar-me de
futuro por não te haver dito hoje o que pensava. O fato, Sócrates, é que quando reflito no
que disseste, ou seja comigo mesmo ou na companhia deste aqui, tenho a impressão de que
nem tudo ficou bem fundamentado.
XXXVI – Sócrates respondeu: Talvez, companheiro, lhe falou, estejas com a razão;
porém explica o que não te parece bem fundamentado.
É que seria possível alegar a mesma coisa, continuou, a respeito da harmonia e da lira
com suas cordas, a saber: que a harmonia é algo invisível, incorpóreo e sumamente belo
numa lira bem afinada, e que esta, por sua vez, é corpo, com também o são as cordas,
coisas materiais, compostas, terrenas e de natureza morta. Ora, no caso de alguém quebrar a
lira e cortar ou arrebentar as cordas, alguém poderia argumentar como o fizeste:
forçosamente aquela harmonia ainda vive, pois não foi destruída; pois não é possível
subsistir a lira depois de se partirem as cordas, e as próprias cordas, todas elas de natureza
morta, e desaparecer a harmonia, da mesma natureza e da família do divino e do imortal,
que assim viria a ser destruída até mesmo antes do que é perecível. Não, prosseguiria essa
pessoa; necessariamente a harmonia terá de continuar em qualquer parte, por ser forçoso
que a madeira apodreça primeiro, e as cordas, antes de acontecer àquela alguma coisa. A
esses respeito, Sócrates, creio que tu mesmo já consideraste que a noção da alma admitida
por nós é mais ou menos a seguinte: Da mesma foram que temos o corpo distendido e
coeso pelo calor e o frio, o seco e o úmido, e tudo o mais do mesmo gênero, viria a ser