Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO
DEPARTAMENTO DE LÍNGUAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM ESTUDOS LITERÁRIOS
MARCUS VINICIUS MARVILA DAS NEVES
ENTRE CAMPOS: A MÚSICA DE INVENÇÃO NA
POÉTICA DE AUGUSTO DE CAMPOS
VITÓRIA
2010
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
MARCUS VINICIUS MARVILA DAS NEVES
ENTRE CAMPOS: A MÚSICA DE INVENÇÃO NA
POÉTICA DE AUGUSTO DE CAMPOS
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da
Universidade Federal do Espírito Santo,
como requisito parcial para obtenção do
Grau de Mestre em Estudos Literários.
Orientador: Prof. Dr. Wilberth Claython
Ferreira Salgueiro.
VITÓRIA
2010
ads:
3
MARCUS VINICIUS MARVILA DAS NEVES
ENTRE CAMPOS: A MÚSICA DE INVENÇÃO NA POÉTICA
DE AUGUSTO DE CAMPOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Letras do Centro de
Ciências Humanas e Naturais da Universidade Federal do Espírito Santo, como
requisito parcial para obtenção do Grau de Mestre em Estudos Literários.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Wilberth Claython Ferreira Salgueiro
Universidade Federal do Espírito Santo
Orientador
________________________________________
Profª. Dra. Viviana Mónica Vermes
Universidade Federal do Espírito Santo
Membro Titular
________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Paiva de Souza
Universidade Federal do Paraná
Membro Titular
________________________________________
Prof. Dr. Sérgio da Fonseca Amaral
Universidade Federal do Espírito Santo
Membro Suplente
________________________________________
Prof. Dr. Marcos Ribeiro de Moraes
Universidade Federal do Espírito Santo,
Departamento de Teoria da Arte e Música
Membro Suplente
4
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, por tudo.
Ao meu padrinho Sérgio Pereira, pela disposição constante.
À minha pequena grandiosa mulher, Andréia de Lima Silva, pela força, coragem,
carinho, paciência...
Ao Bith, pelos passes, dribles e corta-luzes poéticos, sempre.
À Mónica Vermes e Marcelo Paiva, referências musicais e literárias inequívocas para
a constituição de quem aqui escreve.
Ao Marcos Moraes, José Viegas e Celso Ramalho, pelos ensinamentos.
Aos meus amigos: Juvenal Filho e Alexandre Zanon, pelo som, rock n’ roll de cada
dia, anos a finco kandarpiando por (“na direção, no direção, sem direção ou na
contramão”); Vinícius Amorim, Gabriel Zonta, Francisley Dias e Pedro Henrique
Neves, pelo papo, bola, boteco e jogos inesquecíveis; Herbert Baioco e Deyvid
Martins, pelos in e outlets~ musicaos, randômicas conversas recheadas de pure
dac’s~; inestimável Dori Sant’Ana, companheiro de todos os sons; Wander Santos,
Wellington Rogério, Andressa Nathanailidis, Gina Denise, Rosângelas Fernandes e
Thompson, pelas boas palavras, condutas e oportunidades.
Aos meus alunos, por muito me ensinarem.
Aos que acreditaram ser possível “viver de música”, muito obrigado.
Aos que desacreditaram sempre: alguém tem que contrabalancear os sonhos, mas...
5
Augusto de Campos
6
RESUMO
Quer-se com este trabalho estudar a importância da música de vanguarda do século
XX na obra de Augusto de Campos. Para tanto, será necessário investigar como ela
é apresentada nos textos críticos musicais, reunidos no livro Música de Invenção
(1998), e, principalmente, analisar como o poeta se apropria de técnicas
composicionais dos inventors para homenageá-los em sua obra poética. Tomaremos
por amostragem os poemas que se referem a três dos músicos que aparecem com
freqüência no paideuma sonoro do autor: Arnold Schoenberg (1874-1951), John
Cage (1912-1992) e Giacinto Scelsi (1905-1988). Também se fará uso dos conceitos
de testemunha, memória e história provenientes da Literatura de testemunho –
através dos discursos de Seligmann-Silva (2000; 2003), Felman (2000), Gagnebin
(2004) para, por analogia, entender a posição assumida por Augusto de Campos
na defesa da música de invenção e alargar a ideia de homenagem. Paralelamente
serão abordados temas relativos à música contemporânea do século XX Caesar
(2007), Gubernikoff (2007), Griffiths (1998), Ross (2009), Grout e Palisca (2005),
Sadie (1994) e à manutenção do livro enquanto suporte durável Flusser (2010),
Carrière e Eco (2010) –, além de traçarmos um panorama geral dos poemas que se
referem aos músicos de recusa nas três antologias do poeta paulista.
Palavras-chave: Augusto de Campos; Música de invenção; testemunha;
homenagem; recusa; paideuma sonoro.
7
RESUMEN
Se intenta con este trabajo estudiar la importancia de la música de vanguardia del
siglo XX en la obra de Augusto de Campos. Para eso, es necesário pesquisar como
el tema se presenta en los textos de la crítica musical, recogidos en el libro Música
de Invenção (1998), y, sobre todo, analizar cómo el poeta se apropia de las técnicas
de composición de los inventors para honrarlos en su poesía. Vamos a tomar una
muestra de poemas que se refieren a tres de los sicos que aparecen con
frecuencia en el paideuma sonoro del autor: Arnold Schoenberg (1874-1951), John
Cage (1912-1992) y Giacinto Scelsi (1905-1988). También se hace uso de los
conceptos de testigo, memoria y historia de la Literatura de testimonio – a través de
los discursos de Seligmann-Silva (2000, 2003), Felman (2000), Gagnebin (2004)
para, por analogía, entender la posición adoptada por Augusto de Campos en su
defensa de la música de invención y extender la idea de homenaje. Además se
discutirán temas relacionados a la música contemporánea del siglo XX Caesar
(2007), Gubernikoff (2007), Griffiths (1998), Ross (2009), Grout y Palisca (2005),
Sadie (1994) y el mantenimiento del libro como suporte duradero Flusser (2010),
Carriere y Eco (2010) -, vamos a trazar también un panorama general de los poemas
que se refieren a los músicos de rechazo en las tres antologías del poeta de São
Paulo.
Palabras clave: Augusto de Campos; Música de invenção; testimonio; homenaje;
rechazo; paideuma sonoro.
8
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 – Capa de Poesia de Recusa ..................................................................... 33
Figura 2 – Sem título, Henri Michaux (1960) ............................................................ 68
Figura 3 – Número 32, Jackson Pollock (1950) ……………………………………..... 69
Figura 4 – Cartaz fac-simíle de Ommagio a Henri Michaux ..................................... 81
Figura 5 – Assinatura de Scelsi e poema “omesmo som” ........................................ 82
Figura 6 – Um dos Plexigrams da série (1969) ........................................................ 95
Figura 7 – Plexigram II (1969) .................................................................................. 95
Figura 8 – Shades, Robert Rauschenberg (1964) ................................................... 97
Figura 9 – Augusto de Campos e o protótipo do “poema bomba” (1987) ............... 99
Figura 10 – Elementos de “Pentahexagrama” separados ....................................... 99
Figura 11 – “Aquário pré-holográfico” de “Pentahexagrama” ................................. 100
Figura 12 – Der Rote Blick, Arnold Schoenberg (1910) ……………………………. 104
Figura 13 – Arnold Schoenberg (1916) ………………………………………………. 106
Figura 14 – Quadrado mágico ................................................................................ 109
9
SUMÁRIO
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS ............................................................................. 10
2 INVENÇÃO E IN-TENSÃO: AUGUSTO DE CAMPOS, TESTEMUNHA DOS
SONS DO SÉCULO XX ...................................................................................... 13
3 OMAGGIO DE UMA NOTA SÓ, ESCUTANDO “OMESMOSOM” ..................... 61
4 CAGE: CHANCE: CHANGE ............................................................................... 86
5 A INTRADUÇÃO DO LEGADO: “DODESCHOENBERG” ............................... 102
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................... 124
7 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 127
10
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A presença do pensamento musical contemporâneo se mostra de maneira
destacada na obra do poeta brasileiro Augusto de Campos. Sua atuação como
crítico musical tem sido relevante em vários aspectos: a) resgate da obra de vários
poetas-músicos trovadores provençais da Idade Média; b) reflexão sobre a música
popular brasileira do século passado, enfatizando principalmente a Bossa Nova e o
movimento tropicalista; e c) difusão da obra de vanguarda da música de concerto do
século XX. Será na alínea “c” que nos deteremos para pensar a obra de Augusto de
Campos.
Em Música de Invenção, o poeta paulista discute as poéticas de relevantes músicos
eruditos do século XX e apresenta a seus leitores outros que, de menor expressão,
também tiveram importante contribuição para o alargamento do pensamento musical
nas últimas décadas. Considerando que, na época de seu lançamento, Música de
Invenção era um dos poucos estudos acerca da contemporaneidade musical, pode-
se afirmar que Campos é figura importante enquanto difusor de compositores até
então relegados ao desconhecimento em nosso país. Somente artistas e
compositores brasileiros ligados às novas correntes é que tinham acesso a esse tipo
de obra.
a produção poética de Campos apresenta por diversas vezes referência aos
compositores de vanguarda, denunciando seu apreço pela nova música, mas
somente aquela acomodada sob a bandeira da recusa. Tais nomes figuram também
nos artigos publicados em Música de invenção, mantendo uma coerência interna na
parte de seu projeto estético que gira em torno da defesa sistemática dessas figuras,
que, segundo o próprio poeta, estão ainda alijadas pelo mercado fonográfico e, por
conseguinte, dos ouvidos contemporâneos (ao lançamento do livro). Entre eles os
que mais se destacam são: Giacinto Scelsi (1905-1988), John Cage (1912-1992) e
Arnold Schoenberg (1874-1951), além da marcante presença de Anton Webern
(1883-1945). É assim, por meio de artigos e poemas, que Augusto de Campos vai
apresentando ao seu leitor o paideuma sonoro construído ao longo de um intenso
11
contato com a linguagem musical contemporânea desde o início de suas atividades
artísticas.
Nas próximas ginas pretende-se analisar por vários ângulos o livro Música de
invenção, buscando compreendê-lo desde seu conteúdo até seu posicionamento
histórico, passando pela tentativa de achar um perfil do leitor interessado na voz
partidária da recusa de Augusto de Campos. Logo após analisaremos três poemas
recolhidos por amostragem na tentativa de observarmos como o poeta faz de
algumas de suas obras poéticas espaço para a manutenção da memória dos
compositores pertencentes ao seu paideuma sonoro através das homenagens.
Desta maneira, pela nossa perspectiva, Augusto de Campos se colocaria, por
analogia, em consonância com a figura da testemunha. Analogia, reconhecemos,
surpreendente – surpresa que nos soa simpática se pensarmos o alto grau de
inovação que, a cada obra, Augusto alcança.
Assim: recusa, projeto estético, paideuma sonoro, música contemporânea, leitor,
livro, artigos, testemunho, memória, história serão temas abordados no Capítulo 2.
Para entrecruzarmos os diversos assuntos, lançamos mão da análise de algumas
introduções de obras, entrevistas e um poema de Augusto de Campos que entram
em consonância com a proposta. Para quê? Para poder evidenciar a discussão em
torno da apropriação de alguns termos da literatura de testemunho, a fim de
relacioná-los (lembrando sempre: por analogia) ao autor e a sua obra aqui
analisada. A fortuna crítica revisada passa, além do próprio poeta, por vários
teóricos dos quais destacamos apenas alguns: Pignatari (1970), Nascimento (2005),
Caesar (2007), Gubernikoff (2004; 2007), Seligmann-Silva (2000; 2003), Felman
(2000), Gagnebin (2004), Piza (2008), Antunes (2003), Aguilar (2005), Pound (1977),
Griffiths (1998), Ross (2009), Flusser (2010), Carrière e Eco (2010), Sadie (1994),
Grout e Palisca (2005). A opção pela larga extensão do capítulo deve-se à
necessidade de apresentar o arcabouço teórico em diálogo com Música de
invenção, sendo resgatado quando necessário nas análises que seguem.
A partir do capítulo 3 iniciaremos as análises, mixando poema, inventor, poeta e
paralelos discursos. Neste capítulo tomaremos “omesmosom” (1989/1992),
homenagem ao compositor Giacinto Scelsi, publicado pela primeira vez em
12
Despoesia (1994), como ponto central. Ainda revisaremos entre as antologias
poéticas quais os músicos citados, homenageados ou intraduzidos em poemas.
Enfatizaremos questões ligadas à memória e à condição nova da história a partir de
autores apresentados no segundo capítulo. Do centro hipnótico de “omesmosom”
criticaremos algumas análises do poema, partindo de dados particulares de Scelsi
tanto da obra quanto da biografia para enxergarmos detalhes impressos na página
da segunda antologia do poeta.
O capítulo 4 tomará como foco uma ampliação da ideia de homenagem para discutir
“Pentahexagrama para John Cage” (1977), impresso em Viva Vaia (2001), primeira
seleta de poemas de Augusto de Campos, publicada em 1979. o quinto capítulo,
na mesma toada, perquirirá nos blocos de “dodeschoenberg” (2000), veiculado em
Não (2003), a condição de testemunha de seu tempo, terceira, testis, que o poeta
assume ao codificar na página o legado de um dos músicos mais contestados do
século XX, Arnold Schoenberg. Ou seja, três análises, três focos, porém ao final
alguns elementos apontados se entrecruzam, circulares, nos poemas. O
posicionamento espacial dos capítulos analíticos tende a ser em torno do segundo
capítulo, apesar da aparente linearidade do texto no geral. A partir do exposto
seguem as considerações finais acerca de uma possível pertinência na proposta de
leitura realizada a partir de Música de invenção e das obras elencadas de Augusto
de Campos.
A amostragem – dado que os poemas foram pinçados de diversas antologias – pode
comprovar que sim uma unidade dentro da posição radical da invenção ou
recusadora do cil na poética de Augusto de Campos, que se volta em favor dos
músicos de seu paideuma sonoro. A escolha da escrita em fragmentos ecoa um
diálogo com a ideia de rememoração. Fazer do texto o que nele se escreve.
Retornar assuntos quando necessário e tecer linhas de fuga. Tentativa de escrita em
rede. Sim: rever.
13
2 INVENÇÃO E IN-TENSÃO: AUGUSTO DE CAMPOS, TESTEMUNHA
DOS SONS DO SÉCULO XX
Menos olvido e mais ouvido
Augusto de Campos
Desde a década de 1950, em textos que mais tarde foram compilados no livro Teoria
da poesia concreta, publicado em 1963, até as produções críticas mais recentes,
como as disponíveis em importantes sites de literatura como o Cronópios, Augusto
de Campos tem-se mostrado um grande escutador, tanto da arte trovadoresca,
quanto da música contemporânea do culo XX, mais precisamente, a de
vanguarda. O século passado proporcionou uma “destruição e câmbio de
significados” cristalizados no cerne da música dita erudita que ahoje são difíceis
de engolir pelos ouvidos que “não gostam daquilo que não entendem”. O
Novecentos, nas artes em geral, foi marcado por mudanças significativas, e, na
música, apresentou ao mundo novos sons, novos parâmetros de escuta aliados ao
avanço tecnológico. John Cage, uma das figuras centrais de nosso trabalho, na
famosa conferência na Juilliard School of Music, em 1952 ano em que Augusto de
Campos afirma ter tido seu primeiro contato com a obra do compositor americano –,
disse: “mas com a música contemporânea não há tempo para fazer nada
semelhante a ‘classificar’, você tem de ouvir inesperadamente, da mesma forma
que quando você fica resfriado tudo que você faz é inesperadamente espirrar [...]”
(1985, p. 100). E acrescenta que, “muito frequentemente, ninguém sabe que a
música contemporânea é arte ou podia sê-lo. a acham irritante. Irrita de uma ou
de outra forma, impede que nos ossifiquemos” (1985, p. 101).
As duas primeiras frases entre aspas do parágrafo anterior são do poeta Décio
Pignatari (1970), escritas em 1965, sob o título de “Vanguarda em explosão sonora”.
O autor nos aponta, um s depois do evento, um panorama da receptividade do
público paulista presente no concerto do Festival de Música de Vanguarda, realizado
no Teatro Municipal. Para nos situarmos historicamente, dois anos antes, em 1963,
o grupo Música Nova, formado por jovens compositores brasileiros, entre eles
Rogério Duprat, Damiano Cozzella, Júlio Medaglia (mais tarde, arranjadores oficiais
do movimento tropicalista), Willy Correa de Oliveira, Gilberto Mendes, entres outros,
14
influenciados pelos concretistas, publicava um manifesto homônimo publicado na
revista Invenção, 3 – propondo um redimensionamento estrutural d a música
contemporânea do país. No programa do festival de 1965 constavam peças de
Gilberto Mendes, Willy C. de Oliveira, John Cage e Anton Webern. É preciso citar
trechos que representam bem o ouvido da época apontado por Pignatari:
Eis por que vemos, pelo mundo afora, sócio-quotistas de Mozart, condôminos
de Beethoven, acionistas de Chopin... Falavam de música eterna de
Beethoven porque crêem assim incorporar aos domínios de sua sensibilidade
uma parcela de eternidade. Nem foi por outra razão que, a uma certa altura
do concerto em São Paulo, depois de Pedrinho Mattar haver emendado,
indiferentemente, trechos de Chopin e de tangos argentinos, uma senhora, do
balcão, entre angustiada e feroz, exclamou: ‘Não toquem no meu Mozart!’.
[...] O que eles tentam, na verdade, é impedir que uma ‘indiscriminada’ massa
de consumidores destrua os seus caros significados, criando novos e
perturbando, assim, o seu mercado solene e tradicional. Não foi por acaso
que a ofensa’ sentida pela diretora do Teatro Municipal de São Paulo se
somou à da maior parte dos críticos musicais: ‘Uma coisas dessas, no nosso
Teatro Municipal!?’ (1970, p. 128-129)
É sobre a “destruição e câmbio de significados” e suas renovações totais na
linguagem musical que o mesmo discursa. Ele utiliza o festival como um bom
exemplo da tendência à imutabilidade dos parâmetros de escuta do ouvinte naquele
momento no Brasil para com a música de vanguarda. Esse passado recente ainda
parece fazer coro na socie(sonori)dade atual. Em livro chamado Música Menor,
Guilherme Nascimento atesta a posição em que nossa sica erudita
contemporânea encontra-se:
Como música dominante no Brasil temos a enorme penetração da música
popular brasileira e norte-americana e, em segundo lugar, a música erudita
tradicional européia e brasileira. A música erudita contemporânea européia e
norte-americana apareceriam em último lugar, à frente apenas da música
contemporânea brasileira (esta, praticamente desconhecida). (2005, p. 58)
Rodolfo Caesar, em “As grandes orelhas da escuta” relato composicional
pertencente ao livro Notas. Atos. Gestos, organizado por Silvio Ferraz, no qual se
encontram alguns textos dos principais compositores brasileiros da atualidade –,
apontara para a mesma questão vista acima. Ao final do discurso, perguntando ao
leitor “para quê?” (a música / a escuta), o compositor questiona o lugar no cenário
musical brasileiro da ala experimental. Fora do centro (do mercado / da escuta),
dominado pela “periferia”, fora da “alta cultura”, lançada à “periferia da periferia”,
15
identifica-se no “fino espaço da ‘periferia da periferia da periferia’”. Vale lembrar que
o tom irônico dado à “periferia”, alinhando-se à terminologia do alvo de seu ataque
discreto, é somente para fechar seu texto com a seguinte frase: “com a diferença
que não dispomos de um antropólogo gostando de nossa música” (2007, p. 51).
Buscando uma resposta para a questão de Caesar, Carole Gubernikoff, em “A
presença do presente”, incluído como texto inicial do mesmo livro, justifica a própria
razão de ser deste suporte:
Talvez este livro seja a resposta à pergunta de Rodolfo Caesar, que constata
no final de seu texto que não temos historiadores, antropólogos, sociólogos e
psicanalistas que se debrucem sobre estas questões. Cabe a nós, então,
fazê-lo. Apresentando nossos impasses, nossas opções éticas e estéticas e
dando um testemunho desta época tão rica e tão cheia de possibilidade de
realizações (2007, p. 18, grifo nosso)
A tal pergunta de Caesar nos parece vir ecoando na cabeça dos compositores
brasileiros mais tempo. Foi datado de 30 de dezembro de 1984 o aforisma de
Rogério Duprat, vinte e um anos depois do “Manifesto Música Nova”: “A pergunta
serta é: ‘ARTE, MÚZIQA, LITERATURA, PARA QÊ?” (DUPRAT apud GAÚNA, 2002,
p. 194). Depois de afastar-se da esfera estrita da vanguarda erudita musical no final
da década de 1960 para colocar-se em consonância com a arte popular e comercial,
multiplicando-se, convergindo erudito e popular em uma linguagem musical
sincrética, somente no início da década de 1980 Duprat retorna à composição no
âmbito erudito. Seu retorno traz uma ampliação do seu pensamento, dadas as
experiências anteriores, sobre a música. Imerso na escrita do dramaturgo Qorpo
Santo, o compositor, em 10 de outubro de 1985, declara:
Dos artistas antigos, de 45 anos ou mais, dos qe partisiparam ou não das
“vanguardas” dos anos 50 e 60, alguns proségem fazendo obras, asinando-
as, preoqupados qom suas qarreiras. Outros vêm esas qoizas qomo fraqezas
do pasádo, preferindo o novo enqantado mundo anônimo e qoletivo. Entre os
mais jovens, uns ségem as pegadas dos seus pais e avós, busqando glórias,
suséso, obra individual. Outros desbravam as pegadas perigozas e
emocionantes da inserteza, asociando novas teqnolojias a novos
qomportamentos, menos personalistas. Assim são as qoisas. Temos de
aprender a qonviver qom a diversidade. (DUPRAT apud GAÚNA, 2002, p.
194)
Duprat traça, ao seu modo, um breve panorama da produção musical brasileira de
concerto até a década de 1980, oriunda da música de vanguarda. “Nem tanto ao
16
Wagner, nem tanto ao Webern” (DUPRAT apud GAÚNA, 2002, p. 195), Duprat
praticou a diversidade e a leu no cerne do reduto erudito como chave sintomática
para novas posturas em relação à música. Seu percurso musical foi marcado pela
busca do novo, abandonou a vanguarda por não ter visto mais saída. Tomado pela
surdez progressiva e pela “‘falta de profundidade’ composicional” na música
comercial, também a deixou para trás e, retomando a composição erudita na década
de 1980, não ansiava mais pelo original por não ter mais como fazê-lo, em sua
opinião. Compunha apenas pelo prazer da criação, sem estilo composicional,
técnica ou ideologia artístico-política específicos. Mote da carreira, a conclusão da
impossibilidade do novo pode ter sido mais um ato de originalidade do compositor,
ao passo que pela primeira vez ele não o procura. Ficava para trás a frase-colagem,
assinada por ele e seus companheiros em 1963, que finalizava o manifesto:
“maiacóvski: sem forma revolucionária não arte revolucionária” (KATER, 2001, p.
353).
Retomando o discurso de Pignatari, em 1968 Augusto de Campos publica um artigo
denominado “Informação e redundância na sica popular” (CAMPOS, 2005), no
qual apontara, através da teoria da informação de A. Moles, para uma alta
porcentagem de imprevisiblidade e uma taxa mínima de redundância da música de
vanguarda, justificando a baixa compreensão por parte dos ouvintes: “é natural,
portanto, que se afigure, a princípio, ‘ininteligível’ para a maioria dos ouvintes, é uma
música para produtores e o para consumidores. O problema é comum a toda arte
de vanguarda” (2005, p. 183).
O original, a invenção, o experimentalismo, a imprevisibilidade, a recepção, a música
pós-1960. Para quê? Em torno de algumas vozes, não sistemáticas, pretendeu-se
observar – sem querer impor uma visão única, mas de dentro do discurso dos
próprios artistas e pesquisadores, em textos que datam da década de 1960 até os
dias atuais – questões em torno do local da música erudita contemporânea no Brasil,
identificando certos traços aproximados à postura do poeta paulista no seu livro
Música de invenção (1998). Costurando nos seus artigos os fios remanescentes da
postura artística vanguar-di(s)ta, principalmente advindas do projeto concreto,
Campos escuta, logo, testemunha os sons do século XX sob a égide da invenção.
17
* * *
Ontem é História, / Mas está tão longe –
Ontem é Poesia – / É Filosofia –
Ontem é mistério – / Mas onde está o Hoje?
Mal especulamos / O tempo nos foge.
Emily Dickinson
A distinção etimológica entre ouvir e escutar faz-se necessária. Ouvir, mesmo sendo
sinônimo de escutar na língua portuguesa, não garante o que o segundo verbo
deseja: “estar consciente do que está ouvindo; ficar atento para ouvir, dar atenção
a”, conforme a acepção do dicionário online Houaiss. Escutar vem do latim asculto e
também substitui informalmente o verbo auscultar, que por sua vez designa na
rubrica da medicina “escutar (determinada parte do organismo) para identificar e
diagnosticar os ruídos, aplicando o ouvido diretamente sobre a parte, ou utilizando
um aparelho” e como transitivo direto “procurar saber; inquirir; investigar”. Na década
de 1960, Pierre Schaeffer diferenciava os dois verbos entre as quatro funções da
escuta (junte-se a eles o entender e o compreender), quando dissecava, no Tratado
dos objetos musicais, questões diretamente relacionadas com a sua criação, datada
do final dos anos 1940, a musique concrète. O pensamento schaefferiano, baseado
na fenomenologia (de Husserl e Merleau-Ponty) e no estruturalismo (de Saussure,
Jakobson e Lévi-Strauss), provocou mudanças significativas no conceito de escuta
no campo musical, em que esta passa a ligar-se diretamente ao ato criativo: fazer e
escutar não são mais separáveis. Por sinal, a musique concrète junto à pintura
concreta deram visão (terminológica) no “mirante culturomorfológico” para a poesia
verbivocovisual autodenominar-se concreta nas terras tupiniquins, em meados de
1950, conforme escreveu Haroldo de Campos em “olho por olho a olho nu”
(CAMPOS; PIGNATARI 1975, p. 47).
testemunhar é, entre algumas definições, segundo o mesmo Houaiss, “dar
testemunho de ou acerca de; fazer declaração como testemunha; declarar ter visto,
ouvido ou conhecido” e ainda “mostrar com clareza; tornar evidente; confirmar,
comprovar, demonstrar”. Fica evidente que o “ouvido” usado na acepção de
testemunhar quer ser lido como escutado ou ainda ascultado, já que para dar
clareza ao testemunho é necessário ter visto, ouvido ou conhecido atentamente.
18
No campo dos estudos literários, o verbo testemunhar ganha destaque no cerne da
categoria “literatura de testemunho”, que abarca os textos produzidos, a princípio,
pelos sobreviventes da Shoah e da repressão dos governos e ditaduras latino-
americanas. Hoje, com a ampliação dos conceitos relativos à testemunha e ao
testemunho, absorvem-se também os discursos encobertos pela sombra da história
“oficial”, muitas vezes, preocupada em “classificar” esteticamente, e não eticamente,
as produções artísticas.
Márcio Seligmann-Silva em “O testemunho: entre a ficção e o ‘real’”, texto
pertencente ao livro História, Memória, Literatura, organizado pelo próprio autor,
discursa sobre pontos fundamentais para auxiliar na teorização da literatura do “real”
– antimimética e antiirônica (2003, p. 373). O autor utiliza-se da etimologia da
palavra para justificar o ato direto e indireto de testemunhar:
Em latim pode-se denominar o testemunho com duas palavras: testis e
superstes. A primeira indica o depoimento de um terceiro em um processo.
[...] Também o sentido de superstes: ele indica a pessoa que atravessou uma
provação, o sobrevivente. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 373;374)
Na sequência aponta para a relação testemunho-“real”: “E o testemunho justamente
quer resgatar o que existe de mais terrível no ‘real’ para apresentá-lo. Mesmo que
para isso ele precise da literatura” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 375). Faz-se
necessário observar: a literatura não está mais em primeiro plano nesse caso, mas
ela é também mais um “suporte” para dar vazão ao “real”. A preocupação
composicional recai sobre a dimensão ética com a mesma força que as forças que
estão nos “braços” da dimensão estética. Na busca do esclarecimento do “real” com
aspas, Seligmann-Silva associa-o à questão do trauma freudiano e aqui damos voz
ao autor para melhor entendimento de sua proposição:
Na literatura de testemunho não se trata mais de imitação da realidade, mas
sim de uma espécie de “manifestação” do “real”. É evidente que não existe
uma transposição imediata do “real” para a literatura, mas a passagem para o
literário, o trabalho do estilo e com a delicada trama de som e sentido das
palavras que constituem a literatura é marcada pelo “real” que resiste à
simbolização. Daí a categoria de o trauma ser central para compreender a
modalidade de um “real” de que se trata aqui. Se compreendemos um “real”
como trauma é como uma “perfuração” na nossa mente e como uma ferida
que não se fecha então fica mais fácil de compreender o porquê do
redimensionamento da literatura diante do evento da literatura de
testemunho. Não se trata apenas de “psicanalisar” a literatura, pois o
19
testemunho, como vimos, é não apenas superstes, ou seja, a voz de um
sobrevivente, mas também testis, enfrentamento, por assim dizer, “jurídico”
com o real (sem aspas!) e reivindicação da verdade. (SELIGMANN-SILVA,
2003, p. 382-383)
Em ensaio anterior, “A história como trauma”, editado em Catástrofe e
representação (2000), Seligmann também discutira vários temas centrais
concernentes à literatura de testemunho com destaque para a impossibilidade de
representação de um evento catastrófico a partir de Auschwitz. O escritor, e também
organizador do livro, reflete sobre essa tarefa necessária e impossível do
testemunho do evento “sublime” (na ótica kantiana) e sua ausência de limite. Passa
a partir d à questão do trauma e este é apresentado como “uma ferida na
memória” (2000, p. 84). Seligmann-Silva lendo Freud ainda pontua uma definição
mais precisa:
O trauma, para Freud, é caracterizado pela incapacidade de recepção de um
evento transbordante – ou seja, como no caso do sublime: trata-se, aqui
também, da incapacidade de recepção de um evento que vai além dos
“limites” da nossa percepção e torna-se, para nós, algo sem-forma. Essa
vivência leva posteriormente a uma compulsão à repetição da cena
traumática. O trauma, explica Freud, advém de uma quebra do Reizschutz
(pára-excitação), provocada por um susto (Schreck) que não foi amparado
pela nossa Angstbereitschaft (estado de prevenção à angústia). A volta
constante à cena do trauma (sobretudo nos sonhos) seria o resultado de um
mecanismo de preparação para essa sobreexcitação que, patologicamente,
vem atrasado. (2000, p. 84-85)
Esse conceito de trauma tem colaborado para a teoria da história e da literatura
estabelecerem parâmetros para “problematizar a possibilidade de um acesso direto
ao ‘real’” (2000, p. 85), pois o encontro com este, segundo o autor (via Lacan), é
sempre traumático. O real é então estudado a partir da perspectiva de sua
impossível apreensão por completo devido a diversos fatores; no caso da Shoah,
pelo seu excesso de realidade. O que a literatura de testemunho tem feito é expandir
a definição e a visão sobre o trauma freudiano para entender a ideia de realidade e a
sua representação em forma de arte.
Está em Catástrofe e representação (2000) também o texto de Shoshana Felman
intitulado “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”. Nele a autora apresenta
sua ideia de testemunho atrelada ao ato performático da fala:
20
O testemunho é, em outras palavras, uma prática discursiva, em oposição à
pura teoria. Testemunhar prestar juramento de contar, prometer e produzir
seu próprio discurso como evidência material da verdade é realizar um ato
de fala, ao invés de simplesmente formular um enunciado. Como um ato de
fala performático, o testemunho volta-se para aquilo que, na história, é ação
que excede qualquer significado substancializado, para o que, no acontecer,
é impacto que explode dinamicamente qualquer reificação conceitual e
delimitação constativa. (2000, p. 18)
Conforme as palavras de Felman no trecho denominado “Poesia e testemunho:
Stepháne Mallarmé ou um acidente do verso” encontramos uma interessante
comparação e aproximação das descobertas do poeta simbolista francês a
acidentalização do verso, anunciada em palestra na universidade de Oxford, na
Inglaterra e do psicanalista Freud a teoria dos sonhos –, ambas de 1895 e que
tocam na questão do testemunho e do acidente. A leitura apresentada pela autora
sobre a fala de Mallarmé aponta para a aproximação pelo acidente da poesia e da
política: “o acidente do verso de Mallarmé testemunha, de fato, sobre as
transformações profundas no ritmo de vida e sobre processos de mudança cultural,
política e histórica” (2000, p. 33). A revolução poética com a ruptura do verso; a
descanonização e dessacralização da tradição da poesia francesa até aquele
momento pautada sobre o alexandrino clássico; e a dissolução das fronteiras entre
poesia e prosa – atingiu um grau de acidentalização do aspecto estético e formal tão
amplo que acabou sendo dotada de uma dimensão política inaugurada pela
Revolução Francesa, que, por sua vez, falhou na consumação do acidente diante
das classes e dos dogmas. Deste modo o gesto radical de Mallarmé testemunhou
com o choque (susto ou Schreck), longe da trivialidade e direto do campo das artes,
de forma profunda, aquilo que o golpe e o discurso ideológico não puderam
sacramentar.
Do centro da ambigüidade que reside no discurso apresentado por Mallarmé na
Inglaterra, o acidente e o testemunho se permutam assim: “o acidente que persegue
a testemunha” e “a testemunha quem persegue o acidente”; Soshana Felman situa o
poeta francês na segunda opção, aquele que persegue o “acidente do verso livre”,
assim como Freud o “do sonho, o caminho para a associação livre”. Deste modo
pontua:
21
Tanto o verso livre, como a associação livre, submetem-se ao processo de
fragmentação de quebra, de ruptura e de deslocamento do sonho, do
verso, da linguagem, da unidade aparente, mas enganosa, da sintaxe e do
sentido. A passagem por esta fragmentação é a passagem por uma
obscuridade radical (2000, p. 36).
Felman conclui o trecho dedicado ao poeta simbolista pormenorizando a ideia
formulada em torno da figura da testemunha, amplificando sua abrangência ao ponto
de incluir a performance poética de Mallarmé nessa categorização:
Tanto no caso de Mallarmé, como no de Freud, o que constitui a
especificidade da figura inovadora da testemunha é, de fato, não apenas o
simples relatar, não o simples fato de reportar o acidente, mas a disposição
da testemunha para tornar-se, ela mesma, meio para o testemunho e o
meio para o acidente em sua convicção inabalável de que o acidente,
formal ou clínico, carrega uma importância histórica que ultrapassa o
indivíduo e que não é, portanto, de fato, trivial, apesar de sua idiossincrasia.
O que constitui a novidade e radicalidade da performance poética e
psicanalítica de um testemunho, que é ao mesmo tempo “surpreendente” e
profundo, é, em outras palavras, não apenas a inescapabilidade da vocação
da testemunha, uma vez que o acidente a persegue, mas precisamente a
prontidão da testemunha para perseguir o acidente, para perseguir
ativamente seu caminho e seu percurso através da obscuridade, através da
escuridão e através da fragmentação, sem compreender exatamente toda a
abrangência e significados de suas implicações, sem prever inteiramente
para onde leva a jornada e qual seria a natureza precisa de seu destino final
(2000, p. 36-37).
