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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
JONE JANUÁRIO MIRASSE
O CONSUMO DE BATATA-DOCE DE POLPA ALARANJADA ENTRE FAMÍLIAS
RURAIS DO NORDESTE DE MOÇAMBIQUE: um estudo sobre percepções de comida e
Segurança Alimentar na província de Nampula
Porto Alegre
2010
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2
JONE JANUÁRIO MIRASSE
O CONSUMO DE BATATA-DOCE DE POLPA ALARANJADA ENTRE FAMÍLIAS
RURAIS DO NORDESTE DE MOÇAMBIQUE: um estudo sobre percepções de comida e
Segurança Alimentar na província de Nampula
Dissertação apresentada ao Programa de s-
Graduação em Desenvolvimento Rural da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Desenvolvimento Rural.
Orientadora: Profa. Dra. Renata Menasche
Série do PGDR – Dissertação nº 116
Porto Alegre
2010
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JONE JANUÁRIO MIRASSE
O CONSUMO DE BATATA-DOCE DE POLPA ALARANJADA ENTRE FAMÍLIAS
RURAIS DO NORDESTE DE MOÇAMBIQUE: um estudo sobre percepções de comida e
Segurança Alimentar na província de Nampula
Dissertação apresentada ao Programa de s-
Graduação em Desenvolvimento Rural da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre
em Desenvolvimento Rural.
Aprovada em: Porto Alegre, 22 de Janeiro de 2010
________________________________________________________________________
Profa. Dra. Renata Menasche (Presidente)
(UFPel - PGDR/UFRGS)
________________________________________________________________________
Prof. Dr. Sérgio Baptista da Silva
(PPGAS/Depto. Antropologia/UFRGS)
________________________________________________________________________
Prof. Dr. Jalcione Pereira de Almeida
(PGDR/Depto. Horticultura e Silvicultura/UFRGS)
________________________________________________________________________
Profa. Dra. Flávia Charão Marques
(PNPD/PGDR/UFRGS)
4
Aos meus pais e irmão pela incansável força e pensamento
positivo. Também aos meus entrevistados, que fizeram parte para
a elaboração desta pesquisa.
5
AGRADECIMENTOS
Em um processo de formação como este, várias pessoas e instituições contribuem para o sucesso.
Logicamente, não caberiam em uma listagem individual nesta página reservada aos
agradecimentos, mas mesmo assim importa referenciar algumas:
Ao CNPq do Brasil e ao MCT de Moçambique, por terem tornado possível o deslocamento e
sustento durante a minha estadia nas terras brasileiras durante a formação;
À Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pela oportunidade da vaga;
À Secretaria, à equipe de professores, colegas e demais funcionários do Programa de Pós-
Graduação em Desenvolvimento Rural, pelo apoio prestado durante o tempo de formação;
À Lisiane Correa e sua família, por terem me recebido e abrigado durante os primeiros meses de
estabelecimento em Porto Alegre;
À professora Renata Menasche, que desempenhou várias funções durante o período de formação,
nomeadamente as de ser professora, orientadora, e e tia, respectivamente, se considerar que
me ensinou, me orientou, me encorajou e me repreendeu em momentos em que realmente eu
precisei;
À Fabiana Thomé, que sofreu e se alegrou em todos momentos durante a minha formação,
fazendo com que as dificuldades e desafios enfrentados por mim fossem amenizados;
À Josiane Wedig, pela presença e apoio material durante o processo de elaboração desta
pesquisa;
À Barbara Pettres, pela leitura incansável e atenta desta dissertação;
6
Aos meus pais, irmãos e à Esperança Donata Tiago, pela força e estímulo neste novo caminho
percorrido na minha carreira acadêmica;
Ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura, coordenado pela professora Renata
Menasche, pelo espaço de discussão e aprendizado acadêmico;
E a todos que direta ou indiretamente contribuíram para que este momento final fosse
concretizado, com a elaboração e defesa desta dissertação de conclusão do curso de mestrado em
Desenvolvimento Rural.
7
RESUMO
Tomando como ponto de partida as intervenções no mundo rural, este estudo procura abordar as
questões ligadas ao comportamento alimentar vivenciado face à introdução da batata-doce de
polpa alaranjada nos hábitos alimentares de agricultores moçambicanos. O trabalho de pesquisa
foi conduzido em Moçambique, com famílias rurais de Murrupula e Mogincual, distritos da
província de Nampula. O texto, construído de modo a tomar como ponto de partida para a
reflexão as falas dos interlocutores, percorre um passado histórico sobre a produção e consumo
da batata-doce em geral, mas concentra-se na variedade de polpa alaranjada, objeto de política
pública de intervenção para a promoção de Segurança Alimentar e Nutricional. Nesse sentido,
procuramos apreender em que medida a introdução da batata-doce de polpa alaranjada interferiu
ou interfere socioculturalmente no comportamento alimentar e na divisão do trabalho familiar. As
festas tradicionais, que constituem um ambiente tanto de sociabilidade como de consumo de
alimentos, foram também alvo de interesse desta pesquisa. Constatamos que a batata-doce de
polpa alaranjada não faz parte do alimento principal das famílias rurais estudadas e que, nas
festas tradicionais, em que se expressa a cultura local, a batata-doce não está presente,
diferentemente do que ocorre com a mandioca. O trabalho busca refletir sobre a valorização
cultural dos alimentos entre os grupos estudados, evidenciando o estigma a que está associada a
batata-doce e, desse modo, indicando a necessidade de redirecionamento do alimento a ser usado
como fonte de nutrição para aquelas famílias rurais.
Palavras-chaves: Batata-doce de polpa alaranjada. Alimentação e cultura. Campesinato.
Segurança Alimentar e Nutricional.
8
RESUMEN
Teniendo como punto de partida las intervenciones en el mundo rural, este estudio trata de
abordar las cuestiones relacionadas a la conducta alimentaria con experiencia en la introducción
de la batata de pulpa anaranjada en los hábitos alimentarios de los agricultores mozambiqueños.
La investigación se realizó en Mozambique, con familias rurales de Murrupula y Mogincual,
comarcas de la provincia de Nampula. El texto fue realizado de modo que la intervención de los
interlocutores fuera el punto de partida para la reflexión, recorre un pasado histórico sobre la
producción y el consumo de la batata en general, pero se concentra en la variedad de la pulpa
anaranjada; objeto de política pública de intervención para la promoción de la Seguridad
Alimentaria y Nutricional. En este sentido, tratamos de comprender en cuál medida interfirió o
interfiere socialmente y culturalmente en la conducta alimentaria y en la división del trabajo
familiar. Las fiestas tradicionales, que constituyen un ambiente tanto de sociabilidad como de
consumo de alimentos, también fueron puntos de interés de la presente investigación.
Constatamos que la batata de pulpa anaranjada no hace parte del alimento principal de las
familias rurales estudiadas y que en las fiestas tradicionales, cuando la cultura local se expresa, la
batata no está presente; de manera distinta de lo que ocurre con la yuca. El trabajo trata de
reflexionar sobre la valorización cultural de los alimentos entre los grupos estudiados,
evidenciando el estigma en el cual está asociada la batata y, de esa forma, indicando la necesidad
de un redireccionamiento del alimento a ser utilizado como fuente de nutrición para aquellas
familias rurales.
Palabras clave: Batatas de pulpa anaranjada. Alimentación y cultura. Campesinado. Seguridad
Alimentaria y Nutricional.
9
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: Vista aérea de uma parte da cidade de Nampula---------------------------------------------31
Figura 2: Relevo característico da zona costeira da província de Nampula--------------------------33
Figura 3: Relevo característico da zona interior da província de Nampula---------------------------34
Figura 4: Localização do campo de estudo desta pesquisa ---------------------------------------------36
Figura 5: Sofware QRS Nvivo 2. 0------------------------------------------------------------------------46
Figura 6: Produção da batata-doce-------------------------------------------------------------------------58
Figura 7: Machamba infantil--------------------------------------------------------------------------------66
Figura 8: Machamba familiar-------------------------------------------------------------------------------66
Figura 9: Campanhas institucionais------------------------------------------------------------------------76
Figura 10: Vacinação com vitamina A--------------------------------------------------------------------76
Figura 11: Colheita de mandioca---------------------------------------------------------------------------86
Figura 12: Processamento da mandioca-------------------------------------------------------------------86
Figura 13: Mandioca seca-----------------------------------------------------------------------------------88
Figura 14: Caracata em bolinhas no prato----------------------------------------------------------------88
Figura 15: Batata-doce de polpa alaranjada-------------------------------------------------------------146
10
Quadro 1: Evolução alimentar das Famílias de Nampula até Março de 2009------------------------55
Quadro 2: Trajetória familiar e a batata-doce------------------------------------------------------------65
Quadro 3: Os lugares da mandioca e da batata-doce nas famílias-------------------------------------98
Quadro 4: Atividades e Organização familiar em Murrupula-----------------------------------------111
Quadro 5: Atividades e Organização familiar em Mogincual----------------------------------------116
11
LISTA DE SIGLAS
ADRA: Agência para o Desenvolvimento de Recursos Adventistas
CZN: Centro Zonal Nordeste
DPA: Direção Provincial de Agricultura
MADER: Ministério da Agricultura e Desenvolvimento Rural
MINAG: Ministério da Agricultura
IIAM: Instituto de Investigação Agrária de Moçambique
INE: Instituto Nacional de Estatística
INIA: Instituto Nacional de Investigação Agrícola
SAN: Segurança Alimentar e Nutricional
SDAE: Serviços Distritais das Atividades Econômicas
SETSAN: Secretariado Técnico para a Segurança Alimentar e Nutricional
PGDR: Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural
UEM: Universidade Eduardo Mondlane
UFRGS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
12
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO-------------------------------------------------------------------------------------------14
2 CONSTRUINDO A PESQUISA-----------------------------------------------------------------------28
2.1 Descrição do local da pesquisa-----------------------------------------------------------------------30
2.1.1 Moçambique-------------------------------------------------------------------------------------------30
2.1.2 Nampula------------------------------------------------------------------------------------------------31
2.1.3 Murrupula---------------------------------------------------------------------------------------------34
2.1.4 Mogincual----------------------------------------------------------------------------------------------35
2.2 Selecionando as famílias para o estudo------------------------------------------------------------37
2.3 A pesquisa a campo e a coleta de dados------------------------------------------------------------43
2.4 Análise de dados----------------------------------------------------------------------------------------45
3 FAMÍLIAS, AGRICULTURA E BATATA-DOCE: CONTEXTUALIZANDO O
ESTUDO ---------------------------------------------------------------------------------------------------- 47
3.1 Percurso histórico das famílias rurais e sua relação com a agricultura---------------------47
3.2 A batata-doce surge em Moçambique: alternativa negativa----------------------------------58
4 BATATA-DOCE PARA QUEM? IDENTIDADE INFANTIL NA PRODUÇÃO E
CONSUMO DA BATATA-DOCE----------------------------------------------------------------------65
4.1 O lugar da batata-doce na família------------------------------------------------------------------65
4.2 Criança é sempre criança: batata-doce e transmissão de saberes tradicionais -----------75
5 MANDIOCA OU BATATA-DOCE: O CONSUMO ALIMENTAR INSERIDO EM UMA
ORDEM MORAL ------------------------------------------------------------------------------------------82
5.1 Mandioca é para o consumo do corpo e da alma-------------------------------------------------82
5.2 Batata-doce e a quebra da honra e prestígio------------------------------------------------------91
5.3 Batata-doce dá azar------------------------------------------------------------------------------------99
13
6 BATATA-DOCE DE POLPA ALARANJADA: DUAS SITUAÇÕES, DOIS
SIGNIFICADOS-------------------------------------------------------------------------------------------104
6.1 Distrito de Murrupula------------------------------------------------------------------------------- 104
6.2 Distrito de Mogincual--------------------------------------------------------------------------------113
7 FESTAS TRADICIONAIS --------------------------------------------------------------------------124
7.1 Mulipo --------------------------------------------------------------------------------------------------125
7.2 Imwali---------------------------------------------------------------------------------------------------128
7.3 Alukhu--------------------------------------------------------------------------------------------------132
7.4 Natiri----------------------------------------------------------------------------------------------------136
7.5 Satakha--------------------------------------------------------------------------------------------------138
8 NUTRIÇÃO E DESNUTRIÇÃO --------------------------------------------------------------------141
8.1 Nativos e cativos---------------------------------------------------------------------------------------141
8.2 Batata-doce de polpa alaranjada: é estrangeira------------------------------------------------146
8.3 Duas entidades, uma só família--------------------------------------------------------------------149
8.4 Escolhas que trazem prazer e felicidade---------------------------------------------------------154
9 CONSIDERAÇÕES------------------------------------------------------------------------------------159
REFERÊNCIAS ------------------------------------------------------------------------------------------165
APÊNDICES ----------------------------------------------------------------------------------------------170
ANEXOS ---------------------------------------------------------------------------------------------------174
14
1 INTRODUÇÃO
A batata-doce é uma raiz tuberosa que se pode classificar segundo o formato, tamanho,
cor interna, doçura, precocidade, cor das folhas e até das flores. Segundo Niederwieser (2004), a
batata-doce (Ipomea batatas) pertence à família convolvulácea e é originária da América Latina.
Ela pode ser usada como forrageira na alimentação animal, na alimentação humana e como
matéria prima na indústria para a produção de sucos, es, doces e outros derivados. A variação
na sua coloração interna é o indicador de maior concentração de betacaroteno, tido como maior
precursor da vitamina A, isto é, quanto mais escura for a tonalidade da cor interna, maior será a
concentração de betacaroteno. A batata-doce que não apresenta coloração é conhecida como
sendo de polpa branca, portanto, a cor constitui aqui um dos importantes elementos de distinção
entre as variedades.
Em Moçambique, onde foi feito este estudo, a batata-doce é cultivada e consumida em
todo o país, sendo uma prática voltada para o autoconsumo. Mesmo assim, a produção e o
consumo dentro das famílias são restritos a ambientes ou situações de convívio consideradas
desprezíveis. Portanto, a batata-doce não constitui um produto agrícola de extrema importância
no que diz respeito à priorização em termos de espaço agrícola e tempo para seu cultivo e
consumo dentro das famílias, bem como entre as famílias. É importante salientar que não existe
uma empresa privada e capitalizada que se dedica à produção em monocultivo da batata-doce em
escala maior para venda ou mesmo para abastecimento como matéria prima para as indústrias de
processamento. No dia a dia, mesmo que haja disponibilidade de tempo, as famílias nunca
elevam a produção da batata-doce por área cultivada. Isto mostra o nível de desinteresse social
por esta planta, pois mesmo em tempos de crise as famílias não recorrem a ela.
Tratando especificamente da batata-doce de polpa alaranjada, nos casos de extrema
necessidade, quando há escassez de alimentos em algumas zonas, eleva-se a atenção dada a esse
tubérculo, e isto se deve, também, a campanhas de persuasão feitas pelos técnicos e/ou
extensionistas das organizações governamentais e não-governamentais. As famílias recebem a
rama da batata-doce de polpa alaranjada e não a de outro tipo, mais comum, que tem a polpa
branca. As campanhas são feitas para que as famílias optem por produzir e consumir
massivamente esse tubérculo, para que obtenham a vitamina A. A batata-doce de polpa branca,
que sempre foi cultivada ao longo dos tempos, desde sua introdução em Moçambique, nunca é
15
referenciada nos momentos de contrapor as diferenças entre uma batata e outra. Como se não
bastasse, é apresentada uma variedade de batata-doce de polpa alaranjada, variando da mais
escura à mais clara, com nomes científicos que fogem ao domínio da população. Segundo estudos
feitos por Andrade, Naico e Ricardo (2003), são 11 as variedades dessa batata-doce adaptadas e
produzidas em todo país, nomeadamente: Resisto, Jonathan, Japon selecto, Caromex, Tainung64,
Coordener, Lo 323, Kandec, CN144849, 1999062.1 e Gaba gaba.
Nos parágrafos anteriores, tratamos de como a batata-doce em geral, tanto a de polpa
alaranjada como a de polpa branca, é inserida na socialização das famílias. Daqui em diante, para
melhor entendimento sobre como a batata-doce de polpa alaranjada entra nos programas do
governo e de seus parceiros para massificação de seu uso, como objeto de política pública, será
feita uma descrição cronológica, desde seu ingresso em território moçambicano.
Foi por volta do triênio 1997-1999 que os primeiros materiais para propagação
vegetativa entraram em Moçambique, para fins de pesquisa científica. O Instituto Nacional de
Investigação Agronômica (INIA) de Moçambique, em parceria com o International Institute of
Tropical Agriculture - IITA, que tem sede na Nigéria, desenvolveu variedades que melhor se
adaptam às condições agroclimáticas do país. Este trabalho de pesquisa e de adaptação foi sendo
conduzido de forma a que os resultados pudessem servir à população a um ritmo padrão, isto é,
que aos poucos essas variedades fossem agregadas na lista de opções de produtos a serem
plantados e consumidos em função do interesse das famílias.
Enquanto os trabalhos de pesquisa decorriam, ocorreram no ano de 2000 cheias que
fustigaram toda região Sul do país, abrangendo as províncias de Maputo, Gaza e Inhambane.
Essas cheias são descritas pelos mais idosos como sendo históricas, pois nunca havia se visto
algo parecido no passado
1
. Os idosos dizem que somente acompanharam histórias dos seus pais e
avós sobre a ocorrência de inundações, mas que aquelas de 2000 foram realmente muito intensas.
A destruição foi grande, abrangendo desde infraestruturas sociais e econômicas, perda de vidas e
de bens das famílias. As cidades, os campos agrícolas, os celeiros, tudo ficou debaixo de água.
Esta situação colocou a região em um estado de emergência em que faltava tudo, de mantimentos
1
Devido à localização geográfica de Moçambique, rios que nascem no interior do continente (em países vizinhos)
atravessam o território moçambicano e despejam as suas águas no Oceano Índico, como por exemplo, o Incomati,
Limpopo, Zambeze, entre outros. Ademais, Moçambique está em uma região meteorologicamente descrita como
zona de convergência intertropical, o que faz com que ventos fortes e ciclones não sejam uma raridade (veja anexo
I). Face a este fator geográfico, anualmente e principalmente no período chuvoso, ocorrem cheias com frequência,
tornando-se um fenômeno natural “normal” no contexto nacional.
16
a moradia, o que gerou desnutrição e consequente morte de pessoas por fome e afogamentos, pois
as águas ficaram cerca de um mês acumuladas. As crianças foram as mais prejudicadas durante e
depois da fase pós-cheias, visto que aproximadamente 28% dos óbitos ocorreram na faixa etária
compreendida entre 0 a 10 anos durante as cheias. Mais tarde, depois das cheias, o número de
mortes duplicou, por desnutrição e outras doenças que decorreram desse evento.
Este fato criou sensibilidades no seio do governo moçambicano, pois, apesar da vontade
das famílias em reatar suas atividades, encontravam dificuldades, porque começou a se observar a
eclosão de doenças endêmicas nas regiões, que basicamente eram ligadas à fome, consumo de
água imprópria e de alimentos pouco nutritivos. Com os solos alagados, as opções de sementes
para agricultura não estavam disponíveis para responder de imediato à escassez de alimentos e,
ao mesmo tempo, proporcionar a nutrição, principalmente das crianças. O governo fez apelos a
todos os setores para que prestassem apoio e ajuda. Foi então, durante esse processo, que o INIA
apresentou a proposta da batata-doce de polpa alaranjada. Essa proposta foi acolhida e de
imediato tratou-se de distribuir a rama para que as famílias produzissem para prover o seu
sustento naquele período de crise. Ao final de seis meses, notou-se grande melhoria, quer na
componente alimentar quer na componente nutricional, principalmente das crianças, e as mortes
por desnutrição e doenças endêmicas reduziram-se em 70%. Esses resultados foram considerados
também um marco histórico, no qual o país conseguiu resolver o problema segundo alguns
analistas políticos moçambicanos, que se pronunciaram na época. Obviamente, pode ser que
algumas ações paralelas como, por exemplo, a higiene coletiva e individual, a fixação das
moradias em terras altas, construção e reabilitação de vias de acesso, contribuíram para tal efeito
positivo.
Contudo, foi reforçada a ideia de que a insegurança alimentar e nutricional do país
poderia ser controlável com a produção local, na qual a batata-doce de polpa alaranjada
desempenharia um papel muito importante, principalmente em crianças de 0 a 10 anos. Aliado a
resultados anteriormente obtidos através do Inquérito aos Agregados Familiares (IAF), em
1996/97, que revelaram que, na época, aproximadamente 70% da população do país vivia em
extrema pobreza e insegurança alimentar, principalmente nas zonas rurais, o governo mudou este
cenário. As atenções passaram a ser no sentido de massificar também a produção e o consumo da
batata-doce de polpa alaranjada nas províncias. Estava aberta, desta forma, a grande campanha
nacional rumo à erradicação da insegurança alimentar e nutricional. O governo promoveu,
17
através dos serviços de extensão rural da rede pública, sua implementação com focos no cultivo e
consumo em massa, não dos agricultores familiares afetados na zona Sul, mas de todos os
habitantes do país, isto é, toda e qualquer pessoa que tivesse um espaço disponível deveria plantar
esta batata-doce.
Motivado pelos resultados e também pela facilidade de produção (a variedade é menos
exigente em termos de manejo e nutrição do solo), o governo implantou em todos os programas
desenvolvimentistas nacionais, através de instituições públicas
2
e organizações não-
governamentais
3
, um pacote específico para tratar de assuntos de produção e consumo das
variedades de batata-doce de polpa alaranjada. Mais tarde, criou equipes de trabalho integradas,
multissetoriais, com dimensão nacional, que culminaram na implementação incondicional da
Estratégia Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (ESAN)
4
do Secretariado cnico de
Segurança Alimentar e Nutrição (SETSAN), que tinha sido aprovado pelo Conselho de
Ministros, pelo Decreto 16/98 (SITOE, 2006), como um órgão de coordenação nacional, para a
implementação do Plano de Ação da Segurança Alimentar e Nutrição (PASAN)
5
. Portanto, a
ESAN e o PASAN se ligam ao SETSAN, constituindo as suas principais realizações.
A função do SETSAN é coordenar a formulação e implementação de políticas e
programas de Segurança Alimentar e Nutricional por todos os agentes (governo, organizações
não-governamentais, doadores, agências das Nações Unidas, setor privado). A visão deste órgão
é a criação de um ambiente saudável que permita o diagnóstico holístico da situação de segurança
alimentar e nutricional, tal como a tomada de decisões políticas integradas que visam reduzir o
impacto de situações de insegurança alimentar e malnutrição de forma descentralizada. Para isso,
2
Ministério de Agricultura e Desenvolvimento (MADER), denominado atualmente como Ministério da Agricultura
(MINAG), Ministério da Saúde (MISAU) e o próprio Instituto Nacional de Investigação Agronômica (INIA).
3
Organizações não-governamentais nacionais e estrangeiras, como por exemplo: Visão Mundial, Care International,
Kulima, Sarnet, Save The Children e Agência para o Desenvolvimento de Recursos Adventistas (ADRA).
4
A ESAN tem como objetivo “garantir que todos os moçambicanos tenham o acesso físico e econômico a todo o
momento aos alimentos necessários para levarem uma vida saudável e ativa.” Para isso foram identificados três
pilares-base:
a) a existência de uma disponibilidade suficiente de alimentos com qualidade e variedade adequadas;
b) as pessoas devem ter acesso aos alimentos através da produção própria, compras, trocas, ofertas etc., e
c) as pessoas devem ser capazes de utilizar os alimentos de modo a que se assegure que cada membro receba e
absorva os nutrientes adequados para as suas necessidades.
5
Atividades concretas que visam ao cumprimento integral do ESAN.
18
foram identificados objetivos gerais
6
e específicos
7
que mostram qual é a base do
exercício de coordenação. Nessa perspectiva, visando envolver mais o Ministério da Agricultura
(MINAG) como uma instituição-chave no cumprimento do mandato e visão do SETSAN, foram
implementadas, em 2000, políticas setoriais que já estavam previstas na sua aprovação.
Portanto, como se pode observar, a massificação na produção e consumo da batata-doce
de polpa alaranjada em Moçambique ocorreu no âmbito emergencial e de resposta aos programas
intersetoriais de combate à Insegurança Alimentar e Nutricional. Embora as famílias estejam
conscientes do problema de desnutrição, após cinco anos de intensas campanhas de massificação
não estão com o mesmo entusiasmo, optando por retrair-se aos moldes de consumo anteriores,
com a batata-doce de polpa branca. A produção voltou a ser em consórcio e pequenas parcelas
são reservadas para a variedade de polpa alaranjada.
Dado o emaranhado de regras e normas de conduta culturais, característico das
comunidades, principalmente das zonas rurais, as escolhas são de fato diferentes e até certo ponto
estranhas sob ponto de vista de um observador urbano. Mas Seymour (2005), no seu estudo sobre
a construção social do gosto, retomando a abordagem proposta por Bourdieu, afirma que as
escolhas não são inconscientes mas, sim elaboradas dentro dos limites relativamente estreitos das
possibilidades oferecidas pela posição na estrutura social. Portanto, nada é feito de uma forma
aleatória pelas sociedades. Principalmente no processo de alimentação, tudo é controlado e
gerenciado dentro de uma certa racionalidade, seja ela movida por fatores endógenos (princípios
culturais) ou por fatores exógenos (pela observação, análise e adoção de práticas de sociedades
vizinhas). Com este fato, que se levar em conta que é necessário compreender os impactos do
processo de transição na trajetória alimentar dos agricultores familiares pela introdução destas
variedades, o que, neste caso específico, faz com que, após o término do programa, não haja
continuidade prática por parte daqueles considerados grupo-alvo. Verifica-se relativo abandono
6
A planificação e implementação de intervenções às populações em situação de insegurança alimentar e expostas ao
risco; a formulação de políticas e a avaliação e monitoria das ações de segurança alimentar e nutricional (SAN) às
populações vulneráveis.
7
Promover a advocacia dos assuntos ligados à SAN, de tal maneira que recebam uma alta prioridade na formulação
de políticas; criar um sistema de informação de base útil que permita um entendimento profundo sobre a SAN e as
causas da insegurança alimentar e desnutrição no país, regiões e províncias; promover a capacitação técnica ao nível
central e provincial; estimular a realização de estudos de caso (ex. HIV/SIDA, gênero, remessas, meio ambiente,
comércio fronteiriço, etc.); encorajar o Reforço Institucional do SETSAN Central e Provincial; promover a
descentralização da agenda SAN ao vel provincial; monitorar, avaliar e medir o impacto das atividades de SAN;
coordenar e estimular a planificação e orçamentação das atividades setoriais de SAN; estimular a elaboração de
microprojetos de SAN e formular, implementar e avaliar o PASAN.
19
na produção e consumo de batata-doce de polpa alaranjada nos moldes sugeridos pelo programa
de promoção coordenado pelo Secretariado Técnico para Segurança Alimentar e Nutrição, e
estudos de monitoria e avaliação frequentemente conduzidos não trazem como referência as
questões sociais e étnicas, o que faz com que não se conheça a trajetória alimentar das famílias,
os graus de interferência nas normas e regras historicamente estabelecidas, que podem estar por
detrás dessas desistências. Ademais, o tecido social moçambicano é tão complexo que, embora os
relatórios de monitoria e avaliação elaborados no âmbito do acompanhamento e implementação
do programa apontem para um aumento gradativo da desnutrição infantil, não indicam as razões:
se é por falta ou não de consumo desta batata-doce, como as relações sociais foram afetadas e
principalmente como a distribuição da mão-de-obra familiar foi afetada dentro das famílias, pois
esses estudos limitam-se apenas a medir níveis de nutrição e ganhos monetários por áreas de
cultivo da batata-doce de polpa alaranjada.
No presente estudo, embora em várias ocasiões se possa abordar o tema da Segurança
Alimentar e Nutricional (SAN) e das políticas públicas, a ideia não é discutir a relação da batata-
doce de polpa alaranjada com a SAN ou analisar a introdução dessa variedade como objeto de
política pública, mas sim trazer observações e questionar como a produção e o consumo da
batata-doce de polpa alaranjada estão sendo apropriados como objeto de uma política pública de
SAN pelas famílias rurais da província de Nampula, no Nordeste moçambicano. A Segurança
Alimentar e Nutricional diz respeito aos bens alimentares e ao modo como eles são apropriados
pelas famílias e grupos sociais na alimentação (MALUF, 2007). Com esse fio condutor e aliado
aos trabalhos de Mirasse (2006) e Sitoe (2006), que afirmam ter observado aumento de níveis de
desnutrição infantil, principalmente nas zonas rurais, pressupõe-se que as famílias não consomem
a batata-doce de polpa alaranjada. Por isso espera-se, com este estudo, trazer contribuições que
possam ajudar na análise e propiciar informações técnico-científicas alternativas para a
explicação desta problemática.
Como foi referenciado nos parágrafos anteriores, as normas culturais é que regem a
conduta social das famílias rurais. E para que o consumo da batata-doce de polpa alaranjada
perdure, a alimentação desempenha um papel importante, visto que nela as famílias expressam
também a produção e reprodução dos valores identitários da sua culinária, enquanto grupo social.
Sobre isso, Contreras e Gracia (2004) estabelecem quatro condições para que uma determinada
20
cozinha adquira status identitário e perdure nas comunidades introduzidas, cuja funcionalidade é
dada pelas influências de combinação dessas características, nomeadamente:
1. Um meio determinado – disponibilidade dos produtos alimentares;
2. A cultura a tecnologia posta em funcionamento para produzir e preparar alimentos,
o sistema social e econômico;
3. A ideologia – conjunto de crenças ligadas à alimentação e o lugar que ocupa dentro da
sociedade;
4. Adequação e adaptabilidade para perdurar ser adaptativa e procurar uma
alimentação adequada, em que saúde e alimentação marcham conjuntamente.
(CONTRERAS E GRACIA, 2004, p. 205)
Portanto, como vimos, as quatro características trazidas pelos autores para que uma
cozinha adquira status identitário faz menção às questões culturais e ideológicas que mais
influenciam nos processos decisórios das famílias de Nampula. As outras duas características são
como se fossem pontes de ligação entre famílias de uma comunidade, visto que as escolhas
individuais não se sobrepõem às da comunidade e, como as escolhas são regidas pela cultura, as
opções comunitárias, por representarem a maioria, se sobrepõem às escolhas individuais. Este
princípio é rico e adapta-se às famílias de Nampula ao representar consigo aspectos do sistema
culinário e os condimentos, que dão atributos identitários à comida em uma dada região, que, por
sua vez, criam o prazer de consumir a comida ou alimento.
O sistema culinário proposto por Gonçalves (2002, p. 4-5), chama atenção para seu
caráter estruturado e a interdependência de seus elementos constitutivos:
a) Processos de obtenção de alimentos (caça, pesca, coleta, agricultura, criação, troca ou
comércio);
b) Seleção de alimentos (sólidos e líquidos, doces e salgados, etc.);
c) Processos de preparação (cozimento, fritura, temperos, etc.);
d) Saberes culinários;
e) Modos de apresentar e servir os alimentos (marcados pela formalidade ou pela
informalidade);
f) Técnicas corporais necessárias ao consumo de alimentos (maneiras à mesa);
g) ‘Refeições’: isto é, situações sociais (quotidianas e rituais) em que se preparam,
exibem e consomem determinados alimentos;
h) Hierarquia das ‘refeições’;
i) Quem oferece e quem recebe uma ‘refeição’ (quotidiana ou ritual);
j) Classificação de comidas principais, complementares e sobremesas;
k) Equipamentos culinários e como são representados (espaços, mesas, cadeiras,
esteiras, talheres, panelas, pratos, etc.);
l) As classificações do ‘paladar;
m) Modos de se dispor dos restos alimentares, etc.
Todo este conjunto de elementos constitutivos permite que, mediante a interação com
outras populações, com outros grupos, os membros de um grupo possam tomar consciência de
21
suas particularidades e que essas façam com que se comportem de uma forma e não de outra, o
que as tornam características diferenciais entre grupos, conferindo sentido de pertencimento e de
identidade.
De acordo com o que disseram Contreras e Gracia (2004), sobre as quatro condições
para que uma determinada cozinha adquira status identitário e perdure nas comunidades
introduzidas, é partindo dos hábitos alimentares e preferências que os habitantes de uma
comunidade proporcionam a si mesmos o sentido de pertencimento e de identidade, unidos a
princípios morais. Os hábitos que um determinado povo adota e adapta ao longo dos seus tempos
históricos são transmitidos de geração em geração na escola familiar. Com estas quatro
condições, as inovações alimentares ou alimentos novos introduzidos na cadeia alimentar deverão
incorporar nas suas sociedades, segundo Contreras e Gracia (2004), um conjunto de regras, usos,
práticas, representações simbólicas e valores sociais, morais, religiosos e higiênico-sanitários.
Ainda de acordo com os autores, é preciso que a sociedade encontre no novo alimento atributos
identitários para que seu consumo perdure, pois a comida normal de um grupo não é
necessariamente reconhecida pelos seus praticantes como um modo de afirmar sua
individualidade, já que os humanos observam regras precisas sobre o que comem, sobre a
maneira de preparar os alimentos e sobre as pessoas com as quais consomem.
Da Matta (1987), falando sobre o simbolismo da comida no Brasil, diz que em todo
planeta os homens têm que comer, mas cada sociedade define a seu modo o que é comida. De
acordo com esse autor, o alimento é transformado em comida não pelo ato crítico do
cozimento, mas também pelo modo com o qual o alimento é preparado. É de salientar que o
alimento é entendido aqui segundo o que foi apresentado por Woortmann (1978), no seu trabalho
sobre hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda, que estabelece uma
estreita relação entre o alimento e o organismo que o consome, atribuindo para este um
determinado valor ideológico, cognitivo e simbólico, de ser recomendado ou rejeitado dentro da
socioalimentação:
[...] alimento é algo “representado”, isto é, apreendido cognitiva e ideologicamente.
Nem tudo que pode ser comido, ou possa constituir alimento, é percebido como tal.
Ademais, o comer não satisfaz apenas a necessidades biológicas, mas preenche também
funções simbólicas e sociais. (WOORTMANN, 1978, p. 4)
Esta ideia de alimento incorpora também as condições de produção, acesso e padrões de
consumo estabelecidos de acordo com o princípio de condimentação. Entendemos aqui o
22
consumo (no caso, de alimentos) como a incorporação de alimentos que visa à satisfação de
necessidades físicas, biológicas e que permite a reprodução social e confere um status, uma
identidade, conforme propõem Barbosa e Campbell (2007):
[...] toda e qualquer sociedade faz uso do universo material a sua volta para se
reproduzir física e socialmente. Os mesmos objetos, bens e serviços que matam a nossa
fome, nos abrigam do tempo, saciam nossa sede, entre outras “necessidades” físicas e
biológicas, são consumidos no sentido de “esgotamento”, e utilizados também para
mediar nossas relações, nos conferir status, “construir” identidades e estabelecer
fronteiras entre grupos e pessoas. Para além desses aspectos, esses mesmos bens e
serviços que utilizamos para nos reproduzir física e socialmente nos auxiliam na
“descoberta” ou na “constituição” de nossa subjetividade e identidade. Mediante a
oportunidade que nos oferecem de expressarmos os nossos desejos e experimentarmos
as suas mais diversas materialidades, nossas reações a elas são organizadas,
classificadas e memorizadas e nosso autoconhecimento é ampliado. (BARBOSA e
CAMPBELL, 2007, p. 22)
Portanto, o ato de consumir permite fazer uma análise individual ou grupal da
importância dos valores e simbologias de representatividade que o alimento pode trazer ou
contribuir na preservação dos condimentos identitários, definidos e assumidos pelos seus
praticantes como sendo a demarcação de fronteiras sociais e culturais. Alimentar-se de modo
como as regras socioculturais foram estabelecidas não mantém a essência física da própria
vida humana como também permite a sobrevivência da vida espiritual na qual se incorpora e se
expressa a própria identidade como indivíduo ou grupo diferente dos outros.
Olhando para a agricultura moçambicana, ela é praticada pelas famílias rurais, e sua
produção agrícola visa principalmente ao consumo familiar e possui uma relação com o mercado
de uma forma descontínua, dependendo de diversos fatores ambientais e sociais. Portanto, as
famílias rurais produzem aquilo que vai lhes ser útil em uma festa tradicional da qual pretendam
participar ativamente ou para a qual foram indicadas para organizar, ou ainda as escolhas sobre o
que produzir têm relação com o tipo de alimentos habitualmente consumidos pela sua família.
Essa liberdade de decidir envolve a alocação e distribuição da mão - de - obra familiar que
dispõem, ou a troca de trabalho por trabalho dentro da comunidade. As famílias não decidem
segundo as regras do mercado, mas sim, é como se o mercado tivesse que se adaptar às regras do
agricultor familiar moçambicano, porque a sua prioridade não é ganhar dinheiro, mas sim, através
da reciprocidade, inserir-se no sistema cultural. Por isso que, em um estudo sobre a economia da
família rural africana feito por Negrão (2001), realizado em Moçambique, após constatar as
características prementes de ocupação tradicional da terra, as formas de distribuição por herança
23
familiar e de reciprocidade, o valor simbólico dado ao trabalho realizado nas parcelas de terra e o
processo de tomada de decisão via cultura local, o autor recomenda o uso do termo famílias
rurais como unidade de produção, reprodução e distribuição ao invés de camponês, agricultor
familiar ou outra denominação. O Estado, através do Ministério da Agricultura, anuncia para
cada ano aquilo que deverá constituir o preço nimo para cada produto, isto para prevenir que
os comerciantes ambulantes não decidam o preço e o imponham aos produtores. Com isto não se
pretende afirmar que as famílias rurais são estáticas no seu modo de reprodução social, que
tomar em consideração o que apresenta Woortmann (1990, p. 14), no seu trabalho “Com Parente
Não se Neguceia: o campesinato como ordem moral” que afirma não haver camponeses puros,
mas graus distintos de campesinidade, de articulação ambígua com a modernidade, salientando
mais adiante que campesinidade não é uma prisão cultural.
Seymour (2005), trabalhando a noção de habitus de Bourdieu na formação social do
gosto afirma que:
Habitus... pode ser visto como um conjunto de predisposições e tendências para fazer
algumas coisas e não outras, e para fazê-las de maneiras específicas e não de outras
maneiras. O habitus, portanto, não determina nossas práticas, mas aumenta a
probabilidade de adotarmos determinadas práticas em vez de outras. [...] o habitus é
aprendido, esse aprendizado é adquirido de modo inconsciente apenas pela imersão em
determinado meio social. (SEYMOUR, 2005, p. 3)
Os comportamentos e atitudes não são determinados por nossa predisposição de
escolha, mas sim por causa das práticas que escolhemos, que fazem com que o proceder seja em
função daquilo que se julga sensato ou óbvio no meio social em que o indivíduo ou grupo está
inserido.
Dando ênfase a situações de crise sociais nas comunidades rurais, Woortmann (1990)
admite a hipótese de que esses momentos costumam ser provavelmente situações de agudização
consciente de valores tradicionais. Neste sentido, apoiando-se nessa linha de pensamento e
assumindo a família como estrutura social que congrega representações de ordem moral quando é
também afetada pela crise de alimentos, ela impõe mecanismos que vão à lógica de reprodução
dos seus valores simbólicos, como a reciprocidade, e não principalmente aqueles de produção
para o mercado. Woortmann (1990) e Woortmann e Woortmann (1997) afirmam que o
campesinato não é estático, ele evolui nas suas diferentes formas devido às mudanças regionais e
globais de fazer a agricultura que direta ou indiretamente agem sobre ele.
24
A trajetória camponesa não é, contudo, linear. Um movimento que se dirige a uma
dimensão de modernidade pode ser ele mesmo necessário para que haja um outro
movimento, o de reconstituir a tradição. A estrada principal que conduz à modernidade
(individualização, secularização, racionalidade) abre variantes que reconstroem a ordem
tradicional, ou a exacerbam, como nos chamados “movimentos messiânicos” e nos
milenarismos. (WOORTMANN, 1990, p. 16)
Na opinião de Woortmann (1990) existe um problema de construção, em que o
campesinato é às vezes entendido na sua lógica de produção como uma economia, no sentido de
que o valor econômico do dinheiro seria mais considerado nas famílias rurais - Homo
oeconomicus - do que representaria os seus valores culturais - Homo moralis. Mas o que se
verifica nas comunidades rurais observadas nesta pesquisa é que os agricultores não estão muito
preocupados com o dinheiro ou com o valor que o dinheiro possa ter nas suas vidas, mais sim
com a reprodução familiar através das suas relações sociais. Neste contexto aqui relatado, o
Homo moralis se sobrepõe ao Homo oeconomicus. As comunidades rurais dão prioridade não ao
ganho monetário, por excelência, nas suas relações, mas sim à moral cultural que está por detrás
de tais trocas que, não raramente, não envolvem transação monetária mas sim de reciprocidade.
O interesse neste trabalho, como já foi referenciado anteriormente, é saber também
como essas relações foram afetadas com a implementão do programa para a melhoria da
nutrição através da produção e consumo da batata-doce de polpa alaranjada. As motivações por
este caminho são decorrentes de minha vivência direta com a prática da agricultura. Sou de
origem rural, nascido na província de Nampula, apesar de ter sido criado no meio urbano, e desde
cedo desenvolveu-se em mim o gosto de trabalhar com a terra, no que diz respeito à produção
agrícola, o que fez com que durante a minha trajetória escolar fixasse isso como meta, a de ser
agrônomo para melhor saber produzir. Após concluir o 12º ano, em Nampula, ingressei na
Faculdade de Agronomia e Engenharia Florestal, vinculada à Universidade Eduardo Mondlane,
em Maputo, onde me formaria como agrônomo. Durante o período de formação universitária,
capacitei-me em matérias de extensão rural, o que foi uma grande agregação aos meus
conhecimentos acadêmicos e profissionais. E, ainda durante a formação, tive oportunidade de
fazer parte do grupo de pesquisa multidisciplinar sobre Liberalisation, Gender and Livelihoods:
The Cashew Nut Case” liberalizão, gênero e estratégias de sustento: O caso de castanha de
caju, estudo direcionado para o setor de caju entre as famílias rurais da província de Nampula, no
Norte, e da província de Gaza, no Sul do país.
25
Após a conclusão do curso universitário, trabalhei como pesquisador e supervisor de
extensão rural desde 2001 nas províncias de Inhambane e Gaza, no Sul do país, em projetos de
repovoamento do caju e segurança alimentar, conduzidos pela Agência para o Desenvolvimento
de Recursos Adventistas - ADRA-Sul e coordenados pela Direção Provincial da Agricultura -
DPA. Em 2004, por inerência de funções, integrei a equipe multidisciplinar de consultores
nacionais do Centro de Formação Agrária - CFA e mais tarde a equipe de trabalho em
Transferência de Tecnologias do Instituto de Investigação Agrária de Moçambique IIAM, em
Maputo. Trabalhando ainda no IIAM integrei, em 2006, a equipe de trabalho denominada Grupo
de Análise de Vulnerabilidade GAV, do Secretariado Técnico para Segurança Alimentar e
Nutrição – SETSAN, central sediada na capital, Maputo.
Foi trabalhando em pesquisa agrária, nutrição e extensão que me confrontava com
comportamentos dos agricultores um pouco fora daquilo que pretendia como pesquisador. Muitas
perguntas começaram a pairar e em conversas com meus colegas da equipe, informalmente
sempre ouvi dizer que os agricultores são “burros” ou não sabem o que querem, são assim
mesmo, que “a gente se empenha tanto para eles e eles estão nem conosco”. As expressões
“burro” e “não sabem o que querem” me deixavam inquieto, porque por mais dotados de
conhecimentos que sejamos, nunca atingimos o topo do conhecimento, de modo que se torna
insustentável chamar o outro dessa forma. O que existe sim de diferença é a distância entre um
ponto do conhecimento em relação ao outro em que as pessoas estão localizadas, um sabe mais
um pouco em relação ao outro, portanto não existe um indivíduo totalmente “burro” no termo
absoluto e nem sábio absolutamente, porque senão a ciência seria estanque. Da mesma forma que
não saber o que se quer atribui ao sujeito afirmativo um status superior, o que muitas vezes
levou-me a considerar se isso ocorria pelo fato do agricultor ser do meio rural. Nestes termos,
fiquei convencido também que o rural surgiu primeiro, mesmo antes do urbano, a agricultura
antes do industrial, então não era sensato o status que meus colegas procuravam atribuir a si
mesmos, porque, conforme lembram Mazoyer e Roudart (2001)
8
, todas as pessoas têm uma raiz
no rural, por mais que muito urbanos sejamos. Na verdade, primeiro surgiu o campo, o rural, e
8
Mazoyer e Roudart (20001) lembram que o homem foi coletor antes de industrial, e viveu disso durante séculos.
Ainda de acordo com esses autores, quando o homem surgiu viveu no campo antes de construir as cidades. “Foi
apenas no neolítico, há menos de 10.000 anos que ele começou a cultivar plantas e a criar animais, que ele próprio
domesticou, introduziu e multiplicou em todas as espécies de meios, transformando desta forma os ecossistemas
naturais originais em ecossistemas cultivados, artificiais e explorados pelos seus cuidados (MAZOYER e
ROUDART, 2001, p. 20)”.
26
depois o urbano, as cidades, dentro de um processo na história do ser humano na terra. Nesse
processo, cada grupo cria para si regras de vida e de como lidar com o meio a sua volta. Estas
regras constituem a sua cultura, o seu modo de ser e ter que merecem ser respeitados.
Aos poucos comecei a perceber que precisava rumar para outra perspectiva de
conhecimento acadêmico, indo para uma área que pudesse entender o outro lado, obscuro para
mim, do trabalho agrícola, o ser humano enquanto sujeito trabalhador do campo, e que tem a sua
machamba (parcela agrícola) como fonte de reprodução social. O destino me conduziu, em 2008,
ao Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil, onde durante cerca de dois anos as cortinas que impediam a
minha compreensão sobre o comportamento “camponês” foram removidas. A orientação da
professora Renata Menasche, que ganhei como um presente maravilhoso, e a minha integração ao
grupo de pesquisa por ela coordenado, denominado “Grupo de Estudos e Pesquisas em
Alimentação e Cultura”, vinculado ao PGDR, tornou-se um combustível que eu precisava para
que o barco rumasse para o porto certo e não tardou para que as cortinas começassem a cair. Mais
tarde, minha integração como membro do grupo fundador do Convívium Produtos da Terra, que
faz parte do movimento jovem Slow Food, que trabalha com a questão do alimento limpo, bom e
justo no Rio Grande do Sul, proporcionou-me uma identidade diferente, uma nova forma de ver o
saber científico, em que o novo convive com o antigo sem se excluírem mutuamente, mas sim se
complementando. Por isso, ao invés de analisar o consumo da batata-doce de polpa alaranjada
nas perspectivas estritamente associadas às dimensões produtivas e econômicas, optei por
procurar apreender as percepções sobre a Segurança Alimentar e a comida, conhecendo em que
medida a introdução das variedades desta batata-doce influenciou socioculturalmente as famílias
rurais da província de Nampula, no Nordeste moçambicano, no que concerne a seus hábitos
alimentares e à divisão familiar do trabalho.
Para enquadrar da melhor forma os assuntos abordados nesta pesquisa, dada sua
complexidade e pertinência, e das áreas que nela se entrecruzam, para além da introdução que
apresentei no capítulo anterior, os temas foram organizados em mais oito capítulos, conforme
apresentados a seguir:
No capítulo dois apresento como foi conduzido o estudo, desde a revisão bibliográfica
até a sua materialização com a elaboração desta dissertação, com suas diferentes fases tratadas de
27
forma clara, procurando estabelecer com o leitor uma ligação através da compreensão do país, da
sua gente e das condições em que se realizou esta pesquisa.
No terceiro capítulo apresento a descrição dos fatos narrados pelas famílias
entrevistadas, as suas relações com a agricultura, a trajetória alimentar e a origem da batata-doce
comum (a de polpa cor branca) e em função disso, estabeleço uma relação da aceitabilidade com
a batata-doce de polpa alaranjada, que compõe o objeto desta pesquisa.
No capítulo quatro discuto o papel da batata-doce dentro das famílias, principalmente
no que diz respeito à divisão de trabalho familiar, e também as características de pertencimento
da batata-doce entre os membros da família e como isso se repercute em ações do governo.
No quinto capítulo discuto as diferentes alternativas alimentares partindo da fala das
famílias entrevistadas no que tange à batata-doce de polpa alaranjada e a relação entre nutrição e
suas escolhas alimentares.
Tratando do lado simbólico da batata-doce, no capítulo seis procuro abordar como ela é
encarada e interpretada nos dois distritos onde foi feita a pesquisa de campo, quais os
significados que cada região adota e como isso se manifesta na divisão do trabalho familiar.
Dado que a mandioca e a batata-doce disputam espaços comuns, pelas famílias e pelo
governo, no capítulo sete descrevo as principais festas tradicionais, seus motivos e os alimentos
incorporados nessas festas, privilegiado um olhar dos rituais no seu cotidiano.
No capítulo oito procuro problematizar as visões segundo as quais a batata-doce
proporciona nutrição e minimiza a insuficiência nutricional, melhorando o sistema imunológico.
Esta problematização é feita trazendo de um lado a forma como os agricultores interpretam esse
fato e de outro o conhecimento cientificamente provado. Questiono também se o posicionamento
“moderno” e o “antigo” estariam em disputa.
No capítulo nove apresento as considerações finais e as recomendações deste trabalho
de pesquisa, destacando alguns posicionamentos face às constatações desta pesquisa em todas as
suas fases, bem como possibilidades de aprofundamento sobre a temática.
Com este arranjo dos principais capítulos que constituem o corpo textual deste trabalho
de pesquisa, procuro abordar questões específicas de como as diferentes famílias
estrategicamente m se comportado em face da introdução destas variedades de batata-doce e
também a relação entre o que é considerado cultural e o que é biológico.
