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Há muito tempo, quando as coisas aconteciam [chuvas fortes, ventos], a mandioca
constituía a base de salvação para a alimentação das pessoas. Nesse tempo, a fome
que existia era controlada porque produzíamos mandioca e, com o pescado, dava
para viver e trabalhar. Mas agora, basta nos trazerem batata-doce de polpa
alaranjada, nada sai na machamba e o pouco que se consegue tirar de lá vai
exclusivamente para a alimentação. (Hanifa)
A senhora Hanifa desabafou sobre a situação que se vive em Mogincual, de uma terra
próspera para uma terra de sobrevivência. Apesar de ser uma zona costeira, a agricultura era a
base da reprodução social. Conseguiam produzir para autoconsumo, enviar para seus parentes na
cidade, realizar todas as festas tradicionais, fortificar as relações de troca. Mas agora a pouca
comida só dá para a alimentação da família, e mesmo assim não chega. O desabafo dela continua:
Outra coisa, eles trazem-nos batata-doce de polpa cor alaranjada para comermos.
Isso também, os técnicos agem de má fé, eles sabem que aquilo provoca doenças e
nos dá cansaço, mas mesmo assim insistem em trazer para nós, por isso nunca chove
[...] Mas infelizmente temos que comer, porque é isso que existe. (Hanifa)
O apoio dado pelos técnicos ao prover a batata-doce de polpa alaranjada está sendo
visto como uma atitude de má fé, ou seja, para eles, os técnicos poderiam fornecer outro alimento
e não a batata-doce. Nos dias que vão à pesca, porque às vezes não têm mais nada em casa para
comer, vão com fome, porque acreditam que se comerem a batata-doce não apanharão nenhum
peixe, a rede pode rasgar, a canoa virar e corre-se o risco de morrer afogado.
A questão de azar com batata-doce é de muito tempo, minha avó conta que depois que
tudo ficou conversado para eles casarem, choveu tanto até que o casamento foi adiado.
Outra vez, eu ia para a caça nas pequenas matas, só para apanhar algum coelho, mas
veja o que me aconteceu, apareceu um leão, que eu fiquei sem saber de onde surgiu,
porque aqui não existem leões ou animais muito grandes. (Yassine).
Estes relatos parecem uma demonstração clara da reprodução das mensagens de geração
em geração, que vai construindo as linhas orientadoras daquela comunidade. Às vezes, no
princípio da época chuvosa, até podem aparecer sinais de um bom ano de chuvas, mas depois
nada acontece, as pessoas colocam as sementes para ficarem torradas ao solo. Nada germina, e
isso vira um ciclo, as sementes compradas ou também distribuídas pelo governo são perdidas no
solo e a comida, que podia ajudar, não pode, por ser batata-doce de polpa alaranjada.
Este distrito tinha de tudo, mas agora só ficaram pessoas magras, o pior é que as nossas
mulheres também ficaram magras, doentes e tudo de errado você encontra aqui. Não
chove, não se trabalha [...] Enfim, para resolver isso é começar do zero, instaurar tudo
de novo, fazermos as nossas festas com regularidade como fazíamos, aí tudo pode voltar
à normalidade, podemos ser até como outros distritos, como Malema, que produz muito.
(Marufo)