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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS
ESCOLA DE DANÇA/ESCOLA DE TEATRO
ANA CAROLINA BEZERRA TEIXEIRA
DEFICIÊNCIA EM CENA:
DESAFIOS E RESISTÊNCIAS DA EXPERIÊNCIA CORPORAL PARA ALÉM
DAS EFICIÊNCIAS DANÇANTES
Salvador/Ba
2010
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ANA CAROLINA BEZERRA TEIXEIRA
DEFICIÊNCIA EM CENA:
DESAFIOS E RESISTÊNCIAS DA EXPERIÊNCIA CORPORAL PARA ALÉM
DAS EFICIÊNCIAS DANÇANTES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Artes Cênicas, Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia,
como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Artes
Cênicas.
Orientadora: Profa. Dra. Eliana Rodrigues Silva
Pesquisa desenvolvida com bolsa CAPES
Salvador/Ba
2010
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Este trabalho é dedicado a todos os bailarinos e a todas as bailarinas
que passaram pela Roda Viva Cia. de Dança,
no que tange ao espírito de luta, coragem, talento, destaque
e persistência no porvir.
AGRADECIMENTOS
À Capes, pela bolsa de mestrado, e em especial a minha orientadora Profª. Dra. Eliana
Rodrigues, por sua leveza, sinceridade e integridade nos caminhos que me guiaram até aqui.
A todos os professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Artes
Cênicas da UFBA, por sua dedicação e competência.
Meus sinceros agradecimentos à Prof
ª
. Dra. Antonia Pereira, coordenadora do
programa de pós graduação, pelo empenho e profissionalismo.
Agradeço especialmente aos professores membros da banca, Profª Dra. Lúcia
Fernandes Lobato (PPGAC-UFBA) e ao Prof. Dr. Alex Beigui de Paiva Cavalcante
(PPGArC-UFRN).
A Helder e Mona Lisa, meus queridos irmãos e amigos.
A minha mãe, Gracinha, com destaque todo especial, pois sua força e seu incentivo
foram, e são, de fundamental importância em minha trajetória de vida.
A Fernando Teixeira, meu pai.
Aos meus avós paternos e maternos.
A Bahia, que me recebeu e me presenteou com o grande companheiro, o meu querido
Augusto, obrigada sempre.
Ao guerreiro Pedro Costa, o meu primeiro orientador e eterno amigo.
A Makários Maia, meu agradecimento pelo aconchego, afeto e por suas preciosas
contribuições.
Aos companheiros de turma que dividiram comigo a mesma jornada.
Aos amigos de Natal em terras baianas ou potiguares.
A Henrique Amoedo, pelo empenho, pela competência e por ter dividido um sonho
transformado em dança.
Aos queridos a quem dedico este trabalho: Rejane Sousa, Roberto Moraes, Janaina
Medeiros, Verônica Costa, Baltazar Júnior, Jamaica Macedo, Ronald Alexandre, Fábio Cruz,
Edson Araújo, Diogo Pinheiro, Samá Silva, Adriana Farias, Marcelo Capriglione, Marconi
Araújo, Caio Macário, Wilson J, Mikaela Dantas; e a todos os demais bailarinos da Roda Viva
Cia. de Dança e a outros tantos que de alguma forma por ela passaram, obrigada pela segunda
casa e por todo o aprendizado, foi lá onde tudo começou.
Pies, para que los quiero si tengo alas para volar.
Frida Khalo
RESUMO
Trata-se de uma investigação acerca do corpo deficiente na cena contemporânea, com
base na experiência junto com a Roda Viva Cia. de Dança. O trabalho busca a reflexão sobre
o corpo, até então considerado incapaz para tal prática e que inaugura, na cena, um despertar
para novas possibilidades estéticas de movimento, criação e produção artística. Destarte, o
papel do corpo deficiente na cena contemporânea passa a reivindicar um lugar além dos
discursos do modelo institucional de inclusão e reivindica espaços de criação cênica e o
acesso ao mercado de trabalho nas artes. O trabalho investiga – por meio de uma metodologia
qualitativa e baseada num estudo histórico-crítico a problemática da Dança Inclusiva e tem
como objeto de investigação os corpos de bailarinos deficientes. A partir da pesquisa acerca
do trabalho desses artistas, serão discutidas questões ligadas à participação do corpo
deficiente na cena da dança contemporânea, problematizando aspectos como inclusão social,
formação, profissionalização e autonomia artística.
Palavras-chave: Corpo. Dança. Cena Contemporânea. Deficiência.
ABSTRACT
This is an investigation about the disabled body in the contemporary scene based on experience built in touch
with Viva Dance Company. The work aims to reflect on the question of these bodies that are considered
unsuitable for such practice and, concomitantly, the fact of this situation in the art scene inaugurates an
awakening to new aesthetic possibilities of movement, creation and artistic production. Thus, the role of the
disabled body in contemporary art scene comes to claim a place beyond words of the institutional model of
inclusion and demands creative spaces and scenic access to the labor market in the arts. The research analyzes,
through a qualitative methodology and based on a historical-critical analysis, the issue of Inclusive Dance and
has as its main object of investigation the bodies of disabled dancers. From the investigation about the work of
these artists the study will discuss issues related to the inclusion of the disabled body in the contemporary scene
and questions about the usual paradigms such as social inclusion, training and professional autonomy.
Key-words: Body. Dance. Contemporary Scene. Disability.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Parábola dos Cegos, de Peter Bruegel (1568)............................
47
Figura 2 – Don Sebastian de Morra, de Diego Velazquéz (1645)...............
47
Figura 3 – O Pé Aleijado, de Spagnoletto Ribera [s/d]................................
47
Figura 4 – Os Cegos de Jericó, de Nicholas Poussin (1650) .......................
47
Figura 5 – Freaks, Cartaz do filme (1932) ..................................................
50
Figura 6 – Prince Randian (The Living Torso) ...........................................
...
50
Figura 7 – American Indian, de Orlan (2005-2008) ....................................
56
Figura 8 – Ear on Arm, de Sterlac (2003-2006) ..........................................
56
Figura 9 – A Coluna Partida, de Frida Khalo (1944) ..................................
77
Figura 10 – Roda Viva Cia. de Dança (2004) ............................................
78
Figura 11 – Por que não?, de Henrique Rodovalho (1998).....................................
80
Figura 12 – Dogleg Freeze, de Bill Shannon (2007) ...................................
86
Figura 13 – The Cost of Living, Direção Lloyd Newson (2004)................
87
Figura 14 – Fancy, de Lisa Bufano (2005). Foto: Gerhard Aba..................
87
Figura 15 – Corpo Estranho, Cia. Gira Dança. Foto: Affonso Nunes.......
88
Figura 16–Judite quer chorar, mas não consegue, Edu O. Foto:
Alessandra Novais
89
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.................................................................................................10
CAPÍTULO I – A RODA VIVA CIA. DE DANÇA.........................................15
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS..........................................................................15
1.2 DA FORMAÇÃO ÀS METODOLOGIAS EMPREGADAS......................18
1.2.2 Atuação e ações multidisciplinares.........................................................21
1.3 PERNAS PRA QUE TE QUERO ................................................................26
1.3.1 Os bailarinos da Roda Viva Cia. de Dança.............................................26
CAPÍTULO II – DANÇA E DEFICIÊNCIA .................................................34
2.1 O IDEÁRIO DE CORPO NA SOCIEDADE E NA DANÇA .....................34
2.2 O CONTEXTO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA.............................................39
2.2.1 O corpo monstruoso ................................................................................43
2.2.2 O corpo doente .........................................................................................52
2.3 O CORPO DEFICIENTE, OU A CRIAÇÃO DO HANDCAP ....................57
2.4 O CORPO DEFICIENTE NA DANÇA.......................................................60
2.4.1 A Dança Inclusiva e a visão do corpo deficiente ...................................63
CAPÍTULO III – DEFICIÊNCIA EM CENA...............................................68
3.1 O CORPO DEFICIENTE E A CENA..........................................................68
3.2 O PAPEL E A FORMAÇÃO DO BAILARINO DEFICIENTE .................75
3.3 AUTONOMIA DO ARTISTA.....................................................................83
3.4 A DANÇA DAS IMPOSSIBILIDADES .....................................................90
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................94
REFERÊNCIAS................................................................................................99
APÊNDICES .....................................................................................................103
APÊNDICES A-ROTEIRO DE ENTREVISTAS E ENTREVISTADOS ..103
APÊNDICES B–ENTREVISTAS ...................................................................105
ANEXOS............................................................................................................122
ANEXOS A - CRONOLOGIA DOS ESPETÁCULOS.................................122
ANEXOSB - GRUPOS E ARTISTAS ............................................................130
INTRODUÇÃO
Os cuidados com o corpo acompanharam a minha trajetória de vida desde cedo, e o
que poderia parecer uma infância-adolescência convencional, para mim, fora uma jornada
entre levar uma vida normal e ao mesmo tempo estar entregue ao olhar da medicina
reabilitadora.
Aos nove anos de idade fui acometida por um Acidente Vascular Cerebral (AVC) de
origem isquêmica,
1
o que ocasionou uma hemiparesia esquerda, ou paralisia do lado esquerdo
do corpo, e comprometera parte dos movimentos do braço e da perna esquerdos.
Perceber-se um corpo diferente para uma criança é muito doloroso, por se tratar de
um ser em fase de desenvolvimento e socialização. Recordo que passei anos sob o uso de
órteses no braço e na perna, e de como esses aparelhos causavam estranhamento para alguns e
uma verdadeira admiração e curiosidade para outros. No entanto, para mim a sensação era a
de ser uma atração circense, motivo de olhares constantes e perguntas indiscretas. Na medida
do possível, buscava também ironizar os preconceitos sofridos, devolvendo ao outro o meu
entendimento sobre a deficiência.
Entre as salas de tratamento e as brincadeiras infantis, sempre era acompanhada de
uma sensação incômoda: de ter a obrigação da recuperação, da reabilitação e do retorno ao
convívio social com os corpos considerados normais. Ou seja, de buscar uma centralidade,
uma harmonia, uma igualdade em relação aos outros corpos. Lembro-me das palavras da
minha primeira fisioterapeuta a qual me dizia que se eu não me esforçasse para recuperar o
braço e a perna nunca conseguiria um namorado.
O convívio nos corredores das clínicas e dos hospitais de reabilitação colocava-me
em contato com algumas pessoas, com corpos mais comprometidos que o meu. Outras, com
diferentes sequelas de origem psicológica, visual e auditiva. No entanto, nenhuma dessas
características dificultava a aproximação e os laços de amizade que surgiam entre nós,
crianças e pré-adolescentes.
Ao primeiro sinal, a expressão deficiência física inaugurava em minha cabeça uma
nova forma de ver o meu AVC. Até então, para mim e minha família admitir que aquela
1
O acidente vascular isquêmico consiste na oclusão de um vaso sanguíneo que interrompe o fluxo de sangue a
uma região específica do cérebro, interferindo com as funções neurológicas dependentes daquela região afetada,
produzindo uma sintomatologia ou deficits característicos. Disponível em:
<http://www.abcdasaude.com.br/artigo.php?6>. Acesso em: 11 out. 2009.
sequela pudesse ser vista como uma deficiência jamais poderia ser realidade: o que eu tinha
era um probleminha. Esse fato construiu em mim uma nova e diferente forma de observar e
compreender que a deficiência existia no meu corpo, mas não me impediria de desenvolver
habilidades como a dança e os estudos acadêmicos. Fui movida por outros impulsos que não
se encaixavam na vida que levava enquanto refém de tantas intervenções médicas. Desejava
encontrar um lugar onde pudesse me encontrar e perceber-me diante de minha nova realidade
corporal.
Durante anos, diversos tratamentos foram realizados sobre meu corpo. A procura
incessante pela recuperação fez com que minha família pesquisasse alternativas em vários
estados brasileiros, até se descobrir a medicina cubana que me acompanhou de 1992 a 1994.
Por meio de um acordo de cooperação, obtive internação gratuita por um período de um ano e
meio, na cidade de Havana, no Hospital Municipal Júlio Diaz.
A experiência de viver em um país cujo sistema socialista diverge de forma
significante da realidade que eu conhecia, foi para mim um grande passo rumo a uma nova
observação e atuação em sociedade. A minha visão da medicina reabilitadora mantinha-se a
mesma, pois esta continuava estagnada no mesmo modelo capitalista de produção da
eficiência. O tratamento em Cuba era rigoroso, com atividades que se estendiam das sete da
manhã e às seis da tarde e incluíam diversos procedimentos de reabilitação.
de volta ao Brasil, o programa de reabilitação foi novamente modificado, devido a
discordâncias médicas entre os métodos cubanos e brasileiros. Em meio a essa situação,
resolvi abandonar as práticas reabilitadoras. Eu almejava alguma atividade que me retirasse da
condição de objeto de investigação clínica e me aproximasse das artes. Foi então que, no final
do ano de 1995 e com dezesseis anos, obtive a orientação de um médico fisiatra o qual
percebeu a minha aversão traumática à fisioterapia –, que me encaminhou para o
Departamento de Artes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. se desenvolvia
um grupo de dança que admitia pessoas com diferentes tipos de deficiência.
O primeiro contato com esse trabalho deu-se por meio de um convite para o 2°
Festival Very Special Arts ocorrido em 1995, na cidade de Natal. Assisti à apresentação do
espetáculo intitulado MAPA, da então chamada Roda Viva Dança Sobre Rodas. Esse festival
era promovido anualmente pela Fundação Nacional de Arte (FUNARTE), com a intenção de
divulgar trabalhos artísticos de grupos ou artistas com algum tipo de deficiência.
Cadeiras de rodas pareciam deslizar no palco. A leveza e a expressão dos bailarinos
encantavam-me e desafiavam o olhar duvidoso do público que parecia atônito a tudo aquilo
que era exibido. Corpos com e sem deficiência pareciam fundir-se com um objetivo comum:
descobrir, experimentar, envolver-se em movimentos construídos para desafiar os medos e as
resistências de cada um.
Eu estava ali, imersa em uma visão que jamais poderia imaginar na vida. Eu vinha
dos muros da reabilitação, da disciplina hospitalar, fisioterápica, cujo único fundamento era
reintegrar à sociedade o corpo consertado, recuperado, normalizado. No entanto, eu estava ali
diante de corpos que dançavam as suas imperfeições, dificuldades; dançavam a própria
imobilidade.
Em um primeiro momento, senti-me acuada, não conseguia ver o meu corpo fazendo
tudo aquilo que aqueles bailarinos muito mais comprometidos do que eu realizavam. A
possibilidade de dançar artisticamente reforçava o meu interesse em integrar aquele grupo,
participar de suas aulas, dos ensaios e poder estar em cena como bailarina, o que não podia
imaginar é que o palco não seria o único lugar a se ocupar. A minha participação, no primeiro
ano, na companhia, foi um desafio contra meus próprios preconceitos e limites físicos, tendo
em vista que os bailarinos tinham muito mais experiência do que eu. Os ritmos intensos de
ensaios, as viagens e apresentações constantes faziam parte da rotina do grupo, e para mim
tudo aquilo era novo, algo que eu não compreendia: corpos comprometidos e categorizados
como limitados, realizavam aquele trabalho que exigia um ritmo tão frenético!
Durante aproximadamente um ano tive participação restrita na companhia. Receava
de minhas capacidades e ainda carregava em meu corpo resquícios do protecionismo
terapêutico das instituições de reabilitação. Naquele momento, acreditava que seriam
aplicados ao meu corpo os mesmos procedimentos assistencialistas que me acompanharam
durante parte de minha infância. No entanto, me surpreendi com os métodos utilizados, uma
vez que não se diferenciavam significativamente de outras companhias tradicionais no
circuito da dança.
Cada conquista era uma batalha diária contra as resistências do próprio corpo e do
corpo do outro, uma investigação que partia da vontade e da coragem de se lançar ao desafio.
Ao me permitir passar pela experiência das práticas e dos ensaios em grupo, pude vivenciar e
encorajar-me para os primeiros passos que me lançariam no universo da dança e do fazer
artístico. O interesse acerca das investigações do movimento e, sobretudo, as minhas
inquietações quanto aos procedimentos utilizados na relação corpo deficiente-dança-cena
levaram-me a somar os saberes empíricos com a pesquisa científica sobre esses corpos, o que
se tornou objeto exequível para a pesquisa de mestrado.
A questão central proposta neste estudo é a discussão sobre a crise do corpo
deficiente na cena artística da Dança Contemporânea no Brasil, tendo como referencial o
trabalho da Roda Viva Cia. de Dança. Tratar-se-á de aspectos como dança, deficiência,
inclusão, formação do artista, autonomia e mercado de trabalho.
Chamo a atenção para o uso da palavra deficiência no título do trabalho e no
decorrer da escrita como estratégia de enfrentamento político ao discurso cristalizado do
termo enquanto alteridade constituída nos moldes da incapacidade, nulidade e invalidez do
sujeito. O termo é então assumido aqui enquanto experiência humana, vivida por milhares de
pessoas, ao longo da história, que tiveram renegado o próprio direito da existência social por
sua inadequação ao projeto político-corporal idealizado nas sociedades ocidentais.
O corpo do deficiente resiste ao reflexo imposto sobre sua deficiência, construída-
idealizada pelo discurso clínico e pelo discurso contrário à beleza, privando esse corpo dos
direitos comuns a todos os indivíduos, por meio das segregações políticas, sociais, culturais e
econômicas impostas em seu cotidiano.
A partir da premissa de que o discurso da deficiência instala-se por meio do poder
das instituições reguladoras e dos saberes gerados por estas, enquanto novos mecanismos de
construção de poderes, e que o corpo também se tornou território controlado por discursos
dominantes, trago a problematização do termo deficiência como uma antítese do discurso
construído pela sociedade. Pertinente se faz destacar, nesta escrita, o não-lugar da deficiência
como herança dos mecanismos de exclusão que se encontram reproduzidos em nossa
sociedade. Por meio da minha experiência corporal somada ao convívio com outros corpos no
contexto artístico-social, proponho a ressignificação do termo deficiência para além de suas
contingências históricas, assumindo o deslocamento de seu significado manifesto nos corpos e
nas ações artísticas.
Esclareço que quando me refiro à arte, nesse aspecto, penso um fazer artístico
enquanto gerador de proposições críticas e, portanto, um fazer-arte conectado com as práticas
artísticas contemporâneas
A pesquisa tem como principal enfoque teórico os Estudos da Deficiência
conhecidos em inglês como Disabilities Studies, com base nos escritos de Ann Cooper
Albright, que visa estabelecer diálogos entre deficiência e corpo deficiente na cena artística
contemporânea. Utilizar-me-ei dos estudos da sociologia do corpo, tendo como referência as
pesquisas de David Le Breton e Irving Goffman, no que me proporcionou maior
aprofundamento para discutir as questões ligadas à estigmatização, exclusão e ao
silenciamento desses corpos ao longo do processo histórico. As análises sobre o corpo e suas
relações de poder terão como referencial os textos de Michel Foucault. As discussões sobre o
papel do corpo e o contexto histórico, político e cultural encontrarão apoio nos estudos de
Humberto Eco e Jean Jacques Courtine.
As perseguições sofridas pelo corpo com deficiência e o estigma social que o
acompanhou no decorrer dos tempos refletem-se hoje em velhos olhares sobre o corpo e a
pessoa com deficiência. O estereótipo do deficiente, enquanto coitado, assexuado, afásico e
improdutivo são marcas de um passado histórico recente que se camuflou sob o manto dos
discursos inclusivos. Ainda prevalecem os modelos corporais de perfeição e produtividade
física, da supremacia do corpo bípede, da visão bidimensional, da audição perfeita, do
raciocínio rápido e lógico, nos quais o corpo torna-se cada vez mais atrelado à correção, ao
condicionamento e aos diferentes tipos de manipulações estéticas. É a partir dessa experiência
de vida-arte que me posiciono também como sujeito, no trajeto de meu objeto de investigação
que é o corpo deficiente criador, para refletir por meio de um estudo teórico-crítico como esse
corpo se manifesta nas artes cênicas e em específico na dança contemporânea brasileira.
No primeiro capítulo, enfatizo a historiografia da Roda Viva Cia. de Dança,
contextualizando períodos como formação, atuação, metodologias, mercado de trabalho e
ações interdisciplinares em âmbito acadêmico.
No segundo capítulo, problematizo a questão da deficiência por meio da revisão
teórica de autores de diversas áreas sociais e artísticas no intuito de pensar e aprofundar
acerca da construção social do modelo ideologizado da deficiência.
No terceiro e último capítulo, trato dos aspectos referentes à produção artística na
cena contemporânea da dança e ao acesso dos corpos deficientes a esse cenário, estabelecendo
uma relação crítica entre os discursos sobre o corpo deficiente na atualidade e o modelo
aplicado em cena. Para tanto, tenho como base as referências de trabalho dos principais
grupos e artistas do Brasil e do exterior. Também será discutido o papel do bailarino
deficiente na cena artística da dança para além dos moldes das filiações inclusivo-
assistenciais.
CAPÍTULO I
A RODA VIVA CIA. DE DANÇA
Se na Grã-Bretanha existe o Candodo, grupo de dança de deficientes físicos
tão prestigiado quanto os elencos com bailarinos fisicamente normais, no
Brasil há o Roda Viva, que vem se projetando com um trabalho de qualidade
e um repertório surpreendente.
Ana Francisca Ponzio
O corpo deficiente sempre foi um tema de interesse no decorrer de minha vida e
trajetória como bailarina, coreógrafa e educadora, tanto na experiência em hospitais e clínicas
fisioterápicas como na formação artística vivenciada em uma companhia de dança e no
decorrer de meu percurso acadêmico.
Entrar em uma companhia de dança que envolvia pessoas com deficiência pareceu-
me, em um primeiro momento, tratar-se de uma rotina de ensaios tranquila, sem o rigor e a
disciplina dos tratamentos reabilitatórios. Para minha surpresa, a rotina de ensaios
caracterizava-se por uma rigorosa prática que exigia dos integrantes total dedicação. A ideia
era justamente esta: encarar o trabalho como o de qualquer outra companhia de dança do país,
desconsiderando qualquer visão assistencialista quanto aos corpos deficientes.
1.1 ASPECTOS HISTÓRICOS
O Departamento de Fisioterapia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
em 1995, possuía um programa de reabilitação desenvolvido no Hospital Universitário Dr.
Onofre Lopes, localizado na cidade de Natal. Tratava-se de uma iniciativa de caráter
terapêutico, destinada às timas de lesão medular traumática. Esses pacientes eram cidadãos
acometidos de graves acidentes automobilísticos, ferimentos por armas de fogo, vítimas de
mergulho em águas rasas, dentre outros.
Esse projeto fora coordenado pelo professor Ricardo Lins, na época, chefe do
Departamento de Fisioterapia da UFRN. O programa realizava atividades de cunho
pedagógico/terapêutico com o intuito de reeducar os corpos lesionados para a profilaxia
corporal e o retorno ao convívio social.
Além das orientações para os cuidados com o corpo em relação à nova condição
física dos pacientes, também foram realizadas atividades extra-hospitalares motivadas pela
relação positiva entre terapeutas e pacientes.
Nesse mesmo período, foi integrada a esse projeto a pesquisa desenvolvida pelo
professor Henrique Amoedo paulista, graduado em Educação Física pelas Faculdades
Integradas de Guarulhos (FIG) e estudioso no campo da deficiência física.
Tal pesquisa investigou a influência da dança sobre a sexualidade da pessoa
portadora de lesão medular traumática e foi o objeto de sua especialização em consciência
corporal, concluída em 1995, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sob
orientação do Professor Doutor Edson César Claro. Esse trabalho contou com a participação
dos pacientes oriundos do programa hospitalar citado e se utilizou das instalações do
Departamento de Artes da Universidade Federal do RN (DEART). No decorrer das aulas e
atividades, as ações passaram a ser direcionadas para a prática da dança, e o trabalho se
consolidou como projeto de extensão universitária sob o título de Roda Viva Dança sobre
Rodas.
Inicialmente, o grupo fora composto exclusivamente por dois alunos com sequelas de
lesão medular, sendo ambos cadeirantes.
2
Por se tratar de um projeto de extensão de uma
Universidade Federal, a Roda Viva Dança Sobre Rodas passou a admitir em seu elenco
pessoas com e sem deficiências, que se dividiam entre estudantes de graduação e membros da
comunidade externa. A proposta era a construção de um trabalho artístico de qualidade, que
considerasse as diferenças corporais como parte diferencial dos processos de criação
coreográficos, a partir da integração desses corpos diversos nos processos desenvolvidos em
sala.
A Roda Viva Dança Sobre Rodas não teve a intenção imediata de se tornar uma
companhia de dança. Esse feito desenvolveu-se em consequência das ações de pesquisa e
investigação dos educadores envolvidos e das inquietações decorrentes dos processos de
observação de corpos deficientes no campo da dança.
Ao vivenciar os primeiros anos de formação e consolidação da companhia, pude
constatar que a cada ensaio a relação corporal dos bailarinos com suas deficiências e o
entendimento que cada um possuía sobre seu corpo era discutido em grupo. Esse fato
contribuiu para o conhecimento de si e do outro, que se tratava de uma experiência em
construção.
2
Designação utilizada para os que usam cadeiras de roda.
É inegável que parte dos bailarinos da primeira formação desfrutavam de uma
autonomia corporal significativa. Alguns trabalhavam, outros estudavam ou praticavam
esportes como basquete e natação e, portanto, tinham uma independência motora que
favorecia o trabalho prático desenvolvido na sala de dança. A maioria dos integrantes vivia
em comunidades periféricas da cidade de Natal, alguns, inclusive, não tinham completado o
ensino médio e eram vítimas da marginalização e de condições precárias de educação e saúde.
À medida que se desenvolvia como projeto de pesquisa, a então Roda Viva Dança
Sobre Rodas passou por um processo de intensa procura por parte da comunidade em geral,
bem como de alunos e pesquisadores de diversas áreas de investigação, na busca por
informações sobre o trabalho e a integração em suas atividades de extensão, aulas e ensaios.
Alunos com diferentes tipos de deficiência somaram-se aos primeiros integrantes do
projeto, inclusive bailarinos sem deficiência e participantes de grupos de dança da
universidade também fizeram parte da primeira formação do grupo. A interação desses corpos
com e sem deficiências constituíra o marco inicial do que mais tarde tornar-se-ia uma
companhia de dança nacionalmente reconhecida.
É preciso ressaltar que nenhum dos bailarinos deficientes da companhia teve contato
com a prática da dança anteriormente. Dessa forma, fazia-se necessária uma sensibilização
dos corpos para o universo do movimento e, principalmente, para a motivação das
descobertas individuais e coletivas, fruto também das experiências desses bailarinos em seus
contextos sociais.
As primeiras coreografias revelaram-se tímidas e preservavam ainda um modelo de
trabalho linear, amplamente influenciado pela Dança Moderna em que se destacavam as
movimentações em solo; as movimentações de tronco em expansão- retração; os pas de deux;
e as marcações de acordo com as necessidades do coreógrafo.
Em 1996, a primeira turnê nacional desse grupo é responsável pela projeção nacional
e internacional do trabalho, ao percorrer o sudeste brasileiro com o espetáculo Pernas pra que
te quero, do coreógrafo Edson Claro, sob a direção geral de Henrique Amoedo. Esse
espetáculo foi exibido nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e no estado do Paraná onde se
apresentou em instituições, dentre as quais o Serviço Social do Comércio (SESC), e a Ópera
de Arame, na cidade de Curitiba.
Após o retorno da turnê, o grupo alcança reconhecimento artístico enquanto trabalho
de qualidade e adota o nome Roda Viva Cia. de Dança, retirando assim o termo Sobre Rodas.
Tal fato implicou em uma transição do enfoque experimental para a empreitada no campo
artístico da dança. É o início de uma trajetória consagrada, de repertórios concebidos por
grandes nomes da dança brasileira, premiações, festivais, congressos e muito trabalho.
Em suas diversas formações a Roda Viva Cia. de Dança destaca-se pelo pioneirismo
na formação de bailarinos com deficiência, na qualidade de seus inúmeros repertórios, criados
em parceria com grandes nomes da dança do país como, por exemplo, Luis Arrieta, Ivonice
Satie, Carlinhos de Jesus, Henrique Rodovalho, Mário Nascimento, Domingos Montagner e
Fernando Sampaio, dentre outros. Contudo, é imprescindível ressaltar que os trabalhos
também se consolidaram pela coragem e persistência dos bailarinos que dançaram e criaram,
mesmo quando seus corpos disseram não.
1.2 DA FORMAÇÃO ÀS METODOLOGIAS EMPREGADAS
O grupo concentrou esforços na preparação e na formação de seus integrantes
objetivando a qualidade artística em cena por meio de práticas fundamentadas nas técnicas de
contato improvisação Laban/Paxton/Alesi, e no Método Dança-Educação Física (M.D.E.F),
desenvolvido pelo professor Edson César Claro, colaborador e coordenador do projeto no
período compreendido entre 1995 a 2004.
A aplicação do Método Dança Educação Física foi de grande importância para o
desenvolvimento das primeiras experiências com corpos com deficiência na Cia. Roda Viva e
para a consolidação da prática de treinamento, utilizada no decorrer das diversas fases de
formação do grupo.
O método consistia na junção de diversas técnicas de preparação corporal, desde a
prática de alguns exercícios das denominadas práticas corporais alternativas como o yoga, o
Tai Chi Chuan, a Bioenergética, a Quiropraxia, a Eutonia, estas associadas às técnicas da
Dança Moderna
3
e do Ballet Clássico. A junção das técnicas tradicionais e a experimentação
com técnicas alternativas concernem ao Método Dança Educação Física o caráter
multidisciplinar na formação integral do profissional da dança.
O objetivo central da aplicação deste método era a profilaxia preventiva para o
treinamento dos bailarinos da companhia, por meio de exercícios introdutórios que se
concentravam nas percepções das regiões do corpo em toda sua complexidade e
sensorialidade, considerando as áreas incapacitadas ou suscetíveis de alteração de ordem
muscular e psicossomática.
3
Em específico o Método Graham de Dança Moderna.
A preparação seguia-se de exercícios de percepção espacial em grupo ou individual,
adotando as técnicas do Contact Improvisation baseado no método de Steve Paxton e do
coreógrafo Alito Alesi.
4
Tais procedimentos eram realizados em círculos de grupo, cuja
proposta era a interação entre corpos com ou sem deficiências para a observação-construção
de movimentos ou pequenas ações no intuito de promover uma percepção individual e
coletiva das diferenças e capacidades corporais de cada integrante.
O improviso era seguido de uma descoberta de movimento, gesto e do
desenvolvimento de infinitas formas e imagens corporais que posteriormente seriam
aproveitadas em criações coreográficas. As primeiras práticas, ainda sob a ótica da
experimentação, revelavam ao grupo as especificidades de cada bailarino e consequentemente
dos diferentes tipos de deficiências ali encontradas.
Por meio das técnicas improvisacionais de Rudolf Laban, o grupo explorou as
possibilidades espaciais e a variabilidade dos planos corporais – alto / médio / baixo
principalmente a relação espacial do corpo andante – verticalizado; e do corpo do cadeirante –
horizontalizado. No decorrer das ações propostas pelo, então diretor, Henrique Amoedo, eram
realizadas práticas que simulavam o deslocamento dos cadeirantes e muletantes, nas mais
variadas situações, em espaços amplos, estreitos, com uso de materiais como mesas, cordas,
elásticos e bolas, dentre outros. As próprias cadeiras de rodas repercutiam como principal
elemento de experimentações e possibilidades diversas de movimento. Assim, a cadeira
revelava-se mais uma possibilidade cênica, desmistificando a visão estigmatizante desse
objeto que para o cadeirante é parte de sua extensão corporal.
É interessante pensar que estas “extensões corporais” no caso dos corpos deficientes,
desencadearam novos poderes e saberes sobre suas impossibilidades. Estas impossibilidades
foram reconfiguradas por meio de fontes extra-corporais, consequentemente, se tornaram um
meio de questionar e criar com o corpo, agora pela perspectiva de suas falhas, faltas, perdas e
aparentes incapacidades. A relação construída com as órteses, próteses e cadeiras de roda
promove uma reapropriação corporal antes vivenciada cotidianamente e agora
investigada/experimentada no território artístico.
Ao conviver com a cadeira de rodas, próteses, muletas, aparelhos eletroestimuladores
o deficiente cria uma relação de complementaridade, ele reconhece esses objetos como
necessários ao seu corpo, seja para sua locomoção, autonomia, convívio social.
Consequentemente, essas relações são reveladas, acrescentadas no fazer artístico e
4
Precursor do Contact Improvisation para pessoas com deficiência nos EUA, na década de 1980/90.
compartilhadas com outros corpos que se utilizam ou não de outros mecanismos de auxílio.
A imagem da cadeira de rodas permanece ainda como ícone da deficiência,
excluindo todas as outras diversas deficiências existentes na sociedade. As representações
construídas sobre esse símbolo repercutiram significativamente para a criação do modelo
social da deficiência. Essa interpelação da alteridade deficiente marcada pelo símbolo
cadeirante contribuiu para a formação de sociedades que se dividiram entre corpos
fisicamente normais e anormais. Adriana Thoma (2005) refere-se ao termo alteridade
deficiente”, enquanto produto de uma construção social normalizadora. Daí a justificativa do
emprego desse termo enquanto fator de anormalidade, segregação e exclusão. A alteridade
deficiente serve à nutrição do corpo-outro normalizado ao longo da história e representa a
ficcional realidade do desejo compulsivo pelo controle e a manutenção de um status corpóreo
que repousa nas eficiências físicas.
Os corpos deficientes, como hoje são denominados, nem sempre
estiveram na classificação de anormais, embora desde sempre esses corpos
estejam presentes entre as existências humanas. Foi através de um conjunto
de práticas, de discursos e de representações – que pretendiam dar às noções
de raça, gênero, sexualidade e outras uma condição de anormalidade – que a
alteridade deficiente foi inventada, narrada e construída como “fonte de todo
o mal” (DUSCHATZKY e SKLIAR, 2000 apud THOMA, (2005, p. 258-
259).
Durante muito tempo, a imagem de um indivíduo numa cadeira de rodas
representava a negação do sujeito, o triunfo da invalidez, da não produtividade social;
simbolizava a abjeção do corpo, a assexualidade e a nulidade intelectual.
Não se trata aqui de reduzir o trabalho à condenação ou supervalorização da cadeira
de rodas, mas de promover múltiplas possibilidades criativas que, no caso da Roda Viva Cia.
de Dança, partiam primeiramente das descobertas corporais dos bailarinos. À medida que a
Companhia se afasta do trabalho terapêutico-investigativo de sua primeira formação, novos
procedimentos são utilizados para o treinamento e a preparação corporal de seus bailarinos.
Adota-se, então, o enfoque mais centrado na formação e no aperfeiçoamento técnico do
grupo.