28
2 CONSTRUINDO A PESQUISA
Este trabalho de pesquisa qualitativa, como exposto anteriormente, foi conduzido no
continente africano, na República de Moçambique
9
. Para a efetivação do presente estudo,
combinei diferentes técnicas de pesquisa para assegurar a complementaridade no alcance dos
objetivos definidos no capítulo introdutório. Foram usados dados secundários, obtidos através de
consultas bibliográficas. Também fizeram parte do conjunto de ferramentas de trabalho as
entrevistas semiestruturadas, observação participante, consultas formais e informais com líderes
comunitários, famílias rurais visitadas, técnicos ligados à área, chefes dos serviços centrais e
provinciais do Secretariado Técnico para a Segurança Alimentar e Nutricional - SETSAN,
Instituto de Investigação Agrária de Moçambique IIAM, Direção Provincial de Agricultura de
Nampula DPAN, Centro Zonal Nordeste - CZN e as Direções Distritais dos serviços
econômicos, vulgarmente designadas de Serviços Distritais de Atividades Econômicas SDAE
de Murrupula e Mogincual.
No capítulo introdutório falei sobre o SETSAN, como órgão coordenador das atividades
voltadas à Segurança Alimentar e Nutricional, que está representado nas províncias com a mesma
sigla. O IIAM é um instituto de pesquisa agrária nacional composto por quatro direções
nacionais, nomeadamente Direção da Agricultura e Recursos Naturais DARN, Direção de
Planificação, Administração e Finanças DPAF, Direção de Formação, Documentação e
Transferência de Tecnologias - DFDTT e Direção de Ciências Animais DCA. Estas direções
nacionais estão subordinadas à Direção Geral do IIAM. A Direção Provincial de Agricultura
subordina-se ao Ministério da Agricultura – MINAG. Os Serviços Distritais das Atividades
Econômicas subordinam-se a todos os setores de atividade socioeconômica, como uma unidade
de direção no fim da linha hierárquica, isto é, que se localiza mais perto das comunidades. O
Centro Zonal Nordeste é um centro de pesquisa que responde por toda a região Nordeste
moçambicana, abrangendo as províncias da Zambézia na parte Norte, Nampula, Cabo-Delgado e
parte Oeste da província do Niassa. Este centro subordina-se ao IIAM. Assim como se tem
9
Moçambique fica localizado na costa oriental da África Austral e faz fronteira com a Tanzânia ao Norte; a Noroeste
com a Zâmbia e Malawi; a Oeste com a Suazilândia e Zimbabwe; ao Sul e Oeste com a África do Sul e a Leste com
o Oceano Índico, denominado localmente como Canal de Moçambique. O país possui 11 províncias, 128 distritos e
33 municípios, dados contabilizados até o final de 2007 (Ver Anexo II).
29
Centro Zonal Nordeste, existem também outros três centros zonais, Noroeste, Centro e Sul, todos
subordinando-se ao IIAM, isto é, os centros zonais são representações regionais do IIAM.
Os contatos formais eram marcados com antecedência e com tópicos definidos no
roteiro ou a partir dele. Os contatos informais não eram planificados e o tema era espontâneo. As
entrevistas semiestruturadas obedeciam a um roteiro de perguntas que o entrevistado respondia
durante o encontro. A observação participante foi feita durante um mês em cada distrito, sem que
me ausentasse da comunidade, apenas trocava a hospedagem de família em família. Ao todo
foram 56 contatos ou entrevistas em dois meses de convivência no meu trabalho de campo. As
informações obtidas a partir das famílias, que constituem o foco desta pesquisa, foram tomadas
em primeira mão. Assim, estão presentes as suas inquietações e o seu ponto de vista no que diz
respeito à produção e consumo da batata-doce de polpa alaranjada. Portanto, precisei levar em
conta o ponto de vista dos meus interlocutores, buscando interpretar seus hábitos e sua cultura.
Velho (1978), em seu trabalho “Observando o familiar”, que aborda a questão de neutralidade e
imparcialidade, admite que não existe neutralidade com o objeto de pesquisa, o que existe é uma
distância mínima que pode garantir ao investigador condições de objetividade em seu trabalho. É,
portanto, pôr-se no lugar do outro. Esse “pôr-se no lugar do outro” não significa de jeito nenhum
procurar ser ou tornar-se nativo, mas sim, ver as coisas do ponto de vista do ator em questão,
segundo afirma Geertz (1989), em seu estudo “Interpretação das Culturas”, pois, de acordo com
esse autor, tentar torna-se nativo poderia comprometer o empreendimento científico, revela um
certo romantismo ou uma atitude semelhante à espionagem.
O trabalho de campo foi conduzido em dois distritos da província de Nampula:
Murrupula e Mogincual. A escolha da província de Nampula deveu-se ao grau de contribuição no
abastecimento de produtos agrários no mercado nacional e internacional, contribuindo
sobremaneira no crescimento da economia nacional como um todo. Sua natureza agcola faz de
Nampula um celeiro de alimentos, onde as intervenções de políticas agrárias têm se verificado
com maior impacto positivo. Ademais, foi também uma das primeiras províncias da zona Norte
do país a receber o programa de produção, multiplicação e distribuição da rama de batata-doce de
polpa alaranjada para os agricultores familiares.
30
2.1 Descrição do local da pesquisa
2.1.1 Moçambique
Moçambique possui uma população de cerca de 20,5 milhões de habitantes, sendo 9,8
milhões do sexo masculino e 10,7 milhões do sexo feminino (INE, 2009). Cerca de 70% dos
habitantes vivem e produzem na zona rural (ver Anexos II e III. 1; 2). O clima é tropical úmido,
com duas estações no ano, a chuvosa e a seca, sendo que a seca dura sete meses. Os primeiros
povos a se fixarem em Moçambique foram provavelmente os Khoisan, desde o século I, um povo
nômade que vivia basicamente da coleta de alimentos silvestres, e mais tarde por povos Bantu, por
volta do século IV (NAÇÕES UNIDAS, 2008).
A atividade econômica principal em Moçambique é a agricultura praticada pelas famílias
rurais. Feita a partir de enxadas, a população produz para o autoconsumo e exportação. As
províncias do Sul (Maputo, Gaza e Inhambane) têm como alimento base o arroz; as províncias do
Centro (Sofala, Manica e Tete) produzem e consomem mais o milho, enquanto que as províncias
do Norte (Zambézia, Nampula, Cabo-Delgado e Niassa) produzem e consomem mais a mandioca.
Fazendo uma distribuição alimentar, o país é constituído por províncias do arroz (Oryza sativa)
10
,
milho (Zea mays ssp)
11
e mandioca (Manihot sculenta)
12
, por isso não é por acaso que esses três
produtos constituem a base da culinária moçambicana. No entanto, é preciso realçar aqui a
multiplicidade de pratos e outros produtos, desde cereais, raízes e tubérculos, leguminosas,
horticultura, fruticultura, plantas medicinais e ornamentais. Para além da agricultura, o país vive
também de recursos marinhos, hídricos, florestais e faunísticos.
Existem cerca de 56 línguas nacionais, todas de origem Bantu. Cada província possui
mais de duas línguas nativas ou nacionais e oficialmente a língua portuguesa foi instituída como a
10
Cereal que se consome cozido depois de debulhado.
11
Quando fresco, o milho é cozido (vulgarmente chamado de maçaroca). Quando seco, é debulhado e pode ser
triturado ou moído para fazer farinha de milho e xima (polenta).
12
Raiz tuberosa que pode ser consumida cozida ou fresca, ou seca ao sol para produzir farinha, depois de triturada e
crivada. A sua farinha serve para fazer xima (polenta de farinha de mandioca). É prática também consumir-se a
mandioca seca cozida em água e sal. As folhas servem para fazer matapa (uma espécie de molho, normalmente feito
com tempero de leite e de amendoim).
31
língua de união. A comunicação nas comunidades e em alguns setores de atividade é sempre feita
na língua local. Na província de Nampula é possível escutar os habitantes falando Lomwé, Macua,
Nahará, Marrovoni e Koti que constituem as línguas nacionais mais faladas nesta província.
Administrativamente, a cidade de Maputo concentra o governo de Moçambique. Maputo
é a capital, a cidade política e economicamente mais desenvolvida. Todos os partidos políticos
estão sediados ali e possuem representações em quase todas as províncias e distritos. Moçambique
é um país democrático desde 1992, após a assinatura, em Roma, do acordo geral de paz, que pôs
fim a uma luta armada de cerca de 16 anos entre os partidos Renamo e Frelimo. O partido
Frelimo, que dirigiu a luta armada de libertação nacional, detém a maioria dos membros e
simpatizantes, controlando todos os setores de atividade. É um país presidencialista, que realiza
eleições de cinco em cinco anos para a escolha do presidente e do partido governista.
2.1.2 Nampula
Figura 1: Vista aérea de uma parte da cidade de Nampula
A província de Nampula possui 21 distritos
13
e é a mais desenvolvida dentre as quatro
províncias do Norte. Destaca-se na produção de mandioca. Localiza-se na costa do Oceano Índico,
e faz fronteira com as províncias de Cabo-Delgado e Niassa ao Norte, ao Sul e Oeste com a
província da Zambézia e a Leste com o Oceano Índico.
13
Angoche, Eráti, Lalaua, Ilha de Moçambique, Malema, Meconta, Mecuburi, Memba, Mogincual, Mogovolas,
Moma, Monapo, Mossuril, Muecate, Murrupula, Nacala-a Velha, Nacala Porto, Nacarôa, Nampula-Rapale, Ribaué,
Cidade de Nampula.
32
Administrativamente a província de Nampula é subdividida em cidade de Nampula
14
, os
bairros urbanos, distritos e postos administrativos. A população total foi estimada em 3.888.356
habitantes, com uma densidade populacional de 38 habitantes por quilômetro quadrado, e com
uma área de 78.197 quilômetros, segundo o Censo aos Agregados Familiares (INE, 2009). Se
compararmos com os dados do censo anterior, de 1997, que estimou o tamanho da população em
3.063.456 habitantes, observa-se que é uma das províncias mais populosas do país, com taxa de
crescimento de 26,9% de 1997 a 2007.
Apesar de existirem precipitações suficientes a cada ano, principalmente nas regiões do
interior verificam-se quantidades de chuvas muitas vezes acima das habitualmentes registradas, de
1.000 mm a 1.500 mm/ano. A província de Nampula não é uma zona propensa à ocorrência de
inundações, ao contrário das províncias do Sul do país, mas sim sofre com outros problemas
relacionados também ao clima, como a erosão eólica e hídrica, que ano após ano angustia as
autoridades locais e também a população residente, que têm que reconstruir as suas moradias e
outras infraestruturas sociais.
A agricultura constitui a atividade principal, a silvicultura e a caça são complementares. A
província produz cereais, leguminosas de grão, raízes e tubérculos, madeira e mel. um grande
número de espécies animais, de pequeno até grande porte (elefantes, zebras, tigres, hipopótamos,
girafas, etc.). Nampula possui bons solos para a agricultura e a pecuária. Portanto, estas
condições colocam a província numa posição produtiva elevada em provimento de produtos
agríclolas como milho, mapira (Sorghum bicolor L.)
15
, girassol (Helianthus annus)
16
, mexoeira
(Pennisetum glaucum)
17
, algodão (Gossypium hirsutum)
18
, castanha de caju (Anacardium
occidentale)
19
, mandioca, amendoim (Arachis hypogaea)
20
, batata-doce, cana-de-açúcar
14
Capital da província, a cerca de 2.150 quilômetros ao Norte da cidade de Maputo, capital do país.
15
É um cereal, com grão de tamanho menor que o milho, mas maior que mexoeira (Pennisetum glaucum). Uma das
diferenças é que mapira e mexoeira são consomidos como xima (polenta). Depois de secos ao sol os grãos são
debulhados e triturados ou moídos, ao contrário do milho ou da mandioca.
16
Planta herbácea, atinge cerca de 2 a 3 metros de altura. Tem esse nome porque as flores estão reunidas em uma
inflorescência colorida semelhante à forma de um sol. Serve como planta ornamental e para produção de óleo.
17
Cereal de grão médio, entre o milho e mapira. Só se come após debulhado e moído para fazer farinha, com a qual
se faz xima.
18
Planta basicamente usada como matéria-prima para a indústria de tecelagem e outras, na qual se usa sua semente,
folhas e flores. Pode ser usada também como planta ornamental.
19
Fruto do cajueiro ou pseudo-fruto, suculento, rico em vitamina C e ferro. A sua amêndoa ou semente, depois de ser
extraída, é consumida fresca ou seca.
33
(Saccharum officinarum)
21
, abóbora (Cucurbita mixta)
22
, mangueira (Mangifera indica L)
23
,
tabaco (Nicotiana tabacum)
24
e outros. Na criação de animais tem-se bovinos, caprinos, suínos,
ovinos e pequenas aves (galinhas, patos, perus).
Fazendo um corte longitudinal imaginário, dividindo a província em duas partes, com o
centro na capital da província, constata-se que apesar dela ser totalmente agrária, possui uma
grande diferenciação em termos de características agroclimáticas, entre a zona costeira e a zona
interior, sendo a do interior mais agrária que a zona do litoral.
A zona costeira da província de Nampula possui um clima de tropical úmido a
monçônico, com a presença de dunas, planície e savana. Os solos são, na sua maioria, arenosos,
salinos e até aluviais, com colorações acinzentadas, claras e acastanhadas. A precipitação não é
frequente (verifica-se escassez de chuvas), bastante irregular e de quantidade muito baixa,
podendo explicar as secas cíclicas que se verificam nesta zona. Possui a pesca como atividade
principal e a caça, agricultura e outras atividades costumeiras como complementares. Como as
reservas florestais não são fechadas, as espécies animais selvagens são de pequeno a dio porte,
desde aves até gazelas. Não obstante, é reportado o surgimento de animais de grande porte, como
elefantes, mas que são classificados como sendo perdidos ou fugitivos dos parques de reserva.
Figura 2: Relevo característico da zona costeira da província de Nampula
20
É uma planta leguminosa de grão que pode ser consumida fresca ou seca. Na sua forma seca pode servir como
tempero em molhos, depois de moída cuidadosamente na forma de farinha.
21
Uma planta de folhas simples, alternadas, estreito-lanceoladas. Usada para alterar ou adoçar o gosto de bebidas e
alimentos. É um dos principais produtos industriais para a produção do açúcar.
22
A abóbora é consumida cozida.
23
A manga é consomida fresca e também na forma cozida.
24
Planta medicinal e também usada na indústria de cigarros.
34
A zona do interior da província de Nampula possui um clima tropical úmido, com
formações montanhosas, floresta densa, savana arbustiva e planaltos com um arranjo natural
espacial específico. Os principais solos encontrados classificam-se em limosos, argilo-arenosos e
argilosos, com tonalidades escuras e vermelhas na sua maioria. A precipitação é bastante uniforme
em termos de época e regular, no sentido de que nos meses esperados sempre chove, chegando a
atingir cerca de 2.000 mm/ano. Existem anos em que chove em todos os meses, isto é, chuvas
em todos os períodos do ano, diferenciando-se apenas nas quantidades pluviométricas, e outros
anos em que ocorrem precipitações abaixo do normal. Neste último caso, o mês de julho é o mais
seco.
Figura 3: Relevo característico da zona interior da província de Nampula
2.1.3 Murrupula
Murrupula é um distrito que possui a sua sede na vila de Murrupula. Limita-se ao Norte,
Noroeste e Oeste com o distrito de Ribaùé, ao Sul com o distrito de Gilé (província da Zambézia),
a Leste com o distrito de Mogovolas e a Nordeste com o distrito de Nampula. De acordo com
dados colhidos na administração do distrito durante o trabalho de campo que realizei em fevereiro
de 2009, a população era de 101.745 habitantes numa área de 3.100 quilômetros quadrados, o que
perfaz uma densidade populacional de 32,8 habitantes por quilômetro quadrado (ver figura 4 na
página 36). O distrito possui três postos administrativos, nomeadamente Chinga, Murrupula e
Nehessiue
35
2.1.4 Mogincual
Mogincual é um distrito que possui a sua sede na povoação de Liupo. Limita-se ao Norte
com o distrito de Monapo, a Oeste com o distrito de Meconta, a Sudoeste com o distrito de
Mogovolas, ao Sul com o distrito de Angoche, a Sudeste com o Oceano Índico e a Nordeste com o
distrito de Mossuril. De acordo com dados locais, o distrito tem 92.320 habitantes e uma área de
4274 quilômetros quadrados, perfazendo uma densidade populacional de 21,6 habitantes por
quilômetro quadrado (ver figura 4 na página 36). Está dividido em cinco postos administrativos,
Chunga, Liupo, Namige, Quinga e Quixaxe.
36
Figura 4: Localização do campo de estudo desta pesquisa
37
2.2 Selecionando as famílias para o estudo
No início do meu trabalho de campo tive que sair de Maputo, onde moro e trabalho, na
sede nacional do IIAM, na Direcção de Formação, Documentação e Transferência de
Tecnologias DFDTT, e ir para a província de Nampula. Mas antes fiz contatos formais com o
diretor-geral do IIAM, que me orientou sobre os procedimentos institucionais, depois com a
diretora da DFDTT, que autorizou o meu deslocamento e o financiamento de todas as despesas
inerentes a essa mudança para Nampula e distritos de Murrupula e Mogincual. Depois mantive
contato com a IITA Moçambique, uma organização não-governamental que trabalha no programa
de batata-doce de polpa alaranjada, em parceria com o IIAM. A coordenadora nacional dessa
ONG falou sobre a retirada do programa na província de Nampula em 2003, e sobre o atual
retrocesso na produção e no consumo dessa batata-doce, o que constituía sua grande
preocupação. Um dos técnicos desta instituição abordou a questão de que provavelmente a falta
de boa conservação da rama desta batata-doce por parte dos agricultores familiares para posterior
plantio constituía a razão da fraca produção. Em seguida falei com uma das responsáveis na
equipe de trabalho do SETSAN, que também me esclareceu sobre a situação de segurança
alimentar no país e na província de Nampula. Nos escritórios centrais do IIAM, SETSAN e do
IIA Moçambique obtive endereços de pessoas de contato em Nampula que iriam me receber e me
encaminhar aos locais por mim determinados.
Feito este trabalho, viajei para a província de Nampula, na certeza de que todos os
contatos a partir da sede já haviam sido feitos positivamente. Logo na minha chegada fui
recebido por colegas do Centro Zonal Nordeste - CZN e de imediato tratamos de desenhar um
plano de atividades, isto é, a operacionalização do plano que eu trazia desenhado. A partir de
então não houve obediência a horários normais de expediente para trabalhar ou fazer contatos
formais e informais com os dirigentes da província. Trabalhava nos sábados, domingos e até
feriados, com a colaboração dos colegas. Mantive contatos com a Direção Provincial da
Agricultura, para então estabelecer outros contatos com os distritos de Murrupula e Mogincual.
Depois, o SETSAN provincial forneceu a situação de segurança alimentar e nutricional por
distrito e os colegas do CZN disponibilizaram os meios de transporte para meus deslocamentos
na província e nos distritos.
38
Segundo o SETSAN provincial, dos 21 distritos de Nampula, alguns têm maior Índice
de Segurança Alimentar e Nutricional
25
e outros possuem índice menor
26
, conforme dados que
tive acesso em fevereiro de 2009. O período do trabalho de campo foi de fevereiro a março de
2009. Elaborei duas listas separadas, uma de distritos com índice maior e outra com índice
menor, e para cada uma fiz um sorteio para escolher os dois distritos que iriam fazer parte desta
pesquisa. Preferi escolher um de cada grupo para melhor observar como a questão desta batata-
doce era encarada e se justificava a situação de segurança alimentar e nutricional dos habitantes
desses distritos. Foi assim que Murrupula e Mogincual entraram nesta pesquisa. Os distritos
considerados pelas autoridades locais como tendo maior Índice de Segurança Alimentar e
Nutricional são os que possuem condições agroclimáticas propícias para a produção agrícola.
Concluídos os contatos na cidade de Nampula, rumei para o distrito de Murrupula e fui
recebido pelo diretor dos Serviços Distritais de Atividades Econômicas - SDAE, que me forneceu
informações sobre os postos administrativos. Utilizando novamente o mesmo processo da escolha
dos distritos, selecionei o posto administrativo de Chinga. Depois fui acompanhado por um
técnico extensionista que trabalha naquela comunidade, que me deixou na porta da entrada do
posto, porém de forma que eu não fosse visto pelas pessoas locais. Após o regresso do cnico,
fui caminhando até entrar na comunidade, e logo ao cumprimentar a primeira pessoa já fui
reconhecido como estrangeiro, e esta pessoa me perguntou em português se eu estava perdido ou
procurava algo. Imediatamente tratei de apresentar-me na ngua local, Lomwé, começando pelo
nome. Mal terminei ele sorriu, dizendo que pensava que eu não era filho da comunidade, mas que
o meu apelido (sobrenome) tinha algo a ver com a família dele e do líder comunitário. Convidou-
me a entrar primeiro na sua casa para beber água, enquanto ele ia dando notícias de ter recebido
um filho daquela comunidade, mas que não vive ali. Retornou depois para me levar diante do
líder, que também ficou alegre, porque ele também faz parte do
Nihimo
(clã). Nihimo é tão
importante por ser um código que as pessoas utilizam para reconhecer os seus membros. Esse
código, embora possa ser obtido através do apelido, também pode ser reconhecido através da
25
Lalaua, Malema, Meconta, Mecuburi, Mogovolas, Moma, Monapo, Mossuril, Muecate, Murrupula, Nampula-
Rapale, Ribaué, cidade de Nampula.
26
Angoche, Eráti, Ilha de Moçambique, Menba, Mogincual, Nacala-a Velha, Nacala Porto e Nacarôa .
39
leitura na palma da mão
27
. Não tardou para lerem a palma da minha mão e terem certeza de que
realmente sou filho da comunidade, pois mesmo tendo nascido e morado em outro local, sou
descendente daquele povo.
Segundo Cicourel (1980), a diferença entre trabalhar na própria sociedade de que se faz
parte e em uma outra pode levar a diferenças no modo de estabelecer o contato inicial. De acordo
com o mesmo autor, o fato de ter a mesma linguagem e o mesmo sistema simbólico dos seus
entrevistados garante para o pesquisador um mínimo de sucesso. Tive sucesso garantido porque,
embora nascido e morando fora daquela comunidade, falei na língua local, o que
a priori
atrai a
atenção da pessoa com quem está se comunicando. Com isso, desmenti a ideia do meu primeiro
interlocutor, de que eu era estrangeiro, pois ao invés de lhe responder em língua portuguesa falei
a língua dele, e isto significou que eu não era estranho. A língua local, o meu sobrenome e a
leitura da palma da minha mão deram-me estatuto de ser daquela comunidade e isto fez com que
obtivesse confiança e abertura deles. Atentamente me observavam e, à medida que eu me
expressava na linguagem deles, todos os detalhes não passaram despercebidos. Comparações não
faltaram,
“ele fala como fulano”
,
“gesticula como tal avô”
,
“ri como tal tio”
, e assim por diante.
Pernoitei na casa do líder comunitário, e passei noite adentro conversando e ouvindo dele
histórias reais, contos de fadas e experiências de vida. Na manhã seguinte, o que eu não sabia é
que já tinha sido convocada uma reunião para minha apresentação. Após as apresentações em
público e a minha fala também feita em lomwé, expliquei um pouco sobre o meu percurso de
vida e o que me fez estar ali com eles. Soavam vozes dizendo
ola tawihú
- este é nosso. Essas
manifestações foram algo que me surpreendeu, pois eu não tinha como saber antes de entrar na
comunidade. Mas este comportamento não é estranho, a meu ver, pois também Wedig (2009), ao
realizar o seu trabalho no Brasil, com o tulo “Agricultoras e Agricultores à mesa: um estudo
sobre campesinato e gênero a partir da antropologia da alimentação, no Vale do Taquari - Rio
Grande do Sul”, afirmou obter confiança dos seus interlocutores através do sobrenome. Portanto,
o sobrenome aparece como sendo uma questão de pertencimento, de reconhecimento e de
identidade, e as pessoas se baseiam nisso para atribuir confiança a estranhos. Provavelmente as
boas relações com a família representada a partir do sobrenome, que expressa o vínculo familiar,
fizeram com que a autora fosse aceita na comunidade.
27
O tamanho e comprimento do traço pequeno ou grande possui uma mensagem de identidade, origem e futuro. O
cruzamento ou não entre os traços pequenos e grandes ou entre grandes ou pequenos, pode significar algum código
que só uma pessoa instruída culturalmente pode interpretar corretamente.
40
Como na noite anterior o líder me falara que não tinha o número exato das famílias e
muito menos uma lista dos habitantes daquela comunidade, perguntei, com a autorização dele, se
havia famílias voluntárias que se disponibilizariam a me receber nas suas casas para as devidas
conversas formais, através de entrevistas, e informais, à medida que ia eu convivendo com elas.
De imediato todos os presentes se dispuseram a me receber. Percebi que não iria dar conta de
todos, e fui escolhendo por relações de parentesco. Eu não poderia me hospedar na mesma
família pariental duas vezes. Concordaram e assim fui com a primeira família. Ficava em cada
família 24 horas, isto é, como entrei na primeira família por volta das 12 horas, assim marquei de
sair no dia seguinte às 12 horas.
Em todas as famílias que eu entrava, à noitinha vinham todos os parentes naquela casa e
passávamos muitas horas conversando, contando curiosidades e eles se alegravam com os meus
questionamentos sobre a batata-doce de polpa alaranjada. Eu fazia as entrevistas logo que
chegava na casa para possibilitar o exercício de saudação durante a noite, quando os parentes
apareciam para saudar o hóspede. Assim aproveitava tanto essas conversas que também gravava.
Durante a noite, com a minha lanterna, ia lançando as notas no meu bloco. Nas manhãs eu me
integrava aos trabalhos de rotina da família, e ao mesmo tempo em que ajudava nos afazeres,
conversava e gravava. Após às 10 horas da manhã ia descansar e aproveitava para fazer algumas
notas e às 12 horas ia para outra família. Normalmente eles jantam por volta das 18 horas e ficam
conversando até mais ou menos 20 horas, e logo depois vão se deitar para dormir. Acordam entre
2 a 3 horas da madrugada para a
machamba
(parcela agrícola) e quando o sol começa a raiar
forte, entre 10 ou 11 horas, interrompem e voltam para casa. Eu tinha praticamente duas refeições
no almoço. Na despedida, tinha que almoçar com a família na qual me hospedei, geralmente por
volta da uma hora da tarde, e ao chegar na família seguinte, também serviam algo para comer.
Servir para se despedir ou na chegada significa uma bênção, um sinal de despedida e recepção
carinhosas, portanto eu tinha que comer. Não podia invocar desculpas de estar saciado, tinha que
comer, por mais que pouco fosse, logo ao entrar na família e também ao sair.
O meu arranjo horário fez com que me enquadrasse perfeitamente nessa rotina. Na
verdade foi algo que eu não tinha pensado antes, mas a flexibilidade no momento em que
terminou o encontro na casa do líder me ajudou a engrenar na rotina familiar sem criar uma
quebra nela. Várias são as vezes em que as famílias após almoçarem retornam para a machamba e
fazem a jornada da tarde até 17 horas ou mais. A casa seguinte a ser visitada obviamente tinha
41
um programa de trabalho na jornada da tarde, que tinha que ser interrompido para me receber.
Aliás, como eu não conseguiria saber quais famílias não fazem parte do grau parental, os
auxiliares do líder me informavam qual seria a próxima família. Eu tive que obedecer as regras e
os regulamentos da casa, porque não queria interromper a sua rotina, e isso constituía a minha
grande atenção. Sempre acordava de madrugada e ia às machambas, inclusive muito distantes das
casas deles. Nas machambas das zonas baixas são produzidos hortícolas e outros vegetais, e com
a enxada na mão, lado a lado, eu ia trabalhando e conversando. Os deslocamentos para as
machambas me possibilitavam ver como eles se organizavam para cuidar das diferentes tarefas e
como era feito o esquema de retorno para casa, assim como quais eram as responsabilidades de
cada membro da família.
No dia da minha retirada foi organizada uma grande festa de despedida, e fiz a
promessa de voltar novamente. Para terminar a coleta de dados naquela comunidade, usei o
princípio de saturação, e com esse princípio, falei com 27 famílias em Murrupula. Segundo
Ghiglione e Matalon (1997), este princípio preconiza que a frequência de respostas repetitivas
dos entrevistados, em um dado universo populacional, indica que o problema da pesquisa já pode
ser respondido.
Este caminho que usei para chegar aos meus entrevistados em Murrupula foi o mesmo
que também usei para entrar em Mogincual, e usando o princípio de saturação falei com 23
famílias. No distrito de Mogincual trabalhei no Posto Administrativo de Quixaxe. A mesma
situação se repetiu, eu não tinha a lista e o número exato de famílias vivendo na comunidade.
Tanto em Murrupula como em Mogincual fui tratado como filho nas casas de pessoas mais
idosas, primo ou iro na casa de casais de idade aproximada à minha e sobrinho nas casas do
líder comunitário. Ser sobrinho significa obter uma posição acima de qualquer outra categoria
parental, mostra a pessoa imediatamente antes do líder, aquele que, por natureza, sendo
consanguíneo, é herdeiro do trono. Os filhos da irmã são legítimos herdeiros porque são da
família e os filhos do rei, embora príncipes, pertencem a outro sangue, visto que os filhos
pertencem à mulher que gera.
Contudo, aí existiram algumas especificidades. Em Mogincual tive que entrar nas casas
durante a noite, porque é a hora em que o chefe da família chega da pesca. Ele sai para a pesca no
mar pela madrugada, entre às 3 e 4 horas, e retorna por volta das 10 horas da manhã, indo direto
vender seu peixe no mercado. Apenas comunica a família que ele já não está no mar, mas sim no
42
mercado. Se a esposa precisar de peixe, manda o filho buscar com o pai no mercado. Caso ele
não tenha vendido todo o peixe que capturou, traz o dinheiro para apresentar a sua esposa. Como
tenho muito medo de água, sempre conversei com o chefe de família durante a noite, era a única
possibilidade, pois em outras horas eu estava com a esposa e os filhos, e me submetia aos
trabalhos que eram direcionados para as mulheres, que os homens é que devem pescar. A
mulher pesca também, no caso de ser solteira ou chefe da família.
Esta forma de divisão sexual do trabalho foi observada também no Brasil, em um estudo
feito por Paulilo (1987), que discute sobre trabalhos leves e pesados. Nesse estudo, quando
aborda a produção de cana em Brejo da Paraibano
28
, a autora diz que, entre os trabalhadores
volantes, é considerado “pesado”, masculino, principalmente roçar e cavar
29
a terra. Trabalho
“leve”, feminino, é plantar, arrancar o mato miúdo e adubar. Me parece que aqui existe uma
característica cultural de estabelecer diferenciação entre o trabalho de homens e mulheres e com
isso atribuir níveis de importância entre eles na família, como uma unidade de produção e
consumo. Se, no caso de Moçambique uma mulher pode também pescar, isso a coloca em
igualdade de trabalho com os homens. Nem que a sua pesca esteja condicionada ao fato dela ser
solteira, porque se fosse casada o marido pescaria por ela, isso não significa que ela se esforce
menos que os homens. A autora salienta que, no Sul de Santa Catarina
30
, existe uma outra
categorização quando se trata de fumicultores: a de trabalho “cansativo” e “pesado”, em que o
primeiro é atribuído às mulheres e crianças, enquanto que o segundo é incumbência masculina.
Da mesma forma como em Murrupula fui reconhecido e obtive a confiança por falar a
língua local e ter o
Nihimo
lido pela palma da minha mão, também isso foi suficiente para aqui
merecer confiança e trabalhar tranquilamente. Esta zona de Quixaxe é tida pelas autoridades
locais como uma zona difícil de trabalhar, mas afirmo o contrário, trabalhei tão à vontade como
em Chinga, Murrupula. No final, também houve uma festa para me despedir deles na promessa
de voltarmos a nos ver. Os contatos que realizei, desde a capital até o meu campo, facilitaram os
trabalhos, pois sempre encontrava as pessoas predispostas e preparadas para me atender. O
cuidado que tive em manter meus contatos com os agentes do governo e administradores
28
Brejo da Paraíba, nos municípios de Alagoa Nova, Areia, Pilões, Serraria e Arara.
29
Nas palavras de Paulilo (1987), roçar significa derrubar o mato grosso, inclusive árvores, a machado e foice. E
cavar é preparar a terra, sem ajuda do arado, para o plantio da cana.
30
Sul de Santa Catarina, nos municípios de Içara, Orleans, Nova Veneza e Criciúma.
43
distantes das vistas dos nativos fez com que a minha aceitabilidade na comunidade fosse boa.
Não existe receita para encontrar a entrada correta numa nova comunidade. Depende da
complexidade e sofisticação da comunidade e da informação prévia que o pesquisador obtém
(CICOUREL, 1980). Com esta atitude que tomei no início, obtive bastante informação sobre as
comunidades, as autoridades me receberam bem, mostrei respeito e consideração por ter lhes
contatado previamente e fui autorizado a trabalhar naquelas zonas. E o fato de não permitir que
eles me introduzissem na comunidade fez com que as pessoas tivessem confiança em mim,
porque mostrei estar sozinho, sem interferência política, já que o tema em estudo envolve
aspectos de política pública. Portanto, em ambos os distritos falei com 50 famílias, mas incluindo
as pessoas de contato do pessoal do governo, o total foi de 56 informantes.
2.3 A pesquisa a campo e a coleta de dados
Foram vários grupos distintos que constituíram o meu arcabouço de informação.
Conversei com os líderes comunitários, chefes das famílias, mas foram os próprios agricultores
que responderam as questões que eu carregava. Viver na comunidade durante o processo de
coleta de dados sem voltar para a cidade fez com que a minha observação consubstanciasse
sobremaneira os meus dados. Segundo Ghiglione e Matalon (1997), observação significa olhar
para uma situação sem que esta seja modificada. Portanto, a observação contribuiu muito para
estabelecer paralelismos entre as falas durante as conversas e entrevistas com as famílias, vendo a
rotina familiar, as machambas à volta da casa, o conteúdo das refeições, quais os membros
presentes na hora das refeições e em outras atividades sociais, como festas tradicionais da
família
31
e comunitárias.
O grande problema a superar aqui foi o intervalo de tempo entre a observação e o
registro (CICOUREL, 1980). De fato, ao encarar este problema no meu campo, usei um esquema
no qual fazia as anotações durante os intervalos entre duas ações, após uma refeição ou à noite.
Enquanto não conversava com ninguém e durante as festas encontrava tempo para o registro.
Informalmente, conversei com os líderes comunitários sobre contos de fada e histórias durante as
31
Quando se fala de família, geralmente se inclui todo parente, desde avós, tios, primos, irmãos, sobrinhos, etc.
Portanto a família alargada pode se reunir para uma festa meramente familiar, que não envolve outros membros da
comunidade.
44
noites e nas festas comunitárias, quando tive a oportunidade de vivenciar os
imwali
as
instruções tradicionais femininas, e também
natiri
e
satakha,
que são descritos no capítulo 7.
Os trabalhos que eu fazia na família, na machamba ou em casa, facilitavam a obtenção
de contrapontos da entrevista, e várias vezes notei muita diferença no que diziam durante a
conversa e o que realmente faziam como membros da mesma família. Isso me permite dizer que a
observação participante foi a chave que permitiu clarear todas minhas dúvidas e questionamentos
que a entrevista não apontava. A calma e a atenção que tinham na hora da entrevista revelavam
autocontrole sobre as respostas a dar, o cuidado em responder o que realmente achavam que eu
queria saber. Mas, na realidade, foram nos momentos descontraídos que obtive as melhores
respostas. O momento de entrevista servia para preparar o terreno. Segundo Lakatos e Marconi
(1996), a entrevista constitui um encontro entre duas pessoas, a fim de que uma delas obtenha
informações a respeito de determinado assunto, mediante uma conversação de natureza
profissional. Nesse sentido, a aplicação de um roteiro de perguntas fechadas e abertas possibilitou
ouvir as explicações do processo de organização interna da família na distribuição dos recursos e
alocação da mão de obra familiar nas diversas atividades produtivas, incluindo a produção e o
consumo das variedades da batata-doce de polpa alaranjada.
Conversava com as famílias em separado e às vezes com todos os membros juntos, o
que definia era o momento e a atividade que estávamos fazendo. Se fosse uma atividade
artesanal, somente o homem estava presente, e se fossem atividades de cozinha era a mulher
que estava presente. Os únicos momentos em que toda a família fica reunida para além da
machamba, são nas refeições e nos contos de histórias e fadas depois do jantar, à volta da
fogueira. Por isso, nas refeições nenhum membro deverá se ausentar, exceto por um motivo
maior. Não tive nenhum entrevistado que não me recebesse, muito menos que estranhasse a
minha presença e o conteúdo das conversas, como Salem (1978) aponta ter passado por estes
limitantes na sua pesquisa sobre relações familiares, mais especificamente, sobre a relação entre
pais e filhos adultos, apresentada no seu artigo “Entrevistando famílias: notas sobre o trabalho de
campo”. A autora realizou sua pesquisa com moradores de bairros da zona Sul do Rio de Janeiro,
no Brasil.
Sem limitações no meu campo, consegui apreender os processos decisórios na
hierarquia familiar e as linhas de comunicação social que permitem a reprodução de simbologias,
culturas, atitudes e comportamentos dos agricultores familiares face ao processo de interferências
45
nos seus hábitos. De acordo com Velho (1978), ao mesmo tempo que para conhecer as dimensões
de uma sociedade é necessário contato e vivência durante um longo período, a ideia de tentar pôr-
se no lugar do outro e de captar vivências e experiências particulares exige um mergulho em
profundidade, e isso é difícil de ser precisado e delimitado em termos de tempo. Nesta ordem de
ideias, e utilizando o método de saturação de Ghiglione e Matalon (1997), me senti confortável
ao perceber a lógica das relações sociais e de parentesco, internas e externas.
2.4 Análise dos dados
Depois que finalizei o trabalho de coleta de dados a campo, regressei à cidade de
Nampula, para preparar a minha viagem de retorno a Maputo. Tornei a me encontrar com os
colegas que antes haviam me recebido e conduzido os contatos nas províncias, despedi-me deles
e viajei para Maputo. Na primeira semana do mês de abril, voltei para Porto Alegre, no Brasil.
Imediatamente comecei a degravar as conversas e digitar as entrevistas. No final do mês de maio,
fiz a primeira versão do sumário, que foi melhorando à medida que ia me apropriando do
conteúdo do material que havia recolhido no campo. Segundo Ghiglione e Matalon (1997), a
análise de conteúdo implica na codificação das palavras em função da frequência com que
aparecem no texto, sob o ponto de vista de que uma coisa que é dita muitas vezes é importante
para a pessoa que a disse, e logo existe uma relação entre a frequência com que aparece a palavra
e o sentido particular ligado ao emissor.
Com este método, toda a informação recolhida através da entrevistas semiestruturadas,
conversas informais e observação foi codificada para permitir uma análise mais completa sobre a
temática, o que possibilitou fazer várias aproximações sobre as reais explicações do problema em
estudo neste trabalho. Depois usei o
software QSR NVivo
32
2.0
(figura 5), para proceder à
verificação das relações entre as categorias classificatórias dos interlocutores (ver também o
roteiro no Apêndice I). E com estas relações fui construindo o texto e aprimorando o sumário. A
revisão da bibliografia sempre acompanhou a elaboração desta dissertação.
32
Qualitative Solutions & Research Non-Numerial Unstructured Data Indexing and Theorizing. Pesquisa, indexação
e teorização com dados não-numéricos e não-estruturados
46
Figura 5: Software QSR NVivo 2.0
Este software foi desenhado para colocar questões e construir e testar teorias. Suas
ferramentas ligam documentos com ideias, de modo que permite: clarificar ideias, descobrir
temas e armazenar informações sobre as informações; construir e testar teorias sobre as
informações; gerar relatórios, incluindo o texto, códigos de categorias e sumários estatísticos;
expor matrizes e construir modelos, ligando com software de exposição gráfica (INFORMAÇÃO
VERBAL)
33
.
33
Informação apresentada no curso de formação em matéria de Análise de dados qualitativos com o programa QSR
NVivo 2.0, promovido pelo Grupo de Pesquisa Tecnologia, Meio Ambiente e Sociedade – TEMAS e pelo Núcleo de
Estudos em Desenvolvimento Rural Sustentável e Mata Atlântica DESMA, ministrado pela Mestre Lorena
Cândido Fleury, realizada em Setembro de 2009, Porto Alegre, RS-Brasil.
47
3 FAMÍLIAS, AGRICULTURA E BATATA-DOCE: CONTEXTUALIZANDO O
ESTUDO
Depois que vimos aspectos relacionados com a entrada no campo, este capítulo é
construído a partir da descrição narrada pelos interlocutores, naquilo que consideram ser seu
percurso desde os tempos dos seus ancestrais. Estes conhecimentos gerados a partir de
experiências e costumes ao longo das suas vidas foram preservados na memória daquele povo e
são passados de geração em geração através de processos instrutivos tradicionais a que os jovens
são submetidos para serem inculcados e que, por obrigação cultural, devem guardar e repassar
para gerações seguintes. Aliás, é com base nesses relatos e minha vivência nas comunidades
durante o meu trabalho de campo que construo o texto e discuto as experiências apresentadas
nesta pesquisa. E, a pedido dos entrevistados, os nomes apresentados ao longo do texto são
fictícios.
3.1 Percurso histórico das famílias rurais e sua relação com a agricultura
Como apresentado no capítulo 2 de acordo com dados das Nações Unidas (2008),
Moçambique foi inicialmente ocupado, no século I, pelos povos nômades Khoisan, e mais tarde
por povos Bantu, por volta do século IV. Os Khoisan eram bastante numerosos, andavam em
grupos e viviam exclusivamente da coleta de frutos silvestres. Não existem relatos sobre caça,
agricultura ou outra atividade qualquer que fosse praticada por este povo, além de coleta de frutos
silvestres para alimentação. Conforme Mazoyer e Roudart (2001), a agricultura, como prática de
conhecimento de trabalhar a terra com fins de produção alimentar, evoluiu bastante desde que o
homem começou a ganhar consciência de que a sua existência dependia em grande medida da
quantidade e qualidade dos alimentos. É um fenômeno recente, pois durante a maior parte de sua
existência, a humanidade retirou da natureza os produtos necessários à sua alimentação,
garantindo, assim, sua reprodução biológica. A caça, a pesca e a coleta de frutos, raízes, cereais,
etc., foram as principais atividades humanas até que a agricultura se consolidasse, há 10.000 anos
(OLIVEIRA JUNIOR, 1989).
48
Os povos Bantu, quando chegaram, o tinham residências fixas, prevalecia o
estabelecimento temporário das moradias ou povoados. A diferença na categoria de nomadismo
que atribuo entre estes dois povos é que os Khoisan eram mades porque tinham que coletar
frutos da floresta para o seu consumo e quando esses frutos acabavam numa certa área eles se
moviam em grupos para outros lugares. O nomadismo tinha como motivação a procura de
alimentos para garantir a sua sobrevivência. Os Bantu também tiveram as mesmas características
no início, mas a diferença era que apesar de não terem residências fixas, a sua movimentação era
pela procura de terras férteis, já que tinham desenvolvido a prática agrícola. Praticavam a
agricultura de queimada, que consiste em abrir campos para plantar usando o fogo, e quando a
terra se esgotava partiam para outra área, onde estabeleciam acampamento.
Com instrumentos artesanais, produziam cereais, leguminosas, entre outras plantas,
tinham olarias, tecelagem e uma estrutura social baseada na linhagem da família. Analisando as
práticas desenvolvidas por este povo, bem como o nomadismo à procura de terras férteis e as
descrições apresentadas, pode-se afirmar que os cereais cultivados se assemelham às espécies
conhecidas hoje como mapira e mexoeira, porém com algumas diferenças evolutivas e de
adaptação às características agroclimáticas da época, que de alguma forma se diferenciam das
atuais. Para além da agricultura, os Bantu faziam a domesticação de certas espécies de animais
selvagens que também se assemelham às conhecidas hoje, principalmente as aves, como as
galinhas, e quadrúpedes, como coelhos, porcos, etc. De acordo com Mazoyer e Roudart (2001, p.
20):
Foi apenas no neolítico, menos de 10.000 anos, que o homem começou a cultivar
plantas e a criar animais, que ele próprio domesticou, introduziu e multiplicou em todas
as espécies de meios, transformando desta forma os ecossistemas naturais originais em
ecossistemas cultivados, artificiais e explorados pelos seus cuidados.
Portanto, o início da prática agrícola pelos povos Bantu proporcionou uma evolução em
termos de quantidade de alimentos, ao mesmo tempo em que o ambiente original desaparecia,
cedendo espaço às novas formas de ser e estar do homem. A domesticação de animais ia
definindo formas e frequência de caça, e com a domesticação de plantas e sua multiplicação
foram surgindo novas formas de divisão de trabalho entre os membros da família. Por isso o avô
do senhor Alterro, um de meus entrevistados contara ao neto como a domesticação de plantas e
animais e a prática agrícola influenciaram nas formas de ser e estar daquele povo:
49
Meu avô contava que já não caçavam como antes, porque já tinham animais e só
caçavam quando houvesse necessidade da carne específica de um animal que não
estava domesticado. Era todo mundo avisado para quem quisesse participar na caça.
Com a comida era a mesma coisa, os nossos antepassados começaram a guardar
produtos para cozinhar, a selecionar o que comer, porque tinham em casa, não
precisavam colher na floresta. Chegou um momento em que a caça era considerada
uma festa, um encontro e formação de homens valentes, com coragem. As mulheres
ficavam em casa cuidando dos filhos, porque elas são frágeis, não se pode deixar uma
mulher fazer coisas arriscadas [...] Se um homem morrer as crianças não sofrem, mas se
a mulher morrer a família acaba. (Alterro)
O depoimento do entrevistado Alterro mostra o lugar que era dado à mulher como
geradora da família, aquela que garante que a família continue crescendo. O homem pode morrer,
mas a mulher deve ser preservada, porque ela é quem gera os filhos e os cria, o homem ajuda.
Enquanto antes da domesticação de plantas e animais a mulher ficava lado a lado com os
homens, coletando comida na floresta, porque se não fosse não recebia comida, temos depois da
fixação de moradias uma nova divisão sexual do trabalho. Por isso, neste percurso as novas
formas de ser e viver estabeleceram valores e regras de reprodução social, principalmente com a
prática agrícola e a domesticação de animais e plantas para o sustento das famílias. Mas o que se
verifica, séculos mais tarde, com o aumento demográfico, é que os povos Bantu começaram a
experimentar sistemas de organização cada vez mais complexos, uma vez que não era mais
possível continuar caminhando à procura de terras férteis para a prática agcola e criação de
animais.
A agricultura e a pecuária transformaram o modo de vida dos povos Bantu, de nômades
passaram a ter moradias fixas, a saber lidar com as intempéries do clima e com a fertilidade de
solos, sem ter que sair ou abandonar o lugar, a saber escolher o quê, quando e onde comer.
Definiram o que se comia em casa, com a família, e o que se comia com amigos na festa de caça
e nos encontros do grupo. A organização passou do grupo para níveis menores, com a família,
que era responsabilidade do homem, que por sua vez fazia a ponte com o grupo maior. Cada
grupo familiar que acampava numa certa área procurava maximizar o trabalho para tirar da terra
o sustento e a sobrevivência, e isso ia definindo formas complexas de ser e estar dentro do grupo
e as relações sociais entre grupos.
Assim, foram instituídos reinados, grupo de pessoas que pertenciam à mesma linhagem,
Nihimo (clã) e que escolhiam uma certa área para morar e trabalhar. As linhagens matrilineares
foram mais para o Norte do país e as patrilineares se estabeleceram nas zonas mais ao Sul. As
linhagens matrilineares eram numerosas, mas elas foram sendo submetidas aos homens, isto é,
50
aos grupos da linhagem patrilinear que estavam dominando no Sul. Por isso, hoje em dia na
história moçambicana se fala mais dos reinos que povoaram o Sul, que dominaram e
comandaram as trocas comerciais ao longo da costa moçambicana com os árabes, portugueses e
outros povos da região.
A Ilha de Moçambique passou a ser a capital do país, devido ao fluxo comercial das
importações e exportações, por causa das facilidades de comunicação por via marítima. O mais
proeminente desses reinos ficou conhecido como império de Mwenemotapa, que viria a dominar
os restantes e estabelecer uma administração na região. Em 1885, com a partilha da África pelas
potências européias na Conferência de Berlim, é que se notabiliza a penetração portuguesa em
Moçambique, a partir da Ilha de Moçambique, na província de Nampula. Porém, a entrada dos
portugueses não foi pacífica, assim como não houve paz durante todos os anos em que
dominaram e exploraram, através de sua administração montada no país. Em 1975, após uma
guerra pela liberdade que durou cerca de 10 anos, Moçambique foi declarado independente da
dominação e exploração portuguesa e instituiu-se o nacionalismo.
Quer seja antes da dominação ou quer depois, a habitação por grupo tribal (conjunto de
clãs) constitui uma característica-base em Moçambique, muito embora isso não se verifique nos
centros urbanos e nas grandes cidades. Atualmente, as famílias rurais da província de Nampula
vivem em comunidades numerosas e dispersas uma das outras, na mesma região. A comunidade (
grupo de famílias) tem um nome específico e possui um líder comunitário que a representa, por
meio de gestão participativa nos assuntos internos e externos. Este líder comunitário, que
tradicionalmente é chamado de
Mwené
- rei ou régulo, em português - é indicado mediante uma
assembleia de idosos da comunidade, que fazem consultas sobre quais famílias sempre tiveram
um histórico de guerrear em defesa leal dos interesses da maioria. Após a família ser indicada,
procura-se escolher um jovem, de preferência primogênito, que tenha sempre vivido na
comunidade e que nunca tenha se ausentado, por qualquer que seja o motivo. A ausência da
comunidade revela quebra de laços que se assemelham à traição, como um pai que decide morar
longe da sua família durante um período de tempo. Durante a ausência, pode ter se passado muita
coisa na comunidade que ele não soube ou mesmo sabendo não esteve ali para ajudar, o
presenciou e não contribuiu em nada para resolver.
