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UNIVERSIDADE
FEDERAL
DA
BAHIA
ESCOLA DE TEATRO – ESCOLA DE DANÇA
PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
MÁRCIA VIRGÍNIA BEZERRA DE ARAÚJO
GESTOS CANTADOS:
UMA PROPOSTA EM DANÇA-CORAL A PARTIR DE PRINCÍPIOS
RITUAIS
SALVADOR
2008
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MÁRCIA VIRGÍNIA BEZERRA DE ARAÚJO
GESTOS CANTADOS:
UMA PROPOSTA EM DANÇA-CORAL A PARTIR DE PRINCÍPIOS RITUAIS
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas,
Universidade Federal da Bahia, para obtenção do Grau de Doutora em
Artes Cênicas.
Orientadora: Profa. Dra. Ciane Fernandes
Salvador
2008
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A TODAS AS MINHAS RELAÇÕES
Mitokuye Oyas'in
for all my relations
Em especial, às minhas filhas MAINÁ, TIANE E IAMI
4
AGRADECIMENTOS
A todos os ancestrais da dança e teatro rituais.
Aos meus pais, Virgílio e Terezinha, por compreenderem as minhas ausências.
A Valderez e Celedônio, pela amizade, acolhimento e gentileza no final desta jornada.
Ao meu companheiro Gil, por compartilhar todos os momentos desta jornada, e que além de
companheiro, foi um de meus melhores informantes na pesquisa.
A Iami, a mais nova kuninã da tribo, por ter me ensinado o significado da alegria.
As filhas Mainá e Tiane, pelas colaborações na confecção dos diagramas e do cenário, além
das fotos.
A Ciane Fernandes, que esteve sempre incentivando mesmo antes de assumir a orientação
deste estudo e, sobretudo, pela amizade e carinho.
Ao professor Sérgio Farias, pela compreensão, disponibilidade e amorosidade.
À professora Lia Rodrigues, por ter me encorajado a escrever.
Aos amigos da Pós-Graduação, em especial, Makarios, Alice, Cássia, Felipe Botelho.
À Creche da UFBA, que acolheu carinhosamente a pequena Iami.
À Escola de Teatro da UFBA, da diretoria aos funcionários (Eliene Benício, Bira Freitas,
Joaquim Torres).
À coordenadora Antônia Pereira e toda a equipe do PPGAC.
À CAPES
Ao MEC/SESU, programa Jovens Artistas
À Reitoria da UFBA- setor de convênios
Ao Instituto Goethe- ICBA
Ao Teatro Castro Alves e o Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) pela
concessão da sala de ensaios
Ao Círculo de Mulheres do Castelar da Alvorada, no Vale do Capão.
A Sylvie Shining Woman, pelo acolhimento sem julgamento de sua doce medicina.
A Zelice Peixoto, por trazer os cantos, as danças e o amor de nossos ancestrais.
Ao grupo de estudos das danças pela Paz de Salvador (Tina Campos, Tina Del Rey, Marília
Curvelo, Liana Neto, Vasco dos Anjos, Cau trigo, Clenice Bastos, Ana Gilda).
Ao Reis de Zabumba, em especial Dona Domingas e Sr. Chico.
A todas as pessoas entrevistadas, que enriqueceram minha própria experiência.
Aos alunos de interpretação teatral, participantes da primeira fase cênica experimental.
Aos participantes do espetáculo experimental da tese (elenco e equipe de criação)
À equipe de filmagem do espetáculo Gestos Cantados
À Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco.
À Secretaria de Educação da Prefeitura da Cidade do Recife.
Ao prof. Dr. Marco Camarotti (in memoriam), que me despertou para a importância de ser
uma artista-educadora na nossa sociedade, incentivando ainda a levar adiante o projeto de
doutoramento.
Aos integrantes da banca examinadora.
5
EU CANTO, EU DANÇO,
O ETERNO ÊXTASE DE SER.
(RUTH SAINT- DENIS)
6
RESUMO
Esta pesquisa teve como objetivo identificar e compreender princípios rituais em práticas
xamânicas e a posterior adaptação desses princípios ao processo de investigação corporal
poética de um grupo cênico. Situando-se entre a etnografia e performance ritual, a primeira
parte recorre à noção clássica de ritual para compreender manifestações de dança e teatro
rituais na contemporaneidade. Discute ainda a historiografia em arte-ritual e seus
desdobramentos nas técnicas corporais de formação do artista cênico. A segunda parte trata
do trabalho etnográfico, principalmente de minhas experiências como observadora
participante de rituais xamânicos do Castelar da Alvorada (Chapada Diamantina Bahia),
entre os quais estão os rituais de dança-música de várias tradições, em especial a indígena,
inclusive tendo algumas Danças da Paz Universal no repertório. A terceira parte descreve
duas experiências com atores-bailarinos, baseadas em princípios da Dança-Coral de Rudolf
Laban, e também em alguns princípios básicos dos rituais, mas principalmente na associação
entre canto e movimento provenientes de ambos os sistemas, cênico e ritual. Como
resultado, a escrita performativa gerada pela experiência etnográfica se junta ao movimento
poético da montagem ritualística Gestos Cantados, um gênero híbrido entre dança-coral,
dança-teatro e performance, podendo ser também compreendida como uma espécie de ritual
artístico.
Palavras-chave: xamanismo; estados corporais; dança-música-ritual; educação somática;
dança-teatro; dança-coral.
7
ABSTRACT
The objective of this research is to identify and to explain ritual principles in shamanic
practices and the eventual adaptation of these principles to the process of poetic corporal
investigation in a theatrical group. Situated between ethnography and ritual performance, the
first part resorts to the classic notion of a ritual to understand manifestations of ritual dance
and theater in the present times. It also discusses the history of ritual art and its extensions in
the formative corporal techniques of a theatrical artist. The second part deals with work in
the ethnographic, focusing on my experiences as an observer/participant in shamanic rituals
at the Castelar da Alvorada (Chapada Diamantina - Bahia), among which are some
dance/music rituals from various traditions, in particular a native tradition, including some
Dances for Universal Peace in its repertoire. The third part describes two experiences with
dancers/actors, based in the principles of coral-dance, by Rudolf Laban, and also based in
some fundamental principles of rituals, but above all in the association between chanting
and movement originated from both systems, theatrical and ritual. As a result, the
performative writing generated through the ethnographic experience joins the poetic
movement in the ritualistic assemblage of Singing Gestures, a hybrid genre between coral-
dance, theater-dance and performance, which can also be understood as a form of artistic
ritual.
Keywords: shamanism; states of bodies; dance-music-ritual; art ritual; dance-theatre;
choral-dance.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 01: Capa: gravura em pedra de Gilmar (Lençóis) representa uma deusa do fogo
sagrado, do ciclo da Grande Mãe, marca de divulgação do trabalho de Sylvie Shining
Woman.
Figura 02: Diagrama das Direções da pesquisa.
Figura 03: Gráfico dos Fatores de Movimento (Rudolf Laban)
Figura 04: organização corporal a partir da figura oito.
Figura 05: Anel de Moebius (representação da figura oito)
Figura 06: Exercícios de escala vocal. Fonte: Bonnie Bainbrigde Cohen
Figura 07: Fluxograma “arborescente” da pesquisa.
Figura 08: Foto nº 1 - Sylvie Handjiam (Shining Woman)
Figura 09: Foto nº 2 – Sylvie no arbor
Figura 10: Foto nº 3 - Casa principal do Castelar da Alvorada
Figura 11: Foto nº 4 – idem anterior
Figura 12: Foto nº 5 - Morrão – vista da Alvorada
Figura 13: Foto nº 6 - Templo octogonal - Direção Norte: porta de entrada
Figura 14: Foto nº 7 - Interior do Templo - Altar do Sul: cascata
Figura 15: Foto nº 8 - Mandala central no chão do templo
Figura 16: Foto nº 9 – Interior do Templo -Altar do Leste: lareira
Figura 17: Foto nº 10 – Interior do templo: Altar do Oeste: gruta
Figura 18: Foto 11 - Bastão da fala (talking stick) construído para o processo criativo
desta pesquisa (vide cap. 3)
Figura 19: Foto nº 12
-
Tambor xamânico da Alvorada
Figura 20: Foto nº 13 - Preparação do ritual da sauna sagrada
Figura 21: Foto nº 14 – Sauna coberta com mantas
Figura 22: Foto nº 15 – Altar do leste (representa a águia) situado entre a sauna e a fogueira
Figura 23: Foto nº 16 - Zelice (de verde) preparando o grupo para entrar na gruta
Figura 24: Foto nº 17 – Selo Águia Solar
Figura 25: Foto nº 18 – Meditação pela Paz
Figura 26: Foto nº 19 - Danças da Paz após a meditação
Figura 27: Foto nº 20 – Sylvie e Zelice dançando pela paz
Figura 28:
Foto nº 21 – Escudo pessoal Márcia
Figura 29: Foto nº 22 - Preparação do Arbor
Figura 30: Foto nº 23 – idem anterior
Figura 31: Foto nº 24 - Roupas com franjas e fitas (Márcia)
Figura 32: Foto nº 25– Símbolo do Sufismo
Figura 33:
Foto nº 26 - Bandeira DPU
Figura 34:
Foto nº 27 -
Altar localizado no chão ao centro da roda de dança da paz
Figura 35:
Foto nº 28 - Grupo DPU- Salvador
Figura 36:
Quadro das Canções
Figura 37: Dança do Salgueiro – Peter Brueguel
Figura 38: Quadro de associação entre os fatores de movimento (LABAN), os elementos
naturais e os elementos musicais
Figura 39: Quadro de relações ou de correspondências
Figura 40: Foto nº 29 - Turma de Alunos do Estágio Docente - T.C.C II
Figura 41: Diagrama Circular das Direções
Figura 42: Foto nº 30 – Ensaio ao redor da árvore (flamboyam) do Teatro Castro Alves
Figura 43: Foto nº 31 – Cenário e Percussão
9
Figura 44: Foto nº 32 - Luna Dias - purificação com a sálvia
Figura 45: Foto nº 33- DançaLivre: Wiracocha/Pachamama
Figura 46: Foto nº 34 – Refrão DPU Wiracocha/Pachamama
Figura 47: Foto nº 35 – Idem anterior.
Figura 48: Foto nº 36 – Calibam e grupo – história de vida
Figura 49: Foto nº 37 – Victor - poema da infância
Figura 50: Foto nº 38 - Dança-Coral do Sul – música Canção do Pato – parte 1
Figura 51: Foto nº 39 – Dança-Coral do Sul – Canção do Pato – parte 2
Figura 52: Foto nº 40 – Andréia Reis - poema da infância
Figura 53: Foto nº 41 – Seqüência de organização corporal ao som de Chanun
Figura 54: Foto nº 42 - Composição ao som de Chanun
Figura 55: Foto nº 43 – Idem anterior
Figura 56: Foto nº 44 – Cont. Composição ao som de Chanun
Figura 57: Foto nº 45 - Idem anterior
Figura 58: Foto nº 46 – Solos e duplas do Norte – canção Mahk Jchi
Figura 59: Foto nº 47 - Idem anterior
Figura 60: Foto nº 48 - Idem anterior
Figura 61: Foto nº 49 – DPU Inana Lachma Dahay
Figura 62: Foto nº 50 – Sonorização do movimento
Figura 63: Foto nº 51 – Massagem sonora do Oeste
Figura 64: Foto nº 52 – Dança-Coral do Oeste – canção Roda de Cura
Figura 65: Foto nº 53 – Idem anterior
Figura 66: Foto nº 54 – DPU Yahhay Ya Haqq
Figura 67: Foto nº 55 - Idem anterior
Figura 68: Foto nº 56 - Solo de Leonardo - Música Navajo Squaw Dance
Figura 69: Foto nº 57 – Estrela de Davi
Figura 70: Foto nº 58 - Dança-Coral do Leste - DPU Voando como Águia
Figura 71: Foto nº 59 – DPU: Kalama Dance (Lah- Ilahá-Illa-Allah)
Figura 72: Foto nº 60 - Participação da platéia no final das apresentações no ICBA
Figura 73: Foto nº 61 - Idem anterior
Figura
74: Foto
nº 62 - Maestro Cícero Alves e grupo
Figura 75: Foto n 63 – Elenco em dia de apresentação (figurino)
Figura 76: Foto nº 64 – Imagens do grupo (detalhes das maquiagens individuais)
Figura 77: Foto nº 65 – Imagens do grupo 2
LISTA DE ABREVIATURAS
DPU- Danças da Paz Universal
DCS- Danças Circulares Sagradas
TCC – Técnica de Corpo para Cena
TS- Talking Stick
CK- Chuluaqui Kuodouska
EAC – Estados Alterados de Consciência
LMA- Laban Movement Analysis
FCB - Fundamentos Corporais Bartenieff
10
SUMÁRIO
O início da jornada: Em direção ao Ritmo Sul - descobrindo algo novo ou alguma coisa
esquecida?
APRESENTAÇÃO
O lugar e o elo entre a pesquisadora e a criadora...............................................01
INTRODUÇÃO
............................................................................................................09
A pesquisa: etnografia e performance.................................................................09
Chamada aos cinco pontos cardeais: a estrutura da Tese...................................15
Capítulo I. do Ritmo Sul ao Norte: O Corpo Sagrado em Cena - reelaborando noções
FUNDAMENTOS..............................................................
...........................................20
1.1. Noção clássica e contemporânea de ritual................................................................21
1.2. Os lugares e as matrizes da dança-ritual...................................................................23
1.2.1. Rituais de danças pela Paz: uma abordagem xamanística...............................27
1.2.2. Danças da Paz Universal e Danças Circulares Sagradas.................................28
1.2.3. Ritual na história do teatro e da dança: arte e método de criação...................33
1.2.4. Ritual e criação artística: exemplos de dança-ritual contemporânea
brasileira....................................................................................................................39
1.2.5. Entre técnica e criação - o Interculturalismo...................................................41
1.3. Relação entre ritual e performance...........................................................................49
1.3.1. Arte ritual em Grotowski.................................................................................50
1.3.2. Ritualidade e Espiritualidade...........................................................................54
1.3.3. Entre Laban e Grotowski.................................................................................55
1.3.4. Dança-Coral para todos...................................................................................56
1.4. A arte do movimento em Rudolf Laban...................................................................60
1.4.1. Dança-Teatro e corporeidade - a importância do gesto...................................66
1.5. Idéias de corpo-em-conexão.....................................................................................68
1.5.1.a. Contribuições do Canto-Coral na conexão corpo-voz: A Música Orgânica.76
1.5.1.b. Outras práticas tradicionais de conexão corpo-voz: o corpo-som-do-ser dos
Tubunguaçu e o trabalho com os chacras...............................................................78
1.5.1. c. Conexão Corpo-Voz em Dalcroze: Música e Movimento...........................80
1.5.1.d. Contribuições da Educação Somática na conexão corpo-voz: O Método
Feldenkrais.................................................................................................................82
1.5.1.e. Contribuições da Educação Somática na conexão corpo-voz: O Sistema
Laban/Bartenieff........................................................................................................84
1.5.1.1. As noções de Integração, Conectividade e Repadronização........................85
11
1.5.1.2. O Gesto Vocal na Universidade...................................................................89
1.6. Fluxograma “arborescente” da pesquisa...................................................................92
Capítulo II. do Ritmo Norte ao Oeste: atrás dos nossos medos estão as nossas forças e
talentos
DADOS ETNOGRÁFICOS.....................................................94
2.1. Entre o arcaico e o contemporâneo, o poder da
experiência....................................95
2.1.1. Princípios
Rituais......................................................
.............................................98
2.2. Sobre o Xamanismo..................................................................................................99
2.3. O Xamanismo de Sylvie (Shining Woman) no Castelar da Alvorada...................103
2.3.1. Castelar da Alvorada – diálogo de tradições.............................................106
2.3.1.a. Ensinamentos indígenas: natureza e humanidade.................................111
2.3.1.b. O Círculo de Mulheres da Alvorada- cumplicidade do feminino.........116
2.3.1.c. Corpo cerimonial, Corpo de memória..................................................121
2.3.1.d. Relação entre a música e o movimento: transe, êxtase, estados alterados de
consciência....................................................................................................126
2.3.1.e. Os princípios recorrentes......................................................................129
2.3.1.f. Hoje é um bom dia para morrer!...........................................................131
2.3.2. Rituais Xamânicos.....................................................................................134
2.3.2.a. Ritual do Talking Stick.........................................................................134
2.3.2.b. Ritual de Purificação com a Sálvia.......................................................136
2.3.2.c. Ritual de Queima das Cartas Pessoais..................................................137
2.3.2.d. Viagem Xamânca /Jornada do tambor..................................................137
2.3.2.e. Ritual da Sauna Sagrada.......................................................................139
2.3.2.f. Ritual de Busca de Visão (na montanha)..............................................144
2.3.2.g. Rito de passagem na gruta ou caverna..................................................146
2.3.2.h. A Roda de Cura....................................................................................148
2.3.2.i Ritual da mitologia pessoal (Cerimônia da Árvore)...............................153
2.3.2.j. Celebrações do Calendário da Paz.........................................................154
2.3.2.k. Meditação pela Paz...............................................................................157
2.3.2.l. Ritual da Dança da Águia......................................................................158
2.3.3. Rituais de Danças-Músicas: cânticos xamânicos pela paz.........................168
2.3.4. Quadro das Canções...................................................................................178
2.3.5. Estado de corpo xamânico..........................................................................180
Capítulo III. Do Oeste ao Leste: da busca existencial ao movimento poético da criação
artística (o grupo, a temática, o espetáculo)
APLICAÇÃO ESPETACULAR........................................................................................186
3.1. Sistema Xamânico e Sistema Laban: abordagens complementares......................187
3.1.1. Princípios Rituais..........................................................................................187
3.1.2. Princípios da Arte de Movimento de Laban..................................................188
3.1.3. Quadro de relações ou de correspondências..................................................190
12
3.1.4. Abordagens corporais de voz e de movimento utilizadas.............................191
3.2. PRIMEIRA FASE: Técnica de Corpo para Cena II (T.C.C. II).............................194
3.2.1. Sistematização de conteúdos.........................................................................194
3.2.2. Roteiro da montagem em Técnica de Corpo para Cena II (T.C.C. II)..........198
3.2.3. Avaliação Final – Técnica de Corpo para Cena II (T.C.C. II)......................199
3.3. SEGUNDA FASE: GESTOS CANTADOS............................................................202
3.3.1. Sobre o grupo e o cronograma......................................................................203
3.3.2. A construção do corpo-som-artista: do corpo “conexão” ao corpo
“cosmogônico”........................................................................................................207
3.3.3. Descrição das cenas do Roteiro em Gestos Cantados.................................210
3.3.4. Dança-Coral-Ritual como Princípio e Resultado Cênico............................218
3.3.5. Os aspectos vocais na criação de Danças-Corais........................................222
3.3.6. Cânticos e danças Xamânicos pela Paz.......................................................225
3.3.7. Dança dos Poemas - Simbolismo das Direções...........................................227
3.3.8. Subjetividade e Transculturalidade.............................................................229
Saudando a direção rítmica ‘Central’: Considerações finais cantadas aos quatro
ventos............................................................................................................................250
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................255
APÊNDICES................................................................................................................265
1. Letras das Canções observadas
2. Roteiro de entrevistas
3. Lista de pessoas entrevistadas
4. Entrevistas transcritas
5. Mapa do Castelar da Alvorada
ANEXOS.......................................................................................................................334
1. Mapa da Chapada Diamantina
2. Caderno de Músicas - Dança da Águia
3. Apostilas e Informativos DPU e DSC
3.1. Danças da Paz Universal: A Dança na Educação
3.2. Sangha- Danças da Paz Universal/Danças Sagradas - ano 1, nº 3 – set 1994
3.3. Sangha- Danças da Paz Universal/Danças Sagradas ano 2, 4 maio
1995
3.4.
Dances of Universal Peace
4. Exemplos de danças do livro Spiritual Dance and Walk
5. Exemplos de danças de roda DSC .
6. Selo Maia - Calendário da Paz
7. Programa Gestos Cantados
8. Cartaz Gestos Cantados
9. DVD com imagens de T.C.C. IImontagem (parte I) e processo (parte II)
10. DVD com imagens de Gestos Cantados – Parte I: imagens Yolle Moura;
Parte II: imagens Ciane Fernandes
13
O início da jornada: Em direção ao Ritmo Sul - Descobrindo algo novo ou alguma
coisa esquecida?
Elemento Água
Um monge disse a Nasrudin
1
: “Sou tão desapegado que nunca penso em mim,
nos outros”. Nasrudin respondeu: “Sou tão objetivo que posso ver-me como
se eu fosse outra pessoa; assim, sou capaz de pensar em mim”.
APRESENTAÇÃO
O lugar e o elo entre a pesquisadora e a criadora
Em todas as fases desta pesquisa, minha intenção como pesquisadora se situa na
dimensão da experiência. Experiência esta que se constituiu de vários pequenos e grandes
ritos de passagem durante todas as danças-rituais e danças da vida a que me submeti.
Durante a pesquisa etnográfica, sempre ficava no ar uma questão, ou melhor, na água, pois
tudo começa ou recomeça nas águas fluidas da Chapada Diamantina: Como colocar em
palavras tantas experiências incorporadas?
Para falar de experiências, recorro à memória e às palavras de Gilbert Durand
(1997), quando diz que a memória tem mais a ver com o espaço do que com o tempo. O
tempo cronológico não daria conta de descrever todas as passagens de uma trajetória,
especialmente aquelas em que as memórias do corpo são predominantes. Corpo que é
sobretudo presença, imagem, sobretudo simbólico, porque é constantemente reconstruído
pelas culturas a que pertenço. As memórias são feitas do que se guarda, mas também do que
esquece, não apenas feita de passado, mas principalmente de presente. E o corpo refaz e
recria os momentos mais significativos. Assim, posso dizer que esta tese é feita antes de
qualquer coisa, das minhas memórias corporais de movimento, nos rituais de passagem do
trabalho de campo, que ao seu turno se misturavam com os acadêmicos, artísticos e
pedagógicos.
1
Nasrudin é o nome de um personagem do Sufismo, que, através do humor revela-nos o caráter paradoxal da
vida. Ver mais em Nasr Al-Din, Khawajah, séc. 14. Histórias de Nasrudin/ Mullá Nasrudin; tradução de
Mônica Udler Cromberg, Henrique Cukierman – Rio de Janeiro: Dervish, 1994.
14
Após ter assumido a dança como arte e como tema de ensino de arte, surgiu a
necessidade de conhecer mais sobre o corpo, especialmente o corpo do artista. Encontrei
estudos sobre o corpo em áreas distintas e complementares, que envolviam a arte, a cultura,
o corpo e a educação. O trabalho com alunos, futuros atores, bailarinos e músicos
2
, com as
disciplinas relacionadas ao corpo, a saber, a Preparação Corporal, a Criação Coreográfica e a
Expressão Corporal, tem se configurado a partir da incorporação da associação entre
linguagens complementares de som/movimento. Assim se fez necessário pesquisar com
mais profundidade esta relação entre movimentos do corpo e som da voz, em especial a voz
cantada.
De certa maneira vinha experimentando a sensação de integração proporcionada por
este tipo de atividade, para além da função estética a ela associada, quando participava como
foliã dos ciclos carnavalesco, junino, natalino e afro da minha cidade (Recife), nos quais a
música e a dança estão estreitamente ligadas, ora fazendo o passo do frevo, ora
acompanhando as sambadas de maracatu e cavalo-marinho, dançando o coco, o caboclinho,
o toré e a ciranda, sendo pastora dos pastoris. Como aluna e como professora, tanto em aulas
de dança, quanto nas preparações vocal-gestuais para o canto coral, compreendi a
importância das atividades que incluíam sonorização do movimento, grande parte justificada
nas metodologias baseadas em Rudolf Laban e em Moshe Feldenkrais (vide capítulo I).
Como espectadora, ainda me recordo da bailarina Chica Timbó, do Balé Stagium, fazendo
um solo de dança e cantando uma melodia com sonoridade africana, no espetáculo Missa
dos Quilombos (1974).
Esta combinação entre dança e canto parecia, portanto, estar explícita nas
manifestações rituais, nas diversas práticas culturais espetaculares existentes na vida social.
Ainda que considere estas práticas de conteúdo étnico mais explícito como formas cênicas
contemporâneas, isto o invalidava minha tentativa de estabelecer uma aproximação entre
os padrões de movimentos cantados dessas expressões e as técnicas corporais formadoras do
artista. Ao longo desta pesquisa agrupei coisas específicas de cada uma dessas duas
categorias relativas ao corpo. Houve necessidade de rever o que seria mais apropriado entre
as minhas experiências anteriores em técnicas de corpo e voz, que pudessem se aproximar
daquelas vivenciadas nos rituais xamânicos.
2
Alunos do Centro de Criatividade Musical do Recife e alunos de dança e teatro da Escola de Arte João
Pernambuco.
15
O interesse pelo ritual surgiu dos resultados da minha pesquisa em Antropologia do
Imaginário, com a dissertação: “Meu Corpo é um Templo, Minha oração é a Dança
3
:
Dimensões étnicas, rituais e míticas na Companhia de Dança Balé Teatro Castro Alves
UFPE (1999)
4
, onde ficou demonstrado que a aproximação com elementos da etnicidade
contribui para criar uma nova maneira – ritual – de estar junto no grupo. A partir da
verificação da presença de elementos do ritual étnico brasileiro na criação coreográfica,
compreendi como se articulam estes elementos na criação e representação estética.
Os dados encontrados na dissertação demonstraram também que o ritual está presente
no fazer cênico de bailarinos profissionais, embora nem sempre seja de maneira intencional
e explícita. Considerando ainda o fato de que a própria representação contém em si,
inúmeros conteúdos rituais, agora, nesta pesquisa de doutorado, utilizo a noção de ritual de
maneira assumida na prática cênica, sustentando a proposição de que atividades ritualísticas,
mesmo as consideradas de outra ordem do cotidiano teatral, como as xamânicas, são muito
importantes para o desenvolvimento do processo criativo cênico
5
. Esta pesquisa tem como
proposta o aprofundamento sobre essa questão da ritualidade, agora dando ênfase ao aspecto
de formação da consciência corporal do artista cênico, especialmente, no sentido de se
apropriar de padrões de relação entre o som dos cânticos e movimentos corporais que levam
a uma ampliação da consciência e harmonização de grupo.
Não caberia neste estudo discutir a respeito do eterno conflito existente entre a religião
(ou a fé) e a academia (conhecimento científico), especialmente pelo fato de que as noções
de ritual e de sagrado superam o campo religioso. Por outro lado, o universo científico tem
cada vez mais ampliado os campos de conhecimento, de maneira que as fronteiras entre as
áreas da arte, ciência e espiritualidade têm se tornado cada vez mais tênues. Assim, com este
estudo investigo as formas de utilização de rituais como recursos metodológicos, ou seja,
como sugestão de processo, na construção da corporalidade cênica e do produto artístico,
focalizando, em especial, aspectos etnográficos e etnocenológicos e a relação existente entre
o som da voz e o movimento do corpo em práticas rituais xamânicas.
A observação participante se deu especialmente nos encontros bimestrais do Grupo de
Mulheres coordenado pela xamã Sylvie Handjiam (de nome xamânico Shining Woman),
3
Frase tirada de trecho de entrevista com um dos bailarinos da companhia BTCA.
4
Os grupos pesquisados foram o BTCA (Balé Teatro Castro Alves da Bahia)
4
, mais três grupos de dança
cênica contemporânea, um de Salvador (Gênesis) e dois de Recife (Experimental e Grial).
5
Quando uso o termo cênico, quero me referir a qualquer estilo que se encaixe nas categorias teatrais,
coreográficas ou ainda de dança-teatro.
16
próximo ao Vale do Capão (Chapada Diamantina - BA), cujas matrizes estéticas de dança-
música provêm de variadas tradições,
incluindo o repertório das Danças da Paz Universal,
mas com
a predominância de símbolos das tradições indígenas norte e sul-americanas.
Acredito que a apropriação estética, empírica, de um gesto físico, no caso, associação entre
o som e o movimento, presente nos rituais, como, por exemplo, as rodas de cura xamânicas
ou as danças-músicas-oração da Paz Universal, podem afetar domínios da existência, tanto
individual, quanto social, atingindo, portanto, a dimensão artística.
Ao refletir sobre a importância destas experiências sem fim e sem volta dos trabalhos
de campo da pesquisa, como também nas rodas de dança da vida, encontrei em Hans-Georg
Gadamer (Verdade e Método
6
), com sua hermenêutica filosófica, um entendimento sobre o
caráter existencial da experiência, sobre a apreensão de sentido que ela traz, sem
necessariamente chegar a conceitos, mas justamente ao mundo da pré-compreensão, ou
melhor, na auto-compreensão que o ser humano alcança como participante e intérprete da
tradição histórica. Saber da impossibilidade de compreensão da totalidade deste objeto, bem
como da possibilidade histórica de atualização dessa compreensão foi meu primeiro
despertar de consciência do meu papel de pesquisadora.
A mim caberia justamente tomar consciência da totalidade da minha experiência, e
assim o objeto se revelaria por si mesmo. Tornei-me consciente do fato de que, depois de
colocar meus depoimentos pessoais e de meus entrevistados e também de meus alunos,
outros entenderão tudo de maneira diferente, porém com sentimentos semelhantes, devido
ao caráter ontológico do ritual em nossas vidas. Com este trabalho que está na fronteira entre
arte e ritual, muitas vezes me sinto mais agida do que agindo, que o meu propósito não é
apenas meu, mas que é da humanidade, na medida em que entra em sintonia com o fluxo da
vida.
Como reconheceu Michel Maffesoli
7
, na pós-modernidade nós somos pensados, mais
do que pensamos; nós somos agidos, mais do que agimos; mas não somos passivos, pois
atuamos na não-atividade. É o princípio da interatividade que faz com que o objeto faça
aquilo que somos. Nesse sentido, a retomada de coisas antigas atualizadas, uma vez que o
passado está no futuro, permite fundar o elo social. Este autor propõe a metáfora da tribo
6
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. Petrópolis, Vozes, 1997.
7
Palestra ministrada na Facom (UFBA) em 1994.
17
para compreender os novos elos sociais, para compreender a simultaneidade entre o arcaico
e o tecnológico caracterizando as relações humanas.
Neste estudo utilizo o termo tribo para além da metáfora, como uma necessidade
humana de união, para o desenvolvimento de uma postura renovada em relação ao Planeta
Terra, uma postura de reverência e contemplação com este sistema vivo, do qual somos
pequenos organismos. Cabe à ciência e não à tecnologia, desenvolver uma nova ética e uma
visão holística que inclua todos os seres humanos e não-humanos no bojo dos
conhecimentos sobre a vida. No momento de mudança paradigmática pelo qual estamos
passando, cuja sinergia entre formas de conhecimento aparentemente distintas está brotando
em cada canto da nossa sociedade, encontro neste campo de estudo, uma combinação
dinérgica
8
entre arte, ciência e espiritualidade, tendência em fase de expansão e crescimento
na contemporaneidade.
Assim, a partir de um campo de estudo específico, tive a ajuda de outras áreas do
conhecimento para atingir o meu propósito nesta pesquisa teórico-prática, a qual inicia
localizando as danças-músicas-rituais na historiografia do teatro e da dança, bem como do
contexto considerado como não-artístico, para em seguida situar o contexto da dança-
música-ritual que venho desenvolvendo. Nas danças-músicas
9
reproduzidas e criadas com o
grupo cênico
10
, a partir dos elementos rituais encontrados no campo, o que interessa é
compartilhar e contribuir com as novas maneiras de estar junto artisticamente.
Propor ritual como estratégia metodológica para corpo e criação não é nada mais do
que seguir o que a vida tem solicitado e oferecido. Não há nada de novo no front, mas talvez
a consciência de que o ritual deve ser mostrado em toda a sua potencialidade, como algo que
não está isolado das várias dimensões da vida humana, como têm feito grandes mestres da
dança e do teatro, dentre eles Ruth Saint-Denis (1879 - 1968), Rudolf Laban (1879 - 1958),
Jerzy Grotowski (1933 - 1999), Peter Brook (1925-), Ariane Mnouchkine (1939 -), Renato
8
Ver em György Doczi (2000), Dinergia =do grego DIA- “através, por entre, oposto” e ENERGIA, Dinergia é
um processo criador de energia que transforma discordâncias em harmonias, permitindo que as diferenças e os
diferentes se complementem.
9
Termo utilizado por Helza Camêu. Introdução ao Estudo da Música Indígena Brasileira. Rio de Janeiro,
Conselho Federal de Cultura e Departamento de Assuntos Culturais, 1977.
10
Iniciado no segundo semestre de 2006, na disciplina Técnica de Corpo para Cena II, com alunos do curso de
Interpretação Teatral da UFBA. A segunda fase foi realizada no primeiro semestre de 2007, com alunos de
dança e teatro da UFBA, com a montagem Movimentos Cantados, com o apoio do MEC/Sesu- Programa
Jovens Artistas.
18
Cohen (1956 - 2003), Eugênio Barba (1936-), Rachel Karafistan (1974 -), e como alguns
têm considerado teoricamente a importância da relação entre o ritual e a performance
(ARTAUD, 1984; SCHECHNER, 1985, 1995, 2003; TURNER, 1974, 1982;
CAMAROTTI, 2001; MÜLLER, 1996, WEIZ, 2000), sendo que alguns destes situam-se na
interseção entre teoria e prática na medida em que teorizam sobre suas práticas ou buscam
fundamentá-la com noções teóricas importantes.
O que apresento aqui é uma maneira própria de articular simultaneamente o canto, a
dança-coral, a dança-teatro e o ritual, como fio condutor da harmonia gerada por estas
combinações. Em contrapartida, com o aparato teórico-prático das linhas de pesquisa sobre
o corpo, em especial o corpo cênico, me sinto confortável para experimentar as qualidades
do corpo xamânico na e pela investigação poética.
Em Christine Greiner (2005), temos que as tendências contemporâneas dos Estudos do
Corpo apresentam um caráter transdisciplinar entre diversas áreas. As áreas de estudo com
as quais esta pesquisa faz ponte são aquelas que considero próximas aos estudos do
movimento e os estados corporais, como as áreas de Antropologia Simbólica e do
Imaginário, Etnocenologia, Estudos da Performance, Etnomusicologia e a Antropologia da
Dança. A partir de diálogos entre as áreas complementares citadas, cuja metodologia
consiste quase sempre em estudos etnográficos, encontrei subsídios para uma prática cênica
ritual.
Se por um lado, desde a modernidade a arte da dança pretende ser cada vez mais
independente da arte da música, e tendo a necessidade de se legitimar enquanto área de
conhecimento autônoma, por outro lado, existe uma lacuna nos estudos rituais nos quais a
música e a dança são interdependentes. Os pesquisadores da Antropologia da Dança e
também da Etnomusicologia à qual aquela esteve ligada por muito tempo, têm percebido a
importância de um estudo das relações entre a música e dança em contextos rituais onde elas
não podem se separar. Em relação à música, é fato que nem sempre está ligada a uma dança,
mas toda cultura possui algum repertório de músicas utilizado para ser dançado. Sendo
assim, este estudo trata da relação de dança-música como sendo fundamental nos processos
rituais, tanto nos que foram observados e estão descritos no capítulo II, quanto os que
fizeram parte da prática cênica.
19
O mais interessante foi o encontro com o desconhecido que os rituais de danças-
músicas me proporcionaram. Superar os medos nesse percurso foi o princípio norteador dos
ritos de passagem da pesquisa, que muitas vezes se confundiram com os da própria vida.
Aceitar o que a vida me ofereceu durante a pesquisa me ensinou a abrir o coração. O maior
presente que recebi nesta trajetória foi o nascimento da minha terceira filha, Iami. De tão
familiarizada que é com a temática da pesquisa, desde um mês de idade me acompanhando
nos trabalhos de campo, Iami, hoje com dois anos e meio, sabe de cor - ação todo o
repertório de Gestos Cantados, reproduzindo graciosamente alguns movimentos,
confirmando a força que tem as memórias oral-corporais para a humanidade. Esta
apresentação auto-referente justifica-se pelo fato de que a experiência é um dos pontos mais
importantes dessa etno-metodologia ou prática pedagógica, na qual existe
[A] revelação do pesquisador como agente ativo naquilo que vem a conhecer.
Ao contrário da pesquisa positivista, as preocupações e as experiências do
pesquisador são levadas em conta. Por exemplo, minhas experiências de dança e
ensino modelam as questões que coloco para meus alunos. Além disso, entendo
as limitações de minhas experiências ou de minha “história de vida”. (Sherry
Shapiro, 1998, p. 35
11
)
Foi justamente ao longo destes anos de participação nos rituais que descobri minha
“própria música” e minha “própria dança” no sentido xamânico dos termos, reconhecendo
as minhas inclinações e motivações mais profundas, as quais me trazem alegria de viver, e
que me fazem sentir inteira, integrada, como nos esclarece uma das profissionais Laban da
atualidade, Peggy Hackney, que se aprofundou nos estudos sobre a noção de integração: “O
importante é que nós realmente nos empenhemos em questões que sejam mais importantes
para cada um de nós”
12
.
11
Em direção a professores transformadores: perspectiva feminista e crítica no ensino de dança. Tradução:
Mônica Martins. In: Revista Proposições- vol. 9 Nº 2 (26) junho de 1988. Universidade de Campinas-SP.
12
Frase retirada da tradução de Djane de Almeida Bessa e Djanice de Almeida Bessa, do texto original:
HACKNEY, Peggy. Making Connections. Total body integration through Bartenieff fundamentals.
Amsterdam: Gordon and Breach Publishers, 1998, p. 201-216.
20
INTRODUÇÃO
A pesquisa: Etnografia e Performance
Embora haja uma aproximação entre a Etnografia, um método de investigação
utilizado na Antropologia, e as Artes Cênicas, o foco principal deste estudo está na
compreensão e apropriação dos princípios rituais principais encontrados e a possibilidade de
sua aplicação cênica, performática, no corpo cênico de atores e dançarinos, alunos dos
cursos de graduação em interpretação teatral e dança. A partir dos conceitos de ritual,
xamanismo, dança-ritual, música-ritual, estados corporais, corpo de memória,
transformação, pessoa e grupo, a parte etnográfica da pesquisa foi sendo elaborada, com
breves descrições de alguns rituais, seguidas de comentários a partir da minha própria
experiência.
Parte considerável dos dados da pesquisa etnográfica trata da cosmologia dos
ensinamentos tradicionais dos povos nativos
13
norte-americanos, divulgados por Sylvie, nos
trabalhos do Castelar da Alvorada- Espaço de Consciência Criativa (Chapada Diamantina
BA), sendo outra parte proveniente do repertório de Danças da Paz Universal, que incluem
danças-músicas de várias tradições, em especial a tradição nativa do Oriente Médio
(LEWIS, 1993), consideradas como práticas de oração corporal, muitas delas traduzidas
para as línguas do Ocidente (DOUGLAS-KLOTZ, 1996, p. 28).
Foi difícil em alguns momentos distinguir que repertório provinha de que movimento,
devido à presença de canções em comum a ambos os rituais – das Danças da Paz e
xamânicos- realizados na Alvorada. Suspeito, no entanto, que, especialmente no que tange à
cultura indígena norte-americana, muitas músicas de seu repertório foram e ainda têm sido
incluídas no repertório das Danças da Paz, devido à beleza de suas letras e à qualidade
vibracional positiva de suas melodias. No apêndice 1 organizei um conjunto de letras dessas
canções, selecionadas de uma gama imensa, que não foram por mim registradas, mesmo as
tendo vivenciado.
13
Utilizo o termo “nativo” para me referir aos indígenas norte-americanos (México, Estados Unidos e
Canadá), uma vez que é assim como eles usualmente se denominam.
21
Embora o foco desta pesquisa não seja a Antropologia, mas a associação entre
Etnografia e Artes Cênicas, é importante justificar a escolha pela Etnografia como método
de investigação. Tal escolha deve-se à possibilidade de abordar os dados coletados de uma
maneira menos superficial possível. Ainda que exista um preconceito contra este método,
devido ao fato de que muitos etnógrafos ao descreverem suas experiências, o fizeram com
pouco rigor metodológico e científico, ao longo da historiografia da Antropologia, tanto a
pesquisa de campo quanto a etnografia têm sido defendidas como procedimentos básicos da
disciplina (PEIRANO, Marisa, 1995, GEERTZ, Clifford, 1978).
Para Geertz os cuidados na análise do material etnográfico e a elaboração de um
relatório não repousam em nossa capacidade de captar os fatos ocorridos em campo, mas
sim, na interpretação que a eles damos e na forma que encontramos para reduzir a
perplexidade. Ao inscrevermos o discurso social, transformamos os fatos de acontecimentos
passados, que existem apenas nos momentos de sua ocorrência, em relatos, que podem ser
consultados a qualquer momento, por qualquer pesquisador, o qual poderá também
reinterpretá-los. Na verdade, sob esta ótica, os textos antropológicos são as construções que
elaboramos, sobre as construções de outras pessoas. Assim, comenta Geertz:
Fazer a Etnografia é como tentar ler (no sentido de construir uma leitura de) um
manuscrito estranho, desbotado, cheio de clips, incoerências, emendas suspeitas
e comentários tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais do som,
mas com exemplos transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1978,
p. 20).
Por esta razão, Geertz afirma que não é apenas o método quem determina o êxito do
trabalho antropológico. Para ele, o que determina o empreendimento é o tipo de esforço
intelectual que ele representa, ou seja, “um risco elaborado para uma descrição densa”.
A exemplo de tantos pesquisadores cujas etnografias apresentam ricas interlocuções
teóricas (VIVEIROS de CASTRO, 1986; EVANS-PRITCHARD, E. E, 1978; TURNER, V.,
1974) é importante observar o papel que a pesquisa desempenhou nas trajetórias intelectuais
desses autores, uma vez que os dados da pesquisa não são apenas observados, eles são
revelados, não ao pesquisador, mas no pesquisador, causando verdadeiro impacto em sua
personalidade, desafiando conceitos estabelecidos. Em resumo, uma orientação conciliatória
entre a pesquisa e a teoria, faz com que os pesquisadores procurem o universal no particular,
identificando princípios gerais ou universais do comportamento humano, e formulem uma
idéia de humanidade construída pelas diferenças.
22
A metodologia deste estudo será apresentada em três momentos principais: a
investigação teórica historiográfica em arte-ritual e seus desdobramentos nas técnicas
corporais de formação do artista cênico, o trabalho de campo etnográfico e a experimentação
poética com ambiência em estúdio, este último com duas fases. Em resumo, temos:
1. Investigação sobre a arte-ritual e a conexão corpo e voz;
2. Pesquisa de campo e etnografia;
3. Aplicação cênica em dois momentos:
3.1. Estágio de Docência na disciplina Técnica de Corpo para Cena II, com alunos de
Graduação em Interpretação Teatral da UFBA (segundo semestre 2006).
3.2. Montagem de Gestos Cantados, com alunos de Graduação em Dança e Teatro
da UFBA, com apoio do Programa Jovens Artistas, do MEC (Primeiro semestre de
2007).
Durante o primeiro momento, as noções teóricas estudadas permitiram um
aprimoramento nas técnicas já conhecidas que têm origem nas áreas de dança e teatro. Estas
técnicas serão descritas brevemente no capítulo I, que reúne aspectos de minha experiência
anterior e alguns dados coletados ao longo da pesquisa, com base na sua pertinência para o
aprofundamento no objeto de estudo: ritualidade e relação corpo-voz.
No segundo momento, a utilização da observação participante, um método de pesquisa
da área da Etnografia, permitiu uma abordagem mais extensa das técnicas e princípios
rituais visando atingir o objetivo final da aplicação cênica, que constituiu o terceiro
momento da pesquisa, a saber, a integração de várias técnicas estudadas e vivenciadas
durante as duas primeiras fases no processo formativo/criativo de um grupo cênico. Esta
separação foi feita apenas para efeito de organização dos capítulos da tese, uma vez que
estes três momentos foram fluidos, intercambiáveis, inter-relacionados e muitas vezes
sobrepostos. Tanto a temática quanto a metodologia desta pesquisa parecem estar
materializadas num tempo tríbio, uma expressão usada por Gilberto Freire, para quem o
tempo geral seria sempre tríbio, sempre plural, um tempo em que os três tempos passado,
presente e futuro – se interpenetram (FREIRE, 1973).
Na metodologia da prática cênica, associada aos princípios e qualidades expressivas
das músicas e danças-músicas rituais da pesquisa etnográfica, a pesquisa de movimentação e
23
de sonorização se deu com o suporte das teorias de Rudolf Laban (1879-1958) e seus
seguidores, sobre os fatores e dinâmicas de movimento, os fundamentos corporais e a dança-
coral, bem como o suporte técnico de respiração/fonação. Além disso, foi necessário
aprofundar a relação corpo-voz a partir do estudo da relação do som com os chacras e as
respectivas regiões do corpo. No processo didático-criativo, associei os princípios dos rituais
(analisados no capítulo II) com temas de movimento de Laban e os fatores de movimento.
Como o objetivo aqui consistiu em fazer rituais artísticos a partir do corpo, a dança-coral foi
um princípio cênico que auxiliou os processos de investigação e de composição.
A utilização da expressão “dança-coral”, nesta pesquisa deve-se também ao fato de
que ambos os termos são explorados em seu sentido “primário”, o gestual dançado e o coral
de vozes. Este, por sua vez tem dois significados (união de vozes cantadas e de vozes do
corpo em movimento). Os movimentos e gestos são cantados e a ação vocal é realizada com
o corpo todo. Nesse sentido essa noção aproxima-se do caminho labanista
(LABAN/BARTENIEFF) de explorações vocais para ampliação expressiva (ver
FERNANDES, 2002, p. 60-63).
Uma das descobertas mais significativas da experiência de campo foi a de que algumas
práticas tradicionais xamânicas possuem muitas afinidades com práticas corporais da arte do
movimento iniciadas por Rudolf Laban. Grosso modo, coloco aqui alguns pontos de
convergência, os quais serão tratados mais demoradamente no capítulo III. Assim como no
sistema xamânico, a natureza em Laban é evidenciada como uma necessidade do corpo
universal, que faz parte do movimento da vida. Existe uma ordem cósmica natural, que se
reflete também no movimento. O senso de coletividade e de comunhão, inerente aos rituais,
é considerado como uma necessidade social do movimento corporal. Os estados
expressivos, que se referem às maneiras como o corpo dançante relaciona-se com os quatro
fatores de movimento (peso, fluxo, tempo e foco), possuem co-relações com os elementos
(terra, água, fogo e ar) reverenciados no xamanismo. Posso desde já adiantar que os mesmos
princípios norteiam as práticas observadas, as quais fazem parte tanto do sistema ritual -
xamânico indígena e das tradições do Oriente -, quanto do sistema cênico das técnicas
corporais sistematizadas. Cada uma ao seu modo, estes princípios nos fazem ir ao encontro
da fonte de vida que há em nós mesmos.
24
Espírito e Natureza são duas noções adequadas para compreender os princípios rituais,
estruturantes tanto da cosmologia indígena (norte, central e sul das Américas), quanto da
tradição nativa do Oriente Médio dos sufis, dervixes, rabinos, monges e cristãos, o que
permite uma abertura para um diálogo de sabedoria entre todas as tradições, que, embora
não digam a mesma coisa, possuem uma base comum relacionadas ao alcance de um
propósito para a humanidade, e juntas podem formar um coro multivocal universal. Em
outras palavras, estas são as raízes da cultura ocidental, baseadas na terra e, por
conseqüência, na afirmação do corpo, uma vez que a prática de oração corporal de danças-
músicas abre a porta para a experiência direta, incorporada. São práticas de sabedoria de
abrangência mundial das quais a sociedade, e não apenas a ocidental, se afastou na medida
em que se afastou cada vez mais da natureza, ou melhor, da sua própria natureza, já que tudo
está interligado. Estas sabedorias fazem o movimento para dentro de si, para o lado de
dentro, lugar de subjetividade, mas que tem profunda relação com tudo o que se manifesta
objetivamente do lado de fora.
O encontro com tais práticas e ensinamentos tem sido de fundamental importância na
compreensão da noção de corporeidade urbana, ocidental, globalizada. A respeito dos
diferentes “estados de corpo” proporcionados pelos rituais (vide capítulo II), é interessante
observar em que medida estes têm algo em comum com as modalidades de jogos corporais,
técnicas e performances das sociedades tecnológicas contemporâneas. Os sentimentos de
êxtase pela vida e de pertencimento ao todo parecem ser os pontos de convergência, que
ligam grupos sociais distintos a toda a humanidade e ao cosmos.
Após a experiência de campo no Castelar da Alvorada, justamente quando percebi em
mim uma pequena mudança ou abertura de consciência, o desafio foi o de juntar as
polaridades necessárias, ou seja, com uma linguagem simples, tentar integrar sentimento e
sabedoria, conhecimento e intuição, para descrever as “realidades”. É sabido que em todas
as épocas foi possível se relacionar ciência e mito, teorias científicas do presente e
compreensões místicas do passado, desde que a linguagem esteja aberta a múltiplos
significados simbólicos e poéticos. Esta tese delineou caminhos e diálogos entre as teorias e
as práticas, lembrando que “nenhum conhecimento é válido se não for vivido”, conforme o
Conselho dos Anciãos dos Cabelos Trançados, do qual Sylvie Shining faz parte (vide
capítulo II).
25
A partir da compreensão de que o xamanismo é um território epistemológico e não
uma metodologia de ensino de arte, no sentido que creditei à categoria ritual, tive o cuidado
de distinguir os conteúdos da vivência etnográfica dos conteúdos poéticos da corporalidade
cênica. Não tive a pretensão de fazer curso de formação em xamã e muito menos a pretensão
de formar xamãs, mas sim, de buscar a qualidade de um corpo e consciência xamânica para
o trabalho artístico, no sentido de como isto vem sendo abordado contemporaneamente,
como por exemplo, no trabalho de Rachel Karafistan (2003)
14
, que pesquisa as dimensões
xamânicas na prática teatral atual. A razão pela qual ela se interessou pelo conceito de
xamanismo é a de que algumas das características rudimentares desta antiga e mal
compreendida prática são similares à sua própria experiência como espectadora, atriz,
diretora e professora de teatro.
O xamanismo aqui é tratado como uma via legítima de conhecimento, uma via de
cognição corporal, uma estética que o especialista em xamanismo Gabriel Weiz (2000)
entende como uma arte e conhecimento do corpo. Nesse sentido, no corpo da tese, valorizo
os diferentes estados de corpo e estados de consciência, experimentados por mim em certo
grau na pesquisa de campo e num grau menor, durante a prática cênica. As noções de corpo
abordadas vão desde o corpo-conexão ao corpo-som-artista, passando por outras
possibilidades de ser corpo: corpo-de-memória, corpo-sagrado, corpo-cerimonial, corpo-
cosmogônico, corpo-xamânico, corpo-som-do-ser, e corpo-som-artista.
Chamada aos cinco pontos cardeais – a estrutura da Tese
Num esquema bachelardiano/xamanístico, esta pesquisa segue um percurso baseado
no princípio das quatro direções espaciais (sul, norte, oeste e leste), iniciando pelo Sul,
passando pelo Norte, depois o Oeste e chegando ao Leste, para terminar na direção Central,
que por sua vez, reúne as direções alto e baixo. A cada uma dessas direções corresponde
uma força rítmica básica, bem como um elemento da natureza, respectivamente, a água, o
ar, a terra e o fogo, e todos estes reunidos na direção central.
O trajeto entre as direções foi realizado através das polaridades, embora seguindo um
percurso espiral. Como numa espiral, estamos sempre passando por cada uma das direções
14
Professora da Universidade de Leeds (Inglaterra), de cujo curso com o título: “Do xamã ao ator”, realizado
pelo PPGAC (UFBA) participei.
26
na dança da roda da vida, recomeçando sempre de um ponto diferente, com outro estado
consciente de ser. O percurso através das polaridades das direções observadas nos rituais e
presentes também na teoria do espaço tridimensional do movimento corporal em Laban é
relativo aos eixos ou dimensões do corpo: sagital (do Sul para o Norte), horizontal (do Oeste
para o Leste), e vertical (acima e abaixo), passando sempre pelo centro, respectivamente
relativas à profundidade (trás e frente), largura (esquerda e direita) e altura (alto e baixo).
Nos rituais xamânicos observados, este trânsito entre as direções (do Sul, para o Norte, do
Norte para o Oeste e do Oeste para o Leste) significa a união entre a criança e o ancião (Sul
e Norte) e a união entre o feminino e o masculino (Oeste e Leste) dentro de cada um de nós.
Este percurso entre as direções remete ao modelo da espiral desenvolvido por Laban e
Bartenieff, baseados na proposição de que todo crescimento natural é espiralado, desde as
plantas até os universos. Assim, no percurso com as direções, quando chegamos ao Centro,
voltamos ao Sul, porém com outro ponto de vista. também a presença da não dualidade
no percurso, pois há um trânsito entre as direções que conecta a criança do Sul e o ancião do
Norte, da mesma maneira relacionando o feminino do Oeste e o masculino do Leste, sempre
passando pelo Centro. Da mesma maneira segue o trajeto da tese descrito ao longo dos
capítulos, apenas com a diferença do destaque dado à direção Central como capítulo
conclusivo.
27
Figura 02 – Diagrama das Direções da pesquisa
A associação entre cada capítulo e as direções ou pontos cardeais significa para mim
uma licença poética para descrever as várias fases da pesquisa e como me senti durante cada
uma delas, na medida em que experimentava a “dança da roda das direções” em todas as
dimensões da minha vida. No entanto, não há uma fronteira rígida fixando os pontos
cardeais. Como numa imagem fra
ctal, cada capítulo contém todas as
direções e o movimento de passagem por cada uma delas, de maneira que o objeto de
estudo ganha sua própria dinâmica no percurso de interiorização e exteriorização entre a
experiência ritual e a aplicação dos princípios na prática cotidiana, na prática cênica e na
escrita da tese.
Como nas escalas espaciais criadas por Laban, o percurso no espaço é mais importante
do que a permanência nos pontos estanques, embora a imobilidade também seja valorizada
como uma espécie de recuperação para o movimento seguinte. Na dança tanto quanto na
vida, existem transições, processo e fluxo, estruturas flexíveis ou abertas, ao invés de
28
rígidas
15
. Dentro desta compreensão, os capítulos da tese foram nomeados pelo percurso
entre os pontos cardeais. Aqui nesta pesquisa não se trata apenas de se achar o ‘norte’ na
bússola do conhecimento e da sabedoria. Depois de transitado pelo “corpo de memória”
trazido pelo Sul, pela ancestralidade do Norte e pela profundidade do Oeste, chegamos na
iluminação do Leste, inspirador da arte e da liberdade centrada da criação neste estudo. Foi
imprescindível passar por todas as direções que a pesquisa impôs, e se deixar encantar pelos
ritmos e movimentos que cada uma delas propôs, iniciando pela direção Sul.
A direção Sul ensina a restaurar a confiança através do humor. No Norte aprendemos a
reconhecer dons ou talentos individuais através da ligação ancestral. O Oeste é a direção
onde os padrões pessoais são assumidos e transformados em conhecimento. Com a direção
Leste podemos remover as atuais limitações e repadronizar o comportamento para expressar
o conhecimento. A direção Central, onde se faz a ligação entre o que está abaixo e o que está
acima, permite que se encontre a liberdade pessoal de criação poética.
Esta introdução, momento de abertura ao tema da pesquisa, está para mim situada ao
Sul. O Sul está relacionado à matéria emocional de nosso corpo físico, que é feito de
noventa por cento de água, portanto a matéria elementar que corresponde ao Sul é a água,
que por sua vez representa nossas emoções. Assim como a água é o elemento predominante
no Sul, a Terra é predominante no Oeste, mas o Sul também está relacionado à combinação
material que une a água à terra, ao elemento terra de nosso corpo físico, e, portanto, à
matéria deste estudo, ao recorte afetivo no objeto concreto de interesse no grande leque
oferecido a quem se destina a pesquisar algo.
A união da água com a terra a massa, diz Gaston Bachelard. “A massa proporciona
uma experiência inicial da matéria” (Bachelard, 1997, p.109). O aprofundamento na matéria,
paradoxalmente está desinteressado nas formas, ou melhor, explora o que está por trás das
imagens das formas e cores que se mostram, as imagens que se ocultam por trás da beleza
formal do ritual e da criação poética. Nesse sentido, a massa ou a matéria do objeto deste
estudo tem origem “numa causa sentimental, uma causa do coração” (Bachelard, 1997, p. 2).
15
“Diferente do que se pode pensar, Laban não baseou suas Escalas Espaciais em poliedros regulares rígidos.
Ele as desenvolveu a partir de “movimentos elásticos” de manipulações topológicas... Assim, as sequências
circulares e dinâmicas das Escalas Espaciais de LMA são campos de Espaçotempo distorcidos pela matéria”
(FERNANDES 2007, 34).
29
O primeiro capítulo – do Sul ao Norte – da Água ao Ar - trata do lugar dessa dança-
ritual na vida cotidiana e nas artes cênicas contemporâneas, situando também as propostas
sobre a relação entre o som especialmente o musical - e o movimento corporal, justamente
o movimento dançante. Embora separados grosso modo para fins de análise, esta relação
aqui também é tratada como interdependente. A noção de corpo-conexão será discutida com
a ajuda de especialistas nas questões que envolvem técnica corporal e consciência para a
cena, em especial Peggy Hackney (2000). À luz de teorias e propostas metodológicas de
disciplinas como a Etnocenologia, Antropologia da Dança e do Teatro, Estudos da
Performance, Etnomusicologia, bem como dos Estudos do Movimento e da Educação
Somática, identifico as correlações existentes entre cnica e criação, entre ritual e
performance, localizando os pontos em comum entre grandes mestres do teatro e da dança
quando de suas afinidades com as práticas corporais utilizadas, especialmente em Jerzy
Grotowski e em Rudolf Laban e seus seguidores.
O segundo capítulo – do Norte ao Oeste - do Ar à Terra - aborda os dados
etnográficos de campo, os aspectos rituais encontrados e reconhecidos como princípios
norteadores de uma experimentação cênica e da construção do corpo xamânico. Faço uma
reflexão sobre a importância da experiência, a partir da observação participante, como
também dos dados das entrevistas semi-estruturadas realizadas com participantes do
trabalho de Sylvie, em especial mulheres, incluindo também alguns homens.
A apresentação do material observado no campo segue uma seqüência não-linear,
algumas vezes apenas citando, outras descrevendo com detalhes cada tipo de ritual, mas
sempre abordando cada um de ambas as maneiras: uma descrição formal/ contextual e uma
impressão pessoal. O trabalho com os dados pode ser visto nas discussões sobre os trechos
de entrevistas apresentados, nas análises sobre o simbolismo dos rituais e dos significados
das danças-músicas rituais, bem como na identificação dos princípios rituais mais
significativos encontrados. Não se trata da Etnografia de um grupo, embora o Círculo de
Mulheres tenha sido o ponto de partida, mas sim, uma Etnografia dos rituais xamânicos
realizados por Sylvie Shining Woman e seus desdobramentos, em especial o repertório (que
em grande parte é o mesmo dos utilizados nos rituais xamânicos) das danças-músicas da
Paz, focalizados por Zelice Peixoto, fundadora da Alvorada e “comadre” de Sylvie.
30
O material das músicas pode ser resumido em dois grandes pilares: as tradições
indígenas norte-americanas (algumas brasileiras) e tradições nativas do Oriente Médio
(muitas em hebraico, aramaico e árabe, derivadas de práticas místicas judaicas ou sufis) e
ainda indianas. Ambas as tradições possuem apostilas rudimentares (ver no anexo 2 o
caderno de músicas da Dança da Águia em relação à tradição indígena) com seus repertórios
básicos, sendo que a das DPU possui um manual mais sistematizado, à medida que as
traduções vão sendo feitas por diversos colaboradores do movimento (ver em anexo os
informativos da Sangha - Rede Comunhão Brasil, e os da Roda Dança, que incluem artigos
sobre as Danças da Paz Universal, criadas em grande parte pelo americano judeu Samuel
Lewis (1886-1971) e as Danças Sagradas, pesquisadas pelo alemão Bernhard Wosien (1908-
1986).
A quantidade de dados, em especial, de letras de músicas de várias tradições,
excedeu a necessidade da fase de aplicação cênica espetacular. Por outro lado, foi preciso
passar por todas as experiências descritas no capítulo II, para que eu obtivesse uma
compreensão razoável do sentido e significado desse universo e cosmologia ritual. O Ritual
da Dança da Águia, em fevereiro de 2007, foi justamente o fechamento do ciclo de uma
pesquisa de quatro anos, uma vez que ofereceu um panorama esclarecedor de todos os
pontos duvidosos, na medida em que apresentava uma sistematização e organização
exemplar em termos de protocolos e passos a seguir.
O terceiro capítulo do Oeste ao Leste da Terra ao Fogo - relaciona os
princípios rituais com os fatores de movimento de Rudolf Laban, no sentido de sua
compatibilidade na possibilidade de criação de danças-corais-rituais. Descrevo o processo
metodológico ocorrido durante a disciplina Técnica de Corpo para Cena II, bem como a
experimentação poética da montagem cênica Gestos Cantados, realizada com alunos de
dança e teatro da UFBA, analisando a maneira como a cena se beneficiou dos recursos
extraídos dos rituais e suas matrizes étnicas, dando voz aos artistas participantes em seus
depoimentos pessoais, no que tange aos fatos da experiência estético-existencial e da
construção do corpo-som-artista. Por fim, discuto a relação entre o sistema ritual observado
e o sistema cênico, aprofundando a relação entre ritual e arte na cena contemporânea.
No quarto capítulo direção Central todos os elementos - teço as considerações
finais sobre a contribuição da aplicação das noções rituais xamânicas às artes cênicas, em
direção a uma mudança de consciência humana e existencial.
31
I. Do Ritmo Sul ao Norte: O Corpo Sagrado em Cena - reelaborando noções
FUNDAMENTOS
Da Água ao Ar
MUDE
Mas comece devagar,
porque a direção é mais importante
que a velocidade.
(Clarice Lispector)
Estando de frente para a direção Sul, aproximei-me afetuosamente do objeto de estudo,
observando sua temporalidade ao mesmo tempo tradicional e atual, duradoura e efêmera.
Agora, o trajeto da direção Sul ao Norte me convida a contemplar as águas navegadas e a
olhar os objetos, que não são novos, de maneira mais lógica, inclusive a pensá-los através de
outros pesquisadores, fazedores e pensadores Norte-adores que tratam das questões que
envolvem corpo, dança, performance, natureza e ritual.
O ritmo da direção sul é o ritmo cardíaco, e a estação é o verão, lugar e momento
propício para saber de-cor e de coração o ritmo sttacatto da criança interior, para ir com
coragem ao encontro do desconhecido para descobrir os dons e torná-los conscientes. Como
disse Derval Gramacho
16
, o papel das canções, em quase todos os rituais, é o de fazer
contato com a nossa parte criança, com a nossa parte inocente, com a nossa parte de poesia.
Como coloca Kay Cordell Whitaker (1995, p. 131):
Do coração, percebemos nitidamente, sem nenhum obstáculo ou juízo.
curiosidade e compaixão e igualdade lá. As dádivas de todas as direções juntas
formam os olhos do coração. Para conseguir isso, é necessário somente
começarmos a buscar nossa alegria. A dádiva do sul. É bom iniciar a viagem do
círculo por lá, pois a alegria, a canção, é a criação do coração. Cada direção
pode conduzi-la ao centro. Mas o sul é a mais fácil. Como um atalho.
O trajeto do sul ao Norte permite que a iniciada (pesquisadora) encontre os caminhos
que a levam a descobrir a sua própria canção e a sua própria dança, e porque não dizer, a
própria dança-música desta pesquisa. Sim, ela possui um corpo próprio. Assim como o ritual
se torna mais forte do que a nossa vontade, a pesquisa se torna bem maior do que o (a)
pesquisador (a) e a certa altura, parece o (a) conduzir para cada direção.
16
Um de meus entrevistados, que participou dos trabalhos iniciais do grupo misto do Riachinho (primeiro
espaço de trabalhos de Sylvie, junto com Zé Duarte), e autor do livro Magia Xamânica.
32
As noções e conceitos discutidos neste capítulo a partir de autores, mas também de
fenômenos sem autoria, porque provêm dos eventos “etnodramáticos” (WEIZ, 2000), ou
manifestações tradicionais coletivas, vão contribuir para identificar e delinear os próprios
caminhos desta pesquisa sobre e na dança-música-teatro-ritual. O termo danças-músicas por
mim utilizado foi cunhado por Helza Camêu (1977), no seu estudo sobre a música indígena
brasileira em sua observação de que há uma vinculação estreita entre a música e o
movimento na tradição indígena, onde a fórmula palavra, música e movimento - aparece
sistematicamente na música vinculada aos cultos:
A vinculação entre música e movimento não tem base no ritmo (...), como
dele necessita como elemento complementar da ação, pois quando a palavra é
insuficiente para exprimir idéias, definir coisas, o gesto surge instintivamente
como auxílio imediato, criando cenas, determinando proporções,
complementando imagens (CAMÊU, 1977, p. 12).
Segundo descrições etnográficas, se convencionou chamar de dança os movimentos
corporais associados ao coro musical, os quais estão em geral subordinados à formação de
rodas e filas, que se encontram e se afastam, com variações de acordo com as intenções dos
rituais, sejam eles propiciatórios, festivos, religiosos, guerreiros ou fúnebres. Assim, se os
torés podem ser compreendidos como manifestações de dança-música, da mesma maneira
estou tratando as Danças da Paz Universal como rituais de danças-músicas, uma vez que são
“originalmente” vinculadas às músicas.
1.1. Noção clássica e contemporânea de Ritual
Em algumas sociedades, os ritos podem separar e dividir as pessoas, em outras
podem juntar. Na nossa sociedade ocidental, brasileira, temos poucos momentos de
agregação, pouco espaço para a ritualização das nossas relações, sendo a atividade artística,
uma dessas possibilidades. A necessidade da arte parece ter ligação com a necessidade de
ritual entre os povos.
Antes de apresentar o meu entendimento sobre dança-ritual, convém justificar a
utilização do ritual, tendo em vista a atualização desta noção para o mundo de hoje,
considerando a existência de múltiplas definições e análises clássicas do termo ritual pelos
33
antropólogos. A definição mais conhecida de ritual está vinculada a crenças ou em poderes
místicos, dada por Victor Turner
17
:
O ritual é, em suas expressões trans-culturais mais típicas, uma sincronização de
muitos gêneros performativos, e é requisitado freqüentemente pela estrutura
dramática, uma trama, freqüentemente envolvendo um ato do sacrifício ou do
auto-sacrifício, que energizam e dão a coloração emocional aos códigos
comunicativos interdependentes que expressam em maneiras múltiplas o
significado inerente ao leitmotiv dramático.
O termo leitmotiv, explica Renato Cohen, é originário da música e literatura: uma
primeira tradução possível seria vetor, dando conta dos diversos impulsos e tracejamentos
que compõem a narrativa. São temas recorrentes que percorrem toda a narrativa (COHEN,
1998:25). Seria o mesmo que mitema, em Gilbert Durand (1997).
Embora sem descartar os conceitos-chave dessa célebre definição, recorro à Marisa
Peirano como uma maneira de abster-me da responsabilidade de escolher uma definição
para o termo ritual. Peirano (2000c) entende que os estudos de rituais, quando
transplantados dos estudos clássicos para o mundo moderno, assumem outro significado
teórico. Se o foco era antes direcionado para um tipo de fenômeno considerado não rotineiro
e específico, geralmente de cunho religioso, amplia-se e passa a dar lugar a uma abordagem
mais ampla. A autora lembra ainda que em razão da ênfase na perspectiva etnográfica é
preciso salientar que não compete aos antropólogos definir o que são rituais. Sua definição
pode ser relativa, nunca absoluta ou a priori; ao pesquisador cabe apenas a sensibilidade
de detectar o que são, e quais são os eventos especiais para os nativos (sejam “nativos”
políticos, o cidadão comum, até cientistas sociais).
No entanto, penso que poderia esboçar uma noção de ritual que seja apropriada ao
tema desta tese. Assim uma definição provisória de ritual seria essa: uma forma geral de
expressão da sociedade e da cultura, o que possibilita a emancipação do rito do contexto
religioso no qual costumava ser enquadrado. Nestes estudos de e nos rituais, o meu foco de
atenção está nas três fases principais dos rituais de passagem de Van Gennep (1977),
comprovadas por Turner (1974): separação, liminalidade e reintegração, que serão
discutidas no capítulo II.
17
Tradução livre do texto original:
Ritual is, in its most typical cross-cultural expressions, a synchronization of
many performative genres, and is often ordered by dramatic structure, a plot, frequently involving an act of
sacrifice or self-sacrifice, which energizes and gives emotional coloring to the interdependent communicative
codes which express in manifold ways the meaning inherent in dramatic leitmotiv (TURNER, 1982, p. 81).
34
Todo rito atualiza algum mito e o mítico é sempre a manifestação do sagrado, mas
nem sempre o sagrado está relacionado com o rito religioso. Uma coisa semelhante parece
acontecer com o sentido de sagrado que permeia a obra de arte, bem como algumas práticas
preparatórias rituais sonoro-gestuais existentes ao longo da história da encenação artística.
Para além do “ritualcentrismo” criticado por Jean-Marie Pradier (2000), que gerou a
atitude romântica de retorno às prováveis origens rituais do teatro, recorro ao ritual como
fonte de motivação do comportamento humano, como fundamental, não apenas à
performance, mas ao ser humano. Assim, o sentido de communitas tem aqui importância
fundamental, na medida em que “a communitas tem uma qualidade existencial, abrange a
totalidade do homem, em sua relação com outros homens inteiros” (Turner, 1974a: 155).
As afinidades entre os estudos antropológicos teatrais e etnocenológicos, as
abordagens da Etnomusicologia e da Antropologia da Dança contribuem aqui para encontrar
algumas questões ontológicas do ser humano, ou em termos do que Richard Schechner
(1995b, p. 262) pergunta sobre o que é que define a espécie humana. Assim como John
Blacking descobriu a natureza cognitiva-musical do ser humano, Rudolf Laban estudou a
natureza do movimento corporal, Nicolai Evreinov (apud Pradier, 2000, p. 53) considerou a
teatralidade como instinto primordial, Jerzy Grotowski explorou a qualidade humana dos
sonhos performados (falados, dançados, cantados, atuados), Turner compreendeu a
necessidade do drama social ritualizado e a antropóloga Mary Douglas reconheceu que o ser
humano é um animal ritual.
1. 2. Os lugares e as matrizes da dança-ritual
O termo dança-ritual é bastante abrangente, por não estar limitado a uma época
histórica, nem a um gênero artístico que lhe suas especificidades. Assim tivemos que
delimitar este campo o vasto e construir aqui uma noção provisória de dança-ritual
compatível com o que pode ser observado tanto nas tradições culturais, quanto nas obras
artísticas. A noção de dança-ritual aqui presente foi construída a partir do corpo, mais
precisamente do corpo-sagrado em cena nos rituais sonoro-gestuais, sejam eles considerados
artísticos ou simplesmente sociais/culturais pelo senso comum.
35
Considerando o ritual como sendo uma manifestação que inclui necessariamente
alguma tradição cultural corporal, especialmente que associa o canto e movimento dançante
ou teatral, fica fácil compreender a afinidade que os rituais têm com as artes cênicas
especializadas, de maneira que, por outro lado, se torna difícil analisá-los separadamente.
Quando se trata do artista de formas tradicionais do oriente, é sabido o quanto essa
separação é tênue, quando o performer acredita estar incorporando o deus que está
representando para a platéia também confiante. No ocidente as tradições rituais sempre
foram fontes de motivação e restabelecimento de energias estéticas, como numa espécie de
encontro com o elo perdido como o longo período em que se confundiam ritual e
representação dançada ou dramatizada.
Na sua forma tribal, independente de serem reconhecidos como arte, o teatro e a dança
já existiam em templos-teatros e muitos remanescentes permanecem até hoje, como o
Kathakali indo-tibetano, ou o Bumba-meu-boi nordestino brasileiro. Mesmo antes dos
gregos conferirem legitimidade à profissionalização artística, sabe-se da existência da
dimensão estética e mesmo artística, cênica, altamente elaborada entre culturas arcaicas.
Considera-se que os sacerdotes ou xamãs das tribos antigas de todos os continentes, eram
atores e dançarinos qualificados.
Mas é entre os gregos, no século V a.C. que esta comunicação entre o artista e a
divindade ou a comunidade vai ser desenvolvida. A união entre poesia, música e movimento
das danças dionisíacas gregas parece ter deixado marcas no imaginário ocidental das artes
cênicas. Que artista cênico nunca imaginou um ditirambo
18
, cantado e dançado em roda ao
redor de um altar de Dionísio?
Paul Bourcier (1987) aponta um percurso evolutivo para as danças dionisíacas, como
tendo se transformado tanto que antes de ter se tornado ato teatral elas já haviam perdido seu
aspecto sagrado. Nota-se, entretanto que o caráter ritualístico dos coros na tragédia grega
permanecia de maneira legítima. Na visão de Nietzsche, filósofo alemão que influenciou
formalmente a teoria e prática de dança de Laban, o coro da tragédia grega era o símbolo de
18
O ditirambo era uma canção poética a Dionísio sobre a luxúria pela vida na primavera, que unia o som da
flauta e o canto coral, que acompanhavam uma dança sagrada circular.
36
uma multidão em estado dionisíaco
19
, que através do simbolismo da dança, do som e da
palavra
20
, apresentava uma fusão entre o individual e o macrocosmo.
Além dos rituais dionisíacos terem sobrevivido de certa maneira na tragédia grega,
outros rituais continuaram existindo, os cultos a outros deuses continuaram com seus ritos
próprios de canto e dança dramatizada. Ainda durante alguns séculos havia danças-rituais
para todas as ocasiões da vida social, como por exemplo, a fertilidade, os nascimentos, as
núpcias, passagem para outro status social. Acredita-se que estes rituais se transformaram
em danças-espetáculo, não apenas na Grécia, como em outras civilizações antigas. A dança
do ventre é um exemplo de uma dança ligada ao ciclo feminino e em homenagem à deusa
Astharte (deusa babilônica que simbolizava a terra e a fertilidade, a morte e a
transformação), que perdeu seu caráter lunar feminino para se configurar mais como
entretenimento. Por outro lado, a inserção crescente da dança do ventre no âmbito artístico
tem trazido uma qualidade ritual poderosa para quem a pratica.
