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Versão eletrônica do livro “Investigação Acerca do Entedimento Humano”
Autor: David Hume
Tradução: Anoar Aiex
Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópolis (Filosofia)
Homepage do grupo: http://br.egroups.com/group/acropolis/
A distribuição desse arquivo (e de outros baseados nele) é livre, desde que se dê os créditos da digitalização aos membros do grupo
Acrópolis e se cite o endereço da homepage do grupo no corpo do texto do arquivo em questão, tal como está acima.
Ensaio Sobre o Entendimento Humano
David Hume
SEÇÃO I
DAS DIFERENTES CLASSES DE FILOSOFIA
1
A FILOSOFIA MORAL, ou ciência da natureza humana
2
, pode ser tratada de duas
maneiras diferentes; cada uma delas tem seu mérito peculiar e pode contribuir para o
entretenimento, instrução e reforma da humanidade. A primeira considera o homem como
nascido principalmente para a ação; como influenciado em suas avaliações pelo gosto e pelo
sentimento; perseguindo um objeto e evitando outro, segundo o valor que esses objetos
parecem possuir e de acordo com a luz sob a qual eles próprios se apresentam. Como se
admite que a virtude é o mais valioso dos objetos, os filósofos desta classe pintam-na com as
mais agradáveis cores e, valendo-se da poesia e da eloquência, discorrem acerca do assunto
de maneira fácil e clara: o mais adequado para agradar a imaginação e cativar as inclinações.
Escolhem, na vida cotidiana, as observações e exemplos mais notáveis, colocam os caracteres
opostos num contraste adequado e, atraindo-nos para os caminhos da virtude com visões de
glória e de felicidade, dirigem nossos passos nestes caminhos com os mais sadios preceitos e
os mais ilustres exemplos. Fazem-nos sentir a diferença entre o vício e a virtude; excitam e
regulam nossos sentimentos; e se eles podem dirigir nossos corações para o amor da
probidade e da verdadeira honra, pensam que atingiram plenamente o fim de todos os seus
esforços.
Os filósofos da outra classe consideram o homem mais um ser racional que um ser
ativo, e procuram formar seu entendimento em lugar de melhorar-lhe os costumes.
Consideram a natureza humana objeto de especulação e examinam-na com rigoroso cuidado
a fim de encontrar os princípios que regulam nosso entendimento, excitam nossos
sentimentos e fazem-nos aprovar ou censurar qualquer objeto particular, ação ou conduta.
Julgam uma desgraça para toda a literatura que a filosofia não tenha estabelecido, além da
controvérsia, o fundamento da moral, do raciocínio e da crítica; e que sempre tenha que falar
da verdade e da falsidade, do vício e da virtude, da beleza e da fealdade, sem ser capaz de
determinar a fonte destas distinções. Enquanto tentam realizar esta árdua tarefa, nenhuma
dificuldade os desencoraja; passam de casos particulares para princípios gerais, e conduzem
ainda mais suas investigações para princípios mais gerais, e não ficam satisfeitos até chegar
àqueles princípios primitivos que, em toda ciência, devem limitar toda curiosidade humana.
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Embora suas especulações pareçam abstratas e mesmo ininteligíveis aos leitores comuns,
aspiram à aprovação dos eruditos e dos sábios e consideram-se suficientemente compensados
pelo esforço de toda a existência se puderem descobrir algumas verdades ocultas que possam
contribuir para o esclarecimento da posteridade.
Certamente, a filosofia fácil e dada terá sempre preferência, para a maioria dos homens,
sobre a filosofia exata e abstrusa; e por muitos será recomendada, não apenas como a mais
agradável, mas também como mais útil do que a outra. Ela penetra mais na vida cotidiana,
molda o coração e os afetos, e ao atingir os princípios que impulsionam os homens, reforma-
lhes a conduta e aproxima-os mais do modelo de perfeição que ela descreve. Ao contrário, a
filosofia abstrusa, alicerçada numa concepção que não pode penetrar na vida prática e na
ação, desvanece quando o filósofo sai da sombra e penetra no dia claro, nem seus princípios
podem manter facilmente qualquer influência sobre nossa conduta e nossos costumes. Os
sentimentos de nosso coração, a perturbação de nossas paixões e a impetuosidade de nossas
emoções, dissipam todas as suas conclusões e reduzem o filósofo profundo a um simples
plebeu.
É preciso também reconhecer que a filosofia fácil adquiriu a mais durável como
também a mais justa fama, e que os raciocinadores abstratos têm apenas, até aqui, gozado de
uma reputação momentânea, nascida do capricho ou da ignorância de sua própria época, mas
eles não têm sido capazes de manter sua fama ante o juízo eqüitativo da posteridade. Um
filósofo profundo pode facilmente cometer um erro em seus raciocínios sutis, e um erro é
necessariamente gerado de um outro, visto que ele o desenvolve até suas conseqüências e não
é dissuadido em adotar uma conclusão de aspecto incomum ou por ser contrária à opinião
popular. Mas um filósofo que apenas se propõe representar o sentimento comum da
humanidade nas cores mais belas e mais agradáveis, se por acidente cai em erro, recorre
novamente ao senso comum e aos sentimentos naturais do espírito e assim volta ao caminho
certo e se protege de ilusões perigosas. A fama de Cícero floresce no presente, mas a de
Aristóteles está completamente decadente. La Bruyére ultrapassou os mares e ainda mantém
sua reputação; todavia, a glória de Malebranche está limitada à sua própria nação e à sua
própria época. Addison, talvez, será lido com prazer quando Locke estiver completamente
esquecido.
3
O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois
supõe-se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto
vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções
igualmente distantes de sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais
desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação
em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de
gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre
estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para
os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura
literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia
conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do
que as composições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida,
que não requerem, para ser compreendidas, profunda aplicação ou retraimento e que
devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios
preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a
virtude toma-se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um
divertimento.
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O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequada nutrição e
alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se
pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança de suas aquisições.
O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre
pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para
ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da
vida humana, o submete necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito
precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o
trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um gênero misto de vida como o mais
apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permitirem a
nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para
outras ocupações e entretenimentos. Tolero vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com
que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a
sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei
severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos
envolvem e pela fria recepção que vossos supostos descobrimentos encontrarão quando
comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um
homem.
4
Se, em geral, os homens se contentassem em preferir a filosofia fácil à abstrata e
profunda, sem censurar ou desprezar a última, não seria, talvez, inadequado, concordar com
esta opinião geral e permitir a cada homem o direito de desfrutar livremente de seu próprio
gosto e sentimento. Mas, como a questão é, freqüentemente, levada mais longe, até a
completa rejeição de todo raciocínio profundo, ou o que é geralmente denominado de
metafísica, passaremos a examinar o que se pode considerar razoável pleitear em seu favor.
Podemos começar observando que uma vantagem considerável que resulta da filosofia
abstrata e exata consiste em sua utilidade para a filosofia fácil e humana, a qual, sem a
primeira, nunca poderia alcançar um grau suficiente de exatidão em suas opiniões, preceitos
ou raciocínios. As belas-letras não são outra coisa senão pinturas da vida humana em diversas
atitudes e situações, que nos infundem diferentes sentimentos de louvor ou de censura, de
admiração ou de zombaria, de acordo com as qualidades dos objetos que elas colocam diante
de nós. Um artista estará mais bem qualificado para triunfar em seu empreendimento se
possui, além de gosto delicado e de rápida compreensão, um conhecimento exato da estrutura
interna do corpo, das operações do entendimento, do funcionamento das paixões e das
diversas espécies de sentimentos que distinguem o vício e a virtude. Por mais árdua que possa
parecer esta pesquisa ou investigação in terna, ela se toma, em certa medida, indispensável
àqueles que quiserem descrever com sucesso as aparências exteriores e patentes da vida e dos
costumes. O anatomista apresenta aos olhos os objetos mais hediondos e desagradáveis,
porém sua ciência é útil ao pintor, quando desenha até mesmo uma Vênus ou uma Helena.
Enquanto o pintor emprega as cores mais ricas de sua arte e dá às suas figuras o aspecto mais
gracioso e o mais atraente, deve ainda dirigir sua atenção para a estrutura interna do corpo
humano: a posição dos músculos, o sistema ósseo e a forma e função de cada parte ou órgão.
A exatidão e, em todos os casos, vantajosa à beleza, e o raciocínio justo ao sentimento
delicado. Em vão exaltaríamos uma desvalorizando a outra.
Além disso, podemos observar em todas as artes ou profissões, mesmo as que mais se
relacionam com a vida ou com a ação, que um espírito de exatidão, por qualquer meio
adquirido, as conduz mais perto da perfeição e as torna mais úteis aos interesses da
sociedade. Embora um filósofo possa viver longe dos negócios, o espírito da filosofia, se
cuidadosamente cultivado por alguns, difunde-se gradualmente através de toda a sociedade e
confere a todas as artes e profissões semelhante correção. O político adquirirá maior previsão
e sutileza na divisão e no equilíbrio do poder, o advogado, mais método e princípios mais
sutis em seus raciocínios, o general, mais regularidade em sua disciplina, mais cautela em
seus planos e em suas manobras. A maior estabilidade dos governos modernos sobre os
antigos e a exatidão da filosofia moderna têm melhorado, e provavelmente melhorarão ainda
mais, por gradações semelhantes.
Se não houvesse nenhuma vantagem a ser colhida destes estudos além da satisfação de
uma curiosidade ingênua, mesmo assim este resultado não devia ser desprezado, pois ele se
acrescenta aos poucos prazeres seguros e inofensivos que são conferidos à raça humana. O
caminho da vida, o mais agradável e o mais inofensivo, passa pelas avenidas da ciência e do
saber; e, quem quer que possa remover quaisquer obstáculos desta via ou abrir uma nova
perspectiva, deve ser consid erado um benfeitor da humanidade. Embora estas pesquisas
possam parecer árduas e fatigantes, ocorre aqui como com certos espíritos ou com certos
corpos que, por estarem dotados de grande vitalidade, necessitam de exercícios severos e
colhem prazer daquilo que, para a maioria dos homens, parece penoso e laborioso. A
obscuridade é, de fato, penosa tanto para o espírito como para os olhos; todavia, trazer luz da
obscuridade, por mais trabalhoso que seja, deve ser agradável e regozijador.
Mas, objeta -se, a obscuridade da filosofia profunda e abstrata não é apenas penosa e
fatigante, como também é uma fonte inevitável de incerteza e de erro. Na verdade, esta é a
objeção mais justa e mais plausível contra uma parte considerável da metafísica, que não
constitui propriamente uma ciência, mas nasce tanto pelos esforços estéreis da vaidade
humana que queria penetrar em recintos completamente inacessíveis ao entendimento
humano, como pelos artifícios das superstições populares que, incapazes de se defenderem
lealmente, constróem estas sarças emaranhadas para cobrir e proteger suas fraquezas.
Perseguidos em campo aberto, estes salteadores correm para a floresta e põem-se de
emboscada para surpreender toda avenida desguarnecida do espírito, a fim de dominá-lo com
temores e preconceitos religiosos. O antagonista mais valente é subjugado se, por um
momento, suspende sua guarda. Muitos por covardia e tolice abrem os portões para os
inimigos e voluntariamente os recebem com reverência e submissão como se fossem seus
soberanos legítimos.
Mas esta é uma razão suficiente para que os filósofos desistam de tais pesquisas e
deixem a superstição para sempre em posse de seu refúgio? Não é mais conveniente tirar uma
conclusão contrária e perceber a necessidade de conduzir a guerra no mais secreto abrigo do
inimigo? Em vão esperamos que os homens, em virtude de freqüentes decepções, abandonem
finalmente estas ciências etéreas e descubram o verdadeiro campo da razão humana. De fato,
além de muitas pessoas empenharem-se sensatamente em sempre repetir semelhantes
ponderações, além disso, digo eu, nas ciências nunca há razão para desesperar; embora os
esforços anteriores tenham fracassado, há ainda esperança de que a diligência, a boa sorte ou
a sagacidade aperfeiçoada de gerações sucessivas possam alcançar descobertas desconhecidas
das épocas anteriores. Todo espírito aventureiro se lançará para a conquista do difícil prêmio
e se verá mais estimulado do que desencorajado pelas falhas de seus predecessores,
porquanto espera que a glória de terminar uma aventura tão difícil lhe é reservada. O único
método para libertar de vez o saber destas questões abstrusas consiste em examinar
seriamente a natureza do entendimento humano e mostrar, por meio de uma análise exata de
suas faculdades e capacidades, que ela não é, de nenhuma maneira, adequada a assuntos tão
remotos e abstrusos. Devemos submeter-nos a esta fadiga a fim de viver tranqüilos todo o
resto do tempo, e devemos cultivar a verdadeira metafísica com cuidado para destruir a
metafísica falsa e adulterada. A indolência que, para algumas pessoas, oferece proteção
contra esta filosofia enganadora é para outras superada pela curiosidade; e o desespero que
em alguns momentos prevalece pode ser seguido de grandes esperanças e de expectativas
otimistas. O raciocínio exato e justo é o único remédio universal adequado a todas as pessoas
e aptidões, o único capaz de destruir a filosofia abstrusa e o jargão metafísico que, mesclados
com a superstição popular, se tomam, por assim dizer, impenetráveis aos pensadores
descuidados e se afiguram como ciência e sabedoria.
5
Além das vantagens de rejeitar, após a investigação deliberada, o aspecto mais incerto e
desagradável do conhecimento, há muitas vantagens que resultam de uma inquirição exata
dos poderes e das faculdades da natureza humana. É curioso que as operações do espírito, não
obstante mais intimamente ligadas a nós, surjam envoltas em obscuridade todas as vezes que
se tornam objeto da reflexão e a visão é incapaz de discernir com facilidade as linhas e os
limites que as separam e as distinguem. Os objetos são muito tênues para permanecer por
muito tempo sob o mesmo aspecto ou situação e devem ser apreendidos num instante, por
uma perspicácia superior recebida da natureza e desenvolvida pelo hábito e pela reflexão.
Deste modo, apenas conhecer as diferentes operações do espírito, sua separação, sua
classificação em categorias apropriadas e a correção da aparente desordem em que se
encontram constituem uma parte considerável da ciência, quando elas são tomadas como
objeto da reflexão e da pesquisa. Esta tarefa de organização e de distinção, que não tem
mérito quando feita em relação aos corpos externos que são os objetos de nossos sentidos,
aumenta de valor quando se dirige às operações do espírito, em proporção à dificuldade e ao
esforço que encontramos ao realizá-la. Se não pudermos ir além desta geografia mental ou do
delineamento das distintas partes e faculdades do espírito, ao menos será satisfatório chegar
até lá; por mais evidente que possa parecer esta ciência e de nenhum modo o é mais
desprezível ainda deve ser considerada sua ignorância por todos aqueles que pretendem
alcançar o saber e a filosofia.
Nenhuma dúvida pode subsistir de que esta ciência é incerta e quimérica, a não ser que
nos nutramos de um tal ceticismo que destrua inteiramente toda especulação e mesmo toda
ação. Não há dúvidas de que o espírito está dotado de diversos poderes e faculdades, que
esses poderes são distintos uns dos outros, que o que é realmente diferente de imediato para a
percepção pode ser discernido pela reflexão e, por conseguinte, em todas as proposições que
se referem a este tema há uma verdade e uma falsidade que não estão fora do alcance do
entendimento humano. Há muitas distinções evidentes deste gênero, como aquelas entre a
vontade e o entendimento, a imaginação e as paixões, que podem ser compreendidas por toda
criatura humana. As distinções mais sutis e mais filosóficas não são menos reais e certas,
embora mais difíceis de ser compreendidas. Alguns exemplos, especialmente recentes, de
êxitos obtidos nestas investigações podem dar-nos uma noção mais justa da certeza e da
solidez deste ramo do saber. Ora, estimaremos valioso o esforço de um filósofo que nos dá
um verdadeiro sistema dos planetas e estabelece a posição e a ordem daqueles corpos
remotos, enquanto afetamos desdenhar aqueles que, com igual êxito, determinam as partes do
espírito que nos dizem respeito tão de perto?
6
Mas não podemos esperar que a filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada
pela atenção do público, possa levar suas indagações ainda mais longe e descubra, pelo
menos em parte, as fontes e os princípios secretos que impulsionam o espírito humano em
suas operações? Os astrônomos contentaram-se durante muito tempo em provar, a partir dos
fenômenos, o movimento verdadeiro, a ordem e a grandeza dos corpos celestes até que surgiu
um filósofo
7
que, mediante um feliz raciocínio, parece haver determinado também as leis e
forças que dirigem e governam as revoluções dos planetas. E não há razão para temer que não
tenhamos o mesmo êxito em nossas investigações acerca da organização e das faculdades
mentais, se realizadas com o mesmo talento e cautela. E provável que uma operação e um
princípio do espírito dependam de uma outra operação e de um outro princípio que, por seu
turno, possam reduzir-se a uma outra operação e a um outro princípio mais geral e mais
universal. E ser-nos-á muito difícil determinar exatamente até onde é possível levar nossas
investigações, antes e mesmo depois de um cuidadoso exame. É verdade que tentativas
deste tipo são feitas todos os dias, mesmo por aqueles que filosofam de maneira mais
negligente. E nada pode ser mais necessário que ingressar no empreendimento com o máximo
cuidado e atenção, de modo que, se está ao alcance do entendimento humano, pode ser levado
a cabo com felicidade, e, se não está, pode ser rejeitado com alguma confiança e segurança.
Esta última conclusão, certamente, não é desejável e não se deveria aceitá-la com muita
precipitação. Porque, se assim fosse, em quanto deveríamos diminuir a beleza e o valor desta
classe de filosofia? Até agora, os moralistas estão habituados, quando consideram a
multiplicidade e a diversidade das ações que despertam nossa aprovação ou nossa repulsa, a
procurar um princípio comum do qual poderia depender esta variedade de opiniões. E,
embora tenham às vezes levado o assunto demasiado longe devido à sua paixão por algum
princípio geral, é preciso reconhecer que, sem dúvida, são desculpáveis quando esperam
encontrar alguns princípios gerais, aos quais com justiça se poderiam reduzir todos os vícios
e virtudes. Análogos têm sido os esforços dos críticos, dos lógicos e mesmo dos políticos;
nem têm sido suas tentativas completamente malogradas, embora com o correr do tempo,
com maior exatidão e aplicação mais zelosa, possam aproximar ainda mais essas ciências de
sua perfeição. Renunciar de imediato a todas as pretensões desse tipo pode ser justamente
julgado uma conduta mais impetuosa, mais precipitada e mais dogmática do que a mais
confiante e a mais afirmativa das filosofias, que jamais tentou impor aos homens seus
preceitos e princípios incompletos.
Que importa se estes raciocínios sobre a natureza humana pareçam abstratos e de difícil
compreensão? Isto não nos induz a nenhuma pressuposição acerca de sua falsidade. Pelo
contrário, parece impossível que o que até agora tem escapado a tantos sábios e profundos
filósofos seja muito fácil e evidente. Sejam quais forem os sofrimentos que estas pesquisas
possam custar-nos, podemos considerar-nos suficientemente recompensados, não apenas em
matéria de utilidade mas por puro prazer, se pudermos assim aumentar nosso acervo de
conhecimento acerca de assuntos de tão indiscutivel importância.
Mas como, finalmente, o caráter abstrato destas especulações não as recomendam mas
lhes são desvantajosas, e como esta dificuldade pode talvez superar-se com engenho e arte,
por evitar todo pormenor desnecessário, nós temos tentado, na investigação que segue, lançar
alguma luz sobre temas a propósito dos quais se têm mostrado os sábios, até agora,
desanimados pela incerteza, e os ignorantes, pela obscuridade. Ficaríamos felizes se
pudéssemos unir as fronteiras das diferentes correntes de filosofia, reconciliando a
investigação profunda com a clareza e a verdade com a originalidade. E mais felizes ainda se,
raciocinando desta maneira fácil, pudéssemos destruir os fundamentos da filosofia abstrusa,
que até agora apenas parece haver servido de refúgio à superstição e de abrigo ao erro e ao
absurdo.
NOTAS:
1 Nesta seção, Hume apresenta os principais objetivos desta Investigação. Por este
motivo, ela corresponde, como muito bem observa Flew, à parte introdutória do Tratado, em
que Hume mostra que a discrepância existente entre “filosofia e ciência” decorre do fato de
elas não se fundamentarem em base comum. A seguir, revela que o caminho mais indicado
para solucionar o problema consiste em principiar estudando a “ciência do homem”, já que
“todas as ciências têm uma relação, maior ou menor, com a natureza humana”.
A. Flew, Hume’s Philosophy of Belief, Routlege & Kegan Paul, Londres, 1961, pp. 1-7.
2 Ao identificar sua filosofia com a “filosofia moral, ou ciência da natureza humana”,
Hume está indicando que o termo filosofia, como era entendido no século XVIII, tinha um
amplo significado.
3 Nas edições K e L, aparecia a seguinte nota: “Não se intenciona de nenhum modo
depreciar o mérito de Locke, que foi realmente um grande filósofo, pois raciocina com
correção e modéstia. Pretende-se apenas mostrar o destino comum deste gênero de filosofia
abstrata”.
4 A filosofia “fácil” considera seu tema adequado as ações humanas (ela visualiza o
homem como “nascido para a ação”), e tem como fim inculcar a virtude. Seu método consiste
no uso de exemplos que permitem inculcar a virtude. A filosofia “difícil” considera seu tema
apropriado as especulações metafísicas acerca da natureza (isto é, das “essências ocultas”) do
homem e do mundo externo, pois o homem é considerado um “ser racional” que pode
desvendar a natureza das coisas. Seu fim é a verdade absoluta acerca desta natureza imutável.
Seu método é a “instrução” ou a apreensão do conhecimento através de uma longa cadeia de
raciocínios. Uma filosofia adequada, sustenta Hume, deve combinar o tema, o método e o fim
dessas duas classes de filosofia, pois a dualidade da natureza humana parece ser um dos
principais objetivos da Investigação. Desta maneira, o tema adequado é o “entendimento
humano” em suas operações racionais e volitivas, já que o entendimento humano pode ser
entendido como aquilo que é capaz de conhecer-se a si mesmo como centro do pensamento e
da ação. O fim adequado diz respeito a um contínuo desenvolvimento reflexivo de nossa
compreensão do entendimento humano e de suas operações (veja -se seção III). E o método
apropriado é aquele que possibilita esta continua auto-reformação (veja-se seção II, nota 11).
E assim que o entendimento humano chega a descobrir o que pode ser conhecido e o que
pode ser feito, ou melhor, o objeto apropriado sobre o qual o entendimento humano pode e
deve operar e os princípios adequados que devem conduzir os homens aos atos corretos. (R.
Sternfeld, “The Unity of Hume’s Enquiry concerning Human Understanding”, The Review of
Metaphysics, vol. III, 2, Dez., 1949, n. 10 pp. 167-188) [N. do T.].
5 A ênfase dada por Hume aos problemas da natureza e limites do entendimento
humano reflete projeto semelhante ao de Locke, que no An Essay concerning the Human
linderstanding, relata que seu livro nasceu quando ele, com mais cinco ou seis amigos’,
discorria sobre um ‘tópico bem remoto deste (isto é, Essay)”: “ficamos logo inertes, pelas
dificuldades advindas de todas as partes. Depois de algum tempo de hesitação, sem nenhuma
solução viável acerca das dúvidas que nos haviam deixado perplexos, conaiderei que
havíamos iniciado pelo caminho errado e que, antes de nos empenharmos em investigações
desta natureza, devemos examinar nossas próprias habilidades para averiguar com quais
objetos nossos entendimentos podem, ou não, tratar adequadamente” (edição Frazer, Great
Books, chicago, 1952, p. 87). E preciso, todavia, observar que o texto de Hume deixa bem
clara a intenção de empregar o mesmo descobrimento de maneira bem mais agressiva e mais
categórica do que foi utilizado por Locke [N. do T.].
6 Nas edições K e L havia a seguinte nota: Esta faculdade que nos permite discernir o
verdadeiro do falso e aquela que nos faz perceber a diferença entre o vício e a virtude têm
sido por muito tempo confundidas uma com a outra. Supunha-se, deste modo, que toda
temática moral estivesse construída sobre relações eternas e imutáveis, as quais, observadas
por qualquer espírito inteligente, eram consideradas tão invariáveis como qualquer
proposição acerca da quantidade e do número. Há pouco tempo um filósofo [Francis
Hutcheson, citado em nota de rodapé] esclareceu-nos, mediante os mais convincentes
argumentos, que a moral não é nada quando encarada do ponto de vista abstrato, sendo
completamente relativa ao sentimento ou ao gosto de cada ser particular; do mesmo modo
que as diferenças entre doce e amargo, quente e frio nascem do sentimento derivado de cada
sentido ou de cada órgão. Convém, portanto, classificar as percepções morais, não com as
operações do entendimento, mas com os gostos ou sentimentos. “Os filósofos tinham o habito
de dividir todas as paixões do espírito em duas classes, as egoístas e as altruístas, e supunham
que elas estivessem em constante oposição e contradição. Pensavam, ainda, que as últimas
jamais pudessem abarcar seu objeto apropriado sem referência ás primeiras. Entre as paixões
egoístas classificavam a avareza, a ambição e o espírito de vingança; entre as altruístas a
afeição natural, a amizade e o espírito público. Os filósofos já podem averiguar [vejam-se os
Sermões de Butler] a inexatidão desta classificação. Ficou provado, de modo indubitável, que
mesmo as paixões geralmente julgadas egoístas extravasam o próprio espírito na direção do
objeto; que, embora a satisfação destas paixões nos dê prazer, sua antecipação não é, todavia,
a causa da paixão; ao contrário, a paixão precede o prazer e sem a primeira o último jamais
teria podido existir; que esta é precisamente a situação das paixões denominadas altruístas e
que, por conseguinte, um homem não está mais interessado quando aspira à sua própria glória
do que quando a felicidade de seu amigo é o objeto de seus desejos; que ele não está mais
desinteressado quando sacrifica sua tranquilidade e seu repouso ao bem público do que
quando trabalha para satisfazer sua avareza ou ambição. Eis, portanto. um ajuste considerável
entre as fronteiras das paixões, que têm sido confundidas pela negligência ou inexatidão dos
filósofos precedentes. Estes dois exemplos podem servir para nos mostrar a natureza e a
importãncia desta classe de filosofia”. E provável que Hume excluiu esta nota por considerá-
la supérflua depois da publicação de sua An Enquiry concerning the Principies of Morais, em
1751. Parece-nos, todavia, que ela pode esclarecer, especialmente pela menção de Hutcheson,
o projeto humiano. A influência de Hutcheson sobre Hume, como mostra com acerto Smith, é
mais considerável do que se supunha. O núcleo da teoria hutchesoniana consiste, segundo
Smith, em considerar que o último fundamento de nossos juízos de valor, tanto morais como
estéticos, não é a razão, mas o sentimento ou feeling. Hume não apenas adotou este ponto de
vista, mas ampliou seu âmbito ao aplicá-lo a todas as “questões de fato e de existência”
(Investiga çêo, seção IV). Hume antecipa, deste modo, a distinção entre “conhecimento
(nascido das “relações de idéias” e restrito aos objetos matemáticos) e “crença” (inferida das
“relações de fatos” e englobando todos os outros objetos). Esta distinção é, em verdade,
discutida com pormenores na seção IV desta Investigação. (Vejam-se de N. Kemp Smith, The
Philosophy of David Hume, Macmillan, 1949, capítulos I e II; de E. C. Mossner, The Life of
David Hume, Nelson, 1954, pp. 76-7; de F. Hutcheson, Inquiry into the Original of our Ideas
os Beauhj and Virtue, 1725, e Essay on the Nature and Conduct of the Passions and
Affections, 1728.) [N. do T.]
7 A analogia com a astronomia antes e depois de Newton indica quais os resultados que
podem ser obtidos da pesquisa acerca das operações do entendimento humano. A aspiração
manifestada por Hume no subtítulo do Tratado (“tentativa para introduzir o método do
raciocínio experimental em objetos morais”) alusão evidente ao método de Newton e que
lhe valeu o epíteto de ser o Newton das ciências morais é agora reduzida pela aspiração
mais modesta de fazer apenas uma “geometria mental”. Em verdade, a Investigação
caracteriza-se pela maior ênfase dada aos problemas que dizem respeito à natureza,
pressupostos e limitações de vários tipos de pesquisas. (Flew, obra citada, p. 14.) [N. do T.]
SEÇÃO II
DA ORIGEM DAS IDÉIAS
Cada um admitirá prontamente que há uma diferença considerável entre as percepções
1
do espírito, quando uma pessoa sente a dor do calor excessivo ou o prazer do calor moderado,
e quando depois recorda em sua memória esta sensação ou a antecipa por meio de sua
imaginação. Estas faculdades podem imitar ou copiar as percepções dos sentidos, porém
nunca podem alcançar integralmente a força e a vivacidade da sensação original. O máximo
que podemos dizer delas, mesmo quando atuam com seu maior vigor, é que representam seu
objeto de um modo tão vivo que quase podemos dizer que o vemos ou que o sentimos. Mas,
a menos que o espírito esteja perturbado por doença ou loucura, nunca chegam a tal grau de
vivacidade que não seja possível discernir as percepções dos objetos. Todas as cores da
poesia, apesar de esplêndidas, nunca podem pintar os objetos naturais de tal modo que se
tome a descrição pela paisagem real. O pensamento mais vivo é sempre inferior à sensação
mais embaçada.
Podemos observar uma distinção semelhante em todas as outras percepções do espírito.
Um homem à mercê dum ataque de cólera é estimulado de maneira muito diferente da de um
outro que apenas pensa nessa emoção. Se vós me dizeis que certa pessoa está amando,
compreendo facilmente o que quereis dizer-me e formo uma concepção precisa de sua
situação, porém nunca posso confundir esta idéia com as desordens e as agitações reais da
paixão. Quando refletimos sobre nossas sensações e impressões passadas, nosso pensamento
é um reflexo fiel e copia seus objetos com veracidade, porém as cores que emprega são fracas
e embaçadas em comparação com aquelas que revestiam nossas percepções originais. Não é
necessário possuir discernimento sutil nem predisposição metafísica para assinalar a
diferença que há entre elas. Podemos, por conseguinte, dividir todas as percepções do espírito
em duas classes ou espécies, que se distinguem por seus diferentes graus de força e de
vivacidade. As menos fortes e menos vivas são geralmente denominadas pensamentos ou
idéias. A outra espécie não possui um nome em nosso idioma e na maioria dos outros,
porque, suponho, somente com fins filosóficos era necessário compreendê-las sob um termo
ou nomenclatura geral. Deixe-nos, portanto, usar um pouco de liberdade e denominá-las
impressões, empregando esta palavra num sentido de algum modo diferente do usual. Pelo
termo impressão entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos,
vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos. E as impressões diferenciam-se
das idéias, que são as percepções menos vivas, das quais temos consciência, quando
refletimos sobre quaisquer das sensações ou dos movimentos acima mencionados.
2
A primeira vista, nada pode parecer mais ilimitado do que o pensamento humano, que
não apenas escapa a toda autoridade e a todo poder do homem, mas também nem sempre é
reprimido dentro dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar formas e
aparências incongruentes não causam à imaginação mais embaraço do que conceber os
objetos mais naturais e mais familiares. Apesar de o corpo confinar-se num só planeta, sobre
o qual se arrasta com sofrimento e dificuldade, o pensamento pode transportar-nos num
instante às regiões mais distantes do Universo, ou mesmo, além do Universo, para o caos
indeterminado, onde se supõe que a Natureza se encontra em total confusão. Pode-se
conceber o que ainda não foi visto ou ouvido, porque não há nada que esteja fora do poder do
pensamento, exceto o que implica absoluta contradição.
Entretanto, embora nosso pensamento pareça possuir esta liberdade ilimitada,
verificaremos, através de um exame mais minucioso, que ele está realmente confinado dentro
de limites muito reduzidos e que todo poder criador do espírito não ultrapassa a faculdade de
combinar, de transpor, aumentar ou de diminuir os materiais que nos foram fornecidos pelos
sentidos e pela experiência. Quando pensamos numa montanha de ouro, apenas unimos duas
idéias compatíveis, ouro e montanha, que outrora conhecêramos. Podemos conceber um
cavalo virtuoso, pois o sentimento que temos de nós mesmos nos permite conceber a virtude
e podemos uni-la à figura e forma de um cavalo, que é um animal bem conhecido. Em
resumo, todos os materiais do pensamento derivam de nossas sensações externas ou internas;
mas a mistura e composição deles dependem do espírito e da vontade. Ou melhor, para
expressar-me em linguagem filosófica: todas as nossas idéias ou percepções mais fracas são
cópias de nossas impressões ou percepções mais vivas.
Para prová-lo, espero que serão suficientes os dois argumentos seguintes. Primeiro, se
analisamos nossos pensamentos ou idéias, por mais compostos ou sublimes que sejam,
sempre verificamos que se reduzem a idéias tão simples como eram as cópias de sensações
precedentes. Mesmo as idéias que, à primeira vista, parecem mais distantes desta origem
mostram-se, sob um escrutínio minucioso, derivadas dela. A idéia de Deus, significando o
Ser infinitamente inteligente, sábio e bom, nasce da reflexão sobre as operações de nosso
próprio espírito, quando aumentamos indefinidamente as qualidades de bondade e de
sabedoria. Podemos continuar esta investigação até a extensão que quisermos, e acharemos
sempre que cada idéia que examinamos é cópia de uma impressão semelhante. Aqueles que
dizem que esta afirmação não é universalmente verdadeira, nem sem exceção, têm apenas um
método, e em verdade fácil, para refutá-la: mostrar uma idéia que, em sua opinião, não deriva
desta fonte. Incumbir-nos-ia então, se quiséssemos preservar nossa doutrina, de mostrar a
impressão ou percepção mais viva que lhe corresponde.
Segundo, se ocorre que o defeito de um órgão prive uma pessoa de uma classe de
sensação, notamos que ela tem a mesma incapacidade para formar idéias correspondentes.
Assim, um cego não pode ter noção das cores nem um surdo dos sons. Restaurai a um deles
um dos sentidos de que carecem: ao abrirdes as portas às sensações, possibilitais também a
entrada das idéias, e a pessoa não terá mais dificuldade para conceber aqueles objetos. O
mesmo fenômeno ocorre quando o objeto apropriado para estimular qualquer sensação nunca
foi aplicado ao órgão do sentido. Um lapão ou um negro, por exemplo, não têm nenhuma
noção do sabor do vinho. Apesar de haver poucos ou nenhum caso de semelhante deficiência
no espírito, em que uma pessoa nunca sentiu ou que é completamente incapaz de um
sentimento ou paixão próprios de sua espécie, constatamos, todavia, que a mesma observação
ocorre em menor grau. Um homem de modos brandos não pode formar uma idéia de
vin gança ou de crueldade obstinada, nem um coração egoísta pode conceber facilmente os
ápices da amizade e da generosidade. Em verdade, admitimos que outros seres podem possuir
muitos sentidos dos quais não temos noção, porque as idéias destes sentidos nunca nos foram
apresentadas pela única maneira por que uma idéia pode ter acesso ao espírito, isto é,
mediante o sentimento e a sensação reais.
Há, no entanto, um fenômeno contraditório que pode provar que não é absolutamente
impossível que as idéias nasçam independentes de suas impressões correspondentes. Acredito
que se concordaria facilmente que as várias idéias de cores diferentes que penetram pelos
olhos, ou aquelas de sons conduzidas pelo ouvido, são realmente diferentes umas das outras,
embora, ao mesmo tempo, parecidas. Ora, se isto é verdadeiro a respeito das diferentes cores,
deve sê-lo igualmente para os diversos matizes da mesma cor; e cada matiz produz uma idéia
diversa, independente das outras. Pois, se se negasse isto, seria possível, por contínua
gradação dos matizes, passar insensivelmente de uma cor a outra completamente distante de
série; se vós não admitis a distinção entre os intermediários, não podeis, sem absurdo, negar a
identidade dos extremos. Suponde, então, uma pessoa que gozou do uso de sua visão durante
trinta anos e se tornou perfeitamente familiarizada com cores de todos os gêneros, exceto
com um matiz particular do azul, por exemplo, que nunca teve a sorte de ver. Colocai todos
os diferentes matizes daquela cor, exceto aquele único, defronte daquela pessoa, decrescendo
gradualmente do mais escuro ao mais claro. Certamente, ela perceberá um vazio onde falta
este matiz, terá o sentimento de que há uma grande distância naquele lugar, entre as cores
contíguas, mais do que em qualq uer outro. Ora, pergunto se lhe seria possível, através de sua
imaginação, preencher este vazio e dar nascimento à idéia deste matiz particular que, todavia,
seus sentidos nunca lhe forneceram? Poucos leitores, creio eu, serão de opinião que ela não
pode; e isto pode servir de prova que as idéias simples nem sempre derivam das impressões
correspondentes, mas esse caso tão singular é apenas digno de observação e não merece que,
unicamente por ele, modifiquemos nossa máxima geral.
Eis, portanto, uma proposição que não apenas parece simples e inteligível em si mesma,
mas que, se se fizer dela o uso apropriado, pode tornar toda discussão igualmente inteligível e
eliminar todo jargão, que há muito tempo se apossou dos raciocínios metafísicos e os
desacreditou. Todas as idéias, especialmente as abstratas, são naturalmente fracas e obscuras;
o espírito tem sobre elas um escasso controle; elas são apropriadas para serem confundidas
com outras idéias semelhantes, e somos levados a imaginar que uma idéia determinada está aí
anexada se, o que ocorre com freqüência, empregamos qualquer termo sem lhe dar
significado exato. Pelo contrário, todas as impressões, isto é, todas as sensações, externas ou
internas, são fortes e vivas; seus limites são determinados com mais exatidão e não é tão fácil
confundi-las e equivocar-nos. Portanto, quando suspeitamos que um termo filosófico está
sendo empregado sem nenhum significado ou idéia o que é muito freqüente devemos
apenas perguntar: de que impressão é derivada aquela suposta idéia?
3
E, se for, impossível
designar urna, isto servirá para confirmar nossa suspeita. E razoável, portanto, esperar que, ao
trazer as idéias a uma luz tão clara, removeremos toda discussão que pode surgir sobre sua
natureza e realidade.
4
NOTAS:
1 O termo "percepções" é utilizado por Hume para designar a totalidade dos fatos
mentais e das operações volitivas. Mais adiante, nesta seção (p. 70), ele escreve que as
percepções constituem ‘todos os materiais do pensamento’. (vejam-se também: Tratado, I. ii,
6, p. 67 -II i, 1 p. 456.) Hume difere assim de Locke, que emprega o termo “idéia (veja -se
nota 12 desta seção) com aquele sentido genérico. [N. do T.]
2 As percepções originais, isto é, os elementos primitivos da experiência, são, escreve
Hume, as “impressões”. As “idéias”, por seu turno, que afloram à consciência, quando
pensamos ou raciocinamos, são fracas imagens das impressões. As idéias não são, portanto,
como para os platônicos, os arquétipos de tudo que existe e nem, como para os cartesianos,
inatas, pois unicamente as impressões são inatas (veja-se O. Brunet, Philosophie et esthétique
chez David Hume, Nizet, Paris, 1965, pp. 292-295.). Como as idéias são fracas imagens de
impressões correspondentes, podemos dizer que as percepções do espírito, assumindo dupla
forma, como impressões e como idéias, distinguem-se em grau e não em natureza. Ou
melhor, as duas facetas de uma única percepção discriminam-se entre si do mesmo modo
como um modelo se diferencia de sua cópia. [N. do T.]
3 O método filosófico adequado é aquele que permite a contínua reforma de nossas
idéias acerca das operações do entendimento humano. E as idéias são reformadas por estarem
relacionadas com suas impressões correspondentes. Esta relação é dupla: a) as idéias são
similares às impressões, ou melhor, são cópias ou imagens das impressões (em concordância
com o método baseado no exemplo), e b) as idéias estão necessariamente unidas às
impressões, ou melhor, as idéias não são descobertas sem impressões correspondentes (do
mesmo modo que a filosofia difícil admite que a conclusão não pode ser levada a cabo sem as
premissas adequadas). (Sternfeld, artigo citado, pp. 173-174.) [N. do T]
4 É provável que todos aqueles que negaram as idéias inatas queriam apenas dizer que
todas as nossas idéia s eram cópias de nossas impressões, embora seja preciso confessar que
os termos por eles empregados nem sempre foram escolhidos com precaução nem definidos
com exatidão, a fim de evitar equívocos sobre suas doutrinas. O que se entende por inato? Se
inato é equivalente a natural, então se deve conceder que todas as percepções e idéias do
espírito são inatas ou naturais, em qualquer sentido que tomemos este último termo, seja em
oposição ao que é insólito, artificial ou miraculoso. Se inato significa contemporâneo ao
nosso nascimento, a discussão parece frívola, pois não vale a pena averiguar em que
momento se começa a pensar: se antes, no, ou depois de nosso nascimento. Demais, parece-
me que Locke e outros tomam o termo idéia em sentido muito vago, tanto indicando nossas
percepções, sensações e paixões, como nossos pensamentos. Ora, neste sentido eu gostaria de
saber o que é que se quer dizer quando se afirma que o amor-próprio ou ressentimento por
injúrias sofridas ou a paixão entre os sexos não é inata?
Mas admitindo-se os termos impressões e idéias no sentido exposto acima e
entendendo por inato o que é primitivo ou não copiado de nenhuma percepção precedente,
podemos então afirmar que todas as nossas impressões são inatas e que nossas idéias não o
são.
Para ser franco, devo confessar que em minha opinião Locke foi enganado sobre esta
questão pelos escolásticos, que, utilizando termos definidos sem rigor, prolongavam
cansativamente as discussões sem jamais atingir o núcleo da questão. Semelhante
ambigüidade e circunlocução parecem estar presentes nos raciocínios deste filósofo acerca
deste tema como também da maioria de outras questões (Hume).
SEÇÃO III
DA ASSOCIAÇÃO DE IDÉIAS
1
É evidente que há um princípio de conexão entre os diferentes pensamentos ou idéias
do espírito humano e que, ao se apresentarem à memória ou à imaginação, se introduzem
mutuamente com certo método e regularidade. E isto é tão visível em nossos pensamentos ou
conversas mais sérias que qualquer pensamento particular que interrompe a seqüencia regular
ou o encadeamento das idéias é imediatamente notado e rejeitado. Até mesmo em nossos
mais desordenados e errantes devaneios, como também em nossos sonhos, notaremos, se
refletimos, que a imaginação não vagou inteiramente a esmo, porém havia sempre uma
conexão entre as diferentes idéias que se sucediam. Se se transcrevesse a conversa mais solta
e mais livre, notar-se-ia imediatamente alguma coisa que a ligou em todas as suas transições.
E se este princípio faltasse, quem quebrou o fio da conversa poderia ainda informar-vos que
havia secretamente esclarecido em seu espírito uma sucessão de pensamentos, os quais o
tinham desviado gradualmente do tema da conversa. Entre os idiomas mais diferentes,
mesmo naqueles em que não podemos supor a menor conexão ou comunicação, encontramos
que as palavras que exprimem as idéias mais complexas quase se correspondem entre si, o
que é uma prova segura de que as idéias simples, compreendidas nas idéias complexas, foram
ligadas por algum princípio universal que tinha igual influência sobre todos os homens.
2
Embora o fato de que as idéias diferentes estejam conectadas seja tão evidente para não
ser percebido pela observação, creio que nenhum filósofo
3
tentou enumerar ou classificar
todos os princípios de associação, assunto que, todavia, parece digno de atenção. Para mim,
apenas há três princípios de conexão entre as idéias, a saber: de semelhança, de contigüidade
no tempo e no espaço e de causa ou efeito.
Que estes princípios servem para ligar idéias, não será, creio eu, muito duvidoso. Um
quadro conduz naturalmente nossos pensamentos para o original;
4
quando se menciona um
apartamento de um edifício, naturalmente se introduz uma investigação ou uma conversa
acerca dos outros.
5
E, se pensamos acerca de um ferimento, quase não podemos furtar-nos a
refletir sobre a dor que o acompanha.
6
Entretanto, é difícil provar tanto para nossa como para
a satisfação do leitor que esta enumeração é completa e que não há outros princípios de
associação. Cabe-nos, portanto, em tal situação, recapitular vários exemplos e examinar
cuidadosamente o princípio que liga mutuamente os diferentes pensamentos, e apenas
detendo-nos quando tornarmos o princípio tão geral quanto possível.
7
E, à medida que
examinarmos outros exemplos e o fizermos com o máximo cuidado, adquiriremos a certeza
de que a enumeração, estabelecida a partir de um conjunto de observações, é completa e
inteira.
[Nas edições K, L, e N, esta seção continuava da seguinte maneira: “Em vez de entrar
num pormenor deste gênero, o que nos conduziria a várias e inúteis sutilezas, consideraremos
alguns dos efeitos desta conexão sobre as paixões e a imaginação; poderemos principiar
assim um campo de especulação mais interessante e talvez mais instrutivo do que o outro.]
Como o homem é um ser racional e está continuamente à procura da felicidade, que
espera alcançar para a satisfação de alguma paixão ou afeição, raramente age, pensa ou fala
sem propósito ou intenção. Sempre tem algum objeto em vista; embora às vezes sejam
inadequados os meios que escolhe para alcançar seu fim, jamais o perde de vista e nem
desperdiça seus pensamentos ou reflexões quando não espera obter nenhuma satisfação deles.
Em todas as composições geniais é, portanto, necessário que o autor tenha algum plano
ou objeto; e embora possa ser desviado deste plano pela impetuosidade de seu pensamento,
como numa ode, ou omiti-lo descuidadamente, como numa epístola ou num ensaio, deve
aparecer algum fim ou intenção em sua primeira composição, senão na composição completa
da obra. Uma obra sem um desígnio se assemelha mais a extravagâncias de um louco do que
aos sóbrios esforços do gênio e do sábio.
Como esta regra não admite exceção, conclui-se que nas composições narrativas os
eventos ou atos que o escritor relata devem estar unidos por algum elo ou laço; é preciso que
estejam unidos uns aos outros na imaginação e formem uma espécie de unidade que possa
situá-los em um único plano, em um único ponto de vista, e que possa ser o objeto e o fim do
autor em seu primeiro empreendimento.