As experiências com coreógrafos importantes da dança brasileira como Luis
Arrieta, Ivonice Satie, Henrique Rodovalho, Carlinhos de Jesus, Mário Nascimento,
Domingos Montagner e tantos outros resultaram na necessidade cada vez maior de um rigor
técnico satisfatório para a realização das coreografias e dos ensaios. O rendimento e a
disciplina no trabalho eram características fundamentais para a qualidade artística da
companhia, não se diferenciando dos modelos praticados por grupos de dança tradicionais do
país.
As contribuições desses profissionais da dança e do teatro revelaram um novo olhar
no modo de construção coreográfica entre bailarino deficiente e coreógrafo convidado. Havia
uma espécie de criação colaborativa que revelava de forma singular a visão do corpo
deficiente para aquele movimento sugerido, para aquela execução proposta pelo coreógrafo.
Essa relação de troca projetava-se nos corpos mesmo quando não podiam se movimentar.
Os ensaios eram realizados em três dias da semana com duração de 2 a 4 horas,
dependendo da necessidade e do aumento dos repertórios coreográficos ou das viagens. As
técnicas aplicadas nas aulas e nos ensaios variavam desde o Método Dança Educação Física,
Dança até a preparação vocal e teatral adaptadas para as especificidades corporais de cada
bailarino.
5
A ênfase no trabalho técnico-corporal e no treinamento físico surge por meio da
direção artística do professor Edeilson Matias,
6
na época, diretor do grupo potiguar
Companhia Gaia de Dança e do Grupo de Dança da UFRN.
1.3 ATUAÇÃO ARTISTICA E AÇÕES MULTIDISCIPLINARES
A Roda Viva Cia. de Dança consagrou sua trajetória artística com um vasto
repertório coreográfico, totalizando 11 espetáculos distribuídos no período de 1995 a 2006. A
produção artística era praticamente anual e contava com a contratação de vários coreógrafos e
profissionais do corpo de renome nacional e local. Destacarei aqui os principais repertórios da
companhia, de acordo com a cronologia de direção artística e contribuição dos coreógrafos. A
intenção é identificar a evolução coreográfica e técnica no decorrer das diferentes etapas
artísticas da companhia.
MAPA é o primeiro espetáculo da Roda Viva Cia. de Dança. Sua estréia deu-se em
1995, no Festival de Artes sem Barreiras, promovido pela Funarte. No repertório,
coreografias do diretor Henrique Amoedo e do coreógrafo Edson Claro retratavam, de forma
poética, conflitos humanos e a possibilidade da união dos corpos, com suas diferenças e
semelhanças. A criação ainda revelava um ar experimental-investigativo, e a movimentação
remete-nos às formas planas e circulares. A predominância de duos favorece a condução dos
cadeirantes por bailarinos andantes que se alternam na posição de bases. A relação do corpo
5
Esta preparação teatral deu-se com maior ênfase na criação do espetáculo Em Tese Nada é Real (2000).
6
Edeilson Matias foi o diretor artístico da Roda Viva Cia. de Dança, graduado em Educação Física pela UFRN e
especialista em Consciência Corporal pela mesma instituição, permaneceu na Cia. de 2000 a 2004.
andante como suporte de corpos deficientes e vice-versa é perceptível nesse período inicial de
trabalho.
Pernas pra que te Quero, criado em 1996, inaugura o início da fase técnica da
companhia, mesclando coreografias de Edson Claro e do coreógrafo argentino Luis Arrieta.
Este por sua vez concebe Marnatal, uma montagem de quarenta minutos que exigiu dos
bailarinos a superação de muitos obstáculos e o principal deles foi a resistência física. Arrieta
exigiu o máximo de dedicação dos bailarinos. A criação foi uma experiência dolorosa, não
contavam com proteções, nem tratamentos especiais por serem deficientes, ao contrário, todos
foram além de seus limites e se reconheceram finalmente como bailarinos. Estas “partículas
de um mar revolto” como Arrieta costumava imaginar o balé iniciam um novo ciclo de
trabalho e essa coreografia marca a grande virada da companhia rumo ao reconhecimento
nacional.
O impacto na dança brasileira vem se consolidar com o espetáculo Dança das
Cadeiras, em 1997, que apresentou coreografias do bailarino Carlinhos de Jesus e da
coreógrafa Ivonice Satie. Juntaram-se dois universos mágicos: o do samba e da cultura
carioca com a coreografia Valeu, Valeu e o simbolismo oriental de Companheiros de Estrada.
Esse espetáculo recebeu elogios da crítica especializada do jornal Folha de S. Paulo em 1998.
Mão na Roda estreou em 1998 e marcou por sua qualidade técnica. O trabalho
destaca-se pela junção de dois coreógrafos importantes para a dança brasileira daquele
período: Henrique Rodovalho, diretor e coreógrafo do Quasar Cia. de Dança, e, mais uma
vez, a presença de Ivonice Satie, que na época dirigia o Balé da cidade de São Paulo.
Rodovalho foi o primeiro coreógrafo a explorar as capacidades de criação dos bailarinos da
Roda Viva Cia. de Dança. Ele inspirou-se em fatos do cotidiano dos bailarinos deficientes,
satirizando as deficiências de cada um em vinhetas que intercalavam a coreografia intitulada
Por que não? Esse trabalho marcou significativamente o processo criativo da companhia.
Naquele momento, os bailarinos exploraram todas as formas e os fatos vividos em sociedade
por um deficiente e dançaram definitivamente o preconceito. O espetáculo marca o fim da
direção do professor Henrique Amoedo que passou a condução artística ao professor Edeilson
Matias, ainda em 1998.
O espetáculo Em Tese Nada é Real (2000) foi um dos processos mais interessantes
vivenciados pela companhia, pois se tratava da primeira experiência com as técnicas circenses
e o trabalho de clown para a construção de personagens-bailarinos. Essa concepção ficou a
cargo dos atores-bailarinos do La Mínima Cia. de Dança: Domingos Montagner e Fernando
Sampaio. A companhia dedicou-se exaustivamente ao treinamento físico para execução de
acrobacias, malabares e um número curto em trapézio. Ao som dos Beatles, esse espetáculo
de uma hora foi pouco apresentado devido às condições de transporte dos equipamentos, mas
resultou em uma troca significativa no contato com outras linguagens cênicas e, sobretudo,
com o trabalho do ator.
Para quem nunca viu e O que são?, ambas realizadas em 2002 e 2003,
respectivamente, marcam os últimos espetáculos sob direção artística de Edeilson Matias e
contam com a participação do coreógrafo mineiro Mário Nascimento, uma das grandes
revelações da dança contemporânea brasileira naquele período. Nesse trabalho, os bailarinos
interpretavam pequenos trechos poéticos do escritor Augusto dos Anjos. O coreógrafo contou
com a assistência técnica de bailarinos da companhia, e seu processo de montagem foi
bastante intenso. No caso de O que são? foram usadas técnicas de pintura em tela, pois os
bailarinos interagiam e pintavam quadros e corpos em cena, o que propiciava movimentações
intercaladas por intervenções da linguagem artística. Nascimento também se utilizava de
recursos musicais por meio de instrumentos tocados pelos bailarinos, como pandeiro e
triângulo.
Em 2005, assumi a direção artística da companhia, a convite do grupo, e, a partir daí,
direcionamos o trabalho artístico para a pesquisa centrada no papel do bailarino enquanto
criador. Como resultado dos processos colaborativos, surge o espetáculo Sobre Corpo
Palavra e Despedida, uma espécie de tributo às técnicas vivenciadas ao longo da trajetória do
grupo e de manifesto à liberdade de criar dos bailarinos. Esse espetáculo conta com criações
coletivas e trabalhos de minha autoria, totalizando 1 hora e 20 minutos de apresentação.
Destaco também as “vivências urbanas” utilizadas como recurso de preparação
corporal em ensaios e que posteriormente seriam incorporados às apresentações nos teatros. A
proposta era a influência do espaço público nos corpos dos artistas, de modo a permitir-lhes
experimentar as sensações e interferências dos fenômenos cotidianos de rua nos seus fazeres
cênicos. Sobre Corpo Palavra e Despedida foi apresentado em várias versões, o que lhe
rendeu características móveis, alteradas de acordo com os resultados oferecidos pelo elenco.
Esse trabalho marca o fim de minha participação junto à companhia em abril de 2007.
7
Dentre as ações desenvolvidas pela Roda Viva Cia. de Dança merece destaque a sua
participação efetiva em festivais de dança do país como o Festival Internacional de Dança do
Recife e Festivais de Inverno de Campina Grande e João Pessoa. Essa presença evidenciava
7
A saída da companhia deu-se pela necessidade de maior aperfeiçoamento acadêmico para a pesquisa
desenvolvida com o grupo. Lancei-me à seleção de mestrado do PPGAC-UFBA na cidade de Salvador, onde
resido até o presente momento.
a qualidade artística do trabalho e favorecia o contato com outras companhias de dança do
país e do exterior. Nesse período, a companhia mantém a participação em eventos de caráter
inclusivo como o Very Special Arts promovido pela Funarte. Evento que reunia artistas do
Brasil e do exterior em suas edições internacionais vários grupos participavam nas
diversas áreas artísticas da dança, do teatro, das artes plásticas e da música. Como exemplo,
cito a participação da Companhia, em 1997, no 2° Festival Internacional de Dança em
Cadeiras de Rodas, realizado na cidade de Boston EUA. Na ocasião, a companhia pôde
conhecer e trocar experiências com os maiores grupos da chamada disability dance,
8
dentre
eles: a Candoco Company Dance, da Inglaterra; a AXIS CO, e The Cleveland Dancing
Wheels, dos Estados Unidos. É preciso ressaltar que esses eventos também envolviam as
comunidades locais de cada cidade envolvida, redimensionando o trabalho do grupo para um
nível artístico pedagógico.
A Roda Viva Cia. de Dança realizou em parceria com a Secretaria Municipal de
Educação da Cidade de Natal ações junto ao Projeto Arte na Escola. As atividades
compreendiam apresentações artísticas, palestras e oficinas realizadas nas escolas blicas e
privadas da cidade. O objetivo era promover, por meio do trabalho da companhia, a discussão
sobre inclusão-arte e o trabalho artístico dos bailarinos. Por conseguinte essa iniciativa que
teve duração de dois anos (1996-1998) repercutia diretamente nas relações entre educando e
educadores, rumo a políticas mais concretas de acesso à educação.
Paralelamente às atividades destinadas à arte-educação, a companhia dedicava-se às
ações na área de saúde, realizando parcerias com instituições de reabilitação, prestando apoio
aos recém-vitimados de lesão medular com noções de profilaxia. Nesse caso, tratava-se da
colaboração de bailarinos da Cia. vitimados pela mesma situação e que em função de sua
experiência engajavam-se nessa tarefa sob orientação do professor Henrique Amoedo o
que despertava muitas vezes o interesse do paciente assistido em participar do grupo. Essas
iniciativas duraram até a segunda formação do grupo (1998), que optou por um enfoque na
preparação técnica-artística e criação de repertórios.
As oficinas oferecidas à comunidade começaram a ser realizadas com a participação
dos bailarinos e alguns se destacavam por fazer parte de eventos como convidados ou
mediadores. Isso se refletiu em programas de acessibilidade implantados em diversas
instituições do Estado do Rio Grande do Norte, como o departamento Estadual de Trânsito
8
A Disability Dance é adotada nos EUA nas décadas de 1980/1990 como prática de inserção de bailarinos no
campo da dança contemporânea através de grupos e instituições de ensino.
(DETRAN), o Serviço Social da Indústria (SESI) e a própria Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN), em Natal.
Por se tratar de um projeto aberto à comunidade extra-acadêmica, sentiu-se a
necessidade de formação de um segundo cleo de bailarinos que futuramente iriam integrar-
se ao elenco principal da companhia. Surgia então o grupo Roda Viva Iniciação, criado em
1997, pelo diretor Henrique Amoedo. O objetivo era a introdução das cnicas utilizadas nos
processos de treinamento dos bailarinos, bem como os aspectos ligados ao condicionamento
físico e à sensibilização por meio das práticas do contact improvisation. O núcleo era
composto inicialmente por membros da comunidade em geral, em sua maioria, portadores de
deficiências físicas. Posteriormente, no período compreendido entre 2000-2004, recebeu um
grande contingente de pessoas com Síndrome de Down. Os alunos em sua maioria vinham de
instituições sociais ou de Organizações Não Governamentais (ONGs), como a Associação de
Pais e Amigos do Excepcional (APAE), Associação dos Portadores de Deficiência do RN
(ADEFERN), Associação Pais Amigos Pessoas Portadoras Deficiência Funcionários do BB
S/A (APPABB).
O trabalho do grupo Iniciação adota uma metodologia mais investigativa para
atender a esse público, afinal, o corpo constituía-se um obstáculo a ser vencido tanto para os
diretores da companhia como para os bailarinos. Dá-se início a uma etapa mais focalizada
nos aspectos cognitivos dos alunos e nos estímulos de suas capacidades sensoriais,
interacionais e individuais, bem como no modo como essas refletiam no processo de
construção cênica. Assim, os primeiros experimentos começam a ser realizados em sala de
aula com a participação dos bailarinos do elenco principal, que se revezavam na condução das
aulas práticas e favoreciam o entrosamento de ambos os grupos. Algumas apresentações são
realizadas em escolas da cidade de Natal e no Departamento de Artes da UFRN, com a
participação da Roda Viva Cia. de Dança. Dentre os bailarinos com Síndrome de Down, dois
atingiram a presença no elenco principal da Companhia.
Por se tratar de trabalhos específicos no caso do corpo com Síndrome de Down, a
direção artística opta pela manutenção de um grupo constituído apenas por bailarinos com
Down, que foi por mim conduzido até o ano de 2004, quando as atividades deste segundo
grupo foram encerradas.
O que mais pode ser destacado nesse período é a formação de dois grupos com
processos de preparação semelhantes, mas com os mais distintos graus de deficiência física,
genética e intelectual. Destaco que ambas as iniciativas colaboraram entre si, o que revelava a
capacidade de organização de subgrupos vinculados à Roda Viva Cia. de Dança. Era o sinal
de que a formação era um fato concreto e passível de execução.
Com efeito, buscou-se um trabalho artístico de qualidade, reconhecido pelo
belíssimo repertório e pela consolidada preparação técnica dos profissionais envolvidos.
Consequentemente, este fazer-cênico desencadeou nos bailarinos o desejo de repassar a sua
experiência para outros alunos.
1.4 PERNAS PRA QUE TE QUERO
1.4.1 Os bailarinos na Roda Viva Cia. de Dança
Na hora em que estou dançando ou ensaiando, eu me
coloco, não fujo, eu gosto daquilo, eu gosto desses
detalhes, desses desafios, eu gosto disso.
Sandra Sousa
Dançar a deficiência parecia ser o ponto de partida para o entendimento das
diferentes técnicas corporais empregadas ao longo dos processos desenvolvidos na sala de
ensaio. Dessa maneira, os corpos podiam se aprimorar e colaborar entre si por meio das
observações e conquistas de movimentos que partiam de cada bailarino.
O
olhar expressivo, as mãos espásticas
9
, os pés descoordenados, a tensão dos membros
superiores ou inferiores, a dificuldade da fala, a falta de força muscular, o desequilíbrio, as
dores de tronco, o peso das órteses metálicas, os espasmos nos membros inferiores, essa
partitura de impossibilidades firmava e iniciava uma dança em devir. O termo “devir é
utilizado nesta dissertação com base na visão de Michel Mafessoli. Para o autor o devir é um
“tornar-se” constante do humano, que hoje se revela nas impermanências identitárias, nos
múltiplos afetos e religiosidades.
O ser em devir é resultado de todas as possibilidades (ou potencialidades).
Ele participa stricto sensu, ou seja, magicamente, das situações das outras
pessoas, da natureza da animalidade que o permeiam, que o fazem ser o que
ele se torna nesses instantes eternos que vive intensamente. (MAFFESOLI,
2004, p.99).
Nesse sentido, as impossibilidades mostraram-se importantes para a figura do coreógrafo e do
9
A espasticidade é uma reação neuro-motora que acomete vítimas de doenças neurológicas, geralmente em
casos de paralisia cerebral e acidente vascular cerebral. Causa espasmos em membros superiores ou inferiores,
ocasionando estados temporários de tensão-contração muscular.
bailarino, propiciando a investigação do processo corporal específico dos componentes. Daí
pensar numa dança que não se resume em resultados instantâneos de movimento, mas que se
permite a experiência do fazer e do vivenciar de suas potencialidades. De fato é uma dança
que se transforma no decorrer de seus processos criativos em ações artísticas mais críticas
e baseadas numa investigação diária das etapas conquistadas por seus integrantes.
A estrutura física dos bailarinos era variada. Havia alunos com sequelas de
mielomeningocele,
10
poliomielite
11
de membros superior e inferior (ou de ambos), lesionados
medulares T5, T6 e T7, L1 e L2, paralisia cerebral, acidente vascular cerebral e, a partir de
1998, a companhia recebe os primeiros alunos portadores de Síndrome de Down.
O que mais chamava a atenção nos corpos era o tônus muscular dos bailarinos
cadeirantes por sua força e agilidade ao empinar as cadeiras (a ponta de pé do cadeirante) e
girar em torno de seu eixo (piruetas). Aqueles que usavam muletas – conhecidos como
muletantes também desenvolviam a força dos membros superiores, o que implicava em
saltos e longas paradas de mão sobre o solo ou sobre apoios colocados no chão. Essas
barreiras que eu chamaria de camadas de limites promoveram uma nova percepção em nossos
corpos, dançávamos nossos impedimentos por meio do amadurecimento técnico e, sobretudo
de nossas experiências compartilhadas na sala de ensaio.
A necessidade de engajamento e de formação para o resultado artístico fez surgir nos
bailarinos da companhia uma consciência de que por mais que não recebessem incentivos
financeiros salariais, eram responsáveis pelo resultado qualitativo do trabalho. A concepção
de um espetáculo envolvia a participação e o desdobramento de todo o grupo, desde a venda
de ingressos, bem como a participação na produção, na divulgação e comercialização.
A busca por patrocínio nos primeiros anos transformou-se em uma tarefa difícil para
o elenco da companhia, pois se deparava com a incredulidade do empresariado local, o que
também se refletia nos editais públicos de cultura. Todos inicialmente encaravam a realização
desse trabalho como algo de caráter duvidoso.
Essas barreiras da burocracia de produção foram quebradas inclusive na própria
instituição na qual o grupo se encontrava. As dificuldades na captação de recursos para o
custeio das obras, viagens e dos materiais eram visíveis no início da formação da companhia.
Após as primeiras turnês e a repercussão internacional, alguns órgãos públicos e privados
sensibilizaram-se quanto à importância do investimento mais efetivo na Companhia,
10
Mielomeningocele é uma doença neuro degenerativa que acomete crianças ainda no estado uterino, acarreta
paralisia de membros inferiores.
11
Doença causada por vírus músculo-degenerativo que causa paralisia em membros superior ou inferior.
inclusive, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte que se dedicou ao projeto de
acessibilidade do Campus Universitário para alunos com deficiência.
Enquanto bailarina, coreógrafa e diretora artística pude vivenciar os processos de
criação e preparação da Roda Viva Cia. de Dança. Foi possível atentar para elementos de
ordem física, intelectual e afetiva que incidiam sobre os corpos dos bailarinos que
reaprendiam e redescobriam, por meio do fazer artístico, não apenas a oportunidade de
dançar, mas, sobremodo, de atuar para além de suas limitações físicas. Contudo, mesmo com
todas as potencialidades da dança, enquanto instrumento de transformação individual e
coletiva dos bailarinos, deparei-me diversas vezes com inquietações acerca de como esses
processos davam-se diretamente nos bailarinos e especificamente a participação destes nos
processos de criação e pesquisa, bem como sua autonomia enquanto artistas da dança.
O trabalho coreográfico contava com a participação do bailarino do ponto de vista do
reconhecimento de suas capacidades físicas de movimento de cada integrante da companhia,
no entanto, não havia uma participação real na concepção do trabalho em si, que ficava a
cargo do coreógrafo convidado. Alguns profissionais realizavam pequenas oficinas como
forma de familiarizarem-se com os diferentes corpos e dialogarem com as especificidades
corporais de cada um.
Por se tratar de uma companhia pertencente a uma universidade federal e de um
departamento, ela pôde contar com a participação de diversos profissionais, tanto do campo
da dança como do teatro, das artes plásticas e da música, na preparação de seus bailarinos.
Apesar de estarem inseridos em um setor acadêmico, poucos bailarinos seguiram a carreira
universitária, preservando a sua participação na cena artística.
O bailarino assumia ltiplas funções no grupo, tanto nos aspectos da produção,
como também nas funções de oficineiro, assistente de direção ou demais ações que
delegassem suporte técnico ou midiático para a companhia. No decorrer da formação artística
do grupo, alguns bailarinos evidenciavam interesse pela criação coreográfica e pela
assistência nas etapas de criação e treinamento e recebiam espaço para suas experimentações
artísticas. Como exemplo, cito meu caso com a criação de meu primeiro trabalho coreográfico
Vixe, em 1997.
No caso do processo coreográfico, as execuções de movimento eram realizadas pelos
bailarinos de acordo com suas capacidades físicas, considerando que algumas destas tinham
de ser adequadas ou adaptadas às necessidades de cada obra coreográfica. Aqueles que não
tivessem mobilidade dos membros superiores geralmente utilizavam o tempo da sequência ou
a intenção de movimentação que possuíssem. Novamente cito o meu caso na época em que
era bailarina da companhia, que não tinha mobilidade na perna e no braço esquerdos,
marcava a contagem coreográfica quando havia em um tempo de espera que representaria
a ação do movimento de meu braço e da perna deficientes para executar logo em seguida a
sequência de movimentação com os membros sem deficiências.
No caso dos cadeirantes havia uma exploração das possibilidades de deslocamento
na cadeira como empinar, girar, quicar ou do bailarino em solo, ao investigar as diversas
formas de utilização de tronco, braços e pernas. Havia um estímulo para que o bailarino
explorasse as suas dificuldades no sentido de revelar potenciais movimentos, intenções, ações
e interações com o outro. No decorrer das experiências em sala de aula com coreógrafos ou
diretores de teatro , esses processos surgiam espontaneamente, emergindo as especificidades
corporais de cada corpo e de cada deficiência.
As diferenças corporais entre bailarinos com e sem deficiências confrontavam não
barreiras físico-corporais, mas também, muitas vezes, aspectos de ordem psicológica medo,
pudor, auto-suficiência, insegurança, dentre outros. Essas barreiras, quando desafiadas,
resultavam na descoberta de movimentações compartilhadas e individuais. Ademais,
enquanto indivíduo, a experiência singular de cada membro não pode ser descartada, tendo
em vista que a individualidade também se faz presente no instante em que o bailarino
redescobre-se a partir de (ou com) suas limitações físicas.
Chamo a atenção para a preocupação de muitos coreógrafos no contato com o corpo
deficiente, pelo fato de suas experiências serem construídas geralmente com corpos
fisicamente potentes e produtivos ao extremo. Nesse caso, o contato com companhias com
bailarinos deficientes exigirá do coreógrafo um desdobramento técnico em relação a
quaisquer ideias preconcebidas ou estabelecidas de imediato por esses profissionais, o que
resultará em uma criação de caráter colaborativo.
Isso se refletiu nas diferentes formações da companhia, desde as primeiras criações
coreográficas marcadas tradicionalmente pela contagem, bem como pelas experiências mais
investigativas em relação ao corpo deficiente como principal ponto de convergência desses
processos. Penso que o aproveitamento das vivências com profissionais da dança – que
também se lançaram ao desafio de criar muito além do ideário dos corpos das grandes
companhias de dança as quais pertenciam promoveu no fazer-cênico da companhia novos
projetos estéticos
corporais a partir da
ressignificação desses corpos.
Aqui, reporto-me às palavras da bailarina da Roda Viva Cia. de Dança, Rejane Sousa,
12
quando se refere ao trabalho coreográfico do bailarino deficiente:
É muito difícil trazer alguma coisa pronta para o bailarino deficiente e ele
fazer aquilo ali, vem muito do corpo dele e tem espaço para ter autonomia,
pra se expressar, pra não fazer só aquela coisa que é adaptada pra você.
As dificuldades, visíveis ou não, ecoam nos corpos (em todos os corpos) e quando
desafiadas assumem uma ação única. Como exemplo, cito um amputado quando descobre
movimentos que surgem para ele como novos e característicos de sua lesão, ou como o
paralisado cerebral, ao transformar seus espasmos musculares em passos dançantes,
movimentos que para alguns poderiam ser interpretados como feios, mas que constituem uma
partitura pessoal de movimentos, sempre passíveis de algum tipo de adaptação.
Chamo atenção para o uso aqui da palavra “adaptação”, comumente usada na década
de 1990 para especificar os processos de criação de movimento dos bailarinos com algum tipo
de deficiência. Esta nomenclatura atrelou-se neste período a um senso comum de que as
capacidades motoras, visuais, intelectuais, quando desafiadas resultariam em uma adaptação
no sentido de adequação. No entanto, é preciso ressaltar hoje que se trata de um processo de
trabalho, que promove um entendimento das impossibilidades corporais enquanto potenciais
de criação, cabendo ao corpo deficiente apropriar-se de seus impedimentos e ressignificá-los
em ações artísticas.
A falta de salários foi significativa para a constante modificação de elenco na
companhia, que teve quatro diretores artísticos e inúmeras formações. Como se tratava de um
projeto de extensão de uma universidade federal, as verbas eram mantidas pelas instituições
de amparo à pesquisa e, portanto, eram concedidas aos cidadãos vinculados à instituição
acadêmica (estudantes ou pesquisadores). Por conseguinte, as verbas reverteram-se para o
custeio e para a manutenção das atividades da companhia, o que dificultava o pagamento de
salários aos bailarinos. Para alguns pesquisadores e teóricos da dança, isso é fator relevante
para o não reconhecimento da companhia como grupo de dança profissional.
Eu discordo desse ponto de vista, pois a atuação da companhia configurou-se uma
experiência artística e estética, que favoreceu a formação de profissionais da dança com
conhecimentos específicos e que refletiram ações importantes na formação de outros grupos
12
Rejane Sousa é ex-bailarina e ex-diretora administrativa da Roda Viva Cia. de Dança. Entrevista concedida em
21 de fevereiro de 2009, em Natal – RN.
para o mercado artístico brasileiro.
13
No entanto, é imprescindível discutir que o trabalho
desenvolvido pelos bailarinos da Roda Viva Cia. de Dança esbarravam em uma dupla jornada
que conciliava o ambiente acadêmico e a atuação no cenário artístico. De fato, a ausência de
investimento direcionado à companhia e aos seus integrantes propiciava um estado de
insegurança nos bailarinos, no entanto, estes se portavam com a conduta de um profissional
de qualquer outra companhia tradicional do país.
Muitos dos artistas eram dependentes de aposentadorias fornecidas pelo estado ou
trabalhavam em outras instituições como empresas privadas ou no comércio. No entanto, a
dedicação e o compromisso profissional para com os ensaios eram seguidos rigorosamente, o
que incluía também atividades nos fins de semanas e feriados.
Ressalto a importância desse comprometimento como maior fator para a qualidade
das criações coreográficas que a meu ver eram realizadas com um fervor e visceralidade
marcantes, não somente na resistência física dos bailarinos como também e, sobretudo, na
dedicação e vontade empregadas às rotinas de trabalho de uma companhia.
Deslocar-se em uma cidade arquitetonicamente despreparada, ultrapassar a
indiferença das pessoas de sua rua, de seu bairro, de sua região e as barreiras de um transporte
público de péssima qualidade e inacessível, eram alguns dos obstáculos a superar
cotidianamente fora da sala de dança. Além disso, havia a necessidade do enfrentamento
familiar, no caso de alguns bailarinos, pois as relações de dependência e super proteção dos
pais tinham de ser quebradas para a construção da autonomia dentro e fora do espaço artístico.
Pertinente se faz pensar sobre a autonomia do corpo deficiente no sentido de
problematizar aspectos de ordem sócio-política e econômica responsáveis por uma construção
social arbitrária e equivocada que se instaurou sobre este corpo. Esse mesmo corpo é, todavia
compreendido enquanto sujeito em estado de auxílio, dependência e compaixão, tanto no
convívio em sociedade, bem como em sua relação familiar. A autonomia defendida aqui é
mais bem aprofundada no capítulo terceiro desta dissertação e refere-se ao modus de atuação-
produção artísticos dos bailarinos deficientes no campo cênico.
Tantas barreiras e dificuldades foram fatores cruciais para a desistência de muitos
integrantes e de pessoas que não chegaram a integrar o elenco. A seleção de bailarinos era
realizada por meio de audições públicas, e grande parte dos participantes não resistia aos
procedimentos avaliativos adotados, não por se tratarem de exigências técnicas apuradas, mas
13
Como exemplo, cito as Companhias Mão na Roda SP, o grupo Roda Pará PA, o grupo Dançando com a
Diferença Portugal a Cia. Gira Dança e Inverso Cia. de Dança, estas duas últimas formadas por ex-integrantes
da Roda Viva Cia. de Dança.
pelo rigor e pela disciplina característicos da companhia.
As pessoas não queriam desprender-se do conforto de casa, ou do apoio familiar e
encarar longos períodos de ensaio e viagens, portanto desistiam nos primeiros dias de
audição. Esse fato foi bem marcante para a consolidação do elenco oficial e do
redimensionamento da postura de cada bailarino, no sentido de que não estavam em uma
instituição assistencialista e sim numa companhia de dança comprometida com o fazer e com
a formação profissional de cada membro. Não haveria concessões ou prioridades, ali na sala
de dança, todos eram iguais perante a dança, e a responsabilidade que esta nos delegava fazia
de nós cidadãos conscientes de nossos compromissos com o trabalho, com o outro e com nós
mesmos.
Estar em cena nos palcos e na vida, enfrentar os olhares do público, seja no palco ou
no cotidiano, para o deficiente é uma linha tênue entre dois espaços que se ressignificam
constantemente por meio da experiência artística da dança. Essa relação do corpo deficiente
fora e dentro do espaço artístico é uma das características do bailarino dessa companhia, e
esse fato, consequentemente, repercute no fazer cênico desses profissionais, o que
verificaremos mais adiante no decorrer da pesquisa.
Destarte, o bailarino, enquanto artista e deficiente físico depara-se, em seu
cotidiano, com dois universos paralelos: o preconceito social por ser visto como incapaz,
estranho, deformado e a oportunidade de expressar aquilo que socialmente não poderia por
meio da arte.
Esse poder nas mãos, nas pernas e nas próteses (se for o caso) ultrapassa a visão bela
do corpo socialmente construído, imposto, idealizado, disciplinado, “dócil” como nos diria
Foucault (1984). Ao contrário disso, reflete um corpo fugaz que subverte os padrões vigentes.
O bailarino na Roda Viva Cia. de Dança assume a deficiência e foge das
nomenclaturas politicamente corretas. O enfrentamento e o entendimento das multiplicidades
corporais de cada um refletem-se no fazer artístico que questiona o lugar excludente,
destinado aos corpos deficientes. Com efeito, o bailarino não se utiliza do discurso panfletário
da superação de limites, mas assume a poética de suas dificuldades e transcende o projeto
terapêutico inicial, ele se reconhece no fazer-cênico enquanto propositor e criador de sua
dança.
No entanto, deixo claro que essa conquista percorreu caminhos tortuosos,
aparentemente inacessíveis e que nossos tortos corpos sofreram e ainda sofrem muitas
discriminações, ao penetrar no universo das artes cênicas, sobretudo no que diz respeito à
participação em grandes festivais e nos circuitos da dança nacional. A participação de
companhias com bailarinos deficientes no espaço cênico nacional, e em específico da dança,
restringe-se a um pequeno número de pessoas, que obtém apenas oportunidades de
apresentação, mas que no fundo são discriminados com o rótulo de inclusivos.
A Roda Viva Cia. de Dança é um marco para a dança brasileira, no que se refere ao
corpo com deficiência enquanto criador. O trabalho desenvolvido repercutiu além dos espaços
considerados inclusivos e de grupos terapêuticos, o que estimulou o surgimento de inúmeros
trabalhos semelhantes por todo o país, como dito anteriormente. A trajetória dessa companhia,
e sua importância na formação de inúmeros bailarinos que por ela passaram, como também a
troca de experiência com coreógrafos renomados do Brasil e exterior, justificam a necessidade
de refletirmos sobre o trabalho e a formação dos artistas deficientes na cena artística
brasileira.
A investigação acerca do trabalho criativo do bailarino deficiente vai além dos
aspectos metodológicos de procedimentos e técnicas, ela assume o diálogo entre a
impossibilidade e o fazer-cênico deste corpo que reflete o não-poder de todos os corpos, mas,
mesmo assim, subverte o lugar da dança e do humano.
CAPÍTULO II
CORPO, DANÇA E DEFICIÊNCIA
2.1 O IDEÁRIO DE CORPO NA SOCIEDADE E NA DANÇA
A construção social da deficiência é demonstrada, neste capítulo, em confronto com
o modelo social de corpo idealizado, conjecturado, institucionalizado pelo dominante ideal de
normalidade. Nesta segunda etapa, serão discutidas e problematizadas as categorizações
corporais surgidas no transcorrer histórico, assim como suas reverberações no território
artístico.
A dança se faz presente entre os povos desde o culto ao deus Dionísio, na Grécia
Antiga, aos rituais pagãos, durante a Idade Média. Das danças de corte ao academicismo da
dança clássica no século XVII até chegarmos à dança contemporânea, que vislumbramos na
atualidade, foram muitas as fases históricas desta prática.
Na Idade Média, período que vai do século VI ao século XII, as danças foram
reprimidas e a perseguição inquisidora ao corpo se fez valer, devido à influência da cultura
romana e com o advento do cristianismo e de seus cultos monásticos. Para o historiador Paul
Bourcier (2001, p. 46), “a dança religiosa da Idade Média era uma herança popular que nunca
deixou de ser suspeita para as autoridades eclesiásticas”. O hábito de dançar foi tolerado
apenas fora dos ofícios religiosos, por se tratar de danças que revelavam uma espontaneidade
e certo individualismo condenado pelos vigentes cânones religiosos. Silva (2005, p.84),
aponta para esse período em que o homem consumia-se nas trevas espirituais, ao enfatizar que
“sem dúvida, nada mais favorável do que um tempo em que a inquisição, as pragas, a miséria,
as cruzadas e longas guerras eram parte do cotidiano”. Seria então justificável a projeção
desses fatores nas danças, nos corpos e nas mentes das populações da época e a anulação de
qualquer manifestação corporal individual e coletiva por parte da religião cristã.