Em relação ao teatro, é dominante a opinião de que em muitas culturas o teatro teve
origem na dança sagrada e nos movimentos miméticos associados a ela. Estou focalizando
aqui principalmente as formas em que houve a reunião de linguagens, sem negar o fato de
que as transformações ocorridas com a dinâmica cultural tornaram-nas independentes, como
observou Mário de Andrade (1959) nas suas pesquisas sobre manifestações que chamou de
danças dramáticas brasileiras.
Se a urgência crescente de civilização transformou por completo ou exterminou quase
todos esses rituais corporais de celebração de vida, alguns desses rituais que conseguiram
ser transmitidos geração após geração, o fizeram devido a muita proteção de suas
tradições. Isto não vale apenas para o lugar que foi berço de nossa civilização, mas
19
Ver em Kew (1999:75), que a obra O Nascimento da Tragédia de Nietzsche influenciou Laban por advogar
uma regeneração da cultura alemã através de um despertar do espírito dionisíaco. Laban encontrou nos coros
gregos que a combinação dos 3 princípios de dança, som e palavra formavam a base fundadora de sua prática
de dança. Também nos estudos de Nietzsche sobre a Grécia pré-socrática são apresentadas suas interpretações
do dionisíaco e do apolíneo. Apolo representava as artes marciais e Dionísio era celebrado em cultos/teatrais
de festivais de primavera representando renascimento e renovação. Originalmente performados por amadores,
essas danças dionisíacas de abandono extático eventualmente se tornavam coros de dança da tragédia grega,
com os dançarinos fazendo a mediação entre atores e a audiência numa celebração comunitária
festiva/artística.
20
A dança coral característica da tragédia chamava-se emmeleia e era executada ou com acompanhamento
cantado por cantores e sicos ou eram os próprios dançarinos que cantavam e dançavam versos lírico-
coreográficos.
37
principalmente para os valiosos segredos culturais de nossos ancestrais pertencentes a
diversas matrizes étnicas formadoras dos povos do ocidente.
Sem deixar de lado a qualidade estética destes fenômenos, considero que os padrões
sonoro-gestuais que permitem uma harmonização do coletivo estão intrinsecamente
relacionados à noção de “matriz estética” desenvolvida por Armindo Bião (2001):
A noção de matriz estética (...) tem como base a idéia de que é possível definir-
se uma origem social comum, que se constituiria, ao longo da história, numa
família de formas culturais aparentadas, como se fossem “filhas de uma mesma
mãe”, identificadas por suas características sensoriais e artísticas, portanto
estéticas, tanto num sentido amplo, de sensibilidade, quanto num sentido estrito,
de criação e de compreensão do belo”.
O movimento xamânico atual vem justamente ao encontro dessas matrizes estéticas -
ritualísticas e sagradas das danças. Por conseguinte, o fato de levar para a representação
cênica conteúdos de diversas tradições está em consonância com a terceira função do
treinamento intercultural do ator enfatizada por Richard Schechner (1995a, p. 247):
A terceira função do treinamento (...) é a preservação do conhecimento secreto.
Os métodos de representação são valiosos e pertencem a famílias específicas ou
a grupos que guardam cuidadosamente seus segredos. Ser selecionado para o
treinamento é ter acesso ao conhecimento esotérico, poderoso e bem guardado.
Treinamento é o elo com o passado, com outros mundos e com o futuro.
Para Schechner, esta terceira função - a erudição dos segredos - somente pode ser
adquirida pessoalmente, pois é um processo muito íntimo, semelhante ao trabalho dos
xamãs. O conhecimento esotérico leva o indivíduo a reconhecer o sagrado e a divindade
dentro dele e está intrinsecamente ligado ao processo de autoconhecimento. As outras
funções do treinamento seriam a interpretação, a transmissão de textos de representação, a
auto-expressão e a formação de grupos. Nesse sentido, os atores precisam ir buscar este
ensinamento direto na fonte, se quiserem aprofundar e chegar ao “centro da cultura”, como
faz o “xamã-ator”, no sentido usado por Schechner. Tais funções do treinamento colocadas
pelo autor permitem uma aproximação entre técnica e criação na arte do corpo.
Embora a representação xamanística possa ser considerada a forma embrionária do
teatro, é principalmente através das danças e dos cânticos que o xamanismo da “Nova Era”
(A. N. TERRIN, 1996) vem se projetando e se investindo com novos significados para os
adeptos, provenientes de todos os continentes. Noção a ser desenvolvida e aprofundada no
38
capítulo II, xamanismo refere-se a um conjunto de práticas rituais, mas, sobretudo um vasto
leque de ensinamentos tradicionais provenientes de várias culturas e povos nativos, em
especial indígenas, com o objetivo atualizado de promover uma mudança de consciência nas
pessoas consigo mesmas, com as suas relações e com planeta Terra.
1.2.1. Rituais de Danças pela Paz: uma abordagem xamanística
Em sincronia com um movimento holístico em nível mundial, podemos encontrar na
Bahia um razoável número de rituais que incluem o canto e a dança. Estas manifestações
estão quase sempre associadas a algum tipo de celebração do feminino, como podemos
observar nas danças coletivas, circulares e sagradas, nas danças de lua cheia e outros
movimentos rituais, embora longe do palco. Como exemplo mais significativo deste
fenômeno temos os diversos rituais desenvolvidos por Sylvie Handjiam (Shining Woman),
especialmente junto ao Círculo de Mulheres, existente cerca de vinte anos consecutivos.
A partir deste movimento xamânico, descrito detalhadamente no capítulo II, surgiram
outros, contribuindo também para que seguidoras pudessem aprofundar-se em caminhos
ritualísticos afins.
Em torno desta abordagem xamanística aberta e sem fronteiras étnicas, há muitas
pessoas naturais da Bahia que vêm desenvolvendo seus próprios trabalhos, como é o caso de
Zelice Peixoto, uma entre tantas xamãs na Bahia, que tem levado ao Círculo de Mulheres
(em especial o grupo liderado por Sylvie no Capão) e mistos (Salvador), os resultados de
suas pesquisas com danças e músicas tradicionais de vários países, e Rhavina Melo, que
desenvolve um projeto social e educativo com as Danças da Paz, na Fundação Terra Mirim,
fundada pela xamã Alba Maria, localizada no município de Simões Filho, próximo de
Salvador. Outro tipo de atualização ritual que regularmente em Terra Mirim e em
Salvador é a dança budista Mandala de Tara, uma dança-meditação budista cantada e
dançada principalmente por mulheres, mas destinada a ambos os sexos, que evoca a energia
feminina do Oriente, presente nos vinte e um atributos da deusa tibetana, focalizada por duas
senhoras do Hawai, Prema Dasara e Anahata Iradah, instrutoras internacionais
respectivamente das Danças da Paz e a da Associação de Tara.
O que há em comum nestas manifestações rituais é a importância dada ao arquétipo do
feminino, a aproximação entre o feminino, a terra mater e a natureza. Tradições antigas de
39
veneração da terra mãe estão sendo reatualizadas. Nelas encontramos mitos e deusas
indígenas, egípcias, greco-latinas, hindus, orientais como fazendo parte de um mesmo
panteão de uma cultura da deusa, não apenas sob o ponto de vista do inconsciente, mas a
partir da redescoberta contemporânea dos valores simples e profundos, enfim, ligados aos
princípios universais da natureza.
Não posso deixar de citar o trabalho de Marta Bezerra, seguidora da técnica do
Contato Improvisação, que realiza o evento Dançando nas Montanhas na Chapada
Diamantina, de maneira semelhante ao que Anna Halprin faz na Califórnia
21
. Durante o
carnaval essas vivências dançantes proporcionam uma abertura para o autoconhecimento
através do contato com a natureza dos rios, pedras e árvores. Esses espaços se tornam altares
onde é permitido ritualizar a experiência humana e atualizar mitos pessoais e coletivos.
Manifestações rituais de dança-canção ou dança-música afloram em cada canto de
cada cidade de Salvador, tendo o Candomblé como maior exemplo de manifestação que
reúne espetacularidade e vida cotidiana. Movimentos holísticos de várias tradições e países
que têm o ritual como base estão na epiderme da cidade, de maneira informal, muitas vezes
de difícil acesso, mas que estão suprindo a necessidade ontológica de ritual para alguns
grupos humanos, tendo como objetivo mais amplo, o cultivo da paz.
Parece que estas manifestações rituais se protegem por uma questão de sobrevivência e
manutenção da alteridade. O que fica na superfície desses rituais são justamente os cânticos
e as danças, aparentemente visíveis para a sociedade em geral, principalmente quando
levadas a um contexto cênico mais específico da arte, mas nem sempre são consideradas
arte. Estas danças rituais são legitimadas no âmbito artístico e acadêmico sob o nome de
populares ou folclóricas, ou ainda étnicas. Transitam de maneira transversal na universidade,
ora sendo interpretadas como religião, ora como terapia, e menos como arte ou
conhecimento. Parece não importar mais o fato de que as fontes da dança de espetáculo
ocidental foram as danças comunitárias, ritualísticas, chamadas folclóricas, numa época em
que ainda estava muito recente a utilização do adjetivo “popular” para designar a oposição
às ciências letradas.
21
Veja o site http://www.annahalprin.org/
40
1.2.2. Danças da Paz Universal e Danças Circulares Sagradas
Embora possamos pensar nas danças de roda como um todo, vale salientar que existem
dois movimentos distintos, com muitos pontos de interseção entre eles. Tanto as danças
denominadas de Danças Circulares Sagradas (DSC) como as Danças da Paz Universal
(DPU), sejam elas cantadas ou tocadas, são sempre dançadas com o significado de ritual e
celebração, nos fazendo experimentar a sabedoria de povos antigos. Grosso modo, uma
subdivisão tem sido feita pelos praticantes de ambos os movimentos nos quais as categorias
seguintes estão incluídas: danças xamânicas, danças de “raízes”, danças de tara, danças do
tarô, danças de roda infantis.
Nas danças circulares
22
, mais recentemente intituladas “Danças Circulares dos Povos”,
ou simplesmente “Danças de Roda dos Povos”, embora de tradição oral, as músicas foram
sistematizadas e registradas de maneira mecânica, sendo transmitidas com o
acompanhamento de fitas cassetes ou CDs, com exceção das músicas cantadas indígenas e
afro-brasileiras incluídas recentemente no repertório, sistematizado pelo alemão Bernhard
Wosien (1908-1986), que pesquisava danças folclóricas da Europa, adaptando-as à formação
circular, influenciando a comunidade de Findhorn, na Escócia.
as Danças da Paz Universal (DPU), movimento iniciado pelo americano sufi
Samuel Lewis, influenciado por Ruth Saint-Denis, que trouxe para a dança moderna
americana a cultura oriental, são importantes dados de minha pesquisa de campo, presentes
em quase todos os rituais observados, em diferentes contextos. Tive como mentora Zelice
Peixoto
23
, que difunde tais práticas no Vale do Capão, na Chapada Diamantina, inclusive
acompanhada de suas mentoras, a Sheikha Christina Sabira e a Murshida Mariam Baker. As
22
Utilizo as danças circulares como dinâmica de grupo em minhas aulas, desde a primeira vez que tive contato
com algumas delas, com a professora Maria Cristina Bonetti, em Goiás, e depois com a equipe do Cenap, no
Recife e ainda com Sirlene Barreto, em Salvador. O artigo de Renata Ramos (2002: 182) Retorno à Fonte
esclarece a ligação entre as danças circulares sagradas e as danças chamadas folclóricas: O movimento das
DCS, além de incorporar as danças folclóricas, passou a criar novas coreografias baseadas nos passos e
expressões já existentes nas mesmas. Essas novas coreografias chegam até nós carregadas desses simbolismos
já adaptados à nossa cultura atual, cultura em que o enfoque psicológico tomou rumos alarmantes.
23
Apesar de ter conhecido primeiro as Danças Circulares Sagradas, escolhi as Danças da Paz Universal para
aprofundamento, tendo Zelice Peixoto como mentora, com a qual tenho tido supervisão bimestral no grupo de
estudos de Salvador. Tive uma noção mais completa desta rede universal das Danças da Paz durante o II
Encontro das Danças da Paz que a mesma realizou na Alvorada, de 2 a 10 de setembro de 2006. Existem
grupos de Danças da Paz em 25 países, inclusive na Rússia, nas Repúblicas Bálticas, na Ucrânia, na Polônia e
na Hungria. O Brasil também tem a sua Rede Brasileira das DPU, que coliga grupos principalmente em Minas,
São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Santa Catarina e Rio Grande do Sul.
41
danças-canções nesta linha de abordagem são tratadas por Zelice à luz do xamanismo, não
apenas pelo fato de ter sido uma das fundadoras do Círculo de Mulheres, mas também pelas
afinidades que existem entre os rituais xamânicos e o conteúdo trazido pelas práticas das
Danças da Paz. Mais tarde constatei que esta relação não é fortuita. O próprio Samuel Lewis
(1993) inicia o primeiro capítulo de seu livro justificando a origem das Danças da Paz nas
danças ghost dos índios Arapaho. Assim como os dançarinos fantasmas nativos norte-
americanos, os primeiros dançarinos da paz em São Francisco focaram seus movimentos e
vozes para trazer paz e justiça para a Terra
24
.
Além da missão de propagar as danças como fonte de paz profunda, o Centro das
Danças e Treinamento, criado por Douglas-Klotz, em 1982, na Califórnia, retoma o desejo
de Samuel Lewis, de reatamento da tríade “Atuação-Liturgia-Ritual”. Para ambos, o ideal
seria que essas danças fossem a própria religião de homens e mulheres livres, e que pudesse
curar tanto as discriminações de ordem sexual, culturalmente arraigadas, como prover um
fórum livre de celebração do que de melhor e mais profundo as tradições sagradas têm
proporcionado à humanidade.
Apesar de não terem intenção de se tornarem performances, desde a década de 1960,
por ocasião de um convite feito a Samuel Lewis e ao seu grupo de dança composto por ex-
hippies para uma apresentação no aniversário de um clube de danças folclóricas em San
Francisco, as DPU passaram a acontecer como performances públicas, em parques, catedrais
e templos da Califórnia.
Mesmo tendo conhecimento de ambos os movimentos (DSC e DPU), comprovei nesta
pesquisa que as DPU são mais eficientes, no sentido da objetividade do ritual, uma vez que
o movimento é acompanhado apenas pelos cantos, pela voz cantada, sendo que o corpo atua
nos dois registros de movimento, ao mesmo tempo sonoro e gestual. As danças chamadas de
xamânicas se inserem neste movimento das DPU, pelo fato deste movimento ter sido
inspirado originalmente nas canções dos nativos norte-americanos, antes de pesquisar outras
tradições de outros países. Quase todas as danças-canções incluídas nesta categoria danças
xamânicas, são relativas à terra, aos elementos da natureza, aos ancestrais, ao céu, à lua, ao
sol, enfim, às energias vitais universais. Observa-se, por exemplo, que as rodas de toré
24
Ver mais sobre as Danças Circulares e da Paz no Brasil no site http://www.semeiadanca.com.br/hist
(acessado em 20 de outubro de 2007)
42
nordestinas estão inseridas recentemente no repertório das DPU, como também no repertório
xamânico da Alvorada.
A transmissão das Danças da Paz Universal é geralmente feita nos moldes da tradição
oral, ou seja, como as músicas são cantadas, recomenda-se que sejam sempre passadas de
pessoa para pessoa, e não através de gravações de fitas ou CDs, sendo escassas as formas de
registro mecânico. É uma maneira de valorizar a prática da transmissão direta entre os
mentores e os receptores, como sendo a única via legítima de sabedoria. Tais letras de
músicas estão transcritas nesta tese, algumas sem o acompanhamento das partituras, mas
podem ser apreciadas quanto ao conteúdo das mensagens. Recomenda-se que elas não sejam
reproduzidas sem antes terem sido vivenciadas. A título de ilustração, algumas partituras
podem ser vistas nos anexos 3.1. ao 3.4., relativos aos informativos da Sangha, bem como
no anexo 4, que apresenta alguns exemplos retirados do livro de Samuel Lewis, Spiritual
Dance and Walk (1993). Algumas músicas que foram utilizadas por mim durante a
aplicação cênica poderão ser ouvidas no DVD de Gestos Cantados, também anexado a esta
tese, o que permite ter uma idéia das sonoridades dessas canções tradicionais.
O repertório de ambos os movimentos das danças (DSC e DPU) tem crescido com a
entrada de muitos brasileiros também formados por esta linha, mas que têm desenvolvido
coreografias honrando as três principais matrizes formadoras da cultura brasileira: a
indígena, a africana e a portuguesa. Entre essas danças, consideradas “de raízes”, estão as
cirandas, os torés, os afoxés. Este termo “raízes” é bastante polêmico, especialmente se
considerarmos o fato de que todas as outras danças também provêm de raízes étnicas ou
matrizes culturais específicas. Assim, considero neste estudo estas últimas danças (as DPU)
também como xamânicas.
Vale salientar que no repertório das DPU, as danças são todas cantadas. no
repertório das danças circulares sagradas, existem algumas danças cantadas, que fazem parte
do repertório mais recente, fruto das pesquisas etnocoreológicas da cultura brasileira. O
aprendizado de ambas as vertentes de rodas de dança exige uma formação sistematizada
43
(DCS)
25
, com cursos regulares ou encontros semestrais prolongados, com mentores
associados à rede internacional (DPU).
Segundo Laerte Willmann, em seu artigo Danças da Paz Universal,
Dançar em círculo é uma das mais antigas e mais simples das modalidades de
comunhão grupal. O círculo iguala a todos, permite que todos se vejam e que
alcancem a mesma vibração conjunta, o mesmo ritmo, em harmonia e unidade,
exterior e interior. Os passos básicos são andar em círculo, se mover em direção
ao centro ou se afastar dele, girar individualmente ou em duplas. Os
movimentos podem incluir gestos, chamados mudras, que são um simbolismo
gestual muito comum no Oriente. Por vezes a roda é feita com as mãos sobre os
ombros, como um ritual de solidariedade e companheirismo, ou com palmas das
mãos sobre o centro do coração, como símbolo de unidade e reverência, ou com
os braços levantados para o alto, num gesto de alegria e de abertura para o
Infinito, ou as mãos dadas, como um gesto universal de amizade. A maior parte
das danças pode ser acompanhada por violão, percussão ou flauta, mas é o canto
dos próprios participantes que estabelece a base da música para a dança.
Em 2006 participei de uma aula demonstrativa na Escola de Dança da UFBA sobre
Danças da Paz Universal com a dupla citada Prema e Anahata, que estavam divulgando
para os alunos da escola de dança o workshop que iriam ministrar na Fundação Terra Mirim.
Elas realizaram algumas danças-músicas introdutórias do repertório existente e divulgado
por muitos focalizadores no Brasil. Embora houvesse prazer em participar e reproduzir os
modelos sonoro-gestuais oferecidos pelas havaianas, o grupo de alunos parecia valorizar
mais uma dança elaborada e criada por eles próprios e que pudesse ser considerada arte.
No entanto, o ritual e a arte se encontram e se separam incontáveis vezes ao longo da
história da humanidade. Assim como acontece um conflito eterno entre religião (fé) e
academia (conhecimento), a discussão da relação entre religião e arte sempre retorna,
provocando um questionamento sobre a fragmentação ou a totalidade do conhecimento.
Separar arte e ritual é considerado particularmente difícil por Schechner (2003), de maneira
que os rituais de uma cultura numa determinada época são obras de arte para outra cultura
noutro tempo. A exemplo de tantos cultos com música, dança e oração, performances
rituais que possuem uma forte dimensão estética, mas não são necessariamente arte para
quem os pratica. Muitos reconheceram a riqueza da espetacularidade dessa combinação,
independente da existência de uma concepção burguesa de “arte contemporânea” separada
25
A transdisiciplinaridade, orientação da filosofia educacional da UNESCO para a paz, é o princípio das
danças sagradas, a partir do qual, para se ter uma abordagem real do conhecimento, é preciso aprender o
espiritual, científico, filosofia, artes e tradição.
44
da arte feita pelo povo. Camarotti (2001) chamou de “teatro do povo do Nordeste” todas as
manifestações rituais observadas por ele como sendo um misto de canto, dança e
declamação. Nesse sentido, a descoberta de rituais performativos entre os indígenas
brasileiros, por exemplo, tem motivado profissionais de organizações não-governamentais a
levarem ao palco as cenas rituais tais quais acontecem nas aldeias, como é o caso do IDETI
(Instituto das Tradições Indígenas, fundada por grupos indígenas) com o projeto ‘Rito de
Passagem: canto e dança ritual indígena’, apresentado no Solar do Unhão, em Salvador, em
janeiro de 2007.
A despeito de algumas críticas que se possa fazer a um projeto como este, que desloca
o ritual de seu contexto, concordo com Richard Schechner, para quem qualquer ritual pode
ser retirado de seu cenário original e representado teatralmente
26
. Esta é uma das maneiras
da sociedade em geral ter acesso à espetacularidade desses rituais, nos quais não há a
separação entre a arte e a vida.
1.2.3. Ritual na história do teatro e da dança: arte e método de criação
Podemos observar que ao longo da história ocidental “oficial” da arte da dança, os
escritores apontam vários períodos em que a dança mostra-se predominantemente
ritualística, como é o caso na Idade Média, da dança macabra, absorvida pelo teatro
religioso medieval europeu, ou das danças de fertilidade, dos camponeses, condenadas pela
igreja. Sabemos que o ritual, enquanto manutenção social, atravessa o tempo, e o ritual na
estética teatral é conteúdo recorrente, mas parece que foi nos movimentos modernistas que o
mesmo foi utilizado de maneira assumida como um recurso cênico.
Houve épocas de apropriação temática do ritual para uma elaboração coreográfica,
como na dança moderna americana e européia, nas rias versões de A Sagração da
Primavera, música originalmente composta por Stravinsky e coreografada por Vaslav
Nijinsky (1889-1950), Maurice Béjart (1927-2008), até Pina Bausch (1940-). Segundo
Bourcier (1987), Béjart rompe com a temática original da celebração da primavera numa
Rússia lendária, com o sacrifício de uma virgem para as divindades da renovação. A
Sagração da Primavera de Béjart mostrava o despertar da humanidade para a vida
consciente e o amor.
26
Schechner, apud Camarotii, 2001.
45
O diálogo entre o Oriente e o Ocidente enfatizou o aspecto ritualístico tanto na dança
alemã quanto na dança norte-americana. Os elementos étnicos de culturas diferentes
contribuíram para dar sentido e significado às práticas e pesquisas de movimento. Ruth St.
Denis (1879 - 1968) e seu parceiro Ted Shawn (1891-1972) fundaram a Denishawn Dance
Company em 1915, especializada em danças orientais indianas, japonesas e chinesas. Com
Martha Graham (1894 1991), os norte-americanos puderam conhecer os rituais dos seus
nativos indígenas (em Frontier), além de outras tradições mais antigas da Europa, como a
judaica. Antes disso, Graham dançou o papel da índia Xochitl, numa peça coreografada por
Ted Shawn, baseada nas culturas maia, asteca e tolteca (GRAHAM, 1993, p. 63).
Laban viu as danças e exercícios corporais dos dervixes (mulçumanos da
Herzegovina), uma experiência que teria duradoura influência na sua visão de dança,
especialmente a imagem dos dervixes giradores em transe. Laban percebeu que é na loucura
que repousa o sentido e assim pesquisou as bases espaciais espirais que dariam consistência
ao movimento giratório. A importância da espiral como eixo do circulo, presente na
natureza, em diversos rituais xamânicos, e no sistema desenvolvido por Laban e seus
discípulos, levou-me a estruturar esta tese a partir desta forma geométrica (vide
Apresentação). O princípio da espiral também fundamentou muitas práticas nas aulas e
ensaios em Gestos Cantados, fazendo parte de exercícios que iam do chão até as diagonais
(vide seção 3.3.5.).
Além disso, Laban e Mary Wigman (1886-1973) estudaram artes do Oriente, inclusive
ritmos e instrumentos (instrumentos de sopro arcaicos, tambores hindus, gongos de Bali). A
importância que dava às vibrações musicais também levou Laban a pesquisar os sons dos
tambores mexicanos. Somado a isso, seu trabalho baseado na dança-som-palavra explorava
todo o potencial de expressividade do movimento, onde a ação vocal também estava
incluída.
Júlio Mota (2006) lembra que além da influência dos sistemas de Delsarte e de
Dalcroze no trabalho de Laban as experiências com os movimentos mítico/filosóficos, como
a Rosacruz, a Teosofia, a Antroposofia, a Maçonaria o levaram a desenvolver métodos que
visavam “a exploração e o desenvolvimento das potencialidades inerentes ao movimento
para diversas finalidades, como por exemplo: educacionais, artísticas, terapêuticas, sticas,
46
comunitárias” (MOTA, 2006, p. 32). Sobre as improvisações poéticas entre Laban e seus
pupilos durante a vida comunal em Ascona, na Suíça, Mary Wigman revelou que “qualquer
um que assistisse a essas performances improvisadas devia pensar que nós éramos um bando
de idiotas. Mas para nós, contudo, isso significava uma a mais emocionante aventura e
experiência de dança ”
27
.
A abrangência do trabalho de Laban pode ser observada em obras rituais,
performáticas, de dança-coral e de dança-teatro. As performances dos dançarinos de Laban -
Wigman tiveram grande aceitação no movimento dadaísta, devido à liberdade de
movimentos de suas danças. Baseados em uma concepção de beleza interior e não de beleza
de formas, a expressão provinha da reação direta da experiência e as danças possuíam força
e poder de vida. Segundo Annabelle Henkin
Melzer (1994), em 1914, Laban instruiu
Wigman em exercícios profundos de respiração, acompanhados por combinações de
movimentos orgânicos os quais iam em direção à harmonia perfeita das suas escalas de
movimento. Podemos compreender que a noção de estética nestes exercícios de Wigman
estava relacionada à organicidade e não à forma aparente. No trabalho dadaísta de
performance, “o êxtase dos primeiros recitais de dança alemã jamais poderiam ser
repetidos” (MELZER, 1994, p. 104).
Outro aspecto de ligação entre o oriente e o ocidente, é o fato citado por Christine
Greiner (2000) de que no século XX, artistas japoneses ensinaram técnicas orientais para
artistas ocidentais, assim como houve uma renovação da dança e teatro japoneses através do
contato com o ocidente, considerando que o sistema Laban também chegou ao Japão.
Greiner mostra a profunda relação entre a dança do teatro e a dança expressiva alemã
(Laban e Wigman), e posteriormente entre o Butô e a dança alemã pós-moderna (Suzanne
Linke). Tanto Mary Wigman como Suzanne Linke utilizavam elementos dessa tradição
ritualística, ancestral, trabalhavam com as forças da natureza, dançavam com a terra. Assim
como semelhanças entre o Butô e a dança-teatro em Pina Bausch, que atua mais no
psicológico do indivíduo, na busca da expressão própria do ser. Como escreveu Kazuo
Ohno, que foi aluno de Mary Wigman, em seu artigo “Palavras de Aprendizagem do Butoh”
(s/d):
27
“Anybody watching this improvised performance must have thought us a bunch of crazy idiots. To us,
however, it meant one more exciting adventure and dance experience (Wigman apud Melzer, 1994, p. 91).
47
A sabedoria de viver, o respeito à vida, tanto a de si como a de outros, o
reconhecimento da Natureza: são temas que vão surgindo no processo do
aprendizado. As dores de uma existência, ou então os seus prazeres, os
ferimentos que marcam as nossas próprias vidas, as dádivas da natureza e a sua
destruição, são para mim, fenômenos especialmente caros. Os ferimentos que
recebemos nos nossos corpos cicatrizam-se e se curam, com o tempo. Os
ferimentos que recebemos no nosso âmago, se aceitos e contemporizados, farão
nascer ao longo dos anos e das experiências, alegrias ou tristezas, que um dia
nos conduzirão para um mundo de poesia, impossível de se expressar por
palavras, unicamente por meio do nosso corpo (Kazuo Ohno).
O enfrentamento da morte na segunda guerra, os resultados da bomba atômica em
Hiroshima e Nagasaki, levaram Kazuo Ohno a criar uma nova forma estética capaz de
explorar a reflexão profunda sobre a morte e sobre a beleza. Belo é o que está em constante
transformação. Esses aspectos expressivos da concepção artística oriental tinham uma
qualidade ritual e profundidade muito próxima da dança-teatro alemã, na época em que a
Alemanha nazista era devastada pela guerra, e lutava com todas as forças pelos valores
vitais.
Na América do Norte, as influências das danças religiosas e das técnicas do Oriente
foram de fundamental importância na mudança de concepção de corpo e de dança. As fotos
das coreografias de Ruth Saint-Denis mostram o uso generalizado das danças orientais como
base para um trabalho de dança moderna-contemporânea. A técnica criada por ela acentuava
gestos e posturas de braços, mãos, e rosto, inspirada no sentido espiritual encontrado entre
os hindus, na vitalidade da dança do ventre, ou entre os japoneses, no teatro Nô. Suas danças
individuais eram criadas a partir de figuras divinas, entre elas, Maria, mãe de Jesus. Apesar
da ênfase na forma, sua intenção era revelar os movimentos do espírito, através das
vibrações musicais. Embora a estética de suas performances seja considerada exótica e
extravagante (BANES, 1980), seu método de visualização musical levava em consideração
os diferentes estados de ânimo das notas e frases da estrutura musical, na elaboração das
danças. Dentre outras coisas, Ruth St. Denis tinha desejo de formar um grupo de dança cujas
danças fossem acessíveis aos não dançarinos, para que pudessem partilhar esse sentimento
de unidade. Ainda que não tenha realizado este propósito, ela é considerada a ‘avó’ das
Danças da Paz Universal, por ter descoberto as danças como expressão de prece e do
sagrado, tendo desenvolvido algumas coreografias junto com Samuel Lewis, que por sua vez
continuou desenvolvendo danças utilizando movimentos derivados das práticas das ordens
do Sufismo, durante as décadas de 1970 e 1980.
48
Também o início da chamada dança pós-moderna (nas décadas de 1960 e 70) foi
marcada por esta busca holística e também ritualística, como por exemplo, na dança da
integrante da Judson Church, Deborah Hay (1941- ), The Cosmic Dance, com seu grupo The
Circle Dances. Seu trabalho trazia um misto de meditação, dança folclórica, ritual, Tai Chi
Chuan e dança social americana. Segundo Sally Banes (1980, p. 125) a abordagem de Hay
era devocional, totêmica, buscava um nível celular de consciência. Essa busca por uma
expressão mais íntegra deu-se através da pesquisa de variadas cnicas corporais, citadas
mais adiante na seção em que faço a relação entre técnica e criação na contemporaneidade
(item 1.2.5.).
Na França, a partir da cada de 1970, o coreógrafo Maurice Béjart buscou inspiração
no misticismo cristão, nos métodos orientais de meditação, no Islamismo, no Budismo, nas
técnicas orientais de abordagem da espiritualidade (BOURCIER, 1987, p. 322), realizando
um sincretismo gestual em suas obras.
Podemos observar que na contemporaneidade continua existindo quem faz das
montagens coreográfico-teatrais legítimos rituais, como é o caso do encenador José Celso,
do Teatro Oficina (São Paulo), grupo com 50 anos de existência. A função ritual do teatro
mais arcaica, mas eternamente contemporânea, é realizada no teatro Oficina, pelo fato de
contar, expor os conflitos coletivos e pessoais, de tocar nos tabus na sociedade colonialista
para torná-los Totens. O Teatro do Oprimido de Augusto Boal também continua vivo no
sentido mais ritualístico do termo, agregando artistas e público numa grande representação
transformadora. Essas criações teatrais e também as coreográficas devem ser consideradas
como contemporâneas no sentido de conter elementos de pós-modernidade, e justamente por
conter elementos rituais e de força coletiva organizados esteticamente, indicando traços de
etnicidade ou tradição popular.
Em se tratando de Brasil, foi na década de 1970 e 1980 que a dimensão ritualística da
dança de espetáculo se tornou mais explícita, quando houve uma valorização de elementos
culturais locais na elaboração estética. Esta tendência coincidiu com um período de criação a
partir de princípios da dança moderna, tardiamente sistematizada no Brasil. Desde esta
época, esses elementos culturais têm sido provenientes da música. Existe a busca de uma
linguagem de dança brasileira que acontece via o reconhecimento de elementos rítmicos
brasileiros. Vale salientar que o reconhecimento desses elementos rítmicos está baseado,
49
mais em traços sociais do que estéticos. Dizer que uma música é deste ou daquele lugar
implica em reconhecer o papel desempenhado por ela na vida dessa sociedade. Esta
ritualidade étnica na dança que se faz no Brasil, a partir de diálogos culturais, é bastante
pertinente, seja com uma pesquisa de som e de movimento de culturas locais ou regionais,
seja a partir de códigos culturais similares de outros países. Esse gênero artístico se insere na
multiplicidade estética da dança na pós-modernidade.
Essas produções híbridas de códigos culturais e linguagens corporais têm sido
valorizadas no contexto acadêmico da dança
28
e vistas como arte, o que torna as criações
coreográficas rituais-musicais cada vez mais legitimadas como área de conhecimento em
dança. Paradoxalmente é a partir de Mary Wigman, que coreógrafos lutaram constantemente
contra a idéia de Dalcroze, para quem a dança era uma arte musical. Isso levou alguns
coreógrafos a separar a dança da música e de outras linguagens cênicas, inclusive
separando-se de tudo o que é religioso ou espiritual, para justificar os processos criativos
apenas a partir do corpo em movimento. No entanto, o movimento intercultural nas artes
cênicas retomou o sentido interdisciplinar da dança, acolhendo iniciativas estéticas
multifacetadas. Da mesma forma, iniciativas teórico-práticas como a apresentada nesta tese,
têm sido acolhidas no contexto acadêmico, como é o caso do PPGAC (Programa de Pós-
Graduação em Artes Cênicas), que tem linhas de pesquisa na área de Etnocenologia e
também de formação corporal do artista cênico e seus processos criativos.
Em relação ao aspecto ritual, se observarmos a atividade artística da dança profissional
também é possível encontrar elementos rituais que permeiam a prática cotidiana e em
especial o estar em cena. Durante a atuação, ainda que não se esteja preocupado em
ritualizar cenas, personagens, ou mesmo que não se tenha a intenção de elaborar narrativas,
o ritual parece acontecer com regras e etapas estabelecidas anteriormente, ou mesmo
funcionar como processo de criação. Engana-se quem julga manter-se completamente fora
dessa dimensão ritual/étnica da vida tão presente nas artes cênicas.
Como nos esclarece Cynthia J. Novack
29
, da Wesleyan University:
28
São 15 cursos superiores de licenciatura em dança no Brasil e outros sendo criados.
29
Em depoimento no artigo O QUE ACONTECEU COM A DANÇA PÓS-MODERNA? Editado por Ann
Daly, Tradução: Eliana Rodrigues e Leda Muhana. Do original: DALY, Ann. (Ed.). What has become of
postmodern dance. Tulane Drama Review. 36, nº1, (T133), p. 48-59, Spring 1992.
50
Finalmente, a divisão entre “dança-arte” e “dança étnica” continua a desgastar-
se com a consciência da natureza intelectual da sociedade contemporânea e com
a clareza do status-quo político que é reforçado por essas categorias. Vinte anos
se passaram desde que Joann Kealiinohomoku sugeriu pela primeira vez que o
Ballet configura-se como uma dança tão étnica quanto qualquer outra. Muitos
dançarinos descobriram seu direito de delinear sua própria dança e sua própria
identidade étnica e social.
Falar em arte-ritual parece, portanto, uma redundância, se levarmos ao extremo de
dizer que qualquer expressão cênica pode ser ritual, assim como todo ritual pode ser arte, ou
que as duas coisas estão sempre juntas. Observo que a prática cênica de atores-bailarinos
tem se configurado nessa relação entre estas duas dimensões, estética e ritual. E isso não
parece ser uma questão de preferência. A coreógrafa Anna Halprin (in: DALLY, 1991)
acredita na ritualidade mítica como um dos caminhos da dança pós-moderna:
Estilisticamente penso que a dança pós-moderna atualmente encontra-se em
transição para alguma outra coisa. E eu acho que essa outra coisa refere-se a
“significado e conteúdo”, coisas que fazem uma real diferença na vida das
pessoas, na vida da comunidade local e global. Acredito que a dança pós-
moderna está eventualmente caminhando rumo ao mito e ao ritual. Não
nenhum outro lugar para onde ir. Onde mais podemos ir?... Parece que agora
temos a oportunidade maravilhosa de poder criar danças que tenham poder
transformador. A criação de mitos e rituais de fato parece ser os próximos
passos. Para hoje e para o futuro, creio que as pessoas deveriam redescobrir suas
habilidades de criar mitos significativos e rituais que não apenas detivessem
poder em si mesmos, mas um poder de evocar um poder ainda maior, uma dança
pós-pós-moderna que falasse para e de nós mesmos. Algo que pudesse falar de
nossa humanidade, nosso cuidado com a terra e com o próximo. O ritual tem
que ser o próximo caminho, o que mais há pela frente?
30
1.2.4. Ritual e criação artística: exemplos de dança-ritual contemporânea brasileira
Gostaria de citar alguns exemplos brasileiros em dança-ritual e também em
performance-ritual, baseados em diálogos culturais os quais considero importantes destacar
pela proposta de integração de linguagens na estética dos espetáculos. No Brasil destaco o
trabalho que Ivaldo Bertazzo realiza com adolescentes participantes de projetos de várias
Organizações Não-Governamentais (ONGs) em São Paulo, com ênfase na formação
corporal cênica dos atuantes. Unindo Educação Somática e Interculturalismo, mostra
movimentos corais e ao mesmo tempo rituais, na medida em que momento de
simultaneidade de movimentos e muitas vezes de cânticos de tradições culturais. No
30
O QUE MAIS ESTÁ AÍ? Anna Halprin, Entrevistada por Janice Ross. Tradução: Eliana Rodrigues (In;
Dally, Ann, 1991)
51
espetáculo Milágrimas (2006), cenas onde a simultaneidade entre movimentos,
cânticos e percussão corporal, baseados na Gamboo Dance, uma dança africana, trazida
especialmente para esta montagem cênica. O espetáculo anterior tratava das tradições
indianas Odissi, Kathakali e Bharata Natyam utilizadas como técnicas formativas e como
criação. Nas obras de Bertazzo, embora possamos observar alguns aspectos da modernidade,
principalmente em termos de coros de movimento, são justamente esses coros, que trazem a
qualidade ritual do coletivo, tão necessária nos dias atuais, onde a violência entre os jovens
impera, destruindo laços de solidariedade. Aqui os coros de movimento apresentam um
sentido ético-estético, que remetem a um tribalismo étnico de significado ontológico.
O segundo exemplo brasileiro é o do Grupo Totem, do Recife, constituído por artistas
e professores de arte, formados em dança, teatro, música e artes visuais. Pelo fato de unirem
essas áreas em seus trabalhos, Fred Nascimento, o diretor do grupo, considera os atuantes
como performers
31
. Com inspiração artaudiana, o grupo Totem realiza um ritual a cada
atuação, convidando a platéia a se tornar cúmplice de suas ações. Na performance
Reentrância (2005), a proposta do Totem era instalar um objeto/instalação, uma espécie de
“nicho” (reentrância em parede ou muro, onde se colocam estátuas, imagens; pequena
morada; retiro), em frente ao mercado de São José.
Após a montagem do “nicho”, componentes do grupo convidaram os transeuntes a
ocuparem seu lugar no altar do “nicho”. O espaço era repetidamente ocupado pelas pessoas,
que a partir deste ato tornavam-se atuantes da performance, ao som de música ao vivo. Ao
experimentar, imbricar o visual, o corporal/teatral e o musical, os performers convidam os
espectadores a participarem de um tempo e um espaço míticos, partindo de um espaço real
em direção a um espaço imaginário. Um trabalho que propõe às pessoas entrarem no
“nicho”, e ao fazê-lo, reentrando em espaços internos, brincando com a memória, a fantasia
e o imaginário.
Entre os chamados performers parece haver uma maior liberdade de trânsito entre as
linguagens artísticas e áreas do conhecimento, e, portanto, maiores possibilidades de criação
em arte-ritual, categoria assumida apenas pontualmente na área da dança profissional.
31
O Totem começou a abrir sua trilha experimental/performática 16 anos atrás, construindo uma poética
própria. Com trabalhos que rompem as fronteiras entre as linguagens artísticas, misturando códigos do teatro
contemporâneo, das artes visuais, da arte performance, da dança, da música, com aportes na Filosofia, na
Sociologia, na Antropologia, na Multiculturalidade.
52
Na década de 1980, esta relação entre ritual e arte estava refletida numa busca de uma
linguagem própria para a dança brasileira, a qual apresentava ao mesmo tempo a identidade
e a alteridade, especialmente a partir do reconhecimento de elementos rítmicos brasileiros,
como era o caso da Companhia Balé Teatro Castro Alves (nas obras Orixás, Sanctus, Saruê,
Berimbau) e de tantas outras companhias profissionais ou independentes de dança no Brasil.
Na atualidade, o contato inter-étnico parece ser um dos aspectos de maior importância
na pesquisa artística. Um exemplo de realização desse princípio dialógico da pesquisa de
campo se encontra na montagem "Bailarinas do Terreiro" realizada a partir das entidades da
Umbanda, pelo grupo de Graziela Rodrigues (1997), cujas pesquisas se estenderam ao
Congado de Minas e à dança dos índios Xavante do Mato Grosso do Sul. A pesquisa
resultou numa forma de valorização do outro e de si mesmo, simultaneamente.
Sua essência reside na inter-relação dos registros emocionais que emergem da
vivência na pesquisa de campo com a memória afetiva do próprio intérprete. A
busca, portanto, foi de uma estética que partindo de uma realidade gestual,
possível de ser emanada do Corpo do Bailarino, chegue através do processo de
elaboração à poética dessa realidade
32
.
O tratamento do ritual enquanto performance pode ser encontrado no campo
acadêmico, no trabalho de pesquisa de Regina Müller
33
, que compara os processos de
treinamento e interpretação na sociedade Asurini do Xingu ao método de formação criado
por Graziela Rodrigues (ambas da UNICAMP), denominado Bailarino-Pesquisador-
Intérprete, nos processos de criação em arte da performance.
Na UFBA, podemos encontrar uma proposta acadêmica aberta a novas pesquisas
culturais, justamente a partir da fundação do PPGAC (Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas), principalmente com as pesquisas coordenadas pelo Prof. Dr. Armindo Bião em
Etnocenologia e Matrizes Culturais (linha I), bem como nas pesquisas em Processos
Criativos (linha II), com ênfase na criação de espetáculos, o que não dissocia pesquisa
acadêmica de criação artística. Foi nesse programa que encontrei abertura para realizar uma
pesquisa como esta, inclusive apresentando-se num formato híbrido entre as referidas linhas
de pesquisa, enfocando aspectos interculturais e criativos.
32
Ver home page de Graziela Rodrigues.
33
Projeto de pesquisa “Performance e Corpo em Movimento no ritual indígena e na cena contemporânea”.
CNPQ, 2006.
53
1.2.5. Entre a técnica e a criação – o Interculturalismo
A prática artística e pedagógica na contemporaneidade, ao reconhecer a importância
dos processos de criação a partir do corpo, faz do trabalho de construção do corpo cênico, o
próprio ato de criação. A busca por caminhos diferentes para pensar essa relação entre a
preparação técnica e a criação, visando uma formação mais integral do artista continua
sendo assunto de interesse crescente entre pesquisadores contemporâneos, inclusive na
utilização de experiências inter e transdisciplinares.
No entanto, quando somos questionados sobre a relação entre técnica e criação, isso
exige uma reflexão sobre a variedade de técnicas existentes e para que servem, na medida
em que os processos de criação também são plurais, especialmente na contemporaneidade.
Existem técnicas mais explícitas e sistematizadas do que outras, algumas que variam de
cultura para cultura, técnicas reconhecidas como universais e indispensáveis (como é o caso
do Balé Clássico), outras que não possuem o status legitimado de técnica, mas de estratégia
de criação (a improvisação dirigida). Como observou Marcel Mauss (1974) no seu ensaio
sobre Técnicas Corporais, enquanto agente, o corpo é técnica, enquanto produto, ele é arte.
Em se tratando do ator/dançarino, sua arte vai ser influenciada por sua trajetória ao longo de
seu encontro com os diferentes códigos e padrões de movimento a que teve acesso.
Nesse sentido, a arte do intérprete é construída a partir da história de seu corpo: “O
corpo que dança traz enredado em seus tecidos a história da espécie, a história pessoal, a
história do espetáculo, um presente que é sempre passado e futuro conjuntamente” (Greiner,
1998, p. 68). No entanto, a supervalorização da técnica em alguns estilos artísticos, nem
sempre tem permitido que tais histórias apareçam. Podemos sugerir que no romantismo, a
técnica foi mais importante e a criação era externa ao intérprete, na modernidade, a técnica
estava a serviço da criação, que valorizava o ser humano e sua psique. Na
contemporaneidade, técnica e criação parecem caminhar lado a lado, ou melhor, as
fronteiras estão cada vez mais tênues entre a preparação técnica e a exploração poética para
a cena.
Considerando a historiografia do teatro e da dança ocidental, muitas técnicas de
preparação corporal se desenvolveram e se mesclaram, de maneira que hoje temos um
panorama vasto de sistemas, cujos princípios e categorias de movimento por sua vez
54
levaram a uma variedade de abordagens artísticas. A partir da década de 1960, a busca por
estados diferenciados de consciência influenciou na construção de uma arte mais alternativa,
com ajuda das técnicas corporais como a eutonia, a bioenergética, as massagens, os
laboratórios de criação coletiva.
Deborah Hay (in: DALLY, 1992, p. 8) acrescenta:
No final dos anos sessenta e início de setenta, a disponibilidade do psicodélico, a
proliferação das artes marciais chinesas e japonesas, a abundância do material
literário sobre física quântica, vida medicinal/espiritual, Budismo, Taoísmo,
Sufismo, I Ching, como um todo, davam suporte a novas questões sobre o
movimento e a desafios de percepção.
No Brasil, somadas a esta influência vinda de fora, as pesquisas de movimento
advindas das culturas tradicionais foram muito valorizadas a partir da década de 70, com o
objetivo de ampliar o vocabulário dos intérpretes e enriquecer a obra artística e torná-la mais
brasileira. Nas culturas tradicionais não há a separação explícita entre técnica e criação.
Assim também tem acontecido na contemporaneidade, mas para chegar a esta compreensão,
parece que os grupos cênicos tiveram que passar por um fascínio e reconhecimento das
culturas tradicionais, dialogando à sua maneira com os movimentos codificados das
tradições locais ou estrangeiras. Isso somado ao repertório ou vocabulário que a companhia
construiu em termos de corporalidade dos intérpretes/criadores. A busca pela brasilidade na
arte valorizou manifestações culturais que o possuíam técnicas sistematizadas, mas
somente o todo cênico que reunia a dança, o teatro e a música.
Vale ressaltar que as qualidades expressivas e o Sistema Laban de análise de
movimento também foram fundamentais para o ensino em arte cênica no Brasil, a partir da
década de 1950, quando foi introduzida no Brasil por Maria Duschenes, em São Paulo, que
atuava tanto em termos de preparação corporal quanto em termos de criação individual e
coletiva. Em Salvador, Rolf Gelewski e Yanka Rudzka deram uma contribuição
revolucionária à área da dança cênica, desde a fundação da Escola de Dança da UFBA
(1956) que se inicia contemporânea, devido à formação de ambos em dança
expressionista alemã, que nesta cidade adquiriu características próprias.
Pesquisadores dessa abordagem trouxeram ricas contribuições para o desenvolvimento
de técnicas de improvisação e hoje temos muitos profissionais trabalhando nesta linha de
55
improvisação dirigida, cuja composição se no momento da improvisação. Neste caminho
metodológico, o que chamamos de estratégia de improvisação também pode ser chamado de
técnica. Esta quebra de fronteiras tem gerado muita polêmica em torno das maneiras de
preparar o artista cênico nos dias de hoje. Nesse sentido, as idéias de Laban sobre a arte do
movimento continuam atuais, na medida em que os mesmos princípios, segundo Fernandes
(2006) são norteadores de todas as dimensões tanto teóricas quanto práticas, desde a
improvisação e investigação de vocabulário de movimento, passando pela formação
corporal, à composição de um espetáculo, servindo à análise e notação, e até à vida
cotidiana.
Para os teóricos cognitivistas há o entendimento de que tudo o que um corpo aprende é
num formato de uma operação relacional. O importante é treinar a reconhecer os padrões
relacionais e não o conteúdo das relações. Considerando que a Dança e o Teatro não são
resultados apenas de treinamento técnico, tais teóricos defendem um tipo de informação
específica a cada processo formativo/criativo dos atores/bailarinos.
De fato, com a predominância na criação artística e com a ênfase no processo,
atualmente uma tendência de surgimento de uma preparação corporal específica para
cada proposta cênica. Por exemplo, se um sofá em cena, a experimentação vai ser toda
com referência ao sofá e na relação com ele, um caso mais explícito em que a técnica se
confunde com a criação. Nesse sentido, as estratégias de improvisação não podem ser
consideradas como sendo menos técnicas do que aquelas em que o professor é o modelo e
corrige os intérpretes. Considero as improvisações dirigidas, tanto de ampliação de
habilidades e vocabulário do corpo, quanto as que levam a uma composição, como algo que
supera a dicotomia entre técnica e criação.
Em todas essas propostas metodológicas baseadas em Laban a que tive acesso, o
processo formativo da corporalidade somática está intrinsecamente ligado ao processo de
investigação de movimento poético, ou seja, técnica e criação se fundem naturalmente,
assim como se fundem sons da voz e movimentos.
As inquietações contemporâneas no
sentido de superar as dicotomias em relação às linguagens do corpo têm nos levado a um
caminho metodológico híbrido, intercultural, o necessariamente novo, mas com novas
roupagens, como, por exemplo, o da associação entre gesto e som, cuja improvisação se dá a
partir de práticas tradicionais de dança-música.
56
A escolha do termo intercultural neste estudo é uma opçao entre tantos termos,
inclusive o de transcultural, discutido no capítulo III. Convém citar um trecho do artigo de
Christine Greiner (1998, p. 65), que nos lembra a diferença entre cross-inter-intra-
multicultural:
“Cross-cultural cruzamento cultural é quando uma tradição atravessa de uma
cultura para outra sem modificar-se por completo, ou seja, com alguma
fidelidade às suas características básicas; Intercultural corresponderia a
aspectos de duas culturas sintetizados em uma nova forma que é diferente das
duas culturas supostamente originais; Intracultural quando mudanças, trocas
ou desenvolvimentos acontecem dentro de um grupo cultural dado e
reconhecido; Multicultural quando culturas distintas vivem conjuntamente em
tempo e espaço em um contexto de unidade política e social”.
Fernandes observa que as gerações “pós - Pina Bausch” desenvolveram seus trabalhos
a partir do corpo conceitual (anos 1990) e do excesso de fisicalidade (anos 1980), chegando
a uma grande diversidade de estilos. A tendência mais atual por parte dos artistas
provenientes desta linhagem é a do interculturalismo, ou seja, uma revalorização das
tradições étnicas em suas criações artísticas. A própria Pina Bausch
34
tem mostrado
diferenças significativas em suas obras coreo-geográficas, realizadas de acordo com as
interações com o cotidiano de distintas localidades visitadas pela companhia Wuppertaler
Tanztheater, também composta de integrantes de todo o mundo. Uma das facetas desta
tendência étnica é o trabalho sobre si mesmo, na medida em que, no contato inter-étnico,
um reconhecimento de si e do outro durante a atuação do ator, dançarino ou performer.
Diferente da categoria de performer, legitimada historicamente por artistas
provenientes das áreas de teatro, dança e artes visuais, sabemos que a categoria ator-
dançarino ainda está em construção, uma vez que está ligada a estéticas intermediárias entre
a dança e o teatro. No entanto, a experimentação em dança-música-ritual desta pesquisa tem
trazido uma qualidade de sujeitos-artistas situados no “entre” dessas duas categorias.
Alguns autores das áreas de Performance Studies (SCHECHNER, COHEN,
TURNER) e da Antropologia Teatral (BARBA, GROTOWSKI), nos quais a dança-teatro se
insere, situam este “entre” na categoria de “performer”. Prefiro utilizar aqui os termos
34
Ver mais sobre a tendência inter, multi e transcultural na cena da dança-teatro contemporânea no site
http://www.cianefernandes.pro.br/orioci.htm .
57
“artista cênico” ou “ator-dançarino”, uma vez que trata-se de uma experiência cênica que
apresenta algumas características da modernidade, entre elas, o princípio da harmonia do
movimento coral labaniano. Por conseguinte, a noção de performance está sendo utilizada
aqui no sentido de atuação do artista cênico, no sentido polifônico e polissêmico da cena
contemporânea (COHEN), e no sentido inclusivo defendido por Schechner, mas não como
categoria artística, no sentido das tendências performáticas do corpo conceitual
(SCHILICHER, 2001).
Em relação à atuação do artista, concordo com Fernandes (2001, p. 12), quando
compreende que o performer “é o agente de interação e transformação o o sujeito central
da ação. Para o performer, tudo tem vida, opinião, história, sabedoria. O interno é exposto e
o externo é incorporado”. A essa compreensão rizomática de descentralização da noção de
Eu e da retirada do Outro da periferia, se junta o fundamento arborescente de crescimento
pessoal, na medida em que o processo criativo poético está constantemente recriando o
conhecimento de si e do outro.
Nesse sentido a contribuição de Laban, que influenciou o trânsito entre a dança e o
teatro nos tempos modernos e pós-modernos, a partir da Educação Somática, do sistema de
análise de movimento e da dança-coral-ritual, me faz ancorar em um ‘porto’ mais próximo
ao nero dança-teatro, no qual os artistas são chamados de “dançarinos”. Neste gênero
artístico que atualmente tomou caminhos bem diversos ao de Pina Bausch, um
rompimento de categorias em relação ao corpo, o que margem para a criação de novas
corporalidades. No entanto, tenho bastante identificação com o método de criação das
primeiras fases da dança-teatro, por ser um caminho de descoberta das corporeidades
próprias dos artistas, nas quais a memória do corpo está incluída, com suas variadas
possibilidades de expressão em dramaturgia corporal.
Desde o seu surgimento, a dança-teatro alemã propõe uma ruptura do binário
dança/teatro, corpo/mente, movimento/texto, forma/conteúdo (FERNANDES 2002, 25).
Na
contemporaneidade, com a ênfase na narrativa não-linear da história do corpo e da
subjetividade na criação artística, parece necessário aprofundar os conteúdos corporais
pessoais que favoreçam uma potencialidade de movimento expressivo/gestual. Encontrar
uma qualidade ritual no processo poético significa respeitar as histórias dos corpos presentes
e apoiar as mudanças necessárias à construção do corpo-artista, permitindo o
58
desenvolvimento de um processo criativo cênico que seja transformador do corpo-intérprete-
de-si-mesmo.
No reconhecimento da corporeidade, as concepções de Natureza e de Subjetividade
são extremamente importantes, como também o são para a cosmologia xamânica. O termo
cosmologia refere-se à imagem de mundo que uma sociedade produz para orientar-se nos
conhecimentos e para situar o lugar do ser humano no conjunto de seres. A cultura
xamanística é a cultura da natureza, por mais paradoxal que seja essa afirmação. A
redescoberta do corpo no que ele tem de mais próprio de cada pessoa, do que ele tem de
mais “natural”, como por exemplo, o cheiro que exala quando não fazemos uso de
desodorantes ou cosméticos, ou ainda sabonetes, é muito valorizado no processo de
autoconhecimento e aceitação de si mesmo. Passar alguns dias apenas tomando banho de rio
permite que corpo exale um cheiro próprio, de acordo com a situação, mas em todas elas
existe a possibilidade de sentir a força pessoal através do próprio cheiro, através da
consciência da corporeidade fenomenológica.
Um corpo fenomenológico é aquele que reconhece as variações de seus odores, por
exemplo, e os integra às suas verdades mais carnais. Uma sociedade que despreza o cheiro
natural de cada um termina por negar parte das nossas subjetividades. Um exemplo de
redescoberta da própria corporeidade se deu por ocasião de uma aula que ministrei para
alunos formandos da Escola de Dança da UFBA. Durante a atividade de transformar um
movimento da memória corporal em gesto poético, um aluno repetiu o gesto de cheirar o
braço em sua seqüência dançada. No momento da avaliação confessou que foi muito
importante para ele repetir esse gesto, que fez parte de toda a sua infância, pois o
preocupava muito a reclamação de sua família de seu cheiro forte. Assim, tinha se tornado
vigilante no sentido de evitar que as pessoas sentissem seu cheiro nos momentos mais
difíceis de escondê-lo. Ao repetir esse gesto ele se deu conta de que o cheiro é importante e
que gostaria de não se sentir mais reprimido nesse sentido.
Por outro lado, para que este gesto do dançarino viesse à tona, foi preciso uma não
racionalização deste, ou melhor, precisou que ele aflorasse de maneira espontânea, a partir
de seu inconsciente, a partir de um relaxamento de sua atenção exterior. Seu gesto fluiu sem
o controle de sua mente, mas com a ajuda do sentimento. após o uso deste gesto na
composição coreográfica, pode se dizer que o dançarino tomou consciência deste e refletiu
59
sobre sua importância. É neste trânsito entre o inconsciente e o consciente que está a riqueza
dos processos rituais baseados nos princípios da natureza.
Na perspectiva de Jowitt (In: COPELAND, 1998), podemos compreender o quanto a
imagem do dançarino e do próprio modelo do corpo que dança muda a partir da consciência
que se tem da cultura e de sua história. A cultura não está fora, mas principalmente em nós
mesmos. Compreender o quanto o cultural molda o natural é o primeiro passo nos processos
criativos ritualísticos.
A propósito da noção de natureza, muitos afirmam que os seres humanos deixaram de
ser naturais, e que o termo natureza perdeu toda a sua consistência. A observação de que o
natural se separou do humano, que a natureza se separou da cultura é bastante recorrente,
sendo o marco dessa separação identificado na aquisição da linguagem simbólica. De fato, o
ser humano tem levado ao extremo o desejo de auto-suficiência e independência do Todo na
construção de seus trabalhos materiais de sobrevivência e suas obras de arte, mesmo que
esta arte seja corporal. Algumas artes corporais parecem ignorar nossa existência animal, em
favor de uma ação poderosa de comunicação. Parecem um paradoxo as tentativas de
“artistas do corpo” de desejar se aproximar de um corpo natural em sua arte, ao mesmo
tempo mantendo o desejo de legitimar a arte como linguagem, como conhecimento, como
no caso de Laban com a dança.
A busca de uma corporeidade natural na arte levou ao extremo os limites corporais dos
atuantes. O movimento artístico chamado de Body Art” (1960-1970), que explorava o
poder da fascinação exercida pelo corpo humano sobre a platéia recobria um vasto espectro
de intenções e práticas, desde os ritos mais sangrentos às obras mais puramente conceituais.
Com poucas referências teatrais e bastante das artes plásticas, os artistas da Body Art
passavam por experiências essencialmente sensoriais ou bastante conceituais (NORMAN,
In: ASLAN, 2003), numa busca frenética pelo ‘corpo perdido’(JEUDY, 2002).
Para Jeudy, a fantasia do corpo tomado como objeto de arte é um estereótipo da nossa
idealização estética. Nesse estilo artístico, atualmente inserido no nero da performance
art, a estetização do corpo levada ao extremo deixa marcas visuais no espectador, pelos
espectros, pelos riscos e martírios do artista, o qual estava e ainda está distanciado do auto-
sacrifício do ator grotowskiano. O termo performance art, simplificado para Performance,
atualmente possui focos diversos, sendo o fator risco, um dos mais importantes da
60
experiência da fisicalidade, e de igual importância no reconhecimento da subjetividade do
performer.
A ênfase nesta noção de subjetividade contemporânea permite que os conteúdos de
uma dança, por exemplo, sejam encontrados no próprio corpo, uma vez que estamos
tratando com estados corporais ou expressivos (Effort ou Esforço em Análise Laban de
Movimento). Temos necessidade de enraizamento na terra e de encontrar “uma
subjetividade mais fluida, nômade e em harmonia com a natureza” (SANT’ANNA, 2001, p.
89).
Nos eventos rituais estados corporais explícitos de abertura para uma
transformação, a partir de uma experiência profunda de integração corpo-mente. Aqui o
trabalho da narrativa não é somente subjetivo, pois uma parte objetiva ligada ao senso
comum, uma linguagem comum. Embora não se considerem os processos cênicos criativos
na contemporaneidade como processos rituais, parece que estes apresentam implicitamente
uma possibilidade de modificação de padrões de comportamento, a partir da investigação de
diferentes estados corporais individuais e coletivos. Trazer uma qualidade ritual para estes
processos corporais de investigação significa trazer, de maneira assumida, a vida interior
para a cena, a construção do sujeito através de sua narrativa e do senso comum do grupo em
que está inserido.
Como Artaud (apud KARAFISTAN, 2003, p. 154) dizia em relação ao teatro, acredito
que a missão das artes cênicas é renovar a própria vida. E a exemplo de Jung (1989), que
escreve uma autobiografia, associando a construção de sua casa com a construção de sua
obra, compreendo como um sujeito se faz e se encontra junto com a obra de arte, na medida
em que reconhece nesta relação, o desenvolvimento do próprio self.
1.3. Relação entre ritual e performance
Historicamente, os rituais estão inseridos num movimento chamado “parateatral”, de
busca de um “teatro do sagrado”, incluídos nas proposições e experiências de Gordon Craig,
Appia, Artaud, Barba, Grotowski, materializados no teatro antropológico, pelo happening e
pela performance. Cohen (1998, p. 15) comenta como este contexto “reitera o percurso
ontológico do rito cênico na aproximação e representação da fenomenologia e do
encantamento imanente, muitas vezes perdido e banalizado na cena cotidiana”.
61
Um dos caminhos do teatro ocidental, como aconteceu com a dança, parece ter sido o
de união entre ocidente e oriente, descobrindo a arte de povos dos outros continentes,
africanos, asiáticos, da América pré-colombiana e até redescobrindo tradições do próprio
ocidente. O trabalho de Grotowski era orientado pelas tradições do Antigo Egito, da terra de
Israel, Grécia e Antiga Síria, o berço do Ocidente (VON KROSIGK, s/d)
35
.
Antonin Artaud (1896-1948) foi atraído pelos rituais étnicos de outras culturas,
incluindo-os um processo de transculturação destes para o teatro profissional, na medida em
que acreditava que isso provoca mudanças culturais na sociedade, ao provocar um novo
olhar diante da alteridade, ao questionar a cultura estabelecida da tradição teatral. O que
importa para Artaud é que “a sensibilidade seja colocada num estado de percepção mais
aprofundada e mais apurada, é esse o objetivo da magia e dos ritos, dos quais o teatro é
apenas um reflexo” (Artaud, 1984, p. 117).
As palavras de Eugênio Barba, diretor da Escola Internacional de Teatro
Antropológico (ISTA), refletem a originalidade de seu pensamento e de sua prática, a de um
teatro-cultura, um teatro-social, ao mesmo tempo fruto de uma busca por um caminho
pessoal, a partir de novas relações. Para Barba:
É possível pensar no teatro em termos de tradições étnicas, nacionais, de grupo
ou mesmo individuais. Mas se com isso se tenta compreender a própria
identidade, é essencial uma postura contrária e complementar: pensar no próprio
teatro como numa dimensão transcultural, no fluxo de uma “tradição de
tradições”... a própria identidade pode desenvolver-se sem contrariar a própria
natureza e a própria história, mas dilatando-se além das fronteiras que a
aprisionam mais do que a definem” (Barba, 1994, p. 67 e 68).
É sobre os princípios transculturais que gira o interesse de Barba, no que diz respeito à
base do comportamento cênico. O autoconhecimento do ator-bailarino passa pelo
reconhecimento do outro, da alteridade, ou mesmo pela nossa memória cultural, de nossos
antepassados. Nesta perspectiva acerca dos princípios extracotidianos do corpo e sua
aplicação ao trabalho criativo do ator e bailarino, estão presentes e se articulam alguns
elementos gestuais culturais e cotidianos na formação de sua pré-expressividade, noção
considerada polêmica e que não mais conta das práticas contemporâneas, nas quais as
35
VON KROSIGK, Bárbara Schwerin. Art as Vehicle - Jerzy Grotowski – in Search of the Lost Spiritual
Dimension. Tradução de Meran Vargens. Título em português: Arte como veículo- Jerzy Grotowski – Em
Busca da Dimensão Espiritual Perdida. s/d
62
fronteiras entre técnica e criação são muito tênues. No entanto, todos estes encontros inter-
étnicos que a princípio estavam focados nos elementos estéticos e culturais, tiveram como
resultado o aprimoramento da técnica do ator, desenvolvido intensamente por Grotowski,
com quem Barba permaneceu por três anos como observador de seu método de trabalho.
1.3.1. Arte ritual em Grotowski
As leituras sobre o teatro como processo de autoconhecimento em Grotowski chamam
atenção pela valorização que aos rituais de tradições antigas e a ênfase dada aos cantos,
aos cânticos rituais, considerados como importantes no trajeto que vai do corpo instintivo ao
corpo sutil do ator.
Uma das tendências da atualidade, que é a aproximação entre a dança e o teatro, tem
mostrado afinidades com a proposta de Artaud, para quem o texto cultural vai além da
questão teatral, e com Barba, por indicar um caminho de honestidade do artista com ele
mesmo, a descobrir o seu próprio caminho e percorrê-lo. O encenador Jerzy Grotowski
pesquisou o poder criativo dos rituais, trazendo para a prática teatral a qualidade de um
corpo xamânico. A maneira de utilização, por ele, dos ritos na preparação dos atores está
fundamentada nos arquétipos universais presentes, por ex., nos cantos e danças da Coréia,
do Egito, de Bali, nos ritos ortodoxos do catolicismo, mas principalmente nas fontes que
formaram a cultura ocidental.
A arte como veículo é um termo que Peter Brook tem usado para definir o trabalho de
Grotowski, centrado na idéia de arte-ritual. Quando se refere ao ritual, fala de sua
objetividade, ou seja, que os elementos da ação são os instrumentos de trabalho sobre o
corpo, o coração e a cabeça dos atuantes. A ênfase da montagem está mais nos “fazedores”,
está nos próprios artistas. Os cantos rituais de tradições muito antigas aqui são considerados
mais importantes do que as palavras, cuja consciência do atuante não está ligada à
linguagem, mas à presença.
Existe uma questão de identidade em cada canto antigo, como se fossem pessoas, seres
viventes, com gêneros e idades, pois estão enraizados em organicidade. Os cantos são
chamados de canto-corpo, uma vez que não estão dissociados dos impulsos da vida que
passam através do corpo. diferentes resultados quando da execução de cada cântico, que
63
podem variar em domínios sutis, da qualidade de calmantes às de estimulantes. O improviso
não pode vir antes de ter fixado a melodia e as qualidades vibratórias de uma música ritual.
No texto From the Theatre Company to art as vehicle, Jerzy Grotowski (1996) fala
como sendo a mesma coisa a arte como veículo, a objetividade do ritual e também a arte
ritual. Nesta instância acaba se deparando com a questão da relação entre as formas de
movimento e a música encontrada nos rituais: “para descobrir as qualidades vibratórias de
uma canção ritual, é necessário descobrir a diferença entre a melodia e a qualidade
vibratória”
36
. Para Grotowski, os cantos tradicionais são eficazes por servirem tanto aos que
o efetuam quanto aos espectadores, na medida em que as qualidades vibratórias musicais
influenciam em seus comportamentos.
A busca da relação com o significado universal dos atos do corpo e não do sistema
cultural específico, faz Grotowski acreditar num artista ou um performer equivalente a um
xamã, um sacerdote, um guerreiro. Em seu método de trabalho, diz que não quer descobrir
algo novo, mas alguma coisa esquecida: One access to the creative way consists of
discovering in yourself an ancient corporality to which you are bound by a strong ancestral
relation”
37
.
Para Martha Graham, talvez pela herança da Denishawn, a corporalidade da dança
também é construída a partir de uma ancestralidade:
Sempre há passos de ancestrais atrás de mim, a me impelir, quando estou
criando uma nova dança e os gestos estão fluindo por mim. Sejam bons ou
maus, são ancestrais. Chega-se ao ponto em que seu corpo é alguma outra coisa
e adquire um mundo de culturas do passado, uma idéia que é muito difícil
exprimir em palavras. (GRAHAM, 1993, p. 18).
A exemplo de Artaud, Graham, Grotowski, Brook e tantos outros, podemos repensar o
ritual como recurso metodológico, pedagógico, para tratar de técnicas corporais coletivas.
Mauss, inclusive, reuniu dados etnográficos que tratam de xamãs. Encontro em Schechner
(1995) fontes de estudo para o tema do xamanismo, quando discute as idéias convergentes,
em especial, de Grotowski e Turner, talvez pelo fato de que ambos se influenciavam
36
Op. Cit., pg 126, livre tradução.
37
Grotowski, 1988, citado por Schechner (1995): “Um acesso ao caminho criativo consiste na descoberta de
uma corporalidade antiga em você mesmo, a qual você está ligado por uma forte relação ancestral”.
64
mutuamente, sendo Turner, fascinado pelos experimentos de Grotowski. Schechner é um
admirador das idéias de Turner a respeito do processo ritual, cuja atenção dada aos detalhes
da performance cultural e expressão individual, considerava a inter-relação entre corpo,
cérebro e cultura. Schechner considera os workshops de Grotowski e Goodman como da
ordem da liminalidade
38
de Turner, como laboratórios liminais de iniciação psicofísica, de
formação de atores paraxamânicos.
Um exemplo atual de pesquisa sobre as dimensões xamânicas no trabalho teatral é o da
professora Rachel Karafistan, já citada anteriormente. A ênfase de seu trabalho prático
durante a oficina que teve o título “do xamã ao ator” estava nos cânticos de tradições
diversas, que davam suporte para a construção do personagem. Outras atividades trouxeram
os elementos da natureza e os sonhos a serem performatizados. Sonhos performados ou
transformados em performance fazem parte das qualidades que definem a espécie humana,
segundo Schechner (1995), para quem a ‘performance’ é aquele ‘comportamento
duplamente repetido’, que se torna visível através da repetição. Nós vemos, nós
reconhecemos. Repetição, mas nunca réplica.
Nesse sentido, temos em Cohen (2001, p.18), a observação de que o xamanismo se
tornou um referencial direto para as experimentações performáticas, propondo um “estado
de arte fenomenal”: “nessa hibridação entre teatro e prática ritual, o ator está
contextualizado e ancorado no âmbito da atividade performativa: sua atuação está ancorada
na presença (corpo, voz, movimento), numa textualização (verbal, não-verbal) e na recepção
(prescindindo de um olhar, de estabelecer comunicação)”.
Ainda que o xamanismo esteja sendo considerado uma prática de religiosidade -
ritualidade do pós-moderno, a sua inserção nas artes cênicas não tem sido pela via da
religiosidade. Para este autor, a prática xamânica delineia-se como
Uma via da “iconoclastia espiritual” avessa às ortodoxias religiosas das religiões
seculares, mas inscrevendo-se nos mecanismos de ritualização, assim como a
ação performática. O estudo da prática xamânica serve como instrumento de
38
A liminalidade dos rituais é uma expressão do que Victor Turner (1974) chamou de communitas, definida
como a relação entre o concreto histórico e o individual, vista ainda como uma relação existencial igualitária
dentro do grupo. É a fase liminal dos ritos de passagem que parece ser a mais destacada por Turner, por
considerar a liminalidade como um tempo e um lugar de retiro dos modos normais de ação social, que pode ser
encarada como sendo potencialmente um período de exame dos valores e axiomas centrais da cultura em que
ocorre.
65
formação do ator-performer, do ator-xamã
39
, sendo o corpo, o ponto de
convergência de um trabalho de metamorfose: “corpo que se torna índice das
representações e conflitos da consciência, numa experiência que está ao mesmo
tempo nos domínios da expressão e da cura
40
.
Convém citar uma descrição metodológica feita por Ricardo Puccetti, acerca de um
dos trabalhos do LUME, com a clown canadense Sue Morrrison, na qual aproxima o xamã a
um clown sagrado. Utilizando a compreensão dos nativos norte-americanos dos pontos
cardeais, descreve uma série de exercícios de construção da máscara do ator, com um tipo
de respiração referente a cada direção ou com as “direções do ser”, com as quais o ator-
clown tem que se defrontar.
Parece que muitos pesquisadores vêm procurando os mesmos princípios universais, ou
seja, padrões de crescimento encontrados por Laban, Pitágoras, Grotowski, pelos indígenas
xamãs, para construir um trabalho cênico mais interiorizado. Essa é uma das razões pelas
quais o teatro intercultural readapta técnicas corporais de outros contextos para o trabalho de
ator. O conhecimento ou reconhecimento de padrões universais podem levar a
repadronizações individuais, no sentido usado pelas seguidoras de Laban, Irmgard
Bartenieff, Bonnie Baindbridge Cohen e Peggy Hackney (vide sessão 1.5.1.1.).
1.3.2. Ritualidade e Espiritualidade
Como vimos, é um dado cultural a íntima relação entre ritualidade e religiosidade ou
entre ritualidade e espiritualidade. A noção de ator-xamã vem justamente tornar a ritualidade
independente da religiosidade, tendo em vista que o xamanismo está na base das religiões,
mas não se configura como tal. Apesar dos rituais terem sido apropriados pela igreja
católica, transformando-os em instrumentos de catequese, como foi o caso do teatro
jesuítico
41
e tantos outros tipos de cultos teatralizados especialmente os do teatro medieval,
hoje a independência do teatro e da dança das amarras da igreja permite a reutilização de
39
Outro autor contemporâneo que associa o ator ao xaé o Gilberto Icle, que recentemente lançou um livro
com este título. No entanto, o termo xamã é usado por ele apenas como metáfora para compreender o trabalho
do ator contemporâneo e não coloca em prática a construção de um corpo xamânico.
40
A ligação do xamanismo com a Cura é uma questão sempre recorrente. A definição de Cura em Gramacho
(2002:21) está baseada na tradição indígena: “Os povos indígenas interpretam a cura como uma conseqüência
da relação harmônica do homem com a natureza. A cura, nesta ótica, não significa a supressão imediata dos
sintomas ou a resolução, instantânea, dos desequilíbrios que provocaram a desconexão do homem com o Todo
sagrado e universal”.