Este princípio de conexão entre vários eventos, formando o tema de um poema ou de
uma história, pode ser diferente segundo os distintos planos de um poeta ou de um
historiador. Ovídio modelou seu plano sobre o princípio conectivo de semelhança. Toda
transformação fabulosa produzida pelo poder miraculoso dos deuses aparece em sua obra.
Não é preciso senão esta condição para que um evento convirja para seu plano original ou
intenção.
Um analista ou historiador que tentasse escrever a história da Europa durante um século
seria influenciado pela conexão de contigúidade no tempo e no espaço. Todos os eventos que
aconteceram nesta porção do espaço e neste período do tempo estão compreendidos em seu
desígnio, embora em outros aspectos sejam diferentes e sem relação uns com os outros.
Ainda assim têm uma espécie de unidade entre toda diversidade.
Entretanto, a espécie mais habitual de relação entre os diferentes eventos que fazem
parte de uma composição narrativa é a de causa e efeito; quando um historiador segue a série
de ações segundo sua ordem natural, remonta às suas fontes e princípios secretos e descreve
suas mais remotas conseqüências. Escolhe como tema certa porção desta grande cadeia de
acontecimentos que constitui a história da humanidade; tenta tocar em sua narrativa cada elo
desta cadeia. Às vezes, uma inevitável ignorância torna inúteis todos os seus esforços; às
vezes preenche por conjeturas o que é deficiente em seu conhecimento; e sempre tem
consciência de que sua obra é mais perfeita em função da maior continuidade de cadeia de
acontecimentos que apresenta ao leitor. Ele sabe que o conhecimento de causas não é apenas
o mais satisfatório, já que esta relação ou conexão é mais forte do que todas as outras, mas
também mais instrutivo, pois é unicamente por este conhecimento que somos capazes de
controlar eventos e governar o futuro.
Podemos agora, portanto, ter uma idéia desta unidade de ação, que tem sido bastante
discutida por todos os críticos depois de Aristóteles sem muito êxito, talvez porque não
controlavam seus gostos e sentimentos por uma filosofia rigorosa. Parece que em todas as
obras, tanto épicas como trágicas, é preciso certa unidade, e que em nenhum momento
podemos permitir aos nossos pensamentos de vagarem a esmo, se quisermos produzir uma
obra de interesse durável à humanidade. Parece também que mesmo um biógrafo que
escrevesse a vida de Aquiles tentaria relacionar os eventos para mostrar sua mútua
dependência e relação, do mesmo modo que um poeta que fizesse da cóle ra deste o tema de
sua narrativa.
8
Não é apenas numa determinada parcela da vida que as ações de um homem
dependem umas das outras, mas durante toda a sua existência, ou seja, do berço ao túmulo; é
impossível quebrar um único elo, embora diminuto, desta cadeia regular sem afetar toda a
série de eventos. A unidade de ação, portanto, que pode ser encontrada na biografia ou na
história difere da poesia épica não em gênero, mas em grau. Na poesia épica, a conexão entre
os eventos é mais próxima e mais sensível; a narrativa não abrange tão grande extensão
temporal; os atores dirigem-se às pressas para uma situação notável para satisfazer à
curiosidade dos leitores. Esta conduta do poeta épico conta com a situação particular da
imaginação e das paixões que se verificam nesta produção. Tanto a imaginação do escritor
como a do leitor é mais avivada, e as paixões são mais estimuladas do que na história, na
biografia ou em todo tipo de narração confinada estritamente à verdade e à realidade.
Consideremos o efeito destas circunstâncias imaginação avivada e paixões estimuladas
que pertencem à poesia e, especialmente, ao gênero épico mais do que qualquer outra espécie
de composição; e examinemos a razão pela qual elas exigem unidade mais próxima e mais
estrita em sua fabulação.
Em primeiro lugar, toda poesia, que é uma espécie de pintura, nos coloca mais perto do
objeto do que qualquer outro tipo de narrativa, o ilumina com mais força e delineia com mais
distinção as menores circunstâncias que, embora pareçam supérfluas ao historia dor, servem
vigorosamente para avivar as imagens e satisfazer à imaginação. Se não é necessário, como
na Ilíada, nos informar toda vez que o herói afivela seus sapatos e amarra sua jarreteira, será
preciso, talvez, entrar em maiores minúcias que na Henriade, em que os eventos se
processam com tal rapidez, que mal temos tempo para nos familiarizar com a cena ou com a
ação. Destarte, se um poeta quisesse abranger em seu tema grande extensão temporal ou uma
longa série de eventos e remontasse da morte de Heitor às duas causas mais remotas, tais
como o rapto de Helena ou o julgamento de Páris, necessitaria estender em demasia seu
poema para preencher esta enorme tela com pinturas e imagens convenientes. A imaginação
do leitor, estimulada por ta l seqüencia de descrições poéticas, e suas paixões inflamadas por
uma contínua simpatia para com os atores devem enfraquecer bem antes do fim do relato e
cair em lassidão e aversão pela repetição dos mesmos movimentos violentos.
Em segundo lugar, que um poeta épico não deve descrever uma longa série de causas,
aparecerá mais adiante se considerarmos uma outra razão derivada de uma propriedade ainda
mais notável e mais singular das paixões. É evidente que numa composição correta todas as
emoções estimuladas pelos diferentes eventos descritos e representados adicionam suas
forças mutuamente; além disso, enquanto os heróis estão todos empenhados numa cena
comum e cada ação está fortemente ligada ao conjunto, o interesse permanece sempre vivo e
as paixões passam facilmente de um objeto a outro. A forte conexão de eventos facilita, ao
mesmo tempo, a passagem do pensamento ou da imaginação de um a outro e a transfusão das
paixões, e mantém as emoções sempre no mesmo canal e na mesma direção. Nossa simpatia
e nosso interesse por Eva preparam o caminho para semelhante simpatia por Adão: a emoção
é mantida quase intacta na transição, e o espírito apreende imediatamente o novo objeto como
fortemente unido àquele que de início atraía sua atenção. Mas se o poeta quisesse fazer uma
completa digressão em seu tema e se introduzisse uma nova personagem sem nenhuma
ligação com as anteriores, a imaginação sentiria uma ruptura na transição, penetraria
friamente na nova cena e se animaria lentamente; quando retornasse ao tema central do
poema, passaria, por assim dizer, sobre um terreno estranho e seu interesse despertaria
novamente para colaborar com os principais atores. O mesmo inconveniente aparece em
menor grau quando o poeta descreve seus eventos a uma longa distância e liga entre si ações
que, embora não sejam completamente separadas, não têm uma conexão tão forte como é
necessário para propiciar a transição das paixões. Esta é a origem do relato indireto
empregado na Odisséia e na Eneida: o herói é inicialmente introduzido, antes de ter sido
estabelecida sua finalidade, e a seguir nos são mostrados, de modo perspectivo, os mais
distantes eventos e causas. Deste modo, a curiosidade do leitor é imediatamente estimulada;
os eventos se desenvolvem com rapidez e em conexão muito próxima; o interesse se mantém
bastante vivo e, com o auxílio da relação próxima com os objetos, cresce sem cessar do
começo ao fim da narrativa.
A mesma regra se verifica na poesia dramática; jamais é permitido introduzir, numa
composição regular, um ator sem conexão ou que tem apenas fraca conexão com as
principais personagens do relato. O interesse do espectador não pode ser desviado por cenas
desarticuladas e separadas das outras. Isto quebra o curso das paixões e impede a
comunicação de várias emoções, pelas quais uma cena adiciona força a outra e transfere a
piedade e o terror que cada uma desperta à cena seguinte, até que em sua totalidade produz a
rapidez de movimento peculiar ao teatro. Como é preciso extinguir este calor afetivo para
iluminar de repente uma nova cena e novas personagens sem nenhuma relação com as
precedentes; como é preciso localizar uma ruptura, um hiato deveras sensível no curso das
paixões pelo efeito desta ruptura no curso das idéias; e, em lugar de dirigir a simpatia de uma
cena à seguinte, ser obrigado em todo momento a despertar um novo interesse e a participar
de uma nova cena de ação?
Embora esta regra da unidade de ação seja comum à poesia dramática e à épica,
podemos ainda observar que há entre elas uma diferença digna de curiosidade. Nestas duas
espécies de composição é indispensável a unidade e a simplicidade de ação para manter
intacto e sem distração o interesse e a simpatia; mas, na poesia épica ou narrativa, esta regra
se estabelece sobre um outro fundamento: a necessidade que se impõe a todo escritor de ter
um plano ou desígnio antes de principiar qualquer dissertação ou relato e de compreender seu
tema sob um aspecto geral ou uma visão unificadora que possa ser o objeto constante de sua
atenção. Como o autor está completamente esquecido nas composições dramáticas, e o
espectador supõe consigo mesmo estar realmente presente nas ações representadas, esta razão
não intervém no palco; e pode-se introduzir um diálogo ou uma conversação que teria podido
passar nesta parte do espaço representado pela cena. Por este motivo, em todas as comédias
inglesas, inclusive as de Congreve, a unidade de ação não é estritamente observada; mas o
poeta pensa que é suficiente relacionar de qualquer maneira suas personagens, quer pelo
sangue, quer pelo fato de elas pertencerem a uma mesma famiia; a seguir as introduz em
determinadas cenas em que mostram seus temperamentos e seus caracteres sem avançar em
muito a ação principal. As duplas intrigas de Terêncio são liberdades do mesmo gênero,
embora em grau menor. Apesar de este procedimento não ser inteiramente regular, não é
completamente incompatível com a natureza da comédia, em que os mecanismos das paixões
não atingem tão alto como na tragédia; ao mesmo tempo, a ficção e a representação atenuam,
até certo ponto, tais liberdades. Em um poema narrativo, a primeira proposição, o primeiro
desígnio, limita o autor a um tema; recusar-se-iam imediatamente as digressões desta
natureza como obscuras e monstruosas. Nem Boccaccio, nem La Fontaine, nem qualquer
outro autor deste gênero jamais se deixaram cair em digressões, embora seu principal
objetivo tenha sido a graça.
Retomando a comparação entre a história e a poesia épica, podemos concluir dos
raciocínios precedentes que certa unidade é necessária em todas as produções, e esta não
pode ser deficiente tanto na história como em qualquer outra; que na história, a conexão que
une os diferentes eventos num só corpo é a relação de causa e efeito, a mesma que aparece na
poesia épica; e que, nesta última composição, é preciso que esta conexão seja mais próxima e
mais sensível em virtude da vivacidade da imaginação e da força das paixões que o poeta
deve abarcar em sua narrativa. A guerra do Peloponeso é um tema apropriado à história, o
cerco de Atenas, a um poema épico, e a morte de Alcibíades, a uma tragédia.
Destarte, como a diferença entre a história e a poesia épica consiste apenas nos graus de
conexão que une entre si os vários eventos que compõem seu tema, será difícil, senão
impossível, determinar com exatidão as fronteiras que separam um do outro. E mais uma
questão de gosto que de raciocínio; podemos, talvez, desvendar com freqüencia esta unidade
em um tema que, à primeira vista e segundo considerações abstratas, esperamos ao menos
encontrar.
É evidente que Homero ultrapassa, no curso de sua narrativa, a primeira proposição de
seu tema, e que a cólera de Aquiles, causa da morte de Heitor, não é a mesma que ocasionou
tantos males aos gregos. Mas a força da relação que une estes dois movimentos, a rapidez de
transição de um ao outro, o contraste
9
entre os efeitos da concórdia e da discórdia entre os
princípios e a curiosidade natural que temos para ver Aquiles em ação depois de tão longo
repouso este conjunto de causas não cessa de exercer influência sobre o leitor e dá ao tema
suficiente unidade.
Pode-se objetar a Milton o fato de ele ter buscado suas causas numa longa distância e
que a revolta dos anjos produziu a queda do homem por um encadeamento de eventos que é,
ao mesmo tempo, muito longo e muito fortuito. Sem mencionar que a criação do mundo,
relatada em toda a sua extensão, não é mais causa desta catástrofe que a batalha de Farsália,
ou qualquer outro acontecimento que sempre tem acontecido. Além disso, se considerarmos
que todos estes eventos (a revolta dos anjos, a criação do mundo e a queda do homem) são
semelhantes, pois todos são miraculosos e apartados do curso ordinário da natureza; que são
supostos contíguos no tempo; que se separam de todos os outros eventos e são os únicos fatos
originais revelados, eles impressionam de imediato a visão e naturalmente evocam uns aos
outros no pensamento e na imaginação. Se considerarmos tais circunstâncias em sua
totalidade, verificaremos que todas estas ações parceladas têm unidade suficiente para serem
compreendidas num único relato ou narrativa. Acrescentemos a estas razões que a revolta dos
anjos e a queda do homem têm uma semelhança determinada, porque são correlatas e
apresentam ao leitor a mesma moral de obediência ao nosso Criador.
Apresento estas sugestões desconexas com o fim de despertar a curiosidade dos
filósofos e com a suposição, senão a firme persuasão, de que é um tema bastante prolixo, e
que as numerosas operações do espírito humano dependem da conexão ou da associação de
idéias aqui explicadas. Especialmente a simpatia entre as paixões e a imaginação mostrar-se-á
talvez notável, quando observamos que as emoções despertadas por um objeto passam
facilmente a um outro unido a ele, mas se misturam com dificuldade, ou de nenhum modo,
com objetos diferentes e sem nenhuma conexão. Ao introduzir numa composição
personagens e ações estranhas umas às outras, um autor imprevidente destrói esta
comunicação de emoções, que é o único meio de interessar ao coração e despertar as paixões
no grau desejado e no momento apropriado. A explicação completa destes princípios e de
todas as suas conseqüências nos conduziria a raciocínios muito profundos e prolixos para esta
investigação. É-nos suficiente presentemente ter estabelecido esta conclusão: os três
princípios de todas as idéias são as relações de semelhança, de contiguidade e causalidade”.]
NOTAS:
1 Nas edições K e L o título era: ‘Conexão de idéias’.
2 Hume afirma no Abstract que “se alguma coisa pode designar o autor [isto é, Hume]
pelo glorioso título de inventor, consiste na maneira por que ele emprega o princípio de
associação de idéias, que aparece em quase toda a sua filosofia”. Hume não se considera o
inventor da teoria associativa, mas apenas admite ter descoberto uma nova maneira de utilizá-
la. (veja -se J. Passmore, Hume’s Intentions, segunda edição, Basic Books, Nova York, 1968,
p. 105.) Com efeito, Locke afirma que algumas de nossas idéias têm uma natural
correspondência e conexão entre si; constitui tarefa e qualidade da razão delineá-las... Há,
ademais, outra conexão de idéias devida totalmente ao acaso ou costume. Idéias que em si
mesmas não são em nada aparentadas, tornam-se de tal modo unidas em alguns espíritos
humanos, que é muito difícil separá-las”(Essay, edição citada, cap. XXXIII, 5, pp. 248-9). De
acordo com a teoria de Locke, portanto, apenas as relações reflexivas (isto é, “necessárias”)
revelam um pensamento ordenado, ao passo que a “associação de idéias” (isto é, relação
“costumeira”) é um princípio de “conexão errônea” (Idem, 9, p. 249) ou de aberrações
mentais. (veja-se A. L. Leroy, David Hume, Paris, 1953, p. 47.) Ora, para Hume, o termo
“relação”, como é entendido na “linguagem comum”, designa esta “qualidade (ou principio)
pela qual duas idéias estão unidas na imaginação, e uma introduz naturalmente a outra”
(Tratado, I, v, pp. 13-4). Denominando este processo de “relação natural”, Hume acrescenta
que, quando o espírito faz, de modo constante e uniforme, e sem qualquer base racional, a
transição entre percepções, acha-se influenciado por este tipo de relação. Sugere-nos, assim,
que a “relação natural” consiste na transição irrefletida, habitual e associativa entre idéias.
Daqui, podemos concluir que para Hume: 1) os princípios associativos baseiam-se na
“relação natural”, pois decorrem da propensão da imaginação de efetuar a fácil transição de
uma impressão para uma idéia, ou de uma idéia para outra idéia, e 2) com exclusão apenas
das relações matemáticas (em parte concorda com Locke, que excluia também as relações
morais), todas as outras conexões consistem na constatação de que nossas idéias estão
habitualmente unidas e que a conexão costumeira de idéias é o caso típico, e não uma
ocasional aberração mental como supõe Locke. (Passmore, ob. cit., p. 67.) [N. do T.]
3 Hume esqueceu de mencionar que Aristóteles já havia distinguido os princípios de
semelhança, de contraste e de contiguidade (On Memory and Reminiscense, edição Ross,
Great Books, 1952, 451b, pp. 692-3). Hume elimina o principio de contraste, embora na nota
7, desta seção, ele considere o “contraste” uma mistura de semelhança e de causalidade. [N.
do T.]
4 Semelhança (Hume).
5 Contiguidade (Hume).
6 Causa e efeito (Hume).
7 Por exemplo, o contraste ou a contrariedade é também uma conexão entre idéias, mas
podemos sem dúvida considerá-la uma mistura de causalidade e semelhança. Quando dois
objetos são contrários, um destrói o outro, isto é, constitui a causa de sua aniquilação, e a
idéia de aniquilação de um objeto implica a idéia de sua existência anterior (Hume). Esta nota
é a transcrição da nota 21, p. 76, operada por Hume, quando ele suprimiu o fim desta seção.
[N. do T.]
8 Ao contrário de Aristóteles, a fábula não é una, como alguns pensam, pelo fato de não
haver senão um herói, pois a vida de um mesmo homem compreende um grande número,
uma infinidade de eventos que não formam uma unidade. E, do mesmo modo, um mesmo
homem realiza várias ações que não constituem uma ação única etc. Capítulo VIII (Hume).
Poética, 1451 a, pp. 16-19; a tradução citada é a de M. J. Hardy. veja -se Hume, Enquête sur
l’entendement humain, trad. Leroy, 1948, p. 63, nota 1. [N. do T.1
9 Veja-se nota 7, desta seção. [N. do T.]
SEÇÃO IV
DÚVIDAS CÉTICAS SOBRE AS OPERAÇÕES DO ENTENDIMENTO
PRIMEIRA PARTE
Todos os objetos da razão ou da investigação humanas podem dividir-se naturalmente
em dois gêneros, a saber: relações de idéias e de fatos. Ao primeiro pertencem as ciências da
geometria, da álgebra e da aritmética
1
e, numa palavra, toda afirmação que é intuitivamente
ou demonstrativamente certa. Que o quadrado da hipotenusa é igual à soma do quadrado
dos dois lados, é uma proposição que exprime uma relação entre estas figuras. Que três vezes
cinco é igual à metade de trinta exprime uma relação entre estes números. As proposições
deste gênero podem descobrir-se pela simples operação do pensamento e não dependem de
algo existente em alguma parte do universo. Embora nunca tenha havido na natureza um
círculo ou um triângulo, as verdades demonstradas por Euclides conservarão para sempre sua
certeza e evidência.
Os fatos, que são os segundos objetos da razão humana, não são determinados da
mesma maneira, nem nossa evidência de sua verdade, por maior que seja, é de natureza igual
à precedente. O contrário de um fato qualquer é sempre possível, pois, além de jamais
implicar uma contradição, o espírito o concebe com a mesma facilidade e distinção como se
ele estivesse em completo acordo com a realidade. Que o sol não nascerá amanhã é tão
inteligível e não implica mais contradição do que a afirmação que ele nascerá. Podemos em
vão, todavia, tentar demonstrar sua falsidade. Se ela fosse demonstrativamente falsa,
implicaria uma contradição e o espírito nunca poderia concebê-la distintamente.
2
Portanto, deve ser assunto digno de nossa atenção investigar qual é a natureza desta
evidência que nos dá segurança acerca da realidade de uma existência e de um fato que não
estão ao alcance do testemunho atual de nossos sentidos ou do registro de nossa memória. E
preciso frisar que este aspecto da filosofia tem sido pouco cultivado tanto pelos antigos como
pelos modernos; e, portanto, nossas dúvidas e nossos erros ao realizar esta investigação tão
importante são certamente os mais desculpáveis, já que marchamos através de tão difíceis
caminhos sem nenhum guia ou direção.
3
Na realidade, podem revelar-se úteis ao excitar a
curiosidade e ao destruir esta fé cega e a segurança que são a ruína de todo raciocínio e de
toda investigação livre. Suponho que descobrir defeitos na filosofia comum, se os há, não é
motivo de desânimo mas, pelo contrário, como é de costume, um incentivo para se tentar
alguma coisa mais completa e mais satisfatória do que aquela que tem sido até agora proposta
ao público.
Todos os raciocínios que se referem aos fatos parecem fundar-se na relação de causa e
efeito. Apenas por meio desta relação ultrapassamos os dados de nossa memória e de nossos
sentidos. Se tivésseis que perguntar a alguém por que acredita na realidade de um fato que
não constata efetivamente, por exemplo, que seu amigo está no campo ou na França, ele vos
daria uma razão, e esta razão seria um outro fato: uma carta que recebeu ou o conhecimento
de suas resoluções e promessas anteriores. Um homem, ao encontrar um relógio ou qualquer
outra máquina numa ilha deserta, concluiria que outrora havia homens na ilha. Todos os
nossos raciocínios sobre os fatos são da mesma natureza. E constantemente supõe-se que há
uma conexão entre o fato presente e aquele que é inferido dele. Se não houvesse nada que os
ligasse, a inferência seria inteiramente precária. A audição de uma voz articulada e de uma
conversa racional na obscuridade nos dá segurança sobre a presença de alguma pessoa. Por
quê? Porque estes sons são os efeitos da constituição e da estrutura do homem e estão
estreitamente ligados a ela. Se analisamos todos os outros raciocínios desta natureza,
encontraremos que se fundam na relação de causa e de efeito e que esta relação se acha
próxima ou distante, direta ou colateral. O calor e a luz são efeitos colaterais do fogo, e um
dos efeitos pode ser inferido legitimamente do outro.
Portanto, se quisermos satisfazer-nos a respeito da natureza desta evidência que nos dá
segurança acerca dos fatos, deveremos investigar como chegamos ao conhecimento da causa
e do efeito.
Ousarei afirmar, como proposição geral, que não admite exceção, que o conhecimento
desta relação não se obtém, em nenhum caso, por raciocínios a priori, porém nasce
inteiramente da experiência quando vemos que quaisquer objetos particulares estão
constantemente conjuntados entre si. Apresente -se um objeto a um homem dotado, por
natureza, de razão e habilidades tão fortes quanto possível; se o objeto lhe é completamente
novo, não será capaz, pelo exame mais minucioso de suas qualidades sensíveis, de descobrir
nenhuma de suas causas ou de seus efeitos. Mesmo supondo que as faculdades racionais de
Adão fossem inteiramente perfeitas desde o primeiro momento, ele não poderia ter inferido
da fluidez e da transparência da água que ela o afogaria, ou da luz e do calor do fogo, que este
o consumiria. Nenhum objeto jamais revela, pelas qualidades que aparecem aos sentidos,
tanto as causas que o produziram como os efeitos que surgirão dele; nem pode nossa razão,
sem o auxílio da experiência, jamais tirar uma inferência acerca da existência real e de um
fato.
A proposição que estabelece que as causas e os efeitos não são descobertos pela razão,
mas pela experiência, será prontamente admitida em relação àqueles objetos de que nos
recordamos e que certa vez nos foram completa mente desconhecidos, porquanto devemos ter
consciência de nossa absoluta incapacidade de predizer o que surgiria deles. Apresentai dois
pedaços de mármore polido a um homem sem nenhum conhecimento de filosofia natural; ele
jamais descobrirá que eles se aderirão de tal maneira que se requer grande força para separá-
los em linha reta, embora ofereçam menor resistência à pressão lateral. Considera-se também
indiscutível que o conhecimento dos eventos que têm pouca analogia com o curso corrente da
natureza se obtém por meio da experiência; assim, ninguém imagina que se teria descoberto a
explosão da pólvora ou a atração da pedra-ímã por argumentos a priori. Da mesma maneira,
quando se supõe que um efeito depende de um mecanismo complicado ou de elementos de
estrutura desconhecida, não temos dificuldade em atribuir todo o nosso conhecimento à
experiência. Quem será capaz de afirmar que pode dar a razão última por que o leite e o pão
são alimentos apropriados ao homem e não a um leão ou a um tigre?
Mas, à primeira vista, poderia parecer que esta mesma verdade não é tão evidente em
relação aos eventos que nos são familiares desde o nosso nascimento, que têm estreita
analogia com todo o curso da natureza e, como se supõe, dependem das qualidades simples
dos objetos, sem a intervenção de elementos de estrutura desconhecida. Desta maneira,
somos levados a imaginar que poderíamos descobrir estes efeitos sem o auxílio da
experiência, recorrendo apenas às operações da razão. Imaginamos que, se fôssemos
repentinamente la nçados neste mundo, poderíamos de antemão inferir que uma bola de bilhar
comunicaria movimento a outra ao impulsioná-la, e que não teríamos necessidade de
observar o evento para nos pronunciarmos com certeza a seu respeito. E é tão grande a
influência do costume que, onde ela se apresenta com mais vigor, encobre, ao mesmo tempo,
nossa natural ignorância e a si mesma e, quando dá a impressão de não intervir, é unicamente
porque se encontra em seu mais alto grau.
No entanto, para nos convencermos de que, sem exceção, todas as leis da natureza e
todas as operações dos corpos são conhecidas apenas pela experiência, as reflexões que
seguem são sem dúvida suficientes. Se qualquer objeto nos fosse mostrado, e se fôssemos
solicitados a pronunciar-nos sobre o efeito que resultará dele, sem consultar observações
anteriores; de que maneira, eu vos indago, deve o espírito proceder nesta operação? Terá de
inventar ou imaginar algum evento que considera como efeito do objeto; e é claro que esta
invenção deve ser inteiramente arbitrária. O espírito nunca pode encontrar pela investigação e
pelo mais minucioso exame o efeito na suposta causa. Porque o efeito é totalmente diferente
da causa e, por conseguinte, jamais pode ser descoberto nela. O movimento na segunda bola
de bilhar é um evento bem distinto do movimento na primeira, já que não há na primeira o
menor indício da outra. Uma pedra ou um pedaço de metal levantados no ar e deixados sem
nenhum suporte caem imediatamente. Mas, se consideramos o assunto a priori, descobrimos
algo nesta situação que nos pode dar origem à idéia de um movimento descendente, em vez
de ascendente, ou de qualquer outro movimento na pedra ou no metal?
Do mesmo modo que a imaginação inicial ou invenção de um efeito particular é, em
todas as operações naturais, arbitrária se não consultamos a experiência, devemos igualmente
supor como tal o laço ou a conexão entre a causa e o efeito, que une um ao outro e faz com
que seja impossível que qualquer outro efeito possa resultar da operação desta causa. Quando
vejo, por exemplo, que uma bola de bilhar desliza em linha reta na direção de outra, mesmo
se suponho que o movimento na segunda me seja acidentalmente sugerido como o resultado
de seu contato ou impulso, não posso conceber que cem diferentes eventos poderiam
igualmente resultar desta causa? Não podem ambas as bolas permanecer em absoluto
repouso? Não pode a primeira bola voltar em linha reta ou ricochetear na segunda em
qualquer linha ou direção? Todas estas suposições são compatíveis e concebíveis. Por que,
então, deveríamos dar preferência a uma que não é mais compatível ou concebível que o
resto? Todos os nossos raciocínios a priori nunca serão capazes de nos mostrar fundamento
para esta preferência.
Em uma palavra: todo efeito é um evento distinto de sua causa. Portanto, não poderia
ser descoberto na causa e deve ser inteiramente arbitrário concebê-lo ou imaginá-lo a priori.
E mesmo depois que o efeito tenha sido sugerido, a conjunção do efeito com sua causa deve
parecer igualmente arbitrária, visto que há sempre outros efeitos que para a razão devem
parecer igualmente coerentes e naturais. Em vão, portanto, pretenderíamos determinar
qualquer evento particular ou inferir alguma causa ou efeito sem a ajuda da observação e da
experiência.
Daqui, podemos descobrir o motivo pelo qual nenhum filósofo racional e modesto
jamais pretendeu indicar a causa última de qualquer fenômeno natural, ou mostrar
distintamente a ação do poder que produz qualquer efeito singular no universo. Concordar-se-
á que o esforço máximo da razão humana consiste em reduzir à sua maior simplicidade os
princípios que produzem os fenômenos naturais; e restringir os múltiplos efeitos particulares
a um pequeno número de causas gerais, mediante raciocínios baseados na analogia, na
experiência e na observação. No entanto, com referência às causas das causas gerais, em vão
tentaríamos descobri-las, pois jamais ficaríamos satisfeitos com qualquer explicação
particular que lhes déssemos. Estas fontes e estes princípios últimos estão totalmente vedados
à curiosidade e à investigação humanas. A elasticidade, a gravidade, a coesão das partes, a
comunicação de movimentos por impulso são provavelmente as causas e princípios últimos
que sempre descobriremos na natureza; e podemos considerar-nos suficientemente felizes se,
mediante investigação e raciocínio exatos, podemos subir dos fenômenos particulares até, ou
quase até, os princípios gerais. Enquanto a filosofia natural mais perfeita apenas diminui uma
pequena parcela de nossa ignorância , a filosofia mais perfeita do gênero moral ou
metafísico revela-nos, talvez, que nossa ignorância se estende a domínios mais vastos.
Deste modo, resulta de toda a filosofia a constatação da cegueira e debilidade humanas que se
nos apresentam em todo momento por mais que tentemos disfarçá-las.
Nem a geometria, com toda exatidão dos raciocínios que a fez merecidamente célebre,
é capaz de remediar este defeito e de nos conduzir ao conhecimento das causas últimas,
quando é solicitada para auxiliar a filosofia natural. Cada setor das matemáticas aplicadas
funciona sobre a suposição de que a natureza estabeleceu certas leis em seus procedimentos,
e os raciocínios abstratos são usados tanto para auxiliar a experiência na descoberta dessas
leis como para determinar a ação dessas leis em casos particulares, quando ela depende de
graus exatos de distância e de quantidade. Assim, por exemplo, uma lei de movimentos
descoberta pela experiência é a que diz que o momento ou a força de um corpo em
movimento está em razão ou proporção de sua massa e de sua velocidade, e, por conseguinte,
que uma pequena força pode remover os maiores obstáculos ou levantar os maiores pesos se,
mediante uma invenção ou mecanismo, pudermos aumentar a velocidade da força até fazê-la
superar a força antagônica. A geometria auxilia-nos a aplicar esta lei, dando-nos as
dimensões exatas de todas as partes e de todas as figuras que fazem parte de qualquer tipo de
máquinas, mas, ainda assim, a descoberta da própria lei é devida unicamente à experiência; e
todos os raciocínios abstratos do mundo não poderão jamais nos levar a dar um passo para
chegar a conhecê-la. Quando raciocinamos a priori e consideramos um objeto ou uma causa,
tal como aparece ao espírito, ou seja, independente de toda observação, jamais poderia
sugerir-nos a idéia de um objeto distinto, como por exemplo seu efeito, e menos ainda
mostrar-nos a inseparável e inviolável conexão entre eles. É preciso que um homem seja
muito sagaz para poder descobrir através do raciocínio que o cristal é o efeito do calor e o
gelo o efeito do frio, sem estar previamente familiarizado com o funcionamento destes
estados dos corpos.
NOTAS:
1 A presente posição de Hume representa um aperfeiçoamento (veja-se Flew, ob. cit., p.
62) em comparação ao Tratado, que considera apenas a álgebra e a aritmética como ‘as
únicas ciências em que podemos conduzir uma cadeia de raciocínios a qualquer grau de
complicação, e ainda preservar perfeita exatidão e certeza Ao passo que a ‘geometria não é
dotada deste perfeito rigor e certeza, que são peculiares à aritmética e à álgebra” (Tratado, I,
iii, 1, p. 71). [N. do T.]
2 Locke divide o conhecimento em três graus, a saber, intuitivo, demonstrativo e
sensitivo, e afirma que “as idéias da quantidade não são as únicas capazes de demonstração e
de conhecimento...” (Essay, edição citada, Book IV, p. 317). Ou melhor, Locke pensa que a
ciência da moralidade, do mesmo modo que as ciências matemáticas, é passível de
demonstração. Como exemplos de proposições tão certas como quaisquer proposições
matemáticas ele cita: “onde não há propriedade não há injustiça” e “nenhum governo permite
liberdade absoluta”. (Idem, p. 318). Hume situa, de um lado, as “relações de idéias”, que
devem ser entendidas como comparação de idéias. O conhecimento consistiria precisamente
em comparar idéias, ou melhor, fundamenta-se em “relações de idéias”, as quais permanecem
invariáveis, contanto que as idéias não se alterem (Tratado, I, iii, I, pp. 69-71). Daqui nascem
determinadas “proposições” que são intuitivamente e demonstrativamente certas” e
evidentes, na medida em que, no entender de Hume, sua verdade, garantida pela lei da não-
contradição, se revela pela “simples operação do pensamento”. Trata-se, segundo Hume, dos
“raciocínios demonstrativos” (investigação, p. 82), empregados unicamente pelas ciências
matemáticas e não, como quer Locke, também pelas ciências morais. Hume coloca, de outro
lado, as “relações de fatos”, que podem modificar-se sem que haja qualquer alteração nas
idéias (Tratado, idem), pois o “contrário de um fato qualquer é sempre possível”, e não
encerra contradição afirmar “que o sol não nascerá amanhã” ou “que ele nascerá”. Tanto
uma como outra afirmativa são perfeitamente claras; entretanto, não podemos recorrer, a
exemplo do que acontece nas “relações de idéias”, ao método demonstrativo, pois apenas a
experiência é que possui jurisdição na esfera das “relações de fatos”. Evidentemente, o
núcleo do problema insito nas proposições “o sol nascerá” ou ‘não nascerá”, não diz respeito
às dúvidas de Hume quanto ao aparecimento do sol, mas apenas consiste na indicação de um
tipo de certeza diferente da certeza absoluta. Trata-se, portanto, da caracterização da crença,
que reina na esfera da opinião, e, de acordo com Hume, que aqui diverge de Locke (veja-se
N. K. Smith, ob. cit., pp. 63-70), é estendida a todas as “questões de fato e de existência”. E
assim que Hume estabelece uma categórica dicotomia entre o conhecimento e a crença. [N.
do T.]
3 O caminho que Hume pretende seguir aqui pode, talvez, ser iluminado pela seguinte
passagem do Abstract: “o célebre Monsieur Leibniz observou, como um defeito comum dos
sistemas de lógica, que eles são prolixos quando explicam as operações do entendimento
formando demonstrações, mas são bastante concisos quando tratam das probabilidades e das
outras medidas de evidência das quais a vida e a ação dependem inteiramente”. (pp.. 7-8;
citado também por Flew, oh. cit., p. 69). [N. do T.]
SEGUNDA PARTE
Entretanto, não chegamos ainda a nenhuma resposta satisfatória a respeito da primeira
questão proposta. Cada solução gera uma nova questão tão difícil como a precedente e nos
conduz a novas investigações. Quando se pergunta: qual é a natureza de todos os nossos
raciocínios sobre os fatos? A resposta conveniente parece ser que eles se fundam na relação
de causa e efeito. Quando se pergunta: qual é o fundamento de todos os nossos raciocínios e
conclusões sobre essa relação? Pode-se replicar numa palavra: a experiência. Mas, se ainda
continuarmos com a disposição de esmiuçar o problema e insistirmos: qual é o fundamento
de todas as conclusões derivadas da experiência? Esta pergunta implica uma nova questão
que pode ser de solução e explicação mais difíceis. Os filósofos que se dão ares de sabedoria
superior e suficiência têm uma tarefa difícil quando se defrontam com pessoas com
disposiçôes inquisitivas, que os desalojam de todos os esconderijos em que se refugiam, e que
estão seguras de levá-los finalmente a um perigoso dilema, O melhor recurso para evitar esta
confusão consiste em ter modestas pretensões e descobrir nós mesmos as dificuldades antes
que nos sejam objetadas. Desta maneira, faremos de nossa ignorância uma virtude.
Contentar-me-ei nesta seção com uma tarefa fácil: pretenderei apenas dar uma resposta
negativa à questão aqui proposta. Digo, pois, que mesmo depois que temos experiência das
operações de causa e de efeito, nossas conclusões desta experiência não estão fundadas sobre
raciocínios ou sobre qualquer prócesso do entendimento. Devemos trata r de explicar e
defender esta posição.
Certamente, deve-se admitir que a natureza nos tem mantido a uma grande distância de
todos os seus segredos, e que apenas nos tem concedido o conhecimento de algumas
qualidades superficiais dos objetos, enquanto ela nos esconde os poderes e princípios dos
quais depende inteiramente a ação desses objetos. Nossos sentidos nos informam a cor, o
peso e a consistência do pão, porém, nem os sentidos e nem a razão jamais podem informar-
nos sobre as qualidades que o fazem apropriado para alimentar e sustentar o corpo humano. A
visão e o tato nos dão uma idéia do movimento real dos corpos, porém não podemos formar o
mais remoto conceito da maravilhosa força ou poder que é capaz de manter indefinidamente
em movimento um corpo, e que este nunca a perde, mas a comunica a outros. Mas, não
obstante esta ignorância dos poderes
1
e princípios naturais, sempre presumimos quando
vemos qualidades sensíveis análogas que elas têm poderes ocultos análogos, e esperamos que
a estas seguirão efeitos semelhantes àqueles que já temos experimentado. Se nos fosse
mostrado um corpo de cor e consistência análogas às do pão que havíamos comido
anteriormente, não teríamos nenhum escrúpulo em repetir o experimento, prevendo com
certeza que ele nos alimentará e nos sustentará de maneira semelhante. Ora, eis um processo
do espírito e do pensamento cujo fundamento gostaria de conhecer. Toda a gente está de
acordo que não se conhece nenhuma conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes
ocultos e, por conseguinte, o espírito não é levado a tirar uma conclusão sobre a conjunção
constante e regular daquelas, tendo por base algo que possa conhecer na natureza destas.
Pode-se admitir que a experiência passada dá somente uma informação direta e segura sobre
determinados objetos em determinados períodos do tempo, dos quais ela teve conhecimento.
Todavia, é esta a principal questão sobre a qual gostaria de insistir: porque esta experiência
tem de ser estendida a tempos futuros e a outros objetos que, pelo que sabemos, unicamente
são similares em aparência. O pão que outrora comi alimentou-me, isto é, um corpo dotado
de tais qualidades sensíveis estava, a este tempo, dotado de tais poderes desconhecidos. Mas,
segue-se daí que este outro pão deve também alimentar-me como ocorreu na outra vez, e que
qualidades sensíveis semelhantes devem sempre ser acompanhadas de poderes ocultos
semelhantes? A conseqüencia não parece de nenhum modo necessária. Pelo menos, deve-se
reconhecer que aqui o espírito tira uma conseqüencia; que deu um certo passo; que há um
processo do pensamento e uma inferência que necessitam de uma explicação. Estas duas
proposições não são de nenhum modo iguais: encontrei que tal objeto sempre tem sido
acompanhado por tal efeito, e prevejo que outros objetos que são em aparência semelhantes,
serão acompanhados por efeitos semelhantes. Concederei, se vós permitis, que uma das
proposições pode ser legitimamente inferida da outra: sei, de fato, que ela sempre se infere.
Mas, se vós insistis em que a inferência é feita por uma cadeia de raciocínios, desejaria que
vós construísseis este raciocínio. A conexão entre estas proposições não é intuitiva. Requer-se
um termo médio que permita ao espírito extrair tal inferência, se é que, verdadeiramente, é
extraída mediante raciocínio e argumentos. Qual é o termo médio? Devo confessar, é algo
que ultrapassa minha compreensão, e cabe mostrá-lo por aqueles que afirmam que realmente
existe e que é a origem de todas as nossas conclusões acerca dos fatos.
Certamente, este argumento negativo pode tornar-se inteiramente convincente no
decorrer do tempo, se muitos filósofos hábeis e perspicazes dirigirem suas investigações
neste sentido, e se ninguém for capaz de descobrir alguma proposição conectiva ou algum
degrau intermediário que apóie o entendimento nesta conclusão. Mas, como se trata de
dificuldade recente, os leitores não devem confiar em demasia na sua própria sagacidade a
ponto de concluir que um argumento realmente não existe porque escapa à investigação. Por
esta razão, é preciso empreender pesquisa mais difícil, e, por enumeração de todos os ramos
de conhecimento humano, tratar de mostrar que nenhum deles pode proporcionar semelhante
argumento.
Todos os raciocínios dividem-se em duas classes: raciocínios demonstrativos, que se
referem às relações de idéias, e os raciocínios morais
(ou prováveis) que se referem às
questões de fato e de existência. Parece evidente que os últimos não englobam argumentos
demonstrativos, pois não é contraditório o fato de que o curso da natureza pode modificar-se
e que um objeto, aparentemente semelhante aos já observados, possa ser acompanhado de
efeitos diferentes ou contrários. Não posso conceber clara e distintamente que um corpo que
tomba das nuvens semelhante em todos aspectos a o da neve tenha, todavia, sabor de sal
e queime como o fogo? Há proposição mais inteligível do que esta: todas as árvores
florescerão em dezembro-janeiro e definharão em maio -junho? Portanto, considera-se
inteligível toda proposição concebida distintamente e sem contradição e, por conseguinte,
jamais sua falsidade é mostrada por argumento demonstrativo ou raciocínio abstrato a priori.
Entretanto, se os argumentos nos levarem a confiar na experiência e fazê-la padrão de
nosso juízo futuro, deveremos considerá-los apenas prováveis, isto é, referentes às questões
de fato e de existência real, de acordo com a divisão acima mencionada. Mas, se nossa
explicação desta classe de raciocínio é considerada sólida e satisfatória, verificaremos que de
fato não existe tal tipo de argumento. Temos dito que todos os argumentos referentes à
existência se fundam na relação de causa e efeito; que nosso conhecimento daquela relação
provém inteiramente da experiência; e que todas as nossas conclusões experimentais
decorrem da suposição que o futuro estará em conformidade com o passado. Portanto, tentar
provar a última conjetura, por argumentos prováveis, por argumentos referentes à existência,
consiste, certamente, em girar num círculo e dar por admitido o que precisamente se
problematiza.
Em verdade, todos os argumentos derivados da experiência se fundam na semelhança
que constatamos entre objetos naturais e que nos induz a esperar efeitos semelhantes àqueles
que temos visto resultar de tais objetos. Apesar de somente um bobo ou um louco e
ninguém mais! pretender discutir a autoridade da experiência ou rejeitar este grande guia
da vida humana, é lícito, contudo, admitir que um filósofo tenha ao menos a curiosidade de
examinar qual é o princípio da natureza humana que dota a experiência de tão forte
autoridade e leva-nos a aproveitar da semelhança estabelecida pela natureza entre diversos
objetos. De causas que parecem semelhantes esperamos efeitos semelhantes. E este o
resultado de todas as nossas conclusões experimentais. Ora, parece evidente que se esta
conclusão fosse reproduzida pela razão, ela seria tão perfeita desde o início e a partir de um
único caso, do que após uma longa série de experimentos. Mas as coisas ocorrem de modo
bem diverso. Não há nada mais semelhante do que os ovos; todavia, ninguém espera, por
causa desta aparente semelhança, idêntico gosto e sabor em todos os ovos. E é somente
depois de uma longa série de experimentos uniformes, sobre qualquer gênero dado, que nos
tornamos confiantes e seguros em re lação a um evento particular. Ora, onde está o processo
de raciocínio que, de um único caso, tira uma conclusão tão diferente daquele que infere de
cem casos que não são de modo algum diferentes do primeiro? Proponho este problema
visando, ao mesmo tempo, obter informação e suscitar dificuldades. Não consigo localizar,
não consigo imaginar tal raciocínio. Mas mantenho meu espírito sempre aberto à instrução, se
alguém quiser dignar-se a me conceder.
Poder-se-ia dizer que, de certo número de experimentos uniformes, inferimos uma
conexão entre as qualidades sensíveis e os poderes ocultos; o que, devo confessar, parece
enunciar a mesma dificuldade, em termos diferentes. A questão reaparece: sobre qual
processo de argumentação se funda esta inferência? Onde está o meio-termo, as idéias
intermediárias que unem proposições tão distantes entre si? Tem-se admitido que a cor, a
consistência e outras qualidades sensíveis do pão não parecem ter em si mesmas nenhuma
conexão com os poderes ocultos da nutrição e da subsistência.
De outro modo, poderíamos inferir esses poderes ocultos a partir da primeira aparição
destas qualidades sensíveis e sem o auxílio da experiência, contrariamente à opinião de todos
os filósofos e contrariamente à evidência do fato. Tal é, pois, nosso estado natural de
ignorância em relação aos poderes e à influência de todos os objetos. Como isto é remediado
pela experiência? Ela apenas nos mostra certo número de efeitos uniformes resultantes de
certos objetos e nos ensina que esses objetos particulares, nessa época determinada, estavam
dotados de tais poderes e de tais forças. Quando aparece um novo objeto dotado de
qualidades sensíveis semelhantes, esperamos poderes e forças semelhantes e esperamos
também um efeito análogo. De um corpo igual ao pão em cor e consistência, esperamos
alimentação e subsistência análogas. Eis, portanto, uma etapa ou processo do espírito que
necessita de uma explicação. Quando uma pessoa afirma: tenho encontrado em todos os
casos anteriores tais qualidades sensív eis conjugadas com tais poderes ocultos; e quando
assevera: qualidades sensíveis semelhantes estarão sempre conjugadas com poderes ocultos
semelhantes, não pode ser acusada de tautologia, pois estas proposições diferem em todos os
aspectos. Dizeis que uma proposição é inferida da outra, porém deveis admitir que a
inferência não é intuitiva, nem tampouco demonstrativa. De que natureza é ela então?
Responder que deriva da experiência significa cometer uma petição de princípio. Porque
todas as inferências provenientes da experiência supõem, como seu fundamento, que o futuro
se assemelhará ao passado, que poderes semelhantes estarão conjugados com qualidades
sensíveis semelhantes. Se subsistir qualquer dúvida de que o curso da natureza pode mudar e
que o passado não pode servir de modelo ao futuro, toda experiência se tornaria inútil e não
geraria nenhuma inferência ou conclusão. E inconcebível, portanto, que nenhum argumento
tirado da experiência possa provar a semelhança do passado ao futuro, já que estes
argumentos se baseiam na suposição daquela semelhança.