Após o massacre da Cruzada Albigense, em 1209, a França exerce sua autoridade
sobre os territórios do sul província do Languedoc, local este ainda sob forte influência de
populações de costumes avançados e sem os domínios tanto religiosos como políticos. Em
nome da e da devoção à Santa Igreja, são exterminados milhares de povos considerados
pagãos por toda França e grande parte da Europa. O poder da dominação territorial francesa
consolidou sua grandeza intelectual e política na criação de centros de estudos como a
Universidade de Paris, no século XIII. A influência francófona repercutiu em um vasto
crescimento retórico em diversos campos artísticos como a música, a poesia, a arquitetura e a
dança. O período renascentista, no século XVI na Itália, representou grande referência para a
França com a efervescente produção artística das óperas italianas, do estudo da pintura, da
literatura e da música.
O estudo da métrica foi incorporado à cultura musical e às danças e promoveu o
eruditismo artístico, assim como uma organização sistemática, sobretudo, nas estruturas
musicais e nos passos da dança. Isso representou a cisão entre as danças praticadas por
populares e as danças da classe alta que agora surgiam com forte retórica e classificações. As
danças eruditas, planejadas sob a égide da métrica seriam praticadas por pessoas influentes e
não mais pelos populares, o que favoreceu a sua introdução nos espaços nobres dos palácios.
Essas danças foram denominadas balés de corte e surgiram na França por volta do fim do
século XIII e início do século XIV. Eram praticadas aos pares e com regras estabelecidas por
coreógrafos/cortesãos escolhidos pelo Rei. Os balés de corte eram organizados em torno de
uma ação dramática, tinham em suas representações temas variados como a mitologia, os
motivos romanescos e até mesmo a sua utilização enquanto propaganda monárquica. Em uma
sociedade na qual a figura do rei detinha o controle total de poder, nada mais favorável do que
criar uma vida cultural e artística planejada em função das classes altas e do ambiente nobre
dos palácios.
Na França, o Rei Luis XIV foi grande incentivador da dança, foi responsável pela
fundação da Academia Real de Dança, e a ele atribui-se o surgimento da Dança Clássica.
Nessa época, destaca-se a utilização de alguns recursos nas apresentações no interior dos
palácios; como os cenários, os figurinos, as máscaras, assim como o aparato musical e a
criação de pequenos textos que eram feitos sob encomenda para as apresentações. Alguns
desses textos contavam com a escritura de importantes pensadores do período como
Corneille, Molière e Descartes. A exigência de padrões físicos como altura, peso, languidez,
agilidade começa a ser incorporada na idealização do corpo do bailarino. Evidencia-se o
discurso monárquico de dominação política, territorial, econômica e social que se refletira
corpos os quais seriam admirados pela classe alta no interior dos palácios durante as horas de
entretenimento.
Para o historiador Paul Bourcier a sistematização da dança encontra na figura de
Pierre Beuchamps
14
sua maior representação:
14
Pierre Beuchamps foi o primeiro coreógrafo a sistematizar as primeiras cinco posições da dança clássica.
Esta mecanização corporal para a dança tem no ballet clássico herdeiro das
danças praticadas nos palácios seu território definitivo e na pessoa de Pierre
Beuchamps o precursor da técnica dos passos aplicados na dança clássica.
(BOURCIER, 2001, p. 43). (Grifo do autor).
No entanto, foi a partir do trabalho do coreógrafo francês Georges Noverre que o
balé ganhou impulso e dramatização nos gestos. O bailarino, nesse momento, deveria deixar
de lado o virtuosismo técnico e procurar a expressividade do corpo. Desse modo, adotava uma
postura menos passiva em detrimento da ação em cena, com movimentos mais amplos e
figurinos adequados ao movimento. Nasce com Noverre o chamado ba de ação ou balé
narrativo.
O século XVIII confirma-se como o da valorização da figura do bailarino e dos seus
centros de formação na Europa, bem como da fusão da dança com a ópera. Os corpos da
dança exigiam habilidades físicas que seriam obtidas com vigorosos treinamentos e
estudos.
Nota-se neste período da história um dos primeiros pilares de exclusão social
manifesta nas artes da dança; a cisão entre corpo treinado para a prática da dança e os corpos
considerados fora dos padrões estipulados. Dessa feita, nem todos os corpos serviriam para a
dança clássica e isso impulsionou o surgimento de centros de formação para a seleção de
corpos adequados para a prática da dança.
Como era preciso agradar e mostrar uma dança tão virtuosística quanto
possível, como era necessário recrutar um grupo de dançarinos profissionais
sempre disponíveis, o profissionalismo instituído, a competição entre
dançarinos que gerou, com certeza, elevaram o nível técnico. (BOURCIER,
2001, p. 141).
Com a profissionalização e divulgação das cnicas de balé nas grandes escolas de
dança da Europa sobretudo na França e na Rússia –, surgiu a figura do primeiro bailarino,
mais precisamente no período romântico da dança, no final do século XVIII, com os
chamados balés de repertório.
Outro aspecto interessante nessa fase é a consagração do corpo na cena, como objeto
de desejo inacessível. A bailarina dançava sobre a ponta dos pés, envolvida em universos de
histórias fantásticas, sobrenaturais e dramas de amor. Ao bailarino que ocupava até então os
espaços prioritários da representação restara a função de ser o suporte e a condução do
corpo dançante feminino, de modo a proporcionar leveza e dando à bailarina a ideia de um
corpo elevado, surreal, não-humano.
Percebe-se que a dança clássica reproduziu mecanismos de controle do corpo, à
medida que privilegiou o treinamento, a adequação técnica, o adestramento físico e a
repetição de normas para a formação de um corpo inserido nos padrões normalizadores da
sociedade.
Essa relação de poder também se refletiu entre diretores e bailarinos e assumiu
proporções devastadoras, no que tange ao papel do bailarino enquanto ser criativo. Essas
sequelas ainda são visíveis em alguns trabalhos de dança, nos quais a relação predominante é
a hierarquia de funções. Decerto que o caráter ritualístico da dança conferiu aos corpos dos
bailarinos uma relação hierárquica em função da figura do mestre-coreógrafo. No entanto esta
presença ritualística é observada por Michel Foucault como mecanismo de produção-
reprodução de discursos sobre os corpos.
[...] o
ritual define a qualificação que devem possuir os indivíduos que falam
(e que no jogo do diálogo, na interrogação, na recitação, devem ocupar
determinada posição e formular determinado tipo de enunciado); define os
gestos, os comportamentos, as circunstâncias e todo o conjunto de sinais que
devem acompanhar o discurso; o ritual fixa por fim, a eficácia, suposta ou
imposta, das palavras, o seu efeito sobre aqueles a quem elas se dirigem, os
limites do seu valor constrangedor[...] (FOUCAULT, 1996, p.10).
A cultura do treinamento e do avanço funcionalista nas práticas de preparação
corporal seja para o trabalho, para o esporte, ou para a guerra repercutiu para além das
esferas institucionais, atuando no campo artístico da dança. Nessa perspectiva, o bailarino
ocupou-se, nesse período, apenas da função reprodutivista de movimentos, o que reduziu a
sua vida artística à validade de suas capacidades físicas.
Somente, a partir do final do século XIX e início do século XX, o corpo dançante
começou a libertar-se das amarras da reprodução, descentralizando-se das relações de corpo
objeto dependente das regras do diretor. Descobre-se que “o bailarino não tem um corpo, ele é
um corpo” (PRIMO 2001, p. 95).
As coreografias adotaram, a partir do século XX, temas reflexivos e existenciais, o
que culminou em uma inversão das posturas características da dança clássica. As criações
tornam-se coletivas, alteram-se contagens e novas formas musicais são exploradas. O
espectador passa a sentir os corpos que dançam e abandona a forma passiva de contemplação.
Assim, ele se reconhece em outros corpos, outras histórias, outros conflitos.
François Delsarte, Jaques Dalcroze, Waslaw Nijinski podem ser citados como
responsáveis por importantes mudanças na formação dos bailarinos, do século XIX e início do
século XX, com propostas de formação mais humanas, reflexivas, e sensibilizadoras em vez
dos automatismos herdados da técnica clássica. De fato, esses procedimentos contribuíram
para o desenvolvimento da Dança Moderna, tanto na Europa como nos EUA, assim como na
preparação de bailarinos mais conscientes de seus processos corporais.
O período moderno contribuiu para pensar a dança como um fazer artístico total,
imerso em múltiplas possibilidades coreográficas, musicais, cenográficas e visuais. Esse
fazer-dança tornou-se também veículo de um corpo cada vez mais questionador,
inconformado com o cotidiano, com as dores das guerras e o conflito existencial da
humanidade. Temas místicos também ressaltavam culturas distantes, mundos exoticamente
imaginados, movimentações ondulosas, incorporadas de povos distantes e destacavam um
mundo de novas possibilidades coreográficas.
Não tratarei de dar conta de todos os processos que acompanharam a evolução
histórica da dança, mas busco aqui entender como a história, nesse campo artístico, teve no
corpo um território para o desenvolvimento da convivência de diferentes escolas e técnicas de
trabalho. Contudo, essa mesma convivência deu-se de forma progressiva, durante séculos a
dança foi instrumento segregacionista de corpos, sobretudo no que se refere às criações para
palco.
A herança histórica da cultura do treinamento e da disciplina representou em várias
camadas sociais um ideal construído de corpo, que repercutiu nos fazeres artísticos. No que
diz respeito à dança, reduziu-se o ato de dançar aos corpos capacitados para tal. Nesse sentido
a sequela imposta pela cultura do corpo virtuoso favoreceu o aparecimento de uma corrente
na dança que ansiava por mudanças e por outras formas criativas e inovadoras que
devolvessem a dança ao indivíduo em sua totalidade e diversidade.
A história da dança no ocidente confundiu-se com a história das sociedades e
acompanhou em sua escala evolutiva as mudanças econômicas, políticas e sociais. O corpo
abandonou gradativamente o lugar santificado pela religião judaico-cristã e passou a ser alvo
de especulações e questionamentos. Contudo, o corpo encontrou na dança outro terreno
sagrado, que subestimou a sua participação-contribuição em detrimento de uma prática
imaculada por uma aura mística e virtuosa. O ato de dançar, ao longo dos tempos, celebrou a
vida, tornou-se o figurativo, abraçou o criativo, assumiu-se no corpo, se descobriu
politicamente e hoje segue reinventando-se.
O corpo contemporâneo em devir é ao mesmo tempo criador e criatura e projeta-se
para além das próprias fronteiras do físico, o que o sociólogo David Le Breton denomina um
corpo-rascunho. Para o autor, o corpo torna-se cada vez mais um refratário de informações e
modificações que se consomem em intervenções cirúrgicas, protéticas, corretivas, numa busca
pelo que parece ser o desejo de um outro corpo.
O corpo é declinado em peças isoladas é esmigalhado. Estrutura modular
cujas peças podem ser substituídas, mecanismo que sustenta a presença, sem
lhe ser fundamentalmente necessário [...] o corpo encarna a parte ruim, o
rascunho a ser corrigido. (LE BRETON, 2008, p.16).
A dança de nossos dias revela um corpo além do corpo, poderoso, resistente,
indestrutível e que transcende os limites da exaustão. Esse corpoder transfigura-se em novas
feituras artísticas, novos olhares criativos não mais atrelados aos resultados, mas aos
processos e às vivências individuais ou coletivas. Assim como os modus de produção artística
renovam-se, novas formas de exclusão evidenciam-se pela ausência de corpos que não se
reconhecem nessa nova promessa criativa. Estes por sua vez estão fora dos grandes circuitos
de arte e encontram espaços nos bastidores de um fazer artístico distanciado,
discriminatório e “guettificado”.
2.2 O CONTEXTO SOCIAL DA DEFICIÊNCIA
Nossas sociedades ocidentais fazem da deficiência um estigma, quer dizer,
um motivo sutil de avaliação negativa da pessoa. Fala-se então de
‘deficiente’ como se em sua essência o homem fosse um ser deficiente ao
invés de ter uma deficiência.
David Le Breton
A deficiência ocupou lugar nas artes a partir da década de 1970, quando passou a
ocupar os setores da economia, principalmente com o advento dos estudos da deficiência,
iniciados, na mesma década, No Reino Unido e nos Estados Unidos. A luta pela inserção
social e pelo acesso ao mercado de trabalho caracterizara esse período como crucial para a
luta das pessoas com algum tipo de deficiência, nesses países. A deficiência passa a ser um
campo de estudo nas diversas áreas de conhecimento, sobretudo, na área das ciências
humanas.
As instituições criadas pelo governo para o atendimento a essa parcela da população
eram de cunho assistencialista e tinham como objetivo o tratamento e a reclusão dos corpos
deficientes em hospitais, asilos e clínicas públicas. Pertinente destacar que os corpos com
algum tipo de deficiência eram considerados anormais, pois se fazia necessário, nesse
período, a manutenção da ordem, da segurança e da profilaxia social, no afastamento desses
corpos do convívio social. Michel Foucault em sua obra Os Anormais explicita a estratégia de
controle das instituições públicas e detentoras de poder por meio do exemplo dos leprosos e
doentes mentais pacientes de hospitais de custódia, que eram excluídos do convívio social
pelo temor de suas enfermidades e por representarem uma ameaça as normas estabelecidas na
sociedade.
É com a organização de instituições por membros com algum tipo de deficiência que
países como o Reino Unido construíram um novo projeto político para a compreensão do
fenômeno sociológico da deficiência. Um exemplo assinalado pela antropóloga Débora Diniz
(2007) é a criação no Reino Unido da Union of the Physically Impaired Against Segregation
(UPIAS).
15
A criação desses movimentos sociais contribuiu para legitimar o cumprimento de
direitos e obrigações do cidadão deficiente na sociedade. Fato que se deveu ao impacto das
grandes guerras mundiais, que impulsionou a (re)socialização dos vitimados (amputados,
paraplégicos, surdos e cegos) que necessitavam integrar-se à sociedade. Até então, a
deficiência era compreendida por um modelo social comandado por uma visão patológica do
corpo, onde o que prevalecia eram as doenças do indivíduo em relação as suas capacidades.
Com efeito, o modelo social da deficiência vai além da definição do sujeito por suas lesões
corporais e estabelece uma representação política, baseada num sistema de
opressão/intervenção sobre o corpo deficiente.
No Brasil, a fundação das organizações de pessoas deficientes adquire um impulso
maior no período republicano com a criação dos primeiros centros de apoio e de
reabilitação.
16
No entanto, em nosso país, não se via uma organização política dos cidadãos
deficientes e sim uma institucionalização do corpo, por meio das ações médicas-científicas
reguladoras. Em um contexto social que anunciava desigualdades sociais e desemprego, as
camadas mais pobres da sociedade formavam o estrato mais prejudicado pelas enfermidades
físicas e mentais, o que favorecia o abandono e a rejeição das famílias.
O estado agiu por meio de ações profiláticas que visavam ao escoamento dos corpos
considerados enfermos às respectivas instituições de tratamento, abrigos, centros psiquiátricos
e casas de caridade. Isso só mudaria nos anos de 1970, com a criação de associações
independentes e mudanças no modelo assistencialista das políticas públicas destinadas aos
deficientes.
15
UPIAS – 1ª organização política criada por deficientes, tendo como fundador o sociólogo britânico Paul Hunt.
16
Um exemplo dessas instituições é a Sociedade Pestalozzi, fundada em 1927 (Giordano, 2000, p. 38).
O modelo público enraizado em bases clínicas começa a ser pensado por meio de
iniciativas de integração,
17
que promovam o direito à educação, ao trabalho, ao lazer e a todas
as necessidades básicas do ser humano.
Em meados dos anos de 1990, com a Declaração de Salamanca,
18
são estabelecidos
novos parâmetros no modelo pedagógico, para a discussão das chamadas políticas da
educação especial. Ressalto que as ações, nesse setor, ainda denunciam a fragilidade
metodológica das instituições de ensino, que ora insistem na manutenção de espaços
específicos para deficientes, ora por espaços pedagógicos considerados inclusivos, em que
alunos convivem sob a tutela de professores despreparados.
No que diz respeito às artes cênicas, a discussão sobre deficiência ainda se faz
incipiente, tornando-se necessário um maior aprofundamento sobre a questão, tão relevante
para as recorrentes falas sobre diversidade e inclusão social. O corpo deficiente se
reconhece nos espaços oportunizados por grupos que adotam o termo inclusivo, e tão pouco
se percebem nos espaços midiático-culturais, a não ser quando se trata da veiculação
panfletária dando ênfase aos atuais programas federais de inclusão social.
O discurso sobre a deficiência fez-se evocável nas artes cênicas do país nos últimos
dez anos, todavia, privilegiou um acesso restrito no que diz respeito aos corpos deficientes no
mercado artístico nacional. Assim sendo, esses corpos são subutilizados, servindo de modelo
para a criação de grupos considerados inclusivos que reforçam a visão estereotipada de um
corpo – deficiente sui generis – exemplo de vida e de superação.
O corpo deficiente “não se reconhece enquanto vítima da loteria da vida, mas se
esbarra nas imposições sociológicas impostas pela sociedade”, assinala Diniz (2007, p. 43).
Com efeito, ao mesmo tempo em que o discurso da inclusão nutre-se da participação do grupo
social para a integração-aceitação do excluído, esse mesmo discurso renova o ciclo excludente
com ações paliativas de oportunização.
A crise contemporânea do conceito da palavra deficiência traz-nos à tona a discussão
sobre o desejo e a repulsa social ao corpo considerado diferente. A existência do corpo
deficiente na sociedade fortalece a estrutura social da normalidade. Esse corpo restringe-se em
sua definição social e é percebido como meio-indivíduo, incompleto em sua anatomia,
excluído de sua cidadania, e refém das interferências públicas.
17
Termo destacado pelo professor Romeu Kasumi Sassaki (para designar o movimento pela integração das
pessoas com deficiência no final da década de 1960, nos EUA.
18
A Declaração de Salamanca foi redigida em junho de 1994 pelos delegados da Conferência Mundial de
Educação Especial na cidade de Salamanca-Espanha. Disponível em:
<http://portal.mec.gov.br/seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>.
O homem deficiente é um homem com estatuto intermediário, um homem do
meio-termo. O mal-estar que suscita vem igualmente da falta de clareza que
cerca sua definição social. Ele nem é doente nem é saudável, nem morto,
nem completamente vivo, nem fora da sociedade, nem dentro dela. (LE
BRETON, 2007, p. 74-75).
As discriminações sofridas pelo corpo deficiente e o estigma social que o
acompanhou no decorrer dos tempos refletiram-se em diversas nomenclaturas sobre o corpo e
o indivíduo deficiente como: aleijado, inválido, incapaz, pessoa excepcional, especial,
portadora de deficiência, portadora de necessidades especiais, e, por fim, pessoa com
deficiência. É válido salientar que a adoção desses nomes não modificou o olhar social sobre
esse corpo, que segue contentando-se com brechas na sociedade, brechas estas construídas
pela própria ação reivindicatória desses indivíduos.
Nas últimas décadas, vem sendo implantada uma verdadeira corrida civil pela
reivindicação dos direitos do deficiente, muitas vezes, de organismos ou grupos políticos que
oportunamente beneficiam-se dessas questões. Assim, o cidadão que tem algum tipo de
deficiência torna-se objeto estratégico de discussões que estão fora de sua realidade, de seu
convívio, ou posicionamento político, social e cultural.
Dessa feita, a crise instalada da deficiência assume o discurso vivo mantido pelas
instituições reguladoras, que se enfrentam entre as constantes reformulações politicamente
corretas, ignorando as condições reais de exclusão e de convivência desses corpos. A inclusão
que se materializa de forma midiática não inclui o corpo deficiente, que por sua vez, não se
reconhece no meio social, econômico e político, perpetuando, assim, a segregação constituída
pela sociedade perfeita.
A palavra deficiência quando empregada na linguagem senso comum –, adjetiva
todo o mal existente, a falha humana, a ineficiência dos sistemas, as incompetências dos
poderes sociais. Ela ainda é compreendida nos moldes reducionistas de um binarismo
corporal normal X anormal. Esta visão cartesiana de mundo, que permanece ainda atrelada
aos binarismos classificatórios, vitima o cidadão que tem ou adquire uma deficiência
renegando-lhe os espaços de convívio e atuação em sociedade, reafirmando a supremacia das
instituídas eficiências.
A própria estrutura da palavra deficiência denota uma espécie de sabotagem em seu
significado, se pensarmos numa grafia performativa como (d)eficiência, o usada em textos
que defendem a inclusão do deficiente nos espaços sociais. A justificativa do corpo nas
sociedades pela ótica da eficiência consolida o poder investido à normal-sociedade para a
regulação, o controle, a seleção dos corpos que deverão ser aceitos ou segregados do convívio
social.
Nesse sentido, destaco que para o corpo deficiente essa condição pode dar à tão
desejada eficiência outro tipo de sentido. Ao ressignificar suas impossibilidades, o corpo
socialmente considerado incapacitado, inválido e impossível constrói novas possibilidades,
através de suas perdas físico-sensoriais, bem como de suas experiências cotidianas. O que
importa ser observado são os discursos que estão por traz do modelo social da deficiência.
Estes suprimem as capacidades humanas muito mais do que as deficiências corporais,
segregam, nomeiam e classificam, restando aos indivíduos a condição excludente de corpo
anormal, inferior, incapacitado.
Na próxima etapa deste capítulo, farei a abordagem do que considero terminologias
responsáveis pela construção da alteridade deficiente no decorrer histórico o corpo
monstruoso, o corpo doente e, enfim, o corpo deficiente para maior compreensão de como
essas categorias colaboraram para a institucionalização do modelo corporal da deficiência em
nossa sociedade.
2.2.1 O corpo monstruoso
As três criaturas que praticavam aquele rito misterioso eram de forma
humana e, contudo, aqueles entes humanos evocavam, no seu conjunto, uma
singular semelhança com um animal qualquer muito conhecido. Cada um
daqueles monstros, apesar da sua aparência humana, dos seus farrapos de
vestimenta e da grosseira humanidade dos seus membros, patenteava em si,
pelos movimentos, pela expressão dos traços e dos gestos, por todo seu
modo de andar, um não sei que irresistível que sugeria à idéia a lembrança
do porco, o cunho mais evidente da animalidade.
G. H. Whells
São inúmeros os relatos de lendas e passagens marcantes sobre monstruosidades em
toda a história do ocidente, desde o mito de Adão e Eva criada a partir de uma costela –,
mito este fundador de toda a religião judaico-cristã.
A luta de Teseu e o Minotauro, bem como as façanhas do deus do Metal Hefesto,
com sua perna coxa, o olho aterrorizador do Ciclope, a Medusa com sua cabeça cheia de
serpentes, povoaram o imaginário da mitologia grega. É um exemplo inegável de como a
ideia do feio, da monstruosidade e do imperfeito podem criar histórias amorais, fantásticas e
de uma maldade avassaladora. A mitologia foi um território fecundo para a criação de figuras
bizarras, inimagináveis, fabulosas por seus poderes e suas profecias, bem como a presença
inconsciente do desejo pelo herói que salvará a todos os povos do poder das forças malignas.
O universo literário foi permeado por histórias de suspense como O Corcunda de
Notre Dame (HUGO, 1831), Frankenstein (SHELLEY, 1818); Drácula (STOLKER, 1897);
O Médico e o Monstro (STEVENSON, 1886); A Ilha do Dr. Meureau (WELLS, 1896);
Crash-Estranhos Prazeres (BALLARD, 1973) e muitos outros contos bizarros que se
tornaram verdadeiros clássicos de horror inclusive com versões para o cinema –,
perpetuando a crença de que o feio, o horrendo e o deformado simbolizam crenças negativas,
suspeitas, imperfeições morais e abominações, numa verdadeira ameaça a paz social.
Os vilões dos desenhos animados, os contos de fadas em que o simpático feioso,
sempre disposto a dar sua vida para o salvamento da bela princesa, que no final se casa com o
príncipe perfeito, são criações que denunciam um falso ideário da presença do feio/monstro
no imaginário coletivo.
Poderia também citar o folclore brasileiro com personagens como o Saci Pererê e
sua perna amputada, O Curupira que é um anão com pés virados para trás, a lenda do
Lobisomem, do Boitatá e tantas outras que permeiam o imaginário popular, revelando formas
e aparências assustadoras. Essas figuras em sua maioria são personagens carismáticos,
debochados, prestativos, sempre prontos a solucionar problemas. Seriam infinitas as leituras,
que aqui não caberiam, das diversas possibilidades de análise desses típicos da cultura popular
nacional e mundial.
O monstro serve à sociedade no papel da manutenção do poder do belo, na gestão da
ordem, no equilíbrio das funções sociais. A figura monstruosa comanda os contrários, ocupa
os lugares que não podem ser vistos e que, portanto, devem ser abjetados.
Os corpos considerados imperfeitos estão registrados desde as mais antigas
civilizações. No antigo Império Romano tem-se encontrado relatos sobre nascimentos de
corpos defeituosos, que por não carregarem consigo o extrato da beleza corporal eram jogados
à morte em rituais ou extermínios em massa. com os povos da Grécia Antiga a ideia do
belo perpetuava-se na crença de que além da beleza projetada em obras de arte, deveria haver
também a beleza da alma. O filólogo Humberto Eco ressalta a dialética existente ao longo da
história entre a feiúra como responsável por todo mal existente ou como um estado de
redenção espiritual:
[...] o se definiu até hoje se os antigos entendiam como belo tudo aquilo
que agrada, que suscita admiração, que atrai o olhar, tudo aquilo que em
virtude de sua forma, satisfaz os sentidos, ou uma beleza espiritual, uma
qualidade da alma que pode, às vezes, não coincidir com a extraordinária
beleza do corpo [...]. (ECO, 2007, p. 24).
Sendo assim, desde as antigas civilizações ocidentais, havia uma consciência do
belo e do feio enquanto organismos complementares, em específico o caso da Grécia e dos
povos africanos que cultuavam divindades representadas em sua grande maioria sob máscaras
deformadas de criaturas de aparência monstruosa.
No caso de Roma, a necessidade de investimento militar resultou em uma seleção
qualitativa dos corpos, aquele que não servisse fisicamente à guerra ou à produção bélica seria
prontamente eliminado, muitas vezes ainda recém-nascido.
A Idade Média foi o período em que o corpo imperfeito foi considerado a
representação de todo mal, ele deveria ser resguardado e protegido em nome de Deus para o
perdão dos pecados. O silenciamento desses corpos provocou inúmeras perseguições da Santa
Igreja aos considerados hereges. A crença na submissão do homem à vontade sagrada do
criador favoreceu a disseminação da cristã na Europa com o culto às imagens que
representavam o martírio de Cristo na Cruz.
A religião cristã pregava a morte como o caminho para a salvação criada por Deus,
único juiz da verdade. Assim, todas as coisas deveriam ser perfeitas diante da criação divina,
numa verdadeira visão pancalista do universo, como nos afirma Eco. Segundo o autor, é só a
partir dos textos de Santo Agostinho que se reconhecerá o feio como elemento indispensável à
ordem das coisas do mundo, para a manutenção do equilíbrio do universo a presença do feio é
necessária, na medida em que também são seres criados por Deus.
[...] é na esteira Agostiniana que reencontraremos no pensamento escolástico
vários exemplos da justificação do feio no quadro da beleza total do
universo, onde também a deformidade e o mal adquirem o mesmo valor no
qual no claro-escuro de uma imagem, na proporção entre luz e sombra, se
manifesta a harmonia do conjunto [...]. (ECO, 2007, p. 46).
A figura do monstro é percebida, nesse caso, como exemplo de condenação,
infortúnio, desgraça, mas aceita pelo bom princípio cristão da compaixão e da tolerância. Isso
denota certa complacência da religião cristã à figura do monstro, enfatizando a importância de
todas as criaturas e sua completude universal diante do poder supremo da igreja. As
representações do inferno através de imagens aterrorizantes, mundos de fogo eterno e a figura
monstruosa do diabo firmam o castigo para o desviante cristão e o preço a pagar pelo
comportamento pagão. O paraíso é a promessa de um mundo melhor e belo, uma passagem
vista pelos povos humildes como a rendição de todo o mal. O feio simboliza todo o mal, a
punição, o castigo eterno do terror da carne.
Justifica-se a necessidade .protecionista das religiões, sobretudo, das religiões de
origem judaico-cristãs, de compreender aqueles que apresentam alguma anormalidade como
seres dignos da compaixão, da boa vontade e da complacência dos homens. Esse fator é
consequentemente vetorializado para a humanidade, caracterizando representações sociais que
reproduzem um ideal de vitimização-penalização dos corpos imperfeitos.
Também no período medieval, várias histórias fantásticas e contos populares de
monstros inventados e, por vezes antropomorfizados, percorreram toda a Europa. Isso
favoreceu o exagero das descrições absurdas nas obras da literatura medieval que povoaram o
imaginário dos populares. Nas grandes cidades, as histórias representavam a possibilidade de
chacotear a classe nobre, numa espécie de vingança vassala dos explorados camponeses.
Estes, por sua vez, parodiavam o cotidiano da nobreza exploradora. Assim, nada mais
oportuno do que aproveitar festas populares como o carnaval que se traduziam
perfeitamente como manifestações de massa.
Os atos considerados obscenos ou escatológicos podiam ser vistos nas praças e ruas
por meio de historietas ou piadas contadas pela população. Essa ação popular que retoma o
teratológico, a escatologia, o baixo escalão é traduzida por Mikhail Bakhtin como uma força
que emerge do baixo ventre, do inferior, das partes escondidas, silenciadas pelo pudor e pela
moral cristã e que se revelam como parte da condição humana.
Uma das maiores histórias populares do fim da Idade Média e início do
Renascimento foi a epopeia do gigante Gargantua e de seu filho Pantagruel, do escritor
francês François Rabelais. Esta obra marca, durante a Idade Média, o surgimento da literatura
grotesca e dos romances de cavalaria, que sai dos guetos populares para os espaços nobres e
intelectuais da Europa para tornar-se, como afirma Eco (2007), “uma verdadeira revolução
cultural”. Segundo historiadores, a palavra “grotesca” deriva da palavra gruta, destaca um
estilo que surgiu como categoria estética e que propôs outro entendimento do belo, outro
olhar para o virtuoso, ao permitir a pluralidade de formas, perspectivas, variações de sombras,
trejeitos, intenções e vocabulários.
Eles não são mais os apavorantes gigantes que se rebelam contra Júpiter,
inexoravelmente condenados pela mitologia clássica, nem os monstruosos
habitantes da Índia das lendas medievais: em sua incontinente e ‘enorme’
grandeza, transformam-se em heróis dos novos tempos. (ECO, 2007 p. 142).
O feio e o monstruoso marcarão presença no imaginário coletivo em todas as áreas
artísticas, como nas obras de Peter Bruegel, a exemplo da Figura 1, as gárgulas assustadoras
das igrejas góticas europeias, os textos obscenos de Sade, os contos populares de Rabelais,
entre inúmeras outras criações que aqui poderiam ser infinitamente citadas.
O período renascentista foi cenário para a criação de obras de grandes mestres que
retrataram com fidelidade o cotidiano de pessoas deficientes, como exemplo: o pintor Peter
Bruegel, citado, Diego Velazquéz (Figura 2), Spagnoletto Rivera (Figura 3) e Nicholas
Poussin (Figura 4).
Figura 1 – Parábola dos Cegos, de Peter Bruegel (1568) Figura 2 – Don Sebastian de Morra, de Diego
Velazquéz (1645)
Figura 3 – O
pé aleijado, de Spagnoletto Figura 4 – Os cegos de Jericó, de
Ribera(s/d) Nicholas Poussin (s/d)
Essas obras, de modo interessante, revelam em seu conjunto o olhar captado pelo
pintor, provavelmente, de pessoas integrantes de seu convívio ou de contos religiosos de curas
atribuídas a milagres. A tensão presente no quadro de Bruegel transmite-nos um desconforto
ao imaginar a situação desses cegos, que, um a um, vão caindo em um fosso; as expressões
dos rostos modificam-se, uma a uma, ao passo que a certeza de apoiar-se no outro representa
a própria queda. A pintura renascentista do culo XVII era permeada por um intimismo, ao
expor a cotidianidade dos vilarejos, das famílias, da nobreza.
Assim também foi o estilo grotesco que evidenciou o imaginário popular, a
cotidianidade local, a imperfeição física e moral das sociedades por meio de manifestações de
rua que permitiam a exacerbação do indesejado, do incômodo, do repugnante e da intimidade
corporal silenciada pela religião. O estilo grotesco atestou a sua importância política, mas
também exibiu o igualitário lugar humano, das diferenças e das imperfeições, demarcando um
período artístico rico nas variadas e imperfeitas formas impressas às obras de arte, além de ser
corajosamente subversivo aos dogmas morais.
Para Sodré (2000), a estética do grotesco permanece enquanto fenômeno social,
necessidade humana de subversão que se repete na contemporaneidade. As manifestações
carnavalescas, os programas bizarros de TV, as exibições de violência explícita e toda uma
indústria midiática que desenvolve novas formas teratológicas de entretenimento. A
especulação e espetacularização da morte, dos acidentes, das tragédias pessoais são
televisionadas e transmitidas via satélite para a apreciação pública, em uma espécie de circo
de horrores contemporâneo.
Com efeito, é somente a partir da metade do século XIX e início do século XX que
as então consideradas monstruosidades adquirem sua maior projeção com a exploração/
especulação dos corpos defeituosos em circos. Trata-se do maior comércio artístico de corpos
já existente em toda a história da humanidade: os chamados Freak Shows.
Phineas T. Barnum foi o maior responsável pela criação dos chamados museus da
moeda,
19
nos Estados Unidos no século XIX. Nestes museus eram expostas imagens de
corpos defeituosos, bem como pessoas com deformidades físicas que serviam de divulgação
para seus shows itinerantes pelo país nos chamados Barnum and Coup´s Greatest Show on
Earth (Naruyama, 2000). Esses shows de aberrações humanas foram um verdadeiro
fenômeno de bilheteria na América e em parte da Europa, de 1850 até 1956.
Muitos dos corpos exibidos eram de imigrantes trazidos de outros países por Barnum como
souvenires exóticos, apresentados ao grande público, que encontrava nos espetáculos uma
opção fascinante de entretenimento.
19
Estes museus eram espaços destinados à visitação popular, e por uma moeda de prata os visitantes podiam
assistir às exibições de pessoas vítimas das mais variadas deformidades. Eram museus considerados espaços
educacionais, representados geralmente por um suposto conhecedor das temidas anomalias.
Anões, pessoas obesas, esqueléticas, gêmeos siameses, hermafroditas, amputados,
cabeças pontiagudas, mulheres barbadas, gigantes, engolidores de objetos compunham essa
verdadeira miscelânea de atrações que despertaram inusitadas reações, o que Courtine (2007,
p. 278) denomina como voyeurismo cultural do século XIX e XX.
Esse tipo de exploração representou a emergência financeira de verdadeiros
marchands de corpos imperfeitos, em uma época na qual a ignorância se sobrepunha à
informação acerca de cada caso. Confirma-se assim a supremacia do olhar normativo sobre os
corpos considerados monstruosos, vistos como uma prova da degeneração humana.