41
As encenações da peças do Padre Antônio Vieira, no século XVI, colocavam os próprios índios brasileiros
dançando, como forma de doutrinação.
66
rituais de tradições culturais de uma maneira mais livre, a partir do sentimento de
identificação com as mesmas.
A questão espiritual é mais polêmica e quase sempre discutida como fazendo parte da
religiosidade, mas também pode existir independente dela. Se, por um lado, o ritual tem tido
um sentido educativo ao longo da trajetória das artes cênicas, por outro, os impulsos
espirituais têm impulsionado as artes da interpretação e coreográficas, desde um passado
muito distante.
Mark Olsen (2004) observou a influência da sabedoria das tradições espirituais e
rituais na prática teatral, cuja formação dos atores se dava em escolas secretas e dá o
exemplo do filme de Peter Brook, Encontro com Homens Notáveis, baseado no livro de
Gurdjieff, estudioso do Sufismo. Segundo Olsen, estas escolas clandestinas, que floresceram
em todos os lugares do mundo, ensinavam as leis universais, inclusive pitagóricas, e foram
responsáveis em grande parte pelo trabalho do palco, pela dimensão espiritual da
interpretação, formando dramaturgos e homens de teatro como Ionesco, Meyerhold, Beckett,
Grotowski e Stanislawski. A exemplo do desempenho quase sacerdotal dos atores gregos, a
atuação tem sido para muitos artistas um caminho de revelação espiritual. As obras de
Shakespeare, Ibsen, Strindberg, Yeats e ainda as teorias de Artaud estão repletas de
elementos místicos, provenientes dos ensinamentos destas escolas. Até na Commedia
dell’arte pode ser encontrada a lei das tipicidades humanas de uma escola secreta”
(OLSEN, 2004, p. 15).
Laban também foi formado em escolas secretas pitagóricas, cujas leis universais
cósmicas influenciaram não apenas sua teoria de organização espacial baseada nos
poliedros, mas também seus conhecimentos sobre os fundamentos básicos do caminho
espiritual: a energia e a transformação. Enfim, fora do âmbito religioso, a relação entre ritual
e caminho espiritual tem permeado a vida e a obra de muitos artistas, na medida em que o
caminho espiritual nada mais é do que o caminho que leva a uma transformação constante
de si mesmo. A transformação é o poder mais amplamente usado pelos atores, estar em
condições de tornar-se outro, conhecendo todas as possibilidades dentro de si mesmo.
Ciane Fernandes, em seu artigo “Transgressões em Harmonia: Algumas
Contribuições Brasileiras à Dança-Teatro de Rudolf Laban” (2003) associa o Sistema Laban
67
à tradição védica, onde corpo, técnica, espiritualidade e cosmo se relacionam em uma
harmonia de contrastes. A autora faz referência a um treinamento físico visando a
espiritualidade, a partir do ensinamento dos Vedas, base das danças clássicas indianas.
Inseridos numa geometria sagrada” tanto quanto preconiza o Sistema Laban, a harmonia
nesta antiga forma, chamada pela autora de dança-teatro, associa o corpo ao cosmos,
envolve simultaneamente o sagrado, o científico e o artístico, cujo desenho do corpo é
vinculado a uma consciência da totalidade
.
1.3.3. Entre Laban e Grotowski
Para a etnologia, a estética significa um caminho para pensar formas culturais que
resultam de um processo criativo de articulação de movimento, som, palavras ou materiais.
O ritual aqui é visto como possibilidade de transformação do corpo na formação e criação
artística, como recurso que integra o grupo e que beneficia a cena estética.
Considerando este aspecto ritual em Grotowski, fiz a escolha por uma abordagem de
preparação, improvisação e criação a partir dessas tradições rituais. Esta união entre canto e
movimento gestual tem sido para mim um transitar entre as fronteiras movediças que
separam e unem as técnicas de preparação corporal e os processos de criação em dança,
especialmente por atuar neste nível menos explícito do que têm sido consideradas técnica e
elaboração artística. Compreendo que seja uma proposta sintonizada com a pós-
modernidade das artes cênicas, permitindo a valorização de uma consciência corporal mais
voltada para a construção de um vocabulário próprio de cada intérprete.
A propósito do trabalho sobre si mesmo, cabe destacar que a partir da década de
noventa apareceu a figura do dramaturgo na área de dança, colaborando para o trabalho do
dançarino, que se tornou ao mesmo tempo intérprete e criador. Nesse sentido, ficou mais
evidente esta necessidade de dançar o que se é, de ser intérprete de si mesmo, na medida em
que o corpo tem sido construído no processo criativo. Assim também como tomou força a
criação coletiva, do grupo, o foco não no indivíduo, mas nas relações que formam uma rede,
um “rizoma” (DELEUZE E GUATARRI, 1995) que liga os seres humanos entre si e aos
outros seres, à natureza, à cultura, uma rede constantemente realimentada pelo fazer e sentir
estético.
68
Enfim, observo a existência do sentido de partilha e renovação tanto nas práticas de
movimento em Laban, quanto no trabalho de Grotowski, cujas palavras parecem funcionar
como uma injeção de ânimo em nós, líderes ou dirigentes de grupos cênicos. A combinação
de idéias vindas desses dois grandes mestres da dança e do teatro pode conter uma das bases
criativas para a poética cênica. Este é um caminho de processo criativo coletivo, de círculos,
de partilhas, estudos, discussões e cerimônias, que nos ensinam a reunir o melhor de nossos
talentos e energias para criar uma tribo artística fortalecida e unida.
1.3. 4. Dança-Coral para todos
Rudolf Laban dedicou-se à realização de propostas de dança para as massas,
desenvolvendo com esta finalidade a dança coral ou movimento coral, onde grande número
de pessoas se movia juntas, como num coral de vozes em uníssono, segundo uma
coreografia. Cada movimento, porém, partia do individual para o coletivo, incentivando o
aspecto criativo de cada pessoa. Este aspecto de seu trabalho se relaciona intimamente com
suas crenças espirituais pessoais, baseadas numa combinação da Teosofia Vitoriana, do
Sufismo e do Hermetismo popular no final do século XIX.
Segundo o Dicionário Laban, de Lenira Rengel (2003, p. 83),
Movimento coral é o nome dado a uma forma de dança que buscava um
sentido coletivo e comunitário, festivo, criativo e terapêutico. Entre 1920
e1933, Rudolf Laban, Albretcht Knust e Martin Gleisner fizeram inúmeros
movimentos corais ou danças corais (este termo é similar a um coro de
cantores, com várias vozes), nas suas escolas, com seus alunos e com muitas
outras pessoas, principalmente com trabalhadores de diversos ramos. A Teoria
de Movimento de Rudolf Laban era aplicada nestas danças por meio do que
ele denominou de episódios expressivos, os quais são temas ou propostas de
características de movimentos para serem improvisados
.
Havia dançarinos
profissionais (hoje chamados animateurs de dança) entre amadores. Eles eram
treinados para expressar os episódios expressivos e, a partir desta estrutura
e/ou estímulo, as outras pessoas criavam seus próprios movimentos.
A realização de eventos ao ar livre por Rudolf Laban na Alemanha no início do século
XX se relacionava com o aspecto xamânico e comunitário. Os coros de movimento
permitiam encontrar uma harmonia do individuo com o grupo. Embora na sua época Laban
tivesse feito a diferença entre dança coral e arte da dança teatral, os princípios da dança
coral iriam mais tarde fundamentar muitos processos criativos da dança artística, mas foi na
dança educativa que a proposta de Laban teve mais aceitação. Sua idéia de tornar a dança
69
uma arte independente o levou a fazer uma distinção clara entre o movimento coral e a
dança teatral profissional, embora com os mesmos princípios de movimento, baseados “nas
leis harmoniosas de formas espaciais” (PARTSH-BERGSON, 2004, p. 17).
Assim, a prática de dança coral se desenvolveu mais num contexto educacional,
especialmente garantindo espaço para a entrada da dança como forma de conhecimento na
escola de ensino formal. Os aspectos estruturais da arte da dança são considerados como
suporte fundamental na criação das danças-corais, uma vez que a legitimação da dança na
escola não poderia acontecer apenas nos moldes mais conhecidos como expressão corporal,
dança espontânea ou criativa. A própria aluna de Rudolf Laban, Mary Wigman, coreografou
muitas danças em forma de corais para grupos artísticos, tendo como base os princípios
coreológicos. Nesse sentido, as formas corais têm sido utilizadas nas propostas educativas
não apenas por estarem abertas a participação de qualquer pessoa leiga em dança, mas
também pelas possibilidades de organização corporal e coreográfica que possuem.
Carole Kew (1999, p. 77)
42
observa que, a exemplo do desejo de Nietzsche de voltar
ao espírito apoteótico da atividade artística da Grécia antiga, Laban via os coros de
movimento amadores significando um redespertar dos antigos Festivais (Festkultur) gregos
e como um caminho para trazer o ritual - simbólico desses festivais de volta à vida
cotidiana - especial ocasião onde as pessoas poderiam ter prazer numa imersão mítica com a
massa numa celebração de culto.
Com a ascensão nazista ao poder (1933) a carreira de Laban ascendeu, chegando ao
auge em 1934. Entretanto, o status de Laban teve vida curta, pois suas coreografias foram,
no ensaio geral das Olimpíadas de Munique de 1936, banidas e censuradas pelo ministro de
propaganda de Hitler. Ainda não ficou elucidado o caso dessa censura abrupta e nem sobre a
posição política de Laban. O argumento desenvolvido pela autora é o de que a mesma
ideologia que facilitou a transição dos coros de movimento de Laban até o terceiro Reich,
também contribuiu para a sua demissão. Seguindo a sociologia da dança de Helen Thomas,
Kew compreende que essa dança era “uma atividade reflexiva do corpo” que falava sobre a
sociedade na qual ela foi criada e performada.
42
O título do seu artigo em português é:
Dos coros de movimento à dança comunitária nazista: a ascensão e a queda
dos festivais de cultura de Rudolf Laban.
70
Assim como Nietzsche, Laban explorava conceitos de identidade individual e coletiva,
celebrava a criatividade e a criação de novos valores e normas, pré-figurava a vida como
uma experiência vivida além de fronteiras convencionais. Assim terminou por não
corresponder aos apelos apolíneos do nazismo alemão. Laban compreendia que existem
valores universais e as visões particulares destes valores, assim como existem princípios de
movimentos universais do corpo (por exemplo: em termos de mobilidade do corpo ou partes
do corpo, as ações de Levantar/Abaixar, Flexionar/Estender e Circular são consideradas
universais) que são concebidos pelo ponto de vista do performer. Nesse sentido, nas danças
corais, existe a relação entre as diferenças individuais/culturais e a universalidade dos
movimentos corporais, bem como existe a relação entre o individual e o coletivo.
Em Laban, a liberdade de expressão individual e mesmo o despertar dela, pode vir
através de sugestões de movimento (ações corporais básicas, esforços básicos, temas e
formas de movimentos, planos e veis no espaço, deslocamentos, trajetórias, relações com
o outro, etc.). As investigações de movimento individuais por sua vez, são compartilhadas
pelo coletivo, e tornadas vozes em uníssono, e, portanto, vozes rituais do grupo, com laços
igualitários que se conectam, sem achatar as diferenças. Por outro lado, se uma tendência
uniformizadora em muitos rituais, nos rituais xamânicos observados neste estudo, eles estão
a serviço do crescimento e transformação individual. Seguir regras e protocolos, caminhar
por lugares determinados, realizar padrões de movimento e de sons em conjunto, tudo isto é
para que o indivíduo surja a partir do coletivo, de maneira que ele sinta que o todo está
atuando no fortalecimento da criação e manifestação pessoal.
Como nos laboratórios descritos por Renato Cohen (2001, p. 21), onde “o individual e
o universal fundiam-se no gesto”, os cantos mântricos, as danças de êxtase e de transe, em
respiração alterada, inserem os performers numa grande dança, “fusão de suas
representações íntimas e da expressão universal dos arquétipos”
43
. Esta é a diferença dos
rituais xamânicos em relação a outros tipos de rituais nos quais os indivíduos obedecem a
dogmas e crenças muito distantes de sua realidade mais próxima. Os rituais xamânicos
referidos neste estudo permitem a compreensão do papel individual de cada participante
dentro do Todo da Criação.
43
Os arquétipos são estruturas pré-formadas de nosso psiquismo inconsciente que mobilizam a experiência
individual, e que segundo Jung, provém de materiais coletivos, arcaicos. “Tanto nossa alma como nosso corpo
são compostos de elementos que já existiam na linhagem dos antepassados”(JUNG, 1989, p. 210).
71
Um dos princípios da dança-coral é o de aprender e ensinar mutuamente movimentos
entre as pessoas do grupo, ou seja, trata-se do ato de compartilhar, que é um dos padrões de
crescimento da natureza, como observou Doczi (1990). Por dança-coral também se entende
um conjunto de práticas de improvisação provenientes dos trajetos aprendidos em harmonia
espacial, combinados de diversas maneiras entre duplas, trios, quartetos e grupos grandes de
pessoas, inclusive gerando atividades simples como “seguir o líder” mais próximo quando
do deslocamento em fileiras. Mesmo havendo diferentes abordagens de composição entre os
que trabalham com Rudolf Laban, um ponto em comum: o princípio de elaboração de
seqüências de movimento individualmente, depois em duplas, e em seguida, as duplas se
juntam em quartetos e assim por diante, até formarem uma grande coreografia. Uma
descrição deste tipo de composição criativa pode ser visto no artigo Corpo-Com-Texto:
dança-teatro na formação em artes, de Ciane Fernandes (2005, p.p. 29-31), que apresenta
várias possibilidades de elaboração de seqüências de movimento individualmente e em
duplas, a que denomina de “seqüência dilatada”, um dos princípios da dança-teatro. No
capítulo III descrevo os processos de criação em dança-coral durante a montagem Gestos
Cantados.
Relacionar dança coral e xamanismo nada mais é do que ir ao encontro e ao
desvelamento de um universo de práticas tradicionais e reelaborá-las em favor da
criatividade, com a consciência corporal de uma formação sistematizada. Significa abrir um
diálogo cultural entre estas práticas corporais não-formais e as formais ou legitimadas
44
,
possibilitando a nós refletir os novos papéis do corpo nas sociedades pós-modernas.
1.4. A Arte do Movimento em Laban
A teoria de Rudolf Laban, desenvolvida por suas seguidoras, entre elas, Bartenieff e
Bonnie Bainbridge Cohen, foi introduzida no Brasil por Maria Duschenes, na década de
1960, em São Paulo, influenciando toda uma geração de profissionais brasileiros
provenientes das artes corporais, inclusive Maria Mommenhson, que desenvolveu seu
trabalho na linha da dança-coral pela UNICAMP, sob orientação da já citada pesquisadora
Regina Pólo Muller.
44
Ver sobre a questão de técnicas estrangeiras legitimadas e utilizadas na dança, em Strazzacappa (1999).
72
A amplitude do trabalho teórico-prático de Laban em sua época podia ser vista tanto
nas formas da dança-coral, quanto nas formas de dança-teatro ou teatro de dança, embora os
estudos do movimento não fossem limitados ao movimento dançante. Em termos de análise
de movimento, Laban criou as categorias Eucinética (Eukinetics) e Corêutica (Choreutics),
as quais foram sendo desenvolvidas com características diferentes na Inglaterra
(Labanotação) e nos Estados Unidos (Labanálise). A Labanotação (Labanotation) registra
através de mbolos, os movimentos de uma coreografia. A Labanálise registra as
qualidades, a expressividade dos movimentos e inclui os Fundamentos Corporais Bartenieff
- FCB - (FERNANDES, 2002, p. 31).
Em sua tese, Júlio Mota (2006) denominou de Sistema Laban de Movimento (SLM) a
conjunção de aspectos teórico-práticos provenientes de dois campos de conhecimento: o
norte-americano, representado pelo Laban/Bartenieff Movement Analysis (LMA) e o inglês,
representado pelo Choreological Studies. Este autor explica que tanto a prática quanto a
teoria de Laban apresentaram desenvolvimentos e ramificações. Algumas das ramificações
práticas produziram características próprias como, por exemplo, a dança expressionista, a
dança-teatro e o teatro físico, a dança moderna, a performance, a dança pós-moderna. No
caso dos estudos teóricos, a Coreologia se ramificou em: Etnocoreologia - estudo da dança e
suas particularidades étnicas; Arqueocoreologia - pesquisa e recuperação de danças
perdidas; e os Estudos Coreológicos - voltados para o estudo acadêmico da dança enquanto
manifestação artística de uma prática teatral. Entendo que estes estudos, por sua vez, se
desdobraram, servindo à dança-terapia e à dança-educação. Mota complementa este
entendimento:
A expressão Sistema Laban identifica e engloba o vasto campo de conhecimento
criado e desenvolvido por Rudolf Laban e seus diversos colaboradores,
conhecimento esse que se encontra atualmente dividido em três campos de
conhecimento distintos (a LMA, os Estudos Coreológicos e a Labanotação)
(MOTA, 2006, p. 23).
Mota esclarece que a Análise Laban de Movimento (Laban Movement Analysis –
LMA) e os Fundamentos Corporais Bartenieff (FCB) ou (Bartenieff Fundamentals BF),
são duas ferramentas metodológicas, as quais têm sido associadas num único sistema
denominado Laban/Bartenieff Movement Analysis, ou Sistema Laban/Bartenieff, que é a
forma de denominação empregada no Brasil.
73
Para compreendermos mais um pouco sobre o contexto atual do emprego destes
termos, Ciane Fernandes (2001) diz que:
Atualmente, a Análise de Movimento Laban ou Labanálise (internacionalmente
abreviada como LMA, Laban Movement Analysis) é usada como forma de
descrição e registro de movimento cênico ou cotidiano (em pesquisas de cunho
artístico e/ou científico), técnica de treinamento corporal (teatro, dança,
musical), técnica coreográfica, método de diagnóstico e tratamento em dança-
terapia. O Sistema Laban tem sido denominado também de
Expressividade/Forma (Effort/Shape), especificando dois de seus conteúdos. No
entanto, a associação de apenas dois termos é insuficiente para descrever a
abrangência que o termo Labanálise tem assumido nas últimas décadas. Assim,
a disciplina internacionalmente conhecida como Effort-Shape ou
Expressividade/Forma expandiu-se, nos últimos anos, para Body-Effort-Shape-
Space, ou Corpo-Expressividade-Forma-Espaço.
Apesar de haverem algumas divergências terminológicas entre os pólos principais de
estudo Laban, o Laban Centre London e o Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies,
elas não são excludentes, e podemos nos beneficiar tanto dos estudos que analisam o
movimento quanto os que focam mais nos aspectos corporais de treinamento técnico e
exploração dos aspectos expressivos (movimento corporal, voz, música, palavras), ambos
existentes em maior ou menor grau nos dois centros inglês ou norte-americano.
Dentre as quatro categorias (Corpo-Expressividade-Forma-Espaço) que resumem as
teorias e práticas provenientes de Laban, dei ênfase às duas primeiras Corpo e
Expressividade, para serem norteadoras do trabalho prático descrito no capítulo III, sendo
que a categoria Espaço foi tratada com relação à Harmonia Espacial, quando de sua relação
com os pontos cardeais rituais, e com relação à Corêutica, isto é, em associações das quatro
categorias em movimentos no Espaço com dinamicidade (Expressividade), Princípios
Corporais (Corpo) e relacionamento consigo e com os demais (Forma). Esta última não teve
um enfoque especial, porém esteve presente durante todo o trabalho de maneira subliminar,
por enfatizar o volume do corpo e sua relação com demais corpos. Forma, em LMA, não
deve ser compreendida como aparência externa. Muito pelo contrário, diz respeito a “modos
de mudança de forma” (modes of shape change), e implica na transformação
necessariamente relacional que é fundamental em Dança-Coral, por exemplo.
A categoria Corpo refere-se aos princípios e práticas desenvolvidos tanto por Irmgard
Bartenieff, quanto por suas alunas Bainbridge Cohen e Peggy Hackney. Entre esses
74
exercícios estão incluídos as vibrações, as respirações com sonorização, os alongamentos,
balanços e caminhadas, níveis e deslocamentos no espaço. Mota (2006, p. 57) nos esclarece
que a categoria Corpo inclui:
Os 10 princípios de movimento e os 6 fundamentos corporais (ambos de
Bartenieff); a imersão gesto/postura; conceitos e símbolos de corpo (entre os
princípios está a expressividade, utilizando os fatores de movimento como
possibilidades de exploração das habilidades expressivas de forma voluntária e
consciente). Já os fundamentos se referem a exercícios de organização do corpo
que possibilitam a instrumentalização dos princípios (respiração, suporte
muscular, conexões ósseas, alinhamento dinâmico postural, transferência de
peso...): 1. elevação da coxa, , 2. transferência ou propulsão frontal da pélvis, 3.
transferência lateral da pélvis, 4. metade do corpo, 5. queda de joelho, 6. círculo
de braço
45
.
A categoria Expressividade está relacionada à atitude interna com relação aos quatro
fatores de movimento: espaço ou foco, tempo, peso e fluência. Estes se combinam de dois
em dois ou três em três, em complexos fraseados expressivos. Como se na ilustração
seguinte (Gráfico dos Fatores de Movimento), cada um dos fatores varia numa gradação
entre dois pólos opostos: Espaço ou Foco (direto ou indireto), Tempo (súbito/acelerado ou
sustentado/desacelerado), Peso (forte ou leve), Fluxo ou Fluência (livre ou
controlada/contida).
As combinações de fatores é que vão permitir uma compreensão da imensa
possibilidade de variações na qualidade de movimentos. As combinações entre dois fatores
geram os Estados Expressivos e a combinação entre três fatores geram os Impulsos
Expressivos. Nos Estados Expressivos temos as combinações entre Peso e Tempo (leve e
desacelerado/leve e acelerado/forte e desacelerado/forte e acelerado), Peso e Fluxo (leve e
livre/leve e contido/forte e livre/forte e contido), Peso e Espaço ou Foco (leve e indireto/leve
e direto/forte e indireto/forte e direto), Fluxo e Espaço ou Foco (livre e indireto/livre e
direto/contido e direto/contido e indireto), Fluxo e Tempo (livre e desacelerado/livre e
acelerado/contido e desacelerado/contido e acelerado) e Tempo e Espaço ou Foco
(desacelerado e indireto/desacelerado e indireto/acelerado e indireto/acelerado e direto).
Os Impulsos Expressivos podem ter dois tipos de combinação entre três fatores:
Impulsos de Transformação, que combinam os fatores de peso, tempo e fluxo, excluindo o
45
Estes exercícios são descritos e ilustrados em detalhe em Fernandes (2002, 2006). Vários destes exercicios
foram utilizados durante o processo criativo de Gestos Cantados, gerando variações que chegaram à cena.
75
fator espaço, ou seja, sem a preocupação com o foco, e os Impulsos de Ação, que combinam
os fatores espaço ou foco, tempo e peso, excluindo o fator fluxo, ou seja, sem o
envolvimento da emoção. Seguem-se as análises das ações: Flutuar espaço ou foco
indireto, peso leve, tempo desacelerado; Socar direto, forte, acelerado; Deslizar direto,
leve, desacelerado; Açoitar indireto, forte, acelerado; Pontuar direto, leve, acelerado;
Torcer – indireto, forte, desacelerado; Espanar – indireto, leve, acelerado; Pressionar
direto, forte, desacelerado.
P = PESO; E = ESPAÇO (Foco); F = FLUÊNCIA; T = TEMPO
Figura 03 - Gráfico dos Fatores de Movimento (LABAN,1978, p. 126)
Obs.: Os círculos cheios mostram os elementos que lutam contra; os círculos em branco
mostram os elementos que se entregam ao Peso, ao Espaço (Foco), à Fluência e ao Tempo.
Existem muitos estudos sobre a análise de movimento a partir da categoria
Expressividade (FERNANDES, MOTA, RENGEL, MOMMENHSON, etc.). Nosso enfoque
é a compreensão dessas qualidades expressivas ou estados expressivos (MOTA, 2006, p. 67)
para a investigação, improvisação e composição cênica poética, e a importância disto no
entendimento dos gestos. No capítulo III abordo a combinação entre os fatores de
movimento e os elementos da música (Altura, Intensidade, Duração e Timbre) como
motivadores para a combinação entre movimento e a voz cantada, e como conseqüência a
76
criação de danças-corais no sentido literal da palavra, sendo que neste caso, o fator espaço é
tratado como categoria.
Como categoria, o Espaço abrange uma amplitude de conceitos relacionados com a
Harmonia Espacial, e desta com os Fundamentos Bartenieff (FERNANDES, 2002, p. 174),
assim com os conceitos de Cinesfera, Formas Cristalinas, Padrão Axial, Percurso Espacial,
Escalas Dimensionais, entre outros. O espaço pessoal ou Cinesfera é aquele cujos limites
são os pontos que podem ser tocados com todas as partes do corpo. No espaço pessoal,
podemos nos movimentar tendo como referência as linhas, os planos e os volumes, de
acordo com o limite individual de alcance espacial. O espaço geral é o da locomoção, da
variedade de trajetos e caminhos, é o espaço da relação com os outros.
O alcance de movimento individual se a partir da relação entre o movimento e o
espaço geral em termos de área na qual ocorre a ação, realizada a partir da Cruz Axial do
Corpo e das linhas e formas no espaço, gerando as Dimensões, os Planos e as Formas
Cristalinas. Tendo como referência o corpo do ator-dançarino, a Cruz Axial do Corpo
estabelece as direções frente, trás, acima, abaixo, direita, esquerda como constantes,
independente da movimentação do corpo no espaço.
A Dimensão é uma linha que parte do centro do corpo em duas direções ou vetores
opostos. Existem três dimensões: A Dimensão Vertical é a da altura, partindo do centro em
direção ao Alto e Baixo; A Dimensão Horizontal é a da largura, partindo em direção à
Esquerda e à Direita; A Dimensão Sagital é a da profundidade, partindo do centro em
direção à frente e Atrás. A partir da somatória de duas dimensões, com uma primária e a
outra secundária, criamos os Planos, que têm uma forma retangular devido aos vetores
primário e secundário, respectivamente maior e menor. Assim, a somatória das dimensões
vertical e horizontal gera o Plano Vertical ou Porta. A somatória das dimensões horizontal e
sagital gera o Plano Horizontal ou Mesa. E a somatória das dimensões sagital e vertical gera
o Plano Sagital ou Roda.
A sobreposição das três dimensões cria o arcabouço do Octaedro. A sobreposição dos
três planos cria o arcabouço do Icosaedro. E a junção de três vetores, um de cada dimensão,
cria as diagonais e o Cubo (vide FERNANDES 2006). Assim, a Cruz Axial constrói o
Octaedro, e a Cruz Diagonal, o Cubo. As Formas Cristalinas ou poliedros regulares o
77
gerados não apenas a partir destas estruturas entre pontos (dimensões, planos e diagonais),
mas a partir dos traços e trajetórias (traceforms) que o corpo faz no espaço ao se mover, em
Escalas Dimensionais, Diagonais, entre tantas outras.
No processo criativo de Gestos Cantados, realizamos várias destas escalas, tanto como
aquecimento, quanto para referenciar as trajetórias entre os pontos ou direções rituais. No
espetáculo Gestos Cantados, a cena de introdução às direções rituais (cena 3) foi construída
a partir do Octaedro, e a cena nº. 17 foi improvisada a partir dos planos do Icosaedro (vide
capítulo III). Além destas referências mais diretas, os pontos no espaço e os percursos entre
eles foram usados durante todo o processo, ajudando-nos a perceber os movimentos das
DPU em termos da dinâmica Corpo-Espaço, bem como a organizar nossa estrutura enquanto
grupo na dança-coral.
1.4.1. Dança-Teatro e Corporeidade: a importância do gesto
Como observamos, existe uma filiação clara entre o gênero de dança-teatro atual e a
forma de arte elaborada por Laban nos anos 1920 na Alemanha e também dos rituais de
dança livre na Suíça. O fio condutor dessas abordagens seria em grande parte, a função
terapêutica do movimento e do gesto
.
Em Laban (1978, p. 48) temos que:
Os movimentos do corpo podem ser divididos aproximadamente em passos,
gestos dos braços e das mãos, e expressões faciais. Os passos abrangem pulos,
giros e corridas. Os gestos da parte superior do corpo compreendem
movimentos de esvaziar, de recolher e de espalhar, dispersar. As expressões
faciais relacionam-se aos movimentos da cabeça, que servem para dirigir os
olhos, ouvidos, boca e narinas...
Ciane Fernandes (2002, p. 96) esclarece que a postura consiste em movimentos
envolvendo todo o corpo, como a transferência de peso, deslocamentos. O gesto consiste em
movimentos pequenos, geralmente indicativos, realizados com as extremidades e face. A
ligação entre postura e gesto num movimento é denominada pelo termo Imersão
Gesto/Postura”, observada pela autora como recorrente nas formas que mesclam princípios
da dança e do teatro, como o teatro físico, a dança-teatro, a mímica e a pantomima. Sobre o
gesto, em Fernandes (2000, p. 23), temos:
Gestos são movimentos corporais realizados na vida diária ou no palco. No
cotidiano, gestos são parte de uma linguagem do dia-a-dia associada a
78
determinadas atividades e funções. No palco, gestos ganham função estética;
eles tornam-se estilizados e tecnicamente estruturados, em vocabulários
específicos, como o do balé ou o da dança moderna norte-americana (...).
Para Lenira Rengel (2003, p.86), “movimento gestual caracteriza-se por ativar
somente partes isoladas do corpo, quaisquer que sejam. É um movimento associado à
expressão de pensamentos”. Já para José Gil (2004, p.88), “a noção de movimento é decerto
mais ampla que a de gesto, pois a compreende”. No entanto o gesto pode ser a origem ou o
resultado da expressão de movimento, o qual pode ser não codificado, espontâneo ou livre,
ou codificado genética ou culturalmente. Para este autor, o gesto dançado “distingue-se de
qualquer outro gesto, funcional, teatral, lúdico. O que o caracteriza: o fato de nunca ir até o
fim de si próprio” (idem, p. 89). Os gestos dançados são justamente movimentos de
transição, são gestos emocionais, como observou Gil nas obras de Pina Bausch.
As experiências com a formação de atores e bailarinos têm mostrado a importância
fundamental das descobertas e exploração das potencialidades cênicas destes, através de um
trabalho voltado para a sensibilidade e expressividade corporal. Considerando a amplitude
de sentidos que o gesto, tanto vocal (falado, cantado), quanto dançado pode vir a ter num
processo criativo, a experiência de cada um vai resultar em diferentes tipos de
corporalidades, termo este que designa a variabilidade das formas tomadas pela
corporeidade. Por sua vez este termo Corporeidade é usado para se referir à “dimensão
social e cultural do corpo”, uma “estrutura simbólica”, uma forma construída pela interação
social, mas em constante mudança. As noções de corporalidade e de corporeidade
descobertas pela filosofia, pela Sociologia e pela Antropologia têm permitido a nós
compreender o corpo com todas as suas dimensões integradas: o natural e o cultural, o
dentro e o fora do corpo, ou seja, ossos, músculos, sangue, carne, espírito, relações.
A partir do estudo em Antropologia do Imaginário, e considerando o fato de que as
memórias do corpo são conteúdos constituintes de alguns rituais, venho reconhecendo a
importância do gesto dançado a partir das memórias do corpo na criação cênica. A afinidade
dos processos rituais com a metodologia utilizada por Pina Bausch me chamou a atenção, no
sentido de sua ênfase na reconstrução da experiência dos atuantes na construção da obra.
Mesmo antes de utilizar princípios rituais como recurso, venho trabalhando com memória
do corpo, imaginário e representação com alunos de dança e teatro. Nesse sentido, encontrei
eco na descrição de Ciane Fernandes no capítulo “Reconstrução e Transformação:
79
Redançando a História com o Wuppertal Dança-Teatro” do seu livro sobre o Wuppertal
Dança-Teatro, a respeito do processo coreográfico de Pina Bausch.
Apesar das diferenças em termos do processo e produto coreográfico, semelhanças
em termos de metodologia e princípios, na ênfase dada à memória e na dança enquanto
reconstrução de experiências dos dançarinos. Esta experiência poética está descrita no artigo
“A dor e o prazer na construção da corporalidade cênica” (ARAÚJO, 2001), onde a
metodologia utilizada foi a apropriação de gestos e reações cotidianas, - aqui em especial, as
ocorridas na infância, tal como acontece na dança-teatro de Bausch, na qual são valorizados
os contextos de história de vida (os reflexos diretos do estado emocional de cada um).
Grotowski (apud Karafistan, 2003) também falou da necessidade urgente de retornar
ao estágio da criança como uma maneira de criação teatral. Reencontrar a criança e seus
êxtases, esquecidos através de anos de domesticação do corpo e da mente, seria algo
tangível, orgânico e primal. Tal liberação viria através da expressão vocal e física.
Dessa maneira, meus alunos de dança e de teatro, inclusive os da disciplina Técnica de
Corpo para a Cena II (T.C.C. II) e os da montagem Gestos Cantados, reelaboram cenas
passadas de suas vidas e expressam poeticamente as suas próprias histórias. A partir daí,
alguns laboratórios de composição coreográfica são feitos até chegar ao palco. Inclusive um
dos momentos mais interessantes é o de compartilhar no coletivo as histórias pessoais.
Todos se apropriam dos gestos e movimentos de todos. E é grande a satisfação de todos
tanto no processo quando na apresentação do produto final, alguns deles, elaborados de
maneira divertida e cômica. Talvez seja esta qualidade gestual que faz a diferença nos
trabalhos desenvolvidos pelos que fazem dança-teatro. Como escreveu Fernandes (2005, p.
23), “já não podemos dividir ‘dança’ como gestos abstratos feitos por um corpo
tecnicamente treinado, e ‘teatro’ como gestos do cotidiano que acompanham um texto...”.
1.5. Idéias de corpo em conexão
Na Europa, antes do século XV, o canto e o gesto tinham um laço muito forte de
ligação, um elemento de civilização. A maioria das danças era cantada: “gesto e voz,
regulados um pelo outro, asseguram uma harmonia que os transcende” (ZUMTHOR, 1993,
p. 247). Essa relação entre a voz e o movimento também estava presente nas poesias
80
declamadas oralmente pelos trovadores, cuja voz apresentava sua função poética, justamente
pela qualidade dada a ela pelos gestos e movimentos físicos. A voz de quem canta ou recita
uma poesia seria o locus central das relações harmônicas e harmoniosas. Com o advento da
escrita, a oralidade foi perdendo essa qualidade de integralidade corporal.
A Etnocenologia admite ser a dança, por si só, uma unidade complementar das
dimensões somáticas: A organização somática dos estados de consciência; a emergência
orgânica dos estados de consciência; a interação do somático e do psíquico. Entendendo
dessa maneira, os processos que envolvem a dança e o canto simultaneamente seriam mais
ainda abrangentes no tocante às dimensões somáticas. Recorrendo a Pradier (2000),
considero esta abordagem como etnocenológica por estar nos moldes de uma “pesquisa
intercultural, por natureza, e pluridisciplinar, por necessidade” (Pradier, 2000).
A dança está quase sempre presente nos estudos sobre Etnomusicologia, por sua
afinidade com a música, com a qual está integrada. Segundo a antropóloga da dança,
Adrienne Kaeppler (1978), que traça um panorama da evolução dos estudos nesta área,
observa o esforço feito por etnólogos da dança e Etnocoreologia, para analisar o sistema
cultural do ponto de vista do movimento, bem como da narrativa e aspectos musicais. Estes
estudos têm demonstrado que as técnicas antropológicas são úteis para o estudo da dança,
assim como teorias da dança tem sido relevantes para o estudo cultural. Inclusive o
Labanotation ou Kinetography Laban, tem sido usado desde 1928, para observar e descrever
o movimento dançante, embora que a princípio, o fizesse isolando-os dos aspectos musicais
e teatrais dos fenômenos culturais. No entanto, os avanços dos estudos em Etnologia da
Dança
46
permitiram reconhecer a relação intrínseca que existe entre dança e movimento
ritual, o que faz deles um mesmo sistema de conhecimento.
A contribuição dos estudos etnocenológicos também tem sido em grande parte relativa
à compreensão dos fenômenos a partir da não separação do drama de todos os outros
componentes que o acompanham, relativos à corporalidade (voz, corpo, sonoridade musical,
movimento rítmico). Aliás, a Etnocenologia parece que surge para suprir a lacuna da falta de
interdisciplinaridade entre os estudos coreográficos, coisa que a Etnomusicologia já vinha
realizando entre a música e a dança. Os estudos do corpo, do movimento ou das práticas
46
Cf. o estudo de Kaeppler (1995) sobre dança e ritual no artigo The Seldom Dance on StarTtreck: A
Cautionary tale for the Study of Dance and Ritual.
81
espetaculares têm se beneficiado com estas posturas dialógicas, não somente entre
disciplinas, mas principalmente em termos de conciliação entre teoria e prática, entre teoria
e experiência, entre as dimensões humanas internas e externas, entre corpo e voz.
Compreendo que a relação entre o movimento corporal e o som da voz são dimensões
distintas da mesma manifestação do que se entende por movimento corporal. Como apontou
Rudolf Laban
47
, a voz é uma manifestação do movimento corporal. No entanto, observa-se
que diferentes usos da voz, de acordo com a encenação. Na dramaturgia teatral, por
exemplo, a voz tornou-se um instrumento de materialização dos textos e da palavra, em
detrimento da gestualidade, colocada em segundo plano de importância. Já na tradição
coreográfica, a voz é que está em segundo plano, ou ainda considerada desnecessária, sendo
utilizada excepcionalmente como elemento de irreverência nas tendências performáticas
modernas e pós-modernas.
Isto é um dos elementos fundamentais de diferenciação da dança-teatro de outras
categorias artísticas, pois como seu nome indica, utiliza igualmente movimento e voz, as
sincronias e dessincronias entre elas, inclusive porque o conceito de harmonia para Laban
define correspondências, mas estimula a criação a partir e além destas, em uma “estética de
contrastes” (SCHMIDT apud FERNANDES, 2006, p. 197). De fato, a dança-teatro
questiona relações de poder em todos os níveis, inclusive entre o movimento corporal e o
discurso verbal (FERNANDES, 2000).
Uma discussão no âmbito da dramaturgia teatral gira em torno da valorização maior
ou menor que se tem dado à palavra nas obras artísticas. A tirania do texto teatral levou os
artistas a buscarem outras propostas de teatro não-verbal físico e visual, inclusive rituais, em
busca de uma liberdade corporal e ideológica. De acordo com Davini (1996, p. 91) essas
propostas quase sempre se mostram problemáticas e limitadas, gerando “um clima de
“militância não-verbal” às vezes desanimador por causa das inusitadas interpretações que
muitas vezes se extraem de suas formulações teóricas”. Para a autora, a superação da tirania
do texto dramatúrgico estaria em resgatar a função poética da voz comentada por Zumthor,
no sentido de elaborar o gesto da voz que dá vida à palavra.
47
Apud FERNANDES, Ciane. O Corpo em Movimento: o sistema Rudolf Laban/Bartenieff na formação e
pesquisa artes cênicas. São Paulo: Annablume, 2002.
82
Embora tenha estudado a expressividade corporal em todas as dimensões, Laban
colocava mais a ênfase no movimento quando da elaboração das danças-corais, no sentido
de se tratar de coros de movimento, fazendo analogia com os coros musicais, pelo motivo
citado anteriormente, de fazer da dança uma arte autônoma. No entanto, observando as
necessidades expressivas dos artistas cênicos na contemporaneidade, podemos ir ao
encontro de coros simultâneos de movimento e de voz, a exemplo dos coros do drama grego
antigo, sem a preocupação em querer legitimar uma área artística ou estilo isoladamente.
As reflexões e as práticas sobre as possibilidades de associação entre voz
falada/cantada e o movimento dançante ou gestual, como alguns chamam de gesto-vocal,
têm contribuído muito com a superação das dualidades corporais a que fomos submetidos
em nossa educação e cultura. A idéia de um universo dual chegou até nós pelo cristianismo
a partir da filosofia grega, que, depois de Platão, imaginou o mundo divino como separado
do humano, dando margem a interpretações que excluíam as qualidades de unidade e
integridade humana.
Na obra O Nascimento da Tragédia (1872), Nietzsche critica profundamente
Sócrates por considerá-lo responsável pela razão exacerbada na Grécia, no tempo em que “o
racionalismo fincava raízes e o ser humano perdia a graciosidade de seu todo corporal”
48
.
Sobre o espírito dionisíaco dos coros gregos, é frase dele: “O homem cantando e dançando
se expressa como um membro de uma comunidade mais elevada; esqueceu-se de como
andar e falar, e está a ponto para voar adentrando os céus. Seus gestos expressam o
encantamento
49
”.
Nietzsche continua a denunciar o dualismo corpo-alma dos que desprezam o corpo em
seu ensaio Assim Falou Zaratustra (1883), considerando-os revoltados contra a vida e a
terra. “Curem-se, dominem-se, criem um corpo superior!” é o que diz para os enfermos, que
precisam a voltar a falar como as crianças falam: “eu sou corpo e alma
50
(NIETZSCHE,
2004, p. 40 e 41).
48
Ecce Homo- como cheguei a ser o que sou- Friedrich Nietzsche (livro autobiográfico). São Paulo: Editora
Martin Claret, 2004. Tradução: Pietro Nassetti.
49
“Singing and dancing man expresses himself as a member of a higher community; has forgotten how to walk
and talk, and is about to fly dancing into the heavens. His gestures express enchantment” (apud Carole Kew,
1999, p. 75).
50
Assim Falou Zaratustra. Friedrich Nietzsche (texto integral). São Paulo: Editora Martin Claret, 2004.
83
Penso que as relações encontradas nesta pesquisa entre os dois discursos, o do som da
voz e o do movimento, estão nesta categoria de integralidade corporal, na possibilidade de
potencialização somática e criativa. Tal combinação tem permitido abrir novos canais de
expressividade para o intérprete-criador, na medida em que o ritmo, a melodia, a harmonia
das danças-canções, afetam, simultaneamente, o físico, o emocional, o mental e o espiritual,
enfim, domínios da existência, tanto individual quanto social.
Existem muitos trabalhos teóricos e práticos que fazem essa combinação entre
movimento e som, mas pouco existe em termos de sistematização dessas experiências.
Muitas delas provêm mesmo dessa corrente labanista, tendo em vista o fato de que o
Sistema Laban de Análise de Movimento (LMA) também inclui canto/som e movimento
corporal, aspecto que esta pesquisa prioridade, por tratar dos aspectos estruturantes da
dança coral.
Fernandes (2002, p. 28) nos esclarece o ponto de vista de Laban sobre a dinâmica do
movimento corporal, a partir da compreensão de que as oposições binárias - como
movimento e voz, dança e teatro, corpo e espaço - transformam-se constantemente:
Tal dinâmica pode ser representada pela figura geométrica da Banda de
Moebius, citada por Rudolf von Laban, Jacques Lacan, entre outros. Esta
figura, descrita por Laban como Lemniscate, é criada a partir da junção das
duas extremidades invertidas de uma banda, cujas faces passam a ser
simultaneamente internas e externas. Em LMA, esta figura oito ou do infinito
é fundamental na inter-relação de conceitos, bem como símbolo na própria
notação de movimento. Os conceitos de Laban, muitas vezes interpretados
como dualidades opostas, de fato dialogam nessa figura tridimensional que
elimina a oposição e instala uma continuidade gradativa em constante
transição, como é o movimento humano.
Assim como Laban compreendeu a estrutura funcional e emocional do corpo a partir
da Banda de Moebius, cuja integração entre os opostos é representada pela figura oito ()
,
que ao seu turno é reconhecida como o símbolo do infinito, algumas tradições místicas e ritualísticas
como as que estão presentes nesta pesquisa (tratadas no capítulo II), contém ensinamentos em
relação à unidade do ser, embora estes tenham pouco a ver com a lógica ou metafísica.
A figura oito é a base da integração de Peggy Hackney, baseada nas conexões
estipuladas por ela e por Bartenieff, assim como o símbolo do trabalho de Bonnie B. Cohen
(BMC), usado também em várias outras técnicas somáticas, e no xamanismo, como é o caso
da casa no Castelar da Alvorada (vide cap.II). No caso de Hackney (1998, p. 101), as figuras
84
8 atravessam todo o corpo, conectando-o em diferentes organizações ao espaço ao redor do
corpo, à terra e ao céu:
Figura 04: organização corporal a partir da figura oito.
85
Figura 05: Anel de Moebius (representação da figura oito)
Assim, considero oportuno dar ênfase à expressão corpo-conexão, no momento em
que tomam fôlego os estudos e práticas do ser humano integrado, das técnicas
psicossomáticas de revitalização da energia vital, em especial as correntes teórico-práticas
advindas de Laban, a partir de Irmgard Bartenieff, uma das principais discípulas de Laban e
fundadora do Laban/Bartenieff Institute of Movement Studies. Estas técnicas estão incluídas
numa área abrangente denominada Educação Somática (vide seção 1.5.1.).
Durante a pesquisa bibliográfica e de campo, encontrei diversas maneiras de
conscientização através da associação das vozes corporais: gesto-som, especialmente em
algumas cnicas sistematizadas, as quais me despertaram interesse nas possíveis fontes
dessa co-relação em outras práticas culturais tradicionais, que, embora não explicitem
objetivos de ampliação da consciência, mostram processos e produtos extremamente
organizados e harmônicos, como é o caso dos rituais indígenas e afro-brasileiros.
Então o diálogo passa a ser bem mais profundo e as possibilidades expressivas de um
trabalho a partir disto se tornam bem maiores. Por outro lado, na medida em que um
86
universo de práticas tradicionais é cada vez mais desvelado e valorizado, se abre um diálogo
cultural entre estas práticas corporais não-formais e as formais ou legitimadas
51
,
possibilitando a nós refletir os novos papéis do corpo nas sociedades pós-modernas.
A seguir, apresento e descrevo alguns princípios de técnicas de corpo-conexão
utilizadas nesta pesquisa, cujas práticas de associação entre o som das vogais e as regiões do
corpo foram utilizadas em todos os momentos do processo, a saber: a Música Orgânica, o
Método Feldenkrais, os exercícios de Dalcroze, o trabalho com os chacras, o sistema
Laban/Bartenieff ou LMA, o Body Mind Centering (BMC), e o corpo-som-do-ser dos
ancestrais indígenas brasileiros denominados de Tubunguaçu. Foi motivador pesquisar ainda
o trabalho feito com canções tradicionais na Arte como veículo (GROTOWSKI, 1993).
Todas estas técnicas foram para mim fonte de motivação para esta pesquisa, tendo em vista
a sua compatibilidade com os princípios rituais e sua aplicação na formação do artista cênico
no que se refere a essa combinação entre som e gesto. Como no percurso da tese, temos
cinco direções que se complementam numa espiral de reconstrução cênica do corpo-conexão
a partir da memória. Ilustro aqui as coincidências de cada uma destas técnicas com o
princípio das direções, considerando as suas qualidades principais:
51
Ver sobre a questão de técnicas estrangeiras legitimadas e utilizadas na dança, em Strazzacappa, citada por Muhana
(2000).
87
1.5.1.a. Contribuições do Canto-Coral na conexão corpo-voz: A Música Orgânica
Entre as técnicas que combinam gesto e som provenientes da música, estão as
provenientes da área de canto-coral, e mais recentemente da área de música orgânica. Na
década de 1980 surgiram muitos corais cênicos, que se propunham a desenvolver com a
mesma intensidade o aspecto vocal e teatral, cuja junção entre gesto e som era realizada
desde os aquecimentos em técnica vocal, até a atuação em cena, realizando espetáculos que
reuniam as duas expressões artísticas. Como exemplos, posso citar o Coral São Bento de
Núrsia, do maestro Marcos Júlio Sergl (Olinda - PE), o Cobra-Coral (Londrina - PR) e o
coral Cobras e Lagartos (Rio de Janeiro - RJ), estes últimos fundados pelo maestro já
falecido Marcos Leite. Atualmente o Coronlaine (Salvador - BA), regido pelo maestro
Cícero Alves apresenta estas características. Esta combinação entre canto-coral e
teatralidade tem se desenvolvido desde então, com várias iniciativas desta natureza no país,
no entanto, em dezembro de 2007 houve um encontro específico reunindo os trabalhos
desenvolvidos, que foi o 1º Encontro Brasileiro de Coro Cênico, em Ribeirão Preto (SP).
Na área de música orgânica existem os coros orgânicos, uma abordagem que focaliza o
aspecto ritual na música, a alteração da consciência, a expressão e a interação das
individualidades, a criação através dos sons e dos movimentos corporais. Tem como
facilitadores os músicos Fernando Neder (Rio de Janeiro - RJ) e Ricardo Oliveira (Nova
Frigurgo – RJ). A professora de música Cristiana Dias (Salvador - BA) utiliza alguns
aspectos da música orgânica em seu trabalho. Sua contribuição complementou o processo
cênico em Gestos Cantados, descrito no capítulo III. Alguns exemplos dessa abordagem
estão explicitados a seguir.
Nesta abordagem de canto orgânico, a voz é o principal som do corpo, embora se
considere a importância da prática de ouvir o som proveniente das vibrações, como o
batimento cardíaco, a respiração, o movimento de algumas articulações, e até os gases e
líquidos internos. As práticas em música orgânica procuram expandir a percepção dos
ritmos orgânicos e a capacidade energética, através dos sons e dos movimentos corporais. A
voz é entendida como respiração audível, como massagem de dentro para fora, como
instrumento de autoconhecimento.
88
Muito mais importante do que cantar afinado, são incentivadas a descoberta e a criação
através da voz, de maneira que cada pessoa possa sentir sua própria vibração, além das
diferentes maneiras de arranjar seus sons harmônicos. O recurso de utilização de uma venda
nos olhos para a sonorização com as vogais é muito valorizado no sentido de exploração das
possibilidades vocais individuais. Uma etapa seguinte seria o caminhar com o tom da vogal
encontrada procurando outros sons no grupo. A prática do canto das vogais, por exemplo, é
uma prática de tonalização, na qual se canta uma mesma nota por muito tempo, tem o
objetivo de sentir a vibração e os sons harmônicos derivados desta nota fundamental,
proveniente da relação entre cada vogal e parte do corpo. Os movimentos corporais
associados às vogais são uma espécie de repertório que facilita a regência e a criação de
peças musicais. Na vogal “u”, a ênfase é na sensação da vibração do som que sai pela boca,
quando este vem do baixo ventre, na vogal “o”, os braços se fecham em círculo na frente do
corpo, na vogal “a”, os braços se abrem e vão para cima, na vogal “e”, os braços fazem um
movimento em espiral, e na vogal “i”, os braços se movimentam na vertical, na frente do
corpo, para cima e para baixo, alternados.
Há um exercício chamado de “estrela do mar”, que trabalha com o conceito de acorde,
com o sentido de “massa sonora constituída de várias notas soando simultaneamente”
(OLIVEIRA, 1996, p.81), sendo que os acordes livres se referem àqueles criados
espontaneamente pelos participantes. A “estrela do mar” é realizada com o grupo deitado em
forma circular, de mãos dadas, com os pés voltados para o centro. Inspirando cada um no
seu ritmo, ao expirar, projeta seu corpo para cima a partir da cabeça, podendo chegar até a
posição sentada, entoando livremente o som de uma vogal por vez, que, somando ao som de
outras vogais emitidas por outros participantes, formam acordes sonoros.
O resultado disso é um acorde livre com variações de tons e timbres, além da dinâmica do
movimento, que remete à imagem de uma estrela do mar. Existem muitas outras práticas de
voz associadas a movimentos corporais, nas quais o grupo reproduz ou complementa os sons
e movimentos de cada pessoa, de maneira que a possibilidade de se fazer muitas
variações de tonalidades e de ritmos a partir de exercícios simples. De uma maneira geral, as
práticas em Música Orgânica evidenciam o aspecto sagrado e ritualístico no trato com a
corporalidade e a corporeidade do grupo.
89
1.5.1.b. Outras práticas tradicionais de conexão corpo-voz: o corpo-som-do-ser
dos Tubunguaçu e o trabalho com os chacras
Como vimos, a noção de corpo-conexão refere-se também ao corpo-musical, e,
portanto, ao corpo que tem vida, uma vez que a música é considerada como sendo a própria
vida. A associação de maneira mais explícita entre os discursos sonoro e gestual na prática
artística encontra eco nos pensamentos de vários autores que buscam uma concepção
holística da realidade, entre eles, Carlos Fregtman, no seu livro “O Tao da Música”:
A música e a dança são consideradas, tanto pelos poetas e profetas de
antigamente como pelos cientistas e físicos modernos, uma manifestação da
energia dinâmica universal. (...) A música e o movimento, como expressões
orgânicas do ser humano, se encontram tão enraizados e entrelaçados que é
difícil situar o limite entre ambos, se é que existe. Todas as coisas são agregados
de átomos que dançam e, por meio de seus movimentos, produzem sons.
Quando muda o ritmo da dança, muda o som que esta produz; e, ao inverso: a
pulsação sonora afeta por si os processos de movimento que a circundam.
Cada átomo eleva perpetuamente seu próprio canto e a cada momento cria
formas densas e sutis. O som é movimento em forma da energia. O movimento
gera um padrão sonoro e cada som gera um padrão de movimento. São
indivisíveis, interdependentes e inseparáveis" (Fregtman, 1999, p. 142).
Há milênios que se sabe que os sons podem ser impulsos de criação e têm a
capacidade de liberar a energia bloqueada. Algumas práticas em musicoterapia utilizam os
sinos tibetanos e outros instrumentos, como também mantras e sons específicos para os
diferentes órgãos do corpo, ou para cada um dos chacras ou centros de energia. Estes sons
mântricos, possuem uma progressão numérica, uma pulsação, um padrão vibratório, que,
quando emitidos por duas ou mais pessoas, permite a criação de "overtones" ou sobretons
(tons harmônicos) que possibilitam ricas experiências de concentração e equilíbrio de
energia.
O corpo-som-do-ser:
Kaká Werá Jecupé, em "A Terra dos Mil Povos", nos mostra que os povos indígenas
brasileiros, em especial os tupinambás e os tupi-guaranis descendem de ancestrais chamados
Tubunguaçu, que detinham uma certa sabedoria da alma, ou seja, o corpo-som do ser. A
partir dessa sabedoria ligada a uma ciência do sagrado, intuíram técnicas de afinar o corpo
físico com a mente e o espírito. Entendendo o corpo como música, uma fala sagrada que se
expressa no corpo, veículo por onde flui o canto, que tem sua morada no coração, cada um
90
pode expressar a harmonia através do seu corpo. Para os Tubunguaçu, os tons essenciais do
corpo-som-do-ser são os que se seguem
52
:
Os tons essenciais que formam o espírito são o que a civilização reconhece como vogais. São sete
os tons sendo que quatro se referem aos elementos água, terra, fogo e ar que coordenam a parte física,
emocional, sentimental e psíquica do ser. Os outros 3 são referentes à parte espiritual de cada ser. (muito
semelhante ao trabalho de ativação dos chacras pela sonorização)
-Ÿ(com trema e se pronuncia um u gutural) - é chamado de angá-mirim raiz. Vibra o padrão terra do
ser. Sua morada é na base da coluna. É o tom da vitalidade física, determinação, da segurança, da
concretização. Bater o pé direito no chão e liberar esse som é o ato guerreiro de estar firme sobre o
caminho.
- U(pronuncia-se como o u do português) - chama-se angá-mirim água e vibra nessa direção. Sua
morada é no umbigo. É o tom da vitalidade emocional. Quando ele está no seu fluxo natural,
manifesta o bem-estar emocional e estimula a criatividade. Quando o corpo está preso, dançá-lo solta
as más águas.
-O - é o angá-mirim fogo e fica localizado no plexo. Os antigos pajés chamavam-no de
Kuaracymirim, ou seja, pequeno sol do ser. Sua vibração irradia o ayvu(sabedoria da alma) e dançá-lo
pode purificá-lo.
- A - vibra o tom angá-mirim ar e mora no coração. Essa vibração faz a união do céu com a terra, ou
seja, das partes interna e externa do ser. Seu tom vibra os sentimentos.
- E - vibra na altura da garganta. É a própria expressão da alma atuando na forma de palavras. Essa
região é responsável pela liberdade da alma é a nêe-porã, a fala sagrada da alma.
- I - esse tom mora na gruta sagrada do ser, que se localiza no fundo da cabeça, na direção entre os
olhos. ele estabelece ligação com o sétimo tom, que é o silêncio. Favorece a intuição quando dançado.
- O sétimo tom é um tom "insonoro", que não se pronuncia, mas significa sabedoria e amor
incondicionais ligados a força da criação é o tom do silêncio.
Acerca dessa associação entre o som das vogais e as regiões do corpo, semelhança
entre esta tradição indígena e algumas práticas corporais baseadas nos chacras, como é o caso
da Yoga e as práticas de cura através do som (como em ANDREWS), nas quais as artes
cênicas têm se beneficiado. A compreensão entre os povos indígenas da importância deste
alinhamento ou integração corporal através do corpo-som-do-ser está para a saúde da
comunidade, assim como a importância da construção do corpo-som-artista está para a
formação do artista cênico.
O trabalho com os chacras:
Em Andrews (1996) temos a relação do som com os chacras:
Vogal “U” -----Dó- pernas, pés, genitais, ânus, base da espinha;
Vogal “U”-----Ré- entre o umbigo e a virilha, pélvis, barriga, órgãos sexuais,
ovários, testículos;
Vogal “O” ----Mi- plexo solar base do externo estômago, gado, diafragma,
baço;
Vogal “A” ----Fá- área cardíaca – coração e tórax, pulmões, braços, mãos;
52
Texto retirado do livro de Kaká Era Jacupá, A terra dos mil povos, disponível no site www.
terramística.com.br, acessado em 10/08/2006.
91
Vogal “E”----- Sol garganta toda a área gutural pescoço e voz, boca, tórax,
pulmões;
Vogal “I”-------Lá- entre as sobrancelhas, acima do canal do nariz ouvidos, nariz,
olho esquerdo, sistema nervoso, base da cabeça;
Vogal “I”-------Si- coroa (topo da cabeça) parte superior da cabeça, cérebro, olho
direito.
Entre os que trabalham com musica e terapia, cada exercício pode ser ajustado, para
enfocar uma parte específica do corpo e, conseqüentemente revelar sons diversos, que
refletem como nós retemos uma variedade de problemas dentro de nosso organismo, nas
diferentes áreas
53
. Os sons podem ser impulsos de criação e têm a capacidade de liberar a
energia bloqueada. Algumas práticas corporais utilizam os sinos tibetanos e outros
instrumentos, como também mantras e sons específicos para os diferentes órgãos do corpo,
ou para cada um dos chacras
54
, ou centros de energia. Estes sons mântricos possuem uma
progressão numérica, uma pulsação, um padrão vibratório, que, quando emitidos por duas
ou mais pessoas, permitem a criação de "overtones" ou sobretons (tons harmônicos) que
possibilitam ricas experiências de concentração e equilíbrio de energia. Pronunciar palavras
e sons rituais é uma das maneiras que as antigas tradições tinham com o objetivo de mudar,
transformar e expandir a consciência humana e despertar dons criativos.
Angeles Arrien (1997) aponta para o fato de que alguns sons, de acordo com as
vibrações que têm, estão diretamente relacionados com as três forças universais da vida:
dinamismo, magnetismo e integração. O canto dos xamãs, os tons uníssonos dos tibetanos,
os exercícios de canto dos cantores judeus, são exemplos de tradições com os sons, com a
finalidade de realinhar as três forças vitais. Nossa sociedade contemporânea tem encontrado
nessas tradições não apenas ensinamentos e conhecimentos culturais, mas principalmente
técnicas corporais que combinam dança, música e teatro numa dimensão espetacular.
1.5.1. c. Conexão Corpo-Voz em Dalcroze: Música e Movimento
Da mesma maneira que a dança ou o teatro podem se beneficiar do discurso sonoro
rítmico e vocal, a música também tem se beneficiado muito mais tempo da expressão
53
Ver mais a respeito em Olivea Dewhurst-Maddock. A cura pelo som: técnica de auto-ajuda através da
música e da própria voz. São Paulo: Madras Editora, 1999.
54
Chacra ou chakra é um termo sânscrito que significa Roda. Segundo a fisiologia hindu, chakras são os
centros de energia e consciência. Os sete chacras clássicos estão alinhados na parte central do tronco, defronte
da coluna vertebral (básico, sacro, plexo solar, cardíaco, garganta, frontal e coronário). Cada chacra está
associado a uma determinada área do corpo e a uma certa qualidade, cuja energia percorre em movimentos
circulares. Quando funcionam juntos de forma coesa, todo o corpo fica em equilíbrio.
92
corporal, especialmente a partir de Émile Jacques Dalcroze
(1865-1950),
que descobriu a
importância do movimento corporal para melhor aprendizado, visualização e incorporação
da música. Dalcroze criou o método Eurritmia
55
(método de coordenação musical com
movimentos corporais - Ginástica Rítmica), mas não necessariamente com música vocal. A
dança moderna na Europa se desenvolveu a partir de muitos dos ensinamentos
desenvolvidos por Dalcroze na área de música.
Dalcroze afirmava que todo elemento musical poderia ser realizado corporalmente,
seja a altura (posição e direção dos gestos no espaço), a intensidade (dinâmica muscular), o
timbre (diversidade de formas corporais), a melodia (sucessão contínua de movimentos
isolados), o contraponto (oposição de movimentos), o acorde (gesto em grupo), a construção
da forma (distribuição dos movimentos no tempo e no espaço), destacando que a
consciência do ritmo, é resultado da experiência física e vem do aperfeiçoamento dos
movimentos corporais no tempo e no espaço, onde todo músculo pode contribuir para
avivar, clarificar, moldar e aperfeiçoar esta consciência, reforçando, junto ao sentimento -
que nasce da sensação muscular - as imagens presentes na mente
56
. Ele apela continuamente
à atenção, à memória auditiva e à capacidade de livre expressão do aluno, mediante a
criação de exercícios rítmicos e melodias com ritmo, de movimentos simples e
coreografados
.
Um exemplo de exercício rítmico em Dalcroze é feito com um grupo disposto em
círculo, de mãos dadas. Caminhando para a direita, numa contagem de oito tempos, faz a
mesma coisa para a esquerda. Depois subdivide o compasso em quatro, em dois e em um
tempo, de maneira que a mudança de direção aconteça cada vez num tempo mais curto.
Outra seqüência de exercícios de caminhada sugere a mudança de acento (com um pequeno
salto) em diferentes tempos do compasso.
Mesmo sem ter a pretensão de aplicar seus princípios à arte da dança, Dalcroze
influenciou gerações de coreógrafos, sobretudo alemães, tanto pelo despertar do sentimento
musical em todo o corpo, quanto pela descoberta de uma pedagogia do gesto. Paul Bourcier
(1987) relata o fato de Dalcroze ter sido descoberto pelo russo Diaghilev, em 1913, que
55
A Eurritimia de Dalcroze difere da Euritmia Artística, desenvolvida por Rudolf Steiner (1861-1925), nascida
na segunda década do século XX no centro europeu, que estabeleceu uma linguagem corporal que reproduz a
essência contida nos fonemas e nos tons musicais. Ver mais no site www.sab.org.br.
56
Apostila de Didática Musical do Curso de Música da Uni-Rio, organizada pela professora Regina Márcia
Simão Santos.
93
indicou sua assistente Marie Rambert para orientar Nijinsky no método dalcroziano para a
coreografia A Sagração da Primavera. Mais tarde, o Sistema Dalcroze iria influenciar
muitos aspectos do sistema de notação de movimento criado por Laban, a Labanotação.
no meio do século XX, o coreógrafo francês Maurice Béjart, que teve influência da
dança acadêmica e também nos criadores expressionistas labanianos, empregava todo tipo
de música, preferindo os instrumentos musicais de percussão e ainda o canto coral, para
despertar o ritmo interno dos bailarinos. Os cantores, ao seu turno, reconhecem a
importância do movimento para a liberação da voz, cujas caixas de ressonância estão
espalhadas pelo corpo inteiro. No canto coral uma espécie de preparação denominada de
técnica vocal, que inclui exercícios de som e movimento, combinação considerada
importante para a liberação da voz interior, que por sua vez, ajuda nos exercícios de
vocalizes melódicos de afinação.
1.5.1.d. Contribuições da Educação Somática na conexão corpo-voz: O Método
Feldenkrais
A importância dada aos processos de conhecimento do corpo e as reflexões acerca da
superação das dualidades, retornam fortemente nas discussões que envolvem a formação e a
criação cênicas, sendo a relação entre movimentos do corpo e sons da voz, falada ou
cantada, um assunto pertinente, por estar cada vez mais presente nas atividades de formação,
bem como nos processos de criação cênica na contemporaneidade.
A cada dia surgem novas pesquisas e técnicas que abrangem a relação entre som e
movimento, muitas das quais advindas das contribuições da Educação Somática. A
Educação Somática propõe uma aproximação holística da aprendizagem que se opõe à
mecanicista que prevalece na aula de dança e é definida como “a arte e a ciência de um
processo relacional interno entre a consciência, o biológico e o meio ambiente, estes três
fatores sendo vistos como um todo agindo em sinergia” (HANNA, In: FORTIN, 1998).
O artigo de Sylvie
Fortin aponta para o fato de que números cada vez maiores de
artistas e educadores interessam-se pela integração entre a ciência da dança e a Educação
Somática, o que tem influenciado suas formas de ensinar, modificando suas crenças e
comportamentos tradicionais. Considero o termo Educação Somática muito apropriado para
94
tratar de técnicas corporais, na medida em que, como observou Mauss (1974), os fatos da
educação dominam, em todos os elementos da arte de usar o corpo humano, que por sua vez
é social e culturalmente construído. Apesar de considerar o corpo como o primeiro e mais
natural objeto técnico de nossa espécie, Mauss compreendia que as maneiras de andar, por
exemplo, são adquiridas, não existindo maneiras naturais na pessoa adulta.
Uma técnica da Educação Somática muito procurada entre os artistas cênicos que
considero extremamente complexa é a criada pelo físico russo Moshe Feldenkrais (1904-
1984), que desenvolveu um método de recuperação do uso de suas próprias pernas, com
grandes traumatismos no joelho, através de exercícios neuro-musculares. O método que leva
seu nome está descrito principalmente no seu livro Consciência pelo Movimento (de 1972) e
consiste em melhorar os movimentos nas ações cotidianas, pela consciência das ações mais
sutis e integração funcional. O método de Feldenkrais
57
supõe que os seres humanos têm o
potencial transformacional e que não obstante sua idade ou condição, todos têm a habilidade
de aprender.
Um de seus discípulos, François Combeau, criador da Associação Le Geste Vocal,
desenvolveu seu próprio método, praticando e pesquisando todas as formas de expressão
que passam pelo movimento e a voz. Além dos princípios do método Feldenkrais, a
utilização de princípios tirados da medicina chinesa, yoga, taoísmo, zen, e a aprendizagem
de diferentes equilíbrios corporais e tomadas de forças, bases das artes marciais o levaram a
elaborar uma síntese pessoal do desenvolvimento corporal.
Para Combeau, o gesto vocal é um ato global de nossa vida física e psíquica.
comportamentos vocais, corporais e respiratórios adaptados e outros inadaptados ao
contexto ou situação relacional. As diferentes cnicas vocais são respostas a situações e
contextos específicos, quer sejam sociais, culturais, profissionais, religiosos. Transmitem-se
por tradição oral, iniciação, ou por adaptação a uma situação. Uma sociedade é representada
em parte pela sua música (música da língua, música das vozes, música da vida social,
afetiva, relacional). Esta exprime as características do grupo humano que pratica:
morfologia, lugar de vida, tipo de atividade, relação com o meio animal e vegetal e os
57
No Brasil existem alguns profissionais habilitados pela Associação Feldenkrais do Brasil, pois a técnica é mais
conhecida na Europa e nos Estados Unidos. Por ser um método fluido e dinâmico, seus discípulos fazem as
inovações de acordo com seus contextos.
95
elementos naturais (a água, a terra, o ar, o fogo), tipo de relação humana e relação entre o
homem e o sobrenatural.
A nossa voz é uma radiação que emana da nossa pessoa profunda. O método de
Combeau permite que cada um encontre sua expressão gestual-vocal individual a partir da
consciência de si mesmo no ambiente. Por sua vez, a italiana Grazia Annunziata, trouxe para
o Brasil a técnica de Combeau, associando, portanto, o movimento ao som vocal, cuja
técnica vivenciei por três meses com a mesma no Recife (2002), ao longo dos quais
compreendi como podemos nos descondicionar de padrões corporais que não nos servem
mais. Embora não tenha havido nenhuma prática de criação poética com este método, pude
perceber as possibilidades artísticas dos exercícios vocal-corporais vivenciados, e,
principalmente constatar a importância desta associação para uma abertura de repertório e
vocabulário corporal. A coordenação entre o movimento e a respiração e o som da voz é
inicialmente realizada lentamente e gradativamente a velocidade dos movimentos varia, de
tão lento, até tão rápido quanto possível.
Um dos exercícios mais importantes do método Feldenkrais consiste na diferenciação
dos movimentos pélvicos por meio de um relógio imaginário, pintado nas costas da pélvis.
“6 horas está sobre o ccix e 12 horas no topo da pélvis, onde ela se articula com a espinha
(...) se completarmos agora a face do relógio, 3 horas estariam na área da articulação
coxofemoral direita, e 9 horas na articulação esquerda” (FELDENKRAIS, 1977, p. 150).
Colocando o máximo de pressão da pélvis sobre o chão ao passar por cada ponto, pode-se
observar, em especial, a mudança da curvatura lombar, a relação com a cabeça, além da
percepção de como os movimentos afetam o processo respiratório. As conexões entre as
partes do corpo são evidenciadas com o objetivo de melhorar a organização e a mobilidade
corporal. Este exemplo prático mostra afinidades entre o método Feldenkrais e o Sistema
Laban/Bartenieff de Educação Somática.
1.5.1. e. Contribuições da Educação Somática na conexão corpo-voz: o Sistema
Laban/Bartenieff
Parece que as técnicas da Educação Somática, que têm por objetivo preservar a
natureza anatômica do nosso corpo, vêm contribuir para que as pessoas se apropriem de uma
maneira mais consciente de seu corpo, constantemente construído culturalmente. Soma se
refere ao corpo experimentado, experienciado, tanto físico, como emocional, mental e
96
espiritual, inseparáveis num todo. O trabalho de Laban está inserido num contexto pioneiro
da área de Educação Somática, como comenta Márcia Strazzacappa (1999), em seu estudo
sobre a história e evolução das técnicas corporais, que as técnicas corporais se originavam
da dança e do teatro desenvolvidas a partir de Delsarte, Dalcroze e Laban. Atualmente os
artistas recorrem à Educação Somática como uma complementação para a sua formação,
embora esta disciplina não seja recente.
Dentre estas técnicas, as mais conhecidas são as provenientes de Laban, presentes nos
exercícios fundamentais de Irmgard Bartenieff (1900-1982) e nos exercícios de expressão
vocal de Bonnie Bainbridge Cohen. Ambas as abordagens fazem a associação entre a voz e
o movimento, utilizando a sonorização paralela aos movimentos de respiração, vibração e
alongamento, com ênfase no ritmo, fraseado e expressividade das seqüências.
1.5.1.1. As noções de Integração, Conectividade e Repadronização
A noção de Integração é um dos focos de pesquisa de uma discípula de Bartenieff,
chamada Peggy Hackney. Sua abordagem destaca o processo de Conectividade como fator
de integração corporal (interna e externa). Este processo é um fator de fundamental
importância à plena realização de outro processo, maior e mais complexo que é a
incorporação, que é o que permite ao ser humano conectar-se consigo, com o outro e com o
ambiente num processo co-relacional amplo e profundo (MOTA, 2006, p. 52)
58
.
Segundo
Bartenieff (1998, p.13):
Conectividade refere-se ao alinhamento dinâmico da estrutura de sustentação
de peso, o esqueleto, tanto em movimento quanto imóvel. Ela permite que a
fluência, o impulso do movimento, passe pelo corpo de tal maneira que uma
ativação completa possa ser realizada da maneira mais eficiente possível
evitando o esforço desnecessário e o “stress”. É óbvio o suficiente dizer que
pernas, braços e cabeça estão “ligados” ao tronco, o à perna inferior, o
braço à articulação do ombro, etc., mas suas conexões são mais do que
músculos atravessando sobre as articulações para enganchar dois ossos. São as
correntes ativadas, configurações de conexões, que controlam o processo do
movimento.
Hackney desenvolveu esta concepção de Bartenieff. A noção de Conectividade em
Hackney diz respeito ao reconhecimento das partes do corpo como sendo separadas, porém
58
Hackney, Peggy. Making Connections total body Integration through Bartenieff Fundamentals. In: Mota,
Júlio César de Souza. A Poética em que o verbo se faz carne: um estudo do teatro físico a partir da
perspectiva coreológica do sistema Rudolf Laban de movimento. Tese de Doutorado. Salvador, UFBA,
PPGAC, 2006.
97
interconectadas. A mudança em uma parte muda o todo. À medida que temos consciência
das conexões, mais facilmente poderemos realizar mudanças significativas em nós, que a
essência do movimento é a mudança (HACKNEY, In: REIS, 2006). A conectividade
acontece entre as partes do corpo (superior e inferior, tronco e membros, metades direita e
esquerda), internamente entre diferentes estruturas e funções (músculos, ossos, articulações,
respiração, vocalização, sistema nervoso, endócrino, linfático, circulatório, etc., incluindo a
pele como órgão mais próximo do mundo externo e das pessoas), entre a mobilidade e a
estabilidade, entre o centro de força e suporte de equilíbrio (o chão pélvico) e a expressão
externa individual.
Esta integração e conectividade permitem um alinhamento corpo-mente, a partir do
qual tomamos consciência dos padrões atuais, que envolvem movimento interno e externo.
Partindo do interno para o externo, se chega na base da prática dos Fundamentos Corporais
Bartenieff, as Conexões Ósseas, que são linhas imaginárias dinâmicas entre marcos ósseos
do corpo. As Conexões Ósseas principais, identificadas por Bartenieff (in FERNANDES,
2002, p. 51), são: Cabeça-Cauda, Ísquios-Calcanhares, Cabeça-Escápula, Cauda-
Calcanhares, Ritmo Pélvico-Femoral e Ritmo Escápulo-Umeral. A consciência destas
conexões permite o movimento tridimensional de um corpo bem articulado. Por outro lado,
considerando que há estágios de diferenciação corporal que estabelecem nosso padrão
corporal atual, a percepção de certa dificuldade organizacional do corpo seria o primeiro
passo para a mudança.