2
Concordais que o curso das coisas
tenha sido sempre tão regular. Apenas esta constatação, sem novo argumento ou inferência,
não é prova suficiente de que no futuro continuará assim. Em vão pretendereis ter conhecido
a natureza dos corpos a partir de vossa experiência passada. Sua natureza oculta e, por
conseguinte, todos os seus efeitos e toda sua ação podem mudar, sem que haja qualquer
modificação em suas qualidades sensíveis. Certamente, isto ocorre algumas vezes, e com
relação a alguns objetos. Por que não poderia ocorrer sempre, e com relação a todos os
objetos? Qual lógica, qual processo de raciocínio vos assegura contra esta conjetura? Minha
prática, dizeis, refuta minhas dúvidas. Mas, neste caso, confundis o significado de minha
questão. Como pessoa que age, estou muito satisfeito a este respeito; mas, como filósofo
dotado de alguma curiosidade não direi ceticismo quero saber o fundamento desta
inferência. Nenhuma leitura, nenhuma investigação, tem sido todavia capaz de remover
minha dificuldade, ou de dar-me satisfação num assunto de tanta importância. Posso fazer
algo melhor do que propor a dificuldade ao público, apesar de ter poucas esperanças de obter
uma solução? Deste modo, pelo menos, teremos consciência de nossa ignorância, se não
ampliarmos nosso conhecimento.
Reconheço que, quando alguém conclui que um argumento não existe porque escapou
de sua investigação, é acusado de imperdoável arrogância. Reconheço também que, apesar de
várias gerações de sábios se terem dedicado infrutiferamente pesquisando um objeto, seria,
talvez, precipitado concluir afirmando que ele ultrapassa toda compreensão humana. Mesmo
se examinássemos todas as fontes de nosso conhecimento e concluíssemos que são
inadequadas para um tal assunto, pode ainda perdurar a suspeita de que a enumeração não é
completa ou o exame não é exato. Mas, em relação ao tema que nos ocupa, há algumas
reflexões que parecem remover toda acusação de arrogância ou a suspeição de um equívoco.
Certamente, os camponeses mais ignorantes e estúpidos até os bebês e as bestas
irracionais se aperfeiçoam pela experiência e adquirem conhecimento das qualidades dos
objetos naturais, observando os efeitos que resultam deles. Quando uma criança sentiu a
sensação da dor ao tocar a chama de uma vela, terá cuidado de não pôr mais sua mão perto de
outra vela, pois ela esperará um efeito semelhante de uma causa que é semelhante em suas
qualidades e aparências sensíveis. Se afirmais, contudo, que o entendimento da criança chega
a esta conclusão por algum processo de argumento ou de raciocínio, posso legitimamente
pedir-vos que se mostre este argumento, e não tendes qualquer pretexto para recusar um
pedido tão justo. Não podeis dizer que o argumento é abstruso e que possivelmente escapa à
investigação, desde que confessais que ele é evidente até mesmo para a capacidade de um
simples bebê. Se hesitais, contudo, por um momento, ou se, depois da reflexão, produzis um
argumento complicado ou profundo, de certa maneira abandonais o problema e confessais
que não é o raciocínio que nos induz a supor que o passado se assemelha ao futuro e a esperar
efeitos semelhantes de causas que são, aparentemente, semelhantes. Esta é a proposição que
pretendia reforçar na presente seção. Se estou certo, não pretendo ter feito qualquer
descoberta considerável. Se estou errado, devo reconhecer para mim mesmo que sou
realmente um estudante muito atrasado, desde que não posso descobrir um argumento que,
parece-me, era perfeitamente conhecido muito antes de eu ter saído de meu berço.
NOTAS:
1 O termo “poder” é usado aqui em sentido vago e popular. Sua explicação mais
rigorosa acrescenta evidência a estes argumentos. Veja-se seção VII (Hume)
2 A inferência causal fundamenta -se na semelhança entre o passado e o futuro. De que
modo esta semelhança pode ser provada? Primeiro, não pode ser provada pelo “raciocínio
demonstrativo”, pois, escreve Hume, é “evidente que Adão. com toda a sua ciência, jamais
seria capaz de demonstrar que o curso da natureza deve permanecer uniformemente o mesmo,
e que o futuro deve conformar-se ao passado. O que é possível nunca pode ser demonstrado
como falso; e é possível que o curso da natureza possa mudar, desde que podemos conceber
tal mudança” (Abstract, p. 15). Segundo, não pode igualmente ser justificada pelo “raciocínio
provável”, desde que ‘ele [Adão] não poderia provar por nenhum raciocínio provável que o
futuro deve conformar-se ao passado. Todos os argumentos prováveis estão fundados na
suposição de que ha conformidade entre o passado e o futuro, portanto, [Adão] jamais pode
prová-lo” (Idem, p. 15). A inferência causal não pode ser teoricamente justificada, pois tanto
o raciocínio demonstrativo como o provável não provaram a semelhança entre o passado e o
futuro. Hume está, por conseguinte, preparado para concluir que é “unicamente o hábito e
não a razão que nos determina a fazer [da experiência] a norma de nossos juízos futuros’
(Abstract, pp. 21-22). [N. do T.]
SEÇÃO V
SOLUÇÃO CÉTICA DESTAS DÚVIDAS
PRIMEIRA PARTE
Tanto a paixão filosófica como a paixão religiosa parecem expostas embora
procurem extirpar nossos vícios e corrigir nossos hábitos ao inconveniente, quando
manejadas com imprudência, de servirem apenas para encorajar uma inclinação
predominante e conduzir o espírito resolutamente na direção que previamente mais o atraia,
devido às tendências e inclinações do temperamento natural. Certamente, enquanto aspiramos
à magnânima firmeza do saber filosófico e tentamos encerrar nossos prazeres nos limites de
nosso próprio espírito, podemos, finalmente, tornar nossa filosofia, como aquela de Epicteto e
outros estóicos, num sistema mais refinado de egoísmo e persuadir-nos racionalmente de nos
desligar de toda virtude como também de todos os prazeres sociais. Enquanto refletimos a
propósito da vaidade da vida humana e pensamos na natureza fútil e transitória das riquezas e
das honras, estamos, talvez, durante todo este tempo, lisonjeando nossa indolência natural
que, por aversão à azáfama do mundo e à fadiga dos negócios, procura um pretexto racional
para entregar-se completa e livremente à preguiça. Há, contudo, uma corrente filosófica que
parece menos exposta a este inconveniente, pois ela não se liga a nenhuma paixão
desordenada do espírito e nem se alia a qualquer tendência ou propensão natural: é a filosofia
acadêmica ou cética. Os acadêmicos falam sempre da dúvida e da suspensão do juízo, do
risco das resoluções apressadas, em confinar as investigações do entendimento a estreitos
limites e em renunciar a todas as especulações que transbordam as fronteiras da vida e da
prática cotidianas. Nada, por conseguinte, pode ser mais contrário a tal filosofia do que a
indolente letargia do espírito, sua atrevida arrogância, suas elevadas pretensões e sua
credulidade supersticiosa. Toda paixão é mortificada por ela, exceto o amor à verdade; e esta
paixão não é jamais, nem pode ser, elevada a um grau demasiado alto. E surpreendente,
todavia, que esta filosofia, que em quase todos os aspectos deve ser inofensiva e inocente,
seja o objeto de tantas acusações e de tantas censuras infundadas. Mas, talvez, a própria
circunstância que a torna tão inocente seja justamente o que a expõe ao ódio e ao
ressentimento públicos. Porque ela não adula nenhuma paixão desordenada, não obtém
muitos adeptos; porque ela se opõe a tantos vícios e tantas tolices, levanta contra si um
grande número de adversários, que a estigmatizam como profana, libertina e irreligiosa.
Não temos necessidade de recear que esta filosofia, enquanto trata de limitar nossas
investigações à vida diária, solape os raciocínios da vida diária e estenda suas dúvidas até o
ponto de destruir toda ação como também toda especulação. A natureza manterá eternamente
seus direitos e prevalecerá sobre todos os raciocínios abstratos.
1
Embora devêssemos
concluir, a exemplo da seção anterior, que em todos os raciocínios derivados da experiência o
espírito avança sem apoiar-se em argumentos ou processo do entendimento, não há perigo
que estes raciocínios, dos quais depende quase todo conhecimento, sejam afetados por tal
descoberta. Se o espírito não é levado a dar este passo por um argumento, deve ser
persuadido por outro princípio de igual peso e autoridade; e este princípio manterá sua
influência contanto que a natureza humana permaneça invariável. Vale a pena investigar qual
é a natureza deste princípio.
Suponde que um homem, dotado das mais poderosas faculdades racionais, seja
repentinamente transportado para este mundo; certamente, notaria de imediato a existência de
uma contínua sucessão de objetos e um evento acompanhado por outro, mas seria incapaz de
descobrir algo a mais. De início, não seria capaz, mediante nenhum raciocínio, de chegar à
idéia de causa e efeito, visto que os poderes particulares que realizam todas as operações
naturais jamais se revelam aos sentidos; nem é razoável concluir, apenas porque um evento
em determinado caso precede outro, que um é a causa e o outro, o efeito. Esta conjunção
pode ser arbitrária e acidental. Não há base racional para inferir a existência de um pelo
aparecimento do outro. E, numa palavra, aquele homem, desprovido de experiência, jamais
poderia conjeturar ou raciocinar sobre qualquer questão de fato, nem teria segurança de algo
que não estivesse imediatamente presente à sua memória ou aos seus sentidos.
Suponde de novo que o mesmo homem tenha adquirido mais experiência e que tenha
vivido o suficiente no mundo para observar que os objetos ou eventos familiares estão
constantemente ligados; qual é a conseqüencia desta experiência? Imediatamente infere a
existência de um objeto pelo aparecimento do outro. Entretanto, não adquiriu, com toda a sua
experiência, nenhuma idéia ou conhecimento do poder oculto, mediante o qual um dos
objetos produziu o outro; e não será um processo do raciocínio que o obriga a tirar esta
inferência. Mas ele se encontra determinado a tirá-la; e mesmo se ele fosse persuadido de que
seu entendimento não participa da operação, continuaria pensando o mesmo, porquanto há
um outro princípio que o determina a tirar semelhante conclusão.
Este princípio é o costume ou o hábito. Visto que todas as vezes que a repetição de um
ato ou de uma determinada operação produz uma propensão a renovar o mesmo ato ou a
mesma operação, sem ser impelida por nenhum raciocínio ou processo do entendimento,
dizemos sempre que esta propensão é o efeito do costume. Utilizando este termo, não
supomos ter dado a razão última de tal propensão. lndicamos apenas um principio da natureza
humana, que é universalmente reconhecido e bem conhecido por seus efeitos. Talvez não
possamos levar nossas investigações mais longe e nem aspiramos dar a causa desta causa;
porém, devemos contentar-nos com que o costume é o último princípio que podemos
assinalar em todas as nossas conclusões derivadas da experiência. Já é, contudo, satisfação
suficiente poder chegar até aqui sem irritar-nos com nossas estreitas faculdades, estreitas
porque não nos levam mais adiante. Certamente, temos aqui ao menos uma proposição bem
inteligível, senão uma verdade, quando afirmamos que, depois da conjunção constante de
dois objetos, por exemplo, calor e chama, peso e solidez, unicamente o costume nos
determina a esperar um devido ao aparecimento do outro. Parece que esta hipótese é a única
que explica a dificuldade que temos de, em mil casos, tirar uma conclusão que não somos
capazes de tirar de um só caso, que não discrepa em nenhum aspecto dos outros. A razão não
é capaz de semelhante variação. As conclusões tiradas por ela, ao considerar um círculo, são
as mesmas que formaria examinando todos os círculos do universo. Mas ninguém, tendo
visto somente um corpo se mover depois de ter sido impulsionado por outro, poderia inferir
que todos os demais corpos se moveriam depois de receberem impulso igual. Portanto, todas
as inferências tiradas da experiência são efeitos do costume e não do raciocínio.
2
O costume é, pois, o grande guia da vida humana. E o único princípio que torna útil
nossa experiência e nos faz esperar, no futuro, uMa série de eventos semelhantes àqueles que
apareceram no passado. Sem a influência do costume, ignoraríamos completamente toda
questão de fato que está fora do alcance dos dados imediatos da memória e dos sentidos.
Nunca poderíamos saber como ajustar os meios em função dos fins, nem como empregar
nossas faculdades naturais para a produção de um efeito. Seria, ao mesmo tempo, o fim de
toda ação como também de quase toda especulação.
3
Mas aqui deve ser conveniente notar que, embora nossas conclusões derivadas da
experiência nos levem além de nossa memória e de nossos sentidos e nos assegurem da
realidade de fatos que ocorreram em lugares mais distantes e em épocas remotas, é necessário
que um fato esteja sempre presente aos sentidos e à memória, do qual podemos de início
partir para tirar essas conclusões. Se um homem encontrasse num país deserto os
remanescentes de edifícios suntuosos, concluiria que o país, em tempos remotos, tinha sido
cultivado por habitantes civilizados; mas, se nada desta natureza lhe ocorresse, ja mais poderia
chegar a semelhante inferência. Pela história, conhecemos os eventos de épocas passadas;
todavia, devemos prosseguir consultando os livros que contêm estes ensinamentos e, a partir
daí, remontar nossas inferências de um testemunho a outro até chegar às testemunhas
oculares e aos espectadores desses eventos remotos. Numa palavra, se não partirmos de um
fato presente à memória ou aos sentidos, nossos raciocínios serão puramente hipotéticos; e
seja qual for o modo como estes elos particulares estejam ligados entre si, toda a cadeia de
inferência não teria nada que lhe servisse de apoio e jamais por meio dela poderíamos chegar
ao conhecimento de uma existência real. Se vos perguntasse por que acreditais em
determinado fato que relatais, deveis indicar-me alguma razão; e esta razão será um outro
fato em conexão com o primeiro. Entretanto, como não podeis proceder desta maneira in
infinitum, deveis finalmente terminar por um fato presente a vossa memória ou aos vossos
sentidos, ou deveis admitir que vossa crença é inteiramente sem fundamento.
Qual é, portanto, a conclusão de toda a questão? É simples; no entanto, deve-se
confessar que ela se acha muito distante das teorias filosóficas correntes. Toda crença, em
matéria de fato e de existência real, procede unicamente de um objeto presente à memória ou
aos sentidos e de uma conjunção costumeira entre esse e algum outro objeto. Ou, em outras
palavras, como o espírito tem encontrado em numerosos casos que dois gêneros quaisquer de
objetos a chama e o calor, a neve e o frio sempre têm estado em conjunção, se, de
novo, a chama ou a neve se apresentassem aos sentidos, o espírito é levado pelo costume a
esperar calor ou frio, e a acreditar que esta qualidade existe realmente e que se manifestaria
se estivesse mais próxima de nós.
4
Esta crença é o resultado necessário de colocar o espírito
em determinadas circunstâncias. E uma operação da alma tão inevitável como quando nos
encontramos em determinada situação para sentir a paixão do amor quando recebemos
benefícios; ou a de ódio quando nos defrontamos com injustiças. Todas estas operações são
uma espécie de instinto natural que nenhum raciocínio ou processo do pensamento e do
entendimento é capaz de produzir ou de impedir.
5
A esta altura, poderíamos perfeitamente terminar nossas pesquisas filosóficas. Na
maioria dos problemas jamais poderíamos adiantar um único passo; e em todas as questões
deveríamos terminar aqui, depois das mais incessantes e curiosas investigações. Mas ainda
nossa curiosidade será perdoável, talvez digna de elogio, se nos levar a investigações mais
avançadas e nos fizer examinar com maior exatidão a natureza desta crença e desta
conjunção costumeira, isto é, de onde ela procede. Por este meio podemos encontrar
explicações e analogias que satisfarão, ao menos, àqueles que amam as ciências abstratas e se
contentam com especulações que, por mais rigorosas que sejam, ainda podem conservar certo
grau de dúvida e de incerteza. Quanto aos leitores de gosto diverso, o resto desta seção não
lhes é destinada, e, se eles não a lerem, ainda assim podem compreender perfeitamente as
investigações posteriores.
NOTAS:
1 A filosofia académica ou cética designa a forma de filosofia da última Academia, que
floresceu a partir do século IV a.C. Hume a distingue do ceticismo pirrônico (veja -se seção
XII), que é extremo e, segundo ele, um tipo de dogmatismo negativista, pois, embora todos os
argumentos racionais se mostrem defeituosos e incondusos, o homem deve decidir e tomar
posição na vida prática. Os escritos filosóficos de Cícero, profundamente marcados por esse
tipo de ensino, exerceram considerável influência na educação da maioria dos filósofos
modernos, especialmente de Locke, Berkeley e Hume. (Veja-se de Hume, An Inquiry
concerning Hurnan Understanding, ed. Hendel, Liberal Arts, 1955, p. 54, nota 1) [N. do T.]
2 Nada é mais útil aos escritores, mesmo os que escrevem a respeito de temas morais,
políticos ou físicos, do que distinguir entre a razão e a experiência e supor que estas classes
de argumentação são inteiramente diferentes entre si. As primeiras são consideradas meros
resultados de nossas faculdades intelectuais, as quais, ao considerarem a priori a natureza das
coisas e examinarem os efeitos, que devem resultar de sua operação, estabelecem princípios
particulares à ciência e à filosofia. As últimas são supostas derivar inteiramente dos sentidos
e da observação, por meio dos quais sabemos o que é que resultou de fato da operação de
objetos particulares e assim somos capazes de inferir o que resultará deles no futuro. Assim,
por exemplo, as limitações e restrições do governo civil e de sua constituição legal podem ser
defendidas tanto mediante a razão, que refletindo sobre a debilidade e corrupção da natureza
humana nos ensina que a nenhum homem se pode confiar uma autoridade ilimitada, como
mediante a experiência e a história, que nos informam dos enormes abusos que a ambição
tem cometido em toda época e país, devido a uma confiança tão imprudente.
A mesma distinção entre razào e experiência se verifica em todas as nossas
deliberações acerca da conduta na vida. Deste modo, o estadista, o general, o médico e o
mercador experientes são seguidos e inspiram confiança, enquanto o novato inexperiente é,
por mais bem-dotado de talentos naturais, desprezado e desconsiderado. Embora se admita
que a razão pode formular conjeturas mais plausíveis sobre determinada conduta em
determinadas condições, supõe-se, todavia, que ela é imperfeita sem o auxilio da experiência,
pois esta é a única via capaz de conferir estabilidade e certeza às máximas deduzidas
mediante estudo e reflexão.
Apesar da aceitação universal desta distinçào, tanto nas etapas da vida ativa como
especulativa, não terei escrúpulos em afirmar que é uma atitude errônea ou, ao menos,
superficial.
Se examinarmos os argumentos em uma das ciências acima mencionadas e supormos
que eles são meros efeitos do raciocínio e da reflexão, verificaremos que terminam pelo
menos em alguma conclusão ou princípio geral, aos quais não podemos alegar outra razão a
não ser a observação e a experiência . A única diferença entre as máximas racionais e
experimentais (estas vulgarmente consideradas resultantes da mera experiência) consiste em
que as primeiras não podem ser estabelecidas sem algum processo do pensamento e alguma
reflexão sobre o que foi observado, a fim de distinguir suas circunstâncias e traçar suas
conseqüências; nas máximas experimentais, o evento experienciado é exata e completamente
similar ao que inferimos como resultado de uma situação particular qualquer. A história de
um Nero ou de um Tibério nos levaria a temer semelhante tirania se nossos monarcas
estivessem livres das restrições do Senado e da Lei. Mas a constatação de qualquer fraude ou
crueldade na vida privada é suficiente, com o auxilio de alguma experiência, para alertar-nos
do mesmo temor, porque serve de exemplo da corrupção geral da natureza humana e nos
mostra o perigo que poderíamos correr se depositássemos inteira confiança na humanidade.
Nos dois casos a experiência é, em última análise, o fundamento de nossa inferência e
conclusão.
Não há homem tão jovem e inexperiente que não tenha formado muitos e corretos
princípios sobre os assuntos humanos e a conduta na vida. Mas é preciso admitir que, quando
um homem procura exercê-los, está mais propenso a errar, até que o tempo e experiências
ulteriores lhe ampliem estes principios e lhe ensinem seu uso adequado e aplicação. Em toda
situação ou incidente ha várias circunstâncias particulares, aparentemente sem importãncia,
que o homem mais bem-dotado está inclinado a princípio a desdenhar, embora dependam
delas a exatidão de suas conclusões e, por conseguinte, a prudência de sua conduta. Sem
mencionar que, para um jovem principiante, os princípios e as operações gerais nem sempre
se manifestam em ocasiões adequadas e nem podem ser imediatamente aplicados com a
devida calma e distinção. A verdade é que um homem que raciocina sem experiência não
poderia raciocinar se olvidasse inteiramente a experiência; quando designamos alguém com
esta característica, fazemo-lo somente em sentido comparativo e supomos que possui
experiência em grau mais ou menos imperfeito (Hume).
3 Em outra passagem desta Investigação, Hume manifesta a esperança de que ‘a
filosofia, se cuidadosamente cultivada e encorajada pela atenção do público, possa levar suas
indagações ainda mais longe (isto é, da geografia mental) e descubra, pelo menos em parte, as
fontes e os princípios secretos que impulsionam o espírito humano em suas operações (seção
I, p. 68). A descoberta da função indispensável do costume em todo conhecimento da
experiência pode ser, talvez, classificada como o avanço mais significativo naquela direção.
(Veja-se Flew, ob. cit., p. 77.) [N. do T.]
4 O costume é, portanto, o fator que nos faculta a antecipar que o futuro será semelhante
ao passado e nos leva a inferir de uma causa presente um efeito ausente. O costume
compreende também mais alguma coisa. As idéias introduzidas por ele são inferências’ e não
meras sugestões. A experiência que temos da conjunção constante’ entre, por exemplo,
chama e calor, ou neve e frio, determina-nos, quando revemos a chama ou a neve, pelo
“costume a esperar calor ou frio, e a acreditar que esta realidade existe realmente e que se
manifestaria se estivesse mais próxima de nós”. Revela -se, assim, como o costume envolve e
condiciona a crença. [N. do T.]
5 Hume escreve no Tratado que a “crença é mais propriamente um ato sensitivo do que
um aspecto cogitativo de nossa natureza” (1, iV, 1, p. 183). [N. do T.]
SEGUNDA PARTE
Não há nada mais livre do que a imaginação humana; embora não possa ultrapassar o
estoque primitivo de idéias fornecidas pelos sentidos externos e internos, ela tem poder
ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir estas idéias em todas as variedades da
ficção e da fantasia imaginativa e novelesca. Ela pode inventar uma série de eventos com
toda aparência de realidade, pode atribuir-lhes um tempo e um lugar particulares, concebê-los
como existentes e descrevê-los com todos os pormenores que correspondem a um fato
histórico, no qual ela acredita com a máxima certeza. Em que consiste, pois. a diferença entre
tal ficção e a crença? Ela não se localiza simplesmente em uma idéia particular anexada a
uma concepção que obtém nosso assentimento, e que não se encontra em nenhuma ficção
conhecida. Pois, como o espírito tem autoridade sobre todas as suas idéias, poderia
voluntariamente anexar esta idéia particular a uma ficção e, por conseguinte, seria capaz de
acreditar no que lhe agradasse, embora se opondo a tudo que encontramos na experiência
diária. Podemos, quando pensamos, juntar a cabeça de um homem ao corpo de um cavalo,
mas não está em nosso poder acreditar que semelhante animal tenha alguma vez existido.
Conclui-se, portanto, que a diferença entre a ficção e a crença se localiza em algum
sentimento ou maneira de sentir, anexado à última e não à primeira, que não depende da
vontade e não pode ser manipulado a gosto. É preciso que a natureza a desperte como os
outros sentimentos; é preciso que ela nasça da situação particular em que o espírito se
encontra em cada conjuntura particular. Todas as vezes que um objeto se apresenta à
memória ou aos sentidos, pela força do costume, a imaginação é levada imediatamente a
conceber o objeto que lhe está habitualmente unido; esta concepção é acompanhada por uma
maneira de sentir ou sentimento, diferente dos vagos devaneios da fantasia. Eis toda a
natureza da crença.
1
Visto que nossa mais firme crença sobre qualquer fato sempre admite
uma concepção que lhe é contrária, não haveria, portanto, nenhuma diferença entre nosso
assentimento ou rejeição de qualquer concepção, se não houvesse algum sentimento
distinguindo uma da outra. Se vejo, por exemplo, uma bola de bilhar deslizar em direção de
outra numa mesa polida, posso imaginar com clareza que uma parará ao chocar-se com a
outra. Esta concepção não implica contradição, porém a sinto muito diferente da concepção
pela qual me represento o impulso e a comunicação do movimento de uma bola a outra.
Se tentássemos uma definição
2
deste sentimento, veríamos, talvez, que se trata de tarefa
muito difícil, senão impossível; da mesma maneira como se tentássemos definir a sensação de
frio ou a paixão de cólera a uma criatura que nunca teve a experiência destes sentimentos.
Crença é o nome verdadeiro e próprio desta maneira de sentir; ninguém jamais se encontra
em dificuldade para saber o significado daquele termo, porque cada um está, em todo
momento, consciente do sentimento que representa. Sem dúvida, não seria impróprio tentar
uma descrição deste sentimento esperando chegar, por este meio, a algumas analogias que
poderiam fornecer uma explicação mais perfeita. Digo, pois, que a crença não é nada senão
uma concepção de um objeto mais vivo, mais vivido, mais forte, mais firme e mais estável
que aquela que a imaginação, por si só, seria capaz de obter. Uso esta variedade de termos,
embora tão pouco filosófica, com a única intenção de exprimir este ato de espírito que nos
revela realidades, ou que se considera como tal, mais presentes a nós que as ficções, que as
faz pensar mais no pensamento e lhes dá uma influência superior às paixões e à imaginação.
Desde que concordamos no tocante à coisa, é desnecessário discutir acerca dos termos. A
imaginação governa todas as suas idéias e pode uni-las, misturá-las e variá-las de todas as
formas possíveis. Pode conceber objetos fictícios em todas as situações de espaço e de tempo.
Pode colocá-los de certa maneira diante de nossos olhos com suas próprias cores, exatamente
como se houvessem exis tido. Mas, como é impossível que essa faculdade da imaginação
possa jamais, por si mesma, converter-se em crença, é evidente que a crença não consiste na
natureza particular ou na ordem da idéias, mas na maneira como o espírito as concebe e as
sente. Confesso que é impossível explicar com perfeição este sentimento ou esta maneira de
conceber. Podemos usar palavras que expressam algo parecido. Mas o seu nome verdadeiro e
próprio, como já dissemos, é crença: termo que cada um compreende suficientemente na vida
corrente. Em filosofia, não podemos ir além da seguinte afirmação: crença é qualquer coisa
sentida pelo espírito, que distingue as idéias dos juízos das ficções da imaginação. Ela lhes dá
maior peso e influência; as faz parecer de maior importância; as reforça no espírito e as
estabelece como princípios diretivos de nossas ações. Ouço agora, por exemplo, a voz de uma
pessoa conhecida, e o som parece vir do quarto contíguo. Esta impressão dos meus sentidos
conduz imediatamente meu pensamento à pessoa e, ao mesmo tempo, a todos os objetos
circundantes. Eu os pinto para mim mesmo como existentes atualmente e com as próprias
qualidades e relações que já sabia que possuíam. Estas idéias se apoderam de meu espírito
mais depressa que as idéias de um castelo encantado. Sinto-as de modo muito diferente, e sua
influência é bem maior, em todos os pontos de vista, tanto para produzir prazer e dor como
alegria e tristeza.
Consideremos, pois, esta doutrina em toda a sua extensão e concedamos que o
sentimento da crença nada mais é do que uma concepção mais intensa e mais firme do que
aquele que acompanha as puras ficções da imaginação, e que esta maneira de conceber nasce
de uma conjunção costumeira do objeto com alguma coisa presente à memória e aos sentidos.
Não será difícil, creio eu, com estas conjeturas, encontrar outras operações do espírito que lhe
sejam análogas e ascender deste fenômeno a princípios ainda mais gerais.
Já temos observado que a natureza estabeleceu conexões entre as idéias particulares, e
que uma idéia, logo que aparece aos nossos pensamentos, introduz sua correlata e dirige
nossa atenção na direção dela, mediante um movimento suave e insensível. Estes princípios
de conexão ou de associação foram por nós reduzidos a três, a saber: semelhança,
contiguidade e causalidade, que são os únicos laços que unem entre si nossos pensamentos e
que engendram a série regular de reflexão ou do discurso que, em maior ou menor grau, se
realiza entre todos os homens. Ora aqui surge um problema do qual dependerá a solução da
presente dificuldade. Admitindo-se que em todas as relações, quando um dos objetos é
revelado aos sentidos ou à memória, o espírito não é apenas induzido a conceber seu
correlato, mas o concebe de maneira mais firme e mais forte, indagamos se esta nova
concepção poderia ser alcançada de outro modo? Parece-nos que é o que ocorre com a crença
originada da relação de causa e efeito. Ora, se o mesmo fenômeno se verifica em outras
relações ou princípios de associação, poder-se-ia considerá-las uma lei geral ocorrendo em
todas as operações do espírito.
Portanto, podemos constatar, como primeiro experimento em vista de nossos fins
atuais, que, quando nos defrontamos com o retrato de um amigo ausente, é evidente que sua
idéia nos é avivada pela semelhança, e que toda paixão engendrada por esta idéia quer de
alegria, quer de tristeza adquire nova força e novo vigor. Para a produção deste efeito,
concorrem simultaneamente uma relação e uma impressão presente. Se o retrato não é
semelhante ao nosso amigo ou não foi ao menos feito para assemelhar-lhe, jamais faz
convergir nosso pensamento para ele; se tanto o retrato como a pessoa estiverem ausentes,
embora o espírito possa passar do pensamento de um para o da outra, sente que sua idéia se
acha mais enfraquecida do que avivada por esta transição. Sentimos prazer quando vemos o
retrato de um amigo; porém, quando ele é retirado, preferimos considerar nosso amigo
diretamente a fazê-lo através de sua imagem refletida que é, ao mesmo tempo, distante e
obscura.
As cerimônias da religião católica romana podem considerar-se como exemplos da
mesma natureza. Os devotos desta superstição ale gam geralmente, desculpando as momices
que lhes censuram, que sentem o bom efeito destes movimentos exteriores, de posturas e
ações que avivam sua devoção e estimulam seu fervor, que de outro modo seriam
enfraquecidos se se dirigissem inteiramente a objetos distantes e imateriais. Representamos
os objetos de nossa fé, dizem eles, com simbolos e imagens sensíveis, aproximando-os assim
de nós pela presença imediata destes simbolos do que pela mera visão intelectual e
contemplativa. Os objetos sensíveis influem com mais vigor sobre a fantasia do que
quaisquer outros e comunicam mais depressa esta influência às idéias com as quais se
relacionam e se assemelham. Inferirei somente, destas práticas e deste raciocínio, que o efeito
da semelhança avivando idéias é bastante comum; e como em todos os exemplos concorrem
uma semelhança e uma impressão presente, consideramo-nos fartamente abastecidos de
experimentos comprovantes da realidade do princípio precedente.
Podemos reforçar estas experiências com outras de gênero diferente, considerando os
efeitos da contigüidade do mesmo modo que os da semelhança. Certamente, a distância
diminui a força de toda idéia, e quando nos aproximamos de um objeto, mesmo se ele não se
revela aos nossos sentidos, age sobre o espírito com influência parecida a uma impressão
imediata. Pensar num objeto faz convergir imediatamente o espírito ao que lhe é contíguo;
porém, é unicamente a presença real de um objeto que o transporta com vivacidade superior.
Encontrando-me a poucas milhas de minha casa, qualquer coisa que se relaciona com ela me
toca mais de perto do que quando estou a duzentas léguas, embora, mesmo a esta distância, se
reflito sobre qualquer objeto situado próximo de meus amigos ou de minha família, esta
reflexão produz naturalmente a idéia deles. Mas, considerando que, neste exemplo, os dois
objetos do espírito são apenas idéias e não obstante a fácil transição de uma a outra, esta
transição, por si mesma, é incapaz de dotar de vivacidade superior quaisquer idéias, porque
ela carece de uma impressão imediata.
3
Ninguém deve duvidar que a causalidade tem influência idêntica às relações de
semelhança e de contigüidade. Os supersticiosos afeitos às relíquias dos santos e de
personagens sagradas procuram, por esta razão, simbolos ou imagens que possam avivar sua
devoção e fornecer-lhes concepção mais íntima e mais forte das vidas exemplares que visam
a imitar. Ora, é evidente que uma das melhores relíquias procuradas por um devoto seria um
objeto feito pelo próprio santo; e se se consideram suas roupas e móveis sob este prisma, é
porque estiveram uma vez à disposição do santo que os tocou e, portanto, os influenciou.
Devem, contudo, considerar-se como efeitos imperfeitos e ligados ao santo por uma cadeia de
conseqüências mais curtas do que algumas daquelas pelas quais adquirimos conhecimento
sobre sua existência real.
Suponde, de outro lado, que vos fosse apresentado o filho de um amigo morto ou
ausente há muito tempo; certamente, este objeto reviveria num instante sua idéia correlata e
faria retomar ao nosso pensamento todas as intimidades e familiaridades passadas, em cores
mais vivas do que aquelas que de outro modo vos teriam aparecido. Este é outro fenômeno
que parece comprovar o princípio acima mencionado.
Devemos assinalar que nestes fenômenos sempre se pressupõe a crença no objeto
correlato, sem o que a relação não teria nenhum efeito. O retrato exerce influência porque
cremos que nosso amigo alguma vez já existiu. A contigúidade com nossa casa não pode
jamais estimular nossas idéias sobre ela, a menos que creiamos que a casa realmente existe.
Ora, afirmo que esta crença se se estende além dos dados da memória ou dos sentidos é
de natureza semelhante e surge de causas semelhantes à transição do pensamento e
vivacidade da concepção, aqui explicadas. Quando lanço ao fogo um pedaço de lenha seca,
meu espírito se vê obrigado imediatamente a conceber que ela aviva em vez de extinguir a
chama. Esta transição do pensamento da causa ao efeito não se baseia na razão. Sua origem
deriva completamente do hábito e da experiência. Visto que a transição se origina de um
objeto presente aos sentidos, este incorpora à idéia ou à concepção da chama mais força e
vivacidade do que qualquer devaneio vago e flutuante da imaginação. Esta idéia nasce
imediatamente. E o pensamento converge instantaneamente para a idéia, transferindo-lhe toda
a força conceptual que deriva da impressão presente aos sentidos. Se uma espada estiver
apontada para o meu peito, as idéias de ferimento e dor que a acompanham não me atingem
com mais força do que se me apresentam um copo de vinho, e mesmo supondo que por acaso
esta idéia surgisse após o aparecimento do último objeto? Mas, o que é que causa uma
concepção tão forte, senão unicamente a presença de um objeto, e a transição costumeira para
a idéia de outro objeto, que nos acostumamos a juntar com a primeira? Eis toda operação do
espírito em todas as nossas conclusões referentes às questões de fato e de existência; e já é
uma satisfação encontrar algumas analogias que podem explicá-la. A transição a partir de um
objeto presente dá, em todos os casos, força e solidez à idéia com a qual está relacionado.
Eis, pois, uma espécie de harmonia preestabelecida entre o curso da natureza e a
sucessão de nossas idéias; e embora os poderes e as forças que governam a primeira nos
sejam totalmente desconhecidos, achamos que nossos pensamentos e nossas concepções se
têm sempre desenrolado na mesma seqüência que as outras obras da natureza. O costume é o
princípio que tem realizado esta correspondência, tão necessária para a conservação de nossa
espécie e para o regulamento de nossa conduta em todas as circunstâncias e situações da vida
humana. Se a presença de um objeto não despertasse instantaneamente a idéia dos objetos
que comumente estão unidos a ele, todo nosso conhecimento deveria limitar-se à estreita
esfera de nossa memória e de nossos sentidos, e jamais seríamos capazes de adaptar os meios
em vista dos fins ou de empregar nossos poderes naturais para produzir o bem ou evitar o
mal. Aqueles que se deliciam na descoberta e na contemplação das causas finais, têm aqui
amplo objeto para empregar a sua curiosidade e espanto.
Acrescentarei reforçando a teoria precedente que esta operação do espírito,
permitindo-nos inferir efeitos semelhantes de causas semelhantes e vice-versa, por ser tão
essencial para a conservação de todos os seres humanos, não poderia ser confiada às falazes
deduções da razão humana, que é lenta em suas Operações e não se manifesta, em qualquer
grau, nos primeiros anos de nossa infância e, no melhor dos casos, no decorrer da vida
humana acha-se mais exposta ao erro e ao engano. Conforma-se mais com a sabedoria
ordinária da natureza assegurar-se de um ato tão necessário do espírito graças a um instinto
ou tendência mecânica, que pode ser infalível em suas operações e pode revelar-se a partir do
nascimento da vida e do pensamento e, demais, independe de todas as elaboradas deduções
de entendimento. Do mesmo modo que a natureza nos ensinou a usar nossos membros sem
esclarecer-nos acerca dos músculos e nervos que os movem, ela também implantou em nós
um instinto que impulsiona o pensamento num processo correspondente ao estabelecido entre
os objetos externos, embora mantendo-nos ignorantes destes poderes e forças dos quais
dependem totalmente o curso regular e a sucessão de objetos.
NOTAS:
1 Hume acrescenta, no “Appendix” do Tratado, um novo elemento para explicar a
crença. Salienta que um “segundo erro pode ser encontrado no primeiro livro, página 96,
quando digo que duas idéias de um mesmo objeto podem ser discriminadas apenas por seus
diferentes graus de força e vivacidade. Acredito que há outra diferença entre as idéias que não
podem ser adequadamente compreendidas com aqueles termos. Se tivesse dito que duas
idéias de um mesmo objeto podem diferenciar-se apenas por seus diferentes feefing
[traduzimos por “maneira de sentir”], estaria bem mais próximo da verdade” (p. 636). Esta
nova discussão da natureza da crença ocupa nove das dezessete páginas do “Appendix”, e seu
principal aspecto consiste em mostrar que a crença é um feeling. Convém lembrar que, no
corpo do Tratado, em nenhum momento a crença é designada como feeling. Tendo, porém,
introduzido esse acréscimo no “Appendix”, Hume permanece coerente com a mesma
doutrina na Investigação. [N. do T.]
2 Hume anota que a crença constitui um ato do espírito jamais “explicado por nenhum
filósofo” (Tratado, 1, iii, vil, p. 97, nota). Mostra, por exemplo, que não custa muito explicar
como uma “pessoa” considera verdadeiras as proposições demonstrativas ou intuitivas, já que
quando ela “decide, não apenas concebe as idéias segundo a proposição, mas é
necessariamente determinada a concebé-las de um modo específico”(Idem, p. 95). Mas o que
é evidente para a demonstração não o é em relação à crença baseada nos raciocínios de
causalidade, nos quais a “necessidade absoluta não se verifica, e a imaginação é livre para
conceber os dois aspectos da questão” (Ibidem, p. 95). [N. do T.]
3 “Poderia dizer, ele respondeu, que é uma disposição natural ou não sei qual ilusão que
nos deixa intensamente comovidos quando vemos os lugares pelos quais, como nos
informaram, homens dignos de memória passaram longo tempo, do que quando nos falam a
respeito deles ou lemos alguma coisa escrita por eles? Eu, por exemplo, estou agora
comovido. Platão surge em minha mente, e, pelo que sabemos, ele foi o primeiro homem a
realizar aqui discussões regulares: estes pequenos jardins, tão próximos de nós, não apenas
despertam em mim a lembrança de Platão, mas apresentam, por assim dizer, sua imagem
diante de meus olhos. Era aqui que estava Espeusipo, lá Xenócrates e acolá seu discípulo,
Polemo, que sentava geralmente naquele lugar. Em verdade, quando vi a sede de nosso
Senado (refiro-me à que foi construída por Hostilio e não ao novo prédio, que quase não me
comove depois que foi ampliado), pensei em Cipião, Catão e Lélio, mas sobretudo em meu
avô. E tão grande o poder dos lugares para despertar recordações que, com muita razão, o
treinamento da memória deriva deles” Cícero, De Finibus, v. 2 (Hume). [Trad. por Anoar
Aiex].
SEÇÃO VI
DA PROBABILIDADE
1
Embora não haja tal coisa como o acaso no mundo, nossa ignorância da causa real de
qualquer evento tem igual influência sobre o entendimento gerando equivalente tipo de
crença ou opinião.
Há certamente uma probabilidade que resulta de uma superioridade de possibilidades a
favor de uma das partes e, à medida que esta superioridade aumenta excedendo as
possibilidades opostas, a probabilidade recebe um aumento proporcional gerando maior grau
de crença ou assentimento à parte em que descobrimos a superioridade. Se um dado fosse
marcado com um algarismo ou mesmo número de pontos em quatro faces e com outro
algarismo ou mesmo número de pontos nas duas restantes, seria mais provável que saísse
uma daquelas do que destas faces; todavia, se mil faces fossem marcadas de modo idêntico e
apenas uma diferente, a probabilidade seria muito maior, e nossa crença ou expectativa do
evento seria mais firme e mais segura. Este processo do pensamento ou raciocínio pode
parecer sem importância e evidente; porém, para quem o examina com mais cuidado, pode,
talvez, constituir assunto de curiosa especulação.
Parece evidente que, quando o espírito se antecipa para desvendar o evento que
resultará do lançamento de tal dado, considera como igualmente provável que saia qualquer
uma das faces, pois é inerente ao acaso tornar inteiramente iguais todos os eventos
particulares compreendidos nele. Mas, verificando que maior número de faces aparece mais
em um evento que no outro, o espírito converge com mais freqüencia para ele e o encontra
muitas vezes ao considerar as várias possibilidades das quais depende o resultado definitivo.
Esta afluência de várias inspeções sobre um único evento particular gera imediatamente, por
uma inexplicável disposição natural, o sentimento da crença, dando primazia a este evento
sobre seu antagonista, que é apoiado por pequeno número de inspeções e recorre com menos
freqüencia ao espírito. Se concordamos que a crença nada mais é do que uma concepção de
um objeto, mais firme e mais forte do que aquela que acompanha as ficções da imaginação,
podemos, talvez, explicar até certo ponto esta operação. A confluência de várias inspeções ou
de olhadas rápidas imprime a idéia com mais força em nossa imaginação, dá-lhe força e vigor
superiores, torna mais sensível sua influência sobre as paixões e inclinações e, numa palavra,
origina esta confiança e segurança que constituem a natureza da crença e da opinião.
Com a probabilidade das causas ocorre o mesmo que com a dos acasos. Há algumas
causas que são inteiramente uniformes e constantes na produção de determinado efeito e não
apresentam nenhum exemplo de falha ou irregularidade em seu procedimento. O fogo e a
água têm sempre queimado ou asfixiado a todo ser humano; a produção do movimento pelo
impulso e gravidade é uma lei universal que até agora se tem admitido sem exceção. Há,
contudo, outras causas que têm sido consideradas mais irregulares e incertas, por exemplo, o
ruibarbo nem sempre se tem mostrado purgativo, nem o ópio soporífero, a todas as pessoas
que têm tomado esses remédios. Em verdade, quando uma causa deixa de produzir seu efeito
habitual, os filósofos não atribuem esta falha a uma irregularidade na natureza, pelo contrário,
supõem que algumas causas desconhecidas, situadas na estrutura dos elementos, têm
impedido a operação. Contudo, nossos raciocínios e conclusões sobre o evento permanecem
os mesmos como se este prin cípio não existisse. Como o costume nos determina a transferir o
passado para o futuro em todas as nossas inferências, esperamos se o passado tem sido
inteiramente regular e uniforme o mesmo evento com a máxima segurança e não
toleramos qualquer suposição contrária. Mas, se temos encontrado que diferentes efeitos
acompanham causas que em aparência são exatamente similares, todos estes efeitos variados
devem apresentar-se ao espírito ao transferir o passado para o futuro, e devemos considerá-
los quando determinamos a probabilidade do evento. Embora damos preferência ao efeito que
tem sido mais usual e creiamos que ele existirá, não devemos descuidar dos outros efeitos,
porém devemos assinalar para cada um deles uma autoridade e peso específicos, em
proporção à maior ou menor freqüência em que os temos encontrado. E mais provável na
maioria dos países europeus que geará em algum dia de janeiro, e é improvável que
durante este mês não geará: embora esta probabilidade varie de acordo com os diferentes
climas, ela aproxima-se da certeza nos países nórdicos. Parece, pois, evidente que, quando
transferimos o passado para o futuro, a fim de determinarmos o efeito que resultará de
alguma causa, transferimos todos os diferentes eventos na mesma proporção em que têm
aparecido no passado e consideramos que um se tem revelado cem vezes, por exemplo,
essoutro dez vezes e aqueloutro, uma só vez. Como um grande número de inspeções afluem
aqui sobre um único evento, elas o fortificam e o confirmam na imaginação, engendrando
este sentimento que denominamos crença; e confere ao seu objeto preferência sobre o evento
oposto que não é apoiado pelo mesmo número de experimentos e não retorna com tanta
freqüencia ao pensamento quando transferimos o passado para o futuro. Se alguém tentar
explicar este processo do espírito em qualquer um dos sistemas filosóficos existentes, sentir-
se-á consciente da dificuldade. De minha parte, dar-me-ei por satisfeito se as presentes
indicações incitarem a curiosidade dos filósofos e os fizerem ver quão deficientes são todas
as teorias vigentes quando discorrem sobre objetos tão curiosos e sublimes.
NOTAS:
1 Locke divide todos os argumentos em demonstrativos e prováveis. Segundo este
ponto de vista, devemos afirmar que é apenas provável que todos os homens devem morrer
ou que o sol nascerá amanhã. Mas para conformar nossa linguagem ao uso corrente, devemos
dividir os argumentos em demonstrações, provas e probabilidades. Por prova, entendemos
aqueles argumentos derivados da experiência que não deixam lugar à dúvida ou à oposição
(Hume).