O homem valente, que sempre morou na comunidade, é o legitimado como rei, porque
sempre acompanhou a evolução de seu povo e não se contaminou com hábitos e costumes de
51
outras comunidades. Antes e depois da indicação do rei, faz-se uma consulta aos médiuns
espíritas, para saber se a escolha é certa. Os médiuns são dotados do poder de ligação entre os
dois mundos, o dos seres vivos e o espiritual, dos mortos. Nesse processo, acredita-se que o
espírito dos mortos se reencarna no médium e pode ser consultado. Portanto, não são curandeiros
e nem feiticeiros
34
. O médium a ser consultado na indicação do rei apareceu nos sonhos dos
mais velhos. Esse indivíduo escolhido para segurar o posto de médium de consulta pode estar
presente nas discussões ou não, tudo depende de como os espíritos o orientaram durante o sonho.
A função dele é servir de ponte de contato entre os mais velhos que lideram o processo de seleção
e os espíritos, e, no caso de dúvida, é invocado um dos ancestrais que foi rei, que logo se
reencarna no médium e se comunica com as pessoas, como se fosse o ancestral que voltou.
Depois desse processo de seleção, convoca-se uma reunião abrangente, com todos os membros
da comunidade, para que o escolhido seja apresentado e depois aprovado por todos. A reunião
termina com a marcação de uma data para que ele seja empossado como
Mwené
. Este processo
envolve rituais tradicionais, em que animais são sacrificados e seu sangue aspergido no corpo do
Mwené
, como símbolo de lealdade aos interesses da maioria, mesmo que isso custe sua vida.
Quaisquer que sejam as decisões a tomar na sua comunidade, o líder possui dois
caminhos: os auxiliares de consulta constituídos pelos mais idosos e a rainha, que está ligada aos
mecanismos de consulta dos espíritos. Em caso de diferenças de posicionamento perante um
determinado assunto, a rainha vence exatamente por agregar o lado espiritual. É esse poder
espiritual que move a conduta dos membros da comunidade, que molda os hábitos e dita as
normas culturais que são fielmente obedecidas por todos os membros, sem exceção.
Cada família (pai, mulher e filhos) mora numa parcela em que deve ter espaço também
para trabalhar sem ter que deslocar-se em grandes distâncias. Essa área nunca ultrapassa as
parcelas do seu grupo familiar ou tribo e não chega a atingir as parcelas que pertencem a outras
tribos, porque isto não é permitido. A sua permissão envolve consultas entre grupos, a maior
parte das vezes movidas por processos de casamentos envolvendo os dois grupos. Quando os
questionei sobre rivalidade, disseram que nunca tiveram, até porque os limites de parcela existem
apenas por uma questão de administração das terras, porque apesar de serem famílias diferentes,
34
Remetendo à discussão trazida por Evans-Pritchard (2005) no seu trabalho “Bruxaria, oráculos e magia entre os
Azande”, feito na África, temos que os curandeiros, nas palavras do autor, são dotados de poder de curar e podem
tanto fazer adivinhação para saber a origem da doença como saber o processo de cura, enquanto que feiticeiros são
dotados de poder para causar dano às suas vítimas. Tanto o curandeiro como o feiticeiro são dotados de poder através
do processo de aprendizagem com algum mestre dessas áreas.
52
todos partem da mesma avó ou de um antepassado comum. As brigas que acontecem não são por
terra, porque todos sabem que a terra pertence à mulher e aos filhos. A mulher o luta, somente
os homens, e estes só lutam quando disputam a mesma mulher para casar, em brigas por causa de
embriaguez, ou quando querem medir forças por competição. Tudo pode constituir motivo de
briga entre homens, excetuando as parcelas de terra.
Quando o assunto envolve terra, tudo é negociado. Cada grupo de famílias, que via de
regra pertence ao mesmo nihimo (clã) , é separado do outro por áreas demarcadas de terra. As
terras marcam o limite entre as famílias e grupos de famílias. O que torna as habitações dispersas
é que cada família habita dentro das terras nas quais os seus ancestrais sempre moraram. O limite
não é por moradia, mas sim pela porção de terras que corresponde a uma determinada família. A
terra leva o nome da família e da tribo. Quando se fala, por exemplo, da zona de Muecate, esse
nome significa lugar, família, grupo de família ou tribo. Assim é com o nome, por isso para
minha surpresa fui reconhecido como sendo membro daquelas comunidades exatamente pelo
meu sobrenome. A terra constitui um elemento o apenas de fonte de trabalho e morada, mas
também de identidade. É uma forma das pessoas de uma determinada origem tribal expressarem
seu pertencimento, atribuindo a terra o seu valor cultural. Acredita-se que o sobrenome é
construído conjugando as relações sociais dentro e fora do grupo, os hábitos e os costumes, bem
como as relações com a terra. O sobrenome carrega essas categorias, a ponto de apenas
conhecendo o sobrenome poder-se saber a origem do indivíduo e deduzir seu comportamento,
por exemplo, se é passivo ou agressivo, atencioso, cuidadoso e outras características, além de
suas tradições. Por isso eles afirmam que a terra lhes pertence, assim como pertenceu aos seus
ancestrais, ninguém pode tomar-lhes a posse. As famílias decidem quem pode ou não entrar
nessas terras, para fazer qualquer que seja a atividade de exploração de recursos ou
investimento
35
.
35
Com a proclamação da independência, o partido Frelimo, que dirigiu a luta de libertação e que está ainda no poder
desde 1975, afirmou que lutou para libertar a terra e os homens e isso está registrado na Constituição do país, por
isso a terra não pode ser vendida nem penhorada, porque ela pertence ao Estado. As pessoas físicas podem ter acesso
ao uso e aproveitamento dela. Por isso até na atualidade as formas de ocupação são por herança tradicional. A
entrada nessas terras é feita mediante um acordo entre o investidor ou aquele que pretende fazer algo nestas terras e a
comunidade local. A comunidade, via de regra, se considerar que pode aceitar, exige algumas condições como, por
exemplo, abertura de uma estrada, um posto de saúde ou uma escola. Depois, elabora-se uma declaração em que a
comunidade, com a assinatura de seus líderes, confirma formalmente ao governo que aceita o empreendimento ou
projeto. A declaração serve de condição principal para obtenção de licença de uso e aproveitamento dessas terras
pelo governo. O encontro entre o empreendedor e a comunidade é feito sem mediação do governo, que, depois que
recebe o pedido e a declaração da comunidade, busca a veracidade das informações. Normalmente, os fiscais do
governo vão para a comunidade fazer a confirmação. Se ao longo do empreendimento os compromissos da
53
Remetendo a discussão às relações com a terra, Woortmann e Woortmann (1997),
afirmaram no seu estudo “O trabalho da terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa”, que
os camponeses de Sergipe, no Brasil, consideram que a terra é um ser vivo, e suas relações com
ela vão além de ser unicamente fonte de sustento. para aquelas comunidades do Nordeste
moçambicano, a terra não pode constituir motivo de briga, é algo sagrado, pertence à mulher,
pois a terra é feminina e a mulher é sagrada, ela garante a continuação da família. A terra liga o
passado ao presente, através da mulher. Assim, como disse Alterro, meu interlocutor, o lugar da
mulher, bem como o seu papel, se consolidou durante a prática agrícola no momento em que o
homem passou a dedicar-se mais aos trabalhos “pesados”, como a caça, e a mulher aos trabalhos
“leves”, como cuidar dos filhos. O cultivo por novas gerações no espaço onde também cultivaram
seus ancestrais permite que os valores sejam preservados e que a identidade grupal e tribal não
desapareça. Por isso, como ser vivo, a terra não pode ser vendida, pertence a uma família, a um
grupo.
A terra é morada da vida, tudo se acaba mas a terra não. Toda a herança que o pai deixa
no fim da vida, a viúva fica aflita mas eles sabem que a terra não se acaba, passa para os
netos, para os bisnetos [...] A maldição do mundo é problema da terra [...] porque, sabe,
a terra o foi ninguém que fez, a terra foi Deus quem criou, e então deixou para todos
nós [...] mas tomaram conta da terra, fazem o que querem (HEREDIA, 1979, p. 9).
Essas palavras que a autora traz do seu entrevistado, um pequeno produtor da região do
Nordeste do Brasil, assemelham-se às observadas no presente estudo, quando se pensa nas
características matrilineares dos habitantes de Nampula, porque o parcelamento da terra, para
construção de moradia e plantação, é feito pela mulher, o marido constrói e planta, mas a terra
pertence a ela. Cada família mora nas suas terras, e não poderá vendê-las ou desapropriá-las: não
por uma lei do governo, mas sim pela regra comunitária, estabelecida pelas famílias, ao longo de
gerações.
A terra nunca se vende, não se pode vender, é muiikhó
36
, vo sabe qual é o valor
monetário de uma pessoa para vender? Deus fez e não disse a ninguém quanto dinheiro
gastou para fazer, como então você terá como vender a um preço justo? espero que
as pessoas um dia não enlouqueçam e pensem em fazer isso, porque de certeza o dono
comunidade o forem cumpridos, ela pode exigir a suspensão da atividade e o governo não obriga a continuidade.
Em alguns casos, o governo pode instruir processo-crime por descumprimento das regras contratuais contra o
empreendedor. Portanto, a comunidade detém todo direito para aceitar, negar e suspender o contrato, se assim
entender.
36
Pecado.
54
que fez o deixará barato, vai punir porque não vai gostar, assim como qualquer um
não gostaria ser roubado. (Nbanze)
As palavras do senhor Nbanze estão de acordo com as do entrevistado de Heredia, pois
ambos, um em Moçambique e outro no Brasil, relacionam a maldição do mundo com os
problemas da terra. Argumentam que o ser humano não sabe cuidar da dádiva de Deus, oferecida
para todos, ricos e pobres. A terra fornece o sustento e cada um planta para comer, à sua maneira.
que realçar que a religiosidade daquele povo é guiada pela adoração aos espíritos dos seus
ancestrais. Mas fato curioso para mim foi que, mesmo venerando e fazendo tudo que os
ancestrais pedem, através do processo que acabei de descrever, que envolve sonhos e
mediunidade, as famílias acreditam que acima de todos, vivos e mortos, existe um Deus. Esse
Deus escuta mais o pedido dos espíritos dos mortos do que o das pessoas vivas. Nas venerações,
dizem palavras como:
meu avô, te peço para que interceda junto de Deus para que a minha
viagem corra bem
. O avô venerado é um falecido e, quando o pedido é atendido, o
agradecimento vai para o avô, como eles próprios dizem, depois o avô encaminhará a parte para
Deus, pois ele como espírito é quem pode ver e falar com Deus.
Por isso, obedecendo esses critérios, em Murrupula e Mogincual as plantas para cultivar
vêm indicadas pela família, através dos seus hábitos alimentares, que são preservados
gerações. E quem quer introduzir outras sementes deve obter autorização do régulo, porque isso
pode constituir um perigo de ruptura das normas estabelecidas e trazer pragas para as lavouras da
comunidade. O Quadro 1, a seguir, mostra a tentativa de construção do processo de
transformação ou mudanças dos alimentos consumidos até a data da pesquisa de campo, em
março de 2009. Este quadro é fruto de pesquisa e relatos de pessoas que vivenciaram as fases ou
que ouviram de outras que viveram nesses períodos. A definição das etapas históricas foi baseada
em marcos históricos importantes na vida do país. Neste quadro, descrevo práticas de
monocultivo e também de consórcio de certos produtos, e é a partir dele que se pode observar o
grau de importância atribuído pelas famílias a determinados produtos.
55
Khoisan Bantu Colonial Pousio forçado Paz Atualidade
sec.
I-IV
sec.
IV-1475
Pré-colonial
1475-1885
Colonial consolidado
1885-1975
Independência
1975-1976
Guerra civil
1976-1992
1992-2000/01 2000/01-2009
Alimento
produzido
Namacotto
37
mooma
38
,
munenquero
39
,
mapira, mexoeira,
ramule
Namacotto, mandioca
40
,
mapira
41
, mexoeira
42
,
amendoim
43
, milho
44
,
feijões
Namacotto, mooma,
mandioca, batata-doce de
polpa branca, feijões,
amendoim, milho,
mapira, mexoeira
Namacotto,
mooma,
mandioca, mapira,
mexoeira, milho,
amendoim, feijões
Mandioca, mooma,
milho, mapira,
mexoeira, amendoim,
feijões, batata-doce de
polpa branca
Mandioca, milho,
mapira, mexoeira,
amendoim, feijões,
batata-doce de polpa
branca e amarela
Mandioca, milho,
mapira, mexoeira,
amendoim, feijões,
batata doce de polpa
branca e amarela
Alimento
coletado
Nvetho
45
,
colikho
46
,
oviilo,
murrapa
47
Makharaua
48
,
ikharaara
49
,
ramule
50
, murrapa,
oviilo
51
Oviilo, ikharaara,
ramule
Oviilo, ikharaara, ramule
Oviilo, ikharaara,
ramule
Oviilo, ikharaara
ramule
Oviilo, ikharaara,
ramule
Oviilo, ikharaara,
ramule
QUADRO 1- Transformação alimentar das famílias de Nampula até março de 2009
FONTE: Pesquisa de campo, 2010. .
37
Namacotto (Mucuna pruriens) é uma trepadeira que produz vagens que dão uma espécie de feijão do tamanho do dedo polegar. Para preparar ferve-se em água cerca de três vezes. Depois de remover a película
ferve-se novamente e mais duas para se tornar comestível. Se não forem obedecidas essas fases pode ser venenosa. O sinal que dita que está pronto é a clareza da sua água durante a fervura.
38
Mooma (Dioscorea spp.) é uma raiz tuberosa que se assemelha ao inhame, a grande diferença reside no tamanho do bolbo, que pode ser duas vezes maior que o da mandioca. Trepadeira pouco numerosa e de
casca macia. Come-se cozida em água e sal, e pode ser ou acompanhada de um molho de tomate, peixe ou verdura.
39
Munenquero (família amaranthaceae) é uma erva que cresce a menos de um metro do chão e produz folhas que são colhidas e cozidas. Xima, a polenta de mandioca, é o acompanhante preferido.
40
Mandioca (Manihot sculenta) é uma raiz tuberosa que pode ser consumida cozida e fresca, ou seca ao sol para produzir farinha depois de triturada e crivada. A sua farinha serve para fazer xima. É prática
também consumir-se a mandioca seca cozida em água e sal. As folhas servem para fazer matapa (uma espécie de molho, normalmente feito com tempero de leite e de amendoim).
41
Mapira (Sorghum bicolor L) é um cereal, grão de tamanho menor que o milho, mas maior que mexoeira (Pennisetum glaucum). Uma das diferenças é que mapira e mexoeira se consomem como xima.
Depois que secam ao sol os grãos são debulhados e triturados ou moídos, ao contrário do milho e da mandioca.
42
Mexoeira (Penisetum glaucum). Cereal muito mais fino que a mapira, que se forma numa panícula. Serve para fazer polenta após ser debulhada.
43
Amendoim (Arachis hypogaea) é uma leguminosa de grão que pode ser consumida fresca ou seca. Porém a sua forma seca pode servir como tempero em molhos depois que moída cuidadosamente na forma de
farinha.
44
Milho (Zea mays ssp). Cereal, grão que fresco é cozido (vulgarmente chamado por maçaroca). Quando seco, é debulhado e pode ser triturado ou moído para fazer farinha de milho e dele xima.
45
Nvetho (família malvaceae) é um tipo de fruto silvestre, de tamanho médio, que se parece com semente de pinheiro. A coloração é amarela e avermelhada, podendo ser tingida de cinza. Pode-se comer cru ou
cozido.
46
Colikho(família malvaceae) é uma planta arbórea que produz frutos redondos em sua copa. Para comer é necessário colher e partir, porque a sua casca é dura. Quando amadurecido seus frutos costumam cair e
esse é um sinal de que pode se consumir, pois quando está verde, segundo os habitantes locais, pode constituir um grande veneno.
47
Murrapa (família leguminosae) é uma planta trepadeira, porém de ramo grosso, que tem água no seu interior. Os nativos afirmam que é uma excelente fonte de água potável, utilizada nos momentos de crise de
água. As pessoas, nessas épocas, procuram murrapa para cortar e recolher a água num recipiente, que depois pode servir para beber ou cozinhar.
48
Makharaua (família leguminosae) é um tipo de feijão que difere do ikharaara por este estar sobre o solo. É uma espécie com caule rastejante que, entre seus nós e folhas, produz vagens com feijões. O preparo
não difere do feijão comum, apenas o tempo de cozimento é menor.
49
Ikharaara(família leguminosae) é uma espécie de feijão, mas que aparece sempre na copa das árvores grandes. A sua extração exige que a pessoa suba e colha, para depois abrir as vagens e cozinhar, como se
faz com o feijão mais comum. Possui cores variadas e às vezes uma mesma semente pode trazer várias cores.
50
Ramule (família leguminosae) é um arbusto que produz vagens grandes e numerosas. Quando as vagens ficam de cor avermelhada, indicam que já estão prontas e podem ser colhidas para servir como tempero
nas comidas. Torna o molho avermelhado e um pouco picante.
51
Oviilo (Pleurotus spp) assemelha-se ao cogumelo comum, que geralmente aparece em série em uma região, principalmente no período chuvoso.
56
Nota-se, porém, no Quadro 1, que alguns cultivos foram sendo desconsiderados ao
longo do tempo, tanto alimentos produzidos quanto coletados, à medida que eram agregados
dentro do sistema de cultivo outros alimentos.
Namacotto
e
mooma
são ainda produzidos, e entre
os que perderam sua importância para os não produzidos temos os casos de
nvetho
,
colikho
e
murrapa
. Considero neste trabalho o período Khoisan como a época em que as famílias não
tinham morada fixa, ou seja, a ocupação era temporária, movida pela procura de alimentos
silvestres, portanto não tinham delimitação de espaço territorial. O período Bantu” é pelo fato de
ter-se estabelecido territórios, embora a delimitação considerada oficial em toda África tenha tido
lugar no período de ocupação colonial,e serve de fronteira entre os países na atualidade. No
período que chamo Bantu já havia delimitação de terras por parte das famílias, segundo Alterro
52
,
um membro comunitário bastante respeitado. Segundo ele, o monocultivo sempre caracterizou o
sistema de produção daquele povo, portanto o consorciamento nunca foi visto como prática que
valesse a pena.
Segundo Woortmann e Woortmann (1997), o consorciamento é a forma de organizar o
espaço e o tempo destinados ao roçado. Tratando dos camponeses de Sergipe, na região Nordeste
do Brasil, os autores trabalham com a questão do princípio de alternância, isto é, a escolha de
produtos a serem consorciados obedecendo o tempo de cada planta, em que uma de ciclo mais
longo é produzida com outra planta de ciclo curto. No entanto, Heredia (1979) observa que
existem cultivos que determinam a existência do roçado, como a mandioca, o feijão e o milho.
Quando estão ausentes, o roçado não existe de fato. A autora salienta que os pequenos produtores
fazem a distinção entre verduras e legumes, tomando em conta suas condições de conservação,
sendo que verduras deverão ser colhidas para consumo ou venda imediatos, enquanto que
legumes seriam aqueles que são deixados no roçado para secar e posteriormente armazenados
para serem consumidos e/ou vendidos mais tarde. Feijão e milho, por exemplo, podem ser
consumidos e/ou vendidos como verduras enquanto estão verdes, ou então podem ser
armazenados para posteriormente serem usados como legumes, quando secos.
A possibilidade de consumo e/ou venda dos diferentes produtos, aliada à possibilidade
de armazenamento para aproveitamento nos diferentes momentos do ano agrícola, são
elementos de grande relevância na hora da escolha dos cultivos a serem realizados,
determinando, em consequência, a associação e a sucessão que se estabelecerão entre
eles. (HEREDIA, 1979, p. 53).
52
O nome foi mudado a pedido do entrevistado.
57
Mas, para as famílias de Nampula, uma planta produzida em monocultivo recebe um
grau elevado de importância, porque é exatamente pelo volume da produção dessa planta durante
o ano que vai atribuir-se honra à família. O consórcio geralmente é feito entre produtos
considerados menos importantes na alimentação e na cultura, o que difere dos três autores
referenciados no parágrafo anterior. No capítulo 5 desenvolvo mais esta questão, trazendo a
batata-doce de polpa alaranjada e a mandioca como alimentos opostamente diferenciados.
O trabalho na terra constitui uma questão de honra, por produzir onde os ancestrais
produziam. A terra era sua única fonte de sobrevivência, porque nela cultivavam, comiam e
moravam. A família, como unidade comunitária, representa a vida individual e a vida comunal,
no sentido de que a pessoa é formada dentro da família e inserida na comunidade, ao longo de
seu processo de crescimento. O homem cuida do trabalho “pesado” e de “risco” e a mulher do
trabalho “leve” e “seguro”, como vimos na discussão de Paulilo (1987), sobre o peso do trabalho
leve. É importante lembrar que o trabalho considerado “leve”, por ser feminino, é menos
valorado, enquanto que o trabalho pesado”, por ser masculino, é mais valorado. O trabalho da
machamba, a pesca, a construção de moradias, são considerados tarefas de homens por também
envolverem coragem. O cuidado das crianças, da cozinha, e também da machamba, são tarefas da
mulher, por exigirem paciência. Assim como hoje, os herdeiros procuram preservar esta prática,
os tipos de plantas a cultivar, o papel do homem e da mulher, o papel da família na instrução dos
filhos sobre o valor da terra e o papel dos filhos como continuadores das mesmas regras. Como
sempre viveram da agricultura, ela constitui para eles uma fonte básica de sobrevivência, porque
assim como no passado produziam para o autoconsumo e troca dentro e fora da comunidade,
assim é hoje: só se vende os produtos para quem é desconhecido. O ato de olhar o negócio como
algo não moral e por isso não digno de ser feito entre parentes, foi apontado também por Klaas
Woortmann (1990), em um estudo feito no Brasil, no qual o autor traz a expressão “com parente
não se neguceia”. Essa expressão, que também faz parte do título da obra, é justificada por um
entrevistado do autor, ao dizer que não se “neguceia” com parente porque no negócio alguém
sempre ganha enquanto o outro perde. Nas comunidades de Nampula isso também constitui ato
indigno. Porque perder e ganhar não podem fazer parte de um jogo entre as famílias, as famílias
fazem trocas, assim todos ganham. O ganho o é medido pelo valor monetário, mas sim por
suprir uma determinada necessidade de um parente. E ambos perderão se não conseguirem,
através da troca, suprir as necessidades do outro, porque o gosto pelo dinheiro é pecado.
58
preciso de dinheiro quando quero uma coisa que eu não consigo fazer ou nenhum
meu parente tem, como capulana
53
para vestir. Eu fico um mês ou mais sem nenhuma
nota de dinheiro no meu bolso, mas como todos os dias, porque planto, e se não tivesse
plantado meus familiares me dariam. Bebo vinho, que nós fazemos aqui, quando quero,
vou nas nossas festas, tenho mulher e filhos e brinco com meus amigos, tudo isso faço
sem dinheiro, por que vou querer tanto dinheiro para encher minha casa? (Albazil)
A reciprocidade pelo amor ao parente faz com que cada um esteja perto um do outro
nos momentos de aflição. Isso faz com que a dor de um seja a dor de todos, porque caso a família
não consiga resolver o problema, não se atribui o fracasso a um indivíduo específico, mas sim ao
nome da família, ao sobrenome. A união familiar para velar por todos revela o nível de
responsabilidade que cada membro da família assume, e é medido pela honra perante os outros
membros do grupo. Para garantir a fidelidade das crianças, elas são submetidas ao
alukhu
e ao
imwali
, duas das principais festas tradicionais identitárias que visam instruí-las e capacitá-las
para esse fim. No capítulo 7, descrevo o processo destas festas e em que momentos isso se
realiza. É necessário desde o princípio que os jovens desenvolvam o gosto de trabalhar a terra,
saibam o seu significado, e conheçam os valores e papéis deles como filhos, da família e da
comunidade em que estão inseridos. Portanto, cada pessoa de certa comunidade carrega no seu
nome a sua origem, a sua família, o seu grupo familiar ou tribal, a sua terra de trabalho e morada,
a sua herança.
3.2 A batata-doce surge em Moçambique: alternativa negativa
Figura 6: Produção da Batata-doce
53
Tecido colorido de tamanho de 1,5 a 2,0 metros de comprimento e cerca de 0,75 a 1,0 metro de largura, usado
como saia, cobertor ou lenço pelas mulheres.
59
Como abordei anteriormente, desde as épocas em que os ancestrais coletavam seu
alimento, seguida da passagem pela domesticação, a divisão de trabalho dentro da família e do
grupo, a responsabilidade individual pelo coletivo, as plantas eram cuidadosamente avaliadas
antes de serem cultivadas. Embora nenhum dos meus interlocutores soubesse me informar sobre
o que realmente constituía alimento nessa época, a pergunta sobre se comiam batata-doce
antigamente foi motivo de riso.
“Batata-doce é de agora, acho que ninguém conhecia. Mas se é
que eles conheciam, então tinham deixado de plantar, e por isso desapareceu, porque eu não
cheguei a ouvir nada sobre batata-doce. Você pensa que batata-doce é comida
?” (Nuro).
O entrevistado Alterro, consubstanciando as palavras de Nuro sobre o conhecimento da
batata-doce como alimento, afirma que ela surge em Moçambique no tempo da dominação
portuguesa, na sua fase mais dramática, a fase colonial propriamente dita, por volta de 1918.
54
Desde esse período, a administração portuguesa foi instituindo seu modo de organização familiar,
mudando a cultura, hábitos e valores.
Não podíamos fazer nossas festas, éramos proibidos. Tínhamos que comer o que eles
comiam e fazer o que eles queriam, para ser assimilado, caso contrário você era alvo
de tortura e escravidão. Mas, mesmo assim, muitos preferiam morrer do que se
submeter. (Aviramumo)
Assimilado
era uma categoria que requalificava as pessoas para a realização dos
serviços básicos. Segundo o senhor Aviramumo, a pessoa
assimilada
era considerada cidadã
portuguesa, porque fazia o que eles queriam e comia o que eles consideravam comida. A
categoria de
assimilado
a colocava em uma posição de privilégio social naquela época, e assim
ela ficava livre de torturas, de serviços forçados e era confiada a cargos da administração para
servir de interlocutora com os restantes, que eram considerados indígenas, aqueles que ainda não
eram gente. Portanto, ser
assimilado
garantia privilégios de ser considerado cidadão português e,
por isso mesmo, poder viver livremente, enquanto que, ao mesmo tempo, tinha que rejeitar a sua
identidade de origem, sua cultura, hábitos e costumes tradicionais. Mas, apesar de tudo isso, os
54
A penetração colonial portuguesa em Moçambique não foi pacífica. Os povos organizados em impérios travaram
lutas de resistência à dominação colonial portuguesa. Mas por causa do poderio militar português e do domínio das
terras moçambicanas no período em que faziam trocas comerciais, os moçambicanos foram vencidos. A luta de
resistência durou cerca de duas décadas, de 1886 a 1918. Meus interlocutores afirmaram terem acompanhado
parentes seus que participaram da Primeira Guerra Mundial. Registros a que tive acesso de Nvava, um idoso que era
correspondente colonial na administração portuguesa, revelam que Moçambique foi considerado uma província de
Portugal. Com isso, muitas plantas, sementes, roupas, hábitos tinham que ser iguais aos de Portugal.
60
colonizadores gostavam de pratos preparados com temperos de amendoim, coco, entre outros. As
folhas de mandioca eram as preferidas, misturadas com camarão ou caranguejo, com temperos de
coco e amendoim. Um dos entrevistados para esta pesquisa foi cozinheiro e revela que várias
vezes fazia pratos tradicionais e os colonizadores gostavam muito, que falavam para ele o
divulgar. E muitos colegas cozinheiros chegaram a viajar e a ensinar o modo de preparar comidas
nos navios e mesmo nos países do exterior, de onde nem todos conseguiram retornar. Foi um
período em que as raízes tradicionais foram sendo esquecidas e substituídas por novos costumes,
trazidos e impostos pelos portugueses. Esta atitude foi uma das razões pelas quais meus
interlocutores afirmaram não terem muita noção sobre o que realmente constituía alimento básico
no tempo dos ancestrais. Lembram-se apenas de alguns nomes de alimentos que ouviram em
histórias, e nem sequer têm a certeza da pronúncia da palavra ou muito menos já viram a planta.
Eu não me lembro de muita coisa porque era muito pequeno e os meus irmãos, que
eram um pouco maiores, foram levados como escravos e nunca mais voltaram. Eu
tento puxar na memória mas não consigo lembrar-me de muita coisa que comíamos.
(Nvetho)
Estas palavras do senhor Nvetho eram frequentes quando conversávamos, na hora das
refeições ou nas capinas na machamba, sobre se algum alimento ou produto apresentado ali era
característica alimentar do passado.
Segundo os registros apresentados pelo senhor Nvava, foi no biênio 1917 e 1918,
período em que se estabeleceu a dominação efetiva de Moçambique pelos portugueses, que foi
introduzida a batata-doce, basicamente para a alimentação do gado. O senhor Alterro concordou
sobre o período, em conversas durante o trabalho de campo. Ele, juntamente com o senhor
Nvava, são os mais idosos das comunidades. Esses registros mostram, ainda, que o objetivo era
claramente de exploração. Os colonizadores portugueses identificaram plantas como algodão,
sisal, tabaco, cajueiro, coqueiro, cana-de-açúcar e chá para alimentar as indústrias europeias e as
restantes passaram a ser plantas de sustento ou de consumo familiar. Embora a maior parte das
plantas cultivadas e consumidas sejam originalmente locais, existem, para além de mapira e
mexoeira, outras como mostradas no Quadro 1, que perderam o seu espaço de consideração,
exatamente por não saberem como eram preparadas para o consumo.
Essas plantas, muito dos mais jovens não fazem ideia do que sejam, nunca as comeram.
Naquele período, com a escassez de mão de obra, principalmente masculina (devido à Primeira
61
Guerra Mundial), as famílias sentiam-se obrigadas a produzir a batata-doce para a alimentação.
Como o homem tinha que trabalhar na propriedade como escravo, ficando sem tempo para prover
os alimentos para família, a mulher passou a assumir os trabalhos domésticos e da machamba
familiar. Com o tempo, o comércio de escravos passou a liderar a rota do comércio e a mulher,
que antes ficava em casa cuidando dos filhos, passou a ocupar o lugar do marido na machamba
da propriedade, como escrava, enquanto o marido era levado como produto comercial. Esta fase
não tardou para mudar, porque a mulher também passou a ser levada junto com o marido, e as
crianças eram as únicas a serem poupadas, mas nem tanto, como veremos adiante. Por isso
Zamparoni (2007), em seu estudo intitulado
De escravo a cozinheiro: colonialismo e racismo em
Moçambique
, destaca que o que se vê a partir das últimas décadas do século XIX é a constituição
de um novo tipo de colônia, baseado sobretudo na prestação de serviços - portos, ferrovias - e no
fornecimento de força de trabalho migrante para as colônias vizinhas do
hinterland
55
e para as
plantations -
campos de plantação
dos colonos,
nas áreas controladas pelas companhias
concessionárias capitalistas.
Chegou um momento em que todos eram levados, já não eram apenas homens crescidos,
mas sim mulheres, jovens e crianças que podiam fazer alguma coisa, dos seus 8 anos em
diante e que tivessem vigor e robustez física, também eram levadas. Apenas uma mulher
gestante era poupada de ser levada, mas ficava com o trabalho nas plantações dos seus
patrões. (Franua)
Com essa desestruturação familiar, ia se estabelecendo a plantação da batata-doce na
família e cada vez mais nas os das crianças. Com o tempo, além do homem a mulher passou
também a ser incluída nesses processos de escravidão ao lado do marido, e muitas vezes eram
deportados juntos para os países de interesse colonial. A maioria não chegaria a voltar a suas
terras de origem. As crianças com idade inferior que ficavam, como não podiam fazer grandes
áreas de plantio, cultivavam a batata-doce em volta da casa, como saída para não morrer de fome.
Com isto, o consumo da batata-doce passou a ser uma espécie de
alternativa negativa
para os
habitantes daquela época, porque não comiam por gosto ou vontade. Pela forma com que se deu a
colonização, o conhecimento prático, até então transmitido de geração em geração, por conta da
escravidão teve uma descontinuidade, e os filhos, não tendo mais os pais por perto, tinham que
55
Segundo Zamparoni (2007), a intensificação do tráfico de escravos rumo às Américas e particularmente para o
Brasil, a partir das últimas décadas do século XVIII, deu significativo impulso a esta rede comercial, não alterando,
no entanto, sua característica básica: os portugueses eram intermediários, como outros, integrados na ponta de uma
complexa rede comercial, que ia dos sertões às feitorias do litoral brasileiro e daí pelos mares afora.
62
saber fazer algo para seu sustento: por isso a batata-doce foi introduzida e massificada como uma
planta basicamente para o domínio das crianças, com seu cultivo feito em proporções em função
da idade e esforço delas, e sempre perto de casa ou nos arredores do pátio.
Este arranjo não era, e ainda não é, por acaso. As crianças, na sua maioria, eram muito
pequenas e havia um risco muito grande de perderem o caminho de casa na busca pelo
mantimento. As sociedades, que antes estavam organizadas em famílias, clãs e tribos, não
estavam mais constituídas assim, a estrutura social passava por crises e as pessoas já não
conseguiam organizar-se ao seu modo antigo. A plantação em volta da casa garantia segurança
para o filho não se perder. Por isso o trabalho e a plantação, nessas condições, é considerado
infantil, não traz honra para os pais, mas sim para os filhos.
Como vimos, nas palavras do senhor Franua, as mães ficavam sem tempo para cuidar
das machambas da família, por isso as quantidades de alimento começavam a escassear, e como
forma de garantir alimento suficiente, a batata que as mães gestantes produziam nas
plantations
era, em parte, levada para seus filhos, em casa. Mas essa atitude foi condenada pelos seus
proprietários, que passaram a proibi-la. Por conta disso, as mulheres se manifestaram e foram
reprimidas violentamente. Em uma primeira fase, as manifestações eram pacíficas, mas nunca
houve abertura para protestos por parte da administração colonial portuguesa. A repressão fez
com que, a partir de um certo tempo, as pessoas passassem a rebelar-se de várias formas, tudo por
conta da batata-doce. Segundo o entrevistado Nvava, lembrando-se das histórias que ouviu dos
seus avôs, um grupo de mães foi reprimido até a morte por ter levado a batata-doce que elas
próprias produziam nas
plantations
para a alimentação dos seus filhos em casa, sem autorização,
e mesmo que pedissem isso não seria aceito. Portanto, as pessoas não podiam fazer
absolutamente nada que fosse de sua iniciativa e vontade. Histórias seculares da humanidade são
ricas em mostrar manifestações quando a situação era descrita como insuportável. Uma dessas
histórias aparece registrada no livro de Thompson (1998), intitulado
Costumes em comum
. O
autor, tratando da economia moral da população inglesa no século XVIII, mostra, entre outras
situações de tumultos, que os motins da fome (quando o desemprego e os preços elevados se
combinavam) manifestavam-se em ataques aos comerciantes de grãos e aos moleiros.
Comentando sobre o “mapa da tensão social”, argumenta que basta reunir um índice de
desemprego e outro de preços elevados dos alimentos para poder mapear o percurso da
perturbação social.
63
Ploeg (2008), em seu estudo
Camponeses e impérios alimentares: lutas por autonomia
e sustentabilidade na era da globalização
, apresenta o termo
contadini
para designar camponeses
na Itália, termo que significa literalmente “os homens do senhor” – aqueles que são subordinados,
maus, feios e incapazes de controlar seu próprio destino. Essa condição de subordinação imposta
mudava a situação anterior dos italianos, assemelhando-se ao que o autor apresenta na cultura
grega, sendo que anteriormente o camponês era um homem livre que praticava a agricultura de
forma orgulhosa e independente, não se subordinava a nenhum dono, nem patrão, muito menos
às regras do mercado.
Remetendo à discussão para o caso de Nampula, embora não fosse por desemprego e
aumento de preço dos alimentos, o fato das mulheres o poderem produzir o suficiente para a
sua família e não poderem levar o que produziam na machamba do seu colonizador para o
consumo de seus filhos, provocou perturbação social, porque não eram livres para produzir e
comer o que quisessem. Por isso, Thompson (1998) salienta que as pessoas protestam também
quando estão com fome e que é possível detectar em quase toda ação popular do século XVIII
uma noção legitimadora das manifestações populares.
Por noção de legitimação, entendo que os homens e as mulheres da multidão estavam
imbuídos da crença de que estavam defendendo direitos ou costumes tradicionais; e de
que, em geral, tinham o apoio do consenso mais amplo da comunidade. (THOMPSON,
1998, p.152)
Considerando, a partir das palavras de Thompson, que as perturbações em Nampula e
outras que aconteciam pelo resto do país eram movidas por uma noção de legitimação, elas
geraram movimentos que pretendiam obter a liberdade em relação aos colonizadores e que, mais
tarde, se fundiram formando a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO), que conduziu
o país à independência em 25 de junho de 1975.
Com a independência de Moçambique alcançada, o povo em geral saiu da condição de
contadini
para a de homens e mulheres livres. E isto significou para o camponês também ser livre
para voltar às suas práticas sem submeter-se a nenhuma regra fora dos objetivos familiares e do
grupo social ou tribo. Porém, anos e anos se passaram sem que retomassem sua cultura, e então,
parcialmente, o novo grupo social encontrou-se com seu passado. As danças, as festas e rituais
foram sendo reconstituídos por aqueles que se lembravam das formas de fazer. A agricultura e a
pecuária voltaram a ser fontes de sustento, as relações sociais de reciprocidade e responsabilidade
64
coletiva passaram a vigorar nas regras de valoração dos princípios estabelecidos. A caça, que
antes era para instrução e encontro de homens valentes, voltou a ser feita da mesma maneira. A
mulher voltou a fazer os trabalhos considerados “leves” e o homem retomou os serviços
“pesados” e de “risco”. A mapira, mexoeira e milho passaram a ser os cereais mais produzidos, a
batata-doce ficou por décadas fora das plantações familiares, mas por causa dos serviços de
extensão do governo, restabeleceu-se e popularizou-se novamente, principalmente no período de
guerra civil, de 1976 a 1992.
Nesse período, as pessoas não podiam sair a grandes distâncias da suas residências por
conta da guerra, e tinham à volta das moradias o único espaço para plantar. Com o tempo, os
vilarejos foram também substituídos por campos de batalha e as pessoas se concentraram nas
grandes cidades. A batata-doce, por causa das suas facilidades de produção, foi sendo plantada.
Após o final da guerra civil, com a assinatura do Acordo Geral de Paz, em 4 de outubro de 1992,
algumas pessoas voltaram para suas zonas de origem e outras não. Os que voltaram e os que
ficaram passaram a plantar batata-doce, em proporções pequenas em comparação com outras
plantas, e em consórcio, sob forma de barreira ou limite entre parcelas de terra. E o lugar
preferencial para plantar a batata-doce continuou sendo em volta de casa, por conta de ter sido
colocada nesse espaço durante a colonização e a guerra civil, para garantir fácil alcance e para
que as crianças não se perdessem em busca de mantimento. Com o tempo, a batata-doce foi
deixando a conotação de resistência e crise que tinha e passou a ser exclusivamente para o
aprendizado das crianças, por isso nunca teve uma consideração maior no
ranking
dos produtos
produzidos e consumidos, de um lado por lembrar o passado triste e de outro lado por não
dignificar ou trazer honra ao pai da família.
65
4 BATATA-DOCE PARA QUEM? IDENTIDADE INFANTIL NA PRODUÇÃO E
CONSUMO DA BATATA-DOCE
4.1 O lugar da batata-doce na família
No capítulo anterior, descrevi os processos decorrentes da introdução da batata-doce em
Moçambique e como ela chegou a fazer parte do reperrio alimentar das famílias. E nele vimos
que tanto a variedade branca quanto a alaranjada sempre apareceram em situações de aflição por
crise alimentar: a batata de cor branca apareceu durante a época colonial, devido à falta de
alimentos e forragem para o gado e após a guerra civil e a independência. A batata de cor
alaranjada, por causa das cheias em 2000, foi introduzida para resolver o problema da fome e
desnutrição. Em todas essas fases, as famílias tiveram que reestruturar para encarar as
adversidades. A adaptação do alimento e a organização em termos da divisão do trabalho familiar
eram feitas pela imposição político-administrativa e/ou pela necessidade em fases de crise
alimentar e nutricional. Analisemos estes fatos detalhadamente com ajuda do Quadro 2:
Tipo de
machamba
Responsabilidade Produtos produzidos Destino dos produtos
sec. IV a 1885 Conjunta Todos da tribo Mapira, mexoeira Alimentação
1885 a 1918
Familiar Todos os membros
da família
Mapira, mexoeira, mandioca,
girassol, amendoim
Alimentação e troca comercial
Infantil
56
Crianças e a mãe Batata-doce de cor branca Alimentação familiar
1918 a 1950
Familiar Mãe Mapira, milho, mexoeira,
amendoim, girassol, mandioca
Alimentação familiar
1950 a 1975
Infantil Crianças Batata-doce branca Alimentação familiar
1975 a 1992
Infantil Todos os membros
da família
Batata-doce branca, milho, mapira,
mexoeira, feijões, mandioca
Alimentação familiar e troca
comercial
Infantil Crianças Batata-doce branca, milho, abóbora,
feijões
Alimentação familiar
1992 a 2000
Familiar Pai da família Mandioca, milho, mapira, mexoeira,
algodão, amendoim, mandioca,
amendoim
Troca comercial e alimentação
familiar
Infantil Crianças Batata-doce branca e alaranjada,
milho, feijões, abóbora
Troca comercial e alimentação da
família
2000 a 2009
Familiar Pai da família Mandioca, milho, mapira, mexoeira,
algodão, amendoim
Troca comercial e alimentação da
família
QUADRO 2 – Trajetória familiar e a batata-doce
FONTE: Pesquisa de campo, 2010
56
Machamba que fica na responsabilidade das crianças.
66
Neste quadro não apresento o século I a IV por ser um período que não havia a prática
da agricultura. Contudo, observamos que com a introdução da batata-doce pela imposição
político-administrativa, em 1918, as famílias se sentiram na obrigação de adaptar-se. Por um
lado, a mãe, que estava sozinha, teve que ser também pai da família, assumindo o trabalho
“pesado”, de “risco” e também o “leve”, portanto trabalhos que exigem “esforço físico” e
“coragem” como também os que exigem “paciência”. Ouvi falar muitas vezes, durante o trabalho
de campo, que a mãe sempre pensa no depois. Por isso acredita-se que, pela evolução da situação,
a mãe na época foi ensinando os filhos a plantar à medida que voltava do trabalho da machamba
familiar, para salvaguardá-los. Confirmando-se a pressuposição da mãe em 1950, os filhos
tiveram então que produzir para o seu próprio sustento, agora com a ausência dos pais, e a batata-
doce foi sendo a única planta que eles plantavam até 1975. Com a proclamação da independência,
o povo se viu mergulhado em outra guerra, agora entre irmãos que não se entendiam nos cargos,
na partilha do poder e escolha dos blocos socialista ou capitalista. Durante este período da guerra
civil, a batata-doce continuou sendo plantada na machamba infantil, mas agora sob
responsabilidade de todos os membros, visto que não era possível deslocar-se a longas distâncias
de casa, sob risco de morte. Este é um motivo para afirmar que a agricultura urbana, visivelmente
desenvolvida em Moçambique, inicia-se neste período, porque a machamba infantil tinha que ser
maximizada para prover mantimentos a todos os membros da família. Por isso, além da batata-
doce, plantava-se também outros produtos agrícolas, que anteriormente eram cultivados somente
na machamba familiar. Este período terminou com a assinatura dos acordos gerais de paz em
Roma, Itália, em 4 de outubro de 1992.
Figura 7: Machamba infantil Figura 8: Machamba familiar
67
Com a paz restabelecida, o que muda na machamba infantil é a responsabilidade e o
destino da produção. A prática de colocar outros produtos, além da batata-doce, permaneceu, mas
o destino ficou circunscrito ao consumo familiar e a responsabilidade ficou unicamente com os
filhos. Os pais tiveram que abrir outros espaços para a machamba da família (aquela em que o pai
é totalmente responsável), e os produtos desta parcela servem para garantir as necessidades
familiares. Foi especificamente em 2000 que as duas batatas aqui arroladas começaram a
coexistir juntas, inicialmente na machamba infantil. Com o passar do tempo, a batata-doce de
polpa alaranjada passou também a ser colocada na machamba da família, mas aí para fins
comerciais, enquanto a branca, que está em volta de casa, é para consumo familiar.
A produção e o consumo da batata-doce foram sendo relegados a um nível cada vez
mais inferior. Temos aqui dois cenários distintos: um em que a batata-doce traz a mancha da
opressão, e por isso é detestável, e outro em que a batata-doce cria as categorias de machambas
que acabamos de ver. São duas situações totalmente opostas, em que o sim e o não coexistem.
Após a independência, alguns vestígios de dominação colonial foram destruídos, porém a batata-
doce sobreviveu neste período. Ela salvou vidas por ser alimento para as crianças. Por ser
plantada em volta de casa, para permitir que os filhos não se perdessem, proveu espaço agrícola
que alimentou a família inteira, principalmente nos tempos de guerra civil. A batata-doce criou a
machamba infantil e esta, por sua vez, alimentou a família em um período em que a machamba
familiar já não existia. Talvez seja por isso que ela continuou sendo plantada pelas famílias.
Tudo que não é controlado pelo chefe da família o é considerado como principal ou
importante para a família. Heredia (1979), em seu estudo sobre a morada da vida, que realizou no
Nordeste brasileiro, estudando o trabalho da família camponesa, fala sobre o roçado e o
roçadinho. O roçado é a unidade de produção na qual todos os membros trabalham, mas que
pertence ao pai da família. O que é produzido ali prestígio e honra ao pai e ninguém recebe
nada por trabalhar nele, porque os membros da família ajudam o pai. A compensação se na
hora de consumir os seus produtos. O roçado abastece a casa e garante o sustento da unidade de
consumo coletivo, enquanto que o roçadinho pertence aos outros membros da família, os filhos e
a mulher, portanto, garante o consumo individual. O que é produzido nesses roçadinhos não
prestigia o pai e, consequentemente, não é considerado importante para a família, porque o
importante para a família é o roçado e o que nele se produz. Portanto, a importância do roçado é
dada por ser dirigido pelo chefe da família e estar relacionado com a honra da família e o que
68
nele é produzido ser considerado importante. Porém, existem algumas especificidades, a autora
salienta que os produtos são reagrupados na hora de consumo, sendo separados de acordo com
sua participação ou não nas refeições principais. Portanto, nem tudo produzido no roçado, como
vimos, entre legumes e verduras, é considerado comida, estas últimas são classificadas como
complemento de comida. Com isso, o milho verde e o feijão verde, como diz a autora, não são
considerados verduras, mas sim comida, por participarem nas refeições principais, como também
nesse contexto podem ser considerados comida produtos que não vêm do roçado. Assim, também
à semelhança do contexto brasileiro estudado por Beatriz Heredia (1979), ocorre o mesmo com a
batata-doce em Moçambique, por estar relacionada às crianças e ser produzida na machamba
infantil, e mesmo quando é cultivada na machamba familiar não prestigia o pai como chefe da
família. A batata-doce também não entra nas refeições principais, almoço e jantar, por isso não é
considerada comida.
Não ligo para a produção da batata-doce, não diz nada para mim [...] Eu deixo para
minha mulher e os filhos fazerem [...] Eu cuido de coisas sérias e não de brincadeiras.
Luto sempre para ter maior quantidade de mandioca e milho, isso sim vai garantir que a
gente não passe fome e eu não fique envergonhado. (Alfinete)
Eu faço parte da associação que produz rama para vender e também produzimos a
batata-doce de polpa cor alaranjada que vendemos para organizações não-
governamentais e pessoas de fora, mas eu nunca trago aqui em casa. (Camido)
A questão é que o senhor Camido, como chefe da família, se não fosse por obrigação do
governo não produziria a batata-doce, pois segundo ele a primeira e última vez que teve que
produzi-la foi durante a infância. Logo depois que tornou-se jovem, jamais produziu e comia de
vez em quando. Agora que já tem a sua família, passou o ensinamento para os seus filhos. A dona
de casa Iria, que é esposa do senhor Camido, afirmou que o marido nunca come a batata-doce,
mesmo quando é a esposa que prepara. Essa fala enfatiza o posicionamento do chefe da família
perante a batata-doce, não importa quais são as variedades, se é branca, amarela ou de outra cor, a
questão é ser apenas batata-doce.
Andrade, Naico e Ricardo (2003) apontaram que a batata-doce está do terceiro ao
sétimo lugar na importância relativa no consumo das famílias, isto mais ou menos dois anos após
a implementação do programa de redução de desnutrição em Moçambique. Nessa altura, parecia
óbvio que no início houvesse um pouco de resistência nos agricultores familiares, por tratar-se de
algo novo, que estava sendo introduzido na sua alimentação, o que levou a equipe que fez o
69
estudo a recomendar que se continuasse com as campanhas de massificação da produção e
consumo como forma de garantir que, aos poucos, as comunidades aderissem como prática
costumeira. Estes autores recomendavam a distribuição gratuita da rama de pessoa para pessoa, já
que a maior parte, cerca de 70% dos produtores entrevistados, disse que obtinha através dos
vizinhos.
Como se depreende da fala do senhor Alfinete, a questão que ficou por resolver foi
definir qual membro da família dirigiria a produção, pois este presente trabalho de pesquisa
confirma que pode haver um total descontrole ou desinteresse da produção e consumo da batata-
doce de polpa alaranjada pelo chefe da família.
Assim como o chefe da família recebe a rama por temor de exclusão nos próximos
programas de ajuda à comunidade, também desconhece os calendários para sua distribuição. Por
isso a recomendação feita por Andrade, Naico e Ricardo (2003) poderia ser encarada como um
indicador de importância desta planta no seio das famílias. Mesmo com a distribuição gratuita da
rama, ela nunca atinge o nível de monocultivo, as crianças é que se responsabilizam pelas trocas
de rama entre as famílias, visto que se uma determinada criança não tiver rama para produzir,
pede para outra criança de outra família.