Seguindo o viés da expansão do conceito de testemunha, Jeanne Marie Gagnebin,
no artigo “Memória, História e Testemunho”, publicado na coletânea Memória e
(res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível (2004), discute o fim da
narração tradicional com base em dois textos de Walter Benjamin, “Experiência e
pobreza” e “O narrador”. Após refletir sobre os dois trabalhos do filósofo alemão, a
autora cita a figura de narração do sonho de Primo Levi: sua volta para casa após
Auschwitz é ofuscada pela indiferença dos ouvidos que levantam e vão embora,
protagonizando o “simples” ato de não escutar o relato do horror vivido e passado
por ele no campo de concentração. Gagnebin, então, passa a criticar, a partir da
perspectiva de uma exacerbação do caráter testemunhal, o que chama de abusos
da memória, quando nos discursos persistem uma fixação ao passado e a
incapacidade de bem viver o presente, assim criando uma identificação quase
patológica com os papéis do algoz e da vítima, nesse caso de um massacre, a
Shoah, quando, muitas vezes, passam distantes da herança de tal atrocidade. Para
justificar seu texto sem que caia nas malhas da fixação e da identificação a autora
22
já se “acusa” da não hereditariedade direta de qualquer evento desse porte –,
Gagnebin se utiliza da prerrogativa da força (da palavra) e do lugar que ocupa (a
universidade), alhures, “terceiro”, como condição para restabelecer o espaço
simbólico não pertencente ao círculo infernal algoz-tima e dar sentindo humano ao
mundo. Assim, discute a função dos ouvintes, no sonho de Primo Levi, como
aqueles que deveriam ocupar esse lugar “terceiro” (como ela):
No sonho de Primo Levi, deveria ser a função dos ouvintes, que, em vez
disso e para desespero do sonhador, o embora, não querem saber, não
querem permitir que essa história, ofegante e sempre ameaçada por sua
própria impossibilidade, alcance-os, ameace também sua linguagem ainda
tranqüila; mas somente assim poderia essa história ser retomada e
transmitida em palavras diferentes. (2004, p. 93)
Vale observar que, guardadas as devidas proporções que separam uma situação da
outra, principalmente os motivos fundamentais de cada questão, a ameaça à sua
linguagem [do ouvinte] ainda tranquila” soa muito próxima do grito “não toquem no
meu Mozart!”. Mas de fato a sutil ligação de incômodo e recusa dos ouvintes em
ambos os casos, mesmo que um em sonho e o outro em som, sempre passa pela
linguagem e pela recepção. O segredo de Beethoven (2006), dirigido por Agnieszka
Holland, traz em suas cenas finais uma imagem também muito similar ao sonho de
Levi. A película retrata no campo da ficção a pouca receptividade do público diante
da execução da Grande fuga, opus 133, que junto com os outros últimos quartetos –
compostos na terceira fase da vida do músico alemão, momento de maior liberdade
criativa e de experimentação de sua carreira e também de ápice do desenvolvimento
de sua doença, a saber, a surdez – são importantes marcos na obra do compositor e
na história da música. O progressivo esvaziamento da sala de concerto onde se
fazia a execução da obra, cada ouvinte no seu levantar e ir embora mostra o quão
inaudíveis foram as transformações mais radicais na linguagem musical promovidas
por Beethoven em sua poética. Longe das questões meritórias ou juízos de valor
sobre aspectos cinematográficos ou musicológicos gerais da obra de Holland,
evidenciamos a cena acima referida apenas por se tratar de uma interessante leitura
ficcional do diretor dos fatos verídicos envolvendo a recepção das últimas obras do
compositor alemão. Não é de hoje o ato de desmerecimento do espectador frente às
radicalizações, não no campo da música e dos estudos de testemunho. A taxa
23
mínima de redundância na linguagem é sempre vítima da estranheza causada aos
ouvidos do expectador do mesmo som.
Gagnebin também encerra seu ensaio estabelecendo um novo olhar para aquele
que “vê, ouve e/ou conhece”, ampliando o conceito de uns dos termos centrais da
literatura de testemunho:
Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna
necessária; a testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios
olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria
aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do
outro e que aceita que suas palavras revezem a história do outro: o por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão
simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repetirmos
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.
(2004, p. 93)
Na relação testemunho e memória observamos “Reflexões sobre a memória, a
história e o esquecimento” (2003), publicado no livro História, Memória, Literatura,
texto no qual Márcio Seligmann-Silva pensa, a partir de extensa revisão do trabalho
de alguns historiadores importantes contemporâneos, a relação entre a história e a
memória dentro da historiografia entendida como moderna, contrapondo-a ao seu
viés tradicionalista. Esta, amplamente exercida principalmente no século XIX,
acreditava na apreensão do passado “por inteiro”, sendo a história um campo da
neutralidade, da objetividade, do “universal”, não tendo lugar para rastros pessoais,
negando uma “interação dialética entre memória e historiografia” (2003, p. 67).
Seligmann-Silva, tomando como um dos discursos centrais a posição de Walter
Benjamin, aponta para uma construção moderna da história na qual se esquiva da
possibilidade historicista de uma restituição e representação total do passado para,
através do conceito de memória, pensá-la como um campo da apresentação
enquanto construção a partir do presente (2003, p. 70). No final de seu artigo,
dialogando com o historiador Friedländer, o autor reitera o exposto:
Daí Friedländer propor um “limite” para a representação, a saber, uma
passagem do registro tradicional da representação para o da apresentação
(Darstellung) e (re)inscrição no presente. Não se trata de impor um limite à
pesquisa historiográfica, mas sim de refletir sobre a sua apresentação como
um momento essencial e que está comprometido com diversos níveis de
significado (político, ético, científico etc.). (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 83)
24
Tendo como vetor dessa nova perspectiva histórica o testemunho, Seligmann-Silva
aponta as características do registro da memória “[elemento] fragmentário [da
temporalidade], calcado na experiência individual [registro pessoal] e da comunidade
[memória coletiva], no apego a locais simbólicos” (2003, p. 65) para trazer à luz a
figura do historiador “arqueólogo-cartógrafo”, ou ainda a do catador de trapos
benjaminiano, e diz:
Devemos salvar os cacos do passado sem distinguir os mais valiosos dos
aparentemente sem valor; a felicidade do catador-colecionador advém de sua
capacidade de reordenação salvadora desses materiais abandonados pela
humanidade carregada pelo “progresso” no seu caminhar cego.
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 77)
O perfil do catador-colecionador de trapos, que na reordenação dos materiais refaz
as características do registro da memória vinculadas à questão historiográfica
moderna, ressoa na imagem que o próprio Benjamin constrói na sua nona tese, em
“Sobre o conceito de história”, último texto de sua produção, datado de 1940.
Utilizando-se do quadro Angelus Novus (1920), do pintor Paul Klee (1879-1940)
comprado pelo próprio filósofo e crítico literário alemão em 1921 –, Benjamin recorre
à figura do anjo boquiaberto para discutir acerca do progresso em trecho célebre:
[...] O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para o
passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele uma
catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as
dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e
juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em
suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade
o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o
amontoado de ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos
progresso. (BENJAMIN, 1994, p. 226)
A vontade do anjo é a postura exigida do histori(c)a(ta)dor, anti-historicista, sempre
sobre a afirmação do presente, logo, do progresso como catástrofe: “deve visar a
construção de uma montagem: vale dizer, de uma collage de escombros e
fragmentos de um passado que só existe na sua configuração presente de destroço
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 70).
* * *
25
Música de Invenção, publicado em 1998, é composto por artigos veiculados em
jornais e revistas a partir da década de 1970. Com precisão, 26 textos que datam
entre 1979 e 1997, além dos Apêndices verbetes de dicionário e uma tradução –,
respectivamente de 1973 e 1951. O próprio autor aponta não haver um processo de
sistematização, pelo menos no que se refere à disposição cronológica. Dos artigos,
os principais veiculadores foram a revista SomTrês (oito) e o jornal Folha de São
Paulo (quinze), além do Jornal da Tarde (um inédito e duas republicações da
SomTrês), do Suplemento literário de Minas Gerais (um) e um encarte de disco.
os Apêndices foram editados na Enciclopédia Abril e no “Suplemento Literário” do
Jornal do Brasil. É importante observar, os dois principais veículos de publicação
dos artigos, a revista SomTrês e o jornal Folha de São Paulo, para mapearmos qual
era o espaço ocupado por seus artigos antes de serem recolocados diante do leitor
em forma de livro.
A SomTrês foi um marco de segmentação do mercado brasileiro, sua primeira
edição é de 1979 e circulou a 1989. Seu público-alvo eram os audiófilos e
apresentava assuntos relacionados à música e ao som (equipamentos e tecnologias,
lançamentos de LP’s, etc.), tinha como editor Maurício Kubrusly.
Também na década de 1980 ocorre a ascensão no mercado dos dois principais
jornais paulistas, o Estado de São Paulo e a Folha de São Paulo. Esta ganha força
após o movimento Diretas-já, em 1984, consolidando também seu caderno cultural
diário, a “Ilustrada” (PIZA, 2008, p 40). O caderno ficou famoso pela faceta polêmica
e pela atenção à cultura jovem internacional, e as reportagens tinham tom autoral,
endossando opinativamente a matéria veiculada. Segundo Piza: “o caderno manteve
essa variedade e quentura até meados dos anos 90, quando o peso relativo da
opinião diminuiu sensivelmente, e a agenda passiva começou a se tornar
dominante” (2008, p. 41). Cassiano Elek Machado, em “A revolução cultural”, texto
presente na edição comemorativa de 80 anos da Folha, afirma que paralelo ao
caderno havia um outro suplemento que circulava como revista da semana: era o
“Folhetim”, criado em 1977. Inicialmente com um tom esquerdista não ortodoxo, a
partir de 1980, aproxima-se da universidade e passa a tematizar questões ligadas ao
campo social e político, “a partir de debates organizados pelo suplemento no
auditório do jornal” (MACHADO, 2001). Abria-se então espaço para a “nova
26
inteligência brasileira, também empenhada em debater o processo de
redemocratização”.
Da mesma forma na década de 1980 a “Ilustradacomeça a redefinir sua área de
cobertura e passa a tratar a cultura como fator de mercado, mais atuante na crítica
de produtos específicos. Entre os quatro grupos que se fizeram presentes na
renovação do jornalismo cultural da Folha naquela época, em um deles estavam
Haroldo e Augusto de Campos, cio Pignatari e uma geração mais jovem ligada a
eles. O caderno dá espaço a uma cultura menos militante quanto à política e abre as
portas para a “criação das vanguardas culturais, a cultura pop e os grupos de rock”.
Machado lança mão de dois depoimentos para ilustrar essa mudança de
posicionamento do caderno e consequentemente do jornal. O primeiro é de Marcos
Augusto Gonçalves, chefe do “Folhetim” e editor da “Ilustrada” entre 1984-1985 e
1986-1987: “A ‘Folhacombate um populismo nacionalista que havia nos cadernos
do período, questiona abertamente a política da esquerda oficial, que receitava
Jorge Amado, Ferreira Gullar, a busca das raízes brasileiras” (MACHADO, 2001). O
outro depoimento pertence a Matinas Suzuki nior, ex-editor da “Ilustrada” entre
1982-1984 e 1985-1986:
Essa iconoclastia da Ilustrada refletia o momento histórico, em que estava
sendo tirada a tampa do caldeirão. Durante os anos militares, todos falavam a
mesma linguagem. Eram todos contrários ao governo militar. Quando abriram
a panela de pressão, apareceram discursos muito diferentes. (MACHADO,
2001)
A partir de 1989 o “Folhetim” deixa de circular, dando lugar ao caderno “Letras”. A
“Ilustrada”, veiculada de segunda a domingo por três décadas (1958 a 1992), após
esse período, cede espaço para a edição dominical do caderno “Mais!”, que Alcino
Leite Neto, editor entre 1994-2000, assim definia:
O Mais! é a revolução permanente do jornalismo cultural da “Folha”. Seu
objetivo sempre foi informar o leitor sobre os principais debates desta época,
segundo um modelo em que atitude jornalística e reflexão intelectual não se
contradizem. (MACHADO, 2001)
Só em 2003 a “Ilustrada” retornou aos domingos.
27
Os oito artigos de Campos publicados na SomTrês, pertencentes ao Música de
Invenção
,
encampam um período entre maio de 1979 (n° 5) e abr il de 1981 (n° 28),
sem uma periodicidade aparente. Revista para audiófilos e espaço inaugurador no
segmento mercadológico, circularam por seus textos Arnold Schoenberg (1874-
1951), Anton Webern (1883-1945), Igor Stravinsky (1882-1971), Eric Satie (1866-
1925) e os compositores estadunidenses “esquecidos” do início do século passado.
Todos ocuparam lugar de destaque na história da sica na primeira metade do
Novecentos. também é possível ler artigos sobre os trovadores (séculos XII e
XIII) e John Cage (1912-1992), além do compositor suíço-brasileiro que manteve
residência na Bahia e foi professor da UFBA, Walter Smetak (1913-1984). Este teve
seu legado de experimentações e construções sonoras decupado no artigo “Smetak,
para quem souber”, depois alocado na seção “Radicais da música”, no Música de
invenção. Espaço novo – público especializado em música, mas não na de invenção
para um discurso sobre compositores ainda pouco conhecidos dos ouvidos
brasileiros naquele momento.
Os quinze artigos veiculados na Folha de o Paulo contemplam os anos entre
1982 e 1997. Três datados de 1983 foram identificados em Música de invenção
como veiculados no “Folhetim”. Dos outros doze, pelas datas e dia da semana,
todos veiculados aos domingos, três (um de 1982 e dois de 1985) poderiam
encontrar-se tanto no “Folhetim” como na “Ilustrada”, um (de 1992) na “Ilustrada” e
os outros (de 1993, 1995, 1996 e quatro de 1997) poderiam ter circulado no “Mais!”.
A falta de especificação no livro quanto aos cadernos da Folha nos permite
estimar o local dos artigos no jornal. Mas, independente do lugar de cada um, ficou
claro que o espaço encontrado por Augusto de Campos na Folha, e ele teve
participação ativa na construção deste, foi amplamente propício para alocar seu
pensamento acerca da sica de invenção pelo perfil que o veículo assumiu
durante os anos de 1980 e 1990. O combate ao populismo nacionalista, “a abertura
da panela de pressão”, a postura iconoclasta, a possibilidade da reflexão intelectual
permitiram a Campos materializar em palavras seu ouvido. Na Folha o poeta deu
importantes informações sobre obras gravadas, aspectos biográficos e
composicionais de importantes figuras como: Ezra Pound (1875-1972), Edgard
Varèse (1883-1965), John Cage, Pierre Boulez (1925-), Giacinto Scelsi, Conlon
Nancarrow (1912-1997), Luigi Nono (1924-1990), George Antheil (1900-1959),
28
Galina Ustvólskaia (1919-2006), Henry Cowell (1897-1965); e teceu duras críticas ao
mercado fonográfico brasileiro e ao desleixo dos ouvidos tupiniquins quanto à
música de invenção.
(CAMPOS, 1994, p. 109)
Os versos do poema-tela “tvgrama I (tombeau de Mallarmé)” “ah mallarmé / a
carne é triste / e ninguém te / tudo existe / pra acabar em TV” (1988) (CAMPOS,
1994, p. 109) – contidos entre os ttttttttttttt”, ali, iconicamente representando, não só,
mas também, as antenas (da massa e não da raça) apontavam naquela década
para o domínio da imagem frente ao exercício da leitura (SALGUEIRO, 2002). se
iam 38 anos da inserção televisiva no cotidiano brasileiro pelas mãos de Assis
Chateaubriand e, consequentemente, um sutil desinteresse pelos meios impressos
de comunicação. A par da diminuição do número de leitores de jornal no país, é
importante observar o perfil do leitor da Folha de São Paulo. Em 1988, realizou-se a
primeira sondagem oficial do “retrato” do frequentador das páginas do impresso
paulista. Segundo Mota (2001), naquele ano, esses eram os dados relacionados à
figura do leitor na primeira pesquisa: a) 79% eram homens; b) 28% tinham mais de
50 anos; c) os jovens até 29 anos eram 29%; d) 71% tinham curso superior; e) 9%
tinham pós-graduação. Com exceção do item “a”, pois o número de leitoras vem
subindo gradativamente, na pesquisa iniciada em 2000 e publicada na forma do
texto “Leitor tem renda e escolaridade altas”, na edição de comemoração dos 80
anos do jornal, quase todos os outros itens ou se mantiveram nesta faixa, ou tiveram
aumento significativo, principalmente o número de leitores pós-graduados. Apenas o
número de jovens é que declinou de forma acentuada, falha assumida pelo próprio
veículo por falta de atrativos imediatos para essa faixa etária. O envelhecimento do
leitor e seu aumento do nível de instrução educacional de 1988 até 2000 foram
29
vistos como reflexo da “inserção do jornal no establishment da opinião pública
brasileira” (MOTA, 2001). Ou seja, o leitor apontado pelos resultados preliminares da
pesquisa de 2000 teria este perfil:
O leitor típico da Folha tem 40 anos e um alto padrão de renda e de
escolaridade. Se uma pessoa for escolhida ao acaso no universo de leitores
do jornal, a probabilidade de que seja homem é idêntica à de que seja
mulher. Sua faixa etária estará no intervalo que vai de 30 a 49 anos (a idade
média é 40,3). Além disso, esse leitor-síntese teria formação superior, seria
casado, estaria empregado no setor formal da economia, teria renda
individual na faixa que vai até 15 salários mínimos (R$ 2.265) e familiar na
que ultrapassa os 30 mínimos (R$ 4.530). Faria parte ou da classe A ou da B.
Seria católico, possuiria TV por assinatura e utilizaria a Internet. (MOTA,
2001)
A saber, a Folha é desde 1980 o jornal mais vendido no país, mas esse dado o é
sinônimo de grande abrangência de público diferenciado, pois o que a pesquisa
aponta é uma concentração de leitores primários aqueles que ou são assinantes
ou compradores diretos das bancas de revista –, de perfil intelectualizado, situados
em uma classe econômica (A/B), cuja representatividade numérica populacional é
inversamente proporcional à que a coloca nessa faixa de classificação conforme
apontam o censo 2000 do IBGE (pesquisa mais próxima da década de 1990, na qual
foi publicada na Folha grande parte dos ensaios incluídos em Música de invenção).
Em breve análise dos principais veículos em que a maioria dos artigos de Música de
invenção foram editados, a revista Som três e o jornal Folha de São Paulo, é
possível traçar um perfil de público que usufruiu dos escritos de Augusto de
Campos. Os ouvidos foram “selecionados”, os textos atingiam um tipo de leitor: ora
especializado, audiófilo faminto por questões acerca de música e tecnologia; ora
familiarizado com um impresso cuja postura editorial proporcionava certa valorização
da intelectualidade e liberdade de reflexão, e dialogando com as camadas mais altas
da classe econômica. Ou seja, para ter acesso ao bradar do poeta em defesa de
uma música de cunho experimental, era necessário percorrer um caminho intelectual
espinhoso a que a grande maioria da massa sequer tem acesso até os dias atuais:
ser letrado, leitor, sem atraso no timing do conhecimento musical, intelectualizado,
mais um membro da classe A e B compactuado com as mesmas posições editoriais
de determinado jornal. A música de invenção veiculada por Augusto de Campos
também inventou seu público, traçou seu caminho para atingir os ouvidos que
30
supostamente podiam escutá-la. Nada muito diferente do que ocorrera com sua
poesia.
* * *
A massa ainda comerá o biscoito fino que fabrico.
Oswald de Andrade
Arnaldo Antunes, na “orelha” de Não poemas (2003), aponta para a coerência e
fidelidade na manutenção do projeto estético que Augusto de Campos tem realizado
ao longo de pouco mais de meio século de trabalho poético. Tal constância deve-se
ao giro sempre em torno da ideia de negação que atravessa a obra do poeta
paulista. Antunes resume com destreza o obrar de Campos:
Entre o falar e o calar, seus poemas parecem dizer o indizível, por não tentar
dizê-lo, mas realizá-lo através da linguagem.
Dessa condição limítrofe surgem as marcas de negação que vêm
caracterizando sua poesia muitos anos poetamenos, expoemas,
despoesia, o afazer da afasia, o vácuo o vazio o branco, o oco, a canção sem
voz, poesia sem placebo, semsaída, nãopoemas, não.
Tais sinais de menos adquirem positividade na medida em que os poemas se
efetivam; minérios extraídos de recusas a todos os excessos e facilidades.
(ANTUNES, 2003)
A marca da negatividade através da ética/estética da recusa se espalha também
pelas obras de tradução e estudos críticos, ensaios sobre Literatura, Música, Artes
Plásticas e diversos (como aparece na classificação das publicações do poeta em
seu site oficial). Assim como Música de invenção é uma compilação de artigos sobre
diversos compositores alinhados sob a mesma bandeira erguida pelo autor, os livros
dedicados à tradução também trazem no seu âmago uma escolha de poemas e
poetas que em suas obras fazem do novo mote do fazer poético. O próprio discurso
de Campos, apresentado sempre nas introduções dos seus livros de tradução ou
ensaios para justificar a escolha do material ali trabalhado – e isso se repete
também nos seus próprios livros de poesia , manifesta sua conduta diante do que
vem se configurando como um ato de “dar voz aos inventores” esquecidos pela
história oficial.
Tomamos duas coletâneas de poemas traduzidos para observar como esse discurso
vem sendo mantido mesmo com o passar dos anos. Verso, reverso controverso
31
(2009) perfaz “uma viagem pelo presente do passado da poesia, dos trovadores
provençais aos cantadores nordestinos”. Sua primeira edição data de 1979 e é uma
das primeiras antologias de seu trabalho tradutório. Neste mesmo ano o poeta
publicara na revista Som três três artigos que mais tarde estariam em Música de
invenção como os de veiculação mais antiga dentre todos ali reunidos. Um dos
textos era “Uma proeza: a música de Provença”, também ligado à temática abarcada
no livro de tradução. Campos abre a introdução de sua antologia declarando
exatamente sua posição em relação ao novo:
Assim como gente que tem medo do novo, gente que tem medo do
antigo. Eu defenderei até a morte o novo por causa do antigo e até a vida o
antigo por causa do novo. O antigo que foi novo é tão novo como o mais novo
novo. O que é preciso é saber discerni-lo no meio das velhacas velharias que
nos impingiram durante tanto tempo. (CAMPOS, 2009, p. 7, grifo nosso)
A concepção de novo do poeta é sempre atemporal e tangencia a importância dada
à invenção. Ao falar de poesia, o tradutor reafirma com mais clareza a “nau de linha”
que ali capitaneia:
A poesia é uma família dispersa de ufragos bracejando no tempo e no
espaço. Tento reunir aqui alguns dos seus raros sobreviventes, dos que me
falam mais de perto: os que lutaram sob uma bandeira e um lema radicais – a
invenção e o rigor. Os intraduzidos e os intraduzíveis. Os que alargaram o
verso e o fizeram controverso, para chegar ao reverso. (CAMPOS, 2009, p. 8)
Os últimos livros de tradução de Campos datam de 2009: Poemas Estalactites (sob
a chancela da coleção Signos, da editora Perspectiva), onde o poeta da vez é o
alemão August Stramm (1874-1915), e Byron e Keats: entreversos (pela editora
Unicamp), o Lord (1788-1824) e o John (1795-1821), antagônicos poetas de maior
destaque do Romantismo inglês. Porém recorremos a Poesia da recusa, de 2006,
pois esta é a última antologia de poemas lançada até então e nela reúne poetas
“marginais” (segundo o autor), soterrados nas ruínas mais próximas, as do século
XX. Como em 1979, Campos abre sua introdução “pondo a mão na ferida”:
Em defesa de Mallarmé, afirmou Válery, certa vez, que o trabalho severo, em
literatura, se manifesta e se opera por meio de recusas; pode-se dizer que ele
é medido pelo número de recusas.
A melhor poesia que se praticou em nosso tempo passou por esse crivo. Da
recusa estética (Mallarmé) à recusa ética (Tzvietáieva), se é que ambas não
estão confundidas numa só, essa poesia, baluarte contra o fácil, o
convencional e o impositivo, ficou à margem e precisa, de quando em vez,
32
ser lembrada para que a sua grandeza essencial avulte sobre o aviltamento
dos cosméticos culturais. (CAMPOS, 2006, p. 15)
Quase trinta anos separam os dois livros, mas o discurso permanece imerso no meio
da recusa ao fácil, ou aceite do nãofácil, do laborioso, diria. Apesar de esclarecer
que nem todos ali reunidos pertencem a tal categoria da invenção, o tradutor,
encerrando seu texto, salienta:
Não concessões. Não apelações. A poesia requer de nós algum
instinto revolucionário, sem o qual ela não tem sentido. Os textos escolhidos
manifestam, implícita ou explicitamente, formas de desacordo com a
sociedade ou com a vida, capazes eu suponho de despertar esse ímpeto
revolucionário nos leitores e fazer com que as suas vivências se enriqueçam
com a sofrida experiência da recusa. (CAMPOS, 2006, p. 17, grifo nosso)
O grupo Música Nova em seu manifesto de 1963 seguiu à risca a influência
concretista, quando no final do texto deixou soar a mesma voz do post-scriptum
1961 do “plano-piloto para a poesia concreta”, inicialmente publicado em 1958 na
revista Noigandres, em São Paulo: “‘sem forma revolucionária não há arte
revolucionária’ (maiacóvski)” (CAMPOS; PIGNATARI, 1975, p. 158). Para despertar
o “ímpeto revolucionário”, a frase do poeta russo vai se
repetindo/refazendo/recompondo e ampliando em abrangência a cada giro no
tempo. Essa força da poesia vista nos poemas de recusa aliada à precisão para
“discerni-lo [o novo] no meio da velhaca velharia” proposta nos reversos se espalha
no pré-, com- e pós-Concreto de modo que não só existe um projeto estético em sua
obra, como pontuou Arnaldo Antunes em Não, mas é possível observar uma
questão ética também conforme vimos no trecho inicial da introdução da obra
tradutória de 2006. Ali Campos deixou claro que o limite entre essas duas forças
(ética/estética) é quase inobservável na maioria das vezes. Assim, recusa e
invenção têm se constituído requisitos básicos para o alargamento do paideuma do
poeta.
Depois de partir de dois livros os quais denominamos de antologias, assim como
Música de invenção, fique claro que em nenhum momento o tradutor se refere a eles
por tal denominação, visto que a própria palavra antologia traz na sua acepção o
peso de “geralmente” ser uma coletânea de “autores consagrados”. Não é o caso
dos autores reunidos por Campos, pois na maioria das vezes grande parte ainda
33
está à margem e precisa ser lembrada de vez em quando conforme o próprio poeta
proferiu. O uso dado ao termo aqui se quer apenas como sinonímia de coletânea.
Muito provavelmente, seguindo a dicção do tradutor, se configurariam mais como
desantologias.
Em um pequeno parêntese antes de chegar novamente ao Música de invenção, é
necessário notar algo interessante em Poesia da recusa: sua capa.
Figura 1 – Capa de Poesia de Recusa
O título fragmentário, no qual po/es/ia se desmonta em três blocos de dois grafemas,
lembra sutilmente o tratamento dado a essa palavra na construção do poema “Não”,
de 1990 (CAMPOS, 2004, p. 18-39), que se rarefaz nas ginas em colunas
verticais chegando ao “limite vertebral” da palavra “oesia” (que de fato não é poesia,
tema da obra). A leitura ideogrâmica que impera também na capa do livro fica mais
clara no complemento do nome dado ao livro: “da recusa”; verticalizado e inserido
em uma fenda vermelha em baixo relevo que rompe a página branca e o quadrado
da “po/es/ia”.
Por analogia – como sempre será nesse trabalho – é possível rememorarmos alguns
conceitos vistos, entre eles a posição de Seligmann-Silva (2003) quanto ao
trauma: “Se compreendemos um ‘real’ como trauma é como uma ‘perfuração’ na
nossa mente e como uma ferida que não se fecha”. Campos abre a ferida na capa
e na “po/es/ia” (como também nas introduções dos livros mediante seu discurso
34
pontiagudo) e o “real”, na sua impossibilidade de representação total, através de
sua des-não-ex-obra. A recusa serve como arma nos seus poemas e no mais: como
forma de enfrentar essa representatividade cil e total do “real” via poesia, afinal
“meu amor dor / não é poesia / amar viver m / orrer ainda / não é poesia(2004, p.
21); e de confrontar a passividade do verso linear/horizontal através do “acidente”,
da “ruptura”, da “fragmentação” retomados durante todo o seu percurso poético. A
repetição da “cena traumática se a cada poema ou livro meticulosamente
editado e assim é fornecida ao público, que desde o primeiro “choque” mais radical,
lá no pré-concreto Poetamenos (1953) – Gonzalo Aguilar já o vê como obra concreta
(AGUILAR, 2005, p. 286) –, vem sendo confrontado com a ferida verbivocovisual.
Ou seja, a perfuração é aberta na linguagem e também na mente do leitor e o autor
não deixa ambas fecharem. Essa “cicatristeza” em riste, irremediável, ainda hoje
provoca a angústia de certa parte da crítica especializada.
Para não perdermos o fio do discurso, repitamos: “Campos abre a ferida na capa – e
na ‘po/es/ia’ (como também nas introduções dos livros mediante seu discurso
pontiagudo) e o ‘real’, na sua impossibilidade de representação total, através de
sua des-não-ex-obra. A recusa serve” também como arma nos seus ensaios,
traduções e diversos, para erguer a bandeira da invenção e trazer à tona poetas,
artistas plásticos, músicos encobertos pela história oficial.
Retomando as palavras de Shoshana Felman sobre Mallarmé (poeta que, por sinal,
também está incluído em Poesia da Recusa):
Tanto no caso de Mallarmé, como no de Freud, o que constitui a
especificidade da figura inovadora da testemunha é, de fato, não apenas o
simples relatar, não o simples fato de reportar o acidente, mas a disposição
da testemunha para tornar-se, ela mesma, meio para o testemunho e o
meio para o acidente em sua convicção inabalável de que o acidente,
formal ou clínico, carrega uma importância histórica que ultrapassa o
indivíduo e que não é, portanto, de fato, trivial, apesar de sua idiossincrasia.
O que constitui a novidade e radicalidade da performance poética e
psicanalítica de um testemunho, que é ao mesmo tempo “surpreendente” e
profundo, é, em outras palavras, não apenas a inescapabilidade da vocação
da testemunha, uma vez que o acidente a persegue, mas precisamente a
prontidão da testemunha para perseguir o acidente, para perseguir
ativamente seu caminho e seu percurso através da obscuridade, através da
escuridão e através da fragmentação, sem compreender exatamente toda a
abrangência e significados de suas implicações, sem prever inteiramente
para onde leva a jornada e qual seria a natureza precisa de seu destino final
(2000, p. 36-37).
35
“Meio para o testemunho”. Através da concepção de testemunha de Felman
começamos a desenhar o pensamento proposto em relação à figura de Augusto de
Campos, que, assim como Mallarmé, parece se encaixar na proposta da autora
diferenciando-se apenas na parte final de sua fala. O poeta francês sublinhava no
seu discurso em Oxford para a falta de compreensão imediata da proporção do seu
achado:
De fato trago novidades e das mais surpreendentes (...)
Fizemos violência ao verso (...)
É apropriado que me livre imediatamente de tal notícia para falar agora do
assunto tal como um viajante convidado que, sem demora, com respiração
ofegante, se desfaz do testemunho de um acidente conhecido e que o
persegue...
Devo eu parar por aqui – e de onde obtenho a sensação de que cheguei a um
tema mais vasto e talvez desconhecido por mim mais vasto do que esta ou
aquela inovação de ritos ou rimas; na tentativa de alcançar este tema, se não
para tratar dele (...)
À nossa consciência falta aquilo que, acima, explode ou rompe. (MALLARMÉ
apud FELMAN, 2000, p. 34)
Campos, desde a trifaceta concreta (os irmãos siamesmos e Décio Pignatari), no
tocante ao seu paideuma tinha em Mallarmé, juntamente com James Joyce, e. e.
cummings, Ezra Pound e, em segundo plano, Apollinaire, os pilares iniciais da
constituição de seu obrar, portanto, não partira de um ineditismo, mas remontava,
de forma antropofágica, sob a insígnia de algumas poéticas ainda no Brasil
praticamente desconhecidas bem exatamente na acepção dicionarística do
adjetivo que qualifica de que se ignora a existência –, o meticuloso trabalho em
busca do novo. Portanto o poeta (e seus parceiros) retomava a “linha evolutiva” da
ruptura do verso, para usar a expressão cunhada por Caetano Veloso em meados
da década de 1960 com o intuito de justificar sua poética pós-João Gilberto. A
constituição desse paideuma concreto fora a primeira “garimpada” nas ruínas da
história, reat(v)ivando algumas obras ainda pouco notáveis no ambiente literário
brasileiro. A partir daí o vultoso número de publicações de ensaios e traduções,
assim como a própria composição de alguns poemas referenciais iniciaram o que
tentamos aqui ler como o testemunho de Augusto de Campos.
Quando John Cage nos fala sobre a não ossificação, ele quer dizer afirmar o
reconhecimento do estar vivo escutando o presente, diante de uma linguagem
36
renovada. “Não toquem no meu Mozart!”. A ossificação é a estratégia do levantar-se
e ir embora. [Recusa, em branco, verticalizada, é iconicamente o osso que
transparece em meio à ferida/carne/sangue aberta na capa do livro e no quadrado
da poesia. A ossificação no poeta, neste caso, não é o estado estático apontado por
Cage, é o não ossificar. Mesmo reverso o paulista reverbera o americano]. Com os
ouvidos atentos, Augusto de Campos, entre artigos e poemas, assume a condição
de testemunha. Não levanta; fica, escuta e escreve sobre a música do século XX. O
cenário musical, como vimos, era pouco receptivo a essa música, mas Campos se
manteve firme na empreitada: falar do que chamou de música de invenção.
É no texto introdutório do livro homônimo que nos deteremos agora a fim de
observar, no seu ato de fala, sua posição marcante como testemunha de seu tempo,
corroborando para cada vez mais conseguirmos aproximá-lo analogicamente do que
em Seligmann-Silva se apresenta como a figura do testis e em Gagnebin assume a
ideia do testemunho de um “lugar terceiro”.
Ao iniciar o texto, Campos já situa o seu leitor ante a matéria de que falará:
Falo, sempre, de músicos-inventores, na acepção poundiana do termo
‘invenção’. Não são os únicos, é claro. Tento apenas dar minha contribuição
tratando de alguns compositores da estirpe dos inventors, quase sempre
pouco divulgados entre nós, para que essa forma de criação possa ser
melhor identificada e fruída. (1998, p. 9)
Para Ezra Pound, inventores são os “homens que descobriram um novo processo ou
cuja obra nos o primeiro exemplo conhecido de um processo” (1977, p. 42).