Existem padrões neurológicos, estudados por Bonnie Bainbridge Cohen (1993),
baseados no movimento humano e animal, cujos estágios caracterizam diferentes
organizações corporais das quais se valem os exercícios dos fundamentos Bartenieff. Tais
padrões neurológicos estabelecem nossos Padrões Básicos de Movimento: movimento
espinhal (relação cabeça-cóccix), movimento homólogo (movimentos simétricos de dois
membros superiores e/ou dois membros inferiores simultaneamente), movimento
homolateral (movimentos assimétricos de um membro superior e um inferior do mesmo
lado) e movimento contralateral (movimento diagonal de um membro superior com o
oposto membro inferior).
Repadronização significa uma modificação no sistema corporal ligado ao movimento
dos ossos, músculos ou órgãos. Estas técnicas de integração corporal (o trabalho de
98
Bartenieff e suas discípulas Peggy Hackney e Bonnie Bainbridge Cohen) visam a
repadronização e são caminhos para integrar mudanças. É necessário que haja, portanto, a
conexão entre a postura, que relaciona todas as direções ao eixo vertical na posição
anatômica, e a prontidão para a mudança. Nesse sentido, a noção de repadronização é
compatível com a idéia de desaprender do caminho ritualístico. Para conhecer novas
possibilidades, é necessário um certo esvaziamento, um estado de desaprender, para ver
mais além.
Outra contribuição de Bonnie Bainbridge Cohen foi para o desenvolvimento dos
aspectos vocais dos estudos de Laban. Bonnie Bainbridge Cohen estudou a Análise Laban
de Movimento ou LMA (Laban Movement Analysis) no Laban/Bartenieff Institute of
Movement Studies (LIMS) com Irmgard Bartenieff, e é uma das fundadoras do Body-Mind
Centering (BMC), complexa linha de trabalho corporal considerada como ramificação das
teorias de Rudolf Laban. A partir daí desenvolveu diversos exercícios, entre eles, exercícios
de vocalização referentes aos planos espaciais (vertical, horizontal e sagital), os quais
facilitam a ampliação da extensão de voz, a diminuição das tensões e a exploração de
movimentos. A Figura 03 ilustra exercícios de respiração e vocalize com movimento de
braços nos três planos espaciais do BMC, utilizando a seguinte seqüência de vogais: “u”,
“o”, “a”, “e”, “i”.
99
Figura 04: Exercícios de escala vocal. Fonte: Bonnie Bainbridge Cohen (1993, p. 91)
59
Nestes exercícios, a voz é usada para vibrar a ativar o corpo em nível profundo. O
enfoque não é na projeção da voz, mas em sua força enquanto vibração corporal. Fernandes
(2005) lembra que a voz vem da pélvis, pernas e pés, e não da garganta. Um exercício de
voz que trabalha com os movimentos de braços justifica-se portanto pelo fato de, como
lembra Fernandes, os movimentos de braços nascem dos calcanhares.
na prática de sonorização de Bartenieff, iniciamos pela vogal “ih” vibrando na
cabeça, “ehna garganta, “ah” no tórax, “oh” no centro do corpo, e “uh” no abdômen. Esta
abordagem é muito semelhante à que é baseada nos chacras, também utilizada no processo
de Gestos Cantados (vide seção 3.1.4.).
59
Seu livro Sensing, Feeling, and Action é uma coletânea de artigos publicados no Contact Quaterly Jornal
entre 1980 e 1992 (Contact Editions, Northampton, MA)
100
No artigo que trata dos mecanismos da expressão vocal, Bonnie Bainbridge Cohen
explora a relação entre o ouvir e o movimentar, como sendo inter-relacionadas durante o
desenvolvimento humano. Ambos, o movimento e a fala, se desenvolvem simultaneamente
e em relação direta com o ouvir. A relação entre movimento e a audição é considerada como
uma comunicação não-verbal. Este ponto é fundamental para se entender como a
experiência corporal envolve outro tipo de compreensão dos sujeitos envolvidos, uma
compreensão da ordem do não-verbal. A noção de não-verbal refere-se à não
conceitualização racional da fala, mas não exclui as expressões sonoro-vocais que dela
provêm.
Nesse sentido, parece que o que acontece nos rituais de dança-música é justamente o
envolvimento com uma compreensão não-verbal do fenômeno, para que chegue à
consciência de outra maneira, de maneira que haja um diálogo mais fecundo entre a
comunicação verbal e a consciência. D se pode dizer que houve a possibilidade de
mudança de consciência, a partir da experiência direta, presente e fluente com o aspecto
meditativo dos rituais.
Penso que as relações encontradas nesta pesquisa entre os dois discursos, o do som da
voz e o do movimento, estão nesta categoria de integralidade corporal, sem, entretanto,
existir nelas a preocupação com a junção. Nas danças-músicas tradicionais, onde geralmente
os dois discursos ou imagens (verbal/vocal ou sonoro/melódica/rítmica e corporal” de
movimento) estão pré-estabelecidos, a fluência acontece de maneira mais natural, ou
melhor, sem esforço de atenção de aliar os dois discursos.
Ambos, movimentos e sons parecem estar numa relação de dependência mútua, o que
facilita a expressão de ambos. Mas isso não significa que não haja troca entre os sistemas e
que não haja reconfigurações no ajuntamento. Eventualmente acontecem improvisações,
tanto na dimensão do movimento gestual quanto na dimensão vocal, seja por iniciativa da
pessoa que está focalizando o trabalho, o xamã, o cacique, o mestre, seja por necessidade do
grupo de modificar a dinâmica estabelecida.
Na medida em que essas danças-músicas são utilizadas no processo de preparação
corporal elas podem ser desconstruídas em favor dos processos criativos. Este é um dos
pontos que gostaria de enfatizar durante a aplicação prática com o grupo. Os jogos de
improvisação de uma e de outra dimensão, ou de ambas simultaneamente se encaixam na
101
idéia que tenho sobre o ritual como princípio norteador do processo, e também do produto
cênico ritualístico. Os aspectos de dança-música são considerados aqui como os mais
importantes nos processos rituais, por serem os elementos condutores e organizadores dos
rituais.
1.5.1.2. O Gesto Vocal na Universidade
Na área específica de ensino e pesquisa em teatro, muitos trabalhos voltados para
esta articulação, ainda sem denominação, mas que tem sido chamada de corpo-voz ou
corpo-sonoridade, como acontece no Núcleo de Investigação Corpo e Voz, da Escola de
Teatro da UNIRIO. Neste projeto o objetivo é integrar os conteúdos ministrados nas
disciplinas Dança, Técnica e Expressão Vocal, Expressão Corporal e Canto. Um exemplo de
resultado artístico proveniente desse projeto é o espetáculo A Descoberta das Américas, com
texto de Dario Fo, apresentado na UNIRIO (ABRACE, 2006), mostra um produto estético
sintonizado com a perfeita articulação entre as linguagens corporais de som da voz e do
movimento, materializadas no corpo do ator Júlio Adrião.
Convém citar o trabalho de Jacyan Castilho, formada pela Unirio, atualmente
professora da UFBA, Iami Rebouças (UFBA) e Ciane Fernandes (UFBA). As três
professoras citadas têm como base de seus trabalhos o Sistema Rudolf Laban de Movimento
e a Educação Somática, cujas técnicas proporcionam conscientização do movimento, em
termos de preparação corporal. Castilho (2003) pesquisa um conjunto de procedimentos,
com base no Sistema Laban/Bartenieff de Análise do Movimento, que possibilitem ao ator a
criação de partituras psicofísicas (abarcando movimento, fala e as ditas “motivações
internas”), pertinentes às várias etapas do processo de montagem de um texto teatral: análise
de texto, improvisação, estudo de personagem, marcação de cenas. Iami Rebouças mostra
especialmente no seu trabalho de atriz as infinitas possibilidades vocal-gestuais na
construção de seus personagens (Umbiguidades é seu trabalho mais expressivo). Ciane
Fernandes tem vários artigos sobre suas aplicações do Sistema Laban na pesquisa das artes
cênicas, cujo resultado artístico tem sido na linha labanista da dança-teatro intercultural.
Outro exemplo de trabalho de associação entre voz e movimento é o da professora
Meran Vargens, da Escola de Teatro da UFBA, que oferece também cursos regulares fora da
Universidade. Dentre estes, participei durante um fim de semana do curso “Corpo e Voz em
102
Conexão Íntima”, destinado a atores e dançarinos. Com uma orientação baseada no Healing
e também em Grotowski, os processos investigativos motivados por Meran são profundos e
transformadores. São exploradas as conexões existentes entre corpo, voz, movimento, ação,
sentimento, sensação, pensamento e imaginário no jogo teatral tendo como eixo a intimidade
entre corpo e voz, território onde a expressão se materializa.
Entre inúmeras pesquisas existentes no âmbito da pós-graduação, que contemplam
esta integralidade corporal, destaco a de Patrick Campbell (UFBA)
60
, sobre a preparação
vocal do ator, tendo a metodologia de Grotowski com os cantos tradicionais, entre uma das
proposições analisadas. A pesquisa de Theda Cabrera Gonçalves (UNICAMP)
61
procurou
construir a corporeidade da voz, a partir do resgate da organicidade da palavra cênica e das
matrizes da dança pessoal do ator-pesquisador.
Além dos artistas e pesquisadores em Artes Cênicas, profissionais da área de
Fonoaudiologia têm investido na preparação de voz do ator, nessa perspectiva de conexão
entre voz e movimento, sem deixar de levar em consideração as emoções e os sentimentos
que advém quando do trato com essas relações. Esses profissionais têm dado suporte à área
de Artes Cênicas, inclusive com suas pesquisas voltadas para a preparação e a criação
artística, como é o caso de Juliana Rangel (UFBA), entre outros.
Na área específica de dança na universidade, no que se trata de processos criativos,
pesquisas na área de Semiótica da cena têm indicado caminhos para a criação de jogos
perceptivos com a relação entre voz e movimento dançante (voz falada), como se pode
observar durante as aulas do professor Duto Santana, no Laboratório de Corpo na Graduação
em Dança, da UFBA. Um dos exercícios consiste em realizar uma seqüência de movimentos
descrevendo verbalmente e simultaneamente o que o corpo faz. Esta é uma situação bastante
nova para bailarinos não habituados a usar a voz simultaneamente ao movimento. Pensar o
movimento, dançá-lo e descrevê-lo é um processo de aprendizagem importante não apenas
para o ator, mas também para o dançarino, ainda que este não tenha a linguagem sonora
como prioridade em sua atuação. Parece que os artistas-pesquisadores citados têm
apresentado questões e interesses sincronicamente semelhantes. É inegável o fato de que tais
60
A voz integrada: uma análise das proposições de Grotowski, Barba e Staniewski para o treinamento vocal e
sua aplicação na preparação do ator. Dissertação de Mestrado. UFBA, 2005.
61
Uma aprendizagem de sabores: a palavra cênica construída a partir da conexão entre movimento, emoção e
voz. Dissertação de Mestrado. Campinas, Unicamp, 2004.
103
processos de criação têm sido bastante enriquecedores e emergentes no sentido de viabilizar
mudanças estéticas na arte cênica da pós-modernidade, aproximando cada vez mais a
formação técnica, e a criação artística, de maneira que haja uma formação humana integral.
1.8. Fluxograma “arborescente” da pesquisa
“Os sonhos que viveram numa alma continuam a viver em suas obras”. Esta frase
escrita por Bachelard (2002, p. 117), remete ao fato de que uma rede ligando por fios os
vários pontos de uma trajetória. Do ponto de vista dos meus próprios fios, alguns destes
pontos parecem estar submersos pelas águas das emoções. Mas para o sonhador, a água
“propicia sempre um sucesso sobre a matéria compacta” (BACHELARD, 2002, p. 118).
Considerando que cada artista ou artista- docente
62
faz seu próprio caminho em arte-ritual,
exponho aqui uma ilustração que mostra as influências desta pesquisa teórico-prática
decorrentes da minha trajetória, “arborescente”, por um lado, e “rizomática” por outro, uma
vez que “o que vemos é a floração e ela desaparece. Mas o rizoma persiste”, como disse
Jung (1975, p. 20). Assumindo um sentimento de perenidade da vida sob a eterna mudança,
diante das influências das técnicas corporais vivenciadas ao longo de meu percurso, e
considerando a especificidade das técnicas corporais rituais encontradas na pesquisa
etnográfica, foi justamente a partir da associação entre os princípios rituais e o repertório de
técnicas de corpo que eu conhecia, que permitiu a elaboração de uma metodologia híbrida e
complementar, descrita no capítulo III.
62
Termo utilizado por Isabel Marques (1999).
104
Figura 07 - Fluxograma “arborescente” da pesquisa
105
II. Do Ritmo Norte ao Oeste: atrás dos nossos medos estão as nossas forças e talentos
DADOS ETNOGRÁFICOS
Elementos Ar e Terra
AH YUM HUNAB KU
EVAN MAYA E MA HO!
(Salve a harmonia da mente e da natureza)
O trajeto da direção Norte à direção Oeste situa-se entre a Ar-ejamento da mente e o
instinto da natureza telúrica, entre a orientação espacial da consciência ancestral e o silêncio
da interiorização e do enraizamento. O Oeste traz a introspecção, a receptividade, a
fertilidade, o lugar de cultivar os amanhãs, a capacidade de concretizar nosso intento, pleno
reconhecimento de nossas forças interiores, a compreensão das nossas naturezas, a tomada
de conhecimento sobre a vida e a sobrevivência, e é o lugar do profundo feminino
.
A direção
Oeste da pesquisa nos convida a participar da cena, deixando de ser apenas observadora,
para aprender a olhar o próprio mundo através da experiência.
Durante a experiência etnográfica, descobri que A vida nem sempre é uma questão
de ter boas cartas, mas, por vezes, de jogar bem com cartas ruins” (Jack Londom, 1991, p.
74). Os rituais de iniciação e passagem a que me submeti permitiram tomar consciência da
minha história de vida, no que se refere ao desenvolvimento emocional, especialmente ao
observar como estava a ludicidade da minha parte criança, tão valorizada nas tradições
xamânicas. As emoções da criança interior, muitas vezes ferida por um passado opressor,
vão dando lugar à profundidade dos sentimentos, na medida em que o enraizamento vai
acontecendo, permitindo que olhemos com maturidade para a nossa realidade e a do outro.
Ao reconhecer o fato de que é possível reelaborar nossa história, superando as dificuldades e
encontrando portas para um caminho mais criativo, instalou-se um sentimento de
cumplicidade para com todas as minhas relações.
As primeiras impressões que tive através das vivências de campo se situaram na
dimensão do caráter espetacular das práticas rituais, olhar atraído e influenciado pelas
manifestações de dança-música, muitas delas de cunho ritualístico, presentes nas festas e
carnavalizações do sagrado, identificados nas danças-músicas indígenas onde o Toré está
inserido, e no teatro do povo do Nordeste. Aos poucos, o olhar de pesquisadora foi se
transformando, na medida em que eu entrava nos rituais e ia sendo absorvida por eles. Fui e
106
ainda estou trilhando o Arquétipo do Caminho
63
, entrando em labirintos, grutas e matas, e
querendo chegar ao topo da montanha, em busca de visão e do sentido da vida. Então
descobri que a espetacularidade aparente é apenas uma maneira de despertar o
aprofundamento da dança interior, ou melhor, do movimento interno de cada pessoa que vai
sendo atraída pela beleza das formas e sons espetaculares.
A ênfase na experiência não valoriza a conceitualização do presente. Durante a
vivência é importante mesmo experimentar sem tentar interpretar, fazer apenas observando
o que se passa em si, sem julgamentos, para estar mais receptivo e aberto ao novo. Jorge
Larrosa Bondía, em seu artigo Notas sobre a experiência e o saber da experiência (2002),
coloca o fato de podermos ser transformados pela experiência, na medida em que nos
colocamos como lugar de passagem ou como ponto de chegada, ou como espaço do
acontecer. O fazer seria mais um aceitar o que nos acontece e nos afeta, do que realizar uma
atividade. O saber da experiência é o que se adquire no modo como vamos dando sentido ao
que nos acontece, pois se na relação entre o conhecimento e a vida humana. Isso é o que
permite a ampliação do conhecimento, segundo diversas tradições culturais. A compreensão
disto traz a sensação de que ainda muita coisa para aprender, com a esperança de chegar
ao norte do conhecimento e da sabedoria que se espera advir de toda pesquisa científico-
artística.
2.1. Entre o arcaico e o contemporâneo: o poder da experiência.
A vida é um diálogo entre as tradições e a iminência do novo, um constante trânsito
entre os ensinamentos antigos e o que podemos fazer com eles no mundo atual, um trânsito
entre a natureza e a cultura. O fenômeno da supervalorização da noção de cultura como
sinônimo da arte e erudição, de certa maneira desmistificou o que podemos chamar de
conhecimentos tradicionais ligados ao que é natural e ontológico do ser humano. Nesse
sentido, cantar e dançar podem ser considerados inseridos nessa ordem de universalidade
arquetípica de nossa espécie. O que surpreende nas manifestações consideradas da cultura
oral-corporal é justamente essa experiência explícita das pessoas, que nos remete às coisas
mais simples e belas, já que os corpos, porque integrados, podem expressar, independente de
sua identidade cultural, religiosa, étnica.
63
Este Arquétipo do Caminho foi citado por Eric Neumann (1999:23). Relativo ao desenvolvimento da
consciência humana, este arquétipo assumiu a forma de ritual consciente do caminho, onde o fiel é obrigado e
percorrer um caminho ritual, chegando a uma fase de representação do simbolismo interior das pessoas.
107
De acordo com Amálio Pinheiro (2005), não há outro jeito de ser feliz a não ser
entrando em contato com os objetos e a memória da cultura. Este contato na verdade já
existe, porém de uma maneira misturada, nas formas de uma mestiçagem, uma vez que na
cultura brasileira o antigo se mistura facilmente com o novo, o arcaico, com o tecnológico, o
local com o universal, havendo ainda a mestiçagem entre elementos de diversas tradições de
diversas partes do mundo. Encontramos objetos incas, peruanos, associados a outros
símbolos indígenas brasileiros, africanos ou indianos, presentes na moda, na culinária, na
música, na dança, na corporalidade. Se a nossa cultura já é mestiça, precisamos então pensar
pela ótica da mestiçagem, ter um pensamento mestiço ao se estudar as culturas brasileiras ou
as diversas culturas no Brasil.
Na arte, o discurso da Antropofagia Cultural
64
, reconhecido como existente desde 1500
e difundido por Oswald de Andrade na década de 1920, cujo instrumento básico é o da
mestiçagem, hoje tem o nome de Interculturalidade ou Interculturalismo. Este também
possui as mesmas características antropofágicas de absorver, digerir e transformar,
devolvendo ao mundo em forma de novidade, o caldo cultural social, porém avança para
além das formas, com uma consciência maior dos significados sociais e subjetivos.
Na pós-modernidade, definida por Maffesoli (2004, p. 22), como “a sinergia de
fenômenos arcaicos com o desenvolvimento tecnológico”, o retorno ao local, a importância
da tribo e da montagem mitológica são as características principais. O politeísmo de valores
de Max Weber que Maffesoli reapresenta, faz parte dessa busca de experiência tribal da
sociedade, cuja diversidade de aglomerações (esportivas, musicais, virtuais, religiosas)
acentua a experiência vital. A experiência comum da vida cotidiana acentua mais a
pluralidade das razões e sensações, e permite transformações na subjetividade e na
corporalidade.
não podemos mais pensar um fenômeno como o xamanismo atual e outras
manifestações dos nossos tempos, como retorno ao arcaico e à barbárie, mas como uma
busca do ritmo da vida no íntimo de nossos sentidos e sensos comuns, uma busca de
atualização de si a partir de tradições culturais renovadas.
64
Ver sobre a definição de antropofagia na visão positiva e inovadora de Andrade, no site
http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia.
108
Para Maffesoli (2004), a experiência é vista com o corolário do vivenciado, sendo que
a unidimensionalidade do pensamento é incapaz de compreender a polidimensionalidade da
vivência. Corolário significa a afirmação deduzida de uma verdade já demonstrada. Este
caminho de depositar ênfase na vida, na experiência, por parte da sensibilidade intelectual,
remete a um sentir em comum, o que leva o autor a constatar que a intensificação da
experiência vital induz à socialidade.
Para Bondía (2002), a experiência é uma coisa cada vez mais rara no mundo
globalizado, devido ao acúmulo de informações a que estamos submetidos, manipulados
também pela velocidade das opiniões, notícias e novidades efêmeras. Para este autor, o saber
da experiência se na relação entre o conhecimento e a vida humana. A experiência que
faz sentido seria aquela que nos toca existencialmente, a que traz “a possibilidade de que
algo nos aconteça”. “A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que
não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente existe de uma forma
sempre singular...” (BONDÍA, 2002, p. 25).
Nesse sentido, experimentar é muito mais um não-fazer, um estar receptivo, aberto e
disponível ao nosso próprio tempo e nosso próprio espaço. Seria uma exposição, com tudo
que isso tem de vulnerabilidade e de risco, no sentido de Heidegger (apud Bondía, 2002, p.
25), para quem o sujeito da experiência é aquele que aceita o que dele se apodera e o deixa
transformar:
(...) Quando falamos em ‘fazer’ uma experiência, isso não significa
precisamente que nós a façamos acontecer, “fazer” significa aqui: sofrer,
padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar, à medida que nos
submetemos a algo. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de
um dia para o outro ou no transcurso do tempo.
Bondía nos lembra que este aceitar ou assumir o padecer não tem nada a ver com mera
passividade. Nesse sentido parece haver uma distinção entre a ação e a atividade, onde a
primeira está relacionada com o sentido da experiência e com a criatividade, sendo a
segunda, algo que se faz sem propósito. A ação seria uma resposta ao momento presente,
por meio de uma mente silenciosa. A atividade desperdiça energia, resulta de uma mente
inquieta, geralmente ligada ao passado ou ao futuro. A ação acontece a partir do
relaxamento, não do corpo ou da mente, mas do todo que nós somos. A experiência e a ação
109
se dão quando nos sentimos corpos fluidos, quando nos permitimos que o todo flua através
de nós.
Nesse sentido, parece que essas práticas rituais atualizadas às quais a sociedade em
geral tem tido acesso vêm ao encontro das técnicas corporais mais específicas dos artistas
cênicos, como uma forma de complementação e intensificação da experiência. Há algumas
décadas a ciência tem encontrado justamente na sabedoria antiga as respostas para os
problemas gerados pelo materialismo, ampliando a noção de consciência e compreendendo
que a matéria também é metafísica. A atenção dada pela ciência aos rituais é uma das
maneiras de compreender as realidades existentes por meio da intensificação da experiência
corporal. A noção de consciência e ampliação desta refere-se a um processo gradual de
transformação da consciência sensorial visando à libertação da armadilha mente-corpo.
Detendo-me às coisas do corpo, cuja noção prevalece na atual proposição da
Etnocenologia
65
, as experiências adquiridas durante os rituais observados, especialmente os
que incluem danças cantadas me permitiram compreender um pouco mais sobre as relações
corpo-mente, a partir das relações entre o som da voz e o movimento corporal, encontrando
maneiras de utilização do ritual na construção da corporalidade cênica e criação artística.
Para tal, antes foi preciso incorporar os princípios rituais inerentes às experiências, a saber:
2.1.1. Princípios Rituais:
a intenção ou propósito que se busca alcançar;
a criação de um espaço sagrado;
o significado trazido por cada direção - sul, oeste, norte, leste e centro -, à medida
que caminhamos por elas durante os rituais;
a qualidade que cada elemento da natureza - água, terra, ar e fogo - possui quando os
integramos em nosso ser;
a união dos reinos humano, vegetal, mineral e animal na compreensão das nossas
relações e entre nós e o cosmos.
a diversidade dos sons e ritmos musical-corporais das tradições orais;
as diferenças de história e missão de vida de cada pessoa do grupo;
a comunhão e a harmonia do coletivo;
a celebração (o trabalho)
65
A perspectiva etnocenológica se opõe ao pensamento dualista segundo o qual se concebe a existência de
atividades simbólicas sem corpo e atividades corporais sem implicação cognitiva e psíquica. Ver mais em
Armindo Bião, A. Etnocenologia, uma introdução. In: Etnocenologia: textos selecionados. São Paulo,
Annablume, 1999.
110
2.2. Sobre o Xamanismo
Segundo Mircea Eliade (2002) uma primeira definição desse fenômeno complexo, e
possivelmente a menos arriscada, é: xamanismo = técnica do êxtase. Este autor encontra
mais razão em incluir o xamanismo entre as místicas do que na lista daquilo que
habitualmente é chamado de “religião”. Por outro lado, o xamanismo pode ser encontrado
no interior de um número considerável de religiões, entre elas o Cristianismo, o Budismo, o
Taoísmo. Eliade entende que o xamanismo strictu sensu é, por excelência, um fenômeno
religioso siberiano e centro-asiático, mas não está restrito a essas regiões. A palavra chegou
até nós através do russo, do tungue saman.
Há uma teoria não demonstrável historicamente de que o xamanismo estaria ligado em
suas origens com o budismo tibetano pelo fato da ligação entre as palavras saman e samana,
esta última usada para indicar o monge e o asceta no budismo antigo. Há também a teoria de
que o xamanismo deu origem a muitas religiões, mas nunca se tornou uma religião, embora
possa estar substituindo esta necessidade na atualidade. Com Eliade compreendemos que
diversas espécies de xamanismo, mas todas possuem fenômenos mais ou menos similares.
Seus princípios são universais, podendo ser encontrados nas tradições de vários povos.
O xamanismo
66
, segundo E. Jean Langdom (1996, p. 12), “não conhece fronteiras,
nem nacionais, nem tribais”, é um fenômeno globalizante e dinâmico e tem atingido a
sociedade em geral, em parte através dos círculos terapêuticos. Trabalhos como estes
últimos, terapêuticos/xamânicos, em forma de workshops, têm como finalidade atingir
novos estágios de consciência, sem necessariamente fazer uso de alucinógenos. As
experiências adquiridas nas vivências individuais e grupais são fonte de autoconhecimento
para o corpo, a mente e a espiritualidade. Como nos esclarece Langdon (1996, p. 27 e 28):
A heterogeneidade dos sistemas xamanísticos demonstra que o
xamanismo também abrange mais do que um sistema religioso, no
sentido restrito. Falar de xamanismo em várias sociedades implica em
falar de política, de medicina, de organização social e de estética...
Num
sentido mais amplo, o xamanismo se preocupa com o bem-estar da sociedade e
de seus indivíduos, com a harmonia social e com o crescimento e a reprodução
do universo inteiro. Abrange o sobrenatural, tanto quanto o social e o ecológico.
Assim, o xamanismo é uma instituição cultural central que, através do rito,
66
Sobre o “estado da arte” dos estudos sobre xamanismo no Brasil, ver artigo de Langdon, Introdução:
Xamanismo - velhas e novas perspectivas. In: Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas. Florianópolis:
UDESC, 1996.
111
unifica o passado mítico com a visão de mundo, e os projeta nas atividades da
vida cotidiana.
O xamanismo é uma área de conhecimento legitimada em universidades nos Estados
Unidos, como é o caso da Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA), onde
uma linha de pesquisa sobre a relação entre o ritual e a transformação pessoal, no World
Arts and Cultures Department, no qual a professora Dra. Irma Dosamantes-Beaudry trabalha
com ênfase na arte-terapia, cultura e performance e tradições rituais femininas.
O conhecimento sobre o xamanismo está nas universidades brasileiras pela via dos
estudos indigenistas e da antropologia das religiões. Sendo mais conhecido como pajelança,
o xamanismo constituiu-se um desafio para a antropologia, que não conseguia desenvolver
modelos teóricos eficazes para sua compreensão. Segundo Langdon (1996), o xamanismo
está sendo revalorizado tanto no mundo acadêmico quanto fora dele e o estado de
consciência xamânica tem despertado um interesse crescente nas pesquisas atuais, no caso
do Brasil, especialmente pela via das pesquisas sobre plantas psicotrópicas usadas nos cultos
do Santo Daime e União do Vegetal, fenômenos importantes instituintes das sociedades
nativas da América do Sul.
Muitos pesquisadores, e não apenas antropólogos, mas também físicos, artistas, têm se
submetido às iniciações xamânicas com povos indígenas. O diretor teatral Antonin Artaud
esteve em 1936 com índios mexicanos taraumaras, onde teve experiência com o ritual do
peyote, o nome de um cacto que produz a substância alucinógena mescalina. Embora Artaud
não tenha se curado, ele continuou buscando através do peyote um novo caminho espiritual,
social-artístico.
Fenômenos religiosos brasileiros como os cultos da Jurema e o do Santo Daime
67
são
exemplos emergentes, mas não recentes, de utilização do tambor xamânico, com a
finalidade de ampliação da consciência.
Ao ter contato com fenômenos de expansão da consciência, o físico Patrick Druot
(apud LINHARES, 1999)
68
, encontrou o xamanismo da Amazônia Peruana e passou a
67
Ver a respeito: Santos e Xamãs, de Fernando de La Rocque Couto, um estudo do uso ritualizado da
ayahuasca por caboclos da Amazônia, e, em particular, no que concerne sua utilização sócio-terapêutica na
doutrina do Santo Daime no site www.santodaime.org.br. Ver também a pesquisa de Edward MacRae sobre o
ritual do Santo Daime, em especial seu artigo O Ritual do Santo-Daime como Espetáculo e Performance. In:
Performáticos, Performance & Sociedade. João Gabriel Teixeira (org). Brasília: Editora Universidade de
Brasília,1996 (pp. 75-84).
112
compreender melhor as atividades do lado direito do cérebro que estavam presente nos
estados alterados de consciência durante as cerimônias e rituais. Para ele o ideal não é usar
apenas um dos lados, mas conseguir sincronizar os dois lados do cérebro, viver num mundo
material, mas com uma percepção diferente. Druot comenta ainda que é possível passar por
este tipo de experiência sem o uso de plantas, apenas através dos sons, sobretudo o som dos
tambores. Esta pode ser considerada uma eficiente técnica corporal, uma técnica de
estimulação do campo magnético e vibracional. O som do tambor facilita a conexão de
qualquer pessoa com seu mundo interior e com todos os ritmos de seu corpo, produzindo um
estado de relaxamento, de equilíbrio e ampliação de consciência, proporcionando, assim,
uma conexão e harmonia com os ritmos planetários e cósmicos. Quando se está em
sincronia com uma batida de tambor, é possível chegar a uma percepção mais aguçada, a
qual, segundo Druot, traz sentimentos de tolerância, respeito e amor.
Langdon observa que uma das preocupações da antropologia simbólica está no
aprofundamento das análises do processo ritual para entender a raiz das emoções e dos
sentimentos, o que ao tema do xamanismo, uma abordagem mais adequada. Tal
abordagem contempla as diferentes manifestações do xamanismo, inclusive a do movimento
de “neo-xamanismo” dentro dos círculos terapêuticos, onde talvez possa se enquadrar o
objeto de estudo desta pesquisa. No entanto, não pretendo tratar o xamanismo aqui pela via
terapêutica, apesar do seu potencial de cura, mas sim pela via dos estudos do corpo e da arte,
com o auxílio das disciplinas afins já citadas.
Os antigos rituais xamânicos têm despertado a atenção das pessoas, independente de
sua classe social e inserção cultural. Estas práticas xamânicas ou neo-xamânicas estão
retornando hoje em meios sofisticados como o das terapias alternativas contemporâneas.
Segundo Aldo N. Terrin (1996), o neo-xamanismo é um movimento da “Nova Era”, ou
“New Age”, também chamada de “Era de Aquário”, uma vez que adapta alguns métodos e
práticas tradicionais xamânicas às necessidades da sociedade moderna, focalizando a
espiritualidade e a cura psicológica. Ainda que este autor não situe o contexto no qual o
xamanismo vem sendo atualizado, sua análise pontua as características filosóficas deste
movimento, como fenômeno da contemporaneidade religiosa:
68
Entrevista concedida a Cida Linhares, da Revista Isto é. Ver entrevista na íntegra no site:
http://www.terra.com.br/istoe/vermelha/157102.html (acessado em 30 de maio de 2007).
113
ritualidade como retorno ao “irracional”, mito-lógico, à experiência meta-
comunicativa;
meditação como indução aos estados alterados de consciência ou de transe, por
meio de concentração em sons rítmicos de um tambor, por meio de danças e
cantos ritmados, por meio do isolamento, jejum, uso de plantas;
a busca da saúde holística, da cura física e do resgate da alma, a partir da
harmonia entre natureza e espírito;
reelaboração de ritos de culturas arcaicas e atuais, indígenas e oriental-
tibetanas;
abordagem ritual simultaneamente pragmática e mística.
O sistema xamanístico do Castelar da Alvorada parece conter todas as características
acima citadas. No entanto, prefiro substituir o termo “irracional” pelo termo “não racional”,
pela abrangência que este termo tem de abertura aos possíveis estados de consciência e
subjetividade. Outra característica deste xamanismo observado é a de que envolve técnicas
de êxtase e não de possessão, cujos rituais podem levar a um transe coletivo induzido
especialmente pela música, mas não a uma possessão por entidades, embora Sylvie
Handjiam eventualmente faça o papel de médium de desobsessão ou de exorcismo (vide
entrevista, apêndice 4.1.). Os rituais por mim observados traduzem bem o que Gilbert
Rouget (1985) observou na relação entre música e transe: a música induz o praticante a se
identificar com a divindade (neste caso, com o divino dentro de si) e também de expressar
esta identificação corporalmente.
Tendo em vista a amplitude do tema observado, incluí num mesmo universo temático
dois grupos de experiências de campo: um que compreende os rituais xamânicos do Castelar
da Alvorada
69
, focalizados por Sylvie, oriundos principalmente de tradições nativas
ameríndias (do norte, central e sul), e outro que aborda as Danças da Paz Universal, grande
parte proveniente desta cosmologia xamânica indígena.
2.3. O Xamanismo de Sylvie (Shining Woman) no Castelar da Alvorada
69
Todas as fotos e filmagens da pesquisa de campo foram feitas por mim no Castelar da Alvorada, no período
de fevereiro de 2003 a setembro de 2007.
114
Temos como figura central desta pesquisa a francesa naturalizada brasileira Sylvie
Shining Woman, nome xamânico de Sylvie Georgette Handjiam, que mora no espaço de
vivências que ela intitulou de Castelar da Alvorada Espaço de Consciência Criativa -,
situado a seis kilômetros do Vale do Capão, na Chapada Diamantina, Bahia.
Figura 08: Foto nº. 1 – Sylvie Handjiam (Shining Woman)
70
/ Figura 09: Foto nº. 2 - Sylvie no
arbor
Nascida em Paris, estudou Direitos Humanos na Universidade de Vincennes e optou
por seguir o caminho espiritual e a busca do autoconhecimento. Por vários anos dedicou-se à
compreensão da obra dos mestres da Grande Fraternidade Branca. Viajou para o Oriente
onde freqüentou alguns mosteiros, convivendo com mestres e instrutores, entre eles,
Krisnamurti. No começo dos anos de 1980, freqüentou a Escola de Desenvolvimento
Espiritual dos Antigos Mistérios na Índia. Na Escandinávia, estudou o xamanismo céltico e
norte-americano, aprofundando-se neste último durante alguns anos com a Xamã Donna
Talking Leaves, índia Cherokee, trazida para a Chapada Diamantina para transmitir técnicas
xamânicas como: Roda de Medicina ou de Cura, Inipi (Sauna Sagrada ou Tenda do Suor),
Cura com Cristais, expansão da consciência e resgate da alma.
Durante todo o ano, Shining Woman focaliza vivências aos finais de semana com
grupos de mulheres, grupos mistos e grupo de jovens, em São Paulo, Brasília e Bahia.
Atualmente trabalha com grupos na Europa e na América do Sul, todos com o objetivo de
descobrir o potencial que há em cada pessoa.
A aceitação por parte de Sylvie em realizar a minha pesquisa a partir do Círculo de
Mulheres que ela orienta, deveu-se ao fato de que ela reconhece a importância de tratar esse
70
disponível no site http://www.shiningwoman.com.br/
115
assunto de uma maneira ampla na contemporaneidade. Contudo, uma das condições seria a
de que eu revelasse apenas as experiências decorridas da participação nos rituais, bem como
o depoimento das colegas participantes do atualmente chamado Círculo de Mulheres do
Castelar da Alvorada, de acordo com o consentimento delas. Entre as pessoas entrevistadas
71
estão, além de Sylvie, mais três mulheres participantes do rculo de Mulheres. Como
complementação, entrevistei três homens que participavam do grupo de homens liderado por
Duarte, na época onde os trabalhos eram feitos na região do Riachinho (Instituto de
Pesquisas das Energias Naturais
72
). Alguns trechos de depoimentos estão ilustrando as
discussões e descrições de experiência neste capítulo. Além dos registros feitos através de
anotações escritas no diário de campo, algumas gravações, fotos e filmagens também
fizeram parte da coleta de dados, estas últimas, porém, não foram divulgadas em respeito à
importância dada por Sylvie à difusão e transmissão oral dos ensinameentos, bem como à
experiência direta nestas práticas rituais. Assim, em nenhum momento foi permitido gravar
os sons dos rituais, apenas os ensinamentos transmitidos por Sylvie o eram. Gravei apenas
os ensaios dos cânticos da Dança da Águia. As músicas que sei de cor” são as que aprendi
na experiência, que aprendi com o “coração”.
As atividades desenvolvidas no Castelar da Alvorada estão em vias de publicações a
serem feitas pelos próprios participantes, entre eles, escritores, pesquisadores, artistas,
terapeutas, fotógrafos, etc., que pretendem socializar um tipo de caminho holístico de
crescimento pessoal e coletivo. Até o momento, poucas pessoas têm tido o consentimento de
Sylvie para escrever sobre seu trabalho. Conheci uma pessoa que está em pleno trabalho de
coleta de dados para o lançamento de seu livro de fotografias sobre rituais no Brasil (Chris
Day). No entanto, como os rituais da Alvorada são secretos, apenas as preparações podem
ser fotografadas, além das caminhadas do grupo para a sauna de suor, os cânticos junto ao
fogo, ou a preparação dos escudos pessoais. É certo que não foi permitido a ela fotografar os
quatro últimos dias da Dança da Águia no local de cerimônia, para mim, a atuação ritual
mais espetacular e performática. Além disso, muitas pessoas que não querem ser
fotografadas e isso deve ser respeitado. Eu mesma, durante a coleta de dados, fui
interrompida por pessoas que não queriam aparecer em fotos ou filmagens. Nos rituais
xamânicos da Alvorada uma restrição ética muito grande, no sentido de não atrapalhar o
71
Ver nos apêndices 2, 3 e 4 os roteiros e transcrições na íntegra das entrevistas e a lista dos entrevistados, os
quais receberam por e-mail suas entrevistas para que pudessem corrigir e aprovar ou não os dados expostos.
72
Citado no artigo Acampamento Verde do Guia de Abordagens Corporais, de Rita Ribeiro e Romero
Magalhães (orgs). São Paulo: Summus, 1997.
116
processo interno de cada participante e do grupo. As fotografias podem inibir tais processos,
diminuindo a possibilidade de entrega e abertura para o desconhecido.
O xamanismo traz uma espécie de sabedoria corporal, de experiência direta,
incorporada, a meu ver complementar ao conhecimento científico. Alguns romances não-
acadêmicos (os de DONNER-GRAU, WHITAKER, SAMS, MILLMAN,
HAMMERSCHLAG, por exemplo) têm surtido efeito ao optarem por descrever as
experiências dos próprios autores, motivando o leitor leigo a conhecer as práticas xamânicas
pessoalmente. No que diz respeito ao estudo científico, Sylvie me advertiu sobre as
limitações que existem nos estudos acadêmicos sobre o xamanismo:
O xamanismo é muito maior do que isso, hoje ele foi um pouco desviado da
origem dele, do seu objetivo mesmo, mas ele é muito maior do que isso, porque
ele abrange o todo. Os estudos o aprisionaram, botaram numa rede de cadeia, e
colocaram numa forma acadêmica. Por isso que quando você falou de fazer
uma tese, eu falei: “olhe, preste bem atenção, porque o lado acadêmico tende a
minimizar as coisas, sabe quando o computador minimiza? Tem tendência a
minimizar ou deletar, e nessa coisa de deletar, você se afasta da essência de
novo. Começa a etiquetar: ‘xamanismo é isso, não é isso”.
Considerando a colocação acima e assumindo o desafio de pesquisar o xamanismo a
partir da minha própria vivência como observadora participante, minha proposta, portanto,
não é ser intermediária do conhecimento xamânico, já que este só se aprende na experiência,
mas levar o leitor a perceber a importância da experiência, que é valorizada ao invés de
minimizada – através de uma sistematização acadêmica flexível e atual. Longe de considerar
como pré-científica toda a experiência com a ritualidade, mas como via legítima de
conhecimento, esta escrita sobre a experiência xamânica e a criação em dança-teatro-ritual
configura uma abordagem sintética entre a disciplina da forma e a vibração da energia, que
remete a uma auto-referencialidade e uma auto-poiesis.
À medida que experimentava o xamanismo no Castelar da Alvorada, minha percepção
de ritual foi se ampliando e agora, o percebo como um fenômeno que não aponta para o
passado; não é um retorno histórico ou nostálgico a uma comunidade ritualística, mas a um
tempo tríbio, que valoriza não apenas as culturas nativas, orais, multisensoriais, ancestrais,
mas também o reencantamento do presente e ainda o futuro pela via do ensinamento ético-
ecológico do cuidar, como em Leonardo Boff (1999).
117
Mircea Eliade observou que o xamanismo era um dos principais elementos de
continuidade cultural, os quais mantinham ligações entre povos antigos e atuais da Ásia, das
Américas e da Europa. Nesse sentido, as características do xamanismo na Alvorada se
encaixam naquelas características gerais do xamanismo clássico, encontradas por Eliade, ao
comparar as práticas xamânicas em quase todo o mundo.
Parte da etnografia desta pesquisa é sobre a Dança da Águia por ser um ritual muito
importante, e por razões faladas sobre a sua complexidade, principalmente por conter
vários rituais em seu conjunto. É um grande ritual, cujas práticas foram difundidas para
vários países, embora haja pouca bibliografia sobre isso, além das que existem a respeito
dos nativos norte-americanos (ver HAMMERSCHLAG, 1994).
2.3.1. Castelar da Alvorada – diálogo de tradições
Fig. 10: Foto nº. 3 - Casa principal do Castelar da Alvorada / Fig. 11: Foto nº. 4 - idem
O Castelar da Alvorada está situado na estrada de Caeté Açu, próximo ao Morrão e
ao rio chamado Riachinho
73
, que passa dentro da propriedade. Em resumo, temos a casa
principal de Sylvie, com quartos de hospedagem, xalés próximos à casa principal, o Templo
ou salão, a Sauna mexicana (Temascal), a mata que acesso ao rio e aos outros espaços
rituais como: a clareira aberta na mata com as saunas, a área do arbor da Dança da Águia, o
espaço da Roda de Cura, montanhas, gruta, cachoeira (vide mapa da Alvorada e seu entorno,
no apêndice 5).
73
Ver fotos da Cachoeira do Riachinho e da Cahapada no site:
http://www.pbase.com/marciomachado/chapada_diamantina
118
Figura 12: Foto nº. 5 – O Morrão, visto da Alvorada
Sylvie ocasionalmente apresenta o salão de trabalhos explicando que sua construção
foi baseada na geometria do “oito”. Todos os lados, o telhado, a mandala do chão, os raios
do sol, todos os cantos que se olha, mostra a forma do oito, uma geometria conectada com
um ponto no infinito (). Neste espaço é possível aos participantes dos rituais realizarem a
dança do infinito, no sentido encontrado por Laban em relação à quebra de dualidades e
oposições no âmbito do movimento corporal e da qualidade da vida. É interessante observar
a existência das correlações entre o conceito do infinito em Laban, representado pela figura
descrita por Laban como “Lemniscate” (vide capítulo I) e as interpretações dadas pelas
tradições místicas como as que Sylvie se aprofundou. De fato, os rituais abrem a
possibilidade de transitar entre a morte e o renascimento, a luz e a sombra, o visível e o
invisível, na medida em que, quanto mais se chega à escuridão, mais se pode aproximar da
luz (vide entrevista com Theomária no apêndice 4.2).
Cada direção e cada um dos pontos do templo representam uma qualidade energética,
uma substância, uma forma, uma função, dentro e fora de nós. O templo foi concebido a
partir de várias tradições: o Tibet está representado pela mandala, o Japão, pela forma do
telhado, os nativos americanos, com as quatro direções. A entrada é pelo Norte, porque o
conhecimento vem do norte. O sul é representado pelas águas (uma pequena cascata), que
são sempre fluidas como a cachoeira. As emoções são comparadas às águas da cachoeira,
que não podem parar, não podem secar, mas também não podem vir como uma enchente. O
Oeste, a representação da gruta, lugar do retiro, da introspecção, da nossa morte, da
transformação e renascimento. O Leste é representado pelo sol e pelo fogo, aonde a vida
nasce e onde tudo foi criado.
119
No centro, no chão, uma forma que representa a chamada “grande mãe das origens”,
mandala tibetana, que também existe no Hinduísmo, manifestação de Shakti (vermelha) e de
Shiva (azul). Nela contém um holograma muito complexo, um caminho de vida, para se
auto-trabalhar. O teto solar tem uma boa acústica, para a ampliação da voz e do canto. Este
salão octogonal é um espaço aberto para circular livremente nos horários vagos, descansar,
relaxar, meditar, porém sem nenhuma imagem de algum mestre, porque abarca todas as
tradições, sendo um lugar onde rias tradições se encontram, inclusive as dos índios
brasileiros.
Fig. 13: Foto nº. 6 - Templo octogonal – direção Norte: porta de entrada
Fig. 14: Foto nº. 7 - Interior do Templo - Altar do Sul: cascata / Figura 15: Foto nº. 8 -
Mandala central no chão do templo
120
Fig. 16: Foto nº. 9 Interior do Templo -Altar do Leste: lareira / Fig. 17: Foto nº. 10
Interior do templo: Altar do Oeste: gruta
No decorrer do trabalho de campo observei que outras tradições estão relacionadas
com o caminho vermelho, entre elas o Sufismo, que significa o caminho do coração. O
Sufismo
74
fundamenta grande parte do repertório das danças-músicas Universais pela Paz,
que conheci justamente durante as jornadas do Círculo de Mulheres, sendo que muitas
destas nos foram apresentadas não apenas em forma de danças, mas também em forma de
cânticos em aberturas e fechamentos de cerimônias.
Nos encontros de mulheres, Sylvie revela que há muita influência do xamanismo
Céltico, dos povos antigos que habitavam a Europa ocidental. Do Oriente ela traz a
experiência de ter vivido muito tempo na Índia, além de outras experiências nas Américas:
Tem o xamanismo dos índios norte-americanos, tem os Maias. Eu acabei de
estar no México agora, eu passei dois meses e meio, eu estava lá com um
curandeiro mexicano, o xamanismo é altamente desenvolvido, de tradição a
tradição. É muito forte no México, e no Peru e na Bolívia tem bastante também.
Eu acredito que na América do Sul tenha, na Rússia, na China, no Oriente
Médio, e na Europa, a volta dos Celtas, onde todas estas cerimônias estão
voltando nas florestas em Bruceliane, são todas cerimônias célticas, que os
Celtas não eram nem mais nem menos do que bruxos, feiticeiros, xamãs
também, igual ao Merlin. A gente não pode dizer que o xamanismo vem dos
índios norte-americanos, porque, por exemplo, tem a Dança do Sol (que deu
origem à Dança da Águia) nos Estados Unidos, com os índios norte-americanos
todo ano. Na Europa, na Escandinávia eu vou participar em julho de um
encontro com pessoas que me iniciaram muito tempo numa ilha, o sol do
meio-dia ou da meia-noite, que tem lá e tem um encontro internacional de
curandeiros, de xamãs das raízes célticas, para poder honrar e reverenciar o
74
O sufismo é uma das três principais escolas de pensamento filosófico no Oriente. As outras são o Budismo e
o Vedanta. Os antigos profetas Sufi, Abraão, Moisés, Davi, Maomé, Cristo, Zaratrustra e outros, provieram de
escolas esotéricas de uma região do mundo que inclui a Síria, a Arábia, a Pérsia, o Egito e o que hoje é a
Turquia e o sudeste da Rússia. HAZRAT INAYAT KHAN nasceu na Índia e teve a missão de levar a
mensagem sufi ao mundo ocidental, tentando harmonizar o Oriente e o Ocidente com a harmonia de sua
música. Ver mais em O Coração do Sufismo, coletânea dos melhores textos deste autor. Sobre o dado histórico
de difusão do Sufismo, ver nota 93.
121
xamanismo céltico. Fui iniciada na Escandinávia, foi que tudo começou, com
o povo norte-americano, mas depois eu fui para os Estados Unidos e fui segui-
los. Eu os encontrei numa grande cerimônia na Escandinávia. Já vinha com toda
aquela base que eu tinha da Índia, quando eu me encontrei com eles. Eu era uma
pessoa que já tinha vivido na Índia, em mosteiro tibetano e tudo. ... Para mim
parece que o xamanismo vem e veio dentro de tudo que eu era e o que eu sei,
veio se encaixando dentro de uma compreensão maior, uma abertura maior, de
vivência.
Diante deste relato, percebe-se a amplitude da experiência de Sylvie, dado que pode
ser observado na eloqüência de sua fala e na variedade de simbolismos utilizados por ela na
transmissão dos conteúdos rituais mais importantes. É interessante observar que sua
abordagem xamânica tem um cunho filosófico do movimento da Nova Era, que tem como
característica principal, a superação das diferenças existentes entre as religiões, inclusive
seus primeiros estudos foram em Teosofia, um dos pilares do movimento. Para Sylvie, não
importa a tradição ou a religião, nada é novo, e portanto o termo “Nova Era” é apenas um
rótulo para dar significado a algo que sempre existiu, como os “antigos mistérios”, aos quais
ela diz pertencer. No entanto, em sua postura transparece o seu envolvimento com as causas
indígenas da América como um todo, o que torna seu direcionamento uma espécie de
missão de transmitir princípios sagrados universais, vivenciados por ela com os povos
indígenas.
A predominância indígena pode ser observada na importância dada por ela aos mitos
fundadores dos rituais, em especial a Wakan Tanka e à Grande Mãe das Origens. Ambos
são evocados em todos os rituais e não apenas no Círculo de Mulheres, juntamente com a
permissão aos portais das direções, o sol, a lua, os reinos, etc.
Considero o trabalho de Sylvie como uma proposta de remitização, de ligação do ser
humano com a terra, com a natureza, enfim, com o arquétipo do feminino. Diante disso, a
evocação do Grande Espírito Wakan Tanka parece fazer parte desse princípio do feminino,
ainda que seja evocado anteriormente à Grande Mãe das Origens:
O Grande Espírito e a Grande Mãe não m relação intrínseca na invocação.
Tudo faz parte do Wakan Tanka como a terra, o fogo, a água, o ar. Eles o são
princípios duais. Eles fazem parte de uma coisa que é o Grande
Espírito Wakan Tanka. É o principio único, o profundo mistério, Ele não tem
sexo (Sylvie).
Embora Wakan Tanka não tenha sexo, o estudo de Nancy Zak (1993, p. 255) mostra
um mito feminino como sendo seu intermediário. A "mulher filhote do búfalo branco” é
122
considerada uma personagem sagrada e uma poderosa mensageira de Wakan Tanka.
Tatanka, como também é chamada a White Buffalo Woman, especialmente entre os povos
nativos norte-americanos, a saber, os Lakota e os Sioux. Este mito tem presença marcante
no ritual da Dança da Águia, especialmente observado nas letras das músicas cantadas pela
equipe principal de canto, infelizmente não registradas aqui neste trabalho, por não
constarem no caderno de músicas distribuído neste ritual.
O xamanismo da Alvorada acolhe e respeita as diversas tradições espirituais, mas
focaliza e aprofunda uma linhagem específica, que se denomina “Conselho dos Anciãos dos
Cabelos Trançados”, uma abordagem indígena contemporaneamente difundida por
integrantes do movimento “Rainbow People”, do qual Sylvie faz parte, e que segundo ela,
são pessoas de todas as nacionalidade, cores e raças. Dentre as pessoas de várias culturas
que têm se apropriado dessa cultura específica, Sylvie se destaca pela profundidade e
seriedade de seu trabalho, que, além das vivências com equipes numerosas de brasileiros e
estrangeiros, tem também formado dezenas de futuros focalizadores destas práticas rituais,
no Brasil e na França.
2.3.1.a. Ensinamentos indígenas: natureza e humanidade
Entre as culturas indígenas existe a crença de que nossas canções favoritas são nossas
canções de empoderamento pessoal. O mito guarani “A Terra Imperfeita” ilustra esta
crença:
Não se esqueçam de dançar! muitas nações sobre a terra. Não se
impacientem com elas! Continuem a dançar! Agitem seu chocalho de dança com
força. Que suas irmãs os acompanhem com seus bastões de dança. Que elas
saibam manejá-los. Entoem bem, sem se enganar, os cantos que Tupã lhes
inspirou. Coletem-nos para suas irmãs: somente assim elas o saberão. Se não
coletarem esses cantos, se não tiverem paciência, se a perseverança lhes faltar,
se não tiverem paciência com seu próprio corpo, então vocês não adquirirão a
força (CLASTRES, 1990, p. 137).
A constante pergunta sobre o que podemos ainda aprender com a relação entre o
particular e o universal tem me encaminhando para a cultura indígena, talvez por ser uma
das mais antigas culturas presentes na contemporaneidade. Alguns rituais mostram o quanto
as sociedades indígenas têm a ensinar à humanidade, a partir da co-relação entre arte, ritual,
corpo e consciência. Apesar do fascínio pela beleza dos cânticos e ensinamentos da
Alvorada, a princípio me incomodava o fato dos rituais não serem provenientes de índios
123
brasileiros, pois este era o meu desejo inicial enquanto pesquisadora. Mas aos poucos as
canções brasileiras iam aparecendo no repertório das Danças da Paz vividas na Alvorada,
como também nos encontros do grupo de estudos de Salvador, do qual Zelice Peixoto é
mentora, inclusive com cânticos de Torés de alguns povos indígenas nordestinos. Como
havia dito antes, o encontro com o Toré tem se dado com a vinda eventual dos Kariri-Xocó
para Salvador, os quais me fizeram reconhecer as semelhanças éticas e estéticas com as
tradições dos meus conterrâneos Fulniô, Xucuru e Pankararu.
Sylvie desenvolveu seu trabalho a partir dos princípios dos nativos norte-americanos
por ser uma linha mais sistematizada na aplicação dos ensinamentos, embora ao longo dos
anos tenha havido vários momentos de partilha de conhecimento com povos indígenas
brasileiros, entre eles o povo Kariri-Xocó, de Alagoas, que frequentemente eram convidados
a apresentarem seus rituais no Espaço de Vivências do Riachinho (antes da construção do
Castelar da Alvorada), ocasiões em que os grupos de trabalho de homens e mulheres
também participavam das danças do Toré trazidas pelos índios.
Embora não tenha feito o trabalho de campo entre os índios brasileiros, acredito que
essa necessidade tenha sido contemplada durante os trabalhos xamânicos da Alvorada,
justamente por terem uma amplitude transcultural. Por outro lado, pude fazer algumas
comparações ao participar de um Toré com os Kariri-Xocó, e constatar que entre os povos
indígenas os princípios e posturas são semelhantes, pois todos dizem respeito ao amor e
cuidado com a humanidade e com o Planeta Terra.
Apesar de tudo, de todas as situações de aculturação a que os povos indígenas em geral
foram submetidos, massacrados ao longo de séculos, com milhares de remanescentes
atualmente sobrevivendo em situações precárias e degradantes, uma filosofia de vida,
uma visão de mundo em comum, que diz respeito à preservação da vida, inclusive com
iniciativas de sensibilização das pessoas através da dança. As apresentações urbanas do toré,
um conjunto de cânticos e danças dos povos indígenas nordestinos, é um exemplo de
sobrevivência e resistência cultural, que tem a intenção de atrair energias positivas e
espirituais, no sentido de reverenciar e louvar qualquer ser vivente.
É cada vez mais freqüente a tentativa de superar a crescente perda de identidade, da
língua nativa e da cultura por parte de organizações indígenas, inclusive a “Águia Dourada”,
124
formada pelas tribos Kariri-Xocó, Kiriri, Fulniô e Huaikai, no sentido de ressignificar aos
povos indígenas seus cânticos e danças, enfim, um repertório proveniente de uma das
matrizes principais da cultura brasileira. Talvez o povo brasileiro ainda não tenha o
conhecimento de que tem ancestralidade indígena por parte de mãe, como afirmou o
professor Ubiratan Castro, em sua palestra de encerramento da II Conferência Estadual de
Cultura (Feira de Santana, 2007).
Sem a pretensão de fazer uma comparação entre as tradições indígenas brasileiras e
norte-americanas em relação ao nível de manutenção ou desaparecimento de suas tradições,
a questão aqui é compreender como seus rituais em suas diferenças podem ser pontos
positivos de contato inter-étnico entre si e entre os povos. Parece que o fato dos rituais
nativos norte e centro-americanos estarem sendo difundidos por povos europeus, por
exemplo, contribui para que os mesmos tenham se tornado conhecimento legitimado e
transcultural, entre nós, brasileiros
75
. O fato é que, a tradição xamânica norte e centro-
americanas que Sylvie divulga com muita seriedade em seu trabalho têm sido também uma
via de acesso, interesse e sensibilização à cultura indígena brasileira.
Ao questionar sobre o que veio dos índios, e se o movimento das Danças da Paz se
inspirou na cultura indígena, uma das integrantes do Círculo de Mulheres, Alice Becker,
respondeu:
A gente no grupo de mulheres mistura muito. Tem elementos do folclore
brasileiro que Zelice traz, das danças pela paz universal que ela também traz. E
tem a parte xamânica que foram os primeiros mestres de Sylvie, um homem e
uma mulher, que eram xamãs que vieram no início. Eu não peguei essa fase, isso
foi bem no inicio, os fundadores é que pegaram esses dois, Liana Neto, Bete, a
própria Zelice, que fizeram parte e mais outras pessoas deste grupo inicial que
ainda pegou a vinda destes xamãs [Cherokees]. Mas essa história toda para
reunir tudo num pacote, porque falam a mesma língua, a língua da arte,
integrada à natureza, o respeito a todos os seres, que acho lindo isso no
xamanismo.
Este xamanismo de que Alice Becker está falando vem justamente dos ensinamentos
que fundamentaram os primeiros trabalhos na Alvorada, provenientes das tradições
indígenas Cherokee, tribo da nação iroquesa que vivia em torno da região dos Grandes
Lagos, no sul do Ontário, uma província do Canadá, e no nordeste dos Estados Unidos. Os
ensinamentos Cherokee guardam semelhanças com as de outras etnias já citadas (Lakota,
75
Ver opinião a respeito dessa comparação de tradições indígenas na entrevista com Derval Gramacho
(apêndice 4.6).
125
Sioux, Hopi, Navajo), os quais, juntamente com os dos povos da chamada Mesoamérica
76
são contemplados no trabalho da Alvorada, como os antigos e atuais Maias, Toltecas e
Astecas.
A base de todos os rituais do xamanismo da Alvorada é a simbologia e a medicina das
rodas, das rodas por cada uma das direções e esta parece ser a característica principal
herdada pelos nativos ameríndios. Segue um breve resumo sobre o simbolismo das direções,
as quais, em Gestos Cantados, foram ilustradas com poemas elaborados pelos atores-
dançarinos (vide capítulo III):
Direção Sul – elemento água
No sul encontramos a alegria e a brincadeira, a inocência e a beleza interior. Ao liberar
as partes rígidas de nosso ser, poderemos ser mais flexíveis, para sentir nossa própria
criança. A pureza da infância nos permite ver beleza em cada uma das coisas mais simples.
O Sul está relacionado à matéria emocional de nosso corpo físico, onde o elemento
predominante é a água, que por sua vez representa nossas emoções. A expressão das
emoções elimina a tensão e causa prazer. Nesta direção podemos observar que imagens de
nosso passado constituíram nossos padrões de comportamento muitas vezes cristalizados e
que nos impede de experimentar a dinamicidade do novo.
Direção Norte - elemento Ar
O conhecimento e sabedoria milenares provêm de todos os reinos: animal, vegetal,
mineral e humano (mestres, professores, ancestrais), de todas as nossas relações, cujas
tradições devemos honrar e reverenciar. O Norte está relacionado ao corpo mental, aos
pensamentos e à respiração, através da qual os valores e crenças são renovados. A clareza da
mente vem quando permitimos que o ar circule dentro de nós, procurando o equilíbrio entre
as polaridades (céu e terra, masculino e feminino, criança e ancião). A direção Norte, pela
sua qualidade de amplitude multifocal e espacial, permite uma mobilidade na imaginação,
uma libertação e a necessária mudança das imagens estáveis primeiras.
76
Mesoamérica (cuja etimologia grega tem o significado aproximado de América intermédia) é o termo com
que se denomina a região do continente americano que inclui aproximadamente o sul do México e os
territórios da Guatemala, El Salvador, Belize bem como as porções ocidentais da Nicarágua, Honduras e Costa
Rica. Várias civilizações pré-colombianas entre as mais avançadas e complexas de toda a América
desenvolveram-se aqui ao longo dos séculos anteriores à conquista espanhola do xico, incluindo olmecas,
teotihuacanos, astecas e maias. Obtido em "http://pt.wikipedia.org/mesoamerica", acessado em 18/10/2007.
126
Direção Oeste – elemento Terra
Direção onde se encontram as verdades pessoais e o reconhecimento de nossas forças
interiores através da introspecção e interiorização. O Oeste oferece o dom da coragem como
o melhor caminho para manter nosso instinto de sobrevivência e para superar o medo do
desconhecido. É onde exercitamos a confiança aprendida no Sul e os pensamentos
renovados do Norte. É no Oeste que se cumpre o ciclo de vida-morte e renascimento e onde
exercitamos a entrega e o desapego. Esta direção está relacionada à terra, à energia
feminina, à receptividade, ao útero, à fertilidade, à sexualidade e à criação. Criando raízes e
fundamentos, transformamos as limitações em princípio criador. Nesta direção as novas
imagens mentais são aprofundadas e a imaginação criadora vem à tona.
Direção Leste - elemento Fogo
O Leste oferece a possibilidade de determinar e focalizar a ação. A energia criativa e a
vitalidade, a força, o lado masculino, estão em ação no Leste, onde se coloca em prática a
intenção. O elemento é o fogo, e tem a luz e o calor do sol como seu representante e a
precisão do tempo para a realização dos propósitos. O Leste é o lugar mais iluminado, o
lugar do espírito e da busca de visão. É no Leste que encontramos a conexão com o mistério
que nós somos e podemos expressar nossa poética e ideal de vida.
O simbolismo das rodas, como é chamado o percurso pelas direções, compreende que
as pessoas passam por cada ponto da roda em diferentes momentos da vida, reiniciando
sempre de um ponto de vista diferente, com outro estado de ser, como numa lógica espiral.
A proposta dos trabalhos rituais observados é a de experimentar e propositalmente passar
por estes pontos e sentir suas possibilidades criativas.
2.3.1.b. O Círculo de Mulheres da Alvorada - cumplicidade do feminino
O trabalho com as mulheres sempre se inicia com a partilha de intenções através do
ritual do Talking Stick (vide seção 2.3.2.a.), seguida de algum trabalho corporal, em especial
as Danças da Paz. Entre a sexta-feira de manhã e o domingo de tarde, existe uma
programação de atividades, que culmina na sauna sagrada e conclui com a partilha de
avaliação final, também com o bastão da fala. Esta programação, no entanto, não é regra
127
fixa. Outras vivências rituais podem ser incluídas, sendo que com o tempo reduzido, como
por exemplo, a subida na montanha e a entrada na gruta (vide seção 2.3.2.g.), a depender do
objetivo traçado por Sylvie para cada encontro.
O Grupo de Mulheres não é considerado um grupo no sentido do pertencimento e
identificação étnica, mas sim por questões de interesses comuns, o que faz com que o
mesmo esteja sempre se renovando, embora mantendo uma certa regularidade. O termo
Círculo de Mulheres é mais apropriado, justamente pela intensa dinâmica das pessoas que
freqüentam este grupo, a maior parte da Bahia (Lençóis, Capão, Feira de Santana e
Salvador), este auto-denominado como “tribo das peles negras”. Fundado no começo dos
anos de 1980, este círculo também é chamado de “encontro de mulheres”. Durante o período
em que o encontro estava ativo, com atividades bimensais, observei que algumas mais
antigas e também fundadoras, algumas moradoras da região, permaneciam comparecendo,
especialmente pelo fato de terem um importante papel na condução dos trabalhos, inclusive
no sentido de serem multiplicadoras dos ensinamentos comunitários, repassando às recém-
chegadas as regras de convivência e as instruções necessárias para o bom desenvolvimento
das atividades.
As mulheres mais antigas, em conversas informais, me contaram que durante três anos
havia um núcleo de mulheres que freqüentava assiduamente os trabalhos mensais com
Sylvie no Riachinho. Após a construção da Alvorada, as mulheres sentiram necessidade de
aprofundar os ensinamentos relativos ao feminino que existia na abordagem xamânica de
Sylvie e Zé Duarte.
Algumas mulheres da comunidade do Vale do Capão e de Salvador gostariam de
continuar participando, mas não tinham condições financeiras para freqüentar assiduamente.
Então havia o sistema de trocas de serviços, sendo o mais comum, se responsabilizar pelas
refeições dos grupos e coordenar as equipes de cozinha, escolhidas entre as próprias
participantes. Conheci mulheres que freqüentaram o círculo durante alguns anos e depois se
afastaram, seguindo o seu caminho, cujo “dom” ou vocação muitas vezes foi descoberto
durante os trabalhos xamânicos. O caminho ritualístico, porém, nenhuma delas abandonou.
Não por acaso, boa parte destas mulheres citadas estão nos grupos atuais das Danças da Paz
Universal. Embora eu pudesse citar seus nomes aqui, em reverência à colaboração de cada
128
uma neste grupo, achei mais conveniente citar apenas as pessoas entrevistadas e fazer um
agradecimento geral em nome de todas as mulheres que “rodaram”
77
neste círculo.
Outro comentário comum entre as mulheres mais antigas é o de que gostariam de
aprofundar mais os conhecimentos no xamanismo, coisa que não acontece mais devido ao
grande número de pessoas iniciantes (não nenhum pré-requisito para fazer parte deste
grupo), fato que determina uma abordagem considerada repetitiva por quem tem mais
experiência. Por outro lado, existem mulheres que mesmo com toda a experiência que
possuem, sentem enorme prazer, ainda que anonimamente, em acolher as novatas,
contribuindo para diminuir sua ansiedade pelo desconhecido. Esse é o caso de Hilda de
Melo, uma das entrevistadas, por quem me senti acolhida pela sua disponibilidade em
compartilhar calorosamente todos os momentos, especialmente os banhos frios das águas
doces.
Outras mulheres que freqüentam os rituais do Castelar da Alvorada pertencem ao
grupo misto de São Paulo, formado oito anos. ainda as mulheres que passam uma
temporada como residentes, contribuindo com trabalhos de administração e manutenção
física do espaço, o qual se mantém principalmente com a renda dos trabalhos realizados por
Sylvie, bem como, eventualmente através de cursos ministrados por outras pessoas, mas que
tenham a mesma filosofia de crescimento pessoal e holístico (Curso de DPU, Curso de
Calendário Maia, curso Sons Sagrados e Tensegridade).
Diferente do grupo de São Paulo, que é um grupo de formação em rituais xamânicos,
no Castelar da Alvorada, o trabalho com as mulheres é essencialmente vivencial, onde o
corpo aparece como espaço de meditação e beleza. Ainda que não seja um grupo de
formação de xamãs, eventualmente ensinamentos de tradições diversas, que fazem
referência à sexualidade e cumplicidade do feminino, às relações de gênero e à mitologia
pessoal.
A “cumplicidade” e o “feminino” são as noções mais importantes discutidas durante os
encontros. A noção de “feminino” é muito ampla e não se restringe apenas ao gênero. Porém
quando se fala em cumplicidade do feminino está se referindo à cumplicidade que deveria
haver entre as mulheres. Sylvie enfatiza que o sofrimento das mulheres em relação aos
77
Termo usado por Sylvie durante os Círculos de Mulheres.
129
homens está relacionado à falta de cumplicidade que entre as próprias mulheres, de
maneira que a rivalidade existente entre elas contribui para manter a cultura da traição
masculina.
Para que possamos compreender o significado da noção de “profundo feminino”,
Sylvie exemplos de rituais a respeito do culto à Grande e (vide entrevista Theomária)
em várias culturas. Grande mãe seria a personificação da mãe do mundo, a Grande Deusa
fecunda, amorosa, provedora e protetora, também representada pela Lua em três das suas
fases: na crescente é a mulher virgem, na cheia é a mãe e na minguante é a anciã (a sábia). A
adoração das deidades da natureza, de nomadismo e igualitarismo data do período
Paleolítico, no qual não havia matriarcado nem patriarcado. A doutrina da Grande Mãe
compôs uma etapa fundamental na evolução do homem como indivíduo e grupo social,
influenciando a totalidade do mundo antigo. À medida que as propriedades comunitárias
cultivadas foram sendo substituídas pelas privadas, deu-se o início da ascensão do poder
masculino e da sociedade patriarcal, e, como conseqüência, surgiu o matriarcado, cujo poder
autoritário foi igualmente nefasto para homens e mulheres.
Vale ressaltar que não apenas no Círculo de Mulheres se reflete sobre o significado da
noção de “feminino”. Em todos os rituais da Alvorada e também nos do Riachinho, na época
que abrigava ambos os grupos, de homens e de mulheres. Da mesma forma, o entendimento
da noção do “profundo masculino” é importante para se obter o equilíbrio interior. A
história da “mulher solar” e do “homem lunar” descrita a seguir, trata-se de um mito do
“Conselho dos Anciãos dos Cabelos Trançados”, sobre a relação entre as concepções de
feminino e masculino ao longo das Eras planetárias: Era do Cálice, Era da Espada e Era
Solar.
Diz-se que na Era do Cálice, a era da sabedoria, havia cumplicidade entre
homens e mulheres, uma vez que ambos tinham o lado solar e o lado lunar, mas
em seus aspectos positivos. Ambos trabalhavam para manter o equilíbrio e a
harmonia em suas relações e no ecossistema em que viviam. A mulher era solar
em essência, mas lunar na anatomia biológica. Um solar que não agride, não
machuca, não fálico, mas de criação de vida. A mulher, associada ao Grande Sol
Central dos Maias, Incas e Astecas, era a guardiã desse símbolo que
representava o corpo de memória e codificações da vida. O homem era lunar no
sentido do criativo, intuitivo, em harmonia com seu lado biológico solar. Sua
masculinidade era ditada pelo seu lado lunar, uma vez que tudo nasce através do
profundo feminino, não da mulher. Uma vez que se consegue desenvolver o
profundo feminino dentro de si, será desenvolvido o profundo masculino como
conseqüência.
130
Dessa maneira, ambos os sexos faziam um matrimônio alquímico dentro
de si, entre o feminino e o masculino, ou melhor, cada gênero atingia uma
comunhão com o todo. Por outro lado, o inverso não é verdadeiro, o
desenvolvimento do sentido do masculino não leva ao profundo feminino. Foi o
que aconteceu na Era da Espada, a era do conhecimento, da qual ainda não
saímos, quando o homem tornou-se o lado negativo do Sol e a mulher tornou-se
o lado negativo da lua. Em outras palavras, o lado solar da mulher foi
machucado, tornando-a manipuladora, despótica, rival dos homens, e,
sobretudo, rival de outras mulheres.
Alguns homens atuais carregam essa sabedoria do tempo do Cálice, têm
seu lado lunar desenvolvido, como por exemplo, os andinos, que carregam
pedras pesadas ao mesmo tempo em que fazem tecelagens delicadas. Pensadores
como Pitágoras e Aristóteles, embora nascidos na Era da Espada, foram
aprendizes em templos femininos, locais onde aprenderam as leis fundamentais
da Era do Cálice, ligadas à manifestação da alma criativa, artística, poética,
musical, bem como a percepção e o amor dos sacerdotes.
A Era Solar, que está começando, pretende resgatar o profundo feminino
de todos os seres humanos, e como conseqüência, também o lado solar positivo
da mulher e o lado lunar do homem. Será o tempo de reviver as cerimônias e
cultos ao feminino, ao corpo de memória considerado sagrado, para o
desenvolvimento da consciência da vida planetária.
Esta história, embora seja contada por Sylvie nos encontros de mulheres, parece
fundamentar também outros rituais mistos da Alvorada, pelo fato de o conceito de
“profundo feminino” ser um dos pilares de seu trabalho. Durante o ritual da Dança da
Águia, observei que alguns homens demonstraram o desejo de trabalhar o próprio sentido do
“profundo feminino” durante o ritual. A simbologia da história das três Eras pode ser uma
ilustração de uma teoria presente nos estudos da religião, acerca da passagem da religião
natural baseada na mulher e na e (Era do Cálice) para a religião histórica, da relação
Deus-mundo, baseado na ordem social (Era da Espada). Como observa Terrin (1996. p.
194), a religião da deusa-mãe, baseada na natureza e no sexo, era a grande religião das
origens.
Os ensinamentos sobre a sexualidade sagrada (Chuluaqui Kuodouska - CK) foram
transmitidos por Sylvie durante quatro fins de semana de encontros de mulheres, dos quais
participei apenas do primeiro. A essência do Chuluaqui Kuodouska (CK) é a sexualidade
voltada para a deidade, para o sagrado. É um dos ensinamentos que pertencem à linhagem
do Conselho dos Anciãos dos Cabelos Trançados que não podem ser revelados, ora por
pertencerem ao domínio do segredo, ora por se tratarem de temas considerados por Sylvie
como sendo tabus para a sociedade em geral.