O Luís no ano passado conservou mal a rama de batata-doce de polpa cor alaranjada e
secou, por isso, como distribuíram tarde pelos técnicos da agricultura este ano, ele foi
pedir ao amigo dele e o amigo lhe ofereceu, porque sempre trocam variedades, se um
apanha pouco o outro ajuda, amigos são assim mesmo. (Achawa)
Eu vou nos encontros de distribuição da rama com meu filho, eu até nem pego, mal me
chamam para receber ele leva para casa. No ano passado não tinham distribuído rama
aqui, mas os miúdos conseguiram produzir, não sei como. (Atom)
O relato da senhora Achawa, uma chefe de família, revela como a batata-doce entra na
instrução dos filhos, e, no que diz respeito à dádiva e reciprocidade, nada mais importante que
treinar com batata-doce. Por isso mesmo, Eric Sabourin (2003), em seu trabalho sobre dádiva e
reciprocidade nas sociedades rurais contemporâneas, argumenta que a lógica do sistema de
reciprocidade não considera apenas a produção exclusiva de valores de uso de bens coletivos,
mas a criação do ser, da sociedade. Somente nos casos em que distribuição da rama por parte
dos técnicos da agricultura ou de uma organização não-governamental não é enviada uma
criança para receber, mas sim o pai ou a mãe, porque senão isso seria considerado falta de
respeito perante às autoridades e significaria ser marcado para nunca mais receber auxílio do
70
governo em outros programas na comunidade. Por isso que nas reuniões com técnicos de
distribuição e festas promovidas pelas autoridades sempre deve ser o chefe da família quem vai,
assim como falou o senhor Atom, com evidente desinteresse. Portanto, como vimos, a batata-
doce pertence aos filhos, que podem fazer o quiserem com o que plantam na sua parcela. Um dos
mais valorados destinos da produção infantil é sem dúvida o
makhazi
57
, uma atividade que dá aos
filhos a felicidade em poder fazer.
Segundo Heredia (1979), os filhos e a mulher dona de casa ajudam no roçado, no qual o
pai é responsável, mas o pai não ajuda nos roçadinhos, exceto quando alguma razão, por
doença ou ausência. Assim é também com a batata-doce e a machamba infantil, as crianças
plantam, cuidam e também colhem. Nem o pai e nem a mãe ajudam no trabalho na machamba
infantil, no caso de haver incapacidade dos filhos realizarem a atividade. A comida que é
produzida por essas crianças lhesalegria por serem elas a fazerem, sem interferência dos pais.
Um motivo de orgulho dos pais é poder ver os filhos praticando os ensinamentos da família e
uma honra em poder comer o que as crianças oferecem aos pais na brincadeira de cozinhar.
Aliás, nenhum pai deve rejeitar comer a comida das crianças, mesmo que ela não esteja boa,
porque para além de ser um grande estímulo para elas continuarem praticando, é uma
demonstração de confiabilidade para os pais, de que um dia eles não puderem cozinhar por
doença, os filhos estarão em condições de fazer qualquer coisa sozinhos e servir aos pais, e em
casos de ausência paterna eles se sairão bem, pelo menos saberão o que fazer para não morrer de
fome.
As crianças fazem
makhazi
em um período livre, quanto não têm nenhum compromisso
com a escola, se estiverem estudando, ou com seus pais ou familiares, como se fosse um passeio
ou outra atividade. Portanto, podem tocar na batata-doce ou comer nesses períodos livres. As
que estão em idade escolar geralmente fazem
makhazi
no final da tarde, depois de voltar da
escola, já que, por regra, as crianças de 0 a 10 anos estão na escola no período da manhã. Quando
regressam, têm a obrigação de ajudar a mãe nos afazeres da cozinha, se forem do sexo feminino,
e o pai nos trabalhos de casa e artesanato, se forem do sexo masculino. Após o almoço, elas
lavam a louça e deixam pronto o necessário para o jantar, e depois disso sobra tempo para
brincar. Convidam-se umas às outras na vizinhança e escolhem rotativamente a casa de uma
57
Significa cozinha de crianças. Na brincadeira de cozinhar, os meninos fazem o papel de pai e as meninas o papel
de mãe.
71
delas como anfitriã para fazerem
makhazi
. Os rapazes desempenham as funções de marido,
imitando os pais, trazendo lenha para o fogão, construindo pequenos barracos como se fossem
casas, entre outras tarefas do processo de tomada de decisão masculino. As raparigas
desempenham as funções de mulheres e preparam as comidas, cada uma se inspirando em sua
mãe na arte de cozinhar.
Aos pares, instalam-se no cantinho do pátio, do quintal da casa escolhida, e ali cada par
em seu barraco conversa entre si e desempenha seu papel de família, de vizinho e de
comunidade. O principal produto usado na cozinha é a batata-doce, quer seja a de polpa branca
ou a alaranjada, mas também podem ter outros produtos que elas cultivaram nas suas
machambas. Com estes produtos, as crianças podem fazer o que quiserem, os pais não interferem
diretamente, apenas podem orientá-las como fazer, e elas podem vender ou doar os produtos a
uma avó da família. Nesse processo de
makhazi
, se os pais estiverem de bom humor, dizem
palavras carinhosas e até promovem concursos para o par melhor sucedido.
Quando as mulheres-crianças terminam de cozinhar, entregam ao marido-criança para
provar e dizer algo para sua esposa antes de qualquer outra pessoa comer. Este primeiro prato
entregue para o marido comer é muito simbólico: não tem quantidade suficiente para saciar a
fome, trata-se de um experimento, pois cabe ao marido provar a comida que foi preparada pela
sua mulher. Depois que ele aprova, a menina serve em um prato uma quantidade maior,
suficiente para o casal comer. Os dois se sentam juntinhos nos seus barracos e ali vão
exercitando o processo de alimentação em família. Depois dessa fase, eles servem um prato para
cada casal, e deslocam-se todos para um determinado barraco para confraternizar, como se
fossem uma comunidade. Esse barraco é selecionado aleatoriamente, simbolizando um vizinho
que é escolhido para receber a confraternização, mas ao mesmo tempo se evita a repetição dos
pares anteriormente escolhidos como anfitriões para que todos tenham sido escolhidos até no
final da rodada. Todos sentam-se em roda e as respectivas mulheres tratam de juntar as comidas
para a redistribuição. Os meninos de um lado e as meninas do outro sentam-se em grupos e
comem. As meninas se encarregam de juntar as comidas, os diferentes pratos que chegaram de
diferentes barracos, de modo que ninguém possa descobrir de onde terá vindo um prato
específico. A ideia é que todos possam saborear a cozinha de todos sem que ninguém se
aperceba a quem pertence um determinado prato que talvez tenha gostado ou desgostado.
72
Depois que a sessão de confraternização entre vizinhos termina, chega a vez de cada
par voltar para o seu barraco e recolher o que sobrou para poder entrar no concurso promovido
pelos pais. Os pais são retirados para uma área onde não possam ver os pratos a serem
arrumados, e cada casal põe um sinal de identificação para evitar confusão na hora de votação e
apuração dos vencedores. Depois que todos os pratos são arrumados, os pais são chamados para
a sessão de votação. Eles levam uma pedrinha para colocar em frente ao prato que gostaram. Os
pais verdadeiros, isto é, os que geraram os pais da “brincadeira de
makhazi
”, e os convidados vão
se servindo aos poucos, à medida que vão votando se encontrarem o melhor prato. Cada pai
possui uma pedrinha e somente pode deixar em frente também de um único prato, e o prato que
tiver maior número de pedrinhas em frente é o melhor da tarde e o par que o cozinhou é
proclamado vencedor.
Não existe um prêmio fixo, varia desde dinheiro, roupas, um passeio de férias para a
casa de um parente que esteja morando longe da comunidade, etc., porém o que se tem em conta
é a felicidade com que o par vencedor tem em poder honrar os seus pais com um bom feito e o
imenso prazer dos pais em poder mostrar que eles são de fato bons pais, bons educadores e que
isso lhes vale um lugar de prestígio na comunidade. No fim da brincadeira todos comem, as
crianças e seus respectivos pais, fazendo com que os laços de boa vizinhança tornem-se cada vez
mais fortes na comunhão das crianças. Os utensílios usados para cozinhar são emprestados pelas
mães, e para construção de barraco o rapaz empresta do pai.
Em zonas mais conservadoras da tradição, esse evento, apesar de ser totalmente
infantil, de ser promovido e realizado pelas crianças, chega a reunir muitas pessoas observadoras,
de dentro da comunidade e até de fora dela.
Eu nunca falho nesses momentos, acho muito divertido ver a alegria no rosto das
crianças no fim de cada makhazi, não só do par vencedor, mas de todos eles. (Anifar)
No ano passado meu marido queria me deixar, mas depois que nossa filha ganhou
concurso de três makhazis sucessivos, sentiu-se obrigado a me procurar e fazer as
pazes, porque ele tava ficando fora das honras da nossa filha. (Fatimua)
Na brincadeira, as crianças encontram um espaço para expressar a sua vontade, pois a
maior parte do tempo elas estão sob o cuidado dos pais, que as acompanham a cada passo, no
processo de educação. É uma grande honra para a comunidade que possui crianças quando elas
conseguem reunir adultos para lhes brindar com um evento de makhazi. Isso mostra as pessoas
73
do amanhã dessa comunidade, jovens educados e bem comportados, uma comunidade feliz onde
a união, a convivência e a construção de laços remontam desde a infância e são reproduzidos de
geração em geração através do aprendizado familiar e depois para a comunidade onde são
inseridos quando adultos.
Apesar de ser identificado como um processo de caráter infantil, o
makhazi
promove a
reconciliação dos pais, o reatamento de seus laços matrimoniais, pois a honra é tudo que
qualquer pai desejaria ter perante a comunidade, por meio dos bons feitos dos seus filhos. É uma
grande terapia de amor e convívio entre as famílias, promovendo paz e tranquilidade na
comunidade.
O que ocorre neste evento está de acordo com o que argumenta Rodolpho (2004,
p.139), em seu artigo sobre rituais, ritos de passagem e de iniciação:
[...] uma solução de consenso é alcançada por todas as sociedades, quando a
coletividade consegue ou tenta trazer os diversos acontecimentos diários que
envolvem os indivíduos para dentro de uma esfera de controle e ordem, esfera esta
coletiva, social. Os rituais, nesse sentido, concedem autoridade e legitimidade quando
estruturam e organizam as posições de certas pessoas, os valores morais e as visões de
mundo.
As crianças, exercitando papéis de adultos, estão praticando aquilo que a sociedade as
ensina como valores a serem seguidos individualmente e como grupo, que, nas palavras da
autora, concedem autoridade e legitimidade. Os eventos de
makhazi
são momentos de simulação
de lares com as crianças e de encontros com os mais velhos, sendo uma oportunidade para
conversar com algum amigo ou amiga que possa estar ali, enquanto se observa o movimento das
crianças na brincadeira. É um evento em que qualquer um pode estar presente e assistir sem
nenhum custo, descontrair-se durante o espetáculo culinário exibido pelas crianças no seu espaço
e no seu tempo livre, fora do julgamento dos seus pais. À semelhança de dona Fatimua, que viu o
seu casamento ser refeito pela sua filha, muitos casamentos podem ter se originado de encontros
ocasionais ou marcados no evento de
makhazi
. O senhor Franua, contando o histórico da sua
comunidade, lembrou que no seu tempo aconteciam eventos muito importantes, desde o pedido
de perdão entre vizinhos que antes tinham brigado por ver seus filhos juntos
makhaziando
ou por
serem vencedores ou perdedores
58
, e serviam de ponto de encontro entre as pessoas da
58
A organização dos pares é aleatória. Se Luísa, filha da família “A”, que tinha feito um par com Luís, filho da
família “B” no evento de makhazi anterior, no próximo evento não pode haver repetição desse casal, isto é, os pares
se trocam, são rotativos até que não haja mais possibilidade de formar outros pares. Isto marca o fim da rodada e
culmina com o reinício de outra. De salientar que não existe periodicidade marcada e regular para este evento de
makhazi, tudo depende da liberação das crianças pelos seus respectivos pais.
74
comunidade para tratar de vários outros assuntos, incluindo casamentos. Nos tempos atuais,
embora o evento não aconteça com a mesma intensidade, sempre é acompanhado por esses bons
feitos, não para as crianças que desenvolvem o senso de comunhão, mas também para todos
os habitantes da comunidade
.
Hoje as crianças devem ir para a escola, ajudar os pais nos afazeres de casa, servir
muitas vezes de correio oral de comunicação entre famílias e vizinhos e com tudo isso
acaba sobrando pouco tempo para elas, e até vezes que acaba uma semana ou duas
sem haver um evento de makhazi [...] Alguns pais não sabem que dar liberdade à
criança para makhaziar é uma forma de controlar, porque ao mesmo tempo em que elas
pensam que estão livres da pressão e controle dos pais, na verdade os pais estão ali
para controlar também, mas a criança não descobre isso. É algo que põe feliz tanto os
pais como os filhos. (Franua)
Na opinião do senhor Franua, os pais deveriam sempre incentivar os filhos com o
makhazi
, deixando mais tempo livre para eles poderem
makhaziar
, porque ambos saem
ganhando, como pessoa e como família. Rodolpho (2004) observa que os rituais não são apenas
simples formalidades. A brincadeira livra a criança da constante pressão, porque apesar dos pais
estarem ali como observadores, as crianças nunca pensam que essa é uma forma de controle, o
que lhes motiva a criatividade e expressão dos sentimentos como pessoa e como filho, e o
sentimento de pertença das suas conquistas. O senhor Franua também tem os seus ganhos, é
considerado o melhor, um dos mais conceituados organizadores de
makhazi,
apesar de não ser
verdade porque apenas ele permite a sua reallização, pois, como vimos, são as crianças que
fazem tudo para que o evento do
makhazi
aconteça. Por isso, por permitir sua realização, o
líder é considerado bom, um dirigente que gosta de ver sua gente conviver com sua cultura, que
vive em perfeita harmonia com sua comunidade e com pessoas de fora dela. Isso lhe vale um
grande prestígio e honra, colocando-o no lugar de um verdadeiro conselheiro em outras
comunidades sobre as boas formas de conduta social.
Não existe um lugar livre para as crianças a não ser ali no makhazi. Em casa os pais
sempre ficam ralhando ou corrigindo tudo que ela toca, faz e fala. Na escola idem, os
professores, nem todos, mas a maior parte deles não têm capacidade ou humor
necessário para aturar tudo que as crianças têm para mostrar, os intervalos não são
suficientes para colocarem os seus contatos mais firmes na escola e a caminho de casa
alguns pais, se não vão buscá-los, é porque ficam controlando o tempo que a criança
deve gastar para chegar em casa e uma vez em casa o controle começa novamente.
(Alterro)
75
Por isso que
makhazi
é considerado de fato um lugar, um evento de expressão física e
emocional das crianças, porque tudo é com elas, a iniciativa do que fazer, como fazer, os
processos de tomada de decisão. Elas têm um espaço em volta de casa para plantar
principalmente a batata-doce e outros vegetais como abóbora, feijões e milho, para variar. A
criança não tem um tempo específico para trabalhar no seu roçadinho, utilizando aqui as palavras
de Heredia (1979), mas dentro das poucas horas vagas ela consegue dar conta do seu espaço
produtivo, porque tudo que ela conseguir produzir é da sua inteira responsabilidade para fazer o
que quiser. Se o evento de
makhazi
é um sucesso, todo o mérito é das crianças. o que pedem
são os utensílios para a culinária e construção de barracos. Os pais nada fazem e nem contribuem
com opiniões, mas a verdade é que são as melhores festas, encontros nos quais ningm reportou
confusão ou briga entre as crianças, mesmo quando não existem concursos que, por via de regra,
são os pais que proporcionam.
4.2 Criança é sempre criança: batata-doce e transmissão de saberes tradicionais
A ligação direta entre a batata-doce com as crianças não termina por aqui, como vimos
anteriormente com o
makhazi
. É comum, em campanhas do governo e seus parceiros, falar-se da
importância da batata-doce de polpa alaranjada para a nutrição das crianças, não obstante muitas
mensagens propagandistas são feitas visando criar, entre outros objetivos, maior interesse dos
agricultores familiares sobre essa planta. Dado que, nas comunidades rurais, pelo sistema
tradicional a criança é tratada como criança, isto é, como desprovida de condições de saber ou
decidir algo sobre si mesma, ela é assim colocada em segundo plano.
As campanhas de administração da vitamina A via oral para as crianças são levadas a
cabo todos os anos, em programas nacionais, cuja adesão tem sido melhor ano após ano, visto
que são as mães que levam as crianças para os postos de vacinação. Um dos vários esforços de
base do governo, nesse sentido, foi a criação do Sistema Nacional da Saúde da Criança
(SNSC)
59
, uma iniciativa para intensificar a oferta de serviços e cuidados de saúde às crianças
com menos de cinco anos de idade. É neste período que se intensificam as mensagens
59
Este programa se enquadra no âmbito de um programa maior, que é o Sistema Nacional da Saúde da Criança
(SNSC), uma política pública voltada exclusivamente para a saúde das crianças.
76
propagandistas sobre administração da vitamina A, bem como explicações à comunidade das
vantagens de produção e consumo de batata-doce de polpa alaranjada. Na província de Nampula,
no ano de 2009, as estruturas do setor de saúde esperavam abranger cerca de 680 mil crianças.
Flávio Wate, diretor provincial de Saúde, disse que nas ações desta campanha estão envolvidos
cerca de 2 mil funcionários do setor, entre técnicos, pessoal de apoio e agentes comunitários de
saúde, cuja tarefa se concentra, essencialmente, na mobilização das comunidades para aderirem
ao processo (INFORMAÇÃO VERBAL)
60
.
Figura 9: Campanhas institucionais Figura 10: Vacinação com a vitamina A
As mães que levam os filhos para os postos de vacinação observam como é feita a
administração da vitamina A para elas, têm contato direto com o profissional da saúde, e
acreditam que dar vacina de vitamina A não é o mesmo que dizer coma batata-doce de polpa
alaranjada para obter vitamina A”. Como, regra geral, são crianças de 0 a 5 anos de idade que
são submetidas à suplementação oral da vitamina A, às outras mais velhas é dada a
recomendação de comer a batata-doce de polpa alaranjada. Por isso, após a criança usufruir da
vacina de 0 aos 5 anos, ela fica gradualmente desprovida dessa vitamina A na família, porque
não se pode comer a batata-doce de qualquer maneira, e porque acredita-se que pode ter azar na
escola ou gerar o mau funcionamento de qualquer coisa, que possa prejudicar seu crescimento
61
.
se permite que a criança coma batata-doce no
makhazi
, no final de semana, que depois ela
tem pelo menos um dia para descansar antes de realizar tarefas escolares, se for estudante. E
60
Informação apresentada na entrevista do senhor Wate, sobre o balanço da campanha de vacinação nacional,
realizada no dia 22 de maio de 2009, no canal da Televisão de Moçambique (TVM), em Maputo.
61
O tema do azar será aprofundado mais adiante, no capítulo 5.
77
como o
makhazi
tem lugar no período da tarde, terão a noite para repousar e não estarão em
contato com nada. Como forma de proteger as crianças do perigo sobre o desconhecido, já que as
mensagens estão voltadas para as crianças, os adultos
a priori
colocam em dúvida as reais
intenções dos programas de massificação da batata-doce de polpa alaranjada.
Criança é sempre criança, não sabe nada, muito menos distinguir o que é bom e mau
para elas. O que pode ser bom para comer pode fazer também mal, independentemente
se é doce ou amargo [...] Se minha filha o tivesse visto as professoras e outras
vizinhas que fazem parte do grupo conjunto de nutricionistas e ativistas daqui da
comunidade, ela não comeria, nem seria necessário levar para me perguntar se pode
ou o comer, mas ficou confusa ao ver pessoas próximas que estavam preparando o
lanche. (Lala)
Eu sempre falo para meus filhos que não podem confiar em ninguém, devem sempre
perguntar antes de aceitar alguma coisa de alguém para comer, porque nós somos os
pais, conhecemos o que é melhor para elas. (Tabudo)
Essas afirmações vieram depois de ter sido feita a pergunta sobre o que os pais
achavam das campanhas de disseminação do consumo da batata-doce de polpa alaranjada. A
entrevistada Lala teve que perguntar à filha, que acabava de chegar, se não tinha tomado sucos e
bolachas feitos na escola com batata-doce de polpa alaranjada, porque, segundo ela, traz
fraquezas ao organismo. Mesmo que seja algo instruído nas escolas, as crianças são informadas e
educadas pelos pais a perguntar sempre que tiverem dúvidas das coisas que estão sendo feitas na
escola. O ensinamento familiar está em primeiro lugar, e na escola devem duvidar e confiar na
família. Em uma dessas vezes em que uma equipe de nutricionistas e ativistas comunitários
preparou sucos, bolos e bolachas de batata-doce de polpa alaranjada numa escola local, a maior
parte das crianças, apesar de ter aceitado participar do evento, preferiu levar para casa. O
objetivo era perguntar aos pais se elas podiam ou não comer as bolachas ou tomar o suco. A
senhora Lala autorizou comer as bolachas no final de semana, quando a filha não vai para a
escola, pois têm que ser comidas nos momentos em que não exista nenhuma atividade séria, de
modo a não prejudicar, porque se acredita que a batata-doce azar. A este assunto dedico
atenção no capítulo seguinte. Esta é uma prática corriqueira, qualquer criança só deve tomar algo
que nunca viu depois de observar os mais idosos. Essa responsabilidade de confiar nos mais
idosos não é dada a qualquer pessoa, as crianças precisam ouvir dos pais, pois são eles que estão
em primeiro lugar em termos de confiança por parte das crianças. Depois da confiança nos pais é
que aparecem outros parentes, de forma hierarquizada, a quem a criança foi educada ou instruída
78
pelos pais a confiar. A ordem de confiança é seguida pelos irmãos, tios e avós. Algumas
crianças, quando são maltratadas, podem mudar a ordem de confiança, podendo começar pelos
avós antes dos pais, tios e por afora. Um caso encontrado nesta pesquisa foi o de um jovem
que, em uma conversa durante a capina na machamba, afirmou que quando tem dúvida sobre
alguma coisa coloca a questão aos avós antes dos pais, porque, segundo ele, os pais estão
voltados para negócios na cidade e não têm tempo para conversar com ele sobre aspectos mais
específicos da vida. Aliás, ele acabou fazendo isso porque sempre foi instruído pelos pais a
perguntar aos avós, hábito que foi desenvolvendo até então, por isso hoje torna-se difícil para ele
perguntar primeiramente aos pais sobre qualquer vida que tenha. Nesse sentido, a criança é
sempre criança, não pode tomar nenhuma decisão sozinha, seja qual for a motivação é sujeita a
uma consulta aos mais idosos. Portanto, vezes há em que os desejos de uma criança podem ser
ignorados pelos mais idosos, sob protesto de que ainda não sabe o que quer, exatamente por ser
uma criança. Essa subordinação total começa a diminuir a partir do momento em que passa
pelos ritos iniciáticos
imwail
62
ou
alukhu
63
,
temas do capítulo 7.
Tradicionalmente, após a
passagem lhe é conferida a categoria de adulto, mas isso não significa autonomia em tudo que
deseja, mas sim em alguns aspectos bem específicos, como, por exemplo, a decisão de sair de
casa e morar longe dos pais, poder obter bens próprios, mudar-se para a cidade sozinho ou para ir
morar na casa de um parente, situações que podem até certo ponto ser aceitas. Mas existem
aspectos que mexem com a família toda, relacionados com o casamento. Via de regra, nas
tradições matrilineares deve-se casar entre primos.
Esta prática de busca de primas filhas da tia só cessa se não existirem tias com filhas; o
passo seguinte é a busca de filhas de tios. Nesse sentido, em famílias matrilineares, os filhos são
da mulher e representam o núcleo familiar, o centro de poder, são os donos que têm direito de
reger as famílias. Apesar de ser uma decisão individual, o casamento precisa ser aprovado pelos
pais, que, por sua vez, arranjam padrinhos para ajudar nas escolhas e decisões do novo casal.
Não se tratam de “casamenteiros”, nomenclatura trazida por Woortmann (1995) no estudo
Herdeiros, parentes e compadres: casamento e a herança nos colonos do Sul e sitiantes do
Nordeste do Brasil
, no qual os padrinhos têm um papel ativo no processo de casamento, visto
que aqui os padrinhos têm um papel de conselheiros, não preparam o casamento, não promovem
62
Ritos de iniciação femininos, instrução que lhes confere o status de serem consideradas idôneas, portanto fazem
com que a menina deixe de ser criança a passe à fase adulta.
63
Ritos de iniciação masculinos, que, à semelhança das mulheres, após o jovem passar é considerado adulto.
79
encontro entre os jovens, e muito menos têm um papel ativo no processo. Os jovens se
encontram em festas comunitárias, nas escolas, em reuniões e em encontros religiosos da igreja,
que acontecem normalmente obedecendo a calendários comunitários estabelecidos. São livres
para escolher o seu par preferido, o aval dos pais não chega a ser uma condição, pois se não
receberem a aprovação podem abandonar a comunidade local e viverem a sua vida conjugal em
outra comunidade. Embora no passado tudo fosse feito pelos parentes e os jovens se
conhecessem na hora do casamento, agora as consultas são feitas pelo jovem que pretende se
casar aos seus parentes. Ele pesquisa se pode ou não se casar com a moça que pertence a uma
determinada família. Essa pesquisa vai desde os pais, tios e avós. Se houver alguma
inconveniência, lhe é dito que não pode por motivos que lhe são explicados. A princípio, as
noras da comunidade são bem-vindas, porque as famílias se aglomeram em função das
afinidades e de relações de parentesco, então o “famílias casáveis”. Quando o jovem mora na
cidade ou em outra comunidade e de relaciona-se com uma jovem, a aceitação é geralmente
difícil e demorada, porque ela é desconhecida. Esta situação de “casabilidade” foi encontrada por
Wedig (2009) entre os camponeses do Sul do Brasil. A autora afirma que as relações
matrimoniais fazem-se fora de casa, porém não com estranhos extremos. Assim, são “casáveis
parentes e vizinhos, enquanto que com pessoas de dentro da família e estranhos não se deve
casar. Trazendo essa discussão para a realidade de Nampula, podemos afirmar que também ali os
vizinhos e parentes são considerados “casáveis”, porque se tem confiança, que é fruto do
relacionamento construído durante gerações. Com alguém de dentro de casa, a ideia é que não
pode, por questões culturais, pois “pode chamar maldição para si por desobedecer à regra”. E
com estranhos, a restrição é justificada pela falta de confiança.
Mas nas relações matrimoniais costumeiras na zona de Nampula, os homens são os que
devem sair para ingressar na família das mulheres, apesar de ser o homem que pede a mão da
mulher em casamento, a entrega da filha, que na verdade significa a aceitação do marido, é feita
com bastante cuidado, porque ela é detentora de bens. As mulheres é que são herdeiras,
possuidoras de bens como a terra, inclusive são as donas dos filhos, portanto, o homem é apenas
um reprodutor de bens simbólicos e econômicos. Em caso de divórcio, o homem sai de casa,
abandona os filhos e a terra, porque não lhes pertence. As noras da cidade não são bem-vindas
porque a princípio na cidade não se herda terra e ela vem para abocanhar na família do homem,
diminuindo os pedaços de terra das mulheres da família. Portanto esses casamentos geralmente
80
não são aprovados pela família do homem, o que não raras vezes resulta no abandono do homem
para viver em uma terra longínqua, onde possa conseguir terra e estabelecer-se. Quando a mulher
se casa com um moço da cidade, apesar de representar uma perda de herança, exatamente porque
não estará ali para cuidar dos seus bens, ela como uma oportunidade de ter o
status
social de
uma citadina, de poder obter respeito porque vai saber falar bem a língua portuguesa e lhe
facilitar o diálogo com gente diferente.
A minha filha perdeu a vergonha, ela fala tudo que acha, não tem medo, apesar de ser
bom para ela, eu acho falta de respeito porque fica ralhando com os irmãos, e ela
esquece que é mulher, sempre vai precisar deles para a ajudá-la [...] A forma de
engordar das pessoas da cidade é doentia, porque nada fazem de trabalho, se não
tomar banho, comer e dormir. Ela engordou muito e parece até a mais velha, enquanto
que é a caçula. Tudo isso por causa de comer sempre comprando coisas que ela nem
sabe de onde vêm e como foram feitas. (Matia)
A senhora Matia comenta a situação da filha dizendo que a forma da filha agir é
desrespeitosa com os irmãos, pois são eles a garantia da sua segurança enquanto mulher. Os
irmãos, como homens, realizam o trabalho de “risco”, “pesado”, podem brigar, mas ela como
mulher não pode brigar. Ela não pode confiar no seu marido, porque ele é apenas de fora, não é
da família, é um reprodutor que a qualquer hora pode lhe abandonar. A situação de abandono
dessa mulher da cidade pelo seu marido reduz-lhe à pobreza, porque viver na cidade implica a
ela perder o seu pedaço de terra da família. Se tiver filhos, eles também ficam sem herança,
porque por via de regra tradicional, os filhos são da mulher e herdam os bens da mãe. Se ela sai
da família e pretender continuar com o seu pedaço, deverá pedir aos irmãos que ficam para
cuidar ou terá que contratar pessoas da confiança da família para isso, caso contrário ficará sem
herança de terra. Se o moço da cidade se casar com a moça do campo, não tem nenhum
problema, é um casamento muitas vezes sem complicações, que recebe aprovação tanto da
família do homem como da mulher. Da família do homem porque ele terá terra para trabalhar,
construir sua casa e viver bem. E da família da mulher, como ela tem a terra, os filhos vão poder
herdar e também por ter um homem que tem relações com a cidade, o que é útil para facilitar
passeios e mesmo trocas comerciais da família.
O meu genro é da cidade, ele pode ser às vezes desagradável, mas não me importo com
isso, porque ele trabalha, meu filho casou com uma moça da cidade e ela não
trabalha, só quer chegar aqui e levar tudo, não são preparadas para trabalhar, por isso
estas da cidade não têm respeito [...] Sinto pena dos meus netos, não aprendem nada da
vida, não tem espaço deles para trabalhar e como consequência não fazem makhazi. É
fácil ver o comportamento deles, chegam aqui e logo querem mexer com tudo que veem
81
ali na machamba dos tios, arrancam a batata-doce e fazem dela fios ou cordas para
brincar de balanço. Nada é mais triste para mim do que ver meus netos sem aprender
nada que preste, mas a culpa é do meu filho, ele sabe que na cidade as moças não
passam nos imwuali
64
devidamente, porque na cidade os processos são muitas vezes
incompletos, porque ninguém tem muito tempo para nada nem para ninguém. As
mulheres são instruídas a não ter tempo para ninguém e nem para elas mesmas.
(Anucha)
O desabafo da senhora Anucha, dona de casa que vive um dilema entre ter um genro e
uma nora da cidade, coloca em choque as duas culturas. Para ela, o genro da cidade não tem
problemas, porque o homem é apenas um reprodutor. Mas ela se incomoda bastante com o filho,
que se casou com uma citadina. Ela não sabe que não se deve cozinhar batata-doce ou comer em
qualquer dia e hora, porque ela não aprendeu isso na cidade. Deveria ter aprendido nos
imwali,
mas essa festa instrutiva feminina não é feita corretamente, porque as pessoas não têm tempo
para ninguém. Nesse sentido, porque a moça do campo é bem educada para cuidar da família,
então os netos estão em boas mãos, enquanto que a moça da cidade não está preparada para
absolutamente nada de valor tradicional na vida, o que coloca em risco os netos porque, além de
não serem educados corretamente, não terão terra para trabalhar, pois a mãe da cidade não tem
terra para lhes dar de herança. Se o pai adquirir ali na comunidade, os filhos ficarão com a terra,
mas a condição é morar ali e não na cidade. Mais adiante, no capítulo 8, continuo com a
discussão que emana deste choque do contato de culturas pela movimentação das pessoas de um
meio rural para outro urbano e vice-versa, com a descrição sobre nativo e cativo. Por isso,
usando as palavras da Anucha, na cidade estão todos correndo e as suas moças não são instruídas
para estarem preparadas para cuidar delas próprias e de ninguém. Os padrões culturais são
diferentes, porque a moça é que deveria cuidar disso, e os casamentos nesse sentido trazem
mágoas para a família, que quer ver os valores perpetuados de geração em geração.
Temos aqui uma relação entre a batata-doce e a formação do homem do amanhã, da
sociedade, que com exercícios simples como as festas de
imwali
,
makhazi
e
alukhu
, realizadas na
escola familiar, se constroem formas de vida e de identidade de uma determinada sociedade. No
próximo capítulo, ao trazer a mandioca e batata-doce em um rol comparativo dos mecanismos
que desembocam no consumo, procuro aprofundar as questões de identidade alimentar e como
isso se manifesta no povo de Nampula.
64
Ritual tradicional que promove a instrução de moças, como condição para ascender a fase de adulto, assim como é
alukhu para os moços.
82
5 MANDIOCA OU BATATA-DOCE?: O CONSUMO ALIMENTAR INSERIDO EM
UMA ORDEM MORAL
A mandioca é uma planta exótica, não originária da África. Não existe certeza se foram
os árabes, portugueses ou outros povos que a trouxeram, no período em que as trocas comerciais
ao longo da costa moçambicana eram controladas por reinados locais. No entanto, sabe-se que ela
foi introduzida bem antes da batata-doce e que são ambas originárias da América Latina.
Neste capítulo, começarei falando sobre a mandioca. Pretendo mostrar sua importância
em comparação à batata-doce e sua relação na reprodução social das famílias. A mandioca, ao
contrário da batata-doce, é a planta que identifica a província de Nampula e seus habitantes,
como vimos no capitulo 2, em que esta província, à semelhança das outras três, nomeadamente
Zambézia, Cabo-Delgado e Niassa, faz parte da região da mandioca.
5.1 Mandioca é para o consumo do corpo e da alma
A produção da mandioca é massificada dentro das famílias e entre as comunidades
rurais. As famílias sempre reservam grandes extensões ano após ano, a essa planta. É comum ver
que em qualquer pedaço de terra agricultável existe uma plantação de mandioca, constituindo
assim a planta mais produzida na província.
Perto dos vilarejos, o cultivo da mandioca pode ser visto em consórcio, como se fosse
uma machamba infantil, mas a questão que se coloca é a maximização do espaço. Poder-se-ia
considerar como um modelo de machamba infantil intermediária ou com outro nome que não
“infantil” ou “da família”, algo como “machamba-piloto”, aquela que o fica em volta de casa,
mas mais perto que distante de casa. Na verdade, este hábito é das pessoas que moram nos
vilarejos e como não podem ter uma machamba da família, caminham alguma distância fora e
acham uma parcela onde podem plantar de tudo. Estas famílias não tem a machamba como
principal fonte de sustento, mas sim como um complemento. Isso não é típico ou comum nas
zonas rurais onde fiz o meu estudo, portanto não vou me ater a este assunto.
83
Excetuando-se, então, o tema dessa agricultura próxima aos vilarejos, a mandioca é
sempre produzida em monocultivo, estando a ela relacionada a honra do pai e esta com a da
família. Grandes extensões plantadas com este monocultivo revelam a importância da planta para
a família. Como abordei no capítulo 3, aqui observamos diferença em relação ao que constataram
Woortmann e Woortmann (1997) entre os camponeses nordestinos do Brasil. No seu estudo
sobre o trabalho da terra, os autores mencionados afirmaram que os camponeses praticavam
consorciamento em função do tempo de cada planta, portanto, a lógica do consorciamento
obedeceria ao princípio da alternância. A planta de ciclo curto é colocada na mesma parcela com
aquela do ciclo longo, para permitir colheitas separadas e bom aproveitamento da terra. Mas, nas
comunidades pesquisadas em Nampula, a planta importante é sempre colocada em um espaço
separado, para que tenha uma dedicação exclusiva. A verdade é que toda planta importante é
colocada separadamente, sem consorciamento. A mandioca é a primeira, depois vem o milho,
mapira, amendoim, soja, algodão, cana-de-açúcar, entre outras. Heredia (1979), no seu estudo
sobre “A morada da vida”, no Nordeste brasileiro, mostrou que nem todo produto que vem da
roça é considerado comida. Apesar da roça ser da responsabilidade do chefe da família, o
roçadinho das crianças também pode fornecer comida para o consumo familiar, se for um
alimento que participa nas refeições principais. Porém, em Nampula o cenário é que a machamba
infantil não fornece comida, por ser da responsabilidade da criança e a produção ser em
consórcio. É comum ouvir que uma pessoa foi na sua machamba de milho ou na sua machamba
de mandioca. E quando isso acontece, os parentes ou outras pessoas que se relacionam com ela
sabem em que lugar se localiza. Por exemplo, quando falam que alguém foi na sua machamba de
milho, automaticamente se sabe que ela está localizada na zona tal, ou então nas encostas da
serra, se for o caso de mapira, onde frequentemente é plantado, e assim por diante. As
machambas não ficam localizadas na mesma zona, quer dizer, não necessariamente uma perto da
outra.
A mandioca se adapta em muito tipos de solos e é igualmente tolerante a muitas pragas
e doenças. Por isso, constitui a planta que é mais produzida em Nampula, mas que raras vezes é
encontrada na machamba infantil: poderia até arriscar dizer que nunca se encontra, se baseado
somente no meu campo de pesquisa, isto é, nas comunidades e famílias visitadas. Lembro-me
sim de ter estado em machambas de mandioca, de milho, de amendoim, todas sob
84
responsabilidade do pai da família, onde, fazendo parte como um membro da família, fui também
ajudar.
Se o chefe da família, pequeno agricultor, tem a responsabilidade de prover a
subsistência do seu grupo doméstico isto não quer dizer que faça a partir de suas
próprias atividades. Ao contrário, é organizando as tarefas desenvolvidas pelos membros
da sua família no roçado que desempenha o seu papel. Como é o produto do roçado que
abastece a casa, são as atividades do roçado designadas por trabalho. (GARCIA
JUNIOR, 1983, p. 101)
O que Garcia Jr. constatou em Pernambuco (Brasil), no estudo “Terra de trabalho:
trabalho familiar de pequenos produtores”, também se verifica em Moçambique. Porém nos três
estudos que envolvem esta discussão do roçado e roçadinho, nomeadamente o de Heredia (1979),
o de Garcia Jr. (1983) e o presente trabalho, existe algo comum e algo diferente. Algo comum
está nas funções do roçado ou machamba da família, que uma vez chefiada pelo pai de família
constitui o sustento para o consumo familiar, dando honra ao pai e por isso mesmo sendo as
atividades nela desenvolvidas classificadas como trabalho. A honra não vai para os membros que
ajudam.
O que difere no estudo de Garcia Jr. (1983) é que o pai ajuda de vez em quando na
machamba infantil, no roçadinho. Por exemplo, quando o filho ou a filha não consegue
destroncar uma árvore que esteja impedindo a plantação, o pai vai cortar para ajudar o filho,
embora a honra da tarefa seja dada ao próprio filho, como se fosse ele que tivesse cortado a
árvore. Heredia (1979) afirma que o pai somente ajuda quando o filho estiver ausente ou doente,
o que também constatei em Moçambique, porém, vezes há em que a machamba infantil, quando
não é limpa, significa que o casal não tem filhos, ou que se ausentaram ou mesmo estão doentes,
portanto é um sinal, como ilustra a conversa que segue:
Senhor Muapa: para onde foi o teu filho?
Senhor Muhussi: ele foi ver a avó que está doente.
Senhor Muapa: hummm, é que vi que a machamba dele está ficando suja...
Senhor Muhussi: humm, é verdade, eu ainda não tirei tempo para lhe ajudar, a minha
mandioca precisa de mim.
Como demonstra essa conversa de saudação entre vizinhos, o senhor Muapa ficou
desconfiado da ausência do filho do vizinho, senhor Muhussi, quando viu a machamba sendo
preenchida por capim, isto é, sem ser limpa. O pai ainda não tinha tido tempo para ajudar, porque
o trabalho na machamba de mandioca era prioritário. A machamba de mandioca precisava ser
85
limpa, pois isso sim é considerado trabalho. Ao contrário, se o senhor Muhussi fosse visto
limpando a machamba do filho a pergunta seria idêntica:
para onde foi o teu filho
?
De todas estas machambas que tive oportunidade de ajudar, quando vivia com as
famílias, constatei que a machamba de mandioca foi sempre a maior dentre outras. Pode-se
afirmar que sua produção em quantidade proporciona honra ao pai e, por sua vez, à família que
ele dirige. Garcia Jr. (1983, p. 124) constatou o hábito de se chamar a roça pelo nome do produto
plantado. Salienta que a mandioca também é conhecida por roça, ou roça é o nome atribuído a
uma área em que a mandioca é cultivada, a roça coincide, por vezes, com o próprio roçado.
Entretanto, o pai não faz sozinho o trabalho na machamba, os outros membros da
família
ajudam
. Ao mesmo tempo em que se trata de
ajuda
, é uma obrigação moral, por isso não
é um trabalho remunerado. É obrigação moral porque cabe ao chefe prover o sustento da família,
cuidar e fazer com que cada membro da sua família viva bem, dentro dos padrões culturais do
grupo. Então, como chefe, tem obrigação de cuidar da sua família sem remuneração, enquanto
que os demais membros da família têm o dever de ajudar, também sem remuneração.
Quando a mandioca fica pronta para ser colhida, as famílias da comunidade se reúnem
e, juntas, distribuem as tarefas a serem realizadas, por sexo e idade
65
. O grupo de homens dedica-
se ao trabalho de organizar o lugar de processamento, montando um alpendre ou fazendo
improviso na varanda da família, cavando ou retirando a mandioca do solo com enxada, e
transportando-a da machamba para o lugar onde as pessoas vão reunir-se para o descascamento.
As mulheres e crianças ficam esperando o final do trabalho dos homens, mas algumas,
consideradas mais ativas, ajudam no transporte. Depois de acumulada a mandioca, vem o
processo de descascar, para depois deixá-la ao sol. Todos descascam, homens, mulheres e
crianças.
65
É necessário mobilizar muita gente porque cada família faz o máximo que puder para ter a maior porção de
mandioca plantada, produção que a família sozinha não daria conta para colher, por isso a comunidade se une em
ajuda mútua, isto é, troca de trabalho por trabalho, que em língua local se chama de okhalihana. Depois que todos
ajudam uma determinada família, seguem para outra, em sequência, até que, na comunidade, não haja mais ninguém
reclamando por não conseguir colher.
86
Figura 11: Colheita de mandioca Figura 12: Processamento da mandioca
Parte das mulheres é indicada para preparar uma bebida alcoólica tradicional, à base de
mandioca, que irá animando as pessoas no trabalho de descascamento. A
otheka,
como se chama
localmente, é feita a partir da decantação. A mandioca fresca é triturada e posta em um vaso com
água durante uns minutos. Depois de coar, ferve-se a solução e mistura-se com algumas folhas de
ervas localmente conhecidas como
phunhu
66
ou
miropo
67
, para acelerar a fermentação. O mel é
usado nesse processo, como catalisador. Outra parte das mulheres se responsabiliza pelo preparo
da refeição, que, normalmente, se constitui de farinha de mandioca seca, vulgarmente chamada
de
caracata
em língua macua, que é a língua tradicional local, com folhas de mandioca. Podem
existir outros pratos, mas este é básico e significativo: simboliza que a terra e o céu se encontram
e, juntos, convivem alegremente. A terra, que suportou a mandioca, e o céu, que cuidou das
chuvas, estão em festa. Mas, ao mesmo tempo em que a parte de baixo e a parte de cima se
encontram, este prato pode ser considerado humilde ou de pobre, se for o único a ser servido para
as pessoas que estão trabalhando. Desenvolverei este assunto mais adiante no capítulo 6, quando
estiver tratando do significado da batata-doce de polpa alaranjada nos distritos de Murrupula e
Mogincual.
Enquanto parte das mulheres estão ocupadas com as tarefas da refeição, as restantes
estão junto com os homens, no descascamento. O interessante é que as crianças somente ficam
nos momentos iniciais. Elas estão ali para buscar alguma coisa que faltar em casa ou na
66
Erva trepadeira com folhas semelhantes às da aboboreira. As folhas são colhidas e em seguida colocadas na panela
para fermentação.
67
Erva trepadeira com folhas semelhantes às de milho. As folhas são colhidas e em seguida trituradas um pouco
antes de serem colocadas na panela para fermentação.
87
machamba. Pode ter sido o caso de alguém esquecer-se do seu isqueiro em casa, da sua faca na
machamba ou de alguma mulher precisar de sal ou de sua vestimenta, tudo isso a criança é que
faz. Depois que comem, as crianças imediatamente voltam para casa, para cuidar da porta, que
os pais estão trabalhando no vizinho. Mas, para animá-las, vez por outra as mulheres separam um
pouco da bebida na hora de catalisar a fermentação, colocam mais mel em um recipiente e pouco
em outro. O que tem pouco mel é para fermentar e tornar-se
otheka
. E o que tem mais mel será
dado às crianças, para tomarem em casa. Esta bebida, chamada de
nssissima
, é considerada de
criança porque nunca chega a fermentar.
Nós fazemos isso cada ano, facilmente terminamos a colheita na comunidade, de todos,
enquanto é tempo e secamos ela para comer como xima [...] A otheka serve para nos
animar para continuarmos a trabalhar, por isso fazemos isso, porque serve como um
encontro entre as famílias. (Yahaia)
As crianças precisam de estar longe, porque depois que a gente bebe, vai ficando grosso
e podemos falar palavrões que elas não podem ouvir, por isso fazemos aquele arranjo
de nssissima, porque também elas fazem parte das nossas famílias, temos que cuidá-las,
senão os espíritos se zangam porque elas são as mais preferidas e são ouvidas quando
reclamam com razão. (Manhepa)
É um verdadeiro ritual, todos vão cantando animados, comendo e bebendo alegremente
e assim o trabalho vai sendo terminado. Se naquele dia o terminarem, no dia seguinte se
continuado e assim por diante, até que a mandioca seja colhida, descascada e deixada ao sol para
secar. As crianças aprendem enquanto ajudam. Levam sua
nssissima
para casa, para cuidar da
porta na ausência dos pais, mas também cuidam das visitas que podem chegar de longe trazendo
recados. A sua saída precoce significa que elas precisam ser preservadas para que, na hora em
que os pais ficarem animados, não ouçam palavrões, que só os adultos
68
podem falar e ouvir.
Nestes eventos são preparados vários pratos de mandioca, além de farinha e folhas de
mandioca. A própria mandioca pode ser consumida crua e isso é o que observei com maior
frequência. Pode ser feita
caracata
, como mencionei acima, consumida fervida fresca ou depois
que seca, ou na forma de
epuaatica
. Este último prato tanto pode ser feito com mandioca fresca
quanto seca. Consiste em ferver a mandioca e misturar com algum tipo de feijão, com tempero de
amendoim ou coco
69
.
68
Aqueles que passaram pela instrução de imwali ou alukhu.
69
Coqueiro (Cocos nucifera L.). É uma planta de crescimento vertical maior, sem ramificação, mas somente com
folhas compostas dispostas alternadamente e que produz fruto-coco nos seus entrenós.
88
Este evento não acontece na época de plantar a estaca da mandioca, porque é mais fácil
do que no momento de colher. Se alguém precisar de ajuda para o plantio, normalmente um
vizinho é suficiente para trabalhar. Todos consomem a mandioca em qualquer lugar e hora, nas
suas mais variadas formas. Por isso a mandioca é a identidade alimentar daquele povo e daquela
região. Como já havia referido no capítulo em que tratei da metodologia, esta é uma zona de
mandioca. Remetendo à discussão sobre as razões e o lugar da mandioca na socioalimentação das
famílias de Nampula, podemos recorrer ao estudo de Garine (1987), sobre alimentação, culturas e
sociedades, em que o autor salienta que o que mais as pessoas procuram para seu consumo é um
alimento que proporcione sensação de saciedade. De acordo com esse autor, esta saciedade é
conseguida quando se consome um alimento que não vai contra os seus princípios biológicos e
culturais, garantindo, desta forma, a sua reprodução social. Assim como a
xima
de mandioca ou a
caracata
pode ser acompanhada de molho feito de folhas de mandioca, também pode ser com as
suas outras várias formas, crua, assada, cozida, ou
epuaatica
70
.Dentre esses pratos, vou descrever
a
caracata
, pela importância dada pelas famílias a este prato em relação a outros.
Figura 13: Mandioca seca Figura 14: Caracata em bolinhas no prato
A
caracata
é feita com a farinha de mandioca seca, que é extraída no processo de
trituração em equipamento tradicional local. O seu preparo envolve, primeiro, a fervura da água
em uma panela no fogo, depois é colocada a farinha e em seguida mexida, até que fique cozida. É
uma massa muito dura e densa, de consistência aderente e plástica. É consumida geralmente com
as mãos, e isso exige que a pessoa tenha unhas ou as pontas dos dedos muito firmes para poder
70
Este último prato tanto pode ser feito com mandioca fresca quanto seca. Consiste em ferver a mandioca e misturar
com algum tipo de feijão, com tempero de amendoim ou coco.
89
cortar, enrolar na palma da mão como uma pequena bola, mergulhar em um molho feito (que
pode ser de carne, verdura, peixe) e engolir sem mastigar. A pessoa que come deve conhecer a
abertura da sua garganta, para poder fazer um bolinho que consiga engolir sem mastigar. A carne,
o peixe ou qualquer outro alimento é mastigado, exceto a bolinha de
caracata,
que tem que ser
engolida da maneira que estiver formada na palma da mão. Mastigar bolinha de
caracata
pode
significar falta de respeito para com a mulher que a preparou. Lembro-me que na primeira vez
que comi, fiquei minutos tentando desfazer a bolinha na minha boca e então o chefe da família
soltou uma gargalhada. Quando perguntei por que, ele me respondeu o seguinte:
Jone: pai
71
, por que está se rindo de mim?