A discriminação entre vários graus de certeza, correspondentes respectivamente ao
conhecimento, provas e probabilidades, estabelece de maneira mais categórica a dicotomia
entre conhecimento e crença. Sugere-nos, assim, que podemos estabelecer, como escreve
acertadamente Mossner, a seguinte classificação: 1) o conhecimento dotado de certeza
absoluta, atingível através da demonstração e enquadrável pela esfera do a priori; 2) a crença,
alcançável em dois níveis no primeiro, denominado provas, em que não havendo experiência
contra experiência a crença opera com todo o vigor. Trata-se, portanto, dos argumentos da
experiência isentos de dúvida e incerteza, a saber, o “nascimento do sol” ou que “todos os
homens morrem”. No segundo nível, situam-se as probabilidades ou argumentos da
experiência suscetiveis de dúvidas, em que a crença pode variar da relativamente baixa para a
relativamente alta. (Veja-se de Mossner, “Introduction to Modernity”, p. 49, in A Symposion
on Eighteenth Centuny, Mollenauer (org.), Austin, 1965.) Devemos todavia, evitar de
interpretar erroneamente o sentido de “probabilidades” na filosofia humeana. Não se trata de
cálculo matemático de probabilidades. Em nenhum de seus textos Hume faz qualquer
referência ao emprego das probabilidades em sentido técnico. Ao contrário, trata-se apenas de
mostrar o mecanismo psicológico pelo qual a crença se fixa na imaginação. [N. do T.]
SEÇÃO VII
DA IDÉIA DE CONEXÃO NECESSÁRIA
1
PRIMEIRA PARTE
A grande vantagem das ciências matemáticas sobre as ciências morais consiste nisto: as
idéias das primeiras, sendo sensíveis, são sempre claras e distintas; assim a menor diferença
entre elas é imediatamente perceptível e, ademais, os mesmos termos exprimem sempre as
mesmas idéias sem ambigüidade ou variação. Um óvulo nunca se confunde com um círculo,
nem uma hipérbole com uma elipse. Os triângulos isósceles e escaleno diferenciam-se por
limites mais exatos que o vício e a virtude, o bem e o mal. Se se define um termo em
geometria, o espírito imediatamente e por si mesmo substitui em todas as ocasiões a definição
pelo termo definido, ou ainda, quando utiliza a definição, o próprio objeto pode apresentar-se
aos sentidos e, por este meio, apreende-o com firmeza e claramente. Mas os sentimentos mais
sutis do espírito, as funções do entendimento, as diversas agitações das paixões, embora
realmente diferenciados em si mesmos, esquivam-se facilmente de nós quando os
examinamos pela reflexão; e temos o poder de recordar o objeto original tão frequentemente
como temos ocasião de contemplá-lo. Desta maneira, a ambiguidade se introduz
gradualmente em nossos raciocínios: objetos semelhantes são facilmente considerados como
idênticos, e a conclusão torna-se afinal muito afastada das premissas.
Pode-se, portanto, afirmar com toda a segurança que, se considerarmos estas ciências
de modo adequado, suas vantagens e desvantagens quase se compensam e ambas se igualam.
Se o espírito retém com mais facilidade as idéias geométricas claras e distintas, deve, todavia,
desenvolver uma cadeia de raciocínios muito mais extensa e bem mais complicada, e deve
comparar idéias bastante afastadas entre si, a fim de alcançar as verdades mais abstrusas
dessa ciência. E, se as idéias morais tendem, a menos que se tenha grande cuidado, a cair na
obscuridade e na confusão, as inferências são muito mais curtas nestas pesquisas, e os passos
intermediários que levem à conclusão, bem menores que os da ciência que trata da
quantidade e do número. Na realidade, é raro encontrar na geometria de Euclides uma
proposição tão simples, que não tenha mais partes que as que se encontram em qualquer
raciocínio moral, a menos que este se refira a coisas quiméricas ou fantásticas. Quando
localizamos os princípios do espírito humano através de alguns passos, podemos contentar-
nos com nosso progresso, se considerarmos quão rapidamente a natureza antepõe uma
barreira a todas as nossas investigações sobre as causas e nos obriga a reconhecer nossa
ignorância. Portanto, o principal obstáculo para o nosso aperfeiçoamento nas ciências morais
ou metafísicas consiste na obscuridade das idéias e na ambigüidade dos termos. A principal
dificuldade nas matemáticas refere-se à extensão das inferências e do pensamento necessário
para formular qualquer conclusão. E, talvez, nosso progresso em filosofia natural se retarde
principalmente pela escassez de experimentos e de fenômenos adequados, que são
frequentemente descobertos por acaso e nem sempre localizados quando requeridos, mesmo
pela mais diligente e prudente investigação. Como a filosofia moral se revela até agora menos
aperfeiçoada do que a geometria ou a física, podemos concluir que, se há alguma diferença
sob este aspecto entre estas ciências, os obstáculos que impedem o progresso da primeira
necessitam de maior cautela e habilidade para serem sobrepujados.
Não há idéias mais obscuras e incertas em metafísica do que as de poder, força, energia
ou conexão necessária,
2
às quais necessitamos reportar-nos constantemente em todas as
nossas inquirições. Tentaremos, portanto, nesta seção, estabelecer e, por este meio, remover
parte da obscuridade tão lamentada neste gênero de filosofia.
Parece que esta proposição não admitirá muita controvérsia: todas as nossas idéias são
cópias de impressões ou, em outras palavras, é-nos impossível pensar em algo que antes não
tivéramos sentido, quer pelos nossos sentidos externos quer pelos internos. Tenho intentado
3
explicar e provar esta proposição, e tenho também manifestado minhas expectativas de que,
mediante sua adequada aplicação, se possa alcançar mais clareza e exatidão nos raciocínios
filosóficos do que até agora se tem podido obter. As idéias complexas podem, talvez, ser bem
entendidas por definição, consistindo na enumeração das porções ou idéias simples que as
compõem. Contudo, quando encaminhamos as definições às idéias mais simples e deparamos
ainda alguma ambigüidade e obscuridade, que recurso possuímos? Que invenção nos permite
iluminar estas idéias e fazê-las completamente exatas e determinadas à consideração
intelectual? É preciso produzir as impressões ou sensações originais das quais as idéias são
cópias. Essas impressões são todas fortes e sensíveis. Não admitem ambigúidade. Elas
próprias não estão apenas colocadas em plena luz, mas podem também iluminar suas idéias
correspondentes que jazem na obscuridade. Podemos, talvez por este meio, obter um novo
microscópio ou novo sistema de óptica que possibilita, nas ciências morais, a ampliação das
idéias mais simples e diminutas de modo que possamos apreen-las facilmente e possamos
conhecê-las do mesmo modo que as idéias mais palpáveis e sensíveis, que devem ser o objeto
de nossa inquirição.
Portanto, para atingir um conhecimento total da idéia de poder ou de conexão
necessária, devemos examinar sua impressão e, a fim de desvendar a impressão com maior
segurança, busquemo-la em todas as fontes das quais ela possivelmente deve derivar.
Quando olhamos em torno de nós na direção dos objetos externos e consideramos a
ação das causas, não somos jamais capazes, a partir de um único caso, de descobrir algum
poder ou conexão necessária, alguma qualidade que ligasse o efeito à causa e tomasse um a
conseqüencia infalível do outro. Apenas constatamos que um, realmente, segue o outro. O
impulso de uma bola de bilhar é acompanhado pelo movimento de segunda. Eis tudo que se
manifesta aos sentidos externos. O espírito não sente nenhuma sensação ou impressão interna
em virtude desta sucessão de objetos; por conseguinte, não há, num só caso isolado e
particular de causa e efeito, nada que possa sugerir a idéia de poder ou de conexão necessária.
A partir da primeira aparição de um objeto, jamais podemos conjeturar que efeito
resultará dele. Mas se o espírito pudesse descobrir o poder ou a energia de qualquer causa,
poderíamos prever o efeito, mesmo sem a experiência, e poderíamos também, desde o
principio, pronunciarmos com certeza a seu respeito, apenas pela força do pensamento e do
raciocínio.
Na realidade, não há nenhuma porção da matéria que nos revele, através de suas
qualidades sensíveis, um poder ou energia, ou que nos dê fundamento para imaginar que
poderia produzir algo, ou que seria seguida por um outro objeto que poderíamos denominar
seu efeito. A solidez, a extensão e o movimento são qualidades completas em si mesmas e
não indicam outro evento que possa resultar delas. As cenas do universo variam
continuamente; e um objeto acompanha outro em sucessão ininterrupta; porém, o poder ou a
força que move toda a máquina está completamente oculto de nós e nunca se revela em
nenhuma das qualidades sensíveis dos corpos. Sabemos que, de fato, o calor é um
acompanhante constante de chama, mas não temos ensejo para conjeturar ou imaginar qual é
a sua conexão. Portanto, é impossível que a idéia de poder possa derivar da contemplação de
corpos em casos isolados de sua operação, porque jamais um corpo nos revela um poder que
seja a origem desta idéia.
4
Portanto, já que os objetos externos, tal como aparecem aos sentidos, não nos fornecem
nenhuma idéia de poder ou conexão necessária, através de suas operações em casos
particulares, vejamos se esta idéia deriva da reflexão sobre as operações de nosso próprio
espírito e se ela é copiada de alguma impressão interna. Pode-se dizer que, em todo momento,
temos consciência de nosso poder interno, porquanto sentimos que, pela mera ordem de nossa
vontade, podemos mover os órgãos de nosso corpo ou governar nossas faculdades espirituais.
Um ato volitivo produz um movimento em nossos membros ou origina uma nova idéia em
nossa imaginação. Conhecemos esta influência da vontade pela consciência. Adquirimos
assim a idéia de poder ou de energia e certificamo-nos que tanto nós como todos os outros
seres inteligentes são dotados deste poder.
5
Esta idéia, portanto, é uma idéia reflexiva porque
surge ao refletir sobre as operações de nosso próprio espírito e sobre o governo que a vontade
exerce tanto sobre os órgãos do corpo como sobre as faculdades da alma.
6
Examinaremos esta hipótese
7
verificando primeiramente a influência da vontade sobre
os órgãos do corpo. Esta influência, devemos observar, é um fato que, como todos os outros
eventos naturais, unicamente pode ser conhecida pela experiência e jamais pode ser prevista a
partir da aparente energia ou poder situado na causa, unindo-a ao efeito e fazendo de um a
conseqüencia infalível da outra. O movimento de nosso corpo obedece à ordem da vontade.
Disto temos sempre consciência. Mas o modo pelo qual isto se realiza, a energia conferida à
vontade no desempenho deste processo tão extraordinário, distanciam-se de nossa
consciência imediata e devem excluir-se para sempre de nossa mais diligente investigação.
Em primeiro lugar, indagamos se há em toda a natureza algum princípio mais
misterioso que o da união da alma com o corpo, pelo qual uma suposta substância espiritual
adquire influência sobre uma substância material, de tal modo que o pensamento mais
refinado é capaz de mover a matéria mais grosseira? Se tivéssemos o poder, por um desejo
secreto, de mover montanhas ou controlar os planetas em sua órbita, esta ampla autoridade
não seria mais extraordinária e não ultrapassaria demais nossa compreensão. Mas, se a
consciência nos fizesse perceber um poder ou uma energia na vontade, deveríamos apreender
este poder; deveríamos entender sua conexão com o efeito; deveríamos conhecer a união
oculta da alma e do corpo e a natureza destas duas substâncias, por meio da qual uma é capaz
de agir, de tantos modos, sobre a outra.
Em segundo lugar, não somos capazes de mover todos os órgáos do corpo com a
mesma autoridade, embora não possamos designar nenhuma razão, exceto a experiência, para
uma diferença tão marcante entre uns e outros. Por que a vontade tem influência sobre a
língua e os dedos e não sobre o coração ou o fígado? Esta questão jamais nos embaraçaria se
tivéssemos consciência de um poder no primeiro caso, e não no segundo. Deveríamos então
perceber, independentemente da experiência, por que a autoridade da vontade sobre os órgáos
do corpo se circunscreve dentro de limites tão estreitos. Teríamos, neste caso, um
conhecimento completo do poder ou da força que a faz agir, saberíamos também por que sua
ação alcança precisamente tais limites e por que ela não os ultrapassa.
Um homem subitamente atacado por uma paralisia da perna ou do braço ou que tenha
recentemente perdido esses membros tende a princípio e com freqüencia a movê-los e usá-los
em suas funções habituais. Neste caso, está tão consciente do poder que governa estes
membros como um homem de saúde perfeita é consciente do poder que move qualquer
membro que permanece em sua condição e estado naturais. Mas a consciência nunca ilude.
Por conseguinte nem num caso como no outro jamais temos consciência de um poder.
Somente a experiência nos ensina a ação de nossa vontade. E a experiência nos ensina apenas
como um evento acompanha constantemente outro, sem nos informar sobre a desconhecida
conexão que os liga e que os torna inseparáveis.
Em terceiro lugar, a anatomia nos informa que o objeto imediato do poder no
movimento voluntário não é o próprio membro que é movido, porém certos músculos, nervos
e espíritos animais e, talvez, alguma coisa ainda menor e desconhecida através da qual o
movimento se propaga sucessivamente antes de alcançar o próprio membro, cujo movimento
é o objeto imediato da volição. Pode haver prova mais segura de que o poder que realiza toda
a operação, tão distante de ser direta e completamente conhecido por um sentimento interno
ou consciência, é em última análise misterioso e ininteligível? Logo que o espírito quer certo
evento, imediatamente um outro evento é gerado, que ignoramos e que é totalmente diferente
do evento visado; este evento gera um outro, igualmente desconhecido, até que, finalmente,
através de uma longa sucessão, o evento desejado é gerado. Mas, se se sentisse o poder
original, deveríamos conhecê-lo; se o conhecêssemos, dever-se-ia conhecer também seu
efeito, visto que todo poder é relativo a seu efeito. E vice-versa, se não se conhece o efeito,
não se pode conhecer nem sentir o poder. Como, em verdade, poderíamos ser conscientes de
um poder de mover nossos membros quando não temos um tal poder; mas apenas aquele de
mover certos espíritos animais que, embora produzam em definitivo o movimento de nossos
membros, agem de uma maneira que ultrapassa totalmente nossa compreensão?
Podemos, pois, concluir de toda esta argumentação, sem temeridade, espero, mas com
segurança: nossa idéia de poder não é copiada de um sentimento ou da consciência de nosso
poder interno, quando produzimos o movimento animal ou aplicamos nossos membros àsua
própria função ou uso. Que seu movimento obedece à ordem da vontade é um fato da
experiência corriqueira igual a tantos outros eventos naturais; mas o poder ou a energia que o
realizou, do mesmo modo que em outros eventos naturais, é desconhecido e inconcebível.
8
Afirmaremos, pois, que somos conscientes de um poder ou energia de nossos espíritos
quando, por um ato ou ordem de nossa vontade, suscitamos uma nova idéia, firmamos o
espírito em sua consideração, a visamos sob todos os ângulos e por fim a rejeitamos por outra
idéia quando pensamos que a temos examinado com suficiente exatidão? Acredito que os
mesmos argumentos provarâo que esta ordem da vontade não nos fornece nenhuma idéia real
de força ou de energia.
Primeiramente, deve-se admitir que, quando conhecemos um poder, apreendemos na
causa a precisa circunstância que o capacita para produzir seu efeito, porque ambos se
supõem sinônimos. Portanto, devemos conhecer tanto a causa como o efeito e a relação entre
eles. Mas aspiramos conhecer a natureza da alma humana e a natureza de uma idéia, ou a
capacidade de uma produzir a outra? Esta é uma criação real; uma produção de alguma coisa
a partir do nada; que implica um poder tão grande, que à primeira vista parece estar fora do
alcance de todo ser menor que o infinito. Pelo menos, deve-se reconhecer que um tal poder
não é nem sentido nem conhecido e nem mesmo concebível pelo espírito. Apenas sentimos o
evento, a saber, a existência de uma idéia consequente a uma ordem da vontade; porém, a
maneira como se realiza esta operação e o poder pelo qual ela é produzida estão inteiramente
fora de nossa compreensão.
Secundariamente, o governo do espírito sobre si mesmo é limitado, assim como seu
controle sobre o corpo; e estes limites não são conhecidos pela razão ou por qualquer
conhecimento da natureza de causas e efeitos, mas apenas pela observação ou pela
experiência, como em todos os outros eventos naturais e na operação de objetos externos.
Nossa autoridade sobre nossos sentimentos e nossas paixões é muito mais débil do que sobre
nossas idéias; e mesmo esta última se circunscreve dentro dos mais estreitos limites. Quem
pretenderá dar a razão última destes limites ou mostrar por que o poder é débil em alguns
casos, e não em outros?
Terceiramente, este domínio de si mesmo é muito diferente em diferentes momentos.
Um homem sadio o possui em maior grau do que alguém que se consome com a doença.
Somos mais donos de nossos pensamentos pela manhã do que pela noite; em jejum, do que
após uma refeição copiosa. Podemos dar alguma razão destas variações exceto a experiência?
Onde está, pois, o poder do qual pretenderíamos ser conscientes? Não há aqui, seja em uma
substância espiritual ou material, seja em ambas, algum mecanismo desconhecido ou
estrutura de elementos do qual depende o efeito e que, por nos ser inteiramente desconhecido,
torna o poder ou energia da vontade igualmente desconhecidos e incompreensíveis?
A vontade é certamente um ato do espírito, com a qual estamos suficientemente
familiarizados. Refleti sobre ela. Considerai-a sob todos os ângulos. Encontrastes nela algo
de semelhante a este poder criador, pelo qual do nada gera uma nova idéia, e, por uma
espécie de fiat, imita a Onipotência de seu Criador se se me permite falar assim que
converge para a existência os diferentes panoramas da natureza? Esta energia da vontade
acha-se tão afastada de nossa consciência que necessitamos recorrer à experiência como a
que possuímos para convencer-nos de que tão extraordinários efeitos resultam
efetivamente de um simples ato da vontade.
Os homens, em geral, não encontram jamais qualquer obstáculo para explicar as mais
comuns e usuais operações da natureza, tais como a queda dos corpos pesados, o crescimento
das plantas, a procriação dos animais ou a nutrição dos corpos pelos alimentos; e eles
admitem que, em todos estes fenômenos, percebem com exatidão a força ou a energia da
causa, que a põe em conexão com seu efeito e sempre é infalível em sua operação. Adquirem,
por longo hábito, tal modo de pensar que, ao aparecer uma causa, esperam imediatamente e
com segurança o seu acompanhante usual e dificilmente concebem que seja possível que um
outro evento possa resultar dela. Apenas quando descobrem fenômenos extraordinários, tais
como o terremoto, a peste e outros prodígios deste gênero, encontram-se embaraçados para
designar uma causa apropriada e para explicar de que modo produz o efeito. Os homens têm
o hábito, em tais dificuldades, de recorrer a algum principio invisível e inteligente
9
como
causa imediata do evento que os surpreende e que, pensam eles, não pode ser explicado pelos
poderes corriqueiros da natureza. Mas os filósofos, que levam suas pesquisas um pouco mais
adiante, percebem imediatamente que, mesmo nos eventos mais familiares, a energia da
causa é tão ininteligível como no mais invulgar, e que apenas apreendemos da experiência a
freqüente conjunção dos objetos, sem que jamais sejamos capazes de compreender nada
semelhante à conexão entre eles.
10
Daqui, pois, que muitos filósofos se julguem obrigados
pela razão a recorrer, em todas as ocasiões, ao mesmo principio que o vulgo nos invoca
apenas nos casos aparentemente miraculosos e sobrenaturais. Reconhecem que o espírito e a
inteligência são, não apenas a causa última e original de todas as coisas, mas também a única
causa e a causa imediata de todo evento que aparece na natureza. Pretendem que os objetos
geralmente denominados causas não são em realidade nada mais do que ocasiões, e que o
verdadeiro e direto princípio de todo efeito não é nenhum poder ou força natural, mas a
vontade do Ser Supremo, que quer que tais objetos particulares estejam sempre ligados entre
si. Em vez de dizer que uma bola de bilhar move outra por uma força derivada do autor da
natureza, dizem eles que a própria Divindade move a segunda bola por um ato da vontade,
em conseqüencia das leis gerais impostas a si mesma no governo do universo. Mas os
filósofos, persistindo em suas investigações, descobrem que, do mesmo modo que ignoramos
totalmente o poder do qual depende a ação mútua dos corpos, ignoramos também o poder do
qual depende a operação do espírito sobre o corpo ou do corpo sobre o espírito; e não somos
capazes, a partir de nossos sentidos ou de nossa consciência, de assinalar o princípio último
tanto num caso como no outro. A mesma ignorância, portanto, os leva à mesma conclusão.
Afirmam que a Divindade é a causa imediata da união da alma e do corpo, e que não são os
órgãos dos sentidos que, agita dos pelos objetos externos, produzem as sensações no espírito;
porém, trata -se de um ato da vontade de nosso onipotente Criador que excita uma dada
sensação em conseqüencia de um movimento do órgão. De maneira análoga, não é nenhuma
energia da vontade que produz o movimento local de nossos membros: é Deus mesmo quem
se deleita em ajudar nossa vontade, em si mesma impotente, e em ordenar o movimento que
erroneamente atribuímos ao nosso próprio poder e à nossa própria eficácia. Os filósofos não
se detêm nesta conclusão. As vezes estendem a mesma inferência ao próprio espírito em suas
operações internas. Nossa visão mental ou nossa concepção de idéias nada mais é do que uma
revelação que nos faz nosso Criador. Quando voluntariamente dirigimos nossos pensamentos
para um objeto e suscitamos sua imagem na fantasia, não é a vontade que cria esta idéia, é o
Criador Universal quem a descobre e a revela ao espírito.
11
Assim, segundo estes filósofos, toda coisa está plena de Deus. Descontentes com o
princípio de que nada existe a não ser por sua vontade, de que nada possui poder senão por
sua concessão, despojam tanto a natureza como todos os seres criados de todo poder a fim de
tornar sua subordinação a Deus ainda mais sensível e imediata. Não consideram que,
mediante esta teoria, diminuem, em vez de aumentar, a grandeza destes atributos que
pretendem tanto celebrar. Certamente, comprova-se mais poder em Deus, delegando às
criaturas inferiores certa porção do poder do que fazendo-o produzir tudo por sua vontade
imedia ta. Demonstra mais sabedoria organizar a princípio toda estrutura do universo com
tanta perfeição que, por si mesmo e por sua própria operação, pode servir completamente aos
desígnios da providência, do que obrigar o grande Criador a ajustar e a animar
constantemente toda a engrenagem desta prodigiosa máquina.
Mas, se quisermos refutar filosoficamente esta teoria, talvez as duas seguintes reflexões
serão suficientes.
Em primeiro lugar, parece-me que a teoria referente à energia e ação universal do Ser
Supremo afigura-se bastante arrojada para convencer quem tenha suficiente consciência da
debilidade da razão humana e dos estreitos limites que a confinam em todas as suas
operações. Embora a cadeia de argumentos conduzindo a ela seja logicamente correta,
persiste a forte suspeita, senão uma certeza absoluta, de que ela nos levou a transbordar o
alcance de nossas faculdades conduzindo-nos a conclusões tão extraordinárias e distanciadas
da vida diária e da experiência. Somos levados ao país das fadas, bem antes de chegarmos aos
últimos estágios de nossa teoria; e não temos motivos para confiar em nossos métodos
usuais de argumentação, nem de supor que nossas analogias e probabilidades usuais tenham
alguma autoridade. Nossa linha é muito curta para sondar a imensidão de semelhantes
abismos. E por mais que pretendamos crer que em cada passo que damos nos guia uma
espécie de verossimilhança e de experiência, podemos assegurar-nos de que esta experiência
imaginária não tem autoridade quando a aplicamos a casos inteiramente estranhos ao campo
da experiência. Todavia, mais adiante teremos ocasião para retomar este tópico.
12
Em segundo lugar, não consigo perceber nenhuma força nos argumentos que
fundamentam esta teoria. De fato, ignoramos a maneira segundo a qual os corpos agem entre
si. Sua força ou energia é inteiramente incompreensível. Mas não ignoramos também de que
maneira ou força um espírito, mesmo o Supremo Espírito, age sobre si mesmo ou sobre um
corpo? De onde, pergunto-vos, adquirimos essa idéia? Não temos sentimento ou consciência
deste poder em nós mesmos. Não temos outra idéia do Ser Supremo a não ser aquela que
aprendemos ao refletir sobre nossas próprias faculdades. Portanto, se nossa ignorância fosse
uma boa razão para rejeitar algo, seríamos induzidos ao princípio de negar energia quer ao
Ser Supremo quer à matéria mais vulgar. Certamente não entendemos bem as atividades de
um como de outro. É mais difícil conceber que o movimento pode surgir do impulso que da
vontade? Tudo o que conhecemos é nossa profunda ignorância em ambos os casos.
13
NOTAS:
1 Nas edições K e L o título era: “Da idéia de poder ou de conexão necessária”. Hume
escreve, no Tratado, que considerava esclarecida a fundamental questão da inferência causal,
ou melhor, a maneira segundo a “qual raciocinamos além de nossas impressões imediatas, e,
concluído que tais causas particulares devem ter tais efeitos particulares” (I, iii, XIV, p.
155), verifica-se que devemos agora “retornar sobre nossos passos e examinar a questão, que
em primeiro lugar nos ocorreu e foi deixada para trás em nosso caminho, a saber: em que
consiste nossa idéia de necessidade, quando dizemos que dois objetos estão necessariamente
unidos entre si” (Idem, p. 155). A relevante questão colocada entre parênteses
momentaneamente indica que para Hume a idéia de necessidade sempre esteve em sua
cogitação, como também sugere que ela representa uma das principais peças de sua filosofia.
[N. do T.]
2 Além dessas idéias, o Tratado apresenta: “eficácia, agente, necessidade, conexão e
qualidade produtiva “, e adverte que, sendo aqueles termos “quase sinônimos”, não se deve
supor que a definição de um define os outros. (T, iii, XIV, p. 157) [N. do T.]
3 Seção II (Hume).
Hume indica, assim, sua intenção de aplicar rigorosamente o método de desafio:
“quando suspeitamos que um termo filosófico está sendo empregado sem nenhum significado
ou idéia o que é muito freqüente devemos apenas perguntar: de que impressão é
derivada aquela suposta idéia?” (p. 71) [N. do T]
4 Locke diz, em seu capítulo acerca do poder, que ao verificar mediante a experiência
que há uma variedade de novas criações na matéria, conclui que em algum lugar deve haver
um poder capaz de produzi-las, raciocínio esse que o leva à idéia de poder. Mas nenhum
raciocínio pode dar-nos uma nova, original e simples idéia, como este mesmo filósofo
confessa. Portanto, esse raciocínio não pode jamais ser a origem desta idéia (Hume).
5 Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: ‘As operações e a mútua
influência dos corpos são, talvez, suficientes para provar que eles são também dotados disto”.
6 Nas edições de K a N: “do Espírito’.
7 Nas edições K e L havia a seguinte sentença intercalada: “Examinaremos esta
hipótese e tentaremos evitar, na medida do possível, todo jargão e confusão sobre temas tão
profundos e sutis. Afirmo, pois, em primeiro lugar, que a influência da volição sobre os
órgáos é um fato etc”.
8 Pode-se pretender que a resistência que encontramos nos corpos e que nos obriga a
empregar toda nossa força e a reunir todo nosso poder nos dá a idéia de força e de poder. Este
nisus ou vigoroso esforço de que somos conscientes é a impressão original de onde se copia
esta idéia. Mas, em primeiro lugar, atribuímos poder a um grande número de objetos, nos
quais jamais poderíamos supor que aparecesse esta resistência ou emprego de força: ao Ser
Supremo, que jamais depara com esta resistência; ao espírito, em seu governo sobre as idéias
e membros, sobre o pensamento e movimentos ordinários, em que o efeito segue
imediatamente a vontade sem emprego ou concentração de forças; a matéria inanimada que
não é suscetível deste sentimento. Em segundo lugar, este sentimento de esforço para vencer
a resistência não tem nenhuma conexão conhecida com qualquer evento. Conhecemos através
da experiência aquilo que lhe segue, mas não poderíamos conhecê-lo a priori. Portanto, é
preciso admitir que o nisus animal experienciado por nós, embora não nos possa fornecer
nenhuma idéia rigorosa e determinada de poder, responde, até certo ponto, à idéia vulgar e
impressão que dele temos formado (Hume).
1 Na edição K lê-se "Quasi deus ex machina”. A edição L acrescenta a referência:
“Cícero, De natura deorum”.
2 Baseiam-se, talvez, neste resultado negativo da Investigação, ou mais precisamente do
Tratado, as restrições de John Stewart, Some Remarks on the Laws of Motion, and the Inertia
of Matter, de 1754, contra a doutrina de Hume. Sabemos que o primeiro [segundo referência
de N. Kemp Smith, ob. cit., pp. 411-31 escreve que alguma coisa pode começar a existir, ou
principiar a ser, sem uma causa, foi em verdade mostrado em um sistema [isto é, o Tratado]
mui engenhoso de filosofia cética”. Hume, em defesa de seu ponto de vista, escreve: “Jamais
defendi uma proposição tão absurda que qualquer coisa pode nascer sem uma causa. Apenas
sustentei que nossa certeza ou falsidade desta proposição [isto é, “que César existiu”] não
pmcede nem da demonstração e nem da intuição, mas de uma outra fonte” (Cartas, 1, p.
187). Ou melhor, em nenhum momento Hume questiona a necessidade lógica da máxima
casual, apenas procura evidenciar que sua explicação se fundamenta na experiência. [N. do
T.]
12 Seção XII (Hume).
13 Não é preciso examinar extensamente a vis inertiae, da qual tanto se tem falado na
nova filosofia e que tem sido atribuida à matéria. Sabemos por experiência que um corpo em
repouso ou movimento continua no mesmo estado até que é tirado dele por alguma causa e
que o corpo que recebe o impulso incorpora o movimento do corpo impulsor. Estes são os
fatos. Quando denominamos este processo de vis inertiae, apenas destacamos estes fatos sem
a pretensão de ter uma idéia do poder de inércia, do mesmo modo que, quando falamos da
gravidade, entendemos certos efeitos sem compreendermos esta força ativa. Sir Isaac Newton
nunca teve a intenção de despojar as causas segundas de toda a sua força ou energia, embora
alguns de seus seguidores tenham tentado fundar esta teoria sob sua autoridade. Pelo
contrário, o grande filósofo recorreu a um fluido etéreo ativo para explicar sua atração
universal; assim mesmo foi tão cauteloso e modesto que admitiu que era apenas mera
hipótese e que não devia apoiá-la sem recorrer a experimentos complementares. Devo
confessar que algo extraordinário ocorre com o destino das opiniões. Descartes sugeriu esta
doutrina da universal e única eficácia de Deus sem insistir nela. Malebranche e outros
cartesianos fizeram dela o fundamento de sua filosofia. Sem dúvida, esta doutrina não tem
autoridade na Inglaterra. Locke, Clarke e Cudworth não lhe prestaram nenhuma atenção e
sempre supuseram que a matéria tem força real, embora subordinada e derivada. De que
modo ela chegou a ter tanta importância entre os metafisicos modernos? (Hume).
SEGUNDA PARTE
Mas apressemo-nos a concluir esta argumentação, que já se tem feito demasiado
extensa. Temos procurado em vão uma idéia de poder ou de conexão necessária em todas as
fontes de onde pudesse originar. Parece que em casos isolados da atividade dos corpos não
podemos jamais, pelo exame mais escrupuloso, descobrir outra coisa a não ser um evento
acompanhando outro, sem que sejamos capazes de apreender a força ou o poder que faz agir
a causa, ou alguma conexão entre ela e seu suposto efeito. A mesma dificuldade ocorre
quando se consideram as atividades do espírito sobre o corpo, nas quais notamos que o
movimento do último segue a vontade do primeiro, mas não somos capazes de vislumbrar, ou
conceder o laço que liga o movimento e a vontade, ou a energia pela qual o espírito produz o
seu efeito. A autoridade da vontade sobre suas próprias faculdades e idéias não é nem um
pouco mais compreensível. De modo que, resumindo, não aparece, em toda a natureza, um
único exemplo de conexão passível de nossa concepção. Todos os eventos parecem
inteiramente soltos e separados. Um evento segue outro, porém jamais podemos observar um
laço entre eles. Parecem estar em conjunção, mas jamais em conexão. E como não podemos
jamais formar idéia de uma coisa que nunca se revelou aos nossos sentidos externos ou
sentido interno, a conclusão necessária parece ser que não temos, definitivamente, idéia de
conexão ou de poder, e que estes termos nada significam quando utilizados nos raciocínios
filosóficos ou na vida diária.
Entretanto, resta ainda um método para evitar esta conclusão, e uma fonte que ainda
não examinamos. Quando um objeto ou evento natural se revela, não há sagacidade ou
penetração que nos permita descobrir, ou mesmo conjeturar, sem o auxílio da experiência,
qual evento resultará dele ou de levar-nos a antever além do objeto presente imediatamente à
memória e aos sentidos. Mesmo depois de averiguarmos que num caso ou experimento um
evento específico acompanha outro, não julgamos lícito formular uma regra geral ou predizer
o que ocorrerá em situações análogas, pois seria temeridade imperdoável julgar de todo o
curso da natureza partindo de um único experimento, por mais exato e seguro que fosse. Mas
quando determinada espécie de eventos se mostra sempre e em todas as situações conjuntada
a outra, não sentimos escrúpulos de predizer um ao surgir o outro, utilizando-nos, pois, do
único tipo de raciocínio que pode assegurar-nos sobre as questões de fato e de existência.
Denominamos, então, um dos objetos causa e o outro efeito. Supomos que há alguma
conexão entre eles; algum poder em um deles pelo qual infalivelmente produz o outro e atua
com a máxima certeza e a mais forte necessidade.
Parece, pois, que a idéia de uma conexão necessária entre os eventos surge de vários
casos semelhantes em que ocorre a conjunção constante destes eventos; já que nenhum destes
casos pode nos suscitar esta idéia, embora fossem examinados sob todos os ângulos e
posições possíveis. No entanto, apesar de não haver em determinado número de casos algo a
diferenciá-lo de um caso singular suposto exatamente semelhante aos outros
destacamos apenas que, depois da repetição de casos semelhantes, o espírito é impelido pelo
hábito, devido à aparição de um evento, a aguardar aquele que usualmente o acompanha e em
acreditar em sua existência. Portanto, esta conexão que sentimos no espírito, esta transição
costumeira da imaginação de um objeto para o seu acompanhante usual, é o sentimento ou a
impressão que origina a idéia de poder ou de conexão necessária. Não há nada a mais na
ocorrência. Considerai o assunto de todos os ângulos, jamais encontrareis outra origem desta
idéia. Eis a única diferença entre um caso singular, do qual jamais podemos inferir a idéia de
conexão, e vários casos semelhantes originando esta idéia. Uma pessoa que observa pela
primeira vez, por exemplo, o movimento comunicado pelo impulso quando duas bolas se
chocam não poderia afirmar que os eventos estavam em conexão, apenas poderia asseverar
que entre eles havia conjunção. Observando em seguida vários exempíos de natureza
semelhante, poderia então concluir afirmando que os fatos estão em conexão. Que tipo de
alteração ocorreu originando esta nova idéia de conexão? Nenhuma, exceto que agora ela
sente que estes eventos estão em conexão em sua imaginação, podendo facilmente antever a
existência de um pelo aparecimento do outro. Afirmando, portanto, que um objeto está em
conexão com outro, apenas queremos dizer que estes objetos têm adquirido uma conexão em
nosso pensamento e provocam a inferência através da qual se chega a comprovar a existência
de outro: conclusão um tanto extraordinária, porém baseada em número suficiente de
evidências. Esta evidência não será enfraquecida tanto pela desconfiança total em relação ao
entendimento como pelas dúvidas céticas levantadas contra toda conclusão nova e
extraordinária. Nenhuma conclusão agrada mais ao ceticismo do que a que revela a
debilidade e estreiteza da esfera racional e das capacidades humanas.
Que exemplo é mais poderoso do que o presente para mostrar a surpreendente
ignorância e debilidade do entendimento? De fato, porque, se há alguma relação entre os
objetos que visamos a apreender com perfeição, é aquela de causa e efeito. Nela se
fundamentam todos os nossos raciocínios sobre as questões de fato ou de existência. Apenas
por meio desta relação podemos ter alguma segurança sobre os objetos distanciados do atual
testemunho de nossa memória e dos sentidos. Esclarecer-nos como controlar e regular os
eventos futuros através de suas causas é a única e imediata utilidade de todas as ciências.
Portanto, nossos pensamentos e inquirições convergem em todo momento para esta relação,
embora as idéias que formamos a seu respeito sejam tão imperfeitas que é impossível definir
com exatidão a causa, a não ser aquela derivada de algo que lhe é exterior e alheio. Objetos
semelhantes sempre estão conjuntados a objetos semelhantes. Disto temos experiência. De
acordo com esta experiência, portanto, podemos definir uma causa como um objeto seguido
por outro, de tal forma que todos os objetos semelhantes ao primeiro são seguidos de objetos
semelhantes ao segundo. Ou, em outras palavras: se o primeiro objeto não houvesse existido,
o segundo nunca haveria existido. A aparição de uma causa sempre faz convergir o espírito,
por uma transição costumeira, à idéia do efeito. Disto também temos experiência. Podemos,
pois, de acordo com esta experiência, formular uma outra definição de causa e denonuná-la
um objeto seguido por outro e cuja aparição faz convergir o pensamento sempre para aquele
outro.
1
Embora estas duas definições sejam formuladas de circunstâncias alheias à causa, não
podemos remediar este inconveniente ou elaborar definição mais perfeita que possa indicar
na causa a circunstância que lhe dá uma conexão com seu efeito. Não temos nenhuma noção
desta conexão, nem mesmo nenhuma idéia distinta da natureza daquilo que desejamos saber,
quando nos esforçamos em concebê-la. Dizemos, por exemplo, que a vibração desta corda é a
causa deste som particular. Mas, o que queremos dizer com esta afirmação? Ou queremos
dizer que esta vibração é seguida deste som e que todas as vibrações semelhantes têm sido
acompanhadas de sons semelhantes, ou que esta vibração é seguida deste som, e que, pela
aparição de uma, o espírito se antecipa aos sentidos e forma imediatamente a idéia da outra.
Podemos considerar a relação de causa e efeito em quaisquer destas duas maneiras; mas além
dessas não temos idéia dela.
2
Recapitulemos, portanto, os raciocínios desta seção: toda idéia é copiada de uma
impressão ou de uma sensação precedentes; se não podemos localizar a impressão, podemos
assegurar-nos de que não há idéia. Em todos os casos isolados da atividade dos corpos ou
espíritos, não há nada que produza uma impressão, nem, por conseguinte, que possa sugerir
uma idéia de poder ou de conexão necessária. Mas quando aparecem vários casos uniformes,
e o mesmo objeto é sempre seguido pelo mesmo evento, então começamos a admitir a noção
de causa e de conexão. Nós sentimos então um novo sentimento, ou nova impressão, ou seja,
uma conexão costumeira no pensamento ou na imaginação entre um objeto e o seu
acompanhante habitual; e este sentimento é a origem da idéia que procuramos.
3
Com efeito,
como esta idéia nasce de vários casos semelhantes, e não de um caso isolado, ela deve nascer
da circunstância que faz diferir vários casos de cada caso individual. Ora, esta conexão ou
transição costumeira da imaginação é a única circunstância que os faz diferir. Em todos os
outros aspectos eles são semelhantes. O primeiro caso que vimos do movimento comunicado
pelo choque de duas bolas de bilhar para retomar este exemplo evidente é exatamente
semelhante a não importa que caso que pode, no presente, se apresentar a nós; excetuando
apenas que, a princípio, não podíamos inferir um evento do outro, o que somos capazes de
fazer agora, depois de tão extensa série de experiências uniformes. Não sei se o leitor
apreenderá facilmente este raciocínio. Temeria tomá-lo mais obscuro e complicado se
multiplicasse as palavras e o considerasse sob vários aspectos. Em todos os raciocínios
abstratos há um ponto de vista que, se afortunadamente o alcançamos, nos ilustra mais acerca
do assunto que mediante toda a eloqüencia do mundo. Devemos aspirar a este ponto de vista
e reservar os floreios da retórica para oportunidade mais adequada.
NOTAS:
1 É provável que as duas definições de causa sejam alternativas baseadas em “distintos
pontos de vista acerca de um mesmo objeto” (Tratado, I, iii, XIV, p. 170), ou seja, podemos
entender a relação de causa e efeito como “relação filosófica e como relação natural; ou
como comparação de idéias, ou como associação entre elas [isto é, idéias]”(Idem). Julgamos
que a primeira definição de causa pode ser classificada como uma relação filosófica: trata-se
de uma conjunção constante entre eventos, ou classes de eventos, inteiramente separados de
qualquer processo associativo. Enquanto isso, a segunda definição é uma relação natural:
fundamenta -se em relações de idéias unidas pelos princípios associativos do entendimento
humano. (vejam-se de Flew, ob. cit ., p. 120, e de Robinson, “Hume’s Two Defiitions of
Cause”, pp. 143-4, in Hume, A Collecion of critical Essays, ed. Chappel, 1966) [N. do T.]
2 Segundo estas explicações e definições, a idéia de poder é tão relativa como a de
causa: ambas dizem respeito a um efeito ou a um outro evento unido constantemente ao
primeiro. Quando consideramos a circunstância desconhecida de um objeto, que fixa e
determina o grau e a quantidade de seu efeito, denominamo-la seu poder. E é do consenso
geral entre os filósofos que o efeito é a medida do poder. Mas se eles tivessem uma idéia de
poder, tal como é e em si mesmo, por que não poderiam medi-lo por si mesmo? Discutir para
saber se a força de um corpo em movimento é proporcional à sua velocidade ou ao quadrado
de sua velocidade não conduziria a nada se apenas se comparassem os efeitos em tempos
iguais ou desiguais, mas, sim, mediante medida e comparação diretas.
A freqüencia com que se usam termos como “força”, “poder”, “energia” etc., em
todos os momentos da vida diária e em filosofia, não é uma prova que conhecemos em
quaisquer dos casos o princípio de conexão entre a causa e o efeito ou que podemos dar uma
explicação conclusiva da produção de uma coisa pela outra. Estes termos tais como são
geralmente empregados têm sentido muito vago e suas idéias são bastante incertas e
confusas. Nenhum ser animado pode mover corpos externos sem o sentimento do nisus ou de
um esforço, e todo ser animado tem um sentimento ou sensação de uma batida ou do choque
de um corpo externo em movimento. Estas sensações, meramente animais e das quais jamais
podemos inferir algo a priori, podem ser transferidas por nós a objetos inanimados e supô-los
dotados de tais sensações, quer quando recebem ou comunicam o movimento. Com
referência às energias que se exercem sem que nós lhes anexemos a idéia de comunicação de
um movimento, consideramos apenas a conjunção constante dos eventos que experienciamos;
como sentimos uma conexão costumeira entre as idéias, transferimos este sentimento aos
objetos, pois não há nada mais usual do que aplicar aos corpos externos toda sensação interna
por eles ocasionada (Hume).
3 Esta passagem enquadra-se harmoniosamente com a análise da inferência causal e a
origem da crença, como também indica que a nova impressão, fonte da idéia de conexão
necessária, é ocasionada pelo mesmo tipo de associação habitual. [N. do T.]
SEÇÃO VIII
DA LIBERDADE E DA NECESSIDADE
1
PRIMEIRA PARTE
Seria razoável esperar que acerca das questões que têm sido examinadas e discutidas
cuidadosamente desde os primórdios da ciência e da filosofia houvesse, ao menos, acordo
entre os disputantes sobre o significado de todos os termos e, transcorridos dois mil anos de
inquirições, houvessem passado das palavras para o objetivo verdadeiro e real da
controvérsia. Pois não seria mais fácil definir com exatidão os termos empregados no
raciocínio e não considerar as definições um mero reflexo de palavras, mas objeto de exame e
investigações futuras? Mas se considerarmos o assunto mais de perto, seremos obrigados a
tirar uma conclusão oposta, fundada nesta única circunstância: visto que uma controvérsia
perdura e continua ainda sem decisão, deve-se presumir que há alguma ambigúidade
conceitual e que os adversários atribuem idéias diferentes para os termos empregados na
controvérsia. Com efeito, supondo-se que as faculdades espirituais são naturalmente
semelhantes em todos os indivíduos de outro modo nada seria mais infrutífero do que
raciocinar e discutir juntos seria impossível, se os homens atribuissem as mesmas idéias
para os seus termos, que continuassem por tanto tempo a formular opiniões diferentes sobre o
mesmo objeto, especialmente se comunicam seus pareceres e cada uma das facções busca
argumentos em toda parte a fim de obter a vitória sobre seus antagonistas. Certamente, se os
homens enveredam por problemas inteiramente afastados da capacidade humana, tais como
os referentes à origem do mundo, à organização do sistema intelectual ou ao reino dos
espíritos, podem longa e infrutiferamente discutir sem atingir uma solução conclusiva. Mas,
se o problema diz respeito a qualquer objeto da vida diária e da experiência, pensar-se-ia que
nada poderia manter o debate indecidido por tanto tempo, exceto algumas expressões
ambíguas, que mantêm ainda os adversários à distância, impedindo-os de se porem em íntimo
contato.
Esta tem sido a situação da tão longamente debatida questão da liberdade e da
necessidade. E se não estiver muito equivocado, veremos que todos os homens, tanto eruditos
como ignorantes, sempre têm sustentado idêntica opinião acerca do assunto a ponto de fazer
crer que algumas definições inteligíveis teriam imediatamente posto fim a toda controvérsia.
Reconheço que esta questão tem sido bastante agitada por todas as partes e que tem arrastado
os filósofos a tal labirinto de sofismas obscuros que não espanta se um leitor amante da
tranqüilidade queira fazer-se de surdo sobre ela, já que não espera do debate instrução ou
entretenimento. Contudo, o tipo de argumentação proposto aqui poderá, talvez, servir para
renovar sua curiosidade e, como apresenta inovação, promete, pelo menos, uma solução
parcial da controvérsia sem perturbar em demasia sua tranquilidade com raciocínios
complicados e obscuros.
Pretendo mostrar, portanto, que todos os homens sempre têm estado concordes com as
doutrinas da necessidade e da liberdade segundo qualquer significado razoável que se
possa atribuir a estes termos e que até agora toda a controvérsia tem girado em torno de
meras palavras.
2
Toda a gente reconhece que a matéria, em todas as suas funções, se acha animada por
uma força necessária, e que todo efeito natural está determinado com exatidão pela energia de
sua causa, de forma que nenhum outro efeito poderia resultar dela em tais condições
particulares. O grau e a direção de cada movimento estão prescritos pelas leis da natureza
com tal exatidão, que seria tão difícil fazer surgir um grau ou direção diferente ao que se
produz em realidade como fazer nascer uma criatura viva do choque de dois corpos. Portanto,
se quisermos conceber uma idéia justa e exata da necessidade, devemos examinar a origem
dessa idéia quando a aplicarmos às ações corporais.