131
Em resumo, além dos ensinamentos e princípios, o CK é todo baseado na cosmologia
das rodas, pela roda da potencialidade da mulher, ou seja, pelo trânsito através do
significado de cada direção. Existem exercícios para despertar a energia adormecida do
ventre, todos baseados na respiração, para ativar o útero, enfatizado com um órgão
poderoso, catalisador de energias, das visões, do sonho, da alquimia. Esses conteúdos do CK
fazem parte de um programa maior sobre a cumplicidade do feminino, sobre a união do
feminino e do masculino dentro de cada pessoa.
Ainda que não haja uma definição precisa do que são os princípios masculino e
feminino, em termos psicológicos se reconhece que ambos estão presentes em todo homem e
em toda mulher, embora com formas e proporções diferentes. Sylvie enfatiza que é a
aceitação e a harmonização entre os princípios masculino e feminino que permite a cada
pessoa transcender o condicionamento dos padrões de comportamento e papéis sexuais.
Entre as mulheres da Alvorada, há uma esperança implícita de que a Era Solar já esteja
sendo construída, e pela qual elas têm muita responsabilidade, em parte despertada por
Sylvie, que as alerta da grande necessidade social atual de expressão do princípio feminino,
indicando os caminhos pelos quais essa energia pode ser expressa tanto por homens quanto
por mulheres. Assim, pode-se vislumbrar uma sociedade novamente sintética, no sentido
atribuído à Era Solar, nem matriarcal, nem patriarcal, onde as melhores qualidades de cada
pessoa se manifestem.
Sylvie se utiliza de várias histórias míticas e místicas para validar este conhecimento,
recorrendo especialmente aos elementos do hinduísmo, a exemplo dos mitos de Maithuna e
da Prostituta Sagrada. Maithuna é um ritual do hinduísmo, do sul da Índia, adaptada aos
praticantes da Yoga ocidentais. É a união sexual ritualística de um casal de aspirantes
espirituais, a imitar com seus corpos o “coito cósmico” com o qual o casal Shiva-Shakti gera
os universos. Conduzido sempre pela mulher, o Maithuna é baseado na retenção do
orgasmo, um dos princípios do Tantra-Yoga. A reunião do feminino com o masculino é
realizada através da sexualidade visando a sublimação e o encontro do espírito. Trata-se
também de uma cerimônia de doação de sangue para atingir o caminho da iluminação,
sublimação e perpetuação da vida.
132
As prostitutas sagradas eram historicamente reconhecidas como servidoras da “Grande
Mãe”, as quais eram responsáveis pela iniciação sexual dos homens em nome do sagrado.
Uma das práticas presentes nos rituais era a de utilizar o sangue da mulher para celebrar a
vida. A mulher doava seu sangue para a terra de maneira natural, durante o período
menstrual, inclusive os restos de sangue e placenta do parto. Esta prática foi perpetuada
através das Eras, atravessando por todos os períodos patriarcais, de fogueiras, de violência,
forcas, torturas, violência, para conseguir manter vivos os ensinamentos da Grande Mãe,
referentes à Era do Cálice, um tempo em que ainda não havia nem o mundo patriarcal nem o
matriarcal, que surgiu como conseqüência deste e seguiu paralelo, tendo a religião cristã
como paradigma exemplar. Dessa maneira, as mulheres da Alvorada doam seu sangue
durante a sauna sagrada e também através de cerimônias pessoais, como lembra Theomária:
“A gente sempre faz rituais pra terra, no contato com o nosso útero, rituais com a nossa
menstruação, sentindo nosso útero pulsar com o útero da terra”.
A Era Solar parece corresponder a um terceiro sistema filosófico, cultural, religioso e
científico, cuja proposta de revalorização da mulher e do feminino, passa pelo aspecto
ecológico, cujo retorno da intuição e da experiência dos sentidos emerge e se reconcilia com
a razão e a ciência, no sentido de unir forças no reconhecimento da atual DES-ordem
natural, e da terra como guardiã de todos os corpos, de todas as formas de vida.
2.3.1.c. Corpo cerimonial, Corpo de memória
Num dos momentos de trabalhos corporais no salão ou templo, Sylvie nos ensinou
uma dança hebraica, durante a qual desenhamos no espaço a estrela de Davi
78
, de seis
pontas, (nos virando de frente para cada direção) acompanhada por uma música percussiva,
com temas que se repetiam. Naquele momento o estávamos fazendo nenhum ritual, mas a
repetição de movimentos nos causava uma sensação rítmica intensa, de maneira que
entramos em um estado de corpo cerimonial.
A diferença entre cerimônia e ritual faz sentido quando compreendemos a inter-
relação existente entre eles. Estar em cerimônia significa encontrar um estado de ser
diferenciado do que aprendemos como sendo da ordem do cotidiano, banalizado na
78
Ver imagens da movimentação da estrela de Davi no DVD do espetáculo Gestos Cantados, anexo 10. Esta
estre de seis pontas é um exercício dervixe, que transformei em uma dança circular.
133
sociedade contemporânea. Um exemplo de estado cerimonial simples do dia-a-dia da
Alvorada é o que chamam de ‘harmonização’ antes de todas as refeições. Dependendo do
tamanho do grupo, todos se reúnem em volta da mesa principal ou no jardim para cantarem
juntos alguma canção, que pode ser divertida ou solene, mas sempre é um momento
descontraído e de agradecimento ao alimento natural e à terra provedora (ainda) de fartura.
No final das canções a frase é sempre a mesma: “sagrada comida!”. Trazer esta qualidade de
cerimônia, de respeito e agradecimento por tudo, para o nosso dia-a-dia é tão importante
quanto seguir à risca todos os procedimentos próprios aos rituais específicos de cada
trabalho proposto na Alvorada. Sylvie diferencia o termo ritual e o termo cerimônia:
O ritual (não) é uma cerimônia, como por exemplo, o ritual da sauna sagrada, o
do cachimbo sagrado. Uma cerimônia é a precipitação de nosso corpo celular,
uma aceleração da precipitação de nosso corpo de memória. Essa é a verdadeira
compreensão da cerimônia. Naquele tempo (na Era do Cálice) a cerimônia fazia
parte do dia a dia. É muito simples, é criar o sagrado dentro de nossas vidas a
cada instante, a cada respiração, a cada inspiração, é trazer o sagrado com os
alimentos, com a terra, com a roupa que vai vestir, o caminhar que vai fazer,
com qualquer coisa que seja, é incorporar o sagrado. O sagrado não é religião,
religião é outro departamento, o sagrado é trazer de volta a consciência dentro
de cada atitude, cada ato, cada comportamento, cada fala, cada movimentação,
cada busca, qualquer coisa, dentro dessa sacralidade a gente está em constante
cerimônia.
Assim, podemos compreender que o ritual é um ato, uma ação ritual. Já a cerimônia é
uma atitude, uma postura, a qual pode tornar o ato de viver um ritual, como disse
Theomária, uma das fundadoras do grupo de mulheres. Após anos de vivência neste
universo, ela considera que “viver é um ritual”. Em sua opinião, “falar sobre um ritual é
muito vago, eu acho que seria a melhor forma de você falar de um ritual é você viver um
ritual e depois, impregnada dele, expressar”.
O sentido do ritual para as mulheres da Alvorada tem estreita ligação com o sentido do
sagrado. Tudo é sagrado para elas que estudam e vivenciam rituais tribais ancestrais. Elas
aprendem que não precisam se afastar da realidade para viver o sagrado, mas descobrir o
sagrado na realidade. Para isso, é preciso ativar o chamado corpo-de-memória. A noção de
corpo de memória compreende a dimensão energética do ser, mas também ontológica da
espécie, conforme Theomária:
A gente tem um corpo que guarda toda essa memória, não a memória do corpo.
O corpo é uma coisa que vai, some, ele volta de novo pra natureza e ressurge.
134
Eu acredito que o que sobrevive é essa parte, esse corpo de memória, que é
energético, que é ele que traz, e vêm encarnações após encarnações, fazendo
todo esse trabalho de crescimento da gente. Quando a gente vivencia coisas, a
gente está impregnando esse corpo de memória.
Por extensão, o corpo de memória de nossas células guarda a memória de tudo o que
aconteceu com todos os nossos parentes, não apenas da espécie humana. Esses parentes
pertencem à família da criação universal, onde a Terra é nossa e, o Céu, nosso pai, o Sol,
nosso avô, a Lua, nossa avó, e como irmãos, as Criaturas-Animais, o Povo-em-Pé (as
árvores), o Povo-de-Pedra, e os quatro espíritos principais: Ar, Terra, Água e Fogo, e todas
as outras formas de vida. Nós humanos somos considerados os Duas-Pernas.
Para Theomária, existe um corpo de memória que é diferente do corpo sico, e que é
uma espécie de porta de acesso às informações seculares que outros reinos da natureza
possuem, como por exemplo, o mineral, representado pelas pedras, rochas e águas, ou o
vegetal, tendo as árvores antigas como maiores representantes.
Nós fazemos cerimônias para a árvore, que é uma forma de interligar a memória
e a sabedoria do povo-vegetal, que guarda toda essa informação através de
séculos (tem árvores que são seculares), é um ser que vive, que presencia, em
muitos anos ela adquire informação de vários povos, de várias civilizações,
coisa que nós, seres humanos, enquanto físico não vivemos, porque nosso corpo
físico tem um tempo mais curto de sobrevivência.
Parece que é o reconhecimento desse corpo de memória que faz os participantes do
Castelar da Alvorada adquirirem consciência da inter-relação entre todas as coisas, como
comenta Alice Becker:
Uma pedra tem valor, uma árvore tem valor, o vento tem valor, a água tem
valor, tudo é respeitado como um ser, isso é muito bonito. Se as pessoas
aprendessem o valor de uma pedra, de um vento, de uma água, de uma planta,
de um pássaro, acho que a gente teria uma outra relação uns com os outros, com
o planeta Terra, enfim.
A simplicidade dos ensinamentos das tradições rituais está refletida na fala de
Theomária: “Quando as pessoas mudam a consciência, elas vivem melhor com a natureza e
com o planeta, e a vida dos nossos descendentes também vai ser melhor”. Segundo as
tradições enfatizadas na Alvorada, o caminho da Sabedoria constitui em compreender os
sinais da natureza, conseguir “ouvir” os ensinamentos sutis de “nossa família”, pois “cada
flor e cada rocha podem vir a ser mestres”, como escreveu Jamie Sams (1993, p. 19), uma
135
autora bastante lida entre os integrantes dos grupos da Alvorada, especialmente as mulheres.
Estas acreditam que quanto mais o indivíduo aguça os sentidos internos, se sente mais
integrado e harmonizado com a natureza e com todas as formas de vida, e se sente mais
preparado para entender as lições que a vida oferece no sentido de reconhecer seus próprios
dons e talentos.
Mesmo no nosso mundo cheio de informações velozes, dizem que é possível aprender
as mensagens que todas as criaturas vivas nos transmitem, desde que estejamos abertos e
receptivos à linguagem do amor, que é a forma como nossos parentes se comunicam.
Quando nos sentimos sós, significa que perdemos nossas conexões com todas as outras
formas de vida que nos cercam.
Embora haja atividades de técnicas corporais nos encontros de mulheres, cujas práticas
são conduzidas por Sylvie ou por alguma integrante por exemplo Tensegridade
(movimentos energéticos transmitidos por Carlos Castañeda), Chi Kung, ou cnicas de
meditação, estas não têm a finalidade de preparar o corpo para os rituais xamânicos. O que
se observa é a própria inserção do corpo no ambiente, nos movimentos impostos pelas
regras da natureza, no contato com a terra e os outros elementos, os quais, por sua vez,
podem despertar o chamado “corpo de memória”, ou seja, as codificações de DNA de tudo o
que existe e existiu, como acrescenta Sylvie:
O xamanismo é uma coisa que envolve a compreensão das estrelas, a
compreensão do conhecimento do sol central da galáxia (ah yum hunab ku), que
emana todo dia, uma fonte de conhecimento muito rica, e muito poderosa, de
codificação celular dele mesmo, que os antigos Incas e Maias utilizavam. Então
tem as estrelas, o grande Sol central, a Mãe-Terra, que é cheia de codificações
de memória, todas as águas, o ar, os animais-totem, os espíritos todos, é tudo o
que nos cerca.
Uma das finalidades dos rituais é a de permitir que entremos em contato com os vários
tipos de codificação celular existentes e que também possamos deixar um pouco da nossa
codificação na terra, especialmente durante o ritual da sauna de suor, descrito mais adiante.
A ação de estar sempre em contato com a memória da pedra, do mineral, das árvores, da
terra, permite recuperar toda essa memória energética. Para alguns essa memória pode ser
sentida exclusivamente através da dança, como foi o caso da citada coreógrafa norte-
americana Martha Graham, que escreveu sobre uma memória profunda que guardamos no
136
corpo, uma memória de sangue, particularmente para o bailarino com sua intensificação da
vida e do corpo:
Algumas gotas de memória dessas identificações passadas jorram em mim – não
se trata de reencarnação, nem transformação (...). Estou falando de divindade da
memória, dos fragmentos de uma memória, e dessas coisas de grande valor que
nós esquecemos e que o corpo e a mente resolvem lembrar. (GRAHAM, 1993,
p. 19).
Assim também é a concepção de Laban sobre movimento, justamente pela afirmação
de respeito à vida, ao movimento, às mudanças internas, relacionadas com a terra, com o
movimento da vida natural, como podemos observar na sua teoria e prática da Harmonia
Espacial, baseada na profunda observação de uma ordem cósmica natural, cujos padrões de
movimento são similares aos padrões encontrados na natureza:
[E]xistem conexões interessantes entre padrões hexagonais e pentagonais. Uma
delas aparece no icosaedro,...formado por vinte faces triangulares, com um
contorno hexagonal quando visto de um lado e pentagonal, quando visto de
outro. Seus planos diagonais (ligando arestas diagonalmente opostas) são
retângulos áureos. Talvez o exemplo do icosaedro seja um reflexo da relação
existente entre a matéria orgânica e a inorgânica, sendo que esta é feita a partir
da primeira, como o corpo humano, que é
formado por dois terços de água. ...
[A] diversidade dos padrões orgânicos e inorgânicos também é vista no padrão
espiralado de algumas galáxias. ... [N]os glóbulos brancos e vermelhos do
sangue, [por exemplo,] os núcleos...correspondem fielmente às espirais duplas
das tumbas pré-históricas, às tatuagens dos Maoris [da Polinésia] e aos padrões
da Mãe-Terra dos índios norte-americanos” (DOCZI, apud FERNANDES,
2003, p. 9).
Em Laban, a Harmonia Espacial é comparável à harmonia musical. Os doze pontos do
Icosaedro podem ser comparados à escala harmônica dodecafônica ocidental, produzindo
composições musicais e de movimento, através da exploração do solfejo das notas
correspondentes aos pontos, durante o trajeto entre eles
79
.
Laban certamente foi um desses mestres a quem Olsen (2004) se referiu, que percebeu
a notável relação entre os princípios universais e a atuação cênica. Estes princípios estão no
corpo e fora do corpo, e é para isso que os rituais xamânicos chamam a atenção, à medida
que compreendemos, por exemplo, que nosso sangue equivale à água que nasce da terra, ou
que nossos ossos têm relação com as pedras, que nossa respiração significa o sopro da fonte
da vida. No capítulo III, ao tratar da relação entre os rituais xamânicos e labanianos e sua
79
Ver sobre a comparação entre as escalas do icosaedro e a harmonia musical em Fernandes, 2002. p. 210.
137
aplicabilidade cênica, os aspectos de expressividade de Laban vão ser mais enfatizados. No
momento, posso adiantar algumas relações feitas por Laban entre os fatores de
movimento e os elementos naturais: O fator espaço (como fator da categoria Expressividade,
diferente da categoria Espaço) tem relação com o Ar; o peso, com a Terra; o tempo, com o
Fogo e a fluência, com a Água.
Estas conexões corpo-natureza têm muito sentido para quem vivenciou na prática esta
imersão na natureza, em termos de corporalidade. Para o artista cênico é importante o acesso
a métodos de preparação corporal e criativos baseados nestes princípios universais, tanto
referenciados em Laban quanto nos rituais xamânicos, no sentido de contribuir na
construção dessa consciência da integralidade.
2.3.1.d. Relação entre a música e o movimento: transe, êxtase, estados alterados
de consciência
Estes sentidos de integralidade corporal e de conexão com o todo proveniente dos
rituais podem ser experimentados de várias maneiras, inclusive a partir de estados de
silêncio e de meditação profundas. Considerando aqui o termo “transe” como um “estado
alterado de consciência”, é interessante observar como as pessoas entrevistadas relacionam
os estados alterados ou não-comuns de consciência tanto às conexões entre corpo e natureza,
quanto à conexão ampliada pela música, pelas vibrações auditivas das canções ou do
tambor.
Acho que as músicas influenciam muito nessa conexão com essa energia maior,
com esse inconsciente coletivo, com esse Eu superior, a energia que move o
universo, porque os sons vibram, essas vibrações promovem mudanças
moleculares, alteram a energia do corpo da gente, do corpo dos seres que estão
em volta, animados ou inanimados. Então eu acho que as músicas são um
instrumento poderoso no ritual, pra colocar a gente num estado alterado de
consciência e permitir que as mudanças ocorram, que as transformações
ocorram (Alice Becker).
No caso das cerimônias, toda vez que você muita informação a um sentido,
ele foge do seu intelecto e você expande pra uma outra coisa. No caso, na Dança
da Águia, que você ouve o tambor por mais de 24 horas sem parar, quando o
tambor para de tocar, você continua ouvindo o tambor, porque é uma vibração
que fica, que permanece. O estado alterado vem a partir do momento que você
esquece de você e entra na percepção real do que você está vivenciando, que é
uma coisa muito mais além do que você está vendo, é o que justamente
acontece quando você não vê, no ponto que você não com esse olho físico,
nessa tridimensão. Então o estado alterado de consciência, principalmente nos
processos xamânicos, você se impregna tanto da natureza, que é impossível não
138
vivê-la, não estar ligado ao fluxo dela, não estar viajando nas leis
dela.(Theomária Alves)
O EAC você consegue fazer facilmente através do tambor, através do chocalho,
através do ritual, e eu acho que no xamanismo essa é uma vivência constante.
(...) O EAC, na verdade, o que ele traz pra a gente? Existem diferentes níveis de
realidade. Nós vivemos em uma realidade, em uma dimensão da realidade, mas
existem outros níveis de realidade que a gente às vezes alcança, e às vezes, não.
(Derval Gramacho)
Grande parte desta consciência de outros níveis de realidade provém da motivação
dada pela música e pelo movimento quando associados. Uma experiência simples, muito
comum na Alvorada, é a de caminhar pela trilha cantando em direção aos espaços rituais
situados ao ar livre. A princípio cansativo, aos poucos o ato de caminhar/cantar vai se
tornando agradável, na medida em que o nível de energia aumenta, com a amplitude
respiratória, e do transe causado pela repetição do mantra, sempre acompanhado pelas
batidas do tambor. Alice deu um exemplo das músicas cantadas durante as caminhadas,
cujas coreografias são vivenciadas em outros momentos:
Ichel Axunará (cantando), essa que era linda, que a gente ia fazendo pra todas as
fases da lua, crescente, cheia, minguante e nova; tinha aquela do salgueiro
chorão que a gente sempre ia cantando ela caminhando para a Inipi: Salgueiro,
chorão, que a gente cantava tanto na língua indígena como em português:
Shanoon, Oiá. Na memória de ir andando para a Inipi, andando descalça, na
noite, na luz da lua, e a gente caminhando. Eu tenho uma memória disso super
forte.
Em se tratando das batidas do tambor, as mulheres mais antigas aprenderam o modo e
a função da cada toque, como disse Theomária:
Dentro dos cantos xamânicos, dos toques indígenas, eles têm a batida TERRA,
que é uma batida mais forte, mais pausada, mais grave, uma batida que traz esse
contato com o chão, com o ground, com a raiz, e as músicas e os cânticos
respeitam esses toques, então é uma música que traz uma qualidade de energia;
tem a batida ÁGUA, que é uma batida mais fluida e que mexe com as emoções,
e os cânticos também são feitos pra trabalhar a criança, as emoções; tem a
batida AR, que trabalha mais o mental, os cânticos também acompanham, e tem
a batida FOGO, que ela é mais vigorosa, mais aguda, trabalha a energia mesmo
do fogo, do espírito.
Este tipo de conhecimento não é mais transmitido durante os rituais. Aos participantes
é dada a oportunidade da experiência através da apreciação musical, ou seja, o mínimo
necessário para o envolvimento nos rituais. Cada pessoa leva para si um tipo de
conhecimento sobre a questão musical (tambor e cânticos) e sua influência nos estados
corporais:
139
O tambor, ele tem uma energia muito forte. Faça uma experiência, bote uma
música que tem tambor, feche os olhos, não precisa ser uma música bem
movimentada, mas que tenha o ritmo do tambor, você vai ver que vai sentir
vontade de bater o no chão, e você solta o corpo, o tambor leva muito você
pra terra. (...) Eu acho que o cântico é bom também, quando você entra na
sintonia da música que você canta. Não sei se você reparou, na sauna, Theo
mudou o tom, tava muito baixo, porque o tom muito baixo a gente fica pra
baixo, e quando você sobe o tom, quanto mais alto o tom da música, mais a
gente sente mais alegria, mais vontade da gente cantar mais alto, mais alto,
mais alto, entende? A música tem, a letra também tem, mas a letra tem de estar
de acordo com o tom da música também. Você pode reparar em cerimônias
indígenas, quando é uma coisa que tem estar no profundo mesmo, eles cantam
(Hô, hô, hô) bem grave, mas tem música que eles cantam muito alto (agudo).
Então cada música dessa, cada som tem uma vibração dentro de nós. Às vezes é
preciso que se cante uma música mais suave, como na Roda de Cura, onde o
tambor começa forte depois ele vai ficando mais suave. Ele tem que começar
forte pra poder mexer com a gente, soltar as nossas emoções, a pessoa ta ali
sendo trabalhada, tem que soltar as emoções, então é preciso um som que venha
da terra. Depois que você começa a soltar você precisa ser acalentado, a
música vai ficando bem suave, as vozes também. Depois quando a gente termina
a gente sente necessidade de cantar alto, porque a gente tá alegre, porque
conseguiu, o trabalho foi feito, então a alegria vem e a gente manifesta com, a
música. Quando eu contente eu quero cantar, canto uma música, ou boto
uma música pra dançar, me movimentar. Tem gente que precisa demonstrar
alegria com o corpo e aí dança. (Hilda de Melo)
Nesse sentido, atingir um estado diferenciado ou alterado de consciência significa se
permitir mudar algo, tornar algo mais fluente dentro de si. Nesse caso, o corpo movido pelo
som do tambor caminha em paralelo ao seu movimento interno.
O xamanismo reverencia a mudança e o movimento da terra, o movimento da
gente, o movimento interno, essa metamorfose ambulante constante que a gente
é. Outras religiões gostam mais de manter as coisas como são e enquadrar dentro
de uma imagem rígida. No xamanismo não tem isso. Eu acredito em movimento.
Eu vivo o movimento, respiro o movimento, trato através do movimento. (Alice
Becker)
O movimento e a mudança ocorrem ao nível da corporeidade, ou seja, na dimensão da
totalidade do ser humano, enquanto ser vivo, parte da criação e da natureza, e portanto,
sujeito aos mesmos princípios ontológicos. Se o corpo muda de estado a cada experiência
cotidiana, a mudança será mais profunda e integral, conforme a experiência seja mais
intensa e menos comum. Para Hugo Leonardo, um estado alterado de consciência é um
estado de intensa subjetividade que pode ser alcançado por várias vias:
Dentro de uma sauna, namorando, fazendo ritual indígena ou no palco. Podemos
dizer: tem estados que podem ser mais integrais, podem te dar uma presença de
estar no mundo, mais intensificada, de percepção, de subjetividade mais intensa,
que pode vir de várias formas (...) Nosso estado de subjetividade sempre é muito
140
fluido, (...) Eu gosto de explorar meus estados de subjetividade, não de qualquer
forma, também não vale a pena qualquer experiência. Vou sempre no sentido de
alguma coisa que me nutra de alguma maneira, é bem difícil de explicar, mas
acho que a subjetividade nossa tem sem dúvida nenhuma um raio de experiência
muito maior, um espectro de experiência muito maior do que gente se permite
viver, maior do que está sendo permitido viver, do que a televisão permite, do
que o dia-a-dia permite, permite uma faixa de vibração muito estreita perto do
que a gente é capaz. O dançarino vai viver um pedaço a mais desse espectro,
porque ele trabalha com o corpo mais integralmente. Como um jogador de
xadrez vai ter um pedacinho a mais também do que o outro lá, como aquele
medita horas por dia, todos os dias, tem outras faixas. Eu acho que a gente vive
numa faixa muito estreita de possibilidades e experiências subjetivas. pra
navegar muito mais isso, ampliar muito mais isso, pra cima, pra baixo, pra
várias direções. E várias práticas podem levar a isso. Eu acho que essa é uma
aventura humana muito interessante. É você explorar suas possibilidades, seus
estados de subjetividade com os critérios que você vai aprender a selecionar no
caminho.
Este depoimento ilustra a possibilidade de escolha que temos quanto aos estados
corporais, que Hugo associa aos estados de subjetividade. De acordo com Antônio Damásio
(apud Greiner, 2005, p. 79), as imagens internas são as responsáveis pelas mudanças de
estado corporal. Faz parte desse fluxo de imagens os estados viscerais, as estruturas
musculares, esqueléticas, as condições de movimento corporal, a reconstituição de objetos
através da memória e do pensamento, além das que são provenientes dos sentidos.
2.3.1.e. Os princípios recorrentes
Entre os princípios evidenciados em todos os rituais, compreendidos pelo senso
comum também como leis universais, o mais recorrente é o que se refere à simbologia das
direções, que traz os respectivos elementos materias da natureza e os de cada reino ou forma
de vida. São as leis universais da natureza, como coloca Theomária:
Tudo no xamanismo respeita uma lei, ele sempre trabalha com todos os reinos,
com todos os elementos, cada um tem um objetivo, uma qualidade, está presente
para modificar ou para construir alguma coisa, para curar alguma coisa. Todo
ritual vai estar sempre permeado dos quatro elementos, das quatro direções, dos
quatro reinos, o que modifica é a forma como cada um se manifesta.
Essas leis universais da natureza podem ser compreendidas como os princípios
fundadores dos rituais, desde a criação de um espaço sagrado, até o agradecimento final,
todos eles passando pela evocação aos quatro elementos e direções. E não é apenas na
cosmologia xamânica que estes elementos aparecem. Os quatro elementos básicos são
referências em muitas culturas e tradições ancestrais e correntes filosóficas, religiosas,
141
mitológicas, astrológicas, científicas, na medicina chinesa. Os quatro elementos não são
simplesmente símbolos ou conceitos abstratos, referem-se a forças vitais que compõem toda
a criação. Carl G. Jung, que dedicou toda a sua vida ao estudo da alma, fez corresponder a
cada elemento uma função da consciência: terra (sensação), água (sentimento), ar
(pensamento) e fogo (intuição).
Quanto ao poder das direções, perguntei a Hugo se a invocação das direções poderia
ajudar na qualidade do momento, ao que ele respondeu:
Que seja para cozinhar, para plantar uma árvore, para fazer uma meditação
mundial. (...) O tempo e o espaço sagrado, é a gente que constrói a qualquer
momento (...). As várias formas de invocar essas direções é uma maneira que
para mim sempre teve uma reverberação boa, talvez porque eu goste da poesia
do xamanismo. Eu sou um artista, as impressões religiosas para mim talvez
estejam muito pautadas no meu gosto estético. Eu acho bonito as histórias
indígenas, os cantos, acender a sálvia invocando as quatro direções, talvez eu
possa dizer que isso é um sentimento estético. Isso que ao mesmo tempo é
misturado com sentimento religioso. Eu também tenho isto no palco,
extraordinário, nada místico. Eu sou tocado pela beleza, tempo e espaço
diferente. O que qualquer recurso que você usa que te coloca neste estado, eu
acho que se você chama, se você invoca, você estará trazendo uma força que
está ligada a toda esta forma-pensamento.
Invocar as qualidades das direções não é uma atitude aleatória, é preciso conhecimento
do significado de cada uma delas e de qual seqüência seguir no trajeto de uma direção para a
outra. O depoimento de Hilda revela seu interesse pelo significado de cada direção,
fundamento que vai sendo incorporado ao longo dos rituais:
Se você pega os livros e começa a ler, cada tribo tem uma tradição, por
exemplo, as cores podem ser diferentes, inverterem as cores (relativas a cada
direção: preto, branco, amarelo e vermelho). Acho que o Sul é sempre a
criança, mas às vezes muda, muda alguma coisa, mas eu acho que isso não é
importante. Cada tribo tem uma tradição. (...) Se você pega um livro, diz que
começa primeiro pelo Sul, do Sul você vai para o Oeste, do Oeste vai pro Norte,
do Norte você vai pro Leste. Já na tradição dos Cherokee, na tradição da Sylvie,
a gente vai do Sul pro Norte, do Norte é que vai pro Oeste, depois é que a gente
vai para o Leste. O Leste sempre é a iluminação. Isso significa que os caminhos
são diferentes, mas a meta sempre é terminar no Leste, que o Leste é a
iluminação. (apêndice 4.4.)
No espetáculo Gestos Cantados, desenvolvido como parte desta pesquisa, escolhemos
a ordem ou o trajeto Sul Oeste Norte Leste para compor as cenas, como será visto
em detalhe no capítulo III. Esta opção deve-se à compreensão sobre minha própria trajetória
pelas direções ao longo do trabalho de campo, da minha experiência com o xamanismo no
142
Castelar da Alvorada, especialmente no Círculo de Mulheres da Alvorada
80
, passando por
dificuldades, porém seguidos por estados de imensa satisfação. A passagem pela direção
Oeste para mim foi fundamental, no sentido de reconhecer partes de mim que não me
serviam mais, fato que ilustro com as questões sobre a morte.
2.3.1.f. Hoje é um bom dia para morrer!
Esta é uma frase muito conhecida e utilizada por Sylvie, tanto nos momentos de
ensinamentos e conversas descontraídas, quanto durante os rituais, mas principalmente nos
momentos mais difíceis, no auge de um ritual, quando a mente das pessoas reage às
possibilidades de entrega, ou quando aflora o medo iminente da morte. Em todos os
trabalhos xamânicos sempre algo em nós morre e lugar a outro estado de ser. Essas
pequenas e sucessivas mortes são necessárias aos iniciados, cada um à sua maneira, cada vez
mais abrindo portas e janelas para liberar padrões antigos, abrindo espaço para novos, ainda
que não saibamos exatamente o que queremos mudar em nós. Aos poucos vamos nos
tornando mais esclarecidos acerca dessas mudanças, e aprendemos a nos beneficiar dos
rituais para nosso crescimento pessoal. Existe a crença de que, para os iniciados, parece que
os rituais trabalham independente da vontade de cada um. Mesmo que não saibamos o que
se passa, os rituais estão fazendo algo por nós, ainda que seja nos levar ao encontro de
nossas mortes simbólicas necessárias e tão valorizadas na cosmologia xamânica, assim
como o é para vários povos indígenas brasileiros, como é o caso dos Araweté, povo sobre o
qual Viveiros de Castro (1986) fez um estudo de caso.
Nesse sentido, um ano após a minha primeira experiência no Círculo de Mulheres,
passei pela primeira e mais forte morte e renascimento, quando me defrontei com os
problemas da falta de cumplicidade com o feminino, principalmente entre nós, as mulheres,
quase sempre muito feridas emocionalmente. As danças-músicas marcantes desse encontro
foram Ninto Mami Ninhursag e Horman Alatu, ambas do repertório do Ciclo da Grande
Mãe (apêndice 1)
81
. A primeira letra refere-se aos três arquétipos femininos principais: a
reprodutora - a mulher como fonte criadora de vida, a mãe nutridora a mulher como
80
Minha participação nos encontros do Círculo de Mulheres ocorreu nas seguintes datas: fevereiro/2003,
junho/2004, maio/2005, julho/ 2005. O Reveillon Maia de julho de 2004 foi um encontro misto, do qual
participei com minha família.
81
A coletânea de nticos do ciclo da Grande Mãe foi organizada por Douglas-Klotz e Kamae A. Miller. O
ciclo celebra as estações do ano, solstícios e equinócios e os pontos intermediários. Ver detalhes sobre cada
canção na contra-capa do CD deste autor, de título: um ciclo para o oriente médio: cantos para a grande deusa
mãe, 2000.
143
sustentadora da vida e a anciã - a mulher como transformadora de energia. A segunda refere-
se à descida mística à profundidade da caverna, que significa morte e renascimento.
Após um episódio que misturava vida pessoal e pesquisa de campo, considero que foi
decretada a morte de um antigo padrão de competição com as mulheres e de ignorância
sobre o sentido profundo do feminino de minha parte. Foi um rito de iniciação ao feminino
extremamente doloroso, durante o qual, vale salientar, houve desarmonias no grupo inteiro,
talvez acirrado pelos ensinamentos do Chuluaqui Kuoduska, que não veio por acaso em
nossas vidas.
Neste ponto da jornada xamânica, que apenas se iniciava para mim, se instalava a fase
da liminalidade dos ritos de passagem, que representa a marginalização em um espaço
sagrado e de formação para uma nova maneira de ser, e iria ser a mais longa de todas, até a
minha reerguida no final da Dança da Águia, que significou o começo da reintegração na
comunidade, no caso, a da pesquisa em arte, em direção ao processo criativo cênico/ritual e
à defesa da tese.
Assim, me interessei muito em compreender como Sylvie fazia este trabalho, e de que
maneira o ritual contribui pra novas formas de estar junto, permitindo acontecer a dança
entre o caos e a harmonia. O que me motivava era o meu processo de transformação dentro
dele e o que poderia levar disso para um processo criativo cênico. Diante disso tive a
compreensão de que a pesquisa seria uma oportunidade de alcançar uma consciência da
mitologia pessoal em desenvolvimento, a partir das tradições ancestrais, a partir dos
princípios humanos do tempo das tribos. Como em FEINSTEIN e KRIPPNER (1997, p. 29)
temos que os nossos mitos apontam as mais amplas questões de identidade (quem sou eu?),
de direção (para onde vou?) e de propósito (por que estou aqui?).
Decidi, portanto, que na escrita da tese iria falar sobre a ‘doce medicina’
82
de Shining
Woman, como uma via legítima e necessária na construção de conhecimento. Mas para
alcançar este intento eu ainda iria passar por várias mortes psíquicas, como nas palavras de
Sylvie:
A morte xamânica é uma morte psíquica também, então graças a Deus até hoje,
depois de vinte anos, ninguém morreu, dentro de uma sauna minha, ou dentro de
uma cerimônia, fisicamente ninguém morreu, mas o que as pessoas morreram
82
Termo usado por Sylvie ao se refrir à medicina das rodas das direções.
144
psiquicamente, meu Deus. Eu digo bem forte para que ela realmente morra, para
renascer uma nova pessoa.
Em todos os rituais uma parte em nós que deixamos morrer, uma retirada de casca
de cebola, metáfora utilizada por Hilda:
Hoje em dia já estou mais suave, mas isso é uma coisa tão sutil, você vai
aprendendo que tudo o que você passa na vida, com todos os trabalhos que você
faz, todas as rodas que você gira, com todos os caminhos que você passa, com
todas as iniciações que você passa. É um ir e vir, que você descobre que ótimo
que trabalhei isso. Quando você tem outra coisa pra transformar, é como se
fosse uma cebola, quanto mais você tira a casca, ainda tem coisa pra tirar, você
vai tirando uma casca, ‘ôpa, eu tiro isso aqui, acabou’, se você continua,
você vai vendo que ainda tem mais coisa pra tirar, e você vai tirando, vai
tirando, quando você chega, que não tem mais cebola, acabou a cebola, a
cebola são as próprias cascas que você vai soltando.
De acordo com o estudo de Viveiros de Castro (1986, p. 482) entre os Araweté,
morremos muitas vezes na vida e outras tantas na morte, uma vez que morrer designa todo
estado de perda da consciência, relativo a um estado de “transição” corporal. “A morte real
é apenas um caso, dentro de muitas mortes e ressurreições a que uma pessoa se submete e se
submeterá”.
Ainda que se considere ultrapassada a visão de Jung da importância da totalidade do
sujeito, tendo em vista o argumento de que o sujeito pós-moderno é um sujeito descentrado,
resolvi encarar a “morte do sujeito” (DELEUZE, 1995) como sendo a “morte do ego”, para
a emergência da própria subjetividade (GUATTARI, 1992, p. 17) e da consciência da
diferença que emerge no trânsito entre o eu e o outro. Então, na compreensão xamânica,
existe a morte necessária do paciente para que ocorra um processo de cura e existe a morte
física, que muitas vezes acontece por um descuido nosso, por negligência, como acontece na
maioria dos acidentes. Morte psíquica ou não, a força vital que me impulsionava pra
continuar a pesquisa me fazia confiar na frase dita por Gramacho, em sua entrevista: ‘a
morte, ela sempre espera o guerreiro dançar a sua última dança’(apêndice 4.6.).
2.3.2. Rituais Xamânicos
Continuando com o depoimento de algumas pessoas entrevistadas, além da minha
própria experiência, descrevo a seguir os seguintes rituais xamânicos:
Ritual do Talking Stick
145
Ritual de Purificação com a Sálvia
Ritual de Queima das Cartas Pessoais
Ritual da Viagem Xamânica /Jornada do tambor
Ritual da Sauna Sagrada
Ritual de Busca de Visão (na montanha)
Rito de Passagem na gruta ou caverna
Ritual da Roda de Cura
Ritual da mitologia pessoal (cerimônia da árvore)
Celebrações do Calendário da Paz (Calendário Maia)
Meditação pela Paz
Ritual da Dança da Águia
2.3.2.a. Ritual do Talking Stick
O ritual do bastão falante é o primeiro momento de cunho cerimonial para os
iniciantes nas práticas xamânicas. O objetivo é aprender a “falar com o coração”, ao invés
de falar com a mente e haver uma comunicação harmoniosa entre as pessoas da tribo.
Também chamado de bastão da fala, este ritual é um tipo antigo de partilha que alguns
povos da Mongólia, Tibet e Norte-Meso-América utilizavam. Segundo o antropólogo José
Franscisco Serafim
83
(FACOM UFBA) semelhanças entre este ritual e a prática ainda
existente dos índios brasileiros Kraó, o que de mostra aspectos de similaridade entre
algumas práticas dos povos indígenas das Américas.
No ritual, quando uma pessoa fala, o outro não pode falar. falamos quando chega a
nossa vez. Às vezes quando o grupo é grande, quando uma pessoa está falando, outra quer
falar também, em resposta a esta, por estar muito emocionada, e a pessoa que está falando
muitas vezes tem a resposta daquela que queria falar, assim como as das outras pessoas que
irão se colocar em seguida. Nas palavras de Sylvie, quando seguramos o talking stick (TS), é
como se acontecesse um ato sagrado dentro de nós, vem a sabedoria de ouvir o outro, que
tem como conseqüência, aprender a fazer a mesma coisa no dia a dia, sem a presença do TS.
Podemos utilizar o TS na nossa família, com nossos filhos, nosso companheiro, nossos
amigos, para resolver conflitos, especialmente em contextos grupais, onde a voz é usada em
volume aumentado e muitas pessoas falam simultaneamente.
Isso mostra um dinamismo muito grande, uma vez que a cosmologia dos povos antigos
se baseia no princípio da “roda”. A sabedoria da roda está na capacidade de aceitação do
momento presente, sem nenhum tipo de argumentação ou defesa de alguma idéia ou crença.
83
Informação dada em conversa informal.
146
Com o TS, percebemos que somos todos iguais, que devemos acolher o que o outro fala para
poder enriquecer o que somos.
Figura 18: Foto nº. 11 - Bastão da fala (talking stick) construído para o processo
criativo desta pesquisa (vide cap. 3)
O bastão do TS é construído de maneira muito simples, a partir de um galho de árvore
e ornado com penas e pedras. Considerando o fato de que somos interconectados com tudo,
os quatro elementos da natureza são representados nele, assim como os reinos vegetal,
mineral, animal e humano. A madeira do bastão representa o chamado povo-em-pé,
considerado como o povo que veio para se doar, que representa a fala com o coração, porque
o povo vegetal é do Sul. As penas significam o Norte, o lugar do conhecimento e da
sabedoria
84
. Em seguida vêm as pedras, o povo que sustenta a terra, sustenta toda a energia
da terra. Então falamos com o coração, recebendo o conhecimento e a sabedoria do norte e
sustentando a nossa fala através do povo das pedras. O último reino somos nós, o povo
humano, nós que determinamos a nossa fala segurando o TS.
Quando passamos o bastão para outra pessoa, a olhamos nos olhos, falamos o nosso
nome e dizemos: “eu falei”. O que cada um diz é selado consigo mesmo e com os outros. A
única coisa que pode ser dita por quem não está com o bastão é a expressão “YAHOW”, ou
simplesmente “HÔOW”, que significa a expressão do coração. O bastão vai passando por
cada pessoa do círculo para que se apresente e fale sua intenção de estar ali, para que esta
intenção possa começar a se manifestar. A intenção ou intento é o primeiro passo para
qualquer mudança.
84
Pode parecer arbitrário, mas uma lógica por trás destas simbologias, as quais seguem o princípio das
direções. Por exemplo: o elemento Ar está relacionado à direção Norte, que por sua vez tem relação com o
Espaço. É pelo espaço que acontecem algumas formas de comunicações, inclusive as sonoras, gerando o
conhecimento. Como as aves dominam o espaço, compreende-se o porque das penas representarem o Norte.
147
O ato de falar com o coração pode parecer um absurdo para os teóricos cognitivistas,
mas todos os ensinamentos das tradições aqui estudadas falam do caminho vermelho como
sendo o caminho do coração. A expressão “falar com o coração” não se trata de uma
metáfora. Acredita-se que o coração vibra e pulsa somente a parte positiva, a parte amorosa
de nosso ser. De acordo com Pierre Levy (2000, p. 41), uma inteligência do coração, ou
melhor, o coração é a verdadeira fonte de inteligência. O mental, portanto, precisa ser
transformado através do poder do coração, um poder que é a chama da vida.
Na mitologia grega, em especial no mito de Sofia, também encontramos referência ao
caminho do coração, o gnosis kardias, “o caminho do coração que sabe”, ou a sabedoria
do coração que compreende”, abandonada por Sofia para se dedicar à busca de
conhecimento através do poder da mente. Há implicações psicológicas neste mito que revela
realidades universais e arquetípicas da experiência psíquica, a partir da interpretação da
situação de perda da alma feminina chamada na psicologia junguiana de animus, e da busca
por vezes equivocada de recuperação desta. A sabedoria feminina seria encontrada após a
restauração da totalidade, ou seja, da união com a sua masculinidade psíquica. O simbolismo
desta história se aplica e é recorrente no conjunto de ensinamentos nos encontros de
mulheres da Alvorada.
2.3.2.b. Ritual de Purificação com a Sálvia
Este é um ritual simples, realizado como introdução aos trabalhos seguintes, com a
função de criar uma atmosfera ritual de sacralidade no ambiente, sendo necessário para isso,
uma espécie de limpeza energética de cada pessoa ali presente. De origem Cherokee, trata-
se de queimar em uma pequena concha um punhado da erva americana, já cultivada no Vale
do Capão, espalhando sua fumaça purificadora com a ajuda de uma pena e ao som do
maracá, ao longo do corpo de cada pessoa, pela frente e pelas costas. Nos rituais da
Alvorada, normalmente há várias pessoas voluntárias simultaneamente purificando cada
integrante do grupo, que por sua vez mantém a energia cantando a canção Wendeya. Várias
mulheres têm levado este ritual para suas práticas em grupo, como é o caso de Zelice, que
sempre queima a sálvia antes de iniciar uma sessão de Danças da Paz Universal. Da mesma
maneira este ritual foi utilizado no processo e resultado cênico em Gestos Cantados, como
pode ser observado na cena 1.1., figura 48, foto nº. 36, capítulo III.
148
2.3.2.c. Ritual de Queima das Cartas Pessoais
Este ritual aprendido na Alvorada por uma integrante do Círculo de Mulheres, foi
realizado por ela em sua casa na cidade de Lençóis, numa meditação de fim de ano que
organizou. Cada pessoa escrevia numa folha de papel, tudo aquilo que gostaria de desapegar
ou transformar em si mesmo, bem como aquilo que gostaria de alcançar em termos de meta.
Estes papéis foram colocados num recipiente com fogo para que, através de preces e
meditações, o poder do fogo pudesse atuar na transformação das pessoas. Foi justamente
esta pessoa e este ritual que me levou a conhecer o trabalho de Sylvie na Alvorada.
Realizado durante o processo cênico em Gestos Cantados, este ritual pode ser observado no
início da cena 24, no início do solo de Leonardo (vide capítulo III)
2.3.2.d. Viagem Xamânica /Jornada do tambor
Figura 18: Foto nº. 12 - Tambor xamânico da Alvorada
Na viagem xamânica conduzida por Sylvie como preparação para a Roda de Cura que
iria acontecer em seguida com o grupo de mulheres, o trabalho foi intenso. Durante cerca de
uma hora e meia, o grupo permaneceu deitado, de olhos fechados em posição confortável,
nas esteiras estendidas no salão (templo), ouvindo as batidas aceleradas do tambor de
Sylvie, que nos conduzia por uma viagem imaginária individual ao lado da loba branca, o
animal de poder que iria nos guiar no caminho ao encontro de nossa “criança mágica”.
Considera-se que a criança mágica é aquela parte inocente de nós que não foi ferida por
opressões e violências da sociedade adulta. Durante a “viagem” cada uma fazia uma
fogueira, remava numa canoa pelas águas de um rio, se conectava com os portais das
direções, enfim, foi dado a cada uma um reconhecimento de sua força pessoal e de suas
motivações mais íntimas, a partir de elementos materiais da natureza.
149
Essa força, no entanto, não é reconhecida no momento do ritual, de maneira racional.
A entrega a este tipo de experiência está relacionada principalmente a uma não-
racionalização e conceitualização da experiência, a uma entrega ao devaneio propriamente
dito. Ao contrário da sauna sagrada, da qual participei muitas vezes e já posso dar um
testemunho mais aproximado, uma única experiência com a jornada do tambor não me
permitiu descrever com mais precisão, principalmente pelo fato de compreender por outra
via a função desse ritual.
Em relação às funções dos rituais, Mary Douglas, citada por Camarotti (2001, p. 19),
diz que: “Na desordem da mente, em sonhos, vertigens e frenesis, o ritual espera encontrar
poderes e verdades que não podem ser alcançados através do esforço consciente”. A partir
do relato de outros autores, ela fez a observação de que, em muitas culturas estudadas, o
ritual tem o poder de “refazer o homem”, e que um dos meios mais comuns de adquirir
habilidades divinas, tal como o poder de cura, é tornar-se “louco temporariamente”.
De fato, a Jornada Xamânica do Tambor é uma técnica de êxtase, onde o tambor é
usado de maneira diferente dos demais usos rituais. Existem pesquisas sobre os efeitos
temporários nas freqüências das ondas cerebrais induzidas pela estimulação auditiva do
toque intermitente do tambor em rituais indígenas, uma delas citada em Arrien (1997, p.
116), cujo ritmo do tambor num determinado momento da jornada xamânica obedece, na
maioria dos casos, a um padrão regular de quatro a sete batidas por segundo, com a duração
de aproximadamente dez minutos a cada sessão. A cada mudança de ritmo, uma variação
de freqüência de onda cerebral, correspondendo a diferentes estados neurofisiológicos,
psicológicos e espirituais. Alguns desses estados, referentes ao aumento das freqüências
Alfa e/ou Teta, se assemelham aos encontrados na yoga e na meditação, nos quais as pessoas
são capazes de manter sua autoconsciência, permanecendo alertas mesmo nesse “estado
nebuloso de consciência”. Considerada uma forma natural de indução a um estado alterado
de consciência, a prática da jornada do tambor também tem o objetivo de desenvolver a
abertura e a força do coração.
150
2.3.2.e. Ritual da Sauna Sagrada
Dentre as cerimônias mais importantes do Xamanismo do Castelar da Alvorada, a
sauna sagrada, também chamada de cabana de suor, ou Inipi, é considerada um tipo de
medicina, “na medida em que serve para purificar e limpar o corpo de toxinas, para libertar-
se, para ajudar as pessoas a brilhar mais”, como disse um de meus entrevistados
85
. Este
ritual é uma técnica antiga de ampliação pessoal da irradiação de energia. É um ritual
bastante forte, não apenas para os iniciados, mas também para os que participam com
freqüência. Cada experiência é única, apesar da estrutura do ritual permanecer a mesma.
Algumas horas antes do início do ritual, uma fogueira é acesa pelas pessoas
responsáveis indicadas anteriormente para serem guardiãs ou guardiões do fogo, para
aquecer as pedras que vão ser colocadas pouco a pouco dentro da estrutura feita de gravetos
flexíveis, especialmente de salgueiro
86
. Cada graveto tem uma função, tem o poder de se
conectar com tudo o que está abaixo e acima da “Mãe-Terra
87
”. A arquitetura da cabana
remete a uma cosmologia, a uma sabedoria, a um conhecimento em forma de rodas das
direções. Normalmente a porta de entrada fica situada no Leste, de frente para a fogueira e o
altar com o símbolo da águia feito em pedras no chão. No lado oposto, fica o Oeste, e assim
se localizam as outras direções e sub-direções. O tamanho da estrutura parece variar de
acordo com o tamanho do grupo, sendo que a maior de todas pode abrigar mais de sessenta
pessoas, sentadas de pernas cruzadas, dispostas em três círculos concêntricos. Atualmente há
quatro armações permanentes montadas de tamanhos diferentes dispostas em círculo,
separadas pelos altares e pelo centro onde fica a fogueira.
O objetivo do ritual da sauna é se desligar do tempo e do espaço e entrar num tempo
mítico, apesar da nossa resistência para sair do controle da mente. É preciso entrega e
disciplina para seguir as instruções do ritual, desde a preparação do espaço, até as maneiras
de sua utilização. Todas participam da preparação do ambiente, da limpeza do local onde
vamos sentar, varrendo a terra, tirando pedras, tocos de pau, coisas que possam incomodar.
Após a limpeza, são colocados mantas e cobertores por cima da armação, para manter o
85
Derval Gramacho
, autor do Livro Magia Xamânica: Roda de Cura. São Paulo: Madras Editora Ltda, 2002.
86
Na Alvorada também uma estrutura em alvenaria, em formato semelhante à inipi mais rudimentar (fotos
13, 14 e 15) que é chamada Temascal, a sauna mexicana, mas apenas recentemente foi inaugurada fora do
calendário de programação aberta ao público.
87
Sic.
151
calor e evitar a entrada de luz, os quais são retirados para secar após a utilização. Baldes
d’água são colocados junto à porta da sauna para serem utilizados durante o ritual.
sempre uma pessoa instruindo os recém-chegados quanto às normas do ritual a
serem seguidas, que são em resumo as seguintes: Após a preparação do ambiente, e depois
de cada mulher ter colocado uma grande pedra na fogueira, para que esta represente sua
intenção ou o compromisso pessoal naquele trabalho, deve-se voltar para o alojamento e se
preparar, se arrumar, colocar uma roupa bonita, de preferência saia ou vestido, o símbolo
mais explícito do feminino. Ao entardecer todas devem seguir pela trilha geralmente
iluminada pela lua, ou por lanternas e ainda por “latovelas” (velas dentro de latas), todas em
fila, juntas, para que a energia já comece a se estabelecer.
No espaço da cerimônia, junto à fogueira, sempre algum cântico ou uma dança
como forma de pedir permissão ao Grande Espírito Wakan Tanka e à Grande Mãe das
Origens, para que seja realizada a cerimônia. Cada pessoa faz sua prece dizendo sua
intenção e coloca um punhado de ervas secas perfumadas no fogo, queestá com as pedras
aquecidas.
Figura 20: Foto nº. 13 - Preparação do ritual da sauna sagrada – fevereiro de 2003
152
Figura 21: Foto nº. 14 – sauna coberta com mantas
Figura 22: Foto nº. 15 – altar do leste (representa a águia) situado entre a sauna e a
fogueira
Antes de entrar na sauna, cada uma deve dizer a frase “para todas as minhas
relações”, com a cabeça tocando o solo. Devem entrar em fila, sem roupas, abaixadas e nos
deslocar pela esquerda, circulando o espaço e sentando sobre a terra, no lugar que representa
a direção escolhida. As mulheres que estão no período menstrual devem se sentar sempre no
Oeste
88
. Após a entrada de todos, acompanhada de cânticos, a porta é fechada e as pedras
aquecidas na fogueira são trazidas aos poucos para o centro da sauna. A água serve para
88
Acredita-se que as mulheres menstruadas estão num período de purificação e quanto mais aproximarem seus
úteros da terra e no lugar mais quente, no Oeste, que é a direção da transformação, mais eficiente vai ser o
processo de transmutação de energias profundas, que não estão ao nível do consciente.
153
levantar o vapor quente e umedecer o ambiente, além de fazer exalar o cheiro das ervas
jogadas nas pedras quentes. Um dos cobertores é colocado para fechar a saída, também
chamada de porta, que é aberta apenas para a entrada das pedras e por mais quatro vezes,
para a saída das pessoas, que devem voltar pelo mesmo caminho que fizeram ao entrar.
O que vem a seguir não é anteriormente explicado aos iniciantes, de maneira que cada
um tem sua experiência subjetiva ao encontro do desconhecido. No entanto, depois de ter
participado de cerca de doze saunas ao longo dos rituais, posso compreender o seguinte:
Quando a porta é aberta pela primeira vez, isso significa que os motores estão aquecidos,
que a energia está rodando, mas o trabalho ainda está começando. Na segunda abertura de
porta, as intenções pessoais foram colocadas. Na terceira porta, uma oração para nossos
familiares foi feita e na quarta porta Sylvie sempre pede para o grupo falar
simultaneamente o que quer liberar, ou seja, o que não queremos mais em termos de padrão
de comportamento para nossas vidas. Quem consegue chegar até este momento, conseguiu
suportar todas as dificuldades com o calor excessivo da sauna, tendo grandes chances de
fazer o mesmo em relação às dificuldades na vida cotidiana.
Um dos fatores principais que contribuem na manutenção do grupo por mais tempo
dentro da sauna são os cânticos, sempre acompanhados de tambor e maracá, utilizados com
objetivos que variam desde o acalmar diante do desespero com a falta de ar (Shanoon, Ii
Cheel, From the Goddess, Shiva Shambô), passando pelo estímulo do grupo à entrega, à
entrada no “buraco negro da luz” (Olla Mama), até o despertar dos ânimos do grupo
(Canção do Pato). Alternadamente ou simultaneamente aos cânticos, Sylvie conduz o ritual
iniciando por saudar e evocar as qualidades de cada direção, preparando o grupo para fazer
uma “grande viagem” psíquica.
Uma pessoa é designada para receber do guardião do fogo a pá com cada pedra quente
e colocá-la no buraco raso ao centro. Então Sylvie coloca eventualmente água por cima das
pedras, para que o vapor se espalhe. Junto de Sylvie ficam ainda as pessoas que puxam os
cânticos e tocam os instrumentos e outra que auxilia no caminho de saída de cada pessoa,
especialmente para que não se queime nas pedras, já que normalmente não é possível
enxergar nada no escuro total ou na penumbra. Quando a última pedra é colocada, mais ou
154
menos no momento auge do ritual, o calor torna-se mais intenso, quando se permite que as
pessoas liberem seus medos e sofrimentos através de gritos, uivos e gemidos. Apenas
quando se vence todo o sofrimento é que se pode encontrar a alegria da própria “criança
mágica”.
O ritual da sauna atua na dimensão energética, afastando todo o pensamento
linear. Aqui se trabalha com o risco, físico e psíquico, mas de acordo com a natureza
individual de cada pessoa. O fato é que as transformações são visíveis, ao sentirmos tanta
energia após uma sauna revigoradora. Para mim o ritual da sauna é o que mais exige de nós
a qualidade do Oeste: a introspecção, a interiorização, a receptividade, a capacidade de
concretizar nossos objetivos, o pleno reconhecimento de nossas forças interiores, a
compreensão das nossas naturezas, o lugar do profundo feminino. A sauna representa a
caverna, também compreendida como “o útero da terra”, e significa a entrada e a descida
num lugar de silêncio, para que se possa estar na quietude de nosso espaço sagrado, mas
principalmente para que possamos morrer e renascer. Para se aproveitar do estado alterado
de consciência durante a sauna devemos manter a cabeça erguida (o calor se concentra na
parte de cima da sauna), suportando as dificuldades, até que elas desapareçam da mente. É
preciso muita disciplina para não buscar alívio através do ato de respirar na areia fria do
chão. Apenas quando Sylvie sente que as pessoas estão entrando em desespero, ela permite
que respirem na terra fria por alguns instantes, sugerindo até que todos fiquem numa posição
que favoreça o contato da região pubiana com a terra.
À medida que cada pessoa vai saindo, vai ficando junto à fogueira e sendo acolhida
pelo guardião do fogo, que oferece água e melancia para hidratar. Neste momento, com o
corpo todo sujo de terra, podemos tomar banho de rio, coisa que normalmente também é
feita em grupo, com muita descontração. Podemos permanecer junto ao fogo até o
amanhecer se quisermos, mas não podemos voltar para o alojamento antes da saída de
Sylvie, que após a última porta permanece sozinha na sauna, apenas acompanhada dos
auxiliares, concluindo o ritual.
Cada sauna tem características diferentes, de acordo com o que o grupo tem de mais
eminente para ser trabalhado no momento, bem como com o objetivo de cada ritual na qual
esta estiver inserida, ou seja, o ritual da sauna tem uma função preparatória para outros
rituais de longa duração, como é o caso dos rituais de Busca de Visão e o da Dança da
155
Águia
89
. Mas em todas as saunas uma coisa em comum: o desconforto gerado pelo calor
intenso é sempre aliviado pela beleza dos cânticos e pela união de vozes femininas,
acompanhadas pelo tambor e as orientações de Sylvie.
2.3.2.f. Ritual de Busca de Visão (subir e descer a montanha)
A busca de visão começa com o desafio de estar completamente sozinho, considerando
a existência da companhia de animais, plantas, pedras e entidades. A busca é consigo
mesmo e a visão é conseqüência da busca. Nesta tradição xamânica existe a crença de que
os longos momentos de solidão e dormindo ao relento na natureza despertam nosso
propósito de vida, ou melhor, têm como objetivo recuperar e recordar as aptidões, muitas
vezes reconhecidas durante a infância.
Não participei deste ritual, mas de acordo com a programação divulgada pela equipe
da Alvorada, por quatro dias e quatro noites, cada pessoa se submete a uma situação de
vulnerabilidade no topo da montanha, em jejum e em silêncio. Após a preparação dos
participantes, que consiste em algumas dinâmicas (vide entrevista com Alice Becker),
inclusive com a realização de uma sauna sagrada, cada pessoa é acompanhada por seu guia
até o local indicado por este, que volta para a Alvorada e junto ao grupo apoio, permanece
em cerimônia, junto com outras pessoas cantando dia e noite, na sauna e ao redor da
fogueira, dando apoio energético ao buscador de visão. Na montanha, algumas atitudes
cerimoniais são fundamentais como fator de proteção: a construção de um círculo de pedras
destinadas às direções e uma fogueira acesa durante as noites. No final de quatro dias, cada
guia vai buscar a pessoa pela qual se tornou responsável no mesmo local. No dia seguinte
pela manhã o grande grupo participa da Temascal (Sauna Sagrada Mexicana) para encerrar a
Busca de Visão, cujo resultado pessoal é compartilhado com todos.
89
Paradoxalmente, para que aconteça este ritual de purificação e ecologia profunda, é necessário consumir
muita lenha retirada das matas, seja da propriedade da Alvorada, seja das regiões próximas, o que contribui
para acelerar o processo de desmatamento da Chapada. Num nível mais rudimentar, não prejudica em nada o
ambiente a utilização de galhos secos para o fogão de lenha ou para uma fogueira ritual ou ainda para a sauna,
porém, ainda não consegui ter uma noção do prejuízo ecológico causado pelo uso constante de lenha para
cumprir um cronograma programático extenso ao longo dos anos.
156
Considero importante incluir aqui dois depoimentos concedidos em entrevista. A
dançarina Alice Becker descreve sua experiência com o ritual de “desatar os nós”,
semelhante ao da busca de visão, sendo que neste havia a opção de estar em grupo.
Uma vez teve um ritual que ficou muito forte para mim. (...) era o ritual da gente
desatar os nós, então, cada pessoa ia coletando os nós que tinha na sua vida,
aquelas coisas que lhe incomodam, que dificultam sua caminhada... e
passávamos o dia trazendo essas memórias, e à noite, subimos todas as mulheres
no alto do morro ali em frente à Alvorada e fizemos um novo ritual com a
Shining Woman, em que ela invocou todas as quatro direções e tudo que elas
simbolizam e significam, todos os seres envolvidos. E depois começamos a
descer. Durante esse ritual me bateu um frio enorme. Tinha mulheres que
tinham 15 nós, 30 nós, cinco nós.(...) Levei mais de uma hora tentando desatar o
meu nó e não conseguia. Foi de dente, foi de unha, foi de tudo que eu consegui,
até que finalmente eu desatei, e foi no momento que eu desatei o que eu tive
essa catarse, uma liberação de energia violenta. E depois começamos a descer, e
Sylvie foi orientando: “você desce com fulano, você desce com beltrano que tem
vela, lanterna...” e, chegando a minha vez, eu vinha pensando comigo: eu quero
descer sozinha, em silêncio. Mas o medo... no escuro, descalça, sem vela. Era
lua cheia, mas, na hora em que eu fui descer, a nuvem cobriu a lua, e ficou
coberta até eu chegar embaixo. Ela disse: “Alice, você quer descer sozinha?”
Me surpreendi por ela ter lido meus pensamentos, ela não sabia que era medo,
eu o disse que era, mas eu falei que queria e desci nua, descalça, sem vela,
no escuro, sem nenhum instrumento na mão ... E cheguei em baixo foi a
emoção mais forte, foi uma coisa assim que me marcou pelo resto da minha
vida, o potencial que eu tinha para fazer as coisas que eu acreditava e conseguir
o que eu queria e superar uma das coisas mais fortes que sempre me frearam na
vida: o medo, e que eu acho que é a causa de tantas outras coisas... então foi
muito forte, ali foi uma prova imediata, clara e concreta do poder de um ritual.
Como Alice Becker disse, o medo pode ser a origem de todos os outros problemas
emocionais. Como dançarina, ela ainda não tinha encontrado nas técnicas de dança
existentes até o momento, alguma técnica que a fizesse chegar nesse limiar, que causou esse
transe, esse rompimento, essa mudança de padrão. O medo é um sentimento que está
tomando grandes proporções na sociedade de consumo contemporânea, que o utiliza como
meio de manipulação dos desejos humanos. Enquanto o medo nos desestrutura, trazendo
vários sentimentos de invalidação e desconfiança, o amor nos encoraja. A coragem significa
saber de ‘cor’, estar de coração aberto para o novo. O medo é justamente o oposto do amor e
é em cima dessa emoção que os trabalhos xamânicos atingem profundamente, inclusive o
medo da morte.
Quase todos os rituais trazem à tona a sensação de morte, que será explorada mais
adiante. O depoimento de Gilmar Lopes mostra também a experiência de subir em grupo e
descer sozinho da montanha:
157
Tinha que descer a montanha sozinho, cada um tinha que tomar o seu rumo até
chegar na Sede. Você tem que descer sem nada. Era na lua nova, todos os
trabalhos de rituais dos homens sempre se processavam nas noites de lua nova
Eu cheguei na Sede cheio de espinho de cactos, pois a escuridão da lua nova não
deixava claridade para saber o que iríamos tocar em cada passo ao descer a
montanha, até porque ela era muito íngreme, e por vezes você acabava dando
umas escorregadas pelo meio do mato em muitas pedras. Subíamos em grupo,
ficávamos observando o céu, cantando, contando história, até o momento em
que cada um ia descendo sozinho. A intenção do trabalho é explorar o seu lado
intuitivo, para superar a insegurança do caminho, pois na volta não temos a
menor noção da trilha e sempre iremos dar um tropeção. É por isso que eu
passei a gostar de fazer vivência sozinho, de sair de casa e ir dormir na
montanha sem nada, apenas contactando com a energia do lugar livre do
conforto da vida urbana. Ficar na noite a observar as estrelas.
A escuridão aqui tem espaço, permite a mobilidade, pois a subida na montanha remete
à direção Norte e ao elemento Ar, de maneira que reconhecemos nossa prontidão para
escolher o caminho de volta e direcionar nossos pensamentos para onde queremos chegar.
Mesmo que não se tenha a oportunidade de participar de todos os rituais da Alvorada,
há uma compreensão unificadora em todos os rituais, encorajando às pessoas a dar o
próximo passo, de maneira que aos poucos vamos perdendo o medo de ficar sozinhos,
aprendendo a caminhar mais sozinhos e a ter uma atitude cerimonial durante essa
caminhada, de permissão e agradecimento por um banho de rio, por exemplo. Os medos vão
cedendo lugar à confiança de que podemos nos fortalecer junto à natureza, inclusive nos
momentos de maior solidão e desespero.
2.3.2.g. Rito de Passagem na Gruta ou Caverna
A Gruta é mais um dos locais de provocação do medo interno das pessoas, embora
exista, por outro lado, uma proteção acolhedora da própria natureza, com a qual vamos nos
‘acostumando’ ao longo das experiências. Um trabalho na caverna pode ser conduzido de
maneira individual ou coletiva. Na Alvorada, Sylvie leva o grupo de mulheres uma vez por
ano na caverna, para fazer um ritual coletivo de interiorização chamado a caverna das
katchinas (as sonhadoras). Quando alguém se candidata, ela orienta individualmente a
pessoa a entrar sozinha por períodos que variam de uma manhã a sete dias. As mulheres que
passaram por estas experiências individuais, falaram em conversa informal sobre a grande
oportunidade de crescimento, na medida em que conseguiram transformar o medo intenso
158
do desconhecido pelo sentimento de acolhimento do chamado útero da mãe-terra. Mesmo
em grupo é uma experiência muito forte, especialmente pelo fato de haver sempre algo novo
e impactante como os caminhos acidentados, os momentos de total escuridão ou de
profundo silêncio.
Todos os trabalhos xamânicos da Alvorada podem ser considerados como sendo rituais
de passagem, mas este ritual da gruta é o único que leva este nome. Em relação a
determinados ritos de passagem, religiosos ou não, Van Gennep (1977) identificou três
níveis sucessivos: 1. Separação e ruptura em relação ao mundo profano - (Purificação -
limpeza) -
fase pré-liminar; 2. Marginalização em um espaço sagrado e formação para uma
nova maneira de ser (Transição - renascimento) - fase liminar; 3. Reintegração ou
ressurreição simbólica e agregação solene na comunidade, com um estatuto superior (volta à
vida normal em forma de recompensa) - fase pós-liminar.
A recompensa final aqui significa reconhecer a força pessoal e o equilíbrio psíquico
que vem justamente após o enfrentamento dos desafios encontrados no nível dois do ritual
de passagem. Poucas mulheres do grupo enfrentaram este desafio de entrar sozinha na gruta
e permanecer durante o período estabelecido. Em conversa informal com uma das
integrantes mais antigas, soube que para ela não foi esta a passagem mais difícil e sim a da
busca de visão, a qual, como pudemos observar, oferece mais obstáculos no percurso
solitário.
Penso que a dificuldade varia de pessoa para pessoa. quem prefira se arriscar às
intempéries da natureza noturna e selvagem, a sentir a sensação de claustrofobia numa gruta
acolhedora, mas com riscos de alagamento. Posso dizer que este foi o meu caso em relação à
gruta. Como participante de um workshop de dança (fevereiro de 2005), fui com um grupo
de 16 pessoas atravessar a extensa gruta do Lapão, em Lençóis. Foi um dos momentos mais
difíceis da minha jornada, quando o medo e o poder do ego foram meus maiores desafios. É
certo que nem toda gruta oferece incômodos e riscos ao visitante. Pelo contrário, a Gruta da
Lapa Doce, que conheci anteriormente, é um lugar em que podemos atingir um estado de
graça, tamanha a beleza das formações pré-históricas. No entanto, faz muita diferença uma
visita turística de uma proposta ritualística de entrada numa gruta.
159
Em Bachelard temos que a gruta é uma das imagens fundamentais humanas, por conter
os símbolos do repouso e a ambivalência da vida e da morte. Diferentemente da amplitude
espacial, indutora de movimento do alto da montanha, a gruta é uma espécie de templo
natural para as práticas iniciáticas e é também uma referência ao abrigo e à casa rústica e
natural, ainda que apresente uma maneira mais passiva de habitar. É na sombra das
“entranhas” da terra que se escuta o verdadeiro silêncio interior, onde se trabalha a
imaginação das vozes profundas, das vozes cavernosas da terra, pois como observou D. H.
Lawrence (apud Bachelard 2003, p. 149), “o ouvido pode ouvir mais profundamente do que
os olhos podem ver”, assim como é possível reconhecer a luz a partir da escuridão. Fazendo
referência ao mito da caverna de Platão, que evoca os valores inconscientes mais ocultos,
Bachelard diz que: “A iniciação trabalha precisamente nessa zona de passagem dos sonhos e
das idéias: a gruta é o palco onde a luz do dia trabalha as trevas subterrâneas” (Bachelard,
2003, p. 156).
Figura 23: Foto nº. 16 - Zelice (de verde) preparando o grupo para entrar na gruta
Assim, tive nova oportunidade ritualística durante o curso de Danças da Paz (setembro
de 2005), na gruta situada perto da Alvorada. Assim como o ritual da sauna representa o
contato com o útero da terra, a entrada na gruta representa a descida mística à profundidade,
permitindo o contato com as qualidades do feminino. Antes de entrarmos na gruta, Zelice
introduziu uma canção do ciclo da Grande Mãe (Horman Alatu), que significa morte e
renascimento. Seria mais uma oportunidade de transformação para o pequeno grupo de
dançarinas da paz. Esta foi uma experiência muito suave, devido à liderança cuidadosa de
quem está conduzindo um grupo ao encontro mais explícito com a direção Oeste do ser, com
160
o literal enraizamento na profundeza da terra e o acolhimento feminino do arquétipo da
Grande Mãe.
2.3.2.h. A Roda de Cura
A ligação do xamanismo com a cura é uma questão sempre recorrente. A definição de
Cura em Gramacho (2002, p. 21) está baseada na tradição indígena:
Os povos indígenas interpretam a cura como uma conseqüência da relação
harmônica do homem com a natureza. A cura, nesta ótica, não significa a
supressão imediata dos sintomas ou a resolução, instantânea, dos desequilíbrios
que provocaram a desconexão do homem com o Todo sagrado e universal.
No xamanismo indígena sul-americano, a medicina das plantas é apenas uma dentre as
atividades rituais curativas xamânicas, a qual Sylvie confirmou ter utilizado em seus
trabalhos, mas deixou de fazê-lo pelo fato de acreditar haver uma dessacralização crescente
destas substâncias. Sylvie percebia que algumas delas poderiam ser trazidas para a
sociedade mais ampla e utilizadas para o restabelecimento da energia vital e,
conseqüentemente, do equilíbrio psicológico e corporal (vide entrevista Sylvie, apêndice
4.1.). No entanto, a variedade de técnicas curativas que usa em seu trabalho prescinde do
uso de qualquer elemento externo para induzir o transe psicológico. Embora todos os
trabalhos xamânicos sejam considerados de cura, existe um específico para tal, que é a Roda
de Cura norte-americana, durante a qual existe a comunicação explícita entre o xamã e o
paciente.
Uma das características em comum entre o xamanismo indígena sul-americano e o
norte-americano, é a de que uma das causas de doenças decorre da “perda da alma”, e cabe
ao xamã encontrar e reintegrar a alma fugitiva do doente. Segundo Eliade (2002, p. 332),
[N]este caso, a necessidade de intervenção do xamã é incontestável, pois só ele é
capaz de ver e capturar almas. Nas sociedades em que, além de xamãs, contam
também com medicine-men e curandeiros, estes podem tratar determinadas
doenças, mas a perda de alma é sempre da alçada do xamã.
Minha primeira Roda de Cura aconteceu com a xamã Marise Dantas (Yatamalo), no
ano de 2003, na cidade de João Pessoa (PB), e se configurou como um resgate de alma,
conforme a mesma esclareceu, após o trabalho realizado comigo. Uma de suas frases foi:
“seja bem vinda de volta à sua casa”. A cerimônia foi realizada em sua própria casa
(atualmente sede da Taba da Águia), com poucas pessoas, as quais davam cobertura
161
energética, permanecendo em volta de cada pessoa, uma por vez, a ser tratada pela xamã. Na
minha vez, assim que deitei no chão, Marise foi retirando algo de mim, na altura do plexo
solar, no qual ainda senti um ardor pelos dois meses seguintes. Longe de compreender pela
lógica racional este episódio, o meu sentimento foi o de que a partir dali iria passar por um
longo e gradativo processo de recuperação, ainda que com muitas pequenas mortes e
renascimentos, que se seguiu com o apoio dos trabalhos realizados por Sylvie, no Castelar
da Alvorada.
A Roda de Cura da Alvorada acontece de uma maneira mais complexa, baseada na
cosmologia das rodas provenientes de vários povos (celtas, índios norte-americanos, maias,
tibetanos). O espaço da Roda de Cura dos nativos Norte-Americanos, também chamada de
Roda Sagrada, é organizado com 36 pedras grandes, cada pedra com seu propósito. Um
círculo externo com 16 pedras, representando as 12 luas e as quatro direções; um círculo
interno de 7 pedras, representando a Terra, o Sol, a Lua, os 4 elementos; quatro raios de 3
pedras, representando qualidades espirituais (limpeza, renovação, pureza, claridade,
sabedoria, iluminação, crescimento, confiança, amor, experiência, introspecção e força) e
uma pedra no centro representando o criador.
Uma das maneiras de utilização da Roda de Cura é cada pessoa escolher, com a ajuda
do xamã, uma pedra para se sentar durante o trabalho, com a finalidade de trabalhar aquele
atributo específico. Atualmente Sylvie usa 24 pedras, por considerar que esta quantidade
está em consonância com os tempos atuais. Ela explica que:
Cada ponto da grande roda de fora representa as direções e as subdireções. O
círculo menor interno representa o livro do carma, com a possibilidade de
transformá-lo em dharma (liberação). As 8 pedras internas restantes
representam o reconhecimento da magia dentro da criança interior. Para fazer
funcionar essa roda é necessário reconhecer a sua própria magia, reconhecer e
dialogar com todas as suas sombras, libertá-las, purificá-las e levá-las para a luz
(Sylvie por telefone).