Carole Gubernikoff, em “Música de invenção”, ensaio pertencente à coletânea Sobre
Augusto de Campos, aponta a transferência da “sua fidelidade à literatura engajada
no risco da recriação da língua e da poesia” para a música contemporânea.
Gubernikoff mostra ponto importante a ser observado: “não é a toda sica
contemporânea que este livro se refere, mas apenas a certas tendências mais
identificadas com o experimentalismo e com a radicalidade da expressão” (2004, p.
257). Campos também alerta ao leitor com certo teor irônico que “outros
caminhos e outros sons que merecem atenção e amor”. Logo, o termo
exaustivamente propagado pelo poeta, música de invenção, categoriza
determinados compositores contemporâneos afinados com suas propostas enquanto
37
artista do não, do des, da recusa, do risco. Mas a seleta não se resume aos
músicos-inventores do século XX, que, como vimos, a inclusão dos trovadores
e, em consonância com a fala de Campos na introdução de Verso, reverso,
controverso, é possível ver que a invenção quer ser vista também na música tanto
no “novo” quanto no “velho”.
Gubernikoff nota ausência significativa de diálogo que o livro se permite com os
compositores brasileiros da segunda metade do século passado e a justifica devido
à proximidade de Augusto de Campos com vários deles. E, por isso, pelo
conhecimento das intrigas entre esses músicos durante a tentativa de aproximação
do cenário nacional às técnicas contemporâneas de composição, as menções se
apresentam sempre nas entrelinhas dos artigos. Mesmo assim, em meio à
decupagem do livro a ensaísta o deixa de mencionar alguns músicos brasileiros
que estão atuando de forma efetiva nesta primeira década do século XXI em cada
especificidade inventiva observada no discurso do poeta.
Em Música de invenção o escritor revela o seu paideuma sonoro referente à sica
de tradição européia. Tal agrupamento de referências musicais havia sido
realizado no campo da música popular brasileira quando lançou a coletânea de
artigos datados entre 1960 e 1968 sob o nome de Balanço da Bossa, ainda em
1968. Esta obteve uma segunda edição ampliada em 1974 tendo o título ampliado
para Balanço da bossa e outras bossas e o acréscimo de vários outros textos
ligados à temática da obra.
Mediante sua escuta privilegiada pelo prematuro contato com a música do século
XX, Campos registra, na prática discursiva, através de seus ensaios, seu
testemunho contra a manutenção do ouvido obsoleto. Segue quase panfletário no
discurso introdutório do livro de 1998:
é tempo de dar um tempo aos colchões sonoros da música palatável e
aprender a ouvir aquela outra música, a música-pensamento dos grandes
mestres e inventores, que impõe uma outra escuta, onde a reflexão, a
concentração, a sensibilidade e a inteligência são ativadas ao extremo. (1998,
p. 9)
38
O poeta chamava a atenção para o “ouvir com atenção”, ainda negado pelo público
às poéticas ali apresentadas. Mais adiante Campos define mais uma vez os músicos
inventores associando-os a uma imagem forçosamente religiosa e guerrilheira e
salienta os percalços do trabalho ligado à militância da invenção:
Nada, porém, pode substituir a exemplaridade da aventura ética e estética
dos grandes inventores da música contemporânea, os santos e mártires da
nova linguagem, aqueles que enfrentaram preconceitos e perseguições e, às
vezes, até a pobreza material e a humilhação para alargar o horizonte da
nossa sensibilidade e levar a indagação musical aos seus últimos limites.
O trabalho dos inventores é o mais pedregoso e sofrido, pela própria natureza
de sua atividade, que é a de desbravar caminhos, conflitando com o
repertório habitual. Por isso mesmo, se alguns conseguiram sucesso após os
primeiros percalços de suas carreiras, quase todos só chegaram a ter sua
obra resgatada em idade provecta, ou até post mortem. Faz-se necessário
lutar ainda e muito por eles. (1998, p. 10, os dois primeiros grifos são
nosso).
Novamente ética e estética aparecem no “depoimento” do poeta e o chamadas
para engrandecer as façanhas dos seus escolhidos inventores. Não seria abusivo
ver a própria imagem do poeta refletida em meio à batalha em torno da
sobrevivência artística do inventor poundiano apresentada nesse trecho. Em
entrevista a Ana Lúcia Vasconcelos no mês de maio de 2006, veiculada no
Cronópios site especializado em literatura, e onde o poeta tem publicado alguns
dos seus últimos ensaios sobre música –, questionado sobre a baixa recepção da
poesia concreta, o poeta explica:
P.: Você diz em outras entrevistas que seus livros de poemas vendem menos
que as traduções. A que atribui a menor demanda para a poesia concreta de
parte do público ledor? Seria aquela velha estória de que brasileiro não lê?
Augusto: É uma coisa lógica. As traduções sempre têm como referências
nomes institucionalizados, mesmo na área da vanguarda, como a poesia
russa moderna, Maiakóvski, Mallarmé, Joyce, Pound, Valéry. A poesia
concreta é mais recente e ainda muito contestada pela crítica e pelos próprios
poetas militantes, muitos dos quais se sentem atingidos por ela, na medida
em que ela pôs em xeque a produção convencional de poesia, que constitui a
prática generalizada. É necessária uma assimilação. E esta é sempre lenta
no caso da poesia de vanguarda, experimental ou de invenção. Acho, no
entanto, que a demanda por essa poesia tem crescido entre nós. No que me
diz respeito, a edição do meu livro VIVA VAIA (Poesia 1949-1979) esgotou-se
este ano. POEMÓBILES reeditado ano passado — 1.000 exemplares
também está praticamente esgotado. O principal problema é a timidez dos
editores e a sua dificuldade em acolher recursos gráficos o-ortodoxos (que
incluem cores, no meu caso). O público se mostra interessado. O fascículo da
Abril (Literatura Comentada) sobre POESIA CONCRETA teve mais de uma
tiragem e cerca de 30 mil exemplares vendidos. E o poema PULSAR,
incluído no LP de Caetano, VELÔ, teve uma edição de mais de 100 mil
exemplares, em couchê no encarte. Numa danceteria ouvi um público
39
cantando junto com Caetano. Quem sabe as coisas não estão assim tão mal
paradas? (VASCONCELOS, 2006, grifo nosso)
Augusto de Campos, aos 75 anos, elenca dados que começam a dar substância à
sua obra adjetivada por ele mesmo como “de vanguarda, experimental ou de
invenção” em termos de mercado editorial, mas, lembremos, a entrevista é de
2006, oito anos após Música de invenção, e os números singelos apresentados
ainda esbarram certamente na contestação de parte da crítica e da pouca
assimilação e informação do público leigo. A reparar, o poeta ao falar do trabalho
árduo e pedregoso na introdução do mosaico musical, por mais que esteja
subentendida a referência aos músicos, abre novo parágrafo e generaliza.
Sutilmente é possível ver sua presença: “O trabalho dos inventores é mais
pedregoso e sofrido [...]”. Inventores aqui não nos parece compreender somente os
músicos a que ele se refere. que um projeto que perfura poemas, traduções e
ensaios, a construção seria um ato falho ou proposital?
Retomando o discurso, o poeta passa então a denunciar a deficiência do mercado
fonográfico brasileiro relativo à música do século XX em pleno final da cada de
1990:
O Brasil é um país que tem a fama de musical mas se permite o luxo de
jamais ter prensado ou reprensado alguns itens mais decisivos e
fundamentais da música do século de Schoenberg, Webern, Berg, Varèse,
Cage, tão escassa ou nulamente representados em nossos catálogos. Nem
falar de Ruggles, Cowell, Scelsi, Nancarrow, Ustvólskaia, Nono, Feldman e
de dezenas de outros inovadores, grandes músicos, quase todos nunca
editados entre nós. (1998, p. 10)
Em breve análise do mercado fonográfico brasileiro do final do século passado no
campo da música popular e a posição da MPB nele, Marcos Napolitano aponta:
Ao mesmo tempo, apesar do estrondoso sucesso do rock brasileiro dos anos
80 e dos gêneros populares dos anos 90 (sertanejo, pagode, axé e funk),
estigmatizados pela classe média herdeira do “bom gosto” musical, os
“monstros sagrados” da MPB Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil,
Maria Bethânia, Milton Nascimento, Gal Costa, Djavan, entre outros ainda
permanecem como tops no cenário musical brasileiro, inclusive do ponto de
vista comercial (se não em números absolutos, em valores agregados e
relativos). (NAPOLITANO, 2005, p. 75)
40
A fala do historiador nos mostra a quantidade de gêneros musicais que disputavam
o mercado fonográfico nos últimos vinte anos do século XX, seja por quantidade,
seja por qualidade. No escrito de 2005, como mencionamos no fragmento inicial,
Nascimento nos mostra a sica contemporânea européia e americana no último
lugar em termos de dominação de mercado. “Periferia da periferia da periferia”,
segundo Caesar (2007). Em 2009, segundo números da Associação Brasileira de
Produtores de Discos (ABPD), a música clássica deteve 3,4% do mercado, enquanto
em 2008 apenas 2,4%, mas esses números dão conta somente dos discos lançados
no catálogo nacional, desconsiderando o controle das vendas de importados. A
importação, mediante um mercado ainda bastante omisso quanto à música clássica,
é corriqueira, principalmente com a possibilidade do acesso direto a sites
especializados em vendas desse tipo (COELHO, 2002). Mesmo assim e apesar do
crescimento das vendas nacionais, o número é ínfimo em relação à posição da
música nacional e internacional no mercado, respectivamente 66% e 30,6%. Quando
se diz música clássica, neste caso, estão alocadas no mesmo pacote a dita
tradicional e a contemporânea, com ampla vantagem para a primeira em termos de
distribuição, como o próprio Campos apontou em seus ensaios, escritos ainda entre
1979 e 1997. Ou seja, se hoje ainda persistimos em uma realidade desfavorável ao
alcance da música erudita, a voz de Campos lutando pela música de invenção
desde um tempo de inexistência das conexões virtuais, em que importar era
bastante oneroso e o mercado brasileiro fonográfico ainda era sustentável (diferente
de hoje, quando rui perante a tecnologia), tendo diversos estilos da música nacional
como carro chefe necessariamente foi pouco escutada e mais lida pelos que
acessaram os artigos separadamente ou atreveram-se a folhear o livro. A crítica de
Campos à mediocridade da indústria fonográfica e o descaso para com os
inventores era (e é) totalmente pertinente, porém é importante observar que os
produtores de discos deveriam sempre se perguntar diante da possibilidade de
edição de tais obras musicais: Para quê?
“Faz-se necessário lutar por eles”. É na introdução do livro Música de invenção que
Campos diz ao leitor que está no lado “terceiro”, não faz parte do “círculo algoz-
vítima”, mas não vai se levantar e ir embora, utilizará a força da palavra para “ousar
uma outra história”. Ou seja: “quem quiser que aceite esse escândalo-recorde de
desinformação. Este livro o denuncia e o renega” (1998, p. 10).
41
No texto introdutório o escritor também lança sua lista de nomes que aparecerão
ao longo das páginas seguintes pormenorizados. Essa lista nada mais é do que o
seu paideuma sonoro. O conceito de paideuma, segundo Pound, é: “a ordenação do
conhecimento de modo que o próximo homem (ou geração) possa achar, o mais
rapidamente possível, a parte viva dele e gastar um mínimo de tempo com itens
obsoletos” (1977, p. 161). Aqui alargamos o conceito que envolve a palavra aplicada
no movimento concretista a alguns nomes da literatura resgatados pelos poetas
do grupo acrescentando o sonoro. Campos faz de sica de invenção, muito mais
que uma mera coletânea-mosaico de artigos datados, uma antologia de inventores
(aqui, sim, na acepção mais corrente da palavra), contemplando, ao seu gosto, o
leitor mais curioso pela arte do escutar.
* * *
Salve-se quem souber
Walter Smetak
Ao fazermos uma ordenação dos principais nomes ali indicados é possível mapear
por onde gira a escuta do poeta, logo, quais são as posturas ético-estéticas do
século XX que fazem parte da sua sica de invenção. Não almejando biografar
todos os citados abaixo, apresentamos os compositores observados: a) Os músicos
da chamada “segunda escola de Viena”; b) os músicos americanos; c) os franceses;
d) os compositores “pós-música”. Vamos a eles:
a) Os músicos da chamada “segunda escola de Viena”:
Arnold Schoenberg (1874-1951), responsável pela criação da Klangfarbenmelodie
(melodia-de-timbre), do Sprechgesang (canto falado) e do dodecafonismo (ou ainda
serialismo). O destaque recebido nos artigos deve-se à obra Pierrot Lunaire (1912),
para voz e pequeno conjunto instrumental, da fase atonal (ou, como queiram outros,
pantonal) do compositor. Esta se põe a um passo da organização serialista proposta
por Schoenberg em 1923. A invenção fica por conta do uso do canto falado, “prática
vocal ainda inaudita na tradição musical Ocidental” (CAMPOS, 1998, p. 37). Em
Pierrot, Pierrôs” o poeta se dedica a uma extensa discussão sobre a obra, seu
42
aspecto inovador, juntamente com a Sagração da primavera (1913), do compositor
russo Igor Stravinsky (1882-1971), questões ligadas à utilização do Sprechgesang,
lista as pouquíssimas apresentações no Brasil, lembra a proximidade com o teatro
japonês e discute sua tradução da obra para o português da obra. O estudo vem
acompanhado da tradução dos 21 poemas do belga Albert Giraud sobre os quais
Schoenberg estruturou sua obra e tem como objetivo a realização de montagens em
português, assim o autor se preocupou “em manter a dicção e a prosódia sugeridas,
agora no caminho inverso, pela rítmica musical” (GUBERNIKOFF, 2007, p. 260).
Seu aluno Anton Webern (1883-1945), segundo o próprio Augusto de Campos “o
arquiteto do som-silêncio”. Destacou-se pela habilidade no trato da
Klangfabernmelodie e exploração extremada da técnica serialista, tornando-se uma
das maiores referências da música produzida a partir da segunda metade do século
XX, principalmente para os compositores da escola de Darmstadt ligados à
expansão do modelo serial, integralizando-a, e dando a todos os parâmetros
musicais o mesmo tratamento dado à altura pelo serialismo. A Webern são
dedicados três artigos “Ouvir Webern e morrer”, “Meio culo de silêncio”, “Viva
Webern”. Neles, o poeta apresenta as principais características composicionais da
obra do austríaco, as poucas e significativas gravações disponíveis no nosso
mercado fonográfico, logo não evitando as críticas ao descaso com a sica
weberniana, e o lugar de importância que o compositor assumiu no círculo da
música contemporânea. No “Apêndice 1: Notas sobre notas” de Música de invenção,
Campos apresenta verbetes publicados em 1973 na Enciclopédia Abril, fala do
microtonalismo, de Stravinski e na edição 108 es clarece as bases da “melodia de
timbres”, tão importante na poética do austríaco e um dos pontos de partida do
poeta brasileiro para a realização da série Poetamenos (1953) através da timbragem
das palavras com cores. Situado na seção “Radicais da Música”, Webern é um dos
compositores mais evidenciados por Campos. Em Balanço da bossa e outras
bossas o poeta publicara na reedição “a coisa” “João Gilberto / Anton Webern”
(CAMPOS, 2005), “infiltração poética” que aproxima o erudito e o popular inventivo.
A aproximação dos dois também não passa despercebida em Música de invenção,
além de o poeta apresentar o quadrado-mágico que o compositor expunha
costumeiramente ao final de suas conferências e fotos curiosas três das cruzes
túmulo do compositor austríaco e uma em ação, regendo –, da página 95 à 112, à
43
sua direita nas páginas ímpares, esquerda nas pares, encontram-se os frames do
morfograma “João Webern” (1995), publicado digitalmente no CD Clip-poemas
(1997/2003), distribuído juntamente ao livro Não (2003).No folhear rápido da
primeira (p. 95) à última (p. 112) veremos o rosto-rabisco de Webern transformar-se
no de João Gilberto, assim como, de trás para frente, o efeito será o mesmo. Dessa
forma, ao aproximar os inventores pelos seus traços faciais proporciona ao leitor via
olho o que o ouvido mal consegue apreender quando é posto à escuta: a simétrica
serialização imposta ao som por Anton Webern. A saber, os frames ocupam
exatamente o espaço no livro dedicado à obra do austríaco e a foto de João Gilberto
é a mesma que toma a contracapa de Balanço da bossa e outras bossas e refaz em
imagem a frase do músico bossanovista dita ao poeta sobre Caetano em 1968:
“Diga que vou ficar olhando para ele” (CAMPOS, 2005, p. 252).
Notam-se as poucas menções ao terceiro músico da tríade, Alban Berg (1885-1935),
também aluno de Schoenberg e o mais próximo da tradição lírica germânica. O
compositor das óperas Wozzeck (1917-1922) e a incompleta Lulu manteve sempre
um diálogo tonal-serial nas suas obras, a partir de 1923, quando seu professor
anunciara o advento do dodecafonismo. Em “Viva Webern” (1998, p. 105) Campos
menciona Berg como de menor expressão inventiva, “mas não menos notável”,
talvez justamente pela sua postura pouco radical (na acepção específica do poeta)
em relação principalmente a Webern.
b) Os músicos americanos:
Em “A música da ‘Geração perdida’”, o autor aponta os músicos estadunidenses da
primeira metade do século passado que “à margem do contato com seus
contemporâneos europeus” mantiveram profícua produção, entre eles: “O patriarca
da música moderna”, Charles Ives (1874-1954); Charles “Carl” Ruggles (1876-
1971), “o mais severo dos ultramodernos” (ROSS, 2009, p. 154); Henry Cowell,
criador dos blocos sonoros, os clusters, “grupos de notas contíguas pressionadas
com o punho, a palma e o antebraço” ao piano (GRIFFITHS, 1998, p. 105), e
também um dos primeiros a explorar os sons do interior desse instrumento,
pinçando, golpeando ou raspando as cordas. Os dois apontados como mais
significativos são Virgil Thompson (1896-1989) ao qual o artigo citado mais se
44
refere, expondo as obras mais importantes de seu repertório, gravações e sua
proximidade e trabalhos com Gertrude Stein e George Antheil. A este Campos
dedicou extenso artigo, “Balé mecânico na era eletrônica”, destacando o resgate da
obra Ballet Mécanique (1924) pelo regente e pesquisador Maurice Peress.
Mantendo a coerência de seus textos “didáticos”, o poeta apresenta o compositor,
sua obra, gravações e traz trechos do texto de Ezra Pound sobre a peça do músico
americano que assim o qualifica: “Antheil é provavelmente o primeiro artista a usar
máquinas máquinas modernas, sem sentimentalismo” (POUND apud CAMPOS,
1998, p. 204). Sobre o inventor dos clusters o Concreto publicou “Henry Cowell:
sons de ‘agora’” em formato da mesma estirpe dos outros ensaios. Aqui vale o
destaque para o apontamento de Gubernikoff sobre os títulos dos artigos de sica
de invenção:
Aliás, são comuns no livro o uso de ambiguidades conceituais e de jogos de
palavras nos títulos dos artigos. Essa atitude pode ser um recurso para
chamar a atenção do leitor para seu conteúdo ou, ainda, para dar um
tratamento menos formal a um assunto que muitas vezes é apresentado sob
a capa empoeirada da sisudez intelectual.(GUBERNIKOFF, 2004, p. 261)
Fora ambiguidades e jogos, grande parte dos títulos apresenta o nome do
compositor escolhido para a discussão no artigo, fato que também pode servir de
atrativo para o leitor menos preparado, através da curiosidade e da informação
direta, como para o público especializado, familiar aos nomes dos inventores.
O grande destaque entre os americanos, com espaço privilegiado no livro é o
compositor John Cage (1912-1992). Do acaso aos cogumelos e rádios, da influência
da cultura oriental à escuta do som-silêncio-ruído, dos happenings à criação do
piano preparado, sua contribuição para a música na segunda metade do século XX
é uma das mais importantes desse período. Exercia também o ofício da escrita e da
composição no campo das artes visuais. Para Campos, “o mais completo artista
inter-semiótico de nosso tempo, e poeta dos multimedia: músicopoetapintor” (1998,
p. 130). A Cage é dedicada uma seção inteira do livro, a “Musicaos”, palavra-valise
comunicadora do “caos” estabelecido na linguagem musical tradicional através de
sua ação no mundo, afinal para ele “a música é inconcebível à parte da vida.
Questões estritamente musicais não lhe parecem mais questões sérias” (1998, p.
129). foram compilados cinco artigos que incluem obra musical-literária-plástica,
45
filosofia, gravações, execuções, as cartas a Pierre Boulez, dados biográficos, a
entrevista do poeta brasileiro a J. Jota Moraes sobre o lançamento no Brasil da
primeira tradução de Cage para o português, De segunda a um ano (1985),
realizada por Rogério Duprat, revisada e prefaciada por Augusto de Campos.
Antecede os artigos a intradução “Cage rain” e encerra a seção o “Mesósticages”,
que toma emprestado a escrita em formato de mesósticos praticada pelo americano
para homenageá-lo: “modesta homenagem ao profeta da arte interdisciplinar, tentam
desembalar do berço esplêndido a adormecida consciência musical brasileira e
demandar-lha MENOS OLVIDO E MAIS OUVIDO” (1998, p. 164). Tendo encontrado
em Cage a figura central da poética da invenção na música, no quinto mesóstico o
concreto dispara:
areJando
osOuvidos
com o barulHo do silêncio
para defeNder o novo
de Varèse a NanCarrow
de SAtie a Webern
de SchoenberG
a ScElsi
(CAMPOS, 1998, p. 168)
O barulho doo e o do silêncio se confundem, a bandeira do poeta brasileiro entra
em consonância com a busca do músico. Junto aos textos aparecem inúmeras fotos,
partituras, dois poemas visuais de Campos “profilograma 2: hom’cage to webern”
(1972) e “pentahexagrama para john cage” (1977), ambos reunidos em Despoesia
e entre as páginas 147 e 164, assim como em “João Webern”, está o morfograma
“Cage Boulez” (1997). “Musicaos” apreende na interseção do mundo Campos-Cage
o caos de informações sobre a mais provocativa das ações ligadas à invenção do
século XX. Morton Feldman (1926-1987), um dos principais seguidores de Cage,
um dos “inovadores” citados já na introdução de Música de invenção, aparece
sempre rarefeito entre um e outro texto.
c) Os franceses:
Edgar Varèse “já é a música nova em ação, riocorrente” (1998, p. 113). Um dos
precursores das novas sonoridades, compositor de Ionisation (1929-1931), obra que
inaugura o repertório ocidental exclusivo para percussão e Poème Electronique
46
(1958), música em fita concebida especialmente para o pavilhão Phillips da
Exposição de Bruxelas, de 1958 (GRIFFTITHS, 1998, p. 101; 146), é “varrido” em
“Viva Varèse”, uma apresentação da obra e um paralelo com Webern são
costurados nesse artigo. Não faltando também as críticas à pouca divulgação da
obra do francês no país, Campos volta a vociferar no final do escrito de 1983:
A história demonstrou que foram os que encararam de frente a realidade
desses compositores-limites os que melhor compreenderam a sua época e
melhor produziram. Rever Webern? Varrer Varèse? Para quê? Para voltar às
velharias de Eisler e Shostakovitch e aos diktat jdanovistas? Ouvidos velhos
para o homem novo? Uma “bagatela” de Webern vale mais do que tudo isso
junto. Precisamos é ouvir Webern e ouvir Varèse – coisa de que os brasileiros
estão praticamente impedidos pela insensibilidade das nossas gravadoras e
pela timidez dos nossos programadores de música. (1998, p. 122, o primeiro
grifo é nosso)
A frase que abre a citação mais uma vez mostra uma defesa dos “outros” e,
consequentemente, à socapa, da sua própria posição enquanto leitor e poeta. Pierre
Boulez (1925-), fundador do IRCAM (Institut de Recherche et Coordination
Acoustique/Musique), é considerado um dos importantes nomes do que se pode
chamar hoje de uma avant-garde institucionalizada, pós-1950 (NASCIMENTO,
2005), derivada da Escola de Darmstadt. Citado em vários textos, o compositor
francês ganha espaço reservado no Apêndice II, no qual estão dois artigos de 1957
sob a alcunha “Polêmica”, publicados no “Suplemento Literário” do Jornal do Brasil.
O primeiro, “Boulez Bilis Bento”, é uma resposta contundente “à fogueira
reacionária” e ao “dogmatismo fúnebre” impregnados no artigo do crítico “Sr. Antonio
Bento”, desqualificando as então recém-nascidas músicas concreta e eletrônica e a
figura de Boulez e sua produção. O outro é a tradução de um texto do próprio
Boulez, “Homenagem a Webern”, onde, na defesa do compositor austríaco, pondera
a diferença essencial o desprendimento “à decadência da grande corrente
romântica alemã” (1998, p. 269) que o manteve em posição mais privilegiada que
Schoenberg e Berg, reconhecendo-o como “o limiar” da nova música. O músico
francês compara a tensão sonora de Webern, obtida através de uma “respiração
real”, somente às constelações de Mallarmé, principalmente em Un coup de dés.
Outro francês que ganha destaque no mosaico musical do poeta é “Satie, o velhinho
prodígio da sica”, ou melhor, Eric Satie (1866-1925). Suas páginas encontram-se
na seção “Radicais da música”, junto a Webern e Varèse, muito provavelmente por
47
sua coexistência no mundo (da invenção). O artigo traz na triangulação Oswald de
Andrade-John Cage-Eric Satie a defesa do músico francês pelos dois primeiros,
suas colocações recheadas de “humor crítico” e “implacável”, marca de sua poética,
e aponta suas principais obras. O outro texto foi veiculado junto ao encarte do disco
(LP) Joplin/Satie Clara Sverner/João Carlos Assis Brasil, de 1984, que reúne o
erudito e a “música de divertimento”, o ragtime de Scott Joplin (1868-1917), e traz ao
final duas traduções de textos do próprio francês. “Mostrem-me alguma coisa nova.
Eu começo tudo outra vez” (SATIE apud CAMPOS, 1998, p. 76). É o Satie satírio
embarcado pelo poeta na sua “nau de linha”. A respeito do novo, assim como o
músico francês, Campos, em 2003, escrevera no prefácio de Não: “Cada poema é
para mim uma mínima coisa nova, vida ou morte, NÃO gosto de repetir, e a prática
digital, com a sedução dos seus multiinstrumentos, ainda veio agravar o problema”
(CAMPOS, 2003, p. 11). O mordaz humor na busca pelo sempre novo, a invenção.
d) Os compositores “Pós-música”:
Alguns músicos que não aparecem como pilares na “história oficial da sica”, mas
são possuidores de significativas contribuições para o século XX, se tornam fontes a
serem “resgatadas” nos escritos de Campos e também compilados nesta seção.
Cada um obteve artigo exclusivo que segue os mesmos padrões dos elencados até
agora. Destaca-se a presença dos italianos [a] Luigi Nono, no seu equilíbrio entre a
consciência política e o rigor estético características refletidas nas duas ginas
em que se põem frente a frente, apesar das várias páginas que as separam, o
“Nono quasar: ‘a lonjura nostálgica utópica futura’” (p. 210) e o “Nono big bang:
‘ouvir as pedras’” –, e [b] Giacinto Scelsi (1905-1988) com seu silêncio e sua
meticulosa pesquisa de exploração máxima do mínimo som, “omesmosom”; [c] do
americano Conlon Nancarrow, radicado por longos anos no México, revolucionário
das pianolas e pianos mecânicos; [d] da russa Galina Ustvóslkaia (1919-2006),
“descoberta” há apenas algum tempo, permanecida por anos na sombra dos
dogmas do “realismo socialista” (CAMPOS, 1998, p. 222), entre outros. Campos
aponta a originalidade da compositora russa em meio ao silêncio de sua divulgação
e ínfimo contato com a música contemporânea de seu tempo. Ainda a compara, na
sua “arte de recusas”, à poetisa americana Emily Dickinson, cuja “revolução
silenciosa e solitária dos poemas”, fez com que estes ficassem “inéditos durante sua
48
vida”, e à compatriota-poeta-suicida Tsvietáieva, “uma das muitas vítimas do
Stalinismo” (1998, p. 225). A última teve parte de sua poesia traduzida no livro
Poesia da Recusa. Por sinal, este evidencia a vitalidade do poeta pesquisador
paulista, que amplia, com invejável coerência e verticalidade, o paideuma iniciado
há mais de meio século.
* * *
Tout existe pour finir en Livre
Mallarmé
A produção de Augusto de Campos se destaca pela diversidade de suportes
utilizados na composição de suas obras. Poema-objeto, CD-ROM, “do cartão ao
cartaz”, multimídia. Experimentar foi (e é) preciso, afinal, “o caminho é sem saída” e
nesta assertiva, em se tratando de poesia, os vácuos entre as antologias
funcionavam como um campo aberto para explorar novas linguagens, digitalizar
poemas, aproximar-se da realização total do leitmotiv concretista: a
verbivocovisualidade. De súbito em bito, por mais alargados os meios
composicionais do seu obrar, o expoeta sempre retorna àquele suporte “imbatível”: o
livro. Foram quinze anos sem publicar um “livro” (as aspas são do autor) entre
Despoesia (1994) e Viva Vaia (1979; 2001), e ao “justificar-se” no “desfácio” diz:
“assim, era hora de voltar a este imbatível receptáculo do verbo: o livro”
(CAMPOS, 1994). No “NÃOfácio”, de Não (2003), nove anos depois do
“des”datiloscrito, o menospoeta rompe novamente o “silêncio livropoético” e, ao
comentar sua afeição cada vez maior pela prática digital e outras práticas, volta a
ressaltar a importância do livro como suporte:
O fato é que estes meus poemas caberiam melhor talvez numa exposição,
propostas como quadros, do que num livro. Mas o livro, mesmo bombardeado
pelos novos meios tecnológicos, é uma embalagem inelutável, ainda mais
pelos guetos e guerrilhas da poesia e suas surdas investidas catacúmbicas.
(2003, p. 11)
E mais adiante complementa: “é esse território [o tecnológico] que mais me incita e
desafia agorapós-tudo. Mas as ferramentas computadorizadas que filtram toda
minha produção, mais de 10 anos, também fabricam o poema palatável ao papel
e ao livro” (2003, p. 11).
49
A discussão da sobrevivência do livro como suporte não para a poesia, mas de
modo geral – e da escrita em meio aos avanços tecnológicos desenfreados tem sido
cada vez mais recorrente nos últimos anos. em 1926, Walter Benjamin, em texto
intitulado Vereidigter Bücherrevisor“Revisor de livros juramentados”, traduzido
por Haroldo de Campos em Mallarmé (2006) sob o título de “Uma profecia de Walter
Benjamin” –, antecipava-se: “Agora tudo indica que o livro, nessa forma tradicional,
encaminha-se para o seu fim” (BENJAMIN apud CAMPOS; PIGNATARI, 2006, p.
205). O filósofo alemão se referia à extrapolação do espaço tradicional do livro a
partir das “tensões gráficas do reclame na figuração da página” iniciadas por
Mallarmé em Un coup de dés (1897). Benjamin aponta a “partitura mallarmaica”
como propulsora para a escrita ganhar terreno no campo da publicidade:
A escrita, que tinha encontrado asilo no livro impresso, para onde carreará o
seu destino autônomo, viu-se inexoravelmente lançada à rua, arrastada pelos
reclames, submetida à brutal heteronomia do caos econômico. Eis o árduo
currículo escolar de sua nova forma (CAMPOS, 2006, p. 205).
O percurso que deslocara a escrita, desde seu surgimento, da verticalidade para o
“acamar-se no livro impresso”, é novamente realinhado ao “eixo y” através do jornal,
do filme e do anúncio. Assim, o filósofo vaticina: “E antes que um contemporâneo
chegue a abrir um livro, terá desabado sobre seus olhos um turbilhão tão denso de
letras veis, coloridas, ligantes, que as chances de adentramento no arcaico estilo
do livro já estarão reduzidas a um mínimo” (BENJAMIN apud CAMPOS; PIGNATARI
CAMPOS, p. 205-206, grifo nosso). A profética fala benjaminiana para o ato de
chegar a abrir um livro ante o assédio dos outros meios faz do caminho à “parede de
segundo grau” algo mais nebuloso.
Vilém Flusser publicou, no ano de 1987, A escrita: futuro para a escrita? (2010).
Calcado na especulação linguística e filosófica juntamente com a observação
apurada dos novos meios de comunicação, seu trabalho lança-se em uma
metaescrita que almeja provocar uma reflexão sobre o surgimento dos códigos
digitais a partir da perquirição do título. No capítulo denominado “Livro”, o filósofo
tcheco-brasileiro pergunta o que se fará sobre as manifestações concretas do que já
foi escrito. Comparando a biblioteca e as memórias artificiais, suas capacidades de
50
armazenamento de informação e seu espaço concreto e virtual, Flusser dirige a
discussão até a questão do papel: “memórias automáticas altamente funcionais, por
um lado, e florestas verdes, por outro, são lugares de passeio e não de moradia para
homens afeitos a papel, como nós” (2010, p. 108). O filósofo desenha o espaço e
importância do papel entre a imagem da floresta verde e a introdução do homem à
convivência com a inteligência artificial:
O papel é qualquer base que absorve todas as nossas experiências e todos
os nossos conhecimentos, sejam os novos sinais excêntricos das memórias
artificiais, sejam os borrões verdes das florestas. Suspeitamos de que tudo
aquilo que não se pode pôr no papel não seja nada. O papel é nossa pátria,
até mesmo quando essa pátria ameaça nos inundar como um mar agitado.