No contexto pós-guerra, vigente nos EUA no final do século XIX, não seria difícil
pensar que as opções de entretenimento limitavam-se aos encontros em parques públicos ou
idas aos famosos Museus da Moeda. O lazer era garantido pelo curioso desejo da novidade,
que para a época era representada pelos corpos classificados como monstruosos.
A ótica do corpo social sobre o corpo monstruoso transcendia as questões de ordem
física, o monstro representava uma ameaça à ordem das coisas no mundo. A monstruosidade
podia ser um comportamento, um posicionamento político ou um desejo considerado
anormal, essa era a sentença para a ação punitiva e para o exercício de uma profilaxia social.
Nas palavras de Foucault (2002, p. 70), “[...] o monstro contradiz a lei. Ele é a infração, e a
infração levada ao seu ponto máximo [...]”.
O Filme Freaks, a Parada dos Monstros (1932), do diretor Tod Browning´s
(ilustrado na Figura 5), foi um marco na exposição da realidade desses circos nos Estados
Unidos e na Europa. Realizado com atores que já eram atrações de circo, a exemplo de Prince
Randian (Figura 6), narra a vida dura dos artistas, os seus conflitos e desejos. A narrativa
retrata a vingança do grupo de freaks, liderado por um anão traído pela bela dançarina que o
trocou pelo homem domador de touros, em uma cena clássica que traduz claramente a
rejeição ao diferente e à capacidade humana de explorar sentimentos e fraquezas.
Essa corrupção de corpos, por meio da figura de Barnun, possibilitou aos Freaks uma
espécie de fama restrita, exibida em postais fotográficos alguns até mesmo com conotações
eróticas –, jornais e comentários em rodas populares da época. Courtine escreve:
O monstro é sempre uma exceção que confirma a regra: é a normalidade do
corpo urbanizado do cidadão que o desfile dos estigmatizados diante da
objetiva que convida a reconhecer no espelho deformador do anormal.
(COURTINE, 2007, p. 280).
Figura 5 – Freaks (1932). Direção Tod Browning´s. Figura 6 – Prince Randian (The Living Torso)
Esse corpo serviu a uma cultura de entretenimento vigente, na época, e sustentou a
ignorância das sociedades em relação às patologias, ainda desconhecidas, desses artistas que
foram vítimas da monstruosidade moral de um tempo histórico. A exclusão consolida-se
pelo comportamento social e, sobretudo, pela lacuna educacional das populações ocidentais.
No entanto, em cena, os artistas consolidavam seus talentos para a representação de
personagens que, a meu ver, mesclavam-se com as experiências vividas no corpo. A
convivência entre eles denotava um universo onde havia um código de conduta e fidelidade
entre todos os freaks. Se alguém, de alguma maneira, agredisse a um deles, estaria agredindo
a todos. O lado afetivo dos personagens merece ser destacado como um ponto a favor, na
discussão sobre as relações amorosas dos artistas freaks, fato este que para a época
representara um avanço.
O filme perpassa conflitos amorosos, dores e angústias que são comuns a todos os
seres humanos. As histórias de amor mesclam-se no enredo, revelando as fraquezas
emocionais de todos os envolvidos na trama. A competência e o profissionalismo artístico de
todos são visíveis nas cenas do filme, desmistificando-se a incapacidade imposta pela
sociedade da atuação destes no território cinematográfico ou em qualquer outro.
Ao observar as imagens (Figura 5) pode-se ver claramente que o próprio meio de
divulgação do filme remete à divisão entre a beleza representada pelo belo casal de artistas,
e a anormalidade, representada pelo grupo dos freaks. A tensão presente na imagem retrata
sentimentos como medo, repúdio, revolta e superioridade, muito bem destacados nos planos
pelos quais se distribuem os personagens.
O diretor Tod Browning´s revela um pioneirismo em abordar tal tema em época na
qual o foco especulativo reinou sobre o corpo considerado imperfeito. Ele discutiu questões
que iam desde as situações afetivas o amor do anão pela bela bailarina –, até o convívio em
uma sociedade extremamente excludente e o preconceito enfrentado no cotidiano do próprio
circo.
O pesquisador e colecionador de raridades Akimitsu Naruyama, observa em sua
obra Freaks, aberrações humanas que:
A fama dos artistas dos Freaks Show trouxe-lhes, pelo menos, a
estabilidade financeira, mas a maioria das pessoas com este tipo de
anormalidades vivia em piores condições. Eram condenadas, normalmente, a
curtas vidas de miséria, fome e isolamento
(2000, p. 22).
A especulação-espetacularização dos freaks na indústria do entretenimento em
meados do século XX marcou o surgimento de um mercado artístico que se preparava para
explorar ainda mais as potencialidades de corpos deformados. Estes por sua vez,
fragmentados entre a visão assistencialista religiosa, o olhar clínico especulativo da medicina
e a espetacularização artística de seus corpos. A comercialização da deformidade no final do
século XIX e início do século XX, mostrou-se lucrativa para aqueles que dela se
beneficiaram, o que de fato transformou-se hoje num alerta e num debate ético sobre a
especulação de corpos com algum tipo de deficiência que, ainda permanecem estratificados
no território artístico e no exercício de sua cidadania. Os monstros, nesse caso, foram outros.
2.2.2 O corpo doente
A perturbação perceptiva que se acha no fundo da fascinação pelas
deformidades humanas é precisamente aquilo que o naturalista procura
reduzir na classificação ordenada das espécies teratológicas: todas as formas
inquietantes do espanto são por ele substituídas pelo distanciamento racional
da observação.
Jean Jacques Courtine
A figura do monstro desmistifica-se das visões especulativas iniciadas pela
representação científica do século XIX, no decorrer do século XX, e passa a confrontar a
cultura voyeurística
20
com uma recém-criada cultura da observação científica. Isto se deveu à
dedicação dos avanços da medicina no campo dos estudos da genética e da embriologia,
abrindo um novo campo de investigações: a chamada teratologia científica. O monstro seria
também humano e como aponta Courtine (2007, p. 296), “a teratologia constituiu avanço
crucial no conhecimento do ser vivo, pelo fato de ter mostrado pertencerem à espécie humana
certas formas de vida que pareciam manifestar diante dela a mais irredutível alteridade”.
Essa constatação repercutiu também nas esferas jurídicas, já que o corpo considerado
monstruoso fora excluído de todo o aparato legal por não ser legitimado como indivíduo. A
tutela do monstro dependerá da decisão médica, que interferirá para além do corpo, atuando
na esfera do controle, da vigilância e da punição do anormal.
O eixo da corrigibilidade incorrigível vai servir de suporte a todas as
instituições específicas para anormais que vão se desenvolver no século
XIX. Monstro empalidecido, banalizado, o anormal do século XIX também é
um incorrigível, um incorrigível que vai ser posto no centro de uma
aparelhagem de correção. (FOUCAULT, 2002, p. 73).
A autoridade poderá intervir ou não na exibição dos monstros de acordo com
inspeções que verificavam a validade das patologias apresentadas em detrimento de alguma
exibição enganosa. As reações das autoridades científicas vão contribuir para uma nova
postura social, que agora, se apercebe das causas de cada anormalidade e adota um sentimento
de complacência-investigativa em relação ao corpo monstruoso.
20
Termo utilizado pelo historiador Jean Jacques Courtine (2007) para designar o período histórico em que os
corpos considerados anormais eram alvo do olhar e da especulação pública mercadológica.
Importante ressaltar que houve perseguições policiais aos circos a partir de 1860 a
1920, estas ações visavam à manutenção do controle e da lei no combate ao tumulto
provocado por tais apresentações consideradas repugnantes e ultrajantes.
Essa criminalização do olhar segundo Courtine repercutiu na esfera pública de modo
à reconfigurar o corpo-monstro em corpo acometido de enfermidades. As instituições
hospitalares como manicômios, asilos, orfanatos, instituições religiosas passam a receber
crianças comprometidas fisicamente ou mentalmente, rejeitadas por suas famílias e entregues
à própria sorte.
A conduta médica assume neste sentido a responsabilidade legal do paciente, seu
corpo constitui-se em propriedade de investigação, decisão e julgamento. No caso dos
manicômios o afastamento do louco é considerado como ato de utilidade pública em
detrimento da ordem social e moral. Este corpo institucionalizado torna-se refém das práticas
reabilitadoras, através dos experimentos realizados pela ciência médica, com uso de
medicamentos, exames invasivos e brutais como a prática do choque elétrico e da lobotomia.
É o momento em que o estado, através dos órgãos médicos se apropria do direito
corporal, suprimindo a vontade individual pelo desejo da normalização o que Foucault (1999)
denomina como biopoder, na corrida pela equiparação funcional do corpo que, curado,
retorna as suas atividades produtivas, pilar da sociedade capitalista. Para o autor os
biopoderes são as manipulações institucionais do corpo pelos aparatos clínicos de controle , o
corpo passa a ser objeto de decisões médicas em detrimento de uma correção corporal. É o
lugar do saber-biológico, que interessa e supre o lugar do humano.
As contribuições de Michel Foucault para as problematizações acerca dos discursos
impostos sobre os corpos no campo da saúde mental, sexualidade, jurisdição e na política,
foram de extrema relevância para a emergência de um campo teórico investigativo e,
sobretudo, descentralizador no que se refere ao entendimento do poder e suas distribuições
intersticiais nas esferas institucionais e sociais. O pensamento foucaultiano contribuiu para
um pensar crítico sobre o corpo, enquanto projeto de uma ideologização punitiva e
normalizadora, que privilegiou a manutenção da ordem e do controle social.
Constata-se assim que o século XIX no ocidente representou o poder disciplinar dos
corpos guiados pelo controle médico-estatal, subordinados aos usos políticos das tecnologias
em desenvolvimento. Torna-se inegável o fato de que admitir um corpo em condições
improdutivas seria um retrocesso nos modos de produção do capitalismo, sendo necessária a
regulação, a avaliação e correção do corpo social. Neste sentido, cabe à instituição médica o
controle e a manipulação da vida, o fazer viver torna-se decisão institucional. “O século XIX
tinha separado o monstro do enfermo e dado início à reeducação deste último”. (COURTINE
p. 305.)
As políticas de medicalização e higienização no século XIX controlaram epidemias,
descobriram imunizações e antibióticos, treinaram o corpo para o controle sanitário ao mesmo
tempo em que programaram uma ordem profilática-eugenista. É neste período que as
primeiras ideias de nação pura começam a ser divulgadas pela Europa e pelos EUA. Isto se
deveu ao estudo da eugenia,
21
que buscava isolar genes humanos puros para perpetuação de
raças-modelos na construção de sociedades brancas, fisicamente perfeitas. Esta corrente de
pensamento foi aproveitada pelo Movimento Nazista na Alemanha da década de 1940,
reformulada para a criação de indivíduos de raça pura.
A fragilidade dos corpos enfermos, feridos de guerras, assolados pela fome,
deformados físicos, doentes mentais, contribuiu para uma tutela institucional cruel e
separatista o que ocasionou verdadeiras tragédias humanas, como as experiências dolorosas
de tratamento para doentes mentais em manicômios e o abandono de crianças com
deficiências na Europa e EUA. Aqui também chamo atenção para os procedimentos
desenvolvidos pelo médico nazista Josef Mengele, que de forma criminosa exterminou
milhares de milhares de pessoas deficientes, hermafroditas, negros, homossexuais, gêmeos e
todos os que fugissem do projeto eugênico hitlerista como cobaias de experimentos bizarros
em suas pesquisas para a criação e manutenção do ideal ariano.
Neste período o corpo é desprovido de qualquer direito, encarcerado pela cobiça
médica e suas intervenções experimentais. Assim, o corpo doente é negligenciado enquanto
ser humano é refém do isolamento, mantido fora da sociedade produtiva, restando a este
apenas deixar-se cuidar, investigar e ser testado pela escola científica.
A apropriação do indivíduo considerado anormal pela medicina resultou em um
controle governamental do corpo, uma espécie de consciência sanitária que se desenvolveu a
partir do século XX, onde as populações foram usadas como objetos de investigação, testes
experimentais para fabricação de medicamentos. Em meio a esta sociedade-laboratório
(MOULIN, 2007, p. 44), o corpo deficiente será alvo da evolução clínica, na busca de
definições patológicas para cada indivíduo considerado monstruoso.
Essa transição de corpo monstruoso para corpo doente evidenciou a influência do
pensamento positivista na prática da medicina. O levantamento estatístico das patologias, até
21
Termo criado pelo cientista inglês Francis Galton, tinha como significado bem nascido e caracteriza-se como
um provável estudo dos genes na perspectiva de gerar indivíduos que perpetuem características perfeitas de seus
genitores. A corrente eugenista defendia a eliminação de indivíduos imperfeitos.
então desconhecidas, rompiam com as idealizações sobrenaturais dos corpos. No entanto,
lançaram novas formas de classificação que reproduziram novas (a)normalizações. Para
Georges Canguilhem (2002):
A patologia, quer ser anatômica ou fisiológica, analisa para melhor conhecer,
mas ela pode saber que é uma patologia isto é, estudo dos mecanismos
da doença porque recebe da clínica essa noção de doença cuja origem
deve ser buscada na experiência que os homens tem de suas relações de
conjunto com o meio. (CANGUILHEM, 1976, p.65).
A condição patológica vitimou, ao longo da história, os corpos com algum tipo de
deficiência, estabeleceu assim um status quo de corpo fora dos padrões normalizadores, ou
seja, o corpo agora considerado doente fere o processo de normalização social imposto pela
sociedade moderna, caberia à medicina proteger a sociedade por meio de ações de internação,
isolamento, recuperação e intervenção clínica. Pensar a condição patológica por meio de uma
visão meramente fisiológica foi uma constante nas correntes médicas do século XIX e meados
do século XX. O autor, em sua obra O Normal e o Patológico (2002) problematizou a
influência do pensamento positivista na medicina e as implicações decorrentes da implantação
de um modelo clinico que privilegiou a doença acima do doente. De modo que “a clínica
coloca o médico em contato com indivíduos completos e concretos e não com seus órgãos e
suas funções” (idem, p.65).
Assim observa-se a existência de uma medicina normatizadora e corretiva cuja emergência na
detecção do problema é superior ao entendimento das patologias enquanto desdobramentos da
vida humana, os quais devem também integrar o processo de observação clinica. A norma,
neste sentido assume o lugar da cura que endireita o corpo para o retorno ao convívio social e
é por meio do poder da norma que os corpos classificados como imperfeitos carregam o peso
de sua (a)normalização também chancelada pela ação médica.
A arte contemporânea lança novos territórios de criação onde o próprio corpo é
manipulável enquanto objeto artístico que pode se apropriar e inverter o discurso médico,
convertendo-o em projetos estéticos que se inscrevem cenicamente e desencadeiam novas
ações de resistência/crítica às históricas normalizações que se abateram sobre os corpos.
Não podemos dizer que o corpo de hoje é modelado, manipulável, interferido,
modificado, apenas por uma crise humana contemporânea em virtude das negações
identitárias, das mazelas infringidas aos corpos pelas muitas idealizações sofridas e ainda
vigentes. Segundo Montserrat (1997), a modificação nos corpos não é um fenômeno
inteiramente moderno. A autora cita que antigas civilizações adotavam processos
avançados de intervenção tecnológica em corpos humanos. Como exemplo, destaca o
avançado sistema de conservação das múmias no Antigo Egito, bem como os
pr
ocedimentos
cirúrgicos, odontológicos, os abortos, e as inscrições corporais.
Para a autora, essas eram as tecnologias disponíveis para transformar o corpo neste
período:
O que hoje observamos em trabalhos como o da artista plástica Orlan
22
e do
performer Sterlac
23
são evoluções tecnológicas de suas épocas que se
refletem em suas obras, ao mesmo tempo, levantam questões sobre a
propriedade e o controle do corpo e do desenvolvimento da biotecnologia.
24
(MONTSERRAT, 1998, p. 4).
Figura 7– Orlan, em American Indian Figura 8 Sterlac, em Ear on Arm
(2005-2008) ( 2003-2006)
O corpo na arte contemporânea pode infringir a sua própria carne, tornando-a
território de modificações físicas, como exemplificado nas performances de Orlan (Figuras 7)
e Sterlac (Figura 8).
22
Orlan nasceu em Saint Etienne/França, é performer, artista visual, videomaker, trabalha como professora
permanente da École Nationale Supérieure d´Arts de Paris Cergy. Dentre as múltiplas cnicas que explora
encontram-se trabalhos na área da biotecnologia, por meio de intervenções cirúrgicas que realiza em seu próprio
corpo, o que a artista define como arte carnal.
23
Sterlac é considerado um tecnoartista devido ao uso de procedimentos e aparatos mecâtrônicos-tecnológicos
em suas performances, que vão desde implantes de partes corporais em seu corpo ao uso de hologramas e
simuladores de voz que reproduzem a fala humana.
24
Tradução Nossa: “Contemporary body artists like Orlan and Stelarc experiment with different somatic
boundaries.They attempt to transcend the (corpo) real by grafting coral ‘hornsonto the forehead or the largest
physically sustainable nose onto the face. At the same time they raise questions about ownership and control of
the body as biotechnology develops”.
O corpo monstruoso ressignificou-se por meio do discurso patológico e encontrou na
tutela médica outro mecanismo regulador que o enxergará como objeto inserido no mesmo
modelo da especulação-apreciação experimentado pelos freaks ou pelo censurado universo do
estilo grotesco. A vitrine agora não se localiza mais nas ruas ou nos circos, ela está entre os
muros da especulativa investigação clínica-laboratorial.
2.3 O CORPO DEFICIENTE, OU A CRIAÇÃO DO HANDICAP
O período Pós-Segunda
Guerra Mundial foi
um dos principais territórios para o
desenvolvimento da pesquisa científica corporal, devido aos inúmeros casos de sequelas
sofridas ao longo dos conflitos. Soldados voltavam cegos, paralíticos, surdos, mutilados e os
países aliados logo tiveram de implantar programas de reabilitação para o atendimento dos
vitimados pela guerra. A esses corpos vitimados pela guerra somaram-se os feridos em regime
de trabalho fabril, que naquele período representavam grande parte da população pobre na
Europa e nos Estados Unidos. Segundo Courtine:
Tanto em um caso como no outro vai desenvolver-se um discurso de
assistência que impõe a necessidade de uma reparação, o reconhecimento de
uma responsabilidade e de uma solidariedade coletivas e o recurso ao
Estado, cujo envolvimento cresce no decorrer da década de 1920 através de
um conjunto de medidas de integração de reclassificação e de reeducação.
(COURTINE, 2007, p. 305).
A imperfeição corporal passa a ser vista como insuficiência a compensar com
possibilidade de restauração. Termos como handcap, utilizado nos Estados Unidos, passam a
denominar pessoas com algum tipo de incapacidade ou desvantagem. Chamo a atenção aqui
para a utilização desse termo que tem na sua origem a manutenção do status do deficiente
enquanto pedinte, mendigo e que, posteriormente, passa a caracterizar a condição de
incapacidade-desvantagem.
No Brasil o termo handcap
25
foi incorporado para designar deficiente, sendo
substituído atualmente por pessoa com deficiência. No entanto, a intenção implícita nessas
designações é a possibilidade de implantar programas de reabilitação, substituindo o lugar do
corpo incapaz pelo lugar do reabilitado. O corpo torna-se refém da medicina reabilitadora, é
25
Handicap é traduzido para o português como desvantagem. Em uma tradução literal, refere-se a pessoas
pedintes ou num sentido mais informal, indivíduos de chapéu na mão.
alvo de procedimentos e intervenções, torna-se objeto da cura e da reparação das falhas físicas
e psicológicas.
A pesquisa protética que engatilhava os primeiros passos na produção de aparelhos e
órteses possibilitou a substituição de órgãos ou funções comprometidas, em virtude da
recuperação da produtividade dos corpos. Foi uma forma encontrada pela sociedade de
redimir-se da perda física dos heróis de guerra que doaram suas vidas e seus corpos à causa-
nação.
Essa manipulação e institucionalização do corpo pela emergência científica
comprovou as afirmações de Le Breton (2003), quando se refere ao corpo que no século XX
tornara-se um corpo-rascunho, em que a patologia assume o lugar do sujeito manufaturado,
restando-lhe a submissão à decisão e ao julgamento médico. O corpo assume o lugar
biológico em nome da cura, do tratamento, do sintoma da investigação científica laboratorial,
na qual se pode trocar órgãos velhos por novos. A medicina, nesse sentido, pode vangloriar-se
por alguns instantes do poder supremo de suas descobertas.
Esse lócus experimental corpo/deficiência/cura oficializou o estatuto
handcap/deficiência, atenuando as visibilidades corporais imperfeitas, fator crucial no projeto
institucional de integração social, mas insuficiente no progresso das relações sociais na
compreensão da deficiência como experiência humana.
Esse corpo denominado deficiente, nos alerta para o perigo das ambivalências
sociais que se dividem entre a aparente ideia de normalidade do corpo deficiente e a clara
situação de marginalização, sofrida por este, apesar das paliativas condições de inclusão
social. Como assinala Foucault (2002, p. 71) “O anormal vai continuar sendo, por muito
tempo ainda, algo como um monstro pálido”.
Chamo a atenção para a duplicidade de sentidos em relação a esse termo que parece
assumir-se enquanto identidade dos sujeitos, anulando suas capacidades, seus desejos e suas
perspectivas de vida. A ideologia médica ainda subordinada ao modelo reabilitador-
funcionalista privilegiou a colocação imediata do corpo inválido no projeto produtivista da
sociedade, desconsiderando por sua vez os aspectos culturais e pessoais de cada indivíduo.
De acordo com Diniz (2007, p. 20), “deficiência passou a ser um conceito político”.
A autora acrescenta que “todos os deficientes experimentam a deficiência como uma restrição
social”. Porém, pode-se pensar que é uma restrição criada pela maioria não-deficiente, o que
obriga o deficiente a submeter-se a um estado de segregação corporal. O corpo sequelado,
considerado inválido para a sociedade agora é passível de recuperação, inserido na ordem
econômica do trabalho, do esporte, da educação por meio da pesquisa e institucionalização do
corpo como uma poderosa máquina de oportunidades e resultados.
Ter uma deficiência é algo distinto de se deficientizar.
26
Esse entendimento o
atingiu a sociedade como um todo, apenas às pessoas que passaram pela experiência de
conviver com uma deficiência. As interpelações sofridas pelo corpo deficiente anulam a sua
capacidade de falar por si, de colocar-se diante do mundo que enfrenta diariamente. A
emergência das políticas inclusivas que, grosso modo, mostram-se excludentes, silenciou
qualquer possibilidade de reivindicação das pessoas com algum tipo de deficiência.
Aí, encontro um grande abismo entre os discursos criados em detrimento das
reinserções, integrações, inclusões sociais que, de fato, não se concretizam de forma
igualitária e sim de maneira excludente, tendo em vista que essas políticas são geradas por um
contingente institucional que representa um corpus dominante, regulador e assistencialista.
Daí a necessidade da afirmação constante nas falas midiáticas do corpo deficiente
como exemplo de superação, luta, vida, coragem e o que mais for necessário ao desejo social
da inclusão do corpo pseudo/mais/necessitado no todo social normalizado. As conquistas dos
sujeitos deficientes, sejam por meio do esporte, ou no cenário artístico-cultural não são
compreendidas como fatos inerentes à vida dos seres humanos independente de suas
possibilidades corporais , estas são encaradas como episódios inacreditáveis, dignos de um
feito espetacular.
Por outro lado, existe um discurso em prol da negação da deficiência, do seu
esvaziamento em detrimento de uma eficiência que deve ser mostrada para a sociedade, que
diz que esse corpo não pode ser ineficaz, improdutivo, ele tem a obrigação de se exibir como
exemplo para os outros que, sendo normais, não podem falhar, reclamar e sim mirar-se nestas
inventadas lições de vida. O corpo deficiente revive assim a sua eterna condição-dialética de
ora ter que provar ao mundo que é capaz de todas as coisas, e, ora não poder conviver com a
própria deficiência em toda a sua experiência, mas apenas com o estigma que lhe foi
conferido pela sociedade.
Se o corpo deficiente ocupou o lugar de espelho partido da história (BAVCAR,
2000, p. 175), isso se deveu ao fato de este ter sido considerado pela sociedade uma vítima do
próprio corpo. As marcas, as doenças, as sequelas povoaram e proliferaram no decorrer dos
tempos a especulação do olhar sobre as imperfeições no corpo, das mais distintas óticas: a
maldição monstruosa, a patologia exotizada, o fetichismo pela anormalidade, o corpo
26
Termo que utilizei aqui para criticar a inferiorização do sujeito devido às suas deficiências corporais.
institucionalizado como incapaz. Esses são status sociais conferidos aos corpos, às vidas e às
capacidades do indivíduo que têm algum tipo de deficiência para atestar a punição religiosa, o
desenvolvimento da medicina e a eficácia da política assistencialista.
O corpo deficiente escapa às definições classificatórias impostas pela história,
transcende a territorialidade dos discursos inclusivos e se posiciona diante de um potencial
infinitamente plural. Ao receber o carimbo social da invalidez, da incapacidade e da
improdutividade, o corpo deficiente privou-se de seu lugar na história, no entanto, emergiu da
própria experiência de opressão para reivindicar a posse do direito corporal, suprimido pelo
ideário social normalizador.
2.4 O CORPO DEFICIENTE NA DANÇA
Pensar a Dança Moderna e suas contribuições para a construção de uma autonomia
de movimento para os bailarinos é também pensar que essa corroborou para a criação de
novas exclusões corporais.
A explosão e a exploração da dança nos Estados Unidos e na Europa, na
metade do século passado, depois de Isadora Duncan, Loïe Fuller e outros
pioneiros da chamada Dança Moderna, possibilitaram que mais tarde, muitos
artistas portadores de deficiências físicas e com corpo considerado fora dos
padrões fossem atraídos para estilos de dança menos ortodoxos em
contraposição à dança clássica acadêmica que estava em pleno vigor até
então sob a égide do virtuosismo. (BELLINI, 2001, p. 207)
A afirmação da autora destaca um dos principais pressupostos que marcaram a
atuação do corpo com deficiência na dança: o surgimento da Dança Moderna. Porém, é um
tanto generalista afirmar que o corpo deficiente surge nas artes cênicas com o advento da
Dança Moderna. De todo é inegável reconhecer as contribuições que este corpo vem dando à
dança nos últimos 30 anos, tanto na criação de estruturas fragmentadas de movimento, como
na relação bailarino-corpo nos processos de criação cênica.
Contudo, apesar das contribuições e das realizações artísticas influenciadas por uma
emergente estética corporal deformada/fragmentada esses corpos deficientes estão do lado de
fora dos palcos, ainda contentando-se com espaços restritos.
Para a crítica Ann Cooper Albright o handcap consolida-se por uma desvantagem
que deve ser observada também pela ótica construída ao longo da história e que, no caso da
dança, deve ser percebida como um corpo em falta que nos leva a pensar sobre nossas
comuns desvantagens. Apesar da discordância com o termo, a autora reconhece a presença
desse corpo que não se determina pelas nomenclaturas; deficiente, descapacitado, em
desvantagem, mas pela capacidade criativa comum a todos os corpos e pelas novas
proposições estéticas que estes incitam. Para ela, a deficiência é a antítese cultural do modelo
do ajuste criado pela sociedade “não deficiente”.
A escola moderna privilegiou a técnica, enfatizou o treinamento e a tonicidade dos
corpos, mas possibilitou uma fusão com outras linguagens artísticas diferentemente da escola
clássica. No entanto, manteve padrões físicos para sua execução que repercutem nos dias de
hoje na chamada Dança Contemporânea. Em suma, os corpos seguem modelados por uma
eficiência dançante, uma produtividade física, o que pode ser observado nos bailarinos das
principais companhias nacionais.
Desde os corpos tonificados das tradicionais companhias como a Deborah Colker
Cia. de Dança, até as apresentações do Cirque de Soleil, o que se é uma espécie de
heroísmo corporal, em que os bailarinos vão além das suas capacidades e resistências, com
uma dança que parece importar menos do que os superpoderes corpóreos que vislumbramos
em cena.
Da mesma forma os bailarinos deficientes se deparam com um fazer cênico cada vez
mais atrelado às eficiências dançantes, onde suas capacidades e conhecimentos sobre seus
corpos são subvalorizados e transformados em ações extraordinárias de movimento. Um
exemplo é o corpo do cadeirante, caracterizado por sua força de tronco e braços, que ao fazer
determinada ação consegue realizar uma parada de mão, ou subir em sua cadeira rapidamente.
São relações presentes na dança que apesar de se manifestarem em corpos distintos,
privilegiam o mesmo aspecto funcionalista aplicado em cena. As exigências e a incessante
necessidade de demonstrar os feitos físicos anulam as capacidades reflexivas dos bailarinos
sejam eles deficientes ou não.
Em meio a essa efervescência da dança que quer ir além do corpo está o deficiente e
sua dança sem espaços dignos de atuação-formação, dependente da concessão institucional e
de suspeitosos grupos que se autopromovem à custa do trabalho desses artistas.
Não uma data específica que marca o surgimento da dança envolvendo corpos
deficientes, tudo indica que em meados dos anos 1960/70, ocorriam na Europa
campeonatos de dança de salão com a presença de partners cadeirantes, isso se justifica pela
ação da professora alemã Gertrude Kromboltz, uma das representantes desta prática na
Alemanha, a quem tive oportunidade de conhecer em um workshop ministrado na Faculdade
de Santana em 1998.
27
No final dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, os grupos com corpos com
algum tipo de deficiência surgem na Europa e nos Estados Unidos, fruto da iniciativa de
bailarinos como o caso do grupo inglês Candoco
28
e da americana AXIS Dance Company
29
.
Estes grupos tinham no elenco pessoas com e sem deficiências físicas, promovendo, na época,
um diálogo entre corpos diversos e possibilidades de criação. O trabalho desses grupos é
descrito por Albright como uma possibilidade de repensar o fazer dança, encarando as
diferenças corporais como forma de recriar com os limites.
Não tratarei de abordar o histórico desses grupos, mas ressalto sua influência no
surgimento de trabalhos no Brasil. Mesmo não tendo sido fundada com a intenção de se
caracterizar como Cia. de dança, a Roda Viva Cia. de Dança foi comparada ao trabalho desse
grupo inglês Candoco, como citado em crítica de Ana Francisca Ponzio.
Apesar dos grupos internacionais começarem com uma formação artística definida
pela bagagem de seus fundadores, no Brasil esta construção deu-se de forma progressiva.
Grande parte dos grupos surgiu de trabalhos terapêuticos, grupos de pesquisa em
universidades ou grupos de associações como a Associação de Pais e Amigos do Excepcional
(APAE). Os profissionais responsáveis eram em parte, oriundos da área da Educação Física,
com enfoque investigativo voltado para uma dança em perspectiva reabilitadora/terapêutica.
A partir de 1995, com a criação da Roda Viva Cia. de Dança, reconhece-se no país a
possibilidade do ingresso de bailarinos deficientes no circuito da dança, pois a atuação
profissional da Companhia abriu espaços que até então eram fechados para tais corpos em
cena.
Não cabe aqui a discussão da origem desses trabalhos no Brasil, mas deve-se
reconhecer o papel da Roda Viva Cia. de Dança enquanto referência para os demais trabalhos
surgidos no país nos últimos quinze anos. São inúmeros grupos que vêm desenvolvendo em
sua trajetória trabalhos com corpos deficientes. No entanto, são poucos os que se dedicam ao
enfoque no trabalho do dançarino enquanto criador, considerando a sua participação e
experiência nos processos de concepção/execução da obra coreográfica.
27
Workshop ministrado pelo professor Henrique Amoedo, então diretor da Roda Viva Cia. de Dança, trabalho
que homenageou a profa. Gertrude Kromboltz – Faculdades de Santann´a-SP.
28
Companhia inglesa criada em 1991 por Adam Benjamim e Celeste Dandeker, composta por bailarinos com e
sem deficiências, atualmente é dirigida pelo bailarino e coreógrafo Pedro Machado.
29
Fundada em 1987 em San Francisco – EUA, pela coreógrafa Thais Mazur, desde 2001 é dirigida pela bailarina
e coreógrafa Judith Smith. Destaca-se por trabalhos com coreógrafos como Bill T. Jones e Victoria Marks.
Daí a necessidade de um repensar sobre o uso do termo inclusivo na dança para
refletirmos sobre o papel dos dançarinos, bem como a sua formação nas companhias
brasileiras. Por conseguinte surgem inúmeras questões a investigar: Será que esse discurso
não reproduz um novo modelo de exclusão? E o papel do artista onde é que fica em todo esse
processo?
Para quem tem uma deficiência o ato de dançar pode representar encantamento,
empolgação, felicidade, mas pode despertar também o desejo pela pesquisa, pelo
amadurecimento criativo e profissional. O que coloco em questão aqui é: De que dança está se
falando? De uma dança que adota uma classificação para se destacar, ou de uma dança que
transcende categorizações e revela novos projetos estéticos e profissionais para o mercado
artístico? Estas questões serão aprofundadas no decorrer deste capítulo.
2.4.1 A dança inclusiva e a visão do corpo deficiente
O surgimento da Dança Inclusiva no Brasil retomou a discussão sobre o acesso da
pessoa com algum tipo de deficiência nas artes da dança. Esse termo dialoga com as políticas
de inclusão vigentes no país desde os anos de 1990, sobretudo, as políticas da educação
especial, que vêm sendo implantadas nas instituições de ensino brasileiras. O termo também
se justifica pela ideia de que todos podem dançar ou ter acesso à prática da dança,
compartilhando experiências e vivências de forma plural.
Como observado, o corpo deficiente foi alvo de novas significações de inserção, mas
essas ações, efetivamente, não corresponderam de forma satisfatória, sobretudo, porque a
formação, o acesso, e a oferta de trabalho para os artistas ainda são restritas ou alvo de
especulações políticas e institucionais. Mesmo bailarinos que passaram por trabalhos
reconhecidos pela qualidade no Brasil hoje se encontram desempregados e sem conseguir
espaços para atuação que não sejam grupos caracterizados como inclusivos.
O deficiente vivencia e repete no território artístico a exclusão sofrida no cotidiano
social. Se a dança considerada inclusiva caracteriza um projeto político em crise,
consequentemente ela põe-se também em crise e carente de transformações.
Se a Dança Moderna e Contemporânea levantaram espaços para os corpos que
queriam libertar-se das amarras tecnicistas e condicionantes do Ballet, essas podem ser
consideradas inclusivas, pois abraçaram corpos que a dança clássica rejeitou. O fato é que a
ação de dançar por si só abraça a todos sem distinções, mas quando o ato de dançar se localiza
no território artístico, este por sua vez é manufaturado em setores qualitativos e seletivos da
indústria cultural, que excluem de forma arbitrária os tipos que não se enquadram.