Para Sylvie, cada Roda de Cura acontece de uma maneira diferente, tem sua própria
alquimia de ativação, mas é sempre uma oportunidade de libertar, ou purificar ou curar
alguma coisa que impede o nosso caminho de crescimento e expandir a nossa consciência.
Diz que não temos nosso potencial cem por cento disponível para ser o que se é (sua sombra
162
e sua luz), devido a ‘carmas’
90
de vidas passadas, ou situações passadas de nossa vida que
ficaram mal resolvidas deixando traumas e feridas. O que importa para Sylvie é aproveitar
as oportunidades de resgatar nosso potencial através de processos de cura, em especial neste
tipo de roda atualizada, no qual o grupo pode compartilhar do processo individual de busca
da integralidade do ser. Sylvie justifica que tudo o que fizemos e todo e qualquer
conhecimento que conseguimos alcançar ou realizar é para nós e para todas as nossas
relações, porque à medida que curamos alguma coisa dentro de nós, alcançamos o
inconsciente coletivo e acabamos por curar outras pessoas em outras áreas.
Esta Roda de Cura da qual participei, em julho de 2005, se configurou como um
atendimento individual com apenas quatro pessoas do grupo, dentro do espaço circular de
pedras, sendo que o resto do grupo ficava fora do espaço, ao redor, sem, no entanto, se
localizar em nenhuma pedra específica. Numa clareira na mata, uma pessoa de cada vez
ficava num quadrante dentro do círculo, junto com Sylvie. O grupo dava apoio
acompanhando com o canto específico da cura. Dentro do círculo, na areia, estão
demarcados os espaços considerados sagrados, cada um com uma função diferente, isolando
a pessoa a ser “trabalhada” dos demais, especialmente no momento final de liberação das
secreções corporais, liberação das águas, das emoções, como acontece também durante o
ritual da sauna de suor.
Muitos problemas trazidos pelas mulheres referem-se aos traumas sofridos tanto física
quanto emocionalmente por abortos e doenças provenientes destes. A respeito disso
Theomária justifica a importância dos rituais de cura para as mulheres do grupo, que chegou
a ter mais de sessenta mulheres.
A gente ficava o tempo todo em contato com a natureza, com as manifestações
naturais de nosso corpo, menstruação, nascimento, menopausa. O que cada uma
daquelas mulheres estava vivendo, a gente trazia o conhecimento do que era
estar vivendo aquilo, e trazia cerimônia pra viver todos aqueles momentos. Isso
fez com que a gente curasse essa parte nossa que tinha ficado distorcida, que
trazia as doenças, porque toda vez que a gente foge, como sempre, do nosso
conceito do natural, do que é intrínseco da nossa expressão, a gente adoece. Por
isso, a gente tinha tantas doenças principalmente ao nível dos órgãos genitais,
tudo, por isso que a gente tava adquirindo as doenças que os homens
costumavam ter, a morrer, a gente tava passando a morrer, inclusive, porque a
gente tava se distanciando da nossa verdadeira natureza do feminino (...) A
gente aprendeu que resgatando essa natureza a gente curava a nossa alma, a
nossa mente e o nosso físico. A gente podia ser forte e ser fêmea.
90
Karma ou carma é um termo da teoria filosófica do Budismo que tem relação com o destino pessoal. Já o
Dharma se refere à ordem cósmica, material e moral e à perfeita conduta.
163
Pertencer a um grupo de mulheres faz sentido pelo fato de haver a possibilidade de
partilhar experiências comuns, mas também de reconhecer o poder curativo feminino, daí a
importância de uma mulher conduzindo os trabalhos de cura relativa aos problemas do
gênero feminino. A Roda de Cura é o ritual no qual está presente explicitamente o papel da
xamã como “curandeira”, no qual Sylvie executa sua função como mulher-medicina, que a
mesma define em seguida:
A mulher-medicina é aquela que,... é estar a serviço mesmo do outro e dedicar a
sua vida aos processos de cura. E a guiar as pessoas a encontrar o seu caminho.
O xamanismo é o estado da essência de cada ser, o que a gente chama de
Orenda, que é a essência primordial de cada ser humano, é estar no todo, fora de
qualquer dualidade. Essa é a meta de chegar realmente na interconexão com o
todo (...) A função de uma mulher-medicina e de um homem-medicina é aquela
que recebeu dos conhecimentos transmitidos, porque são sempre conhecimentos
transmitidos normalmente oralmente, tudo que eu recebi eu recebi oralmente,
dessa tradição que eu pertenço, dessa linhagem, e depois você vai se
colocando a disposição e com todas as práticas que você explorou e conhece,
e as técnicas, você se coloca à disposição e vai trazendo isso no dia a dia, para as
pessoas que estão necessitadas para ser guiadas, para trabalho de cura, pra o que
for que seja, para ajudar as pessoas na transformação, pra poder voltar cada vez
mais na sua essência, para que cada pessoa descubra o que que ela é, como é que
ela é, qual a sua tarefa aqui na Terra, qual é o melhor potencial. Todo mundo
tem um potencial dentro de si, mas por causa de todos aqueles padrões, crenças
que nos rodeiam, que nos aprisionam, que nos deixam com covardia ou com
medo, muitas pessoas acabam não realizando a sua missão de vida. Então o
papel de uma mulher-medicina, de um homem-medicina é ajudar as pessoas a
enxergarem cada vez mais através dos encontros, dos trabalhos, dirigidos para
esses pontos: quem eles são, pra que eles vieram para cá, qual o maior potencial
energético que eles têm dentro deles, pra eles cada vez mais aguçarem e
desenvolverem essas ferramentas, pra se colocarem a serviço do todo.
Nos outros rituais, como não são rituais de cura propriamente ditos, embora sejam
transformadores, Sylvie não assume explicitamente o papel de auxílio direto ao “doente”,
apenas sugere caminhos para que cada um siga seu caminho de mudança, no qual cada um é
responsável pela sua cura, juntamente com as forças ocultas da natureza que estão sempre
atuando.
O xamanismo tem isso, ele trabalha muito com o mundo invisível, o mundo que
não é tangível. Quando eu faço um trabalho, uma cerimônia, eu faço o trabalho
no plano do tonal, que é o mundo visível, e o plano do nagual que é o mundo
invisível, então a gente trabalha tanto no corpo físico, emocional e mental, mas
também trabalha no mundo energético, espiritual. O xamã sabe caminhar entre
os mundos, isso é o verdadeiro trabalho dele, saber caminhar entre os mundos e
sair do mundo real, entre aspas, o mundo visível, ir pro mundo invisível, e trazer
o conhecimento, a sabedoria, para poder utilizar isso no dia a dia. (Sylvie)
164
Apesar de preferir ser reconhecida como mulher-medicina, Sylvie sabe bem qual a
função de uma xamã e utiliza dessas funções para realizar a maior parte de seus trabalhos.
Assim como o sabe algumas mulheres fundadoras do Círculo de Mulheres, as quais
colaboram com este trabalho incondicionalmente.
Jamie Sams (1993, p. 328), uma das autoras mais lidas entre os praticantes do
xamanismo focalizado por Sylvie, diz que o xamã “é uma pessoa que está sempre pronta a
confrontar os seus medos mais profundos e todos os aspectos sombrios de sua vida física”.
Isto também vale para os iniciados que, apesar de não se tornarem xamãs, experimentam
trilhar por caminhos semelhantes a estes.
2.3.2.i. Cerimônia da Árvore
91
(mitologia pessoal)
No dia seguinte à vivência da Roda de Cura, onde cada uma de nós, de certa forma,
teve seu processo individual, a partir da intenção trazida, fomos conduzidas por Theomária a
fazer uma cerimônia pessoal. As instruções eram as seguintes: deveríamos caminhar pela
mata à procura de uma árvore, levando algum presente para a árvore escolhida, que pode ser
tabaco, sálvia, saliva ou ainda, fio de cabelo. Seria preciso conversar com a árvore para
sentir se ela está disponível para nós neste momento. Após pedir permissão à árvore,
escolhemos em que direção sentar. Existem duas maneiras de se fazer esta cerimônia: uma
em que escolhemos uma direção e permanecemos nela fazendo nossas perguntas e obtendo
as nossas respostas. A outra seria recorrendo às quatro direções fazendo as perguntas e
recebendo as respostas de acordo com a energia de cada direção.
A orientação sobre as direções que nos foi dada é a seguinte: se sabemos onde o sol
nasce, estendemos o braço direito para localizar o Leste, então localizamos os outros pontos
frente está o norte, atrás o sul, à esquerda, o oeste). Após sentar de frente para uma
direção, saudamos e chamamos a qualidade desta direção e fazemos a pergunta específica.
Para a direção Sul a pergunta é: Qual a minha mitologia pessoal? Ou seja, qual a forma ou
imagem interna que me guia, que me move? A resposta viria ao observar o tronco desta
árvore.
91
Vale salientar que o simbolismo da árvore neste ritual difere daquele presente no ritual da Dança da Águia,
descrito mais adiante, e que influenciou toda a encenação de Gestos Cantados.
165
Para a direção Norte a pergunta é: Quais as crenças que me impedem de chegar à
minha sabedoria? Observar a copa da árvore (galhos e folhas) para obter a resposta. Para a
direção Oeste as perguntas são: O que eu faço para negar a mim mesma? Qual o sistema de
controle que me impede de chegar à minha morte? (a morte é necessária para deixar morrer
aquilo que não ajuda mais no nosso crescimento. se alcança o novo depois que o antigo é
fechado, através de um mergulho interior (mulher lunar). Um exemplo dessa negação da
morte é ficar pensando que a sauna está muito quente e pensar que não vai agüentar e sair
antes de terminar o trabalho). Observar as raízes da árvore. As perguntas do Leste são: qual
o obstáculo que existe entre mim e o meu fogo sagrado? O que devo fazer para me tornar
uma mulher solar? Observar a árvore toda, a parte energética.
No final da cerimônia, devemos agradecer a todas as direções, agradecer à árvore, e
deixar o lugar da mesma maneira como encontrou, doando algo como reconhecimento à
doação da árvore. Na minha cerimônia, após escolher uma árvore bifurcada, e sentar numa
parte de seu tronco e saudar o portal do Sul, relembrei minha intenção inicial para a Roda de
Cura: curar a criança ferida, recuperar a alegria e o senso de humor, reprimidos pela família
e educação escolar. A resposta recebida após a primeira pergunta feita à direção Sul sobre a
mitologia pessoal foi a de que ainda estou reprimindo a mulher selvagem que tenho em
mim, e que aos poucos tenho me permitido saborear o contato com a natureza,
aprendendo como curar a mim mesma. A direção Norte me respondeu que o sentimento de
medo é o que ainda me impede de expressar todo o meu potencial criativo. O Oeste me
respondeu que o controle da mente racional é o que me impede de entregar-me ao
desconhecido, aos estados alterados de consciência, aprofundar o mergulho psíquico. O
Leste me sugeriu relaxar mais, porque as coisas estão fluindo. No final, eu desejei que
minha cura se estendesse para a minha família, de maneira que eu pudesse enviar para todos
a minha própria energia solar.
2.3.2.j. Celebrações do Calendário da Paz
O calendário do Novo Tempo, também conhecido como o “Calendário da Paz”, é um
calendário galáctico para toda a humanidade. Trata-se do instrumento para a sincronização
galáctica do ser humano na sua freqüência natural. É um calendário regular, que respeita os
ciclos naturais. É formado por 13 períodos anuais, os quais, ao invés de meses, o
chamados de luas, e todos eles têm 28 dias cada um, que é o ciclo biológico natural. O
grande exemplo do ciclo biológico natural é o ciclo menstrual da mulher, que dura 28 dias.
166
Este calendário respeita isso. Ele é, sobretudo, um instrumento de autoconhecimento, mas
também um caminho de meditação para as pessoas encontrarem suas missões e colocarem
em prática seus propósitos. O ensinamento básico do calendário é o de que se o seguirmos
regularmente, pouco a pouco iremos entrando em um processo de sincronicidade. A
conseqüência será que a consulta oracular ao calendário permite que a pessoa esteja, com
muito mais freqüência, no lugar e na hora apropriados, encontrando quem deveria encontrar
e agindo da maneira mais correta. E nem precisará de relógio para isso, pois o relógio
biológico que existe na pessoa começará a funcionar.
Pelo calendário Maia, o ano se inicia no dia 26 de julho do calendário gregoriano, que
é o dia em que a estrela Sirius atinge a sua máxima ascensão em relação ao Sol. Neste dia os
ciclos lunar, solar e galáctico se sincronizam. Na passagem de ano, o dia 25 de julho é
considerado como “o dia fora do tempo” e é quando se comemora com rituais de passagem,
especialmente com atividades coletivas artísticas. Na Alvorada, durante o reveillon Maia de
2004, este dia foi celebrado numa cerimônia em cima do morro da Pirâmide, no local onde
há um monumento tibetano, ao som de preces e do cântico maia “Ii Chell”. Mesmo antes de
ter participado do Workshop sobre o Calendário da Paz, por ocasião do Reveillon Maia na
Alvorada, em todos os outros encontros e rituais sempre quem esteja compartilhando
algum ensinamento sobre o calendário deixado pelos Maias, povos indígenas que habitavam
a América Central. Na experiência de Hugo no grupo de homens, o Calendário Maia foi
marcante:
Coincidiu que nessa época que eu vivia lá, estava sendo meio o boom dos
estudos dos Maias, que a gente fazia por lá. O que mais me tocou em termos de
informação veio dos Maias. A partir disto a gente vivia essas coisas, discutia
essas coisas do Calendário, mas era assim, nas conversas, na hora do almoço,
fazendo comida, trocando figurinhas, levando o que cada um estava pesquisando
na vida.
Nos encontros de mulheres da Alvorada, Hilda é a principal transmissora ainda que
informalmente destes ensinamentos nos horários livres do grupo. O depoimento dela ilustra
a possibilidade de autoconhecimento que o Calendário Maia lhe trouxe, a partir da
concepção de natureza no xamanismo:
Eu acho que a gente vem pra cá com missão. E nem estou falando de
espiritismo, mas de xamanismo. Os Maias também eram índios. E tinham
também conhecimento do xamanismo. Através desse estudo que eu faço do
calendário Maia eu vejo que tudo, tudo é assim: você é levada para um canto e
aprende algumas coisas, depois é levada para outros e aprende outras, até você
167
chegar. Então na vida a gente é conduzido, se a gente se entregar e se deixar
conduzir, a gente vai pro caminho que a gente tem que ir, a gente vai cumprir
nossa missão aqui nessa vida.
É interessante observar nas palavras de Hilda, como o ritual não está ancorado apenas
na questão da origem e de um passado remoto mais ligado à natureza, mas principalmente
na possibilidade de passagens, transições e transformações. Nesse sentido, os ensinamentos
do Calendário Maia permitem a descoberta do que é preciso mudar.
Figura 24: Foto nº. 17 - Selo Águia Solar (gravura em pedra de
Gilmar Lopes)
Afora os complicados cálculos matemáticos, este calendário exerce um fascínio e uma
compreensão para cada pessoa que entra em contato ele. Cada pessoa tem uma espécie de
assinatura galáctica, e de acordo com a data de seu nascimento, um selo principal, mais o
guia, o análogo e o antípoda. O meu selo principal é águia solar
92
,
(foto acima). O
Antípoda é o selo que destaca o desafio, fortalecendo a reconstrução da memória. O
Análogo é o poder de mentes gêmeas, do par planetário solar galáctico. São seres que têm
afinidade entre si e que se ajudam reciprocamente. O Oculto representa fatores inesperados e
escondidos. O Poder de Guia representa mesmo o guia que ilumina os caminhos. O meu selo
antípoda é a serpente, que representa força vital. Isso foi uma dos aprendizados mais
significativos. O desafio de encontrar a força vital quem me traz é o meu guia, o macaco,
através da brincadeira, do jogo e do ritual lúdico (vide anexo 6).
Além do conhecimento pessoal, os ensinamentos do calendário são proféticos. Uma
das profecias é a de que a mudança de freqüência do planeta no ano de 2013, possibilitará à
humanidade dar um salto quântico para a quarta dimensão (ARGÜELLES, 2004). Para este
92
O selo da águia corresponde ao desenvolvimento de olhos aguçados e uma visão clara. Durante a pesquisa
de campo, tive oportunidade de participar de um curso sobre o Calendário Maia, que faz parte dos
ensinamentos da tradição xamânica da América Central, muito difundido durante os encontros no Castelar da
Alvorada, como é a chamada a casa de Sylvie Handjiam (vide mapa no apêndice 5).
168
autor, chegou o momento histórico de assentar as bases de uma nova Nação formada pelos
filhos de todas as raças-mães vivendo em harmonia, que os sábios indígenas de ontem
chamaram de "A Nação do Arco-Íris". Os rituais relativos ao calendário Maia despertaram
em mim a compreensão da frase “Tempo é Arte”, de maneira que o verdadeiro processo de
autoconhecimento é o processo artístico-ritualístico.
2.3.2.k. Meditação pela Paz
Apesar de ser adepta do Calendário Maia e promover as cerimônias de comemoração
da passagem de ano Maia, Sylvie também celebra a passagem de ano gregoriano, quando
promove todos os anos uma meditação pela paz na vila no Vale do Capão, cerimônia aberta
à comunidade. Na passagem de 2006 para o ano de 2007, o músico francês, Igor Galan,
abriu ritual, criando o clima sonoro e energético com seus instrumentos tibetanos. Logo em
seguida Zelice Peixoto conduziu uma série de Danças da Paz, gerando comunhão e alegria
entre os participantes. Uma das canções de paz tinha a seguinte letra: “A paz do mundo
começa no meu coração, no seu coração, a paz”.
Figura 25: Foto nº. 18 – Meditação pela Paz
Figura 26: Foto nº. 19 - Danças da Paz após a
meditação
169
Figura 27: Foto nº. 20 – Sylvie e Zelice dançando pela
paz
2.3.2.l. Ritual da Dança da Águia
Pode-se dizer que o ritual anual da Dança da Águia resume toda a filosofia do trabalho
de Sylvie Shining Woman e que os outros tipos de rituais que ela realiza são
desdobramentos deste, não em termos de estrutura, mas de ensinamentos a partir da
linhagem xamânica nativa americana do Conselho dos Anciãos dos Cabelos Trançados.
Participando desde 2003 dos rituais no Castelar da Alvorada, apenas em 2007 vivenciei a
Dança da Águia, quando ficou esclarecido o que ainda estava pendente, o que ainda faltava
ser compreendido externa e internamente, ou seja, sobre os rituais propriamente ditos e
sobre meu papel de observadora participante nestes.
Para que o ritual da Dança da Águia seja eficiente deve ser colocado um foco, uma
intenção a ser trabalhada durante o ritual e durante as treze luas seguintes. No meu caso, fui
com a intenção de concluir a parte etnográfica dessa tese, sobre os rituais xamânicos da
Alvorada, embora tivesse a quantidade necessária de materiais coletados para análise,
discussão e aplicação nica. Esta havia acontecido parcialmente em sua primeira fase na
disciplina Técnica de Corpo para Cena II. No entanto, eu tinha ainda a expectativa de
renovar as forças para concluir a tese, juntamente com um espetáculo em grupo, com
coragem, discernimento, humildade, e, sobretudo com entusiasmo e beleza. Este foi o meu
intento, trabalhado durante os nove dias de cerimônia a serem descritos mais adiante.
É importante ressaltar que o ritual da Dança da Águia é considerado transcultural, na
medida em que, como disse Sylvie, é uma cerimônia que foi modificada para os não-
pertencentes às tribos indígenas. Tem origem na Dança do Sol, ritual de sacrifício que os
homens nativos Sioux Norte-Americanos fazem uma vez por ano em cada tribo, com a
170
finalidade de doar seu sangue para a terra. A princípio para demonstrar lealdade a seu povo,
atualmente é dançada para trazer o equilíbrio de volta ao planeta. Conforme Sams (1993, p.
91), “a Dança do Sol é assim chamada porque nela o Avô Sol é reconhecido e honrado como
fonte de calor e amor da Mãe Terra”.
Este ritual, em tempos mais remotos, acontecia numa clareira circular, com uma árvore
replantada no centro, representando a árvore da vida, com os homens atados à árvore, por
tiras de couro que trespassavam seus músculos peitorais, criando um efeito visual de
carrossel. Durante os últimos dias da dança, que soma quatro dias, mais o período anterior
de jejuns e preces, os jovens guerreiros partilhavam o sangue de seus corpos com a Mãe
Terra, assim como as mulheres doam seu sangue durante o ciclo menstrual, chamado de
“Tempo da Lua”.
Essa cerimônia foi proibida pelo governo dos Estados Unidos em 1941, por ser
considerada uma tortura auto-infligida. Ver em Hammerschlag (1994, p. 141), que
A Dança do Sol, pela sua oferta de carne viva, foi rotulada de ritual bárbaro no
início do século XX: “Os Sioux entraram com um recurso na corte, reiterando
que cumprir esta obrigação sagrada era necessário para assegurar a continuidade
de suas vidas e as de toda a humanidade. O governo admitiu a prática da Dança
do Sol, mas sem as perfurações. Com a aprovação da emenda em prol da
liberdade religiosa dos nativos americanos de 1978, as perfurações passaram a
ser novamente admitidas.
Nesse sentido, Druot comenta que:
Com o expansionismo branco, a partir do século XVI, essas culturas tradicionais
foram proibidas e seus territórios foram tomados. Nos Estados Unidos, o
xamanismo desapareceu quase totalmente. Nos anos 60, no entanto, os índios
americanos começaram a resgatar antigos ensinamentos. em 1978 o
presidente Jimmy Carter assinou o American Indian Religious Freedom Act (lei
da liberdade religiosa indígena).
Atualmente, muitos americanos com
problemas psicológicos vão se tratar com os índios
(Druot apud
LINHARES, 1999, PÁGINA ???).
Grande parte destes antigos ensinamentos, entretanto, foi resgatada com o apoio de
muitos “não-índios”, uma vez que, assim como aconteceu com nossos índios sul-americanos
em geral, grande parte dos povos nativos norte-americanos foi mesmo exterminada. O livro
171
de Dee Brow Enterrem meu coração na curva do rio, publicado originalmente em 1970
93
,
conta a partir do depoimento dos próprios índios - Dakota, Ute, Sioux, Cheyenne -, histórias
passadas de geração a geração, revelando o grande massacre que aconteceu com a conquista
do velho oeste americano e a história do extermínio dos chamados peles-vermelhas.
No ritual da Dança da Águia da Alvorada, os fios que perfuram os peitos na Dança do
Sol são substituídos por fitas coloridas que se prendem na árvore e se espalham por cima de
nossas cabeças (mulheres também participam), no círculo, sendo amarradas na parte de trás
do Arbor (ver fotos 22 e 23). As fitas, assim como os fios tradicionais, representam as fibras
que nos ligam à memória da Terra, a qual, segundo nossa Dance Chief Sylvie, está ligada às
luzes, cujas sementes precisam ser plantadas em cada momento de obscuridade.
Cabe observar que a árvore central, também chamada “árvore da vida” ou “árvore do
conhecimento”, é um símbolo fundamental da Tradição Ocultista Ocidental e encontrado em
rituais de diversas culturas, utilizado como forma de meditação e de interpretação da vida, o
que significa que têm sentido profundo para os homens de todas as raças e credos. Eles
encarnam experiências humanas fundamentais como "masculinidade", "feminilidade",
"maternidade", etc.
94
. Não cabe neste estudo comparar este símbolo nas diversas tradições,
mas compreender as fontes que embasam o trabalho de Sylvie.
A tradição do Conselho dos Anciãos dos Cabelos Trançados sempre foi transmitida
diretamente na relação entre mestres e aprendizes, homens e mulheres de conhecimento,
vindos de todas as partes do mundo, não apenas entre índios americanos. Hoje, pessoas que
difundem esses conhecimentos são todos não-índios, de todas as nacionalidades, espalhadas
por todos os continentes. Nesta Dança da Águia de 2007 havia cerca de 65 pessoas,
provenientes de vários países, sendo a maior parte da França. Os estrangeiros eram ainda
espanhóis, suíços e alemães. Outra grande parte era de brasileiros paulistas, alguns poucos
naturais da Bahia ou residentes em Salvador, outros, Rio Grande do Sul, e alguns
representantes de Brasília. Uma família guarani de Santa Catarina participa todos os anos
deste ritual (o índio Tukumbó, quando solicitado por Sylvie, ensinou alguns torés, danças-
músicas sagradas de seu povo aos dançarinos da Dança da Águia de 2007).
93
Enterrem meu coração no curva do rio, Editora L&PM, primeira edição na coleção L&PM Pocket,
outubro/2003. Escrito por Dee Brown, traduzido por Geraldo Galvão Ferraz, 396 páginas.
94
Texto encontrado no site: http://www.misteriosantigos.com/arvorevida.htm.
172
A Dança da Águia no Catelar da Alvorada vem sendo realizada há sete anos e acontece
sempre durante o carnaval. São dez dias de cerimônia, com cinco saunas sagradas, uma para
cada direção, quatro antes da dança e uma depois da dança, que dura três dias, período em
que se tem a opção de jejuar totalmente ou comer frutas frescas e secas. Nas palavras de
Margareth Souza, organizadora deste evento, as saunas que antecedem a dança são
altamente purificadoras:
Na primeira se purifica o corpo emocional, que é o Sul, a segunda sauna purifica
o corpo mental, que é o Norte; na terceira sauna, vamos para o Oeste purificar o
corpo físico e depois vamos pro Leste e purificamos o corpo espiritual. Com
todos os corpos limpos, entramos na dança. Ficamos três dias e três noites no
arbor, só saindo no quarto dia, e fazemos a sauna do Centro para fechar a
energia.
A cada ano o ritual da Dança da Águia é realizado honrando uma direção diferente. Na
Dança da Águia de 2007, a dança do Oeste, Sylvie sugeriu que tentássemos perceber o
nosso silêncio interior. Nesta cerimônia não houve espaço para discursos longos, aos quais
Sylvie se refere como provenientes da mente. Desde o momento da partilha inicial, com a
abertura da energia da Dança da Águia com o ritual do talking stick, quando cada pessoa
colocou suas intenções, estas deveriam ser faladas em poucas palavras para que as mesmas
pudessem começar a se manifestar,. Apenas os coordenadores da cerimônia falam
longamente durante os quatro dias de preparação para a dança propriamente dita, acerca de
instruções e informações sobre as práticas cotidianas e cerimoniais, bem como sobre o
simbolismo e significado de cada etapa do processo, as metáforas usadas, os termos
sagrados, os princípios rituais.
Após a partilha com o talking stick, a purificação com o defumador com ervas, em
especial a sálvia, aconteceu com a colaboração de vários integrantes do grupo, que iam de
um em um retirar as negatividades do corpo com a fumaça da sálvia, espalhada com a ajuda
de penas grandes, ao som de uma canção Cherokee. A partir daí estavam abertas todas as
sessões de ensinamentos sobre a tradição da Dança da Águia.
Agradecendo às entidades Wakantanka (Grande Espírito) e Wambleegleeshka (Grande
Águia) e a todos os sonhadores e sonhadoras ali presentes, o pedido colocado pela dance
chief Sylvie foi o de que a dança nos mostrasse quem verdadeiramente somos. A águia,
enfatiza Sylvie, é um animal que não é regido por nenhuma lei social, apenas pelas leis
sagradas universais, presentes em todo caminho de libertação. O verbo sonhar é
constantemente usado para estimular cada pessoa a ir ao encontro do chamado “sonho
173
sagrado”, celebrando nossos princípios e valores. Ao celebrar a dança da águia, celebramos
as verdades e poderes que temos em nós mesmos. Como disse Bachelard (2002, p. 76), “os
verdadeiros interesses poderosos são os interesses quiméricos. São os interesses que
sonhamos, e não os que calculamos. São os interesses fabulosos”.
No cristianismo a Águia é a mensageira celestial, simbolizando a subida das orações a
Deus e a descida da Graça Divina aos mortais. Na alquimia é o símbolo da volatização. Na
maçonaria, é o símbolo da audácia. Para os hindus, foi a Águia quem trouxe a bebida
sacramental, o Soma. No Egito, a Águia era um emblema real que ficava no peito dos
faraós, assegurando-lhes poder. Entre os gregos e os persas era consagrada ao Sol. Para os
gregos era considerada como o emblema sagrado de Zeus. É considerada também como o
Leão Alado. Ambos estão associados ao Sol e ao Fogo.
Os quatro primeiros dias, considerados de preparação e purificação para a dança
propriamente dita, são dias em que também são dadas todas as informações possíveis para o
grupo. Nesta dança que participei, o grupo foi orientado a sentir, mais do que falar, de
maneira que cada um pudesse tecer seu lugar no Oeste e evocar a imagem da águia para
participar da dança nos quatro dias seguintes. No entanto, ainda que não seja para o Oeste,
em toda Dança da Águia, especialmente durante os quatro dias da dança, embora estejamos
todos no mesmo local, uns vendo os outros, devemos permanecer o mais tempo possível no
nosso espaço delimitado e no nosso silêncio, evitando qualquer tipo de conversa dentro do
arbor, espaço onde se localiza a árvore da vida, em cuja entrada se localiza o fogo, que fica
aceso até o fim do ritual.
Após cada sauna sagrada para as direções Sul, Norte, Oeste e Leste, colocamos mais
um símbolo no nosso escudo, referente aos aspectos de cada direção que podem contribuir
para que nossas intenções se realizem. O escudo pessoal tem a finalidade de fisicalizar nossa
intenção a qual devemos lembrar não apenas durante a dança, mas também ao longo do ano
corrente.
174
Figura 28:
Foto nº. 21 – Escudo pessoal Márcia
Tanto o espaço das saunas quanto o do arbor, ficam localizados perto do rio que passa
dentro da propriedade da Alvorada, situado cerca de oitocentos metros da casa principal de
hospedagem e dos chalés e campings, cujo acesso se por uma pequena trilha por dentro
da mata. Durante os primeiros dias comemos na copa da casa principal ou ao ar livre.
Equipes são formadas para limpar e arrumar o refeitório, cuja comida natural é feita pela
cozinheira da casa com a ajuda de mais duas contratadas, diferente dos encontros de
mulheres onde o próprio grupo prepara a comida. Antes de cada refeição há sempre a
harmonização, com cânticos em roda, e em seguida alguém diz a frase: “sagrada comida!e
todos repetem e passam a se servir. Nesses dias ainda dormimos nos nossos alojamentos,
após a chegada da sauna. Alguns tomam banho morno antes de deitar, outros preferem
dormir apenas com o banho frio no rio tomado logo após a sauna. Já nos dias de dança,
dormimos dentro do arbor, com sacos de dormir. Neste ano, devido à chuva intensa,
dormimos no arbor apenas na primeira noite. Para as duas noites seguintes, foram trazidas as
barracas de camping, montadas por trás do arbor (limitado por uma cerca de palha) para
dormirmos por mais duas noites.
As caminhadas para os rituais das saunas e do arbor eram feitas sempre em filas,
quando o grupo todo cantava uma canção coerente com a direção a ser trabalhada naquele
dia. No dia em que nos mudamos para o arbor, levamos nossos pertences durante o dia para
que no final da tarde fôssemos apenas vestidos com as roupas de cerimônia e segurando
nossos escudos já concluídos, ao som da Canção dos Ancestrais.
Durante o ritual são sempre evocados os espíritos de nossos parentes (já mencionados)
e algumas entidades ancestrais nativas norte-americanas (Wakan Tanka, Wambleegleeshka,
175
Tungashilah e outras tantas - vide música Lakota Vision Quest Song), de maneira que
auxiliem nosso próprio espírito a nos incorporar em forma de dança. Do ponto de vista dos
participantes, o êxtase é sentido não através da incorporação de uma entidade exterior a
estes, como se estes fossem médiuns de si mesmo. O estado de transe e o sentimento de
êxtase a ele ligado não implicam necessariamente numa possessão ou incorporação. Os
participantes não parecem incorporar algo, como também não acontece entre meus alunos
do grupo cênico. Por outro lado, sua consciência de irmandade com tudo o que tem vida, os
fazem acreditar que seus próprios espíritos podem ser sentidos e compartilhados.
Este é o sentido do ritual do cachimbo (Chanupa), que aconteceu durante a Dança da
Águia. Apenas as pessoas que estavam em completo jejum puderam participar, as quais se
reuniram ao redor da árvore, partilhando os desejos de cura e paz para todas as nações,
tribos e clãs. Pude observar de longe que o cachimbo passava por cada um que iria falar.
Como eu não estava em jejum total, não me foi permitido participar, então me dispus a tocar
o tambor, que deve ser mantido numa batida suave, mesmo nos intervalos da dança.
Eu havia sido apresentada ao cachimbo sagrado, por ocasião da comemoração do
Ano Novo Maia, durante o Curso de Calendário Maia, quando Sylvie o compartilhou
conosco junto à fogueira. Na Dança da Águia, algumas pessoas são portadoras do cachimbo
e responsáveis por ele. Para ser um portador do cachimbo é preciso ter um compromisso
com as tradições e rituais, devido à responsabilidade que este ritual tem de simbolizar a paz.
A paz representa muito mais do que ausência de guerra, pois ela começa no interior de nosso
ser.
Esta revalorização dos ensinamentos tradicionais tem contribuído para a transformação
das pessoas, mas também para que um novo olhar seja construído pelas sociedades em
relação aos povos indígenas, cuja organização é claramente visível nos procedimentos e
protocolos rituais. Existem regras de uso do espaço bem definidas. No espaço das saunas,
onde estão dispostas quatro armações de saunas, representando as quatro direções, não é
permitido cruzar os altares que ficam entre as saunas e a fogueira, situada por sua vez no
meio da mandala de saunas, para que a energia do fogo possa circular para elas. Como foi
dito anteriormente, dentro da sauna também há regras para serem respeitadas, especialmente
no que se refere às entradas e saídas.
176
Figura 29: Foto nº. 22 - Preparação do Arbor
Figura 30: Foto nº. 23 – idem
A mesma regra vale para a área do arbor, por onde devemos entrar com uma
reverência à árvore, e seguir pela esquerda até chegar ao nosso lugar, determinado por
Sylvie, e nunca devemos ficar de costas para a árvore e nem passar pela frente de uma
pessoa que está em pé, sem pedir licença. Mas diferente da sauna, ao sairmos, devemos
continuar a volta até a abertura do arbor. As pessoas devem sair o mínimo possível do arbor,
para satisfazer as necessidades básicas, banho e troca de roupas ou comer frutas frescas e
secas (quem não está de jejum total, como no meu caso). Cada região do arbor tem um
número de pessoas tal, que deve haver um revezamento entre elas, para que nunca deixem
essa região vazia. No final da noite, apenas quando acontece o fechamento do ritual é que
todos poderão se recolher para dormir, com exceção dos guardiões do fogo, que também se
177
revezam durante todo o ritual. Fiquei por algumas horas nesta função e aprendi como fazer
para alimentar o fogo, mesmo durante a chuva.
Assim, bem alimentada na medida do possível, me senti em pleno vigor físico durante
a cerimônia, a ponto de subir com facilidade, por várias vezes, num tronco de árvore, entre
os vários colocados para delimitar o espaço do arbor, para ajustar as fitas pessoais e da
colega do lado. Alguns fatores pareciam contribuir para tamanha energia: a motivação de ter
um objetivo pessoal a seguir, o poder do coletivo, os alimentos que a natureza oferece
(contato com a terra mais profundo, com as águas frias dos rios, com a convivência com o ar
livre em tempo integral, especialmente por ter acampado, o contato com o fogo que aquecia
as pedras da sauna e também a entrada do arbor). Enfim, o contato direto com os ritmos e
melodias das músicas tradicionais cantadas foi o que de mais profundamente me alimentou,
ajudando a superar qualquer sensação de exaustão física. Participei de um dos grupos de
canto e experimentei toda a potência de minha voz. São quatro equipes de canto e percussão
(tambor e maracá), que se revezam fazendo a trilha sonora para os outros dançarinos.
Não uma seqüência a ser seguida no repertório musical, apenas uma regra: após
cada intervalo, a próxima equipe de canto deve obrigatoriamente iniciar cantando a canção
de abertura (Dança da Águia), que funciona como um leitmotiv, recorrente como uma
espécie de “aboio”, restabelecendo a energia ritual para os que permaneceram no arbor e
ainda convidando os que estão do lado fora para voltar. A cada ano mais canções são
incorporadas ao repertório. Algumas delas, cantadas apenas pela equipe de canto principal,
não registrei e nem aprendi a cantar na íntegra, outras consegui na internet com a ajuda de
uma participante, Luciana Caetano, como a canção Mahk Jchi Song Lyrics, gravada pela
banda norte-americana “Ulali”.
Vale salientar que o termo dança tem dois significados, não apenas neste ritual, mas
em todos os trabalhos da Alvorada: um que representa o ato de dançar propriamente dito e
outro que diz respeito a estar pleno diante da vida e se auto-realizando. A expressão “dançar
no seu coração”, muito usada por Sylvie, significa que algo que precisa ser resolvido,
precisa ser trazido para ser sentido no coração. Por conseguinte, a expressão “dançar a
própria dança e ouvir a própria música” refere-se ao fato de reconhecer e agir segundo
nossas próprias motivações pessoais. Portanto, a concepção de dança-ritual se amplia, não
se restringindo apenas ao ato de se movimentar numa coreografia com uma música sagrada,
178
mas principalmente à dança que acontece dentro de cada pessoa, durante seu processo de
transformação e crescimento interior, ou ainda à dança da transformação do conhecimento
em sabedoria.
A Dança da Águia é um ritual que une ambas as concepções de dança. Se, por um
lado, não é preciso estar “literalmente” dançando, para dançar na roda da vida, por outro
lado, apenas quando cada um realiza sua própria dança, se deslocando no seu espaço (cerca
de oito metros em linha reta, entre o escudo pessoal até a árvore da vida), é que a realização
ou a intenção acontece. Assim, quando cada um expressa a sua própria dança durante três
dias e três noites, é possível afirmar que a dança acontece no interior de cada pessoa, à
medida que avança no enfrentamento dos desafios propostos: jejum total ou parcial (um
terço do grupo se alimentava parcialmente), poucas horas de sono, chuva intensa, cantar por
horas seguidas, dançar ou manter sua posição em vigilância no arbor (cada gomo do arbor
representa uma subdireção, ocupadas por no mínimo cinco pessoas, as quais não podem
deixar que fique vazio) reativar o fogo, cuidar da harmonia do coletivo, manter os trajes de
cerimônia - duas mudas de roupas com franjas e fitas com as cores das direções - vermelha
(Sul), branca (Norte), preta (Oeste) e amarela (Leste).
Em resumo, as qualidades positivas e negativas de cada direção são as seguintes:
Sul - confiança, humor, manifestação da criança mágica interior, alegria, amor ou medo,
tristeza, submissão, criança ferida.
Norte - sabedoria, gratidão, mente fluida, equilíbrio entre o masculino e o feminino ou
confusão mental, fragmentação.
Oeste - compreensão das verdades pessoais, interiorização, desapego, entrega, profundidade,
renovação, transformação, energia feminina da criação ou medo da entrega e
negação da morte necessária ao renascimento.
Leste - iluminação, determinação, foco, força vital, criatividade e expressão ou
inconsciência, falta de imaginação, crenças antigas.
179
Figura 31: Foto nº. 24 - Roupas com franjas e fitas, mais o escudo e pintura de
rosto
Além da águia, para mim outro animal que marcou presença nesta dança do Oeste foi
a lagarta. Havia lagartas de todos os tamanhos e com as cores das direções, espalhadas pelos
jardins da Alvorada. A todo o momento me deparava com elas. Isto para mim significou a
intensa transformação pela qual estava passando, da qual estava tomando consciência.
Tudo se torna uma só Dança quando incorporamos todo o simbolismo dos protocolos a
seguir na prática, alimentado pelo imaginário presente nas preces e ensinamentos, nos
cânticos e nas batidas e vibrações dos tambores. A beleza aparente do ritual, do espaço
colorido do arbor, da coreografia de cada um, se torna uma beleza coletiva, refletindo uma
beleza não visível aos olhos, a beleza das cenas subjetivas das mentes e corações dos
dançarinos e dançarinas, que alimentam internamente a chama de suas intenções, declaradas
publicamente também na última parte do ritual. Uma pessoa de cada vez dança com seu
escudo em direção à árvore, após dizer sua intenção, ao som da música escolhida.
A Dança da Águia é um exemplo de dança-ritual que associa plenamente o ritual e a
performance numa cena espetacular. Os quatro últimos dias são apenas de deleite, com
180
cantos e danças intermináveis e banhos refrescantes de rio, aspectos que superam qualquer
incômodo que a mente possa trazer a respeito das referidas provações. Neste intenso ritual
da Dança da Águia compreendi a importância de concluir esta tese de acordo com meus
desejos mais íntimos, profundamente ligados à sacralidade da espetacularidade cênica.
2.3.3. Rituais de Danças-Músicas: cânticos xamânicos pela paz
Para divulgar neste estudo algumas letras de músicas, especialmente as que pude
vivenciar, pedi permissão às duas pessoas envolvidas na transmissão oral das tradições: a
xamânica (Sylvie Shining Woman) e a do repertório do Movimento Universal das Danças
da Paz (Zelice Peixoto). De tudo o que experimentei, o que fica mais evidente é o fascínio
exercido pelas canções e a experiência de tê-las cantado e poder continuar cantando.
Algumas canções indígenas, provenientes da linhagem do Conselho dos Anciãos dos
Cabelos Trançados, possuem várias versões, em Português, Inglês ou Espanhol, que são
cantadas geralmente após a versão nativa. A fonte inicial desse conselho provém dos índios
Cherokee, mas atualmente pertence a várias etnias indígenas (dos povos Maia, Navajo,
Lakota Sioux, Arapaho e Hopi), se estendendo a pessoas de rias nacionalidades, as quais
fazem uma adaptação dos rituais aos seus contextos e realidades, como é o caso de, Sylvie.
Como foi dito, muitas dessas canções tradicionais foram incorporadas ao
movimento universal de Danças da Paz Universal, que se apropria de canções de várias
tradições para a criação de coreografias. as canções das Danças da Paz provenientes do
Oriente são escritas em aramaico, judaico, árabe ou hebraico, muitas ainda estão à espera de
serem coreografadas. Algumas letras de canções foram traduzidas para várias línguas,
inclusive o português, ou simplificadas pelos tradutores, tornando-as mais legíveis e
audíveis para nós, ocidentais. Durante os seminários de DPU longos momentos em que
apenas o canto, inclusive na língua de origem é evidenciado, geralmente acompanhado de
instrumentos de percussão, prescindindo de qualquer outro movimento corporal, tamanha a
beleza das melodias.
181
Como uma via de mão dupla, muitas músicas da Dança da Águia estão no movimento
da DPU, como a do Deus Wiracocha e da deusa Pachamama
95
, a das deusas greco-latinas,
Shanoon, Athena-Djohne, etc., de maneira que se tornou problemático separá-las.
Estabeleci, portanto, que iria indicar as músicas em comum a ambos os repertórios. Estas
canções tornam-se comuns a ambos os repertórios, muitas vezes de maneira espontânea. Eu
mesma fui responsável por introduzir algumas canções das Danças da Paz no ritual da dança
da águia (ver apêndice 1), por ocasião de um momento de improvisação que cada grupo
tinha o direito de fazer. Então, após cantar a canção de Oxum, Sylvie me pediu para
continuar nessa linha de canções que evocam deuses e deusas do panteão africano, mudando
o foco anterior exclusivamente indígena. Os outros grupos introduziram canções hindus e
música popular brasileira.
Nos informativos da Sangha (Rede Comunhão Brasil, que difunde as Danças
Circulares, tanto as Danças Sagradas quanto as Danças da Paz Universal e ainda as
chamadas Danças de Raízes Brasileiras), podemos encontrar o contexto histórico dessas
danças e compreender de que maneira elas se inter-relacionam, a partir das músicas que as
inspiram. Como o interesse desta pesquisa está voltado para as danças cantadas, me detenho
nelas a partir de agora.
Os movimentos em favor das danças de roda cantadas surgiram na década de 1960, na
Califórnia, quando pessoas ligadas à arte da dança (entre elas, o mestre Sufi Samuel Lewis
(Ahmed Murad Chishti
)
, sentiram necessidade de aprofundar a possibilidade de comunhão e
oração que existe no ato de dançar. Embora o termo original seja Danças da Paz Universal
para se referir ao corpo inteiro de seu trabalho, Lewis também se referia a outros nomes que
incluíam vários tipos de danças espirituais: danças dos dervixes, danças mântricas, danças
angélicas e danças dos mistérios.
Ainda que haja uma diversidade de tradições no repertório das DPU, uma ênfase
nas danças provenientes do “sufismo”, a linhagem espiritual da Escola Sufi Shakur,
atualmente transmitida por Douglas-Klotz, de nome sufi “Saadi”, o atual representante e
sucessor de Samuel Lewis, influenciando os atuais professores-mentores das Danças da Paz.
Segundo Douglas-Klotz (2004) o Sufismo não é religião, não é filosofia, nem misticismo no
95
Pachamama significa terra-mãe, em quéchua, a língua nativa dos Andes, antes da chegada do espanhol. Os
povos nesta área falam o espanhol, o Quéchua, ou ambos.
182
sentido comum desta palavra. A melhor maneira é chamar o Sufismo uma maneira de
experimentar a realidade como sendo o próprio amor
96
.
Figura 32: Foto nº. 25 – Símbolo do Sufismo
Figura 33:
Foto nº. 26 - Bandeira DPU
O Sufismo nunca pertenceu a nenhuma raça ou religião, mas pode ser considerado
como a essência de todas as religiões, embora tenha uma relação íntima com o Islã. A
palavra islam significa entrega” para a Realidade e a palavra sufismo significa “sabedoria”.
Saadi escreve sobre sua preocupação em aprofundar esta tradição espiritual através das
danças:
Nosso trabalho com as danças é mais que uma simples miscelânea de
movimentos e cantos populares vindos de todo o mundo. Empenhamo-nos para
evitar esse “garimpo do cultural sagrado” indicativo dos recentes movimentos
da Nova Era (New Age), que é somente a contrapartida psíquica para o que a
sociedade ocidental vem fazendo com os recursos da Terra e com os povos
nativos (indígenas). É importante contar a história da nossa própria linhagem,
para preservar o valor da transmissão sagrada, tornando-a uma causa comum
com a dos outros herdeiros da sabedoria nativa (DOUGLAS-KLOTZ, s/d, p. 4).
Durante as pesquisas feitas em diversas tradições de diferentes povos ou regiões,
muitas danças puderam ser aprendidas e divulgadas juntamente com suas canções, outras
danças foram coreografadas ou reelaboradas pelos mestres pesquisadores a partir das
96
Este autor diz ainda que historicamente, os Sufis não eram adeptos de qualquer escola de interpretação do
Corão e isto não agradou aos fundamentalistas , de maneira que alguns países islâmicos proíbem práticas sufi.
183
canções tradicionais encontradas, como foi o caso das canções nativas norte-americanas,
muitas delas coreografadas em acampamentos sufis com adolescentes. Por outro lado alguns
descendentes de indígenas nativos norte-americanos (americanos dos Estados Unidos e
canadenses), também colaboram com ambos os movimentos (Universal das Danças da Paz e
Danças Sagradas), inclusive gravando tapes e Cds com esse repertório. Podemos citar
Shemmaho Sioux (apostila no anexo 3.4.), por exemplo, que divulgou algumas músicas de
invocação da ‘mulher búfalo branco’, mito importante da cosmologia nativa, desde 1987.
Tais canções ainda não foram coreografadas, são utilizadas mais como meditações. Na
Dança da Águia podemos encontrar essas canções, as quais são dançadas livremente pelos
participantes no local de cerimônia do arbor. Além das danças, existem os chamados
“caminhares” introduzidos por Samuel Lewis, que são exercícios silenciosos para o encontro
com as qualidades dos quatro elementos da natureza e com a energia dos planetas, incluindo
também o sol e a lua. A qualidade do sol é a realização do nosso propósito, a da lua seria a
de nos ensinar a refletir nossa luz. Antes de caminhar se faz respirações com os elementos:
Respiração Terra – inspira e expira pelo nariz; Respiração Água – inspira pelo nariz e expira
pela boca; Respiração Fogo inspira pela boca e expira pelo nariz; Respiração Ar inspira
e expira pela boca. Durante os encontros da danças que têm sido realizados em Friburgo
(RJ), em Nazaré Paulista e em Palmeiras-Capão (BA), essas caminhadas também são feitas
ao ar livre, logo após serem vivenciadas no espaço apropriado para oficinas, onde também
acontecem trabalhos de voz, de ritmo, de execução com instrumentos, giros dervixes, além
das orações corporais chamadas de Wasifas.
Figura 34:
Foto nº. 27 -
Altar localizado no chão ao centro da roda de dança da paz,
com sálvia, pena, vela, planta e sacola com objetos pessoais de Zelice.
184
É comum para manter o centro da roda, colocar um altar simples no chão, no meio do
círculo, com representações dos quatro reinos e os quatro elementos (foto acima). A pena
ajuda a direcionar a fumaça purificadora da sálvia para nossos corpos.
Figura 35:
Foto nº. 28 - Grupo DPU- Salvador - 2007 (Zelice Peixoto, Cau trigo, Tina
Campos, Joaquim, Clenice Bastos, Ana Gilda, Vasco dos Anjos, Luciana, Marília
Curvelo, Liana Neto e Márcia Virgínia)
97
.
De uma maneira geral, os movimentos criados e coreografados para as músicas são
muito simples, muitos deles provenientes de diferentes danças folclóricas que Samuel Lewis
conhecia. São realizados com caminhadas para ambos os lados da roda, com as pessoas de
mãos dadas, com mãos nos ombros, ou abraçadas, ou ainda, em filas, cada um fazendo
gestos com mãos (no coração, no ventre, palmas voltadas para baixo ou para cima etc.),
braços, cabeça, com giros em torno de si, sendo os giros para a direita, considerados giros
solares, realizados com as palmas das mãos voltadas para fora, e os giros para a esquerda,
chamados de lunares, com as mãos em concha.
Alguns desses giros provém da própria técnica dos dervixes
98
, cujas palmas das mãos
estão voltadas em sentidos contrários. Diferente do giro da dança clássica, em que o
bailarino marca a posição da cabeça e do olhar, no giro dervixe o olhar está na linha do
horizonte e atento a todos os pontos deste. Parece que esta maneira de perceber tudo, ou
seja, todos os pontos da trajetória em volta durante o giro influenciou Laban nos estudos
acerca do espaço individual e total.
97
Obs. Nesta lista estão alguns integrantes do grupo de mulheres (da Alvorada) e do extinto grupo de homens
(do Riachinho). Quanto ao grupo da Alvorada, algumas pessoas moram em Lençóis, outras em Seabra, outras
no vale do Capão. Como algumas delas preferiram não ser citadas na tese, então, por opção omiti o nome e a
foto das outras restantes.
98
Segundo Douglas-Klotz (2004), a palavra dervixe significa: aquele sentado no portal (entre os mundos
consciente e inconsciente), pronto para mover-se adiante e transformar-se.
185
É interessante observar a semelhança que alguns movimentos das DPU têm com as
práticas de dança moderna americana de mobilidade e alongamento da coluna, como, por
exemplo na seqüência seguinte: Na posição sentada, movimentos circulares iniciados pela
cabeça, que vai da esquerda para a direita, parando em cima (com um pouco de arco para
trás) e depois vai à frente e abaixo, chegando a encostar a testa no chão, em reverência à
terra e à Allah. Movimento semelhante pode ser visto nas danças de deslocamento em grupo
(ver danças 6 e 7 descritas mais adiante). Este fato pode ser compreendido como uma
influência oriental na dança moderna desde Ruth Saint-Denis, que por sua vez iniciou o
movimento de coreografar as canções sagradas.
Embora existam partituras para algumas canções da DPU, é recomendável que as
músicas sejam vivenciadas antes através de transmissão direta, entre o mestre e o aprendiz.
Não se trata de pegar um manual e segui-lo, pois o que importa aqui não é a forma, mas o
significado do simbolismo da matéria sonoro-corporal presente nas danças-músicas (ver no
apêndice 1 a relação das canções, com as letras. Algumas estão acompanhadas do contexto
histórico e das instruções de como se dança).
Existe uma ciência sufi do misticismo do som que habilitou Lewis a escolher as frases
sonoras na construção das primeiras Danças da Paz, com a função de preencher o corpo com
ressonância e com o sentimento genuíno de cada tradição. Algumas partituras em anexo
(anexos 3: Informativos da Sangha e anexo 4: exemplos do livro Spiritual Dance and Walk)
revelam a simplicidade e profundidade sonora a que me referi anteriormente, cujas maneiras
de dançar podem ser observadas nos exemplos que se seguem:
1. Mir Miru Mir (ver partitura no anexo 3.1.)
1. Força da paz
2. Cresça sempre, sempre mais
3. Que reine a paz e acabem as fronteiras
4. Mir-Miru -Mir
A dança pode ser feita de várias maneiras: com a melodia principal apenas; com a primeira e
a segunda voz dançadas e cantadas simultaneamente; numa roda ou em várias rodas. Cada
melodia tem quatro partes que podem ser cantadas em forma de “cânon”.
1. andar na direção do círculo, para a direita. Mãos em forma de taça diante do coração, que,
depois se abrem para cima e para fora, continuando suavemente para o próximo movimento.
2. Mãos nos ombros dos parceiros, a roda segue para a direita
3. giro em torno de si para a direita
4. reverência para o centro do círculo, com as palmas das mãos juntas.
186
2. Hey Ya Na Na -dança-música dos quatro elementos (ver partitura no anexo 3.1. e
também na descrição da cena 30 do capítulo III):
Este é um entre tantos cantos indígenas da América do Norte, originalmente usado na época
do plantio, ao semear, incorporado a coreografado pelo Movimento da DPU, na Califórnia
da década de 1960.
1. Hey ya na na, hey ya na na, hey ya na na hey (repete)
(movimento com as duas mãos descendo da posição acima da cabeça para baixo, pela frente e ao
longo do corpo, abençoando a terra)
2. Hey hey ya na na, hey ya na, hey hey ya na na hey
Hey hey ya na na, hey ya na, hey hey ya na na hey
(movimento relativo a cada elemento – alternando com o primeiro verso)
Ex. concentração no elemento terra: joelhos ligeiramente dobrados, mãos em frente do
corpo, palmas voltadas para a terra. Concentração no elemento água: continuando o andar
em círculo, as mãos se movem para a esquerda e para baixo, num movimento flexível de
quadril. Concentração no elemento fogo: salto com o direito, batendo a mão direita na
esquerda e apontando para a direita alta. Concentração no elemento ar: girando com os
braços abertos.
3. Ya Hayy Ya Haqq (anexo 4.2)
1. Ya Hayy Ya Haqq (quatro vezes)
2. Ya Hayy Ya Haqq (quatro vezes)
3. Ya Hayy Ya Haqq (quatro vezes)
4. Ya Hayy Ya Haqq (quatro vezes)
Variando a dinâmica (andamento) de tempo:
1. andando na linha da direção anti-horária no círculo, em fila (estendo os braços para
cima (Ya Hayy) e abaixando (Ya Haqq).
2. giro em torno de si no lugar (idem)
3. passo lateral para a direita, com a face voltada para o centro do círculo. Os braços se
entendem para frente do centro do círculo na frase “Ya Hayy” e abaixam na frase
“Ya Haqq”.
4. todos de mãos dadas levantam os braços no “Ya Hayy” e abaixam no “Ya Haqq”,
fazendo passos laterais.
5. depois de 2 ou três ciclos, o líder pode dobrar o tempo; dois tempos para “Ya Hayy”
e dois tempos para “Ya Haqq”. O tempo pode ser dobrado outra vez, com uma batida
para cada frase.
6. para concluir, todos permanecem no lugar estendendo os braços no “Ya Hayy” e
abaixando enfaticamente no “Ya Haqq”.
4. Canto dos Ancestrais (anexo 2) / invocação à mulher búfalo branco (
anexo 3.4.)
99
1. Yo hey há ya ya ya ya
99
Verifiquei que a mesma canção tem títulos diferentes. Na apostila da Dança da Águia tem o título de
Ancestrais, na apostila de Danças da Paz da autora Shemmaho, tem o título Invocação à mulher búfalo
branco. Sobre este mito ver seções 2.3 e 2.3.3.
187
2. Yo hey ha ya ya ya do
3. Yo hey há ya ya ya ya
4. Yo hey ha ya ya ya do
5. Yo hey há ya ya ya ya
6. Yo hey há ya ya ya ya
7. Yo hey ha ya ya ya do
Este cântico foi incluído no repertório das Danças da Paz Universal, desde 1987, pela líder
de danças, naturalizada canadense, Shemmaho Sioux, porém, segundo ela, não uma
coreografia sistematizada. Cada frase é cantada com o corpo voltado para uma direção -
norte, sul, leste, oeste, incluindo a terra, o céu e o centro. A energia desta dança traz
equilíbrio entre a criança e o ancião e harmonia entre o masculino e o feminino em cada
pessoa e em suas comunidades. Traz também paz e serenidade no trato com todas as nossas
relações (vide cena 3 de Gestos Cantados, capítulo III, a associação entre os princípios desta
DPU e a Escala Dimensional em Laban).
5. Kwan Zeon (anexo 4.3.)
kwan Zeon Bozai
kwan Zeon Bozai
kwan Zeon Bozai,
kwan Zeon Bo
Caminhando lentamente em fileira para a esquerda, no sentido, horário, quatro passos por
frase, iniciando com o direito. As quatro frases compõem ciclos que se repetem três
vezes. No primeiro ciclo os movimentos ou gestos estão associados aos três refúgios do
budismo: Buda, Dharma e Sangha. Na primeira frase, as palmas das mãos juntas posam
acima da cabeça (chacra coronário), na altura da garganta (chacra laríngeo) na segunda frase
e junto ao coração (chacra cardíaco) na terceira frase, na quarta frase as mãos se abaixam.
Recomeça o canto do segundo ciclo, que significa a expansão da compaixão do coração. A
mão esquerda posa no ombro da pessoa da frente e a mão direita em forma de concha
(palma para cima) sempre para o centro da roda, estendida à altura do chacra coronário,
depois no nível da garganta, depois no nível do coração; na última frase as mãos se abaixam
lentamente em prece. No último ciclo, os braços estão em forma de embalar um neném, com
a intenção de embalar nossa criança ferida ou qualquer pessoa que possamos imaginar que
esteja precisando ser acolhida. Se repete todas as 4 frases com esse movimento.
Segundo o manual internacional das danças da paz universal (A Manual for Mentors...2001),
‘Kwan-ze-on’é uma variante japonesa para a deusa Kwan Yin, nome chinês dado a
‘Bodhisattva of Compassion’. O manual informa ainda que Ruth St. Denis fez uma
coreografia chamada “White Jade”, na qual incorpora a essência da chamada mãe Kwan
Yin.
6. B’reshith (sem partitura)
1. B’reshith
2. bara
3. Elohim
4. eth-ha-shamayim
5. weth-ha-aretz
Repetir quatro vezes as 5 frases)
6. B’reshith (repetir 4 vezes esta frase com os parceiros)
188
Esta Dança judaica utiliza o primeiro verso do Gênesis em Hebraico. Ela nos relembra do
enorme potencial que havia no princípio, e que ainda permanece como uma profunda
memória nas células do nosso ser. Na parte da Dança com parceiros, nos ajudamos uns aos
outros a limpar o espaço e liberar qualquer bagagem que não seja verdadeiramente parte do
nosso pré-existente e primordial propósito de vida. De mãos dadas, o movimento 1 é a
inclinação do tronco e cabeça para a esquerda, flexionando levemente os joelhos; o
movimento 2 é a volta ao eixo vertical, para o centro da roda; o movimento 3 é a inclinação
do corpo para a direita, da mesma maneira como se fez para a esquerda. No 4 e 5, um
deslocamento lateral, abrindo o direito e juntando o esquerdo, uma vez, enquanto a
parte superior do tronco ou Centro de Levitação (tórax) faz um semicírculo começando pela
esquerda, passa pela frente baixa, chega no lado direito e logo em seguida ao centro (eixo),
inclinando para a frente (centro da roda) e retornando ao eixo. O movimento da frase 6 se
faz caminhando e girando de frente para um parceiro subindo os braços e descendo pela
lateral, 2 frases com cada parceiro. Reinicia a canção de mãos dadas, encontrando novos
parceiros.
7. Inana Lachma Da hayy (sem partitura)
O modo de dançar é o mesmo da primeira parte da dança anterior (até a frase 5), repetindo
sempre esta frase em aramaico “Inana Lachma Da hayy”, que significa “eu sou o pão da
vida” (vide cena 13 de Gestos Cantados, capítulo III).
8. variação da Kalama dance (sem partitura, ritmo sincopado africano) – vide cena 28,
cap. III.
Lah- Ilahá-Illa-Allah, Illa Hu Allah (repete várias vezes em duas vozes com duas rodas
girando para lados diferentes e saudando as pessoas da outra roda com o movimento de
mãos, partindo do coração e oferecendo algo ao outro).
La- ilaha- Illa- la- hu (alguns do grupo simultaneamente- girando em torno de si para ambos
os lados, com os braços elevados para o alto e finaliza com as palmas das mãos juntas
em movimento de recolhimento para frente e para baixo).
Em todas estas danças-músicas o essencial é que os dançarinos deixem que as frases
sagradas atuem por si mesmas, melhor do que forçar coisas com o poder do ego e do
pensamento. As danças são destinadas a nos levar para a dimensão da sensação, cada vez
mais profunda a cada repetição das frases mântricas, em grande parte melódicas e ritmadas.
Considerando que a expressão da voz é também respiração, é fácil perceber as mudanças
sutis na respiração originadas por cada rodada de dança. A música, especialmente quando
acompanhada de tambor e violão, acentua o ritmo da frase sagrada. Por serem alegres e
revigorantes, estas danças podem levar a estados de êxtase, no sentido amplo do termo:
elevação. Os dançadores da paz sentem elevar-se com todo o ser, gozando de todos os
planos ao mesmo tempo. “Se seus pés estão plantados na terra, então sua cabeça pode estar
nas alturas” é uma frase referente ao êxtase, noção contida nas onze indicações ou chaves de
189
como dançar. As chaves são: escutar, sentir, concentrar na frase sagrada, simplicidade
musical, liberdade de parar e recomeçar, mover juntos, observar a respiração, êxtase,
devoção, silêncio anterior e posterior à dança, agradecimento (com a palavra Amém”,
significando “assim seja”).
Aqui a noção de devoção é diferente da concepção ensinada pelas religiões
organizadas do passado. Na tradição da escola Sufi Shakur, por exemplo, mais do que a
devoção a algum mestre ou a qualquer livro, é a história dentro de nosso ser que importa. A
devoção é um dos requisitos para as práticas das “trilhas do coração”, as quais podem
radicalmente transformar a nossa realidade subconsciente.
O aspecto ritual destas danças fica evidente quando se compreende que se trata de
iniciação ritual, embora livre de qualquer dogma. De acordo com Hazrat Inayant Khan
(apud Douglas-Klotz, s/d.), “iniciação”, em um sentido mais amplo, significa a escolha para
dar-se um passo em direção não conhecida. Este também é um princípio do xamanismo da
Alvorada, fato pelo qual estou considerando as danças (DPU) como xamânicas, ou melhor,
como Danças Xamânicas pela Paz. Em ambas as práticas, as lições consistem em integrar o
ser humano à natureza e ao propósito de sua vida. Outra similaridade é a crença de que os
rituais possam estender seus efeitos em prol de um futuro luminoso para as próximas sete
gerações.
Um dos objetivos dos rituais de dança-música é o de conectar três centros corporais
de força: a mente, a fala e a ação. Uma metáfora usada no xamanismo é a do alinhamento
entre mentes, lábios e corações, entre o pensar, o sentir e o agir. Sabemos que a humanidade
valoriza mais o pensar e vive num universo execessivamente mental. Os rituais permitem
que ocorra a coordenação entre pensamento, esforço e ação, de maneira que a personalidade
se torne devidamente integrada. No entanto, o caminho do coração significa que o
sentimento é o fio condutor entre o pensar, o falar e o agir. Se dissermos o que sentimos e
acreditarmos no que dissermos, permaneceremos íntegros e abertos ao modo de ser poético.
Inayat Khan (199, p. 285) explica que “o coração está entre a alma e o corpo, que ele é um
meio entre o espírito e a matéria”.
Na primeira parte do cântico de dança Humata Hukhata Huvarshta baseada no
Zoroastrismo
100
, observamos que a pureza é o sentimento que unifica as três dimensões.
100
Incluída no repertório das Danças pela Paz, focalizada por Zelice Peixoto durante os encontros xamânicos,
esta dança pertence à tradição do zoroastrismo, uma antiga religião persa (séc. VII a.C), a qual, segundo o
190
HUMATA - pense com pureza; HUKATA - fale com pureza; HUVARSHTA - aja com
pureza. Vivenciar essas danças é o mesmo que fazer meditação, pois os mentores nos
ensinam que estamos nos purificando a cada rodada.
A purificação da mente está ligada às visualizações (de imagens, de símbolos, etc.); a
purificação das palavras se através dos cânticos ou mantras, e a purificação das ações
acontece através do movimento. A propósito desse alinhamento entre o pensar, o falar e o
agir, Laban também nos deixou este legado. Os conceitos de fluência, espaço, peso e tempo
“remetem simultaneamente a pensamento, fala e ação, resultando num entendimento de
movimento de dimensão maior (RENGEL, 2006, p. 124)”.
A seguir apresento um quadro com os títulos (alguns atribuídos por mim) das letras de
músicas observadas (detalhadamente descritas no apêndice 1) e identificando as que são
comuns a ambos os movimentos: o xamanismo da Alvorada (Sylvie) e as Danças da Paz
(Zelice).
2.3.4. Quadro das Canções
Canções do Castelar da
Alvorada
Canções em comum
(Alvorada e DPU)
Canções das Danças da Paz
Universal
1. Dança da Águia
(abertura) - White
Eagle Round Dance
2. Hajroô (All is
beautiful)- canto
Navajo
3. Canto da Roda de
Cura - Cherokee
4. Música da Colheita
(Hopi harvest time
1. Mir Miru Mir (Força da Paz)
2. Dança da águia (Witchy Tai
Tai)
3. Dança-música dos 4
elementos (Hey ya na na)
4. Shanoon - Canto do
Salgueiro
5. Toré - Canto para a Lua
1. Invocação em Português
2. Invocação em Guarani
3. Toré Hey ya na ta tá
4. Mãe-Terra
5. Caminhando os quatro
elementos
6. Caminhando na beleza
7. Dança-música de Murshid
Samuel Lewis
8. Pai-Mãe do Cosmos
(oração cósmica em
Aramaico)
9. Príncipe da Paz
dicionário Houaiss, influenciou em diversos aspectos doutrinários a tradição judaico-cristã. Como nos
esclarece Douglas-Klotz (1996. p. 122), a partir de aproximadamente 1700 a. C., “o profeta persa Zaratustra
Spitama trouxe uma mensagem universal de Único Ser basaeda na liberdade e tolerância (Zoroastrismo), que
influenciou o desenvolvimento do hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e Islã”. Antes de serem criadas
‘’’estas religiões, o Zoroastrismo foi a religião dominante no Irã, até que o Império Zoroastriano rivalizou com
o de Roma no tempo de Jesus. “Desde essa época, muitos remanescentes zoroastrianos estabeleceram-se na
Índia no século IX, e este grupo é geralmente denominado parses (povo de Parse ou Pérsia). Hoje em dia
cerca de 125.000 zoroastrianos no mundo. Muitos que viveram no Irã até o século XX seguiram para a Europa
ou América do Norte, perseguidos pelos fundamentalistas islâmicos”. Disso, pode-se compreender a existência
da linhagem dos dervixes sufis comtemporâneos, como mantenedores de uma tradição que sobrevive à
margem de qualquer religião dogmática oficial.
191
song)
5. Olla Mama
6. Mahk Jchi Song
Lyrics
7. Cherokee Morning
Song -Wendeyá
(purificação)
8. Arapaho
9. Shiva Shambô
7. (versão cantada na
Dança da Águia)
10. Dança Zuni Comanche
11. All my people
12. Canção das crianças
Guarani
13. I'm coming home
14. Canção do pato
15. Grande Espírito
16. Sun Dance
17. Lakota Vision Quest
Song
18. Horse Stealing Song
19. I’m your friend (Guya
Hey)
20. Canto das Estrelas
6. Quatro elementos
7. Ii Chell -Canto das Águas
Primordiais- civilização Maia
8. Wiracocha/Pachamama
9. Dança-música baseada no
Trecho da carta do chefe
indígena Seatle ao presidente
dos Estados Unidos em 1854
10. From the Goddess
11. Elemento Água (O rio está
fluindo)
12. Shiva Shambô
(DSC cuja música se canta na
sauna sagrada)
13. A Terra é nossa mãe
14. Canto dos Ancestrais -
invocação Lakota à mulher
búfalo branco
10. Danças do Ciclo da
Grande-Mãe (Horman,
Alatu, Mami Ninhursag,
Amaussunga Alana)
11. Variação da Kalama Dance
(duas vozes)
12. Dança-música de Murchid
Hazrat Inayat Khan
13. Inana Lachma da Hayy
14. B’reshith
15. Cura (Ana, Elna, Rafanalá)
16. Dança-música de Ruth St
Denis
17. Ram Nam Pranam Dance
for Partners
18. Kwan Zeon
19. Música para Oxum
101
20. Canto nas águas da
cachoeira (sem dança)
21. Rlha-guia-lôu
22. A Mãe é Guia
23. Bismillah (introdutório)
24. Bismillah Round
25. Bismillah (simples)
26. Bismillah Ya Fattah
27. Hu Allah
28. Ganesha
29. Gopalá
30. Ya hayy ya haqq
31. Humata Hukhata
Huvarshta
32. Zoroastrian Sun Dance
33. O amor é forte como a
morte (Shîmê-nîy kha-
chôthâm)
34. Dança em honra a Samuel
Lewis
35. Counterpoint to the
Kalama Dance
36. Allah Ya Jamil
37. Prashanthi Nilayam
Figura 36:
Quadro das Canções
Como se vê, são muitas canções comuns, compartilhas entre o xamanismo de Sylvie e
as Danças da Paz de Zelice, embora este quadro seja apenas uma aproximação, a partir da
minha própria observação. Estas canções aqui citadas são as que consegui lembrar e
registrar, em meio a um universo muito mais amplo por mim vivenciado de canções que me
recordo apenas de parte da melodia. Creio que não é desejo dos xamãs e mentores que sejam
divulgadas em forma de partitura, sem a vivência anterior. Viver essas danças-músicas e
101
Músicas introduzidas no ritual da dança da águia em 2007.
192
rituais cantados significa entrar num estado xamânico de corpo, que equivale a um estado de
de êxtase.
2.3.5. Estado xamânico de Consciência: por um corpo xamânico
Estado xamânico de consciência, em inglês, Shamanic State of Consciousness, é um
Estado Alterado de Consciência (EAC), no qual determinado indivíduo sente uma mudança
qualitativa em seu padrão mental. Conforme Angeles Arrien, “há várias técnicas para obter-
se esse estado, incluindo-se: privação, jejum, fadiga, respiração ofegante, exposição a
temperaturas extremas, uso de substâncias alucinógenas e o conjunto de crenças e
cerimônias culturalmente ritualizadas” (Arrien, 1997, p. 117). Da mesma forma, os cânticos
mântricos e as jornadas do tambor levam o indivíduo e o grupo a mudanças reais, inclusive
na freqüência das ondas cerebrais. Dessa maneira, após cada experiência o indivíduo torna-
se diferente. Nas palavras de Sylvie, o estado de corpo xamânico está relacionado a uma
abertura interior:
Então o xamanismo trouxe cerimônias, ele traz estado alterado de consciência,
toda uma outra exploração que você vai vivenciando e que vai abrir cada vez
mais o mundo dos sonhos. O sonho que não deixa de ser a realidade, porque pra
um xa o sonho é real. O real que não é real. É importante saber que o
xamanismo é um estado de ser. Hoje em dia é muito complicado isso, tem muita
gente que vai atrás de uma coisa fora e é um estado dentro do ser.
Este estado xamânico de consciência pode ser considerado como uma tendência da
contemporaneidade para uma ritualidade mais específica, baseada na experiência corporal,
fato que permite, naturalmente, a construção de um corpo xamânico. Podemos considerar
como análogas essas formas de ritualidade observadas aqui, como os movimentos das
danças sagradas e da paz universal e também o xamanismo da Alvorada. Todas se encaixam
num conjunto de práticas que floresceram a partir dos anos 1960, respectivamente na
comunidade de Findhorn (Escócia), na Califórnia e no Brasil
102
, mas que hoje toma um novo
impulso e uma dimensão subjetiva para além dos modismos impostos que inevitavelmente
acompanham a difusão das técnicas de ritualização terapêutica do corpo, de expansão da
consciência e de magia cerimonial. Theomária reconhece que as danças, denominadas por
ela de sagradas, têm qualidades xamânicas:
102
Ver esforço de mapeamento de práticas xamânicas similares no Brasil no site www.xamanismo.com.br.
193
As danças sagradas respeitam muito, elas têm uma consciência de movimento,
movendo a natureza, cada movimento que você faz, ela está introduzida dentro
desse respeito no movimento que traz uma qualidade. Então ela respeita também
os outros níveis de expressão da natureza e por isso ela é bela, não é uma coisa
destrambelhada, sem propósito. Uma pessoa dançando é uma forma de
comunicação, a gente sente o que ela ta passando, que qualidade do sagrado,
qualidade de energia, apesar de não ser xamânico, as danças sagradas. É
xamânico no contexto geral enquanto respeito a todos os níveis de energia e de
expressão da natureza, mas ela não é considerada, classificada como uma coisa
xamânica, apesar de eu achar muito xamânica.