Poderíamos dizer, por isso, que a revolução da informática não salva apenas
as florestas, mas também nós mesmos do perigo de sermos inundados por
papéis. Mas somos certamente traças de livros, e nos alimentamos daquilo
que nos devora. Vivemos de livros e para os livros. (FLUSSER, 2010, p. 108)
Entre o afogamento em papel revolto e a facilidade com que a revolução informática
nos permite armazenar dados e bibliotecas em espaços menores que um centímetro
cúbico, o debate entre o fim do livro e consequentemente da escrita também
percorre as folhas de Não contem com o fim do livro (2010). A conversa aberta entre
Umberto Eco e Jean-Claude Carrière, grandes bibliófilos, mediada pelo jornalista
Jean-Philippe de Tonnac, traz formulações acerca da permanência do suporte físico
mesmo na iminência do avançar mercadológico dos e-books e da Internet. A esta se
atribui a responsabilidade pelo possível desaparecimento do exemplar de papel,
ideia fixa da opinião pública, segundo Eco. Os letreiros luminosos apontados por
Benjamin ganham ainda no século XX a companhia da rede mundial de
computadores, mas nem o artefato publicitário nem a interface mediadora entre o
real e o virtual e a rapidez das informações foram suficientes para tirar do livro o seu
lugar no mundo das traças humanas. O escritor italiano sentencia:
Com a Internet, voltamos à era alfabética. Se um dia acreditamos ter entrado
na civilização das imagens, eis que o computador nos reintroduz na galáxia
de Gutemberg, e doravante todo mundo vê-se obrigado a ler. [...] O livro
venceu seus desafios e não vemos como, para o mesmo uso, poderíamos
fazer algo melhor que o próprio livro. Talvez ele evolua em seus
componentes, talvez as páginas não sejam mais de papel, mas ele
permanecerá o que é. (CARRIÈRE; ECO, 2010, p. 16; 17)
51
Desde o primeiro exemplar, no Renascimento, até hoje muitas foram as seleções e
filtragens realizadas nas bibliotecas forçadas pelo contexto sociocultural. Tonnac, no
prefácio do livro, conceitua cultura a partir desta ótica:
Seja qual for a nossa insistência em fazer o passado falar, nunca poderemos
encontrar em nossas bibliotecas, nossos museus ou nossas cinematecas
senão as obras que o tempo não fez, ou não pôde fazer, desaparecer. Mais
que nunca, compreendemos que a cultura é muito precisamente o que resta
quando tudo foi esquecido. (2010, p. 11)
Resistindo às marcas históricas imprimidas em seus conteúdos, o suporte
permanece vivo ocupando as prateleiras que lhe cabem, dividindo espaço com a
tecnologia do computador. O acesso às informações do livro não depende única e
exclusivamente da intermediação da energia, de softwares, de interfaces, basta girá-
lo. Assim, a facilidade das informações proporcionada pela tecnologia se mostra, ao
invés de permanente, bastante efêmera devido à velocidade do aprimoramento dos
ditos “suportes duráveis”: disquete, fita cassete, CD-ROM, DVD, pen drives. Carrière
aponta muito precisamente:
Aliás, esta é uma tendência da nossa época: colecionar o que a tecnologia
peleja para descartar. [...] Portanto, ainda somos capazes de ler um texto
impresso cinco séculos. Mas somos incapazes de ler, não podemos mais
ver, um cassete eletrônico ou um CD-ROM com apenas poucos anos de
idade. A menos que guardemos nossos velhos computadores em nossos
porões (2010, p. 23; 24)
Por sua vez, Eco conclui ser mais fácil, em uma situação catastrófica, salvar um livro
do qualquer outro suporte sem precisar levar consigo seu leitor, correndo ainda o
risco do defeito incorrigível a qualquer momento. Retomando o texto flusseriano: o
filósofo nos apresenta uma “localização geográficado livro enquanto suporte e a
etimologia que cerca a palavra dada ao objeto:
O livro é, pode-se ver assim, um estágio intermediário no caminho que
procede da floresta em direção à terra das inteligências artificiais. Ele é
sempre um pedaço da floresta: “livro” é um nome de uma árvore, líber
significa córtice de árvores e origina-se do grego lepis(casca), que por sua
vez origina-se do antigo lep (descascar). O livro foi descascado da sua
floresta e suas folhas dizem o que justamente dizem. Mas o livro é também
um pedaço de inteligência artificial, pois é um suporte de memória artificial e
contém informações computadas em bits (letras). O livro mostra, pode-se ver
assim, que temos de atravessá-lo para chegarmos às memórias artificiais
(mesmo que essa passagem também leve milhares de anos). Mas não vemos
o livro exatamente assim. (FLUSSER, 2010, p.108-109)
52
Não o vemos assim porque o autor de A escrita nos alerta para o fato de o livro
aparecer diante de nossas visões sempre através de sua lombada, sempre com
gestos sedutores e promissores: “a sedução está na lombada”. Tal atração é que
provoca a reação do leitor em direção a três gestos:
Ele [o livro] quer ser girado, aberto e folheado. Esses três movimentos, para
os quais a lombada dos livros nos seduz, não são factíveis nem com árvores
nem com inteligências artificiais. Eles o característicos apenas do estágio
intermediário entre ambos. (FLUSSER, 2010, p. 109)
Girar. Abrir. Folhear. Flusser reflete sobre os três infinitivos a partir da ação que
possibilita realizá-los plenamente. Diante da parede da biblioteca, da qual o filósofo
ressalta a diferenciação em relação às outras divisórias, forma-se uma segunda,
“uma parede de segundo grau”. Entre a alvenaria de tijolo e a de livros forma-se uma
“zona de papel” onde habitam vários braços sempre prontos a nos capturar. Mas
apreensão quando esticamos nossos próprios membros superiores em sua
direção e “pegamos da parede uma lombada de livro e giramos esse livro alcançado
para nos deixar capturar por ele” (FLUSSER, 2010, p. 110). O ato de girar, o “giro”,
para o filósofo é sinônimo de “revolução”. Respondendo às duas questões as quais
validam um ato revolucionário “para que” e “contra que” –, Flusser aponta que a
segunda designa uma reação contra a parede, girar a lombada é dar a chance de
ser apreen(vi)sível aquilo que se encontra atrás do livro retirado. o ataque à
divisória de papel tem por finalidade (por “para que”) o outro. O completo ato
giratório se torna exemplo de modelo revolucionário, e o autor conclui: “a parede da
biblioteca, contudo, não permite apenas, ela exige o gesto revolucionário, porque o
outro está em seu interior” (FLUSSER, 2010, p. 111). O outro se configura aqui
como o dono dos braços prontos a nos capturar.
Abrir leva a quatro ações: a averiguação do sumário; do índice onomástico ou
remisso; das imagens; e o próprio ato de folhear. A leitura do sumário é a verificação
do assunto ao qual o livro se dedica. A ida aos índices é a tentativa de observar em
qual agrupamento o autor se localiza, “é pegar o braço do outro para participar de
seu convívio social” e “esse gesto intersubjetivo de folhear [por índice] encontra no
livro um segmento de diálogo e um convite para entrar nesse diálogo” (FLUSSER,
53
2010, p. 111-112). Flusser inclusive aponta que o livro (A escrita) não tem índice e
que tal fato proporciona as seguintes situações:
Por isso, a ausência de tal registro é para aquele que folheia o livro um
aborrecimento e uma provocação: ele irrita-se porque não sabe com que está
lidando, e é desafiado a reconhecer o outro – esse outro cujo braço ele pegou
(e não pode reconhecê-lo a não ser assim). Caso esse desafio seja aceito,
pode surgir um diálogo novo e não um prosseguimento de um diálogo já
iniciado. (FLUSSER, 2010, p. 112)
Música de invenção também não tem índice remissivo ou onomástico. Neste caso a
edição do livro foi tão “omissa” quanto A escrita, de Flusser.
Folhear é dar-se à liberdade, ao “por acaso”. As camadas de causas nos acasos e
vice-versa “fazem com que o folhear se transforme na causa, cuja consequência é
um modo de leitura específico [por acaso] pelo qual o livro folheado pode ser
decifrado” (FLUSSER, 2010, p. 113). Tendo assim diversas variantes de acesso ao
conteúdo da zona de papel, a incitação cai sobre a ausência de um virar a gina,
escolher e deixar-se ao acaso a partir da rendição às memórias automatizadas. O
acesso às informações estaria vinculado aos métodos mais refinados, sem a
materialidade dos gestos girar, abrir e folhear. A lombada nem sequer aparece
escaneada no arquivos pdf e nos e-books. Mas vinte anos depois das reflexões
flusserianas, Eco e Carrière ainda mantêm o livro no seu lugar, por enquanto
convivendo ao lado das mais avançadas tecnologias, sobrevivente às luzes dos
reclames apontadas por Benjamin no início do século passado.
Augusto de Campos nos seus prefácios apontou para uma necessidade do retorno
aos livros como suporte apesar de todas as suas elucubrações digitais, mesmo em
décadas diferentes, 1994 e 2003, o que demonstra a importância em igual instância
do papel e da tela, sem pender para qualquer dos lados, por enquanto. Sua poesia
ainda se permite encontrar soluções no papel que sustentam as perguntas (e as
respostas) “contra que” (a estética da estagnação) e o “para que” (ética da
invenção). Seu lugar como tradutor e ensaísta neste artigo, o peso recai sobre o
crítico musical – também se situa nas respostas acima.
54
Em se tratando do objeto selecionado, Música de invenção, é interessante observar
que o seu lugar na prateleira da crítica e história da música mesmo que seus
textos não tenham cunho estritamente musicológico, segundo Gubernikoff, e sim
provoquem “a utilizão dos meios de massa para a divulgação mais inventiva e
arrojada do século [XX]” (2004, p. 258) parece estar lá, onde memória, história e
testemunho dão seus braços à captura do leitor que gira, abre e folheia. A lombada
de sica de invenção é o centro do disco que se divide entre capa e contracapa.
Discos são os principais materiais de análise de Campos e é a partir deles que o
discurso escorre pela veia criativa do poeta levando-a, entre sulcos e sumos, a
vários aspectos da obra do compositor analisado, desde sua biografia até o seu
legado. Feitos e fatos, (in)traduções e fotos, entre partituras e parágrafos: poesia.
Ainda em A escrita, Vilém Flusser, discutindo poesia e memórias artificiais, coloca-se
assim quanto à primeira:
Tradicionalmente, faz-se uma distinção entre poesia e imitação (“poiesis” e
“mimesis”). Todavia, com a hegemonia do alfabeto, essa associação estreita
do pensamento à língua, entende-se majoritariamente poesia” um jogo com
a linguagem cuja estratégia é aumentar criativamente o universo da língua.
Esse universo é aprofundado e ampliado poeticamente devido à manipulação
de palavras e frases, modulação e funções rítmicas e melódicas dos
fonemas. Poesia, nesse sentido, é qualquer fonte da qual a língua sempre
nasce renovada, e precisamente em qualquer literatura, ou seja, também nos
textos científicos, filosóficos e políticos, e não apenas nos “poéticos”.
(FLUSSER, 2010, p. 85)
Campos faz de Música de invenção um livro plural, tanto na escuta, quanto no
visual: a fronteira entre ensaio e poesia é, no sentido flusseriano, pouco
reconhecível. Aquele que se dispõe a girar, abrir e dar-se ao acaso nas páginas
dessa alvenaria de papel depara-se com um universo verbivocovisual latente. É
linguaviagem que o constitui. na capa o teor do discurso coincidentemente reflete
na imagem do disco. Giro no gramofone ou no aparelho “3 em 1”, no leitor de CD,
DVD ou Blue-ray, a figura do disco traz a revolução da escuta que ali se instalará em
palavras e imagens a perceber, as linhas brancas que conduzem a leitura da
agulha/lente se colocam em movimento no desenho, sugestão de rotação. Aqui o
padrão gráfico das capas da Coleção Signos/Música contribuiu também para um
adensamento das palavras situadas na zona de papel. Roda o disco. Para quê? Se
o giro é a revolução, é também encantatório (AGUILAR, 2005). Lombada padrão,
mas o “nome do disco” e o autor estão ali dando braços para os simpatizantes do
55
experimentalismo. Se “cultura é muito precisamente o que resta quando tudo foi
esquecido”, Campos resgata e não deixa esquecer os (seus) músicos inventivos e
caso apaguem as luzes, blackout, ou se percam os backups, o livro de Campos está
na prateleira, desde 1998, juntamente com os outros já publicados sobre o
assunto. É também necessário ressaltar a empreitada “vanguardística”, como
atestara Lívio Tragtenberg na contracapa:
Por isso, este é certamente o livro mais importante sobre o assunto publicado
no Brasil, obrigatório para os interessados e estudiosos da música criativa.
Depois de Balanço da bossa, o poeta pós-tudo agora lança na pós-música
dos silêncios, sons e ruídos. Prazer do texto e dos ouvidos, juntos.
(TRAGTENBERG apud CAMPOS, 1998)
Ao final do artigo “Música de invenção”, pertencente à compilação Sobre Augusto de
Campos (2004), Carole Gubernikoff retrata o cenário confuso da música brasileira de
concerto no século passado e a parca produção em torno da temática que Campos
opera no livro:
O estudo sistemático e o acesso à produção radical e de invenção musical do
século XX foi extremamente prejudicado no Brasil pelas dificuldades
institucionais, pela resistência sem fundamento dos gestores culturais do país
e pelas questiúnculas internas dos poucos grupos que se propuseram a
pesquisar formas mais livres de expressão. Lendo-se o livro de Augusto de
Campos temos a impressão que a expressão muito empregada no Brasil de
“década perdida” poderia se estender a “século perdido”. O século XX assistiu
ao Brasil chapinhar na indecisão estética e no xenofobismo e seu correlato, o
grupamento paroquial e as brigas internas. [...] Este livro é um guia seguro e
um panorama dos eventos significativos para a experiência estética musical.
Talvez as pessoas que o leiam desfrutem da curiosidade e busquem o
elemento fundamental para a experiência estética musical: a escuta
baixando e gravando, no futuro, pias da produção alternativa sem
necessidade de recorrer ao mercado para ter acesso às músicas radicais.
(GUBERNIKOFF, 2004, p. 266)
Eis que a fala da autora conduz o livro para um diálogo com as práticas digitais
relacionadas à sica. O mosaico musical”, expressão lançada na introdução do
livro pelo próprio Augusto de Campos, reativa alguns músicos sem voz e vez e, no
ajuntamento dos ensaios no suporte livro, garante a sobrevida dos escritos e do
ouvido, literalmente augusto, de Campos sobre os compositores inventors.
O recorte temporal escolhido pelo autor, 1979 a 1997, ganha fôlego. Textos
espacializados entre dezoito anos, em materiais vulneráveis ao tempo e à memória,
reaparecem na prateleira da biblioteca (e das livrarias) para não deixar cair no
56
esquecimento os músicos que, ao sabor do poeta, tiveram especiais contribuições
para o cenário artístico de experimentação no culo XX. O livro reinventa e amplia
o público através da lombada, dar-se ao folhear por mais mãos. Como afirmara
Tragtenberg, no lançamento em 1998, e Gubernikoff em 2004, Música de invenção é
referência segura para os amantes da perquirição do som, mas também se configura
como revitalização do próprio pensar de Campos, de sua poética de recusa. Mais
um lance de Des-.
* * *
discutimos a aproximação de Augusto de Campos à figura da testemunha
apontada por Shoshana Feldman em “Educação e crise, ou as vicissitudes do
ensinar”. O poeta, no seu “ato de fala”, põe-se como “meio para o testemunho”. A
diferença maior apontada entre Campos e Mallarmé é a compreensão clara do “para
onde”, em que o brasileiro sabe a “abrangência e significados” e “onde leva a
jornada”, o francês não, mas os dois caminham “através da obscuridade, através
da escuridão e através da fragmentação”. O obscuro por onde andam as palavras do
Concreto sobre o mundo de invenção musical do século XX é formado por vários
fatores: o dificultoso acesso aos discos pelos ouvintes interessados e curiosos
devido ao pouco interesse do mercado fonográfico e dos programadores de
concerto; a pouca receptividade da sica contemporânea no país tanto pela crítica
quanto pelo público ainda melindroso no trato com a atualização da linguagem
musical que esse tipo de repertório exige dos ouvidos atentos; e o próprio espaço
pelo qual os artigos circulavam com seu público restrito a empatias por
especificidades e ideologias.
O rearranjo dos textos em livro possibilitou um acesso mais direto via lombada às
informações sobre esse tipo de música, mas este não era o único no mercado que
tratava da “nova música”. Por exemplo, data de 1987 a primeira edição em
português de A música moderna: uma história concisa e ilustrada de Debussy a
Boulez, do musicólogo Paul Griffiths, editado pela Jorge Zahar, na qual se concentra
grande parte das informações sobre os músicos apresentados por Campos (mesmo
assim não eram e não são muitas as edições em português que tratavam desse
assunto nas prateleiras). Porém os artigos, logo também o livro do poeta, não tinham
57
cunho musicológico como afirmara Gubernikoff: se encontram muitas vezes
pequenas biografias dos músicos, críticas de discos e apresentações de obras
musicais, fotos, poemas do próprio Augusto de Campos, tudo “à sua revelia”.
Portanto: para que afirmar Augusto de Campos como testemunha dos sons de seu
tempo? O poeta paulista usa sua voz estabelecida dentro do campo artístico
brasileiro para trazer à tona uma realidade evidenciada, mas pouco enfrentada: a
desvalorização de grande parte da música do século XX. Santuza Cambraia Naves
em “Balanço da Bossa: Augusto de Campos e a crítica de música popular” aponta o
seguinte aspecto sobre a edição do livro que intitula seu ensaio:
Trata-se, sem dúvida, de um livro emblemático para a época por diversas
razões. A primeira – e talvez a mais importante – refere-se ao fato de Augusto
de Campos, um poeta “erudito”, perceber a criação, no cenário cultural dos
anos 1960, de um estatuto singular para a canção popular brasileira.
(NAVES, 2004, p. 254)
A defesa do poeta “erudito” ao que ele chamou de “música popular de vanguarda” é
realmente singular, pois ele se desloca do “seu mundo” para ver “no campo alheio”,
o popular, aquilo que de mais importante faz interseção com sua obra: o poder de
invenção, a busca do novo, que reverberava naquele momento da bossa nova e do
tropicalismo. em Música de invenção, lançado exatos trinta anos depois da
primeira edição de Balanço da Bossa, é do campo “do erudito” que parte o ataque
“final” do poeta paulista contra o ouvido obsoleto que ele detecta. Por mais que
falemos de um livro que reúne artigos no espaço temporal de 1979 a 1997, e ainda
reedita verbetes de 1973 e dois textos de 1957 o que mostra realmente a firmeza
em prol do projeto valorizador da invenção –, esse suporte em que o autor congrega
todo aqueles anos e os coloca novamente disponíveis aos olhos do leitor quer
comunicar que ainda em 1998 existe um grande trauma na escuta da música
brasileira, que sempre vem à tona. A manutenção de “não toquem no meu Mozart!”
ecoava para Campos ainda no final do século passado e parece ecoar até hoje. Em
contrapartida, como vimos, o poeta também faz dos seus textos feridas abertas,
choques sistemáticos no ouvido de quem lê. É essa reiteração a mesma que mais
tarde seria descrita na introdução de Poesia da Recusa: “essa poesia, baluarte
contra o fácil, o convencional e o impositivo, ficou só à
margem e precisa, de quando
58
em vez, ser lembrada para que a sua grandeza essencial avulte sobre o aviltamento
dos cosméticos culturais” (2006, p. 15). Onde lê-se poesia, leia-se música.
Existe nos escritos de Música de invenção o que por analogia podemos associar ao
testemunho testis apontado por Márcio Seligmann-Silva: “enfrentamento, por assim
dizer, ‘jurídico’ com o real (sem aspas!) e reivindicação da verdade” (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 383). Outrora o poeta declarou, como vimos, na sua introdução:
“quem quiser que aceite esse escândalo-recorde de desinformação. Este livro o
denuncia e o renega” (1998, p. 10). Lembremos ser o testis o depoimento de um
terceiro no processo, aqui, o de afirmação de uma música que ainda não é sequer
ouvida com atenção (e pouco lida, assim como a própria obra de Augusto de
Campos). É a palavra “terceiro” que nos conduz a um contato mais direto com o
alargamento da condição de testemunha proposta por Jeanne Marie Gagnebin e
aqui dela usufruímos por aproximação. Retomando a fala da autora, temos:
Nesse sentido, uma ampliação do conceito de testemunha se torna
necessária; a testemunha não seria somente aquele que viu com os próprios
olhos, o histor de Heródoto, a testemunha direta. Testemunha também seria
aquele que não vai embora, que consegue ouvir a narração insuportável do
outro e que aceita que suas palavras revezem a história do outro: o por
culpabilidade ou por compaixão, mas porque somente a transmissão
simbólica, assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente
essa retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repetirmos
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o presente.
(2004, p. 93)
Campos, assim como Gagnebin, se vale “da prerrogativa da força (da palavra) e do
lugar que ocupa” (da erudição e do cânone literário) para revitalizar seus textos em
livro e (re)transmitir obras que caíram no esquecimento antes mesmo de serem
lembradas. Ao obter de Arthur Nestrovski informações e áudios sobre as obras de
Giacinto Scelsi e Conlon Nancarrow o poeta não “se levantou e foi embora”. Ouviu e
as recolocou em artigos (dois para cada um), assim como incluiu também a
esquecida russa Galina Ustvólskaia em Música de invenção. Mesmo sabendo que
essa revitalização de artigos também pode ser uma forma de manutenção de um
discurso construído durante anos através de escritos em torno dessa polêmica, é
importante observar, por exemplo, que os três compositores citados sequer figuram
em alguns livros de referência em história da música publicados em nosso idioma.
No índice onomástico de A música moderna (mesmo na edição de 1998), de
59
Griffiths, e a impressão em português de O resto é ruído: escutando o século XX
(2009), de Alex Ross, garante a presença de Scelsi e Ustvólskaia em apenas uma
página, enquanto a de Nancarrow em duas, mas todas sem informações
significativas sobre eles. História da Música Ocidental, dos musicólogos Donald
Grout e Claude Palisca, na edição em português de 2005, não traz nenhuma
menção aos três compositores.
Citamos somente estes três livros a título de observar como são significativos os
textos escritos por Campos ainda em 1985 e 1993 (Scelsi), 1985 e 1997
(Nancarrow) e 1996 (Ustvólskaia). Porém não podemos deixar de mencionar que a
primeira edição do Dicionário Grove de sica em português, de 1994, organizado
por Stanley Sadie, trazia pequenas notas sobre os três inventores, mas não muito
relevantes quanto às produções musicais dos referidos. Apesar de Música de
invenção ser posterior à edição do Grove, comparando com as datas das
publicações dos artigos, por exemplo, veremos que somente um artigo sobre
Nancarrow e o único sobre Ustvólskaia possuem data posterior ao mais importante
dicionário de música em língua vernácula. Aqui, insistimos em lembrar que a escolha
dos livros citados se deu pela representatividade que os mesmos ocupam na área
de história da música, pelas datas e edições em português, porém não é intuito do
trabalho analisar com proficuidade o mercado editorial e nem seria pertinente nesse
momento, quando o objetivo inicial se encaminha para outras questões. A ideia é
apenas situar rapidamente Música de invenção no entorno de seu lançamento.
Panorama geral deste autor do trabalho para o leitor leigo na área de música e ávido
por outras leituras. Logicamente deixamos de citar outras referências ligadas à
história da música, mas, a saber, o número de edições em português dessa temática
era (e continua sendo até agora) bastante reduzido, comprovando o que Augusto de
Campos relata em seus artigos. Não obstante o problema do mercado editorial em
português na área de música não se restringe somente aos textos sobre música
contemporânea (do século XX e XXI), mas a toda ela. Sendo “periferia da periferia
da periferia”, é possível ter noção da parcela de representativa que esta ocupa
dentro desse nicho mercadológico.
De fato, talvez esses três resgates sejam os mais significativos de todos os
compositores que pertencem ao mosaico musical de Augusto de Campos,
60
justamente pela falta de material em língua portuguesa sobre suas obras ainda nas
datas de seus artigos. Mesmo assim, as leituras de Webern, Schoenberg, Cage,
Satie e outros corroboram para afirmar um Augusto de Campos que, seja na
poesia, com suas traduções, ou na música com seus ensaios, ousa esboçar uma
outra história, inventar o presente, sob a ótica dos menos escutados, cobrando “mais
ouvidos, menos olvidos”. Logo também cumprindo, mesmo não sendo musicólogo, o
papel do histori(c)a(ta)dor, anti-historicista que “deve visar a construção de uma
montagem: vale dizer, de uma collage de escombros e fragmentos de um passado
que só existe na sua configuração presente de destroço” (SELIGMANN-SILVA,
2003, p. 70). Ao dar ao público brasileiro palavras que revitalizam os compositores
aqui apontados, o poeta direcionou para o campo da música a atitude mais uma vez
iniciada no campo da literatura: a re/visão dos colocados à margem, na obscuridade.
Trouxe e continua trazendo, assim como os músicos, Sousândrade (1833-1902),
Kilkerry (1885-1917), a poesia provençal, Hopkins (1844-1889), Rilke (1875-1926),
Dickinson (1830-1886), Byron (1788-1824), Keats (1795-1921), Stramm (1874-
1915), os vários poetas de Poesia da Recusa e tantos outros inventores para mais
perto da luz. Retina, tímpano – olhar, ouvir. Mais: ver, escutar.
* * *
Nos próximos capítulos analisaremos alguns poemas selecionados a fim de
observar como Augusto de Campos utilizou procedimentos advindos da poética dos
compositores para homenageá-los ou intraduzi-los. Mais uma vez, agora através de
seu projeto estético (e por que não ético?), tentaremos aproximar o poeta da
condição de testemunha terceira e ver como é dada a sobrevida aos músicos por
meio de seus poemas. Estes, que assim como fez com os artigos de sica de
invenção, estão registrados nos suporte livro, que, por sua vez, o tendo ainda
passado pela filtragem da história, nem sucumbido à era dos e-books e da Internet,
permanece tentando atrair os leitores na estante das bibliotecas através de sua
lombada para a revolução. relembramos mais uma vez que “testemunho” se
refere, de forma ortodoxa, aos relatos de sobreviventes (de guerras, de ditaduras, de
dores coletivas) e que, aqui, o termo ganha uma extensão especial até mesmo
como homenagem – e traz consigo, também por extensão, as reflexões sobre
memória e história que a condição de testemunha exige.
61
3 OMAGGIO DE UMA NOTA SÓ, ESCUTANDO “OMESMOSOM”
Aqui pretendemos analisar como Augusto de Campos se utilizou da poética do
compositor italiano Giacinto Scelsi (1905-1988) para homenageá-lo. Não se trata de
mensurar até que ponto tal procedimento é bem-sucedido, mas sim discutir como as
características composicionais do italiano e outros dados são condensados pelo
poeta no poema “omesmosom” (1989/1992) – escrito em letras minúsculas em única
palavra como no sumário de Despoesia (1994) –, permitindo uma leitura crítica que
aproxime Campos, agora na sua realização artística, daquele que escuta, à sua
maneira e vontade, e reescreve em forma de homenagem o que ainda se faz
desconhecido e esquecido. Antes da análise, o olhar passará pelos artigos “Um
velho novíssimo e “Scelsi: o celocanto da música”, presentes em Música de
invenção, como forma de observarmos a importância que o poeta paulista atribui à
obra do músico. Analisaremos apenas a versão impressa na antologia de 1994, pois
esta satisfaz a proposta do trabalho, mesmo tendo conhecimento do trato digital
dado ao poema no CD-ROM Clip poemas, veiculado em Não poemas (2003).
* * *
Ao se observar a produção poética de Campos, vê-se o extenso diálogo que ele
mantém ao longo de seu percurso literário com os músicos inventores. Nas
antologias Viva Vaia (1979; 2001), Despoesia (1994) e Não poemas (2003)
vemos a presença constante de nomes significativos, os mesmos que marcam
presença no livro mosaico-musical. Em Viva Vaia, que abarca a poesia entre 1949-
1979, aparecem as figuras de Anton Webern e John Cage, os dois músicos mais
presentes e influentes na obra do poeta. O encontro com as obras musicais dos dois
compositores se deu ainda bem cedo, em 1952, quando “Augusto lembra de ter
comprado [...] o primeiro registro da obra de Anton Webern em LP, pelo selo Dial, e
ainda outros discos de Cage e Varèse” (BANDEIRA; BARROS, 2002, p. 16, nota
11).
No livro, Webern
aparece na reedição da série Poetamenos, de 1953, através da
Klangfarbenmelodie, “uma melodia contínua deslocada de um instrumento para o
62
outro, mudando constantemente de cor”. O (pré)Concreto faz da(s)
“frase/palavra/sílaba/letra(s)” instrumento(s) e campo de ação para experimentar a
técnica criada por Schoenberg e extrapolada por seu aluno (CAMPOS, 2001, p. 65).
a aparição de Cage é junto à nova inserção de Webern em “Profilograma 2
Hom’cage to webern”, de 1972. Nele, Campos polariza na mesma página “o controle
máximo da estrutura da peça” do austríaco com a poética de indeterminação e
acaso do americano (WISNIK, 2004, p. 245), perfilando-os. O ponto de consonância
dos rostos fica por conta do cigarro que toca a boca-mão em um sugestivo ato de
tragar-pensar. também o “Pentahexagrama para John Cage” (1977), cujo nome
diz algo (mas o papo é para outra bossa). Ainda marca presença a “Intradução”,
de 1974, do trovador Bernart de Ventadorn (c. 1130 – c. 1220).
Em Despoesia, antologia reunindo produção de 1979 a 1993, além dos citados
entrelaçados na rede de “Todos os sons” (1979), junto com o ícone inventivo da
música popular brasileira do final da década de 1950, João Gilberto, Augusto de
Campos convoca o italiano Giacinto Scelsi para sua “nau de linha”. A primeira
alusão é em “omesmosom” (1989/1992), nosso mote, e a segunda na intradução “pó
de tudo” (1993). A sutil presença de Arnaut Daniel (c. 1150 c. 1210), Cole Porter
(1891-1964) e Ventadorn juntos ao poeta Guido Cavalcanti (1250-1300), em “coisa”
(1983/1988), colagem tipográfica, poliglota, multimídia no espaço-página, é mais
som entre letras e imagens – o, para alguns misterioso, verbivocovisual.
em Não poemas, compilação de poemas datados até 2002, temos a citação do
pianista e compositor canadense Glenn Gould em “gouldwebern” (1998-2000), que
dentre tantos nomes interpretava também com a peculiar precisão as obras do
músico austríaco. Outro mencionado, Arnold Schoenberg aparece na intradução
“dodeschoenberg” (2000), cifra pautada para hora futura. No CD-ROM Clip-poemas
(1997/2003), que acompanha Não, ainda encontramos por a figura do francês
Pierre Boulez no morfograma “Cage Boulez” (1997), assim como o mencionado
“João [Gilberto] [Anton] Webern” (1995), e dois relativos à figura de Ezra Pound:
“Pound Maiakovski” (1995) e “[Gertrude] Stein Pound” (1996). Inclusive Augusto de
Campos dedica um artigo, incluído em Música de invenção, somente a comentários
acerca do trabalho do americano na sua faceta de músico. Sob o título de “O
testamento de Ezra Pound: uma antiópera” se desenrola o conteúdo mencionado e
63
ainda o poeta paulista refaz, juntamente com o artigo anterior a ele, no mesmo lugar
de sempre, o morfograma. Estende nas páginas corridas a transformação de Pound
em Stein e vice-versa. Cage ganha voz no interpoema “Caoscage” (1997) e Scelsi
também reaparece na versão digitalizada de “o mesmo som” (1989-1996) – grafia na
versão digital na seção animogramas, com nota esclarecedora para a
compreensão do poema.
Essa pequena revisão tomou por amostragem somente aqueles poemas em que os
nomes dos compositores aparecem citados, homenageados ou intraduzidos, fato
que faz deixar para outra listagem aquelas obras incorporadoras de frases ou de
processos criativos dos artistas sem transparecer a referência direta. Antes de
prosseguirmos, observemos, na própria voz do poeta, em vários recortes de
entrevista, uma coletânea de discursos nos quais Campos aponta a importância da
música para sua obra e sua relação com a mesma, principalmente a erudita
contemporânea. É o ato de fala direto, um testemunho organizado via montagem
sobre a música de recusa:
Num certo sentido, sou um músico que se expressa com palavras. A
influência da música sobre os meus poemas é palpável suponho para
quem souber ouvir entre os signos. (REVISTA CÓDIGO 5, 1981, [s.p.])
A música é para mim uma ‘nutrição’ indispensável. Como a poesia, no dizer
de Pound, está mais próxima da música e das artes plásticas do que da
própria literatura, acho natural que assim seja. Sem Webern, Mondrian e
Maliévitch, eu não teria formulado o ‘Poetamenos’ (também devedor, é
óbvio, de Mallarmé, Pound, Joyce e Cummings). (LACERDA, 2006, p. 4)
[...] Não vejo a mesma tensão criativa na atualidade, a não ser em alguns
casos isolados. Por isso mesmo, bastante tempo tenho-me
concentrado na música (erudita) contemporânea, a mais marginalizada
dentre as artes da modernidade. Especialmente na obra de alguns velhos”
compositores como Giacinto Scelsi (1905-1988), John Cage (1912-1993),
Luigi Nono (1924-1990), Conlon Nancarrow (n.1912 e ainda vivo) que ou
foram redescobertos ou descobriram caminhos a partir da década de 80. [...]
(MACHADO, 1996, p. 213)
A importância da música é obviamente muito grande em meu trabalho, que
começou sob o signo dela. Antes mesmo do lançamento oficial da poesia
concreta no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1956, três poemas
de Poetamenos foram apresentados no Teatro Arena, num espetáculo que
já levava o título de Música e Poesia Concreta, ao lado de Machaut e
Webern, em 1955. O trabalho com Cid Campos, no CD Poesia é risco e nos
espetáculos do mesmo nome, testemunha a continuidade da presença da
música em minha atuação poética. Assim como o recente Música de
Invenção, que tenta alertar para a grande lacuna cultural deste fim de
64
século, que é a paradoxal marginalização da música erudita moderna, da
“música contemporânea”, uma das mais fascinantes aventuras da criação
artística do nosso tempo. (DANIEL, 2000, p. 10)
A seleta acima nos possibilita ratificar a firmeza dos braços que saltam do projeto
(est)ético de Augusto de Campos. Na arte dos sons, eles abarcam para além de
seus escritos compilados em Música de invenção. Outrora, em Balanço da Bossa a
defesa da experimentação e a recusa “ao fácil” marcaram o discurso do poeta, e
como vimos sua aproximação à música contemporânea se juntamente ao início
de seu trabalho poético. Assim, nossa tentativa de ouvir agora entre os signos, ou
melhor, escutar, é ao mesmo tempo uma retificação de certas arestas
demasiadamente dissonantes de um ou outro crítico, e um esforço para amplificar o
coro das análises que, na medida do sensato, leem as obras na e não fora da
intersecção entre poesia e “música contemporânea”. Esse ponto de encontro passa,
aos nossos olhouvidos, pela ação do testemunho terceiro que Augusto de Campos
tem se esforçado em garantir tanto nos textos quanto nos poemas apontados acima,
em grande parte na toada da homenagem, citação ou mesmo intradução. O registro
dos nomes, signos, técnicas composicionais, dados biográficos e outros mais na sua
poesia publicada, seja no livro, no disco, noutro suporte, até digital, é para o poeta
outra forma de manter seu paideuma sonoro ativo e à disposição dos vivos. A nós,
cabe – entre outros movimentos – discuti-lo.
* * *
São dois os artigos dedicados ao compositor italiano e reunidos em Música de
Invenção: “Um velho novíssimo” e “Scelsi: o celocanto da sica”, ambos
publicados no jornal Folha de São Paulo, respectivamente, em 1985 e 1993. Os dois
textos estão na seção designada “Pós-música”. Carole Gubernikoff descreve o teor
dessa parte do livro:
A seção “Pós-música” poderia se chamar de ‘Miscelânea’, se fosse este um
livro mais antigo! Saímos do âmbito dos grandes nomes e temas para
olharmos diversas tendências e obras particulares, que não são menores no
sentido da criação, mas que estabelecem as diversas derivas por onde
anda o pensamento musical. [...] (2004, p. 264-265)
65
No primeiro artigo, Augusto de Campos relata sua aproximação com a obra de
Scelsi a partir do músico e compositor brasileiro Arthur Nestrovski, então estudante
de música radicado na Inglaterra. As trocas de correspondências e fitas contendo as
novidades musicais que saltavam aos ouvidos do gaúcho naquele ano de 1983
traziam Trevor Wishart (1946), Brian Ferneyhough (1943), Denis Smalley (1946),
Philip Glass (1937), entre outros. O poeta destaca no meio das coletâneas de áudio
as fortes impressões ao escutar Quatro Pezzi per Orchestra (ciascuno su una sola
nota) (1959) de Giacinto Scelsi e Studies for player piano de Conlon Nancarrow. Daí,
Campos apresenta aos seus leitores o “esquecido” italiano. Obras, procedimentos
composicionais e discografia disponível são entrecortados pela discussão sobre a
tardia descoberta e até certo culto à figura de Scelsi no início da década de 1980.