Pai: [gargalhadas] Eu não estou rindo de você, mas do que voestá a fazer! s não
mastigamos a bolinha de caracata, porque ela é feita para ser consumida sem
mastigar, apenas engolindo as bolas ou bolinhas da massa [risos].
Jone: hummm, eu não sabia. E como já fiz, o que devo fazer?
Pai: nada, apenas continuar tentando até que consiga engolir sem mastigar. Mastiga
tudo menos a bolinha ou tenta fazê-la muito pequena de modo a poder engolir.
Jone: me explica direitinho, pai...
Pai: você deve cortar a massa ao nível da abertura da sua garganta para que ela seja
apenas engolida sem mastigar. É assim que se come, é muito simples, não custa nada
[risos].
Jone: humm, mas por que não pode ser consumida de outra forma?
Pai: isso você faz quando não gosta da mulher que fez a caracata, é uma ofensa,
porque mostra que estais desconfiando dela ter colocado alguma coisa dentro.
A ação de consumir
caracata
obedece a um ritual, não deve ser apenas consumida,
existem regras a observar. É preciso saber colocar os dedos na massa para somente conseguir
cortar o pedacinho com que se faz a bolinha na mão. Cortar muita massa e daí decidir reduzir
também infringe o regulamento, significa o mesmo que quando a pessoa mastiga. No meu caso,
descrito acima, estaria ofendendo a minha mãe
72
, que me abrigou, estaria desconfiando dela, e
por ser casada estaria automaticamente desonrando o marido que lhe representa. Fazendo isso,
mexeria com o respeito e a cultura segundo a qual a mulher é sagrada, digna de confiança, aquela
que deve ser preservada de todo trabalho de risco e pesado, assim como aquela a quem se deve
dar o devido respeito e proteção. Ao marido, estaria dizendo que ele se casou com uma mulher
que não sabe fazer bem a comida, uma traiçoeira que pode envenená-lo, e isso seria uma grande
acusação, quer para a família dele, quer para a família da mulher, porque os casamentos são
71
A palavra pai significa respeito. Eu tratei-o por pai, porque ao me apresentar a sua família ele me chamou de meu
filho. E a partir daquele instante passei a chamá-lo de pai. As pessoas não se tratam pelo nome, mas sim pela relação
parental.
72
Esposa do meu pai, por respeito à família onde eu estava hospedado.
90
dirigidos e organizados entre famílias próximas, na base de confiança, que também foi o caso
deste casal. Então eu estaria em uma situação muito delicada, apenas por não saber comer
corretamente
caracata
. A ideia é que quem mastiga desconfia que algo pode estar na massa e, por
isso, mastiga para descobrir antes de engolir. E quem corta e reduz devolvendo para o prato ou
não, pode estar agindo com o intuito de procurar descobrir algo, e isso se equipara à desconfiança
e ofensa.
Fischler (1995), em seu livro El (h)omnívoro: El gusto, la cocina y el cuerpo, ao abordar
a questão do
princípio da incorporação
, relaciona-o a:
[...] el movimiento por el cual hacemos traspasar al alimento la frontera entre el mundo y
nuestro cuerpo, lo de fuera y lo de dentro. Este gesto es a la vez trivial y portador de
consecuencias potencialmente irreversibles. Incorporar un alimento es, tanto en el plano
real como en el plano imaginário, incorporar todo o parte de sus propiedades: llegamos a
ser lo que comemos. La incorporación funda la identidad. (FISCHLER, 1995, p. 65-66)
Consubstanciando-nos com as palavras do autor, ao se consumir
caracata,
fazendo-a
atravessar a fronteira entre o mundo e o nosso corpo, temos que assumir as consequências
potencialmente irreversíveis. Não se pode desconfiar de uma mulher – é uma premissa cultural –,
mas se, por algum engano, entrar na comida algo estranho, o perigo é real e irreversível. Temos
que imaginar e confiar que a mulher, dona de casa, sempre quer o bem dos seus membros e como
ela é paciente e cuidadosa “por natureza”, nada disso vai acontecer em nenhum momento.
Cararata
é um alimento que, quando se tem algo decisivo para realizar, se come para
criar inspiração. É motivo para dizer que a terra, o céu, as pessoas vivas e os espíritos dos seus
ancestrais estão em festa. Porque inspira certeza de que em qualquer atividade a ser realizada
tudo vai correr bem, pois se comeu
caracata
. Exprime uma sensação de conforto e prazer,
equilíbrio emocional e sico para executar qualquer atividade, mesmo que não se coma nada ao
amanhecer. É como beber água depois de muitas horas de sede, a sensação é forte. Tanto que a
caracata
pode ser consumida em qualquer período do dia, de manhã, no matabicho (ou café-da-
manhã), no almoço e durante à noite, no jantar. Quem receber alguma visita e servir
caracata
estará desejando boas-vindas, além de ser o melhor acolhimento que se faz para o visitante.
Como o visitante provavelmente deve ter perdido energias durante a viagem, pode estar cansado
tanto física como emocionalmente. Ao comer, o visitante fica forte, pode fazer tudo o que ele
quiser e que precise exercer força, como, por exemplo, pegar o caminho de volta para casa, tendo
certeza de que vai chegar bem, saudável e bem-humorado. Portanto, a
caracata
feita a partir da
91
mandioca, preparada pela mulher, se consome na maior paz e tranquilidade. Proporciona a
saciedade, o prazer de se ter alimentado muito bem biológica e culturalmente, e é para aquelas
famílias um símbolo de identidade.
5.2 Batata-doce e a quebra da honra e prestígio
Como vimos, a batata-doce é produzida em consórcio com outras plantas, porém a
área reservada à sua produção é, mesmo assim, muito pequena, comparando com áreas de outras
plantas com as quais se consorcia. Nas parcelas dos Fóruns
73
das associações, onde é produzida
em grandes quantidades, mesmo assim não em monocultivo, é frequente observar-se um pouco
de milho, cana-de-açúcar e abóbora. Portanto, em termos de produção, temos duas situações: uma
na família e outra nos fóruns de associações. Na família, é produzida na machamba infantil, para
fins abordados, e quando o chefe da família pretende obter dinheiro pode colocá-la na
machamba familiar. Nesta, ela é colocada em volta, como cerca ou barreira, como tecnicamente
se considera. Existe um tratamento diferenciado entre as duas batatas, que venho tratando ao
longo deste trabalho. A branca pode ser cultivada também na machamba familiar, sob forma de
cerca, mas servirá para o consumo da família. E se for a batata-doce de polpa alaranjada, será
para venda. É importante realçar aqui que, mesmo quando tem que ser usada como cerca, nunca
se faz na machamba de mandioca, mas sim em machambas de amendoim e feijões.
Em áreas dos Fóruns das associações, é produzida a batata-doce de polpa alaranjada,
pois assim decidem os técnicos, no intuito de torná-la massificada. Como os técnicos velam pelo
cumprimento do programa da batata-doce polpa alaranjada e também de outras atividades
assistenciais, induziram a formação das associações com base em afinidades de relação entre as
famílias, e cada 10 associações na comunidade constituem um Fórum. O líder comunitário
demarca um espaço comum para o grupo dedicar-se ao cultivo de batata-doce. É nos fóruns que
se multiplica a rama, para posterior distribuição em outros fóruns. Mas a rama, como também a
73
Conjunto de associação de produtores. As comunidades se organizam por trabalho, como vimos com o exemplo da
mandioca. As associações de produtores que originam o Fórum são promovidas pelos técnicos extensionistas do
governo ou de organizações não-governamentais que incentivam essa prática. A diferença entre as associações
organizadas pelas próprias comunidades é que elas não têm duração definida, dependem do trabalho que está sendo
feito ou que foi proposto para ser feito, e no final dos trabalhos ela termina. Enquanto que a associação formada
pelos técnicos extensionistas pretende-se que seja duradoura. Cada uma possui um nome específico, um gestor, um
secretário, entre outros cargos dentro da associação. E no Fórum existem os mesmos cargos, além de um presidente.
92
própria batata-doce de polpa alaranjada, pode ser vendida e consumida nos dias de campo, que
são festas em que os técnicos fazem a sua visita habitual de assistência e demonstração de
técnicas de cultivo e resultados.
Eu faço batata-doce alaranjada aqui na machamba do fórum, mas nunca levo para
casa, porque eu não gosto dela. Se tiver saudade de comer batata-doce mando minha
mulher preparar a branca, que temos. Esta batata tem um cheiro desagradável, é difícil
de engolir, parece que não quer entrar. (Muaaco)
O fórum é o único lugar onde a produção da batata-doce está sob responsabilidade dos
mais velhos, chefes de família, e não das crianças. A batata-doce de polpa alaranjada é a mais
produzida pelos associados, por imposição do mercado dos fomentadores, que são os principais
compradores e distribuidores, porém a sua produção se resume apenas para a venda e não para o
consumo. Cada membro tem direito a levar uma parte da produção para casa, é uma regra, como
forma de mostrar que as famílias dos associados também consomem, mas na verdade as famílias
vendem ao longo das estradas principais, nas escolas abrangidas pelo programa e nas vilas e
cidades. No trabalho no fórum, os homens se responsabilizam pela venda. Em casa, a mulher ou
as crianças, na sua maioria, se responsabilizam pela venda nas ruas e nas vilas e cidades. Nas
palavras proferidas durante uma conversa com senhor Alterro, meu entrevistado disse que as
mulheres devem ficar em casa cuidando dos filhos porque elas são frágeis: “[...]
não se pode
deixar uma mulher fazer coisas arriscadas, se o homem morrer as crianças não sofrem, mas se
a mulher morrer a família acaba”
. O sofrer das crianças, referido pelo senhor Alterro, é no
sentido de que a mulher está ligada às crianças, daí que se ela morre o impacto será maior do que
se o homem morrer. Também se a mulher morrer isso constitui “o fim da linha”, porque como as
famílias são matrilineares, a constituição de laços de parentesco se a partir dos filhos gerados
pela mulher, e eles não são casáveis entre si.
Somente o homem está envolvido no comércio da batata por dois motivos: um deles é
por ser homem, o chefe da família, que cuida dos seus membros e gerencia o dinheiro, e outro
motivo é no sentido de preservar a mulher de entrar em contato com estranhos durante o ato de
venda. Se a mulher tiver que vender, pelo menos estará acompanhada por um dos membros da
família, de preferência do sexo masculino, para protegê-la. Porque no comércio sempre tem
confusão, cliente que o quer pagar, que quer pagar pouco ou fica reclamando, e essas coisas
não são para mulher, o homem é que tem que lidar com isso.
93
Nos dias dedicados à batata-doce não se faz mais nada. Após os trabalhos nas
machambas do fórum, as pessoas vão geralmente à procura de bebida alcoólica para se distrair,
ninguém vai diretamente para casa. Enquanto a produção e consumo da mandioca geram alegria,
a batata-doce gera preocupação. Enquanto se exibe a produção de mandioca, a produção de
batata-doce quase que não se comenta e não faz parte nas conversas das famílias. É por isso que
as pessoas não vão para casa logo que saem da machamba do fórum.
Tentando trazer a visão agronômica da batata-doce para agregar aos esforços de
entender se haveria alguma razão fisiológica para esse comportamento, torna-se importante
analisar as vantagens e desvantagens de produzir e consumir esta batata, identificadas por Silva,
Lopes e Magalhães (2004), no seu trabalho sobre cultura da batata-doce, que são: difícil preparo
na culinária
74
; aparência ruim
75
; provocar manchas
76
; causar “pesadez” e formar gases
77
; pouca
valorização econômico-social
78
. Também estou ciente de que o que as famílias rurais usam como
argumento para o seu comportamento alimentar face a esta batata não tem os fundamentos
apregoados por estes pesquisadores ou outro grupo social, e não me dou o direito de classificá-los
como infundados, porque não é meu interesse, nem parece importante para os entrevistados desta
pesquisa tomá-los como base de decisão. Mas a ideia de buscar informação fisiológica é no
sentido de fazer uma ponte e não um julgamento de valores. Observando os argumentos das
famílias estudadas, são mencionados especialmente o cheiro desagradável, demora no cozimento,
identidade infantil e o fato de ser abominável, coincidindo, em boa medida, com as desvantagens
mencionadas por Silva, Lopes e Magalhães (2004), mas a elas agregando a percepção de não ter
74
As hortaliças são geralmente preparadas com rapidez, sendo diversas delas simplesmente picadas ou raladas. A
batata-doce, entretanto, necessita ser descascada, picada e cozida, exigindo esforço e tempo que nem todo
consumidor moderno está disposto a despender.
75
Por se tratar de uma raiz tuberosa, seu crescimento é afetado pela presença de torrões, pedras e fendas do solo,
formando um produto tortuoso. O ataque de larvas de insetos, mesmo que não danifique severamente as batatas,
forma orifícios e galerias superficiais que depreciam sua aparência. Além disso, as variedades cultivadas apresentam
altos teores de produtos fenólicos que, embora úteis por aumentar a resistência a pragas, causam o escurecimento da
polpa quando exposta ao ar, constituindo alimentos menos atrativos.
76
A planta da batata-doce produz um látex que se fixa facilmente na pele e em tecidos, formando manchas de difícil
remoção.
77
A batata-doce possui um inibidor da digestão que reduz a ação de enzimas digestivas, como a tripsina e a
quimotripsina (RYAN, 1981 apud SILVA; LOPES e MAGALHÃES, 2004). O prolongamento do tempo de digestão
favorece a fermentação dos alimentos no trato intestinal, causando flatulência e formação de gases.
78
A batata-doce tem sido tradicionalmente consumida por famílias de baixa renda, especialmente as do meio rural.
Uma evidência disso é que raramente faz parte da pauta de produtos de exportação. Outra constatação é que, embora
possa ser utilizada em inúmeras receitas, tanto de doces como de salgados, raramente é citada como ingrediente em
livros de receitas.
94
valor cultural, não sendo considerada comida, o que contribui significativamente para a não
apropriação pelos agricultores desta tecnologia da batata-doce. O consumo da batata-doce, quer
de polpa branca ou de polpa alaranjada, é feito de modo seguro, quando não há nenhuma
atividade séria para fazer, é bem controlado, isto é, fiscalizado, para que ninguém coma em um
momento impróprio.
Nós comemos batata-doce aqui em casa enquanto estamos descansando depois de
trabalhar, nunca servimos ninguém de propósito, só se coincidir enquanto estamos
comendo, mas mesmo assim pedimos para lhe servir outra coisa. (Nahatje)
nesses momentos de lazer familiar se consome batata-doce, não se serve a nenhum
visitante, sob o risco dele se sentir mal recebido, e também de lhe dar o direito de afirmar que não
foi servido nada para ele comer, além do desprezo que pode alegar ter sido alvo. Como vimos no
trabalho de Heredia (1979), feito no Nordeste do Brasil, um produto alimentar é comida quando
participa das refeições principais e não necessariamente por ser um produto proveniente do
roçado. Em Nampula, vimos que o simples fato do produto ser proveniente da machamba
familiar é considerado comida, porque é da responsabilidade do chefe da família, e produz honra
para a sua família. Então, como a batata-doce não honra, não pode também ser servida a uma
visita. Para além do consumo cuidadoso dentro das famílias e na comunidade, o seu consumo
também se ensaia nas
festas deles
: dos agentes fomentadores, tais como nas visitas de agentes de
governo, que vêm avaliar os programas de intervenção, dias de campo que são dirigidos pelos
técnicos nas visitas de troca de experiências entre comunidades. O ambiente que se vive nesses
momentos é de pura invenção, ninguém consome com total vontade, mas sim porque querem
exatamente evitar ficar de fora dos próximos programas do governo e não serem beneficiados.
Por isso agem concordando e procurando obedecer às orientações que lhes são dadas, mas na
verdade só cumprem enquanto são vistos. Depois pára tudo.
Nós fazemos porque não podemos recusar, se o seremos esquecidos e teremos uma
reputação de refilões, por isso cozinhamos e comemos batata-doce de polpa cor
alaranjada com eles. (Muaaco)
No ano passado eu perdi toda rama, não deixei em casa porque secaria e na margem do
rio por onde deixei foi levado pela correnteza. (Ethela)
As famílias produzem e comem para mostrar que são obedientes, mas não porque
querem, e isto lhes vale atenção nos programas subsequentes. Sempre que perdem a rama, por
95
qualquer motivo, esta lhes é restituída gratuitamente, para continuarem com a produção, mas esta
não é a vontade das famílias. Elas não dão a devida atenção, por isso mesmo perdem a rama, mas
como os técnicos querem ver a produção e o consumo prosperarem, aceitam dar tudo de novo e
as famílias, temendo represálias que já mencionei, aceitam receber. Remetendo à análise de
Contreras e Gracia (2004), com relação às quatro condições (um meio determinado
79
, a cultura
80
,
a ideologia
81
, adequação e adaptabilidade para perdurar
82
) para que uma determinada cozinha
adquira
status
identitário e perdure nas comunidades em que foi introduzida, vimos que a lógica
de relação entre as famílias rurais e os técnicos extensionistas é conflituosa. Esta relação esbarra
principalmente em um ponto, o da ideologia, conjunto de crenças ligadas à alimentação e ao
lugar que ela ocupa dentro da sociedade. Nós vimos, ao longo dos capítulos anteriores, que a
batata-doce teve um percurso descrito pelos interlocutores como “não aceitável” para ser
considerada um alimento legítimo daquele povo. Embora seja a batata-doce de polpa alaranjada,
não existem diferenças entre ambas, na visão das famílias rurais. Tanto a batata-doce de polpa
branca como a de polpa alaranjada são consideradas como não-comida. Porém, apesar de
evidenciar-se este ponto específico, os outros que conjuntamente compõem o princípio de
condimentação, como o de um meio determinado, a cultura, adequação e adaptabilidade para
perdurar, tornam-se também evidentes neste jogo de forças.
É comum as famílias perderem mais a rama da batata-doce de polpa alaranjada do que a
de cor branca, sempre com a justificativa de que a rama das variedades alaranjadas não tolera
condições adversas do clima, como seca, por isso não é conservada em casa debaixo do
ethatapo
83
. Em estudo anterior sobre análise de vulnerabilidade na província de Tete, apontei a
necessidade de melhoramento de estratégia de coleta de dados, pois constatei que existia uma
lacuna no conhecimento sobre a situação real entre a batata-doce de polpa alaranjada e as famílias
que devem produzir e consumir (MIRASSE, 2006). Os trabalhos de monitoria e avaliação do
Grupo de Análise de Vulnerabilidade - GAV mostraram, através de entrevistas, que as famílias
79
Disponibilidade dos produtos alimentares.
80
A tecnologia posta em funcionamento para produzir e preparar alimentos, o sistema social e econômico.
81
Conjunto de crenças ligadas à alimentação e ao lugar que ocupa dentro da sociedade.
82
Ser adaptativa e procurar uma alimentação adequada, em que saúde e alimentação marcham conjuntamente.
83
Ethatapo ou lavatório, se aproximarmos da linguagem portuguesa, é uma estrutura erguida no pátio, que serve para
a limpeza da louça. Por ser de bambu, ela deixa escorrer água por baixo e é exatamente essa água que garante a
conservação da rama, e, segundo as famílias, as variedades brancas conseguem resistir e as de polpa cor alaranjada
não.
96
consomem esta variedade, mas que, no entanto, poucas áreas de cultivo reservadas a ela e
também a comem apenas uma vez ao dia, de preferência no matabicho (ou café da manhã). Ao
mesmo tempo em que as pessoas afirmam consumir batata-doce de polpa alaranjada, verifica-se
aumento da desnutrição infantil em crianças abaixo de 10 anos (MIRASSE, 2006; SITOE, 2006).
Hipoteticamente, se as famílias consumissem, como afirmam, haveria mudanças no quadro, com
redução da desnutrição infantil, porque esta variedade de batata-doce possui carotenóides para
mitigar o efeito da desnutrição, principalmente em crianças nessa faixa etária.
Cozinha-se a batata-doce com água, de forma simples, sem nenhum condimento
adicional além de sal, da mesma maneira como se consome a batata de cor branca desde que foi
introduzida, no passado. Porém, para que as pessoas consigam comer a de polpa alaranjada,
precisam adicionar, além do sal, cebola, tomate, limão e até pimenta. Depois de colhida, a batata-
doce de polpa alaranjada precisa ser descascada, despedaçada e colocada na panela com todos os
condimentos, mas mesmo assim, segundo as famílias entrevistadas, produz um cheiro
nauseabundo, desagradável, que provoca enjoos e depois vômitos. Já com relação à de polpa
branca, costumeiramente não se retira a casca, apenas se passa na água e em seguida é cozida,
na hora de comer é que se tira a casca, para comer com molho, se houver.
Todos os entrevistados afirmaram que nunca tiveram formação ou capacitações para
fazer pratos com a batata, como consta no programa de fomento. O pacote inclui ensinar as
pessoas a fazer bolos, sumos, biscoitos, bolachas, tudo de batata-doce de polpa alaranjada. A
ideia é proporcionar diversificação do alimento a partir da batata e, com isso, poder atrair as
crianças, que são o foco dos esforços. Mas como as pessoas não sabem fazer nada além de
consumi-la assada e cozida, então nada mais se faz com a batata-doce, ela não pode entrar em
festas, em cerimônias, e muito menos ser comida sem controle, porque, dizem, seu consumo
provoca moléstias, como hérnia de disco, e mais outros aspectos (assunto que desenvolvo um
pouco mais no sub-capítulo 5.3).
Pode-se, então, ver quão inadequado é servi-la a alguém em visita à sua casa. É
exatamente o oposto do que vimos com a mandioca: em vez de desejar boas-vindas, estará
mandando o visitante embora; no lugar de fortificá-lo, estará fadigando-o mais; ao invés de
garantir que ele regresse em paz e segurança, estará desejando-lhe maldição. Por isso o visitante,
ao afirmar para outros que não foi servido nada para ele comer, estará, ao mesmo tempo, dizendo
que foi muito humilhado. Humilhado por desconsiderarem a sua visita e o esforço que fez ao sair
97
de sua casa para visitar. Por isso que enquanto a batata-doce de polpa alaranjada é incentivada na
produção, o seu consumo diminui.
Nesse sentido, mesmo somando com a produção das crianças, o volume não é suficiente
para ser aceitável com os investimentos aplicados nas famílias, por isso mesmo os técnicos
promovem associações, para tentar dar conta da produção e consumo. A quantidade produzida
chega a dar uma indicação distorcida de que existe maior aceitação da batata-doce, mas
simplesmente as pessoas não consomem, apenas produzem para venda. Outro efeito distorcido
referente às imagens de quantidades produzidas é o fato de que são poucos os compradores
ambulantes, que geralmente vêm da cidade, porque também os consumidores citadinos baixaram
as quantidades de batata-doce de polpa alaranjada nas suas despensas e culinárias. Então a
produção chega a ser considerada grande porque tudo é levado para o comércio com os
ambulantes, pois as famílias rurais não negociam, mas sim trocam os produtos, e quando os
ambulantes não compram, tudo fica exposto nos mercados locais e ao longo das estradas. À
primeira vista, um turista ou pesquisador desatento poderá considerar que a produção de batata-
doce de polpa alaranjada é grande e, assim, concluir que também se consome na mesma
proporção.
Okhalihana,
ou seja, a troca de trabalho por trabalho, não serve para a batata-doce,
também porque, como foi abordado, com parente não se negocia, nas palavras de Woortmann
(1990). É comum ouvir estas palavras de mães para seus filhos:
por que estás vendendo, não
sabes que ele é teu parente? Por que vende para ele ao invés de emprestar ou trocar? Você quer
ser bandido, não é
? uma expressão local bem conhecida entre as comunidades:
Okhala
onookhalihaniwa
, que, traduzindo para o português, significaria algo como “viver é vida e a vida
não é solitária, muito menos negociada, a tua vida não existiria sem a do outro”. Este “outro”
refere-se desde aos pais que geram e cuidam dos filhos até se tornarem adultos, sendo que depois
os cuidados são transferidos para maridos ou esposas, aos filhos e filhas de outros, vizinhos,
amigos, até que um dia a própria pessoa venha a falecer e mesmo assim sempre precisará de
outro para ser sepultado. Se tivesse que negociar tudo, como pagaria as pessoas que vão enterrá-
lo? A necessidade do outro não termina por aí, mesmo morto vai precisar de missas, flores, e tudo
isso o outro é que fará. No Quadro 3, apresento um resumo comparativo entre a mandioca e
batata-doce, no que diz respeito à posição socioalimentar.
98
Mandioca Batata-doce Observação
Áreas de cultivo Maiores Muito menores
Sistema de
cultivo
Monocultivo Consórcio Consorcia-se plantas menos importantes e se faz
monocultivo para plantas mais importantes
Festas
tradicionais
Todas Nenhuma Makhazi não é considerada uma festa tradicional,
mas sim uma prática costumeira das crianças
Festas oficiais Todas Todas São consideradas festas oficiais aquelas
promovidas pelos agentes do governo ou técnicos
da extensão, tais como dias de campo, visita de
algum dirigente, festas nas escolas, etc.
Sustento da
família
Alimentação
Venda
Alimentação
(variedade
branca)
Só no caso de necessidade de dinheiro, o pai da
família e filhos produzem para vender a batata-
doce de polpa alaranjada.
Frequência de
consumo
Todos os dias Sextas à tarde,
sábados e
domingos
No final de semana se pode consumir a batata-
doce, mas se existir algo importante a ser feito,
não se consome e nem se toca nela.
Status Importante Desprezível Se for servida a uma visita significa humilhação,
maldição.
QUADRO 3 – Os lugares da mandioca e da batata-doce nas famílias
FONTE: Pesquisa de campo, 2010
Conforme mostrado no Quadro 3, a batata-doce é consumida no final de semana e,
mesmo assim, quando não existir nada sério para se fazer, pois caso exista nem nesses dias se
comerá. Ela não entra em nenhuma festa local, na
festa deles
dos técnicos e agentes do
governo. Ramos (2007), em seu estudo “A (comida da roça) ontem e hoje: um estudo etnográfico
dos saberes e práticas alimentares de agricultores de Maquiné, Rio Grande do Sul Brasil”, diz
que a questão “de quem” realiza uma festa e “para quem” é feita revela elementos que
determinam a forma de organização das comunidades e suas relações com os poderes locais. A
festa de que a autora trata é da polenta e do vinho, que se realiza de dois em dois anos, na
localidade de Barra do Ouro, em homenagem aos imigrantes italianos vindos da Serra Gaúcha, e
que, segundo ela, é uma tradução da tradição local” para um público externo, do dia a dia de
alguns pequenos agricultores locais, enquanto que para outros agricultores essas tradições
representam o passado. No mesmo evento, a presença de uma
ala fast food
”, como chamou a
autora, um espaço tomado por quiosques dos mais diferentes lanches, mas uma das grandes
diferenças entre um e o outro é o tipo de pratos servidos. No lado da festa da comunidade são
oferecidos pratos como massas, molhos, churrasco, linguiças, carne de porco, polenta e galinha, e
no lado dos quiosques, diferentes tipos de lanches - sanduíches tipo hambúrguer, cachorros-
quentes, salgadinhos fritos, chocolates, sorvetes, crepes, churros e outros tipos frequentemente
encontrados nos centros urbanos.
99
Falando especificamente de Nampula, talvez a diferença marcante seja o fato da
separação dos dias em que as festas são realizadas. As festas comunitárias são realizadas em
momentos próprios. Apesar de não existir um calendário para elas, existem sinais que marcam o
início de uma determinada festa comunitária, enquanto que
a festa para eles
possui datas
previamente marcadas. Como nas festas da comunidade, os ancestrais não permitem a batata-
doce, que é básica nas
festas deles
, então não existe possibilidade de haver partilha de espaço
entre as duas festas.
Mesmo com o poder externo exercido nas comunidades rurais de Nampula, nada mostra
que a curto prazo os valores sofrerão mudanças significativas. O princípio cultural é que não se
deveria comer batata-doce, ela não poderia constituir comida, mas já que se insiste tanto, segundo
apresentei no histórico nos capítulos anteriores, ela fica reduzida ao ambiente infantil, que é
desprezível na família. Embora se reúna as crianças no
makhazi
e até os pais nesse processo de
makhaziar
, não é considerado uma festa. Portanto, a batata-doce não socializa as pessoas, mas
sim dispersa, amaldiçoa, não une e não promove
okhalihana
.
5.3 Batata-doce dá azar
“Kharaca oruuha mahussi
84
”.
Azar – ou
mahussi
,
na língua local –
,
segundo explicações, é a consequência sofrida por
uma causa que não existiu, ou significa sofrer sem motivo. Ter azar não significa alguém que é
condenado por ter praticado uma coisa ruim, mas sim por não a ter praticado. Mesmo que a
pessoa tenha razão, ninguém e ninguém acredita nela, a pessoa é sentenciada e depois que
se executa a sentença vem a clareza dos fatos e os demais descobrem que puniram sem
necessidade. Mas a questão aqui é que a pessoa foi sentenciada e cumpriu a pena, mesmo
sendo inocente. Então, quando se pede desculpas por ter sido considerado culpado e condenado,
as pessoas dirão que é azar. Indaguei um habitante sobre como ele entendia o
mahussi
, e me
explicou o seguinte, com um fato que aconteceu com seu filho:
84
Batata-doce traz/provoca azar.
100
Na semana passada, meu filho foi expulso da sala pelo professor porque o acusou de ter
feito barulho e incomodou o professor, por isso chegou aqui em casa chorando, porque
quem tinha feito barulho foi um colega dele, do lado. (Livura)
Então aqui fica a questão de
mahussi
, o filho do senhor Livura foi condenado, foi
sentenciado por um problema que não causou, e mesmo se explicando perante seu professor isso
não funcionou, o professor ficou convencido de que era exatamente ele. A justificativa de Litos,
filho de Livura, era para simplesmente livrar-se da sentença. Tantas vezes o pai foi resolver o
caso com o professor, que até já tinha se cansado de dar créditos ao filho suspenso injustamente.
A questão só terminou depois que o colega de Litos confessou, dizendo que de fato tinha sido ele
a fazer barulho no meio da aula. Isto é considerado azar, é a causa que provoca uma condenação
injusta para quem recebe e justa para quem delibera, pois aos olhos do juiz, a sentença é justa
porque foi aplicada ao infrator, mas necessariamente pode não ser este o infrator.
Foi daí que ele concordou, porque eu sempre digo para ele, meu filho, nos dias em
que você vai para escola o coma batata-doce, é melhor, se não tiver outra coisa
para comer ou levar como lanche, preferir passar a fome até onde você puder
aguentar. (Livura)
O menino Litos, por o obedecer ao pai, comeu batata-doce na escola. As
consequências são tão grandes para quem consome batata-doce que, até para evitá-las, as pessoas
são capazes de ensinar seus próprios filhos a fazerem um sacrifício de jejum até que se ache a
opção certa para substituir. Se o senhor Livura não insistisse com o professor e sensibilizasse os
colegas de Litos para se pronunciarem, o filho passaria por um processo disciplinar, mas isso não
evitou que a suspensão fosse aplicada. Vários outros relatos são descritos por rias pessoas,
como de casamento que tinha sido marcado e na hora a mulher caiu doente e não se realizou;
doenças nas famílias, que ficam em cadeia, passando de membro para membro; pessoas que
foram pegas por um jacaré durante uma atividade de pesca em rio, onde se presumia não ter
jacaré, e por outras feras durante a caça. Embora existam campanhas de persuasão, e que o
assunto da batata-doce seja matéria nas escolas, vimos por outro lado que as instruções
tradicionais organizadas para a formação do homem colocam o “homem novo” na alçada de
manutenção do que é considerado legítimo pelos “velhos” dentro da sua cultura. Mas o caso que
mais me impressionou foi descrito pelo senhor Jabo, como segue:
Meu filho foi escolhido para uma formação, capacitação em agentes comunitários, por
uma organização não-governamental, por ter sido o melhor da escola. Mas quando tudo
101
parecia ir bem, no dia seguinte, quando foi se apresentar para seguir, foi dito que
não era necessário, porque o programa foi adiado para um dia sem data. (Jabo)
Está aqui a triste descrição do que pode significar o fato de comer batata-doce quando
se espera algo muito importante. O senhor Jabo, contando a história do filho, ficava às vezes
silencioso, pois mesmo sendo uma conquista confirmada a participação na tal capacitação, o
mahussi
foi capaz de impedir por completo. O filho foi desobediente, por considerar que o azar
da batata-doce era tabu, pois assim ensina a escola, diferente do que aquilo que os pais sempre
disseram sobre esta batata. Esta relação, entre o papel da escola e as regras tradicionais,
desenvolvo um pouco mais quando trato sobre nativo e cativo, no capítulo 8. A análise sobre a
abominação da batata-doce é tal que a justificativa é atribuída aos antepassados. Já que, no
passado, segundo relatos apresentados nos capítulos anteriores, a entrada desta planta foi
opressiva, provocando revoltas, comer ou dedicar bastante tempo à batata-doce significa
desrespeito aos protestos e esforços dedicados pelos antepassados na melhoria das condições que,
à época, eram consideradas humilhantes. Se as pessoas comem ou dedicam-se muito a esta
planta, o espírito dos seus antepassados reivindica a soberania sobre o seu povo, pelo qual se
sacrificaram. É uma das questões que me interessou bastante em saber. Incentivado a dedicar
atenção a esta questão, como também fez Mary Douglas (1976), que tratou das abominações do
Levítico, decidi escrever este sub-capítulo. Segundo a autora, a contaminação nunca é um
acontecimento isolado, e pode ocorrer em vista de uma disposição sistemática de ideias. A
autora busca entender, na doutrina bíblica, as abominações do Levítico e particularmente as
regras de dieta. Nesse contexto, ela levanta algumas questões que foram norteadoras de sua
pesquisa em busca do entendimento das proibições apresentadas nesse livro bíblico:
Por que o camelo, a lebre e o hirace seriam impuros? Por que alguns gafanhotos, mas
não todos, seriam impuros? Por que seria a pura e o camundongo e o hipopótamo
impuros? O que os camaleões, toupeiras e crocodilos têm em comum para serem
arrolados juntos? (DOUGLAS, 1976, p. 57-58)
Para Douglas (id., p. 67) a maior parte do Levítico é dedicada a enfatizar a perfeição
física requerida das coisas apresentadas no templo e das pessoas que dele se aproximam.
Portanto, é de notar que a diferenciação dos animais comestíveis dos não comestíveis tinha a ver
102
com a perfeição, pois, segundo apresenta a autora, os animais mais oferecidos em sacrifício não
deveriam ter defeitos
85
, e isso fazia parte de uma obrigação
86
. No entanto ela salienta que:
Para atingir este esquema precisamos recorrer ao Gênesis e à criação. Aqui se desdobra
uma classificação tripartida, dividida entre a terra, as águas e o firmamento. O Levítico
toma este esquema e atribui para cada elemento o tipo de vida apropriado. No
firmamento as aves de duas pernas voam com asas. Na água, peixes com escamas
nadam com nadadeiras. Na terra, animais de quatro pernas pulam, saltam ou andam.
Qualquer classe de criaturas que não esteja equiparada para o tipo correto de locomoção
no seu elemento é contrária à santidade. (id., p. 72)
Na análise que procuro fazer neste capítulo, com a contribuição de Douglas, por um
lado a produção e consumo de batata-doce é abominável, e por outro lado a mandioca é
considerada uma bênção. Temos então duas situações, a abominação e a bênção, e pelas suas
características uma se opõe à outra, ambas sendo mutuamente exclusivas. A autora, trazendo uma
reflexão nesse sentido, afirma que a bênção é a fonte de todas as coisas boas, e sua retirada é a
fonte de todos os perigos (DOUGLAS, 1976, p. 60). O azar ou
mahuzi
, a fonte de todos os
perigos, interpreta-se, segundo as palavras dos entrevistados, como sendo reivindicações dos
ancestrais pelo retorno à ordem moral estabelecida, que custou sacrifício de vidas. Evans-
Pritchard (2005), em seu livro Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, disse constatar que
qualquer coisa cuja ação não esteja sujeita à percepção sensorial pode igualmente ser explicada
pela existência de uma alma. É esta alma, ou seja, o espírito dos ancestrais, que guia o modo de
vida dos membros de uma família e não uma pessoa viva, que pode ser vista batendo ou matando,
mas sim um sistema cuidadosamente montado. Por isso a preocupação em passar os
ensinamentos de geração em geração, para garantir que as pessoas, enquanto obedecerem, vivam
tranquilamente. No caso do filho do senhor Jabo, a situação serviu de sinal e alerta para que
outros nem pensem em desafiar essas autoridades, como uma forma de marcar presença no
território da sua gente que orienta com base nos princípios morais de identidade. Por isso mesmo
que quando existe uma reunião em que o líder comunitário tem que tomar decisões, fazem parte
desta reunião os conselheiros do rei, que são escolhidos entre os mais idosos, e a rainha. Em caso
de empate durante o processo de decisão do der perante alguma situação, a decisão da rainha se
sobrepõe à dos conselheiros do rei, exatamente porque o poder da rainha está ligado diretamente
85
Nenhum homem da tua descendência, nas suas gerações, em que mostre haver defeito, pode chegar-se para
apresentar o pão de seu Deus. (Levítico 21, 17).
86
Teme a Deus e guarda os seus mandamentos, pois esta é toda a obrigação do homem (Eclesiastes 12:13).
103
com os ancestrais, que orientam e anunciam as formas de viver. O senhor Alterro, reagindo a
uma pergunta sobre a certeza dos seus costumes e tradições disse:
Por que as pessoas vão para a igreja? É porque acreditam que os santos da igreja vão
lhes poder ajudar naquilo que não tem domínio do mundo visível e invisível, se não, não
valeria a pena as pessoas perderem tempo nos domingos e outros dias, se a vida
terminasse aqui. (Alterro)
A grande questão é que a batata-doce em geral dá azar quando produzida e consumida.
A sua produção por consórcio visa minimizar o risco de azar e a preferência pela
comercialização, visa também minimizar o azar pela alimentação. Comer batata-doce significa
desrespeito pelos sacrifícios feitos pelos antepassados, desvalorização da honra que eles
estabeleceram por uma causa justa, portanto, mexe com toda autoridade do grupo e, como toda
autoridade exerce poder, quando se desobedece os antepassados eles reivindicam, causando azar
aos que não são leais. Segundo Evans-Pritchard (2005), um bruxo pode fazer mal, é uma pessoa
viva que consegue desprender a sua alma do corpo físico para poder atuar e causar dano a
alguém. Sua vítima e sua ação é limitada e a curta distância. A ação ou domínio terminam com a
morte do bruxo. Mas as autoridades dos espíritos dos antepassados ou ancestrais, que estão por
detrás das regras de conduta socioculturais, são pessoas que reagem mortas, ou seja, depois que
morre, a alma fica entre o domínio das coisas visíveis e invisíveis, observando tudo e todos,
inclusive lendo mentes das pessoas que ainda estão vivas. Por isso as suas leis são obedecidas,
porque as pessoas viventes, se é que dominam, dominam apenas o mundo dos vivos e não dos
espíritos. No mundo dos vivos nunca se tem certeza de nada, não se pode prever com certeza,
mas o espírito orienta o que fazer por tempos ilimitados, porque sabe o que pode acontecer ao
longo dos tempos.
Portanto, vimos ao longo deste capítulo que a mandioca é preferencial em relação à
batata-doce, e, por razões de percurso de cada um dos produtos, a mandioca agregou valores
culturais locais, participando nas refeições principais, promovendo
okhalihana
e nos rituais
comunitários. A batata-doce teve um percurso diferente, não conseguiu agregar os valores
culturais locais e por isso acabou sendo abominada. No capítulo 6, que se segue, abordo como
esse antagonismo entre a batata-doce e a mandioca se desdobra no seio das famílias rurais de
Murrupula e Mogincual, que constituíram o campo desta pesquisa.
104
6 BATATA-DOCE DE POLPA ALARANJADA: DUAS SITUAÇÕES, DOIS
SIGNIFICADOS
Como vimos no decorrer dos capítulos anteriores, sobre o tratamento e caminhos
seguidos pela mandioca e pela batata-doce, coloca-se a necessidade de diferenciar os dois tipos
de batata-doce e suas formas de inserção na sócio-alimentação das famílias. Apesar de a batata-
doce ser interpretada da mesma forma pelas famílias residentes em Nampula, isto é, ter a mesma
significação cultural no conjunto da província, a batata-doce de polpa alaranjada é vista de duas
formas distintas entre as comunidades visitadas. As famílias residentes no distrito de Murrupula
possuem um ponto de vista diferente das famílias que residem no distrito de Mogincual, e para
melhor entender o processo, trago a abordagem proposta por Goody (1995), que sugere uma
alternativa para analisar a cozinha por meio dos vínculos com os processos de produção,
distribuição e consumo de alimentos, não em uma sociedade determinada, mas também em
uma perspectiva comparativa. Tomando como partida essa abordagem, iniciarei com o distrito de
Murrupula.
6.1 Distrito de Murrupula
Como referenciado, o distrito de Murrupula é considerado pelo SETSAN de Nampula
como sendo aquele que possui índice de segurança alimentar e nutrição mais alto do que
Mogincual. Neste distrito, não encontrei mulheres ou homens solteiros, mas sim homens com
mais de uma esposa, visto que o respeito e a dignidade da mulher estão relacionados com o fato
dela ser ou não casada, não importa com que tipo de homem, mas sim que esteja se relacionando
com um homem de dentro ou de fora da comunidade. É este homem, que, embora não dedique
100% do seu tempo para esta família por ser polígamo, responde como chefe. Não foi possível
encontrar mulheres solteiras e todas as famílias estão chefiadas por homens, com tamanhos
variando entre quatro a dez membros. É comum as famílias viverem com parentes seus, por
vários motivos, que vão desde a perda dos pais por morte, para estar perto da escola, para
aprender algum ofício com um parente que o domina e pratica ou para cuidar de idosos da
105
família. Mas o mais comum e culturalmente óbvio é o casal novo que ainda não tem filhos (33%
das famílias entrevistadas) ser obrigado a viver, em uma primeira fase da vida de casal, com seus
irmãos mais jovens. Isso significa que a moça, quando casa, leva junto sua irmã mais nova e o
moço também leva o seu irmão mais novo. Essa prática constitui uma característica costumeira
daquelas famílias e é mantida ao longo de gerações, como identidade enquanto grupo social. Isso
tem relação com o trabalho de Bourdieu sobre a construção social do gosto, no qual, segundo
Seymour (2005), argumenta que o
habitus
é aprendido, esse aprendizado é adquirido de modo
inconsciente apenas pela imersão em determinado meio social.
A interpretação da obrigatoriedade cultural é no sentido do novo casal sem filhos ir
aprendendo as qualidades de ser um bom pai e uma boa mãe, ao cuidar dos irmãos que vão viver
junto. os irmãos do casal ocupam um papel social, no caso de um dos cônjuges ausentar-se,
por motivos diversos. Se for o homem que se ausenta, o irmãozinho dele ocupa imediatamente a
posição de chefe da família, auxiliado pela cunhada, cabendo ao novo rapaz desempenhar as
funções no lugar do irmão mais velho no que diz respeito à gestão e processo de tomada de
decisão. Se a mulher se ausentar, a irmã desempenhará as funções de dona de casa, cabendo a ela
todo auxílio ao cunhado nas tarefas familiares. Vários são os casos em que, ao final deste
exercício, a cunhada pode ser como a segunda esposa e o irmãozinho acaba substituindo o irmão
mais velho em caso de morte. O marido pode ser polígamo em relação a duas irmãs, enquanto
que a mulher só pode casar-se com o cunhado em uma condição de viuvez do primeiro marido.
Existem, para cada família entrevistada, do total de 27 em Murrupula, no mínimo duas
machambas (30%), porém a maioria (70%) possui mais de duas. Essa contagem não inclui a
machamba infantil, porque ela não é considerada parte da produção para a família. A tabela
comparativa da situação vivenciada durante o campo (ver Apêndice II) mostra as condições das
famílias naquilo que constitui a fonte de produção e reprodução social, que, nas palavras de
Goody (1995), encontramos evidenciadas nas suas diferentes formas de construção de relações
no seio da sociedade. Começando a rotina com o amanhecer, normalmente por causa da distância
entre a casa e a machamba, que é um tanto longa, em minha opinião, acordam cedo, por volta das
3 a 4 horas. O primeiro a levantar-se é o marido, que, antes de acordar o restante dos membros da
família, ronda a casa para verificar se tudo está em ordem. Depois acorda a mulher e, em seguida,
os filhos ou outros membros da família. A mulher prepara o matabicho (ou café da manhã), que,
muitas vezes, constitui-se das sobras do jantar. Cada um coloca sua roupa de trabalho, leva a sua
106
enxada, fecham-se as portas e todos caminham para a machamba. Existem dois tipos de roupa: a
de trabalho e a de não trabalho. A roupa de trabalho é aquela que é colocada quando as pessoas
vão para a machamba. Ela é suja, com manchas e até nódoas visíveis. Tem que ser de um tecido
duro como, por exemplo, calções de jeans , que suporte o trabalho pesado da machamba. E a
roupa de não trabalho é aquela usada para outros fins e, diferentemente desta, pode ser de tecido
leve e, geralmente, encontra-se em bom estado de conservação, portanto livre de nódoas ou
manchas.
Remetendo a discussão sobre roupa de trabalho e de não trabalho ao que foi observado
por Woortmann e Woortmann (1997), em seu estudo sobre o trabalho da terra, realizado no
Brasil, como vimos anteriormente, esses autores afirmam que o campesinato não é o mesmo em
diferentes lugares, mas sim sempre específico, referente à sua história. A roupa de trabalho,
quando está limpa, significa que a pessoa é preguiçosa, que cuida e se interessa mais pela roupa
do que pelo trabalho, e pode ser criticada por isso. Essa pessoa não está se envolvendo com o
trabalho, está fazendo como se fosse uma obrigação, ou algo sem valor, o que pode fazer com
que os filhos aprendam a encarar o trabalho de uma forma errada. A terra é um ser vivo, que a
vida e transmite o ser e a honra, quando se trabalha nela com amor.
Se não trabalha com amor
vai ficar com roupa limpa e a pessoa, se não viver de trabalho, vai ser como esses que mais
tarde o para a cidade”,
disse a entrevistada Amina. Viver de trabalho significa viver de
produtos da machamba e quem não consegue vai viver na cidade, onde não trabalho, mas sim
negócio, e negócio não dá honra. A roupa de trabalho deve indicar a atividade, deve mostrar em
que a pessoa trabalha. Em outras palavras, a roupa é a identidade para o trabalho, as pessoas
deverão estar informadas sobre o que alguém faz somente por ver sua roupa, não é preciso
explicar que trabalha com isto ou aquilo. Por isso diferenciam a vestimenta, quando vão à
machamba colocam a roupa de trabalho, quem sabe se a pessoa está indo para a machamba ou
voltando, e, quando se veste roupa de não trabalho, todos sabem que se está livre para beber ou
para outra atividade, mas não para trabalhar.
Normalmente, a roupa de trabalho é a última a ser colocada, não que ela não seja
importante, mas sim porque marca a prontidão para caminhar, e cerca de 30 minutos depois,
caminhando rápido, chega-se à machamba, quer seja de milho ou de mandioca. Ao chegar, o
chefe da família orienta como iniciar a capina, mede com os olhos e estima o ponto de referência
onde se pode considerar para aquele dia o limite do trabalho. Em seguida, utilizando estimativas,
107
marca a largura que cada membro deve ocupar e se responsabilizar em terminar a meta. Feito
isso, cada membro fica livre para comer primeiro ou no final do trabalho. Mas apesar de ser livre,
o fato de começar a comer antes de trabalhar significa preguiça. Woortmann (1978), em seu
trabalho sobre hábitos e ideologias alimentares em grupos sociais de baixa renda, argumenta que
o comer não satisfaz apenas as necessidades biológicas, mas preenche também funções
simbólicas e sociais. Por isso, embora se coma quando se tem fome, o comer antes de trabalhar
na machamba significa preguiça. Cada membro trabalha segundo sua força e o descanso também
é liberado, mas tendo em vista o objetivo principal, que cada um faça a sua parte e alcance a
meta. O chefe pode lançar uma espécie de concurso, quando diz que quem atingir primeiro a
meta ganha um determinado prêmio, que pode variar entre roupas, material escolar, passeio
liberado por determinado tempo no dia ou durante o final de semana e até mesmo a permissão
para
makhaziar
. Se por algum motivo alguém não consegue terminar a sua parte, todos os outros
ajudam, e só depois se volta para casa.
Quando terminam, pude verificar, os diferentes membros da família realizam tarefas
diferenciadas. A mulher e as filhas, normalmente, colhem alguma coisa para comer no almoço,
em casa: verduras, feijões e outros alimentos. O chefe da família e os filhos podem cortar lenha,
ir caçar, pescar ou passar por outra machamba, apenas para dar uma olhada. Garcia Jr. (1983), em
seu trabalho “Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores”, realizado no Brasil,
também fala sobre a divisão de trabalho, quando discute sobre trabalho familiar no roçado:
O esforço despendido pela unidade doméstica no roçado varia, segundo as fases do ciclo
agrícola, não em quantidade quanto na forma como é avaliado. Efetivamente, nem
todas as tarefas desempenhadas no roçado são consideradas da mesma maneira, fato que
se marca, por exemplo, na classificação de certas tarefas como próprias para os homens
e de outras tarefas como próprias para as mulheres. (GARCIA JÚNIOR, 1983, p. 121)
No período antes das chuvas as mulheres podem se encarregar de cortar a lenha no lugar
dos homens, porque não existe aparentemente nada para ser colhido e os homens nessa época
arrumam outros trabalhos para fazer, como preparar madeira, ferro e caniço para artesanato. Mas
também nessa época a pesca e a caça se tornam atividades frequentes. O único trabalho que elas
fazem nessa época é na machamba, mas logo que se atinge a meta, o resto das atividades de
coleta dentro da machamba não é considerado trabalho. Elas serão as primeiras a chegar em casa,
porque deverão providenciar o almoço para a família. Já os homens farão o possível para demorar
no que estão fazendo, para chegar em casa quando o almoço estiver pronto. As viagens longas
108
para dar uma olhada em uma outra machamba visam exatamente isso, dar tempo para as
mulheres chegarem em casa e se ocuparem das suas tarefas de cozinha. Os homens trarão produto
da caça, pesca, material para artesanato ou notícias de outra machamba na qual as mulheres não
foram. Se o marido não trouxer nada da pesca ou caça, encontrará
caracata
com folhas de
mandioca, aliás, esse prato básico a mulher sempre fará, porque é
prato de mulher
.