Um “estado de corpo xamânico”, portanto, é encontrado após ter se submetido a ritos
de passagem, os quais se constituem de provas e dificuldades, ainda que estas sejam a
repetição de sons e movimentos que levem ao transe. Até mesmo o dançante pode se deparar
com enormes dificuldades de concentração e falta de paciência durante as inúmeras
repetições de sons e movimentos, enfim, dificuldades de se entregar ao momento presente
em toda a sua plenitude. Um corpo xamânico é aquele que sempre aceita as mudanças de
padrões, que está aberto à "repadronização", como escreve Fernandes (2005, p. 67):
Podemos distinguir dois tipos de “padrões”: aqueles de defesa, e aqueles de
aprendizagem. Aos de defesa, chamo aqui de “cristalizados”, por serem fixos,
ou buscarem uma estrutura estável na rigidez corporal (o que inclui espiritual,
mental, emocional, etc.). Aos de aprendizagem denomino “cristalinos” que
deriva do termo “cristais”-, por serem geométricos como os padrões de
crescimento e mudança na natureza.
É justamente a repadronização contínua ou a quebra de paradigmas o objetivo dos
rituais xamânicos observados e não a alienação e rigidez em padrões sem propósito. Quem
não compreende isto se apega fanaticamente a detalhes e protocolos rituais, sem observar o
potencial transformador que eles têm em nossa corporeidade.
Na tradição do Sufismo, fonte das DPU, a idéia de esvaziamento, onde se chega a
um estado de desaprender, semelhante à referida noção de repadronização. Precisamos
aprender e depois desaprender, para completar o conhecimento. Em Hazrat Inayat Khan
(1999, 217) temos que: “Tudo o que aprendemos neste mundo é conhecimento parcial, e
quando esse conhecimento é desarraigado por um outro ponto de vista, então nós temos o
conhecimento de forma completa”. Para este mestre sufi, as palavras nos mostram um dos
lados desse conhecimento, mas o outro lado está além das palavras. A união entre estes dois
lados do conhecimento é o que nos tiraria da dualidade. Daí a importância da experiência do
194
corpo, para além dos sentidos, ou seja, através da constante transformação da consciência
sensorial e a partir desta.
Uma noção de corpo compatível com a corporeidade xamânica é a do corpo-próprio, a
do corpo fenomenológico de Merleau-Ponty. Um corpo xamânico é um corpo
fenomenológico, um corpo que se descobre, que se revela no contato com a experiência,
com seus sons, cheiros, movimentos e sensações.
Entre tantas outras vias existentes de técnicas corporais que nos auxiliam na
manutenção de um estado de presença e consciência ampla de si e do mundo que nos cerca,
considero que as técnicas xamânicas observadas sejam mais uma dessas vias de
conhecimento, um aprendizado de “ser” corpo, estado este encontrado na dança, mas não
encontrado em outras práticas, especialmente religiosas, como percebeu Hugo:
De tudo que eu fiz na fiz na vida, nesses caminhos com arte, com religiosidade
de várias tribos, a gente precisa aprender a ser corpo Não está nem um pouco
saudável, nenhuma forma de religião não nos ensina a ser corpo. Se eu não sei
cuidar do meu corpo, por extensão, eu não sei cuidar de um corpo, eu o sei
cuidar de um planeta. ...A gente precisa aprender a ser corpo, nem, que pra isso
seja necessário abolir certas culturas religiosas e tudo o mais. Então a dança me
coloca diretamente com isso, eu sou um corpo, o corpo tem possibilidades de
cognição, de experiências, entre elas a religiosa, a estética, afetiva, uma série de
outras e isso tem sido pra mim um caminho espiritual mais interessante. Talvez
eu já estivesse sendo preparado pra isso, quando eu tava me interessando por
essa forma xamânica dos índios.
Essa forma xamânica dos índios de que fala Hugo é principalmente uma forma
corporal de aprendizado de ser e estar no mundo:
É com o corpo que a gente vive tudo aqui, não é com outra coisa, é o corpo que
a gente leva para sauna, é o corpo que a gente faz suar na sauna, entrar no barro,
entrar na água, é o corpo que a gente leva pra cachoeira, é o corpo que a gente
usava pra cuidar da horta, o corpo que a gente usava para dançar juntos. Então
não era com outra coisa. Meditar era com o corpo. É o corpo que sou eu, é ele
que esta na experiência. O corpo de repente é muito mais rico e mais complexo
do que um manual de anatomia. Tudo que a gente fazia era com o corpo. O
sagrado estava no corpo, no alimento que a gente fazia, na sauna que era muito
gostosa. O medo também tava no corpo. Medo de cair porque a montanha é
muito alta... a sauna ta quente demais...(Hugo)
É nesse sentido que as pessoas entrevistadas falam de uma realidade espiritual, mas
sentida fisicamente. Trata-se de um caminho constante de aprendizagem via corporalidade.
195
Sobre a relação alma-corpo Pierre Levy (2000) afirma que a “realização, ou a concretização
espiritual, acontece na matéria, uma vez que “o caminho espiritual consiste em nascer,
nascer sempre, encarnar-se completamente. Trata-se muito mais de uma descida do que de
uma elevação (LEVY, 2000, p. 83)”. Parece que quanto maior o aprofundamento da descida,
maior a lapidação do nosso ser, e mais a leveza se instala, em detrimento da densidade física
da matéria bruta.
Na cosmologia da Alvorada ambos os movimentos, de enraizamento e de elevação
fazem parte de um mesmo processo humano. Em várias Danças da Paz encontramos
movimentos que unem céu e terra, para encontrar o equilíbrio. É necessário ver a sombra, ir
às profundezas para alcançar a luz. Então, como disse Gramacho, “todo o processo do
xamanismo no corpo é deixar o corpo vivenciar o que ele precisa vivenciar. Isso é uma das
formas de você entrar no caminho da beleza, porque caminhar no belo significa você estar
em harmonia, em equilíbrio com todos os seus semelhantes” (apêndice 4.6.). Theomária
também fala desse corpo em harmonia que caminha na beleza:
A beleza é viver no equilíbrio, se você está no equilíbrio, e tem consciência
disso, se você vive respeitando as leis, você vive em beleza, e é a beleza na
sua saúde física, é a beleza no seu jeito de se relacionar, é a beleza na forma de
trabalhar. A beleza para a gente não é somente o que é belo fisicamente,
esteticamente, é a beleza da profundidade de viver em equilíbrio e harmonia
(apêndice 4.2.)
Quando se fala em beleza, a noção de harmonia é quase sempre referência, no sentido
de saúde e atitude. No entanto a noção de harmonia foi cunhada na música e é para a música
que todos os rituais recorrem como fio condutor cerimonial. Não é à toa que os movimentos
cantados ajudam na construção do corpo xamânico.
Tenho observado, nos depoimentos das pessoas entrevistadas, como a experiência com
o xamanismo teve importância na sua atuação artística, na medida em que os ensinamentos
xamânicos são trazidos para a prática cênica, ou na medida em que são tocadas pelo senso
estético, a poesia e a beleza das práticas rituais. Finalizo este capítulo com os depoimentos
reveladores de Hugo e Alice sobre mudanças em suas maneiras de ser, colocadas do ponto
de vista da relação entre o artista cênico e as experiências xamânicas pelas quais passaram:
196
Tem o palco, e tem o em torno do palco. Minha atitude com pessoa artista, que
sem dúvida nenhuma é pautada por tudo da forma que eu vejo o mundo, por
aquilo que eu vivi na Chapada, com os conhecimentos indígenas. Tudo isso
colore minha forma de lidar com as pessoas. Acho que é uma atitude, nunca
levei conteúdo, uma atitude que a gente procura sintonizar e responder a uma
energia, um tempo e espaço diferente, como numa cerimônia (
Hugo
Leonardo).
Outra coisa muito forte para mim foram diversos rituais, eu percebi mudanças
sutis e fortíssimas, minha vida realmente virou, o castelo desabou e se constituiu
outra estrutura em cima e eu só percebi depois de um tempo que eu estava lá. Eu
entrei de rebelde no início, eu entrava ali, mas ao mesmo tempo criticando, sem
me entregar. Foi assim aos pouquinhos todas as minhas resistências foram sendo
dobradas, e eu fui me reverenciando e aceitando toda coisa que vinha, pois o
ritual é mais forte que a gente. Ele mexe com energias muito profundas e as
coisas não estão ao nível do consciente elas se movem mesmo ao vel do
inconsciente, do energético, da alma, tem uma modificação muito grande, que
move o mundo todo ao redor, na verdade todas as pessoas ao meu redor eram
afetadas pelo trabalho que estava fazendo lá (Alice Becker).
Quando descreveu sobre o ritual xamânico de desatar os ‘nós’, Alice Becker
comentou o quanto o medo estava presente em sua vida, inclusive no palco.
Minha vida inteira mudou. Eu antes de entrar em cena tremia, as posições ou os
passos que eu tinha medo que eu não fizesse bem, era um tormento, um
sofrimento, isso foi uma coisa que foi superada. Hoje eu tenho muito prazer de
entrar em cena, me sinto bem mais inteira, o que não é perfeito sempre, né? Tem
os momentos mais desafiadores, ainda tem as coisas que me assustam, que me
movem, que me deixam mais insegura, mas é um outro prazer de dançar hoje.
É interessante observar que o discurso das pessoas entrevistadas reflete uma
semelhança acerca das buscas pessoais, no sentido de reconhecimento das mesmas
necessidades e buscas entre os iniciados e veteranos, cujas respostas são levadas para suas
vidas cotidianas e profissionais. É certo que esta transformação caminha paralelo com o
abandono das resistências em seguir regras e protocolos pouco familiares, como por
exemplo o de pronunciar os nomes das entidades míticas Grande Espírito e Grande Mãe das
Origens. Durante minha experiência pessoal, questionava se havia mesmo a necessidade
desta evocação por todos que tomavam a palavra.
Pelo fato de serem rituais afastados de seus contextos sociais, perguntava em que
medida funcionava manter os mesmos aspectos míticos, especialmente quando o objetivo
seria desvelar e repadronizar a mitologia pessoal. Parece haver uma necessidade de
referência na comparação entre o Grande Espírito e a noção católica de Deus, por exemplo.
197
Mas isto parece não importar tendo em vista a ênfase numa abordagem mais universal para
o xamanismo, onde não há fronteiras entre as tradições. Por outro lado, manter a integridade
da técnica ritual é sinônimo de reconhecer os mitos fundadores da cosmologia indígena.
O fato é que somente a entrega, sem resistências ou racionalizações, é que permite
abrir espaço para a experiência, para a quebra de padrões e a descoberta de novos. Não
importa qual seja a entidade fundadora, ela é apenas um estímulo inicial à criação de um
tempo mítico e de um espaço sagrado, para que o ritual se estabeleça com disciplina. A
eficácia do ritual depende do grau de envolvimento e entrega sem julgamento e senso crítico
a respeito da liderança e dos conteúdos por ela trabalhados. Os conteúdos dos discursos de
Sylvie em vários momentos, tanto de partilhas - início e final - dos encontros, como nos
rituais propriamente ditos, trata principalmente do aspecto psicológico, do sofrimento da
humanidade e da necessidade de transformação e de cura através do “princípio do
feminino”, ainda por ser desenvolvido, inclusive pela maior parte das mulheres, e trata-se
das qualidades de doação, receptividade, silêncio e amorosidade. Sendo assim podemos
concluir que o estudo do xamanismo permite uma maior compreensão sobre os rituais,
especialmente aqueles que levam à transformação das pessoas, em direção ao Homo sapiens
amans.
103
Os rituais têm uma qualidade sacramental na medida em que permitem a abertura para
uma consciência corporal mais aguçada. Participar do universo xamânico é uma das formas
contemporâneas de ter uma ampliação da consciência, que está ligada, por sua vez, à
experiência de “estar vivo”: “Sentir a paixão pela vida é sentir e conhecer a canção, que são
as vibrações do seu próprio espírito” (WHITAKER, 1995, p. 59). Nesse sentido, a noção de
consciência se alarga à medida que ela vai sendo vista como resultado do despertar interior e
da integração do ser em ritmos cósmicos. O estado de consciência plena envolve a presença,
a atenção, a vigilância, o cuidado e a coragem de não fugir do instante presente, enfim,
envolve o contato com a própria energia de vida. Paradoxalmente, este estado de presença só
é possível através da abertura de possibilidades imaginativas e de caminhos novos que a
situação presente pode oferecer.
103
Homo sapiens amans é
um termo usado por Humberto Maturana (2001).
198
Percepção e imaginação, presença e ausência, forma e movimento, são os pares de
opostos necessários ao tônus vital, em especial, o impulso criativo de lançar-se a uma vida
nova. O que se espera das pessoas é que elas transformem a maneira de ver o mundo e a si
próprias, como comentou Sylvie: “É impressionante a transmutação, as mudanças de vida
das pessoas, a felicidade que as pessoas encontram. Eu me sinto assim como uma pessoa
catalizadora”(ver apêndice 4.1.).
199
III. Do Oeste ao Leste: da busca existencial ao movimento poético
104
- a criação
artística e do espetáculo Gestos Cantados
APLICAÇÃO ESPETACULAR
da Terra ao Fogo
Figura 37:
Dança do Salgueiro – Pieter Brueghel. (1634)
105
Após a escuridão do Oeste, vem a luz do Leste, cujo trajeto foi marcado pelo
acolhimento e respeito aos impulsos e ansiedades pessoais, para dar conta da amplitude de
dados coletados, que se tornaram folhas secas alimentando o elemento fogo da existência. A
energia criada pelos movimentos sonoros da dança sempre retorna com a força de uma
combustão interna, inclinando-me para a ação e para a transformação a um novo estado
corporal de ser, incluindo o estado de “não ser”.
A chegada ao Leste neste estudo é conseqüência da tomada de consciência da
profundidade do Oeste, cujos ensinamentos me motivaram a levar adiante a criação artística,
a partir do corpo singular e do corpo coletivo, e baseada no sentido do profundo feminino,
uma vez que o objetivo do princípio do feminino é a totalidade. Apenas quando se descobre
o significado do feminino é que se pode fazer a união entre o masculino e o feminino. Em
104
Poético: adj. 1. Relativo a ou próprio da poesia 2. Que tem poesia, que tem qualidades, atmosfera, encanto,
ou características da poesia 3. Que produz inspiração, inspirador. Etimologia: poietikós ‘que tem a virtude de
fazer, de criar, de produzir, próprio para fabricar, inventivo, engenhoso. (dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa). Para o filósofo Paul Ricoeur (apud Felício, 1994), o símbolo possui três dimensões concretas: a
cósmica, a onírica e a poética. Esta última seria a linguagem mais concreta de todas.
105
Foto encontrada no site www.semeiadanca.com.br.
200
relação ao trabalho do artista cênico, observa-se que quanto mais profundo ele vai ao
interior de si mesmo (Oeste), mais universal ele se torna e vai para o lado de fora (Leste).
Após o aterramento em portos mais seguros da historiografia cênica, na qual o ritual
artístico se insere, e com os sentidos para a exterioridade do Leste, pude reiniciar o percurso
por todas as direções juntamente com os dois grupos de alunos-artistas, cujos processos de
preparação corporal e criação artística poético-ritualísticos estão descritos nas seções 3.2. e
3.3.
Os rituais observados por mim no trabalho de campo foram em parte realizados
durante o processo criativo em Gestos Cantados e na disciplina Técnica de Corpo para a
Cena (TCC - II), os quais tiveram a ambiência em estúdio. A construção de novos rituais
junto aos grupos deu-se a partir da reunião entre os princípios que fundamentavam os rituais
e os princípios labanistas. Para isto, foi necessário considerar algumas abordagens corporais
de voz e de movimento sistematizadas e pesquisar paralelamente algumas abordagens
corporais complementares, as quais serão especificadas mais adiante (vide seção 3.1.4.).
Para o momento convém destacar os pontos principais presentes nos sistemas xamânico e
labanista.
3.1. Sistema Xamânico e Sistema Laban: abordagens complementares
Na experiência cênica com atores-bailarinos as duas abordagens utilizadas foram em
tudo complementares, a saber, os princípios rituais e os princípios da arte de movimento de
Laban, que reescrevo a seguir.
3.1.1. Princípios Rituais:
a intenção ou propósito que se busca alcançar;
a criação de um espaço sagrado;
o significado trazido por cada direção - sul, oeste, norte, leste e centro -, à medida
que caminhamos por elas durante os rituais;
a qualidade que cada elemento da natureza - água, terra, ar e fogo - possui quando os
integramos em nosso ser;
a união dos reinos humano, vegetal, mineral e animal na compreensão das nossas
relações e entre nós e o cosmos.
a diversidade dos sons e ritmos musical-corporais das tradições orais;
as diferenças de história e missão de vida de cada pessoa do grupo;
a comunhão e a harmonia do coletivo;
a celebração (o trabalho)
o agradecimento
201
3.1.2. Princípios da Arte de Movimento de Laban
Em resumo, três aspectos da arte do movimento de Laban foram enfatizados em ambas
as montagens ritualísticas: 1. Fatores expressivos a partir das dinâmicas de movimento e
ações dinâmicas básicas, associados aos elementos da natureza (FERNANDES, 2002); 2.
Relação sonoridades/vocalidades/movimentos integrativos (BONNIE BAINBRIDGE
COHEN, 1993; BARTENIEFF, in: FERNANDES, 2006); 3. Partilha de conteúdos, gestos e
movimentos da memória corporal na criação em dança-coral e em dança-teatro (ARRUDA,
1988, FERNANDES, 2000)
.
Esta reunião entre os princípios rituais e os princípios artísticos aconteceu sem esforço,
uma vez que não havia pontos de incompatibilidade entre as duas abordagens. No entanto, o
mais importante ponto de interseção entre ambas está no fato de considerar o movimento
interno de cada um, as mudanças motivacionais, as mudanças de padrões internos
(repadronização), e não apenas o movimento dançante-gestual-musical-teatral.
Os princípios que apresentaram relação mais implícita foram os elementos naturais
(rituais) e os fatores de movimento (LABAN), as direções (rituais) e a harmonia espacial
(LABAN). Começamos a introduzir os elementos com as caminhadas de Samuel Lewis
(DPU), os caminhares com cada elemento/ respiração terra, água, fogo e ar, para depois
explorar a relação entre os elementos da natureza e os fatores de movimento, a partir da
seqüência de ações de expressividade, com as diferentes dinâmicas explicando os fatores
(peso, fluência, tempo e foco). Após cada elemento ser associado às direções, estas puderam
ser referenciadas no corpo através da noção de espaço pessoal e espaço geral (vide seção
1.7.).
Apesar de toda complexidade técnica do Método Laban, utilizado como padrão
internacional de análise de movimento (FERNANDES, 2006), em Técnica de Corpo para a
Cena (T.C.C. II) e em Gestos Cantados, os aspectos labanianos utilizados contribuíram mais
para sugerir e motivar as minúcias de movimento pessoais, nos processos onde a técnica e a
criação estavam imbricadas, do que para análises precisas e detalhadas das cenas. Como a
intenção era tornar ritualístico todos os momentos do processo, o mais importante era que
cada um pudesse criar a partir dos estados diferenciados pelos quais estava passando ao
longo dos ensaios, e que a cada vivência ritual, o corpo se tornasse um “estar corpo”, um
202
estado de corpo que muitos artistas cênicos conheceram ao experimentar movimentos a
partir de uma abordagem labanista, a qual permite que se instalem processos de pesquisa
pessoal, treinamento e criação de forma lúdica e flexível.
Em termos vocais, a referência aos princípios musicais foi fundamental na medida em
que havia a necessidade de praticar as dinâmicas em termos de volume, extensão, timbre e
melodia para cada cena falada ou cantada. Temos como exemplo de associação entre os
fatores de movimento (LABAN), os elementos naturais e os elementos musicais:
Como esclarece Maria Cecília Lacava (2006, p. 169), os dois campos significativos de
estudo estabelecidos por Laban, o do “esforço” e o da “harmonia espacial”, são intimamente
relacionados. Assim, tomei a liberdade de sobrepror neste quadro a sub-categoria da
expressividade ou de esforço denominada “foco” com a categoria “espaço”, da ordem da
harmonia espacial, no que diz respeito às suas relações com o elemento musical “altura”. Na
música, a criação de melodias lida com o parâmetro “altura”, isto é, ondulações que oscilam
espacialmente, do som mais grave ao som mais agudo. Em termos de movimento, isto pode
ser realizado no âmbito do espaço individual e total.
Elementos
naturais
Terra
firmeza,
interiorização,
enraizamento
Água
confiança
fluidez
integração
Fogo
transformação
decisão
ação
Ar
clareza
comunicação
liberdade
Elementos do
Movimento
Peso Fluência
Tempo Foco
106
Elementos da
Música
Intensidade
Timbre
Duração Altura
Figura 38: Quadro de associação entre os fatores de movimento (LABAN), os elementos
naturais e os elementos musicais
Outros princípios de igual importância em ambos os sistemas (ritual e cênico) e de
relação mais explícita foram: os conteúdos das histórias de vida e das memórias corporais
106
Convém esclarecer que a sub-categoria ou fator Foco é diferente da categoria Espaço, que reúne todas as
qualidades expressivas (Alto-leve, Baixo-forte, Frente-desacelera, Atrás-acelera, Direita/fechando com braço
direito direto, Esquerda/abrindo com braço direito indireto, troca qualidades ao trocar braço que inicia o
movimento). Espaço não se encaixa somente com ar. O Espaço inclui todos os alementos, inclusive o Centro
(éter).
203
(ambos os sistemas), a harmonia do coletivo (ritual) e a harmonia da dança-coral (LABAN),
as canções motivadoras (rituais) e a exploração de corpo/sonoridades/vocalidades
(LABAN/BONNIE BAINBRIDGE COHEN), sendo que esta última relação teve
importância fundamental durante todo o processo de preparação e criação cênica. A partir
desta relação, vários princípios rituais foram contemplados, com ênfase na combinação entre
canto e movimento encontrada no trabalho de campo anterior, a qual se tornou o fio
condutor da criação coletiva artística, cujos sons e movimentos de antigas tradições
incluíram aqueles provenientes das memórias corporais dos atores-dançarinos.
No que tange a relação entre a harmonia Espacial e os pontos cardeais rituais, vale
salientar que no espetáculo usamos a forma do Octaedro e a seqüência dos 6 pontos (CRUZ
DIMENSIONAL) como na Escala Dimensional de Laban, embora fazendo uma associação
diferenciada (vide cena 3, capítulo II). Porque na Cruz Axial do Corpo (FERNANDES,
2002, p. 170) em Laban, o ponto Acima é o Norte; Abaixo, o Sul. para a noção de
espacialidade ritualística, o Norte está à frente do corpo, considerando-o em seu eixo
vertical, e o Sul, nas costas.
3.1.3. Quadro de relações ou de correspondências
O quadro abaixo apresenta as associações encontradas entre princípios rituais e
princípios corporais, aplicadas ao longo dos processos cênicos. Além das combinações entre
os fatores de movimento, os elementos musicais e os elementos naturais do quadro acima,
outras associações puderam ser feitas, a partir de categorias estudadas por autores como
Jung, Bonnie Baindbridge Cohen e anônimos das práticas tradicionais rituais.
Direções Elementos
Estações chacras Elementos
do som
musical
Movimentos
Ou
Princípios
Fatores de
movimento
Qualidades
Sul
Cor vermelha
Água Primavera Timbre Fluidez
Verdade
Beleza
progressão,
emoção
Fluxo Emoções da
Criança interior
Sentimento
(Jung)
Sistemas
circulatório e
urinário (B. B.
Cohen)
Oeste
Cor preta
Terra Outono
Básico
Intensidade
Enraizamento
Densidade
Permanência
determinação,
Peso Profundo
feminino
Tato/ músculos
Sensação
(Jung)
204
sensação Sistema
esquelético-
muscular (B. B.
Cohen)
Norte
Cor branca
Ar e
Som
Inverno
Laríngeo
e
frontal
Altura Expansão
Comunicação
investigação,
pensamento
Espaço Valores e
Conhecimentos
do ancião
Pensamento
(Jung)
Sistema
Nervoso
(B.B.Cohen)
Leste
Cor amarela
Fogo e
Luz
Verão
3º e 4º
Duração Expressão pela
Ação
decisão,
intuição
Transformação
Iluminação
Amor
Tempo Profundo
masculino,
força,
determinação
da águia
Intuição (Jung)
Sistema
Endócrino
(B.B.Cohen)
Centro Todos Todos Harmonia Simultaneidade
Liberdade
Figura 39: Quadro de relações ou de correspondências
Aqui temos uma questão acerca da diferença entre as associações expressividade-
espaço em Laban e nos rituais pesquisados, uma vez que, em LMA, o peso é associado com
a dimensão vertical (alto/leve, baixo/forte), o foco, com a dimensão horizontal
(esquerda/direto, direita/flexível ou indireto ou esquerda/flexível, direita/direto), o tempo
com a dimensão sagital (frente/desacelerado e atrás/acelerado). Esta diferença se pelo
fato de Laban organizar tudo ao redor do corpo do dançarino e da cinesfera, enquanto que
nas DPU, por exemplo, se organizam a partir dos pontos cardeais e do corpo em relação a
elas. Então o resultado foi uma adaptação de ambos os sistemas, correspondendo apenas em
parte às padronizações do Sistema Laban, que muita variação nas abordagens
simbólicas dos rituais.
3.1.4. Abordagens corporais de voz e de movimento utilizadas
Serão explicitadas a seguir as abordagens corporais que foram selecionadas para os
processos criativos, algumas conhecidas por mim, mas agora tendo um maior
aprofundamento, como é o caso de aspectos da Educação Somática e da Dança-Coral, outras
que vieram a partir da investigação da relação corpo-sonoridade, com as quais as técnicas
rituais pareciam ter afinidade.
Neste caso, foi necessário pesquisar, por exemplo, a relação
205
entre o canto e o movimento na música orgânica (OLIVEIRA, 1996), a descrição do
trabalho feito com canções tradicionais na Arte como veículo (GROTOWSKI, 1993), e
ainda o trabalho com os chacras (ANDREWS, 1996).
Em se tratando da Arte do Movimento em Laban, posso destacar os seguintes
aspectos: O princípio da seqüência dilatada comuns à Dança-Coral e à Dança-Teatro (vide
seção 1.7.1.), as qualidades expressivas a partir das ações corporais básicas, harmonia
espacial, memórias do corpo da Dança-Teatro, Princípios de Organização Corporal em
Laban/Bartenieff, a sonorização com as vogais em B. B. Cohen e o princípio de
repadronização em Peggy Hackney. Estas abordagens foram tratadas no capítulo I .
Em Feldenkrais, utilizamos o exercício do relógio imaginário com as rotações
pélvicas, além dos princípios de combinação entre respiração - voz postura. No que tange
às sensações e efeitos dos sons no corpo, não podia deixar de ser abordada a relação do som
com os chacras e a ativação das respectivas regiões do corpo. A partir daí fizemos exercícios
onde puderam ser exploradas as associações entre: os chacras (7 regiões do corpo) e as notas
musicais; as partes do corpo e as vogais U, O, A, E, I, resultando em improvisações de
melodias livres a partir do movimento em cada parte do corpo
107
.
Na área de voz, os exercícios de técnica vocal de canto-coral consistiam em
respiração/sonorização e vocalizes, realizados sempre com movimentos e mudanças
posturais. A dinâmica musical foi explorada a partir de vocalizes e diferentes tonalidades
das canções (altura), da exploração das regiões vocais naturais e impostadas (timbre), dos
diferentes andamentos nas danças-músicas da paz (duração) e na variação de volume e
potência vocal nas canções (intensidade). A introdução aos sons e timbres orgânicos e
percutidos permitiu uma liberdade de expressão vocal e rítmica, sem a exigência de afinação
e impostação, de maneira que as canções xamânicas puderam ser vivenciadas com sons
guturais a princípio. Exercícios como a estrela do mar, ou o canto das vogais citados por
Oliveira (1996), contribuíram para que cada um encontrasse o máximo de sua potência
vocal. Em resumo, posso citar algumas atividades realizadas a partir da relação corpo-
sonoridade/vocalidades, algumas situadas na fronteira entre técnica e criação, presentes em
ambas as fases experimentais Já as construções de rituais a partir destas técnicas serão
descritas quando da sua relação com os grupos cênicos.
107
Ver imagens de exercício com as vogais no anexo 9 – processo em T.C.C. II.
206
Respiração abdominal e intercostal/ aquecimento vocal de técnica vocal: Fry (exercício de
extensão vocal para o grave) e falsete (registro de cabeça agudo)
Vogais /sonorização com movimento de braços (Bonnie B. Cohen) - U, O, A, E e I. Inicia
pela vogal “U”, que aumenta a ressonância bucal, abaixando a laringe e termina com a vogal
“I”, que permite a projeção da voz.
Voz salmodeada: Hum – Mô – ô / hum muá – á (trabalha melodia, inflexão vocal,
articulação, controla a saída do ar)
Vocalizes si i ô i - ô i (com intervalos de terça) dó-mi-sol-mi-sol-mi-dó
(emissões em escala do grave para o agudo)
Ostinato: repetição de célula rítmica ou melodia, enquanto que outra parte do grupo faz outra
melodia derivada da primeira.
Aquecimento em pé, com seqüências de balanços, com movimentos de ombros, braços e
arcos de coluna para frente, trás e lados (expansão e recolhimento). Sons que acompanharam
os movimentos: SSSS, CCHHH (sons fricativos que trabalham o diafragma, pois não vibram
as cordas vocais), HUUUMM (ressonância comum que evita o som gutural – de garganta)
Jogos sonoros e criativos: Apresentação de cada um (nomes com gestos); Apresentação dos
nomes com gestos + sons orgânicos; sonorização do movimento; conversas em língua
inventada; arranjo com timbres orgânicos (Escravos de e Hey ya na na); sons tribais/
massagens sonoras; Composições individuais a partir das memórias do corpo e da história do
nome; jogo de contraste falado e cantado (do sussurro ao grito do pianíssimo ao
fortíssimo).
Variações de dinâmica nas canções xamânicas/DPU: gradações dinâmicas - da mais fraca
para a mais intensa (do suave (piano) à plena voz (forte)
108
Relação do som com os chacras (ANDREWS, 1996) - mover as partes do corpo e massageá-
las, solfejando as notas musicais emitindo o som das vogais.
Improvisação de seqüência com as vogais e movimento de verticalização (subida a partir do
chão) -
níveis 0,1,2,3
Ritmo- Dalcroze- 8,8, 4,4,2,2,1,1,1,1 e acentuação em tempos diferentes 1,2,3,4
Fundamentos de Bartenieff (In FERNANDES 2002): ex 1. deitados na posição do “Xis” até
rolar e ficar sobre os joelhos (irradiação central e metade do corpo). Ex 2. deitados no chão
com movimentos homólogos de elevação da coxa com sons, transferência frontal da pélvis,
conexão cabeça-cauda, e vibração de bacia, pernas e braços, até chegar na seqüência de
balanço com meio rolamento para trás e na volta alongamento na posição sentada, com o
acompanhamento do som das 5 vogais. Balanço para trás e para frente, agachando e
chegando na posição vertical de pé.
Harmonia Espacial (Laban, por Ciane Fernandes) – tetraedro, cubo, icosaedro
Respiração Bartenieff em duplas com as vogais e Movimento Genuíno ( por Andréia Reis)
Técnica de chão de Pilates (por Iêda Dias)
Integração duplas massagem por contato, pelo peso, pelo rolamento de um corpo sobre o
outro
Ações corporais básicas/ ações de expressividade (flutuar, socar, deslizar, açoitar, pontuar,
torcer, espanar, pressionar)/ fatores (Peso, Foco, Tempo e Fluência) e dinâmicas de
movimento/gestos e deslocamentos
Improvisação: caminhos retos e redondos, movimentos circulares e angulosos Investigação e
composição com movimentos retos e redondos.
Danças-corais - criadas a partir das investigações nos planos espaciais, das direções, dos
cânticos e danças de roda (DPU e DCS).
Micro-rituais: talking stick, purificação com a sálvia, queima das cartas pessoais.
108
As convenções de intensidade são: ppp molto pianíssimo, pp - pianissimo, p - piano, fp - mezzo-forte, f -
forte, ff - fortissimo, fff -molto fortíssimo.
207
3.2. PRIMEIRA FASE: Técnica de Corpo para cena II (T.C.C. II)
Descrevo aqui alguns momentos do processo ocorrido durante a Disciplina Técnica de
Corpo para Cena II, no semestre 2006.2, na sala 5 da Escola de Teatro da UFBA, que teve
como objetivo desenvolver uma dramaturgia para o corpo cênico, com ênfase na relação
entre o canto e o movimento presentes nas matrizes estéticas de dança-música de várias
tradições. Os movimentos cantados e falados foram utilizados na preparação corporal e nos
processos investigativos e poéticos, cujo resultado incluiu os textos reelaborados a partir da
história de cada participante.
Quando iniciei as aulas na disciplina TCC II como estágio de docência, ainda não sabia
que iria haver uma segunda fase no ano seguinte, até o momento da inscrição e aprovação
no programa do MEC para a montagem de Gestos Cantados, no final do semestre letivo.
Esta primeira experiência serviu para amadurecer vários aspectos da segunda fase, inclusive
pudemos aproveitar uma cena elaborada a partir dos conteúdos subjetivos da história de vida
de cada um.
Durante esta primeira experiência em preparação corporal e criação com sete alunos-
atores
109
(cerca de 30 encontros de 3 horas) houve momentos de grande motivação poética e
de comunhão e integração entre o grupo, mas também momentos de desestímulo geral com
a proposta, em parte pela ansiedade por um resultado cênico hermeticamente fechado. A
ânsia por visualizar um produto objetivo muitas vezes nos tomava de assalto, em detrimento
dos processos rituais inacabados e analógicos. Muitos dos exercícios de improvisação foram
levados para a montagem final, (apresentada na sala cinco para alunos da Escola de Teatro),
que se configurou mais como uma colagem e demonstração dos resultados encontrados em
cada investigação sonoro-gestual.
3.2.1. Sistematização de conteúdos
Os conteúdos programáticos foram grosso modo divididos em três blocos:
O-corpo-de-memória: Consciência e presença corporal
Busca da expressão individual a partir da memória corporal de ações básicas
109
Bernardo Del Rey, Bruno Fagundes Correia, Eliana Conceição de Oliveira, Heloísa Jorge Pimenta, Luis
Daniel Santos Souza (Daniel Calibam), Diana Oliveira dos Santos e Vinícius da Silva Lírio.
208
Ritos de passagem: investigando as memórias do corpo
Sons, melodias e canções trazidas e elaboradas pelo grupo
Cânticos e danças de roda – improvisação e releitura
O corpo-som-artista: O corpo transforma sua história na construção da dramaturgia cênica
Narrativas pessoais sonoro- gestuais na pesquisa artística
Criação coletiva, composição final e apresentação
A característica de experimentação sonoro-gestual foi predominante e o fio condutor
no trato com este pequeno grupo de alunos-atores. Por exemplo, um dos jogos sonoros, no
qual todos falam simultaneamente, cada qual na sua língua inventada, bobagens,
incoerências, gerou o coro da cena da apresentação individual. O jogo de sonorização do
próprio movimento e o do outro, facilitou a expressão de coros sonoro-gestuais,
acompanhando cenas individuais.
Ao longo do processo, o que parece que foi mais significativo para todos foi a
ressignificação das memórias corporais e a história de cada nome próprio. As memórias da
infância, ligadas à direção Sul e ao elemento água, despertaram um senso poético sonoro-
gestual de maneira que geraram cenas completas, nas quais os movimentos e sons das
histórias pessoais foram enriquecidos pela intervenção do coletivo, que acompanhava em
coro, formando uma composição integrada. Embora estas memórias tenham sido
despertadas de maneira ritualística, parece que os princípios rituais não despertaram
interesse no grupo enquanto conteúdo e conhecimento corporal.
Quanto aos elementos rituais mais explícitos utilizados, como por exemplo, a
colocação de um micro altar com uma vela, no centro do círculo, especialmente durante
alguma dança de roda, para harmonização e concentração do grupo, parecia algo muito
distante ao grupo. Da mesma forma, o princípio de mentalizar uma intenção para ser
realizada durante o curso talvez não tenha sido compreendido, e, portanto, não levado em
consideração como importante numa aula de técnica corporal.
Não obstante, todos os exercícios de preparação corporal, embora trabalhados em
continuidade, no sentido da não-separação entre técnica e criação, apenas ganharam sentido
durante as elaborações poéticas e a partir das emoções trazidas pelas memórias. É fato que
as memórias foram despertadas através dos princípios rituais, de movimento ou de dança-
coral -, que quando combinados, davam a qualidade necessária à investigação sonoro-
gestual (vide item 1.9., cap. I).
209
A experiência de trazer as qualidades das danças (DPU e DCS) para o processo cênico
foi interessante, na medida em que elas trazem princípios corporais de integração, como
concentração, repetição, centramento entre os eixos do corpo, unidade entre ritmo, melodia e
harmonia. Em termos de princípios rituais, o processo de experimentação se beneficiou das
danças-músicas (DPU) e também das danças de roda, cujas músicas são tocadas em CD
(DSC), de maneira que cada uma delas trazia a qualidade necessária a ser trabalhada no
momento. Por exemplo, ao requerer do grupo que viessem à tona suas memórias de infância
e a criança interior, as canções utilizadas foram aquelas que tinham relação com o elemento
água, com as emoções, a flexibilidade e a direção sul: Shanoon”, “O rio está fluindo...” e
a música Hopi (“aw we oh wo wo we ya na”), cujo ritmo alegre acompanhou a
improvisação das brincadeiras de criança. As danças (DPU) B’reshith, Shîmê-nîy kha-
chôthâm e Gopalá (apêndice 1) foram utilizadas para despertar respectivamente a
conectividade, a interiorização e a descontração. La Illahá Illa lláh (apêndice 1) e Ram Nam
Pranam Dance for Partners - Sri Ram, Jai Ram (anexos 3.1. e 4.5.) foram utilizadas para
motivar o respeito mútuos e a comunhão entre o grupo.
As lembranças da infância, traduzidas em atos do corpo, traziam conteúdos dolorosos
e prazerosos, como a morte do pai, a guerra no país de origem, doenças e isolamento, surras
do pai e da mãe, o ato de chupar dedo, brincadeiras durante o banho, vestir as roupas do pai,
etc. Duas canções foram utilizadas como bálsamos para as feridas despertadas: o “Canto de
Cura” (apêndice 1) da criança interior e a dança da paz “Kwan Zeon Bosai”(anexo 4.3), que
também tem a finalidade de acolher e embalar a própria criança. No entanto, poucas
lembranças corporais foram levadas para a composição cênica. Praticamente apenas cenas
construídas a partir das histórias dos nomes de cada um foram desenvolvidas e mantidas.
Algumas danças (DSC), entre elas L’ Allouette”, “O Sábio e o Tolo”, “Dente de Leão”,
“Tiene”, A Rosa do Rabino” e Wedding Dance” (anexo 5) foram utilizadas para
despertar o humor, a descontração e a confiança necessária à socialização das histórias
pessoais com o grande grupo.
Em relação às investigações e composições de movimento, a associação entre os
elementos (água, terra, fogo e ar) e os fatores de movimento (fluência, peso, tempo e espaço
ou foco) aconteceu de maneira gradativa. Iniciando com as caminhadas com cada elemento
(terra, água, fogo e ar), foi introduzida a DPU dos quatro elementos,“Hey ya na na” (anexo
3.1.) e por fim, os Fatores de Movimento. Estes foram introduzidos inicialmente pela
associação entre três fatores, ou seja, a partir da seqüência de movimentos com as diferentes
210
dinâmicas (flutuar, socar, deslizar, açoitar, pontuar, torcer, espanar, pressionar), chegando à
investigação de movimentos a partir da combinação de dois fatores e seus respectivos
elementos naturais correspondentes para a composição em duplas.
A respeito disto, as composições, realizadas com o acompanhamento da música do CD
Mawaca (faixa 4), foram bastante expressivas. A dupla - Calibam e Bruno - ficou com Peso
e Tempo, e mostrou a firmeza da terra e a decisão do fogo, numa seqüência de deslocamento
com foco direto e fluxo controlado, sendo que o aspecto cômico prevaleceu. A dupla -
Heloísa e Diana - ficou com Espaço (Foco) e Peso, e sua seqüência mostrou a liberdade e a
comunicação do elemento Ar (espaço) e a precisão do Fogo (tempo), tendo também um
aspecto cômico presente. A dupla - Andréia e Eliana - ficou com Espaço (Foco) e Fluência,
atuando em várias direções, apresentando uma a qualidade multifocal e sensual do espaço
indireto, aliada à flexibilidade da água.
A compreensão dessas qualidades expressivas foi importante para a investigação,
improvisação e composição cênica poética. As combinações dos fatores geram diferentes
dinâmicas de movimento e diferentes estados expressivos. Em Mota (2006, p. 67), “Os
estados expressivos apresentam quatro variações possíveis na sua combinação entre dois
fatores e cada uma dessas combinações recebe uma denominação específica”. O Estado
Rítmico combina os fatores de Peso e Tempo, o Estado Onírico combina Peso e Fluxo, o
Estado Estável combina Peso e Espaço, o Estado Remoto combina Fluxo e Foco, o Estado
Móvel combina Fluxo e Tempo e o Estado Alerta combina Tempo e Foco. As duplas,
portanto, experimentaram respectivamente os estados rítmico, estável e remoto.
Momentos de integração com alunos de outra turma (T.C.C. I) foram bastante
enriquecedores, pois mostrou o quanto a força de um grupo grande (mais de 16 alunos)
permite aflorar a energia criativa para as danças-corais expressivas. Dois momentos foram
significativos: o primeiro aconteceu a partir do aquecimento e relacionamento entre as partes
do corpo e as vogais, o segundo a partir da associação entre o gesto e o nome próprio, que se
expandiu para frases textuais dramáticas. Vale salientar que as apresentações tiveram um
intenso grau de comicidade, pelas diferentes maneiras, por vezes estranhas em que o som da
voz era associado aos movimentos do corpo.
211
Para Dalcroze, para cada som, existe um movimento análogo e vice-versa. Esta
também é a compreensão das abordagens da dança-teatro, Laban/Bartenieff e Bonnie
Bainbridge Cohen. Criar som a partir do movimento predominante em uma parte do corpo
deve gerar um som análogo. E a combinação entre sons oriundos de diferentes partes do
corpo produz inúmeras possibilidades de sensações e imagens. Nesse sentido, os sons
mântricos das canções motivaram movimentos e gestos com qualidades específicas, em
especial de uma flexibilidade e suavidade, ou força e fluência livre. os movimentos e
gestos vocais explorados individual e coletivamente, demonstraram mais agressividade,
precisão, firmeza ou força, além da velocidade.
3.2.2. Roteiro da montagem em Técnica de Corpo para Cena II (ver imagens no DVD
no anexo 9)
Data e local: 7 de dezembro de 2006 / sala 5 – Escola de Teatro
Músicas cantadas: Trecho de meditação árabe, sura 1 do alcorão “Mâliki yaumadîn”, Shanoon, Hey
ya na na (quatro elementos), Yahayy Ya Haqq, Canto para Oxum
Músicas tocadas: CD Mawaca (faixa 4), CD Daniel Namkhai - CD filhos do Vento (faixa 1)
Instrumento de percussão: tambor
Seqüência
-Dança de roda com o a repetição da frase “Mâliki yaumadîn” (que alude ao discernimento, ao
juízo)
110
-Contato entre o grupo preenchendo os espaços vazios ao som das batidas do tambor
-Movimento de deslocamento do grupo em círculo frontal no plano horizontal (Sonorização a partir
do som repetido: “Hey”)
-Diagonal com movimentos para cada direção (norte-frente, sul- trás, leste- direita, oeste- esquerda,
em cima e em baixo): música – “Shanoon
-Apresentação individual (som do nome + movimento, som do movimento) acompanhada do som
“caótico” do grupo.
-Deslocamento simultâneo do grupo para as quatro direções (frente, trás, direita, esquerda) a partir
do impulso com as partes do corpo: Seqüência cabeça, pélvis e tronco com som de “Hey”
-DPU- Hey ya na na (quatro elementos)
-Seqüências individuais criadas a partir da escrita do nome pessoal:
1. Daniel Calibam deitado sonoriza seu próprio movimento. Grupo deitado ao redor, responde cada
som-movimento de Calibam, deitando e sentando, passando pela posição do Xis (Bartenieff)
2. Solo Eliana cantando um canto para Oxum e o coro responde com movimento de rolar
-DPU: Yahayy Ya Haqq (rudimentos da dança)
Seqüências individuais criadas a partir da história do nome pessoal:
Vinícius, Heloísa e Bernardo (um de cada vez conta parte de sua história, com gesto e palavras e
sons, com o grupo acompanhando em coro de som e movimento)
-Seqüências criadas a partir das dinâmicas (fatores e elementos naturais): Bruno e Calibam (CD
Mawaca - faixa 4) e grupo em duplas na cruz dimensional de Laban
110
Ver mais sobre o significado das orações corporais em Douglas-Klotz (1996).
212
-Heloísa e Diana – trilha elaborada por elas, com o grupo interferindo com ruídos e conversas.
-Dança-coral: improvisações e variações em torno de uma seqüência juntando os movimentos
pessoais e coletivos (Daniel Namkhai - faixa 1)
-Dança de Roda: O Sábio e o Tolo, com a participação da platéia.
3.2.3. Avaliação Final – Técnica de Corpo para Cena II
Após a apresentação para alunos que estavam na escola no momento (sem convite
prévio), que durou 40 minutos, convidamos a platéia para dançar conosco e alguns da minha
turma sugeriram a dança O Sábio e o Tolo, a qual, pelo seu aspecto divertido, quebrou a
sobriedade da apresentação da montagem final. Posso dizer que me surpreendeu o empenho
dos alunos em mostrar um trabalho, construído com dificuldades. Neste dia aconteceu uma
afinação geral, um estado de espírito aberto e fluente para a construção de uma harmonia
estética e poética.
A finalização foi feita com o ritual do talking stick ou ‘bastão da fala’, quando cada um
pôde se posicionar sem ser interrompido e fazer sua avaliação do curso, usando a linguagem
do sentimento. Foi um momento muito bonito, de muita franqueza e sinceridade. Nesse dia
estava confiante de que saberia conduzir um momento tão precioso de despedida. E assim
aconteceu, com a ajuda do talking stick, cujos galhos têm um formato de uma letra F”. “F”
de fé, fogo, força, felicidade, fluência, franqueza, firmeza, fronteira, feminino, finalização e
formação.
Pedi a cada um que falasse de sua experiência, dos pontos positivos e negativos do
processo. Para alguns houve falta de estímulo por parte de todos, pois não se entregaram
totalmente, mas se esforçaram para que houvesse um resultado cênico. Para outros, apesar
do desestímulo com o trabalho, acreditam que adquiriram muito conhecimento. Duas alunas
confessaram apenas ter compreendido minha proposta no último dia, quando se sentiram
alegres e bem humoradas, em parte pela minha postura de paciência e acolhimento em
relação à variação de seus humores. Uma delas considerou o processo válido e vai tentar
levar para a vida, para o seu trabalho como artista. Outro aluno constatou que não
conseguimos estabelecer uma sintonia no processo do grupo para que ocorresse um
resultado satisfatório. Por outro lado, em termos pessoais, o processo foi interessante: “eu
sei que muita coisa que aprendi aqui eu vou levar para minha vida e que os rituais podem
ajudar a desestressar” (Bernardo Del Rey).
213
Compreendo que a falta de estímulo deveu-se ao fato de que o ritual foi compreendido
pela maioria com sendo algo religioso, causando resistências e estranhamento todas as vezes
que utilizava as Danças da Paz baseadas nas antigas tradições para harmonizar o grupo. Um
aluno (Vinícius Lírio) comentou que não conhecia os rituais e como tinha sua crença, sua
religião, por isso não se entregou, e, portanto, o espiritual não chegou profundamente
durante as aulas. Até mesmo quem estava acostumado a participar de danças-meditação,
considera uma questão complicada levar o ritual para o trabalho de ator:
Apesar de o teatro ter nascido da religião, acho complicado trazer a
religiosidade para a universidade, pro trabalho de ator. A sala de aula aqui
não combinava com a obrigação de cumprir a disciplina. Mas para mim
foi muito importante, muito bom. Em alguns momentos foi penoso porque
gosto de muita concentração e isso não aconteceu.
(Bernardo Del Rey).
De fato, as dificuldades com esta turma foram enormes. Era uma turma pequena, do
currículo antigo do curso de Interpretação, com pouca motivação para trabalhos físicos,
onde o corporal fosse o fio condutor. Além disso, havia uma ingenuidade de minha parte
quanto à abordagem holística do corpo, quando da ênfase na abordagem das Danças da Paz
para concentrar o grupo. No entanto, no decorrer das aulas, justamente a utilização de
técnicas de integração corporal que visam a “repadronização” e de harmonização pessoal e
coletiva (através das DPU, em especial
111
) proporcionou uma mudança interna, pessoal e
coletiva. O fato de ter despertado a energia vital de cada pessoa, manteve o grupo e permitiu
a superação de parte de suas resistências para a criação poética. Pode se falar então de uma
ritualidade abrangente, de autoconhecimento, e também de mudança de padrões, porém
ainda não vista com bons olhos pelos atuantes, que tendem a não enxergar o corpo artista
como um corpo – integral (mente, espírito, corpo físico, psique).
Assim, o resultado cênico da primeira fase de experimentação ritual em TCC parece
ter sido satisfatório, pelo fato de ter havido, finalmente, uma entrega por parte do grupo à
proposta, embora não tivesse muito clara para todos, como observou Gilmar Lopes, que
estava filmando:
A magia do encontro, as marcações teatrais são muito técnicas, marcadas
no tempo, e a magia não, é atemporal, é uma coisa exclusiva, pode ser que
aconteça apenas uma vez, ou nunca acontecer. Para fazer uma
apresentação igual àquela, em que as pessoas harmonizaram, todos
acharam que evoluíram, que se sentiram bem. É preciso que as pessoas
111
Mais algumas DPU utilizadas: Humata Hukhata Huvarshta, Zoroastrian Sun Dance, Ganesha, Gopalá e
a Dança-música baseada no Trecho da carta do chefe indígena Seatle (Cada parte da terra é sagrada pro
meu povo). Ver todas as letras no apêndice 1.
214
entendam que essa integração vem da magia do grupo, pelo menos o
grupo teve esse momento, mas nem todo grupo tem esse momento
mágico, que é trabalhado com a força do xamanismo. Isso é uma força
que atua dentro do xamanismo, que também aconteceu dentro desse
grupo. As resistências sumiram naquele momento, o grupo estava por
inteiro, cabe a eles pesquisarem mais, explorarem mais essa magia, que o
xamanismo trabalha justamente isso, o espaço fora-do-tempo, a sincronia
do grupo. Para haver uma apresentação como aquela é preciso que o
grupo esteja no mesmo nível, as pessoas estarem identificadas com as
outras, cada uma no seu momento, na sua forma de ser, para a integração
funcionar e dar abertura à paz. No princípio estavam as questões pessoais
de cada um, a falta de confiança na condução, a busca da fama, e de
repente encontram uma coisa diferente, uma coisa que eles não sabiam,
não entendiam, que foi além da questão do aparecer, do estar em cena,
situada na força do coletivo.
De fato, a apresentação da montagem de encerramento da disciplina T.C.C. II pode ser
considerada como um momento único de harmonia e beleza, pelo fato de que o resultado
cênico tão esperado como algo esteticamente interessante em relação às formas aparentes,
tornou-se um conjunto de conteúdos simbólicos e significativos mais ligados ao sentimento.
A forma final foi apenas uma conseqüência do estado de abertura e entrega por parte do
grupo, que demonstrou as qualidades ou princípios de presença interior e comunhão, para
além do puramente estético. Parece que isto aconteceu principalmente pela ênfase dada à
música, que permitiu a concentração e a meditação independentemente do pensamento. Por
isso, parece que a música é a ponte sobre o abismo entre a forma (o pensamento) e o sem-
forma (o sentimento). A música produz uma ressonância que vibra através de todo o ser. Ela
ergue o pensamento acima da densidade da matéria, por meio da harmonia das vibrações
que tocam cada átomo do ser total de uma pessoa.
215
Figura 40: Foto nº. 29 - Alunos do Estágio Docente - T.C.C II 2006.2: da esquerda
para a direita, de cima para baixo: (fila do topo) Daiane Leal, Vinícius Lírio, eu, (fila
do meio) Daniel Calibam, Heloísa Pimenta, Eliana Conceição, Diana Oliveira e Bruno
Fagundes, (embaixo à esquerda) Bernardo Del Rey. Obs. Daiane estava como
espectadora. (Foto de Gilmar Lopes)
3.3. SEGUNDA FASE: Gestos Cantados
Gestos Cantados se caracterizou pela busca da qualidade de integralidade, de corpo e
consciência xamânicos para o trabalho artístico, considerando a amplitude da noção de
consciência, que envolve inclusive estados variados de corpo. Visando uma experiência
estético-existencial em direção ao equilíbrio de cada indivíduo, Gestos Cantados teve em
seu processo e resultado cênico, a força da coletividade, e a proposta de religar o grupo à
natureza e ao sentimento de paz. O processo cênico ritualístico parece ter proporcionado
também a cada participante o reencontro com a sua corporeidade. A apropriação de gestos e
reações cotidianas, em especial as ocorridas na infância, fazem parte do conteúdo mais
profundo da memória corporal. Essa memória corporal permitiu a todos organizar
esteticamente a recordação.
Duas definições dadas pelos integrantes a respeito da encenação de Gestos Cantados:
Percebo a relação da criatura com o criador e deste para com a natureza...
Trabalho muito intimista, mas que interage o tempo todo com o universo e
tudo que está a sua volta (Leonardo Chagas).
Gestos Cantados é um espetáculo de dança-coral que retrata um ritual
cênico. Foram trazidos para os intérpretes músicas, cantos e movimentos
de rituais xamânicos e da Dança da Paz Universal e junto a isso, foi
adicionado também informações sobre as direções cardeais, elementos da
natureza e suas representações. Os processos de criação partiam de todas
essas informações sagradas juntamente com experiências pessoais, sendo
assim perceptível o significado de sagrado para cada um (Luna Dias).
3.3.1. Sobre o grupo e o cronograma
Meu desejo inicial era trabalhar com pessoas que estivessem abertas a transitar na
fronteira entre a dança e o teatro, onde o ritual tem possibilidade de se instalar. A escolha
dos integrantes, no entanto, obedeceu a um único critério, vinculado ao Programa Jovens
Artistas, do MEC, que visava incentivar o trabalho de alunos de graduação desta
Universidade. Assim, convidei algumas pessoas que participaram da disciplina TCC e mais
216
alguns estudantes de ambas as áreas (dança e teatro), ainda que voltados para suas áreas
específicas, alguns com atuação no mercado de trabalho em teatro e dança (Daiane Leal,
Diana Oliveira, Leonardo Chagas, Daniel Calibam, Luna Dias, Tarsila Passos e Victor
Cayres).
Além destes, integraram o grupo uma ex-aluna da escola de teatro, e ex-dançarina
do Grupo A-FETO de Dança-Teatro da UFBA, Iêda Dias, com experiência na técnica de
Pilates, que ofereceu alguns exercícios para o grupo. Assim também uma ex-aluna do
mestrado em Artes Cênicas, Andréia Reis, que conduziu algumas práticas em
Laban/Bartenieff, como também em Movimento Genuíno. Três pessoas haviam participado
da primeira fase em T.C.C II: Andréia, Diana e Calibam. Tarsila, Victor e Ieda haviam
cursado 3 semestres de Laban/Bartenieff com Ciane Fernandes.
Minha participação se deu em várias dimensões, não apenas como condutora dos
processos cênicos/corais/rituais, mas também como participante deles e atuante na cena.
Estava consciente de todos os problemas de falta de distanciamento que poderia haver,
decorrentes do fato de dirigir e atuar ao mesmo tempo, mas também tinha a concepção de
que o ritual, sendo um ato inclusivo, poderia acolher a todos.
O grupo também contou com a participação de Maurycio Cruz na percussão e
Cristiana Dias, na preparação em música orgânica, complementando o trabalho
intensamente realizado em torno da relação gesto-movimento-som. Ainda tivemos a
participação dos profissionais Zuarte Júnior (figurino e cenário) e Wagner Lacerda
(maquiagem), que puderam materializar nosso ritual artístico em cena. Assim, nosso grupo
se constituiu a partir da convivência de três meses entre pessoas das artes cênicas e da
música, todas elas abertas às experimentações propostas. O que aproximou mais
efetivamente os integrantes do grupo foram as atividades que uniam som e movimento, os
aquecimentos vocal-corporais, os jogos lúdicos de improvisação, além do aprendizado e
execução dos cânticos, considerados aqui como condutor principal da encenação.
Nosso cronograma estava previsto para ser cumprido em 9 meses, a partir do momento
em que o crédito orçamentário do patrocinador fosse efetivado, entre março e dezembro de
2007, constando das etapas de preparação, ensaio, montagem, produção e apresentações. No
entanto, devido ao atraso do recurso e à greve de funcionários da UFBA, tivemos apenas 2
meses e meio de ensaios, 4 vezes por semana, cada ensaio com a duração de 3 a 4 horas,
num total de 41 encontros e apenas 4 apresentações em Salvador. Havia ainda a previsão de
217
2 apresentações na Chapada Diamantina, que não aconteceram devido aos problemas com a
liberação dos recursos restantes do projeto.
Ao longo dos meses de maio, junho e julho, tivemos duas fases de ensaios: a primeira
fase, com as atividades relacionadas a cada direção ou ponto cardeal, e a segunda fase, com
enfoque na montagem, reunindo elementos de composição coreográfica elaborados na
primeira fase. Assim, entre 02 de maio e 15 de junho de 2007, houve o aprendizado de tudo
o que se referia aos princípios rituais e labanistas, aliando técnica e criação/pesquisa
coreográfica constantemente. Os ensaios, organizados de acordo com a qualidade de cada
direção, consistiam em três momentos, a saber: 1. Aquecimento (30 a 40 minutos) em
Fundamentos Corporais Bartenieff, Respiração/Vocalizes de Bonnie Baindbridge Cohen,
Harmonia Espacial, Movimento Genuíno, técnica de chão de Pilates, aquecimento em
técnica vocal ou música orgânica, aliado a jogos sonoros e criativos; 2. Aprendizados de
cânticos xamânicos e Danças da Paz, experiências em micro-rituais (cerca de 30 min); 3.
Investigações, improvisações e composições individuais associando memórias corporais,
ações de expressividade, mais a criação em danças corais, com duração média de 80 min.
Na segunda fase, entre 15 de junho e 19 de julho, os ensaios eram organizados em três
momentos: 1. Harmonização com as técnicas de aquecimento mencionadas acima e com
Danças da Paz; 2. Composições em danças-corais; 3. Organização das cenas propriamente
ditas, incluindo os textos e poemas. Ao final de cada ensaio, de ambas as fases, havia um
momento de avaliação e discussão sobre a montagem das cenas, assim como o levantamento
de questões a respeito das associações entre os princípios rituais, as experiências pessoais e
o movimento poético coletivo.
Desde o começo, muitas dificuldades surgiram no nosso caminho, e levar adiante o
projeto Gestos Cantados tornou-se o maior desafio durante o processo de criação artística.
Se não tivéssemos encarado este desafio, teríamos desistido logo no surgimento da primeira
barreira: não havia dinheiro para alugar um espaço físico para os ensaios. Não poderia ser ao
ar livre, porque era tempo de chuva. Até que conseguimos os apoios da Escola de Teatro da
UFBA, do Teatro Castro Alves e do Centro Federal de Educação Tecnológica (CEFET) para
as salas de ensaios.
218
Assim, considero que mesmo que nossos encontros tenham sido intensos, o período de
tempo foi muito curto e fragmentado para que pudéssemos aprofundar e amadurecer os
conteúdos propostos e os processos rituais, fato também percebido por Daiane, e revelado
em seu depoimento: “Acho que atropelamos o processo por causa do tempo de apresentar,
pra mim tínhamos que aprofundar um pouco mais nos rituais pessoais para depois pensar em
cenas conceitualmente”.
Em termos xamânicos, podíamos ter explorado mais as partes desconhecidas de cada
ser, por exemplo, se houvesse mais tempo para cada um permanecer em seus lugares ou
pontos cardeais, os quais foram determinados por mim, de acordo com a intenção de cada
um. A programação seguiu a ordem do trajeto das direções, com cerca de três encontros para
introduzir o simbolismo de cada direção, começando pelo Sul, indo para o Norte, quando
fizemos o ritual da intenção, com o auxílio do talking stick, depois passando pelo Oeste e
concluindo no Leste, após o que, pudemos localizar em qual direção a intenção pessoal de
cada pessoa se encaixava melhor. Houve circulação necessária do grupo por cada uma das
direções, delimitadas nos limites de um espaço circular. Havia necessidade, no entanto, de
aprofundar o simbolismo das direções, a partir a permanência de cada um, por mais tempo,
com improvisações e exploração pessoal das direções. Outra observação relevante é a de que
havia uma qualidade da ritualização em rios momentos do processo, que prescindia da
necessidade de levar a público, considerando ainda as dificuldades de transposição ou de
reelaboração de aspectos da vivência ritualística para a composição cênica do roteiro da
montagem final.
Apesar destas lacunas metodológicas citadas acima, as intenções pessoais parecem ter
sido lembradas e ressignificadas durante o trajeto pelas direções. Considerando que os
rituais são formas de colocarmos nossas intenções e pensamentos a favor de uma mudança,
o significado da intenção, o primeiro dos princípios rituais (citados no item 3.1.1.) e a
importância da manutenção do foco na intenção almejada foram mantidos o tempo inteiro
por cada um.
O processo deste espetáculo, ao superar barreiras estruturais, institucionais e
financeiras, mostrou as maneiras de como nosso grupo pôde se beneficiar dos rituais de paz,
de maneira a encontrar alegria no ato criador e no ato da performance. O resultado cênico
revelou a superação das dificuldades. Depois de tantos desafios, mostramos às outras
pessoas o que conseguimos construir em meio a tantas adversidades: quanta riqueza, beleza
219
e harmonia cada um pôde encontrar em si mesmo. Foi muito importante compartilhar nossas
riquezas interiores, especialmente pelo fato de terem sido entregues com alegria. Nas
palavras de Daiane: Gestos Cantados me mostrou uma alegria cênica e uma tranqüilidade
de ser eu mesma a cena que ainda não havia encontrado. Para mim foi uma oportunidade”.
Se realmente foi despertado o sentimento de alegria e energia vital nos participantes,
então o objetivo ritual se concretizou independente dos problemas citados ou da
imposição de cronograma e exigências acadêmicas, e isso se deve em parte à combinação
realizada entre as abordagens metodológicas xamanísticas e labanistas, a serem analisadas
na seção 3.2.3. O sentimento de estar vivo, sentir-se vivo, com a energia fluindo em seu
corpo, pode levar ao êxtase. Como Eliade observou, em alguns rituais xamânicos não
possessão, mas êxtase. Em todos os rituais xamânicos, a finalidade é a de levar o sujeito ou
o grupo a viver suas vidas intensamente, aproveitando todo o potencial que há em cada um e
no coletivo. Este foi o caso dos rituais realizados no decorrer dos ensaios de Gestos
Cantados. Nesse sentido, podemos observar que o sistema xamânico permite atingir um
estado de corpo que se assemelha ao experimentado pelos praticantes de algumas técnicas
corporais, utilizadas com variadas finalidades, em especial, técnicas de preparação e
consciência corporal, como é o caso dos exercícios de Laban/Bartenieff, ou do método
Pilates, aos quais nosso grupo teve acesso.
3.3.2. A construção do corpo-som-artista: do corpo “conexão” ao corpo
“cosmogônico”
No que diz respeito à ritualidade propriamente dita, foi imprescindível a criação
concreta e imaginária do espaço, no auxílio ao trabalho com as sonoridades sagradas. A cada
ensaio houve a preparação do ambiente e manutenção da energia (ex. Pequeno altar com
vela, incenso, pedras, raízes, penas, conchas, sementes, água) e cada momento foi
ritualizado na medida do possível, dependendo do grau de entrega ou concentração do
grupo. Tínhamos como referência espacial, a divisão do círculo em quadrantes,
representando as regiões mais próximas a cada direção, assim como na imagem da rosa-dos-
ventos.
Assim, os pontos geográficos foram sendo incorporados de diversas maneiras durante
o processo cênico. Estas direções geo-referenciadas (fora de nós) nos rituais observados,
220
quando transpostas para o corpo dos atuantes transformaram-se em direções auto-
referenciadas (no nosso corpo), cujo trajeto entre as direções pôde ser realizado de duas
maneiras, uma, circular, e outra, através das polaridades.
Figura 41: Diagrama Circular das Direções
A introdução no grupo cênico aos princípios de cada direção (vide capítulo II) foi feita
de maneira circular, tendo a imagem da roda como predominante, cujas improvisações de
movimento seguiram o trajeto Sul – Oeste Norte Leste – Acima e Abaixo, retornando ao
Centro. Na primeira improvisação baseada nas direções, o corpo experimentava a
circularidade da trajetória, da esquerda para a direita, no sentido horário, incluindo a
trajetória vertical entre o acima, o abaixo e o centro.
durante o aprofundamento no significado de cada direção seguimos o trajeto das
polaridades: Sul Norte Oeste e Leste, da mesma maneira como Sylvie faz na Alvorada
(vide diagrama capítulo I), sobrepondo à Escala Dimensional de Laban, com algumas
modificações.
Assim, cada direção se constituiu do que chamei de “blocos” de cenas, ou seja, as
cenas foram construídas a partir da sonoridade criada nos laboratórios de improvisação, a
partir da qualidade sonora e rítmica de cada canção, a partir das improvisações com os
221
fatores de expressividade (LABAN, 1978, 1990), a partir dos pontos cardeais referenciados
no eixo central do corpo, a partir dos poemas criados para cada direção, além dos micro-
rituais - de purificação com a sálvia, o ritual do talking stick, o ritual de queima das cartas
pessoais (vide cap. II).
Vale salientar que não apenas os princípios rituais inspiraram o processo ritual-
artístico em Gestos Cantados, como também os elementos rituais observados terminaram
por fazer parte também da temática e da elaboração visual do espetáculo, na medida em que
fizeram parte significativamente das minhas memórias corporais no campo. Assim, não
pude deixar de fazer referência desde o princípio a um espaço circular, semelhante ao arbor,
onde pudéssemos criar uma egrégora
112
de proteção e de fluxo de energia para o grupo,
assim como a manutenção de um centro, representado o simbolismo da Árvore da Vida. Ali
foi criado o nosso cosmos, no sentido que Mircea Eliade (s/d) encontrou em várias culturas:
a homologação entre o corpo humano e o macrocosmo. Ao analisar a estrutura do espaço
sagrado, diz que o homem deseja situar-se em um “Centro”, lá onde existe a possibilidade
de se comunicar com os deuses. A homologação Corpo/Casa/Cosmos ou
Corpo/Palco/Cosmos pode ser compreendida assim: como a nossa habitação é um
microcosmos, o nosso Corpo também o é, ou melhor, também espelha o cosmo,
estabelecendo uma identidade objetiva entre o macro e o micro. Um Corpo-Cosmogônico é
aquele que compartilha com outros seres vivos, sejam eles seres humanos, animais, vegetais
ou minerais, a mesma substância cósmica, a mesma simetria cósmica, seria aquele que recria
a si próprio, recria a sua ontogênese e transforma o mundo fragmentado contemporâneo. Daí
a implicação para o artista cênico da dinamização das noções de memória, consciência e
presença corporais.
Com exceção de um ensaio ao ar livre, em volta de uma árvore no pátio externo do
Teatro Castro Alves (vide foto 30), não fizemos todos os nossos rituais em ambiente
natural, mas em salas de aula. É certo que o ambiente das matas, rios e praias seria a
situação ideal, mas na falta de um acesso mais próximo e íntimo a tais ambientes, uma vez
que precisamos trabalhar nas salas de aula e nos palcos, podemos descobrir as maneiras
naturais de aproximação, trazendo para o corpo/ambiente (microcosmo) todos os elementos
contidos no macrocosmo. Nesse sentido, se é possível encontrar tudo o que está fora, dentro
112
Em resumo, egrégora designa a força gerada pelo somatório de energias físicas, emocionais e mentais de
duas ou mais pessoas em torno de um objetivo comum. A etimologia e o significado desta palavra podem ser
encontrados no site http://pt.wikipedia.org/wiki/egregora, acessado em 28 de setembro de 2008.
222
do corpo, qualquer experiência do corpo-som-artista adquire um sentido através dos
sentidos de conectividade e sacramentalidade do corpo-cosmogônico.
30
Figura 42 : Foto nº 30 - Ensaio ao redor da árvore (flamboyam) do Teatro Castro
Alves (foto de autoria anônima)
Ainda que não houvesse, em nossos ambientes de ensaio, o contato constante com os
rios, pedras e árvores, com o calor do fogo, com o escuro total ou com as intempéries da
natureza, criamos situações de estados alterados de consciência, nos quais as diferentes
freqüências de ondas cerebrais fazem com que a atenção da mente se dirija para o interior,
aumentando a quantidade de energia interna disponível, e consequentemente levando a uma
expressão criativa mais próxima da natureza de cada indivíduo. Nosso desafio foi
justamente associar o ritual ao espetáculo, o sagrado ao palco, o amor à arte, cientes de
nosso enfoque prioritariamente estético. Ao transpor o sagrado ao palco há necessariamente
uma transformação. Deixamos de realizar rituais para realizamos um espetáculo, porém
fundamentado, enriquecido e definido pelo sagrado.
Segundo Gabriele Wosien (1996, 22), o espaço sagrado, estruturado, facilita a
orientação, proporciona o marco para o culto e transforma o caos em cosmos, tornando
possível a vida humana. Em sua pesquisa sobre as danças circulares em torno a um centro,
esta autora observou que o circundar ritual dos lugares sagrados celebra a contínua
confrontação com o centro divino. Circunscrever um centro implica manter uma relação
constante com a fonte do ser.
Nosso espaço ritual do palco foi criado com a delimitação do espaço circular por
pedras de rio, cujas direções estavam representadas pela fumaça da sálvia (Norte - a
223
entrada), por terra, areias, pedras e raízes (Oeste), por uma fonte de água (Sul) e pelo fogo
(Leste), além do elemento principal central, a árvore da vida, feita de cordas e tecidos presos
ao teto que desciam como raízes até o chão. O espetáculo inicia com a saudação (Yahow) e
termina com o agradecimento (Pilamayahê) às quatro direções e à arvore da vida,
agradecendo e também oferecendo o ritual artístico a todas as nossas relações, como mostra
o roteiro da montagem abaixo, seguido das descrições das cenas:
3.3.3. Descrição das cenas do Roteiro em Gestos Cantados:
Local: ICBA- Salvador
Datas: 19,20,26 e 27 de julho de 2007
Da Cena 1 a 4: abertura e introdução ao tema
Da cena 5 a 9 – bloco da direção Sul
Da cena 10 a 12 – bloco da direção Norte
Da cena 13 a 19 – bloco da direção Oeste
Da cena 20 a 26 – bloco da direção Leste
Cenas 27 a 30 – final
1. Abertura - Entrada do público – som do tambor
31
Figura 43 : Foto nº 31 – Cenário e Percussão (foto: Mainá Araújo)
A entrada da platéia se dá ao som das batidas suaves do tambor do percussionista Maurycio
Cruz, situado ao fundo, à direita, fora do círculo de pedras. Os instrumentos utilizados por
ele foram um tambor xamânico, uma alfaia, um maracá, além de pequenos instrumentos de
efeito de percussão. Após o áudio de abertura com os apoios:
1.1. Entrada do grupo - Purificação com a sálvia música: Wendeya hô (oferenda de ervas
para a árvore)
O grupo está distribuído em pontos diferentes e fora do espaço iluminado do palco. Um por
um caminha por fora e entra no círculo de pedras dispostos no chão cantando a canção da
purificação
Wendeya . Junto ao altar do Norte cada um abana a fumaça da sálvia para si,
224
com a ajuda de uma pena, após o que pega um punhado de ervas para oferecer à árvore
central, indo em seguida para até o seu lugar na roda das direções.
32
Figura 44: Foto nº 32 – Luna Dias - purificação com a sálvia (foto: Sérgio Morelli)
2. Saudação às direções: Calibam diz: “Yahoow portal do Sul, yahoow portal do Norte,
Oeste e Leste”. O grupo responde: “Yahoow”. Apenas o ator Daniel Calibam se desloca
durante a saudação às direções, indo até o respectivo altar referente a cada direção.
2.1. Dança livre Música: Wiracocha (elementos) - A canção ao Deus Wiracocha e à Deusa
Pachamama é também uma espécie de saudação introdutória aos elementos e entidades da
natureza (tempo, vento, águas, terra, fogo, aves). Márcia inicia a canção (um dia perguntei a
Wiracocha, quem eu sou, de onde vim, pra onde vou, recebi a resposta mais linda, que
alguém pode dar ao seu amor), e o grupo responde cantando a segunda parte (eu vim com o
tempo, eu vim com o vento, eu vim com as águas, meu amor me chamou, meu amor me
chamou/ eu vim com a terra, eu vim com o fogo, eu vim com as aves, eu sou o amor, eu sou
o amor), com movimentos livres. Cada pessoa se desloca cantando e se movimentando de
acordo com o que é despertado em seu imaginário, quando da referência a tais elementos.
33
225
Figura 45: foto nº 33: DançaLivre: Wiracocha/Pachamama (foto: Sérgio Morelli)
O grupo se encontra na região Norte do palco, de frente para a platéia, quando reproduz em
uníssono o movimento da dança da paz referente ao trecho de saudação à Pachamama –
Nina
yacu wayra PachaMamma he
,
com
as palmas das mãos ora apontando para o solo, ora se
abrindo para cima, sendo que cada frase é realizada com o corpo voltado para uma direção.
Durante a retomada da primeira parte da canção com movimentos livres, as duplas vão se
formando espalhadas por todo o espaço do círculo. No refrão todos em movimento em
uníssono. Nina yacu wayra PachaMamma he, Nina yacu wayra PachaMamma há, Nina
yacu wayra PachaMamma he, Nina yacu wayra PachaMamma.
34
Figura 46 : Foto nº 34 - Refrão DPU Wiracocha/Pachamama (foto: Mainá Araújo)
35
Figura 47: Foto nº 35 – idem anterior.