Após tentar acesso ao máximo de material sobre o sico a1985, ano em que
publica esse artigo, o poeta traça a hipótese de o compositor ter sido gravado pela
primeira vez apenas após ultrapassar os 70 anos.
A partir de uma comparação sugerida por Morton Feldman entre Giacinto Scelsi e
Charles Ives, inicia-se uma aproximação do italiano à figura do francês Edgard
Varèse, mais pelo aspecto radical na exploração do fenômeno sonoro nas duas
obras do que pelos aspectos biográficos, principalmente no campo religioso. Vale
lembrar também a menção dada ao suíço-baiano Walter Smetak e sua postura
inventiva muito próxima à do músico italiano, com destaque para o trato com o
microtonalismo e o misticismo. Outro ponto importante é a visão dada por Campos
da música de Scelsi como uma prefiguração, por analogia, do minimalismo da
década de 1970, o qual se baseava muitas vezes no trato monocórdico e na
“aparente simplificação” do discurso sonoro (CAMPOS, 1998, p. 176). O italiano
partiria frequentemente da monodia associada ao trato microtonal para mergulhar na
profunda exploração do som em busca de seu “desnudamento”.
A saber, essa prefiguração vista por Campos é pertinente, porém de maior
importância e mais palpável averiguação é a curiosidade e a admiração por bem
como a influência de Scelsi sobre alguns compositores franceses da década de
1970 Michäel Lévinas (1949-), rard Grisey (1946-1998), Tristan Murail (1947)
que formariam o grupo iniciador da música espectral, vertente importante da
segunda metade do século XX. Das raras execuções de suas obras em vida, em
66
1982 no Ferienkurse für Neue Musik, em Darmstadt na Alemanha, teve parte delas
reconhecidas e apresentadas no principal evento de música contemporânea do
mundo desde 1946, conforme aponta sua biografia disponível no site Brahms, base
de documentação sobre música contemporânea mantida pelo IRCAM.
Ao final do artigo de 1985, o poeta traz dados curiosos sobre o músico, sua aversão
à fotografia pessoal e sua marca: a assinatura com um “singelo signo zen”
(CAMPOS, 1998, p. 176). O texto vem acompanhado, como um “prefácio”, do trecho
inicial da partitura da primeira peça de Quattro Pezzi per Orchestra (ciascuno su una
sola nota) traduzido por Campos como Quatro Fragmentos sobre uma Nota
(CAMPOS, 1998, p. 172; 174) –, sobrescrito com o símbolo-assinatura do
compositor. A página posterior ao fim do artigo é encarada como um interlúdio para
o próximo, e nele constam os poemas publicados em Despoesia “omesmosom”
e a intradução “Pó de tudo”, e seu respectivo manuscrito original –, a partitura de
Rotativa (1930), assim como o mesóstico de John Cage dedicado ao italiano e uma
fotografia de sua escultura produzida na década de 1960. Campos monta, nessa
passagem entre um e outro texto, um portifólio de Scelsi, apresenta suas várias
vertentes artísticas, mantendo o leitor informado, visualmente, de tudo que foi ou
será expresso em palavras, além de reiterar sua homenagem ao compositor através
dos poemas.
“Scelsi: o celocanto da sica”, de 1993, foi publicado na Folha de São Paulo. O
poeta inicia relembrando palestra proferida em Roma sobre a poesia concreta dois
anos antes e a repercussão inesperadamente interessante da citação de Scelsi
durante sua fala. Na sequência passa em revisão seu artigo de 1985 e, após falar da
admiração de John Cage, György Ligeti (1923-2006), Iannis Xenakis (1922-2001) e
Morton Feldman pelo italiano e de sua postura de desprendimento do prestígio
artístico, similar ao apresentado pelo pianista Glenn Gould (1932-1982), Campos
aponta novas gravações da obra de Scelsi após sua morte em 1988. Junto à
revisão da discografia seguem comentários sobre os procedimentos composicionais
das obras registradas em disco com destaque para os Cantos de Capricórnio
(1962/1972), Khoom (1962), Konx-om-pax (1969) e dois quartetos, os de 4 (1964)
e 5 (1984).
67
O Concreto destaca também o envolvimento do compositor com a filosofia oriental,
cita as obras literárias e sobre arte e teoria musical de Scelsi, sempre
acompanhadas de pequenos comentários acerca dos discursos nelas contidos,
aponta sua fixação pelo número oito e reproduz em português, ao final do artigo, as
oito proposições do italiano sobre a vida e a arte reunidas no livro Octólogo (1987).
Salientamos a destreza de Campos ao chamar, no título, o compositor de “celocanto
da música”. Como o mesmo explica no corpo do texto, Scelsi compôs a peça
Coelocanth (1995), o efeito da “sutil variação vocálica (coelo em lugar de coela)
transforma em ‘canto celeste’ o nome do ‘celacanto’, peixe pré-histórico que
julgavam extinto [...]” (1998, p. 182). Os hábitos “noturnos e solitários do animal, de
mundo sensorial elétrico totalmente estranho aos seres humanos”, chegam a ser
comparáveis ao exotismo comportamental de Scelsi, chamado por Campos, no
aspecto musical de “o mais antioperístico, o mais antiitaliano dos compositores
italianos” (1998, p. 173). Decerto entre a e o está o sico, “extinto” para grande
parte do público da música de concerto, de poética celeste, ou, como disse Aguilar,
de “dimensão ‘religiosa’ ou transcendente” (2005, p. 302). no título do artigo o
poeta aproveita a máxima exploração semântica com a mínima modificação gráfica
realizada pelo músico inscrevendo isomorficamente na palavra a poética scelsiana
do som.
* * *
Observamos o poema de Henri Michaux (1899-1984), traduzido por Daniela Osvald
Ramos e publicado na Zunái, revista de poesias e debates, veiculada por meio
virtual:
O tempo mais propício para nascer
não era
não é hoje
A Torre da Morte se ergue
já se vê de todos os lugares
não haverá semelhante
Em um círculo, um círculo imensamente amplo
os ciclos acabam
As vítimas estarão lá, sem tardar, presentes.
Simultaneidade sempre tão notável
dos sacrificados e dos armados.
(MICHAUX, 2010)
68
A figura da morte reforça a existência sincrônica do que podemos enxergar nas
diversas dualidades: vítima-algoz, sacrificado-armado, vitorioso-derrotado, entre
tantas; fato é que a história oficial e a dos esquecidos caminham sempre lado a lado.
Michaux, nascido na Bélgica, passou grande parte da vida radicado em Paris. Era
escritor e pintor. Na sua poética o traço principal partiria do abandono do significado
cedendo espaço para a plasticidade dos signos, logo muitas vezes se afastando do
processo de escrita. A obra de Michaux foi alvo de discussão e apreciação na
Bienal de Arte Contemporânea Latinoamericana, realizada em Porto Alegre no ano
de 2009. O texto do site oficial em dado momento aproxima sua poética da do
compositor americano John Cage:
Tanto Michaux como John Cage preocuparam-se, das mais variadas formas,
em propor práticas que permitissem responder, ou confrontar, as convenções
e hierarquias preponderantes da palavra, por um lado, e da estrutura musical,
por outro. Ambos permitiram a entrada do não previsível nas suas obras e
privilegiaram o presente e o fluir do próprio processo, e não a necessidade de
uma obra terminada.
O belga, nessa perspectiva, criou vários poemas visuais, um dos quais é abaixo
apresentado. A obra não intitulada, data de 1960 hoje se encontra no MoMA, The
Museum of Modern Art, em Nova Iorque, e é possível ser acessada no site da
instituição –, e faz saltar à vista a concepção de Michaux:
Figura 2 – Sem título, Henri Michaux (1960)
Fonte: site do MoMA
69
Figura 3 – Número 32, Jackson Pollock (1950)
Fonte: site Jackson Pollock
David Sylvester observou, no pós-escrito do ensaio “Pollock II [1999]”, em Número
32 (1950), obra do pintor estadunidense Jackson Pollock (1912-1956), uma relação
de oposição em relação à poética do escritor belga sob a perspectiva da
expressividade na recepção do quadro pelo público. O ensaísta afirma: “isso faz
dessa obra a antítese de um Michaux, onde as marcas são mais expressivas
quando vistas como vestígios de figuras em movimento: em Pollock as marcas são
mais expressivas quando vistas como vestígios de sua feitura” (SYLVESTER, 2006,
p. 548). Para “ver” a marca do dripping gotejamento de tinta sobre a tela esticada
no chão de Pollock é necessária se afastar de qualquer relação imagética, fazer a
manutenção da mente livre. É a busca da ação do pintor, escutar seu ato de fala
artístico no momento da realização da obra. A partir da fala de Sylvester se torna
visível na obra de 1960 de Michaux uma caligrafia que faz, livre das convenções e
próxima de um esboço dos movimentos humanos, na sua relação contrapontística e
espacial no branco do suporte, saltar aos olhos do leitor movimentos em variadas
direções. Não hierarquia, não lugares semelhantes, “apenas um círculo
imensamente amplo” no qual convivem todas as simultaneidades. Todos os sins,
todos os nãos, todos os ruins, todos os bons.
* * *
70
O poema “omesmosom” (1989/1992) aparece pela primeira vez no livro Despoesia
na seção “Despoemas”. Sua segunda reprodução é feita em Música de Invenção, no
interlúdio entre os artigos. Em Não poemas, é novamente reproduzido, agora em
versão digital, no Clip-poemas, como apontamos anteriormente. Um subtítulo o
acompanha sempre, seja em português, “homenagem a Scelsi” (CAMPOS, 1998, p.
178), ou em italiano, omaggio a Scelsi (CAMPOS, 1993, p. 120; 2003).
“Omesmosom” foi apresentado pelo poeta na Konx om pax omaggio a Scelsi,
exposição em homenagem ao músico realizada no Centro de arte contemporanea
de la Spezia, na Itália, em novembro de 2005. É mister observarmos o poema:
(CAMPOS, 1994, p. 121)
No sumário de Música de invenção, o poema aparece com o título de “o mesmo som
(homenagem a Scelsi)”, assim, como frase. Quanto à escrita em palavra única,
“omesmosom”, ao sumariá-la Campos provoca seu leitor. A circularidade já se
apresenta clara ali, pois a palavra em si no poema se realizará enquanto verso, para
então ser possível a compreensão do porquê de sua forma em um conjunto de
grafemas no início de Despoesia. Estamos falando do compositor do mesmo som,
singular e angular, como o verso-palavra “omesmosom” em sua compactação visual
na porta de entrada do livro.
Escutamos ecoar na pronúncia da palavra-valise o contraponto entre a nasalização
sonora provocada pela consoante “m” e o ruído sibilante quase circular do “s” que,
juntos, fortalecem o leve pulsar da vogal “oe, por conseguinte, a transformação do
“mo” no “om zen-budista reverberante ali marcado (“
omesmosom”), funcionando
como uma citação sonora daquilo que faz parte da poética do compositor do
71
celocanto. É o Concreto atuando sobre o material utilizado no poema (“o”, “mesmo”,
“som”) para obter essa nova palavra, explosão/exploração máxima do sonoro, como
em Scelsi. O poeta, logo no sumário, convida o leitor à escuta.
Antes de seguirmos é necessário alertar: o olhouvido que percorre Despoesia é
diferente do que circula pelas Folhas do jornal. É ainda mais especializado, menos
curioso, afinal foi confirmada pelo próprio autor a baixa demanda da poesia “de
vanguarda, experimental ou de invenção” no mercado por diversos fatores. Aquele
que leu sobre Scelsi no impresso, seja ele leitor primário ou não, não pode visualizar
o poema, pois sua feitura é posterior às publicações dos artigos na Folha, mas ao
menos foi palpável conhecer a poética do italiano. Somente quem recorre ao Música
de invenção é que tem o privilégio de em um curto espaço de páginas ler e ver
Scelsi por vários ângulos. Mesmo assim continuamos a circular por um público a
tribo de Mallarmé muito restrito numericamente. O testemunho de Campos ainda
esbarra na falta de um volume significativo de leitores não especialistas, não
constitui uma memória coletiva visível e significativa, apesar de seu incontestável
lugar no cânone da poesia brasileira. Mas contribui para a formação de memórias
pessoais, que por sua vez tocam nos seus alto-falantes a sobrevida daqueles (e a
do próprio Augusto de Campos enquanto escritor) que, para o poeta e hoje aos
poucos começam a ser reconhecidos no círculo de especialistas em música – no ato
da sua escritura, não constavam no bojo da história.
Andreas Huyssen abre seu texto “Monumentos e memórias do holocausto numa
idade da mídia” publicado em Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos,
mídia (2000) – discursando a respeito da rememoração, a qual define como o ato de
dar forma às nossas ligações com o passado, e seus modos definem o presente.
Sociedades e indivíduos necessitam do passado “para construir e ancorar nossas
identidades e alimentar uma visão do futuro” (HUYSSEN, 2000, p. 67). O autor,
citando Freud e Nietzsche, aponta para o quanto pode ser escorregadia e suspeita a
memória pessoal, “sempre afetada pelo esquecimento e pela negação, a repressão
e o trauma, na maioria das vezes ela vem atender à necessidade de racionalizar o
poder” (HUYSSEN, 2000, p. 68).
72
É interessante lembrar que um dos fatores para a “incompreensão” da poesia de
Augusto Campos, ou melhor, da tríplice concreta, “pela crítica e pelos próprios
poetas militantes” é a acusação de que “o movimento [concretista] consiste em
proclamar-se ponta de lança da História, não importa em qual raia, e ao mesmo
tempo suprimir as referências que permitam enxergar a pretensão em sua realidade”
(SCHWARZ, 1987, p. 62). A celeuma entre o poeta concreto e o crítico Roberto
Schwarz em torno do poema “Póstudo” publicado no “Folhetim” da Folha de São
Paulo, em 27 de janeiro de 1985 (depois seria republicado em Despoesia) é um
marco histórico dessa contestação. A constituição de um paideuma é vista pelos
antípodas apenas como cimento para os dias de espírito radical, a base da pirâmide
em que no topo estaria a própria prática concretista. Ao descrever as facetas do
poeta, Schwarz tenta desmontá-las e demonstrar o teor de forte regressão na
postura exposta nas palavras de “Póstudo”. Assim escreveu:
Como o objetivo da transformação é “tudo”, não sabemos nada a seu respeito
[do poema]. Por outro lado, e é onde queríamos chegar, o poema funde em
proveito próprio as autoridades do poeta e do crítico, dos discursos poético e
teórico. Acredita-se ou não nas palavras e na obra de gigante que elas
proclamam; mas como duvidar da autoridade do crítico-historiador, a outra
face do poeta, que nos assegura, dentro do poema e nas suas mesmas
palavras, que o que vale é o que está dito? (SCHWARZ, 1987, p. 63)
É desnecessário responder à pergunta de Schwarz aqui, mas “é” do meio do
discurso que detectamos “o local” “onde queríamos chegar”. Do centro surge essa
leitura interessante que o crítico faz do poeta. Demarca um discurso poético e um
teórico, ao segundo associa a face do crítico-historiador. Os dois convergem para o
local do ataque de Schwarz, a suposta autoridade dos discursos. Fora da celeuma é
importante observar que o ponto de intersecção das facetas é o próprio projeto
estético anunciado por Arnaldo Antunes na orelha de Não, ao qual associamos
ainda a questão ética que o percorre também. Essa figura do crítico-historiador é
análoga à do histori(c)a(ta)dor, anti-historicista, em moldes benjaminianos. Schwarz
nos ajuda a esclarecer o propósito do trabalho: observar nos artigos e na poesia a
postura análoga ao da testemunha terceira, do testis, em Augusto de Campos, com
ênfase em relação à sua defesa da música contemporânea, mesmo que seja a sua
visão, o seu paideuma, a sua memória pessoal, com toda a sua “necessidade de
racionalizar e conservar o poder” tendo o conceito de “invenção” como mola
propulsora.
73
Retomando Huyssen, após apresentar o caráter da memória pessoal, o autor passa
a tratar da coletiva e infere que esta não é “menos contingente nem instável; de
modo nenhum é permanente a sua forma” (HUYSSEN, 2000, p. 68). Suas bases
estão sempre sujeitas a novas reconstruções, sutis ou não. Para Huyssen a
memória de uma sociedade é sempre uma negociação no “corpo social de crenças e
valores, rituais e instituições” (HUYSSEN, 2000, p. 68). O lugar destinado à
memorização na sociedade moderna é o espaço público como o museu, o memorial
e o monumento. A ideia se conclui com uma frase emblemática: “Mas a permanência
prometida pela pedra do monumento está sempre erguida sobre a areia movediça”
(HUYSSEN, 2000, p. 68); assim como a escrita de um livro, o suporte menos
efêmero, não é garantia de que na próxima negociação social seu lugar na parede
da biblioteca não seja preenchido por outro e mais uma obra seja soterrada nas
ruínas da história até ser resgatada novamente.
Márcio Seligmann-Silva, em “Reflexões sobre a memória, a história e o
esquecimento” (2003), ressalta a importância circunstancial de uma memória mais
abrangente, que abarque tanto o teor pessoal quanto o coletivo:
Se o século XIX sofreu de “histórias demais”, a nossa pós-modernidade sofre
de “fim da história”, de “fim da temporalidade”, em suma, parafraseando Vidal
Naquet, ela sofre de inexistencialismo”. A tarefa da memória deve ser
compartilhada tanto em termos na memória individual e coletiva como
também pelo registro (acadêmico) da historiografia. (SELIGMANN-SILVA,
2003, p. 63)
O que hoje pertence ao campo dos esquecidos, quando muito, da memória pessoal,
pode mais à frente se tornar memória coletiva, mas para isso tem que aparecer, e
cabe ao crítico-historiador o ofício de desenterrar. É o que Campos vem fazendo. A
nossa aproximação por analogia aos termos da literatura de testemunho é
justamente porque nela a memória pessoal, o testemunho individual ganha potência,
revitalizando olhares. No nosso caso, quem escuta é Augusto de Campos. Para
quê? Realizar-se dentro da “ideologia do si mesmo”? Parece-nos que não e suas
falas na introdução dos livros corroboram o imperativo de lermos o poeta dentro de
um projeto (est)ético de “reescritura” da música de recusa no presente, assim como
faz com a literatura. Rememoremos Música de invenção: “quem quiser que aceite
74
esse escândalo-recorde de desinformação. Este livro o denuncia e o renega” (1998,
p. 10). O que o poeta faz é entrar pela negatividade em uma espécie de negociação
social constante, que por enquanto, vem sendo mantida em stand by, mesmo vinda
de um autor já consagrado da literatura brasileira.
* * *
O poema de Augusto de Campos consiste em um único verso tetrassílabo, “o / mes /
mo / som”, sobreposto de forma circular no pentagrama, signo de cinco linhas
horizontais, no qual se grafam as notas musicais. Gonzalo Aguilar aponta que o uso
da forma espiral na poética de Campos aparece após o Concretismo e sua prática
possibilitaria continuidade e efeito hipnótico, lançando o sujeito-leitor no centro do
poema. Assim, a forma espiralada seria corriqueira nas artes de grande massa para
obter tais efeitos (AGUILAR, 2005). Sobre “omesmosom”, o escritor argentino afirma:
[...] Esse efeito [encantatório] é o mesmo que havíamos observado nas
espirais de seus poemas, embora aqui tenha sido obtido mediante o círculo,
único e nu, mínimo e enigmático de ‘O Mesmo Som’. Signo limite, o círculo
(o zero ou a letra ‘o’) sintetiza o impulso metafísico dessa poética da
angústia. (AGUILAR, 2005, p. 302)
A tal poética da angústia será contemplada em outro capítulo; o elemento círculo
retomaremos mais adiante. Kenneth David Jackson, no ensaio “Augusto de Campos
e o trompe-l’œil da poesia concreta” (2004), publicado na coletânea Sobre Augusto
de Campos, coloca o poema “omesmosom” na condição do olhar que ele chama de
“olho zen”. Afirma que o poeta paulista constrói uma “leitura musical zen”.
Aproveitando-se do trompe-l’œiltécnica usada principalmente nas artes plásticas e
na arquitetura para criar ilusões ópticas através de jogos de perspectiva –, Jackson,
além de retomar a fala de Aguilar sobre a circularidade, problematiza a posição das
letras em relação ao que ele chama de “rede de pequenas linhas perpendiculares
que parecem representar campos magnéticos [...](JACKSON, 2004, p. 32). Atribui
ainda uma possível homenagem ao poema “Tensão” (1956), publicado em Viva
Vaia.
75
(CAMPOS, 2005, p. 95)
A obra da fase concreta ortodoxa na sua espacialização, montagem e fragmentação
aciona uma pluralidade das leituras, e assim a exploração semântica, sonora e
visual da palavra tensionada no ângulo interseccional entre dois quadrados.
Podemos ler sim o “sem som” em relação a “omesmosom” – e vice-versa. Esta lá, no
quadrado à direita, em seu ângulo direito inferior. Essa alusão do crítico se pela
possibilidade de uma leitura no sentido anti-horário do verso devido à sua posição
circular: “o som sem o som”. Ratificamos, mas não nos parece ser a mais instigante.
A referência a “Tensão” é, decerto, pertinente, podendo-se observar também que
todos os grafemas formadores do verso em homenagem a Scelsi estão contidos no
poema de 1956.
De mais importante Jackson aponta um impulso metafísico implícito quando se
decupa o poema em “só” e “os mesmos”. A excêntrica personalidade de Scelsi e a
sua obra solitária podem realmente ser reveladas nos mesmos grafemas
anagramatizados em outras palavras. É possível desvelar a face de Scelsi através
dessa leitura de Jackson, assim como visualizar a poética do italiano calcada na
investigação sempre de um solitário som, repetidas vezes, iniciada no período do
internato, pós-neurastenia, como mostra a passagem:
Internou-se numa casa de saúde, mas os médicos, depois de algum tempo,
incapazes de achar cura para o seu mal, deram-no por desenganado,
registrando como sintoma de agravamento da doença o seu hábito crescente
de tocar, por horas, ao piano a mesma nota, até que se extinguisse.
(CAMPOS, 1998, p. 185)
76
Iniciado no fazer musical pelo sistema de composição do pianista russo Alexander
Scriabin (1872-1915), passou por uma fase serialista, que logo abandona a partir
dos anos 1940, quando passa a escrever através “da politonalidade e de estilos
mais ecléticos, como o neoclassicismo” (ZUBEN, 2005, p. 119). A internação é o
ponto inicial dessa exploração sonora, marca primordial de sua obra. Aliado ao
impulso metafísico, Jackson complementa o raciocínio explicando a presença dos
grafemas e do pentagrama: “[...] enquanto a pauta sugere a entoação do ‘om’
budista, encantação cujo propósito é esvaziar a mente, livrar-se da personalidade e
das emoções, para contemplação e unificação com o Nirvana, a perfeição”
(JACKSON, 2004, p. 32-33). Sobre o esvaziamento mental, Scelsi, em seu
Octólogo, no tópico dois diz: “Não pensar / deixar que pensem / os que precisam
pensar” (CAMPOS, 1998, p. 186). Pois sigamos pensando. Como o músico italiano,
a partir da década de 1950, abraça a filosofia oriental e se torna zen-budista,
ver/ouvir “om” nas letras, de todo, não é um equívoco (engano), mas sim um
equívoco (jogo de palavras). Mas mais uma vez é preciso alargar a questão.
Campos em Música de invenção, ao analisar as gravações surgidas após a morte do
compositor, chama a atenção para uma das peças de destaque da obra scelsiana:
Impressionante é também Konx-om-pax, de 1969, para coro e orquestra (o
título significa "paz" em assírio antigo, sânscrito e latim), onde a laba
sagrada do budismo, Om, entoada sobre o lá, emerge e submerge
majestosamente das justaposições corais em meio a camadas de sons
interdeslizantes produzidas pelos glissandos e cromatismos massivos dos
grupos de instrumentos. (CAMPOS, 1998, p. 182)
Mesmo sendo “omesmosom” uma alusão a outra obra de Scelsi, papo mais para
adiante e fato despercebido por Jackson e Aguilar, é possível atinar com uma alusão
implícita a Konx-om-pax. A entoação do “om” no poema é a mesma que serviu de
matriz composicional para a peça, que por sinal, não passou a esmo no ouvido do
crítico-historiador. Assim é visível que as relações internas da obra explodem em
direção às significativas alusões à vida e obra do italiano. Campos faz do poema
uma tensão de fatos impressos em uma única página e fornece caminhos diversos
ao leitor para desvelar a face de mais um inventor homenageado.
* * *
77
O som co /nstr / ruíd /
o / som / dest / ruído
Augusto de Campos
Gonzalo Aguilar, como apontamos há pouco, chama atenção para a leitura do
círculo no sentido anti-horário, “o som sem o som” (AGUILAR, 2005, p. 303).
Observada a análise de Jackson sobre o novo verso que surge do seu giro para a
esquerda, arquitetamos a nossa leitura. O claro reconhecimento aludido ao italiano
no poema faz da leitura anti-horária uma antítese, pois a nova frase é inversamente
proporcional à poética de Scelsi. O som sem o som” poderia simbolizar a ação do
ruído: a ausência de som gera o silêncio (sem o som) que, por sua vez, ao ruído
(o som) a oportunidade de se realçar no ambiente sonoro. Desse modo, o poeta cria
uma tensão no sentido anti-horário. E, para melhor esclarecimento, transcrevemos
um trecho de Campos, citando Heinz-Klaus:
[...] Para o crítico Heinz-Klaus Metzger, ainda que tivessem em comum a
inspiração budista e a disciplina do ego, Cage e Scelsi estariam nas
antípodas um do outro. Cage, acolhendo de bom grado, em suas obras
mais provocativas, a intromissão de quaisquer ruídos eventuais; Scelsi, na
busca obstinada do som, rejeitando todas as interferências a ele exteriores
[...] (CAMPOS, 1998, p.184)
O crítico-historiador segue o texto comentando casos da relação de Scelsi com os
sons externos, mundanos. O som do gotejamento de água o fizera passar uma
noite inteira trancafiado em um armário de hotel. O ruído nunca participou do mundo
sonoro do italiano, portanto, ler “o som sem o som”, conforme é proposto ativa uma
contraposição à obra do sico. Para Jonh Cage, o silêncio é impossível e tal
afirmativa é comprovada por sua famosa experiência na câmara anecóica. É célebre
também a frase do estadunidense: “nenhum som teme o silêncio que o ex-tingue e
não silêncio que não seja grávido de som” (CAGE apud CAMPOS, 1985, p. XIV).
O músico faz do silêncio seu campo de possibilidades de onde todos os sons são de
fato uma possibilidade musical. Compreender sua fala é dar-se à open-mindedness,
renunciar ao desejo de ordenação e progressão do material, para se tornar receptivo
à experiência (TERRA, 2000, p. 64). A leitura anti-horário é a anti-poética de Scelsi:
é Cage; ambas, embora influenciadas pelo zen-budismo, verso que, revindo,
78
diverge. Tomam caminhos diferentes. De certo modo, é também uma des-
homenagem.
A saber, a busca do som, minuciosamente, a “perquirição do som” (CAMPOS, 1998,
p. 244) e a apropriação do silêncio/ruído, no processo composicional, são duas
importantes forças da música de invenção da segunda metade do século XX. O
compositor americano escreveria em 1992 um mesóstico de oito versos em
homenagem ao excêntrico italiano. Abaixo o reproduzimos o mais próximo possível
do fac-símile apresentado em Música de invenção:
hiS
musiC mov is at
th center
a circlE N
of siLence
and
e m (Sound
sound)sI lence and
(CAGE apud CAMPOS, 1998, p. 176)
A diagramação da segunda página do interlúdio apontado entre os dois artigos sobre
Scelsi publicados em Música de invenção põe lado a lado “o mesmo som
(homenagem a Scelsi)” e o mesóstico. A perceber, o ano de conclusão dos dois
trabalhos coincide, porém esse dado não é suficiente para nos garantir que Campos
conhecia de fato o escrito de Cage antes de terminar o poema. Mas de 1998, seis
anos depois, é possível observar que esse paralelismo na página 178 (oito!) o é
gratuito. Emparelham-se duas homenagens, dois “monumentos” à memória do
italiano, Campos e Cage tratam de pôr o homenageado no centro do mesóstico ou
da pauta, nesta sutilmente em verso circular. Mas é o poeta paulista que, na
perspectiva vista acima, faz da sua obra não uma singela homenagem direta a
Scelsi, mas também, na des-homenagem, marca no poema a presença daquele que
ao seu lado na página do livro mosaico musical também registraria sua admiração
pela música proveniente do centro (ou círculo) do(e) silêncio e do(e) som, som-
silêncio scelsiano e sua inigualável “Tensão”, todos, enfim, se perguntando onde se
tem som e onde não.
79
* * *
A nota explicativa da elaboração do poema em formato digital de Cilp-poemas diz:
“um tributo ao compositor do som só. Giacinto Scelsi (1905-1988), autor de Quattro
pezzi su una nota sola’ (1959)” (CAMPOS, 2003). Campos desvela outra pista
significativa. A peça mais representativa da obra de Scelsi, assim como Konx-om-
pax, também aparece citada no poema através do procedimento composicional que
o poeta adota para construir “omesmosom”. Quattro pezzi su una nota sola nome
como aparece catalogado no site oficial da Fondazione Isabella Scelsi (que, apesar
de levar o nome da irmã, é em memória ao compositor) e não como aparece em
Música de invenção – é construída a partir de quatro notas diferentes: fá, si, lá bemol
e lá. Nesta ordem, temos quatro peças erigidas, cada uma delas, sobre um som
de altura definida (ZUBEN, 2005, p. 121). Campos, citando Halbreich, em “Um novo
velhíssimo”, fala sobre a composição:
[...] os quatro movimentos dessa composição, feita para orquestra de
câmara de 26 músicos, giram cada qual em torno de uma nota [...], variando
apenas a entonação através de microintervalos e glissandos, a articulação,
a densidade, o timbre instrumental e a dinâmica. O resultado para o ouvinte
é uma música estática e extática, de sons prolongados, que se deslocam
uns dos outros numa espécie de continuum sonoro de ressonâncias
nostálgicas, como uma sinfonia de muitos navios partindo para terras
distantes. Uma música meditativa, porém, perturbadora, de quando em
quando, por inflexões lancinantes, que lhe imprimem alta tensão dramática:
como se fosse feita dos gemidos do Tempo e da Memória. (CAMPOS,
1998, p. 175)
Retomando o verso, lembremos que ele é tetrassílabo: o / mes / mo / som. Em
quatro se parte, cada sílaba com seu som, assim como as Quattro pezzi. Caso
pensemos na única palavra sumariada, “omesmosom”, veremos que esta se
constitui de quatro grafemas apenas: o, m, e, s. Não teremos a audácia de propor a
soma do número de sílabas com o de grafemas, pois resultaria em oito, número pelo
qual Scelsi, como vimos, mantinha grande fixação.
* * *
O continuum sonoro ressonante de Quattro pezzi su una nota sola e a figura de
Scelsi permaneceram submersos no continuum da história a suas inflexões
80
lancinantes da obra e do músico despertarem o interesse dos compositores
franceses de meados de 1970 e do poeta brasileiro na década de 1980, e, a partir
de então, passaram a garantir seu espaço no tempo e seu lugar na memória
(memória da música e do poema: este estudo o que quer é ecoar o verso e o som
de Augusto e de Scelsi). Márcio Seligmann-Silva fala em “Catástrofe, história e
memória em Walter Benjamin e Chris Market: a escritura da memória” (2003) sobre
uma nova historiografia a partir da ótica benjaminiana baseada na memória:
Contra o Historicismo que apenas reproduz a alienação entre a experiência
e o indivíduo moderno –, Benjamin reafirmou a força do trabalho da memória:
que a um tempo destrói os nexos (na medida em que trabalha a partir de
um conceito forte de presente) e (re)inscreve o passado no presente. Essa
nova “historiografia baseada na memória” testemunha tanto os sonhos não
realizados e as promessas não-cumpridas como também as insatisfações do
presente. Essa reescritura se em camadas: ao invés da linearidade limpa
do percurso ascendente da história (do “Ocidente”, do “Geist”) tal como era
descrita na historiografia tradicional, encontramos um palimpsesto aberto a
infinitas re-leituras e re-escrituras. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 389)
Augusto de Campos, tanto na sua faceta poética quanto de crítico-historiador, em
“omesmosom” ajuda a reescrever o passado pelo presente, testemunha e constrói
um poema em formato de palimpsesto aberto a diversas leituras a partir dos
elementos verbivocovisuais ali implementados. É Scelsi por todos os lados, sendo
lido e relido na História. A homenagem em prol da memória.
* * *
Outra sugestiva ligação com os aspectos biográficos do músico italiano se encontra
na formulação em italiano do subtítulo na primeira versão. Henri Michaux morreu em
1984. Assim como o pintor Salvador Dalí (1904-1989), foi grande amigo de Giacinto
Scelsi. A ele o compositor dedicou um quarteto de cordas, o último, escrito no ano
posterior à ausência do belga. Augusto de Campos, durante seu artigo de 1993,
surpreso, decupa com eficácia as aplicações cnicas realizadas por Scelsi na
composição:
81
Mais surpreendente ainda é o Quarteto n.5, a última criação de Scelsi,
terminada em 1984 e dedicada à memória do poeta Henri Michaux, seu
grande amigo, falecido nesse ano. A composição desenvolve um
procedimento que Scelsi instaurara em Aïtsi (1974), para piano amplificado
eletronicamente, que teve o seu primeiro registro fonográfico no mesmo ano
(1990), no mencionado CD da etiqueta ADDA. Durante sete minutos, o
mesmo som (a nota fá) é reiterado 43 vezes, em variações que vão do som
simples até os agregados e clusters, com alternâncias de ataque e
articulação, duração e intensidade e múltiplas ressonâncias - sons e ruídos
da mesma matriz, que nos atingem como gestos primais, mantras inusitados
como que a sinalizar o conflito entre a afirmação da vida e a opacidade da
morte. "Uma estela funerária austera e nua, como talhada em bronze, de
efeito perturbador, que se pode também considerar como o próprio Requiem
de Scelsi", nas palavras de Harry Halbreich, um dos mais abalizados
exegetas de sua obra. (CAMPOS, 1998, p. 182)
O Quarteto n°. 5 fora executado no dia 12 de dezembro de 1985 em evento
organizado por Scelsi também para prestigiar a memória de seu amigo. O
acontecimento se deu sob o título de Omaggio a Henri Michaux como visualizamos
no cartaz em fac-símile abaixo:
Figura 4 – Cartaz fac-simíle de Ommagio a Henri Michaux
Fonte: site oficial de Scelsi (Fondazione Isabella Scelsi)
Sendo claro o conhecimento que Augusto de Campos tinha da peça e da relação do
compositor com o escritor belga, podemos deduzir que o subtítulo em italiano possa
aludir e resgatar não só a nacionalidade de Scelsi, mas a própria homenagem
realizada pelo músico ao amigo. Omaggio a Scelsi é também a Michaux, cujo
82
quarteto dedicado a este também é visto como a própria estela do músico, conforme
sugere Halbreich.