O que marca a diferença entre a mulher casada e a solteira é que na hora de almoçar ou
jantar a casada terá o prato dela e a carne da caça ou pesca, mostrando que ela realmente tem
marido. Não é a carne de animais domesticados, porque isso a mulher solteira também pode ter.
Se o vizinho que estiver passando vier comer e encontrar na mesa somente o prato da mulher, irá
criticar o chefe de família, com palavras como:
mulher, como você aceita comer comida de pobre
enquanto tem homem em casa
? A palavra pobre é no sentido de que a mulher solteira é pobre,
pois, por mais que tenha tudo, não tem um homem para trabalhar para ela nos trabalhos pesados e
de risco, por isso come o básico, porque não tem quem o possa dar. Por isso os homens, logo que
terminam o trabalho da machamba, deverão marcar sua masculinidade trazendo alguma carne ou
peixe. E se existem muitos motivos para a mulher pedir o divórcio, um deles é exatamente esse, e
como punição, o homem que empobrece a mulher perde a esposa e ela estará livre para se casar
com outro que possa deixá-la rica. Estamos aqui, portanto, perante elementos constitutivos do
sistema culinário como proposto por Gonçalves (2002), no seu trabalho sobre a fome e o paladar,
realizado no Brasil. Mas, ao nos apoiarmos por esta proposta, queremos concretamente nos
referir ao que diz respeito às refeições, isto é, situações sociais (cotidianas e rituais) em que se
preparam, exibem e se consomem determinados alimentos. A mulher, exibindo e consumindo seu
prato básico, identifica-se como sendo solteira, e o contrário mostra que ela é casada, motivo de
honra para si própria e para o marido, que expõe sua masculinidade.
Se são poucos os membros da família, o almoço é servido em um mesmo prato para
todos. Mas se existem mais de quatro, normalmente o casal se separa dos filhos. Todos sentam-se
na esteira
87
, à volta do prato, o mais velho do grupo lava as mãos e os outros o seguem, daí
inicia-se a degustação. Assim como o mais velho foi o primeiro a comer, deve ser o primeiro a
deixar para os mais novos. Após o almoço, os filhos tratam de lavar a louça e arrumar tudo
87
Tapete feito de caniço, que serve para se sentar no lugar de uma cadeira. Esta prática de se sentar em esteiras e não
em cadeiras é comum nas famílias que professam a religião muçulmana.
109
direito. Logo depois, pode ser a oportunidade para
makhaziar
88
com os amigos, se os pais
deixarem, ou cuidar da machamba infantil. A mulher pode decidir visitar um parente ou uma
amiga. O marido pode acompanhar a mulher ou ir passear nas casas dos amigos da zona. Mas
tudo isso acontece a partir de um arranjo, no sentido de que a casa não fique sem alguém
presente.
A presença de alguém em casa não é apenas para cuidar da porta, mas por causa de
recados e informações que podem ser perdidos se não estiver ninguém no momento, e isso
mantém o equilíbrio social. E como a comunicação é feita por mensageiros, aliada ao fato das
comunidades serem numerosas, sem este mecanismo de arranjo para informação as pessoas
podem não se aperceber do que está acontecendo de importante na comunidade ou na família.
Enquanto se deixa alguém em casa quando se sai, o marido ou a mulher, nas visitas a parentes e
amigos, quer juntos ou individualmente, levam algum presente consigo. o importa o tamanho
do presente, mas sim que seja algo que se come, um alimento da machamba, uma mandioca
fresca, cozida, amendoim, etc., para enquanto estão conversando poderem degustar juntos,
partilhando os frutos do seu trabalho. Por isso a pessoa que recebe a visita também tira do que
possui e junta no mesmo propósito.
Normalmente, os homens preferem juntar-se para beber, e cada um contribui com o
que pode. Na qualidade de chefe da família, o marido controla os produtos da machamba,
armazena uma parte e outra pode vender para adquirir outros bens, mas apesar de ser ele quem
aparentemente decide, entrega todo o dinheiro para a mulher, que serve de banco da família. O
homem nunca fica com dinheiro no bolso além do necessário para gastar naquela hora ou lugar.
Por isso, quando chega a hora de beber com amigos, ele terá que pedir à mulher, mediante
justificativas. A mulher está no direito de proibir, se assim ela desejar. Isso é o que acontece se
for uma tarde de reunião da comunidade, os assuntos a serem abordados são previamente
anunciados pelo mensageiro, que passa de casa em casa. O marido conferencia com a mulher em
casa, ela expõe as suas opiniões, que de certa forma constituem ordens para o marido, que vai
falar, já que ela não pode, tem marido, seu homem, que pode falar por ela.
88
Significa cozinha de crianças. Na brincadeira de cozinhar, os meninos fazem o papel de pai e as meninas o papel
de mãe.
110
Isso vai ao encontro do discurso que chamei de “protecionismo cultural”, proferido por
Alterro, um entrevistado bastante respeitado na zona, que entende que a mulher deve ser poupada
de serviços “pesados” e de “risco”, porque dela depende o crescimento familiar.
Na reunião haverá pessoas conhecidas e desconhecidas e, portanto, para uma mulher
falar, vai precisar de coragem, o que torna a situação pesada”, por isso se ela tiver marido, ele
falará no seu lugar, porque ela deve ser poupada de “riscos”. O que pude verificar quando
participei em um dos encontros é que o marido ficou insistindo em uma questão que todos os
outros presentes achavam irrelevante, mas ele, mesmo assim, fez de tudo para que fosse
considerada naquela hora. Eu sabia que a mulher falara com o seu marido em casa para não
passar por cima ou não aceitar que a questão fosse deixada para depois. Fiquei sabendo quando a
minha “mãe” me contou que o meu “pai” iria insistir, porque o assunto era do interesse dela.
Quando perguntei por que ela não poderia falar pessoalmente na reunião, me respondeu:
eu, eu
não preciso falar, sou casada
. Ela queria realizar
imwali
89
e gostaria de ser anfitriã. Foi o que
observei, o meu pai” fez de tudo para conseguir espaço de discussão, e na verdade o assunto
assim foi aceito e ficou decidido que ela poderia realizar a festa em sua casa.
E quando chega a noite, todos estão em casa, as mulheres vão para a cozinha, é hora de
preparar o jantar. Se, quando estiver cozinhando, ela sentir que a panela está muito quente ou
pesada, que ela ache que não vai conseguir, chama imediatamente o marido, que a ajuda a tirar a
panela do fogão, porque ela deve ser poupada de riscos. A forma de comer é a mesma, todos em
volta do prato e comendo com as mãos. O que não pode acontecer é um jantar sem
caracata
90
,
não importa se ou não molho para acompanhar, basta ter
caracata
. Casos em que todos os
dias, independentemente de haver outra alternativa alimentar, é consumida a
caracata
. Ela traz
força e equilíbrio emocional, pois os comensais ficam com a sensação de ter se alimentado da
melhor forma e inspiram-se para poder fazer qualquer atividade física ou mental, porque
comeram
de verdade
.
A batata-doce, nos momentos em que pode ser consumida
91
, pode ser cozida, crua ou
ainda assada. Quase tudo é cozido, as coisas frescas são interpretadas como falta de tempo para
89
Ritual tradicional dirigido por mulheres e para mulheres, que marca a passagem da fase de crinaça para a adulta.
90
Polenta feita de farinha de mandioca seca.
91
Sem compromisso laboral ou não estando sob ansiedade de esperar algo para receber ou concorrer, quando não
tem prova na escola, etc.
111
cozinhar ou então que a mulher é preguiçosa, que obriga o marido e outros membros da sua casa
a comer como se fossem animais selvagens, pois um animal selvagem pode comer coisas
cruas, porque não tem como cozinhar. O almoço e o jantar é que são considerados refeições, o
matabicho, e os diversos lanches, não são incluídos na lista de refeições da família, porque sua
natureza individualista retira-os da classificação de refeição. Em todas as refeições, todos os
membros da família m a obrigação de participar, e aquilo que mais se come é, pela orientação
do chefe da família,
caracata.
É o chefe da família que sabe as necessidades dos seus membros e
é responsável por prover os mantimentos da casa, como uma unidade de consumo. Mas, se
lembrarmos o estudo realizado no Brasil por Garcia Jr. (1983), considera-se comida aquilo que
provém do roçado e, segundo Heredia (1979), em outro estudo também realizado no Brasil,
comida é aquilo que está presente nas refeições principais, chegamos à ideia de que o marido
detém o poder explícito na definição do tipo de prato a ser preparado, visto que ele é responsável
pela machamba familiar ou roçado, que dá honra à família que ele representa. E, no caso
específico da
caracata,
ela proporciona força física e espiritual, é como se o homem estivesse
provendo sua família de cuidados necessários para a saúde e assim para poder cuidar dos
trabalhos no roçado no dia seguinte.
Normalmente as o jantar, o pai, em volta da fogueira, conta histórias e lendas para a
família e quando a mulher diz que está cansada, é hora de todo mundo ir para a cama. E na
manhã seguinte a rotina continua. Só os filhos que estão no período escolar são poupados. Os que
estiverem estudando no período da manhã, só o com os pais na machamba durante os finais de
semana. Têm a tarde para cuidar de sua machamba e de outros afazeres, obviamente orientados
pelos pais. O Quadro 4 sintetiza as principais atividades da família na machamba.
Atividades da família
Pai Mãe Filhos ou outros
Antes das chuvas Abrir as parcelas
Destroncar
Limpeza
Limpeza Limpeza
Durante as chuvas Preparar semente
Abertura de cova
Semear
Preparar a semente
Abertura de cova
Semear
Semear
Depois das chuvas Colheita
Venda
Colheita Colheita
QUADRO 4 – Atividades e organização familiar em Murrupula
FONTE: Pesquisa de campo, 2010
112
Focalizando as questões de troca comercial, referenciei que as famílias, a princípio,
trocam entre si trabalho por trabalho ou produto por produto, mas não transação monetária
entre os membros da família ou comunidade. Porém, como Murrupula possui condições
favoráveis para a agricultura, no âmbito do programa da batata-doce de polpa alaranjada produz a
rama para distribuir em outros distritos, como Mogincual, que tem problemas sérios de falta de
precipitação. Por isso, além de produzirem rama, produzem também a própria batata, que,
juntamente com a rama, é comprada pelas organizações fomentadoras para, por sua vez,
distribuírem nos locais carentes. Com isso, nos parece mais uma demonstração do que afirmou
Woortmann (1990), que com parente não se “neguceia”. O autor, trazendo falas dos seus
interlocutores de Sergipe, Brasil, salienta que a razão é que no negócio sempre um sai ganhando e
outro perdendo. Por isso o negócio é percebido como negação da moralidade. Assim, as famílias
em Murrupula também têm essa mesma percepção, com parente não se negocia. Vendendo a
rama e a batata-doce de polpa alaranjada para os próprios fomentadores, é como se estivessem
devolvendo o mal para os que o trouxeram, pois, como vimos, a batata-doce e a prática comercial
não fazem parte da moralidade cultural local, por não promoverem
okhalihana
- troca de trabalho
por trabalho ou reciprocidade. Por isso, a produção, como expus anteriormente, está sendo feita
em fóruns, porque individualmente as famílias não seriam capazes, por um lado, de dar conta da
demanda e, por outro lado, por questões culturais já mencionadas, poderiam desistir da produção.
Os fóruns são apoiados com insumos e assistência técnica, em troca pela dedicação à batata-doce,
e logo depois que a produção espronta, o fórum vende a quem lhe deu apoio. É uma forma de
dizer para o distrito de Murrupula que a batata-doce de polpa alaranjada significa produção de
dinheiro, já que poucos ou quase ninguém a come, a produção fica por conta do negócio.
Eu trabalho no fórum nos sábados à tarde, mas é por escala, para facilitar que noutras
horas as pessoas possam trabalhar. O governo nos apóia, se não fosse isso, eu teria
desistido, aliás, quase todos, porque conseguimos dinheiro com isso. Quase que a única
coisa que temos que fazer é cuidar dela para não morrer, eles nos dão tudo para
produzir, então é bom, assim ficamos com dinheiro no bolso para fazer o que quisermos.
(Muitite)
Eu nunca tinha pensado em comprar uma bicicleta, mas com o dinheiro que ganho no
fórum a minha mulher disse para comprar uma bicicleta, por isso, apesar de eu não
gostar da batata-doce, pelo menos nos dá dinheiro. (Anlawe)
Vários foram os depoimentos das falias falando da relação entre a batata-doce de
polpa alaranjada com dinheiro no bolso, isto para não dizer que todas as pessoas falaram do
113
ganho monetário trabalhando ou dividindo o tempo de trabalho com o fórum. O dinheiro aparece
como um ganho não procurado, algo que alguém decide e traz para as pessoas. Lembrando de um
depoimento nos capítulos anteriores, o senhor Muaaco disse que produz batata-doce de polpa
alaranjada, mas o a leva para consumir em casa. Então, a batata-doce de polpa alaranjada está
diretamente ligada ao negócio de ganhar dinheiro com o estrangeiro, porque entre as famílias
nativas não se negocia e muito menos se oferece batata-doce, e ela nem entra nas suas festas, mas
sim nas festas deles, dos estrangeiros.
Portanto, retomando o fio condutor da análise proposta por Goody (1995), referida no
início deste capítulo, vimos até aqui que é do trabalho da machamba que a família se materializa
enquanto unidade de produção, assim como as relações de sociabilidade determinam as formas de
distribuição, sendo que a casa representa a unidade de consumo.
6.2 Distrito de Mogincual
No distrito de Mogincual, que segundo SETSAN de Nampula, possui índice de
segurança alimentar menor, a agricultura não é uma atividade básica para as famílias. Por isso
mesmo, devido à escassez de chuvas e solos pobres em nutrientes para a prática agrícola, a
população recebe assistência por meio da rama da batata-doce de polpa alaranjada. Para os
habitantes locais, a agricultura já foi uma atividade predominante, mas agora a pesca está acima
da agricultura. Neste local, ao contrário do que foi encontrado em Murrupula, existem lares ou
famílias chefiadas por mulheres (52%) (ver Apêndice II), o que mostra as condições das famílias
naquilo que constitui sua fonte de produção e reprodução social. Obviamente, as famílias
chefiadas por mulheres são chefiadas pelas solteiras que vivem sem marido, visto que, nesta
zona, pela cultura local, o homem adulto não pode viver sozinho. O homem tem que casar ou
estará sujeito a acusações de má conduta. Por isso, muitos jovens nesta parte da província
preferem migrar para as cidades, onde podem viver a sua vida sem uma mulher e casarem-se
quando acharem conveniente, e não por imposição social. Esta característica específica desta
zona é devida exatamente à problemática de crises cíclicas de falta de trabalho. Lembrando que é
o trabalho da terra que honra ao indivíduo, nas palavras de Woortmann e Woortmann (1997),
a terra é para o camponês um ser vivo e é a roça o espaço de aprendizado, por excelência.
114
A fraca precipitação e outras adversidades do clima não favorecem a prática agrícola em
Mogincual. Então, observamos aqui uma combinação de fatores que fazem com que o jovem não
trabalhe e, por isso mesmo, não esteja em condições de se casar. Barbosa e Campbell (2007), em
sua análise sobre o consumo nas ciências sociais contemporâneas, afirmam que o trabalho é
considerado fonte de criatividade, autoexpressão e identidade. Se trouxermos essa discussão para
o contexto das famílias estudadas em Nampula, encontramos que o é qualquer trabalho, mas
sim o trabalho da terra que produz honra, e identidade, como indivíduo e como grupo. Por isso,
se os jovens não tiverem trabalho e decidirem casar-se, terão que enveredar pela área da pesca e,
como nem todos têm a coragem necessária para enfrentar as ondas do mar, preferem viver
solteiros, mas na cidade.
Algumas mulheres vivem solteiras por causa da morte do marido e depois disso
preferiram não se casar mais, e outras por ausência do marido, que vai tratar de negócios na
cidade, onde também possui sua morada temporária. As mulheres só podem sair da casa dos pais
depois que um homem venha pedi-las em casamento, enquanto isso não acontecer elas terão que
viver o tempo todo com parentes, pais, tios, irmãos, ou então terão que seguir o caminho dos
outros para a cidade.
O tamanho da família varia entre dois a seis membros. Ao contrário de Murrupula, nesta
zona, apesar de permitir-se a poligamia, não foi encontrado nenhum caso. A justificativa é a
crise, pois a mulher precisa ser cuidada, provida do necessário que merece por ser aquilo que ela
é, e o homem, tendo dificuldade de encontrar trabalho, fica impossibilitado de casar.
Vou casar com mulher para dar o quê? Aqui não existe nada para fazer, vender
algumas coisas que faço de artesanato e isso não alimenta mulher. Você tem que ter
mulher para cuidar e não ter apenas por ter ou apenas porque tem que casar, é uma
grande responsabilidade, eu não consigo. (Adino)
Adino, um jovem estudante local, diz que pela crise vivida pelas famílias no distrito
faltam muitas oportunidades, e as pessoas sempre saem logo que encontram oportunidades. E
aliado ao fato de que tem que ter trabalho para casar, o dinheiro da venda de seu artesanato não
define realmente que ele está trabalhando e não é suficiente para casar, porque o que ganha não
irá alimentar dignamente a mulher e isso não lhe dará honra. Existe outro fator, bastante referido,
de que poligamia está associada ao poder masculino. Os que possuem mais de uma mulher em
Murrupula têm trabalho, mais de duas machambas, proveem a família e sustentam suas mulheres
tranquilamente. Cada mulher deve ter sua própria moradia, seus bens e filhos. O homem que
115
decide ter mais de uma mulher tem que ter capacidade de prover essas condições para cada uma
delas, nenhuma deve queixar-se de maus-tratos, nem a ela e nem aos filhos. Por isso a poligamia
fica estreitamente ligada à capacidade do homem de prover recursos e responsabilidades, à altura
das exincias tradicionais. Seymour (2005), discutindo o aporte de Bourdieu a respeito da
construção social do gosto, mostra que o
habitus
pode ser visto como um conjunto de
predisposições
e tendências para fazer algumas coisas e não outras, e para fazê-las de maneiras
específicas e não de outras maneiras. Portanto, nas famílias de Nampula, a poligamia é
culturalmente aceita, sob a condição de respeito da mulher e que ela seja provida de condições
para que desempenhe suas funções culturalmente estabelecidas, que consistem, principalmente,
nos cuidados referentes à continuidade do crescimento da família.
Assim como já vimos no caso das famílias em Murrupula, também no distrito de
Mogincual as mulheres não podem ter mais de dois maridos, pois em primeiro lugar elas são
donas de tudo quanto o homem traz. Quando se divorciam, o homem sai apenas com a sua mala
de roupa e tudo o mais fica com a mulher, incluindo os filhos, as machambas, e outros bens que
ao longo do tempo eles conquistaram juntos, se for o caso. Outra razão é pela sua simbologia, a
mulher é sagrada como a terra, ela não briga, dá tudo por amor, gera os filhos e os cria,
garantindo a continuação da geração. A mulher é pura e, por isso, merece ser cuidada e não
macular-se, como o homem, que vale pouco. A mulher não deve querer vingar-se do homem por
algum motivo, senão perde sua razão de ser mulher, como mostram os depoimentos de Nura e
Haua, donas de casa, entrevistadas em Murrupula.
Eu sou a segunda mulher dele, ele traz e faz tudo que eu peço. Sei que ele, para além de
ter a primeira mulher, pode trair, homem é assim mesmo, não vale nada, é como capim,
que o fogo devora tudo e fica apenas cinzas, mas a terra fica. Nós o podemos ir atrás
da vingança, senão acaba tudo. Quando amanhece, penso nos meus filhos, como cuidá-
los para crescerem bem [...] Às vezes não me dou conta quando ele vem ou não, de
repente vejo ele aqui e eu não me importo. Estou feliz porque eu e meus filhos estamos
bem. (Nura).
Homem é uma borboleta, toca muitas flores, mas as flores o podem sair para tocar
muitas borboletas, se isso acontecer ela morre. Assim são os homens, e assim foram
feitos. Meus filhos ele não leva sem me pedir, mesmo quando quer passear ou mandar
fazer alguma coisa, porque são meus e não dele, ele apenas me ajudou a ter. (Haua).
Estes depoimentos mostram qual é o lugar da mulher e qual é o lugar o homem. Homem
é aquele que não vale nada, também não tem nada, e paga o preço por sua condição, trabalhando
para suas esposas. As esposas não podem se vingar e morrem se saírem do lugar, como no
116
exemplo da borboleta e das flores. Se isso acontecer, não apenas o casamento, mas a família
termina, a geração vai desaparecer. A borboleta faz seu papel ao fecundar a planta, mas os frutos
não são da borboleta, e sim da árvore que os gerou e criou. Assim, compara-se o homem à
borboleta e a mulher à flor da planta que depois dá frutos. Por isso, ser casado ou ter mais de duas
mulheres é um custo, não pelo processo de casamento, mas pelas responsabilidades que devem
ser assumidas.
Nas famílias chefiadas por mulheres, ao amanhecer, ela e os filhos ou outros membros
vão todos para a machamba da família. Ela acorda, ronda a casa, acorda os outros membros para
se prepararem enquanto arruma a marmita com o lanche, e por volta das 6 ou 7 horas iniciam a
caminhada. Isto porque as distâncias são curtas, e as horas de trabalho na machamba também são
poucas. A rotina é a mesma, colocam a roupa de trabalho e quando chegam na machamba a
mulher faz o papel do homem, definindo a meta e dividindo as parcelas. Ningm come antes de
terminar, tudo fica para depois do trabalho. No final dos trabalhos, todos procuram alguma coisa
para levar para casa, alguma verdura, cortam lenha, mas não voltam de mãos vazias, cada um
trabalha segundo o seu esforço. O Quadro 5 mostra o resumo daquilo que constitui atividades
principais dos membros da família na agricultura.
Atividades da família
Pai Mãe Filhos ou outros
Antes das chuvas Abrir as parcelas
Destroncar
Pesca e caça
Limpeza
Limpeza
Pesca
Caça
Durante as chuvas Pesca
Caça
Preparar a semente
Abrir covas
Semear
Preparar a semente
Abrir covas
Semear
Depois das chuvas Colheita
Venda
Colheita
Colheita
Venda
QUADRO 5 – Atividades e organização familiar em Mogincual
FONTE: Pesquisa de campo, 2010
Ao chegarem em casa, todos ajudam a cozinhar. Os filhos arrumam a louça, cortam os
vegetais ou legumes, acendem o fogão a lenha. As mulheres se encarregam de misturar os
ingredientes e da arte de cozinhar. Um fato interessante é que os homens pilam ou trituram a
mandioca seca e produzem a farinha, não é a mulher que faz essa tarefa, e isso os diferencia em
relação às famílias de Murrupula, em que tudo na cozinha é feito pelas mulheres, que só chamam
os homens para ajudar em alguma tarefa específica. Woortmann (1990), como vimos
117
anteriormente, considera que a trajetória camponesa não é, contudo, linear. Talvez o homem em
Murrupula não pile a mandioca por ter um trabalho, que pilar faz parte dos trabalhos da
mulher.
A mandioca seca é comprada no mercado, de vendedores que a trazem de outras
regiões, porque ali não se produz o suficiente. O ato de comer é o mesmo, com as os, todos
sentados no tapete, reunidos à volta do prato. Porém, um fato curioso é que apesar de ser a
mulher a chefe da família, se houver um filho homem ou irmão, este será o primeiro a lavar as
mãos, mas não o último a deixar de comer. Ele começa a comer por ordem de representação do
poder masculino, mas não pode ser o primeiro a deixar de comer porque ele ainda é menor, então
é o primeiro e é o último a deixar de comer. Woortmann (1985), no seu trabalho “Comida, a
família e a construção do gênero feminino”, observa que a refeição não é apenas um ato de
comer, mas também um ato ritual, um rito social que reproduz simbolicamente a hierarquia da
família. Por isso que o filho, por ser do sexo masculino, representa a autoridade masculina, digna
de respeito, porque ele é homem, não importa a idade. Nas palavras de Amina, uma interlocutora
de Mogincual:
mulopuana khonyeva
o homem nunca é pequeno, dele se espera sempre algo
melhor.
A mulher chefe de família pode preparar à vontade
caracata
com
nticua
(folhas de
mandioca), o prato básico, de pobre, porque ela não tem marido, está solteira. Ela toma todas as
decisões dentro e fora de casa sobre os seus membros e fala em reuniões, expõe seus pontos de
vista e é aceita. À tarde, se tiver que sair para passear ou visitar amigos e amigas, ela vai, mas
toma o cuidado para que a casa o fique abandonada, caso alguém venha visitar ou trazer uma
informação. E as crianças fazem o seu trabalho na machamba infantil.
As famílias m, no mínimo, uma machamba e o número máximo encontrado foi de
duas machambas, mais uma vez sem incluir na contagem a machamba infantil. Neste distrito não
existe diferenciação entre machamba de milho ou de algum outro produto, as plantas são
consorciadas, as pessoas não investem tanto na agricultura porque repentinamente podem perder
tudo com seca ou ciclones. Fazendo uma análise na perspectiva proposta por Goody (1995),
temos que, neste caso, a agricultura não constitui uma atividade em que a família se materializa
enquanto unidade de produção.
Quando a mulher vai visitar as amigas, a mesma prática de levar um presente ou um
alimento se verifica, ela leva mandioca seca e a amiga pode trazer amendoim, e juntas degustam
118
enquanto conversam. Durante a noite, as crianças estarão em casa quando a dona estiver
chegando. Ela vai encontrar tudo preparado para o jantar e não precisará fazer nada, só verifica se
tudo está corretamente cozido e depois todos se sentam no ritual e comem. Assim como em
Murrupula, aqui a
caracata
é o que mais se consome, de manhã, à tarde e à noite. Após o jantar,
conversam um pouco, e a mulher anuncia quais serão os planos seguintes. Logo depois, o filho, o
homem da casa, responsabiliza-se por contar algumas histórias para os outros, à volta da
fogueira. As mulheres também contam suas histórias e passam muito tempo nisso, muitas vezes
perdendo a hora de dormir. Várias foram as vezes em que as conversas iam até as 11 da noite, o
que difere de Murrupula, onde cerca de 8 horas da noite era o horário limite para ir para a cama.
Nos lares chefiados por homens, o marido acorda por volta das 2 a 3 horas da manhã,
para sair para o mar. Esse é o trabalho dos homens, eles não se entregam à machamba, porque lá
não se produz nada, por isso a machamba fica para a mulher
divertir-se
com as crianças. Ele leva
a sua roupa de trabalho de pesca em uma sacola, sua merenda, seu isqueiro, uma faca e outros
utensílios. Despede-se apenas da mulher, porque os outros membros da família estão dormindo,
ainda é madrugada, depois eles serão informados que o pai foi para o mar. Nunca se diz que o pai
foi pescar, mas sim que foi para o mar, esta é a linguagem de todo pescador. Se ele não foi
pescar, os parentes dizem que foi procurar peixe, comprando de outros na praia, ou no mercado.
Como expus anteriormente, tenho medo de água, por isso não pude seguir a rotina
destes pais de família durante seu trabalho no mar. Mas em conversas, descreveram-me que, ao
chegar à praia, tiram a roupa que estão vestindo e põem a de trabalho, entram no seu barquinho e
remam, indo longe da margem costeira. A roupa de pesca é apenas um calção, com tecido
endurecido, talvez pela água salgada, mas ninguém vê isso, só os companheiros que estão
acordados. Logo que retornam do mar, trocam de roupa, colocam aquela de casa, a roupa boa e
limpa, e vão ao mercado.
Mas antes de chegar ao mercado, já vendem no caminho, para alguns fregueses, tendo o
cuidado de separar o peixe para levar para casa. Se não venderem tudo, levam ao mercado, e não
voltam para casa com o peixe reservado para a venda. É como se fosse uma meta, regressar à
casa depois que o peixe capturado foi vendido na sua totalidade, trazendo somente aquele que ele
mesmo escolheu e separou. Pode ser que a mulher queira adiantar o almoço ou o jantar, e então
ela manda o filho buscar o peixe de casa e já vai preparando a comida, para permitir que o marido
encontre tudo pronto para a sua refeição, quando chegar em casa. O peixe é importante no
119
cardápio, porque a família, não sendo pobre, não pode comer apenas
caracata
com
nticua
(folha
de mandioca).
Quando os pais chefes de família estão no mar, as mulheres, com os filhos ou outros
parentes, vão para a machamba familiar. Vezes em que o filho começa a seguir o pai para
aprender o serviço no mar, mas se ele ainda for menor, irá com a mãe para a machamba. Ela
define a meta, divide a área e todos trabalham, no fim lancham todos juntos, procuram alguma
coisa para levar para casa e preparam algo para comer. Geralmente, a mulher sonda os vizinhos
para saber se o marido ainda está no mar ou no mercado, para permitir que ela faça também
caril
- molho de peixe. Caso ele ainda não tenha voltado, ela faz o que sabe fazer, comida de mulher, o
prato básico.
De tarde, o filho pode ajudar o pai no mercado ou juntar-se aos outros membros da
família no
makhazi
ou trabalho na machamba infantil. A mulher nunca ajuda o marido na pesca e
muito menos no mercado, porque não é o lugar dela. Mas esta regra existe para mulheres casadas,
elas são ricas, têm marido, então não precisam fazer trabalhos de homens, por isso não vendem
no mercado, mas podem ir fazer compras. A mulher solteira pode vender no mercado, porque ela
é pobre, não tem homem que faça o trabalho para ela, tem que se sustentar, por isso pode fazer
trabalhos de homens. A mulher pobre desenvolve músculos, porque também pode pescar no mar,
se assim desejar, mas não se mistura com os homens. As solteiras podem reunir-se e trabalhar
juntas. Portanto, os músculos criados no trabalho de pesca, por puxar a rede ou remar, são um
sinal de que a mulher não tem marido.
Nesse sentido, se pode observar que quando o homem desenvolve músculos, isso é um
sinal de prestígio, trata-se de um homem que trabalha, mas quando é uma mulher, essa
característica identifica também o seu estado civil. Algumas podem gostar de ser chamadas de
maria-homem
ou
dama de ferro
, outras se irritam com essas nomenclaturas. As que gostam,
dizem não ver problema nisso, quem sabe assim possam facilmente encontrar algum homem que
se interesse por elas, e essa nomenclatura,
a priori
, define que estão livres para uma relação. As
que não gostam, acham que é uma forma de discriminação, porque assim como o homem
orgulha-se por desenvolver músculos, elas não os desenvolveriam se não tivessem que fazer as
mesmas coisas que os homens para sustentar-se.
Aqui pode ser estabelecida uma relação com o que apontou Bourdieu (2006), em seu
estudo sobre o camponês e seu corpo, realizado na região em que passou a infância, Béarn, no
120
Sudoeste da França. Segundo Bourdieu, os jovens do campo sentiam-se constrangidos na
presença de outros jovens, urbanos, em um baile local. Os jovens do campo sentiam-se
desvalorizados porque em seus corpos traziam traços do modo rural, “encamponizado” (
em-
peasanted
). O autor fala que esses jovens ficavam sem dançar, ou dançavam apenas uma música,
porque pela inabilidade e o peso de seus pés - um pouco à maneira dos idosos quando dançam -,
não eram flexíveis e não podiam acompanhar o ritmo corretamente. É como o caso de ser
chamada de
maria-homem
ou
dama de ferro
, que algumas solteiras não gostam, porque isso
mostra a descrição do seu corpo pesado, cheio de músculos desenvolvidos. Mas na zona urbana,
ser dama de ferro é uma categoria almejada por muitas mulheres, o significado é o mesmo da
zona rural, mas aqui mostra que ela é trabalhadora, forte e que tem que ser encarada com bastante
seriedade, porque ela não está para brincadeira, enquanto que
maria-homem
é uma categoria
rejeitada também na zona urbana, pois o nome insinua que ela pode ser homossexual.
Com estes fatos apresentados ao longo deste capítulo, as famílias rurais que residem
neste distrito apontaram a fome como a principal causa de mudança de comportamento por parte
dos homens e mulheres, visto que a migração para outros lugares ou para centros urbanos faz
com que a população diminua dia após dia. Muitos, para não ausentar-se definitivamente, optam
pela dupla residência, em Mogincual e na cidade. Essa movimentação de pessoas é instável, com
frequência não se pode contar mais com alguém que era importante na comunidade. A fome é
agonizante, porque os poucos solos agricultáveis existentes estão ficando cada vez mais pobres
de nutrientes e as famílias não têm muito a colher no final de uma safra. Trazendo as reflexões de
Maria do Carmo Soares de Freitas (2003), no seu estudo “Agonia da fome”, realizado no Brasil,
temos que a fome não se reduz ao conglomerado de sensações físicas, mas àquelas vividas pelo
indivíduos e por outros, em uma intersubjetividade de apreensão do mundo, em meio às
ambiguidades, em um nível de pré-reflexão. É essa sensação vivida pelas famílias de Mogincual,
a fome por si sentida e a do outro, em uma região carente de alimentos, amplia esse drama,
porque a reciprocidade é a base da socialização entre as famílias. Por isso a autora salienta mais
adiante que os significados da fome perpassam a imagem corpórea de carência de comida, indo
ao encontro de outras concepções sustentadas por um sistema de símbolos gerados pela
insegurança concreta de alimentar-se. Outro fator mencionado foram os ciclones e as chuvas
fortes, que, ano após ano, destroem todas as plantas que estiverem nas machambas, nada
consegue ficar de pé, mesmo a mandioca, cuja tolerância a tempestades é confiável.
121
muito tempo, quando as coisas aconteciam [chuvas fortes, ventos], a mandioca
constituía a base de salvação para a alimentação das pessoas. Nesse tempo, a fome
que existia era controlada porque produzíamos mandioca e, com o pescado, dava
para viver e trabalhar. Mas agora, basta nos trazerem batata-doce de polpa
alaranjada, nada sai na machamba e o pouco que se consegue tirar de lá vai
exclusivamente para a alimentação. (Hanifa)
A senhora Hanifa desabafou sobre a situação que se vive em Mogincual, de uma terra
próspera para uma terra de sobrevivência. Apesar de ser uma zona costeira, a agricultura era a
base da reprodução social. Conseguiam produzir para autoconsumo, enviar para seus parentes na
cidade, realizar todas as festas tradicionais, fortificar as relações de troca. Mas agora a pouca
comida só dá para a alimentação da família, e mesmo assim não chega. O desabafo dela continua:
Outra coisa, eles trazem-nos batata-doce de polpa cor alaranjada para comermos.
Isso também, os técnicos agem de fé, eles sabem que aquilo provoca doenças e
nos dá cansaço, mas mesmo assim insistem em trazer para nós, por isso nunca chove
[...] Mas infelizmente temos que comer, porque é isso que existe. (Hanifa)
O apoio dado pelos técnicos ao prover a batata-doce de polpa alaranjada está sendo
visto como uma atitude de má fé, ou seja, para eles, os técnicos poderiam fornecer outro alimento
e não a batata-doce. Nos dias que vão à pesca, porque às vezes não m mais nada em casa para
comer, vão com fome, porque acreditam que se comerem a batata-doce não apanharão nenhum
peixe, a rede pode rasgar, a canoa virar e corre-se o risco de morrer afogado.
A questão de azar com batata-doce é de muito tempo, minha avó conta que depois que
tudo ficou conversado para eles casarem, choveu tanto até que o casamento foi adiado.
Outra vez, eu ia para a caça nas pequenas matas, para apanhar algum coelho, mas
veja o que me aconteceu, apareceu um leão, que eu fiquei sem saber de onde surgiu,
porque aqui não existem leões ou animais muito grandes. (Yassine).
Estes relatos parecem uma demonstração clara da reprodução das mensagens de geração
em geração, que vai construindo as linhas orientadoras daquela comunidade. Às vezes, no
princípio da época chuvosa, até podem aparecer sinais de um bom ano de chuvas, mas depois
nada acontece, as pessoas colocam as sementes para ficarem torradas ao solo. Nada germina, e
isso vira um ciclo, as sementes compradas ou também distribuídas pelo governo são perdidas no
solo e a comida, que podia ajudar, não pode, por ser batata-doce de polpa alaranjada.
Este distrito tinha de tudo, mas agora só ficaram pessoas magras, o pior é que as nossas
mulheres também ficaram magras, doentes e tudo de errado você encontra aqui. Não
chove, não se trabalha [...] Enfim, para resolver isso é começar do zero, instaurar tudo
de novo, fazermos as nossas festas com regularidade como fazíamos, aí tudo pode voltar
à normalidade, podemos ser até como outros distritos, como Malema, que produz muito.
(Marufo)
122
O senhor Marufo aponta a possibilidade de retorno da realização das festas tradicionais
como saída para o restabelecimento da normalidade do distrito, pois com a batata dessa variedade
não se pode fazer festa nenhuma. Ela entrou no distrito, à semelhança de outros produtos, em um
programa de melhoria de nutrição infantil, mas as pessoas não tiveram o cuidado de estabelecer
limites no envolvimento deste programa como outros habitantes de outros distritos fizeram,
começaram a misturar tudo e violaram os regulamentos culturais.
Existe uma relação entre o tamanho do corpo de uma mulher e o bem-estar, também
relacionado a todas as qualidades culturais a ela atribuídas. As mulheres de Murrupula são
gordas, mas as de Mogincual não. Uma mulher gorda é sinal de bons tratos, sinal de presença
feminina, e isso honra ao marido. Os homens se orgulham de ter uma mulher gorda, porque
isso marca diferença, os homens podem ser magrinhos, isso não importa, porque não valem nada.
Por isso o senhor Marufo, fazendo uma comparação com a situação das famílias em Murrupula,
afirma que podia ser o mesmo com Mogincual, mas as pessoas se envolveram demais com a
batata-doce de polpa alaranjada e provocaram a ira dos seus ancestrais, que podem estar por
detrás de tantas desgraças no distrito.
A batata-doce é um sinal de baixas de produção. Quando os técnicos trazem a batata-doce
para distribuir, as pessoas ficam sabendo que se é que os céus davam um sinal de chuva, já não
vai chover mais e a partir daquele momento ou nos próximos dias a situação vai piorar. Portanto,
funciona como um sinal de alerta e embora as pessoas a recebam angustiadas, sabem que se não a
receberem perderão apoios futuros. Por isso, quem tem parentes fora de Mogincual já vai
avisando de que nos próximos tempos vai precisar de alguma ajuda ou a pessoa terá que se
deslocar para viver um tempo na casa do parente fora de Mogincual.
Apesar de existirem diferenças de localização geográfica que podem condicionar a
regularidade das chuvas, a leitura no que tange à representatividade da batata-doce é a mesma,
que um dos distritos se saiu bem e outro deu-se mal em termos de condução da intervenção. Uma
situação semelhante na França é descrita por Ortiz (1989). Durante a Terceira República até 1870
a maioria das pessoas habitava a zona rural e encontrava-se afastada dos destinos nacionais, e era
comum falar-se da existência de duas Franças: uma civilizada, culta, herdeira da revolução e do
espírito iluminista e outra selvagem, rude, avessa às transformações, conservadora, com um
modo de ser característico do
Ancien Régime
. Portanto, à semelhança da descrição trazida pelo
autor, o mesmo também se pode afirmar para estes dois distritos moçambicanos. Por produzir
123
batata-doce, Murrupula pode ser considerado tal qual uma França comprometida com os destinos
nacionais, enquanto que Mogincual, como sendo uma sociedade afastada deles, o que não
corresponde à verdade cultural, visto que cada distrito se posiciona em função das suas
capacidades de agir, sem mostrar diretamente o desapego pelo programa de massificação de
produção e consumo de batata-doce de polpa alaranjada.
Com todo este emaranhado de regras culturais que apresentei ao longo deste capítulo,
cabe, seguindo a proposta de Goody (1995), afirmar que as famílias residentes em Mogincual têm
a pesca como a principal atividade, em que se materializam enquanto unidade de produção, o que
difere das famílias residentes em Murrupula. A manutenção das regras constitutivas de sua
cultura tem conhecido um desafio por conta de que, embora as relações de sociabilidade que
definem os mecanismos de distribuição e consumo de alimentos se mantenham, não obstante
existem as festas tradicionais que não acontecem como deveriam, segundo os depoimentos
apresentados ao longo deste capítulo.
No próximo capítulo aprofundo as questões dos rituais, que o a fonte de perpetuação
das normas de conduta social e alimentar daquelas famílias. Procuro trazer à tona, através da
descrição, a essência e os objetivos de cada uma na formação do “homem novo”, para que ele
adquira as mesmas capacidades de discernimento e maturidade do “homem velho”.
124
7 FESTAS TRADICIONAIS
Como vimos no capítulo anterior, a situação vivida pelas famílias rurais nos dois
distritos, face à produção e consumo da batata-doce de polpa alaranjada, alterou algumas normas
culturais, principalmente no que diz respeito ao trabalho na machamba, onde a família se
materializa enquanto unidade de produção. Vimos que, para as famílias de Murrupula, embora a
batata-doce de polpa alaranjada tenha exigido mais tempo do chefe da família dedicado aos
trabalhos nas associações, a rotina familiar e as responsabilidades culturais não são afetadas. Mas
o mesmo não se pode afirmar para as famílias que residem no distrito de Mogincual, pois se
acredita que, por motivos de descumprimento dos princípios culturais que regem a batata-doce, a
atividade da pesca passou a assumir o lugar do trabalho da machamba familiar, por conta de que
a machamba já não produz o suficiente para a família se materializar enquanto unidade de
produção, consumo e distribuição, que é perpassada pela realização de festas tradicionais.
No contexto geral e como mandam as regras, as festas tradicionais são antecedidas de
petição aos espíritos para que tudo corra bem. Esta petição, para se proceder a adoração aos
ancestrais, é feita na presença dos líderes comunitários, que são régulos da comunidade, os chefes
de clãs e de famílias. Só depois disso pode-se festejar tranquilamente, com segurança de que tudo
foi feito adequadamente, pois não há como falhar, basta se respeitar as normas estabelecidas.
Não festa sem comida. Todas as festas devem ter algo para comer, senão, não se
pode falar de festa. Encontrei comida também nos encontros entre parentes, entre pessoas amigas
ou que pretendiam conhecer-se ou estabelecer alguma relação. Todas as pessoas fazem isso, é
uma forma de reforçar o convite. A comida é, portanto, um meio de comunicação entre as
pessoas físicas, pessoas de diferentes classes sociais, os de fora e os de dentro da comunidade. É
um meio de ligação fraternal entre as famílias e também entre os mundos visíveis, dos humanos,
e os mundos não visíveis, dos espíritos dos ancestrais, que são a garantia da sobrevivência
cultural. Se a pessoa não gosta de alguém, não oferece nada para comer e não dedica tempo para
falar com ela. Do mesmo modo, na relação com os que vivem no invisível, não oferecer comida
durante o ritual é um sinal de que já não se quer saber dos laços e da comunicação com os
antepassados, está-se rompendo com eles.
A partir de agora, descrevo as festas tradicionais da zona estudada, nas quais também
tive a oportunidade de participar no distrito de Murrupula, todas elas envolvendo comida. São
125
elas:
mulipo
,
natiri
e
satakha
. Para além destas existem os mencionados
imwali
e
alukhu
, que
são ritos de iniciação femininos e masculinos, respectivamente. No distrito de Mogincual, das
poucas festas tradicionais que se realizam,
alukhu
e
imwali
fazem-nas somente no final do ciclo
de produção, para coincidir com a colheita. Essas festas são as únicas que são mantidas ali,
porque as crianças precisam ser instruídas para ascender à categoria de adulto, conforme veremos
adiante.
7.1
Mulipo
Muitas vezes, quando pensamos em ritual, duas ideias nos vêm à mente: por um lado, a
noção de que um ritual é algo formal e arcaico, quase que desprovido de conteúdo, algo
feito para celebrar momentos especiais e nada mais; por outro lado, podemos pensar
que os rituais estão ligados apenas à esfera religiosa, a um culto ou a uma missa.
(RODOLPHO, 2004, p. 139)
As festas sempre são realizadas por algum motivo cultural, isto é, não ligado somente à
religiosidade, se consideramos que toda religiosidade tem santos e deuses envolvidos como
principais venerados. No entanto,
mulipo
e outras festas que iremos ver mais adiante são
invocadas ao antepassados, considerados veículos para falar com Deus. Não são feitas para Deus
como personagem principal, mas sim para os antepassados. A festa de
mulipo
é realizada para
agradecer aos espíritos pelo fato deles terem tornado possível trabalhar a terra e produzir sem
problemas. Essa festa é conduzida pelo chefe da família, que tanto pode ser um homem ou uma
mulher, o importante é que deve ser chefe da família, porque foi ele ou ela quem invocou a ação
dos espíritos e foi quem recebeu, através dos sonhos, as instruções de como proceder na
condução da machamba. Este ato constitui a consideração de três aspectos: que o chefe se
preocupa com a família, é aceito pelos espíritos dos ancestrais e é abençoado.
Comida é tudo para nós. Se tu não tiver comida, nada pode fazer, porque tudo
depende dela. (Hámido)
Sem comida, embora não possa morrer de fome porque a gente se ajuda, vai ficar
sem obter aquilo que a comida pode dar, por exemplo, se você produziu milho,
pode trocar com seu vizinho algo que você precise de comer diferente. O vizinho, até
pode te dar aquilo que não tens, mas a quantidade é menor do que se tivesse que
trocar. (Afae)
126
Esses depoimentos mostram o quanto representa uma família ter conseguido produzir o
suficiente para seu sustento. É focalizando na família como núcleo camponês, em que tudo é
organizado e celebrado através da comida que, na opinião de Wedig (2009), no seu trabalho
“Agricultores e agricultoras à mesa”, realizado no Brasil, essas festas podem ser entendidas como
aquelas em que se atualizam os significados do parentesco e da família. Dessa forma, a alegria
dos membros da família e outros parentes é estabelecida pelos laços fraternais reforçados na festa
de
mulipo
. A honra não é dada apenas para a família que consegue produzir, mas sim ao nome da
família, o sobrenome ou apelido. Nessa festa, apenas os membros da família e os parentes têm
obrigatoriedade de estarem presentes. Os vizinhos tanto podem ser convidados como não. O
chefe da família, quando sente que alguma plantação está pronta, leva primeiro uma parte para
casa, que a esposa deverá cozinhar para o deleite dos membros da família. Este constitui o
primeiro passo da festa do
mulipo
. Os membros da família são os que fizeram tudo, ajudaram o
chefe durante os trabalhos na machamba, então devem ser os primeiros também a comer, em
família, o resultado desse trabalho. Vivem lado a lado as angústias do trabalho na terra, com
todas as implicações e riscos que isso pode significar no caso de falta de produção. Por isso o
gesto do primeiro consumo é circunscrito apenas aos membros da família. Serve também de teste,
para ter certeza de que sim, a produção está pronta, e que podem ser chamados os parentes, para
juntos comemorarem a vitória na campanha agrícola daquele ano.
Na segunda fase, é comunicado aos convidados e parentes o dia em que tal encontro
festivo se procederá. Por regra, realiza-se sempre na casa da família que convida. É feita a
colheita em quantidade suficiente para alimentar a todos os que estarão presentes na festa, mas
tomando em consideração que não pode sobrar nada: deve-se calcular que seja suficiente apenas
para o consumo naquele dia. Se existir alguma sobra de comida, isto é motivo das pessoas
continuarem a se deleitar até que não sobre nada. Por conta disso, várias são as vezes em que o
mulipo
leva mais do que um dia.
Mulipo da minha casa tem que levar no mínimo acima de um dia, porque na minha
família sempre é assim, somos fortes, temos comida. (Hámido)
Nesta fala do senhor Hámido, temos a relação entre o tempo de duração do
mulipo
com
a força da família: quanto mais tempo a festa durar, significa que a família produziu muito nesse
ano. O mesmo acontece quando se convidam, além dos parentes, os vizinhos, pois se presume
que a produção foi muito boa em termos de quantidade. A duração do
mulipo
tem, portanto,
127
relação com a capacidade produtiva da família. O posicionamento do senhor Hámido corrobora
com o que observou Rodolpho (2004), que os rituais concedem autoridade e legitimidade quando
estruturam e organizam as posições de certas pessoas, os valores morais e as visões de mundo.
Portanto, constitui uma honra para o chefe ter conseguido coordenar as atividades, o mulipo é um
símbolo de prestígio na comunidade, representa um espaço conquistado, que vale uma opinião
nos processos de tomada de decisão. A família colhe um pouco de tudo que produziu naquele
ano, excetuando a batata-doce, que não é contada como produção e nem como comida. E, ainda,
nessa festa para agradecer aos ancestrais, a batata não deve mesmo nem ser tocada, para que o
processo seja abençoado.
As mulheres responsabilizam-se pela cozinha, enquanto que os homens
responsabilizam-se por trazer os produtos da machamba, pela busca de lenha e arrumação do
fogão. Essas mulheres, que em regra geral devem fazer parte da família e não dos convidados,
sempre serão as primeiras a experimentar a comida, que em seguida será servida para os homens.
Como tudo significa inauguração e agradecimento, elas também iniciam o consumo da comida
agradecendo pelo sucesso da cozinha. Os convidados, que geralmente são vizinhos e o chefe da
comunidade, servem para testemunhar, não têm envolvimento em nenhuma fase da festa, apenas
na hora de servir-se para comer e beber. Nada se come cru, tudo é assado ou cozido ou as duas
coisas juntas, porque isso demonstra respeito para com a comida, o ser humano deve comer
alimento que passe pelo fogo. Esta interpretação das famílias estudadas nesta pesquisa nos parece
estar relacionada com a discussão trazida por Lévi-Strauss (1979), no seu trabalho “O triângulo
culinário”, que afirma ser formado pelas categorias do cru, do cozido e do podre, sendo que o
cozido é uma transformação cultural do cru, enquanto o podre é sua transformação natural. Como
o homem é o único animal que precisa de fogo para preparar os alimentos, a cozinha representa a
necessária articulação entre natureza e cultura, daí que, sendo a cultura primordial para as
famílias rurais estudadas de Nampula, ela aparece ligada à mulher. Outro aspecto a considerar
nas famílias estudadas nesta pesquisa é que tudo para elas depende da orientação dos espíritos
dos ancestrais, que moldam a cultura local. Por isso o consumo de comida fresca ou saladas é
descrito como preguiça de mulher.