3. Movimento para as direções – Escala Dimensional- Música: Ancestrais
226
As duplas, uma pessoa de frente para a outra, executam a Escala Dimensional de Laban, em
oposição, com a Música: Ancestrais. Agora as direções passam a ter referência no eixo
central do corpo em posição vertical a partir das três dimensões do octaedro (1. Sagital:
frente e trás, 2. horizontal: direita e esquerda, 3. Vertical: alto e baixo), fazendo referência
ao modo de dançar a DPU de mesmo título, onde cada frase é cantada para cada direção
(vide capítulo II): 1. Enquanto uma pessoa avança para a frente com o braço direito, a outra
recua para trás com o braço direito. Em seguida, quem recuou, agora avança, ambos com o
braço direito. 2. enquanto um estende seu braço direito para o lado direito, o outro cruza seu
braço esquerdo pela frente em direção ao lado direito em oposição com sua dupla. Depois,
quem fez o movimento de abrir, agora, vai fazer o fechado, continuando com o mesmo
braço que iniciou. 3. enquanto um sobe o outro desce, passando pelo centro. A seqüência
nas três dimensões é repetida, apenas invertendo o lado do corpo que inicia os movimentos.
(ver um exemplo de seqüência em espelho em Fernandes 2002, 182).
4. Texto sobre a árvore da vida
113
- Na cena em que a atriz Ieda Dias fala de joelhos o
poema de reverência à árvore central, como movimentos de arquear a coluna para baixo e
para cima, como ajuda dos braços na dimensão sagital, ela está iniciando a sessão de
colocação das intenções pessoais, cuja árvore é o símbolo principal de poder de realização a
partir da ação cantada.
Olá, árvore sagrada da vida, Raiz de cada árvore,
Obrigada por me concederes Os dons que me concedes.
Olá, Povo-emPé,
Que me ensinará a fincar raízes na Terra,
Enquanto alcanço o Avô Sol.
Olá, Salgueiro, árvore do amor,
Ensina-me a me curvar, até formar um círculo perfeito.
Cada parente, um amigo
.
Com o grupo disposto em meia-lua, na parte posterior do palco, por sua vez subdivididos em
dois grupos, um com a melodia principal e o outro com uma variação, cada pessoa ao sair de
seu subgrupo e cantar e saudar a árvore em movimentos livres, em seguida se juntando a
outro subgrupo.
4.1. Intenção cantada p/ árvore da vida - Música: Toré - Hey yana tatá (grupo em meia-
lua atrás da árvore).
Grupo 1. Hey Ya Na , Hey Ya Na , Hey Ya Na Hey
Hey Ya Na , Hey Ya Na , Hey Ya Na Ta Táaa
Grupo 2. Hey Ya Naaaaaaaa, Hey Ya Naaaaaaaa
5. História de Vida - Coro: pergunta e resposta (parte lúdica) Esta cena é guiada pelo
diálogo entre o ator Daniel Calibam e o grupo (descrição na sessão 3.2.2.4). Durante os
ensaios, todos ficavam situados no quadrante Sul do círculo, o grupo mais ao fundo e
Calibam junto à árvore central. Para efeito de visualização da platéia, que ficava disposta em
“L”, a disposição dos lugares mudou. O grupo se aproximou e criou uma relação com o
cenário da árvore, à medida que observava e reagia com sons, palavras e gestos à história
contada por Calibam, que terminou por ocupar a parte frontal do palco.
113
trecho do livro As Cartas do Caminho Sagrado: a descoberta do ser através dos ensinamentos dos índios
norte-americanos de Jamie Sams. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
227
36
Figura 48:
Foto nº 36 – Calibam e grupo – história de vida (foto: Mainá Araújo)
Enquanto Calibam contava sua história em voz alta, as pessoas comentavam umas com as
outras, em sussurro, cada uma com sua reação emocional e física, observando o ator por
detrás da árvore, umas afastando as cordas da árvore para vê-lo através desta. Nos intervalos
em que Calibam continuava sua história em voz baixa (pianíssimo), o grupo se entusiasmava
e todos ao mesmo tempo respondiam à fala deste, ora com agressividade, ora com
gargalhadas, com impaciência, ridicularizando ou se divertindo com as repetições gestuais-
sonoras do ator, em especial no trecho em que dizia: Tonho Bicudo e Bicudinho. Quando
Calibam anuncia a direção Sul, iniciada na cena anterior, o grupo corre atrás dele em
círculo, indo sentar em seus lugares, numa grande roda.
5.1. Anunciando a Direção Sul - Calibam diz: “DIREÇÃO SUL, ELEMENTO ÁGUA!”
6. Poema das Memórias do Corpo da Infância - O poema dito por Victor Cayres, sentado
ao Sul, é ouvido atentamente por todos na roda até o momento em que todos acompanham
sua última estrofe do poema cantando em pianíssimo (volume baixíssimo) a canção Ororu.
VICTOR recita seu poema (todos sentados na grande roda)
228
37
Figura 49: Foto nº 37 –Victor - poema da infância (foto: Sérgio Morelli)
Um dia retornarei àquele limoeiro. Aquele dos limões mágicos. Aquele dos
limões que faziam com que as nuvens mudassem de lugar! Você não lembra?
Nesse dia... Ah! Nesse dia! Terei a força necessária para mudar o mundo e a
sabedoria para gozá-lo do jeito que ele for.
Poderei saltar do mais alto degrau de enormes escorregadeiras sem me
machucar.
Poderei me pintar de guerreiro ou vestir-me como o Pierrô.
Poderei tocar corpos e almas de pessoas que eu nunca vi. E beijar rostos
estranhos, e as bocas que quiser.
(a partir daqui grupo inicia canção Ororu volume baixíssimo)
Poderei cantar sem medo de que minha felicidade cause inveja. E dançar tão
livremente que todos a minha voltam se sintam convidados viver. De fato.
Como eu... Viverei.
7. Movimentos individuais do Sul (Música: Ororu) - Ao final do poema todos se levantam
e ficam de costas para o centro, para iniciar a seqüência individual do Sul, cada qual fazendo
o deslocamento no espaço referente ao raio do círculo situado entre o centro e o ponto
fixado na linha do círculo.
7. 1. Dança-Coral do Sul - A dança-coral do sul foi apresentada em dois grupos.
Movimentos em grupos: 7.1.1. Música: Canção do Pato (grupo 1 Léo, Victor, Márcia e
Tarsila/ grupo 2 Andréia, Ieda, Daiane, Diana e Calibam). Enquanto o primeiro grupo (de
quatro pessoas) se apresenta, mantendo a circularidade ao redor da árvore, o segundo grupo
permanece em meia-lua na região Sul do palco, cantando a Canção do Pato, alguns
marcando o ritmo com o maracá ao lado do percussionista. Os movimentos e gestos do
primeiro grupo remetiam a brincadeiras de infância como bolinha de gude, empinar pipa,
movimentos de capoeira, atirar objetos no colega e estirar língua, andar em cima do muro, se
equilibrar, cair, subir em árvore, subir com a ajuda de uma corda, pegar frutas, saltos
229
pequenos (amarelinha), saltos grandes. O movimento principal de Victor foi o de se abaixar
para pegar um "limão mágico", levantar olhando o limão e girar com ele para mover as
nuvens.
38
Figura 50: Foto 38 - Dança-Coral do Sul música Canção do Pato parte 1 (foto: Sérgio
Morelli)
7.1.2. O segundo grupo (com seis pessoas) apresenta-se em bloco, de frente para a platéia,
após a saída do primeiro grupo, que permanece ao fundo, segurando o coro com a mesma
canção. Os movimentos remetem às ações de nadar, ser acalentado, ser abraçado, balançar
no parque, saltar elástico, passos de dança clássica (arabesque, jeté, pirueta), dormir, se
relacionar. Este grupo finaliza a coreografia com todos deitados no chão, em silêncio, após o
que Andréia se senta e fala seu poema.
39
Figura 51: Foto nº 39 – Dança-Coral do Sul – Canção do Pato – parte 2 (foto: Mainá Araújo)
8. Outro Poema da Infância Andréia apoia-se em cada uma das pessoas próximas a ela,
que retribuem e a acolhem. As outras pessoas fazem a mesma coisa entre si, uma deita a
cabeça no colo da outra, sentindo o mesmo aconchego da autora do poema, que recita:
Aconchego, carinho, conforto
Aqui me sinto segura, amada
Nada me importa, somente este momento
230
Único e precioso
Lembranças, saudades
Volto à infância e sinto
O cheiro e o toque da essência da vida.
40
Figura 52: Foto nº 40 – Andréia Reis - poema da infância (foto Mainá Araújo)
9. Brincadeiras de Criança - Tarsila quebra o clima nostálgico, entrando em cena,
sacudindo uma manta, despertando as pessoas daquele devaneio, dizendo saltitante um
poema de infância elaborado por Victor:
Jogar bola com cheirinho de café
Comer cola na escola com os colegas
Jogar gude, baleado, pisa-pé
E no espelho d’água atirar moedas
Comer bolinhos de feijão com a vovó
Tomar banho de mangueira na escola
Piscina, cachoeira, caldas de cipó
Dançar, cantar, pular feito uma mola
Então, durante o poema, todos em cena compartilham brincadeiras infantis de roda, de pega-
pega, de amarelinha e corrupios (giros em duplas de mãos dadas). Uma pausa no poema e
todos cantam a música hopi (awewô) fazendo Corrupio” em duplas. Ao final da canção
todos se jogam no chão exaustos e permanecem até o fim do poema de Victor dito por
Tarsila:
Ai, que saudade de ser criança
Correr, dançar, fazer melança
Reviver, ser lembrança!
10. Qualidades do Sul: fluência e flexibilidade - Iniciamos o canto Shanoon ainda
deitados ao redor da árvore - movimentos a partir do “Xis” (vide seção 3.3.4) e depois uma
231
composição com todos em pé: Shanoon corpo em contração para o centro com um passo à
frente, Oiá corpo se abre e braços se elevam em concha, com um pequeno arco da dorsal
para cima (cambré), com um passo para trás; na repetição dessas duas primeiras estrofes, se
faz um balanço para cada um dos lados, alongando o braço que acompanha o movimento.
Nas frases Hey-hey- ya hey yá-yá ho Nêy - passo de valsa para frente, para trás, para a direita
e para a esquerda. Nas duas frases restantes da canção Ho Ney, Ho Ney - um giro solar
para a direita e um giro lunar para a esquerda.
40
Figura 53: Foto 41 preparação na posição em “Xis”, para a seqüência de
organização corporal ao som de Shanoon (foto Mainá Araújo)
42
Figura 54: Foto nº 42 – Composição ao som de Shanoon (Foto: Mainá Araújo)
232
43
Figura 55: Foto nº 43 – idem anterior
44
Figura 56: Foto nº 44 - Cont. Composição ao som de Shanoon (Foto: Mainá Araújo)
45
Figura 57: Foto nº 45 – idem anterior
233
11. Intenção falada c/ o Talking Stick – DAIANE – Minha intenção é reencontrar o meu
sagrado, a minha força interior, o jeito mágico de ver o mundo e de sentir a vida. Quero ser
sacerdotisa da arte! Da arte que acalenta minha alma e guia meus passos turvos.
Daiane Leal fala o texto sobre sua intenção segurando o Talking Stick e caminhando ao
redor da árvore. O grupo sentado próximo à árvore acompanha sua passagem atentamente,
ao mesmo tempo em que cada um relembra a intenção pessoal, puxando para si uma corda
da árvore e soltando logo em seguida, numa espécie apelo ao enraizamento e verticalidade
aérea da árvore a respeito da comunicação do propósito a ser alcançado, enfim, para que as
intenções de todos sejam levadas pelos quatro ventos.
12. Anunciando a Direção Norte - Calibam anuncia que o grupo chegou ao ponto cardeal
Norte: DIREÇÃO NORTE - ELEMENTO AR! e todos se levantam do chão caminhando para
trás, e se colocando em meia-lua, deixando a área do quadrante Norte livre para as
performances individuais.. Tarsila inicia a canção Mahk Jchi Song Lyrics, escolhida para a
Dança do Espaço e da Liberdade de pensamento, que consiste em movimentos individuais e
diálogos em duplas. 12.1. Dança do Espaço e da Liberdade de pensamento Um por um,
iniciando por Daiane apresenta sua composição que representa justamente a idéia de lançar
ao ar sua intenção, através da liberdade de movimentos. Diferente da direção Sul, onde as
costas representavam a realidade pessoal do passado, aqui o Norte representa a abertura ao
imaginário. Ainda que considerando um conhecimento e sabedoria ancestral da humanidade,
o Norte representa o ancião que todos um dia serão. Faz-se necessária a liberação do
movimento da imaginação visando uma possível transformação futura, inclusive das
próprias imagens. Como escreveu Bachelard (1988, p. 6), o ar imaginário é o hormônio que
nos faz crescer psiquicamente. Os movimentos de cada ator-dançarino mostram amplitude
espacial, tanto para os lados, quanto para cima, para baixo e para a frente, inclusive com
giros, rolamentos e saltos. Ainda que não houvesse uma composição em dança-coral para
esta direção, cada pessoa se comunica com a pessoa a entrar em seguida, havendo sempre
momentos de compartilhar a movimentação da outra e até interferir, como foi o caso de Léo
e Andréia, quando este teve o impulso de tirá-la do chão por uns instantes. Assim também
foi o caso de Calibam e Diana, que decidiram entrar ao mesmo tempo e se encontrar numa
dança de casal. No final desta cena, o grupo todo está junto, na formação em meia-lua,
concluindo a canção em cânone.
46
Figura 58: Foto 46 Solos e duplas do Norte canção Mahk Jchi (foto: Mainá
Araújo)
234
47
Figura 59: Foto nº 47 – idem anterior
48
Figura 60: Foto nº 48 – idem anterior
12.2. Tradução de Mahk Jchi - Em atitude solene, Calibam caminha em direção à platéia
dizendo o texto da tradução da canção anterior, honrando a cultura oral ancestral:
Cem anos se passaram, contudo eu ouço a batida distante dos tambores do
meu pai. Eu ouço seus tambores por toda a terra. Sua batida eu sinto dentro
de meu coração. O tambor baterá, então meu coração baterá. E eu viverei
cem mil anos.
235
Enquanto isso o resto do grupo caminha pela esquerda do círculo e forma uma pequena roda
no quadrante Oeste do palco, para o qual Calibam também se dirigiu anunciando esta
direção ao chegar junto do grupo.
13. Anunciando a Direção Oeste – Calibam diz: “DIREÇÃO OESTE - ELEMENTO
TERRA”.
13. 1. DPU “Inana lachma dahay” - Com o grupo em roda no lado esquerdo do palco, A
DPU “Inana lachma dahay”, descrita no item 2.3.4., abre o bloco do Oeste, permitindo
iniciar um aprofundamento do sentido do coletivo do ritual propriamente dito. Após
algumas repetições desta dança-música e durante a última frase cantada, todos se sentam em
círculo, de costas para o centro, onde se colocou Calibam.
49
Figura 61: Foto nº 49 – DPU Inana Lachma Dahay (foto: Mainá Araújo)
14. Sonorização do movimento - A cada frase dita por Calibam, o grupo se vira para ele
(na posição sentada com queda de joelhos - Fundamento de Bartenieff, uma vez para a
direita e outra vez para a esquerda) e responde fortemente com o som “há”, retornando à
posição inicial, com as pernas esticadas (repetindo o mesmo som), alternando os lados a
cada resposta. Ao término da seqüência de Calibam, o grupo grita o último “há”, mantendo
o foco nele.
236
50
Figura 62: Foto nº 50 – Sonorização do movimento (foto: Mainá Araújo)
15. Poema da Terra - O poema de Diana induz a todos a permanecerem sentados e
voltados para baixo, contemplando a terra. O toque pausado do tambor acentua o clima
solene de respeito e confiança aos cuidados da “Grande Mãe”, que representa a direção
Oeste. Apenas Diana faz o gesto de acariciar a terra enquanto fala seu poema:
Terra, mãe de seios fartos e braços fortes
Recolhes o meu lamento
Seja regada com minhas lágrimas
Me dá a força que gera em tuas entranhas e me faz árvore de raízes
profundas
16. Cena de Transição - A DPU Ninto Mami Ninhursag é realizada apenas cantada para
manter o foco na firmeza do elemento terra, enquanto o grupo sai da disposição linear do
círculo e se mistura no espaço com movimentos livres, variando do plano baixo, para o
plano médio e alto, dando início às cenas denominadas por nós de “massagens sonoras”
(cenas 17 e 18).
17. Massagem sonora do Oeste - Tarsila ao centro entoa um mantra e a cada repetição
faz uma variação melódica. Seus movimentos e sons dialogam com os do grupo, que por sua
vez, faz variações a partir das variações da mesma. Todos preenchem os espaços entre os
corpos com trajetórias livres, baseadas no icosaedro, com os braços quase sempre iniciando
os movimentos, mas com suporte do Centro de Peso (pélvis). Alguns se situam no plano
baixo e nele permanecem por um tempo, contrastando com outros que permanecem no plano
alto e outros que variam constantemente de plano no espaço. Todos, porém, demonstram
uma cumplicidade com a pessoa do centro, no caso, Tarsila, cuja ação recorrente de cobrir
remete à imagem mística e acolhedora da bolha.
237
51
Figura 63: Foto nº 51 - Massagem sonora do Oeste (foto: Mainá Araújo)
18. Massagem sonora do Oeste (continuação) - Agora com Victor ao centro, com um
ritmo binário nos pés e uma frase musical também rítmica, o grupo caminha em sentido
horário, iniciando com a perna esquerda, no mesmo ritmo, ao redor dele, cada um criando
seu som em resposta à sua liderança, cujo andamento torna-se mais acelerado à medida que
também vai crescendo em intensidade. Ainda no mesmo ritmo, Victor puxa o grupo em fila
indiana, em sentido anti-horário, abrindo uma grande roda ao redor da árvore, quando o
andamento vai ficando mais lento e o som diminui até o silêncio total.
19. Roda de Cura - Maurycio faz a introdução das batidas do tambor da Canção da Cura,
quando as intenções individuais vão ser novamente relembradas ao redor da árvore. Em
seguida as vozes masculinas iniciam a canção. Na metade da música as vozes femininas
acompanham com um tom mais alto (uma oitava acima). Ao recomeçar a canção, começa a
movimentação em uníssono para o lado esquerdo, a partir do lado esquerdo do corpo. As
composições individuais foram reunidas em três seqüências, cada uma delas realizada
durante o tempo referente a uma canção inteira. A canção é repetida, portanto, por mais três
vezes, e a movimentação consiste em movimentos flexíveis e femininos iniciados pela
pélvis, a serem descritos na sessão 3.2.2.3.
238
52
Figura 64: Foto 52- Dança-Coral do Oeste canção Roda de Cura (fotos: Mainá
Araújo)
53
Figura 65: Foto nº 53 – idem anterior
20. Anunciando a Direção Leste - Calibam grita com determinação: “DIREÇÃO LESTE
- ELEMENTO FOGO!”
Maurycio faz a introdução na percussão ao ritmo quaternário da
DPU Yahayy Ya Haqq.
21. DPU Yahayy Ya Haqq -, que é realizada na íntegra pelo grupo, agora bem próximo à
árvore, com ênfase na qualidade masculina da direção Leste.
239
Figura 66: Foto nº 54 - DPU Yahhay Ya Haqq (fotos: Mainá Araújo)
Figura 67: Foto nº 55 – idem anterior
22. Poema do Leste - Durante o poema de Victor, o grupo observa sua caminhada de volta
à posição Sul, sua posição inicial no círculo, abrindo novamente a grande roda.
Emergido das entranhas da Terra
Agora sigo para o Leste
Voando como águia.
Em busca do nascer do Sol,
Eu, camelo, serei Leão.
Em busca do fogo sagrado,
Eu, Leão, vencerei o dragão.
Achado o fogo perdido,
Retornarei ao Sul.
Renascerei menino.
240
Assim poderei transitar
Por todas as direções,
Livre como o ar.
23. Intermezzo - Música: Dança da águia de abertura (Hey yana Heya hey ya) Victor
começa a cantar e Tarsila canta a segunda frase, antes do coro todos fazem movimentos
“de águia” (caminha três passos para frente, subindo joelho esquerdo e braços pela lateral, se
encontrando em cima, depois repete tudo para a esquerda), voltando em espiral em níveis
variados. Continua movimentação para frente, com o grupo dividido em dois, se cruzando,
até sair do palco e sentar na platéia para assistir o solo de Leonardo.
24. Solo de Leonardo Música Navajo Squaw Dance – inicia queimando sua carta pessoal
junto ao fogo. Em atitude meditativa e com movimentos em câmera lenta, passa parte da
introdução da música levantando-se do chão, subindo os braços e o olhar de baixo para
cima, até que de súbito começa a dançar no ritmo da música, circulando a árvore. Com
movimentos de batida de no chão, semelhante ao toré e caboclinhos (folguedo
pernambucano), alterna com alguns saltos, os quais, embora alguns realizados com o tronco
curvado, têm equivalência com os da dança clássica (ex.: fouetté sauté, jeté elancé,
manèges
114
) O percussionista acompanha a música com o maracá. Leonardo finaliza fazendo
seu gesto sonorizado para a árvore, sendo acompanhado do resto do grupo, que vai entrando
aos poucos em cena.
Figura 68: Foto nº 56 - Solo de Leonardo - sica Navajo Squaw Dance (Foto: Mainá
Araújo)
25. Gestos Sonorizados todos fazem seu gesto pessoal do nome (vide seção 3.3.4.,
sobre a criação do Leste) acompanhado do som. Quando o grupo se junta ao redor da árvore,
114
FOUETTÉ - Do termo francês Fouetté (chicote). Em princípio, fouetté é todo movimento seco (chicoteado)
executado pela perna, ou pela perna e corpo, quando este faz um movimento virando para o lado contrário da
perna. O JETÉS ELANCÉS - É o grand jeté executado com o salto em extensão, ou seja, em vez do salto ser
para cima deve ser mais para frente, a baixa altura. Em geral este passo é executado com um pas de bourrée en
tournant ou um coupé precedendo-o. MANÈGE - Picadeiro indica a forma em que o bailarino executa os tours,
quando estes são feitos ao redor do palco, como se circundasse um picadeiro imaginário.
241
os movimentos ficam mais sutis. À medida que cada um vai saindo aos poucos para formar
uma grande roda, os movimentos individuais se ampliam novamente até cada um dar início
à seqüência da Estrela de Davi.
26. Estrela de Davi apenas com o acompanhamento do tambor e movimentos Dervixes,
de voltar o corpo para cada uma das seis pontas da estrela, com movimentos de braços,
interpretados por mim como: abro meu coração (braços abertos para frente e para cima),
agradeço (mão se juntam virando o corpo para a direita diagonal baixa), saúdo o sol (braços
se abrem eos se juntam atrás da nuca, corpo na diagonal esquerda alta), invoco o
guerreiro (braços dobrados e paralelos à frente do corpo, palmas da mão para baixo,
esquerda em cima da direita, diagonal direita trás), honro o sacerdote (braços abertos
dobrados em noventa graus, palmas das mãos para frente, diagonal esquerda trás) e me
recolho (braços repousam ao longo do corpo, num passo para trás). Estas imagens foram
dadas ao grupo como estímulo aos movimentos, colorindo-os assim de expressividade. O
movimento de transição para recomeçar esta seqüência é um giro em deslocamento para a
direita.
Figura 69: Foto nº 57 - Estrela de Davi (foto: Mainá Araújo)
27. Dança-coral: Música: Voando como Águia (Witchy tai)- O elenco é distribuído em
dois grupos, o primeiro posicionado ao centro, mas de frente para a platéia, e o segundo em
círculo, envolvendo o grupo interno. Os grupos executam suas composições de dança-coral
simultaneamente, alternando com momentos de diálogos entre os dois grupos, misturando os
movimentos de ambos.
242
Figura 70: Foto nº 58 - Dança-Coral do Leste - DPU Voando como Águia (foto: Mainá Araújo)
28. Agradecimento às direções: CALIBAM: Pilamayahê portal do Sul, Pilamayahê portal
do Norte, Pilamayahê portal do Oeste e Pilamayahê portal do Leste (O grupo responde
Pilamayahê). Esta palavra indígena significa gratidão, normalmente dita na finalização dos
rituais.
29. DPU kalama Dance: Lah- Ilahá-Illa-Allah grupo dividido em dois círculos
concêntricos - finaliza com a postura de reverência/agradecimento. Em duas vozes, repete
várias vezes essa frase, com duas rodas girando para lados diferentes e saudando as pessoas
da outra roda com o movimento de mãos, partindo do coração e oferecendo algo ao outro
que passa à frente e também à platéia. Após alguns atuantes cantarem, um de cada vez, a
variação musical, girando em torno de si para ambos os lados, com os braços elevados para
o alto e finalizando com as palmas das mãos juntas em movimento de recolhimento para
frente e para baixo, o grupo todo também o faz em uníssono.
243
Figura 71: Foto nº 59 –DPU: Kalama Dance (Lah- Ilahá-Illa-Allah) – foto: Sérgio Morelli
30. Interação com a platéia: Ganesha, Gopalá, Sri Ram, Hey ya nana (4 elementos).
Estas DPUs foram escolhidas para dançar junto com a platéia, mas apenas duas delas foram
realizadas: Ganesha e Hey Ya nana, sendo que esta última pode ser observada nas fotos nº.
64 e 65, correspondente à cena nº. 30. com o acompanhamento da percussão, e com o
empenho do grupo em ensinar a dança e o canto para as pessoas da platéia que entraram no
círculo de pedras, fizemos os gestos dos quatro elementos uma vez para o centro da roda e
outra vez com o deslocamento para a direita. A descrição de tais gestos foi mencionada no
capítulo II, na seção 2.3.3.
Figura 72: Foto 60 - Participação da platéia no final das apresentações no ICBA
DPU Hey ya nana (fotos: Sérgio Morelli)
244
Figura 73: Foto nº 61 – idem anterior
3.3.4. Dança–Coral-Ritual como Princípio e Resultado Cênico
Os exercícios grupais de construção de danças-corais, no sentido de Laban, foram
motivadores dos processos de investigação e composição poética, junto com os princípios
básicos dos rituais (pontos cardeais, elementos ou matérias elementares da natureza, história
do corpo, sons e movimentos de antigas tradições, harmonia do coletivo). O processo de
composição coletiva se deu com diálogos entre as pessoas da área de dança e as de teatro,
onde a questão da alteridade prevaleceu. Cada um ia construindo seu repertório de
movimentos e unindo-os às outras seqüências sem, no entanto, perderem suas características
pessoais.
De maneira semelhante à maneira citada na seção 1.7.1., trabalhamos as composições
em Gestos Cantados: exercitando a troca e o aprendizado contínuos. Isto se deu através da
qualidade sonora e rítmica de cada canção e a partir dos pontos cardeais referenciados no
eixo central do corpo na posição vertical Frente, o Norte; Atrás, o Sul; do lado Esquerdo,
o Oeste; do lado Direito, o Leste; mais o Abaixo e Acima).
Em relação ao Espaço em Laban, utilizamos a Cruz Axial do Corpo, embora tendo
como referência o corpo sempre na vertical, à maneira como se coloca a noção de
espacialidade ritual dos princípios xamânicos observados. Assim, associamos a referência
do corpo do dançarino juntamente com a referência geográfica. Com a canção Ancestrais,
245
utilizamos a Escala Dimensional de Laban, a forma do Octaedro e a seqüência dos seis
pontos, mais o centro.
Cada direção foi sendo introduzida com a leitura de texto específico
115
, acompanhado
de uma canção e das batidas do tambor. Com exceção da direção Norte, em que todos
ouviram o texto em postura de relaxamento, as leituras informativas sobre as outras direções
foram sugerindo os movimentos corporais.
O Sul, situado nas nossas costas e para além delas, representou o passado, as memórias
corporais, as histórias de vida, as brincadeiras de criança. A sugestão para uma das cenas
que compunham o “bloco” do Sul foi a lembrança de fatos corporais da infância, que
deveriam ser reelaborados com movimentos de deslocamento para trás ou iniciadas a partir
de pontos do corpo situados nas costas. As seqüências, a princípio improvisadas ao som do
tambor e do texto do escudo do sul (SAMS, 200, p. 115), foram aos poucos reelaboradas e
resumidas a pequenas células de movimento, as quais, talvez pelo acompanhamento da
canção Ororu
116
, e também da Canção do Pato, tiveram como características comuns o
fluxo livre e o tempo acelerado, especialmente quando da junção em duplas e trios e,
finalmente, em dois grupos de quatro e cinco pessoas.
Estas junções foram feitas a partir da observação e colaboração mútuas no
aprimoramento/desconstrução das seqüências, respeitando o significado de cada gesto
pessoal, bem como as variantes decorrentes das diferentes corporalidades das pessoas que
executariam tais gestos. O trabalho inicial entre cada dupla foi muito importante para que as
etapas seguintes pudessem fluir, na medida em que uma pessoa de cada vez ficava sendo
observador da seqüência do outro, colaborando com ele na escolha dos movimentos
fundamentais e compreendendo o seu sentido. Numa segunda etapa, os movimentos foram
combinados por princípios de semelhança, continuidade e fluência, de maneira que cada
pessoa pudesse realizar à sua maneira os movimentos das outras.
115
Textos encontrados em Gramacho (2002), Sams (2000) e das anotações do diário de campo.
116
No momento da criação coreográfica, ainda não sabíamos o significado da letra da música que chamei de
“Ororu”, cantada pelas crianças Guarani, que contribuiu na composição das memórias de infância, durante o
trajeto pela direção Sul. O povo Guarani vem sendo representada pelo índio Tukumbo e sua família, no ritual
anual da Dança da Águia da Alvorada. A canção evoca o Deus principal Ñamandu, pai verdadeiro das
numerosas crianças que estão por vir (CLASTRES, 1900,32) e deuses do seu panteão, como Tupã e Ororu.
246
O Norte foi criado basicamente a partir da canção Mahk Jchi Song Lyrics, que honrava
todas as formas de conhecimento e sabedoria, vindas de todos os pontos no espaço e no
tempo, inclusive as que vêm dos nossos ancestrais, como lembra a letra da canção dita por
Calibam. A direção Norte foi a que elegemos como frente, como porta de entrada, como
lugar de ligação com o público. As composições individuais tinham como objetivo
comunicar a força das intenções pessoais, inclusive para a platéia. Apresentando-se um a
um, a dança-coral acontecia nos diálogos entre as entradas e saídas de cena, quando cada
pessoa incorporava parte da seqüência da outra. Ainda compondo a cena do Norte, Daiane
falou sua intenção abertamente a todos, representando o ritual da intenção, realizado com o
talking stick, no processo de ensaios (vide roteiro).
Criamos a dança-coral do Oeste a partir da investigação de sensações trazidas pelos
movimentos sutis da pélvis partindo do lado esquerdo, o lado do feminino, da receptividade,
com ênfase no primeiro chacra. Esta região, situada na parte baixa da coluna vertebral, entre
o ânus e os genitais, é responsável pelos instintos de sobrevivência, mas também pela
necessidade de paz e equilíbrio, criar raízes e fundamentos. O simbolismo desta direção foi
introduzido desde o exercício de imaginação, entrada na caverna sonora, realizado por
Cristiana, a ser descrito na sessão 3.3.5.
Como trabalhamos o silêncio interior, as primeiras improvisações foram feitas no
silêncio e aos poucos cada um foi compondo sua seqüência cantando a Canção da Cura,
escolhida, por ser uma canção lenta, melódica e acolhedora, que permite a entrega para as
pequenas “mortes e renascimentos” de padrões de comportamento.
Fizemos uma composição com movimentos em uníssono, que continha três
seqüências, cada uma com a composição elaborada por uma dupla. Juntamos as pessoas por
semelhança de movimento, embora todos tivessem qualidades semelhantes como fluência
controlada, foco flexível ou indireto e tempo desacelerado. Leonardo e Victor apresentaram
em comum, movimentos fortes de propulsão e de rotação da pélvis, além dos movimentos
sucessivos, suaves e flexíveis de braços deslizando sobre a cabeça, face, pescoço, em
direção à parte inferior do corpo. Tarsila e Daiane apresentaram movimentos de pélvis em
figura oito, ambos com elevação da coxa, também em rotação. Eu e Andréia tivemos
movimentos semelhantes que iniciavam na pélvis e repercutiam na mobilidade da coluna e
braços. Os deslocamentos de todos tinham em comum o plano baixo, e sempre para o lado
247
esquerdo, o que permitia que a roda girasse em torno da árvore central, para a qual
depositamos todas as sensações de dor ou de prazer, mas também sensações de descanso e
serenidade.
Para alcançar as qualidades masculinas do Leste, de colocar em prática a intenção, de
expressar o conhecimento através da arte, utilizei a metáfora do vôo e da visão da águia,
como maneira de encorajamento na busca da força pessoal do grupo. Compreendia que esta
força poderia vir a princípio da valorização dos nomes próprios e dos gestos associados a
eles. Estes gestos foram utilizados como células básicas que impulsionavam a
movimentação a ser experimentada para e com o lado direito do corpo (lado da direção
Leste), e a partir dos e chacras, que representam o poder e o amor. Para ativar estas
regiões, o aquecimento com respiração e movimento (Bonnie Bainbridge Cohen), a partir da
Escala Dimensional de Laban foi de fundamental importância (vide figura 3, do capítulo I).
Experimentamos as composições individuais seqüências de duas maneiras: uma com
as sonorizações individuais, realizadas simultaneamente, outra com o acompanhamento da
canção “Voando como Águia”- Witchy Tai Tai (vide anexo 3.1.), com a qual criamos uma
dança-coral que finalizava a encenação do Leste. A composição desta dança se deu com o
aprendizado de todos os movimentos criados por todos. Divididos em dois grupos, cada
grupo criou uma seqüência baseada nos movimentos individuais, a partir do que fizemos um
diálogo entre as seqüências de movimento e frases musicais, situando os dois grupos em
círculos concêntricos. O gesto mais significativo desta dança foi a batida da mão direita
sobre a esquerda em direção ao alto, em um ataque acelerado e direto, simbolizando o
elemento fogo e também a precisão do tempo necessário à realização das intenções pessoais.
Com o Cântico da Dança da Águia de abertura, cujo “aboio” era iniciado por Victor,
retomamos o contato com a “árvore”, enfatizando a intenção coletivamente, verticalizando e
retornando ao chão em movimentos de espiral, sugerindo a troca de energia, a transformação
necessária ao alcance dos objetivos. Assim como no ritual da Alvorada, em que esta canção
servia para reanimar o grupo e iniciar mais uma sessão de danças e músicas, retomamos o
fôlego, anunciando a força da próxima cena, a saber, o solo de
Leonardo, que iniciava
queimando uma carta pessoal junto ao fogo, e seguia com uma coreografia própria,
evocando gestualidade ancestral dos torés, com um estado rítmico que alternava as fortes
batidas de pés no chão, saltos, giros e paradas, com a quietude e firmeza do estado estável de
248
ser. Esta foi a única cena em que não foi utilizada a associação entre o som da voz e o
movimento, mas cuja força contribuiu para manter a energia ritual até o final do espetáculo.
realizado com a gravação de uma música Navajo. Durante a vivência da direção Leste,
percebi que Leonardo tinha necessidade de expressar seu potencial de maneira mais
vigorosa, mas que ele preferia fazer isso apenas com movimentos.
3.3.5. Os aspectos vocais na criação de danças corais
Praticamente todo o processo foi direcionado a partir da investigação vocal gestual.
Todos os exercícios preparatórios, improvisações e composições se beneficiaram da
associação entre movimento e som da voz, especialmente cantada. Além dos aquecimentos
com respiração e movimento, som das vogais e movimento, individual e em duplas (Bonnie
Bainbridge Cohen), havia sempre jogos de aquecimento vocal e sons orgânicos focalizados
por Cristiana Dias, baseados em Oliveira (1996) entre eles, a “Estrela do mar”, a
“Massagem Sonora”, o “Canto das Vogais” e os sons baseados nos pulsos Orgânicos do
corpo, inclusive os ritmos e timbres orgânicos do som percutido.
Todos os exercícios que fizemos com sons das vogais tinham como objetivo
distensionar as cordas vocais e facilitar o fluxo energético dos participantes, assim como
permitir ao grupo encontrar a sua própria afinação. Estes jogos funcionaram como
preparatórios para laboratórios sonoros, mais específicos de cada direção. Por exemplo,
durante a direção Sul, algumas improvisações enfatizaram diálogos lúdicos entre uma
pessoa e o grupo, num jogo de pergunta e resposta, ou de conversa simultânea entre uma
pessoa e o resto do grupo, usando apenas vogais/ conversa de contraste (gritos e sussurros),
no que surgiu a cena da história do apelido de infância do ator Daniel Calibam.
o exercício de apresentação de cada pessoa associando seus nomes próprios aos
gestos foi enriquecido com a sonorização pessoal destes, durante a introdução à direção
Leste. Estes sons-gestos pessoais mostraram bastante força e tornaram-se rituais meditativos
ao redor do ponto central do círculo. Considerado pela platéia como momento ápice de
energia, adquiriram mais sentido quando passamos a fazê-los após o solo de Leonardo, que
chamava o resto do grupo de volta para a cena, por meio destes gestos sonoros, os quais,
como foi dito, também deram origem à dança-coral do Leste.
249
Na direção Oeste, pela sua qualidade de interiorização e introspecção, fizemos um
exercício de imaginação, de entrada na escuridão da caverna, (alguns de olhos fechados,
outros com vendas nos olhos), cuja variação de tons das notas musicais guiava nossos
passos. Cada passo à frente subia um tom na escala musical, sendo que os passos para trás,
baixavam o tom da nota. Também com o solfejo da escala melódica ocidental, massageamos
regiões diferentes do corpo correspondentes aos chacras, em seguida movendo partes do
corpo com melodias livres ou com as vogais.
No Oeste, experimentamos ainda um som “tribal”, a partir da “massagem sonora”,
denominada por mim assim, por enfatizar os acordes livres da “estrela do mar”. Durante a
“massagem sonora”, uma pessoa ficava no centro do círculo e fazia seu mantra pessoal, com
a intenção de desapegar de padrões que não serviam mais, deixando-os para a terra. O grupo
respondia acolhendo a pessoa. Disto resultou uma dança-coral com variações melódicas
(com Tarsila ao centro), quando experimentamos as qualidades expressivas do icosaedro, e
outra cena mais rítmica, a partir da frase sonora criada por Victor, com fortes batidas de pés.
Continuamos com Calibam ao centro aproveitando uma cena da montagem anterior (TCC
II), na qual ele fazia as letras de seu nome, sonorizada com uma melodia trazida por ele, no
que o coro respondia alternadamente. Estas cenas que antecediam a dança-coral “da cura”
foram feitas no quadrante do círculo que representava o Oeste.
As danças-corais do Oeste, desenvolvidas a partir das “massagens sonoras”,
aconteceram várias vezes durante os ensaios, com uma ótima qualidade de entrega entre as
pessoas, porém nas tentativas futuras de levar para a cena em público, perderam as
características rituais que tinham no princípio. Uma das instruções dadas a quem estava no
meio do círculo com o grande grupo ao redor foi pensar em algo que gostaria de enterrar,
desapegar, algo que não queria mais em si ou para si e enviá-la para a terra, colocando toda
a potência de sua voz. Para conseguir este vel de envolvimento com a atividade, a
princípio fazíamos as associações entre os elementos da natureza e fatores de movimento: as
caminhadas com cada elemento (terra, água, fogo e ar), associando também às direções; a
seqüência de ações básicas de esforço com as diferentes dinâmicas expressivas resultantes
da combinação dos fatores e suas gradações (peso, fluência, tempo e foco), culminou no
aprofundamento no fator peso, com ênfase nas qualidades mais telúricas, em especial, a da
firmeza.
250
Alguns exercícios de organização corporal (Bartenieff) foram levados para a cena, à
medida que introduzíamos canções e melodias à seqüência de movimentos na dimensão
horizontal (lado direito lado esquerdo), no plano baixo, como a que se segue: A partir da
postura de irradiação central (posição do “Xis”), rolar e fechar na lateral como um
“C”(irradiação central e metade do corpo), durante a expiração, abre de volta ao “X”, repete
para o outro lado, ou até o balanço na espiral, para as diagonais direita e esquerda, fazendo a
conexão cabeça-cauda em nível médio, completando a espiral em seguida, verticalizando até
o nível alto. Estas seqüências de movimento foram realizadas ao som de Shanoon, canção
que trazia a qualidade do elemento água, quando estávamos vivenciando a direção Sul. Os
mesmos princípios de movimento inspiraram o intermezzo com a canção da Dança da
Águia (espirais) no Leste.
Trabalhamos ainda alguns aspectos da harmonia espacial, a saber, os planos do
icosaedro (vertical, horizontal e sagital), as diagonais do cubo e os movimentos provenientes
da cruz dimensional do corpo. Todos estes princípios universais de movimento contribuíram
para que cada um pudesse situar as direções tendo como referencial o próprio corpo. A
respeito disso, a dança-música Ancestrais, em Gestos Cantados foi reelaborada a partir da
cruz dimensional (LABAN), porém adaptando aos trajetos das sete direções, como
explicado no item 3.2.2. Esta dança-música representou os ancestrais como sendo as raízes
que formam as nossas árvores da vida. Ancestrais, juntamente com as canções Wendeya
(Cherokee Morning Song), Wiracocha e Hey yana tatá, fizeram parte da introdução, que
antecedia cada bloco de direções, sendo que a primeira cena tinha o objetivo de limpeza das
negatividades do corpo e do ambiente da encenação, através da queima da sálvia.
Todos os exercícios de improvisação a partir de vocalidades em movimento
contribuíram para o aumento da capacidade respiratória e de extensão e potência vocal das
pessoas, melhorando o desempenho do grupo no trato com o repertório musical dos cânticos
xamânicos pela paz. Estes, por sua vez, tiveram seus arranjos enriquecidos pelo maestro
Cícero Alves, quando de sua participação numa tarde de ensaios, inclusive orientando o
grupo quanto aos timbres mais adequados a cada canção.
251
Figura 74: Foto nº 62- Maestro Cícero Alves e grupo (foto: Márcia Virgínia)
3.3.6. Danças e Cânticos Xamânicos pela Paz
Das sessenta e oito canções observadas na pesquisa (ver apêndice 1), cerca de trinta
foram utilizadas durante o processo de montagem e dezessete foram selecionadas para
encenação de Gestos Cantados, cujo repertório foi quase que inteiramente cantado, com
exceção da já referida canção Navajo, do CD Voices of Forgotten Worlds, vol. 2, que
acompanhou o solo dançado por Leonardo Chagas. Descrevo a seguir mais algumas
maneiras de utilização das canções na criação cênica.
Em Gestos Cantados nenhuma dança (DSC) foi utilizada, pelo fato destas serem
executadas com o acompanhamento de músicas tocadas mecanicamente. Como o objetivo
era aprofundar a relação corpo-som, as danças cantadas (DPU) supriam a necessidade.
Alguns cânticos e danças-músicas foram utilizados de acordo com o simbolismo de cada
direção, utilizadas ainda para harmonizar e para energizar o grupo, para despertar o senso
poético e ainda para serem reelaboradas na composição cênica. Uma vez por semana nos
reuníamos apenas para cantar e, eventualmente, dançar ou recriar as canções que tinham
coreografia, ou ainda, para criar movimentos para alguma música. Algumas danças (DPU),
portanto, foram desconstruídas em favor do processo criativo. Por exemplo, coreografia das
deusas From the Goddess, utilizada apenas no processo criativo, não foi ensinada para o
grupo da mesma maneira como me foi transmitida. Utilizei apenas o movimento da primeira
parte (cuja letra cita os nomes das deusas), que consiste em deslocamento lateral para a
252
direita, de mãos dadas, todos com o corpo voltado para o centro da roda, abrindo o pé direito
e juntando o esquerdo em seguida, de maneira que a cabeça acompanha a direção dos pés,
ou seja, a cabeça vai para a direita quando o direito se move, e vai para a esquerda,
quando o esquerdo de junta ao direito. Esta frase é repetida para o lado esquerdo. a
segunda parte da música, o movimento foi sugerido pelo grupo, a partir de exercício de
aquecimento com as partes do corpo impulsionando o movimento, a saber, a cabeça, o
quadril e a lateral do tronco para ambos os lados.
A canção Wiracocha/Pachamama foi toda improvisada, porém aproveitamos os
movimentos da dança DPU, durante o refrão Nina yacu wayra Pachamama he”, realizados
não em roda, mas de frente para o público. A canção do toré Hey yana tatá foi desconstruída
e ampliada, quando utilizada para ilustrar o ritmo ternário. A composição/desconstrução foi
feita em grupos de três pessoas, cada qual fazendo variações na melodia principal. Um de
cada vez se destacava do seu grupo se movimentando em direção ao centro (árvore/coluna)
mentalizando sua intenção, em seguida trocando de grupo e de melodia.
O canto do Salgueiro, Shanoon, foi utilizado anteriormente para trazer a qualidade da
água nos exercícios do “Xis” (vide capítulo I). Isto foi levado para a montagem final,
seguida de uma coreografia, a partir dos princípios da DPU (contração, expansão, balanço,
deslocamento em cruz, giro solar e giro lunar) e pela imagem flexível do salgueiro, uma
árvore característica de beira de rio, cujos ramos flexíveis caem e se movem ao sabor do
vento, de importância medicinal, mítica e ritual em várias culturas do mundo
117
.
A canção Awewô (da colheita), devido ao andamento ligeiro, se adequou à cena de
improvisação com as brincadeiras de criança. A DPU Voando como Águia (Witchy Tai Tai),
ainda que tivéssemos vivenciado da mesma maneira como está no movimento DPU, foi
desconstruída e reelaborada na dança-coral do Leste (como já foi dito acima). Embora
também vivenciada no processo, na cena, a DPU Ninto Mami Ninhursag foi apenas cantada
pelo grupo, enquanto que as DPUs Inana lachma dahay (Oeste) e Ya Hayy Ya Haqq (Leste)
e Lah- Ilahá-Illa-Allah (Leste) foram as únicas reproduzidas literalmente sem modificações
no canto ou no movimento.
117
Ver a respeito no site http://pt.wikipedia.org/wiki/Salgueiro , acessado em 21 de outubro de 2007.
253
O andamento das músicas influenciou bastante na dinâmica dos movimentos. Mesmo
os movimentos que foram criados sem música, adquiriram outros aspectos rítmicos e
intencionais quando acrescentamos as canções. Quando compartilhados em grupo, os
movimentos cantados tornavam-se mais coletivos e menos individuais, e, portanto,
unificando a todos em padrões coletivos de convivência corporal.
Entre as canções e dança-músicas (DPU) utilizadas no processo de ensaios para
trabalhar a energia dos elementos ou das direções e para concentrar o grupo, e ainda,
dançadas juntamente com a platéia, posso citar:
Bismillah (simples)
Bismillah (introdutório)
Bismillah Ya Fattah (ver partitura nos anexos 3.1 e 4.1.)
Gopalá Devakinanda
Hey ya nana (quatro elementos)
Gestos dos 4 elementos
Mir Miru Mir (Força da Paz)
A Terra é nossa mãe (ver partitura no anexo 3.1.)
From the Goddess: Isis, Astarte, Diana...
Ii Chell
Anjos
Ganesha Sharenan
Shîmê-nîy kha-chôthâm
- O amor é forte como a morte
Ram Nam Pranam Dance for Partners (Sri Ram, Jai Ram)
Cada uma dessas canções e danças-músicas trazidas para o processo existencial-
poético possuía um simbolismo e uma motivação próprios, mas também tinham relação com
as qualidades de cada direção ou com a união de todas. Por exemplo, Gopalá, Ganesha e Ii
Chell, estão relacionadas ao Sul, por despertarem, respectivamente, alegria, confiança e
flexibilidade. From the Goddess, Shîmê-nîy kha-chôthâm e todas as que traziam o elemento
terra, diziam respeito ao Oeste. Bismillah, Força da Paz e as que reuniam os quatro
elementos (Gestos dos 4 elementos, Hey ya na na), traziam as qualidades de todas as
direções e todos os valores associados a elas. Dessa maneira construímos o roteiro, inserindo
as Danças da Paz mais adequadas a cada direção.
3.3.7. Dança dos Poemas - Simbolismo das Direções
Em relação aos princípios rituais, perguntei o que foi mais significativo para cada um
dos participantes atuantes, no que alguns responderam:
254
O que mais me marcou no processo de Gestos Cantados, além dos belos
cantos e significados de cada elemento e direção, foi que a sintonia,
harmonia e união em um grupo são necessárias para o avanço e sucesso
(Luna Dias).
Luna tinha elegido anteriormente cinco destes princípios rituais: a criação de um
espaço sagrado, o significado trazido por cada direção, a qualidade que cada elemento da
natureza, a diversidade dos sons e ritmos musical-corporais e a celebração. No entanto,
enfatizou a questão da harmonia do grupo com um dos fatores marcantes. De fato, suas
dificuldades individuais foram em parte superadas pelo sentido do coletivo. E parece que
este fato aconteceu para a maioria das pessoas, que passaram por processos pessoais fortes e
situações desafiadoras na vida cotidiana, mas que eram amenizadas ao longo dos rituais
cênicos sistematizados e do ritual artístico apresentado ao público. Luna mostrou o desejo de
reapresentar o espetáculo por se sentir satisfeita com o resultado final, mas confessou que
não gostaria de passar novamente por todo o processo, caso necessário. Já no caso de Daiane
e de Leonardo, foi marcante o fato de atingir um propósito dentro de um espaço ritual:
Considero que a intenção e o propósito que se busca alcançar esta em
primeiro lugar, mas considerei importante também à criação do espaço
sagrado. O estabelecimento de nossas posições nesse espaço, o raciocínio
de como ele nos afeta fisicamente. Não deixo de perceber a importância
dos outros itens, mas naquele momento e neste (talvez) foram as coisas
que mais me “atingiram”. (Daiane Leal)
A criação de um espaço sagrado foi o que mais significou para mim, pois
serviu como fomentação no meu desenvolvimento tanto artístico quanto
pessoal. Criar algo poético estava em acreditar no que eu me propunha
fazer dentro do trabalho, ou seja, levar com seriedade cada passo e cada
momento vivido, fazendo disso um prazer e não uma obrigação.
(Leonardo Chagas)
Nestes dois últimos depoimentos podemos observar a importância dada à criação o
espaço sagrado, onde estão implícitas as posições neste espaço, ou seja, o espaço destinado a
cada direção dentro do círculo e em relação ao ponto central, os quais foram definidores do
espaço cênico, onde cada um foi encontrando elementos pessoais e os reelaborando
poeticamente. À medida que íamos experimentando as qualidades e o simbolismo de cada
direção e seus elementos predominantes respectivos, alguns iam compondo poemas que
traduziam as sensações de movimento e também as lembranças evocadas. Isto deu uma
característica diferente ao processo e complementou as composições de dança-música que
estávamos elaborando. E em cada experiência com as direções, cada um trabalhou seu
propósito, sua intenção para aquele trabalho. Alguns dos poemas abriam ou fechavam cada
255
um dos quatro blocos de cenas fundamentadas pelas direções. Cito abaixo alguns que não
foram levados para a cena final, os quais puderam ser lidos no roteiro anteriormente.
Poema do Norte (Autora: Andréia Reis)
Meu corpo no espaço, o espaço em meu corpo
Interior, exterior, Livre pelo espaço
Dinamicamente em transformação
Movimento, ação, comunicação.
No poema do Norte de Andréia, temos a qualidade de variação espacial e melódica, o
lugar da liberdade de comunicação verbal, musical, de movimento.
Poema do Oeste (Autora: Iêda Dias)
A terra estava molhada, molhava o pé, minava água da fonte, vida
mãe chamei, mãe clamei! Mãe me fiz pra mãe entender
os corpos suados, pingados moviam-se em ondas magnéticas
sensuais, exalavam odores panteísticos
ervas, ervas, ERA, cura, curam ATER-RÁ!
o poema da direção Oeste, de da, representou o enraizamento, a corporeidade
interiorizada, a terra como lugar de cura. A percepção que as autoras dos poemas tiveram de
cada direção e de qualidade neste espaço correspondeu justamente ao simbolismo e
qualidades vivenciadas corporalmente durante o processo de ensaios. E isto também para
Victor, autor dos poemas do Sul e do Leste, os quais foram levados para a cena final. O
poema do Leste surpreende pelo nível de compreensão do autor sobre a proposta ritualística
do espetáculo. Convém reescrevê-lo abaixo:
Emergido das entranhas da Terra, Agora sigo para o Leste
Voando como águia.
Em busca do nascer do Sol, Eu, camelo, serei Leão.
Em busca do fogo sagrado, Eu, Leão, vencerei o dragão.
Achado o fogo perdido, Retornarei ao Sul.
Renascerei menino.
Assim poderei transitar Por todas as direções, Livre como o ar.
Refletindo sobre estas palavras, me dei conta de que Victor encontrou no texto de
Nietzsche, Assim falou Zaratustra, a inspiração para o seu poema, que descreve justamente
as três transformações do espírito, que se muda em camelo, e o camelo em leão, e o leão,
finalmente em criança. A metáfora do camelo representa o fardo pesado que o espírito
carrega, até que se transforma em leão, por querer conquistar a liberdade, porém às custas de
lutar com o dragão. O leão tem o poder de criar uma liberdade para uma nova criação, mas é
justamente quando conquista a liberdade à custa de seu amor, que o altivo leão torna-se a
256
criança, que representa a inocência, o esquecimento, a criação de novos valores, “um novo
começar, um brinquedo, uma roda que gira sobre si, um movimento, uma santa afirmação.
(...) o espírito quer agora a sua vontade, o que perdeu o mundo, quer alcançar o seu mundo”
(NIETZSCHE, 2004, p. 36). Este parece ser o percurso e a imagem de um “deus que dança”.
3.3.8. Subjetividade e Transculturalidade
No que tange à cultura indígena norte-americana, e mais recentemente às da
Mesoamérica e do Sul, muitas músicas de seu repertório foram e ainda têm sido incluídas no
repertório das Danças da Paz, devido à beleza de suas letras e à qualidade vibracional
positiva de suas melodias. O encontro com uma parte do repertório de memórias oral-
musicais indígenas nos permitiu reconhecer não apenas elementos do outro, mas também de
nossas memórias das matrizes indígenas brasileiras, uma vez que generalizações e
semelhanças entre as culturas indígenas das Américas. A começar pelo fato de haver
sistemas cosmológicos xamânicos comuns, nos quais a relação de interdependência e
respeito à natureza, e cujos sistemas de cura envolvem os cânticos como um elemento
relacional, junto com os elementos gestuais e os instrumentos musicais.
O resultado cênico do espetáculo, no que diz respeito à música (canções de domínio
público de várias tradições, especialmente indígena), ao figurino, de Zuarte (vide foto nº 63),
e à maquiagem de Wagner Lacerda (que se inspirou nos padrões da pintura corporal dos
Kadiwéu), remete claramente aos códigos culturais indígenas, norte-americanos e brasileiros
(vide fotos 64 e 65). Porém esta visualidade da forma final não foi em nenhum momento
evocada durante o processo ritual pelo qual nós passamos, enquanto grupo artístico.
Valorizamos, a princípio, o desvelamento e atualização das imagens internas pessoais, bem
como a construção das imagens coletivas que diziam respeito apenas ao nosso grupo.
Considerando o fato de que a ornamentação do corpo é uma forma direta e concreta de
comunicar identidade pessoal e social, pretendíamos utilizar os elementos visuais indígenas
como fatores de interculturalidade, no sentido de que, a junção de códigos culturais
corporais proporcionasse uma terceira forma e significado para o grupo.
Embora a ritualidade indígena seja tão reconhecida e valorizada neste estudo, no
processo artístico não podemos confundir identidade com identificação. Podemos falar, sim,
da existência de pontos de identificação com a cultura indígena, que em todos os momentos
257
se deram mais por meio de valores e significados simbólicos. Não se trata de uma
apropriação, nem de inspiração, mas de uma aplicação de princípios rituais norteadores,
assim como utilizamos os princípios labanistas. Considerando o fato de que a ornamentação
do corpo é uma forma direta e concreta de comunicar identidade pessoal e social,
pretendíamos utilizar os elementos visuais indígenas como fatores de interculturalidade, no
sentido de que, a junção de códigos culturais corporais proporcionasse uma terceira forma e
significado para o grupo.
,
Figura 75: Foto nº 63 – Elenco em dia de apresentação (foto: Sérgio Morelli)
258
Figura 76: Foto nº 64 – imagens do grupo (fotos: Sérgio Morelli)
259
Figura 77: Foto nº 65 – imagens do grupo 2 (fotos: Sérgio Morelli e Mainá Araújo)
260
Desde o início percebia que os rituais a que estávamos nos submetendo enquanto
grupo, prescindiam de contextualização, ou seja, de conhecimento prévio sobre a origem do
ritual ou das músicas e danças-músicas. Para o grupo de atores-dançarinos foram dados
elementos para a criação do espaço sagrado e a motivação para as criações poéticas, sendo
que o simbolismo de cada princípio ritual a ser trabalhado era transmitido como parte desta
motivação. As informações sobre a proveniência dos cânticos e frases sonoras apenas
ganhavam sentido após estes terem sido vivenciados. Não era de fundamental importância
para os atores-dançarinos o conhecimento sobre cada tradição, fosse ela indígena, hinduísta,
sufi ou xamânica. O que despertava interesse era o momento presente, e o que cada canção
ou rito cantado poderia suscitar em termos de autoconhecimento e criação poética. Nesse
sentido Daiane comentou: “As informações conceituais sobre o ritual ou música não me
foram fundamentais. Em todos os momentos o sensorial era o que me guiava”.
Por outro lado, como têm mostrado os citados seguidores da performance
intercultural, o aprendizado de técnicas e expressões de outras culturas permite expandir as
possibilidades expressivas, como bem demonstrou nosso movimento antropofágico na arte
moderna brasileira, desde a década de 1920, assumindo a metodologia da mistura, do
hibridismo, do multiculturalismo, como caminhos legítimos de conhecimento de si, do outro
e de criação artística. A noção de transculturação, um dos pilares epistemológicos da
Etnocenologia, é o que melhor exprime a criação de novos fenômenos culturais, informados
por matrizes culturais diferentes com as quais guardam semelhanças. Armindo Bião (2007,
p. 45) comenta sobre esta expressão (transculturação), como sendo uma reafirmação do
“fenômeno do contato cultural como gerador de novas formas de cultura, distintas das que
lhe deram origem (...), considerando-se a certa reconstrução constante e dinâmica da
tradição”. Nesse sentido, a dinâmica cultural guarda em si simultaneamente as
características de alteridade e identidade, na medida em que fenômenos reconhecidos
considerados ritos sagrados de povos antigos são ressignificados, seja na vida cotidiana, e
até mesmo urbana e artística de gerações atuais.
O que manteve a força ritual em Gestos Cantados foi menos a imagem visual das
formas e padrões já conhecidos etnocentricamente como sendo da dimensão da alteridade
das matrizes indígenas, e mais as imagens internas reelaboradas a partir das imagens sonoras
dos mantras e cânticos xamânicos, das orações corporais das Danças da Paz Universal. No
sentido utilizado por John Blacking em seu livro How Musical is Man?(1995), a música só
261
pode ser compreendida no contexto social no qual está inserida. O contexto a que todos
tiveram acesso se refere aqui ao do processo ritual cênico da montagem Gestos Cantados.
Durante este processo, o repertório musical de origem xamânica foi pouco a pouco
adquirindo significado para cada um dos atores-dançarinos e se distanciando do caráter de
exotismo inevitavelmente proveniente da primeira impressão que se tem quando alguém se
depara com algo de competência de outra sociedade, como por exemplo, um canto em
aramaico ou um canto indígena norte-americano. Refletimos acerca de nossa própria
história, nossa própria cultura, e menos acerca de uma cultura distante em tempo e espaço,
ainda que pudéssemos reconhecer os valores e crenças dos povos nativos e nos sensibilizar
mais profundamente com séculos de história de colonização e tentativas de extermínio
ocorridas com civilizações Norte e Latino- Americanas, desde a Era Pré-colombiana.
Ensinamentos, mitos, musicalidades e ritos corporais de origens remotas têm sido
constantemente difundidos e se tornam transculturais, justamente por conterem conteúdos
arquetípicos, ontológicos, os quais favorecem o trabalho com a subjetividade, com as
mitologias pessoais. Por outro lado, tais conteúdos, provenientes de códigos culturais dos
rituais xamânicos, têm sido abordados de acordo com as necessidades da
contemporaneidade (valores como harmonia, paz e união, por exemplo) e foi este o objetivo
em Gestos Cantados. O fato de vivenciar este repertório de canções e de práticas rituais e
ressignificá-las no momento presente na criação artística contribuiu para gerar novas formas
de estar juntos no grupo cênico, mas também na sociedade na qual estamos inseridos.
Saudando a direção rítmica ‘Central’: Considerações finais cantadas aos quatro ventos
In Lake’ch (Eu sou o outro você)
(ensinamento Lakota)
Fim de outubro de 2007. O fogo arde literalmente na Chapada Diamantina e se espalha
ao sabor dos ventos. É tempo de renovar, tempo de “novos começos”. Recriar o momento
presente com a qualidade rítmica da centralidade e esperar o retorno das águas do sul. A
comunhão, o relaxamento, o agradecimento, tudo isto faz parte dos sentimentos de quem
chega ao fim de um ciclo e agradece pelos ensinamentos adquiridos na trajetória. O
centramento desta direção significa o equilíbrio entre as polaridades, a compreensão das
maneiras antigas de caminhar e a visão das próximas jornadas que estão para iniciar em arte-
ritual.
262
A arte e o ritual podem se combinar de infinitas maneiras diferentes, mas a
probabilidade de aplicação das noções xamânicas às artes cênicas está justamente no caráter
vivencial e de transformação pessoal, na valorização do conhecimento via corpo. Nos ritos
de passagem xamânicos o papel do corpo é fundamental no processo de reencontro com a
subjetividade. A cena artística tem exigido cada vez do artista uma dramaturgia construída a
partir da história de seu corpo, da sua história de vida, muitas vezes escondida e reprimida.
Atualmente, há uma busca de si mesmo entre os artistas cênicos, muito ligada à necessidade
de autoconhecimento e de transformação, uma necessidade de mexer nos padrões
inconscientes de comportamento para que haja um desvelamento do corpo, que é também
texto performativo. Como resultado, a compreensão de que a consciência está em
constante modificação, e de que as narrativas se constroem, se desconstroem e se
reconstroem, quando os intérpretes estão voltados a “narrar” a própria poesia.
No capítulo I encontramos vários exemplos de como a arte cênica do Ocidente sempre
se beneficiou dos rituais sociais, ocidentais e não ocidentais, inclusive as manifestações
rituais existentes na contemporaneidade, na elaboração de obras de arte rituais. Estas por sua
vez têm sido baseadas em princípios de combinações entre o som da voz e o movimento, por
ser uma das condições inerentes aos rituais. Vimos ainda como tem sido tratada esta
combinação nos trabalhos de formação dos artistas cênicos, em especial, entre artistas-
docentes das universidades brasileiras, considerando que cada um encontra uma
metodologia própria a partir de suas experiências pessoais, tanto no que diz respeito ao
encontro com estas tradições oral-corporais, como nas técnicas corporais sistematizadas
encontradas principalmente em Jerzy Grotowski e em Rudolf Laban.
A importância de experimentar e se transformar através das experiências rituais se
tornaram o foco do capítulo II, uma vez que as mesmas foram imprescindíveis na elaboração
metodológica do processo cênico em T.C.C. II e em Gestos Cantados. A utilização da
observação participante, método de pesquisa da Etnografia, permitiu uma abordagem mais
extensa das técnicas e princípios rituais visando atingir o objetivo final da aplicação cênica,
no processo formativo/criativo de um grupo cênico.
O capítulo III relatou como foram indicados alguns princípios rituais para cada
integrante trabalhar as possibilidades de narração da poesia pessoal, ao longo de sua
trajetória artística. Em meio a tantos aspectos diversos e interessantes pertinentes ao ritual,
alguns demonstraram ser fundamentais durante o processo. São eles: diversidade, presença
263
interior, comunhão, transformação e permanência, fluidez e densidade, enraizamento e
expansão. Estes princípios estão ligados às noções de amor, harmonia e beleza. São
qualidades que podem ser experimentadas corporalmente, que fazem diferença na presença
cênica quando solicitadas de maneira ritualizada. Tentamos ritualizar
118
cada momento, cada
exercício, cada passagem, cada intervalo, com o reconhecimento de que tudo é importante
nos processos criativos. Ritualizar no sentido de evocar as qualidades dos elementos, das
direções, dos planetas, dos quatro reinos, enfim, dos princípios básicos universais, para
realizarmos qualquer intenção física no momento da criação poética.
A mudança para outro estado de ser é um dos princípios básicos dos rituais de
passagem. Foi pensando nessa analogia, que tratei cada momento do processo criativo como
micro-rituais. A utilização do talking stick em família ou grupo social ou o recurso da
limpeza de ambientes com a sálvia são exemplos de rituais simples dos quais todos podem
se beneficiar, contribuindo com a harmonização pessoal e coletiva nas suas comunidades.
Assim também acontece quando a compreensão do significado das letras das canções
sagradas, as quais, quando cantadas e tocadas tornam-se instrumentos de arte, com alto
poder de transformação da mente e do coração, trazendo, enfim, a consciência “de corpo e
alma” que a arte continua a nos ajudar a ampliar. Nesse sentido, para que um corpo realize o
que se propõe enquanto agente e criador, muitas mudanças precisam acontecer. O corpo está
sempre em mutação, se pensarmos em termos de que ele é agente e também é ‘agido’
119
durante o processo poético, o qual só se completa durante a apresentação para o público.
Quando tratamos do corpo como conhecimento artístico, nos deparamos com situações
de aprendizagem e autoconhecimento. O produto poético é sempre resultado de algo que se
modificou nas pessoas, e não apenas num nível de treinamento técnico ou de preparação
corporal ou de qualidade expressiva, mas algo em sua corporeidade como um todo. Daí a
coerência da associação entre os princípios rituais e os princípios Laban/Bartenieff de
Educação Somática.
Durante a investigação poética, é comum cada pessoa tomar mais consciência de sua
corporalidade e corporeidade e também de como elas podem mudar. Não mudamos apenas a
118
Ritualizar no sentido de converter em ritual, segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa.
119
O que aconteceu com a dança s-moderna? What Has Become of Postmodern Dance? In Tulane Drama
Review. 36, n.1, (T133), P. 48-59, Spring 1992. Tradução de Eliana R. Silva e Leda Iannitelli./ O que mais
está aí? Entrevista com Anna Halprin (Tamalpa Institute), por Janice, Ross, Standford University, 1991.
Tradução: Eliana Rodrigues.
264
forma de atuar, mudamos também a nós mesmos, na medida em que conseguimos
experimentar novas relações, e não apenas os conteúdos em si. Muitas vezes ficamos presos
a imagens pré-concebidas e não vemos outras possibilidades. Esta mudança,
paradoxalmente, tem relação com a busca de si mesmo, com uma maneira xamânica de ser,
no sentido de encontrarmos o nosso daimon
120
, o nosso melhor dom, a nossa maneira
pessoal de ver, sentir e se expressar, muitas vezes camuflada pelas circunstâncias.
Após a aplicação dos princípios rituais ao processo criativo cênico, é possível afirmar
que a adequação da cosmologia ritual xamânica à prática cênica de ser observada,
inclusive algumas práticas tradicionais xamânicas possuem muitas afinidades com práticas
corporais da arte do movimento iniciadas por Rudolf Laban. Essa adequação beneficiou o
processo de ensaios, em termos de autoconhecimento, transformação ou de reconhecimento
das possibilidades poético-subjetivas do grupo.
Dos muitos aspectos rituais, o que considero mais importante foi o estado de alerta
semelhante ao “êxtase”, experimentado por todos nós em vários momentos do processo
investigativo-poético. Quando digo “êxtase”, me refiro ao sentimento de força vital
experimentado durante os momentos de meditação profunda, momentos de excitação
neuromuscular de voz e movimento corporal, de intensificação dos sentidos, através das
batidas do tambor e da vibração dos mantras cantados. Parece que o estímulo sensorial
repetido é o que leva a um estado de relaxamento de todo o ser: corpo em repouso, mente
tranqüila, coração em paz.
Durante a montagem e apresentações em ambas as fases (T.C.C. II e Gestos
Cantados), percebi que esta maneira “xamânica” de atuar dependeu muito do nível de
entrega e confiança na aplicação da metodologia. Para alguns foi mais fácil experimentar
sem julgar, ou perceber as próprias possibilidades de transformar, ou ainda criar a partir das
verdades pessoais. Para outros, durante o curto período de duração dos ensaios de Gestos
Cantados, se tornou difícil e por muitas vezes desafiador, confrontar-se com uma
metodologia ritual, cujo princípio básico é a repadronização em busca da energia vital, de
maneira que não houve tempo para que todas as resistências cedessem lugar ao novo.
120
James Hillman, no seu livro O Código do Ser: uma busca do caráter e da vocação pessoal (2001: 18-19)
aponta para o uso do termo grego daimon por Platão, referindo-se a uma imagem inata e não hereditária que
nos guia durante nossa vida, mas que é difícil de ser reconhecida. Entre os que seguem práticas
xamanísticas, o daimon corresponderia ao espírito, à alma-livre, à alma-animal, à alma-sopro.
265
Os conteúdos rituais tornaram-se um pouco dispersos quando da preparação em termos
de qualidades estéticas específicas da espetacularidade cênica visando uma apresentação
para o público. No entanto, em alguns momentos todos puderam experimentar o poder que a
arte-ritual tem de despertar o pathos em nós, criadores e público. Princípios importantes nos
rituais observados e vivenciados foram identificados como base norteadora de um trabalho
artístico, mas principalmente pela possibilidade que eles têm de unir pessoas diferentes.
Assim, não apenas os sons e a estrutura musicais fundamentavam os rituais de nosso grupo,
mas os valores sociais associados a eles, valores estes que estão na base das relações
humanas saudáveis e harmoniosas, valores humanos e éticos universais, como a verdade, o
amor e a beleza.
No percurso de construção da pesquisa e da escrita desta tese, houve momentos de
deixar morrer coisas do passado para fazer surgirem novas situações de aprendizagem,
momentos de reflexão individual, momentos de vibrar em uníssonos coletivos. Quantas
janelas eu abri para pensar no meu objeto, para compreender que este continua ligado ao
caminho da educação, ligado ao ensino de arte e à mudança de consciência, no sentido de
Merleau-Ponty
121
, para quem a consciência é uma estrutura interna que contribui para
manter a comunicação entre o mundo interior e exterior. Ser consciente é manter a
comunicação entre o corpo que somos nós e as outras pessoas, é estar com elas em vez de
estar ao lado delas.
Nessa busca de vivenciar no mundo dos sentidos essa ampliação de consciência e
trazê-la para a minha prática artística e pedagógica, compreendi o porquê de ter trilhado por
tantos caminhos e espaços diferentes, e percorrido tantos solos, em vigília e em sonho, até
chegar num lugar mais simples, coerente e fértil, porém nunca finalizado e tampouco com
menos riscos, uma vez que se situa nas fronteiras, como todo caminho de arte e vida. A
experiência ímpar dos trabalhos de campo me deu suporte para chegar finalmente ao âmago
das minhas questões que envolvem o corpo, a arte, a contemporaneidade. E tem sido assim,
um caminho no qual se abandona coisas do passado, se desapega de conceitos rígidos, e faz
surgir novas noções mais adequadas para encaminhar a problemática da pesquisa e se
apropriar com mais interiorização deste objeto, o qual, paradoxalmente não se situa no
121
Citado por VISHNIVETZ, Berta. Eutonia: Educação do Corpo para o Ser. São Paulo: Summus, 1995. p. 176.
266
passado, mas no passado que é presente e futuro ao mesmo tempo, uma vez que as culturas
musical-corporais estão sempre em adaptação e atualização por parte de quem as transmite.
Abrir passagem para o desconhecido se tornou o lema nesta pesquisa, que me fez abrir
janelas, fechar gestalts
122
, para enxergar o mundo, as relações pessoais, a dança, o teatro,
enfim, os que fazem as artes cênicas, inclusive a mim, com outros olhos, os olhos de quem
já não olha apenas para si, mas justamente para si através do outro, bem como para o outro e
junto com o outro. Como disse Carl Gustav Jung (1875 - 1961), mudar é, ao mesmo tempo,
nascer e morrer (JUNG, 1986). A concepção de morte, considerada uma das mais
importantes na cosmologia xamânica, foi desenvolvida no capítulo II, a partir da análise da
frase muito comum entre os iniciados no xamanismo: “Hoje é um bom dia para morrer”.
Janeiro de 2008. O fogo volta a queimar as matas de nascente dos rios da Chapada.
Não se sabe até quando a mãe-terra resistirá a tanta destruição, muitas vezes criminosa. A
cada período de seca, a comunidade inocente da região ora em silêncio a chegada das águas
novas. Com esta pesquisa de campo e de prática artística, compreendi principalmente a
necessidade de sairmos da Era do Senso Crítico para a Era da Consciência, na qual a lógica
do Pathos é a que deverá prevalecer na leitura do mundo, nas “mu danças” de atitudes
para com a pesquisa, a ciência e as relações humanas. A lógica do coração não permite a
crítica destrutiva, mas sim a compreensão inclusiva, uma vez que a consciência é ampliada
quando a mente está aberta às possibilidades. A lógica do coração deveria ser a essência de
uma arte não egóica, uma arte de criação da beleza e harmonia em qualquer forma que seja
criada. Estas mudanças de atitude poderão em muito ser feitas através das artes cênicas,
embora estas por vezes se deixarem influenciar pelo senso crítico. A importância deste
trabalho em dança-coral-ritual está na possibilidade de transformar os artistas e
conseqüentemente, transformar também as artes cênicas.
122
A Teoria da Gestalt afirma que não se pode ter conhecimento do todo através das partes, e sim das partes
através do todo; que os conjuntos possuem leis próprias e estas regem seus elementos, e que através da
percepção da totalidade é que o cérebro pode de fato perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um
conceito. Abrir uma gestalt significa começar algo novo, um novo ciclo, que deve ser fechado com
responsabilidade pelos nossos atos. Quando alguém abre muitas gestalts e não consegue fechá-las, muitos
compromissos ficam pendentes, deixando também em aberto questões psíquicas, emocionais, sociais. A falta
de consciência de cada uma dessas pendências e de como solicioná-las pode levar muitas pessoas à loucura
patológica, bem diferente da espécie de loucura temporária que emerge nos processos rituais, discutida no
segundo capítulo.
267
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Um Ciclo para o Oriente Médio: cantos para a grande Deusa Mãe. Neil Douglas – Klotz e
Kamae Miller. Rio de Janeiro: Nova Friburgo, Estudos Abwun Brasil, 2000.
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