* * *
Uma nota: o nome Scelsi, por si , está imerso no silêncio (silence),
anagramatizado. O silêncio fez dele e nele um mu(n)do, avesso a entrevistas,
aparições públicas e fotografias. O compositor adotaria um símbolo que sempre
aparece junto à sua assinatura, “o singelo signo zen correspondente ao sol (um
círculo sobre uma linha)”, “a sugerir tanto o nascer como o r-do-sol” (CAMPOS,
1998, p. 176; 180). No poema, ao observarmos a vogal “o” inferior, veremos que
Campos, sutilmente, insere o símbolo zen no poema, a letra azul sobre a última linha
vermelha. O próprio círculo formado pelo verso também representa esse signo zen
dada a sua posição em relação à linha inferior da pauta. O círculo tem grande
representatividade na obra de Scelsi (e, claro, de Augusto de Campos),
principalmente nos textos literários em que se faz presente com forte representação
simbólica, pois o músico parece associá-lo ao infinito. Em rubrica do dicionário
online Houaiss, encontramos a seguinte definição para círculo: “na notação musical
medieval e renascentista, sinal gráfico que indicava a perfeição do tempo”. Scelsi,
quanto ao som, acreditava ser esse “[...] também esférico, quando o ouvimos
acreditamos existirem somente duas dimensões, altura e duração. Sabemos que
uma terceira, profundidade, existe, mas de certo modo, esquiva-se” (SCELSI apud
SIQUEIRA; PALOMBINI, 2005, p. 805).
Figura 5 – Assinatura de Scelsi e poema “omesmo som”
Fonte: AGUILAR, 2005 (p. 303); CAMPOS, 1994 (p. 121)
83
Ao observamos o poema de forma mais minuciosa, veremos que Campos também
utiliza com argúcia sutil o aspecto da profundidade na construção do mesmo na
folha. É possível ver sua composição em três camadas sobrepostas, a primeira
constituída pelas letras, a segunda pela “rede” e, ao fundo, cabe à pauta o terceiro
plano. Porém, a disposição do verso (circular), a forma como ele está posicionado
em relação ao signo musical (como “notas musicais”) e as cores colocam-nos, em
uma primeira leitura, muito mais propensos a enxergarmos as relações
bidimensionais do poema.
Quanto às cores, na versão impressa, o escritor paulista parece retomá-las
diretamente de Poetamenos (1953). As letras e a “rede”, em azul cor pura e fria
contrastam com o vermelho – cor pura e quente, destinada à pauta. As cores
primárias ali empregadas ajudam o leitor a localizar os elementos constituidores do
poema e, especulativamente, poderíamos até tentar achar possíveis associações
com a correspondência cor-som criada por Scriabin, compositor russo, visto que
Scelsi foi iniciado no sistema composicional do músico conforme apontamos.
Detenhamo-nos, por ora, na seguinte questão: a disposição da frase. falamos
sobre a questão da circularidade, mas não sobre os pontos na partitura sobre os
quais ela foi erguida. um problema: não clave na pauta para determinarmos
as alturas exatas. Arbitrariamente leremos as notas a partir da clave mais
convencional, a de sol. Considerando que o poema faz alusão a Quattro pezzi,
teríamos as letras extremas, “o” e “m”, posicionadas nas alturas “fá 3” e “fá 4”
notação brasileira; na americana seriam respectivamente “fá 4” e “fá 5” –,
alcançando uma oitava. Dos quatro movimentos da obra de Scelsi, o primeiro é
centrado na nota fá. Lembremos o mencionado: coincidência ou não, o trecho da
partitura de Quattro pezzi com a sobreposição da assinatura e o signo zen que
antecede o artigo “Um velho novíssimo” é justamente o que compreende os cinco
primeiros compassos da primeira peça. Longas durações flutuando por instrumentos
variando sua dinâmica entre crescendos e diminuendos que vão do mezzopiano ao
pianissíssimo, toda a extaticidade do som sob a alcunha da nota . Não
esqueçamos também o último quarteto de cordas, o de número 5, aquele dedicado a
84
Henri Michaux. Mais uma vez é preciso rememorarmos: “Durante sete minutos, o
mesmo som (a nota fá) é reiterado 43 vezes [...]” (CAMPOS, 1998, p. 182).
A criação do círculo de letras/notas, em um intervalo de oitavas ligadas pela tal
“rede”, que Jackson associou a campos magnéticos, daria margem para vermos ali a
tradução de certos procedimentos scelsianos de composição. Zuben enumera-os:
Os procedimentos de Scelsi revelam as organizações harmônicas a partir
das relações intervalares e mergulham a escuta em um universo
aparentemente fixo de alturas, no qual a qualidade do timbre assume a
função mutável. Essa fixidez enganosa é superada com percepção da
penetrante variação freqüencial ocasionada por microtons e glissandos a
partir de uma nota central. [...] (ZUBEN, 2005, p.122)
Tais procedimentos poderiam ser representados por essa “rede”. Ela percorre todas
as letras do círculo, faz o preenchimento de todos os espaços disponíveis entre um
e outro. Desta forma podemos sugerir várias possibilidades de leitura como, por
exemplo, a simulação de um cluster de uma oitava, caso pensemos
harmonicamente. Ou ainda uma espécie de glissando, considerando o
deslocamento temporal de uma a outra nota, assim como a leitura circular do verso
que nas duas direções parte e volta para o mesmo ponto. Os tamanhos diferentes
de cada caixa e a posição de cada letra nela, centralizada ou não, poderiam sinalizar
também essa variação frequencial das notas aparentemente fixas (elas estão
exatamente colocadas sobre as linhas ou os espaços) ocasionada pelos microtons.
Como não deduzir também uma possível ligação com a exploração do espectro
sonoro de cada som, neste caso a rede representaria os harmônicos de cada letra-
nota. Scelsi é o precursor da música espectral. Mas se for por demais especulativa a
nossa análise, reiteramos que a ausência da clave, determinante para
estabelecermos as freqüências das notas, faz das letras e da rede ali inscritas mera
figuração sem nome, sem som, só verso, esmo som.
Apenas não gostaríamos de evidenciar a leve semelhança que entre a “rede de
pequenas linhas perpendiculares que parecem representar campos magnéticos [...]”
(JACKSON, 2004, p. 32) com o poema visual sem título de 1960 do escritor e poeta
Henri Michaux, que na sua poética, dava lugar ao não previsível, assim como Cage.
A rede é movimento, como os traços em Michaux. A diferença é que em
85
“omesmosom” seus traços designam muito bem seu movimento, assim como Scelsi
controlava com rigor a exploração máxima do som. No fundo, entre as letras e a
pauta, a rede vem proporcionar ao leitor o senso de rotatividade que permite ao olho
procurar no ato de girar os versos ali presentes; faz-se caminho para as vistas.
A saber, a primeira peça escrita por Scelsi e descrita por Campos como uma
machine music da época” procedente do futurismo (CAMPOS, 1998, p. 165) data
de 1929 e recebeu o nome de Rotativa. Sua primeira gina também é reproduzida
em fac-símile na página anterior aos poemas-homenagens de Campos e Cage, no
mesmo interlúdio, ao lado do manuscrito em francês, este, matriz para a “Intradução:
pó de tudo” (1993).
* * *
Enfim, “ao / nível / do / silêncio” tentamos, na força do círculo que puxa para dentro
do poema todos os sentidos, percorrer Scelsi por múltiplos lados e demonstrar as
variadas leituras que emanam da verbivocovisualidade empregada ali na obra.
Augusto de Campos lança mão de uma complexa construção de signos que tratam
não de lembrar a existência do músico italiano, mas que garantem contar sua
biografia e produção. Faz do poema um monumento, reúne o “pó / de / tu / do”
quanto foi escombro, desenterrando do continuum da História e imprime a
homenagem e a des-homenagem, dados e fatos, música e poesia – no seu presente
o passado, publica nas páginas de livros ainda fincados na areia movediça, que
cerca tanto a produção experimental do poeta quanto a do músico. Faz da poesia
um espaço para a manutenção do seu paideuma sonoro, facilitando o caminho da
próxima geração. A negociação continua aberta, ávida de novos horizontes, ainda
mais excelsos.
86
4 CAGE: CHANCE: CHANGE
Eu estou aqui e não tenho nada a dizer e o estou dizendo
e isto é poesia
John Cage
Homenagear é, segundo o dicionário online Houaiss, uma “expressão ou ato público
como mostra de admiração e respeito por alguém”. O objeto a ser analisado neste
capítulo também tem um caráter homenageador, assim como “omesmosom” e o
poema que seguirá, “dodeschoenberg”. O foco dado será a ampliação que essa
atitude de reconhecimento pode ganhar na poesia de Augusto de Campos, aqui,
dentro do corpus discutido: aquela que toma como matéria-prima compositores da
música contemporânea pertencentes ao paideuma sonoro para “refazê-los” na
página pela ótica e (est)ética do poeta. É a hora e a vez de averiguarmos como
Campos faz do poema uma obra que ultrapassa a superfície, sem perdê-la de vista,
e põe no suporte, sem a presença do fascismo do verbo, como dissera Barthes, a
marca mais profunda do músico que, em um giro radical, deixou importante legado
no centro da segunda metade do século XX.
* * *
O “Pentahexagrama para John Cage”, realizado em 1977, foi impresso em Viva
Vaia. Mais precisamente na seção “Enigmagens”, junto com “Código”, de 1973. A
palavra-valise que nome ao espaço cedido aos dois poemas já denota o caminho
laborioso à disposição do leitor. Reproduzimos a obra discutida:
(CAMPOS, 2001, p. 211)
87
O poema visual faz parte dos trabalhos que “se referem expressamente a Cage, em
homenagem: Hom’cage to Webern, Pentahexagrama para John Cage, Todos os
sons(1998, p. 143), como disse Campos na entrevista a J. Jota Moraes, em 1985,
republicada em Música de invenção, sobre o lançamento do livro De segunda a um
ano. “Pentahexagrama para John Cage” também foi impresso nas páginas da seleta
de artigos. À época da elaboração do poema o músico americano já havia composto
sua principal peça, 4’33’’ (1952), mas ainda passava despercebido aos ouvidos do
grande público brasileiro de música de concerto (lembrando Pignatari citado no
começo, não seria desprezado?). A saber, dos artigos agrupados em Música de
invenção referentes à obra de Cage, nenhum foi veiculado antes do poema impresso
em Viva Vaia.
* * *
No ano de 1976 Augusto de Campos publicaria a primeira edição de Reduchamp
(2009). O livro contava ainda com os iconogramas do artista plástico Júlio Plaza. O
poeta fazia uma varredura em versos da obra de Marcel Duchamp (1887-1968) nas
páginas à esquerda, enquanto à direita Plaza dialogava visualmente com o Concreto
e a linguagem do artista francês. No centro do livro as páginas trazem a inscrição
“imagem”. A inflexão dos recortes e dobras sob os quais está escrita a palavra
proporciona ao leitor achar por debaixo da folha, outra, que esconde e repete em
mesma fonte, uma nova informação: “enigma”. Naquele momento “Código” havia
sido criado, “Pentahexagrama para John Cage” ainda estava a caminho, mas, ao
que parece, a ideia da enigmagem se consolidara na poética do escritor. Nas
páginas centrais de Reduchamp tínhamos então a sobreposição de duas palavras
que são anagramas perfeitos. Campos aproveita a peculiaridade para mostrar ao
leitor que, naquele caso, ou seja, em Duchamp (e no próprio poeta) as duas
palavras se confundem sempre no processo de composição.
Os últimos versos do poema biográfico se emparelham com uma gina totalmente
branca com um furo ao centro, aludindo ao “último trompe-l’œildo artista francês,
Etant donnés: 1° la chute deau, le gaz d’eclair age (Dados: 1° a queda de água, 2°
o gás de iluminação; 1946-1966). Pelo furo é possível ver na outra página o
iconograma de uma cabeça com uma estrela na parte posterior parecendo referir-se
88
à ausência desta no corpo que compõe a cena de Etant donnés. Os derradeiros
versos são uma breve e concisa paráfrase do legado de Duchamp:
dados os dados
duchamp nos dá
um opção estratégica
aparentemente viável
ante o bloqueio massacrante
do dilúvio informativo
a ação na raiz das coisas
sem suportes apriorísticos:
um livro ou um vidro
uma capa ou um corpo
um postal ou um disco
um xeque ou um cheque
ou o silêncio
mas tudo ou nada
entre o visível e o invisível
o imprevisível
choque
(CAMPOS, 2009, s/p.)
A Etant donnés Campos, na página anterior, chamaria de: “o seu [de Duchamp]
lance de dados / dados de uma queda d’água e um gás de iluminação / ENIGMA
IMAGEM” (2009, s/p.). Sua referência à peça citada de Duchamp parece ser um
olhar mais largo, que consegue condensar a representativa obra do artista na força e
na relação que essas duas palavras apresentam, reafirmando a montagem
arquitetada no centro do livro. Os últimos versos, do meio do jogo sonoro, ressaltam
a diversidade dos suportes usados por Duchamp durante sua produção, seu poder
de inventividade em busca sempre do “imprevisível choque”. O susto, Schreck
deixemos bem claro que se trata somente de uma torção do conceito original para
essa leitura –, apontado por Augusto de Campos na poética duchampiana, tem o
mesmo sentido do demonstrado anteriormente em Mallarmé e no próprio poeta. Os
versos escritos em 1976 ajudam a confirmar uma consciência do projeto (est)ético
iniciado na década de 1950, pautado entre tantos traços na invenção e na sua
defesa. Reduchamp é uma homenagem de Augusto de Campos do meio da década
de 1970, significativa e transparente, à obra de Marcel Duchamp, que, junto com a
de John Cage, o influenciaram fortemente. Os primeiros versos do livro traçam o
panorama em torno da figura do artista à época da publicação do livro:
89
marcel duchamp é um nome bem conhecido
mas poucos conhecem bem marcel duchamp
muitos fizeram duchamp sem saber q o estavam fazendo
(eu também)
mas como poderíamos saber?
duchamp é o maior inventor anônimo do século
aos poucos
ele foi sendo desenterrado:
debaixo da montanha picassiana
sob o brilhante arabesco dos klees e kandinskys
sob os cristais perfeitos de mondrian
lá estava ele
intacto
no meio do refugo e dos detritos
“o bonito marcel duchamp
que pintava sobre enormes placas de vidro”
como disse anita malfatti
relembrando a nova york de 1917
(CAMPOS, 2009, s/p.)
Desenterrar era preciso e Augusto de Campos mais uma vez prestou sua
contribuição de crítico-historiador recolhendo do refugo e dos detritos os vestígios
duchampianos, gravando-os no livro, rememorando mais um inventor antes que a
tempestade o impelisse.
* * *
Das análises de “Pentahexagrama para John Cage” observadas, destaca-se a de
Kenneth David Jackson, também presente no artigo “Augusto de Campos e o
trompe-l’œil da poesia concreta” (2004). O autor aponta para as leituras dos
sistemas filosóficos e musicais que reverberam da imagem. O primeiro alerta vai
para a sobreposição de dois trigramas do I Ching, conhecido ainda como Livro das
Mutações, antigo método chinês de adivinhação. As seis linhas horizontais permitem
uma delimitação espacial do poema na página, onde as três linhas superiores
formam o trigrama Tui e simbolizam o lago, enquanto as três inferiores constituem o
Li, significando o fogo. Os trigramas isolados o o considerados, são apenas o
princípio organizador do método. Dessa maneira somente através de suas
sobreposições é que eles começam a ganhar significado. À composição de dois
trigramas, como temos no poema, é dado o nome de hexagrama. “O fogo no lago” é
a representação dada a esses trigramas da homenagem ao músico americano, que
fazem a função dos constituintes. O hexagrama que eles formam é conhecido como
“A Revolução”. Segundo Schlumberger sua representação:
90
[...] descreve-nos uma situação de grande mudança, porque o fogo [...] se
opõe vivamente, por sua própria natureza, ao lago, [...]. O fogo na água é o
“mundo às avessas” dos períodos conturbados, em que tudo é questionado,
mas pode também ser o tempo da mudança interior, em que se vê com
clareza a si mesmo, em que a mutação prometida suscita a alegria. (1997 , p.
63-64)
O hexagrama “A Revoluçãotambém é denominado de “a Muda”, “no sentido de
mudança de pele” (SCHLUMBERGER, 1997, p. 349). Nas suas relações internas,
entre a segunda e a quinta linha (ou seja, excluindo as linhas extremas), temos os
trigramas chamados nucleares (segunda-terceira-quarta e terceira-quarta-quinta
linhas de baixo para cima). Estes levam o nome de “Vir ao encontro” e sua presença
no interior de “A Revolução” vem adensar o sentido dos trigramas constituintes.
Segundo Schlumberger, os nucleares significam: “só empreender uma mudança
desse tipo se ela for absolutamente necessária e temporalmente adequada” (1997,
p. 349). Augusto de Campos, ao escolher o hexagrama “A Revolução” para compor
o poema, além de enfatizar a importante contribuição do músico para o século XX,
mostra também que tal ação, na música, fazia-se necessária e ocorrera no tempo
exato. Imprime ali, através do I Ching, método tão usado por Cage para dirigir as
operações de acaso nas suas composições, como foi no caso de Music of Changes
(1951), a relevância histórica do homenageado.
Mas observemos o poema. É muito possível que, de relance, a primeira impressão é
de estarmos diante de uma partitura, é novamente a técnica do trompe-l’œil. A ilusão
dos traços nos faz ver um pentagrama, ou pauta musical, que: “é a disposição de
cinco linhas paralelas horizontais e quatro espaços intermediários, onde se
escrevem as notas musicais” (MED, 1996, p. 14); mas na realidade temos o
discutido hexagrama. Marcam presença quatro colcheias (e o semínimas, como
aparece no artigo do crítico americano), todas elas posicionadas nos espaços de
pentagrama e o colchete que permite identificar a figura musical foi substituído por
duas barras de ligação, unindo as duas primeiras notas e as duas subseqüentes,
prática comum na escrita musical. Às notas musicais, Jackson atribui a clave de
para mostrar que Campos assina o nome C A G E no pentagrama através do
posicionamento das figuras nas alturas de (C), (A), sol (G) e mi (E). O autor
sintetiza sua análise sobre a obra da seguinte forma: “entenda-se, sem falar e sem
91
palavras, que o compositor Cage conseguiu, principalmente através da importação e
elaboração de princípios de filosofia oriental, fazer uma revolução na composição
musical de nosso tempo” (2004, p. 32).
É preciso ir um pouco mais a fundo apesar de a assertiva de Jackson ser pertinente.
Quanto ao nome do poeta escrito através das notas musicais, cremos que é legítima
tal afirmação. Mas lembremos bem, para chegar tal conclusão é necessário inserir
uma clave imaginária. A função da clave na música é determinar os nomes das
notas, suas alturas e as suas posições em relação às linhas e aos espaços. Quando
Jackson aponta o nome do compositor na clave de fá, ele só o obterá caso posicione
o sinal nas cinco linhas superiores (ou seja, é necessário desconsiderar a linha
inferior) de forma que a penúltima linha superior (a quinta de baixo para cima na
contagem geral) esteja entre os dois pontos da clave. Isto condicionaqualquer
figura escrita nesta linha (a penúltima) a assumir a altura definitiva de “fá2”
(relembrando: usamos a notação brasileira, na americana seria “fá3”). Dado o teor
arbitrário da escolha do signo que designa a altura das notas, resolvemos trocá-lo.
a possibilidade de vermos “Cage” também inserindo uma clave de sol nas cinco
linhas inferiores, mas somente se esta estiver fixa sobre a segunda linha de baixo
para cima. Seria amuito mais cômoda a leitura baseada na clave de sol, que o
perfil do traço da sexta linha superior se aproxima das linhas suplementares que
podem ser inseridas acima ou abaixo do pentagrama para a leitura de notas, neste
caso específico, mais agudas em relação às nove alturas comportadas dentro da
pauta de acordo com a clave escolhida.
Na toada de notas e nomes, nos permitiremos uma breve abstração. É através da
abreviação do sistema americano notacional que podemos ler “dó” como “C”, que
tal letra representaria também um acorde, a tríade de maior. A notação
estadunidense se baseia nas sete primeiras letras do alfabeto para nomear as
alturas. Abaixo montamos uma tabela comparativa a partir de uma escala diatônica,
ou natural que “é uma sequência de sete notas diferentes consecutivas (a oitava
nota é repetição da primeira) guardando entre si, geralmente, o intervalo de um tom
ou de um semitom(MED, 1996, p. 86). No nosso exemplo a escala diatônica se
confunde com a de dó maior. Vejamos:
92
Escala diatônica
Sistema
americano
C D E F G A B C
Nome das
notas
Mi Sol Si
Ordem alfabética
A B C D E F G
Tabela 1 – Escala diatônica
Toda a parafernália montada acima é para observamos certa simetria que o nome
do compositor apresenta. Na ordem alfabética, como podemos ver em destaque, as
letras encontradas em Cage o separadas sempre pela distância de uma letra. Se
observarmos a escala diatônica lida da direita para esquerda é possível ver o nome
do compositor de Paisagem Imaginária n. 5 (1952), “a primeira composição de tape
music americana” (CAMPOS, 1998, p. 134). O intervalo “relação entre duas
alturas” de “C” para “A” é uma terça menor (equivalente a três semitons; que por
sua vez na forma singular é o “menor intervalo adotado entre duas notas na música
ocidental, no sistema temperado”), assim como nas últimas notas, “G” para “E”
(MED, 1996, p. 60; 30). Augusto de Campos aproveita a simetria intervalar da
música entre os grafemas de cada sílaba, “Ca”-“ge”, e o intervalo de sétima menor
que separa “A” de “G” (na tabela seria uma segunda maior; como os dois intervalos
são complementares, logo são inversão um do outro e juntos constituem uma oitava)
para romper silabicamente a palavra e construir certa simetria visual do poema. A
olho nu é possível enxergar a semelhança entre as figuras que formam a primeira
e última sílaba. Essa composição não é gratuita: “Ca” está localizada antes da
interrupção dos traços da segunda e da sexta linha devido à peculiaridade da
construção de cada trigrama, enquanto “ge” encontra-se após os “buracos”. O poeta
poderia muito bem ter inserido as notas de forma diferente no pentahexagrama e
ainda sim manteria a ordem de entrada das letras, mas aproveita o amplo intervalo
musical/visual entre as sílabas que esse arranjo proporciona para romper ao meio o
nome do compositor. A saber, e isto é fundamental, cage também significa “gaiola”.
93
O Concreto “aprisiona” o americano na intersecção da música, da literatura e da
filosofia. A figura do pentahexagrama ainda desvela sutilmente a simetria de seu
nome. Gaiola e estruturas rígidas não fariam parte da poética cageana. O poema,
por essa ótica, seria a assinatura do compositor atestando uma revolução em favor
da renovação da linguagem musical e uma luta constante contra a simetria que o
persegue desde o nome.
* * *
Por outro lado, visualizar a tal assinatura nos parece dispendioso pela série de
condições necessárias para dar nome às notas. Sem a clave, não existe altura
definida e é nesse ponto que vamos tocar mais uma vez. A ausência de uma
demarcação clara sobre o campo das alturas no “Pentahexagrama” parece
evidenciar, por detrás da música e do I Ching, a insígnia da poética cageana: a
indeterminação. Esta é realizada por Cage sob a presença do acaso em sua
totalidade. Podemos ler C A G E, como também podemos ouvir qualquer som, gesto
ou até mesmo silêncio nas delimitações rítmicas das quatro colcheias enquanto
apreciamos a obra, pois não um símbolo que as condicione a alguma regra. É o
momento e o material sonoro disponível ao leitor que regem as figuras. Dessa forma
é pertinente inferir que Augusto de Campos tira as amarras dos sons, deixando-os
livres, suprimindo o único sinal que daria a eles vida sonora exata. É o poeta
testemunhando, via poesia, como ele escutou o músico, sem amarras. Na mesma
entrevista concedida a J. Jota de Moraes, respondendo a uma pergunta sobre os
pontos de contato existentes entre sua obra e a de Cage, Campos fala do caminho
que o americano escolheu: a abolição das estruturas. Diz:
Na verdade, Cage preconiza a supressão de quaisquer cages (jaulas,
gaiolas), por entender que as estruturas feitas pelo homem (inclusive as
estruturas em outros campos que não os da linguagem: o governo em seus
aspectos não-utilitários e os zoológicos, por exemplo) devem desaparecer se
se pretende que os seres para os quais elas foram criadas quer se trate de
pessoas, animais, plantas, sons ou palavras hão de continuar a respirar e
existir sobre a terra. (1998, p. 143)
A abolição das estruturas para o compositor de Radio Music (1956) e Music for
Marcel Duchamp (1947) não é um ato de negação, mas de sobrevivência da arte,
fora do autoritarismo e das preferências pessoais, dando vazão às novas
94
experiências, é também o questionamento ético e estético que o sico propõe
(1998, p. 135). Campos garante esse pensamento cageano quando não ao leitor
a possibilidade da certeza sobre as alturas das notas. Em “Pentahexagrama”,
lemos/ouvimos Cage ou o silêncio?
* * *
Antes de 1977, Cage havia lançado vários livros-mosaicos impregnados de seus
pensamentos Silence (1961), A Year from Monday (1967), Notations (1969) e M
(1973) e realizado algumas obras no campo das artes visuais. Campos, em artigo
de 1979, “A música livre do amanhã”, chama-o “o mais completo artista
intersemiótico de nosso tempo, e poeta dos multimedias: sicopoetapintor” (1998,
p. 130). Agindo sobre o presente, “Pentahexagrama” rememora, para além das
questões musicais e filosóficas, as multifacetadas atividades do americano e parece
entrar em diálogo, via sonoridade do título, com uma obra visual pouco conhecida do
estadunidense.
Retornando ao artigo de Jeanne Marie Gagnebin, “Memória, História e Testemunho”,
a autora ressalta o conceito de rememoração em detrimento ao de comemoração
quando fala da memória. Assim ela definiu sua proposta:
Tal rememoração implica uma certa ascese da atividade historiadora, que,
em vez de repetir aquilo de que se lembra, abre-se aos brancos, aos buracos,
ao esquecido e ao recalcado, para dizer, com hesitações, solavancos,
incompletude, aquilo que ainda não teve direito nem à lembrança nem às
palavras. A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente,
particularmente a estas estranhas ressurgências do passado, mas também
de agir sobre o presente. A fidelidade ao passado, não sendo um fim em si,
visa à transformação do presente. (2004, p. 91)
Ao nomear o poema como “Pentahexagrama para John Cage”, mais do que criar
uma palavra-valise a partir de hexagrama e pentagrama, Augusto de Campos abre o
branco da página para registrar e devolver ao compositor, na mesma moeda da
invenção, o presente que havia ganhado do próprio, no mesmo ano da criação do
poema. Comenta com J. Jota Moraes em 1985:
95
Depois, em 1977, ele [Cage] enviou para uma exposição do MAC um dos
seus trabalhos visuais, feito com o auxílio do artista gráfico Calvin Sumsion
Not Wanting to Say Anything About Marcel Duchamp (Não Quero Dizer Nada
Sobre Marcel Duchamp) –, oito folhas de plexiglás com letras serigrafadas
formando uma espécie de aquário pré-holográfico. E, numa carta ao diretor
do museu, pediu que, terminada a exposição, o seu poema-objeto me fosse
entregue. (1998, p. 141)
Figura 6 - Um dos Plexigrams da série (1969). Visão que nos possibilita ver as oito folhas
serigrafadas enfileiradas.
Fonte: site Artnet
Figura 7 - Plexigram II (1969). Visão frontal formando o “aquário pré-holográfico” sugerido por
Augusto de Campos.
Fonte: site Artnet
Not wanting to say anything about Marcel Duchamp foi criado em 1969 e consiste
em uma série de Plexigrams ou, como aparece em Música de Invenção,
Plexigramas, constituída de oito objetos-poemas e duas litogravuras em papel preto.
John Cage partira de operações de acaso através do I Ching para fragmentar
palavras retiradas do dicionário e algumas imagens e recompô-las nos plexiglás.
96
Campos traduziria o título da série e o inscreveria na introdução “Cage: Chance:
Change” publicada em De segunda a um ano em verso:
a mesma criatividade visual
que ele aplica às suas partituras
e obras plásticas
como a série de objetos-poemas
- "plexigramas" -
que (de parceria com calvin sumsion)
realizou em 1969
sob o título
not wanting to say anything about marcel duchamp
(não querendo dizer nada sobre marcel duchamp)
(CAMPOS, 1989, p. XIX)
A frase que nomeia a obra não pertence a Cage, foi dita pelo artista plástico Jasper
Johns (1930-) em resposta à carta de uma revista remetida a várias pessoas,
incluindo o compositor, solicitando dizeres sobre Marcel Duchamp. Era 1969 e o
artista francês havia falecido no ano anterior. Johns havia respondido: “I don’t want
to say anything about Marcel” (CAGE; RETALLACK, 1996, p. 92). Cage apropriou-se
do dizer e nomeou a obra.
“Pentahexagrama” traz, na sonoridade do título, uma forte relação com a obra pouco
conhecida do repertório cageano. Plexi- e pentahexa- juntam-se ao elemento de
composição pospositivo –grama, que tem como acepção “caráter de escrita, sinal
gravado, letra, texto, inscrição, registro, lista, documento, livro, tratado”. Sendo plex-
antepositivo que designa, em uma de suas acepções, “ação de bater, golpe”, temos,
então, nos Plexigramas uma ação de golpear as palavras contra o plexiglás, ou
mesmo, como diria Cage, representar a morte das palavras retiradas do dicionário
em operações ao acaso e reinscritas “fraturadas” no vidro através de colagens. No
poema, temos a ação de gravar/registrar e rememorar, em texto musical e visual,
não só as concepções sonoras e filosóficas, mas o que está entre as duas: a própria
vida do compositor. Assim o poema parece refazer uma das principais ideias do
próprio Cage: “Por muitos anos percebi que a música como uma atividade
separada do resto da vida não entra em minha mente. Questões estritamente
musicais não são mais questões sérias” (CAGE, 2009, p. 330).
97
Em Música de invenção uma pista que torna mais evidente a relação entre as
duas obras. Nas últimas palavras do artigo “A música livre de amanhã” o poeta fala
sobre as obras visuais de Cage e encontramos Não querendo dizer nada sobre
Marcel Duchamp. A página está à esquerda do leitor. Não querendo tagarelar
palavras vazias, apenas especulativas, na página posterior, à direita, temos dois
poemas de Augusto de Campos: Profilograma 2: hom’cage to webern e
Pentahexagrama para John Cage”. Em uma obra que se intitula livro mosaico, é
plausível não esperar aleatoriedade nessa “coincidência”.
* * *
São pelos menos três as questões que apontaremos em relação ao objeto-poema
de Cage. A primeira é a similaridade que a série de Plexigramas apresenta com
Shades (1964), obra de outro artista plástico, Robert Rauschenberg (1925-2008). A
relação entre os dois americanos era muito próxima. É de Susan Tallman, em The
contemporary print (1996), a comparação entre as peças. Rauschenberg utilizou seis
folhas de plexiglás verticalmente sustentadas por uma placa de madeira e poderiam
ser arranjadas de acordo com quem as manipulasse, abrindo para o público o poder
de decisão sobre a obra, reforçando o caráter de indeterminação da peça.
Figura 8 – Shades, Robert Rauschenberg (1964)
Fonte: site do MoMA
98
Um segundo apontamento é a relação de homenagem que Not wanting to say
anything about Marcel Duchamp tem com o artista francês no ano subsequente ao
seu falecimento: placas transparentes; aquário pré-holográfico, onde se sobrepõem
fragmentárias palavras mortas para linguagem e vivas para a arte; o material
utilizado como vidro também faz parte da rememoração da poética duchampiana.
Sua relação com o artista era das mais profícuas, compartilhando com o francês as
ocasiões nas quais o acaso seria fundamental e em outras, mortal, como no hábito
de comer cogumelos, dos quais John Cage era exímio conhecedor. Também jogou
xadrez com Duchamp na performática Reunião, em 1968. Ali o som era produzido
pelos jogadores ao movimentar as peças no tabuleiro. A saber, o criador dos discos
ópticos e dos ready-mades, cuja mão assinou R. Mutt na Fonte (1917/1964) o
famoso mictório –, era exímio jogador de xadrez, dava aulas, inclusive para Cage.
Em De segunda a um ano (1985) o músico escreveu as “26 proposições sobre
Duchamp”, das quais destacamos três: “Duchamp Mallarmé?”; “um meio de escrever
música: estudar Duchamp”; “Digamos que não seja um Duchamp. Vire-o ao
contrário, e eis um Duchamp” (CAGE, 1985, p. 70; 72). O “inquestionável choque” se
realiza tanto em L.H.O.O.Q. (1919/1940) quanto em 4’33’’, assim como em Un coup
de dés jamais nabolira le hasard (1897) e Poetamenos. Em 1936 o francês montaria
a obra Why not sneeze? (Por que não espirrar?) (MINK, 2006), e em 1952 Cage
usaria uma assertiva em Juilliard para explicar os segredos da escuta da música
contemporânea: é como espirrar inesperadamente. A influência do francês
revolucionário das artes no culo XX, o criador de Le grande verre, é notória em
Cage e não passaria despercebida no objeto-poema, ou ficaria apenas no seu
nome. Ela emana de Não querendo dizer nada sobre Marcel Duchamp, querendo
dizer tudo sobre a linguagem duchampiana.
No emaranhado de obras, citações, referências, homenagens e apropriações, uma
foto vem somar a esse complexo jogo de apontamentos:
99
Figura 9 – Augusto de Campos e o protótipo do “poema bomba” (1987)
Fonte: site oficial de Augusto de Campos
Augusto de Campos passeou pelo plexiglás. Elaborou em conjunto com Moysés
Baumstein o protótipo da produção holográfica (1985/87) do “Poema bomba” (1987),
cuja primeira versão impressa está em Despoesia. Treinou os olhos com o aquário
pré-holográfico que recebera após a exposição no Museu de Arte Contemporânea
em 1977? Olhos livres, arte sem gaiolas.
* * *
Atacaremos “Pentahexagrama para John Cage” agora por outro caminho, mais
movediço, mas não menos legítimo. Para a análise da enigmagem provocaremos
um olhar que ultrapassa o campo bidimensional da página, acrescentando a ele a
profundidade. Se sonoramente o poema remete à obra de Cage, também o faz no
seu arranjo visual. Separando os signos musicais do hexagrama, temos:
Figura 10 – Elementos de “Pentahexagrama” separados
100
Assim, visualizamos cada elemento com sua representatividade primeira, fora da
sobreposição que o poeta faz dos campos. Mais clara também é uma ideia de
simetria entre as colcheias e sua inidentificável exatidão de alturas (dó-lá-sol-mi):
quando não se tem nem clave nem linha, flutuam na página sem nada a dizer, entre
o silêncio e o ruído. Nossa hipótese, aqui, é enxergar em “Pentahexagrama”, uma
leitura em profundidade, em que dois mundos, o musical (as colcheias) e o filofico
(o hexagrama), encontrem-se no olhar frontal do poema. Na realidade, como em um
Plexigrama, supomos que cada signo encontra-se em seu “plexiglás”, e, quando o
leitor visualiza-o, na folha, forma-se o tal “aquário pré-holográfico”, qualificação dada
por Campos ao objeto-poema de Cage.