Na festa de
mulipo
o chefe da família demonstra seu agradecimento e prestígio perante
os parentes e isso significa que ele ou ela é um homem ou mulher aprovado, porque senão nada
disso seria possível.
128
Se os espíritos não forem contigo, nada pode fazer. Mesmo trabalhando numa boa
terra, ela não vai produzir. (Owazo)
Meu vizinho disse que não precisava fazer mulipo, tempos depois a produção dele
começou a baixar, ficou desgraçado e no fim arrancaram-lhe a mulher, ela saiu e foi
se casar com outro. (Ntary)
Como vimos, o fato de ter mulher significa que se tem trabalho para alimentá-la. O
vizinho do senhor Ntary perdeu a esposa porque a produção dele começou a baixar, por isso não
podia continuar com a mulher naquelas condições, pois a mulher não pode sofrer privações. Isso
tudo surgiu depois que ele deixou de fazer
mulipo
para agradecer aos espíritos dos ancestrais que
o ajudavam na sua produção, ignorando o princípio respeitado pelo senhor Owazo. No fim da
festa, a família agradece a participação de todos e comunica em breves palavras qual será a
quantidade esperada de produção e o que será feito, qual o destino que a família pensa em dar
para cada produto apresentado. Isto faz com que, se algum parente ou vizinho souber de algum
comerciante ou alguém querendo trocar, se possa encaminhar a venda ou a troca em função do
desejo anunciado no final da cerimônia. Existe um mercado tradicional bem forte e estabelecido
dentro da comunidade para esse fim. Todas as comunidades relacionam-se dessa maneira, cada
um sabendo o que o outro tem para vender e trocar. O bom sucesso produtivo demonstrado pela
festa de
mulipo
e o tempo de duração constituem parâmetros de aprovação dos espíritos, da
família, entre os parentes, da vizinhança e da comunidade, porque o nome do grupo estará
engrandecido.
7.2
Imwali
São festas especificamente dirigidas e realizadas por mulheres. É um momento de
euforia feminina na comunidade quando se organizam e se conduzem esse tipo de festa
cerimonial. Pois é nessa festa que uma ou mais moças ascendem a mais um escalão de
maturidade, as mais velhas passam a contar com mais uma no grupo das mulheres que podem
opinar ou conduzir um bom lar, e será um exemplo para a família se ela assim assimilar
corretamente todos os valores transmitidos durante a instrução. É um ritual que consiste em
submeter as moças a uma escola cultural. Desde o início da primeira menstruação, ela estará
contando mais duas fases importantes na sua vida, isto é, esta atividade é feita na vida da moça
129
pelo menos antes que ela se case e forme um lar. A primeira vez é realizada quando a moça entra
na primeira menstruação. Ela é submetida a um período de dois a três dias para ser esclarecida
sobre a aparição daquele fenômeno e quais são os cuidados a ter, desde a higiene, gravidez
indesejada, que é indecente para ela e a família, os tipos de brincadeiras a considerar e com que
grupo de pessoas podem ser feitas. É explicado a ela o tratamento antes e depois da menstruação,
as limpezas corporais e o modo de esconder os próximos casos de menstruação.
A gravidez indesejada não é bem-vinda na família, podendo levar a moça a ser
deserdada e até amaldiçoada, pois não merece a honra de pertencer à família, significa
desrespeito, deslealdade para com os pais, os parentes e as mestras de cerimônias. O mesmo não
acontece com o moço que a engravidou, visto que, culturalmente, a responsabilidade é atribuída à
moça. Wedig (2009) observou situação semelhante, quando descreve que a partir da
“naturalização” dos papéis atribuídos a homens e mulheres operam-se, segundo a autora,
desigualdades que, em muitos casos, têm significado a subordinação das mulheres. Para este
caso, conforme manifestação de entrevistados, a ideia é que “o homem não vale nada”, cabe à
mulher proteger-se, dada sua “natureza fraca” e pelo papel cultural e social que ela representa na
geração da família. Nessa fase, a moça deixa de brincar de qualquer maneira, pois está
ascendendo à maturidade, deve brincar com moças da sua faixa etária, nunca com homens e
nem com criancinhas, porque não faz parte desse grupo. Deve brincar também com as mais
velhas, para ir assimilando as regras da sociedade e da cultura em que está inserida e é instruída a
obedecê-las como sinônimo de grandeza e de vida. Quem obedece às instruções terá maior
longevidade e quem desobedece fica infeliz, por causa da maldição, e pode reduzir o seu tempo
de vida. A ideia é que as mais velhas conhecem as origens e os espíritos dos ancestrais instruem-
nas durante o sono sobre o que fazer e como as mais novas devem proceder, por isso sua
desobediência tem consequências graves, porque não é apenas a uma pessoa que se estará
desrespeitando, mas sim a todo o grupo de seus ancestrais. Na verdade, o dever de obediência aos
mais idosos é básico para jovens de ambos os sexos.
Na segunda fase, depois que comece a namorar, que por regra é com o consentimento
dos pais, a moça, juntamente com o rapaz, são submetidos a outro ritual, também de dois a três
dias, no qual a instrução concentra-se sobre o lar que, possivelmente, no futuro irão formar. Não
importa se o marido tenha passado pelo
alukhu,
que veremos mais adiante, isto vale para os
dois, se estiverem namorando. Mas a moça pode ser submetida sozinha a esta fase, se ela não
130
estiver namorando. É tratado, sobretudo, o que diz respeito à relação entre o homem e sua
mulher, os cuidados e responsabilidades distribuídos para ambos, as crianças e as relações com os
vizinhos e familiares. É uma fase em que tudo é bastante aprofundado e exemplificado na prática,
de modo que ela ou os dois, em caso de necessidade, não estraguem ou façam mal o que foi
ensinado, o que pode constituir motivo de divórcio, de serem criticados e envergonharem os pais
e familiares, inclusive as mestres de cerimônias da adolescente. Se isso acontecer, pode-lhe custar
repetir a sessão, desta vez tudo acrescido de punições, que vão desde o aumento do tempo de
instrução ao trabalho considerado “pesado” ou de “risco”, próprio aos homens. Na terceira fase,
ela é instruída sobre aspectos que dizem respeito à morte, gestão de conflitos na família e na
comunidade, seu papel enquanto mulher dentro da família e seu papel no processo de tomada de
decisão. Esta fase, por norma, dura de um a dois dias, se ela for bem educada e não tiver
transgredido nenhuma regra desde a primeira fase. Normalmente o tempo que leva entre a
primeira e a segunda etapa varia de 5 a 10 anos, condicionado pelo aparecimento de algum
homem interessado para o casamento. A passagem da segunda para a terceira fase é realizada
depois de muitos anos, por regra geral depois da mulher ter tido filhos, e se for uma filha, que já
tenha passado pelo menos pela primeira fase do
imwali
, e se for um filho, deverá ter passado pela
cerimônia de
alukhu
. Uma mulher que não passar por estas etapas não é digna de se expressar no
meio das pessoas, de casar-se e de realizar tudo que diz respeito a uma mulher, exatamente por
ser considerada ainda uma criança. Passar por todas essas etapas condiciona a participação da
moça nas instruções dos parentes vindouros, ninguém participa nem assiste enquanto não
completou as fases e somente participam mulheres, os homens não podem aproximar-se durante a
realização destas festas.
O serviço de chefes, da cozinha, de sentinelas ou seguranças é todo feito por mulheres,
os homens não m nenhum papel, a não ser o de permitir que suas esposas passem o tempo todo
e participem nessas festas. É um momento em que o ser feminino fala ainda mais alto, esse tempo
merece e deve ser usado exclusivamente por ela. Os alimentos priorizados são, com frequência,
os mais rápidos de se cozinhar, como arroz,
caracata
, verduras e carnes de animais domésticos,
pois elas não querem perder tempo procurando comida nem cozinhando. Nas refeições, sob o
risco de estragar tudo, não pode e nem deve ser incluída a batata-doce de polpa branca nem a
alaranjada, ainda que seja um alimento de fácil preparo e cozimento.
131
As mulheres organizam-se de tal modo que cada uma ou o grupo delas sabe o que tem
que fazer e quando, funcionando como um sistema, todas têm em mente suas responsabilidades e
concorrem para o sucesso da festa de
imwali
. As mestras de cerimônia são as pivôs do saber, no
sentido que elas conhecem cada estilo de moça por meio das atitudes ou comportamentos
descritos ou observados antes de entrar no ritual, o que proporciona a montagem de estratégias e
metodologias de como lidar com cada caso. Sardan (1995), no seu trabalho intitulado
“Anthropologie et développement essai en socio-anthropologie du changement social”, observa
que os conhecimentos são recursos para a ação, quem tem conhecimento pode fazer e desfazer o
que quiser, pois os conhecimentos lhe dão o poder de explicar-se de forma tal que o que faz
parece lógico e certo. Por isso as mestres de cerimônias nunca são questionadas sobre o seu
trabalho ou as formas como deveriam conduzir o ritual, elas detêm total autonomia para decidir
tudo sobre a condução de
imwali
. Isso vai ao encontro d o que diz Neves (1998), no seu trabalho
“Para pensar outra agricultura”, que saber é poder, portanto, quem sabe detém um certo poder e
autonomia para fazer o que achar melhor, pois os outros não sabem.
Neste caso específico, as mestras de cerimônia mandam em tudo e em todos, deverão
ser obedecidas em seja o que for, são como um líder em sua comunidade, que por ser mais
idoso detém o conhecimento que o torna experiente, e por isso é considerado a pessoa mais
importante para lidar com as adversidades da vida local. As mestras de cerimônia são as
formadoras, instrutoras ajudadas muitas vezes pelas avós das moças. As tias diretas e a mãe
responsabilizam-se por cozinhar, enquanto que as demais parentas e vizinhas convidadas
participam respondendo às canções entoadas, ajudando nas danças e em alguns conselhos, se for
uma experiência específica e nenhuma das mestres de cerimônia estiver melhor habilitada para
conduzir ou falar. Os pais, tias e parentes diretos é que descrevem as características da moça que
vão ditar a forma ou a metodologia a ser seguida na instrução, e várias são as vezes em que a
moça pode ser indiciada por falta de respeito ou desobediência e isso requer que as mestres de
cerimônia concentrem-se mais nesses pontos levantados pela família. Esta festa não tem um
período específico para acontecer, basta que, na comunidade, exista uma moça com as condições
exigidas, e a família parte de imediato para a organização do evento.
132
7.3
Alukhu
Evento organizado e conduzido por homens uma vez por ano. Para coincidir com o
calendário escolar e fazer com que os rapazes o fiquem prejudicados, eles são submetidos a
este treinamento nos finais de novembro ou princípios de dezembro e a instrução termina em
janeiro ou fevereiro, de modo a permitir que os rapazes voltem a estudar. É uma festa dos
homens, e nenhum homem com passagem neste processo deve ficar de fora da instrução dos
outros. É uma ordem implícita, o fato de participar faz com que ele revise o que aprendeu, pois
pode ter se esquecido de alguma questão.
Durante esse período os jovens são privados de tudo que gostam de ver, fazer, ouvir,
etc., até dos parentes, ficando na maioria das vezes convivendo com pessoas estranhas, que nunca
viram. O que as mulheres aprendem em fases, aqui os rapazes aprendem nesse período longo,
com práticas de caça, pesca, mortes, relações sociais com outros povos, na comunidade, estímulo
à valentia-defesa por valores culturais locais, empenho e dedicação pela causa comunal e depois
individual, etc. As pessoas não matam, mas simulam uma situação de alguém sendo morto por
doença ou outro problema qualquer, como na caça com animais ferozes. É uma instrução
completa e o moço que não participar é considerado criança e sem dignidade para fazer
absolutamente qualquer coisa, até mesmo casar-se, pois, exatamente por ser considerado criança,
não está preparado. Como argumenta Rodolpho (2004), cada fase da nossa vida está
culturalmente representada nos ritos de passagem. Portanto, nunca se vai para outra fase
enquanto não passar por um ritual: é uma forma de dizer que nunca se é, enquanto não passar por
um ritual. A autora, trazendo exemplos de nascimento e morte, afirma que um bebê não é
propriamente vivo”
, até passar por um ritual de nascimento, e um cadáver não é
propriamente
morto”
, até passar por ritos de sepultamento. Por isso, aqueles rapazes só poderão participar e ter
um espaço de opinião na sua sociedade se passarem por um ritual de amadurecimento.
Este é um dos motivos que a comunidade alega para que os homens estejam à frente na
relação marido-mulher, assumindo que o tempo maior de instrução lhes dá a capacidade de poder
lidar com trabalhos considerados “pesados” e de “risco”, porque assim são instruídos e as
mulheres não. Bourdieu (1995), explicando a dominação masculina a partir do conceito de
habitus
, diz que a violência simbólica impõe uma coerção do dominado sobre o dominante, que é
reconhecida por este em um jogo de poder, e exige do dominado adesão, que por sua vez está no
133
inconsciente, naturalizado pela sociedade. Fica claro, sob o ponto de vista de Bourdieu, que esta
dominação se manifesta no dia a dia das pessoas, quer consciente ou inconscientemente, portanto,
está incorporada aos hábitos, pois as ações justificadas desde muitas gerações sedimentaram
inquestionavelmente as posições dos sexos entre forte e fraco. Assim, as mulheres são excluídas
dos jogos de poder e dos processos de tomada de decisão que envolvem coragem, exatamente
porque são consideradas incapazes de fazer mal.
As mulheres, quando realizam
imwali
, fazem tudo sozinhas, exceto quando solicitam
apoio em um trabalho específico, por exemplo, cortar e transportar a lenha para o fogão. Durante
o
alukhu
as mulheres apóiam na cozinha e os homens transportam a comida para o acampamento
masculino, já que a mulher não pode chegar nem perto de lá. As mulheres que têm filhos
submetidos a esta instrução só podem falar com o filho e vê-lo no fim desse período de instrução,
o pai às vezes pode deslocar-se para para visitar o filho e saber se está tudo bem, porque tudo
fica a cargo de pessoas com as quais os moços tiveram pouco ou nenhum contato. As famílias
nomeiam padrinhos para cuidar dos filhos, já que eles têm que ficar privados de tudo que gostam.
Durante esse tempo, tudo que se come é assado ou cozido, animais domésticos, de caça, pesca,
etc., mas menos a batata-doce de polpa branca ou alaranjada, por ser considerada abominável.
Os mestres de cerimônia são os homens responsáveis por preparar a boa instrução dos
rapazes durante esse período fora de casa. Ficam reunidos em zonas muito distantes da
comunidade, muitas das vezes ao longo de grandes rios ou serras, porque é onde vão aprender
a coragem que precisam como homens confiáveis para a família e a comunidade. Aprendem a
caçar, e cada jovem deverá no mínimo ter caçado um animal, que servirá de testemunho cabal da
sua maturidade dentro do grupo de
alukhus
. Mais tarde isso será contado aos pais, principalmente
para a mãe, provando que o filho é realmente grande e ela pode confiar nele. Esta demonstração
de maturidade é feita dias antes do encerramento. Os pais são chamados a uma formatura, em que
cada rapaz terá a oportunidade de falar com seus pais a respeito do que aprendeu e do que ele
nunca mais fará na qualidade de adulto. Muitas vezes, são brincadeiras infantis, por exemplo, o
moço pode dizer que nunca mais vai brincar com outros que não foram submetidos ao
alukhu
ou
nunca mais vai se negar a ir quando for mandado com os mais velhos e nem resmungar quando
for repreendido por alguma razão. É um verdadeiro juramento, os jovens prometem ser
obedientes aos pais e aos mais velhos da família e da comunidade, ser fiéis aos rituais que
marcam a cultura daquela comunidade e nunca contar para ninguém os segredos dessa instrução.
134
O ato de apresentação aos pais ocorre durante o período noturno, para permitir que as
mães não consigam ver o rosto dos filhos, mas sim apenas ouvi-los falar, dançar e cantar, pois as
mães devem ver os filhos no final da instrução. As mães preparam aquilo que o filho gosta de
comer e oferecem a ele, que está todo coberto de panos, e ela apenas distingue-o pela voz. Os
padrinhos ficam espalhados na hora da formatura. A ideia é que a mãe não reconheça o filho e
por isso mesmo erre na hora de dar o presente. Isso significa que o filho mudou mesmo, os
padrões que ela tinha como referência do filho o outros, e que ela deve aprimorar-se quando
regressar, pois o filho realmente mudou, já não é aquela criança. Mas o lado interessante é que se
a mãe acertar, isso revela que o padrinho não fez um bom serviço, mas como a instrução ainda
não terminou, pode se ajustar. A mãe ganha honras por ter acertado e um lugar dentro do grupo
de instrução do
imwali
, para ajudar as mestres de cerimônias e mais tarde ela pode chegar a ser
uma dessas mestras da festa. O padrinho cuja mãe acertou fica envergonhado e pode não ser
solicitado a participar nos próximos anos, pois será visto como um preparador fraco. Retornando
à discussão de Rodolpho (2004) sobre rituais de nascimento e de morte, encontramos aqui uma
semelhança quando a autora fala que essa transformação tem em seu período intermediário
geralmente a representação de um risco. Observando o
alukhu
, no caso em que a mãe acerta ou
reconhece o filho, isso significa que o filho ainda precisa de mais algum treinamento, algo que o
torne diferente do que era. Mas o autor salienta mais adiante que socialmente o indivíduo não
mais é o que era, mas também ainda não é o que será após o fim dos ritos. Por isso que, quando
se volta ao acampamento, o filho descoberto ou identificado pela mãe terá que passar por mais
algum treinamento específico até que tudo esteja acertado para a fase final, o término do
alukhu
,
quando o indivíduo já será considerado adulto.
Este exercício marca o fim dos treinamentos práticos e, a partir daí, serão feitos acertos
de alguma coisa que não tenha ficado bem feita, como, por exemplo, quando a mãe descobre o
filho. Mais duas semanas, no máximo, depois da formatura e chegará o fim da instrução, quando
os rapazes, adultos, poderão regressar para casa, para o convívio familiar. A volta para casa é
antecedida por uma noite dançante e de instrução. Desta vez, é convidado um grupo diferente,
especializado naquelas questões que constituíram tropeço na exibição para as mães, e é feito o
fechamento de todo o processo. Este novo grupo vai dedicar-se, além das questões específicas
apontadas, a questões gerais, experiências vivenciadas dentro e fora da comunidade, regras
135
culturais, e a fazer um resumo de tudo em uma noite em que todos os familiares, parentes e
convidados passam em claro.
É uma euforia no dia seguinte, na confirmação de que de fato o filho retornou vivo,
porque alguma fera o poderia ter pego na caça, na pesca ou em alguma outra atividade instrutiva.
É um risco e uma tristeza enviar um filho para esta festa, que durante as aulas práticas podem
ocorrer acidentes, mas a festa é uma condição para ascender-se à maturidade. Se acontecer que
um rapaz seja ferido gravemente ou morto, as informações não chegam antecipadamente às casas,
as mulheres não devem saber que houve um acidente com o filho de alguém, mas o pai pode ter
conhecimento porque às vezes participa das práticas, ou pode ser informado pelo padrinho sobre
o sucedido. É de se notar aqui, que mesmo que o pai saiba, nunca deve informar à mulher que o
filho deles foi morto. Isso é para evitar sofrimento e angústia dela, que os outros terão que
conviver e conversar sobre
alukhus
nas suas atividades diárias enquanto eles permanecerem no
acampamento. Mas afirma-se que acidentes graves e mortes são um caso raro, porque é uma
atividade muito protegida, homens e ancestrais se envolvem para o sucesso dela.
Agora também
o governo envia soldados armados para evitar acidentes mortais”,
disse o senhor Wehane.
Todas as mães que têm filhos no acampamento se reúnem com frequência, pois a
responsabilidade da cozinha é delas, e para evitar que o acidente seja o assunto de fofoca do
momento, prefere-se ocultar e deixar a mãe que perdeu o filho comungar a felicidade do
momento com as outras.
É um momento ímpar, ninguém tem o direito de estragar essa emoção
dela ou de qualquer outra mãe, o filho voltará homem”
(Lopha).
O que o moço passou durante o acampamento não poderá contar nem mesmo a sua mãe,
a sua mulher, filhos e muito menos a moços que nunca foram submetidos ao ritual de
alukhu.
Falar é abominável, o moço que contar coisas que passou durante a instrução pode morrer ou
então um parente seu, ou pode acontecer algo de ruim para ele nunca mais esquecer, porque o que
se passou não pode constituir motivo de conversa com quem quer seja, exceto com os que com
ele estiveram no acampamento e mesmo assim de forma bem discreta ou durante outra temporada
de
alukhu
.
136
7.4
Natiri
Natiri
é uma festa pequena, simples, mas pode ter tamanho maior, dependendo daquilo
que o
natirante
disse ao invocar os espíritos dos seus ancestrais.
Natiri
consiste em uma aposta,
uma promessa sobre qualquer coisa que se pretenda que aconteça mas que nunca se espera
acontecer sem o envolvimento direto dos ancestrais. Pode ser uma promessa de chuvas,
casamento, maior produção, etc. A essência é que quem faz deve invocar abertamente ou de
coração, como, por exemplo, quando um homem diz:
se eu casar com a mulher que mais quero
faço uma bebida em tantas panelas de barro e beberei com meus amigos
, ou
vou oferecer um
sacrifício animal a um ancestral tal
. A ideia é que a partir daquele momento que se invoca o
nome do ancestral ele age como que um padrinho, interferindo com os deuses para aquele pedido
desejado acontecer.
Quando acontece, a emoção é tal que renova a ideia de uma existência espiritual que
acompanha, vê e ouve as lamentações e pedidos do seu povo. Prova de que os que morreram na
verdade existem, que em mundos diferentes, e fazem tudo por nós, nos veem, que nós não
podemos vê-los, apenas nos sonhos, quando vêm nos orientar.
Durante a cerimônia de confirmação de que realmente aconteceu o desejado, tudo
deverá acontecer como o natirante tinha orientado, obedecendo até os mínimos detalhes, caso
contrário o agradecimento para o seu padrinho que lhe tornou possível a realização do desejo não
será válido. E se algo não for feito adequadamente, o natirante pode sofrer as consequências, que
podem ser doença, perda material, enfim, um distúrbio como forma de o espírito do ancestral
invocado mostrar que algo não foi como predisse e que se deve repetir a cerimônia. A
comunicação com os ancestrais é por sonho. O mesmo acontece quando o natirante se esquece de
agradecer, pois algumas coisas podem acontecer muito tempo depois e alguém pode se esquecer
que fez a promessa. Os espíritos vão alertá-lo em sonhos e se ele ignorar o alerta, aí sim
começarão os castigos. É um tormento que não leva à morte, porque a ideia é lembrá-lo e o
tormento só termina quando de fato ele realiza de modo correto o que for instruído a fazer.
Quando fui atacado por um jacaré durante a pesca, os médicos tinham dito que não
existiam hipóteses de eu poder voltar a andar com as duas pernas, porque o corte era
muito profundo. Nisso fiz uma promessa dizendo que se o meu avô intercedesse para
que não fosse amputada a minha perna, faria limpeza na sua campa e iria chamar todas
as crianças da comunidade para uma grande festa em seu louvor. Passado algum
137
tempo, os médicos desistiram da ideia de amputar, porque a carne havia regenerado.
(Nihazo)
No caso de ser eleito um antepassado para interceder com o pedido junto dos deuses, o
natirante deverá preparar uma comida que era do gosto do ancestral, se não sabe pode recorrer
aos idosos que conheciam o prato específico que em vida ele nunca dispensava. Isto é uma forma
de mostrar maior consideração e respeito, não apenas fazendo o que realmente tinha prometido,
mas sim algo mais, que constitui uma forma de carinho ao antepassado, como se fosse fazer-lhe
uma surpresa boa. Tudo que se prepara deve ser consumido naquele momento ou no dia, não
pode sobrar nada. Sobre isso, Barbosa e Campbell (2007) observam, no seu trabalho “Consumo
nas ciências sociais contemporâneas”, que os objetos, bens e serviços que matam a nossa fome,
nos abrigam do tempo, saciam nossa sede, entre outras “necessidades” físicas e biológicas, são
consumidos no sentido de esgotamento. No caso estudado, consumir para não sobrar nada mostra
a satisfação das pessoas perante o que se consome, pois se sobras, significa que algo não
estava bem preparado, por isso as pessoas não conseguiram alegrar-se. Isso se verifica mesmo no
caso de um hóspede, ele deverá consumir tudo o que for servido para comer, caso contrário a
interpretação é que não gostou. Por isso, se por um motivo qualquer, a comida preparada sobrar,
deve ser dividida pelos presentes, mas não se devolver às os do natirante. Outros membros da
família podem até levar para guardar na casa deles e mais tarde servir em outra situação ou comer
em outro momento. Não é recomendado fazer
natiri
sempre: além de existir o risco da pessoa
esquecer, revela falta de iniciativa, preguiça, fraqueza, pois tudo faz e consegue com promessas.
Então quanto menos
natiris
a pessoa fizer melhor, dois ao ano é bastante. Por isso mesmo,
Sardan (1995), discutindo os critérios que definem as desigualdades no campo de disputas
sociais, afirma ser verdade que alguns que acumulam as desvantagens são marginalizados
praticamente desde o início. Este é um dos fatores que faz com que se considere que os bens ou a
vida digna conseguida não sobreveio através de apostas de
natiri,
mas sim através do trabalho da
terra, d que não se aconselha culturalmente as pessoas conseguirem tudo através de
natiri,
sob
pena de serem considerados fracas, e portanto indignas de serem membros da comunidade,
porque maculam a honra do grupo.
138
7.5
Satakha
Existe um período, regularmente marcado em cada ano, que as famílias dedicam
exclusivamente para adoração dos espíritos dos seus antepassados. Não se deve falhar, as
famílias que fazem parte do mesmo clã, se reúnem, marcam datas e juntam o que cada um pode
para contribuir para esse feito. Se existir um parente que não tem nada, alguém em seu lugar,
para marcar sua presença perante os espíritos que acompanham a família na obtenção de comida,
é uma forma de conseguir bênçãos, por isso todos têm que participar. Se alguém não participa,
significa que não existe, não vai ser contemplado como uma pessoa que precisa e merece ser
protegida. Algumas famílias mais apegadas a isso fazem dois tipos de
satakha
, a pequena e a
grande. A
satakha
pequena ou
satakhinha
é aquela que é feita por iniciativa pessoal, de livre e
espontânea vontade a pessoa decide fazer uma
satakhinha
para lembrar e agradecer aos seus
antepassados. Pode convidar vizinhos, parentes e amigos, é uma festa da pessoa e não da família
ou parentes como um todo, embora eles possam participar, não contribuem em nada para tal, pois
o assunto é mais restrito daquele indivíduo que decidiu fazer. Conforme Menezes (2006), no
estudo “Reciprocidade e economia moral”, feito no Brasil, o dar desinteressado implica em
receber desinteressado e isso resulta também em retribuir desinteressadamente algo de volta.
Observando aquilo que constitui a essência desta festa, com certeza, apesar de ser livre, a pessoa
espera algo em troca dessa generosidade desinteressada aos ancestrais. Duas situações são
importantes nesta festa de
satakhinha
, o fato de ser algo visível que envolve a pessoa, pois quem
faz
satakhinha
também é visível, mas oferece a alguém não visível, que faz as coisas invisíveis
acontecerem de uma forma visível. Na interpretação dos nativos é um gesto de comunhão e de
troca.
Eu tenho o hábito de fazer satakhinha aqui na minha casa, às vezes chamo meus
parentes e às vezes não. Sempre sinto uma sensação de segurança em tudo que faço e
corre tudo bem. Basta eu lamentar um pouco sobre alguma dificuldade, logo vejo
alguém a vir me ajudar, parecer que fui buscar. (Nahatje)
No ano passado não consegui colher capim para a cobertura da minha casa e tava
aflita por ver a se aproximar a época das chuvas, minha casa iria cair, mas logo
antes que isso acontecesse meu filho trouxe-me chapas de zinco e cobri a minha
casa. (Haua)
Estes depoimentos reforçam a ação invisível que fica atenta para retribuir de uma forma visível o
que recebeu de graça, voluntariamente, porque responde às necessidades que ainda não foram
139
reveladas, como um pai cuidando das necessidades de um filho sem que este tenha lhe pedido
antes. No caso da senhora Haua, o filho não vinha cinco anos ver a e em Mogincual, nem
telefonava, ela conta emocionada que não sabe como ele pensou em trazer exatamente aquilo que
ela precisava. Segundo ela, foi uma resposta certa na hora certa. Quando questionei se o filho
teve alguma informação, ela afirmou que ele acabava de voltar de outra província em missão de
serviço e logo que chegara não pensou em mais nada senão fazer aquela surpresa, não sabia que a
situação era de risco iminente, pois caso chovesse as águas poderiam colocar a casa da mãe
abaixo. Um caso similar foi descrito por Wedig (2009) em uma festa denominada Festa de Ação
de Graças, que também é uma celebração agrícola por excelência. Na abertura do culto, a pastora
afirma que se celebra a dádiva da vida, agradece-se a força que Deus dá à terra para que tudo o
que nela se cultiva cresça e frutifique, assim como se gras pela força para o trabalho.
Esta
prática faz com que o senso de satisfação obrigue continuamente a se realizar as festas de Ação
de Graças para agradecer a Deus nessa região estudada pela autora no Brasil, assim como, com
esse sentido. se faz a festa de
satakhinha em Moçambique
. O processo de dar desinteressado não
é comunicado a quem é oferecido o ritual, muito menos se pode pressentir que se vai receber algo
de alguém, às vezes coincide no momento certo receber algo que tanto fazia falta para a família
ou para a pessoa que recebeu. Assim como também quem cultiva a terra não tem certeza absoluta
que vai colher uma boa produção, mas se crê que Deus por generosidade faz as coisas crescerem
e frutificarem, isso implica a realização da festa de ação de graças para agradecê-lo. Por outro
lado, temos a festa de
satakha
grande, ou simplesmente
satakha
, aquela que envolve todos os
parentes, todos contribuem com o pouco que têm e escolhem a casa de um deles para ser
realizada, portanto é uma participação obrigatória de todos os parentes. Os homens se ocupam em
trazer a lenha, arrumar o fogão e estar atentos para quaisquer solicitações da cozinha. Aqui,
diferentemente do
mulipo
, as mulheres são as últimas a comer, porque no final a sobra é dividida
entre as que participaram na cozinha. Os homens se limitam a sair logo que são servidos e as
mulheres cuidam das crianças, dividem as tarefas de limpeza e só depois disso comem, porque se
comerem antes podem ficar cansadas para terminar o trabalho. Para fazer tanto a
satakhinha
como a
satakha
, cada família possui um lugar espiritual dentro do seu pátio, pode ser em um
canto, no meio, atrás da casa, em qualquer lugar, desde que esse lugar seja identificado por uma
árvore, de preferência frutífera. Esse lugar é como um ponto de comunicação, no sentido de que
as pessoas vão para e falam como se o ancestral fosse representado por aquela árvore, dão
140
oferendas, agradecendo e invocando bênçãos para as atividades da família. Simboliza um lugar
em que os antepassados, na sua ronda em visita aos familiares que ainda estão vivos, se sentam e
se hospedam e é ali, naquela árvore, que são recebidos e feitas todas as coisas que forem
indicadas por eles. É um lugar fixo, uma árvore fixa, nunca deve mudar.
Deleuze e Guattari (1997), em seu trabalho “Mil Platôs, capitalismo e esquizofrenia”,
argumentam que do caos nascem os meios e os ritmos. Discutindo sobre a marcação de
territórios, afirmam que ritmo desde que haja passagem transcodificada de um para outro
meio, comunicação de meios, coordenação de espaços-tempos heterogêneos e que o esgotamento,
a morte, a intrusão ganham ritmos. Portanto, com ritmo também se marca o território e se
estabelece uma relação de comunicação entre o sujeito e seu meio. Por isso que em caso de
mudança de residência, os ancestrais são comunicados naquela árvore sobre a mudança da
família e é prometido a eles um lugar na nova casa. É como se tivesse que dizer que o novo lar
deve albergar o meio e o sujeito, e eles não são separados um do outro, porque enquanto um é
condição do outro, ambos determinam a sua existência. É um casamento eterno, em qualquer
lugar onde a família esteja morando, e para cada filho crescido o sistema é o mesmo, deve-se ter
um espaço reservado para os espíritos dos ancestrais, é uma ordem moral e cultural da
comunidade. Delma Pessanha Neves, no trabalho em que analisa o papel dos mediadores sociais
no desenvolvimento de uma outra agricultura, considera que:
O efeito do processo de construção dessa identidade social - de representação de si e dos
outros - é a elaboração de novos sistemas classificatórios e de visão de mundo,
concebidos de acordo com seus interesses. Redefinindo socialmente os outros, os
mediados submetidos a processos de mudança reconstroem simbolicamente o grupo e os
princípios de seu pertencimento. Aceitando e incorporando este papel, elaboram e
colocam em prática outras alternativas de vida. (NEVES, 1998, p. 157)
Olhando os pronunciamentos da Neves (1998), podemos afirmar que a
satakhinha
é
feita quando existe uma dádiva e a
satakha
quando se procura cumprir algo que foi estabelecido
como regra costumeira, para purificar-se dos pecados, pedir perdão das falhas cometidas,
procurar solução de um problema identificado, como união e reunião familiar. É algo que todos
sabem quando chega o tempo de ser feita, não é voluntário, sempre quando existe algo a ser
resolvido entre os vivos e os mortos, embora no fim se acrescente a gratidão, mas é uma gratidão
no sentido de ter aceito aquilo ou isto, portanto não é um ato desinteressado, apesar de às vezes
existirem casos em que a
satakha
pode ser feita em tempos de paz, sem nada a ser reparado, mas
sim pelo fato de chegar o tempo determinado, dentro do calendário tradicional anual.
141
8 NUTRIÇÃO E DESNUTRIÇÃO
Depois que vimos a trajetória da batata-doce, sua identidade, a comparação com a
mandioca no que diz respeito à alimentação das famílias, sua influência comparativa entre os
locais estudados e as festas tradicionais, neste capítulo faço a discussão da batata-doce e da
segurança alimentar tomando como base o entendimento expresso pelos interlocutores desta
pesquisa a respeito de seus próprios hábitos alimentares. Como vimos anteriormente, toda
interpretação das famílias rurais estudadas é baseada na cultura e esta, por sua vez, é orientada
pelos espíritos dos seus ancestrais, que “fiscalizam” o cumprimento das regras estabelecidas.
Sendo as festas tradicionais um ambiente de consumo, isso faz delas momentos importantes para
a observação e reflexão sobre a segurança alimentar, visto que os alimentos a serem incorporados
deverão ser culturalmente aceitos. Por isso, neste capítulo, discuto os mecanismos ou veículos
com os quais pode-se interferir na aplicação de um programa de nutrição para aquelas famílias.
8.1 Nativos e cativos
92
As mensagens de propaganda sobre a relevância da produção e consumo de batata-doce
de polpa alaranjada levam a uma instabilidade social no seio das comunidades. As mensagens são
aceitas de diferentes formas e interpretadas também de diferentes maneiras em função do grupo
social escolarizados e não-escolarizados. Os escolarizados são crianças e jovens que
frequentam as escolas dos governos locais e os filhos que, por vários motivos, migraram para as
cidades, que embora possam não ter estudado o suficiente, embalam-se nos padrões da
urbanidade. Os não-escolarizados são nativos que nunca se ausentaram da comunidade para
morar fora e, na sua maior parte, não sabem ler nem escrever em língua oficial, o português. Mas,
92
O nome nativo provém da tradução para a língua portuguesa do vocábulo achinene, que significa, entre outras
coisas, os donos. O verdadeiro sentido do termo cativo provém da palavra emngua local anammurua, que significa
pessoas que vieram e que estão morando na comunidade ou filhos da comunidade que tinham saído para morar fora e
retornaram e, ainda, os que se naturalizaram. Isso inclui também os sitiantes não residentes. A ideia é que a pessoa
quando nasce é moldada segundo a cultura do local de nascimento. A sua personalidade revela o ser daquele grupo,
portanto a sua identidade natural é de achinene-nativo, enquanto que aquele que, por um motivo qualquer, vive fora
do seu meio é cativo, porque procura representar o que não é e nunca vai ser. Se chegar a voltar às origens, continua
no dilema de ser ou não ser, por isso é chamado de anamurua-cativo, porque já está contaminado.
142
no entanto, o fato de ser nativo não significa necessariamente que não saiba ler e escrever em
português, a única referência forte é que essas pessoas nunca se ausentaram da comunidade.
Este grupo de escolarizados absorve muito bem as mensagens utilitaristas da batata-
doce de polpa alaranjada enviadas pelos técnicos, embora cada um se expresse de maneira
diferente. Isto é, a opinião entre eles varia, entre os escolarizados que tiveram oportunidade de
viver experiências diferentes na cidade e os não-escolarizados, que, por não terem saído da
comunidade, são desvalorizados por não terem tido oportunidade de assimilar completamente os
prazeres da escolarização e suas mensagens, em um meio urbano em que o peso cultural é
moderado.
Os escolarizados que vivem nas comunidades, ao mesmo tempo em que acreditam no
professor, que também é um instrumento propagandista, desconfiam dele na mesma medida. Ao
mesmo tempo em que o professor come a batata-doce de polpa alaranjada na sala de aula e nas
festas da escola, ele não demonstra o mesmo comportamento alimentar em sua casa, com sua
família, e nas festas comunitárias, motivo que leva as crianças a duvidar e a ficar indecisas sobre
como se deve e não se deve proceder com relação à batata-doce de polpa alaranjada. Mas como
as crianças estão envoltos em costumes e regras locais, dirigem-se aos pais, tios e avós para lhes
tirar as dúvidas. A pergunta mais frequente é se constitui verdade que a batata-doce traz todos
aqueles benefícios nutricionais e alimentares mencionados ou se na verdade faz mal à saúde e à
constituição do homem enquanto membro daquela sociedade.
Lembro também de ter sido perguntado a respeito, e como forma de não me envolver na
briga, preferi ser neutro. Como a conversa foi reativada após o jantar, eu disse que era exatamente
isso que eu queria compreender, era essa a razão da minha estadia naquele local e como não
queria ser um simples inquiridor decidi viver ali com eles, fazendo tudo o que eles também
faziam para apurar melhor as duas versões. Quando conversei com vários professores, eles
afirmaram ser sábio portar-se de modo responsável. Isto significa que, como professor, cabe-lhe a
missão de transmitir as instruções convenientemente, como mandam as regras acadêmicas ou
escolares, mas ao mesmo tempo, por viverem naquelas comunidades, devem obedecer as regras
de convivência.
Em que pesem as interferências que se verificam na zona rural, pode-se dizer que existe
sempre convivência dos velhos hábitos com os novos. Em um estudo sobre agricultores de
143
origem alemã em regiões rurais do Rio Grande do Sul - Brasil, Menasche e Schmitz (2007)
mostram que hábitos antigos resistem aos modelos novos de adaptação:
Ao se instalarem em regiões rurais do Rio Grande do Sul, os imigrantes alemães
trouxeram consigo costumes e tradições que seriam transmitidos às gerações que os
sucederiam. Mas já na chegada à nova terra seus saberes e práticas iniciariam a passar
por modificações. (MENASCHE E SCHMITZ, 2007. p. 2)
As autoras complementam, mais adiante:
[...] se bem é verdade que, na agricultura e na alimentação, assim como nas demais
dimensões do trabalho e da vida desses colonos, muita coisa tem se alterado, temos que
ao lado dos novos hábitos convivem saberes e práticas herdados. (id., p. 15)
No caso dos professores entrevistados, pode-se dizer que tanto os hábitos antigos
resistem aos novos modelos como os novos também resistem aos antigos modelos de adaptação.
Os novos são fortes no meio urbano e os antigos na zona rural, se considerarmos que eles
afirmam comer a batata-doce quando estão na cidade e rejeitar quando estão na zona rural, onde
passam maior parte do seu tempo. Mas mesmo assim, algo também mudou na zona urbana.
Enquanto antes os bolos, bolachas e sucos feitos a partir da batata-doce de polpa alaranjada eram
a moda culinária nas famílias da cidade, hoje deixaram de ser obrigação de saúde nas suas dietas.
Se antes, chegando em uma família amiga da cidade, a visita era frequentemente servida com
alimentos confeccionados a partir de batata-doce, hoje essa rotina entrou em esquecimento.
Esta semana não tem nada de batata-doce de polpa alaranjada, aliás, faz tempo que
não fazemos, porque parece que a coisa não é tão bem assim como dizem, acho que
alguma coisa estranha tem na batata, penso que não para habituar. É bom comer
de vez em quando. (Namarocolo)
O senhor Namarocolo é chefe de uma família da cidade que conheci e que fazia sempre
pratos com batata-doce de polpa alaranjada para os clientes do seu bar e restaurante. Por eu saber
que o consumo tinha se tornado um costume, sempre que chegava pedia que fosse servida
qualquer coisa feita de batata-doce de polpa alaranjada, mas naquele dia, para meu espanto, disse
que não tinha e por isso não podiam me servir. Quando insisti em procurar saber por que, disse
que não sabia explicar direito, mas que a família sentia que havia algo estranho com a batata.
Não tem nada a ver com nutrição e nem com a comida, porque por mais que você coma,
ela não te sacia mas sim te empanturra, aumenta o tamanho do estômago e ocupa
volume, volta e meia estais sentindo fome novamente. Eu penso que não é comida para
se desejar. (Namarocolo)
144
Esta fala reforça as especulações populares segundo as quais o consumo de batata-doce
em geral, tanto a de polpa alaranjada como de outra cor, provoca doenças, ao mesmo tempo que
os técnicos afirmam que ela diminui os riscos de insegurança nutricional de quem a consome.
Os escolarizados que moraram na cidade puderam prová-la livremente lá, mas não na
comunidade. Os escolarizados que nunca se ausentaram seguem os modelos alimentares da
comunidade e não os do meio urbano. Os dois grupos, junto com o professor, têm visões
diferentes. Os professores alegam seguir o comportamento alimentar tradicional por questões de
ética e respeito à cultura local e os escolarizados dizem que, quando moraram na cidade, não
sentiam tanto impacto quando comiam batata-doce, mas que ali na comunidade não iriam
desrespeitar as regras porque senão poderia acontecer o inesperado azar. E os outros
escolarizados, que não se ausentaram, preferem ficar com a cultura local e não abrem mão dela.
Esta é uma grande dúvida que fica entre os alunos: quais pessoas falam a verdade, os
pais, os parentes que foram escolarizados ou o professor que é um estrangeiro? A escola como
instituição de formação oficial ou a família como instituição de formação da comunidade, qual
deles ou qual destas instituições está certa? Entre os escolarizados, por mais que nunca tenham
saído da comunidade, fica a curiosidade de provar os fatos contados pelos outros, e sua atitude
flexível pode abrir facilidades para experimentar quando tiverem oportunidade. As crianças e
jovens entram em um dilema, crescem com ele e encontram resposta quando decidem morar
fora da comunidade ou nas grandes vilas e cidades. Esta situação é motivo para argumentar que a
resposta encontrada não é a mesma nessas duas comunidades rural e urbana. Segundo Ortiz
(1989), a função do professor, principalmente o das escolas primárias e secundárias, reveste-se de
um caráter marcadamente ideológico, ele é portador de uma cultura “civilizada e moderna” que
deve ser estendida aos confins do país. Os que decidem morar na comunidade não tardam a obter
a verdade do ponto de vista cultural, a confirmação de que os pais tinham razão, a batata-doce faz
mal à saúde e à alma, por isso merece estar desconsiderada. Porém, a situação na cidade é
descrita de uma outra forma:
Eu morei na cidade durante um tempo, mas nunca me senti na verdade uma pessoa que
vive na cidade, porque algumas coisas eu não conseguia fazer, como, por exemplo, viver
brigando com vizinhos quase que sempre. (Fando)
Quando há falecimento, todos nós, exceto crianças que não foram submetidas a ritos de
iniciação
93
, vamos consolar a família. Reunimos-nos durante um período considerável,
93
Os que não passaram por imwali ou alukhu são considerados crianças, não importando a idade.
145
fazemos as coisas sempre juntinhos, para não abandonar logo a família, que perdeu seu
parente. Mas na cidade não! Para além de outros não irem ao velório ou até mesmo
consolar a família, crianças de todas as idades vão ver o corpo e chegam no cemitério.
Acho isso uma coisa muito má, porque a criança pode estar traumatizada em ver coisas
que não deveria ainda ver. (Rappe)
Estes dois interlocutores revelaram que a vida na cidade foi uma constante de choques,
como se fosse um autêntico pesadelo, porque também as pessoas não se cumprimentam, apenas
fazem isso com conhecidos. A vida em sociedade, segundo os habitantes comunitários, é em
comunhão e isso dá sentido para o viver, como acrescentou uma anciã, dizendo que:
Se a vida fosse feita para ser vivida sozinha, Deus não faria duas pessoas para
constituir família, faria sim muitas pessoas todas sozinhas, não precisaria dizer seja
fecundo e encheis a terra. (Annamo)
Essas pessoas que saem do meio rural para o urbano, quer voltando ou permanecendo
nas cidades, nunca ficam totalmente satisfeitas, o choque cultural sempre continua, por isso são
considerados cativos. Se retornam para casa, o hábito urbano sempre lhes colocará alternativas de
pensar, fazer e ser. É como se estivessem a viver no cativeiro pelo resto da vida. Este é o preço
que pagam por abandonar as origens. Mas, provavelmente, os filhos ou as gerações seguintes
poderão adaptar-se ao modo de vida urbano. O senhor Fando sempre se assustou na cidade, ao
ver como fazem pratos com batata-doce, sempre se lembrando que não se pode comer batata de
qualquer maneira porque faz mal:
Eles fazem muita coisa com batata-doce, sumos, biscoitos, mas mesmo assim eu nunca
toquei na batata enquanto vendia meus produtos no mercado e nunca deixei meus filhos
se envenenarem com esses hábitos, porque eu sei que faz mal. Por isso os da cidade
ficam doentes, sempre tensos e facilmente brigam sem necessidade porque não têm
regras, tanta gente junta que vem por todos os lados, é quase impossível ter regras.
(Fando).
Ao mesmo tempo em que não são mais moradores do meio urbano porque voltaram
para as origens, também nunca se encaixam perfeitamente, porque beberam ou saborearam outros
valores que direta ou indiretamente vão lhes perturbando também durante a vida de volta à
comunidade. Após muita conversa com o senhor Alterro, perguntei se uma vez cativo era cativo
para sempre, ao que me respondeu:
Não necessariamente, dependendo do tempo que a pessoa viveu fora daqui pode ser que
sim. Muito tempo demais nunca se tornará ao nível anterior, e se for por pouco tempo
pode ser que o modo de viver da cidade desapareça nele. (Alterro)
146
É importante lembrar que uma das condições para ser considerado valente, íntegro e
respeitável na comunidade é nunca ter se ausentado para morar fora. Essa condição é que lhe
confere honra, respeito e confiança perante uma representação comunitária. Significa que a
pessoa está preparada para assumir tarefas porque sempre acompanhou a sua comunidade,
evoluções, lutas e valores tradicionais. Os considerados mais nativos, que se identificam com o
hábito local, treinados e instruídos desde a infância para serem fiéis a ele, sempre colocarão os
ancestrais acima dos parentes vivos, o invisível acima do visível, o meio acima do sujeito, o
espírito acima da carne, sendo que para os cativos isso pode ser difícil e será provavelmente o
inverso. Então, fica evidente a existência de nativos e cativos, mas essas não são as únicas
formas, temos uma terceira categoria, a de estrangeiro. Ser estrangeiro pressupõe que a pessoa
está na comunidade de passagem, como se fosse um turista, não conhece as regras, por isso não
pode cumpri-las, assim como também não se compromete com elas. A sua vida passageira faz
com que sejam ignorados, isto é, considera-se que a sua presença na comunidade não interfere
em nada, mas as famílias podem reforçar a vigilância para que se sintam seguras perante a pessoa
passageira.
8.2 Batata-doce de polpa alaranjada: é estrangeira
Figura 15: Batata-doce de polpa alaranjada
Conforme vimos no subcapítulo anterior, poderíamos, grosso modo, comparar a batata-
doce de polpa alaranjada como um alimento estrangeiro, se considerarmos que cativo é uma
categoria intermediária entre aquilo que é local-nativo e aquilo que é de fora-estrangeiro.
Debruçando-nos sobre as três plantas envolvidas nesta pesquisa, a mandioca, a batata-doce de
147
polpa branca e a de polpa alaranjada, poderíamos, a partir da observação das percepções das
famílias rurais estudadas, enquadrá-las nessas categorias, pois, à semelhança das pessoas que por
vários motivos se ausentam da comunidade, transformando-se em cativos, assim é também com
as plantas. A estrangeira seria aquela que não pertence àquela comunidade e que existe em outro
lugar, está ali de passagem, por isso nunca merece confiança, enquanto que se pode contar com a
cativa, mas não na totalidade, ou não confiar nela para assuntos básicos e sérios, porque ela está
maculada. Segundo as comunidades, em termos de preferência alimentar, entre estes dois tipos de
batata-doce, as pessoas preferem a de polpa branca. A batata-doce de polpa alaranjada se
enquadraria, então, na categoria de estrangeira, aquilo que não sendo da comunidade existe em
outro lugar e veio entrar em contato, portanto ninguém conhece. As pessoas estranham e
desconfiam de tudo, do seu cheiro, da cor, do sabor, da forma de produzir e preparar e, embora
seja semelhante a outro tipo de batata, ela se torna estranha, estrangeira, por isso se vende e não
se consome.
Olhando para aquilo que Comaroff e Comaroff (2001) falam a respeito, no seu trabalho
“Naturalizando a Nação: estrangeiros, apocalipse e o estado pós-colonial”, no qual discutem
como plantas estrangeiras foram consideradas culpadas nas queimadas na província do Cabo e
enchentes na província de Mpumalanga, ambos os casos verificados na África do Sul,
encontramos situações parecidas com as vistas em Nampula. Os autores relatam que a opinião
que mais se ouviu na tentativa de explicar as causas desses desastres foi a de que o fogo atingiu
proporções tão calamitosas apenas devido à presença de plantas estrangeiras invasoras, que
queimam mais facilmente do que a flora nativa. E, no caso das enchentes em Mpumalanga,
culparam-se “enormes áreas cobertas por plantas invasoras estrangeiras”, os vastos
reflorestamentos de poderosas madeireiras, por impedirem a capacidade de plantas nativas de
atuar como “esponjas naturais”.
Portanto, quer no caso de Moçambique, quer no caso da África do Sul, encontramos
que, se planta estrangeira constitui,
a priori
, uma vulnerabilidade de opinião negativa quanto a
aquilo que pode ser a sua contribuição naquele local, lembrando que, estes não são casos isolados
no mundo.
Se a batata-doce de polpa alaranjada é estrangeira em Nampula, então não merece
confiança, visto que pode ser a causa de todo mal, à semelhança das plantas exóticas na África do
Sul.
148
Tomando como base as percepções das famílias em Nampula, fica assim estabelecida a
categoria de cativa para a batata-doce de polpa branca, porque, apesar de ela estar maculada, se
estabelece com ela alguma relação, como, por exemplo, a de instrução familiar das crianças no
makhazi,
que não é considerado uma festa comunitária, apesar de reunir também os pais. Ela
pode ser aceita, mas a sua aceitação ou inserção não a torna confiável. Como tudo que não é
confiável é tratado com desprezo, assim também é com esta batata, cuja produção e consumo
ficaram relegados às crianças, por isso ela não é considerada comida para adulto e sua produção
sequer constitui trabalho.
A planta da mandioca tem, historicamente, a mesma trajetória da batata-doce de polpa
branca, ambos tubérculos e originários da América Latina. Mas a mandioca foi introduzida
relativamente antes da batata-doce e, então, naturalizou-se como uma planta nativa. Nessa época,
as famílias, estruturadas em comunidades com um régulo e mais tarde em impérios, sempre
fizeram suas festas com mandioca, alimentando-se dela, que desde então não encontra qualquer
rejeição no âmbito cultural ou no biológico. Os ancestrais fizeram assim e os novos também o
fazem, e a mandioca continua com seu papel de alimentar e manter aquele povo. É a mandioca
que faz o nome daquelas famílias, define se estão bem ou não em termos de produção e comida.
Com todas estas categorias estabelecidas pela comunidade, ficam evidentes as
dificuldades encontradas pelos técnicos disseminadores de mensagens para a produção e
consumo de batata-doce de polpa alaranjada com a finalidade de melhorar a nutrição, porque ela
é estrangeira, não merece confiança, existe em outro lugar e não é daquela comunidade. Os
professores, assim como os estrangeiros e técnicos da agricultura, tentam fazer seu papel de
mediadores nesse processo, sendo que, segundo Neves,
Os mediadores sociais advogam esta posição por se considerarem portadores da função
(ou missão) pedagógica destinada a mudar comportamentos e visões de mundo. Em
consequência o sistema de crenças que viabiliza a agregação de segmentos diversos na
construção de um projeto para a mudança de posições da sociedade, incorpora múltiplos
domínios e diferenciados discursos. (NEVES, 1998, p. 153)
A nova condição precisa trazer incorporada nela outras posições diversas e até antigas, de
modo que a multiplicidade de discursos entre em coerência. Os técnicos têm sua mensagem, os
nativos têm sua mensagem e os cativos obviamente também terão sua mensagem. As mensagens
disseminadoras de produção e consumo não trazem informações ou relações entre a batata-doce
de polpa alaranjada com outra batata ou com a mandioca, que é uma planta naturalizada.
149
Menasche (2005), analisando o trabalho realizado pela mídia na construção de
representações sociais sobre os cultivos de alimentos transgênicos no Rio Grande do Sul, Brasil,
afirma que a mídia produzia falta de consenso entre vários grupos envolvidos nos debates.
Salienta que a polêmica sobre os organismos geneticamente modificados era multifacetada,
envolvendo mais que aspectos científicos, mas também econômicos, sociais, ambientais,
sanitários e, especialmente, políticos. Então temos aqui mais uma situação cujo centro das
controvérsias são plantas estrangeiras, os transgênicos, que, por não serem nativas, não são
devidamente conhecidas, e a mídia entra como elemento-chave nesse campo de disputas.
Enquanto uns defendiam a manutenção dos campos experimentais, o governo defendia a
destruição das lavouras. Mais adiante, a autora fala que na cidade de Cachoeirinha pés de arroz
transgênico foram queimados pelo governo, e na história contada pela dia, a imagem
construída do governo gaúcho seria a de que era um agente implacável na fiscalização e
destruição de áreas cultivadas ilegalmente com sementes transgênicas. Essa história que
aconteceu no Brasil lembra o caso de Nampula, em que cada uma das partes envolvidas procura
fazer valer sua verdade através de mensagens estrategicamente construídas e, embora não haja
ainda conflitos físicos, os verbais não são uma raridade nessa zona, o que torna a mídia um
importante meio usado pelas instituições ligadas à produção e consumo de batata-doce de polpa
alaranjada como veículo de persuasão, e as escolas locais fazem parte dessa campanha.
Contudo, como vimos ao longo deste texto, as famílias agem estrategicamente de modo a
não tornar suas vidas reféns do desconhecido; isto é, das coisas exóticas, que não são da
comunidade e, ao mesmo tempo em que culturalmente explicam as crises sociais como sendo
causadas pela batata-doce de polpa alaranjada, procuram não ser consideradas desobedientes,
aceitando a produção e consumo dessa batata, mas de uma forma estratégica. Essa atitude de
duplo comportamento é motivada pelo campo de disputa construído entre o nativo e o exótico,
que a seguir iremos detalhar.
8.3 Duas entidades, uma só família
“Tem que se comer batata-doce de polpa alaranjada para aliviar a insegurança
alimentar e nutricional”
(Mauro). Esta expressão, dita em meio a risadas por Mauro, que
150
aparenta ter 10 anos de idade e estuda em uma escola local, todo habitante sabe dizer sem
gaguejar. Mas uma questão entra no meio desse discurso. Se comendo batata-doce melhora-se a
segurança alimentar e nutricional, também comendo provoca-se o que se evita sem comer. A
praticidade da expressão, dita por todos, é insuficiente para corresponder ao conteúdo da
mensagem, porque existe um grupoalvo para as duas entidades, governo e mundo invisível,
conforme explico mais adiante, que têm opiniões completamente opostas quanto à produção e
consumo da batata-doce, o que faz com que o que uma entidade constrói a outra venha a destruir.
Consumindo batata-doce, o grupoalvo diminui a proliferação de doenças e os problemas
alimentares, isto segundo o programa governamental e também com base em provas científicas.
Fazendo isso, o povo fica submetido a um bom propósito com esta entidade visível, o governo,
que quer ver todos crescendo saudavelmente e desenvolvendo-se bem. A segunda entidade, que
pertence ao mundo invisível, quando observa o mesmo povo submetido a essas boas práticas
alimentares, vem reivindicar seu lugar, colocando abaixo os esforços da primeira entidade e
desacreditando-a, ao deixar este mesmo povo doente, com fome e, como consequência, vivendo
sob insegurança alimentar e nutricional. O exemplo do distrito de Mogincual é um caso desses.
No ano passado, todas as sextas-feiras meus filhos comiam batata na escola, ficavam
bem, com boa aparência, mas volta e meia caíam doentes e toda gordura acumulada ia
embora até voltar como era. (Haua)
A segunda entidade age em oposição à primeira, quebra o ciclo de chuvas, passa a haver
seca e não se pode produzir, e doenças nas crianças e todas as pessoas ficam desprogramadas
porque se deve atender às crianças, o que consome tempo e atenção, então também não se pode
produzir. Maciel (2001) afirma que a população que vive na pobreza e na miséria também está
marcada tanto pelo não-comer (a falta de comida) como por aquilo que come. Então, tanto por
comer e como por não comer a batata-doce de polpa alaranjada, a insegurança alimentar e
nutricional que a primeira entidade evita, se confirma. Se as pessoas que não comem batata-doce
de polpa alaranjada não ficam desnutridas, isso é motivo para dizer que, no meio de tanta
controvérsia, existe uma grande nuvem que paira no seio das comunidades. Afinal, a batata-doce
de polpa alaranjada faz ou não faz mal? Reduz ou não reduz a desnutrição?
Você comendo batata fica doente na mesma hora e o pior é que tem que se justificar
com os espíritos dos nossos antepassados, porque senão a desobediência pode levar à
pior consequência da crise de alimentos, que é a morte. (Afido)
151
Como os antepassados cobram o respeito e consideração por tudo feito à volta da
batata-doce, então o que é melhor fazer face a este dilema? Os relatos apontam que quer se
obedeça ou não com a produção e consumo da batata, as pessoas concluem que tanto faz, porque
o que se pretende evitar acontece. Se o programa visa à redução da desnutrição, temos, por outro
lado, que ele também age a favor dessa desnutrição, culturalmente falando, como explicam as
próprias famílias rurais com a expressão
tanto faz comer a batata-doce de polpa alaranjada ou
não
”. Esta evidência de aspectos culturais neste programa de nutrição através da batata-doce de
polpa alaranjada corrobora com o que apontou Maluf, em seu estudo sobre SAN, que sugere que,
[...] a incorporação da SAN entre os objetivos que orientam as escolhas estratégicas de
um país contribui para implementar processos de qualidade superior em termos de
combinação de resultados econômicos com equidade social, sustentabilidade ambiental e
valorização cultural. (MALUF, 2007, p. 11)
O autor complementa, mais adiante:
O acesso a alimentos engloba não apenas comer regularmente, mas também comer bem,
com alimentos de qualidade e adequados aos hábitos culturais, com base em práticas
saudáveis e que preservem o prazer associado à alimentação. Essa perspectiva aplica-se
também para os indivíduos ou grupos com maior vulnerabilidade à fome, pois não se
trata de assegurar-lhes qualquer alimento. (id., p. 25)
Como acabamos de ver ao longo do texto, as famílias rurais moçambicanas fazem da
sua cultura um guia para viver, e a valorização cultural de que fala Maluf passa necessariamente
pela observação de seu modo de ser no comportamento alimentar, visto que é com a comida que
se materializam as relações sociais daquelas comunidades. Por isso, pelo não cumprimento dessas
normas culturais com a introdução da batata-doce de polpa alaranjada, algumas famílias rurais de
Mogincual justificam as consequentes secas cíclicas e a presença de ciclones na zona como uma
punição ou castigo pelo consumo desta batata. Porque nos períodos de seca quase tudo
desaparece, não existe nenhum capim verde e o que se é a batata-doce de polpa alaranjada
sendo distribuída e vendida para o consumo das pessoas e, como não se pode rejeitar, por causa
da fome, cria-se também um ciclo no qual ano após ano as pessoas morrem de fome e de
doenças, porque, segundo afirmam as famílias entrevistadas, ainda não estabeleceram o equilíbrio
entre essas duas entidades, a visível e a invisível, duas forças que agem completamente opostas.
Mas em Murrupula, segundo afirmam os moradores entrevistados, as pessoas souberam
lidar de uma forma inteligente com o programa, pois, da mesma forma que observou Cristovão
(2002), no seu trabalho sobre turismo rural em Portugal, a alimentação é uma atividade
152
socialmente protegida. Olhando pelo lado social do alimento e trazendo essa discussão para os
fatos desta pesquisa, encontramos que este protecionismo visa garantir a segurança de todos,
visto que o risco de um é o risco de todos e a conduta alimentar de um afeta a conduta alimentar
de todos. Quando se trata de introduzir uma inovação, por exemplo, temos casos de gulos que
não admitem que as famílias sozinhas introduzam plantas exóticas na comunidade sem a consulta
e a devida autorização da estrutura comunitária, com a consciência de que, se algo der errado,
todos correm o mesmo risco de ficar prejudicados ou sofrer as consequências, visto que os laços
parentais e de vizinhança o muito fortes. Este procedimento normativo por parte das famílias
faz com que a verificação do cumprimento das normas regentes seja da responsabilidade de todos
os membros da comunidade, que no exemplo de Mogincual a ocorrência de seca não afeta
apenas quem desobedeceu, mas sim a todos.
Nós aqui não sabemos aonde vamos terminar com isso. Não conseguimos nos
estabelecer para produzir outras coisas porque não chove e, como consequência disso,
comemos o que não podíamos comer de qualquer maneira. Estamos condenados, não
sabemos até quando, porque as nossas festas não realizamos, porque não podemos fazer
com batata-doce. (Alterro)
Escutando o senhor Alterro falar, pelas suas vivências ao longo do tempo na mesma
comunidade, percebe-se que nas comunidades o assunto é tratado de modo muito sério. Em
encontros familiares, de vizinhança e da comunidade, o assunto sempre ganha espaço e forma. Os
debates informais são em torno de como e o que fazer para reverter a situação. E essa
preocupação das famílias é confirmada pelos dados do SETSAN local, que apontam o distrito de
Mogincual como um dos que possui o pior índice de insegurança alimentar e nutricional na
província de Nampula.
O que adianta comer batata-doce de polpa alaranjada para não ficar doente e na
verdade ficar doente? Melhor comer o que é legítimo comer e não ficar doente, e
também não ofender os nossos antepassados. Se você come batata para não ficar
doente, os espíritos te vêm destruir. E aí, adianta alguma coisa? (Franua)
São os espíritos que dão saúde, longevidade, sorte na vida, etc. Se eles o quiserem,
por mais que você faça tudo que dizem para fazer para ter saúde e longevidade, fica
difícil. Os espíritos dos nossos antepassados são aqueles que controlam o nosso mundo
visível e outro invisível, do qual nós os vivos nada sabemos. O homem tem visão e poder
limitados, é um grande erro pensar que tudo termina aqui, se fosse assim a vida não
valeria a pena, porque ela é muito curta. (Alterro)
Como se observa na fala dos senhores Franua e Alterro, a crença é de que os espíritos
são aqueles que ditam o cumprimento das regras culturais. Portanto, se deve obedecer, pois eles
153
dão saúde, longevidade e mais outras coisas boas que o ser humano precisa na sua vida diária. A
crença nos ancestrais é tão forte que leva a afirmar que o homem é constituído por um ser visível
e outro invisível, de carne e de espírito, que se lhe constituem como ordens vitais na luta pela
hierarquização destas ordens de vida, porém isso depende do nível de imersão nos hábitos
culturais. As falias rurais sempre obedecem ao invisível antes do visível, pois o considerado
mais perigoso é aquilo que age sem ser visto, com quem não se pode dialogar diretamente, como
no caso de uma conversa frente a frente com alguém que se pode ver. Os espíritos dos ancestrais
nunca são vistos, mas podem ser sentidos os seus efeitos tanto quando trazem punição quanto
quando trazem proteção ou bênção, mas ninguém os vê. Agem através dos sonhos, um outro
enigma, pois ninguém o sono chegar, muito menos se sabe o que se vai sonhar, a única coisa
que se sabe é que se sente sono e a pessoa dorme. As famílias rurais consideram esses momentos
como a chave da compreensão do além, e afirmam que o ser humano se torna totalmente
impotente para mudar algo no sono e muito menos no sonho, por isso a confiança nos ancestrais
como sendo capazes de protegê-lo caso exista algo anormal, visto que o homem não tem
capacidades para influenciar em absolutamente nada. A batata-doce de polpa alaranjada,
enquanto alimento enriquecido, cientificamente pode reduzir o impacto da desnutrição,
principalmente em crianças, mas o mesmo não se pode dizer quanto à redução da fome, no
sentido de saciedade. Nas palavras das famílias entrevistadas, a batata-doce não possui peso, mas
sim volume, pois isso não é comida, não é alimento confiável para matar a fome porque ela
somente empanturra, deixa com o estômago cheio, porém, quem a come continua esfomeado. Se
é que mata a fome, então existe uma outra fome que ela não atinge, a fome espiritual, que lidera
as outras fomes. Assim, pode-se dizer que nem todo alimento que nutre mata a fome e este pode
ser o caso da batata-doce de polpa alaranjada. Ela é nutritivamente boa, mas que não mata a fome
pode ser verdade, no caso das afirmações das famílias estudadas nesta pesquisa, e isso faz com
que sempre se busque alternativas para se mitigar esse efeito. A seguir, procuro, a partir de
experiências das famílias de Murrupula, trazer um olhar sobre como estrategicamente elas agem
para evitar que sejam desobedecidas as regras de sua cultura.
154
8.4 Escolhas que trazem prazer e felicidade
Falando agora como o proceder das famílias rurais pode ser satisfatório para o equilíbrio
entre as partes envolvidas neste processo de intervenção, tomarei o exemplo do distrito de
Murrupula como base. Mas antes disso, importa trazer o que Maluf e Menezes (2004) apontam
em seu Caderno de Segurança Alimentar, em que indicam que embora a fome e a desnutrição
sejam as manifestações mais cruéis da situação de insegurança alimentar e a incapacidade de
acesso aos alimentos seja a sua principal causa, é necessário desencadear outros processos de
identificação das condições para uma boa segurança alimentar. Dentro da ótica aqui definida,
pode-se afirmar que a segurança alimentar está regida por determinados princípios
94
. As
comunidades possuem dois comportamentos distintos, conseguem animar-se aos olhos de quem é
estrangeiro, porém, sem fazer notar o desprezo que sentem, isto é, fingem que está tudo bem.
Esta situação acontece quando são realizadas festas para receber cnicos envolvidos no
programa, em um dia de campo ou ainda em festas de Natal e final de ano. Nessas festas,
preparam o que os
anamuruas
(cativos e estrangeiros) procuram encontrar na comunidade, ou
seja, os hábitos citadinos emergindo no meio rural. Estes desejos os cativos e estrangeiros
interpretam como sendo sinais de boa vida, “moderna”, como se diz em outras palavras, pois os
hábitos urbanos emergindo no rural são para os estrangeiros um sinal de desenvolvimento. E
como essa é a vontade dos cativos e estrangeiros, eles próprios trazem condimentos para os
pratos que desejam comer ali na comunidade. Trazem óleo, temperos
maggidd
95
, derivados de
batata-doce, cerveja, refrescos, sucos, etc., tudo industrializado, tudo à moda urbana. Estes
anamuruas
às vezes vêm com seus filhos, que comem com desprezo as comidas da comunidade,
e as crianças da comunidade, por sua vez, comem a comida urbana com desconfiança, sempre
com permissão dos seus pais, porque assim são instruídas. Então, para tentar contornar a situação,
os
anamuruas
vêm equipados com comida da cidade para seus filhos e os pais, que até certo
ponto têm muita saudade de algumas comidas, não desperdiçam a oportunidade de saborear a
94
Segundo Maluf e Menezes (2004, p. 3) o primeiro deles é que a segurança alimentar e a segurança nutricional são
como “duas faces da mesma moeda”, não podendo garantir-se uma delas sem que a outra também esteja garantida.
O segundo princípio está no fato de que somente será assegurada a segurança alimentar e nutricional através de
participação conjunta de governo e sociedade, sem que com isto se diluam os papéis específicos que cabe a cada
parte. Por fim, é preciso que se considere o direito humano à alimentação como primordial, que antecede a qualquer
outra situação, de natureza política ou econômica, pois é parte componente do direito à própria vida.
95
Tempero industrializado, da Nestlé, em forma de cubos. São caldos instantâneos, usados para cozimento de carnes
e preparo de pratos salgados e sopas.
155
comida da comunidade. Já os nativos, para evitar choques, fazem de conta que gostam, e segundo
afirmaram, é para dar boa impressão.
Meus filhos não gostam de epuática
96
, mas eu não consigo ver e deixar, pena que minha
mulher quando faz não é como minha mãe. Eu trago essas coisas da cidade para
entreter meus filhos, para não me incomodarem para voltar antes do tempo, se eu
estivesse sozinho nada disso trazia, porque são coisas feitas de qualquer maneira.
(Fonca)
A mulher do senhor Fonca nasceu, cresceu e mora na cidade junto com o marido,
nascido e crescido na comunidade rural. Na cidade, a
epuática
é feita com óleo, temperos
maggidd
, na panela de ferro ou alumínio, no fogão elétrico ou a gás, enquanto que a mãe dele
cozinha
em
um fogão a lenha, com temperos de amendoim e coco, em uma panela de barro.
Portanto, aqui está a base culinária da mãe, claro que sem se esquecer do carinho e amor que ela
acrescenta como condimentos principais durante o processo culinário. Considera-se que comer
em um bar ou restaurante, por mais que o prato tenha amendoim, coco, camarão ou caranguejo
não vai ter o carinho e o amor que torna a comida da mãe desejável. Fazer as coisas de qualquer
maneira significa que as pessoas que fazem tais coisas não são, na sua maioria, conhecidas ou
identificadas, não se sabe como preparam a comida, que instrumentos utilizam na sua cozinha, se
estão nervosos ou não com o patrão, enfim, tudo isso conta, como o senhor Fonca continuou
falando:
Tudo tem a ver, se alguém fazer comida chateado, nervoso, claro que não vai sair bem e
o paladar muda, parece brincadeira mas é verdade [risos]. Se a mulher que faz a
comida fica nervosa, fica sem a menor atenção para quem vai comer e a pessoa ao
ingerir pode ficar chata também e transmitir para outra pessoa em sequência, que não
pára nunca, porque cada um vai reagindo da sua forma. (Fonca)
Essa característica fisiológica, descrita pelo senhor Fonca, de que o estado emocional da
cozinheira na hora de preparo da comida pode ser transmitido aos seus consumidores, corrobora
com aquilo que Menasche (2004), trazendo para sua análise as contribuições de Claude Fischler,
afirma no seu trabalho intitulado “Risco à mesa: Alimentos transgênicos, no meu prato não?”, de
que se as classificações, práticas e representações que caraterizam um sistema culinário agem na
incorporação do indivíduo a um grupo social, também é possível afirmar que, ao se alimentar, o
indivíduo incorpora as propriedades do alimento. Trazendo esta discussão para a fala do senhor
96
Prato típico da comunidade feito de mandioca cozida, misturada com camarão ou caranguejo, com temperos de
amendoim e coco. Pode levar também verduras e legumes.
156
Fonca em questão, a ideia é que uma mulher bem-humorada, alegre e feliz fará a comida com o
pensamento nas pessoas que vão comer, a sua atenção carinhosa na hora do preparo fará com que
os que vão comer fiquem saciados no estômago e na alma, e que a harmonia entre o biológico e o
espiritual produza uma completa sensação de prazer. Pensar nas pessoas que vão comer constitui
um nculo entre a comida e a pessoa que vai comer, porque quem prepara vai pensando na
pessoa e surge alguma luz sobre os seus gostos, sua forma de ser e assim por diante, criando uma
sensação de comunicação e orientação para quem está cozinhando. O argumento de Fischler
(1995) é útil nesse sentido, quando afirma, ao discutir o princípio de incorporação, no seu
trabalho intitulado El (h)omnivoro”, que o alimento absorvido nos modifica desde o interior. É
como se existisse uma ligação entre o cozinheiro, o alimento e o indivíduo que vai consumir, daí
que quando a comida é feita com carinho e amor há um encaixe perfeito. Gerando prazer em uma
pessoa, também se produzirá prazer em outra, porque não quem fique chateado, todos estão
com o mesmo humor, o bom-humor que transmite paz, essa paz que começa a ser desenhada na
cozinha na hora do preparo da comida.
Nas festas de dias de campo ou visita de um técnico, o chefe da comunidade, por norma,
já tem todos esses ingredientes e a presença de pessoas um pouco experimentadas com a culinária
da cidade. Ele está sempre preparado para receber os
anamuruas
e servir-lhes como eles gostam e
estão habituados a comer. Lembro de meus colegas terem me alertado que um dos conceituados
líderes comunitários tinha hábitos alimentares da cidade, por isso não era uma pessoa ideal para
incluir no meu estudo. Depois de ter me habituado profundamente a ele, conversávamos sobre
tudo e me aproveitando dessa total abertura, perguntei se a afirmação que os meus colegas tinham
me transmitido era verdade, ao que me respondeu:
Filho, não sejas enganado, as pessoas gostam quando chegam na tua casa e voserve
aquilo que eles estão habituados nas suas casas. Se você servir comida que nunca viram
poderão comer por respeito, mas não estarão satisfeitos. E eu aqui, como muitos se
hospedam na minha casa, tenho que ter essas duas coisas para evitar deixar-lhes
irritados. imaginou se um administrador chega aqui e lhe sirvo epuática, ele pode
não gostar e levar uma imagem negativa daqui e dependendo de quem é, a coisa pode
ficar suja. (Nahe)
Isso se repete sabiamente e parecem ser muito bem intencionadas as escolhas do senhor
Nahe e de sua gente, ao fazer coisas que agradem a quem detém o poder de incluir ou excluir
alguém dos programas de apoio comunitários. Então, fica claro que o que entra nas festas deles
os
anamuruas,
- não é o que entra nas suas festas locais, ou seja, dos
achinenes-nativos,
157
conforme discutido no capítulo 5. Se, por um lado a batata-doce de polpa alaranjada é vista como
comida para receber visitas de pessoas da cidade, temos, por outro lado, esta batata totalmente
ignorada na culinária local.
Quando questionei o senhor Nahe sobre sua dupla identidade, me falou que as duas
partes, o mundo visível e o invisível, estão de acordo, os espíritos sabem que este assunto é
tratado de uma forma bem separada da outra. Aliás, ele precisou lembrar que teve que pedir aos
antepassados que aceitassem esse modo de servir as pessoas da cidade com suas comidas, como
meio de ver o seu povo ser tratado de uma melhor forma. Por isso que não problemas, desde
que a pessoa não coloque as coisas juntas, uma no lugar da outra.
Nossos antepassados sabem que nos momentos que nos alegramos com batata-doce na
barriga estamos apenas tentando agradar os que nos apóiam, porque logo depois cada
um se desculpa na sua casa como mandam as nossas regras tradicionais. (Nahe)
É assim que vivem os habitantes da comunidade, confrontados com realidades não
desejáveis preferem viver na duplicidade dos fatos como alternativa encontrada para ser bem-
sucedido. Por isso, ao sair do trabalho do rum, os homens passam no bar antes de chegar em
casa, porque esses assuntos não podem constituir motivo de conversa. Mas o senhor Nahe
também acrescenta:
Não, porque a gente não produz ou não come batata-doce, até porque faz
bem para as crianças aprenderem, mas não mais do que isso, porque o seu consumo não traz
saúde”
. Várias interpretações poderiam ser dadas à palavra saúde, pois na concepção tradicional
local alguém saudável é aquele que está bem consigo mesmo, com os outros e com seus espíritos.
Se o equilíbrio desses três elementos estiver afetado, a pessoa nunca estasaudável. Por isso,
frequentemente se escuta quando se pergunta a alguém se está bem e ele responde
vakhaane
, o
que significa “um pouco” na tradução direta, ou por outras palavras “nem tanto”, ou “não como
desejaria”. Fazendo uma análise nesse sentido, desde o ano 2000, quando foi introduzida a
batata-doce em proporções massivas, as pessoas nunca estiveram saudáveis, que a presença da
batata na vida delas subverte a honra e o prestígio culturais.
Esta constatação se enquadra no que foi descrito por Garine (1987), que mostra que a
preferência por alguns alimentos e por determinados pratos nos diferentes grupos humanos não
supõe de modo algum que possuam valor nutritivo efetivo. Isto mostra que existe por detrás de
qualquer comportamento alimentar razões mais do que técnicas ou de âmbito científico, mas sim
culturais, que levam a uma determinada escolha, é a alimentação cultural que está acima da
158
alimentação biológica, porque o biológico não existe sem o cultural. A saúde e a alimentação
andam juntas, ao mesmo tempo em que a saúde não é apenas ausência de enfermidade
(HERNANDÉZ E GRACIA, 2004). Por isso, se a pessoa estiver bem de saúde mas tiver algum
problema com outros, que podem ser parentes ou vizinhos, mesmo em paz com seus espíritos, ela
não é saudável. Buscando apreender as justificativas dadas face a situação vivenciada pelas
famílias estudadas, Igor de Garine (1987) avança na possibilidade de poder influenciar os hábitos
a partir das crianças, pois, segundo o autor, é posssível modificar os hábitos alimentares dos
indivíduos de uma sociedade, desde que se faça isso a partir do nascimento. Garine acredita que,
que elas, desde o nascimento, recebem a marca da sua cultura, isso constitui um elemento da
sua integração social. Mas a questão sobre a qual ele não avança é como seria possível
operacionalizar essa mudança. Logicamente e como ele mesmo afirma, as crianças são instruídas
desde o seu nascimento sobre o que se pode e o que não se pode comer. Quem se encarrega de
fazer isso são os mais velhos, que, para garantir a identidade dos habitantes recém-nascidos,
replicam o que sabem para as crianças, porém de modo algum os adultos aceitariam essa
mudança, porque poderia significar que não fazem mais parte daquele grupo social, e isso
representaria a perda da sua identidade.
Então, como seria possível influenciar os hábitos a partir das crianças, que
principalmente em sociedades tradicionais elas nunca são deixadas distantes das suas mães?
Porém, a opinião de se usar as crianças para questões de inovação alimentar em particular,
esbarra no que vimos ao longo dos capítulos anteriores, como nos exemplos de atitudes e
comportamentos alimentares de crianças e jovens que perguntam aos parentes de confiança sobre
como proceder, mesmo que tenham tido orientação na escola. Como vimos, a espiritualidade está
diretamente ligada à cultura, sendo por isso o cumprimento de um imperativo comunitário, no
sentido de que aqueles que dirigem ou velam pelas suas normas são seres do mundo invisível,
detentores de capacidades para agir onde o ser humano não tem alcance. Como o ser humano é
constituído pelo que é visível e invisível, e pode influenciar somente no meio físico, os
ancestrais, que agem fora do domínio humano, exigem-lhes a confiança e obediência acima
daquilo que é material, porque eles atuam nos dois mundos. Por isso as famílias rurais se
questionam:
de que adianta comer a batata-doce de polpa alaranjada
?
159
9 CONSIDERAÇÕES
O objetivo desta pesquisa foi trazer as percepções das famílias estudadas em Murrupula
e Mogincual, dois distritos da província de Nampula, em Moçambique, a respeito de sua
apropriação da batata-doce de polpa alaranjada na produção e consumo, bem como sua
participação nos processos de segurança alimentar e nutricional. Contudo, como anunciado desde
o início, apesar de perpassar por aspectos de política pública para segurança alimentar e
nutricional, este trabalho não pretendeu discutir temas relacionados à construção e
implementação de políticas públicas, ou sobre como deveria ser (ou não) conduzido o processo
de massificação desta variedade de batata-doce, mas sim colher as percepções das famílias e
discuti-las sob o ponto de vista de simbologias e significados ou representações identitárias da
batata-doce de polpa alaranjada. Por isso, neste capítulo de conclusão, serão percorridos os
capítulos anteriores retomando as discussões apresentadas como uma forma de fechamento.
Foi necessário, para tal, alinhavar algumas ideias, principalmente a partir das
perspectivas teóricas empregadas, de modo a apreender os processos e dinâmicas sociais
específicos observados em Nampula. Com a observação participante como principal ferramenta
de coleta de dados, a análise de conteúdo tornou possível a construção deste texto dissertativo,
com ajuda do programa de informática QSR NVivo 2.0
Ao longo do texto, vimos que, desde tempos antigos, a população estudada já tinha
ligação com a agricultura, sempre produziu alimento para o seu sustento, porém o comércio e os
processos de transformação da culinária e dos hábitos alimentares fizeram com que hoje seja
difícil encontrar na mesa dessas famílias rurais somente os produtos originários do local. À
semelhança da batata-doce, outras plantas como a mandioca, que hoje é um alimento identitário,
foram trazidas durante esses processos. O que difere entre eles é a história que envolve o
percurso de cada planta, as razões e as circunstâncias em que cada uma entra em Moçambique,
fazendo com que sua apropriação dependa disso. A mandioca entra primeiro e se estabelece,
naturalizando-se entre as famílias, e a batata-doce chega depois, em um período conturbado pela
situação político-administrativa e não se estabelece de forma pacífica, sendo conotada como
pejorativa, lembrando a opressão da dominação portuguesa.
Embora tendo essa conotação, vimos mais tarde que as famílias tiveram que adaptar
suas atividades agrárias ao longo dos anos às mudanças cio-políticas, introduzindo a batata-
160
doce no domínio infantil, criando também um espaço de cultivo direcionado apenas para essa
faixa etária. Embora hoje não se encontre como a única planta nas machambas infantis, a
batata-doce continua tendo uma identidade infantil, e as atividades agrárias a ela relacionadas são
classificadas como não-trabalho. E porque não é trabalho, também sua produção e consumo não
produzem honra para a família, o que faz com que não seja considerada comida e não possa ser
servida a um visitante. E porque é restrita ao domínio infantil, serve para as crianças no trabalho
na machamba infantil como um treinamento na escola familiar, com a notável atividade de
makhazi
sendo promovida para esse efeito, na qual as crianças exercem papéis que lhes
possibilitam construir relações para a sua reprodução social. Ademais, as mensagens sobre a
melhoria da desnutrição infantil, que por vezes são acompanhadas de campanhas anuais de
vacinações periódicas com suplemento da vitamina A, contribuem para conferir à batata-doce de
polpa alaranjada uma identidade infantil.
Se a batata-doce tem uma identidade infantil, não é considerada comida, o seu consumo
é circunscrito a momentos de não-trabalho porque provoca azar, não pode ser servida a um
visitante porque assim se estará lhe tratando como criança e sem dignidade, o mesmo não se pode
falar da mandioca. Esta se naturalizou em Nampula, e toda atividade relacionada a ela constitui
prioridade das famílias, é o chefe da família que tem o direito de cuidar do seu cultivo, por trazer-
lhe a honra. Os processos de produção e consumo envolvem um ritual no qual os parentes e
vizinhos e outros membros da comunidade podem ser convidados para testemunhar. Toda
atividade relacionada à mandioca é classificada como trabalho, e os diferentes pratos feitos com
ela também são considerados comida, portanto, deve-se comê-la para garantir força, ela uma
sensação de prazer e saciedade, o seu consumo não constitui problema e não tem restrições
culturais. Os visitantes deverão ser servidos com mandioca quando se quer desejar-lhes boas-
vindas e tratar-lhes com respeito, porque o seu consumo fortalece. O prato mais típico e muito
apreciado de mandioca é a
caracata,
e quando é consumido com as folhas significa que o céu e a
terra estão ambos em festa, o que alegra os seus consumidores. Portanto, é um prato básico,
porque o seu consumo é visto como um agradecimento aos espíritos que tornaram tudo possível,
pois os céus e a terra nunca se encontrariam se não fosse pela mandioca.
Nesse processo de construções culturais, a mulher aparece como imaculada, pois assim
como a terra e o céu, ela tudo por amor para produzir comida. Ao preparar o prato típico ela
está se identificando como solteira, portanto, como uma mulher pobre, porque não tem um
161
marido que faça alguma coisa por ela, por isso prepara o prato de pobre. Mas se preparar o prato
típico e tiver algum molho de carne ou peixe de caça como acompanhamento, ela se identifica
como sendo uma mulher rica, portanto, isso significa que tem um marido que pode fazer tudo por
ela, visto que a mulher deve ser poupada de todo trabalho de risco e pesado. Portanto, a
caracata
é a máxima expressão do respeito e dignidade da mulher, ninguém pode questionar ou desconfiar
dela, o seu consumo mostra exatamente isso, o ritual que envolve engolir as bolinhas de massa
sem que esta seja amassada na hora de cortar com as mãos e nem durante o processo de
incorporação revela o
status
social e cultural que a mulher ocupa naquela sociedade, aquela que é
a garantia da família e das gerações, aquela que vale alguma coisa e detém o poder, não
expressivo, porque tem um marido para executar em seu lugar. Portanto, a mandioca está
presente em todas as festas tradicionais e em festas oficiais, enquanto que a batata-doce não entra
nas festas tradicionais porque quebra com a honra e prestígio culturais. A sua produção e
consumo provoca azar por criar situações não desejáveis, que aparecem como reivindicação da
autoridade dos espíritos dos seus ancestrais.
Se, por um lado, a massificação da batata-doce de polpa alaranjada criou um valor
agregado nas famílias, por lhes dar dinheiro, temos, por outro lado, a perda desse valor agregado
acrescido de um déficit, porque as famílias não não ganharam como perderam o que tinham.
Esses são os casos de Murrupula e Mogincual. O distrito de Murrupula soube aproveitar da
melhor forma o programa governamental que distribui ramas de batata-doce de polpa alaranjada e
está obtendo dinheiro através da venda de ramas e da própria batata-doce às mesmas instituições
fomentadoras, que, por sua vez, distribuem para zonas com carência alimentar e nutricional.
Embora sua produção se resuma aos fóruns das associações, o dinheiro ganho chega a
proporcionar à família algum bem material, como uma bicicleta, uma vestimenta ou alguma outra
coisa. No caso de Mogincual, as pessoas não souberam cuidar do assunto da massificação dessa
variedade e acreditam que provocaram a ira dos seus ancestrais, que causaram pragas e doenças,
o que faz com que o que antes produziam e comiam não possam mais, por conta de ciclones e
ventos fortes que constituem uma rotina ano após ano. Também as chuvas são uma raridade neste
ponto da província, o que, segundo seus habitantes, é um fenômeno recente, pois antes o distrito
tinha a agricultura como atividade básica e não a pesca, como tem sido atualmente. Por isso
mesmo, o distrito não ganhou com a massificação dessa batata, pelo fato dos habitantes a terem
162
incorporado de modo irregular, e ainda sofreram baixas naquilo que antes possuíam como a
agricultura que dava o seu sustento.
Se a poligamia é sinônimo de poder para quem tem trabalho em Murrupula, o mesmo
não se pode verificar em Mogincual, onde o existe trabalho. As mulheres em Murrupula são
ricas e gordas, e em Mogincual são magras, solteiras, e por isso mesmo, pobres. Enquanto que
em Murrupula a batata-doce de polpa alaranjada representa dinheiro, por conta do negócio, em
Mogincual a distribuição da rama e da batata-doce é vista como um sinal de alerta de crise
alimentar, de ventos fortes, ciclones e secas, o que desmoraliza e preocupa seus habitantes,
porque se constitui um ciclo vicioso, ano após ano.
Enquanto que os habitantes do distrito de Murrupula realizam festas tradicionais como
mulipo, imwali, alukhu, natiri, satakha e satakhinha,
no distrito de Mogincual apenas é possível
realizar
imwali
e
alukhu
, reservadas para os finais do ano e em épocas de colheita, para facilitar o
processo, que tudo depende de comida. Essas duas festas são as que nunca podem falhar, por
representarem a instrução tradicional, quando a ordem cultural é inculcada nas crianças, e
condicionam a sua ascensão à fase de adulto. Outras festas de agradecimento, como
mulipo
e
satakha
e
satakhinha,
não são realizadas por não existir comida suficiente.
Natiri
também não se
faz, porque que os ancestrais, que garantem a intervenção dos deuses para a realização do
desejo do
natirante
, estão zangados, então não existe mais como alguém fazer essa festa.
Tanto por causa de migração normal ou por conta da carência de alimentos, os que saem
da comunidade são considerados cativos, porque uma vez fora, sofrem influências do meio em
que estiveram inseridos, por isso mesmo que, ao voltar para a comunidade de origem, serão
considerados cativos, aqueles que merecem pouca confiança. De outro modo, os que nunca se
ausentaram da comunidade são aqueles que chegam a ocupar papéis relevantes na estrutura
social, porque foram dignos e fiéis por não a abandonarem e, por isso, vivenciaram todos os
processos e mudanças da comunidade. Os que não nasceram no local e que vieram a trabalho ou
para morar, são considerados estrangeiros, aqueles que, embora se construa alguma relação com
eles, não são dignos de confiança, porque não sabem nada dos valores locais e, se souberem, na
hora de sacrificar-se por eles poderão não fazê-lo. É nesta ordem de ideias que também se
estabelecem, no seio das comunidades, as relações entre a batata-doce de polpa branca,
alaranjada e a mandioca. A mandioca naturalizada é considerada local, portanto nativa, digna de
confiança e honra. A batata-doce de polpa branca se torna cativa, porque é preferencial na
163
produção e consumo familiar em comparação com a batata-doce de polpa alaranjada. Muito
embora esta última seja nutritivamente importante, ela é considerada como estrangeira, não digna
de confiança.
Os esforços para mitigar a fome e a desnutrição através da batata-doce de polpa
alaranjada podem ter sido uma alternativa não muito adequada, pois esta variedade pode
melhorar a nutrição, mas provavelmente não a fome, que o seu consumo, por estar ligado a
questões de tabu e superstição, coloca-a em uma posição desprezível na alimentação das famílias.
E dada à massificação, que tornou quase que uma obrigação sua produção e consumo, pode ser
que se verifique o círculo vicioso da pobreza, já que se acredita que ela traz problemas climáticos
e doenças, causando a miséria e desnutrição.
Embora este estudo tenha sido feito em uma região produtora de mandioca e em uma
província específica onde tradicionalmente não se produz e se consome em massa a batata-doce
de polpa alaranjada ou branca pelas razões apresentadas, é possível também afirmar que por
experiências de trabalho e vivência em nenhuma província do país se produz e se consome em
massa. Do mesmo modo que a batata-doce não entra em nenhuma festa tradicional em Nampula,
assim também não entra em nenhuma outra província do país. O mesmo tipo de relação se
verifica com a mandioca: assim como entra nas festas tradicionais em Nampula, também pode
entrar nas festas tradicionais das outras províncias do país, mesmo sendo uma região produtora
de milho ou arroz.
Dando continuidade às discussões levantadas ao longo da apresentação deste trabalho
de pesquisa, as reflexões levam a apontar algumas linhas orientadoras de possibilidades de
relacionamento entre os hábitos alimentares típicos da região estudada, portanto, aquilo que
constitui a identidade das pessoas, hábitos que se sentem à vontade em manter por constituir o
seu dia a dia mesmo com interferências de políticas de segurança alimentar e nutricional. Nesse
sentido, essas linhas referidas não são tomadas como um esgotamento do assunto, muito menos
como sendo a chave mágica para o problema identificado.
A mandioca seria a opção adequada que as famílias lidam com ela com bastante
naturalidade na produção, no consumo e em suas relações sociais. As festas tradicionais que
constituem a mais alta expressão cultural local são realizadas à base de mandioca e ela não
encontra nenhuma barreira cultural, o que torna a sua produção e consumo preferencial. Então,
164
um caminho, seria constituir a mandioca como uma alternativa viável para a segurança
nutricional e também para a segurança alimentar das famílias rurais.
A batata-doce de polpa alaranjada continua relevante para a suplementação alimentar e
nutricional, embora a sua produção e consumo se dêem com bastante cuidado. Mas mesmo
assim, durante o
makhazi
o consumo pode ser um diferencial, mesmo que pequeno. A
contribuição na renda familiar que esta batata-doce tem é mais uma forma de expressão de seu
valor socioeconômico, embora seja desprezada. Com tudo isso, considero que vale a pena mantê-
la, para coexistir com outras plantas e assim alargar as alternativas alimentares e nutricionais. A
experiência de trabalho em fóruns das associações revela uma forma de trabalho que agride
pouco os princípios culturais estabelecidos, e o caso do distrito de Murrupula pode ser um
modelo a ser seguido.
Dada a complexidade cultural de Moçambique, a homogeneização de programas de
intervenção em diferentes áreas deveria obedecer às características socioculturais e econômicas
das regiões, visto que seus valores e simbologias podem ser bem diferentes e variar de uma
região para outra. Tratando especificamente de alimentação, este trabalho mostrou que mesmo
em um pequeno comportamento alimentar pode estar emaranhada uma infinidade de significados
que não devem ser ignorados. Se em Nampula a batata-doce é considerada abominação, pode ser
que isso não ocorra em outra região, pode ser que, embora não entre nas festas tradicionais, ela
não seja abominada. E isto faz com que este estudo abra um espaço para que trabalhos de
pesquisa desta natureza sejam feitos também em outras regiões do país.
165
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170
APÊNDICE I
Roteiro de entrevistas
1.ESTRUTURA DO AGREGADO FAMILIAR
a) Sexo do chefe do agregado familiar: Masculino; Feminino
b) Estado civil: Solteiro; Casado; Divorciado; Outro_____________
c) Número de membros do agregado familiar _______
d) Idade dos membros do agregado familiar:
0-10 anos (Crianças)_____;:10-18 anos (adolescentes)_____;18 -35 anos (jovens)______
35 - 60 anos (adultos)______; + de 60 anos (velhos)______
2. FUNCIONALIDADE
a) Quem decide dentro da família: ____________; Porquê:____________________________
b) Quantas machambas (áreas de cultivo) tem_________
c) Aonde se localizam
A volta da casa Distantes
Quantidade
Quem trabalha
Por quê
O quê produz
Destino da produção
Por quê
d) Indique um produto que mais gosta de comer_____________________________
Por quê______________________________________________________________
e ) Indique um produto que a sua família gosta de comer______________________________
Por quê______________________________________________________________
f) Quantas refeições têm por dia? _______ Por quê___________________________________
g) Quem deve participar nessas refeições
171
Matabicho:_____________ Almoço:__________________ Jantar:__________________
h) Qual é o conteúdo alimentar
Matabicho Almoço Jantar Outro
Frescos
Cozidos
Outros
Por quê
i) Outras atividades nãoagrícolas da família
Artesanato; Comércio; Nenhuma; Outro_______________________
Porquê__________________________________________________________________
3. RELAÇÕES SOCIAIS
a) Quantos convívios/festas costumeiras existem na comunidade por ano: ____________
b) Quantas delas participa:_______________ Por quê(para cada mencionada) _________
c) Quem promove essas festas:_______________________________________________
d) Com que finalidade(s)__________________________________________________
e) O que frequentemente se come nessas festas: ________________________________
Por quê:_________________________________________________________________
f) Qual é o produto que mais se consome nessas festas: ___________________________
Por quê__________________________________________________________________
g) O que acontece se alguém não quiser participar:_______________________________
h) Em caso de conflitos, quem costuma resolver_________________________________
i) Quais são os tipos de conflitos que normalmente aparecem nessas festas
_____________________________________________________________________
j) Sempre foram essas festas desde tempos antigos? Sim Não
Por quê _________________________________________________________________
l) Desde quando é que notou diferenças _______________________________________
Por quê__________________________________________________________________
m) O que se fazia no antigamente ____________________________________________
172
n) O que se comia nesses tempos ___________________________________________________
o) Quem promovia as festas_______________________________________________________
p) Para que finalidade eram promovidas _____________________________________________
q) Qual é a sua opinião sobre esses conflitos: _________________________________________
Outras observações do entrevistado
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
______________________________________________________________________________
173
APÊNDICE II
Comparação entre entrevistados de Murrupula e Mogincual
Distritos Observação
Murrupula
27 famílias
visitadas
Mogincual
23 famílias
visitadas
Lares chefiados por
mulheres
0 (0,0%) 12 (52,2%)
Lares chefiados por homens 27 (100%) 11 (47,8%)
Número de membros 4 a 10 2 a 4
Casais com filhos 18 (66,7%) 10 (43,5%)
Casais sem filhos 9 (33,3%) 13 (56,5%) Moram com parentes
Número de machambas ≤2
8 (29,6%)
23 (100%)
Não inclui machamba
infantil. E para
Mogincula todas
famílias tem 1
machamba onde fazem
consorciação.
Número de machambas > 2 19 (70,4%) 0 (0,0%) Não inclui machamba
infantil.
Obs: Só as famílias perfazem 50 entrevistas. Outras seis entrevistas foram feitas com IITA/IIAM, SETSAN, DPA-
Nampula, CZN, SDAE de Murrupula e SDAE de Mogincual.
174
ANEXO I
Localização de Moçambique no continente africano
FONTE: INE, 2009
175
ANEXO II
Mapa de Mombique mostrando a divisão Administrativa
FONTE: INE, 2009
176
ANEXO III. 1
População Total por Sexo, Segundo Províncias, 2007
População
Províncias Total
Homens Mulheres
Total 20,530,714 9,787,135 10,743,579
Niassa 1,178,117 573,768 604,349
Cabo Delgado 1,632,809 783,235 849,574
Nampula 4,076,642 1,999,958 2,076,684
Zambézia 3,892,854 1,862,091 2,030,763
Tete 1,832,339 885,311 947,028
Manica 1,418,927 674,257 744,670
Sofala 1,654,163 801,417 852,746
Inhambane 1,267,035 559,843 707,192
Gaza 1,219,013 541,866 677,147
Maputo Província 1,259,713 573,595 686,118
Maputo Cidade 1,099,102 531,794 567,308
FONTE: INE, 2009.
177
ANEXO III.2
População da Província de Nampula por Distrito e Sexo
Mulheres Homens Total
Provincia de Nampula 2076684 1999958 4076642
Angoche 141593 135819 277412
Eráti 136341 123319 259660
Ilha de Moçambique 25337 23502 48839
Lalaua 37220 36697 73917
Malema 87021 82013 169034
Meconta 80236 77578 157814
Mecubúri 89058 92372 181430
Memba 122611 112388 234999
Mogincual 67088 64473 131561
Mogovolas 140285 133021 273306
Moma 165980 163201 329181
Monapo 156438 148783 305221
Mossuril 60325 56757 117082
Muecate 48748 46638 95386
Murrupula 73352 69810 143162
Nacala-Porto 105828 102066 207894
Nacala-A-Velha 45938 43398 89336
Nacarôa 56268 52074 108342
Nampula-Rapale 106454 102592 209046
Ribáue 94882 91238 186120
Cidade de Nampula 235681 242219 477900
FONTE: INE, 2009.
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