A criação da nomenclatura Dança Inclusiva não facilitou o acesso dos corpos ao
mercado artístico, pelo contrário, “guettificou” espaços que poderiam unificar grandes
projetos e pesquisas relevantes para refletirmos sobre a construção do pensamento artístico na
dança. Pensar a presença da deficiência enquanto experiência do humano é não amenizá-la
com discursos moderados de aceitação, enquadramento, oportunidades, e sim repensar a
própria definição do que foi idealizado enquanto corpo.
O discurso da inclusão ocupou as mais diferentes áreas humanas e, no que se refere
às artes, ainda encontra dificuldades na proposição de conhecimentos menos superficiais que
retratem de forma coerente a realidade destes corpos. Nessa linha de raciocínio, questiono se a
adoção do termo inclusivo nas artes, não traz na própria história reais vestígios da exclusão
social escamoteada por um imaginável ideário de igualdade.
Pergunto até que ponto a presença do corpo deficiente na dança e na cena não está
sendo conduzida apenas de forma ilustrativa. Ou, como o corpo deficiente pode se tornar
refém de um lugar-comum que privilegia apenas a ótica de sua construída ineficiência. A
dança categorizada como inclusiva suprime todas as possibilidades de investigação-percepção
dos corpos enquanto criações em processo, e, sobretudo, enquanto artistas que em cena não
estão apenas dançando, mas levantando proposições estéticas que vão muito além das
movimentações coreográficas. Este fazer-dança é também um fazer-pensar.
Ao dançar, o artista traz consigo para o palco a cena que vive socialmente, pois é e
sempre foi alvo do fetiche da especulação humana e da espetacularidade atribuída pelo olhar
social. Ao deparar-se com o fazer-cênico propõe outro entendimento estético, artístico e
político de seu corpo. Ele é ali um (re) criador de si mesmo, um intérprete da falta, que se
transfigura em movimentos e dança. No entanto, ele corre o risco de tornar-se um meio de
exibição gratuito, coadjuvante em obras artísticas que privilegiam apenas a sua
inserção/oportunização na cena.
O corpo deficiente sempre foi alvo do olhar especulador, visto sob uma ótica
espetacular, fosse pela visão popular, ou pela experimentação laboratorial da medicina. A
visibilidade excessiva do corpo deficiente no século XIX não pôde mais deter-se na
exploração de suas dificuldades, nem tampouco numa hiper valorização de seus potenciais.
Para Skliar, esse discurso denuncia a fragilidade das sociedades e mantém velhas estruturas de
nomeação quanto ao corpo deficiente e que decidem o que visibilizar ou não.
Há, sobretudo, uma regulação e um controle do olhar que define quem são e
como o os outros. Visibilidade e invisibilidade constituem nesta época,
mecanismos de constituição da alteridade e atuam simultaneamente com o
nomear e/ou deixar de nomear. (SKLIAR, 2001, p. 123).
Esse status quo especular espetacular imbuído aos corpos considerados anormais,
fragmentados perpetuou-se em todos os setores da sociedade, inclusive nas artes. Para a
pintura e o teatro as deformidades humanas eram motivos para criações que abordavam o
medo, a maldade, a imperfeição do negativo, a punição, a morte, a feiúra, tudo aquilo que
uma sociedade deveria excluir de sua organização. A cultura teratológica do século XIX
chancelou a sentença e os papéis sociais dos corpos considerados anormais (deficientes,
gordos, negros e doentes).
O olhar especulativo dos séculos XIX e XX concedeu lugar a um voyeurismo
moderno, que busca exemplos fantásticos de superação, façanhas extraordinárias e ações sem
limite. Resta ao corpo deficiente a recusa de sua condição e a obrigação de ser visto como a
fonte de todas as respostas para o mal-estar da sociedade. O cadeirante que em câmera lenta
emociona os espectadores nas paraolimpíadas; o corpo do amputado que consegue correr a
prova dos 400 metros com próteses; a garota linda que ficou paraplégica, na novela das oito
30
são parte dos inúmeros casos desse voyeurismo caçador de exemplos, construído nas últimas
décadas pela modernidade.
Durante parte de minha trajetória como bailarina e nos anos em que atuei na função
de diretora artística da companhia, pude constatar como se dava a manutenção das
representações construídas sobre a deficiência e de como estas impregnavam a nossa
credibilidade enquanto profissionais, pesquisadores e artistas. Isso se mostrava muito
claramente quando dávamos entrevistas, ou participávamos de matérias transmitidas para a
TV. O enfoque maior era acerca de nossas patologias, e a curiosa vontade de saber como era
dançar ou coreografar, apesar da deficiência. Chega a ser irônico o olhar predador da mídia
em relação ao grupo que comprovava, em sua época, a qualidade artística de seus trabalhos.
Parece-me haver uma constante penalização dos artistas sob a ótica de um exotismo
disfarçado pelos meios da mídia cultural. A ausência de qualquer tipo de divulgação na mídia
especializada das artes demonstra a gravidade e a exclusão de uma cena artística que completa
mais de quinze anos atuando no mercado da dança nacional.
30
Refiro-me a novela Viver à Vida, escrita por Manoel Carlos, dirigida por Jaime Monjardin e Fabrício
Mamberti. Uma produção da Rede Globo de Televisão (2009-2010). Novela cuja personagem principal é
Luciana, uma modelo em início de carreira que sofre um grave acidente que a deixa tetraplégica.
O corpo deficiente parece estar a serviço do social, apesar da recíproca não ser a
mesma, ele é espetacular aos olhos dos corpos que podem tudo, ele fascina pela ação, pela
intenção, pela coragem e sublimação das adversidades. Em meio à vida que se torna arte por
meio da dança, o corpo deficiente está dentro e fora de cena, ele é ator e espectador aos olhos
do mundo, ele é visto percebido, perseguido, comparado, sacralizado pelo desejo humano de
exemplos a serem seguidos ou simplesmente especulados pelo voraz apetite assistencialista.
O status espetacular em que se cristalizam a deficiência e o corpo deficiente
representa o território da exclusão social e, consequentemente, anula a possibilidade do artista
que segue mesmo no espaço cênico profissional sendo reverenciado por suas patologias,
ao invés de sê-lo por sua atuação artística. Essa crise de comportamentos, representações,
situações, discriminações, impregnam no corpo deficiente marcas de um projeto político-
social excludente que marginaliza o artista com o mesmo discurso exotizador do passado.
A sociedade contempla os corpos considerados deficientes e parece não acreditar na
possibilidade de reconhecer-se também nas suas incapacidades. O território artístico favorece
o acesso desses artistas, mas afasta-se do entendimento estético que estes propõem para a
emergência de outros olhares sobre o corpo considerado fora dos padrões.Slogans como:
“Fazendo a Diferença”, “Dia D da Diferença”, “Iguais na Diferença”, são muito comuns em
campanhas publicitárias e textos jornalísticos, ou no território artístico quando este envolve
corpos deficientes.
É preciso pensar a diferença
31
e a deficiência para além da ótica binária do negativo e do
positivo, uma vez que estas não se findam em um conceito único e devem ser vistas como
experiências inerentes a todos os seres humanos. Mesmo este trabalho, que não como
referencial teórico os estudos do filósofo pós-estruturalista Jacques Derrida e sua teoria
desconstrucionista sobre a diferença, cabe ressaltar que a compreensão acerca deste termo
alcançou outros níveis de entendimento, à medida que abandonou o vínculo identitário
imposto pelas logocêntricas construções sociais da alteridade.
Ao entrar em cena, o artista que tem uma deficiência traz consigo para o palco a
sua experiência social, pois é, e sempre foi, alvo do fetiche da especulação humana, e da
espetacularidade a ele atribuída. Ao deparar-se com o fazer-cênico propõe outro entendimento
31
Chamo atenção para a utilização do termo “diferença” nesta escrita, que se aproxima ao conceito de
Diferença proposto pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, no entanto não se encerra especificamente sob
a perspectiva deste autor. A “diferença” para Derrida pode ser compreendida enquanto um projeto político-
filosófico, norteador do pensamento desconstrucionista proposto pelo autor. Derrida introduz seu conceito de
diferença para abalar e substituir as oposições binárias do sistema logocêntrico. A Differance não se encerra com
uma definição arbitrária, ela representa um arquiconceito que mobiliza o surgimento de outros conceitos numa
reação que abala a idéia da origem e do pertencimento (o farmaco, o descentramento, o suplemento e o jogo).
estético, artístico, político de seu corpo. Ele é ali um (re) criador de si mesmo, um intérprete
das impossibilidades.
CAPITULO III
DEFICIÊNCIA EM CENA
3.1 O CORPO DEFICIENTE E A CENA
A discussão realizada no capítulo anterior evidenciou o problema da construção da
alteridade deficiente no decorrer da história. Desde as primeiras nomeações e categorizações
do corpo aos termos institucionalizados pelas intersticiais ações dos mecanismos de poder,
percebe-se a grave situação dos corpos que ainda se encontram sitiados no exercício do direito
em toda sua completude, inclusive do direito à criação artística. Refiro-me ao conceito de
poder analisado por Michel Foucault em suas obras Em Defesa da Sociedade, A Ordem do
Discurso e Os Anormais. Para esse autor, as ações dos mecanismos de poder não são
subordinadas somente ao aparato estatal-institucional. O poder é um organismo vivo na
sociedade, agindo das mais variadas formas, principalmente na consolidação de saberes que
podem se tornar novos dispositivos de controle e poder.
A partir do tema abordado, concentro nesta etapa da pesquisa, o enfoque
investigativo acerca das questões que envolvem a cena contemporânea e o corpo deficiente,
entendendo cena como lócus social e lócus artístico. O papel político e artístico, a formação
dos bailarinos e a crítica ao modelo inclusivo, implantado na dança, também serão abordadas
neste capítulo, bem como a busca pela autonomia criativa do artista.
Os estudos da cena encontram em diversas correntes científicas variantes
significados que abordam desde a compreensão dos fatos cotidianos enquanto atos encenados
como o caso da etnocenologia , aos estudos da cena enquanto junção de novas linguagens
na contemporaneidade, como, por exemplo, hibridismo na cena contemporânea; mestiçagem e
cena; e a cena pós-dramática.
Não tratarei de defender, neste trabalho, a compreensão da cena com base nesses
conceitos e sim analisá-la sob o enfoque de ordem epistemológica no intuito de problematizar
as questões referentes ao corpo deficiente em lócus cênico e social.
A palavra cena tem origem do grego σκηνή,
32
ou skênê (barraca/tablado) e este
termo sofreu alterações ao longo da história da humanidade. Às modificações na morfologia
32
Fonte: PAVIS, Maurice. Dicionário de Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008.
da palavra foram incorporados diferentes significados como lugar ou cenário onde se
apresenta algo.
Nos dias atuais, a palavra cena refere-se à ação de fazer cena para alguém encenar.
Ao observar as modificações sofridas pelo termo, podemos constatar que o conceito de cena
passa a ser associado e incorporado ao indivíduo, diferentemente do sentido usado na
antiguidade, que estabelecia relação com a alteridade espectadora.
33
Ao assumir o estar em
cena, o indivíduo faz cena, apropria-se do lugar cênico, ocupa o lócus da ação e da criação.
Nessa perspectiva, observemos as palavras de Roberto Morais, ex-bailarino da Roda
Viva Cia. de Dança e cofundador da Cia. Gira Dança, ao nos falar que:
Quando começamos a apresentar fora da sala de ensaio, começou a
prosperar um trabalho mais artístico e a gente procurou buscar a arte.
Começamos a trazer gente de fora para trabalhar com o grupo. E nós
éramos muito cobrados para um trabalho de qualidade, para sair do
terapêutico, pois o terapêutico não gerava nada, gerava somente a
motivação para o deficiente sair de casa; e o grupo não queria isso. Nós
queríamos que o deficiente se tornasse um artista.
34
O corpo hoje está em cena em toda a sua dimensão, exposto, fragmentado, mutilado,
transfigurado em ações de enfrentamento, risco e resistência política. O corpo reivindica mais
do que nunca o seu direito à intervenção e alteração do status sagrado a ele concedido. Essa
profusão corporal na cena contemporânea não estabelece fronteiras, e tudo pode ser validado
pela emergência de novos conceitos, de novas técnicas e experiências criativas em devir.
Quando falamos em cena envolvendo bailarinos com algum tipo de deficiência,
caímos em território ainda por ser desvendado, cujas interpretações repousam em avaliações
sistematizadas e em procedimentos laboratoriais de verificação-aplicação de métodos, bem
como das possibilidades criativas dos corpos. Sendo assim, parece-me que caímos em um
discurso no qual a subestimação das capacidades do corpo considerado diferente, justifica a
aplicação do modelo do teste, da verificação, que instrumentaliza o corpo não-deficiente para
a interpelação pró-deficiente. A super exposição de suas patologias ou de suas capacidades
físicas como atos heróicos , em lugar de seus processos de autoria e criação artística, reflete
o contexto atual desses artistas.
A exotização dos corpos adjetivados como diferentes, estranhos, deformados,
anormais e tantas outras coisificações, denota um enfoque especulativo-laboratorial, do ponto
33
Só existiria cena se houvesse o outro.
34
Entrevista concedida em julho de 2009 (Ver Apêndice B).
de vista de alguns profissionais que estão cabotinando o fazer-cênico legítimo dos artistas-
criadores e trabalhadores da dança.
Mas, por que este olhar exotizador, fetichista e especulativo ainda permanece sobre o
corpo deficiente? Este parece representar uma ameaça ao modelo corporal da eficiência
constituído na sociedade e que sutilmente se mantém reproduzido no campo da dança.
Que soluções-respostas a sociedade quer encontrar nesse corpo que não
consegue se libertar das amarras colonialistas dos corpos normais? Recordo do texto O Corpo
Colonizado, do antropólogo luso-brasileiro André Lepecki, em que ele discorre sobre a
necessidade dos corpos colonizados aprenderem a auscultar o chão onde pisam. Arrisco-me
aqui a parafraseá-lo e dizer que no caso dos corpos deficientes é preciso que se apropriem
do chão onde pisam.
Pensar a dança enquanto poderosa máquina de produção de resistências pode
contribuir para que os corpos atuem para além do território cênico, reivindicando desta forma
espaços de atuação política por meio de ações críticas e mobilizadoras. Insistir na crença de
que a colonização manifestou-se apenas do ponto de vista geográfico implica não
considerarmos a existência de outras formas vigentes de colonização: corpo perfeito/corpo
imperfeito, beleza/feiúra, ocidente/oriente, brancos/negros, metrópole/interior. No caso do
corpo deficiente a colonização manifestou-se sob a égide da necessidade de uma normalidade
social. Desta feita é importante refletir sobre esses mecanismos de dominação corporal
guiados pelo ideal do corpo eficiente e sua supremacia em relação a um corpo que incomoda,
infringe e subverte o status quo, pelo simples fato de sua existência.
O fantasma do olhar sobre o Monstro que encobriu a Idade Média e teve o seu
auge com a exposição dos corpos anormais em praças e circos parece sustentar-se nas
relações políticas, econômicas e sociais entre a sociedade e os sujeitos influenciados pela
fictícia incompletude corporal. Para Foucault (2002, p. 69), a visão sobre o monstro
representa a extirpação do anormal, pois “o que define o monstro é o fato de que ele constitui,
em sua existência mesma e em sua forma, não apenas uma violência das leis da sociedade,
mas uma violação das leis da natureza”.
Certamente, esse olhar exótico não repousa apenas sobre os deficientes. Uma gama
de outros corpos não se reconhece nos estratificados compartimentos sociais, que apesar de
estarem dissolvidos na esquizofrênica crise de sentidos
35
da contemporaneidade, mantêm o
35
Conceito analisado por Peter Berger e Thomas Luckmann em que se verificam as produções de sentido nas
instituições sociais, e como estas regulamentaram o agir social. O sentido, para esses, autores é fruto das
experiências inerentes aos sujeitos (sentido subjetivo) e de experiências selecionadas presentes na vida dos
controle por meio do status normalizador de convívio social.
Os Estudos da Performance e as teorias recentes, como a Teoria Queer, denunciam
novas perspectivas político-filosóficas de enfrentamento dos discursos reproduzidos sobre
corpos, desejos, identidades deslocadas e a transitorialidade dos gêneros, que não se
identificam mais no bojo binário do masculino-feminino; do igual-diferente; do culpado-
inocente; do normal e do anormal.
Não é o caso de inserir neste trabalho a discussão sobre temas tão diversos e
relevantes no debate social atual. Mas, ressalto a importância de perceber que essas questões
trazem à tona aspectos e zonas de investigação até então marginalizadas que, assim como os
corpos deficientes, emergem da subalternidade para novos campos de conhecimento e
produção científica.
A ditadura do olhar normalizador sobre o deficiente evidencia um corpo que para a
sociedade é e sempre foi cênico. Ele está em permanente estado espetacular no qual incorpora
e absorve todo o fetichismo social pela anormalidade. O corpo deficiente atua sob a chancela
de uma anormalidade imposta e, ao mesmo tempo, assistencializada pelo corpo social.
Mesmo aqueles que adquirem uma deficiência por meio de acidentes, doenças e traumas
diversos pagam o preço cobrado na sociedade pela ausência do corpo anterior, sendo
exotizados em um ciclo permanente de especulação-espetacularização.
Se as representações sociais são construídas por meio de repetições e incorporações
dos modelos de comportamento e conduta da sociedade, seria o corpo deficiente ainda vítima
de uma intolerância que na verdade representa todo um discurso construído e preservado para
a não-aceitação do imperfeito/estranho/anormal? Segundo Albright (1997, p. 73) “Assim
como a sociedade cria um ideal de beleza que é opressivo para todos nós, ela cria um modelo
ideal da pessoa fisicamente perfeita que não está cercada de fraqueza, perda ou dor”.
36
Falar de cena env’olvendo corpos que, durante muito tempo, foram considerados
subcorpos, é no mínimo confrontar-se com uma história que não fora escrita. É constatar a
estigmatização de sujeitos que foram silenciados de suas possibilidades, cerceados pela ação
punitiva, ou pela ação especulativa.
São inúmeros os exemplos de corpos deficientes exibidos no meio artístico de forma
depreciativa desde os freaks aos corpos dos anões, que talvez tenham sido as maiores vítimas
indivíduos (sentido objetivo), que por meio de suas repetições originam os controles institucionais. A crise
desencadeia-se pela exigência de que as comunidades de sentido (o grupo social) devam ser idênticas.
36
Tradução Nossa.“[…] just as society creates an ideal of beauty which is oppressive for us all, it creates an
ideal model of the physically perfect person who is not beset with weakness, loss, or pain […]”.
de uma super exposição/especulação que perdura até os tempos atuais. O anão representa o
corpo inferiorizado não apenas por tamanho físico, mas também pela ideia minituarizada do
sujeito como um todo. Provavelmente, para a sociedade, a figura do anão espelhe sua
supremacia física, intelectual e biológica, o que converge para o surgimento de brechas de
poder, reveladas por meio das ações de exclusão e julgamento de corpos também
considerados deficientes.
Desde a antiguidade, os corpos eram inseridos na cena para entreterem a plateia, em
momentos que oscilavam entre a ludicidade, a reprodução de um mundo imaginativo e a
exposição de fatos da vida cotidiana, até chegarmos a uma cena que não mais se detém ao
compromisso da manutenção dos cânones cênicos (espaço, tempo, texto). No caso da dança, o
corpo foi eleito instrumento de trabalho, centro da reprodução mecanicista, fonte de
virtuosismo técnico e que aos poucos galgou sua independência para além da condição
sistemática da execução de movimentos.
No entanto, o corpo na cena da dança manteve o status da eficiência, do
condicionamento físico. Os corpos dançavam para serem vistos enquanto objetos virtuosos,
ágeis, imbatíveis e até mesmo indestrutíveis. Então, como um corpo que não ocupa o status
produtivo imposto na sociedade, pode ser inserido cenicamente e não causar estranheza aos
olhares tão condicionados às destrezas corporais vigentes?
O surgimento gradativo dessa dança e da cena envolvendo corpos deficientes
esbarrou primeiramente em um olhar e em um modelo construído pelo discurso médico,
analisado por Foucault, em sua obra Os Anormais. Ele problematiza a influência do aparato
médico-legal sobre a conduta dos sujeitos considerados irrecuperáveis. O autor discorre sobre
os três tipos sentenciados pela sociedade; os monstros, os incorrigíveis e os onanistas. O texto
trata da atuação jurídica na aplicação de procedimentos de vigilância, controle e identificação
dos anormais. Procedimentos que ecoam nas esferas políticas e jurídicas atuais, no que tange
ao contexto de exclusão e violência presente em nossos dias.
É com base nessa perspectiva que reflito sobre o corpo deficiente na cena
contemporânea enquanto corpo herdeiro da instituída anormalidade, cuja emergência artística
faz-se necessária em nível qualitativo, no Brasil. Com efeito, ainda se faz necessário um
maior aprofundamento do estudo dessa cena sob a ótica desses corpos, suas visões,
indagações e contribuições às artes cênicas, sobretudo à dança.
A cena artística da chamada Dança Inclusiva é vista por um viés hierárquico de
oportunização, no qual é a dança que confere ao corpo a chance do dançar, quando esta
relação deve ser compreendida por meio das contribuições que o corpo concedeu à dança, em
sua relação diacrônica com a sociedade contemporânea.
O surgimento da cena permeada por corpos que não correspondem ao modelo
imposto pela dança clássica e moderna, bem como pelo excesso de eficiência do corpo nas
companhias contemporâneas, lança um desafio à criação coreográfica, ao trabalho do
bailarino, ao olhar do espectador e particularmente à desarticulação dos cânones estabelecidos
em relação ao modelo corporal vigente na dança.
A cena e o território cênico são locais de exposição-atuação e quando utilizados por
corpos que não se reconhecem no hall mercadológico dos super-espetáculos, podem se tornar
espaços de afirmação e reivindicação, mas, sobretudo, locais de novos fazeres, de articulações
e competências artísticas. Todavia, esse pensar esbarra nas questões referentes ao acesso do
corpo deficiente ao mercado de trabalho das artes cênicas, ainda “guettificado”. A crítica ao
olhar sobre esse corpo, na dança, reflete-se no próprio posicionamento político do artista,
ainda absorto pelas heranças estigmatizadoras de um passado histórico segregador.
A dança, durante muito tempo, imobilizou-se em um simulacro sagrado e rompeu o
platô sobrenatural de sua sacralização por meio da sistematização de cnicas transmitidas a
legiões de indivíduos que com ela reproduziram novos saberes.
A fala de Primo (2001, p. 95), quando nos diz que o “bailarino descobriu que é um
corpo”, reflete de forma crucial o pensamento iluminista do século XVII, propulsor de uma
corrente filosófica que devolve ao homem a sua importância no mundo, desmembrando-se da
fundamentalista relação com o divino.
O avanço das técnicas e a recuperação dos espaços de voz e criação do corpo, fez
surgir uma atividade em transformação, que busca hoje expor o corpo-sujeito ainda
encarcerado pelos sintomas fatídicos de nossa caótica modernidade-contemporaneidade.
Quando os corpos deficientes começaram a ser inseridos em grupos terapêuticos,
37
notou-se que eles demonstravam talento e criatividade artística, o que era limitado pela
conduta médica. Grande parte dos bailarinos deficientes passaram por instituições
reabilitadoras, antes de se depararem com o universo da dança. Essa experiência clínica
conferiu ao deficiente uma condição de corpo-objeto, que tende a ser reproduzido no território
artístico.
A Dança Contemporânea caracterizou-se por um estado de suspensão, de busca
incessante pela obra em devir, não atrelada às conceituações definitivas, passível de alterações
37
Note-se que grande parte das instituições reabilitadoras utilizavam tarefas manuais como parte de seus
programas de reabilitação. A chamada Terapia Ocupacional (TO) foi um desses setores, em que a habilidade
criativa fora subaproveitada em detrimento dos resultados motores.
e intervenções, onde “a técnica em dança não era mais um fim, mas um instrumento
conveniente apenas na medida em que auxiliasse a alcançar uma determinada qualidade de
movimento desejada”. (PRIMO, 2000, p. 112).
A cena da Dança Contemporânea produzida no fim dos anos de 1980 e início da
década de 1990 explorou a degradação da modernidade por meio de obras que discutiam
situações de exclusão-opressão, relacionadas principalmente às intolerâncias ocorridas na
época no campo da sexualidade. A descoberta da Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida
(AIDS), conhecida nesse período com o rótulo de peste gay, culminou em uma série de
manifestações discriminatórias contra os homossexuais, considerados grupos de risco, sem
mencionar o estigma imposto aos doentes soropositivos. Um bom exemplo dessa discussão
que vai para a cena é o trabalho do coreógrafo americano Bill T. Jones, em sua obra Still/Here
que aborda a questão da doença terminal e do abandono social dos vitimados pelo vírus HIV.
Em trabalho forte e comovente, Jones expõe a própria experiência vivida com a perda de seu
companheiro tima da AIDS. Sua dança contribuiu para um pensar coreográfico engajado,
crítico e politizado, sobretudo, nas questões voltadas a gênero, discriminação e exclusão
social.
Esse terreno fecundo para a exposição de fatos silenciados e marginalizados pela
sociedade propiciou um vasto campo para o engajamento político por meio das artes. A
pintura, a performance, o teatro e a dança tornam-se estratégicos para a comunicação, para a
denúncia e o protesto contrários à sociedade cerceada pelas ilusões do consumo.
No Brasil, na cada de 1970 até o final dos anos de 1980 inaugura-se um fazer
artístico influenciado pelo movimento da contracultura norte americano, em que a arte deixa
de ocupar o local da apreciação e da permanência para intervir, interagir aproximar-se do
público, provocando-o e estimulando a sua participação.
O bailarino encontrou novas possibilidades de engajamento artístico além da simples
repetição das técnicas tradicionais da dança, ao buscar a investigação dos movimentos, aliado
às experimentações corporais alternativas, no intuito de construir um corpo reflexivo, que não
era mais um refém da indústria do consumo de espetáculos. De acordo com Primo,
Com efeito, não é possível tratar as práticas alternativas de dança tentando
encaixá-las numa medida padrão, numa forma de pensar que guiava os
passos do balé clássico. Tais práticas corporais conectam interior e exterior
do corpo. Muito provavelmente não devem fazer parte de uma formação que
tem como modelo a cisão entre ação e pensamento. (PRIMO, 2006, p. 142).
uma incessante busca do bailarino por um corpo pensante e por experiências que
agreguem não somente a eficiência motora, mas também, e sobretudo, a reflexão acerca do
papel social que desempenha em seu fazer artístico, assim como nas formas de compreensão
do espaço cênico enquanto lugar de proposições.
3.2. O PAPEL E A FORMAÇÃO DO BAILARINO DEFICIENTE
A qualidade técnica e a busca por novos procedimentos que pudessem ser aplicados
ao trabalho com corpos deficientes na dança, tiveram nos anos de 1990 um período produtivo.
Nesse sentido, foram realizadas experimentações que envolviam os métodos utilizados pela
Dança Moderna, como as técnicas do húngaro Rudolf Laban e o método de Marta Graham,
todavia o procedimento de caráter mais representativo foi a utilização do método contact
improvisation de coreógrafo norte americano Steve Paxton. Essa prática possibilitava aos
corpos com e sem deficiências reconhecerem-se em suas impossibilidades e possibilidades
acionadoras de movimento. Aquele corpo fisicamente comprometido seria estimulado a
enfrentar suas incapacidades, bem como os corpos sem deficiências também seriam
incentivados a descobrir novas estratégias de criação e compreensão do outro no decorrer da
prática.
Não cabe aqui aprofundar e detalhar as características específicas do método contact
improvisation, mas ressaltar a sua importância como base referencial no trabalho dos grupos
na década de 1990
38
e de como este repercutiu no surgimento de novas metodologias para os
artistas e pesquisadores.
O coreógrafo Alito Alesi é um exemplo citado pela autora Ann Cooper Albright
(1997) como um dos precursores do método contact improvisation no campo da dança
envolvendo corpos deficientes. Alito, juntamente com o bailarino cadeirante Emery
Blackwell, inicia suas investigações com corpos de paralisados cerebrais, explorando suas
possibilidades de movimento e relações espaciais. Alito é autor do projeto DanceAbility,
39
por
meio do qual ministra workshops em diversos países, divulgando a técnica do contact
improvisation. Com efeito, a presença desse corpo no cenário contemporâneo estimulou o
diálogo mútuo entre os corpos com e sem deficiências no campo da dança.
38
Companhias como a inglesa Candoco e o Cleveland Ballet utilizaram-se do método contact improvisation.
39
A palavra DanceAbility denota um interessante jogo de palavras em que se faz uma crítica ao termo disability
empregado aos corpos deficientes nos EUA.
Decerto que a aplicabilidade das diversas técnicas citadas aqui foi decisiva para o
surgimento dos primeiros trabalhos coreográficos e para a preparação corporal dos bailarinos
em sala de aula. No entanto não pretendo afirmar a presença de uma técnica específica para o
corpo deficiente, nem atribuir todos os resultados estéticos obtidos apenas à valoração técnica.
Essa afirmação será discutida, neste trabalho, mais à frente.
Os grupos da chamada Disability Dance ou Integrating Dance nos Estados Unidos e
na Europa são considerados, em sua maioria, profissionais. Circulam em festivais de dança do
mundo todo, revelam bailarinos para outros grupos,
40
além de contar com estrutura
organizacional para a realização de ensaios, aulas e oficinas. Certamente há, nesse caso, o
peso cultural dos países mais desenvolvidos economicamente, que por consequência reflete-se
nos organismos de apoio às artes e nas ações executadas por tais companhias.
Interessante destacar que as companhias internacionais que iniciaram o trabalho com
corpos deficientes, no final da dos anos de 1980 e início dos anos de 1990, concentraram na
base de sua formação a iniciativa de ex-bailarinos de grandes companhias europeias, que
seguiram suas carreiras por meio da fundação de companhias como a Candoco, Axis
Company Dance, dentre outros citados no capítulo anterior.
Destaco o texto Imobile Legs
41
da teórica crítica Peggy Phelan, no qual a autora
aponta o trabalho de uma bailarina do London Ballet Theatre que após sofrer um acidente em
cena que comprometeu gravemente a região dos quadris retorna à dança através de
coreografias criadas em programas de computação. Phelan brinda-nos com uma poderosa
reflexão sobre como fatos traumáticos podem tornar-se matéria de criações e proposições
estéticas no campo cênico.
Verdade que não é de hoje que artistas criam e recriam através de suas perdas e
dores. Não há melhor exemplo do que o trabalho da artista plástica mexicana Frida Khalo,
que desenvolveu suas obras mais importantes após ter sofrido um grave acidente que a deixou
paraplégica. Khalo se apropria da dor e do caos físico como morada e inspiração para suas
criações, assumindo uma poética da perda em suas telas, que mesmo carregadas de imagens
fortes, revelam beleza em profundidade, ao mesmo tempo em que evidenciam uma intensa
exposição corporal, como podemos observar na Figura 9.
40
Um exemplo é o do bailarino David Toole da companhia Candoco, cedido ao grupo DV8.
41
Imobile Legs. In: Unmarked: The Politics of Performance. New York: Routledge, 1993.
Figura 9 – Frida Khalo: A coluna partida (1944)
No Brasil, a cena artística envolvendo corpos deficientes surgiu por iniciativa de
pessoas ligadas direta e indiretamente ao universo da dança, como pesquisadores, terapeutas,
e educadores físicos. Utilizando diferentes práticas corporais, esses profissionais
incorporaram a dança como ação propulsora da criatividade e do processo de reabilitação dos
corpos considerados incapazes.
A própria trajetória da Roda Viva Cia. de Dança partiu de cooperações de diferentes
áreas como a educação sica, a fisioterapia e a psicologia, que por sua vez se refletiram ao
longo dos processos de intercâmbios artísticos e culturais experienciados por seus bailarinos e
diretores, juntamente com diversos coreógrafos convidados.
Essa cena emergente da experimentação, da dificuldade e do conhecimento adquirido
ao longo de quase duas décadas, representa para o país uma dança advinda do corpo
deficiente brasileiro, que vivencia todo um sistema sócio-político-cultural excludente, todavia
assistencialista e por vezes discriminatório no terreno das artes.
Outro fato a ser destacado é a cena alavancada por dançarinos que não tiveram uma
formação teórico-prática no campo da dança e em nenhum outro segmento artístico. De fato, a
formação deu-se de acordo com os processos adotados e incorporados ao longo das pesquisas
e experimentações, envolvendo as contribuições de pesquisadores, coreógrafos e bailarinos
não-deficientes. Essa é uma característica marcante na formação dos grupos no Brasil. Como
nos diz a ex- bailarina da Roda Viva Cia. de Dança Rejane Sousa:
42
42
Rejane de Sousa é bailarina e coreógrafa. Atuou por 14 anos na Roda Viva Cia. de Dança, trabalhou no Ateliê
O trabalho com coreógrafos foi muito importante, eles nos ajudaram a
amadurecer as coreografias, apesar de no primeiro momento não saberem
como lidar com corpos de deficientes.
A Roda Viva Cia. de Dança, em suas várias formações, galgou distintas
metodologias e fases de trabalho que surgiram das investigações e experimentações em sala
de aula, desde o trabalho com o método contact improvisation, passando pela Dança
Moderna, até chegar a um processo investigativo que contasse com a participação efetiva de
seus bailarinos. Não se trata de abolir a contribuição das técnicas nas fases anteriores, mas
deve-se considerar que a relação vigente nos períodos anteriores (1995-2004) priorizava a
hierarquia coreógrafo-bailarino em função do treinamento técnico.
É somente a partir do ano de 2004 que a companhia adota uma postura mais
investigativa de atuação, centrada na participação do bailarino enquanto agente-propositor das
criações. Como mostra a foto abaixo (Figura 10), o grupo passa a experienciar novos
procedimentos de preparação cênico-corporal e ações de intervenção em espaços públicos,
enfatizando os aspectos investigativos da ação corporal nesses locais.
Figura 10 – Roda Viva Cia. de Dança em intervenção durante espetáculo
Sobre Corpo Palavra e Despedida (2004)
Destaco que essa autonomia não se processou na companhia de forma unificada, ela
se deu à medida que as necessidades pessoais e profissionais de cada integrante foram
despertadas para buscar outros conhecimentos, como o desejo de dar aulas, a vontade de
coreografar e ministrar cursos. Todos esses fatores estimulavam a busca por um fazer artístico
independente da permanência no grupo. A companhia, nesse sentido, possibilitou o acesso
Coreográfico do Rio de Janeiro sob direção de Regina Miranda.
dos bailarinos ao mercado artístico da dança, bem como o intercâmbio entre profissionais da
área, diferentemente, dos outros grupos nacionais que mantinham uma produção local.
Um exemplo importante das contribuições advindas de profissionais da dança
nacional para a companhia é o do coreógrafo Henrique Rodovalho diretor da Quasar Cia. de
Dança, da cidade de Goiânia. Em sua obra Por Que Não? concebida para a Roda Viva Cia.
de Dança, em 1998 ele inaugurou uma nova fase no trabalho coreográfico com corpos
deficientes, que analiso da seguinte maneira: Rodovalho poderia repetir o modelo das
coreografias pronta-entrega, características de alguns profissionais da dança, que insistem em
depositar suas criações nos corpos dos bailarinos como se estes fossem depósitos vazios,
subtraindo-lhes as capacidades críticas e criativas. Ao contrário, ele optou por observar
primeiramente a mobilidade dos corpos e a relação que cada um mantinha com a sua
deficiência, a sua sexualidade, a sua cotidianidade. Estava o cerne de toda a concepção
coreográfica desse profissional: aliar as técnicas e as experiências apreendidas com os corpos
na construção de sua obra.
O trabalho começa com o grupo de cinco cadeirantes em um foco de luz, ao som da
música do grupo francês Les Tambours Du Bronx, cuja trilha percussiva dava a impressão
sonora de máquinas trabalhando a todo vapor. Rodovalho criou, juntamente com os
bailarinos, pequenas vinhetas que abordavam de forma irreverente a relação entre deficientes,
vista aqui com a ironia e o humor típico dos bailarinos da Roda Viva Cia. de Dança.
Uma das vinhetas começa. Em foco, um bailarino muletante, olhando para o nada.
Em seguida, uma bailarina que tem poliomielite em uma das pernas entra no foco, olha para
ele e para o público, anda pacientemente ao seu redor, como se quisesse observar toda a
deficiência dele. Em uma ação rápida, ela chuta uma de suas muletas, ele olha para o público
com cara de nada, apoiando-se quase sem equilíbrio na outra que lhe restara. Sem cerimônias,
a bailarina caminha cinicamente ao seu redor, mantendo a relação com o público, para,
finalmente, chutar-lhe a outra muleta. Em seguida, o bailarino cai e é retirado por dois
bailarinos andantes. Blackout.
A segunda vinheta, representada, aqui, na Figura 11
destaca um cadeirante no foco,
olhando para o nada, uma tensão é criada até a entrada de uma bailarina andante com paralisia
em um dos lados do corpo. Eles entreolham-se, ela puxa uma cadeira para sentar-se ao lado
dele, novamente se olham, ele, em gesto indiscreto, curva-se para olhar o braço da moça que
parece estar tensionado e ereto para trás, o bailarino imita a deficiência dela. Logo, ela
também se curva para olhar sua pernas finas entrecruzadas na cadeira de rodas,
automaticamente também maneja as suas pernas como se fosse paraplégica cruzando-as, eles
olham-se entre si e depois viram-se repentinamente com um sarcástico e inocente sorriso para
a plateia. Blackout.
Figura 11 – Por Que Não?
Henrique Rodovalho (1998)
Esse fazer cênico que parte também dos aparentes “fracassos” corporais é de suma
importância para o trabalho artístico dos bailarinos, desde a preparação corporal à atuação em
cena. A construção social da deficiência reflete-se consequentemente na construção social dos
sujeitos que têm algum tipo de deficiência, e esse é o primeiro desafio para a compreensão do
corpo deficiente enquanto corpo-criador.
um cerceamento ainda bastante visível nas ações de grupos que admitem artistas
deficientes. De um lado, a proteção e o cuidado; de outro, a assistencialização de seus
potenciais que, quando revelados, nutrem a promoção do grupo como um todo e não do
mérito profissional que surge no artista. Sem contar que ainda o debate entre a visão da
deficiência em relação ao corpo deficiente dançante, discussão que redunda os campos mais
emergentes de produção acerca das necessidades do profissional enquanto gerador de projetos
estéticos para dança.
Se o corpo é deficiente, consequentemente, o olhar sobre esse corpo será o olhar
confeccionado pelo cristalizado contexto histórico, político e social. Foram séculos de
anulação, apagamento e subalternidade social dos corpos deficientes que, nos últimos trinta
anos, tentam emergir do abismo segregacionista ao qual foram lançados. Com efeito, o
empecilho maior, para a modificação da atual exotização cênica desse corpo, consiste na
manutenção da postura abjeta do próprio deficiente. É este sujeito que se instala na condição
da tima dependente, e a ausência de enfrentamento político e artístico consolida a
manutenção do monopólio dos grupos assistencialistas, o que perpetua a criação de trabalhos
cuja única intenção é a de oportunizar espaços.
Interessa-me refletir acerca da qualidade artística dos grupos e do papel do bailarino,
artista que tem algum tipo de deficiência, enquanto figura autônoma no seu direito à
construção do objeto artístico e não um mero coadjuvante, refém das hierarquias que se
consolidaram na cena compreendida como inclusiva.
Essa relação de dependência compromete e alicerça o trabalho em um modelo
protecionista de inclusão social, vigiado e usufruído por todos, exceto pelo artista. É preciso
que o corpo deficiente questione, que transmita e indague sobre seu papel nas artes da dança
contemporânea, que não delegue essa função a outrem e que assuma o trabalho e a vontade de
criar em cena. A formação não deve ocupar-se somente da capacidade de dançar, e sim da
promoção do conhecimento sobre a dança e do processo criativo envolvido no trabalho. Em
suma, “trata-se de pensar a dança que o próprio artista não somente poderá dançar, mas
também conceber”. (PRIMO, 2006, p. 142).
À medida que as técnicas e metodologias foram incorporadas ao trabalho com corpos
deficientes, estas tiveram que adequar-se as suas fisicalidades, assim como tiveram que ser
revistas por diretores e coreógrafos que estavam diante de um território inexplorado. Esse
impasse inicial encontrou a solução no saber-corporal do corpo deficiente, nas relações que
este mantinha em seu cotidiano e com a própria deficiência.
Ao compartilhar esse saber com as técnicas e os procedimentos utilizados, surge um
processo criativo inicialmente preocupado em resultados artísticos. Contudo, estes
conhecimentos que se desenvolveram com o advento desses grupos tornaram-se material
para focalizar e valorizar o trabalho do artista e não da supervalorização das técnicas.
No caso da Roda Viva Cia. de Dança, foi no decorrer do processo e do
amadurecimento da companhia em seus distintos períodos que se pode atentar para as
criações e as singularidades de cada um. Dessa feita, passou a interessar ao grupo o processo
que existia entre a técnica e o resultado artístico final, pois expunha ali todo o potencial
corporal dos bailarinos. Isso também se deveu ao fato de que alguns bailarinos, ao tomarem
contato com outras linguagens como o teatro, as artes visuais, bem como a vivência artística,
começaram a penetrar nos circuitos de dança e a estabelecer contato com outros grupos,
espetáculos e coreógrafos.
Ao falar de sua experiência fora da companhia no Ateliê Coreográfico do Rio de Janeiro, a
bailarina Rejane Sousa revela:
A parte coreográfica não era muito montadinha, muito certinha dentro do
padrão 1,2,3,4,5,6 e o trabalho no Rio começou a diferenciar isso, eles não
queriam mais isso. A Regina Miranda gostava quando ela não me via no
meio da turma, porque sabia que eu estava mais ou menos acompanhando
tudo, pois eu não estava perdida e nem sentada. Então, ela gostava muito
disso, pois ela não queria me diferenciar, e ela sempre dizia isso. Na turma
eram 2 deficientes, mas eu fui a única que ficou e terminou o Ateliê
coreográfico. Ela não queria me colocar num pedestal.
43
Muito mais do que falar sobre a cena contemporânea caracterizada pelos avanços
tecnológicos e os novos eufemismos conceituais do momento, é importante perceber que a
cena contemporânea revelou corpos e estéticas que emergiram do substrato social, do abjeto,
do underground que outrora simbolizavam a desordem, a anormalidade, o delito e a
deformidade. Esse cenário, obviamente, difundiu-se e globalizou-se com o advento
tecnológico, o que resultou em uma cena efêmera, moldável, impermanente e passível de
transformações.
A dança do corpo deficiente promove uma relação com o público que perpassa o
incômodo, a perturbação, a indignação até o desencadear de sentimentos como admiração,
comoção, espanto, veneração, apego, incredulidade. Essas múltiplas reações constroem um
espectador suspenso, que abandona o estado de conforto e a zona comum da apreciação
cênica e passa a ser interferido, questionado ao experienciar os corpos até então incômodos.
Configura-se uma experiência estética que se desapropria dos conceitos, das definições e
assume-se enquanto propulsora de novas percepções sobre o corpo e o fazer cênico.
Essa Nova Dança, como assinala o esteta Hans-Thies Lehmann (2007, p. 340), é uma
dança do corpo-potencial, que se desprende das amarras representacionais para lançar-se à
recusa, assim como privilegia a descontinuidade, “a nova dança eleva os membros individuais
do corpo acima de sua totalidade constitutiva”.
As reflexões do mesmo autor destinadas à compreensão do corpo no espaço teatral
são deveras semelhantes à compreensão do papel do corpo na cena contemporânea,
principalmente, do corpo deficiente. Quando nos fala de um corpo potencial, Lehmann revela
a condição do corpo enquanto dispositivo criacional. O autor defende a experiência provocada
no corpo durante a cena, desobrigando-o da construção de sentido, mas alicerçada na
experiência do potencial (LEHMANN, 2007). Trazendo a discussão para o corpo deficiente,
pode-se pensar que este corpo significado como impotencial alicerça sua criação através de
dispositivos individuais resultantes de sua experiência com o mundo e com o estar em cena.
43
Ver Apêncice B.
3.3 AUTONOMIA DO ARTISTA
Neste item serão discutidas as questões referentes à atuação e produção autônoma de
bailarinos deficientes. Para ilustrar essas iniciativas artísticas na cena contemporânea, trago o
exemplo de um trecho do documentário The Cost of Living, do grupo inglês DV8, no qual
atua o bailarino David Toole:
Em cena um homem surge em cima de um balcão de bar, típico da vida
noturna, o corpo resume-se em tronco e membros superiores, ele inicia uma
conversa informal, com um outro que não se revela claramente, a lente da
câmera o filma bem de perto, ela poderia ser eu, você. David Toole fala para
o outro a sua conversa que vai além de um papo de bar. Como um gentleman
dos musicais da década de 1930 ele convida: Você gostaria de dançar? E
pede para que não se incomode por sua deficiência, oferece um drink, pra
relaxar, pede pra aceitar alguma coisa, porque talvez a pessoa queira todo o
corpo dele ou talvez apenas os braços, já que não tem as pernas... Apesar
disso revela ter um bumbum atraente e chamar atenção de quem olha. Ele
deixa que você imagine como deve ser seu pênis, confessa descaradamente
que é pequeno, mas muito gostoso. E afirma com ironia: Eu vi você
olhando!Quer dançar comigo?Não saia daí, eu volto já!Estarei te
procurando...
Livre interpretação do documentário:
The cost of living, do Grupo DV8(2004)
Ao contrário do bailarino David Toole, ex-integrante da companhia inglesa Candoco
e que hoje integra o elenco do grupo de dança-teatro DV8 , os bailarinos deficientes no
Brasil enfrentam uma rígida permanência nos espaços pseudo- dignificados como inclusivos.
A presença nos espaços e nos circuitos das companhias nacionais ainda é velada a distância e
quando obtida, acontece por um viés ora especulativo, ora glorificado por atos de incrível
proeza corporal e principalmente por reações de admiração, o que mantém um status corporal
passivo de encantamento.
O trabalho do artista que tem algum tipo de deficiência representa a base de toda a
estrutura da dança que ainda insiste em se manter sob o espectro da nomeação inclusiva. São
raros os escritos que evidenciam o trabalho dos bailarinos, bem como suas contribuições no
fazer-cênico da dança brasileira. A formação de grupos é cada vez mais comum e surge por
meio de iniciativas de associações, projetos de pesquisa em instituições de ensino, ou de
editais de incentivo às ações inclusivas.
O que chama a atenção em um primeiro momento é o fato de esses grupos não serem
conduzidos por deficientes, o que caracteriza uma interdependência dos artistas em relação às
coordenações-direções de grupos. Mesmo os bailarinos que já detêm uma trajetória e que
acompanharam a evolução dessa cena na década de 1990, insistem na dependência grupal,
realizando atividades solo em períodos oscilantes.
Não se trata aqui de condenar a existência dos grupos, e sim de evidenciar um tipo de
dependência característica do artista deficiente, o que lhe priva de sua autonomia artística. A
descentralização nas relações entre o grupo e o bailarino favorece a autonomia e o desejo pela
exploração de novos espaços de atuação que não sejam somente restritos à sala de ensaio. Isso
faz com que surja a motivação para a capacidade de criação pessoal, de verificação de
possibilidades que envolvam o corpo em toda sua extensão.
As metodologias de formação no país que mantém a relação hierárquica coreógrafo-
bailarino dificultam a prática voltada para um fazer investigativo dos artistas. No caso do
bailarino deficiente, essa parece ser uma condição que vai além da hierarquia profissional,
desencadeando uma relação tutelar.
Primo alerta para o risco de o bailarino estagnar-se na manutenção da aplicabilidade
de técnicas, o que pode comprometer os outros potenciais inerentes ao corpo do artista:
No entanto, o trabalho e a descoberta da singularidade de cada corpo, que
estas técnicas colocaram em funcionamento, desenvolvendo o potencial do
bailarino, seu gesto próprio, sua interioridade, tornaram-se territórios
capturados e imóveis, blocos e fronteiras estáveis. (PRIMO, 2006, p. 136).
Em cena, o corpo deficiente propõe uma percepção dos corpos enquanto exploração
de impossibilidades manifesta pelo viés da experimentação, do contato com outros artistas e,
sobretudo, nas experiências de vida enraizadas nos corpos. A dança realizada pelo corpo
deficiente é delineada pelo tempo e assume na cena. Esse fazer-cênico nas mãos, nas pernas
e nas próteses (se for o caso) ultrapassa a visão bela do corpo socialmente construído,
imposto, idealizado, disciplinado. Ao contrário disso, reflete um corpo subversivo, que
infringe os padrões vigentes. Nesse contexto, é necessário o entendimento desse corpo além
do slogan da “superação”ainda compreendido por um viés panfletário e reducionista.
O potencial criativo dos artistas não pode ser reduzido às suas incapacidades; podem
sim somarem-se a elas na concepção de trabalhos que não silenciem a deficiência em
detrimento de um status corporal comum. A deficiência revela em cena um fazer múltiplo que
vai além da dança, mostra-se propositivo, questionador, resistente às filiações conceituais e
aos discursos sobre corpo. Ela ocupa sem concessões e permissões o lugar do enfrentamento,
da reação aos modelos construídos pela própria dança. O artista estabelece em cena uma
emergência artística, política e social que não realiza na sociedade, o que evidencia o estado
de opressão o qual incide sobre os corpos deficientes na cena artística.
Ao confrontar o olhar social através da ação cênica, o bailarino deficiente pode
exercer a sua criatividade para o exercício de sua autonomia dentro e fora dos palcos,
apropriar-se da prática da dança não apenas como prática, mas pela ótica investigativa de suas
metodologias, técnicas e da experiência corporal cotidiana. O ato de estar em cena, na visão
contemporânea, não deve estar atrelado somente aos cânones tradicionais da representação.
Deve englobar os espaços intersticiais da cotidianidade, e o corpo deficiente materializa,
como nenhum outro, essa experiência, pois a ele cabe dar lugar às ausências físico-corporais.
O modelo da representação deve desvencilhar-se do controle dos corpos, de um
organicismo atrelado à eficiência física do bailarino. O corpo deficiente desapropria-se das
regulações e visões biológicas, ele muito mais apresenta do que representa e ocupa os
espaços não preenchidos da cena contemporânea.
O trabalho do bailarino deficiente deve encontrar no exemplo do encontro satírico de
David Toole a solução-enfrentamento para as exclusões vividas no território artístico. A
compreensão da deficiência, o envolvimento corporal com a perda e a corporificação da
imperfeição são os materiais para a criação de uma dança que mobiliza primeiramente o
artista para posteriormente instigar o público. Por meio da percepção de seu potencial cênico,
o artista apropria-se do próprio fazer e distancia-se das noções, dos comandos, e das
interpelações politicamente corretas, legitimando assim o seu próprio direito a ser corpo e a
criar com (e) a partir de suas impossibilidades, caso seja este o seu projeto estético.
Esse estado de suspensão da dança, quando envolve bailarinos com algum tipo de
deficiência, revela o peso das categorizações sociais, inventadas para estratificar, nomear
sujeitos em suas capacidades e incapacidades.
Quando se trata de discutir o trabalho autônomo de artistas com algum tipo de
deficiência, prevalecem alguns poucos exemplos na área da dança. Parece ainda reinar, sobre
a atividade artística de deficientes, um nculo grupal ou institucional que impede a atuação
dos artistas de forma mais independente.
Em países como os Estados Unidos e a Inglaterra, podemos encontrar vários
exemplos de profissionais – em sua maioria performers com verdadeira autoria e autonomia
artística em suas produções. Outro exemplo, além de Toole, é o do performer coreógrafo e
dançarino americano Bill Shannon, que realiza intervenções urbanas, vídeos e workshops
extremamente influenciados pela cultura hip-hop, breakdance e graffite.
Em um de seus deos, Shannon explora a reação das pessoas vendo-o andar
livremente pelas ruas de Nova Iorque em cima de um skate e usando duas muletas.
O mais interessante neste vídeo intitulado Crutchmaster é que o foco não é a
performance de Bill nas ruas, mas o olhar, captado pela câmera, das pessoas observando a
cena. Ele já consolidou seu trabalho nos Estados Unidos e na Europa com sua Shannon
Technique, sendo inclusive convidado como um dos coreógrafos do espetáculo Varekai do
Cirque Du Soleil, em 2003. Como mostram as figuras, vemos dois exemplos de artistas
autônomos: a primeira (Figura 12) destaca a performance Dogleg Freeze, de Bill Shannon,
criada em 2007, que é um exercício criativo no qual o artista apresenta as possibilidades de
movimento por meio da Shannon Technique. Ao lado (Figura 13), vemos David Toole junto
ao grupo DV8 em uma cena emblemática do trabalho The Cost Of Living, de 2004, dirigido
por Lloyd Newson. Nessa cena, todos os bailarinos corporificam as movimentações de Toole,
como se unissem suas intensidades em um único movimento, em uma única dança. Os corpos
parecem metamorfosearem-se por meio de uma inversão de papeis dos andantes e do corpo
mutilado de Toole, característica significativa nos processos de criação-concepção de
trabalhos coreográficos com bailarinos deficientes e não deficientes.
O DV8 insere a dança para além das delimitações tradicionais do espaço físico, ao
propor movimentos que avançam e encaram o intercambio de fisicalidades dos artistas. A
cena confronta o olhar, ao revelar que a dança pode ir além da própria linguagem corporal, ao
atuar nos campos de uma narrativa por meio do corpo, dos gestos, das intenções do olhar
desafiador e instigante desses artistas.
Figura 12 – Bill Shannon em Dogleg Freeze, 2007.
, Figura 13 – David Toole, em The Cost of Living-DV8 (2004).
A performer e bailarina norte americana Lisa Bufano realiza suas performances nas
ruas e galerias da Europa e dos Estados Unidos, apoiando-se em pernas-de-pau e em próteses
concebidas de forma artesanal. Lisa teve suas pernas amputadas aos 21 anos de idade, devido
a uma grave infecção por bactérias. Ela faz participações em rias companhias como o The
Gimp Project e a Axis Co. Dance. Lisa concebe suas criações com uma linguagem
influenciada pela arte visual contemporânea, utilizando-se de vídeos e projetores. A Figura 14
ilustra uma de suas performances, intitulada Fancy, no qual questiona as possibilidades de
ressignificação do corpo. O trabalho de Lisa é uma exploração das ausências físicas
transformadas em projetos estéticos por meio da utilização de alternativas protéticas de
intervenção no próprio corpo da performer. Fancy, ao mesmo tempo que pode ser algo
sofisticado pela leveza de uma “poética-protética”, pode se tornar mutável e incorporar outras
formas corporais que surgem ao longo da intervenção da artista.
Figura 14 – Fancy, de Lisa Bufano (2005)
No Brasil. a atuação de bailarinos deficientes autônomos começa por meio de
fundações de companhias, projetos de pesquisa solo e atuações no âmbito acadêmico. O
surgimento recente de companhias criadas por bailarinos deficientes evidencia um mercado
promissor para a divulgação-promoção desses trabalhos.
Um dos exemplos que aqui cito é o do grupo natalense Gira Dança (Figura 15),
fundado em 2004, foi fundado por ex-integrantes da Roda Viva Cia. de Dança e atualmente é
Ponto de Cultura
44
apoiado pela Funarte, desde 2009. O trabalho dessa companhia vem sendo
contemplado com premiações em editais e mostras de dança por todo o país. Abaixo vemos
um de seus espetáculos intitulado Corpo Estranho.
.
Figura 15 – Cia. Gira Dança
Ressalto o trabalho do bailarino baiano Edu O. (Figura 16), que vem nos últimos
treze anos trilhando sua atuação profissional na cena da dança contemporânea. Edu O. é
coreógrafo-pesquisador e recentemente vem sendo mencionado, na realização de espetáculos
solo e participações como convidado de grupos nacionais e internacionais. Em seu espetáculo
Judite quer chorar mais não consegue, Edu conta a história de Judite, uma lagarta que não
quer virar mariposa e vive solitária à espera de um amor. Ela protesta e não se contenta com o
a própria negação da transformação eminente. Judite alça voos que vão além da experiência
cênica e que aproximam o público de um encontro com suas próprias inquietações corporais.
Edu apresenta uma poética baseada nas relações humanas. A meu ver, a obra do artista insere
44
Ponto de Cultura é a ação principal de um programa do Ministério da Cultura chamado Cultura Viva,
concebido como uma rede orgânica de gestão, agitação e criação cultural. O Ponto de Cultura não é uma criação
de projetos, mas a potencialização de iniciativas culturais existentes. Disponível em:
<
http://www.cultura.gov.br/culturaviva/ >. Acesso em: 13 ago. 2010.
sua experiência social enquanto deficiente, propondo a reflexão sobre questões como solidão,
rejeição, sexualidade e preconceito. A Figura 16 mostra Edu O. durante o espetáculo Judite
quer chorar, mas não consegue.
Figura 16 – Judite quer chorar, mas não consegue
de Edu O. (2008)
A emergência de grupos que começam a ser fundados no Brasil deve-se ao fato de
que as experiências anteriores contribuíram para possibilitar uma ação autônoma no mercado
da dança contemporânea. Como afirma o bailarino Marconi Araújo:
45
Hoje o Gira Dança, conseguiu ter um nome, um reconhecimento nacional e
internacional. Graças a essa idéia que eles trouxeram lá da Roda Viva, onde
eles começaram que se conseguiu implantar a parte artística. Hoje temos
um espaço para ensaiar, uma qualidade para ensaiar, hoje temos um
conforto. Uma sala de ensaio, com linóleo. Temos uma estrutura, ainda não
é a estrutura que realmente sonhamos, mas ainda vai acontecer.
Os artistas deficientes que alcançaram de forma autônoma espaços de criação e
discussão dentro do mercado artístico da dança no Brasil constituem raras exceções em
relação à produção no exterior. Primeiramente, isso se deve à manutenção das posturas
pessoais de dependência, característica de grande parte dos deficientes. Um segundo aspecto é
a dificuldade dos grupos no desenvolvimento de ações de pesquisa, investigação e produção
cênica de seus bailarinos.
Mesmo a Roda Viva Cia. de Dança, enquanto projeto de extensão de uma
45
Marconi Araújo é ex-bailarino da Roda Viva Cia. de Dança, atualmente integra o elenco da Cia. Gira Dança,
em Natal-RN. Ver Apêndice B.
universidade, deparou-se com situações em que os bailarinos reproduziam os discursos
vividos na sociedade sobre seus mecanismos de defesa que atenuassem a rígida cobrança pela
qualidade artística dos trabalhos.
A postura do corpo deficiente transita entre o excludente território social, que muitas
vezes o impede de chegar até as salas de ensaio, pela falta de adaptações urbanas, no entanto,
esbarram em posturas de enfrentamento, ao motivar os corpos a saírem de casa, a reclamarem
pelo direito de ir e vir, a efetivar sua voz e sua importância e competência para o campo
artístico.
A apropriação indevida de discursos sobre o corpo deficiente está conferindo ao
próprio deficiente seu apagamento em todos os níveis da sociedade e, sobretudo no território
artístico. A censura e a conduta politicamente correta não podem instaurar um vigilantismo
artístico sobre os corpos desses artistas, pois é pelo ato de estar em cena, dentro e fora, que o
corpo deficiente não supera a sua deficiência como quer a sociedade, ele redescobre e a
compreende; ele a vive e a reconhece; ele a habita sem deixar-se anular por ela.
Deparamos-nos hoje com um campo artístico compreendido como contemporâneo,
enquanto território mutável, aberto às linguagens e às novas significações, contudo estamos
diante das velhas e atuais formas de exclusão, pois a arte, assim como a sociedade, segue
baseando-se num modelo de eficiência, principalmente no que tange às artes da dança.
A deficiência compreendida na sociedade pelo seu significado se reconfigura
enquanto enfrentamento político-corporal por meio das artes da cena. Ela exibe uma partitura
de impedimentos que revelam um fazer artístico independente. Essa autonomia transcende o
universo da criação artística e ecoa nos corpos imersos na impossibilidade, mas emergentes na
espetacularidade de suas experiências sociais, políticas e subjetivas.
3.4 A DANÇA DAS IMPOSSIBILIDADES
A dança, dentre tantas classificações e transformações, caminha para a reflexão
acerca do trabalho corporal, ao colocar o artista à frente das regulações técnicas. O bailarino
apreende com e no corpo as possibilidades externas às normas. A criação passa a ser
compreendida em todo o seu processo que não se detém apenas aos resultados, mas
sobremodo, às especificidades individuais dos criadores envolvidos no projeto artístico.
Para além do terreno das estratificações quotistas adotadas no seio social, o corpo
deficiente permanece em seu lugar não determinado, extirpado por um corpo social convicto
de sua normalidade. O apagamento dos corpos intolerados pela história (negros,
homossexuais, mulheres e deficientes), repercute hoje em uma gritante e desesperada tentativa
de incluir, dentre as mais distintas formas, o que se reflete na adoção de ações paliativas e
geradoras de novos espaços excludentes.
O que me parece, ao analisar o objeto em questão, é que por mais que se justifiquem
e se realizem trabalhos artísticos de qualidade no Brasil e no exterior envolvendo artistas
deficientes, ainda há muito a mostrar e a provar para a sociedade, sutilmente insatisfeita com a
presença desses corpos no convívio social, artístico e cultural. Dessa feita, uma incessante luta
parece ser travada com o mercado artístico contemporâneo, no qual o corpo é visto cada vez
mais como um veículo estratificado da realidade em que vivemos.
A banalização do corpo deficiente, como também a superexposição reivindicativa
nos espaços midiáticos, ameniza o problema local do acesso, mas não atinge de forma mais
incisiva o olhar social sobre o corpo. A interpelação da mídia é paliativa e panfletária, basta
observar a presença de deficientes nos espaços televisivos, e quando se trata do cenário
artístico-cultural a situação é digna de reflexão. Não cabe ao corpo deficiente do artista a
obrigatoriedade desta discussão com a sociedade, ou a adoção de uma dança engajada, no
entanto, cabe a ele a reflexão sobre seu corpo e de como este pode se tornar um terreno
fecundo para a produção cênica.
A dança do bailarino deficiente é a mesma dança do primeiro homem que dançou.
Ela parte da vontade, do desejo da ação de movimentar-se, de perceber cada parte do corpo
em contato com o mundo e com o outro; a dança é o trabalho duro, a disciplina e a técnica
apreendida, ela não deve ser destacada e exotizada como fenômeno sobrenatural. O artista
bailarino deficiente não se reconhece mais nos modelos impostos para o exercício de sua
corporalidade e de sua cidadania. Ele pode criar a partir de suas representações e de seus
saberes compartilhados em sociedade como qualquer outro indivíduo.
Ao romper os muros da conduta e de um projeto político imposto para a cura, a
reabilitação e a recuperação das perdas corporais, o corpo deficiente traz para o lócus cênico a
dança de seus interstícios corporais, que não cabem a ele preencher ou justificar. Ao contrário,
ele desarticula estruturas invisíveis que envolvem este fazer-dança, incorporando suas
ausências corporais à ação criadora do movimento, e na falta deste, propõe uma dança que
dialogue com a imobilidade, um subtexto corporal que lhe confira a possibilidade do gesto, do
olhar, da fala e da intervenção tecnológica.
Assim, o corpo físico subverte o senso comum atribuído ao corpo deficiente. Onde só
se reconhecia um corpo fragmentado, mutilado, espástico, flácido e paralisado, agora se
reconhece um corpo fractal, múltiplo em seu projeto estético para dança.
A linha tênue que separa e, ao mesmo tempo, agrega o olhar social ao olhar artístico
sobre a deficiência e o corpo deficiente repercute tanto no bailarino deficiente como no
espectador, pois ambos reproduzem discursos sobre o corpo.
Ao ver a deficiência em cena sob o lócus do olhar social, o público transfere ao
artista todo o estigma construído sob os corpos deficientes. Assim é a deficiência que
prevalece na cena. Ao ver a arte produzida pelo corpo deficiente, o público ressignifica o
olhar sobre a alteridade. Aqui é o deficiente que prevalece na cena.
Não entrarei no campo dos estudos da recepção, mas essa é uma observação
pertinente para a compreensão do fenômeno da deficiência nas artes da dança enquanto
gerador de zonas intersticiais, em que as significações desses corpos tomam outras dimensões,
e apropriam-se da cena como espaço de enfrentamento e articulação político-artística. O
artista deficiente parece ter a missão de justificar a sua obra pela ótica da superação e da
super-ação da deficiência e não pela qualidade artística, empreendida no seu processo
criativo. Corroboro essa afirmação fazendo uso das palavras de Marconi Araújo:
O bailarino com deficiência de maneira abrangente, já mostrou para a
sociedade que ele tem qualidade, tem potencial, provou que o que não
falta é qualidade, que ele consegue desenvolver trabalho e que você não
precisa mais ver o bailarino deficiente como ser limitado. Mas, a coisa que
ainda pesa muito e que ninguém caiu na real é a questão financeira em
relação ao bailarino deficiente. O bailarino deficiente ainda não consegue
viver de seu trabalho, a dança.
Os espaços guettificados pela dança inclusiva interferem na circulação das obras e
nos experimentos coreográficos, pois colocam sobre o artista o peso de seu protecionismo,
fruto de toda uma herança institucional. Do outro lado, está a midiatização do corpo
deficiente, que se realiza numa via de mão dupla e se divide entre o corpo em estado de
superação e o corpo em estado de vitimização.
O corpo ganha a fictícia visibilidade por meio da dança, no entanto existe um
estranhamento do público por se tratar de corpos que estavam fora da cena social e artística.
Essa necessidade de visibilizar o corpo deficiente de qualquer maneira, compromete o
trabalho artístico dos grupos e dos bailarinos que, grosso modo, vivenciam o status de
corpo visível. A dança, nesse sentido, deve colaborar para que o artista explore a sua
produção, que ele ocupe o lugar e a responsabilidade do estar em cena.
Deficiência e deficiente conectam-se por meio do artista e do olhar do público imerso
em suas representações sócio, políticas e culturais, diante de um lócus cênico que expõe vida
e arte, que esboça em cena uma obra em constante reapropriação. Essa é a característica
marcante na arte contemporânea, é esse o fazer impermanente, imerso em novas tecnologias e
espaços de atuação, recepção e distribuição.
A dança contemporânea repousa na efemeridade de seus conceitos e de sua estética
em devir. Ela busca um corpo já existente, um corpo caótico em sua anatomia que propõe uma
desestruturação nos modos de ver e compreender as deficiências, as falhas, as
impossibilidades, os fracassos físicos como novos meios de produção artística que se fundem
às inúmeras propostas da arte contemporânea. Porém o corpo deficiente encontra-se fora deste
projeto artístico contemporâneo, restando-lhe apenas a tarefa de inserir-se em um cenário
específico da dança.
Pensar a dança contemporânea para além de sua permanência no território da própria
dança é o reconhecimento de que o corpo busca agora fluxos não hegemônicos de criação e
atuação cênicas. O corpo deficiente, nesse sentido, ocupa espaços renegados, exclusivos de
atuação que caminham para a dissolução das fronteiras entre a cena considerada inclusiva e o
mercado de trabalho da dança nacional/internacional. Se a dança produzida por corpos
deficientes está diretamente conectada com as experiências corporais de exclusão/inclusão, é
incompreensível a não aceitação desses profissionais no cenário da dança contemporânea
brasileira.
Se criar é formar, como nos disse Fayga Ostrower, estamos diante de um criar-
formar dialético e propositivo, pois os corpos deficientes não se encerram pela
impossibilidade corporal, reconstroem-se a cada nova descoberta de movimento em um
processo contínuo de delimitação/ampliação.
O potencial criador elabora-se nos múltiplos níveis do ser sensível-cultural-
consciente do homem, e se faz presente nos múltiplos em que o homem
procura captar e configurar as realidades da vida. Os caminhos podem
cristalizar-se e as vigências podem integrar-se em formas de comunicação,
em ordenações concluídas, mas a criatividade como potencia se refaz
sempre. (OSTROWER, 1977, p. 27).
Ao conceber um fazer dança crítico-reflexivo o corpo corrobora com a formulação
de conhecimentos no âmbito artístico que podem contribuir para um redimensionamento dos
modos de pensar a arte. O espelho partido da história que Evgen Bavcar nos descreve começa
a juntar seus cacos sem olhar para trás, ele quer dar voz por meio do corpo para o que lhe está
sendo negado em todos os setores da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conteúdo deste trabalho trouxe a revisão teórica acerca da problematização do
corpo deficiente no território das artes cênicas da dança contemporânea, tendo como objeto
central de investigação o corpo de artistas deficientes. Utilizou-se como referencial
investigativo o trabalho da Roda Viva Cia. de Dança para refletir sobre o surgimento da
chamada dança inclusiva no Brasil e suas repercussões nas representações sociais desses
corpos no cenário da dança. A crise do corpo deficiente evidenciou-se, aqui, por meio da
crítica ao modelo instituído da deficiência nos diversos setores da sociedade e, sobretudo no
território artístico.
Em breve histórico da Roda Viva Cia. de Dança, pude observar as contribuições
desse importante grupo à formação de uma geração de bailarinos para o mercado da dança
contemporânea no Brasil, lançando um olhar mais atento aos aspectos tais que as
metodologias aplicadas, a formação do bailarino, as ações interdisciplinares e sua atuação na
cena artística da Dança Contemporânea. A atuação da companhia reflete-se na formação
artística de seus integrantes, bem como nos diversos profissionais coreógrafos que por ela
passaram e que deixaram vasto repertório, exibido em regiões do Brasil e em outros países,
dentre eles os EUA e Portugal. A influência dessa companhia na cena da Dança
Contemporânea brasileira foi decisiva para o surgimento de grupos semelhantes em diversas
partes de nosso país. O pioneirismo e a competência dos artistas possibilitaram o
reconhecimento do grupo para além dos espaços rotulados de especiais ou inclusivos. Ao
trilhar um percurso que, sem pretensões artísticas, passou de uma práxis terapêutica para um
projeto estético aplicado à dança, a Roda Viva Cia. de Dança consagrou sua atuação e
produção, no decorrer de seus 15 anos de existência.