Figura 11 – “Aquário pré-holográfico” de “Pentahexagrama”
Não seria mais um resquício do trompe-l’œil? O jogo bidimensional do hexa e do
pentagrama e tridimensional das figuras musicais por detrás da “gaiola” do I
Ching (ou seria pela frente?) está formado na página para a escuta do leitor: ou
virá-la em direção às intraduções da próxima seção de Viva Vaia, ou aprisionar-se
no ENIGMA IMAGEM à sua frente.
* * *
Em outra proposição retirada do texto cageano temos a seguinte fala sobre
Duchamp: “Ele simplesmente achou aquele objeto e lhe deu seu nome. Que fez ele
então? Achou aquele objeto e lhe deu seu nome. Identificação. Que faremos então?
Chamaremos o objeto pelo nome dele ou pelo nome do objeto? Não é uma questão
de nomes” (CAGE, 1985, p. 71). As figuras musicais: com som ou sem som? Cage
ou chance? O hexagrama e a pauta são ressignificados, deslocados de seus
101
mundos e sobrepostos se tornando uma palavra-valise e um poema. Para quê?
Não é uma questão de título. Homenagem beirando ao ready-made.
* * *
Homenagear, de modo geral na obra de Augusto de Campos, não significaria
uma “expressão ou ato público como mostra de admiração e respeito por alguém”. É
rememoração no sentido de Jeanne Marie Gagnebin, não mera comemoração de
uma obra ou simples lembrança. O poeta acesso ao homenageado e ascese ao
seu obrar, procura nos buracos, nos brancos, com solavancos um meio de registrar
e explorar ao ximo os aspectos do inventor escolhido. Augusto de Campos deu
atenção precisa à presença viva de John Cage e ao presente revolucionário de sua
música. Pentahexagramou-o e criou uma sutil linha de rememoração quase
genealógica: inventor-puxa-inventor. Augusto de Campos rememora Cage, que por
sua vez rememora Duchamp (e Rauschenberg), que puxa Mallarmé?
“Pentahexagrama para John Cage” faz-se mise en abyme da invenção/revolução. O
inventor, diria Pound, é o pai de uma forma.
* * *
O foco na homenagem pulsante desta análise agora mudará de rumo e passaremos
a falar do testemunho, que caberia aqui também, mas deixamos para vê-lo em
“dodeschoenberg”. De fato, qual seja o assunto no bojo dos capítulos, todos se
encontram sob a face de crítico-historiador, que, no fundo, a essa altura, não é mais
diferenciada da poética. As duas se confundem no centro do projeto (est)ético
observado em Augusto de Campos.
102
5 A INTRADUÇÃO DO LEGADO: “DODESCHOENBERG”
O homem é o animal mais valoroso: por
isso venceu todos os outros animais. Ao
rufar do tambor: triunfou de todas as
dores, e a dor humana é a dor mais
profunda.
Nietzsche, Assim falou Zaratustra
Datam de 1974 as primeiras intraduções do poeta paulista Augusto de Campos.
Desde então, têm sido constantes suas investidas nesse tipo de criação. Segundo
Gonzalo Aguilar, “[...] a intradução consiste na aplicação de critérios intersemióticos
que, mediante manipulações visuais, acentuam valores icônicos do texto [...]”, e os
procedimentos básicos norteadores da sua composição consistem em “[...] recortes
de unidades arbitrárias, o uso de critérios visuais, a interpretação mediante
tipografia, a distribuição de novo título e o pastiche(AGUILAR, 2005, p. 282). Será
a intradução “dodeschoenberg”, pertencente ao livro Não (2003) e datado de 2000, o
alvo de nossa última análise. Segue abaixo:
(CAMPOS, 2003, p. 99)
Tendo diante dos olhos o poema, observamos ser a sua composição uma única
frase em disfarce. Esta não é a única obra de Campos que se presta a tamanha
destreza, vimos a mesma opção de falar muito com o mínimo em “omesmosom”.
O poema diz: “às vezes me pergunto quem sou”. Eneassílabo que é,
“dodeschoenberg” traz consigo certos aspectos relacionados à dor e ao humor
103
este, fluido escárnio camuflado de ironia que nos ajudarão a entender a
representatividade testemunhal presente nele através dos procedimentos usados
pelo poeta para compô-lo.
O compositor Arnold Schoenberg, sem dúvida, foi um dos grandes músicos do
século XX, e tem seu lugar no paideuma sonoro de Augusto de Campos como
mostramos. Em Schoenberg (1981), René Leibowitz, biógrafo do músico, abre o livro
enfatizando a recepção da obra do compositor entre seus contemporâneos: “É
quase desnecessário chamar a atenção do melômano mais informado para o fato de
que Arnold Schoenberg foi, durante sua vida, o compositor mais combatido de toda
a história da música” (LEIBOWITZ, 1981, p. 29). Mais ao final do livro o autor
sentencia: “acima de tudo, o verdadeiro caráter da personalidade artística de
Schoenberg não foi reconhecida” (LEIBOWITZ, 1981, p. 156).
No mesmo livro, Caio Pagano, em seu artigo “Schoenberg: um depoimento pessoal”
escreve: “Schoenberg é o marco histórico, espécie de divisor de águas, antes do
qual, citando uma frase sua, as dissonâncias não estavam emancipadas, e após o
qual elas são enfim organizadas” (PAGANO, 1981, p. 165). Nascido em Viena no
ano de 1874, o compositor ainda jovem vivia e trabalhava no centro da tradição
musical germânica, contemporaneamente às figuras de Gustav Mahler (1860-1911),
Richard Strauss (1964-1949), Max Reger (1873-1916) e Ferruccio Busoni (1866-
1924). Cada um à sua maneira buscava criar música em meio ao desmoronamento
do sistema tonal nos últimos anos do século XIX, mediante sua expansão iniciada
nas harmonias cromáticas de Richard Wagner (1813-1883) (GRIFFITHS, 1998).
A partir de 1908 Schoenberg passa a compor obras que não permitiam mais uma
definição clara de um único centro tonal. Era o início do anúncio da “morte da
tonalidade”, posteriormente proclamada em seu livro Harmonielehre, datado de 1911
(Harmonia, na sua primeira edição em português, de 2002). A tonalidade, grande
marco de toda a música tradicional do Ocidente desde sua constituição no culo
XVII até sua afirmação no Setecentos, foi suplantada pela atonalidade. Caberia aqui
uma grande discussão quanto ao nome dado à substituição do centro tonal, mas
vamos continuar optando por atonalidade já que o termo é frequentemente usado na
literatura musical. O abandono da harmonia diatônica significava deixar para trás a
104
tradição austro-germânica que passava por Bach, Beethoven e Brahms, algo com o
qual o compositor vienense aprendeu a lidar, apesar do sentimento de perda
despertado pelo rompimento com as raízes. Schoenberg via a atonalidade como
“inevitável consequência do que viera antes, e se sentia impelido a seguir em frente,
mesmo contrariando sua vontade consciente” (GRIFFITHS, 1998, p. 25).
A escrita atonal, para Griffiths, “era o único veículo possível para o expressionismo”
(1998, p. 27). Com a pretensão de representar as experiências interiores, “a arte
expressionista caracterizava-se, portanto, por uma extrema intensidade dos
sentimentos e modos de expressão revolucionários” (GROUT; PALISCA, 2005, p.
733). Assim foi denominada a fase em que Schoenberg esteve às voltas com o
afastamento total da tonalidade, a ela pertencem obras significativas como
Erwartung (1909), Die glückliche Hand (1910-13), e Pierrot lunaire (1912). É nesse
momento que o músico passa a utilizar também a pintura como meio de expor sua
expressão, sob a orientação inicial de Richard Gerstl, que em maio de 1908 seria
descoberto traindo-o com sua mulher, Mathilde Schoenberg. Seus quadros não
teriam a mesma importância que a sua música, mas obtiveram o reconhecimento de
Wassily Kandinsky (1866-1944) e sua obra Der Rote Blick (Red gaze; O olhar
vermelho; 1910) obteve notório reconhecimento em seu tempo e lugar (ROSS,
2009).
Figura 12 – Der Rote Blick, Arnold Schoenberg (1910)
Fonte: site oficial de Schoenberg
105
Para Ross, as inúmeras explicações/especulações para esta atitude
schoenberguiana rumo ao mundo atonal – um retrato dos fracassos da vida pessoal,
uma resposta à crescente atitude antissemita, entre outras resumiam-se à
condição de que algo o poderia ser explicado de fato, pois “não havia nenhuma
‘necessidade’ conduzindo ao atonalismo, nenhuma força histórica invisível que o
houvesse provocado. Era apenas o salto de um homem em direção ao
desconhecido(ROSS, 2009, p. 76, grifo nosso). O mergulho no obscuro era guiado
por sua forte personalidade. Em Die glückliche Hand o vienense tematiza a recusa
do artista criador às recompensas pessoais do mundo, devendo se fixar na
expressão das mais altas verdades (GRIFFITHS, 1998). Tal questão seria recorrente
em sua obra, Schoenberg chegara a afirmar que a arte não era para as massas. A
recepção de sua música geralmente tendia para a rejeição, burburinhos, risadas,
assovios, apitos e vaias, como nas estreias do Primeiro Quarteto de Cordas em
Menor (1904-1905) e da Primeira Sinfonia de Câmara (1906), ambas em 1907, e do
Segundo Quarteto de Cordas em Menor (1907-1908), em 1908. O fato de ter
poucos ouvintes passou a orgulhá-lo e ao ser questionado sobre seu público, em
1930, segundo Ross, Schoenberg afirmara: “Não creio que tenha um público”
(SCHOENBERG apud ROSS, 2009, p. 216).
É nesse período expressionista, imbuído da verve atonal, que o vienense presencia
bem perto a Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Schoenberg, assim como seus
alunos Webern e Berg e tantos outros jovens alemães, foram tomados pelo espírito
belicoso, denominado por Ross de “psicose de guerra”. O autor americano relata
uma foto histórica da Segunda Escola de Viena em uniformes do exército austríaco.
As limitações físicas os impediram de participar da vanguarda da Tríplice Aliança.
Ross relata com perspicácia a função de cada um durante o evento bélico:
Schoenberg acabou tocando em uma orquestra militar. Webern, míope em
altíssimo grau, foi designado para um batalhão de reservistas das tropas
montanhesas da Caríntia. E Berg, depois de um mês no campo de
treinamento, durante o outono de 1915, teve de ser internado por
esgotamento físico. Durante o resto do conflito permaneceu confinado ao
serviço de escritório, tendo sua vida transformada num inferno por um
superior truculento. (ROSS, 2009, p. 82)
Aqui então se faz necessário evidenciar um fato biográfico de Schoenberg nesses
dias de conflito. Para isso, novamente lançaremos mão do artigo de Caio Pagano:
106
Era grande sua consciência do dever ao tomar o caminho que divisava. Em
1915, quando serviu no exército, um oficial perguntou-lhe: “é você aquele tão
contestado compositor?” Respondeu: “Receio que sim; mas explico: alguém
tinha de sê-lo. Como ninguém quis, eu assumi o trabalho que me cabia”.
(PAGANO, 1981, p. 166)
A empatia por guerras mais tarde se reverteria, mas o rigor de sua postura enquanto
peça fundamental para a manutenção da música tradicional germânica, não.
Figura 13 – Arnold Schoenberg (1916)
Fonte: site oficial de Schoenberg
Rememoremos o solitário eneassílabo: “às vezes me pergunto quem sou”. O verso
poderia ser claramente uma retomada paródica da fala, aquela de 1915, de tom
humorado e irônico, mas que reflete também a dor de Schoenberg. Ao mesmo
tempo em que titubeia, o músico se assume enquanto ser, é a Dor-Homem: “[...] a
dor que o homem é. Que a vida é. Vida, ou seja, o existir do homem sendo para si e
para as coisas (nas e com as coisas), sendo o destino, isto é, a estória de ver, de
olhar de testemunhar”, conforme aponta Gilvan Fogel, em seu ensaio “Filosofia e
Literatura” (2005, p. 129). O autor prossegue tentando definir o que seria viver do
seu ponto de vista: “[...] Em questão está a dor que é o viver desde e como o
107
incontornável esforço de precisar fazer vir a ser o poder-ser que (o homem) é. Viver
não é só ser isso e assim, mas também e principalmente sentir isso, dar conta disso
(FOGEL, 2005, p. 129).
No episódio de 1915, Schoenberg, tomando para si o trabalho que lhe cabia,
assume a dor de existir e faz de si próprio meio para o testemunho das dores que
carregara até aquele momento de sua existência: as contestações e aceitação
de suas obras, a traição da esposa, o ímpeto suicida durante o verão europeu de
1908 corroborado pela infidelidade, o “silêncio musical” no qual estava imerso em
1915, a “psicose de guerra” e o início das perquirições de um novo método de
organização musical. A dor da existência era a força motriz do vienense, que bem
cedo já sabia do seu lugar no mundo. O próprio músico fala sobre si mesmo:
[...] Mas antes dos meus 25 anos eu havia descoberto a diferença entre eu
e um trabalhador; então vi – claramente – que eu era um burguês e assim me
afastei de todos os contatos políticos.
Eu estava bastante ocupado com meu próprio desenvolvimento como
compositor. E estou certo de que nunca poderia ter adquirido a técnica e o
poder estético que desenvolvi se tivesse dispendido qualquer espaço de
tempo com política. Nunca fiz discursos, nem propaganda, nem tentei
converter pessoas. (SCHOENBERG apud PAGANO, 1981, p. 24)
Os anos que cobrem o período de 1913 a 1923 são aqueles que marcam também o
momento em que pouca foi a produção musical schoenberguiana, mais
precisamente apenas quatro obras foram compostas nesse interregno e três delas
se destacam: Cinco peças para piano (1920-1923), Serenata para septeto (1920-
1923) e Suíte para Piano (1921-1923), respectivamente catalogadas como opus 23,
24 e 25. É entre o final de 1914 e o começo de 1915 que um dos principais legados
de Schoenberg esboçava-se, mas somente em 1923 a proposta seria apresentada
aos seus alunos: o dodecafonismo, o método de compor com doze sons. As três
peças citadas são as primeiras compostas com a nova técnica. Griffiths destaca a
Suíte como a única integralmente serial e dodecafônica, as outras duas tinham
movimentos não seriais ou mesmo séries de mais ou menos doze notas (1998, p.
82). A partir de então o método nortearia grande parte de suas obras e Schoenberg
se colocaria na “linha evolutiva” da música de tradição austro-germânica: “uma
descoberta que garantirá a supremacia da música alemã por algumas centenas de
108
anos” (GRIFFTHS, 1998, p. 80). O sico assume seu papel na história e organiza
o modo atonal de compor.
A técnica dodecafônica consiste na utilização das doze notas da escala cromática
organizadas em uma ordem fixa pelo compositor, estabelecendo assim a série,
servindo de matriz para toda a construção musical, seja ela melódica ou harmônica,
em qualquer ritmo e oitava. Os doze sons que constituem a escala citada e seus
respectivos enarmônicos entre parênteses são: Dó, Dó# (Réb), Ré, Ré# (Mib), Mi,
Fá, Fá# (Solb), Sol, Sol# (Láb), Lá, Lá# (Sib), Si; a esclarecer, essa ordem
apresentada não constitui uma série em si, mas sim a permutabilidade dessas notas.
Todos os sons passam a ter a mesma importância dentro desse sistema, diferente
do tonalismo, onde a fundamental prevalecia sobre as outras notas da escala. As
principais restrições do método schoenberguiano são: a impossibilidade de repetição
de uma nota antes que todas as doze sejam utilizadas e a manutenção das relações
intervalares da série quando esta for transposta para outras alturas. A partir da
formação da série, também chamada de original, é possível usá-la de outros três
modos: o retrógrado, a inversão e a inversão retrógrada; todas elas também são
passíveis de transposição para outras alturas.
Tomemos o seguinte exemplo: o Quinteto de Sopros, opus 26 (1923-1924), peça de
Schoenberg do período em que aperfeiçoava o método dodecafônico. A sua rie
original foi apresentada por Webern na sua conferência VIII, de “O caminho para
composição com doze sons” (WEBERN, 1984, p. 150), e aqui mostramos as outras
três principais possibilidades de utilização da série. Na tabela seguinte é importante
observar que numeramos de 0 a 11 a escala cromática, partindo de até Si. Os
números com sinais de adição e subtração entre parênteses representam a
diferença entre o número anterior acima dele e o número seguinte (por exemplo, +4
é a diferença entre 3 e 7). Temos então:
109
Série Original
3 7 9 11 1 0 10 2 4 6 8 5
(+4) (+2) (+2) (+2) (-1) (-2) (+4) (+2) (+2) (+2) (-3)
Mib Sol Si Réb Sib Mi Fá# Láb
Série Retrógrada
5 8 6 4 2 10 0 1 11 9 7 3
Láb Fá# Mi Sib Réb Si Sol Mib
Série Invertida
3 11 9 7 5 6 8 4 2 0 10 1
(-4) (-2) (-2) (-2) (+1) (+2) (-4) (-2) (-2) (-2) (+3)
Mib Si Sol Fá# Láb Mi Sib Réb
Série Inversão Retrógrada
1 10 0 2 4 8 6 5 7 9 11 3
Réb Sib Mi b Fá# Sol Si Mib
Tabela 2 – Série do Quinteto de sopros, opus 26, Arnold Schoenberg (1923-24)
Podemos observar que as três formas – retrógrado, inversão e inversão retrógrada
oriundas da original funcionam da seguinte maneira: (a) a primeira é a leitura da
original de “trás para frente”; (b) a segunda é a inversão dos intervalos por
espelhamento (observar que os números entre parênteses estão com os sinais
operacionais invertidos em relação à original!); e (c) a terceira é a leitura da inversão
de “trás para frente”. Webern, em analogia ao método dodecafônico, costumava
encerrar suas palestras com o quadrado-mágico grafitado nas colunas de Pompeia
no século I:
Figura 14 – Quadrado mágico
110
Sator arepo tenet opera rotasfora traduzido por Augusto de Campos como: “o
semeador mantém a obra / a obra mantém o semeador” (1998, p. 109). A leitura
convencional corresponde à série original, enquanto: a) da direita para a esquerda,
debaixo para cima na horizontal = retrógrado; b) de cima para baixo, da esquerda
para a direita = inversão; e c) de baixo para cima, da direita para a esquerda =
inversão retrógrada. Todas essas leituras resultariam na mesma frase, ou seja,
analogamente correspondem à manutenção das relações intervalares da série
musical.
Em Música de invenção, Augusto de Campos traz a figura do quadrado-mágico
latino, e quando escreve sobre Schoenberg em Pierrot, Pierrôs”, Campos imprime
seu poema “Profilograma: Schoenberg” (1998, p. 45). É uma sobreposição do
desenho do próprio músico ilustrando o método serial à foto do seu rosto. A
iconicidade da figura representante da série com um olho foi utilizada para
posicionar seu centro em cima da pupila esquerda do compositor. Espécie de
visualização do legado através dos mesmos olhos arregalados e expressivos da foto
que se repetem em Der Rote Blick e em seu retrato vestido de soldado austro-
germânico.
Retomando o eneassílabo, é possível observar a pulverização desse único verso em
uma estrutura de doze blocos, cada um com dois grafemas, espacializados na
página, remetendo-nos ao dodecafonismo schoenberguiano. A título de uma melhor
visualização dos blocos do poema, apresentamos no quadro abaixo a divisão
imposta à frase pelo poeta, agora sem associar os números acima das letras a
qualquer nota musical, como na exposição anterior:
Blocos
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
ÀS VE ZE SM EP ER GU NT OQ UE MS OU
Tabela 3 – Blocos de “dodeschoenberg” I
111
Se o verso carrega consigo o rastro biográfico, o artifício usado para “poetizá-lo” na
página usufrui do legado de Schoenberg. A forma da quadrícula, usada com
freqüência na fase ortodoxa do concretismo, permitia o afastamento de algumas
categorias do discurso poético como a noção de sujeito e o abandono da
expressividade (AGUILAR, 2005, p. 204). Aguilar ainda aponta que a quadrícula
equivale, na música, à série (2005, p. 203). Entendemos, nesse poema, que tal
aproximação se justamente por causa da similaridade entre a reestruturação
organizacional da música através da série e a nova possibilidade de arranjo do verso
na página por meio da quadrícula. Em “dodeschoenberg”, esse artifício dá “contorno”
ao poema, comporta o verso fragmentado em série, de dificultosa leitura
ideogrâmica, mas carrega dentro de si o “sujeito oculto” e sua expressão. A
quadrícula e sua equivalente musical não conseguem sufocar a dor e a ironia de
Schoenberg remontadas por Campos. Ansiando novo olhar à formatação do poema
na folha, é possível observar como o visual da quadrícula assemelha-se à estela,
que, segundo o Houaiss eletrônico (2010), é uma “coluna ou placa de pedra em que
os antigos faziam inscrições, geralmente funerárias”. “Dodeschoenberg” nos parece
uma espécie de estela ou mesmo uma lápide cunhada pelo poeta celebrando a
memória do vienense, onde a poesia, na sua intersecção entre a ética e a estética,
dá sobrevida ao artista e seu legado.
O verso fragmentado em doze blocos “às vezes me pergunto quem sou”
representa uma rie dodecafônica, mas qualquer tentativa de leitura analógica às
ideias de retrogração e inversão do verso original como um todo o nos oferece
qualquer material para análise. É necessário guardar tais analogias para os
grafemas e blocos individualmente. O poema é iniciado por um bloco (AS) no qual o
primeiro grafema é “A” e termina em outro (OU) finalizado na letra “U”. Além de
serem a primeira e última das vogais, de “A” a “U” ressoa um caminho de extremos
sonoros que vão da vogal aberta central à vogal fechada central (ANTUNES, 2007),
passando pela reverberante assonância em “E” cunhada entre aliterações fricativas,
nasais e plosivas que preenchem o caminho da leitura. É a fonte tipográfica utilizada
na construção do poema que permite confirmar a semelhança icônica entre “A” e “U”
(começo e fim) e ressaltar a sonoridade do verso. Outro detalhe é que não se repete
nenhum bloco de letras, assim como na série, onde nenhuma nota se repete sem
que todas sejam usadas. “A” e “U” marcam também um caminho de leitura que parte
112
do bloco mais claro/agudo (AS) para o (OU) escuro/grave timbricamente. Por que
não especular: queria Campos com esse arranjo evidenciar que o percurso sonoro
de Schoenberg da música ainda imersa no contexto tonal das primeiras obras,
passando pelo atonalismo até a combatida serialização do som assemelha-se ao
escurecimento sonoro do poema? Podemos observar que o “OU” solitário, enquanto
conjunção, no final do poema reforça o teor da dúvida de quem se é, ou um ou
outro, e dá a ele um sutil toque de circularidade na leitura, “OU”... “às vezes me
pergunto quem sou”.
Gonzalo Aguilar, ao falar sobre a análise de “SOS” (1983) de Flora Süssekind
publicada em Literatura e vida literária, defende não uma resposta irônica às
“poéticas dos eus” proliferadas naquela época, mas uma possível volta dos
elementos de expressividade e subjetividade na obra de Campos no período pós-
concretismo, mais precisamente a partir da década de 1970, constituindo uma
“poética da angústia”. Tal retorno se pela utilização das espirais, aqui
representada pela circularidade da leitura apontada, e da impregnação do elemento
que tanto resistiu ao subjetivo na década de 1960, a quadrícula. O crítico argentino
aponta também a precipitação do sujeito em “SOS”: “[...] o testemunho de uma
perda, e traz ao cenário a dificuldade de construir um espaço estável que não esteja
permeado pelas forças da solidão e da destruição” (AGUILAR, 2005, p. 275, grifo
nosso). Meio para o testemunho, forças de solidão e destruição, pontos importantes
na intersecção entre Augusto de Campos e Schoenberg, que se manifestam na
fragmentação do verso e no ciframento do sujeito, agora simples desinencial,
exposto na quadrícula e sua circularidade. A manutenção do espaço estável se faz
no ato de assumir a Dor-Homem e dar conta disso, pois se “às vezes me perguntou
quem sou”, é porque em outras tantas existe a certeza de quem se é. “O semeador
mantém a obra / a obra mantém o semeador”.
A leitura mais significativa do poema, como já vimos, é a que vai de cima para baixo,
da esquerda para direita. Aqui, diferente de outros poemas de Campos como
“Memos” (1976), no qual o acaso cageano é indispensável ao processo de leitura do
poema, este se faz presente com certa timidez. É possível “ver” epoque(a primeira
palavra entre aspas se encontra na segunda linha de cima para baixo e a segunda
no ângulo direito superior), que acrescida de acento agudo no primeiro “e” torna-se
113
época, tempo, período, reinado na língua francesa. “Ver” seria alusão ao pintor ou
ao visionário Schoenberg, que aos 25 anos sabia quem era e aos 31 assumira
perante o general a condição de compositor mais contestado do período? Sabida é a
passagem marcante do músico pela história da música ocidental, pintando de
Klangfarbenmelodie sua época. Caso optemos por ler “epoque” com acento agudo
no segundo “e”, teríamos ali um pedido do poeta ao leitor/ouvinte para com o poema
e a obra schoenberguiana? Epoché! (mais ao sabor do clássico do que do
husserliano) (ver, por exemplo, ABBAGNANO, 2007, p. 339). Retomemos o poema
para facilitar a visualização do que se segue:
(CAMPOS, 2003, p. 99)
A tipografia sem serifas constituída por traços retos sem arredondamento,
carregada de simetria (como a série na manutenção intervalar), na qual a matriz de
todas as letras parece ser o quadrado que da mesma forma representa a vogal “o”,
juntamente com todos os caracteres usados em maiúsculo permite ver as ações
seriais com mais nitidez. É possível localizar entre os grafemas inversões,
retrogradações quando temos o mesmo signo deslocado sobre seu eixo
representando duas letras diferentes e variações quando há similaridade formal
na sua construção , procedimentos que serão mostrados no quadro abaixo. A
escolha em expor o que é original e a sua derivação foi realizada constatando qual a
forma-letra aparece pela primeira vez no decorrer do verso:
114
Grafema-original Fonte utilizada no poema Retrógrado
S
Z
SM
MS
Grafema-original Inversão
N
U
Grafema-original Inversão do
retrógrado (?)
E
M
Grafema-original Variações
O
Q, G
V
U
P
R
A
U, N
Tabela 4 – Grafemas
A nosso ver somente a letra “T” não apresenta semelhança com nenhuma outra.
a relação traçada entre E e M é a mais difícil de localizar, de modo que inversão
retrógrada é apenas uma possibilidade de nomeação entre os grafemas. Trazemos
novamente o quadro com o verso fragmentado para observarmos outros detalhes:
Blocos
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12
ÀS VE ZE SM EP ER GU NT OQ UE MS OU
Tabela 5 – Blocos de “dodeschoenberg” II
115
Em vermelho destacamos, na leitura principal, a primeira vez em que uma nova letra
aparece na construção do verso e podemos constatar na palavra “PERGUNTO” o
momento no qual um maior índice de informações novas é apresentado ao leitor.
Antes de prosseguirmos, é possível notar nos blocos 2 e 10 as formações “VE” e
“UE”. Caso não queiramos considerar a similitude visual entre “U” e “V” ou a relação
dessas letras no alfabeto latino o “V” representou também o “U” –, podemos
“ver” no décimo bloco, em uma leitura retrógrada, um “EU” em meio aos fragmentos
do verso. Verdade é que, gramaticalmente, o sujeito se denuncia no pronome (me) e
na marca do verbo (s / ou). Mas a pergunta indireta em forma de poema é
exatamente sobre o “ser do sujeito” e pode ser alargada em direções diferentes a
leitura, podendo abarcar: o poeta Augusto de Campos, o sico Schoenberg e o
leitor, afinal, não é ele quem realiza o poema?
A estela de Schoenberg traz implícito na dúvida a própria afirmação: o eu oculto na
frase. “A dor que é o vir-a-ser, o existir” existe entre a vogal inicial (A =
nascimento?) e a final (U = morte?), e, nesse interregno, a dor do olho para decifrar
o verso é necessária para constituir a dúvida e cruzar com a resposta, o “EU”. No
fundo o que se sustenta entre o primeiro e o último bloco é o poeta testemunhando a
existência do compositor de diversos pontos vista. Flo Menezes, em “Arnold
Schoenberg, a superfície em música e a verdade insuportável”, texto publicado no
seu livro Música Maximalista (2006), ao buscar compreender “a magnanimidade de
Pierrot Lunaire diante do verbo e de seu significado” recorre a uma “frase perdida”
do músico no meio de seu texto teórico, datado de 1931, que diz: “A profundidade do
desenvolvimento não pode destruir a lisura da superfície” (SCHOENBERG apud
MENEZES, 2006, p. 30). O mergulho dado no obscuro do poema não suplanta a
ideia principal dele: a homenagem a um dos mais radicais músicos do século XX.
Mas por conta e risco é preciso mergulhar um pouco mais. Assim, notamos que no
quadrado-mágico latino da coluna de Pompeia dizia: “Sator arepo tenet operas
rotas”. Aqui são oito grafemas diferentes que compõem o escrito; em
“dodeschoenberg”, são quatorze. Se observarmos (“S”, “A”, “T”, “O”, “R”, “E”, “P”,
“N”), todas as letras também se encontram dentro de
às vezes me pergunto quem
sou”. Sabendo do conhecimento de Campos do quadrado-mágico, como já vimos, e,
116
sendo o poema posterior à publicação de Música de invenção, não seria equívoco
supor que o olhar do poeta teria captado que: a) o formato estelar do verso latino
também possa ter influenciado na concepção do poema; b) a anagramatização do
quadrado-mágico dentro de “dodeschoenberg coincidentemente reforça a dúvida
expressa na frase fragmentada, serializada escolhida pelo poeta para
homenagear o compositor e a potência da obra schoenberguiana na história da
música ocidental. “O semeador mantém a obra / a obra mantém o semeador”, talvez
essa fosse uma das frases que Arnold Schoenberg gostaria de ouvir sobre seu
legado, mas isso é uma reflexão para mais adiante.
Rememoramos trecho do capítulo primeiro em que, ao falarmos de Schoenberg e
Pierrot Lunaire, observamos que Augusto de Campos, em Pierrot, Pierrôs”, não
deixa passar em vão a informação da leitura associativa de André Schaeffner entre o
Sprechgesang e as peças japonesas. Schaeffner afirmara ser a declamação
cantada do teatro do Extremo Oriente a base da invenção de Schoenberg
(CAMPOS, 1998, p.41). Agora observemos que a palavra “pergunto” contém sete
grafemas (“P”, “R”, “G”, “U”, “N”, “T”, “O”) ainda inéditos até aquele momento no
verso (ver tabela 5), assim como, é claro, a letra subseqüente, “q”, na mesma
condição. Além de apresentar o maior índice de novidade entre todas as palavras,
seu arranjo a posiciona na coluna central do poema. O ato de perguntar a si mesmo
é o giro predominante no poema. Expressionismo. Observando os sete grafemas na
ordem de aparição, é possível “ver” em mais uma leitura via acaso, a formação da
palavra “GUNTO(espada). Outro equívoco ou não, gunto soho é a designação de
uma técnica de defesa chamada “metodologia da espada militar”, usada pelas forças
armadas japonesas, sua criação data de 1925. A saber, a “psicose de guerra” e a
sutil relação do Sprechgesang com o teatro também podem ser, em última
instância, vislumbradas no caminho entre “ÀS” e “OU” através da palavra japonesa.
Robert Craft, em Stravinsky: crônica de uma amizade (2002), aponta um fato
importante: “[...] Abé, autor de um livro clássico sobre o , estudou com
Schoenberg em Berlim, pouco antes de Pierrot Lunaire, o que abre a possibilidade
de Schoenberg ter conhecido por seu intermédio alguma coisa referente ao
Sprechgesang japonês” (CRAFT, 2002, p. 267)
.
Diante do fato narrado por Craft e
do apontamento feito por Campos em seu artigo, ganhamos um pouco mais de
117
sustentação quanto à leitura de “gunto”. Dito isso, ainda podemos “ver” no centro de
“pErgUnto” mais uma reminiscência do “eu”, agora diluído em anagrama.
Decerto, esta e, possivelmente, outras interpretações, podem parecer exageradas
ou, no jargão teórico, uma superinterpretação. No entanto, é o respeito mesmo pela
engenharia poética de Augusto de Campos o motor de tais especulações. Ademais,
quando em escrita ensaística, o paulista não se atém a mesmices analíticas, mas vai
à cata de toda sorte de revelações – pautadas, naturalmente, em argumentos
sólidos e invejáveis insigths, como, por exemplo, em “Um lance de ‘Dês’ do Grande
sertão” (1978; 1991).
Por fim, o título alerta o leitor quanto ao que o espera. A palavra-valise
“dodeschoenberg” nos soa: a) dode(cafonismo) + Schoenberg, ou seja, legado +
biografia; b) do(r) de Schoenberg por similaridade fônica?; c) Do-de-Schoenberg, ou,
fazer de Schoenberg?
Luiz Costa Lima, em “Duas aproximações ao não como sim” (2004), aponta para
uma dependência do primado semântico em relação à parafernália vocovisual em
Não. O autor sugere “dodeschoenberg”, junto com “Maurício” e “Wollner”, como
possíveis poemas impugnadores da sua leitura geral do livro. Faz-se necessário
concordar com ele, pois apesar do semântico ser de suma importância para a
perquirição sobre vários aspectos, é no mínimo problemático estabelecer hierarquias
entre o verbi, o voco e o visual, o legado e o biográfico, a dor e a ironia, o poético e o
filosófico. Todos possuem altíssimo grau de importância assim como as notas
musicais na série schoenberguiana. Na realidade “é [...] [n]a fenda entre um e outro”
que aflora o prazer do texto. Depois de alguns apontamentos dolorosos ao rebro,
certo é que os humores de Schoenberg correm com fluidez pelo poema de Augusto
de Campos.
* * *
118
A História é apenas uma resposta a nossas perguntas
Paul Veyne
Moses und Aron foi iniciada por Schoenberg em 1930. Dos três atos programados,
apenas os dois primeiros tiveram terminados sica e texto; do terceiro, o texto
foi concluído. Composta através do método serialista, baseava-se no texto do Antigo
Testamento:
[...] Schoenberg apresenta o trágico conflito entre Moisés, mediador da
palavra de Deus, e Aarão, intérprete de Moisés perante o povo: conflito,
porque Moisés não consegue comunicar a sua visão e Aarão, que consegue
comunicá-la, não a percebe; trágico, porque esta dissociação é fundamental
e não pode ser ultrapassada pela boa vontade, uma vez que está enraizada
na natureza do filósofo-místico, por um lado, e do estadista-educador, por
outro. (GROUT; PALISCA, 2005, p. 735)
Leibowitz trata o tema da ópera como o conflito entre o pensamento (Moisés) e a
ação (Aarão), “conflito ao qual Schoenberg não pôde se subtrair” (LEIBOWITZ,
1981, p. 120). O biógrafo menciona um fato importante: “Não é supérfluo examinar o
conteúdo dramático da obra. Baseada principalmente em episódios bíblicos, parece
lógico considerar que o assunto da ópera tenha surgido para o compositor em
decorrência das perseguições de que seus correligionários começavam, nesta
época, a ser vítimas novamente” (LEIBOWITZ, 1981, p. 119-120). A saber, o
compositor era de família judia, e em 1933, forçado pelo nazismo, deixa a Alemanha
em direção aos Estados Unidos, onde se fixa até a morte.