Parece evidente que jamais teríamos chegado à menor idéia de necessidade ou de
conexão entre os objetos naturais, se todas as cenas da natureza estivessem continuamente
mudando, de modo que não houvesse dois eventos semelhantes e se cada objeto fosse
completa mente novo, sem nenhuma similitude com qualquer coisa que foi antes vista.
Poderíamos dizer, em tal suposição, que um objeto ou evento resulta de outro e não que um
foi produzido pelo outro. A relação de causa e efeito seria completamente desconhecida dos
homens. E, por conseguinte, terminariam as inferências e os raciocínios sobre as operações
naturais; e a memória e os sentidos seriam as únicas vias de acesso do espírito na apreensão
de uma existência real. Portanto, nossa idéia de necessidade e de causa surge inteiramente da
uniformidade verificada nas operações da natureza, na qual os objetos semelhantes estão
constantemente conjuntados e o espírito é determinado pelo costume a inferir um pelo
aparecimento do outro. Estas duas circunstâncias compreendem toda a necessidade que
atribuímos à matéria. Além da conjunção constante de objetos semelhantes e da conseqúente
inferência de um para o outro, não temos nenhuma idéia de qualquer necessidade ou
conexão.
3
Parece, portanto, que todos os homens têm sempre admitido sem nenhuma dúvida ou
hesitação que estas duas circunstâncias ocorrem em suas ações voluntárias e .nas
operações do espírito; conclui-se daqui que todos os homens sempre têm estado de acordo
com a doutrina da necessidade e que, até o presente, têm discutido simplesmente por não se
terem entendido entre si.
Podemos certamente satisfazer-nos acerca da primeira circunstância, isto é, da
conjunção constante e regular dos eventos similares, com as seguintes considerações. Toda a
gente reconhece que há grande uniformidade nas ações humanas em todas as nações e em
todas as épocas, e que a natureza humana sempre permanece igual em seus princípios e em
suas operações.
4
Os mesmos motivos produzem sempre as mesmas ações; os mesmos eventos
resultam das mesmas causas. A ambição, a avareza, o amor-próprio, a vaidade, a amizade, a
generosidade e o espírito público, paixões misturadas em vários graus e distribuídas pela
sociedade têm sido, desde o começo do mundo, e ainda são, a fonte de todas as ações e
empreendimentos que se têm sempre observado entre os homens. Quereis conhecer os
sentimentos, as inclinações e o modo de viver dos gregos e dos romanos? Estudai bem o
temperamento e as ações dos franceses e dos ingleses: não estareis muito equivocado se
transferirdes aos primeiros a maioria das observações que fizestes sobre os segundos. A
humanidade é bastante parecida, em todos os tempos e lugares, e a história nada nos informa
de novo ou estranho a este respeito. Seu principal papel restringe-se em descobrir os
princípios universais e constantes da natureza humana, mostrando-nos os homens em
variadas circunstâncias e situações e suprindo-nos de materiais, dos quais podemos formar
nossas observações e ficarmos familiarizados com as fontes regulares da ação e da conduta
humana. Os relatos de guerras, intrigas, partidos políticos e revoluções são outras tantas
coleções de experimentos, por meio dos quais o político ou o filósofo moral fixa os princípios
de sua ciência, do mesmo modo que o médico ou o filósofo da natureza se familiariza com a
natureza das plantas, dos minerais e de outros objetos externos, pelas experiê ncias que fazem
sobre eles. A terra, a água e os outros elementos examinados por Aristóteles e Hipócrates são
tão parecidos com aqueles que no presente estão sob nossa observação, como os homens
descritos por Políbio e Tácito são semelhantes aos homens que governam atualmente o
mundo.
Se um viajante, ao regressar de um país longínquo, nos descrevesse a existência de
homens totalmente diferentes daqueles que temos conhecido, desprovidos totalmente de
avareza, de ambição ou de espírito vingativo e reconhecendo apenas o prazer da amizade, da
generosidade e do espírito público, descobriríamos imediatamente a falsidade do relato e lhe
demonstraríamos que mente, com a mesma certeza como se houvesse acumulado sua
narrativa com contos de centauros e dragões, milagres e prodígios. E se quisermos
desacreditar alguma falsificação histórica, não devemos usar argumentos mais adequados do
que os que provam que as ações atribuidas a uma pessoa são diretamente contrárias à ordem
natural das coisas, e que nenhum motivo humano, em tais circunstâncias, jamais poderia tê-la
induzido a tal conduta. Devemos suspeitar da veracidade de Quinto Cúrcio, quando descreve
a coragem sobrenatural de Alexandre, pela qual ele foi levado a atacar sozinho multidões, e
quando descreve sua força e sua atividade sobrenaturais, com as quais pôde resistir-lhes.
Deste modo, admitimos facilmente a uniformidade nos motivos e ações humanas, como
também nas operações do corpo.
Daqui, igualmente, deriva a influência benéfica da experiência adquirida por uma longa
vida, pela variedade de ocupações e convivência, instruindo-nos acerca dos princípios da
natureza humana e regrando tanto nossa conduta fritura como nossa especulação. Por meio
deste guia, elevamo-nos ao conhecimento das inclinações e motivos humanos, partindo de
suas ações, de suas manifestações e mesmo de seus gestos; e de novo descemos para a
interpretação de suas ações graças ao nosso conhecimento de seus motivos e inclinações. As
observações gerais armazenadas durante o transcurso da experiência dão-nos o elo condutor
da natureza humana, e nos ensinam a desfiar todas as suas complicações. Nem os pretextos e
nem as aparências voltam a enganar-nos. Supõe-se que as declarações feitas em público são
especiosos disfarces de uma causa. E embora se conceda à virtude e à honra de seu próprio
peso e autoridade, este perfeito desinteresse, que é com tanta freqüencia proclamado, jamais
se espera de multidões e partidos políticos, raramente de seus condutores e apenas, às vezes,
de indivíduos de qualquer posição ou categoria. Mas, se não houvesse uniformidade nas
ações humanas, e se todo experimento que pudéssemos fazer deste gênero fosse irregular e
anômalo, seria impossível coletar algumas observações gerais sobre a humanidade e nenhuma
experiência, por mais que a reflexão a houvesse assimilado, serviria para algum fim. Porque o
velho agricultor é mais hábil em sua profissão do que o jovem principiante, apenas porque há
uma certa uniformidade na ação do sol, da chuva e da terra na produção de legumes, e porque
a experiência ensina ao que pratica há muito tempo as regras que governam e dirigem estas
operações.
Não devemos, portanto, esperar que esta uniformidade das ações humanas se estenda de
tal maneira que todos os homens, nas mesmas circunstâncias, sempre agirão exatamente da
mesma maneira, sem fazer nenhuma concessão à diversidade dos caracteres, dos preconceitos
e das opiniões. Semelhante uniformidade, em todos os aspectos, não se encontra em nenhuma
parte da natureza. Pelo contrário, ao observar a variedade de condutas em diferentes homens,
tornamo-nos aptos para formar uma grande variedade de máximas que, sem dúvida, ainda
supõem um grau de uniformidade e regularidade.
5
Os costumes dos homens são diferentes em épocas e países diferentes? Daqui
aprendemos a grande força do costume e da educação, os quais modelam o espírito humano
desde sua infância e lhe formam o caráter de modo estável. O comportamento e a conduta de
um sexo são muito diferentes dos do outro? Deste modo é que chegamos a conhecer os
diferentes caracteres que a natureza tem imprimido nos sexos e que ela mantém com
regularidade e constância. As ações de uma mesma pessoa são muito diversas nos diferentes
períodos de sua vida, desde sua infância até sua velhice? Isto dá lugar a várias considerações
gerais acerca da mudança gradual de nossos sentimentos e inclinações, e das diferentes
máximas que prevalecem nas diferentes idades das criaturas humanas. Mesmo os caracteres
peculiares de cada indivíduo têm uma uniformidade em sua ação; de outro modo, nosso
conhecimento das pessoas e nossa observação de sua conduta jamais nos poderiam ensinar
acerca de suas disposições ou servir para dirigir nosso comportamento diante delas.
Admito que seja possível encontrar ações que parecem não ter conexão regular com
quaisquer motivos conhecidos, e que são exceções a todas as regras de conduta que se
estabeleceram para o governo dos homens. Mas se desejássemos saber que juízo devemos
formar das ações tão irregulares e extraordinárias, poderíamos considerar as opiniões que
nutrimos comumente com respeito a eventos irregulares, que aparecem na ordem natural das
coisas e nas operações dos objetos externos. Todas as causas não estão conjuntadas aos
efeitos usuais com igual uniformidade. Um artesão que somente manipula matéria inerte pode
fracassar em seu intento, tanto como o político que dirige a conduta de seres sensatos e
inteligentes.
O homem comum, contentando-se apenas com a aparência das coisas, atribui a
incerteza dos eventos a uma incerteza das causas, decorrendo das últimas as freqúentes falhas
em sua influência habitual, embora não encontrem obstáculos impedindo sua ação. Mas os
filó sofos, verificando que na maioria dos fenômenos naturais há uma enorme variedade de
fontes e princípios ocultos em razão de sua pequenez ou de seu afastamento, consideram que,
pelo menos, é possível que a oposição dos eventos não proceda de uma contingência da
causa, mas da operação desconhecida de causas contrárias. Esta possibilidade se converte em
certeza, quando observam posteriormente, depois de cuidadoso exame, que uma
contrariedade de efeitos sempre denuncia uma contrariedade de causas, e procede de sua
mútua oposição. Um camponês, não encontrando melhor explicação, para a parada de um
relógio, diz que geralmente não funciona bem. Contudo, um artesão percebe facilmente que
igual força da mola ou do pêndulo exerce sempre a mesma influência sobre as engrenagens,
não produzindo seu efeito habitual, devido talvez a um grão de poeira que detém todo o
movimento. Observando vários casos paralelos, os filósofos estabelecem como um princípio
que a conexão entre todas as causas e efeitos é igualmente necessária, e que sua aparente
incerteza em certos casos decorre da desconhecida oposição de causas contrárias.
Assim, por exemplo, quando o corpo humano, manifestando os sintomas usuais de
saúde ou de doença, desaponta nossa expectativa; quando os medicamentos não atuam com
seus poderes habituais; quando eventos irregulares resultam de uma causa determinada, o
filósofo e o médico não se surpreendem com isto, nem são jamais tentados a negar em sua
totalidade a necessidade e a uniformidade daqueles princípios que regulam a organização
corporal. Entendem que o corpo humano é uma máquina extremamente complicada; que
várias forças desconhecidas nele ocultas se acham afastadas de nossa compreensão; que
devemos sempre considerá-lo bastante incerto em seus movimentos; e que, portanto, os
eventos irregulares revelados exteriormente não podem constituir prova de que as leis
naturais não se processam com a máxima regularidade em suas funções e movimentos
internos.
O filósofo, se é coerente, deve estender o mesmo raciocínio às ações e volições dos
seres inteligentes, visando assim mostrar que as decisões humanas mais irregulares e
inesperadas se explicam com freqüencia quando se conhecem todas as circunstâncias do
caráter e da situação humanas. Uma pessoa com disposições amáveis pode responder de
maneiras impertinentes, mas porque ela está com dor de dentes ou ainda não jantou. Um
homem de modos grosseiros pode revelar vivacidade incomum ao seu comportamento porque
recebeu de repente uma grande fortuna. Mesmo considerando-se que um ato, como às vezes
ocorre, não pode ser explicado por quem o praticou ou pelos circundantes, reconhecemos
que, em geral, os caracteres humanos são até certo ponto inconstantes e irregulares. De certo
modo, é este o caráter constante da natureza humana, embora se aplicando mais
particularmente às pessoas destituídas de regras estáveis em sua conduta, mas que atuam
numa seqüencia contínua de capricho e de inconstância. Apesar destas aparentes
irregularidades, os princípios e motivos internos devem atuar de modo uniforme, da mesma
maneira que se supõe que os ventos, a chuva, as nuvens e as outras variações do tempo são
governados por princípios estáveis, embora a sagacidade e a investigação humana não os
possam facilmente desvendar.
Desta maneira, parece que não apenas a conjunção entre os motivos e os atos
voluntários é tão regular e uniforme (de modo análogo à relação de causa e efeito em
qualquer aspecto da natureza), mas, também, que esta conjunção regular tem sido
reconhecida universalmente e jamais tem sido tema de debate, quer pela filosofia quer na
vida diária. Ora, como derivam da experiência passada todas as experiências sobre o futuro e
como concluímos que os objetos que sempre encontramos conjuntados sempre estarão
conjuntados, pode, pois, parecer supérfluo provar que esta experimentada uniformidade das
ações humanas é a fonte de onde tiramos inferências que a elas se referem.
6
Mas, a fim de
mostrar maior número de aspectos dos argumentos, insistiremos também, embora
sumariamente, neste último tópico.
Em todas as sociedades, pode-se verificar que a mútua dependência entre os homens é
tão grande que raramente uma ação humana é inteiramente completa em si mesma ou se
realiza sem alguma referência às ações dos demais, constituindo assim no requisito
necessário para que possa responder por completo à intenção de quem a realiza. O artesão
paupérrimo, que trabalha sozinho, espera pelo menos a proteção do magistrado assegurando-
lhe o gozo do fruto de seu trabalho. Também espera que, quando leva suas mercadorias ao
mercado e as oferece a um preço razoável, encontrará compradores e terá poder graças ao
dinheiro que obteve para comprar dos outros as mercadorias que são necessárias para a sua
subsistência. A medida que os homens estendem suas relações e tornam mais complexas suas
comunicações com outros homens, sempre compreendem em seus planos de vida uma maior
variedade de atos voluntários que esperam, por motivos justos, que colaborem com sua
própria ação. Em todas estas conclusões tiram suas regras da experiência passada, do mesmo
modo que em seus raciocínios sobre objetos externos; acreditam firmemente que tanto os
homens como os elementos devem continuar em suas operações tal como foram sempre
encontrados. Um fabricante conta ao mesmo tempo com o trabalho de seus empregados para
a execução de qualquer obra como com a maquinaria empregada e ficaria igualmente
surpreso se se decepcionasse em suas expectativas. Numa palavra, a inferência e o raciocínio
experimental referentes aos atos de outrem incorporam-se tanto na vida humana, que nenhum
homem, enquanto está desperto, deixa de utilizá-los por um momento sequer. Não temos
razão, portanto, para afirmar que toda a humanidade sempre tem concordado com a doutrina
da necessidade tal como a definição e a explicação dadas mais acima?
Os filósofos não têm jamais mantido, a este respeito, opinião diferente daquela da
plebe. Porque, sem mencionar que quase todas as ações de sua existência supõem esta
opinião, há apenas alguns setores do saber especulativo aos quais ela não é essencial. O que
seria da história se não tivéssemos confiança na veracidade do historiador, de acordo com a
experiência que temos adquirido dos homens? Como a política poderia ser uma ciência, se as
leis e as formas de governo não tivessem influência uniforme sobre a sociedade? Onde estaria
o fundamento da moral, se cada caráter particular não tivesse um determinado poder de
produzir sentimentos particulares e se estes sentimentos não influenciassem nossas ações de
maneira constante? E quais poderiam ser nossas pretensões quando aplicamos nossa crítica
7
a
um poeta ou a um autor elegante, se não pudéssemos decidir se a conduta e os sentimentos de
seus personagens são ou não são naturais, em tais caraderes e em tais circunstâncias? Parece
quase impossível, portanto, que nos ponhamos a fazer ciência ou atuar de alguma maneira,
sem reconhecer a doutrina da necessidade, e esta inferência que vai dos motivos aos atos
voluntários, dos caracteres às condutas.
E, certamente, quando consideramos quão exatamente se entrelaçam a evidência
natural e a evidência moral, formando uma única corrente de argumentos, não teremos
escrúpulos em admitir que ambas são da mesma natureza e que derivam dos mesmos
princípios. Um prisioneiro desprovido de dinheiro e influência descobre a impossibilidade de
sua fuga, quer considerando a obstinação do carcereiro, quer verificando as paredes e grades
que o cercam; e, em todos os seus esforços para conseguir libertar-se, opta antes trabalhar
sobre a pedra e o ferro dos últimos do que sobre a natureza inflexível dos primeiros. O
mesmo prisioneiro, ao ser conduzido para o cadafalso, prevê sua morte com tanta certeza
devido à constância e fidelidade dos guardas como à operação do machado ou da roda. Seu
espírito percorre uma certa série de idéias: a negativa dos soldados em consentirem em sua
fuga, a ação do carrasco, a separação de sua cabeça de seu corpo, a sangria, movimentos
convulsivos e a morte. Há aqui um encadeamento complexo de causas naturais e de atos
voluntários, mas o espírito não sente nenhuma diferença ao passar de um elo a outro. Não se
sente também menos seguro do evento futuro, como se este estivesse ligado aos objetos
presentes à memória e aos sentidos por uma série de causas, aglutinadas entre si pelo que nos
agrada denominar de necessidade física. A experiência da mesma uma o tem o mesmo efeito
sobre o espírito, quer os objetos unidos sejam motivos, volição e ações, quer sejam uma
figura e um movimento. Podemos mudar o nome das coisas, porém sua natureza e sua ação
sobre o entendimento não mudam jamais.
Se um homem, que sei que é honesto e rico e com o qual mantenho íntima amizade,
vem à minha casa onde estou rodeado por meus criados, estou bem seguro que não me
apunhalará antes de sair a fim de roubar meu tinteiro de prata e deste evento suspeito tanto
como de que venha abaixo a casa, que é nova e solidamente construída e alicerçada. Mas ele
poderia ser acometido de uma súbita e desconhecida loucura. E do mesmo modo pode
ocorrer um repentino terremoto que sacuda minha casa e a faça cair sobre minha cabeça.
Substituirei, pois, a hipótese. Direi que tenho certeza que ele não colocará sua mão no fogo
deixando-a nele até que se consuma. Este evento, posso prevê-lo com a mesma segurança,
penso eu, como prevejo que, se ele se jogar pela janela e não encontrar nenhum obstáculo,
não permanecerá um momento sequer suspenso no ar. Não existe nenhuma forma de loucura
desconhecida que possa conferir a menor possibilidade ao primeiro evento, tão contrário a
todos os princípios conhecidos da natureza humana. Um homem que ao meio-dia deixa sua
bolsa cheia de ouro na calçada de Charing Cross pode esperar que ela voará como uma pena
ou que uma hora depois estará intacta. Mais da metade dos raciocínios humanos contém
inferências de natureza semelhante, acompanhadas de um maior ou menor grau de certeza
proporcional à nossa experiência da conduta habitual dos homens em tais situações
particulares.
8
Tenho freqúentemente considerado qual poderia ser a razão pela qual toda a
humanidade, embora tenha sempre e sem hesitação reconhecido a doutrina da necessidade em
toda sua ação prática e em todos os seus raciocínios
9
, manifesta-se, contudo, relutante em
reconhecê-la em palavras, tendo antes mostrado, em toda época, uma tendência a professar
opinião contrária. O fato, penso eu, pode ser explicado da seguinte maneira. Se examinamos
as ações dos corpos e a produção dos efeitos a partir de suas causas, veremos que nenhuma de
nossas faculdades pode levar-nos mais longe no conhecimento desta relação que a simples
constatação de uma conjunção constante entre objetos particulares, e de uma tendência do
espírito em passar, por uma transição costumeira, do aparecimento de um para a crença no
outro. Mas, embora esta conclusão acerca da ignorância humana seja o resultado do mais
cuidadoso exame sobre o assunto, os homens ainda mantém uma forte tendência em acreditar
que penetraremos mais profundamente nos poderes da natureza e que perceberemos qualquer
coisa semelhante a uma conexão necessária entre a causa e o efeito. Quando dirigem de novo
suas reflexões para as operaçoes de seus próprios espíritos e não sentem tal conexão entre o
motivo e a ação, são então levados a supor que há uma diferença entre os efeitos resultantes
da força material e aqueles que nascem do pensamento e da inteligência. Mas desde que
estamos convencidos de que nada sabemos a mais sobre toda espécie de causalidade do que
unicamente a conjunção constante de objetos e a conseqúente inferência do espírito de um a
outro, e admitindo-se que toda gente concorda que estas duas circunstâncias intervêm nos
atos voluntários, podemos mais facilmente reconhecer que a mesma necessidade é comum a
todas as causas. E embora este raciocínio possa contradizer os sistemas de muitos filósofos,
atribuindo a necessidade às determinações da vontade, veremos, depois de refletir, que eles
discordam somente em palavras e não em seu sentimento real. A necessidade, no sentido que
a entendemos aqui, nunca tem sido rejeitada, nem pode ser rejeitada, penso eu, por um
filósofo. Pode-se apenas pretender, talvez, que o espírito deve perceber, nas operações
materia is, uma conexão adicional entre a causa e o efeito; e que esta conexão não intervém
nas ações voluntárias dos seres inteligentes. Ora, se isto ocorre assim ou não, somente a
investigação pode revelar; é, portanto, dever destes filósofos de justificarem sua afirmativa,
definindo ou descrevendo esta necessidade e no-la mostrando nas operações das causas
materiais.
Parece, certamente, que se começa pelo lado errado sobre a questão da liberdade e da
necessidade quando nela se penetra examinando as faculdades da alma, a influência do
entendimento e as operações da vontade. Dever-se-ia, primeiramente, discutir um problema
mais simples, a saber, as ações do corpo e da matéria bruta, e verificar se pode formar alguma
idéia da causalidade e da necessidade, além de uma conjunção constante de objetos e a
subseqúente inferência do espírito de um para o outro. Se estas circunstâncias formam, com
efeito, toda a necessidade que concebemos na matéria, e se estas circunstâncias intervêm
também, por reconhecimento universal, nas operações do espírito, a discussão está terminada;
pelo menos, deve-se reconhecer que ela é, de agora em diante, puramente verbal. Mas,
contanto que suponhamos temerariamente que temos uma idéia adicional da necessidade e da
causalidade nas operações dos objetos externos, ao mesmo tempo que nada a mais podemos
encontrar nas ações voluntárias do espírito, não há possibilidade de conduzir a questão para
uma solução determinada enquanto procedemos sobre uma hipótese tão crônica. O único
método adequado para esclarecer-nos consiste em subir mais alto e, examinando a estreiteza
do campo da ciência que se aplica às causas materiais, convencer-nos de que tudo que
apreendemos delas se restringe à conjunção constante e à inferência acima mencionadas.
Podemos, talvez, notar que é com relutância que somos induzidos a fixar limites tão estreitos
ao entendimento humano; mas a seguir não encontraremos obstáculos ao aplicar esta doutrina
aos atos da vontade. Pois, como é evidente que estas. ações estão em conjunção regular com
os motivos, as circunstâncias e os caracteres, e como sempre tiramos inferências de uns aos
outros, somos obrigados a reconhecer em palavras aquela necessidade que já temos
reconhecido em todas as deliberações de nossa vida e em todos os passos de nossa conduta e
de nossas ações.
10
Mas para realizar nosso projeto de reconciliação relativo à questão da liberdade e da
necessidade a mais controvertida questão da metafísica, a mais litigiosa das ciências
não precisamos de muitas palavras para provar que todos os homens sempre têm concordado
a respeito da doutrina da liberdade, assim como com a da necessidade, e que toda discussão a
este respeito também tem sido, até agora, puramente verbal. Pois o que se entende por
liberdade quando se aplica a palavra às ações voluntárias? Não podemos certamente dizer que
estes atos têm tão pouca conexão com os motivos, as inclinações e as circunstâncias, que um
não deriva do outro com um certo grau de uniformidade e que um não proporciona nenhuma
inferência pela qual podemos concluir a existência do outro. Pois estes são fatos patentes e
reconhecidos. Por liberdade, então, podemos apenas entender um poder de agir ou de não
agir segundo as determinações da vontade;
11
isto é, se escolhermos permanecer em repouso,
podemos; mas, se escolhermos mover-nos, também podemos. Ora, reconhece-se
universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem que não esteja
prisioneiro ou acorrentado. Logo, aqui não há assunto para discussão.
Acerca de qualquer definição que possamos dar de liberdade, devemos cuidadosamente
observar duas circunstâncias indispensáveis: primeira, a definição deve estar de acordo com a
evidência do fato; segunda, a definição deve concordar com ela mesma. Se observarmos estas
circunstâncias e se tornarmos nossa definição inteligível, estou persuadido de que todos os
homens terão uma só opinião a respeito deste assunto.
Admite-se universalmente que nada existe sem uma causa de sua existência e que a
palavra ‘acaso”, se examinada com cuidado, é puramente negativa e não designa nenhuma
força real que exista em qualquer lugar na natureza. Mas se se pretende que algumas causas
são necessárias enquanto outras não o são, vemos então a vantagem das definições. Se
alguém definisse uma causa, sem compreender, como elemento da definição, a conexão
necessdria com o seu efeito, e se mostrasse distintamente a origem da idéia expressa pela
definição, desistiria prontamente de toda controvérsia. Mas, se se aceita a explicação anterior
do assunto, isto deve ser absolutamente impraticável. Se os objetos não tivessem entre si uma
conjunção regular, nunca formaríamos qualquer noção de causa e de efeito; esta conjunção
regular produz a inferência no entendimento, que é a única conexão da qual podemos ter
alguma compreensão. Quem pretender definir a causa, excluindo estas circunstâncias, será
obrigado a empregar termos ininteligíveis ou dar sinônimos do termo que se tenta esforçar
por definir.
12
Se se admite a definição acima citada, a liberdade, oposta à necessidade e não à
restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo que
não existe.
NOTAS:
1 Os dois níveis explicativos da causalidade (veja -se nota 50, seção VII) são
circunscritos e elucidados pelo princípio mais geral da necessidade. Julgamo-la assim pelo
fato de iluminar e fundamentar tanto a causalidade, como todas as disciplinas compreendidas
pela ciência da natureza humana. E deste modo que a causalidade se instala como princípio
explicativo dos fenômenos humanos. A uniformidade insita nos fenômenos naturais (base de
toda inferência causal) é retomada e situada na raiz dos fenômenos humanos, com o fim de
descortinar a idéia de necessidade e de justificar a inferência causal na ciência do homem. É
com justeza, portanto, que Hume inseriu, após a explicitação da idéia de conexão necessária,
a seção intitulada “Da liberdade e da necessidade: deu continuidade lógica aos argumentos
baseados no raciocínio causal. Hume inicia pelo estudo da idéia de “necessidade’, pois dela
irradia, além da causalidade e da ciência moral, o esclarecimento da idéia de “liberdade”. [N.
do T.]
2 Do mesmo modo que na sétima seção (nota 39), Hume recorre ao método exposto na
segunda seção: busca da impressão originária da idéia de necessidade. [N. do T.]
3 O cerne da pesquisa humana consiste, de um lado, em mostrar que a mesma
uniformidade se observa tanto nas “ações voluntárias e nas operações do espírito” como nas
“operações dos corpos” e, de outro lado, em conseqüencia desta constatação, podemos
levantar inferências a respeito de umas como de outras. [N. do T.]
4 O dogma da uniformidade da natureza (quer física, quer humana), era o “fato central e
dominante da história intelectual da Europa durante duzentos anos do fim do século XVI
ao fim do século XVII" (A. O. Levejoy, “Deism and Classicism”, in Essays on the History of
Ideas, Baltimore, 1948, p. 81). Hume adota este dogma e o emprega como uma das idéias
centrais de sua filosofia. [N. do T.]
5 Não é cabível, no entanto, usar indiscriminadamente o critério da uniformidade das
ações humanas e supor, no entender de Hume, que todos os homens, em situações
semelhantes, sempre agirão da mesma maneira, sem levar em conta as diferenças individuais,
devidas ao ambiente, à educação e ao caráter peculiar a cada homem. [N. do T.]
6 Nas edições de K a M lê-se: "a forma de todas as inferências que formamos a seu
respeito.
7 Hume se refere talvez ao que se entende atualmente por estética. [N. do T.]
8 Este parágrafo foi inserido apenas na última edição revista por Hume e publicada em
1777 (edição O). [N. do T.]
9 Dos argumentos atados por Hume, depreendemos uma proposição, segundo Flew,
geral e fundamental. Trata -se de aceitar como evidente que o método experimental, o único
em verdade válido nas questões de fato e de existência real, deve basear-se em regularidades,
ou uniformidades, discerniveis rios fatos naturais, e quer aplicado aos homens, quer a outros
objetos quaisquer, devem resultar inferências bem-sucedidas. Por este motivo, Hume
procurou mostrar que não apenas na esfera humana, como em outros objetos quaisquer, há
suficiente regularidade para originar a inferência causal (Flew, ob. cit., pp. 146-7). [N. do T.]
10 O predomínio da doutrina da liberdade pode ser explicado por outra causa, ou seja,
uma falsa sensação ou aparente experiência de liberdade ou indiferença que temos ou que
podemos ter em muitos de nossos atos. A necessidade de uma ação da matéria ou do espírito
não é, propriamente falando, uma qualidade no agente, mas em qualquer ser pensante e
inteligente que pode considerar a ação, e ela consiste principalmente nas determinações de
seus pensamentos para inferir a existência desta ação a partir de alguns objetos precedentes.
De modo que a liberdade, quando oposta à necessidade, não é senão a ausência desta
determinação e a presença de certo abandono ou indiferença que sentimos ao passar ou não
passar da idéia de um objeto à de outro que o sucede. Podemos, assim, observar que, mesmo
ao refletir sobre os atos humanos, raramente sentimos esse abandono ou indiferença, mas
somos geralmente capazes de inferi-los de seus motivos e das disposições de quem os realiza;
sem dúvida, ao realizar estes mesmos atos, notamos frequentemente algo parecido a isto. E,
como é fácil confundir todos os objetos semelhantes, isto tem sido usado como prova
demonstrativa e mesmo intuitiva da liberdade humana. Sentimos que nossos atos estão
sujeitos à nossa vontade na maioria dos casos e imaginamos que sentimos a vontade como
não subordinada a nenhuma coisa porque, quando por afirmação contrária somos provocados
a tratar de fazê-lo, sentimos que ela se move facilmente em todas as direções e produz uma
imagem de si mesma (ou uma veleidade, como tem sido denominada nas escolas), embora
sem decidir para que lado ela se dirige. Esta imagem ou débil movimento nesse momento
poderia (estamos persuadidos disto) haver chegado a ser a própria coisa, porque, se isto fosse
negado, veriamos, numa segunda tentativa, que agora pode chegar a sê-lo. Não consideramos
que o fantástico desejo de mostrar a liberdade é aqui o motivo de nossas ações. Parece certo
que, qualquer que seja a maneira pela qual sentimos em nós a liberdade, um espectador pode
geralmente inferir nossos atos de nossos motivos e do nosso caráter, e mesmo quando não
pode conclui geralmente que poderia se conhecesse perfeitamente todas as circunstâncias de
nossa situação e temperamento e as fontes mais secretas de nossa disposição. Esta é, portanto,
a verdadeira essência da necessidade, segundo a doutrina anterior (Hume).
11 O homem como “agente” deve considerar-se inteiramente livre para realizar, ou não,
qualquer ação. Na condição de ‘espectador”, que observa e reflete tanto sobre suas ações
como as de outrem, o homem conclui que elas importam em tal uniformidade que élevado a
enquadrá-las como efeitos necessários de causas conhecidas. É com vistas à última
caracterização que Hume tem a intenção de conciliar as doutrinas da “liberdade e da
necessidade”. Reafirma, assim, que a definição de “causa” implica a “conexão necessária”
com seu efeito, como elemento essencial, ou ainda, segundo o Tratado, a “necessidade
constitui um aspecto essencial da causalidade” (II, ii, III, p. 407). A partir desta formulação,
infere que se “se admite a definição de causa acima citada, a liberdade, oposta à necessidade
e não à restrição, é a mesma coisa que o acaso e a respeito do qual toda a gente está de acordo
que não existe”. Excluindo o fator “acaso” da doutrina da liberdade, Hume está prescrevendo
as mesmas regras da necessidade causal para elucidar a liberdade humana. Instaura, desta
maneira, a liberdade no seio da necessidade e pressupõe que apenas assim os atos humanos
devem ser julgados sob o prisma da responsabilidade moral. [N. do T.]
12 Assim, se uma causa fosse definida como o que produz algo, é fácil observar que
produzir é sinônimo de causar. Do mesmo modo, se se definisse uma causa como aquilo por
meio do qual algo existe, esta definição está sujeita à mesma objeção. O que se entende pelos
termos por meio da qual? Se se houvesse dito que a causa é aquilo depois do qual algo existe
constantemente, teriamos entendido os termos. Porque isto é, em verdade, tudo o que
sabemos acerca do assunto. E esta constância constitui a verdadeira essência da necessidade,
já que não temos outra idéia dela (Hume).
SEGUNDA PARTE
Não há método mais comum de raciocinar e não obstante nenhum mais censurável
do que refutar as hipóteses nas discussões filosóficas sob pretexto de conterem perigosas
conseqüências para a religião e a moral. Quando uma opinião conduz ao absurdo, é
certamente falsa, mas não é evidente que uma opinião seja falsa porque suas conseqüências
são perigosas. Devem-se evitar inteiramente tais lugares-comuns, pois eles em nada auxiliam
na descoberta da verdade, servindo apenas para tornar odiosa a pessoa de um adversário.
Faço esta observação de modo geral, sem pretender tirar qualquer vantagem dela. Submeto-
me francamente a um exame deste gênero, e ousarei afirmar que as duas doutrinas, da
necessidade e da liberdade, tais como foram explicadas acima, não são apenas compatíveis
com a moral, mas são absolutamente essenciais para apoiá-la.
A necessidade pode definir-se de duas maneiras, de acordo com duas definições de
causa, da qual ela constitui uma parte essencial. Consiste, ou na conjunção constante de
objetos semelhantes, ou na inferência que faz o entendimento de um objeto a outro. Ora, a
necessidade, nestes dois sentidos que, certamente, em essência são a mesma coisa é
reconhecida por toda a gente, embora tacitamente, nas escolas, no púlpito e na vida diária, ela
pertença à vontade humana; jamais alguém pretendeu negar que podemos tirar inferências das
ações humanas, e que estas inferências se baseiam sobre a experiência da união de atos
semelhantes com motivos, inclinações e situações semelhantes. Alguém pode, talvez,
discordar apenas num aspecto, qual seja, recusar nomear necessidade a esta qualidade dos
atos humanos; todavia, compreendendo-se seu significado, a denominação, creio eu, não
pode ocasionar nenhum mal; ou então, sustenta que é possível desvendar alguma coisa a mais
nas operações da matéria. Mas isto, devemos confessar, não pode trazer nenhuma
conseqüencia para a moral e a religião, qualquer que seja sua importância na filosofia natural
ou metafísica. Podemos enganar-nos aqui afirmando que não há idéia de uma outra
necessidade ou conexão nas ações dos corpos; mas certamente não atribuímos nada aos atos
do espírito senão o que cada um admite e deve prontamente admitir. Não mudamos em
nenhum pormenor o sistema ortodoxo recebido acerca da vontade, mudamo-lo apenas nas
ocorrências relativas aos objetos e às causas materiais. Portanto, nada pode ser mais inocente
do que esta doutrina.
Como todas as leis se baseiam em recompensas e castigos, admite-se como principio
fundamental que estes motivos têm uma influência regular e uniforme sobre o espírito, e que
tanto produzem boas ações como impedem as más. Podemos dar a esta influência o nome que
mais nos agrada, mas como está usualmente conjuntada com a ação devemos considerá-la
uma causa e olhá-la como um exemplo da necessidade que queríamos estabelecer aqui.
O único objeto próprio do ódio ou da vingança é uma pessoa ou criatura dotada de
pensamento e de consciência; e quando atos injuriosos ou criminais excitam esta paixão,
referem-se à pessoa ou estão em conexão com ela. As ações são, por sua própria natureza,
temporais e perecíveis e se não procedem de alguma causa que reside no caráter ou
disposição da pessoa que as realizou não podem redundar em sua honra, se são boas, nem em
sua infância, se são más. Admitamos agora que as próprias ações podem ser condenáveis e
contrárias a todas as regras da moral e da religião, mas que a pessoa não é responsável por
elas. Como as ações não procedem de algo que seja durável e constante, e que não deixam
atrás de si nada desta natureza, é impossível que por causa delas a pessoa possa tornar-se
objeto de castigo ou de vingança. Assim, de acordo com o princípio que nega a necessidade
e, por conseguinte, as causas, um homem é tão puro e imaculado depois de ter cometido o
mais horrendo crime como no primeiro momento de seu nascimento, já que seu caráter não se
relaciona com suas ações, pois elas não derivam dele, e a perversidade de umas não serve
para provar a depravação do outro.
Não se acusam os homens por ações que tenham desempenhado, casualmente ou sem
querer, quaisquer que possam ser suas conseqüências. Por quê? Simplesmente porque os
princípios destas ações são apenas momentâneos e terminam unicamente nelas. Os homens
são menos culpados pelas ações que desempenham apressadamente e sem premeditação que
por aquelas que realizam depois de deliberarem. Por quê? Somente porque um temperamento
precipitado, embora dotado de uma causa ou princípio constante no espírito, atua apenas por
intervalos e não corrompe todo o caráter. Por outro lado, o arrependimento purifica todos os
crimes, se acompanhado de uma reforma da vida e dos costumes. Como explicar isto?
Apenas decla rando que as ações tornam alguém criminoso quando elas constituem provas da
existência de princípios criminais, em seu espírito; quando, por uma alteração destes
princípios, deixam de ser provas concludentes, igualmente deixam de ser criminais. Mas,
excetuando a doutrina da necessidade, elas nunca foram provas concludentes e, por
conseguinte, nunca foram criminais.
Será igualmente fácil provar, usando os mesmos argumentos, que a liberdade, segundo
a definição acima mencionada e com a qual todos os homens concordam, é também essencial
à moralidade e que nenhuma ação humana na qual não se encontra presente é suscetível de
qualidades morais, ou possa ser objeto de aprovação ou desaprovação. Pois, como as ações
são os objetos de nosso sentimento moral, unicamente na medida em que são indícios do
caráter interno, de paixões e de afeições, é impossível que elas possam ocasionar o elogio ou
a crítica, se elas não procedem destes princípios e se elas derivam inteiramente de uma
intervenção exterior.
Não tenho a pretensão de ter dissipado ou removido todas as objeções sobre a teoria da
necessidade e da liberdade. Prevejo outras objeções que procedem de argumentos que não
foram tratados aqui. Pode-se dizer que, por exemplo, se as ações voluntárias estivessem
sujeitas às mesmas leis da necessidade que as operações da matéria, haveria uma cadeia
contínua de causas necessárias preordenadas e predeterminadas, decorrendo da causa original
de tudo para alcançar a vontade particular de cada criatura. Porquanto em nenhum lugar do
universo há contingência, nem indiferença e nem liberdade. Enquanto agimos, algo age, por
sua vez, sobre nós. O Autor último de todas as nossas vontades é o Criador do mundo, quem,
no início, deu o impulso a esta imensa máquina e colocou todos os seres nesta posição
particular, de onde deve resultar, por uma necessidade inevitável, todo evento posterior.
Portanto, as ações humanas, ou não podem ser em nada moralmente depravadas, porquanto
elas procedem de uma tão boa causa; ou se são depravadas devem envolver nosso Criador na
mesma culpa, visto que é reconhecido como sua última Causa e Autor.
Pois, do mesmo modo que um homem que faz explodir uma bomba é responsável por
todas as conseqüências, quer seja comprida ou curta a mecha que ele empregou, assim, uma
vez que se tenha fixado uma cadeia contínua de causas necessária s, este Ser, seja finito ou
infinito, que produz a primeira causa, é igualmente o Autor de toda a cadeia, e deve
igualmente suportar a censura e receber o elogio que lhe correspondem. Nossas idéias morais,
claras e inalteráveis, estabelecem esta regra, sobre razões indiscutíveis, quando examinamos
as conseqüências de uma ação humana; e estas razões devem ter ainda maior força quando se
aplicam às volições e intenções de um Ser infinitamente sábio e potente. Pode-se alegar
ignorância ou impotência em favor de uma criatura tão limitada como o homem, mas estas
imperfeições não são inerentes ao nosso Criador. Ele previu, ordenou e pla nejou todas as
ações humanas, que nós, temerariamente, denominamos criminais. Portanto, devemos
concluir, ou elas não são criminais, ou Deus, e não o homem, é responsável por elas. Mas
tanto uma como outra afirmação é absurda e impia; por conseguinte a doutrina da qual elas
são deduzidas não pode sem dúvida ser verdadeira, porque está exposta às mesmas objeções.
Uma conseqüencia absurda, se é necessária, demonstra que a doutrina original é absurda, do
mesmo modo que as ações criminais tornam criminosa a causa original, se a conexão entre
elas é necessária e inevitável.
Esta objeção compreende duas partes que examinaremos separadamente. Primeira, se
se puder remontar das ações humanas até Deus por um encadeamento necessário, elas nunca
podem ser criminais, devido à infinita perfeição do Ser do qual elas procedem e que não pode
querer nada que não seja completamente bom e louvável. Segunda, se estas ações são
criminais, devemos contestar o atributo de perfeição que conferimos a Deus e reconhecê-lo
como o autor último da culpabilidade e baixeza moral de todas as suas criaturas.
A resposta à primeira objeção parece evidente e convincente. Há numerosos filósofos
que, depois de examinarem atentamente todos os fenômenos da natureza, concluem que o
Todo, considerado como um sistema, está ordenado com perfeita benevolência em todos os
períodos de sua existência; e que no final resultará a máxima felicidade possível para todos os
seres criados, sem nenhuma mistura de mal ou de miséria positiva ou absoluta. Todo mal
físico, dizem eles, constitui uma parte essencial deste benevolente sistema, e não poderia ser
suprimido, nem sequer pelo próprio Deus, considerado um agente sábio, sem dar entrada a
um mal maior ou sem excluir um maior bem que resultar dele. Desta teoria, alguns filósofos,
e dentre eles os antigos Estóicos, derivaram um tema de consolo para todas as aflições, pois
ensinavam a seus discípulos que os males que sofriam eram, na realidade, bens para o
universo; e que desde um ponto de vista mais amplo, compreendendo todo o sistema da
natureza, todo evento tornar-se-ia objeto de alegria e exaltação. Mas, embora este tema seja
plausível e sublime, logo se viu na prática que era débil e ineficaz. Certamente, irritareis mais
do que tranqúilizareis um homem atormentado pelas dores da gota, fazendo-lhe sermões
sobre a retidão destas leis gerais que produziram os humores malignos no seu corpo e os
levaram através de canais adequados até aos tendões e aos nervos onde agora provocam estes
agudos tormentos. Estas generalizações podem agradar, por um momento, a imaginação
especulativa de um homem que se acha tranqüilo e seguro, mas elas não podem impor-se com
constância em seu espírito, mesmo quando não esteja perturbado pelas emoções da dor e da
paixão, e muito menos podem manter sua posição quando se vê atacado por tão poderosos
antagonistas. As tendências humanas consideram seu objeto mais de perto e com maior
naturalidade; e segundo uma organização mais adequada à debilidade dos espíritos humanos,
referindo-a apenas aos seres que nos envolvem, deixam-se influenciar pelos eventos que se
manifestam como bons ou maus aos sistemas pessoais.
Com o mal moral ocorre o mesmo que com o mal físico. Não se pode supor
razoavelmente que estas remotas considerações, de tão pouca eficácia com respeito a um,
terão uma ação mais poderosa acerca do outro. O espírito humano está naturalmente formado
de maneira a ter um sentimento de aprovação ou de censura quando da aparição de certos
caracteres, de certas disposições e ações; não há emoções mais essenciais à sua estrutura e à
sua constituição. Os personagens que atraem nossa aprovação são principalmente aqueles que
contribuem para a paz e a segurança da sociedade humana; os personagens que provocam
censura são principalmente aqueles que tendem ao prejuízo e agitações públicas; pode-se
razoavelmente presumir que os sentimentos morais nascem, seja mediatamente seja
imediatamente, de uma reflexão sobre estes interesses opostos. Que importa que as
meditações filosóficas elaborem opinião ou conjetura contrária, asseverando que tudo está de
acordo com o Todo, e que os caracteres que perturbam a sociedade são, em sua maior parte,
tão benéficos e adequados à intenção primitiva da natureza como aquelas que contribuem
mais diretamente para a sua felicidade e bem-estar? São capazes, estas remotas e inseguras
especulações, de equilibrarem os sentimentos que surgem da observação natural e imediata
dos objetos? Um homem que é roubado de uma considerável soma de dinheiro diminui em
algo seu aborrecimento por meio destas sublimes reflexões? Por que estas sublimes reflexões
poderiam considerar-se incompatíveis com seu ressentimento moral contra o delito? Ou, por
que não se poderia conciliar o reconhecimento de uma distinção real entre o vício e a virtude
com todos os sistemas da filosofia especulativa, assim como o de uma distinção real entre a
beleza e a fealdade pessoais? Estas duas distinções baseiam-se nos sentimentos naturais do
espírito humano; e estes sentimentos não podem ser controlados ou alterados por nenhuma
teoria filosófica, nem por nenhuma especulação.
A segunda objeção não é passível de resposta tão fácil e satisfatória, já que não é
possível explicar distintamente como Deus, sendo causa mediata de todas as ações humanas,
não é também autor do pecado e da depravação moral. Estes são mistérios que a mera razão
natural, sem outros recursos, não pode tratar adequadamente, e qualquer que seja o sistema
que ela adote, ver-se-á envolvida em dificuldades insolúveis, e mesmo em contradições, em
cada passo que dá ao investigar estes temas. Até agora, reconciliar a indiferença e a
contingência das ações humanas com a presciência, ou defender os decretos absolutos
excluindo de Deus a autoria do pecado, é uma tarefa que tem superado todo o poder da
filosofia. Afortunada aquela filosofia que, consciente de sua temeridade ao espreitar estes
mistérios sublimes, deixa uma cena tão cheia de obscuridades e perplexidades e volta com
modéstia adequada para o seu verdadeiro domínio o exame da vida cotidiana onde
encontrará suficientes dificuldades ao empreender suas investigações, sem lançar-se num
oceano tão ilimitado de dúvidas, de incertezas e de contradições.
SEÇÃO IX
DA RAZÃO DOS ANIMAIS
Todos os nossos raciocínios a propósito das questões de fato se fundam numa espécie
de analogia que nos faz esperar de uma causa os mesmo eventos que temos visto resultar de
causas semelhantes. Se as causas são inteiramente semelhantes, a analogia é perfeita e a
inferência, tirada delas, é considerada segura e conclusiva; nenhum homem que vê um
pedaço de ferro jamais duvidará que tem peso e coesão entre as partes, tal como tem ocorrido
em todos os outros casos que caíram sob sua observação. Mas, se os objetos não possuem
uma semelhança tão rigorosa, a analogia é menos perfeita e a inferência é menos conclusiva,
embora conserve alguma força em proporção ao grau de semelhança. As observações
anatômicas feitas sobre um ser animado estendem-se, por esta espécie de raciocínio, a todos
os seres animados. Certamente, quando, por exemplo, se prova claramente que a circulação
do sangue se processa numa criatura, como a rã ou um peixe, forma-se uma forte presunção
de que o mesmo princípio se encontra em todas as outras criaturas. Estas observações
analógicas podem ser levadas mais longe, até mesmo à ciência de que atualmente estamos
tratando; e qualquer teoria que nos sirva para explicar as operações do entendimento, ou a
origem e a conexão das paixões humanas, adquirirá maior autoridade se verificarmos que esta
mesma teoria é necessária para explicar o mesmo fenômeno em todos os outros seres
animados. Submeteremos a esta prova a hipótese que na exposição precedente nos permitiu
tentar explicar todos os raciocínios experimentais; esperamos que este novo enfoque servirá
para confirmar todas as observações anteriores.
Em primeiro lugar, parece evidente que os animais, como os homens, apreendem
muitas coisas da experiência e inferem que os mesmos eventos resultarão sempre das mesmas
causas. Mediante este princípio, familiarizam-se com as propriedades mais evidentes dos
objetos externos, e gradualmente, a partir de seu nascimento, acumulam conhecimentos sobre
a natureza do fogo, da água, da terra, das pedras, das altitudes, das profundidades etc., e
daquilo que resulta de sua ação. Aqui se distingue claramente a ignorância e a inexperiência
do jovem frente à astúcia e à sagacidade dos velhos que têm aprendido, por uma longa
observação, a evitar o que os fere e a perseguir o que lhes proporciona bem-estar e prazer.
Um cavalo habituado ao campo familiariza-se com a altura apropriada que pode saltar e
nunca tentará superar aquela que ultrapassa suas forças e habilidades. Um velho galgo
confiará a parte mais fatigante da caça aos mais jovens e se colocará em posição apropriada
para abocar a lebre quando esta de repente se voltar; as conjeturas que faz neste caso não têm
outro fundamento senão sua observação e experiência.
Isto é ainda mais evidente se se considerarem os efeitos da adestração e da educação
sobre os animais, aos quais mediante a aplicação adequada de castigos e recompensas, se
pode ensinar a efetuar qualquer classe de atividade, inclusive as mais contrárias aos seus
instintos e inclinações naturais. Não é a experiência que faz com que um cão tema a dor,
quando o ameaçais e levantais o látego para enxotá-lo? Não é também a experiência que o faz
responder por seu nome e a inferir, de um som arbitrário, que o designais e não a alguns de
seus companheiros, e que quereis chamá-lo, quando emitis este som de uma certa maneira,
com certa tonalidade e inflexão?
Em todos estes casos, podemos constatar que o animal infere um fato que ultrapassa
aquilo que impressiona imediatamente seus sentidos, e que esta experiência está
completamente fundada na experiência passada, visto que a criatura espera do objeto presente
os mesmos resultados que, em sua observação, sempre tem visto derivar de objetos
semelhantes.
Em segundo lugar, é impossível que esta inferência do animal possa fundar-se em
algum processo de argumento ou do raciocínio pelo qual conclui que eventos iguais devem
seguir a objetos iguais, e que a ordem natural será sempre regular em suas operações. Porque,
se na realidade há alguns argumentos desta natureza, são certamente demasiado abstrusos
para a observacão de entendimentos tão imperfeitos, já que, para descobri-los e observá-los,
se necessita do máximo cuidado, atenção e temperamento de um filósofo. Portanto, os
animais não são guiados pelo raciocínio nestas inferências; nem as crianças, nem a
generalidade dos homens em suas ações e conclusões ordinárias; nem os próprios filósofos,
que, em todos os momentos ativos de sua vida, são, em sua maioria, parecidos com o vulgo e
deixam-se governar pelas mesmas máximas. A natureza deve ter fornecido alguns outros
princípios de aplicação e de uso mais rápido e mais geral, visto que uma operação de tão
grande importância na vida, como é a inferência de efeitos a partir de suas causas, não pode
ser confiada a um processo inseguro do raciocínio e da argumentação. Se o fato é duvidoso
com respeito aos homens, parece que não admite dúvida em relação aos seres irracionais; e
uma vez que a conclusão está firmemente estabelecida para uns, temos uma forte presunção,
segundo todas as regras da analogia, de que deveria admitir-se universalmente sem nenhuma
exceção ou reserva. Pois unicamente o costume induz os animais a inferir, a partir de todo
objeto que impressiona seus sentidos, seu acompanhante usual, e leva sua imaginação a
conceber um pelo aparecimento do outro desfa maneira particular que denominamos crença.
Nenhuma outra explicação pode ser dada desta operação, quer nas classes superiores quer nas
classes inferiores dos seres sensíveis, que tombam sob nossa observação e conhecimento.
1
Mas, embora os animais extraiam da observação grande parte de seus conhecimentos,
há também outras partes decorrentes do poder original da natureza, superando em muito a
porção de capacidade que têm em ocasioes ordinárias e que eles aperfeiçoam, pouco ou nada,
mediante grande prática e experiência. E isso que denominamos de instintos, e os admiramos
como algo mui extraordrnário e inexplicável por todas as investigações do entendimento
humano. Mas nossa admiração, talvez, cessará ou diminuirá, quando consideramos que o
próprio raciocínio experimental, que possuímos em comum com os animais, e do qual
depende toda a conduta da vida, nada é senão uma espécie de instinto ou de poder mecânico,
agindo em nós de um modo desconhecido de nós mesmos; e que em suas principais
operações não está dirigido por nenhuma das relações ou comparaçoes de idéias, que são os
objetos próprios de nossas faculdades intelectuais. Embora o instinto seja diferente, é, sem
dúvida, um instinto que ensina o homem a evitar o fogo; do mesmo modo que ensina a um
pássaro, com tanto rigor, a arte da incubação e toda a organização e ordem de seus cuidados
educativos.
NOTAS:
1 Visto que todos os nossos raciocínios acerca dos fatos ou causas derivam unicamente
do costume, é lícito indagar como os homens ultrapassam pelo raciocínio os animais e como
um homem é superado por outro? Além disso, por que tal costume não tem influência
uniforme sobre todos os homens?
Tentaremos aqui explicar sumariamente a grande diferença entre os entendimentos
humanos; depois disto será fácil compreender a causa da diferença entre os homens e os
animais:
a) Ao termos vivido por algum tempo e nos acostumado com a uniformidade da
natureza, adquirimos um hábito geral pelo qual transferimos sempre o conhecido ao
desconhecido e concebemos que o último se parece com o primeiro. Por meio deste princípio
geral e habitual, consideramos que um raciocínio pode basear-se em um único experimento e
esperamos um evento similar com algum grau de certeza, se o experimento foi feito com
exatidão e livre de toda circunstância estranha. Consideramos, portanto, de grande
importância observar as conseqüências das coisas, e como uma pessoa pode superar em muito
a outra em atenção, memória e observação, o que produzirá uma grande diferença em seus
raciocínios.
b) Se um efeito é produto de uma complicação de causas, um espírito pode ser mais
amplo que outro e estar mais bem capacitado para abarcar todo o sistema de objetos e inferir
acertadamente suas conseqüências.
c) Um homem é capaz de manipular uma cadeia de conseqüências mais longa do que
outro [homem].
d) Poucos homens podem pensar por longo tempo sem misturar as idéias e confundir
umas com as outras. Esta debilidade aparece em vários graus.
e) A circunstância da qual depende o efeito está geralmente envolta em outras
circunstâncias que lhe são estranhas e extrínsecas. Sua separação frequentemente requer
grande atenção, rigor e sutileza.
f) A formação de princípios gerais a partir de observações particulares é uma operação
muito delicada, e não há nada mais usual, devido à precipitação e à limitação espiritual que
não considera todos os ângulos [da questão], que cometer erros a este respeito.
g) Quando se raciocina através de analogias, quem tem mais experiência ou mais
presteza para sugerir analogias raciocinará melhor.
h) As tendências devidas aos preconceitos, educação, paixão, partidos políticos etc. têm
mais influência sobre alguns espíritos do que sobre outros.
i) Depois de ter adquirido confiança no testemunho humano, os livros e os diálogos
ampliam a esfera da experiência e do pensamento em um homem mais que em outro.
Seria fácil descobrir outros fatores que produzem diferenças entre os entendimentos
humanos (Hume).
SEÇÃO X
DOS MILAGRES
1
PRIMEIRA PARTE
Há, nos escritos do Dr. Tillotson
2
um argumento contra a presença real, que é tão
conciso, elegante e poderoso, como pode supor-se de um argumento contra uma doutrina tão
pouco digna de séria refutação. Admite-se universalmente, diz o sábio prelado, que a
autoridade da Escritura ou da tradição se baseia unicamente no depoimento dos apóstolos,
que foram as testemunhas oculares dos milagres de nosso Salvador, pelos quais provou sua
missão divina. Portanto, nossa evidência em favor da verdade da religião cristã é menor do
que a evidência da verdade de nossos sentidos, porque mesmo nos primeiros autores de nossa
religião não era maior; e é evidente que ela deve diminuir passando deles para os seus
discípulos; ninguém pode pois depositar, em relação aos seus testemunhos, a mesma
confiança que tem em relação ao objeto imediato de seus sentidos. Mas uma evidência mais
fraca nunca pode destruir uma mais forte; portanto, se a doutrina da presença real estivesse
revelada na Escritura tão claramente como se queira, seria diretamente contrário às regras do
raciocínio exato dar nosso assentimento. Contradiz os sentidos, visto que tanto a Escritura
como a tradição, sobre as quais se supõe que está edificada, não são tão evidentes como os
sentidos, se elas são consideradas meramente como evidências externas e não como dirigidas
ao coração de cada um por obra imediata do Espírito Santo.
Nada é tão convincente como um argumento decisivo deste gênero que, pelo menos,
deve reduzir ao silêncio o fanatismo e a superstição mais arrogantes e livrar-nos de suas
impertinentes solicitações. Congratulo -me por ter descoberto um argumento de natureza
análoga que, se é legítimo, servirá de obstáculo eterno, junto aos sábios e doutos, a toda
espécie de ilusão supersticiosa e, por conseguinte, será de utilidade enquanto existir o mundo.
Porque presumo que em todos os tempos da história sagrada e profana
3
encontrar-se-ão
relatos de prodígios e de milagres.
Embora a experiência seja o nosso único guia no raciocínio sobre as questões de fato,
deve-se reconhecer que este guia não é totalmente infalível e que, em alguns casos, pode
conduzir-nos a erros. Uma pessoa que esperasse em nosso clima melhor tempo durante uma
semana de junho do que uma de dezembro, raciocinaria corretamente de acordo com a
experiência; todavia é também verdade que ela pode ver-se equivocada acerca do evento. E,
não obstante, podemos observar que, em tal caso, não teria nenhum motivo para queixar-se
da experiência, visto que ela nos informa, comumente e por antecipação, da incerteza,
mediante a oposição de eventos que poderíamos apreender através de uma observação
diligente. Todos os efeitos não resultam com a mesma segurança das supostas causas. Alguns
eventos se encontram em todos os países e em todas as épocas em conjunção constante;
outros, contudo, têm sido mais variáveis e às vezes têm decepcionado nossas expectativas; de
modo que, em nossos raciocínios acerca das questões de fato, há todos os graus imagináveis
de certeza, desde a mais alta certeza até as formas mais inferiores da certeza moral.
Um homem sábio,
4
portanto, torna sua crença proporcional à evidência. Nas conclusões
que se baseiam numa experiência infalível, espera o evento com o máximo grau de segurança
e considera a experiência passada uma prova completa da existência futura deste evento. Em
outros casos, procede com mais precaução; pesa as experiências contrárias; considera qual
dos lados está apoiado por maior número de experiências; é para este lado que se inclina, com
dúvida e hesitação; e quando finalmente estabelece seu juízo a evidência não ultrapassa o que
denominamos propriamente de probabilidade. Toda probabilidade, portanto, supõe uma
oposição de experiências e de observações, na qual um dos lados sobrepuja o outro e produz
um grau de evidência proporcional à superioridade. Cem casos ou experiências de um lado e
cinquenta do outro fornecem uma expectativa duvidosa de qualquer evento; contudo, cem
experiências uniformes, com apenas uma que é contraditória, engendram racionalmente um
grau bastante alto de segurança. Em todos os casos, devemos contrabalançar as experiências
opostas, se são opostas, e subtrair os números menores dos maiores a fim de conhecer a força
exata da evidência superior.
Aplicando estes princípios a um caso particular, constatamos que não há espécie de
raciocínio mais comum, mais útil e mesmo mais necessário à vida humana que o derivado do
depoimento humano, dos relatos das testemunhas oculares e dos expectadores. Negar-se-ia,
talvez, que esta espécie de raciocínio se funda na relação de causa e efeito. Não discutirei
sobre a terminologia. Será suficiente notar, contudo, que nossa segurança em qualquer
argumento deste gênero não deriva de outro princípio senão da constatação da veracidade do
testemunho humano e da conformidade usual dos fatos com os relatos das testemunhas.
Como um princípio geral diz que em nenhum objeto se pode descobrir uma conexão, e que
todas as inferências que podemos tirar de um para o outro se baseiam unicamente em nossa
experiência de sua conjunção constante e regular, é evidente que não devemos fazer uma
exceção deste princípio em favor do testemunho humano, cuja conexão com qualquer evento
em si mesmo parece mui pouco necessária como qualquer outra.
5
Se a memória não fosse até
certo grau tenaz, se os homens não tivessem geralmente inclinação para a verdade e princípio
de probidade, se não fossem sensíveis à vergonha quando se descobrem suas mentiras; se a
experiência, digo eu, não revelasse que essas qualidades são inerentes à natureza humana,
não depositaríamos jamais a menor confiança no testemunho humano. Um homem que delira
ou que é conhecido por sua falsidade e sua vilania não tem nenhuma espécie de autoridade
para nós.
Como o depoimento que deriva das testemunhas e do testemunho humano se funda
sobre a experiência passada, varia com a experiência e se considera ou uma prova ou uma
probabilidade, conforme se tem verificado constante ou variável a conjunção entre um
gênero particular do relato e um gênero do objeto. Devem-se, portanto, levar em consideração
numerosas circunstâncias em todos os julgamentos deste gênero; e a última regra que nos
permite decidir em todas as discussões que podem nascer a respeito deste tema deriva sempre
da experiência e da observação. Se esta experiência não é inteiramente uniforme em um dos
dois lados, gerará uma inevitável contradição em nossos juízos, cujos argumentos apresentam
a mesma oposição e destruição mútua como em qualquer outro gênero de evidência.
Frequentemente duvidamos dos relatos de outrem. Contrabalançamos as circunstâncias
opostas originárias de alguma dúvida ou incerteza; e quando descobrimos uma superioridade
a favor de um lado, inclinamo-nos para ele, porém com segurança diminuída em proporção à
força de seu antagonista.
6
Esta contradição da evidência no caso presente pode derivar de diferentes causas: da
oposição de testemunhos contrários, do caráter ou do número de testemunhas, da maneira
como eles produzem seus testemunhos, ou da união de todas essas circunstâncias.
Suspeitamos de uma questão de fato quando as testemunhas se contradizem entre si, quando
são poucas e de caráter duvidoso, quando têm algum interesse pessoal naquilo que afirmam,
quando enunciam seu testemunho com hesitação ou, pelo contrário, com afirmações mui
violentas. Há muitos outros aspectos do mesmo gênero que podem diminuir ou destruir a
força de qualquer argumento derivado do testemunho humano.
Suponha, por exemplo, que o fato que o testemunho tenta estabelecer tem de algo
extraordinário e de maravilhoso; neste caso, a evidência que resulta do testemunho admite
uma diminuição maior ou menor em proporção ao fato que é mais ou menos invulgar. A
razão que nos leva a dar algum crédito às testemunhas e aos historiadores não deriva de
nenhuma conexão que percebemos a priori entre o testemunho e a realidade, mas do fato de
estarmos acostumados a encontrar uma conformidade entre eles. Contudo, quando o fato
testificado é tal que raramente caiu sob nossa observação, produz-se então um conflito entre
duas experiências opostas, em que uma destrói a outra em proporção de sua força, e a
experiência superior apenas pode agir sobre o espírito com a força que lhe resta. E
precisamente este mesmo princípio da experiência que nos fornece certo grau de segurança
sobre o depoimento das testemunhas, e que nos dá também, neste caso, outro grau de
segurança contra o fato que tentam estabelecer; e desta contradição surge necessariamente um
contrapeso e uma destruição recíproca da crença e da autoridade.
Não acreditaria numa tal história mesmo se Catão ma contasse, era um dito proverbial
em Roma, inclusive durante a vida deste filósofo patriota.
7
Admitia -se, pois, que a
incredibilidade de um fato poderia invalidar tão grande autoridade.
O príncipe hindu que inicialmente se recusou a acreditar nos relatos sobre os efeitos da
escarcha raciocinou corretamente, pois, como é natural, necessitar-se-ão testemunhos
poderosos para lograr seu assentimento acerca de fatos que surgiram de um estado da
natureza, com os quais ele não estava familiarizado, e que tinham tão pouca analogia com os
eventos dos quais tinha tido uma experiência constante e uniforme. Embora estes fatos não
fossem contrários à sua experiência, tampouco estavam de acordo com ela.
8
Mas, para aumentar a probabilidade contra o depoimento das testemunhas, suponhamos
que o fato que afirmam, em vez de ser apenas maravilhoso, é realmente miraculoso, e
suponhamos também que o depoimento considerado à parte e em si mesmo equivale a uma
prova comple ta; neste caso, temos prova contra prova, e a mais forte delas deve prevalecer,
mas com uma diminuição de sua força em proporção à de sua antagonista.
Um milagre é uma violação das leis da natureza; e como uma experiência constante e
inalterável estabeleceu estas leis, a prova contra o milagre, devido à própria natureza do fato,
é tão completa como qualquer argumento da natureza que se possa imaginar. Por que é mais
do que provável que todos os homens devem morrer; que o chumbo não pode por si mesmo
permanecer suspenso no ar; que o fogo consome a madeira e que, por sua vez, a água o
extingue; a não ser que estes eventos estão de acordo com as leis da natureza, e que é preciso
uma violação destas leis, ou em outras palavras, um milagre, para impedi-los? Nada é
considerado um milagre se ocorre no curso normal da natureza. Não é um milagre que um
homem, aparentemente de boa saúde, morra subitamente, pois verifica-se que tal gênero de
morte, embora mais incomum que qualquer outro, ocorre frequentemente. Mas é um milagre
que um morto possa ressuscitar, porque isto nunca foi observado em nenhuma época e em
nenhum país. Portanto, deve haver uma experiência uniforme contra todo evento miraculoso,
senão o evento não mereceria esta denominação. E, como uma experiência uniforme equivale
a uma prova, há aqui uma prova direta e completa, tirada da natureza fática contra a
existência de um milagre; uma tal prova não pode ser destruída nem o milagre fazer-se criveI
senão por meio de uma prova oposta que lhe seja superior.
9
A conseqüência clara e é uma máxima geral digna de nossa atenção é que não há
testemunho suficiente para fundamentar um milagre, a menos que o testemunho seja tal que
sua falsidade seria ainda mais miraculosa que o fato que pretende estabelecer; e mesmo neste
caso há mútua destruição de argumentos, e o argumento mais forte nos dá apenas uma
segurança proporcional ao grau da força depois da dedução da força inferior. Quando alguém
me diz que viu um morto ressuscitar, considero imediatamente comigo mesmo: é mais
provável que essa pessoa procure enganar-me ou esteja equivocada, do que o fato que relata
possa realmente ter ocorrido. Peso um milagre contra o outro e, de acordo com a
superioridade que descubro, pronuncio minha decisão e rejeito sempre o milagre maior. Se a
falsidade de seu testemunho fosse ainda mais miraculosa que o evento que relata, agora e
somente agora, pode pretender orientar minha crença e minha opinião.
NOTAS:
1 Da interessante entrevista que Hume concedeu a James Boswell, em 7 de julho de
1776, é conhecida a célebre passagem do primeiro: “nunca mais nutri qualquer crença pela
Religião desde que comecei a ler Locke e Clarke” (Boswell, “An Account ol my last
interview with David Rume”, cit. por N. K. Smith, Dialogues Concerning Natural Religion,
de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 76). Hume pretende, talvez, mostrar sua intenção de criticar a
base racional da teologia natural, defendida tanto por Locke e Clarke como por outros
metafísicos do século XVIII, e aceita quase universalmente pelos pensadores da Ilustração.
De modo geral, podemos dizer que os argumentos da teologia natural abrangem dois
momentos: a) com base no “argumento do desígnio” (seção XI), a teologia natural defende a
tese de que tanto a existência como todos os atributos de Deus podem ser conhecidos pela
razão natural e b) esta visão da religião da natureza pode ser suplementada pela revelação,
cuja validade é garantida pela ocorrência de milagres, que, por seu turno, são apoiados por
abundante evidência histórica (seção X). As seções X e XI constituem, de acordo com
Stephen, partes de um único argumento, que julgamos ter sido elaborado por Hume para
mostrar a inviabilidade dos momentos (a e b) da teologia natural. (Stephen, L. English
Thought ín the Eighteenth Century Londres, 1902, vol. I, p. 310). [N. do T.]
2 John Tillotson (1630-1694), influente teólogo e arcebispo de Canterbury a partir de
1691, apresenta o argumento que Hume sumariza, no Discourse against Transubstantion,
publicado em 1684, da seguinte maneira: “Todo homem tem tão grande evidência de que a
transubstanciação é falsa como tem de que a religião cristã é verdadeira. Suponde que a
transubstanciação fizesse parte da doutrina cristã, deveria então ter a mesma confirmação
com o todo, isto é, milagres. Mas, dentre todas as doutrinas do mundo, ela é peculiarmente
incapaz de ser provada por um milagre. Pois, se um milagre fosse elaborado para prová-la, a
própria segurança que leva alguém a aceitar a verdade do milagre o leva a considerar a
falsidade da doutrina, isto é, através da clara evidência dos sentidos. Para que um milagre
possa provar que o que ele vê no sacramento não é o pão, mas o corpo de Cristo, ele tem
apenas o testemunho do sentido; e este mesmo testemunho aparece para provar que o que ele
vê no sacramento não é o corpo de Cristo, mas o pão”. (Tillotson, vol. II, p. 448; citado por
Flew, ob. cit., p. 172). [N. do T.]
3 Nas edições K e L lê-se: “em toda história profana”.
4 O “argumento” constituirá poderosa bacreira, se utilizado pelos “sábios e doutos”,
contra todo tipo de narrativas sobre fenômenos sobrenaturais. Aludindo de modo explícito
aos “sábios e doutos”, Hume está implicitamente colocando seu argumento fora do alcance
do homem comum. É que o último considera qualquer uniformidade da natureza, embora
temporal e acidental, como válida, já que sua principal caracteristica é a credulidade:
“nenhuma fraqueza da natureza humana escreve Hume é mais notável e mais universal
do que a que denominamos credulidade” (Tratado, I, iii, p. 112). O sábio, pelo contrário, tem
plena consciência de que apenas as seqüencias invariáveis podem ser encaradas como causais
e como os fundamentos da crença; por esse motivo ele inicia suas buscas com certa dosagem
de ceticismo. Daí que, 1) o sábio admite que sua expectativa acerca de eventos futuros será
inteiramente comprovada, apenas quando baseada em “experiência infalível”, e 2) nas
situações em que perdura certo grau de probabilidade, isto é, a expectativa é confirmada por
alguma, mas não por toda evidência experimental, o sábio deve contrabalançar as
experiências opostas e tender para a que se mostrar favorecida por maior número de
“experimentos e observações”. [N. do T.]
5 Nas edições de K a M lê-se: A imaginação humana não acompanha naturalmente sua
memória.
6 A estrutura metodológica exposta resumidamente na nota 69, desta seção, é
transferida por Hume para estudar o “raciocínio” baseado no depoimento do ‘testemunho
Humano”: núcleo trasmissor de todos os eventos cotidianos, históricos, maravilhosos e
milagrosos. [N. do T.]
7 Plutarco em Vita Catonis (Hume).
8 Certamente, nenhum hindu poderia ter experiência do congelamento da água em
climas frios, visto que a natureza se apresenta de maneira inteiramente desconhecida para ele,
é-lhe, portanto, impossível afirmar a priori o que resultará do fenômeno. É preciso fazer um
novo experimento, embora sua conseqüencia seja sempre incerta. As vezes pode-se
conjeturar mediante analogia o que ocorrerá; porém, trata-se ainda de mera conjetura. Deve-
se admitir que, no presente exemplo de congelação, o evento se produz contrariamente às
regras da analogia, de tal modo que um hindu não poderia esperá-lo. A ação do frio sobre a
água não se processa gradativamente segundo os diferentes graus de frio; ao contrário,
quando a água atinge o ponto de congelação, passa num instante do estado líquido para o
sólido. Tal fenômeno pode, todavia, denominar-se extraordinário, e se requer forte
testemunho para fazê-lo criveI aos povos de clima quente. Apesar disso, não é considerado
miraculoso e nem contrário à experiência uniforme do curso da natureza em que todas as
circunstâncias são idênticas. Os habitantes de Sumatra sempre têm observado o fluir das
águas em seu próprio clima e consideram o congelamento de seus rios como algo prodigioso.
Porquanto jamais viram a água em Moscou durante o inverno e não podem, por conseguinte,
afirmar razoavelmente quais seriam suas conseqüências (Hume).
9 Às vezes, um evento pode não parecer, em si mesmo, contrário às leis da natureza, e
sem dúvida, se fosse real, em razão de algumas circunstâncias, poderia denominar-se um
milagre, porque, de fato, é contrário a estas leis. Assim, se uma pessoa que pretendesse ter
autoridade divina ordenasse a um enfermo que se curasse, a um homem sadio que morresse,
às nuvens que derramassem água, aos ventos que ventassem, em uma palavra, se ordenasse
vários eventos naturais que obedecessem de imediato à sua ordem: estes, sim, poderiam ser
corretamente considerados milagres, porque neste caso são realmente contrários às leis da
natureza. Porque, se persiste alguma suspeita de que o evento e a ordem emitida concordaram
por acidente, não há nenhum milagre nem transgressão das leis naturais. Mas se se exclui esta
suspeita há evidentemente um milagre e uma transgressão destas leis, porque nada pode ser
mais contrário à natureza que o fato de que a voz ou ordem de um homem tenha semelhante
influência. Um milagre pode definir-se estritamente deste modo: é a transgressão de uma lei
da natureza pela volição particular da Divindade ou pela interposição de algum agente
invisível. Um milagre pode ser cognoscível ou não pelos homens. Isto não altera sua natureza
e essência. Que uma casa ou um navio se elevem no ar é um Visível milagre. Que se levante
uma pena é um milagre igualmente real, se bem que não tão notável para nós quando não há
vento, embora se necessite tão pouca força para sua realização (Hume).
SEGUNDA PARTE
No raciocínio precedente supusemos que o testemunho sobre o qual se baseia o milagre
pode talvez equivaler a uma prova completa e que a falsidade deste testemunho seria um
verdadeiro prodígio. Mas é fácil mostrar que temos sido muito generosos em nossa concessão
e que jamais houve um evento miraculoso estabelecido
1
sobre uma evidência tão completa.
Porque, em primeiro lugar, não se pode encontrar em toda a his tória nenhum milagre
testificado por número suficiente de homens de tão indubitável bom senso, educação e
instrução que nos assegurassem contra todo logro de sua parte; de tão indubitável integridade
que os pusesse fora de qualquer suspeita de querer enganar os outros; de tal crédito e de tal
reputação aos olhos dos homens que perderiam muito se fossem descobertos em alguma
falsidade; e, ao mesmo tempo, testificando fatos realizados de um modo tão público e numa
parte do mundo tão famosa que seria inevitável a descoberta da falsidade; todas essas
circunstâncias são necessárias para fornecer-nos completa segurança no testemunho humano.
Em segundo lugar, podemos observar na natureza humana um princípio que, se
examinado com rigor, diminuirá extremamente a segurança que poderíamos ter acerca de
algum gênero de prodígio, devido ao testemunho humano. O princípio que geralmente nos
orienta em nossos raciocínios estipula que os objetos dos quais não temos nenhuma
experiência se assemelham àqueles de que temos experiência; que o que temos visto e é o
mais usual é sempre o mais provável; e que, se houver oposição de argumentos, devemos dar
preferência aos que se fundam sobre maior número de experiências passadas. Porquanto,
procedendo segundo esta regra, rejeitamos rapidamente um fato raro e inacreditável em
escala ordinária; ao avançar mais, contudo, o espírito nem sempre respeita a mesma regra;
admitindo apressadamente, ao contrário, algo que se afirma completamente absurdo e
miraculoso, em virtude da mesma circunstância que deveria destruir toda a sua autoridade. A
paixão da surpresa e da admiração resultantes dos milagres, é uma emoção agradável que
produz uma tendência sensível para que acreditemos nos eventos dos quais derivam. Isto vai
tão longe que mesmo aqueles que não podem usufruir imediatamente deste prazer, nem
podem acreditar nos eventos miraculosos que lhes comunicam, sentem indubitavelmente
prazer em participar de uma satisfação de segunda mão ou por ricochete, e sentem orgulho e
deleite a seguir em excitar a admiração dos outros.
Com que avidez se recebem os relatos miraculosos dos viajantes, suas descrições de
monstros marinhos e terrestres, suas narrações de aventuras maravilhosas, de homens e
costumes estranhos? Entretanto, se o espírito religioso se liga ao amor do maravilhoso, acaba-
se todo o bom senso, e o testemunho humano, nestas circunstâncias, perde todas as suas
pretensões de autoridade. O beato pode ser um entusiasta e imagina que vê coisas que são
irreais; pode estar ciente de que sua narrativa é falsa e assim mesmo persiste nela com as
melhores intenções do mundo, a fim de promover uma causa tão sagrada. Ou mesmo, se esta
ilusão não ocorre, a vaidade excitada por uma tentação tão forte atua nele mais
poderosamente do que nos outros homens em outras circunstâncias; ademais, o interesse
pessoal age com igual força. Seus ouvintes podem não ter, e geralmente não têm, argumentos
suficientes para debater seu testemunho; renunciam por princípio a todo senso crítico em
relação aos assuntos misteriosos e sublimes; ou, se tivessem grande desejo em empregá-lo, a
paixão e uma imaginação ardentes perturbariam a regularidade de suas operações. Sua
credulidade aumenta sua imprudência e sua imprudência subjuga sua credulidade.
A eloqüência, no seu mais alto grau, sobrepuja a razão e a reflexão; mas como ela se
dirige inteiramente à fantasia ou aos afetos, cativa os ouvintes condescendentes e subjuga seu
entendimento. Felizmente, é raro que alcance esta culminância. Mas o que um Cícero ou um
Demóstenes raramente podiam realizar sobre um auditório romano ou ateniense, qualquer
capuchinho, qualquer predicador itinerante ou sedentário pode desempenhar em maior grau
sobre a maioria dos homens, atingindo semelhantes paixões grosseiras e vulgares.
Os numerosos exemplos de milagres forjados, de profecias e de eventos sobrenaturais
que, em todas as épocas, têm sido revelados por testemunhas que se opóem ou que se
retratam a si mesmos por seu absurdo, são provas suficientes da forte tendência humana para
o extraordinário e o maravilhoso e deveriam razoavelmente engendrar suspeitas contra todos
os relatos deste gênero. Pois esta é nossa maneira natural de pensar, inclusive em relação aos
eventos mais comuns e mais críveis. Não há, por exemplo, gênero de relato que surja tão
facilmente e se propague tão depressa, especialmente no campo e nas aldeias de província,
como aqueles que se referem aos casamentos; de tal modo que, se duas pessoas jovens de
igual condição social são vistas um par de vezes juntas, toda a vizinhança pensa
imediatamente em uni-las. O prazer de contar uma novidade tão interessante, de propagá-la e
de ser o primeiro a informá-la, invade a inteligência. E isto é tão conhecido que nenhuma
pessoa de bom senso presta atenção a tais relatos, até que os veja confirmados por alguma
maior evidência. A maioria dos homens não é levada, devido às paixões e outras causas mais
fortes, a crer e a transmitir, com a máxima veemência e segurança, todos os milagres
religiosos?
2
Em terceiro lugar, o fato de que os relatos sobrenaturais proliferam principalmente
entre as nações ignorantes e bárbaras constitui forte suspeita contra eles; e se um povo
civilizado tem admitido alguns destes relatos, decorre do fato de tê-los recebido de ancestrais
ignorantes e bárbaros, que os transmitiram com a sanção e a autoridade invioláveis que
sempre acompanham as opiniões recebidas. Quando examinamos as primeiras histórias de
todas as nações, sentimo-nos inclinados a imaginar-nos transportados a um novo mundo,
onde toda a trama da natureza está desarticulada e todos os elementos efetuam suas operações
de uma maneira diferente que fazem na atualidade. As batalhas, as revoluções, a peste, a
fome e a morte não são nunca efeitos de causas naturais que experimentamos. Prodígios,
presságios, oráculos e punições divinas ocultam completamente os poucos eventos naturais
que se misturam a eles. Mas, como o seu número diminui a cada página, à medida que nos
aproximamos das épocas das luzes, rapidamente compreendemos que não há nada de
misterioso ou de sobrenatural no assunto, mas que tudo decorre da tendência natural dos
homens para o maravilhoso, e que, embora esta inclinação às vezes possa ser refreada pelo
bom senso e pela instrução, não pode ser jamais extirpada da natureza humana.
É estranho, tende a dizer um leitor judicioso, depois de ler atentamente estes
historiadores maravilhosos, que tais eventos prodigiosos não ocorram jamais em nossos dias!
Mas creio eu que não há nada de estranho que os homens mintam em todas as épocas.
Deveis, certamente, ter encontrado muitos exemplos desta debilidade. Haveis, vós mesmos,
ouvido muitos destes relatos maravilhosos que, desprezados por todas as pessoas sábias e
sensatas, têm sido finalmente abandonados até pelo homem comum. Podeis estar seguros de
que estas famosas mentiras, que se têm difundido e florescido até alcançarem uma altura tão
monstruosa, tiveram origens análogas; mas, como foram semeadas num solo mais propício,
cresceram até se tomarem prodígios quase tão grandes como os que aqueles narram.
Teve aguda sagacidade o falso profeta
3
Alexandre atualmente esquecido, embora
outrora fosse tão famoso de estrear suas imposturas na Paflagôma, onde, como nos diz
Luciano, o povo era extremamente ignorante e simplório e propenso para absorver mesmo a
mais grosseira impostura. Pois as pessoas que habitam regiões distantes e sem possibilidade
de se informarem melhor, são também induzidas por esta fraqueza a crer que o assunto é o
menos digno de investigação. Recebem assim as histórias acrescidas de cem pormenores.
Enquanto os tolos propagam rapidamente a impostura, os sábios e os doutos contentam-se
geralmente em mofar-se de seu absurdo, sem se informarem dos fatos particulares, que
permitiriam refutá-las claramente. E, assim, o impostor acima mencionado estava capacitado
para proceder, começando por seus ignorantes paflagônios e atraindo sectários até mesmo
entre os filósofos gregos e os homens da mais eminente e distinta posição em Roma; além
disso, conseguiu atrair a atenção do sábio imperador Marco Aurélio, a ponto de fazer-lhe
confiar no êxito de uma expedição militar sobre suas profecias enganadoras.
São tão grandes as vantagens de lançar uma impostura entre um povo ignorante que,
mesmo quando a fraude é muito grosseira para se impor à generalidade dos homens
embora raramente isto ocorra , tem mais possibilidade de triunfar em países longínquos
do que se seu primeiro teatro tivesse sido numa cidade renomada por suas artes e
conhecimentos. Os mais ignorantes e os mais bárbaros destes bárbaros levam o relato para o
estrangeiro. Nenhum de seus compatriotas tem extensas vinculações no exterior, reputação ou
autoridade suficiente para desmentir e destruir o logro. A inclinação dos homens para o
maravilhoso tem plena oportunidade de revelar-se. E, assim, uma história completamente
desacreditada no lugar onde nasceu passará por certa a mil milhas de distância. Mas, se
Alexandre tivesse fixado residência em Atenas, os filósofos deste célebre centro de saber
teriam imediatamente difundido, por todo o Império Romano, sua opinião sobre o assunto; e
sua opinião, apoiada por tamanha autoridade demonstrada com todas as forças da razão e da
eloqüencia, teria aberto por completo os olhos dos homens. E verdade que Luciano, ao passar
por acaso por Paflagônia, teve oportunidade de realizar estes bons ofícios. Porém, por mais
que se deseje, nem sempre ocorre que todo Alexandre se encontre com um Luciano disposto
a revelar e desmascarar suas imposturas.
4
Como quarta razão
5
diminuindo a autoridade dos prodígios, posso acrescentar que não
há testemunho favorável a nenhum prodígio, mesmo em relação àqueles que não foram
expressamente desmascarados, que não seja contradito por um número infinito de
testemunhas, de modo que não apenas o milagre destrói o crédito do testemunho, mas o
testemunho destrói-se a si mesmo. Para tornar isto mais compreensível, consideremos que em
questões religiosas tudo o que é diferente é contraditório, e que é impossível que as religiões
da antiga Roma, da Turquia, do Sião e da China estejam todas estabelecidas em base sólida.
Portanto, todo milagre que se pretende que tenha ocorrido em quaisquer dessas religiões e
todas estão repletas de milagres tem como finalidade direta estabelecer o sistema
particular ao qual ele se refere, de modo que tem a mesma força para destruir, embora
indiretamente, qualquer outro sistema. Destruindo um sistema, destrói-se igualmente o
crédito naqueles milagres sobre os quais estava fundado o sistema, de modo que todos os
prodígios de diferentes religiões devem considerar-se como fatos contraditórios, e as evidên-
cias destes prodígios, quer fracas quer fortes, como opostas umas às outras. De acordo com
este método de raciocínio, quando cremos em algum milagre de Maomé ou de seus
sucessores, temos como garantia o testemunho de alguns árabes bárbaros. E, por outro lado,
devemos considerar a autoridade de Tito Lívio, de Plutarco, de Tácito e, numa palavra, o
testemunho de todos os autores gregos, chineses e católicos romanos que relataram algum
específico milagre de sua religião, e devemos considerar seu testemunho, digo eu, do mesmo
modo como se houvessem mencionado o milagre maometano, e que o houvessem contradito
em termos claros, com a mesma certeza conferida aos milagres que rela tam. Este argumento
pode parecer demasiado sutil e refinado, mas em realidade não difere do modo de raciocinar
de um juiz que supõe que o crédito de duas testemunhas, acusando de um crime a uma outra
pessoa, é destruído pelo depoimento contrário de duas testemunhas que afirmam haver visto
esta mesma pessoa a duzentas léguas de distância no momento exato em que o crime, diz-se,
foi cometido.
Um dos milagres, o mais bem testificado em toda a história profana, é aquele que
Tácito conta de Vespasiano, que curou a um cego em Alexandria por meio de sua saliva e a
um coxo apenas tocando-lhe com o seu pé. Estes homens, obedecendo a uma ordem do deus
Serapis, recorreram ao imperador para essas curas milagrosas. A descrição deste evento pode
ser lida neste grande historiador,
6
onde cada pormenor parece valorizar o testemunho, e
poderia ser desenvolvida à vontade, com toda a força de argumento e eloqüencia, se alguém
se preocupasse atualmente em reforçar a evidência desta superstição desacreditada e
idolátrica. A gravidade, a solidez, a idade e a probabilidade de tão grande imperador, que,
durante o transcurso de sua vida, conversou familiarmente com seus amigos e cortesãos e não
afetou jamais estes ares extraordinários de divindade que assumiam Alexandre e Demétrio. O
historiador era escritor da época, célebre por sua franqueza e veracidade e, além disso, dotado
talvez do maior e do mais penetrante gênio de toda a Antiguidade, e tão isento de qualquer
tendência para a credulidade, sendo, ao contrário, acusado de ateísmo e profanidade; as
personagens a cuja autoridade se referia o milagre eram de caráter indiscutível para o
julgamento e a veracidade, como muito bem o podemos presumir; havia testemunhas
oculares do fato, confirmando seu testemunho mesmo depois que a família dos Flávios foi
despojada do império e não podia mais recompensar uma mentira. Utrum que, qui interfuere,
nunc quo que memorant, postquam nulium mendacio pretium.
7
E se acrescentarmos o aspecto
público dos fatos, como relata a história, parecerá que não se pode supor evidência mais
poderosa a favor de uma falsidade tão grosseira e tão palpável.
Há também uma história memorável, contada pelo cardeal de Retz, merecedora de
nossa consideração. Quando este político intrigante se refugiou na Espanha para escapar à
perseguição de seus inimigos, passando por Saragoça, capital de Aragão, mostraram-lhe na
catedral um homem que durante sete anos havia servido de porteiro e que era bem conhecido
na cidade por todos os devotos da igreja local. Ele foi visto, por muito tempo, desprovido de
uma de suas pernas; contudo, havia recuperado este membro pela fricção de óleo santo sobre
o coto; e o cardeal nos assegura que o viu com as duas pernas. Este milagre foi confirmado
por todos os cânones da Igreja; todos os habitantes da cidade foram chamados para confirmar
o fato; e o cardeal verificou que todos criam, com ardente devoção, inteiramente no milagre.
Aqui também o narrador foi contemporâneo do suposto prodigio; era de caráter incrédulo,
libertino e também possuidor de grande talento; o milagre era de natureza tão singular que
dificilmente poderia admitir contrafação, e as testemunhas muito numerosas, e quase todas
espectadoras do fato ao qual deram o seu testemunho. E o que aumenta poderosamente a
força dos testemunhos e pode duplicar nossa surpresa nesta conjuntura diz respeito ao fato de
que o próprio cardeal, narrando o evento, parece não aferir-lhe nenhum crédito e, por
conseguinte, não se pode suspeitar de sua participação nesta fraude sagrada. Considerava
justamente que não era necessário, para rejeitar um fato desta natureza, refutar o testemunho
com exatidão e revelar sua falsidade através de todas as circunstâncias de velhacaria e
credulidade que o produziram. Sabia que, se isto era em geral comple tamente impossível, por
mais perto que se estivesse no tempo e no espaço, era extremamente difícil para quem
estivesse imediatamente presente, devido ao fanatismo, à ignorância, à astúcia e à patifaria
dos homens. Portanto, concluía, como bom raciocinador, que semelhante testificação levava
sua falsidade em sua própria face, e que um milagre apoiado pelo testemunho dos homens era
mais propriamente objeto de escárnio que de argumentação.
Certamente, não houve jamais maior número de milagres atribuidos a uma só pessoa do
que aqueles, diz-se, que foram realizados recentemente na França sobre o túmulo do abade
Paris, o célebre jansenista, cuja santidade serviu para ludibriar por muito tempo o povo. A
cura das doenças, a restituição da audição aos surdos e da visão aos cegos, eram, no consenso
geral, os efeitos habituais deste santo sepulcro. Mas, o que é mais extraordinário, numerosos
milagres foram verificados imediatamente no mesmo lugar, ante juizes de integridade
indiscutível, certificados por testemunhas de boa reputação e distinção, numa época instruída
e no local de maior destaque atualmente no mundo. Além disso, um relatório dos milagres foi
publicado e difundido por toda parte; e os jesuítas, embora formassem uma elite instruída,
apoiados pelo magistrado cível e inimigos inveterados das opiniões em favor das quais, diz -
se, os milagres tinham sido realizados, jamais foram capazes de refutá-los ou desmascará-los
claramente.
8
Onde encontraremos tal número de circunstâncias concordantes na corroboração
de um fato? O que podemos opor a semelhante nuvem de testemunhas senão a absoluta
impossibilidade da natureza miraculosa dos eventos que relatam? E isto, certamente, aos
olhos de todas as pessoas razoáveis, por si só será considerado como uma refutação
suficiente.
Será correto concluir, verificando-se que o testemunho humano em certos casos é
dotado de força e autoridade extremas, ao relatar, por exemplo, a batalha de Filipos ou de
Farsália, que toda classe de testemunho, portanto, deve estar dotada em todos os casos de
igual força e autoridade? Suponde que uma das facções, a de César e a de Pompeu, houvesse
reivindicado a vitória destas batalhas e que os his toriadores de cada partido houvessem
atribuido uniformemente as vantagens para o seu próprio lado; como poderiam os homens, a
esta distância, decidir entre eles? O contraste é igualmente grande entre os milagres narrados
por Heródoto ou Plutarco, e os transmitidos por Mariana, Beda ou qualquer outro historiador
monástico.
O sábio concede fé bastante académica a toda narrativa favorável à paixão de quem a
relata, quer exaltando seu país, sua família ou a si mesmo, quer, de outro modo,
conformando-a com suas inclinações e tendências naturais. Há maior tentação do que
assemelhar-se a um missionário, a um profeta, ou a um embaixador do céu? Quem não
afrontaria múltiplos perigos e dificuldades para alcançar um caráter tão sublime? Ou se,
auxiliada pela vaidade ou por uma ardente imaginação, uma pessoa começa a converter-se a
si mesma e penetra seriamente no mundo ilusório, quem terá escrúpulo de utilizar-se de
piedosas fraudes, a fim de sustentar causa tão sagrada e meritória?
A menor centelha aqui pode transformar-se na maior chama, já que os materiais estão
sempre preparados para se inflamar. Avidum genus auricularum
9
a população alucinada
recebe sofregamente, sem exame, tudo o que adula a superstição e promove o maravilhoso.
Quantas histórias desta natureza têm sido, em todas as épocas, descobertas e
desmascaradas em seu nascedouro? Quantas mais têm sido famosas por algum tempo e
depois tombado no esquecimento e na indiferença? Portanto, quando tais relatos se divulgam,
a solução do fenômeno é óbvia: julgamos em conformidade com a observação e a experiência
e os explicamos mediante os princípios conhecidos e naturais da credulidade e da ilusão.
Contudo, antes de recorrermos a uma solução tão natural, suporemos uma miraculosa
violação das mais bem fundamentadas leis naturais?
Não tenho necessidade de mencionar os obstáculos para desmascarar a falsidade de
uma história privada ou mesmo pública, na localidade em que, diz-se, ocorreu; e os
obstáculos são ainda maiores quando o teatro do evento se acha distanciado de nós, mesmo
em se tratando de uma pequena distância. Mesmo no tribunal de justiça, com toda a
autoridade, a exatidão e o julgamento que se podem empregar, os juizes encontram-se
freqúentemente embaraçados para dis tinguir entre a verdade e a falsidade nas questões mais
recentes. Mas se, para resolver o impasse, se confia nos métodos comuns da altercação,
debates e boatos, jamais se chega a qualquer conclusão, especialmente se paixões humanas
interferem numa ou noutra parte.
Nos primeiros momentos das novas religiões, os sábios e os doutos geralmente estimam
que o assunto não é muito importante para merecer sua atenção ou sua consideração. E
quando posteriormente querem de boa vontade revelar a farsa, a fim de esclarecer a multidão
iludida, o momento oportuno já passou, e os documentos e as testemunhas que poderiam
esclarecer o assunto perderam-se para sempre.
Não resta nenhum outro meio para desmascarar a fraude, senão aqueles que podem ser
tirados do próprio testemunho dos narradores; e estes, embora sejam sempre suficientes às
pessoas judiciosas e instruídas, são geralmente muito sutis para que o homem comum os
compreenda.
Em resumo, portanto, parece que jamais qualquer espécie de testemunho a favor de um
milagre tem chegado a ser provável, e muitos menos uma prova; e que, mesmo supondo que
chegasse a ser uma prova, seria oposta, por outra prova, derivada da própria natureza do fato
que tentaria estabelecer. Porquanto apenas a experiência confere autoridade ao testemunho
humano, e é ainda a experiência que nos assegura a respeito das leis da natureza. Portanto,
quando estas duas espécies de experiência s são contrárias, resta -nos o recurso de subtrair uma
da outra e aceitar uma opinião, tendendo para um dos dois lados, com a segurança originada
do resto. Mas, de acordo com o princípio aqui explicado, este resto, concernente a todas as
religiões populares, equivale a uma completa anulação; e, portanto, podemos estabelecer
como princípio que nenhum testemunho humano é dotado de suficiente força para provar um
milagre e tomá-lo a base justa de um determinado sistema religioso.
Peço que se considerem as ressalvas que faço aqui, quando afirmo que nenhum milagre
jamais pode ser provado, de modo que seja o fundamento de um sistema religioso. Assevero,
por outro lado, que seria possível haver milagres ou violações do curso ordinário da natureza,
levando-nos a admitir uma prova derivada do testemunho humano; embora, talvez, seja
impossível deparar com semelhante milagre em todos os anais da história. Isto posto,
suponde que a totalidade dos autores, abrangendo todos os idiomas, concordassem que a
partir de primeiro de janeiro de 1600 houve total obscuridade sobre toda a Terra durante oito
dias; que a transmissão deste evento extraordinário seja ainda forte e viva entre os homens;
que todos os viajantes regressando de países estrangeiros nos tragam relatos da mesma
tradição sem a menor variação ou contradição; desta maneira, é evidente que os filósofos
contemporâneos deveriam, em vez de duvidar, considerar o fato como evidente e buscar as
causas que poderiam engendrá-lo. Em verdade, a decadência, a corrupção e a dis solução da
natureza são eventos supostos prováveis por tantas analogias que qualquer fenômeno
tendendo para esta última catástrofe se incorpora ao testemunho humano, especialmente
quando este testemunho se acha difundido com bastante uniformidade.
Suponde agora que todos os historiadores que estudam a Ingla terra concordassem com
que em primeiro de janeiro de 1600 a rainha Elizabeth morreu; que ela foi vista antes e
depois de sua morte pelos médicos e por toda a Corte, aliás, como é de praxe entre as pessoas
de sua estirpe; que o Parlamento reconheceu e proclamou seu sucessor; e que, depois de ter
estado sepultada durante um mês, apareceu de novo, voltou a ocupar o trono e governou a
Inglaterra por mais três anos. Devo confessar: ficaria surpreso pela confluência de tantas
circunstâncias bizarras, mas não teria a menor inclinação para crer num acontecimento tão
miraculoso. Não duvidaria de sua pretensa morte e de outras circunstâncias públicas que a
seguiram; afirmaria apenas que esta morte foi simulada, que não foi e nem possivelmente
poderia ser real. Em vão vós me alegareis a dificuldade e quase impossibilidade de ludibriar a
opinião mundial em assunto de tal importância; a sabedoria e o sólido julgamento desta
célebre rainha; a escassa ou nenhuma vantagem que se poderia obter de um artifício tão
pobre; todos estes fatores poderiam surpreender-me; todavia, replicarei: a velhacaria e a
leviandade humanas são fenômenos tão normais, que prefiro acreditar que os eventos mais
extraordinários tenham aí sua origem, a admitir uma violação tão marcante das leis da
natureza.
Mas, se este milagre fosse atribuído a um novo sistema religioso, é preciso considerar
que os homens, em todas as épocas, têm sido ludibriados por ridículas histórias deste gênero,
que precisamente esta circunstância seria uma prova completa da impostura, e suficiente para
levar todos os homens de bom senso, não apenas a rejeitar o fato, mas mesmo a rejeitá-lo sem
mais exame. Embora o Ser ao qual o milagre é atribuído seja, neste caso, Onipote nte, o fato
não se torna, por esta razão, nem um pouco mais provável, visto que nos é impossível
apreender os atributos e os atos de um tal Ser, senão através da experiência que temos de suas
produções no curso ordinário da natureza. Isto nos subjuga às observações passadas e nos
obriga a comparar os exemplos de violação da verdade graças aos testemunhos humanos com
os da violação das leis da natureza devido aos milagres, a fim de julgarmos qual das duas é
mais plausível e mais provável. Como as violações da verdade são mais comuns nos
testemunhos concernentes a qualquer outra espécie de fatos, isto deve diminuir bastante a
autoridade do primeiro tipo de testemunho e deve nos levar a formular a resolução geral de
não lhes prestar nenhuma atenção, mesmo quando protegidos pelos mais plausíveis pretextos.
Lord Bacon parece ter admitido os mesmos princípios de raciocínio. “Devemos”, diz
ele, “fazer urna coleção ou história particular de todos os monstros, de todos os nascimentos e
produções prodigiosas; e, numa palavra, de todas as coisas novas, raras e extraordinárias da
natureza. Mas isto deve ser feito com o mais severo exame, para não nos afastarmos da
verdade. Sobretudo, deve ser considerado suspeito todo relato que depende em algum grau da
religião, como os prodígios de Tito Lívio; e, do mesmo modo, toda coisa que se encontra nos
escritores de magia natural, de alquimia, ou em outros autores, que parecem ter tido um
apetite insaciável para a falsidade e a fábula”.
10
O método de raciocínio apresentado aqui me agrada bastante, pois, penso eu, poderá
servir para confundir os amigos perigosos ou os inimigos disfarçados da religião cristã, que
se têm proposto defen-la mediante os princípios da razão humana. Nossa santíssima
religião funda-se na fé, e não na razão; e um método seguro para fazê-la perigar consiste em
submetê-la a uma prova para a qual não está de maneira nenhuma preparada para resistir.
Visando a esclarecer esta atitude, examinaremos os milagres descritos nas Escrituras,
restringindo-nos devido à extensão do assunto aos contidos no Pentateuco; e os
examinaremos, de acordo com os princípios destes pretensos cristãos, não como a palavra ou
o testemunho de Deus mesmo, porém como realizações humanas de um simples escritor ou
historia dor. Frisemos de início que o livro nos foi legado por um povo bárbaro e ignorante,
escrito numa época em que era ainda mais bárbaro e, segundo toda probabilidade, redigido
posteriormente aos fatos relatados, desprovidos assim de qualquer testemunho concordante;
assemelhando, ademais, aos relatos fabulosos que cada nação faz de sua origem. As páginas
deste livro estão repletas de prodígios e milagres. Descreve-nos o mundo e a natureza
humana completamente diferentes do atual; nossa queda deste mundo; a extensão da vida
humana atingindo quase mil anos; a destruição do mundo pelo dilúvio; a escolha arbitrária de
um povo eleito pelo céu que é, aliás, o mesmo povo descrito pelos seus compatriotas; sua
libertação da escravidão mediante os mais surpreendentes e imagináveis prodígios. Desejaria
que alguém colocasse sua mão sobre o coração e, depois de séria consideração, declarasse se
julga que a falsidade de tal livro, apoiada por semelhante testemunho, seria mais
extraordinária e mais miraculosa que todos os milagres que relata; porque isto é, sem dúvida,
necessário para que seja aceito, de acordo com as regras da probabilidade estabelecidas
anteriormente.
O que temos tido sobre milagres pode ser aplicado, sem qualquer modificação, às
profecias; e, na verdade, todas as profecias são verdadeiros milagres e é apenas como tais que
se pode admiti-las como provas de uma revelação. Se não estivesse acima da capacidade da
natureza humana predizer eventos futuros, seria absurdo usar qualquer profecia como
argumento em favor de uma missão ou autoridade divina procedentes do céu. De modo que,
finalmente, podemos concluir que a religião cristã não apenas foi acompanhada de milagres
em seus primeiros momentos, mas mesmo em nossos dias nenhum homem racional pode nela
acreditar sem um milagre. A mera razão é suficiente para convencer-nos da sua veracidade;
quem quer que, movido pela fé, lhe dá o seu assentimento, está consciente de um milagre
contínuo em sua própria pessoa, que subverte todos os princípios de seu entendimento e o
determina a crer nas coisas mais opostas ao costume e à experiência.
11
NOTAS:
1 Nas edições K a L lê-se: “em qualquer história”.
2 As edições de K e N apresentam este parágrafo como nota.
3 Nas edições de k a N lê -se astucioso impostor.
4 Sem dúvida, pode-se objetar aqui que procedo temerariamente e formo minhas
opiniões a propósito de Alexandre apenas pelo relato do assunto feito por Luciano, seu
declarado inimigo. Certamente, seria desejável que tivessem sido conservados alguns dos
relatos publicados por seus discípulos e cúmplices. A opinião e o contraste que existem sobre
o caráter e a conduta de um mesmo homem, quando descritos por um amigo ou inimigo, são
tão grandes, mesmo na vida cotidiana e muito mais ainda nestas questões religiosas, como
entre dois homens de fama mundial, por exemplo, Alexandre e São Paulo. Veja -se uma carta
a Gilbert West, Esq., acerca da “Conversão e apostolado de São Paulo” (Hume).
5 Parece-nos que os argumentos de Hume contra a viabilidade dos milagres mostraram:
1) que é entre as nações ignorantes e bárbaras que a ocorrência de milagres é mais comum e
abundante, 2) que as paixões da surpresa e da admira ção são tendências universais da
natureza humana e quando ligadas ao sentimento religioso impelem os homens a uma
conduta descontrolada, 3) que cada milagre tem a finalidade específica de estabelecer um
sistema religioso e, como em religião tudo o que é diferente é contraditório, os milagres de
uma religião são evidências contra os milagres das outras, e 4) que o milagre importa
naviolentação do curso normal da natureza e, como apenas a experiência confere autoridade
ao testemunho humano e segurança acerca das leis da natureza, nenhum testemunho humano
se nivela a uma prova, ou atinge o grau de provável. [N. do T.]
6 Na edição L Hume anota: Hist., livro 4, cap. 8. Na edição N ele anota: Hist., livro 5,
cap. 8. Em verdade, a passagem ocorre em Histórias, livro IV, cap. 81. Suetônio apresenta
quase o mesmo relato na Vida de Vespasiano (Hume).
7 “Aqueles que estavam presentes continuam a mencionar os dois episódios, quando já
deixou de ser compensatório propagar uma mentira.” [Trad. por Anoar Aiex].
8 Este livro foi escrito por M. Montgeron, conselheiro ou juiz no Parlamento de
Paris, homem de importância e reputação, que também foi um mártir de sua causa e que está
diz-se em alguma prisão devido ao seu livro. Há outra obra em três volumes,
denominada Recueil des miracles de l’abbé Pâris, que revela vários destes milagres e é
precedida por um prefácio muito bem escrito. Sem dúvida, em todo o livro se faz uma
ridícula comparação entre os milagres de nosso Salvador e os do abade, na qual se afirma que
a evidência dos últimos é igual à dos primeiros: como se o testemunho dos homens pudesse
ser comparado com o do próprio Deus, que guiou a pena destes inspirados escritores. Em
verdade, se estes escritores fossem apenas considerados como testemunhos humanos, o autor
francês é bastante moderado em sua comparação, visto que poderia pretender, com alguma
aparente razão, que os milagres jansenistas superam os outros em evidência e autoridade. Os
relatos que seguem foram tirados de documentos autênticos, que aparecem no livro já
mencionado.
Muitos dos milagres do abade Paris foram comprovados imediatamente por testemunho
ante a oficialidade ou corte episcopal de Paris, sob o controle do cardeal Noailles, cuja
reputação de integridade e talento jamais foi posta em dúvida. Inclusive por seus inimigos.
Seu sucessor no arcebispado era inimigo dos jansenistas e por esta razão foi promovido
para a diocese pela Corte. Apesar de vinte e dois reitores ou curés de Paris, com grande
seriedade, terem-no pressionado para examinar estes milagres que, afirmavam, são
conhecidos de todos e indiscutivelmente certos, o cardeal sabiamente se absteve de examiná-
los.
O partido molinista havia tentado desacreditar estes milagres num caso: o de
Mademoiselie Le Franc. Mas, além de que seus procedimentos foram, em vários pontos, os
mais irregulares, especialmente por citar apenas alguns dos testemunhos jansenistas, aos
quais subornaram além disso, digo, imediatamente se viram pressionados por uma nuvem
de novos testemunhos (mais ou menos cento e vinte), em sua maioria pessoas de crédito e
destaque de Paris que juraram pela procedência do milagre. E isto foi acompanhado por uma
solenidade e séria apelação ao Parlamento. Mas o Parlamento foi proibido de imiscuir-se
neste assunto. Finalmente se observou que, quando os homens estão inflamados pelo ardor e
entusiasmo, não há grau de testemunho humano tão poderoso que não possa ser obtido a
favor do maior absurdo. E aqueles que fossem tão ingênuos que examinassem o assunto por
este meio e buscassem defeitos particulares no testemunho, podem estar quase certos que
serão enganados. Devia ser uma pobre impostura, certamente, que não podia prevalecer nesta
disputa.
Todos os que estiveram na França naquela época ouviram falar na reputação de M.
Heraut, o Lieutenant de Police, cujo zelo, perspicácia, atividade e elevada inteligência
ocasionaram grande admiração. Este magistrado, que pela natureza de seu posto é quase
absoluto, estava investido de plenos poderes a fim de suprimir ou desacreditar esses milagres
e frequentemente detinha e examinava os testemunhos e as pessoas que tinham relação com
os milagres, mas jamais pôde chegar a uma conclusão satisfatória contra eles.
No episédio de Mademoiseile Thibaut, enviou o célebre De Sylva para que a
examinasse. Sua informação é multo curiosa. O médico declara que é impossível que ela
tenha estado tão enferma como afirmam os testemunhos, porque, se tivesse estado, não teria
podido melhorar tão depressa e gozar de tão perfeita saúde. Como homem de bom senso,
raciocinou segundo as causas naturais, mas o partido que lhe opunha afirmou que tudo era
miraculoso e que o informe do médico era a melhor prova disso.
Os molinistas se encontravam num triste dilema. Não se atreviam a afirmar a completa
insuficiência do testemunho humano como prova dos milagres. E, de outro lado, eram
obrigados a reconhecer que esses milagres tinham sido realizados pelo Diabo e por feiticeiras,
embora lhes dissessem que os judeus da Antiguidade já haviam recorrido a este recurso..
Nenhum jansenista teve dificuldade para explicar a cessação dos milagres quando o
cemitério foi fechado por decreto real, O que produzia este s efeitos extraordinários era o
mero contato com o túmulo [do abade] e, como ninguém podia aproximar-se do túmulo, não
se podiam esperar mais tais efeitos. É verdade que Deus poderia derrubar os muros a
qualquer momento, mas Ele é dono de suas próprias graças e obras e não nos cabe explicá-
las. Ele não derrubou os muros de todas as cidades, como os de Jericó, ao som das trombetas,
nem abriu a prisão dos apóstolos, como fez com a de São Paulo?
Nada mais nem menos que o duque de Chatillon, duque e par da França, da mais ilustre
familia e estirpe, dá o testemunho de uma milagrosa cura realizada num de seus servos, que
havia vivido vários anos em sua casa com uma palpável e visível enfermidade.
Concluirei observando que nenhum clero é mais célebre pelo rigor da vida e dos
costumes que o clero secular da França, particularmente os reitores ou curés de Paris que
testemunham estas imposturas.
A instrução, o engenho e probidade destes cavalheiros e a autoridade das freiras de
Port-Royal os fizeram famosos em toda a Europa. Sem dúvida, todos testemunham o milagre
que se produziu na sobrinha do célebre Pascal, cujo talento e vida devota são bem
conhecidos. O famoso Racine relata este milagre em sua celebrada História de Port-Royal e o
defende com todas as provas fornecidas por uma multidão de freiras, sacerdotes, médicos e
homens do mundo, todos de indubitável reputação. Alguns homens de letras, especialmente o
bispo de Tournay, creram que este milagre era tão seguro que o usaram para refutar os ateus e
os livre-pensadores. A rainha da França, que tinha grandes prevenções contra Port-Royal,
enviou seu próprio médico para examinar o milagre, e o médico voltou completamente
convertido. Em uma palavra, a cura sobrenatural era tão incontestável que, durante algum
tempo, salvou o mosteiro da ruína a que estava ameaçado pelos jesuítas. Se houvesse sido um
logro, seguramente teria sido descoberto por tão sagazes e poderosos adversários, e deveriam
apressar a ruína de quem o forjou. Nossos teólogos, que podem construir um castelo
maravilhoso com materiais tão desprezíveis, que prodigioso edifício poderiam levantar com
estas e muitas outras circunstâncias que não mencionei! Quantas vezes teriam ressoado em
nossos ouvidos os nomes de Pascal, de Racine, de Arnaud e de Nicole? Mas, se são sábios,
seria melhor que adotassem o milagre como mil vezes mais valioso que todo o resto da
coleção. Além disso, pode servir-lhes muito mais para sua finalidade. Porque esse milagre se
realizou realmente pelo contato de um autêntico espinho sagrado dos sagrados espinhos que
compunham a sagrada coroa, a qual etc. (Hume).
9 Lucrécio (Hume).
10 Novum Organum, Iib. II, aph. 29 (Hume).
11 A ironia que perpassa nesta passagem tem levantado as mais violentas críticas contra
Hume. Em grande parte é citada para exemplificar a maneira zombeteira e irresponsável com
que ele discute os mais sagrados tópicos. Smith procura, no entanto, justificar a atitude de
Hume, interpretando o texto citado em sua perspectiva histórica. Mostra que, na época da
Ilustração, as igrejas Reformadas entendiam que a fé, ou mesmo um estudo compreensivo das
Escrituras, era impossível sem o auxilio da graça, conferida pela Divindade, e que a fé
operava nos homens de modo puramente miraculoso. Foi deste modelo que Hume decalcou,
segundo Smith, a sua conclusão. (N. K. Smith, em sua definitiva edição dos Dialogues
Concerning Natural Religion, de Hume, Liberal Arts, 1947, p. 47.) [N. do T.]
SEÇÃO XI
DA PROVIDÊNCIA PARTICULAR E DO ESTADO FUTURO
1
Há pouco tempo, conversando com um amigo que preza os paradoxos céticos, foram
aventados numerosos princípios com os quais não nosso de nenhuma maneira concordar;
todavia, como esses princípios são curiosos e possuem certas relações com a cadeia de
raciocínios desenvolvida ao longo desta investigação, os transcreverei de memória, tão
precisamente quanto possível, para submetê-los ao julgamento do leitor.
Nossa conversa iniciou-se ao mostrar minha admiração pela singular sorte da filosofia
que necessitando de irrestrita liberdade acima de todos outros privilégios e sobretudo
florescendo graças à livre oposição de opiniões e argumentos nasceu numa época e num
pais de liberdade e tolerância, e jamais foi oprimida, mesmo em seus mais extravagantes
princípios, por quaisquer credos, idéias religiosas vigentes ou leis penais. Pois, excetuando o
desterro de Protágoras e a morte de Sócrates este último evento se deveu, em parte, a
outros motivos raramente divisamos na Antiguidade exemplos desta inveja intolerante que
tanto infesta a presente época. Epicuro viveu em Atenas até uma idade avançada,
inteiramente em paz e tranqúilidade; os epicureus
2
eram até admitidos para receberem
investidura sacerdotal e oficiarem no altar os ritos mais sagrados da religião vigente. E o
estímulo público
3
de pensões e salários era igualmente dispensado, pelo mais sábio de todos
os imperadores romanos,
4
aos mestres de todas as seitas filosóficas. Concebemos facilmente
que tal gênero de tratamento conferido à filosofia nascente era necessário, se ponderarmos
que mesmo atualmente, quando podemos supô-la mais forte e robusta, tolera com muita
dificuldade a inclemência das estações e os ventos ásperos da calúnia e da perseguição que
sopram sobre ela.
Admirais disse meu amigo como a singular boa sorte da filosofia parece resultar
da ordem natural das coisas e ser inevitável em toda época e nação. Este obstinado fanatismo,
que deplorais como tão fatal à filosofia, é na realidade seu descendente, o qual, depois de
aliar-se à superstição e apartar-se completamente do interesse materno, transformou-se em
seu mais inveterado inimigo e perseguidor. Os dogmas especulativos religiosos,
presentemente motivos de encarniçados debates, não podiam, indubitavelmente, ser
admitidos ou concebidos nos períodos iniciais do mundo, em que o ser humano totalmente
ignorante formava uma idéia da religião mais adequada à sua débil compreensão,
construindo assim seus dogmas sagrados mais em função de sua crença tradicional do que de
sua argumentação ou discussão. Portanto, tendo passado o primeiro alarma engendrado pelos
novos paradoxos e princípios filosóficos, parece que estes mestres passaram a viver, mesmo
na Antiguidade, em boa harmonia com a superstição existente, comprazendo-se em dividir a
humanidade em duas partes: de um lado, os doutos e sábios e, de outro lado, o homem
comum e o ignorante.
Parece todavia disse eu que excluís completamente a política desta cogitação e
não supondes jamais que um sábio magistrado pode com razão sentir-se zeloso de certas
doutrinas filosóficas, como a de Epicuro, por exemplo, que, negando a existência de Deus e,
por conseguinte, a providência e o estado futuro, parece afrouxar de modo considerável os
laços de moralidade e é por esta razão, supõe-se, perniciosa à paz da sociedade civil.
Eu sei retorquiu ele que de fato estas perseguições nunca procederam, em época
alguma, da serena razão ou da constatação das periciosas conseqüências da filosofia, porém
nascem inteiramente da paixão e do preconceito. Mas o que sucederia se eu fosse mais longe
e afirmasse que, se Epicuro tivesse sido acusado diante de seu povo por um dos sicofantas ou
delatores daqueles tempos, teria podido facilmente defender sua causa e provar que seus
princípios filosóficos eram tão saudáveis como o de seus adversários, os quais se esforçavam
com tal zelo para expô-lo ao ódio e à intolerância populares?
Desejo respondi que utilizeis vossa eloqüencia sobre um tema tão extraordinário
e façais um discurso a favor de Epicuro que possa satisfazer, não à populaça de Atenas, se
quereis admitir que nessa antiga e ilustrada cidade ela existia, mas ao setor mais filosófico do
auditório, pois, como se supõe, seria capaz de compreender vossos argumentos.
O assunto não seria difícil nestas condições, replicou ele; e se vós quiserdes suporei por
ora que sou Epicuro e faríeis as vezes do povo ateniense e contra vós pronunciarei uma tal
arenga que encherá toda a urna de feijões brancos e não restará um único feijão preto para
satisfazer a malícia de meus adversários.
Muito bem; peço-vos que procedais segundo estas conjeturas.
Aqui estou, ó atenienses! para justificar em vossa assembléia o que tenho sustentado
em minha escola, pois encontro-me acusado por adversários furiosos em lugar de inquiridores
que raciocinam com calma e desapaixonadamente. Vossas deliberações, que, de direito,
devem orientar-se para as questões do bem público e para o interesse da comunidade, estão
desviadas para as indagações da filosofia especulativa; e estas magníficas investigações,
talvez estéreis, tomam o lugar de vossas ocupações mais familiares, apesar de mais úteis.
Mas, na medida em que isto depender de mim, opor-me-ei a este abuso. Não discutiremos
aqui acerca da origem e governo dos mundos. Apenas indagaremos em que medida tais
questões dizem respeito ao in teresse público. E, se puder persuadir-vos que elas são
inteiramente indiferentes à paz da sociedade e à segurança do governo, espero que
imediatamente nos enviareis de volta às nossas escolas, onde examinaremos com calma a
questão mais sublime, mas ao mesmo tempo mais especulativa de toda a filosofia.
Os filósofos religiosos, descontentes com a tradição de vossos ancestrais e com a
doutrina de vossos padres com as quais aquiesço de boa vontade são atraídos por
imprudente curiosidade, quando tentam verificar em que medida podem estabelecer a religião
sobre princípios racionais; estimulando assim, em vez de satisfazer, as dúvidas originadas
naturalmente de uma investigação diligente e penetrante. Pintam, em magnificentes cores, a
ordem, a beleza e a sábia organização do universo, indagam, a seguir, se espetáculo tão
glorioso da inteligência poderia derivar do concurso fortuito de átomos ou se o acaso poderia
produzir o que o maior gênio jamais conseguiu admirar suficientemente. Não examinarei a
exatid ão deste argumento. Concordarei que é tão sólido como meus adversários e acusadores
possam desejar. Contudo, será suficiente que eu possa provar, partindo exatamente deste
raciocínio, que a questão é inteiramente especulativa e que, quando em minhas investigações
filosóficas nego a providência e o estado futuro, não solapo as bases da sociedade, porém
formulo princípios que meus próprios adversários, segundo suas próprias doutrinas e se
raciocinam conseqúentemente, devem reconhecer como sólidos e satisfatórios.
Portanto, vós que sois meus acusadores haveis reconhecido que o principal ou o único
argumento em favor da existência de Deus e jamais a coloquei em dúvida é derivado da
ordem da natureza, na qual aparecem tais marcas de inteligência e de desígnio
5
que
considerais uma extravagância indicar como sua causa, quer o acaso, quer uma força material
cega e descontrolada. Admitis que este é um argumento que vai dos efeitos às causas. Da
ordem da obra inferis o que deve haver estado projetado e preconcebido no obreiro. Se não
podeis vislumbrar este aspecto, concedeis que vossa conclusão é falha; e não pretendeis
formular uma conclusão que extravase os fenômenos naturais que a justifiquem. Estas são
vossas concessões. Espero que assinalareis as conseqüências.
Quando inferimos alguma causa particular a partir de algum efeito, devemos
proporcionar uma com o outro, e não devemos jamais atribuir à causa outras qualidades
senão as estritamente suficientes para produzirem o efeito. A elevação, sobre um dos pratos
da balança, de um corpo de dez onças, pode servir de prova que o contrapeso ultrapassa dez
onças, porém não pode jamais fornecer uma razão que ultrapassa cem onças. Se a causa,
atribuída a um efeito, não é suficiente para produzi-lo, devemos rejeitar a causa ou
acrescentar-lhe qualidades que a proporcionarão rigorosamente ao efeito. Mas se lhe
atribuirmos outras qualidades ou afirmarmos que é capaz de produzir outros efeitos, somos
desviados por conjeturas e suporemos arbitrariamente sem base racional ou autoridade
a existência de qualidades e energias.
Idêntica regra é aplicada quando a causa visada é uma matéria inconsciente e bruta ou
um ser racional e inteligente. Pois, concordando-se que a causa somente se revela pelo efeito,
jamais devemos atribuir-lhe outras qualidades senão as necessárias para produzirem o efeito.
Não podemos, mediante qualquer regra do raciocínio correto, remontar da causa e inferir
outros efeitos dela, exceto aqueles pelos quais a apreendemos. Ninguém, ao observar apenas
um quadro de Zêuxis, poderia supor que ele era também escultor e arquiteto, e era tão bom
artífice em mármore e pedra como em cores. Apenas podemos certificar-nos de que o artista
possuía bom gosto e talento, ao revelá-los nas obras que se apresentam à nossa visão. A causa
deve ser proporcional ao efeito; e se a proporcionamos com rigor e exatidão, jamais
vislumbraremos na causa qualidades designando outras coisas ou propiciando inferência
sobre qualquer outro projeto ou realizaçao. Pois as referidas qualidades devem extravasar o
que é realmente necessário para produzir o efeito que examinamos.
Concedendo, portanto, que os deuses são os autores da existência ou da ordem do
universo, segue-se que possuem grau necessário de poder,
de inteligência e de benevolência
que aparecem em seu arte sanato; todavia, nada além disso jamais pode ser provado, a menos
que solicitemos o auxílio do exagero e da lisonja para suprirmos os defeitos do argumento e
do raciocínio. Na medida em que aparecem os traços de alguns atributos, podemos concluir
que esses atributos existem. A suposição de atributos adicionais é mera hipótese, e ainda mais
hipotética a suposição de que em regiões distantes do espaço ou de períodos de tempo tem
havido, ou haverá, uma exibição magnífica destes atributos e um esquema de administração
mais adequado a estas virtudes imaginárias. Nunca poderemos ascender do universo, o efeito,
a Júpiter, a causa; e a seguir descender para inferir um novo efeito desta causa; como se os
efeitos presentes, por si mesmos, não fossem inteiramente dignos dos atributos gloriosos que
designamos para esta divindade. Já que o conhecimento da causa deriva unicamente do
efeito, ambos devem estar exatamente ajustados entre si, e nenhum dos dois jamais pode
referir-se a outra cois a ou ser o fundamento de uma nova inferência e conclusão.
Encontrais certos fenômenos na natureza. Procurais uma causa ou um autor. Imaginais
que vós as haveis encontrado. Depois ficais tão fascinados desse produto de vosso cérebro, de
modo que imaginais que é impossível que ele não produza algo mais grandioso e mais
perfeito do que o estado atual das coisas, tão repleto de mal e desordem. Olvidais que esta
inteligência e benevolência supremas são inteiramente imaginárias ou, pelo menos, sem
nenhum fundamento racional, e que não tendes nenhuma base para atribuir-lhe outras
qualidades senão aquelas que vedes efetivamente em exercício e reveladas em suas
produções. Fazei, pois, ó filósofos! que vossos deuses estejam em conformidade com as
aparências presentes da natureza e não ouseis alterar estas aparências com suposições
arbitrárias para adequá-las aos atributos que vós destinais tão carinhosamente aos vossos
deuses.
Quando os sacerdotes e os poetas, apoiados por vossa autoridade, ó atenienses! falam
da idade de ouro ou de prata que precedeu o estado presente de vício e de miséria, escuto-os
com atenção e reverência. Mas, quando os filósofos, que pretendem negligenciar a autoridade
e cultivar a razão, pronunciam o mesmo discurso, reconheço que não lhes concedo a mesma
dócil submissão nem a mesma devota deferência. Pergunto-lhes: quem os conduziu a regiões
celestiais, quem os admitiu no concilio dos deuses, quem lhes desvendou o livro do destino
para que possam afirmar, ousadamente, que suas divindades têm executado ou executarão um
desígnio qualquer que ultrapassa o que efetivamente tem aparecido? Se me dizem que os
filósofos têm subido por degraus
6
ou por uma ascensão gradual da razão, e tirado inferências
dos efeitos às causas, reitero que eles têm auxiliado a ascensão
7
da razão com as asas da
imaginação. Ao contrário, os filósofos não teriam podido modificar assim seu modo de inferir
e argüir das causas aos efeitos, pois, quando presumem que uma produção mais perfeita que o
mundo presente seria mais adequada a seres tão perfeitos como os deuses, esquecem que não
têm outra razão para atribuir a estes seres celestiais uma perfeição ou um atributo, senão o
que se pode encontrar no mundo presente.
Eis como se explica a origem de toda atividade estéril, visando justificar o
aparecimento do mal na natureza e salvaguardar a honra dos deuses, embora devamos
reconhecer a realidade deste mal e desta desordem que proliferam no mundo. Dizem-nos que
as qualidades obstinadas e indóceis da matéria, a observância das leis gerais ou ainda alguma
outra razão semelhante constituíram a única causa controladora de poder e benevolência de
Júpiter, obrigando-o a criar a humanidade e a todas as criaturas sensíveis tão imperfeitas e
infelizes. Parece, pois, que de antemão se admitem estes atributos em sua mais ampla
acepção. E sobre esta suposição, concordo, podem-se sem dúvida admitir tais conjeturas
como soluções plausíveis dos fenômenos do mal. Mas, pergunto ainda: por que tomar por
certos estes atributos, por que atribuir à causa outras qualidades que aquelas que aparecem
atualmente no efeito? Por que torturais vosso cérebro para justificar o curso da natureza sobre
suposições que, pelo que sabeis, podem ser completamente imaginárias e das quais não se
podem encontrar sinais no curso da natureza?
Portanto, as hipóteses religiosas apenas devem ser consideradas como um método
particular explicativo dos fenômenos visíveis do universo; mas ninguém que raciocine
corretamente jamais ousará fazer inferências, partindo de um só fato, e alterar ou agregar em
qualquer aspecto os fenômenos. Se pensais que as aparências das coisas provam tais causas,
então vos é permitido tirar uma inferência acerca da existência destas causas. Em tais
assuntos complicados e sublimes, cada um deveria tomar a liberdade de fazer conjeturas e
argumentações. Mas aqui deveis deter-vos. Se retrocedeis e, partindo das causas que haveis
inferido, concluirdes que algum fato existe ou existirá no curso da natureza e que pode servir
para mostrar mais pormenorizadamente atributos particulares,
devo advertir-vos que vos
haveis afastado do método de raciocínio ligado ao presente tema e haveis certamente
acrescentado aos atributos da causa alguma coisa a mais do que aparece no efeito; de outro
modo não tereis jamais podid o acrescentar qualquer coisa ao efeito para fazê-lo mais digno
de sua causa, a menos que vos faltasse toda retidão e bom senso.
Onde está, pois, o aspecto odioso desta doutrina que ensino em minha escola, ou
melhor dizendo, que examino em meus jardins? Ou então, encontrais em toda esta questão
algo dizendo respeito, em qualquer grau, à segurança da boa moral ou à paz e à ordem social?
Eu nego a providência, dizeis, e nego que um governo supremo do mundo orienta o
curso dos eventos punindo com desonra e desespero aos pecadores e recompensando os
virtuosos com a honra e o êxito em todos os seus empreendimentos. Mas, certamente, não
nego o próprio curso dos eventos, que está aberto à investigação e ao exame de todos.
Reconheço que, na ordem atual das coisas, a virtude é acompanhada de maior paz de espírito
que o vício e encontra uma recepção mais favorável pela sociedade. Tenho consciência de
que, segundo a experiência passada da humanidade, a amizade é a principal alegria da vida
humana e a moderação, a únic a fonte de tranquilidade e felicidade. Não hesito jamais entre
uma existência virtuosa e uma existência viciada, mas tenho consciência de que, para um
espírito bem-intencionado, todas as vantagens estão do primeiro lado. Que podeis dizer a
mais, admitindo todas as vossas suposições e raciocínios? Dizei-me, certamente, que esta
disposição das coisas procede da inteligência e do desígnio. Mas, mesmo conhecendo sua
origem, a disposição em si, da qual depende nossa felicidade ou infelicidade, isto é, nosso
comportamento na vida, permanece a mesma. Tenho sempre a possibilidade, como também
vós, de regular minha conduta a partir de minha experiência dos eventos passados. E se vós
afirmásseis que se se admite a realidade de uma providência divina e de uma justiça
distributiva suprema no universo, dever-se-ia esperar alguma recompensa mais particular do
bem e a punição do mal, além do curso ordinário dos eventos; encontro aqui a mesma falácia
que eu tinha antes tentado captar. Persistis em imaginar que, se aceitarmos essa existência
divina, pela qual combateis tão arduamente, podeis seguramente inferir suas conseqüências e
acrescentar algo à ordem experimentada da natureza, argüindo a partir dos atributos que
designais aos vossos deuses. Não pareceis recordar-vos que todos os vossos raciocínios
acerca deste tema somente podem ser tirados passando dos efeitos às causas, e que todo
argumento deduzido das causas aos efeitos deve ser necessariamente um grosseiro sofisma,
visto que vos é impossível conhecer algo da causa, salvo o que haveis precedentemente, não
por inferência, descoberto inteiramente no efeito.
Mas o que deve pensar um filósofo acerca dos que raciocinam vãmente, os quais, em
lugar de considerarem o aspecto atual das coisas como o único objeto de sua contemplação
invertem todo o curso da natureza, fazendo desta vida mera passagem para outra existência;
um pórtico que conduz a um edifício maior e consideravelmente diferente; um prólogo que
apenas serve para introduzir a comédia e dar-lhe maior graça e dignidade? De onde, pensais,
que estes filósofos podem derivar sua idéia dos deuses? Certamente, de sua própria in venção
e de sua imaginação. Pois, se derivassem a idéia dos fenômenos presentes, ela não revelaria
algo adicional, mas deveria estar exata mente adaptada a eles. Admitimos de bom grado que a
divindade possivelmente seja dotada de atributos que jamais vimos em exercício; que é
governada por princípios de ação que não podemos descobrir se são realizados. Mas trata-se
ainda de pura possibilidade e hipótese. Não podemos racionalmente inferir que ela possui
atributos ou princípios de ação, a não ser quando os temos visto em exercício e realizados.
Hd sinais de uma justiça distributiva no mundo? Se contestais afirmativamente,
concluo que já que a justiça se exerce aqui, aqui ela é realizada. Se replicais negativamente,
concluo então que não tendes nenhuma razão para atribuir justiça, no sentido em que a
entendemos, aos deuses. Se tomais uma posição intermediária entre a afirmativa e a negativa,
dizendo que a justiça dos deuses no momento se exerce em parte, mas não em toda a sua
extensão, respondo que não tendes nenhuma razão para conceder-lhe uma extensão
particular, mas apenas até onde a vedes, no presente, exercer-se no presente.
Assim, ó atenienses! restrinjo a discussão a um breve debate com meus adversários. O
curso da natureza está aberto tanto à minha contemplação como à deles. A série de eventos
experimentais é o grande critério pelo qual todos nós regulamos nossa conduta. Não podemos
recorrer a nenhuma outra coisa, nem no campo de batalha nem no senado. Não se deveria
jamais ouvir falar de outra coisa na escola ou em nossas reflexões solitárias. Em vão, nosso
entendimento limitado poderia romper estas barreiras muito estreitas para nossa imaginação
caprichosa. Ao argumentar a partir do curso da natureza e ao inferir uma causa particular
inteligente, que no princípio pôs ordem no mundo e ainda a conserva, aceitamos um princípio
que é ao mesmo tempo incerto e inútil. É incerto, porque o tema está inteiramente fora do
alcance da experiência humana. É inútil, porque nosso conhecimento desta causa é
inteiramente derivado do curso da natureza e, por conseguinte,
não podemos jamais, segundo
as regras do raciocínio correto, remontar da causa para uma nova inferência ou fazer adições
ao curso ordinário experimentado da natureza, para estabelecermos novos princípios de
conduta e de comportamento.
Observo disse eu, vendo que ele havia terminado sua arenga que não desprezais o
artifício dos demagogos da Antiguidade, e como haveis querido fazer-me representar o povo,
vos insinuastes em meu favor, aceitando os princípios pelos quais, vós o sabeis, tenho sempre
expressado uma particular inclinação. Mas, se aceitais fazer da experiência como penso,
certamente, deveis fazê-lo o único critério de nosso juízo acerca desta, e de todas as
questões de fato, não duvido que seja possível, a partir exatamente desta mesma experiência,
refutar este raciocínio que haveis posto na boca de Epicuro.
8
Se haveis visto, por exemplo,
um edifício terminado pela metade, rodeado de um amontoado de tijolos, de pedras e de
argamassa e de todos os instrumentos de alvenaria, não podereis inferir do efeito que se trata
de uma obra devida a um plano e a uma invenção? E não podereis, a partir desta causa
inferida, voltar a inferir novas adições ao efeito e concluireis que o edifício estará logo
terminado e receberá todos os melhoramentos adicionais que a arte poderá conferir-lhe? Se
haveis visto à beira-mar a marca de um pé humano, concluireis que um homem passou por
este caminho e que ele também tinha deixado as marcas de seu outro pé, embora elas tenham
sido apagadas pelo movimento da areia ou pela inundação da água. Por que recusais então
admitir o mesmo método de raciocínio em relação à ordem da natureza? Considerais o mundo
e a vida presentes unicamente como um edifício imperfeito, do qual podeis inferir uma
inteligência superior, e argüindo a partir desta inteligência superior que não pode deixar nada
imperfeito por que não podeis inferir um esquema ou plano mais acabado, que receberá sua
conclusão em algum ponto distante do espaço e do tempo? Não são estes métodos de
raciocínio exatamente similares? E sob que pretexto podeis, ao mesmo tempo, aceitar um e
rejeitar o outro?
A infinita diferença dos temas respondeu ele é fundamento suficiente para esta
diferença em minhas conclusões.
9
Nas obras que foram inventadas e fabricadas pelo homem,
é lícito passar do efeito à causa e, voltando da causa, formar novas inferências concernentes
ao efeito, averiguando as alterações que provavelmente tem sofrido ou que ainda pode sofrer.
Mas qual é o fundamento deste modo de raciocinar? Evidentemente este: o homem é um ser
que conhecemos pela experiência: seus motivos e seus desígnios nos são familiares; seus
projetos e suas inclinações têm certa conexão e certa coerência, segundo as leis que a
natureza tem estabelecido para governo de uma tal criatura. Portanto, quando vemos que uma
obra procede da habilidade e do trabalho humano, e como por outro lado conhecemos a
natureza deste ser animado, podemos tirar cem inferências acerca do que se pode esperar
dele; estas inferências estarão todas fundadas na observação e na experiência. Mas se
conhecêssemos o homem apenas por uma única obra que examinamos, ser-nos-ia impossível
argüir desta maneira, pois nosso conhecimento de todas as qualidades que lhe atribuimos é,
neste caso, derivado desta produção; é impossível que estas qualidades possam levar a
qualquer coisa a mais, ou que elas sejam a base de uma nova inferência. A marca de um pé na
areia pode apenas provar, quando se considera separadamente, que havia uma figura
semelhante a ela, graças à qual ela foi produzida; mas a marca de um pé humano evidencia
igualmente, partindo de nossa outra experiência, que havia provavelmente outro pé que
também deixou sua impressão, embora tivesse sido apagada pelo tempo ou por outros
acidentes. Aqui subimos do efeito para a causa; depois descemos da causa, inferimos
modificações no efeito; mas não continuamos aqui na mesma cadeia simples de raciocínio.
Compreendemos neste caso cem outras experiências e observações sobre a forma usual e os
membros desta espécie de ser animado; sem as quais este método de argumentar deveria
considerar-se falaz e sofístico.
O caso é diferente para os nossos raciocínios acerca das obras da natureza. Apenas
conhecemos Deus por suas produções; é um Ser único no universo, que não é compreendido
sob nenhuma espécie ou gênero, de cujos atributos ou qualidades experimentados podemos,
por analogia, inferir em Deus um atributo ou uma qualidade. Como o universo manifesta
sabedoria e bondade, podemos inferir sabedoria e bondade. Como ele mostra um grau
particular destas perfeições, inferimos um grau particular delas precisamente adaptadas aos
efeitos que examinamos. Mas não estamos jamais autorizados a inferir ou supor, por
quaisquer regras do raciocínio correto, outros atributos ou outros graus do mesmo atributo.
Ora, sem uma tal liberdade em nossas suposições, é-nos impossível argumentar a partir da
causa e inferir qualquer modificação no efeito além disto que caiu imediatamente sob nossa
observação. Um bem maior produzido por este Ser deve provar ainda um grau mais alto de
bondade; uma distribuição mais imparcial de recompensas e castigos deve proceder de uma
maior relação à justiça e à eqúidade. Toda suposta adição às obras da natureza acrescenta-se
aos atributos do Autor da natureza; e por conseguinte, como não está em nada apoiada por
uma razão ou um argumento, não se pode jamais admiti-la , senão como pura conjetura e
hipótese.
10
A principal fonte de equívocos neste assunto e da ilimitada liberdade de conjeturar que
toleramos decorre do fato de que tacita mente nos colocamos no lugar do Ser Supremo e
concluímos que em todas as ocasiões observará a mesma conduta que nós mesmos, em sua
situação, teríamos aceito como razoável e conveniente. Mas, além de que o curso ordinário da
natureza pode convencer-nos de que quase tudo se regula por princípios e máximas muito
diferentes das nossas, além disto, digo eu, deve parecer evidentemente contrário a todas as
regras da analogia raciocinar a partir das intenções e projetos humanos para os de um Ser tão
diferente e tão superior a um grau tão alto.
Na natureza humana há certa experimentada coerência de desígnios e de inclinações, de
modo que, quando um fato nos permitiu descobrir uma intenção de um homem, pode ser
frequentemente razoável, a partir desta experiência, inferir uma outra e tirar uma longa cadeia
de conclusões sobre sua conduta passada ou futura. Mas este método de raciocínio não pode
jamais intervir em relação a um Ser tão longínquo e tão incompreensível, que tem muito
menos analogia com um outro ser do universo que o sol com uma vela de cera, e que apenas
se manifesta por alguns traços pálidos ou vestígios, além dos quais não temos nenhuma
autoridade para designar-lhe qualquer atributo ou qualquer perfeição. O que imaginamos ser
uma perfeição superior pode ser realmente um defeito. Ou, se é no ponto mais alto uma
perfeição, atribuindo-a ao Ser Supremo, em caso de não se ter realizado completamente em
suas obras, parece mais adulação e panegírico do que raciocínio correto e sã filosofia.
Portanto, toda filosofia do mundo e toda religião, que nada é senão uma espécie de filosofia,
não serão jamais capazes de nos levar além do curso ordinário da experiência ou de nos dar
regras de conduta e de ação diferentes das que nos fornecem as reflexões sobre a vida diária.
Nenhum novo fato jamais pode ser inferido a partir da hipótese religiosa; nenhum evento
pode ser previsto ou predito; nenhuma recompensa nem nenhum castigo podem ser esperados
ou temidos, além do que já se conhece pela prática e pela observação. De modo que minha
apologia de Epicuro parecerá ainda sólida e satisfatória e que os interesses políticos da
sociedade não estão de nenhum modo ligados às discussões filosóficas a propósito da
metafísica e religião.
Há ainda uma circunstância, repliquei, que, parece-me, haveis omitido. Embora pudesse
admitir vossas premissas, devo refutar vossa conclusão. Concluístes que as doutrinas e os
raciocínios religiosos não podem ter influência sobre a vida porque não devem -la; não
considerais jamais que os homens não raciocinam da mesma maneira que vós, mas que tiram
muitas conseqüências da crença na existência de Deus e supõem que a divindade imporá
castigos ao vício e concederá recompensas à virtude, além daquilo que parece no curso
ordinário da natureza. Não importa se seu raciocínio é justo ou não. Sua in fluência sobre a
vida e sobre a conduta deve ser a mesma. E aqueles que tratam de livrá-los de tais
preconceitos podem ser, pelo que eu saiba, bons raciocinadores, mas não posso considerá-los
bons cidadãos e políticos, pois eles livram os homens disto que freia suas paixões e tornam
mais fácil e mais segura, em certo modo, a transgressão das leis da sociedade.
Afinal, posso talvez concordar com vossa conclusão geral em favor da liberdade, ainda
que sob premissas diferentes daquelas em que tentastes fundamentá-la. Penso que o Estado
deve tolerar todos os princípios filosóficos, já que não há nenhum caso em que o governo
tenha sofrido em seus interesses políticos devido a esta indulgência. Não há entusiasmo entre
os filósofos; suas doutrinas não seduzem bastante o povo; qualquer obstáculo que se oponha
aos seus raciocínios é de perigosas conseqüências às ciências e mesmo ao Estado, abrindo
caminho às perseguições e à opressão em assuntos que interessam e tocam mais
profundamente à generalidade dos homens.
Mas, em relação continuei ao vosso tema principal, ocorre-me um problema
11
que
vos proporei sem muito empenho, a fim de evitar raciocínios de natureza muito sutil e
complicada. Numa palavra: tenho dúvidas de que uma causa se torne apenas conhecida por
seu efeito o que haveis admitido ao longo deste diálogo ou que sua natureza, sendo tão
singular e particular, tenha correspondência ou semelhança com qualquer outra causa ou
objeto que haja caído sob nossa observação. Pois, apenas quando duas espécies de objetos se
mostram constantemente ligadas, podemos inferir uma partindo da outra, mas se se
apresentasse um efeito completamente singular que não pudesse ser incluído em nenhuma das
espécies conhecidas, não vejo como poderíamos formular qualquer conjetura ou inferência
absolutamente referente a sua causa. Se a experiência, a observação e a analogia são,
certamente, os únicos guias que podemos razoavelmente seguir em inferências desta
natureza, tanto o efeito como a causa devem ter uma semelhança com outros efeitos e outras
causas, observados em vários outros casos conjuntados uns com os outros. Deixo à vossa
reflexão pessoal o cuidado de buscar as conseqüências deste princípio. Destacarei apenas que,
tendo os adversários de Epicuro sempre considerado o universo como um efeito bastante
singular e incomparável, provando assim a existência de Deus, causa não menos singular e
não menos incomparável, segundo estas suposições vossos raciocínios parecem, pelo menos,
merecer nossa atenção. Há, admito, alguma dificuldade para compreender como podemos
sempre voltar da causa ao efeito e como, raciocinando a partir da idéia que fazemos da
anterior, podemos inferir uma modificação ou uma adição na última.
NOTAS:
1 A edição K tinha o seguinte titulo: Das conseqüências práticas da religião natural.
veja -se nota 1, p. 109, seção x.
2 Luciano (Hume).
3 Luciano (Hume).
4 Id. e Dio (Hume). A referência diz respeito ao imperador Marco Aurélio. [N. do T.]
5 O amigo cético de Hume, metamorfoseado em Epicuro, inicia aqui a crítica ao
“argumento do desígnio”, que, como mencionamos na nota 66, da seção X, é o fundamento
da teologia natural e o tema central desta seção. Butler, por exemplo, afirma que o argumento
do desígnio é aceito, por princípio, como inquestionável, pois, segundo ele, “não há
necessidade de raciocínios abstratos.., para convencer um entendimento sem prevenções, que
um Deus que fez e governa o Mundo..., para um espírito sem prevenções, milhares de casos
de desígnios unicamente provam um planejador” (Works, ed. Gladstone, Oxford, 1896, vol.
II, p. 695). Embora reconheça a irrefutabilidade do “argumento do desígnio”, como essencial
para estabelecer um “poder inteligente e invisível”, Hume acredita que esse argumento, por
ser de base reflexiva, não desempenha nenhuma função sobre a religião nascente. O homem
não começa a acreditar porque participa maravilhado da notável ordem e regularidade da
natureza; pelo contrário, à medida que a ordem é mais regular e uniforme, isto é, a natureza é
mais perfeita, e à medida que o homem se familiariza com a perfeita ordenação dos
fenômenos naturais, diminui seu interesse pelo exame e análise da natureza. Não é, portanto,
através da contemplação da uniformidade da natureza que nascem as noções básicas da
religião, mas da observação dos eventos da vida e das paixões naturais de medo e esperança
que impulsionam constantemente o espírito humano. (Hume, The Natural History of
Religion, edição H. E. Root, Stanford University Press, 1967, pp. 24-5 e 28-9.) [N. do T.]
6 Na edição K lê -se: “nos degraus ou escala da razão.
7 Na edição K lê-se: “escala’ em lugar de “ascensão”.
8 Tendo percebido que o suposto Epicuro havia terminado seu longo discurso, Hume
interfere em nome do ilustre auditório ateniense e apresenta uma objeção, que basicamente
consiste em utilizar o raciocínio por analogia para averiguar a possível semelhança entre as
obras humanas e a obra atribuída ao Ser Supremo. [N. do T.]
9 O amigo cético de Hume refuta a possibilidade do raciocínio por analogia, pelo menos
neste caso, tendo em vista a “infinita diferença” dos objetos, pois o que é evidente para as
obras e atos humanos não o é em relação às obras de Deus. Ao contrário de um homem que
pode ser circunscrito e explicitado pelo gênero Homem, Deus é um “Ser único no universo,
que não é compreendido sob nenhuma espécie ou género’, e é conhecido apenas por suas
obras. Evidencia-se, assim, que se trata da inferência de um caso particular e único, para
justificar um efeito particular e único. Tal situação não permite, como no caso do homem e
seu artesanato, maior “liberdade em nossas suposições”, já que a inferência nem é apoiada
por experiências anteriores e nem pode ser comparada com outras experiências. [N. do T.]
10 Em geral, creio que se pode estabelecer como princípio que, se uma causa somente é
conhecida pelos seus efeitos particulares, deve ser impossível inferir novos efeitos a partir
dessa causa, visto que as qualidades necessárias para produzir estes novos efeitos
conjuntamente com os anteriores devem ser diferentes, ou superiores, ou de operação mais
exteosa que aqueles que simplesmente produziram o efeito, que é a única origem de nosso
suposto conhecimento da causa. Portanto, jamais teremos razão para supor a existência destas
qualidades. Afirmar que os novos efeitos procedem simplesmente de uma continuação da
mesma energia que já é conhecida pelos primeiros efeitos não removerá a dificuldade.
Porque, embora aceitando que o caso seja assim (o que raramente pode ser suposto), a própria
continuação e realização de uma energia semelhante (pois é impossível que ela seja
totalmente a mesma), afirmo que esta realização de uma energia semelhante, em diferentes
periodos de espaço e de tempo, é uma suposição mui arbitrária, e que não pode conservar
traços dos efeitos dos quais se derivou originalmente nosso conhecimento da causa. Se
concordamos que a causa inferida deve ser rigorosamente proporcional, como deveria sê-lo,
ao efeito conhecido, é impossível que possa possuir qualidades pelas quais podem inferir-se
novos ou diferentes efeitos (Hume).
11 Convém observar que isto que Hume denomina desinteressadamente de um
“problema” representa de fato a dificuldade mais séria de todo o diálogo. E que Hume duvida
que uma causa, sendo tão singular e particular, possa ser conhecida unicamente pela inspeção
de seu efeito, que é igualmente singular e particular. A sua dúvida é um corolário direto e
óbvio do que ficou dito anteriormente a propósito dos raciocínios a priori e experimental. O
primeiro tipo de raciocínio importa em admitir que qualquer coisa concebível pode ser a
causa de qualquer coisa. Enquanto o segundo tipo considera que apenas os eventos
relacionados por conjunção constante, dos quais tivemos experiência direta, ou são análogos
a outros eventos experienciados, oferecem base suficiente e necessária para se levantar a
inferência de um pela presença do outro. Ora, as ultimas condições não são preenchidas
quando se trata do raciocínio modelado pelo “argumento do desígnio’, pois supomos o
universo, um efeito singular e incomparável, ser a prova de Deus, uma causa não menos
singular e incomparável, vimos que a inferência causal se baseia em uma “espécie de
objetos”, ou seja, na conjunção repetida de múltiplos casos que são exatamente similares, ou
que apresentam certo grau de analogia com os seus atributos. Portanto, quando deparamos
com algo que não pertence a “nenhuma espécie”, não podemos através da experiência e da
observação inferir algo que o ultrapasse; e, por causa de sua singularidade, não podemos
igualmente averiguá-lo mediante o raciocínio por analogia. [N. do T.]
SEÇÃO XII
DA FILOSOFIA ACADÊMICA OU CÉTICA
PRIMEIRA PARTE
Não há maior número de raciocínios filosóficos desenvolvidos sobre um assunto do que
os que provam a existência de um Deus e refutam as falácias dos ateus; apesar disso, os
filósofos mais religiosos persistem discutindo e averiguando se alguém pode ser tão cego a
ponto de tornar-se um ateu especulativo. Como conciliaremos estas contradições? Os
cavaleiros andantes que percorriam o mundo para limpá-lo de dragões e gigantes nunca
abrigavam a menor dúvida sobre a existência destes monstros.
O cético um outro inimigo da religião provoca naturalmente a indignação de
todos os teólogos e de circunspectos filósofos. É, no entanto, evidente que ninguém jamais
encontrou uma criatura tão absurda ou conversou com um homem, desprovido de opinião ou
princípios sobre quaisquer temas referentes à ação ou à especulação. Apesar disso, é bastante
natural indagar: o que se entende por cético? E até que ponto é possível estender estes
princípios filosóficos de dúvida e incerteza?
Há uma espécie de ceticismo antecedente a todo estudo e filosofia, bastante
recomendado por Descartes e outros, como eficaz proteção contra o erro e o juízo
precipitado. Este ceticismo, prescrevendo uma dúvida universal que abrange tanto o conjunto
de nossas opiniões e princípios anteriores como também nossas próprias faculdades, de cuja
veracidade dizem eles devemos assegurar-nos mediante uma cadeia de racio cínios
deduzida de um princípio primitivo que não pode ser enganador ou duvidoso. Contudo, não
há semelhante princípio primitivo com prerrogativa sobre os outros princípios evidentes em si
mesmos e convincentes. Ou, mesmo se houvesse, progrediríamos um só passo além deste
princípio, utilizando-nos dessas mesmas faculdades em que, supõe-se, não confiamos?
Portanto, se um ser humano pudesse alcançar a dúvida cartesiana o que é simplesmente
impossível ficaria completamente incurável, e nenhum raciocínio jamais poderia conduzi-
lo a uma situação de segurança e de convicção sobre algum tema.
1
No entanto, devemos concordar que esta espécie de ceticismo, sendo mais moderada,
pode ser aceita como bastante razoável, pois afigura-se como atitude prévia e indispensável
ao estudo da filosofia, mantendo adequada imparcialidade em nossos juízos e apartando nos-
so espírito de todos os preconceitos adquiridos pela educação e precipitação. Iniciar com
princípios claros e evidentes por si mesmos, avançar com passos prudentes e seguros,
repassar frequentemente nossas conclusões e examinar rigorosamente todas as suas
conseqüências são os únicos métodos que nos podem levar a aspirar à verdade e lograr uma
adequada estabilidade e certeza em nossas conclusões, embora reconhecendo que assim
nossos sistemas progridem pouco e lentamente.
2
Há outra espécie de ceticismo, conseqüente à ciência e à investigação, ocorrendo
quando os homens supõem haver revelado a completa falsidade de suas faculdades mentais
ou sua incapacidade para enlaçar uma definição rigorosa em todos aqueles temas curiosos da
especulação que geralmente os atraem.
3
Certa classe de filósofos chega inclusive a duvidar de
nossos próprios sentidos, submetendo ao mesmo tipo de dúvida tanto as máximas da vida
cotidiana como as conclusões e os princípios mais profundos da metafísica e da teologia .
Manifestando-se tais doutrinas paradoxais se podem ser denominadas doutrinas em
alguns filósofos e sua refutação em vários, despertam, naturalmente, nossa curiosidade e nos
levam a investigar os argumentos sobre os quais estão fundadas.
Não é preciso insistir sobre os argumentos mais vulgares levantados pelos céticos em
todas as épocas contra a evidência dos sentidos; tais como os que em várias ocasiões derivam
da imperfeição e inexatidão de nossos órgãos: o remo que na água parece quebrado, os vários
aspectos dos objetos segundo suas diferentes distâncias, as imagens duplas que surgem
pressionando um olho e, em suma, várias aparências de natureza análoga. Em verdade, estes
argumentos céticos apenas provam que não devemos confiar completamente nos sentidos,
mas que devemos corrigir sua evidência mediante a razão e considerações derivadas de
agentes intermediários distância do objeto e disposição do órgão sensível para torná-
los, dentro de sua própria esfera, critérios adequados de verdade e falsidade. Há outros
argumentos mais profundos contra os sentidos que não são passíveis de solução tão fácil.
Parece evidente que o ser humano, impelido pelo instinto ou tendência natural, confia
em seus instintos e admite sempre sem qualquer raciocínio ou mesmo antes de usar a
razão um universo exterior independente de nossa percepção, que existiria mesmo
admitindo-se a nossa ausência e aniquilação, assim como a de toda criatura sensível.
Inclusive o reino animal se acha regido por semelhante opinião, conservando a mesma crença
nos objetos exteriores em todos os seus pensamentos, projetos e ações.
Parece também evidente que, quando o ser humano é impelido por este cego e poderoso
instinto natural, supõe constantemente que as próprias imagens reveladas pelos sentidos são
os objetos externos, jamais suspeitando que umas não são mais do que as representações dos
outros. Deste modo, é levado a supor que esta mesa que vemos branca e sentimos sólida
existe, independentemente de nossa percepção, como algo exterior ao nosso espírito que a
percebe. Nossa presença não lhe confere existência, nossa ausência não a aniquila.
Conservando, portanto, sua existência invariável e inteira, independente da situação dos seres
inteligentes que a percebem ou a contemplam.
Contudo, esta universal e primitiva opinião, aceita por todos os homens, é destruída
pela mais superficial filosofia que nos esclarece que nada pode apresentar-se no espírito a não
ser uma imagem ou percepção, e que os sentidos são apenas as vias de acesso que introduzem
estas imagens sem, todavia, o poder de estabelecer qualquer contato direto entre o espírito e o
objeto. A mesa divisada parece diminuir quando nos afastamos dela; porém, a mesa real,
existindo independente de nós, não sofre nenhuma modificação; portanto, não se tratava
senão de sua imagem que estava presente no espírito. São estas as evidentes exigências da
razão, pois ninguém que reflete jamais duvidou que as existências visadas quando nos
referimos a esta casa e esta drvore, são simplesmente percepção do espírito, cópias fugazes
ou representações de outras existências que permanecem invariáveis e independentes.
Portanto, até agora fomos obrigados pelo raciocínio a contradizer ou divergir dos
primitivos instintos naturais e adotar um novo sistema sobre a evidência de nossos sentidos.
Mas aqui a filosofia se encontra extremamente embaraçada querendo justificar este novo
sistema e impedir as cavilações e objeções dos céticos. Visto que ela não pode mais recorrer
ao infalível e irresistível instinto natural, pois isto nos levaria a um outro sistema
completamente diverso e reconhecido como falível e até como errôneo. E justificar este
pretenso sistema filosófico por uma cadeia de raciocínios claros e convincentes ou mesmo
por qualquer argumento evidente supera o poder de toda capacidade humana.
Através de que raciocínio pode ser provado que as percepções do espírito devem ser
causadas por objetos externos, completamente diferentes delas embora lhes assemelhando
se isto é possível e que não podem nascer da energia do próprio espírito ou da sugestão
provocada por algum espírito invisível e desconhecido, ou de alguma outra causa ainda mais
desconhecida de nós? Em verdade, tem-se admitido que algumas destas percepções,
motivadas pelos sonhos, loucuras e outras doenças não derivam de algo exterior. Nada é mais
inexplicável do que o modo pelo qual um corpo agiria sobre o espírito a fim de transmitir-
lhe sua própria imagem.
Constitui uma questão de fato averiguar se as percepções dos sentidos são produzidas
por objetos externos que lhe são semelhantes. Como decidiremos sobre este problema?
Certamente, mediante a experiência, do mesmo modo que em outras questões de
natureza análoga. Mas aqui a experiência permanece e deve permanecer completamente
silenciosa. O espírito, excetuando-se as percepções, jamais tem algo que lhe é presente, e ele
não pode, indubitavelmente, vislumbrar qualquer experiência de sua conexão com os objetos.
Portanto, a suposição de tal conexão é desprovida de qualquer base racional.
Trata-se, certamente, de uma solução imprevista recorrer à veracidade do Ser Supremo,
para provar a veracidade de nossos sentidos. Se a veracidade do Ser Supremo se relacionasse
com este assunto, nossos sentidos seriam completamente infalíveis em virtude da
impossibilidade que Deus possa jamais nos decepcionar. Não mencionando que, uma vez que
o mundo exterior é posto em dúvida, teremos muita dificuldade para fornecer argumentos
comprovantes da existência deste Ser ou de alguns de seus atributos.
Portanto, a respeito deste tema sempre triunfarão os céticos mais profundos e mais
filósofos quando se esforçam por inserir a dúvida universal em todos os objetos do
conhecimento e da investigação humana. Observais devem dizer os instintos e as
tendência s naturais aderindo veracidade aos sentidos? Mas isto não vos persuade a acreditar
que o objeto exterior é rigorosamente a percepção ou imagem sensível. Repudiais este
princípio optando por uma opinião mais racional que estipula que as percepções são apenas
representações de alguma coisa exterior? Apartais assim de vossas tendências naturais,. e
sentidos mais evidentes; todavia, não tendes possibilidade de esclarecer vossa razão, que
jamais pode desvendar argumento convincente derivado da experiência provando que as
percepções estão ligadas com os objetos externos.
Há um outro tema cético de natureza análoga, decorrente da filosofia mais profunda,
que poderia merecer nossa atenção se fosse necessário aprofundar para desvendar argumentos
e raciocínios que podem servir com exigüidade a fins sérios. Tem-se admitido universalmente
entre os investigadores modernos que todas as qualidades sensíveis dos objetos, tais como
duro, brando, quente, frio, branco, preto etc., são meramente secundárias, e que elas não
existem nos próprios objetos, sendo percepçóes do espírito sem nenhum arquétipo ou modelo
exterior que elas representam. Se isto é admitido em relação às qualidades secundárias, deve-
se também admitir acerca das pretendidas qualidades primárias da extensão e da solidez, já
que estas não têm menos direito do que aquelas para merecer esta denominação. A idéia de
extensão é totalmente adquirida pelos sentidos da visão e do tato; se todas as qualidades
percebidas pelos sentidos estão no espírito e não no objeto, idêntica conclusão deve abranger
a idéia de extensão que é completamente dependente das idéias sensíveis ou das idéias de
qualidades secundárias. Nada pode livrar-nos desta conclusão, salvo a afirmação de que as
idéias destas qualidades primárias são alc ançadas pela abstração, opinião que, se a
examinamos cuidadosamente, encontramos ininteligível e até absurda. Uma extensão que não
é nem tangível nem visível não pode ser concebida; uma extensão tangível ou visível, que
não é nem dura nem macia, nem preta nem branca, está igualmente acima do alcance da
concepção humana. Se qualquer pessoa tentar conceber um triângulo em geral, que não seja
nem isósceles nem escaleno, e que não tenha extensão específica ou proporção em seus lados,
ela perceberá imediatamente o absurdo de todas as opiniões escolásticas sobre a abstração e
as idéias gerais.
4
Desta maneira, a primeira objeção filosófica contra a evidência dos sentidos ou a
opinião sobre a existência exterior preceitua: se esta opinião repousa sobre um instinto
natural, é contrária à razão, e se ela se refere à razão, é contrária ao instinto natural e, ao
mesmo tempo, não traz consigo nenhuma evidência racional para convencer um investigador
imparcial. A segunda objeção vai mais longe e revela esta opinião como contrária à razão; e
é, ao menos, um principio da razão que todas as qualidades sensíveis estão no espírito e não
no objeto. Despojando a matéria de todas as suas qualidades inteligíveis, tanto as primárias
como as secundárias, de certo modo vós a aniquila is e preservais somente uma certa qualquer
coisa desconhecida e inexplicável como causa de nossas percepçóes; noção tão imperfeita
que nenhum cético a julgará digna de ser objetada.
NOTAS:
1 A crítica ao método de Descartes, especialmente do Discours de la Méthode, feita por
Hume, é evidente nesta passagem. Para Hume não existem princípios evidentes e
convincentes e não podemos igualmente confiar totalmente em nenhuma de nossas
faculdades espirituais. A dúvida, para ele, não é provisória como a de Descartes. O progresso
que o entendimento humano chega a alcançar é considerado hipotético. Toda dedução é
incerta e sujeita a constantes revisões. As descobertas filosóficas devem ser, segundo Hume,
circunscritas pelo probabilismo, ou melhor, todas as explicações devem ser vistas como
tentativas destinadas a serem substituidas por outras. [N. do T.]
2 Hume, no entanto, admite que o ceticismo cartesiano, sendo mais moderado, pode ser
encarado como razoável. Em verdade, o que ele entende por moderado neste contexto reflete,
de certa maneira, as regras do método de Descartes, como aparecem na segunda parte do
Discours de la Méthode. [N. do T.]
3 Hume dedica a segunda parte desta seção ao estudo deste ceticismo, com referência ao
raciocínio abstrato e ao raciocínio moral. [N. do T.]
4 Citamos este argumento do Dr. Berkeley. Na realidade, a maioria dos escritos deste
mui engenhoso autor constituem as melhores lições de ceticismo que se podem encontrar
entre os filósofos antigos e modernos, sem excetuar a Bayle. No frontispício do seu livro
declara, todavia, tê-lo escrito tanto contra os céticos como contra os ateus e livre-pensadores,
o que é indubitavelmente muito certo. Mas que todos os seus argumentos, embora dirigidos a
outro fim, são em realidade meramente céticos, pode ser observado pelo fato de que eles não
admitem resposta e não produzem convicção. Seu único efeito consiste em causar uma
momentânea surpresa, irresolução e confusão, que resultam do ceticismo (Hume).
SEGUNDA PARTE
Destruir a razão mediante argumentos e raciocínios lógicos pode parecer uma tentativa
muito extravagante dos céticos; todavia, esta é a principal finalidade de todas as suas
investigações e debates. Esforçam-se por encontrar objeções contra os nossos raciocínios
abstratos, como também contra os referentes às questões de fato e de existência.
A principal objeção contra todos os raciocínios abstratos deriva das idéias de espaço e
de tempo; idéias que na vida diária e para quem as considera descuidadosamente são muito
claras e inteligíveis, mas quando examinadas pelas ciências profundas elas constituem o
principal objeto destas ciências revelam princípios que parecem repletos de absurdos e
contradições. Nenhum dogma sacerdotal, inventado com o propósito de domar e subjugar a
rebelde razão humana, abalou tanto o bom senso como a doutrina e as conseqüências da
infinita divisibilidade da extensão, tal como nos são mostradas pomposamente por todos os
geômetras e metafísicos, com uma espécie de triunfo e de exultação. Uma quantidade real,
infinitamente menor que qualquer quantidade finita, contendo quantidades infinitamente
menores que ela mesma, e assim por diante ao infinito: eis uma formulação tão audaciosa e
prodigiosa que é demasiado pesada para apoiar-se em alguma pretendida demonstração,
porque repugna aos mais claros e naturais princípios da razão humana.
1
Mas o que torna o
assunto mais extraordinário refere-se ao fato de que estas opiniões aparentemente absurdas
estão apoiadas por uma cadeia de raciocínios muito claros e naturais, sendo-nos, pois,
impossível aceitar as premissas sem admitir suas conseqüências. Nada pode ser mais
convincente e satisfatório que todas as conclusões acerca das propriedades dos círculos e dos
triângulos, e, uma vez que as aceitamos, como podemos negar que o ângulo formado pelo
cfrculo e sua tangente é infinitamente menor que um ângulo retilíneo; que à medida que se
aumenta o diâmetro do círculo ao infinito, este ângulo de contato se torna ainda menor,
inclusive ao infinito, e que o ângulo de contato compreendido entre outras curvas e suas
tangentes deve ser infinitamente menor que os formados por qualquer círculo e sua tangente,
e assim por diante, ao infinito? A demonstração destes princípios parece tão irrepreensível
como aquela que prova serem três ângulos de um triângulo iguais a dois retos, embora esta
última noção seja natural e fácil, ao passo que a primeira está repleta de contradição e
absurdo. A razão parece aqui lançada a um estado de assombro e de vacilação que, sem que
ela tenha necessidade das sugestões de nenhum cético, lhe ensina a desconfiar de si mesma e
do terreno em que pisa. Visualiza uma luz clara iluminando certos lugares, mas esta luz está
cercada pela mais profunda escuridão. Entre as duas, a razão fica tão ofuscada e confundida
que raramente pode pronunciar-se com certeza e segurança sobre algum objeto.
O absurdo destas conclusões audazes das ciências abstratas torna-se se isto é
possível ainda mais patente em relação ao tempo do que ao espaço. Um número infinito de
partes reais de tempo que se sucedem e se esgotam umas depois das outras parece uma
contradição tão evidente que ninguém, cujo juízo, em vez de corrompido, se tenha
aperfeiçoado pelas ciências, seria capaz de admiti-lo.
Portanto, é preciso ainda que a razão permaneça agitada e in quieta, mesmo a respeito
deste ceticismo para o qual a dirigem estes aparentes absurdos e contradições. Como uma
idéia clara e distinta pode conter circunstâncias que a contradizem ou que contradizem uma
outra idéia clara e distinta, isto é absolutamente incompreensível, e é talvez tão absurdo como
qualquer proposição que se possa formular. De maneira que nada pode ser mais cético ou
mais repleto de dúvida e de hesitação que este próprio ceticismo, engendrado por algumas
das conclusões paradoxais da geometria ou da ciência da quantidade.
2
As objeções céticas à certeza moral ou aos raciocínios acerca dos fatos são populares
ou filosóficas. As objeções populares derivam da franqueza do entendimento humano; das
opiniões contraditórias sustentadas em diferentes épocas e nações; das variações de nossos
julgamentos quando estamos doentes ou sadios, na mocidade e na velhice, na prosperidade e
na adversidade; da perpétua contradição entre as opiniões e os sentimentos de cada homem
particular, assim como muitos outros temas deste gênero. Não há necessidade de insistirmos
por mais tempo a este respeito. Estas objeções são certamente fracas. Com efeito, na vida
diária raciocinamos a todo momento sobre o fato e a existência e, certamente, não
poderíamos subsistir se não empregássemos continuadamente este gênero de raciocínio, e
quaisquer objeções populares que daí decorrem são necessariamente insuficientes para
destruir esta evidência. A ação, o trabalho e as ocupações da vida diária são os principais
destruidores do pirronismo, isto é, dos excessivos princípios céticos. Estes princípios podem
florescer e triunfar nas escolas, nas quais é certamente difícil, senão impossível, refu-los.
Mas, uma vez que os céticos abandonam as sombras e se defrontam com os mais poderosos
princípios de nossa natureza decorrentes da presença dos objetos reais que movem
nossas ações e sentimentos, seus princípios desvanecem como fumaça e equiparam o mais
resoluto cético ao mesmo nível dos outros mortais.
O cético estaria melhor, portanto, se permanecesse em sua própria esfera e
desenvolvesse estas objeções filosóficas que nascem das pesquisas mais profundas. Parece
que é aqui que ele tem amplo campo para triunfar, pois insiste, legitimamente, que toda nossa
evidência a favor de um fato, distanciado do atual testemunho dos sentidos ou da memória,
procede inteiramente da relação de causa e efeito; que não temos outra idéia desta relação
senão a de dois objetos que têm estado frequentemente ligados; que não temos argumento
para nos convencer de que os objetos experienciados por nós constantemente ligados mostrar-
se-ão em outros casos igualmente ligados; e que nada nos conduz a esta inferência a não ser o
costume ou um outro instinto de nossa natureza que é difícil de resistir, mas que, como os
outros instintos, pode ser errôneo e enganador. Enquanto o cético persiste com estes
argumentos, revela sua força, ou melhor, revela tanto sua como nossa debilidade e, ao menos
no momento, parece destruir toda segurança e convicção. Poder-se-iam desenvolver
extensamente estes argumentos se deles adviessem um bem e um benefício perduráveis para
a sociedade.
Eis aqui, todavia, a objeção principal e mais embaraçosa contra o ceticismo extremado:
nenhum bem durável pode jamais resultar dele, embora conserve toda sua força e todo o seu
vigor. Necessitamos apenas perguntar a um tal cético: Qual é a sua intenção? Qual éo
propósito de todas estas curiosas pesquisas? Ele fica imediatamente perplexo e não sabe o
que contestar. Um coperniciano ou um ptolomaico pode, cada um argumentando a favor de
seu específico sistema de astronomia, aspirar a estabelecer entre seus ouvintes constante e
durável convicção. Um estóico ou um epicureu desenvolve princípios que não devem ser
duráveis, mas que têm efeito sobre a conduta e os costumes. Mas um pirrônico não pode
esperar que sua filosofia tenha uma influência constante sobre o espírito ou, se ela tivesse,
que esta influência fosse benéfica à sociedade. Pelo contrário, deve reconhecer, se quiser
admitir alguma coisa, que toda a humanidade pereceria se seus princípios prevalecessem
universal e constantemente. Todo discurso e toda ação cessariam imediatamente, e os homens
ficariam em total letargia, até que as necessidades da natureza, não sendo satisfeitas,
pusessem fim à sua miserável existência. Em verdade, não se deve temer demasiadamente um
evento tão fatal. A natureza sempre é mais forte que os princípios.
3
E, embora um pirrônico
possa lançar-se a si mesmo ou a outrem em estupefação e confusão momentâneas, em virtude
de seus raciocínios profundos, o primeiro e o mais banal evento da vida porá em revoada
todas as suas dúvidas e escrúpulos, e o situará no mesmo nível, com referência à ação e à
especulação, aos filósofos de todas as outras seitas e aos homens que nunca se preocuparam
com pesquisas filosóficas. O pirrônico, ao ser despertado de seu sonho, será o primeiro a se
incorporar ao riso que o ridiculariza e a admitir que todas as objeções não passavam de mero
divertimento e não tinham, portanto, outra intenção senão revelar a peculiar condição do ser
humano que, devendo agir, raciocinar e crer, não é capaz, pela mais diligente investigação, de
se esclarecer sobre o fundamento destas operações ou de remover as objeções que se
poderiam levantar contra elas.
NOTAS:
1 Qualquer que seja a disputa acerca dos pontos matemáticos, devemos admitir que há
Pontos físicos, isto é, partes da extensão que não podem ser divididas ou diminuídas, nem
pela visão e nem pela imaginação. Estas imagens, portanto, que se acham presentes na
fantasia ou nos sentidos, são completamente indivisíveis. Por conseguinte, os matemáticos
devem admitir que são menores que qualquer parte real da extensão. Sem dúvida, nada parece
mais seguro à razão que um número infinito destes pontos compondo uma extensão infinita.
E deve ser ainda mais certo que um número infinito daquelas partes infinitamente pequenas
que devem supor-se infinitamente divisíveis (Hume).
Hume, em conformidade com Bayle, assumindo que a doutrina dos pontos
matemáticos é indefensável, recorre à hipótese dos pontos físicos, entendendo por físicos os
pontos qualitativamente caracterizados em termos visíveis e tangíveis. (Bayle, Dictzonnaire
historique et critique, 5ª ed., Amsterdã, 1734, verbete “Zenon”.) O conhecimento que Hume
tinha da obra de Bayle pode ser constatado pelas notas que ele mantinha durante a feitura do
Tratado em que o nome de Bayle aparece mencionado cinco vezes. (Veja-se, de E. C.
Mossner, “Hume’s Early Memoranda”, 1729-1740, Journal of the History of Ideas, vol. IX, n
4, outubro, 1948, pp. 492-518.) [N. do T.]
2 Não me parece impossível evitar estas contradições e absurdos se se admite,
propriamente falando, que não há idéias gerais ou abstratas, mas que todas as idéias são, na
realidade, particulares, aderidas a um termo geral que evoca, em certas ocasiões, a outros
particulares que se parecem, em certas circunstâncias, com a idéia presente no espírito.
Assim, quando usamos o termo ‘cavalo”, imediatamente vem em nossa mente a idéia de um
animal branco ou preto, de determinado tamanho ou forma; mas como o termo “cavalo” é
geralmente aplicado a animais de outras cores, formas e tamanho, estas idéias, embora não
estejam agora presentes na imaginação, são facilmente recordadas pelo nosso raciocínio e as
conclusões [que fazemos] procedem da mesma maneira, isto é, como se elas realmente
estivessem presentes. Se se admite isto como parece razoável conclui-se que todas as
idéias de quantidade, acerca das quais raciocinam os matemáticos, não são mais que
particulares e semelhantes às sugeridas pelos sentidos e a imaginação e, por conseguinte, não
podem ser indefinidamente divisíveis. E suficiente levar isto em consideração, sem
desenvolver mais o assunto, o que é decerto coerente com o fato de todos os amantes da
ciência não se exporem ao ridículo e ao desprezo dos ignorantes por suas conclusões. Esta
parece ser a solução mais fácil de todas estas dificuldades (Hume).
3 Ao contrário de Bayle, que define o pirronismo como “a arte de debates sobre todas as
coisas sem jamais assumir qualquer posição, a não ser a suspensão do juízo” (Bayle, ob. cit.,
verbete “Pyrrhon”, tomo IV, pp. 669-674), Hume não o considera como uma “arte”, mas
como uma série de argumentos que implica o desenvolvimento de um certo tipo de atitude
acerca de todos os problemas práticos e teóricos. O núcleo da tese pirrônica consiste em
destacar que acerca de qualquer problema não há base racional para determinar que tipo de
solução deve ser dada ao objeto em discussão. Quando, por exemplo, dois juízos entram em
conflito, não há base racional para se optar por um dos dois. Portanto, nenhuma área prática
ou teórica é possível de ser alçada ao nível do conhecimento seguro e indispensável. Hume
concorda que a análise pirrônica não pode ser racionalmente refutada, mas admite que
ninguém jamais acreditou ou pode acreditar nela, pois, segundo ele, a natureza destrói os
argumentos céticos a tempo, e os impede de exercer qualquer considerável influência sobre o
entendimento” (Tratado, I, ii, IV, p. 187). A aderência de Hume ao naturalismo (em verdade,
o loco de sua atitude positiva), constitui o antídoto mais adequado contra as investidas
pirrônicas. Isto porque o mesmo tipo de fatores naturais que formam nossa existência
biológica determina igualmente nossa existência psicológica e exige de nós que
mantenhamos, por vezes, opiniões sem considerarmos sua evidência. (Vejam-se, de Popkin,
“David Hume: His Pyrrhonism and His Critique of Pyrrhonism”, in Chapeil, ob. cit. p. 54; de
N. K. Smith, ob. cit., passim, e “The Naturalism of Hume”, Mind, 1906.) [N. do T.]
TERCEIRA PARTE
Há, na verdade, um ceticismo mais moderado ou filosofia acadêmica,
1
que pode ser ao
mesmo tempo durável e útil e, em parte, resultar do pirronismo ou ceticismo extremado, se o
bom senso e a reflexão corrigem, até certo ponto, suas dúvidas indiferenciadas. A maioria dos
homens têm tendência natural para manifestar suas opiniões de modo afirmativo e dogmático
e, como visualizam os objetos sob um único aspecto e como não têm qualquer idéia de
argumentos opostos, lançam-se precipitadamente aos princípios para os quais estavam
inclinados e não são indulgentes com aqueles que abrigam opiniões contrárias. A dúvida ou a
suspeita gera perplexidade em seu entendimento, bloqueia sua paixão e interrompe sua ação.
Portanto, impacientes para escapulir de uma situação que lhes é tão desagradável, os homens
supõem que umcamente aderindo às afirmações violentas e crenças obstinadas conseguirão
afastar-se o bastante dela. Mas, se tais homens que raciocinam dogmaticamente pudessem ter
consciência da singular fragilidade do entendimento humano, inclusive em seu estado mais
perfeito e quando é mais rigoroso e prudente em suas resoluções, semelhante reflexão os
inspiraria naturalmente a ter mais modéstia e reserva, diminuindo a exagerada opinião que
têm de si mesmos e seus preconceitos contra os adversários. Os ignorantes devem refletir
acerca da situação dos sábios que, embora usufruindo de todas as vantagens advindas do
estudo e da reflexão, se mostram geralmente desconfiados de suas afirmações. E, se algum
sábio tende, por seu temperamento natural, à altivez e à obstinação, uma leve tintura de
pirronismo poderia abater seu orgulho e mostrar-lhe que as poucas vantagens que obteve
sobre seus semelhantes são insignificantes se comparadas à confusão e à perplexidade
universais inerentes à natureza humana. Em geral, há um grau de dúvida, de prudência e de
modéstia que, nas investigações e nas decisões de todo gênero, deve sempre acompanhar o
homem que raciocina corretamente.
Uma outra espécie de ceticismo moderado, que deve ser vantajoso aos homens e que
pode resultar naturalmente das dúvidas e escrúpulos pirrônicos, consiste em limitar nossas
investigações aos objetos que mais bem se adaptam à exígua capacidade do entendimento
humano. A imaginação humana, sublime por natureza, deleita-se com tudo que é remoto e
extraordinário, e ela corre, sem controle, pelas mais longínquas regiões do tempo e do espaço,
visando assim a evitar os objetos que o costume lhe tem tornadu demasiado familiares. Um
juízo correto observa um método contrário e, evitando todas as investigações longínguas e
elevadas, limita-se à vida diária e aos objetos compreendidos pela prática e experiência
cotidianas, reservando os temas mais sublimes ao embelezamento dos poetas e dos oradores,
ou à arte dos sacerdotes e dos políticos. Para chegarmos a uma decisão tão salutar, nada pode
ser mais útil do que nos convencer de vez da força da dúvida pirrônica e da impossibilidade
de que algo pode libertar-nos dela, exceto o forte poder do instinto natural. Aqueles que têm
propensão para a filosofia continuarão ainda suas pesquisas, porque refletem que, além do
prazer imediato que acompanha tal ocupação, as decisões filosóficas nada mais são do que
reflexões sobre a vida cotidiana, metodizadas e corrigidas. Contudo, jamais tentarão
extravasar da vida cotidiana, contanto que considerem a impressão das faculdades que
empregam, seu alcance reduzido e a imperfeição de suas operaçoes. Visto que não podemos
dar uma razão satisfatória por que acreditamos, depois de mil experimentos, que uma pedra
cairá ou que o fogo queimará, podemos esclarecer-nos sobre qualquer resolução que podemos
formular sobre a origem dos mundos e o estado da natureza desde a eternidade e para a
eternidade?
Certamente, esta estreita limitação de nossas investigações é, sob todo ponto de vista,
tão razoável que basta fazer o exame mais superficial dos poderes naturais do espírito
humano e compará-los com seus objetos para que nos seja recomendada. Deste modo,
localizaremos os respectivos objetos da ciência e da investigação.
Parece-me que os únicos objetos da ciência abstrata, ou da demonstração, são a
quantidade e o número, e que todo esforço para estender este gênero mais perfeito do
conhecimento além daquelas fronteiras é mero sofisma e ilusão. Como as partes componentes
da quantidade e do número são inteiramente semelhantes, suas relações tomam-se
complicadas e embaraçadas, e nada pode ser mais curioso, como também útil, do que
demarcar com vários sinais intermediários sua igualdade ou desigualdade sob suas diferentes
formas de aparição. Mas, como todas as outras idéias são claramente distintas e diferentes
umas das outras, jamais podemos ir mais longe, nem com a ajuda de nosso mais rigoroso
exame, do que observar esta diversidade e decidir, mediante uma reflexão evidente, que uma
coisa não é outra. Ou, se há qualquer dificuldade nestas decisões, ela procede inteiramente da
indeterminação dos significados das palavras que se corrige com definições adequadas. Não
se pode saber se o quadrado da hipotenusa éigual ao quadrado dos dois lados, por mais
rigorosamente que tenham sido definidos os termos, sem uma seqüencia de raciocínios e
investigações. Mas, para convencer-nos a respeito da seguinte proposição onde não há
propriedade, não pode haver injustiça, é apenas necessário definir os termos e explicar que
a injustiça é uma violação da propriedade. Esta proposição é, em verdade, apenas uma
definição mais imperfeita. O mesmo caso ocorre com todos os pretensos raciocínios
silogísticos que se encontram em todos os ramos do saber, exceto nas ciências da quantidade
e do número. Pode-se, portanto, afirmar com toda segurança, penso eu, que a quantidade e o
número são os únicos objetos adequados do conhecimento e da demonstração.
Todas as outras investigações humanas dizem respeito unicamente às questões de fato e
de existência; e estas não são, evidentemente, suscetíveis de demonstração. Tudo o que é
pode não ser. Nenhuma negação de um fato pode implicar contradição. A inexistência de um
ser, sem exceção, é uma idéia tão clara e distinta como a de sua existência. A proposição que
afirma que não existe, mesmo se é falsa, não é menos concebível e inteligível que aquela que
afirma que existe. O caso é diferente para as ciências propriamente ditas. Toda proposição
que não é verdadeira é considerada confusa e ininteligível. A raiz cúbica de 64 é igual à
metade de 10 é uma proposição falsa e jamais poder-seia concebê-la distintamente. Mas que
César, o anjo Gabriel ou um outro ser qualquer jamais existiram podem ser proposições falsas
e, sem dúvida, perfeitamente concebíveis, e não implicam contradição.
Portanto, a existência de qualquer ser somente pode ser provada mediante argumentos
derivados de sua causa ou de seu efeito, e estes argumentos se fundam inteiramente na
experiência. Se raciocinamos a priori, qualquer coisa pode parecer capaz de produzir
qualquer coisa.
A queda de um seixo pode, pelo que sabemos, extinguir o sol, ou a vontade de um
homem controlar os planetas em suas órbitas. É unicamente a experiência que nos ensina a
natureza e os limites da causa e do efeito e permite-nos inferir a existência de um objeto
partindo de um outro.
2
Tal é o fundamento do raciocínio moral que constitui a maior parte do
conhecimento humano e que é a fonte de todas as ações e comportamentos humanos.
3
Os raciocínios morais referem-se tanto a fatos particulares como gerais. Todas as
deliberações da vida dizem respeito aos primeiros, bem como todas as investigações da
história, da cronologia, da geografia e da astronomia.
As ciências referentes aos fatos gerais são a política, a filosofia natural, a física, a
química etc., nas quais se investigam as qualidades, as causas e os efeitos de toda uma
espécie de objetos.
As ciências religiosas ou teológicas, enquanto visam a provar a existência de Deus e a
imortalidade das almas, compõem-se em parte de raciocínios baseados em fatos particulares
e, em parte, de raciocínios baseados em fatos gerais. Fundam-se sobre a razão, na medida em
que se apóiam na experiência. Mas seu melhor e mais sólido fundamento é a e a revelação
divina.
A moral e a crítica não são propriamente objetos do entendimento, porém do gosto e do
sentimento. A beleza, moral ou natural, é antes sentida que propriamente percebida. Ou, se
raciocinamos a seu respeito, e tentamos estabelecer sua norma, consideramos um novo fato,
derivado do gosto geral dos homens, ou algum fato análogo que pode ser objeto do raciocínio
e da investigação.
Quando percorremos as bibliotecas, persuadidos destes princípios, que destruição
deveríamos fazer? Se examinarmos, por exemplo, um volume de teologia ou de metafísica
escolástica e indagarmos:
Contém algum raciocínio abstrato acerca da quantidade ou do número? Não. Contém
algum raciocínio experimental a respeito das questões de fato e de existência? Não. Portanto,
lançai-o ao fogo, pois não contém senão sofismas e ilusões.
NOTAS:
1 Hume mostra claramente, tanto aqui como na seção V, seu desejo de ser considerado
um seguidor da última Academia [N. do T.]
2 O ímpio princípio da filosofia antiga: ex nihilo, nihil fit, pelo qual ficava excluída a
criação da matéria, deixa de ser um principio, segundo esta filosofia. Não apenas a vontade
do Ser Supremo pode criar a matéria, mas, pelo que sabemos, a priori, a vontade de qualquer
outro ser poderia criá-la, ou qualquer outra causa que a imaginação mais caprichosa poderia
designar (Hume).
3 O ceticismo moderado consiste sobretudo em “limitar nossas investigações aos
objetos que mais bem se adaptam à exígua capacidade do entendimento humano”. Hume
visa, deste modo, nas últimas páginas desta Investigação, esboçar um quadro geral dos
diferentes ramos do saber humano, e a idéia central que orienta seu esquema se baseia na
divisão mais ampla entre o ‘conhecimento” e a “crença”. (Veja -se Flew, ob. cit., p. 270.) [N.
do T.]
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