Ao contextualizar a relação sociedade-dança-deficiência, considerando os aspectos
históricos do corpo deficiente na sociedade e na dança desde a Grécia Antiga e os rituais de
culto ao deus Dioniso até as inferências corporais dos artistas contemporâneos, a exemplo de
Orlac e Sterlac –, evidenciaram-se procedimentos de exclusão dos corpos considerados
imperfeitos e improdutivos em diferentes períodos históricos.
Os discursos e as manipulações biológicas sobre o corpo apoiados na tese do corpo
rascunho, de David Le Breton, bem como a sua análise dos imaginários sociais do corpo,
reforçam a ideia de que o corpo deficiente é um corpo em estado de crise e que se depara com
uma realidade excludente na sociedade normalizadora.
A problematização dos mecanismos de poder institucionais nos processos de
especulação-verificação de corpos considerados anormais, tendo como suporte teórico os
textos de Foucault e dos sociólogos Jean Jacques Courtine e Georges Vigarello, permitiu que
fossem eleitas três categorias que representam a chancela da condição do anormal na
sociedade: a figura do monstro; o corpo doente; e o corpo deficiente. O compêndio de textos,
imagens e pequenos escritos sobre a história da feiúra na antiguidade e modernidade, reunidos
pelo esteta Humberto Eco, foram de extrema importância para a compreensão do corpo feio,
monstruoso e estranho enquanto corpo à margem histórica.
O estudo da teórica Ann Cooper Albright foi norteador, no que tange ao trabalho
desenvolvido nas décadas de 1980 a 1990 por diversos grupos na Europa e nos Estados
Unidos, com ênfase aos trabalhos da Cia. Candoco, da Axis Company Dance, e do Ballet
Cleveland.
Entender a dança produzida no Brasil por bailarinos deficientes perpassa por vários
campos de estudo, que transitam na contextualização histórica, no surgimento de políticas
públicas de inclusão social, no mercado de trabalho e no acesso aos bens artístico-culturais. É
nesse sentido que o corpo deficiente reivindica profundas modificações nos modos de
representação do fazer artístico contemporâneo. Todavia, será somente por sua presença e por
sua atitude em relação aos estigmas sofridos que o fazer-criativo desses corpos desenvolver-
se-á.
Com efeito, a dança fora transmitida como um bem delegado a poucos, repassado
àqueles que conseguiram o privilégio ou a oportunidade de acessá-la. Assim, o processo
histórico da dança cênica consolidou procedimentos excludentes, ao retirar de sua prática os
corpos que não puderam inventar-se como perfeitos para a cena artística. Contudo, mesmo
com a crescente presença de corpos deficientes no mercado das artes cênicas e, sobretudo, na
dança, ainda prevalecem os mesmos modelos estéticos aplicados aos corpos sem deficiências.
A linearidade, o excesso da presença física e a afirmação da eficiência do movimento
permanecem como regra para a maioria das companhias de dança contemporânea. Em
contrapartida, o corpo deficiente não encontra com frequência locais de atuação, exceto em
espaços denominados inclusivos. Faz-se evidente a manipulação e a dificuldade dos
profissionais em se debruçar sobre os processos de trabalho que envolvem o corpo deficiente.
A crítica à filiação ao rótulo inclusivo lança o trabalho desenvolvido por bailarinos deficientes
num fazer-criativo “guettificado” por uma nomenclatura a qual reforça ainda mais os muros
que separam o deficiente de sua atuação profissional e investigativa. Por trás de uma política
de visibilidade desesperada em que, grosso modo, incluir é oportunizar a todo custo, o artista
depara-se com um protecionismo dentro e fora de cena.
Penso que o modelo inclusivista consegue exercer sua práxis apenas quando confere
aos sujeitos excluídos o rótulo específico de sua não-aceitação social. Seja por meio de
nomenclaturas, símbolos ou discursos institucionais, o pensamento inclusivo confere também
ao território artístico o seu travestismo político-social e, portanto, adota termos como Dança
Especial ou Dança Inclusiva.
Os estudos, ora abordados, que contemplam a cena contemporânea, sua estética e
seus novos meios de produção, bem como a cena envolvendo corpos deficientes, tendo a
leitura do documentário The Cost of Living do grupo inglês DV8 mostram que a deficiência
pode ser vista com certo charme tanto pelo seu portador como pelos que o observam.
A partir da visão do artista sobre seu corpo, é criado um ambiente propício à
discussão do corpo deficiente em cena, tendo como referência de trabalho os principais
grupos e artistas do Brasil e do exterior, incluindo a Roda Viva Cia. de Dança, enquanto
grupo pioneiro no processo de formação de bailarinos para o mercado cênico contemporâneo.
Depoimentos de bailarinos e ex-integrantes da Roda Viva Cia. de Dança reforçam a ideia de
que são os corpos deficientes que estabelecem o entendimento de experiências e que
inauguraram novas perspectivas de atuação-criação na produção da dança contemporânea. Os
trabalhos do performer americano Bill Shannon, da bailarina e performer inglesa Lisa
Bufano, do bailarino e coreógrafo baiano Edu O., dentre outros exemplos de artistas que
atuam profissionalmente de forma autônoma, têm significativa contribuição no cenário desse
trabalho artístico de criação.
É possível entender que a dança produzida por corpos deficientes não deve servir aos
interesses midiáticos, às mediações institucionais ou aos desejos laboratoriais de
especuladores. A dança deve provocar primeiramente uma reação de enfrentamento dos
próprios limites corporais do bailarino, a partir do entendimento de que são artistas e
responsáveis por sua produção-atuação nessa cena.
A dança de impossibilidades lança um desafio à criação, porque atua em campo
específico no qual não existem soluções imediatas. É uma dança processual e cooperativa
porque acontece a partir do entendimento da deficiência corporal enquanto matéria-fluxo de
novos projetos estéticos.
Se o território cênico pode ser um local de transformação, ao ocupá-lo, o deficiente
exerce a transformação dupla de modificar-reflexionar a visão espetacular e especulativa que
reina sobre seu corpo, assim como pode transubstanciar o próprio processo criativo.
A arte do corpo deficiente é propriedade de suas experiências com o processo
criativo, com a deficiência, com as exclusões sofridas e em sua relação no campo cênico.
Dessa feita, não se pode anular a deficiência enquanto fonte de uma estética geradora de
possibilidades artísticas de criação.
A emergência do corpo que não se concretizou no transcorrer histórico, insurge na
contemporaneidade por meio das artes da cena. O corpo deficiente legitima seu lugar na
história e espelha o não-poder de todos os corpos como mecanismos de subversão e de
enfrentamento artístico, político e cultural.
A cena artística envolvendo corpos deficientes nos últimos quinze anos revelou
grupos, trabalhos artísticos de qualidade e artistas que buscam um fazer-cênico independente.
As grandes companhias internacionais provaram que para ter reconhecimento é necessário
investir na qualidade, na técnica, e na pesquisa coreográfica, apoiada em outras áreas de
conhecimento artístico.
O Brasil revelou companhias como a Roda Viva, mas carece, todavia, de
investimentos, de profissionais e instituições de pesquisa que se debrucem criticamente sobre
esse tema tão relevante para as artes cênicas em todos os seus segmentos.
No curso de onze anos em que atuei como bailarina, coreógrafa e diretora artística da
Roda Viva Cia. de Dança, pude desenvolver um olhar distanciado das práticas e dos discursos
assistenciais que nos cercavam, porque a própria história de vida dos integrantes da
companhia não se encaixa no modelo da negação da deficiência ou de sua diminuição. Os
bailarinos exerciam sua autonomia na cena social, e isso se refletiu nas práticas
desenvolvidas em sala e fora dela.
Penso que o território artístico contemporâneo não comporta os reducionismos
típicos do pensamento inclusivista. A cena é agora um lócus onde a fronteira com outras
linguagens e desejos artísticos fora diluída, e o corpo inscreve no próprio corpo seu manifesto,
suas inquietações sua crítica ao projeto corporal ideologizado.
O corpo do bailarino deficiente não quer pedir licença, não quer justificar-se, nem
quer a concessão de pequenas brechas de atuação. Ele quer ocupar a si mesmo utilizando-se
de seus potenciais e quer interpelar-se como corpo deficiente criador que é. Assim, a arte se
lhe manifesta não por um viés de superações, exemplos de vida ou oportunidades concedidas
e sim pela instigante e questionadora vontade de assumir-se artista. O corpo deficiente passou
a atuar para além das esferas segregacionistas do constructo social e passou a articular
emergentes estratégias de ocupação, enfrentamento subversão e legitimação nos espaços
artísticos-culturais.
Retornando à questão inicial dessa pesquisa concluo que a atuação desse corpo na
dança contemporânea realizar-se-á de forma efetiva quando o lócus cênico for compreendido
enquanto espaço de criação profissional, e não como um lugar que concede e confere
oportunidades. Desse modo, penso que a ausência do corpo deficiente na cena artística da
dança encerrar-se-á quando seus modos de atuação-produção transcenderem as barreiras
construídas pelos discursos inclusivistas e, sobretudo, as barreiras criadas pelos próprios
corpos deficientes.
Nesse sentido, o Brasil apresenta-se nesta pesquisa como país pioneiro nas Américas,
na formação de cunho não-assistencialista de seus artistas, promovendo espaços de atuação
profissional e geração de novos núcleos de produção artística.
Enfim, este trabalho configura-se campo fértil para que sejam discutidas as questões
referentes às políticas de inclusão e o acesso de corpos deficientes no mercado da dança
contemporânea, como também poderá desdobrar-se em maior profundidade nas questões
relacionadas ao corpo deficiente nos diversos campos artísticos para uma maior compreensão
do fenômeno da deficiência, enquanto matéria de criação-reflexão atuante nos modos de
pensar, fazer e ensinar arte, favorecendo a pesquisa que pretende realizar-se sob a perspectiva
de um doutorado.
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APÊNDICES
APÊNDICE A - ROTEIRO DE ENTREVISTAS E ENTREVISTADOS
QUESTIONÁRIO
As entrevistas tiveram um formato semi-estruturado e flexível, baseadas em
depoimentos presenciais dos entrevistados com base nas questões propostas pela
entrevistadora. As entrevistas foram realizadas na cidade de Natal, entre os meses de maio e
julho de 2009. O roteiro serviu como norteador sem que necessariamente os entrevistados se
limitassem ao conteúdo proposto abaixo:
1- Discorra sobre seu primeiro contato com o campo da dança.
2- Como foi a trajetória junto a Roda Viva Cia. de Dança?
3- Relate o processo de trabalho e a atuação artística da Roda Viva Cia. de Dança.
4- Como se davam os processos criativos da companhia?
5- Como você percebe a situação do corpo deficiente na cena da dança contemporânea?
6- Quais os seus questionamentos em relação ao bailarino no mercado artístico da dança?
7- Qual a importância da dança para sua trajetória pessoal e artística?
8- Fale sobre seu trabalho no campo da dança hoje.
9- Como você enxerga o posicionamento do deficiente em relação a prática artística?
ENTREVISTADOS
1. Baltazar JR Ex-bailarino da Roda Viva Cia. de Dança (RN) Natal. Entrevista em 4
de maio de 2009.
2. Roberto MORAIS – Diretor da Cia. Gira Dança (RN) Natal. Entrevista em 20 de julho
de 2009.
3. Marconi ARAÚJO Bailarino da Cia. Gira Dança (RN) Natal. Entrevista em 20 de
julho de 2009.
4. Rejane SOUSA Bailarina e ex-diretora administrativa da Roda Viva Cia. de Dança
(RN) Natal. Entrevista concedida em 26 de maio de 2009.
APÊNDICE B
ENTREVISTAS
Entrevista realizada com Baltazar Júnior ex-bailarino da Roda Viva Cia. De
Dança (1995-2000) em 04/05/2009, Natal/RN.
Sou Baltazar Júnior, tenho 34 anos e minha deficiência foi um mergulho em
água rasa, tive fratura cervical C5, C6 e C7 e eu fiquei tetraparético. Fiz fisioterapia e uns
tratamentos, aí fiz parte de um grupo chamado Programa de Reabilitação-Orientação ao
Lesionado Medular, e no processo de reabilitação me foi informado algumas coisas que a
deficiência iria trazer para o meu corpo e tal.
Quando terminou esse processo de orientação eu fui convidado para participar
de alguma coisa de dança, não era um grupo porque eu era a primeira pessoa, e o professor
me propôs dançar. Perguntou: Você quer dançar? eu vim para o departamento de artes
da UFRN.
Quando a gente foi para o chão eu achei interessante; naquele momento não era
a fisioterapia que me tocava, não era qualquer outra pessoa, era eu mesmo que iria colocar em
prática os alongamentos, os aquecimentos, essas coisas que eu fiz durante a fisioterapia,
durante aproximadamente um ano. Foi aí onde teve um desenvolvimento bem maior de
musculatura, de conquista e assim foi uma das coisas com que eu me identifiquei. Muita gente
fica perguntando, porque você não faz parte de natação, não faz parte do basquete?E digo,
não, eu me identifiquei com a dança e foi aonde eu tive conquistas. Assim, com cinco anos
que eu estava fazendo parte do grupo de dança eu tive conquistas, neuro-conquistas com 15
anos de grupo e tal.
A partir do momento que a gente deita no chão, se fica parado por um mês, a
partir do momento que a gente vai pro chão e começa a exercitar de novo, começa espetáculo,
apresentação, turnê, essas coisas, bicho você começa a ver que tem mais conquistas.
Eu sou muito apaixonado por dança é uma das coisas com que eu mais me identifico.
O toque, o carinho com as pessoas, é onde as pessoas andantes perdem o medo e você mostra
que não é de vidro, que você tem uma formação de carne é osso.
O primeiro grupo que eu fiz parte foi a Roda Viva, onde eu passei uns cinco
anos, a gente teve conquistas grandiosas. Assim, foi um dos maiores grupos que teve aqui no
Brasil, onde a gente teve uma formação grande com Luis Arrieta, Ivonice Satie, Mario
Nascimento, Henrique Rodovalho. Então, teve essa galera, e com a coordenação de Edson
Claro e a direção de Henrique Amoedo, que foi quem me convidou pra fazer parte disso, que,
na verdade, não tinha nome.
Eu fui o primeiro componente e assim, o quanto eu fiquei impressionado por
ter lesão cervical e ter tido o desenvolvimento que eu tive, e dá pra ver a musculatura
desenvolvida por causa da dança, ficar magrinho por causa da dança (risos).
Uma das vantagens da dança é que a gente não vê deficiente no grupo, não tem
esse sentido, as pessoas ficam achando que é coisa de gay e não tem nada a ver. Eu fico vendo
o lance do marketing, já que as pessoas querem ver alguma coisa em troca, vamos ver a coisa
do marketing. A gente lança espetáculos de seis em seis meses vamos dizer assim, mais
tardar, para o grupo o ficar parado, com intervalos de um ano. Então você tem várias
apresentações, diferente do esporte que só é visto de quatro em quatro anos. Se for ver pelo
marketing, o marketing propõe mais coisas. E tipo assim, mais desenvolvimento pra o
deficiente, porque é um trabalho construtivo.
Não é trazer o deficiente pra sala de dança e ele fazer qualquer coisa, ele tem
que testar os desafios, tem que tentar fazer todo o tipo de exercício para que ele leve isso pra o
dia a dia dele. Não é a proposta de dançar e tudo que ele fizer aqui guardar dentro da sala de
dança, não, é expandir para que ele saia para o meio da rua, para que ele sirva de exemplo;
apesar de que eu nem gosto dessa opinião de servir de exemplo.
As pessoas tinham que ter essa opinião assim: poxa, aconteceu esse acidente
comigo, eu vou retomar minha vida, eu não doente, eu não tomo remédio pra nada, não
tenho dor em nada, eu retomo minha vida, só que de forma diferente.
Aí, o que é que a dança me propôs? Me propôs exercício para a musculatura pra que
você tenha essa possibilidade de sair e encarar as barreiras do dia a dia.
Hoje eu estou parado de dançar, estou trabalhando, to voltando a estudar, vou
ver o que isso aí rola. Eu gosto dos desafios porque eu fui militar e com 26 dias que eu larguei
o militarismo eu sofri esse acidente num mergulho. Então onde eu tinha esse corpo de
exercício, “normal”, porque foi feito um curso dentro do quartel e tal, onde eu me envolvi
nisso, e, de repente, eu me encontrei na limitação.
E aí na fisioterapia eu ficava imaginando... Deixa eu falar aqui um assunto aqui
que era uma das coisas que me incomodava muito, que era a falta do sexo, e que eu ficava
imaginando que quando eu sofri o acidente eu ia ficar em baixo e que se eu tivesse ereção não
ia transar, eia ser aquilo. E a partir do momento da fisioterapia eu fiquei imaginando o que
a fisioterapia poderia me propor para eu mudar aquela opinião, e mudou muito, não teve
estudo, não teve nada paralelo foi a fisioterapia que me ensinou a transar com o meu corpo
novo. Com essas orientações de mudar algumas posições, de criar musculatura pra que você
vire ativo, de se exercitar para que você não pare a sua vida sexual.
Mas voltando pra dança...
Na fisioterapia era onde você fazia o exercício e na sala de dança era onde você
aprimorava mais ainda o ato de transar, o ato de lidar com seu corpo novo, porque a
abordagem era deitar no chão, eu vou dar consciência de como você se aquece e vamos
exercitar. A conquista era bem maior na dança e isso criava muito mais musculatura para que
você se tornasse ativo, não só no sexo, mas no seu dia a dia, na sua independência.
O trabalho com os profissionais foi difícil porque foi um dos primeiros grupos
no Brasil, esse contato era mais assim; todos eles, acostumados a trabalhar com pessoas sem
deficiência e de repente... Teve uma vez que um chegou e disse: Que é que eu vou fazer
com essas carrocinhas?(risos)
E aí muito legal, porque é a idéia dele com o que a gente propõe de quantidade
de exercício, de movimentação que a gente propõe e isso se junta, a ideia de um
espetáculo, mas assim, é ruim pra quem monta chegar sem ter nenhuma opinião dos
cadeirantes, das limitações, primeiro ele tem que saber das limitações de cada um. Cada um
tem um corpo diferente, deficiências diferentes, limitações diferentes, então, ele tem que ter
essa noção. O que ele quer ele tem que propor pra gente, pra ver o que a gente disponibiliza.
Mas assim sempre certo e sempre saíram coisas legais. Foi muito bom essa troca de
experiências, a troca dele vir com o perfeito e encontrar com os limites e sair uma coisa
bacana.
ENTREVISTA COM REJANE SOUSA - Bailarina da Roda Viva Cia de Dança
Realizada em:
Natal, 26 de Maio de 2009
Meu nome é Rejane de Sousa, tenho 34 anos e estou grávida pela segunda vez.
Eu vou começar por meus seis anos.
Eu sempre passava pelas escolas por volta dos seis a sete anos e chorava para ir, mas,
naquela época iniciava a partir dos sete anos. De tanto eu pedir minha mãe me matriculou.
Sofri muitos preconceitos, porque criança mesmo sendo uma pessoa maravilhosa também é
muito malvada. Mas, estudei; e no dia em que ninguém podia me levar eu chorava para ir para
a escola. Somente fui reprovada uma vez e foi no ano e parei no antigo grau também
chamado de ginásio. Fiz vestibulares duas a três vezes por não me dedicar o suficiente não
passei. Passava nas primeiras fases, mas não consegui concluir. Logo em seguida fui trabalhar
como telefonista e trabalhei por dois anos. Depois eu passei para operadora de telemarketing e
supervisora de telemarketing.
Conheci a Roda Viva um ano após estar trabalhando como telefonista.
Desde o sete anos eu tinha uma vida ativa; ia e vinha. No início era ajudada por minha
família, mas fui aos poucos tentando me libertar. Porque eu gosto de sair de casa e não dar
satisfação alguma para ninguém. Eu detesto dizer a hora que vou voltar, porque, nem eu sei.
Sei para onde vou no início, mas as vezes de lá vou para outro lugar. Então eu detesto que me
perguntem isso.
Quando eu fui para a Roda Viva, eu não conhecia nada, nada de dança, nada disso.
Nunca tinha participado de nada daquilo. Dançava apenas em festas e achava que tinha
dançado. Nunca nada como a Roda Viva, nada como aquela companhia de dança. Achei que
era fácil e comecei a perder aulas, porque quando eu fui à primeira reunião vi que tinham
pessoas com uma deficiência muito mais complexa que a minha. E pensei: -“Se eles podem,
eu também posso com certeza!”.
Foi muito difícil no início, muito duro para mim mesma, muito complexo. Mas, foi por
isso que apaixonei, porque tudo que é difícil eu agarro e não consigo mais largar. A parte
mais complicada no início foi relacionada ao artístico. Eu não tinha veia artística, não era
dada para aquilo, mas eu aprendi, e fui crescendo. Tenho muito que aprender ainda, mas pelo
menos deu para ficar no patamar de outros bailarinos também. Às vezes uma pessoa que
nunca na vida esteve num palco para ensaiar e quando vai, ela é maravilhosa. Eu também sei
ver essas pessoas assim. Porque para mim sempre foi bastante complicado e eu tenho que
trabalhar e me dedicar muito com isso para poder me sair melhor.
Depois de alguns anos na Roda Viva o diretor da companhia Henrique Amoedo saiu e
me deixou na direção. Foi muito difícil para eu ser diretora e bailarina ao mesmo tempo.
Todos falam que eu tenho uma facilidade para ser líder, mas eu não estava preparada para ser
diretora da companhia. Porque a companhia tinha um vínculo muito forte com a UFRN
(Universidade Federal do Rio Grande do Norte) e para conseguir qualquer coisa se dependia
desse vínculo, e eu não o tinha. Então, eu ficava dependendo de outras pessoas para qualquer
resolução e era uma direção frustrante por essa dependência. Eu achei muito complicado e saí.
Acho que fui um pouco covarde, pois quando saí eu saí de tudo, saí da Roda Viva e parei de
dançar. Depois acabei voltando, pois; eles criaram horários para eu voltar e fui sendo
encurralada. Não me senti obrigada em voltar, porque eu gosto de dançar, mas voltei somente
para dançar.
Um ano após o meu retorno à Roda Viva, eu fui de férias para o Rio de Janeiro e
recebi uma ligação do ex-diretor da Roda Viva Henrique Amoedo dizendo que o Atelier
Coreográfico, do Centro Coreográfico do Rio de janeiro faria uma audição; e que estariam
pegando pessoas deficientes, gordos, magros, bailarinos, pessoas de teatro e de varias áreas.
Estavam mesclando tudo num total de 100 pessoas e 15 pessoas seriam para um grupo
profissional. Então eu resolvi fazer e após 15 dias do meu retorno para o meu trabalho de
Supervisora de Telemarketing em Natal, eu recebo o telefonema da diretora Regina Miranda
dizendo que havia passado. A partir daí eu relatei que teria interesse se fosse para o grupo
profissional, pois não tinha nenhum vínculo no Rio de janeiro a não ser a minha irmã, mas
não poderia estar sem dinheiro. Não iria me aventurar por lá sem dinheiro. O artístico é
muito bom, porém, não para passar fome. Então, eu pedi demissão e fui trabalhar no Rio de
janeiro. Passei um ano lá, porém foi insuportável, pois, em Natal eu morava sozinha e
morar com a minha irmã era muito complicado para mim. Ela me segurava muito, queria que
eu desse satisfação da minha vida. E como falei eu não gosto que me perguntem certas
coisas. Mas, agüentei um ano.
Antes de terminar o ano me telefonaram de Natal pedindo para que eu retornasse ao
trabalho de Supervisão de Telemarketing e perguntei se eles poderiam esperar o contrato
terminar.
Após o contrato com o Centro Coreográfico eu retornei a Natal, assumi meu cargo de
supervisora e voltei à Roda Viva, no qual estou até hoje. Trabalhei com a Carol, fiz outros
trabalhos. O trabalho no Rio de Janeiro foi muito importante para iniciar outras coisas
também.
A parte coreográfica não era muito montadinha, muito certinha dentro do padrão
5,6,7,8 e o trabalho no rio começo a diferenciar isso, eles não queriam mais isso.A Regina
Miranda gostava quando ela não me via no meio da turma, porque sabia que eu estava mais
ou menos acompanhando tudo,pois eu não estava perdida e nem sentada. Então, ela gostava
muito disso, pois ela não queria me diferenciar e ela sempre dizia isso. Na turma eram 2
deficientes, mas eu fui a única que ficou e terminou o Atelier coreográfico. Ela não queria me
colocar num pedestal. E foi muito complicado para mim, pois nós pegamos vários professores
e uns davam mais atenção. Eu tinha que adaptar muitos movimentos, desde que não saísse da
linha coreográfica do profissional. Cada dia para mim era o primeiro dia. E gosto de comparar
isso ao dia de aula na escola, que aquele frio na barriga, porque, você vai conhecer
pessoas novas. Era do mesmo jeito para mim. Todo dia era o primeiro, pois é muito difícil
para eu sair de casa no primeiro dia de escola, junta ansiedade e o medo de quem se vai
conhecer nesse dia. Mas, foi uma ótima experiência, pois, me preparei muito para o tipo de
trabalho que a Carol queria montar aqui em Natal que foi o trabalho nas ruas. Eu entendia
mais. Eu gosto de estar livre e aberta para o que as pessoas irão me trazer, eu nunca fico presa
ao anterior. Posso até ficar presa as pessoas, mas não ao trabalho anterior. Não fico presa e
nem sinto falta. Então eu sempre estou aberta ao que estão fazendo agora. “- O que estão
fazendo agora? Estão trabalhando com o que agora? Talvez pudesse ser melhor? Poderia?
Pode ser. Poderia ser mais trabalho? Pode ser. A pessoa que esta a frente está trabalhando
menos? Pode ser que sim.” Mas, eu estou aberta para aquilo ali e eu sempre sou assim. Por
isso eu já fui acusada de ser protetora de direção.
A Roda Viva passou por várias direções e diretores artísticos muito diferentes. Quando
eu entrei na Roda Viva com o Henrique Amoedo, ele trabalhava mais contato-improvisação.
O segundo diretor foi o professor Edeilson Matias, ele trabalhava o Método Educação Física
do Prof. Edson Claro e Carol Teixeira (diretora seguinte) trabalhava muitas coisas na rua,
eram aulas muito mais livres, trabalhávamos com o contato com as pessoas nas ruas, o que
não deixa de ser improvisação, porque é ação e reação.
O contato - improvisação foi muito bom para ter começado. Era fácil, tranquilo e bom
de fazer, bom para trabalhar com o deficiente. Não te exige muito e prepara para um processo
mais difícil que pode ser mais complicado, porque o processo de contato e improvisação não
se tem que está adaptando, até adapta, porém somente alguns pesos e contrapesos, mas não é
tão difícil como outro tipo de aula.
Depois foram aulas técnicas com o Método Dança Educação Física do Prof. Edson
Claro. Foi muito difícil. O Professor Edeilson Matias na época, adaptava. Ele dividia a
turma em deficientes, não deficientes, cadeirantes, porque para o deficiente que anda era de
uma forma, para o cadeirante era de outra forma. O deficiente que anda não faz da mesma
forma que um cadeirante e nem vai fazer igual a uma pessoa sem deficiência. Então, ele
destacava a aula dele com essa divisão. Ele dividia, mas, com todos fazendo ao mesmo
tempo. Ele mesmo adaptava o que ele queria. Foi muito bom, mas, eu não voltaria mais para
esse 5,6,7,8...
No meu caso como bailarina da Roda Viva essas etapas me ajudaram achegar a
próxima. Cada uma ajudou para outra fase. Pois, é muito bom construir uma coisa no corpo
para depois desconstruir. E acho melhor quando se está aberto para isso, pois algumas pessoas
constroem as coisas e ficam bitoladas àquelas formas, não desconstroem. Isso foi muito
interessante para o trabalho na rua com a Carol. Foi muito bom, pois eu estava muito mais
aberta e com outra cabeça. Talvez se eu entrasse antes eu acharia muito mais complicado,
porém como estava aberta foi uma linha de trabalho melhor de seguir, mais fácil. Quando
eu estou ensaiando ou dançando eu me coloco nas coisas e não fujo, eu gosto do que faço
gosto dos detalhes desses desafios.
Hoje eu estou com a direção do professor Alex Beigui, que enfoca coisas de teatro, as
aulas não são nas ruas como quando era com a Carol. É uma linha totalmente diferente que
ele quer buscar, mas é como a Carol que não procura o bonito e perfeito. Quer ver novas
formas, independente de referenciais. Ele quer que cresçamos e que tiremos alguma coisa do
corpo.
É outra fase da Roda Viva, totalmente diferente. Ele trabalha mais lento e às vezes é
mais difícil, mas eu estou aberta para as coisas que ele vem a fazer. Também está puxando
bastante para a área do teatro. No nosso espetáculo ele fala de augusto dos Anjos o que eu
acho muito interessante. É diferente e ajuda a crescer. Eu não sei se quero ficar nisso para
sempre, mas talvez ajude na próxima fase da minha vida, eu não sei, mas sei que está sendo
bacana.
No processo criativo, eu passei por vários coreógrafos. Quando eu comecei com o
Henrique Amoedo, mesmo nunca tendo coreografado com ele, o mesmo convidou muitas
pessoas que coreografaram com a Roda Viva. E alguns chegavam com o processo
coreográfico pronto. Mesmo sabendo que iriam lidar com pessoas deficientes. Levavam cerca
de 2 a 3 semanas no máximo para terminar um trabalho de uma ou meia hora. E essas pessoas
que trouxeram os trabalhos prontos se frustraram muito. Além de nos fazer sofrer muito para
desenvolver uma coreografia não adaptada, se frustravam. Pois, não para trazer nada
pronto para um grupo de bailarinos deficientes e ainda sem conhecer a deficiência. Trabalhar
com corpos é difícil, e ainda mais corpos que você não conhece. Quando se é chamado para
um grupo de balé clássico, por mais que tenham uns melhores que outros, sabe-se que todos
fazem ponta e levantam a perna em cima, mas, em relação a um grupo de deficientes é
muito complicado, pois não se sabe qual é a deficiência de cada um. Quem veio com um
processo pronto na cabeça se deu mal. Fez o trabalho, mas nos fez sofrer também. O
sofrimento faz parte do processo, pois nem tudo é prazer e mesmo que fosse assim as pessoas
não teriam educação e ficaria faltando disciplina. E é fundamental que se tenha disciplina em
uma companhia de dança. Foram seis ou sete coreógrafos que o Henrique Amoedo chamou,
alguns chegavam com a idéia mais exploravam o corpo do deficiente e iam puxando um a um
ou grupos a grupos. Mesmo que o movimento fosse todo igual não precisava que se
trabalhasse igual. Cada um fazia do jeito que desse para fazer. Havia muita adaptação, esses
eram coreógrafos abertos.
Como Ivonice Satie (que faleceu) foi uma dessas pessoas também que podiam até
trazer algo pronto, porém, deixava em aberto para que as pessoas participassem. E no final
sempre saia bonito, limpo, como uma companhia deve mostrar num palco.
Tiveram outros coreógrafos que não vinham com nada e começavam a trabalhar com
os corpos e a partir desse trabalho começavam a tirar os movimentos dos corpos dos
deficientes. Nos Colocavam em uma sala de aula para ver o que seria possível tirar e
começam a criar a coreografia a partir disso. O que é na verdade uma construção. Nós
tivemos isso com a Carol e com outros coreógrafos também.
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Entrevista com Marconi Araújo Ex- integrante da Roda Viva Cia de Dança,
bailarino da Cia Gira Dança, Natal/RN, 20 de julho de 2009.
Meu nome é Marconi Araújo, tenho 31 anos e faço parte da companhia de dança Gira
Dança. Nasci no Rio Grande do Norte na cidade de Lajes do Cabugi.
Eu comecei na Dança a doze anos em 1997, numa companhia chamada Anjori; onde
dancei de 1997 a 2002.
A Anjori era uma companhia de dança que trabalhava mais as danças folclóricas, que
para mim foi um desafio, pois eu nunca havia dançado artisticamente somente em festas;
ocasiões de lazer. Então, eu dancei por cinco anos e de surgiu o convite para participar da
Roda Viva em uma das viagens que nós participamos. Era um festival de dança em Belém-
PA.
Eu aceitei essa proposta como um desafio para mim, pois até então, eu somente
dançava numa companhia que trabalhava mais a parte folclórica e o Roda Viva era uma
companhia que trabalhava a dança contemporânea; o que de fato era algo novo para mim, pois
era completamente diferente da minha concepção de dança e de tudo o que eu fazia.
Em 2002, comecei a dançar na Roda Viva, onde era um trabalho mais sério, um
trabalho muito mais voltado para a parte artística. Entretanto eu entrei nesse trabalho
totalmente diferente, um trabalho artístico que mostrava como eles sempre desenvolveram;
uma companhia formada, com várias apresentações feitas e a serem feitas. Eu tinha receio
de dançar lá.
A companhia mostrava o lado artístico do deficiente, não mostrava aquela coisa
piegas. O deficiente fazendo “aquela dancinha para o povo chorar” e tal: - ah! Está ali o
deficiente dançando! Mas, sim para mostrar mesmo o trabalho, que o deficiente tem a
capacidade de desenvolver qualquer coreografia, mostrando para sociedade, para as pessoas,
para o público, a não olhar ele como o deficiente, mas sim olhar o conjunto coreográfico.
Mostrar que o Cadeirante, andante, ou qualquer outro tipo de deficiência pode desenvolver
qualquer trabalho coreográfico; e que as pessoas não olhem o deficiente, mas sim o conjunto.
Olhe a coreografia em si, vendo no contexto que ali tem uma coreografia de dança. Que as
pessoas não ficarão ali somente com o olho vidrado no deficiente. Sei que existe essa coisa,
mas, que isso não seja o foco. Foi esse o trabalho que a Roda Viva desenvolveu, e isso foi
uma coisa maravilhosa para mim, porque quando eu cheguei ao Roda Viva, foi que eu vi que
o trabalho como bailarino cadeirante eu podia e tinha n coisas para mostrar além de coisas
pequenas que eu fazia e que poderia desenvolver muito mais.O pessoal resgatou muito disso
de dentro de mim, que eu podia desenvolver vários movimentos, que minhas possibilidades
eram enormes.Comecei a viajar e viajei muito mais.Foi um aprendizado enorme para mim.
Foi através do Anderson que entrei na Roda viva. Quando o Anderson e Beto saíram
da companhia tiveram a idéia de montar um trabalho independente e eles me convidaram para
esse novo trabalho. Era mais um novo desafio para mim, montar um trabalho independente
que começava do chão mesmo, sem espaço para ensaiar, não tinha nenhuma estrutura,
nenhuma coisa boa, tínhamos que acreditar somente em nós, acreditar no trabalho artístico, na
capacidade que nós tínhamos e daí começar uma coisa pequenininha. Alugando os meninos
com a força, com as idéias boas que eles tinham tirando dinheiro do bolso para alugar espaço,
para essas coisas todas.
E comecei eu, Beto, Anderson e mais duas pessoas. Daí começou o Gira Dança. O gira
dança foi outro desafio, começar apenas como um sonho, uma idéia, sem espaço para ensaiar,
sem nenhuma qualidade para ensaiar.
O primeiro lugar que agente foi ensaiar, era um espaço muito ruim onde ensaiávamos
rolando em um piso de cerâmica quebrado e com as baratas passando ao nosso lado. Quando
terminávamos saíamos correndo para casa para tomar banho. Foi um desafio, mas aos poucos
o grupo foi melhorando, foi criando um nome, um trabalho sério e dedicado, dentro desse
mesmo contexto da Roda Viva. Que era mostrar o lado artístico, independente de mostrar o
deficiente dançando, pois eles vinham com isso.Eles que começaram isso no Roda Viva e
vieram com isso de lá.Já existia essa idéia de mostrar o deficiente dançando, mas,
mostrando no trabalho artístico a sua qualidade como bailarino. E eles Anderson e Beto
seguiram nessa mesma linha, com um trabalho mais independente e com muito mais garra.
Eles tinham que ter muito mais força de vontade para adquirir as coisas; para conseguir viajar,
correr atrás de patrocínio que era uma coisa muito mais difícil.
Hoje o Gira Dança, conseguiu ter um nome, um reconhecimento nacional e
internacional. Graças a essa idéia que eles trouxeram lá de baixo de onde eles começaram que
se conseguiu implantar a parte artística.Hoje temos um espaço para ensaiar, uma qualidade
para ensaiar, hoje temos um conforto.Uma sala de ensaio com linóleo, temos uma estrutura,
ainda não é a estrutura ainda que realmente sonhamos,mas ainda vai acontecer.Nós sendo
uma companhia de 4 anos de existência com certeza temos uma estrutura que já é de se olhar
com outros olhos.Inclusive ganhamos vários prêmios como o Klauss Vianna duas vezes,
prêmio Banco do Nordeste,caixa econômica, ponto de cultura vários. Vários prêmios. E isso é
mais do que prova que o trabalho vem dando certo e que tem sido de qualidade. E é isso a
minha história dentro da dança.
Em relação ao meu processo coreográfico
Eu tive Poliomelite (paralisia infantil), tenho todos os meus movimentos, mas a perna
não anda, porém tenho muita facilidade de criar movimento e muita facilidade de
movimentação.Cada dia, cada coreografia,cada processo novo que vai acontecer eu tento
descobrir coisas novas, cujas quais posso fazer.Por exemplo, se vem algum coreografo montar
comigo, eu falo para ele de minhas possibilidades.E ele vai montando dentro de minhas
possibilidades a coreografia.Mas, sempre falo para ele que ele procure na cabeça dele, que eu
tentarei fazer da maneira que ele quer e se de repente pode não sair, mas se aproxima ao
máximo do que ele quer.Mas não podemos viver moldados a cabeça do coreógrafo.
Ele vem aqui e pede uma coreografia assim e assado. “-Marconi, faça isso!” e se eu
não estou conseguindo fazer desse jeito, posso conseguir de outro. E ele pode gostar ou não.
Então se faz de outra maneira. Eu acho que fica uma coisa muito mecânica você se tornar
“boneco de pano” de um coreógrafo.
Ele a idéia e eu tento fazer da minha maneira, porque quando ele essa idéia é
assim que descubro que eu consigo fazer coisas novas. Por exemplo, para fazer uma parada de
mão. Quando eu fui dançar com a Roda Viva e que era minha primeira experiência com a
dança contemporânea. Para fazer a parada de mão era uma coisa que eu fazia rápido, fazia,
mas não tinha consciência do que fazia. Eu nem sabia que eu andava e quando eu vi que eu
fazia então, eu andava a sala toda com o passinho de mão. Então, descobri isso. Desde dar
várias e várias cambalhotas, pegar a cadeira, jogar a cadeira para cima, segurar. Foram várias
possibilidades que eu consegui com o coreógrafo dando as idéias; e eu tentando aperfeiçoar e
criando também. Tinha uma movimentação que o coreógrafo pediu uma parada de mão no
chão com o meu corpo girando e andando; e eu falei que conseguia na cadeira, segurar na
mão e fazer a cadeira girar. De repente segurar na mão e ficar girando. O coreógrafo
perguntou se conseguia, eu disse que sim. Então é assim o processo coreográfico com o
cadeirante.Cada dia você vai descobrindo coisas novas e para isso você não pode ficar
esperando o coreógrafo montar tudo para você.Ficar mandando você fazer tudo.Você tem que
chegar e ir fazendo, ir descobrindo e negociar com o coreógrafo o que e o que não cabe na
coreografia, então ele vai decidir.Na maioria das vezes são coisas muito legais, outras vezes
não são, mas quando de repente o coreógrafo não quer naquela coreografia dele eu guardo
para mim, porque de repente outro coreógrafo quer, pois as cabeças não são todas iguais e
cada um tem um pensamento diferente. Eu tento descobrir a cada dia nos ensaios coisas novas
para fazer e é assim tem que ser o processo criativo, todos os dias, para você não viver na
mesmice de fazer aquela mesma movimentação todos os dias. Porque as pessoas tem o
conceito de que somos limitados e que em todos os espetáculos será a mesma coisa. Então,
você tem que todos os dias estar criando coisas novas para estar mostrando para essa gente
que deficiente tem muita coisa boa e artística dentro da dança para mostrar. E não despertar
nas pessoas piedade e sim entusiasmo de nos ver dançando bem. Emocionando pela dança e
não pela piedade.
A questão do bailarino deficiente no meio geral da dança.
O bailarino com deficiência de maneira abrangente, mostrou para a sociedade que
ele tem qualidade, tem potencial, provou que o que não falta é qualidade, que ele consegue
desenvolver trabalho e que você não precisa mais ver o bailarino deficiente como ser limitado.
Mas, a coisa que ainda pesa muito e que ninguém caiu na real é a questão financeira em
relação ao bailarino deficiente. O bailarino deficiente ainda não consegue viver de seu
trabalho, a dança.
A coisa que mais gosto de fazer é dançar, mas não vivo da dança. E espero que o
bailarino deficiente possa viver da dança.
É mais uma barreira que tem que ser quebrada e realmente as pessoas começarem a
valorizar o trabalho do bailarino deficiente. E acreditar que o bailarino deficiente pode
realizar qualquer trabalho e participar de qualquer companhia de dança do Brasil. Abrir as
portas dessas companhias famosas do Brasil, porque nós temos essa capacidade de
demonstrar nosso trabalho, de desenvolver trabalho em qualquer lugar, qualquer companhia e
de qualquer área da dança, ballet, contemporâneo, etc. Acredito que deveria ser reconhecido
mais ainda e que essas companhias trabalhem com a inclusão do deficiente com a pessoa dita
normal. De se ter essa liberdade de poder dançar aqui e ser visto por outras companhias e ser
convidado para dançar em outras também. Acreditar mais e dar maior oportunidade para eles
e é isso que está faltando ainda, grandes companhias acreditarem mais no trabalho do
bailarino deficiente, pois na realidade eles não deixam nada a desejar para nenhum outro
bailarino dentro de suas capacidades, dentro de seus limites. Na realidade quem é que não tem
limites? Qual é o bailarino que não tem limites? Os limites todo mundo tem e eles estão
para serem quebrados. Então estamos nessa luta e quem sabe essas companhias um dia abram
seus olhos e façam audições para não deficientes e deficientes também para qualquer área. E
que a gente possa fazer essas audições e passar, porque nós temos a nossa qualidade e nosso
valor. E é isso que acho que está faltando para o bailarino deficiente.
ENTREVISTA COM ROBERTO MORAIS
Natal, 20 de julho de 2009. Entrevista com Roberto Morais ex-bailarino da Roda
Viva Cia de Dança fundador do Grupo “Gira Dança.”
Sou Roberto Morais, tenho 41 anos e tenho o grau completo. Sou de Natal e resido
a quarenta e um anos em Natal.
Sou paraplégico 23 anos, trauma de um tiro que atingiu a L1 e L2. A bala atingiu a
L1 e L2 e me causou essa paraplegia. Não foi por causa disso que eu deixei de viver, então, eu
estou vivendo até hoje com essa paraplegia e estou trabalhando no meu dia-a-dia; entre
‘trancos e barrancos’ e vivo bem. Hoje estou adaptado (na cidade não adaptada) e vivo na
batalha trabalhando e não mendigando nada de ninguém.
Eu joguei basquete por três anos e no final de 1994, teve um campeonato no Rio de
Janeiro de Basquete sobre rodas; então, na abertura do campeonato eu vi uma apresentação de
dança. E lá, aquele negócio ali me motivou a dançar. Terminou o campeonato e eu voltei para
Natal.
Em Março de 1995, nós fomos fazer um jogo em Ceará Mirim, um município aqui do
RN, então eu entrei no ônibus que foi pegar uma companhia de dança que trabalhava com
deficiente auditivo. Então, eles viram aquele monte de cadeira de rodas e disseram que
estavam montando um balé de cadeira de rodas e que estava faltando um bailarino, essa
companhia se chamava Anjori.
Então eu me apresentei como bailarino nessa companhia. Até meus amigos me
questionaram sobre a dança, mas isso me motivou a não desistir, então eu comecei a ensaiar e
dancei de março até outubro de 1995 nessa companhia. Em junho pela primeira vez dancei no
Teatro Alberto Maranhão, então eu conheci o Henrique Amoedo que estava vindo de São
Paulo e estava querendo montar uma companhia aqui em Natal. Creio que ele já tinha visitado
a Universidade e o Hospital Onofre Lopes que tem um trabalho multidisciplinar em Lesão
Medular. E lá, tinha muito deficiente físico, de traumas de tiros, mergulho e acidentes de
trabalho, então ele procurou o professor Ricardo Lins o médico responsável por esse
departamento; entrou em contato com ele e foi assistir uma apresentação do Anjori e quando
ele me viu no palco me chamou para trabalhar com ele. E eu falei:- Como seria esse trabalho?
Então agente não teve mais contato. Isso em setembro de 1995. Teve um seminário de
deficiente o ““ SENAC ““, em Cidade da Esperança, eu me encontrei novamente com
Henrique e ele de novo fez o convite, me deu seu telefone, endereço e tudo.
Eu falei para ele que iria fazer uma viagem, pois era um sonho que queria realizar
também. Eu tinha viajado de ônibus e queria viajar de avião. Esse sonho eu tinha que
realizar. Então, pedi um tempo a ele para pensar na proposta dele. Quando voltei de viagem
entrei em contato e perguntei como seria mais fácil para nós conversarmos. Nos encontramos
no Hospital, (lá no Onofre Lopes) e ele contou sobre sua proposta. Ele queria mudar a rotina
do deficiente físico de casa/hospital, hospital/casa. Queria mudar para casa, shopping,
hospital, praia, bares, praças, namorar e essas coisas. Eu falei para ele que eu já fazia isso e
ele disse: - Sim, você faz, mas e os outros que estão ficando? Que tal você também ajudar? Aí
eu me interessei por essa proposta e então foi criado a Roda Viva.
A Roda Viva foi criada em dezembro. Creio que foi um presente que Papai Noel nos
deu dia 24 de dezembro de 1995 a Roda Viva e desde esse tempo eu fiquei; de 1995 até o
final de 2004. Foi uma experiência muito boa para mim, eu adquiri muitas coisas, adquiri
respeito lá fora, com pessoas importantes da dança, recebi convite para montar grupos.
Eu e a Carol montamos um trabalho em Belém-PA e até hoje o trabalho está rodando.
A Roda Viva me ensinou muito a estar onde eu estou hoje. Eu aprendi muito, mas também
teve um pouco de falha da administração que gerou minha saída da companhia. Mas isso não
me impediu de trabalhar só.
O processo de ensaio era nas segundas, quartas e sextas. Iniciou pela manhã, passou
pela tarde, passou pela noite.
No início o trabalho era meio terapêutico; que começou a motivar o deficiente a sair
de dentro de casa, isso. Mas, quando começamos a apresentar fora da sala de ensaio,
começou a prosperar um trabalho mais artístico e a gente procurou buscar o artístico mesmo.
Começamos a trazer gente de fora para trabalhar com o grupo. E nós éramos muito cobrados
para um trabalho de qualidade, para sair do terapêutico, pois o terapêutico não gerava nada,
gerava somente a motivação para o deficiente sair de casa e o grupo não queria isso. Nós
queríamos que o deficiente se tornasse um artista. Então isso levou o trabalho a prosperar
muito e chegaram ao ponto de se criar vários grupos no Brasil através do trabalho da Roda
Viva Cia de Dança, em São Paulo (Diadema), surgiu o Mão na Roda”; em Belém (PA),
surgiu o Roda Pará, na Bahia e na Paraíba surgiram outros trabalhos também com a mesma
proposta do Roda Viva de sair daquela monotonia do terapêutico, a gente começou a trabalhar
o artístico mesmo. Éramos muito cobrados pela direção e a gente procurou buscar o
profissionalismo deixar o amador que não tinha retorno financeiro- o que eu achava muito
errado- e isso fez com que muitas pessoas saíssem porque não tinham uma renda e saiam para
trabalhar em outros cantos pra ter um retorno financeiro. Quem acreditou no trabalho está até
hoje eu fui um dos que não saiu da dança para nenhum um trabalho braçal, eu me encontrei
no trabalho artístico e acho que isso me levou a estar onde estou. O Roda Viva me ensinou a
dar aulas, a saber, me comportar em palco, a ter um dialogo com a reportagem. Acho que a
Roda Viva me elevou muito, mas eu fiquei muito magoado em termos financeiros que a gente
recebia cachês, mas não via. Teve uma época que fomos para os EUA e nós que pagamos as
passagens, a gente pagou pra dançar, uma coisa absurda. A gente participou de vários
projetos, teve um que passamos dois anos recebendo que foi o Projeto Arte na Escola que
criou varias companhias nos colégios e foi um trabalho muito expansivo que levou a Roda
Viva ao êxtase e ao crescimento.
Em relação ao processo coreográfico.
Eu acho que o ser humano tem vários dons dentro dele, depende dele começar a
trabalhar, então eu comecei a explorar o dom do coreógrafo. Eu montei trabalhos em
Belém, aqui em Natal mesmo, e aprendo com cada coreógrafo o que ele vem passar, eu pego
um pouquinho de um, um pouquinho de outro e junto com a minha experiência de dança
mesmo, eu levo pro palco e isso me deixa muito satisfeito com o meu trabalho. No caso do p.
c com profissionais como Henrique Rodovalho, Luis Arrieta , Ivonice Satie (que Deus a levou
para dançar lá em cima agora), então no processo coreográfico com essas pessoas eu faço uma
adaptação, ele pede um movimento, eu falo que não e procuro fazer um movimento
semelhante ao pedido, se bate ele já pede para ir vendo outros movimentos na cadeira de
rodas, vai juntando o útil ao agradável. Eles acham que o cadeirante é quebrável, pensam que
a gente é não-me-toque, eu me jogo logo no chão e eles perguntam: - Você consegue fazer
isso? Aí eu falo que faço isso e mais alguma coisa... (risos). Se junta a minha experiência com
a do coreógrafo e isso é o processo que se tem com ele, tanto essas pessoas q vêm trabalhar
com a gente como com bailarinos deficientes, como a Carol, por exemplo, a Carol tem um
conceito legal com ela, muda o conceito porque é uma deficiente como eu também sou, então
a gente pode fazer, não e o Beto que é um coitadinho, ele pode fazer, então a visão muda. Não
é como uma pessoa que nunca trabalhou com deficiente que vem e diz: - Não ele não pode
fazer! E nunca tentou ver como é o processo.
Eu mesmo fui fazer uma audição para o Auto de Natal com um coreografo daqui e ele
me disse: - Rapaz eu não estou preparado para trabalhar com vocês. E eu fiquei de boca aberta
então disse: Já que você não está preparado vou preparar você. E me disse que ficaria para
outro momento.
Isso me magoou muito, porque eu podia ter ajudado ele e ele se ajudar, pois poderia
trabalhar com outras pessoas.
No caso de Carlinhos de Jesus, nós dançamos com ele que é um excelente dançarino,
mas quando ele viu um bocado de deficientes dançando em cadeiras de roda, ficou de boca
aberta, mostramos a ele que éramos capazes de sambar. Isso mostra as pessoas que a gente é
capaz.
Em termos de circuito de dança o bailarino deficiente é muito discriminado, ele não
passa, passa quando é um edital para deficiente ou como dizem “portadores de
necessidades especiais, isso não existe.
Então quando a gente manda projetos para editais, não passa, porque é um grupo de
deficientes que não pode ser igual a um Grupo Corpo, a uma Quasar, a um balé de Ana
Botafogo; isso não existe somos um grupo artístico, que pode ser compatível e a gente fica
abismado porque o edital volta dizendo que não passa porque somos deficientes. Eu como
bailarino a quinze anos não concordo com isso, vamos supor que se eu mandar meu trabalho
para o Circo de Soleil eu não passo porque sou deficiente, mas eles não sabem o potencial que
o deficiente tem, acho que isso tem que ser visto primeiro antes de ser julgado. A gente
manda uma coreografia de vinte minutos eles acham que é uma monotonia porque eu sou
deficiente e acham que temos que estar no palco bonitinhos, não, eu estou ali porque o
trabalho é artístico, não é um trabalho qualquer.
Acho que a gente tem que participar de todos os festivais, nacionais e internacionais,
mas essa porta ainda está fechada, não se chega a coerência de dizer: Os deficientezinhos, não
podem estar num festival de dança de recife, ora, a gente passou recentemente no festival de
Garanhuns e não tem deficiente físico, vamos ser os primeiros, a gente está abrindo portas .
participamos de festivais de deficientes, não tem a inclusão? Acho que inclusão é
respeito, todos podem estar juntos, somos seres humanos. Não é porque meu grupo tem
deficientes que não pode estar com um que não tem deficientes, todos podem dançar juntos.
Acho isso uma besteira essa história de deficiente e não deficiente se for um trabalho de
qualidade tem que ser mostrado pra população.
O Roberto Morais hoje saiu da Roda Viva e não parou, criou o Gira Dança e estamos
no campo desde 2005 na batalha e a gente veio com a experiência da Roda Viva. Creio que a
gente não pode dizer que não trouxe nada da Cia Roda Viva porque trouxemos uma bagagem
tremenda de conhecimento da dança e a gente está pesquisando, está buscando para o grupo,
estamos botando as pessoas pra estudar, abrimos um ponto de cultura, passamos em vários
editais como o da Funarte, o da Caixa Econômica, o do BNB e satisfeito eu não to, eu quero
mais. O meu sonho é tirar todos os deficientes e não deficientes de casa de uma forma ou de
outra. Se não quer dança, tem teatro,tem música, artes plásticas, acho que a gente está com um
leque de oportunidade para as pessoas verem o que é o Gira Dança. Esse grupo hoje é o meu
viver, não vivo mais sem o Gira Dança, estamos na batalha por espaço pra ensaio, espaço para
o lazer, mostrando nas empresas o que é o gira dança. Hoje somos uma ONG, isso levou um
ponto muito importante pra mim que saí de um gueto pra mostrar a sociedade que este gueto
não existe. Hoje o que vale é o respeito, se eu tiver respeito pela sociedade a sociedade terá
por mim. Eu quero mostrar para a sociedade o que é dança, o que é ser artista, o que é ser
pessoa, o que é ser gente porque eu acho que para as pessoas o deficiente só tem uma
qualidade, ele é pedinte, e eu não concordo com isso. O deficiente é um ser humano, ele é
capaz de trabalhar, quando ele não quer trabalhar, ele vai pedir porque precisa sobreviver.
Tem muitos amigos meus que são deficientes que saiu da dança e hoje estão trabalhando, um
é frentista, outro é cobrador, outro saiu para outras coisas.
Eu estou na dança a quinze anos e nunca tive vontade de trabalhar fora da área artística
e acho que isso me levou a estar onde estou hoje. A gente montou o grupo eu e o Anderson e
estamos aí na batalha, temos propostas até chegar e dizer: - Pronto, agora acabou. Eu por mim
só vou acabar no dia que fechar meus olhos igual ao Michel Jackson (risos).
Em termos de companhias aqui no Brasil acho que devemos nos unir mais, não somos
unidos, eu penso no meu grupo, fulano pensa no dele. Se nos unirmos mais, então se
buscarmos a união isso leva a abrir portas, porque, pronto, vou falar da Roda Viva que foi
onde eu aprendi o diretor da Roda Viva o Henrique ele corria atrás e tem pessoas que
acompanharam ele e estão aí até hoje, mas se a gente se unir e batalhar espaço nesses festivais
que não tem deficiente, vai ser mais fácil pois terão várias companhias brigando pelo seu
lugar. Por exemplo, se uma companhia brigar para ir para o festival de Londrina, pode até
passar, mas é difícil. Agora vamos supor, se o Gira Dança, a Roda Viva, o Mão na Roda, a
Pulsar se fossem as companhias. Se todas brigarem pelo seu lugar vai ser mais fácil. Hoje tem
internet, email, varias formas de se comunicar, mas as pessoas olham para o seu grupo.
Vamos nos unir e buscar o nosso espaço no lugar que a gente merece que são os festivais que
não têm deficientes.
ANEXOS
ANEXO A – CRONOLOGIA DOS ESPETÁCULOS
1995 – MAPA
Direção: Henrique Amoedo.
Coreógrafos: Henrique Amoedo, Edson Claro, Heloísa Costa, Herbert Menezes,
Ronald Carvalho, Vanessa Macedo.
Coreografias: De nós pra vocês, de Edson Claro, Geografia do Destino, de Henrique
Amoedo Edson Claro e Heloísa Costa, Prelúdio, de Herbet Menezes.
Elenco: Henrique Amoedo, Adriana Farias, Fábio Cruz, Ronald Carvalho, Herbet
Menezes, Vanessa Macedo, Roberto Morais, Heloísa Costa, Baltazar Junior, Janaina
Medeiros, Edson Araújo, Verônica Costa e Heronilda Anselmo.
Espetáculo MAPA, coreografia “Geografia do Destino”, de Edson Claro e Heloísa Costa (1995).
1996 – PERNAS PRA QUE TE QUERO
Direção: Henrique Amoedo
Coreógrafos: Henrique Amoedo, Edson Claro, Heloísa Costa, Luis Arrieta.
Coreografias: Marnatal, de Luis Arrieta, Curso do Rio, de Henrique Amoedo,
Heloísa Costa e Edson Claro, Pernas pra que te quero, de Edson Claro.
Elenco: Henrique Amoedo, Adriana Farias, Fábio Cruz, Ronald Carvalho, Carolina
Foto: Décio Peixoto
Foto: Décio Peixoto
Teixeira, Roberto Morais, Baltazar Junior, Janaina Medeiros, Edson Araújo, Verônica Costa .
Espetáculo Pernas pra que te quero. “Marnatal” coreografia de Luis Arrieta (1996).
1997- DANÇA DAS CADEIRAS
Direção: Henrique Amoedo
Coreógrafos: Edson Claro e Carlinhos de Jesus.
Coreografia: Valeu Valeu!
Elenco: Amoedo, Adriana Farias, bio Cruz, Ronald Carvalho, Carolina Teixeira,
Roberto Morais, Baltazar Junior, Janaina Medeiros, Jamaica Macedo Edson Araújo, Janete
Silva, Rejane Sousa, Verônica Costa, Leonardo Filho.
“Valeu Valeu!”, coreografia de Edson Claro e Carlinhos de Jesus (1997).
Foto: Décio Peixoto
Foto: Décio Peixoto
Foto: Décio Peixoto
1998 - MÃO NA RODA
Direção: Henrique Amoedo
Coreógrafos: Henrique Rodovalho, Ivonice Satie, Pedro Costa.
Coreografias: Companheiros de Estrada, de Ivonice Satie, Por que não? , de
Henrique Rodovalho, Embrulho Embolado, de Pedro Costa.
Elenco: Adriana Farias, Fábio Cruz, Ronald Carvalho, Carolina Teixeira, Roberto
Morais, Baltazar Junior, Janaina Medeiros, Jamaica Macedo Edson Araújo, Rejane Sousa,
Verônica Costa., Anderson Leão, Catarina, Leonardo Filho.
“Companheiros de Estrada” de Ivonice Satie (1997) “Por Que Não?”, de Henrique Rodovalho (1998).
1999- MÃO NA RODA, EPISÓDIO 2
Direção: Henrique Amoedo
Coreógrafos: Henrique Amoedo, Henrique Rodovalho, Ivonice Satie, Pedro Costa,
Carolina Teixeira.
Coreografias: Embrulho Embolado, de Pedro Costa, Companheiros de Estrada, de
Ivonice Satie, Por que não? , de Henrique Rodovalho, Vixe, de Carolina Teixeira.
Elenco: Ronald Carvalho, Diogo Pinheiro, Carolina Teixeira, Roberto Morais,
Baltazar Junior, Janaina Medeiros, Jamaica Macedo Edson Araújo, Rejane Sousa, Verônica
Costa, Anderson Leão, Catarina, Leonardo Filho.
Foto: Décio Peixoto
Foto: Décio Peixoto
“Embrulho Embolado” coreografia de Pedro Costa (1998).
2000 – FRAGMENTOS
Direção: Henrique Amoedo
Coreógrafos: Carlos Cortizzo, Hebert Menezes, Heloisa Costa, Carolina Teixeira,
Edson Claro, Leonardo Gama, participação do ator Rodrigo Nascimento.
Elenco: Ronald Carvalho, Diogo Pinheiro, Carolina Teixeira, Roberto Morais,
Baltazar Júnior, Janaína Medeiros, Jamaica Macedo Edson Araújo, Rejane Sousa, Verônica
Costa, Anderson Leão, Leonardo Filho.
Vixe”, de Carolina Teixeira (1999). “De Nós pra Vocês”, coreografia de Edson Claro (1995).
Foto: Décio Peixoto
Foto:
Foto: Décio Peixoto
2000- EM TESE NADA É REAL
Direção: Edeilson Matias
Coreógrafos: Domingos Montagner e Fernando Sampaio (La Mínima Cia de Dança)
e Ivonice Satie.
Coreografias: Entre Laços e Nós faz-se a Luz, de Leonardo Gama, Um Dia em
Casa, de Ivonice Satie, Intercâmbio e Entre Si, de Anderson Leão, Em Tese Nada é Real, de
Domingos Montagner e Fernando Sampaio.
Elenco: Ronald Carvalho, Diogo Pinheiro, Carolina Teixeira, Roberto Morais,
Baltazar Junior, Janaina Medeiros, Jamaica Macedo Edson Araújo, Rejane Sousa, Verônica
Costa., Anderson Leão, Catarina, Leonardo Filho, Luciana Gato, Morgana Lobão, Marcelo
Capriglione, Samá Silva, Bob.
“Em Tese Nada é Real”, coreografia de Domingos Montagner e Fernando Sampaio (2000)
2001 - DIMENSÕES
Direção: Edeilson Matias
Coreógrafos: Ivonice Satie e Leonardo Gama.
Espetáculo reúne duas obras apresentadas no espetáculo Em Tese Nada é Real.
Elenco: Ronald Carvalho, Diogo Pinheiro, Roberto Morais, Baltazar Junior, Janaina
Medeiros, Jamaica Macedo Edson Araújo, Rejane Sousa, Verônica Costa., Anderson Leão,
Catarina, Leonardo Filho, Morgana Lobão, Marcelo Capriglione, Samá Silva, Bob.
Foto: Dário Macedo
2002- PRA QUEM NUNCA VIU...
Direção: Edeilson Matias
Coreógrafos: Mário Nascimento, Ivonice Satie, Samarone Rosendo, Carolina
Teixeira e Anderson Leão e Rubens Barbosa.
Coreografias: Além Disso, de Mário Nascimento, Em Transe, de Anderson Leão, O
Nada, de Carolina Teixeira, Sonambulindo, de Samaroni Rosendo, Watashi, de Ivonice Satie,
Dança do Eu Sozinho, de Rubens Barbosa.
Elenco: Roberto Morais, Rejane Sousa, Anderson Leão, Carolina Teixeira.
“Além Disso”, coreografia de Mário Nascimento (2001).
2003 - O QUE SÃO?
Direção: Edeilson Matias
Coreógrafos: Mário Nascimento, Maurício Mota
Coreografias: B ou M, de Maurício Mota; O que São? , de Mário Nascimento.
Elenco: Roberto Morais, Rejane Sousa, Anderson Leão, Carolina Teixeira, Leandro
Silva, Carolina Gurgel, Marconi Araújo.
“Espetáculo “O que são?”, de Mário Nascimento(2003).
Foto: Ricardo Junqueira
Foto:
Affonso Nunes
2004 –2006 SOBRE CORPO PALAVRA E DESPEDIDA
Direção: Carolina Teixeira
Coreógrafos (as): Rejane Sousa e Fernanda Calomeni, Carolina Teixeira o grupo.
Performance de Abertura: “De dentro pra fora, de fora pra dentro”...
Coreografias: Até Ontem, de Carolina Teixeira, Encontro, de Rejane Sousa e
Fernanda Calomeni, Sensus, de Carolina Teixeira, In, de Carolina Teixeira, Parte...,
coreografia de Carolina Teixeira, Sostô, criação do grupo.
Elenco: Rejane Sousa, Fernando Hion, Mickaella Dantas, Carolina Gurgel, Caio
Macário, Wilson Júnior.
“Parte”, coreografia de Carolina Teixeira (2004). “Sostô”, coreografia Carolina Teixeira e o grupo.
2008-2009 AO GOSTO DOS ANJOS
Direção: Alex Beigui
Coreógrafo: Alex Beigui
Coreografia: Alex Beigui e o grupo.
Elenco: Rejane Sousa, ernando Hion, Mickaella Dantas, Carolina Gurgel, Caio
Macário, Wilson Júnior, André Lacerda.
Este espetáculo foi fruto de investigações acerca da dramaturgia corporal dos
bailarinos, a partir do universo poético de Augusto dos Anjos, e teve como inspiração trechos
da obra “Eu” do poeta paraibano.
Foto: Studio Quattro
Foto: Studio Quattro
Ao Gosto dos Anjos (2008-2009), coreografia de Alex Beigui e o grupo.
ANEXO B
GRUPOS E ARTISTAS
Candoco – Londres/Inglaterra.
Companhia fundada em 1991 pela bailarina e coreógrafa Celeste Dandeker juntamente
com o coreógrafo e bailarino Adam Benjamin, radicada em Londres-Inglaterra, destaca-se
pelo trabalho envolvendo pessoas com e sem deficiências, lançando seus bailarinos para o
mercado da dança contemporânea na Europa, um exemplo foi o bailarino David Toole, que
hoje compõe o elenco do grupo de Dança-Teatro inglês DV8.
A Candoco conta com um elenco parcialmente fixo devido à realização de audições
anuais abertas aos bailarinos de vários países do mundo. O grupo alia a atuação artística nos
diversos países em que se apresenta oferecendo workshops e palestras sobre seus processos de
criação em dança, bem como seu trabalho com os diversos corpos que compõem a sua
proposta de trabalho. Atualmente a companhia é dirigida pelo bailarino e coreógrafo brasileiro
Pedro Machado. A excelência e qualidade artística do trabalho colocam o grupo no hall das
grandes companhias de dança contemporânea internacionais.
“Still”, coreografia de Nigel Charnock (2008/2009). Site: www.candoco.uk
Axis Dance Company – Oakland/EUA.
Criada no ano de 1987 pela coreógrafa Thais Mazur, destaca-se no cenário da dança
norte americana desenvolvendo ações no campo artístico e educacional. A companhia conta
com a colaboração de coreógrafos como Bill T. Jones, Victoria Marks, Ann Carlson, dentre
outros. Atualmente está sob a direção artística da coreógrafa Judith Smith. A Axis Dance
Company é uma organização não governamental destinada à promover a formação artística e
educacional de seus integrantes e realizando atividades destinadas a comunidade como
workshops e palestras.
Vessel”, coreografia de Alex Ketley em colaboração com o elenco (2008).
Site:http://www.axisdance.org/index.php
Cleveland Dancing Wheels – Cleveland/EUA.
Fundado em 1980 pela coreógrafa e bailarina cadeirante Mary Verdi-Fletcher, este
grupo tem atuação na chamada Integrating Dance nos EUA, com vasto repertório artístico. O
Cleveland Dancing Wheels é uma extensão das ações educativas do Cleveland Ballet´s,
premiada companhia de dança norte americana. Mary Verdi-Fletcher tem grande atuação no
campo da dança envolvendo corpos deficientes nos Estados Unidos, promoveu apresentações
e workshops em escolas públicas e centros comunitários deste país.
“Alice in the Wonderland”, coreografia de Robert Wesner (2007).
Site:http://www.dancingwheels.org/
Cia. Gira Dança - Natal/Brasil.
Criada em 2004, pelos bailarinos Anderson Leão e Roberto Morais, ex-integrantes da
Roda Viva Cia. de Dança. O grupo atua como um Ponto de Cultura e Associação desde 2008,
realizando atividades nas áreas de dança e educação, através de oficinas e espetáculos
exibidos em todo o país. Esta companhia foi premiada duas vezes com o premio Klauss
Vianna de melhor espetáculo de dança.
“A Cura”, coreografia Grupo Gira Dança (2010).
Site: http://www.giradanca.com.br/
Foto: Rodrigo Sena
The Gimp Poject – Nova Iorque/EUA.
Companhia criada em 2006, sob direção da bailarina e coreógrafa Heidi Latsky, reúne
em seu elenco bailarinos com e sem deficiências e tem como produtor Jeremy Alliger, o
grupo se utiliza da crítica em suas composições coreográficas, bem corpo o questionamento
acerca do olhar exotizador sobre corpos deficientes. Em criações colaborativas o Gimp
destaca-se por uma produção em dança autoral. Bailarinos como Lisa Bufano, fizeram parte
do elenco do Gimp Project em ações desenvolvidas por este grupo no campo da formação de
profissionais para o mercado da dança. Por meio de workshops, conferências o grupo realiza
atividades em vários estados norte americanos abertas à comunidade e aos profissionais do
segmento cênico.
Catherine Long em “Enssemble" coreografia The Gimp. Jennifer Bricker e Nathan Crawford
coreografia “Aerial” The Gimp Project.
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