Na quarta conferência de “O caminho para a nova música”, datada 14 de março de
1930, Webern aponta sua preocupação com o futuro dos praticantes da “música
nova” na Alemanha e se refere também à perseguição antissemita que o próprio
Schoenberg vinha sofrendo. O compositor austríaco expõe a forma como eram
vistos e tratados naquele momento por Hitler e companhia. Era apenas o início da
perseguição àquela expressão artística. Abaixo reproduzimos o longo trecho para
não perder a força do testemunho do próprio Webern:
119
[...] “Bolchevismo cultural", é o nome que se atualmente a tudo que está
em redor de Schoenberg, Berg e de mim mesmo (e de Krenek também). E
quando se pensa em tudo que será destruído, eliminado por esse ódio da
cultura!
Mas deixemos de lado a política! Que concepção de arte podem ter Hitler,
Göring, Goebbels? Se me empenhei em esclarecer as coisas que devem
acontecer - independentemente de quem seja o sujeito da ão -, foi num
sentido totalmente contrário. É muito difícil manter distância da política, pois
está em jogo a nossa própria vida! Mas é ainda mais urgente a missão de
salvar o que pode ser salvo. Que escalada, que evolução! alguns anos
podíamos ver mudanças na produção artística - pois a arte tem suas próprias
leis e nada tem a ver com a política -, mas acreditávamos que, de alguma
forma, essas coisas eram normais. Hoje, não estamos mais longe do
momento em que poderemos ser presos pelo fato de sermos artistas sérios.
Ou melhor: isso já aconteceu! Não sei o que Hitler entende por "Música
Nova", mas sei que para essas pessoas aquilo que designamos por esse
termo é um crime. Não está mais distante o momento em que seremos
encarcerados por escrever tais coisas. No mínimo, estamos economicamente
arrasados, marginalizados! (WEBERN, 1984, p. 49-50)
Webern parecia antever a sua própria “sorte”, pois morreria pelas mãos de um
soldado americano por engano. O destino do tiro era seu genro Benno, mas um
charuto e uma mão no bolso custariam uma vida dedicada à música serial, como
relata Augusto de Campos, na “coisa” “João Gilberto / Anton Webern”, de Balanço
da bossa e outras bossas (2005). Na nota da tradução francesa sobre o texto do
músico austríaco citado, mantida na edição portuguesa, o momento histórico que
envolvia a declaração é esclarecido. No dia 30 de janeiro de 1930 Hitler se tornaria
chanceler da Alemanha e Schoenberg, em 17 de maio, viajaria para a França para
escapar da perseguição antissemita, que a ordem do Ministério da Educação ao
presidente da Academia de Artes da Prússia, onde lecionava desde 1926, era
“purgar a academia de toda influência judaica(WEBERN, 1984, p. 57). Iniciava-se
então o exílio de Schoenberg, que culminaria com sua ida para os Estados Unidos.
Alex Ross descreve que o criador do dodecafonismo chegara a se converter ao
luteranismo em 1898, talvez por uma possível necessidade de se “distanciar do
estereótipo do judeu de gueto”, mas com o avanço do antissemitismo no cerne da
vida austro-germânica “seu senso de identidade passou por uma mudança radical.
Em 1933, quando se exilou, Schoenberg havia retornado a sua fé, à qual se
dedicaria de modo intenso, embora excêntrico, por toda a vida” (ROSS, 2009, p. 75).
Sua visualização dos propósitos atrozes de Hitler era clara em 1934 quando,
segundo Ross, comentou que o plano do ditador era “nada mais nada menos que o
extermínio de todos os judeus” (SCHOENBERG apud ROSS, 2009, p. 75).
120
Ao resgatar o questionamento do compositor e colocá-lo em verso, Augusto de
Campos se presta mais uma vez àquele testemunho terceiro em “dodeschoenberg”.
Jeanne Marie Gagnebin lendo Benjamin no artigo citado, “Memória, História e
Testemunho”, em que amplia a questão do testemunho para a forma como
utilizamos aqui, traz à luz o termo “narrador sucateiro”, aquele que
[...] não tem por alvo recolher grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo
aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que
parece não ter nem importância nem sentido, algo com que a história oficial
não saiba o que fazer. (GAGNEBIN, 2004, p. 90)
E segue: “o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição, oficial ou
dominante, justamente não recorda” (GAGNEBIN, 2004, p. 90). Sua visão e a de
Seligmann-Silva confirmam o que chamamos de histori(c)a(ta)dor, que “deve visar a
construção de uma montagem: vale dizer, de uma collage de escombros e
fragmentos de um passado que só existe na sua configuração presente de destroço
(SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 70). Campos, ao intraduzir o ato de fala em verso,
àquilo “que ainda não teve direito nem à lembrança nem às palavras” (GAGNEBIN,
2004, p. 91) importância (po)(est)ética. O poeta remonta a história de um dos
músicos mais combatidos da história da música através da montagem: a) dos fatos
biográficos e do legado; b) em gina através da quadrícula reatualizada na fase
pós-concretismo, e do arranjo dodecafônico; e c) linguística, pela sutil circularidade
sugerida pelo “OU” e a fragmentação do verso, permitindo de diversas leituras. Os
grifos das duas últimas alíneas são as formas de montagem apontadas por Aguilar
(2005, p. 272).
A fala de 1915, quinze anos antes do início de Moses und Aron, ópera de
monumental importância na música de concerto do século XX, parece-nos típica de
um testemunho pontual, antecessor de Auschwitz, ainda complacente com os ideais
bélicos austro-germânicos, marcada pelo que depois se convencionou
expressionismo, pelos passos iniciais a caminho do dodecafonismo. aparece
claramente uma personalidade forte, mesmo sendo às vezes receosa, mas tomada
pela Dor-Homem, “a dor que é o vir-a-ser, o existir” (FOGEL, 2005, p. 129). Porém
não é a anedota bélica a que Augusto de Campos se refere e intraduz em
“dodeschoenberg”, mas sim a outra, proferida na abertura de uma palestra realizada
121
por pelo compositor no final de sua vida. É desta exposição que o poeta retira sua
matéria-prima para lapidar na gina. Arthur Nestrovski, no artigo “Quem tem medo
de Schoenberg?” publicado no jornal Estado de São Paulo, em maio 1992, e
depois reeditado na seleta Ironias da Modernidade: ensaios sobre música e literatura
(1996) – aponta o evento:
Em 1951, poucos meses antes de sua morte, Arnold Schoenberg pronunciou
uma palestra sobre sua própria música, em Los Angeles. Nos anúncios para
a palestra, ele era descrito como um “teórico e compositor polêmico, cuja
obra é conhecida por sua influência sobre a música moderna”. Schoenberg
iniciou sua fala esclarecendo que, até então, ele sempre pensara “que
escrevia música por outros motivos” e acrescentou: I wonder sometimes who
I am” (às vezes me pergunto quem sou). (NESTROVSKI, 1996, p. 167)
Salvo o engano de Nestrovski, pois no site oficial de Schoenberg a palestra data de
29 de novembro de 1949, o autor, quarenta décadas depois desta fala, discute o
legado de Schoenberg, ao mesmo tempo, tentando encontrar respostas para a
pergunta que título ao texto, e, por conseguinte, à indagação do compositor
realizada na palestra supracitada, cujo título era My evolution(“Minha evolução”).
Nestrovski aponta que o compositor carregara ao longo da carreira “o peso da ironia
como um castigo” (1992, p. 170), chegando à conclusão de que a empreitada
schoenberguiana na “construção” de um processo composicional para além da
tonalidade estaria ainda fincado em um formalismo de expressividade exagerada.
Esta ironia como peso se deve ao fato de que Schoenberg realmente queria ser
visto, como foi dito, em uma linha de evolução da música tradicional,
principalmente a de “linhagem” austro-germânica, porém a recepção de suas obras
fez com que sempre fosse reconduzido pela maioria de seus contemporâneos à
condição de revolucionário da música moderna.
Ainda na abertura da palestra de 1949, logo após ser anunciado conforme relata
Nestrovski, Schoenberg conta uma anedota sobre o imperador Francis Joseph I
(1830-1916), muito similar à condição na qual se encontrava naquele momento, e
fecha o pronunciamento introdutório com a seguinte frase: “May I hope, in another
50 years they will also know who I am” (Posso esperar, dentro de outros 50 anos que
eles também conhecerão quem eu sou) (SCHOENBERG, 1949; tradução nossa).
Assim, entre risos e gargalhadas dos presentes, como anota a rubrica da transcrição
122
da palestra em seu site oficial, demonstra ao final da vida o mesmo
descontentamento que durante toda ela o incomodou e o perseguiu, a
incompreensão de sua música, ou melhor, o entendimento equivocado por parte dos
envolvidos com a música de concerto naquele momento. Ao falar de seu processo
composicional, mais precisamente do período designado como atonalismo,
Schoenberg afirma que:
Most critics of this new style failed to investigate up to which degree the
ancient "eternal" laws of musical aesthetic were observed, spurned, or merely
adjusted to changed circumstances. Such superficiality brought about these
accusations of anarchy and revolution, while it was distinctly evolution, no
more exorbitant than that which always has occurred in the history of music.
A maioria dos críticos desse novo estilo falham ao investigar até que ponto as
antigas leis "eternas" da estética musical foram observadas, desprezadas, ou
simplesmente ajustadas às circunstâncias atuais. Essa superficialidade trouxe
acusações de anarquia e revolução, enquanto eram nitidamente evolução,
não mais exorbitantes do que o que sempre ocorreu na história da música.
(SCHOENBERG, 1949; tradução nossa)
É preciso retomar Leibowitz para reforçar: “acima de tudo, o verdadeiro caráter da
personalidade artística de Schoeneberg não foi reconhecida” (1981, p. 156). O salto
dado em direção ao desconhecido, como afirmara Alex Ross, foi apreendido por
Augusto de Campos em poema. A fala de 1949, não soa diferente de 1915. Lá, no
início da carreira, assume a responsabilidade de sê-lo, no final da vida, a dúvida “de
quem se é” continua irônica, pois, sabendo muito bem agora, projeta sua afirmação
enquanto compositor para o futuro. O verso de “dodeschoenberg” tomado da
palestra de Los Angeles e remontado em quadrícula-estela mostra que o poeta
concreto realmente procura através do arranjo na folha rever diversos aspectos do
legado e da biografia de Schoenberg. A intradução realizada por Campos, além da
força poética, dá-se à transmissão simbólica dos fatos, faz-se convergir nela o ideal
de luta (1ª Guerra) e a fuga (“prefácio” da 2ª Guerra), a questão da origem judaica, a
autoafirmação enquanto músico e a instável vida pessoal, a obra e a recepção do
público, tudo gerado pela própria dúvida que paira sobre o próprio verso. O poeta se
faz e dá ao leitor a oportunidade de ser também testemunha da existência, quando o
põe de frente a tantas possíveis informações a serem exploradas dentro daquela
obra, desde a superfície até a mais profunda reentrância nas suas fendas/feridas.
123
O conflito entre o pensamento e ação presente na ópera Moses und Aron foi
também uma constante no indivíduo Schoenberg: “às vezes me pergunto quem sou”
traduz, portanto, não só a fala momentânea, mas a Dor-Homem do percurso do
músico no mundo; não a forte personalidade, mas, reiterando, esse conflito do
pensar “me pergunto” com o agir “como ninguém quis, eu assumi o trabalho que me
cabia”. O segundo ato de Moses und Aron termina com um grito de Moisés,
personagem que alguns aproximam à pessoa de Schoenberg: Palavra, tu
Palavra, que me falta". Leibowitz propõe: “Afinal, o desespero de Moisés não é
também o do próprio Schoenberg? E estas palavras que faltam ao protagonista não
são as que faltaram ao compositor para terminar sua obra?” (LEIBOWITZ, 1981, p.
121).
Não ousaremos responder a tais questões. Fato é que o poeta, cumprindo o papel
análogo do histori(c)a(ta)dor, aproveitou-se da anedota, ou melhor, do fato histórico
disse Paul Veyne: “É impossível decidir que determinado fato é histórico e que
outro é uma anedota digna de esquecimento, porque todo o fato entra numa série e
tem importância relativa dentro da sua série” (VEYNE, 1976, p. 52) para captar
as palavras, recriá-las e nos jogar contra a obra, sermos testemunhas, num exercício
doloroso que pode nos levar às vezes a nos perguntarmos quem somos.
124
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não podemos voltar atrás. Quando se trata de falar na intersecção entre música e
literatura: “A estrada é muito comprida”. Estudar esse encontro dentro da poética de
Augusto de Campos foi de suma importância para entendermos qual recusa o autor
defende e como a invenção é tratada no bojo de seu projeto artístico, estabelecido
no cenário da poesia brasileira desde a década de 1950.
Este projeto, como vimos, parte não de uma preocupação estética, mas também
ética. Quando o poeta sai em defesa da música de concerto do século XX é
necessário distinguir qual é o cerne da questão. Entrar em Música de invenção foi
percorrer o universo musical de Augusto de Campos e mapear aquilo que, a
princípio, se delineia como um caminho sem saída. Possibilitou demarcar o lugar
dos artigos dentro da suas possibilidades de circulação, revistas especializadas e
suplementos em jornais com linhas editoriais propícias à veiculação de um debate
mais intenso acerca das questões ligadas à arte de seu tempo, além de localizar
possíveis perfis dos seus leitores. Estes, pelas condições de publicação dos artigos,
estariam muito mais próximos de especialistas, intelectuais e curiosos sobre os
temas abarcados nos textos de Augusto de Campos em torno do novo.
Tal fato nos proporcionou um detalhe: sua defesa e discurso altivo contra o olvido
dos inventors foram e ainda são pouco ouvidos. Seja pelo limitado acesso aos
artigos, que para tê-los e lê-los era necessário saber a priori onde encontrá-los,
seja pela constatada falta de tradição desse tipo de repertório musical no país,
dado o lato eco que o grito o o do expressionista Edvard Munch (1863-1944),
mas outro “não toquem no meu Mozart!” parece ainda fazer soar nos sentidos do
público geral da música de concerto. Público notoriamente escasso, se comparado,
por exemplo, à massa interessada, no Brasil, pela música popular – em sentido lato.
A compilação dos ensaios em Música de invenção, se não serviu para angariar mais
público, que o livro desde o título mostra sua verve, deu forma a um requintado
paideuma sonoro, mesmo estando ali construído sob a proposta do mosaico, o que
por si o deixou mais interessante. Augusto de Campos incrustou naquelas
125
páginas nomes para muitos desconhecidos como Scelsi, Nancarrow e Ustvolskaia,
além dos desconsagrados pela crítica: Schoenberg, Webern, Boulez, Varèse,
Satie, entre outros. Ali, no formato do livro, ganham sobrevida no suporte que até
hoje é discutido pela sua resistência perante as novas tecnologias de difusão e
armazenamento das informações. O poeta deixa o testemunho da sua escuta mais
acessível para as próximas gerações inclusive no gesto de dar uma lombada aos
seus ditos. Fotos, fatos, poemas, mesósticos, dicas e recusas fazem a liga entre um
e outro artigo e colaboram ainda mais para vermos esse mosaico da invenção
querer ser também lido como uma tentativa de manutenção do esquecido. Releitura
do passado, presente e futuro.
As curvas enganam o olhar. Trompe-l’œil. A partir de então se voltar para os poemas
foi uma questão de apontar a rigidez do projeto de Augusto de Campos em torno da
defesa da invenção. Poemas como marcas, solavancos, inflexões lancinantes do
tempo e da memória. Assim como nos artigos, procuramos escavá-los, aproximar a
figura do poeta daquela restabelecida pela Literatura de testemunho. Terceira, esta
foi a posição assumida pelo poeta paulista. Testis, pois fez da escrita enfrentamento
“jurídico” com o real: “quem quiser que aceite esse escândalo-recorde de
desinformação. Este livro o denuncia e o renega” (CAMPOS, 1998, p. 10). Ficou,
escutou e escreveu sobre aquilo a que não era dado ouvido.
É claro que todo nosso trabalho agiu se apropriando por analogia dos termos ligados
ao testemunho, à memória e à história, sabendo que o contexto do Holocausto,
ditaduras e de outras barbáries apenas tangenciam o contexto de produção dos
poemas. Estendemos a analogia à figura do crítico-historiador, dada a postura ética
e estética do escritor paulista, fazendo um diálogo incessante entre poesia e
pensamento. Por isso pesa o não, o des, o ex: não são negativas reacionárias, são
prefixos contra uma construção histórica e uma ação artística que não deixa frestas,
que recusa a atualização da linguagem.
Os poemas analisados à maneira de palimpsestos, verdadeiramente enciclopédicos,
servem como um brevíssima mostra do refinamento do poeta. Tais traços não se
limitam às obras que se referem aos sicos inventores. intraduções, citações e
homenagens a várias outras personalidades de diversos segmentos artísticos na
126
obra do poeta e o que aqui foi dito para os compositores é passível de leitura para
essas outras figuras rememoradas na poesia do paulista. em Não, “om (e.e.
wittgenstein)” (1996), “wolner” (2002), “charoux” (1996), “maurício” (1996), “pérolas
para cummings” (1994) e tantos outros – para não tecer uma lista enorme espalhada
pelas três antologias podem ser lidos como uma tentativa de Augusto de Campos
de marcar pela poesia a obra de artistas que compartilham da invenção em suas
atividades. As análises de “omesmosom”, “Pentahexagrama para John Cage” e
“dodeschoenberg” também tiveram o intuito de rever algumas análises de críticos
importantes e alargar, através do arcabouço teórico proposto, a porta de entrada
para os leitores que têm apreço pela rede de informações que envolvem cada
poema, no nosso caso, aqueles que se dedicavam aos inventores do campo da
música.
Não podemos ir mais adiante. Esta frase de “Sem saída” (2000) é pertinente em
relação ao ponto final aqui dado. Ainda é preciso perquirir mais e mais a relação
imensa de Augusto de Campos com a música. São poucos os estudos sobre
Balanço da bossa e outras bossas, sobre as traduções dos trovadores e mesmo
sobre o próprio Música de invenção. Muitos também são os poemas ligados aos
compositores aqui investigados que ainda não foram analisados pela crítica, assim
como fizemos com “dodeschoenberg”, por exemplo, datada da primeira década
deste século. A klangfabernmelodie e a influência de Webern no Poetamenos são
assuntos que carecem de uma investigação mais profunda, apesar dos poemas da
série possuírem estudos significativos, como o de JoAmérico Miranda, “‘dias
dias dias’, um poema de Augusto de Campos”, publicado em 1996 na revista
Contexto. Ampliar o estudo do paideuma sonoro e assim o sentido da recusa e da
invenção. Entender melhor qual é a força do ato de fala de um cânone da poesia
brasileira sobre a sica de seu tempo. E por que não rememorar o que aqui foi
dito por novos ângulos? Não deixar que se fechem as feridas abertas por Augusto
de Campos: “Fer / ida / sem / ferida / tudo / começa / de novo / a cor / cora / a flor /
flora / o ir / vai / o rir / rói / o amor / i / o céu / cai / a dor / dói” (“Ferida”, 2001;
2003). Perseguir o acidente. Explorar ao máximo o mesmo som.
127
7 REFERÊNCIAS
bienal de arte contemporânea 2009. O movimento orgânico. Henri Michaux. In:
<http://www.bienalmercosul.art.br/7bienalmercosul/en/henri-michaux>. Acesso em:
10 jun. 2010.
ABBAGNANO, Nicola. Epoché. Dicionário de Filosofia. Tradução da 1ª edição
brasileira coordenada e revista por Alfredo Bosi; revisão da tradução e tradução de
novos textos de Ivone Castilho Benedetti. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p.
339.
AGUILAR, Gonzalo. Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada
modernista. São Paulo: Edusp, 2005.
ANTUNES, Arnaldo. Orelha. In: CAMPOS, Augusto de. Não poemas. São Paulo:
Perspectiva, 2003.
ANTUNES, Jorge. Modos de execução para o aparelho fonador e suas partes,
presentes nas linguagens faladas: repertório fonético. Sons novos para a voz.
Brasília: Sistrum, 2007, p. 139-197.
BANDEIRA, João; BARROS, Lenora de. Grupo Noigandres: arte concreta paulista.
São Paulo: Cosac Naify, Centro Universitário Maria Antonia da USP, 2002.
BARTHES, Roland. Aula. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. 12. ed. São Paulo:
Cultrix, 2004.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. Magia e técnica, arte e política:
ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Tradução de Sérgio
Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, v. 1, p. 222-232.
BYRON, George Gordon; KEATS, John. Byron e Keats: entreversos. Tradução de
Augusto de Campos. Campinas: Editora Campinas, 2009.
128
CAESAR, Rodolfo. As grandes orelhas da escuta. In: FERRAZ, Silvio (org.). Notas.
Atos. Gestos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 31-51.
CAGE, John. De segunda a um ano. Tradução de Rogério Duprat. São Paulo:
Hucitec, 1985.
______. O futuro da música. In: COTRIM, Cecília; FERREIRA, Glória. Escritos de
Artistas: anos 60/70. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009, p. 330-347.
CAGE, John; RETALLACK, Joan. Musicage: Cage muses on word, art, music.
Hanover: Wesleyan University Press, 1996. Disponível em
<http://books.google.com.br/books?id=9IphVelzAlYC&printsec=frontcover&dq=music
age&hl=pt-
BR&ei=y1ctTICZCIH7lwfC4uSUBA&sa=X&oi=book_result&ct=result&resnum=1&ved
=0CCgQ6AEwAA#v=onepage&q&f=false>. Acesso em: 01 jun. 2010.
CAGE, John; SUMSION, Calvim. Not wanting to say anything about Marcel. 1969.
8 plexiglás em silkscreen, color., 14’’x20’’. MoMA. Disponível em: <
http://www.artnet.com/artwork/424879500/164201/john-cage-not-wanting-to-say-
anything-about-marcel.html>. Acesso em: 15 jun. 2010.
______. Not wanting to say anything about Marcel II. 1969. 8 plexiglás em
silkscreen, color., 14’’x20’’. MoMA. Disponível em:
<http://www.artnet.com/artwork/168541/112558/john-cage-not-wanting-to-say-
anything-about-marcel-ii.html>. Acesso em 15 jun. 2010.
CAMPOS, Augusto de. Balanço da bossa e outras bossas. 5. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2005
______. Cage: Chance: Change. In. CAGE, John. De segunda a um ano.Tradução
de Rogério Duprat. São Paulo: Hucitec, 1985, p. XI-XXIII.
______. Despoesia. São Paulo: Perspectiva, 1994.
______. Música de invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998.
129
______. Não poemas. São Paulo: Perspectiva, 2003.
______. Poesia de recusa. São Paulo: Perspectiva, 2006.
______. Poemas estalactites: traduções de August Stramm. São Paulo:
Perspectiva, 2009.
______. Revista Código 5. Bahia, [S.I.], 1981. Entrevista concedida a J. Jota
Morales. [Veiculada no Jornal da Tarde, 26 abr. 1980].
______. Um lance de “Dês” do Grande sertão. In: COUTINHO, Eduardo (org.).
Guimarães Rosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991, p. 321-349.
(Coleção Fortuna Crítica, 6) [In: CAMPOS, Augusto de. Poesia, antipoesia,
antropofagia. São Paulo: Cortez e Moraes, 1978.]
______. Verso, reverso, controverso. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2009.
______. Viva vaia: poesia 1949-1979. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.
CAMPOS, Augusto de; PLAZA, Julio. Reduchamp. 2. ed. São Paulo: Annablume,
2009.
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de; PIGNATARI, Décio. Mallarmé. 3. ed.
São Paulo: Perspectiva, 2006.
______. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. São
Paulo: Duas Cidades, 1975.
CARRIÈRE, Jean-Claude; ECO, Umberto. Não contem com o fim do livro.
Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Record, 2010.
COELHO, Lauro Machado. A música erudita no Brasil. In: Revista Digestivo Cultural.
c2002. Disponível em:
130
< http://www.digestivocultural.com/ensaios/ensaio.asp?codigo=7>. Acesso em: 04
jun. 2010.
CRAFT, Robert. Stravinsky: crônica de uma amizade. DIFEL: Rio de Janeiro. 2002.
DANIEL, Cláudio. Augusto de Campo conversa com Cláudio Daniel. In. Revista
Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do estado
de Minas Gerais, 2000, p. 10.
Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Disponível em: <
http://houaiss.uol.com.br>. Acesso em: mai. 2010.
DICKINSON, Emily. Não sou de ninguém: poemas. Tradução de Augusto de
Campos. Campinas: Editora da Unicamp, 2008.
FELMAN, Shoshana. Educação e crise, ou as vicissitudes do ensino. In:
NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio. Catástrofe e representação.
São Paulo: Escuta, 2000, p. 13-71.
FLUSSER, Vilém. A escrita: futuro para a escrita? Tradução de Murilo Jaderlino
da Costa. São Paulo: Annablume, 2010.
FOGEL, Gilvan. Filosofia e Literatura. Revista Sofia. Vitória: EDUFES, 2005, v. X, nº
13, p. 121-138.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Memória, História e Testemunho. In: BRESCIANI, Stella;
NAXARA, Márcia (orgs.). Memória e (Res)Sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2004, p. 85-93.
GAÚNA, Regina. Rogério Duprat: sonoridades múltiplas. São Paulo: UNESP, 2002.
GRIFFITHS, Paul. A música moderna. Tradução de Clóvis Marques. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
131
GROUT, Donald J. PALISCA, Claude V. História da Música Ocidental. 3. ed.
Lisboa: Gradiva, 2005.
GUBERNIKOFF, Carole. A presença do presente. In: FERRAZ, Silvio (org.). Notas.
Atos. Gestos. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, p. 9-18.
______. Música de Invenção. In. GUIMARÃES, Julio Castañon; SÜSSEKIND, Flora
(orgs.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7Letras, Fundação Casa de Rui
Barbosa, 2004, p. 257-266.
HUYSSEN, Andreas. Monumentos e memória do holocausto numa idade da mídia.
Seduzidos pela memória: arquitetura, monumentos, mídia. Tradução: Sergio
Alcides. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, p. 67-88.
JACKSON, Kenneth David. Augusto de Campos e o trompe-L’œil da poesia
concreta. In. GUIMARÃES, Julio Castañon; SÜSSEKIND, Flora (orgs.) Sobre
Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7Letras, Fundação Casa de Rui Barbosa,
2004, p. 11-33.
KATER, Carlos. Música Viva e H.J. Koellreutter: movimentos em direção à
modernidade. São Paulo: Musa Editora; Atravez, 2001.
LACERDA, Daniel. Multum nom multa: essências e medulas. In. Revista
Suplemento Literário de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do estado
de Minas Gerais, p. 3-11, mar. 2006.
LEIBOWITZ, René. Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981.
LIMA, Luiz Costa. Duas aproximações ao não como sim. In. GUIMARÃES, Julio
Castañon; SÜSSEKIND, Flora (orgs.) Sobre Augusto de Campos. Rio de Janeiro:
7Letras, Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004, p. 117-129.
MACHADO, Cassiano Elek. A renovação cultural. In: Folha de São Paulo 80 anos:
Tudo sobre a folha. c2001. Disponível em
132
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/renovacao_cultural.shtml>. Acesso em:
10 mai. 2010.
MACHADO, Lino. Entrevista com Augusto de Campos. In. Contexto: revista do
departamento de línguas e letras. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo.
4, 1996, p. 211-215.
MED, BOHUMIL. Teoria da música. 4. ed. Brasilía: Musimed, 1996.
MENEZES, Flo. Arnold Schoenberg, a superfície em sica e a verdade
insuportável. Música maximalista: ensaio sobre música radical e especulativa. São
Paulo: Editora UNESP, 2006.
Mercado Musical Brasileiro 2009. Associação Brasileira de Produtores de Disco.
Disponível em: < http://www.abpd.org.br/>. Acesso em: 04 jun. 2010.
MICHAUX, Henri. O tempo mais propício para nascer. Tradução de Daniela Osvald
Ramos. Disponível em:
<http://www.revistazunai.com/traducoes/henri_michaux.htm>. Acesso em: 10 jun.
2010.
______. Sem título. 1960. 1 tinta sobre papel. Preto e branco, 74,5x108,7cm.
MoMA. Disponível em:
<http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=33256>. Acesso em: 20 jun.
2010.
MINK, Janis. Duchamp. Tradução de Zita Moraes. Köln: Taschen, 2006.
MIRANDA, José Américo. “Dias dias dias”, um poema de Augusto de Campos. In:
Contexto: revista do departamento de línguas e letras. Vitória: Universidade Federal
do Espírito Santo. nº 4, 1996, p. 37-45.
MOTA, Vinícius. “Leitor tem renda e escolaridade altas”. In: Folha de São Paulo 80
anos: Tudo sobre a folha. c2001. Disponível em
133
<http://www1.folha.uol.com.br/folha/80anos/quem_e_o_leitor.shtml>. Acesso em: 10.
maio 2010.
NAPOLITANO, Marcos. História & Música: história cultural da música popular. 2.
ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2005 .
NASCIMENTO, Guilherme. Música menor avant-garde e manifestações menores
na música contemporânea. São Paulo: Annablume, 2005.
NAVES, Santuza Cambraia. Balanço da bossa: Augusto de Campos e a Crítica da
Música Popular. In. GUIMARÃES, Julio Castañon; SÜSSEKIND, Flora (orgs.) Sobre
Augusto de Campos. Rio de Janeiro: 7Letras, Fundação Casa de Rui Barbosa,
2004, p. 244-256.
NESTROVSKI, Arthur. Quem tem medo de Schoenberg? Ironias da modernidade:
ensaios sobre Literatura e Música. São Paulo: Ática, 1996, p. 167-170.
PAGANO, Caio. Schoenberg: um depoimento pessoal. In: LEIBOWITZ, René.
Schoenberg. São Paulo: Perspectiva, 1981, p. 159-166.
PIGNATARI, Décio. Vanguarda em explosão sonora. Informação. Linguagem.
Comunicação. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970.
PIZZA, Daniel. Jornalismo Cultural. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
POLLOCK, Jackson. N. 32. 1950. [S.I.] Disponível em: <http://www.jackson-
pollock.big-sale-direct.com/>. Acesso em: 20 jun. 2010.
POUND, Ezra. Abc da literatura. 3. ed. São Paulo: Cultrix, 1977.
RAUSCHENBERG, Robert. Shades. 1964. 6 litogravuras em plexiglás, preto e
branco, 35,5x35,5cm. MoMA. Disponível em:
<http://www.moma.org/collection/object.php?object_id=14718>. Acesso em: 21 jun.
2010.
134
ROSS, Alex. O resto é ruído: escutando o século XX. Tradução de Claudio Carina,
Ivan Weisz Kuck; revisão técnica de Marcos Branda Lacerda. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
SADIE, Stanley (org.). Dicionário Grove de Música. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1994.
SALGUEIRO, Wilberth C. F. Forças & Formas: aspectos da poesia brasileira
contemporânea (dos anos 70 aos 90). Vitória: EDUFES, Centro de Ciências
Humanas e Naturais, 2002.
SCHLUMBERGER, Jean-Philippe. I Ching: princípios, práticas e interpretação.
Tradução de Maria Estela Gonçalves. 10. ed. São Paulo: Pensamento, 1997.
SCHOENBERG, Arnold. Der Rote Blick. 1910. 1 óleo em papel cartão, color.,
32,2x24,6cm. Arnold Schonberg Center. Disponível em:
<http://www.schoenberg.at/index.php?option=com_joomgallery&func=detail&id=68&I
temid=339&lang=en#joomimg>. Acesso em: 21 um. 2010.
______. My evolution (1949). Disponível em:
<http://www.schoenberg.at/index.php?option=com_content&view=article&id=965%3
Avr01&Itemid=716&lang=de>. Acesso em 18 jan 2011.
______. Who I am? (1949) Disponível em:
<http://www.schoenberg.at/index.php?option=com_content&view=article&id=966%3
Avr01&Itemid=716&lang=de>. Acesso em 18 jan 2011.
SCHWARZ, Roberto. Marco Histórico. Que horas são? São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, p. 57-66.
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. In: NESTROVSKI, Arthur;
SELIGMANN-SILVA, rcio. Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta,
2000, p. 73-98.
135
______. Catástrofe, História e memória em Walter Benjamin e Chris Marker: a
escritura. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). História, memória, literatura.
Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 387-413.
______. O testemunho: entre a ficção e o “real”. In: ______ (org.). História,
memória, literatura. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 371-385.
______. Reflexões sobre a memória, a História e o esquecimento. In: ______ (org.).
História, memória, literatura. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003, p. 59-88.
SIQUEIRA, André; PALOMBINI, Carlos. Giacinto Scelsi. Anais do cimo quinto
encontro da APPON, 2005. Disponível em:
<www.anppom.com.br/anais/anaiscongresso_anppom_2005/sessao14/andresiqueira
_carlospalombini.pdf>. Acesso em: 20 mai. 2010.
SYLVESTER, David. Pollock – II. Sobre arte moderna. Tradução de Alexandre
Morales. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 537-551.
TALLMAN, Susan. The Contemporary Print: from Pre-Pop to Postmodern. New
York: Thames and Hudson, 1996.
TERRA, Vera. Acaso e aleatório na música: um estudo da indeterminação nas
poéticas de Cage e Boulez. São Paulo: EDUC, Fapesp, 2000.
TRAGTENBERG, Livio. Contracapa. In: CAMPOS, Augusto de. Música de
invenção. São Paulo: Perspectiva, 1998.
VASCONCELOS, Ana Lúcia. Augusto de Campos: “a poesia que faço é a do
artesão”. Disponível em: <http://www.cronopios.com.br/site/poesia.asp?id=1320>.
Acesso em: 26 de ago. 2007.
136
VEYNE, Paul. Tudo é Histórico, portanto a história não existe. In: Teoria da
História. Organização e tradução: Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Cultrix,
1976, p. 45-55. [1971].
ZUBEN, Paulo. Ouvir o som: aspectos da organização da música no século XX.
Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2005.
WEBERN, Anton. Caminho para a nova música. Tradução de Carlos Kater. 2. ed.
São Paulo: Novas Metas, 1984.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. 2. ed.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
<http://brahms.ircam.fr/composers/composer/2871/>. Acesso em: 20 jun. 2010.
<http://www.ibge.gov.br>. Acesso em: 04 jun. 2010.
<http://www.scelsi.it/>. Acesso em: 10 jun. 2010.
<http://www.schoenberg.at>. Acesso em 15 jun. 2010.
<http://www.uol.com.br/augustodecampos>. Acesso em: 01 mai. 2010.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo