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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO RURAL
JOEL JOÃO CARINI
RETERRITORIALIZAÇÕES DE AGRICULTORES
MIGRANTES COMPULSÓRIOS: racionalidades, representações
e cidadania
Porto Alegre
2010
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JOEL JOÃO CARINI
RETERRITORIALIZAÇÕES DE AGRICULTORES
MIGRANTES COMPULSÓRIOS: racionalidades, representações
e cidadania
Tese submetida ao Programa de Pós-Graduação
em Desenvolvimento Rural da Faculdade de
Ciências Econômicas da UFRGS, como requisito
parcial para a obtenção do grau de Doutor em
Desenvolvimento Rural.
Orientador: Prof. Dr. Ivaldo Gehlen
Série PGDR Tese Nº
Porto Alegre
2010
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FOLHA DE APROVAÇÃO
DEDICATÓRIA
À Bila, minha esposa, companheira de
muitas travessias pelos oceanos da vida, pelo
apoio incondicional em todos os momentos;
Às minhas filhas Mariana e Juliana,
minhas motivações sempre renovadas;
Aos meus pais, Júlio e Justina (in
memoriam), pelos ensinamentos singelos a
respeito da importância dos valores que
emergem da vida no campo.
AGRADECIMENOS
Embora reconhecendo o risco de ser injusto por deixar de citar nomes que foram
importantes para a realização deste trabalho acadêmico, valho-me deste espaço para
agradecer:
À Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), particularmente, ao
Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural (PGDR), por oportunizarem-me a
realização do doutoramento.
Ao professor orientador, Dr. Ivaldo Gehlen, cuja a aproximação, desde o final do ano
de 2006, permitiu que estabelecêssemos sólida amizade e confiança. Agradeço pela
competente orientação, pelas palavras de incentivo, pela disponibilidade em me receber em
sua casa para orientação, mesmo no período em que esteve convalescente, recuperando-se de
acidente.
Aos agricultores que me acolheram e disponibilizaram tempo para as entrevistas e
aqueles que me ciceronearam no contato com seus parentes e amigos durante o trabalho de
campo. Agradeço, particularmente, ao Sadi Riedi, Reassentamento Nova Conquista, Irineu
Juriati, Reassentamento Cristo Rei e Osvaldo Baraldi de Engenho Velho.
Aos colegas professores do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia
Farroupilha, Campus Santo Augusto, Tarcísio Samborski e Ricardo Correa pelos debates
(acredito que a convivência entre marxistas e weberianos seja possível) e pelo empréstimo de
acervos bibliográficos; à Ana Carolina Salgado Jardim e ao Cristiano Nunes dos Santos pelo
empréstimo de acervos.
Ao professor Dr. João Carlos Tedesco, do Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade de Passo Fundo, meu orientador do mestrado, amigo e conselheiro, que me
iniciou na pesquisa acadêmica, de quem sou parceiro em pesquisas e publicações desde o ano
de 2004.
À esposa Belmira (a Bila), pelo incentivo constante, companheirismo, tolerância em
relação aos meus maus humores e compartilhamento de angústias. Devo, também, a ela minha
trajetória acadêmica e, em especial esta tese.
Às filhas Juliana e Mariana, minhas incentivadoras e que me auxiliaram no trabalho de
correção final, enquanto eu dividia meu tempo com atividades inerentes à minha condição de
professor.
RESUMO
Esta tese tem como tema o processo de reterritorialização de agricultores familiares da Terra
Indígena de Serrinha (TIS), situada no norte do Rio Grande do Sul. Esses agricultores se
tornaram migrantes compulsórios, recentemente, após terem sido desalojados de suas
terras, ilegalmente ocupadas ao longo das décadas de 1950 e 1960. Contemporaneamente, no
Brasil, dentre as causas das migrações compulsórias de agricultores, destacam-se: a realização
de obras públicas como barragens; a demarcação de áreas de preservação ambiental e a re-
demarcação de terras destinadas às comunidades indígenas e remanescentes de quilombos.
Parte-se do princípio de que esses agricultores desalojados busquem sua reterritorialização no
meio rural a fim de assegurar e ampliar sua cidadania. Considerado este contexto, analisa-se a
relevância das estratégias de reterritorialização, os resultados alcançados e as mudanças entre
os reterritorializados, por meio da investigação das performances socioeconômicas e das
representações sociais dos agricultores. Para tanto, o estudo ancorou-se no método weberiano
de tipos ideais, mediante a definição de três tipos de agricultores: 1) tradicionais, 2)
modernizados e 3) semimodernizados, construídos a partir de indicadores econômicos,
tecnológico-produtivos e socioculturais. A pesquisa de campo foi realizada através da survey
de questionário estruturado e de entrevistas semiestruturadas. Concluiu-se que, no processo de
reterritorialização, as racionalidades são determinadas pelos diferentes modos de (re)inserção
dos agricultores em um novo território e geram mudanças que acompanham a evolução dos
processos produtivos, tecnológicos e mercadológicos, porém, elas também reforçam
permanências expressivas da tradicionalidade nas formas de produzir e de vida societária
rural. Os agricultores modernizados melhoram suas condições de vida e aumentam seu
patrimônio, ao passo que os tradicionais mantêm inalteradas suas condições econômico-
sociais e permanecem excluídos dos processos de modernização capitalista. Os
semimodernizados, mesmo aderindo a algumas tecnologias modernas, encontram dificuldades
para se reterritorializarem no meio rural, devido à redução da capacidade de trabalho, o que
induz à terceirização de serviços e à redução do número de atividades ou fontes de renda.
Observou-se ainda que as reterritorializações de agricultores migrantes compulsórios
reproduzem as desigualdades sociais, redundando em cidadanias diferenciadas que se
expressam na convivência comunitária e nas relações de reciprocidade estabelecidas no novo
território.
Palavras-chave: Reterritorializações; Racionalidades de reassentamentos; Agricultores
familiares; Cidadania.
ABSTRACT
This thesis’s theme is about the process of reterritorialization of familiar farmers from the
Indígena de Serrinha’s land, situated in the North of Rio Grande do Sul. Recently, these
farmers have became compulsory migrants, after being unsettled from their places that they
have illegally occupied in the 50’s and 60’s decade. Contemporarily, in Brazil, among the
reason to compulsory migrations are: the realization of public building such as barrages; the
delimitation of environmental protection areas and the (re) stabilization of land’s boundaries
designated to indigenous communities and to remainder communities of quilombos. This
study suggests that these unsettled farmers are looking for its reterritorialization in the rural
zone in order to assure and to extend its citizenship. Considering this context, in this study it
has been analyzed the relevance of reterritorialization strategies, the results obtained and the
changes between the reterritorialized, through the investigation of socio economic
performances and social representation of the farmers. To do that, this study is supported by
weberian’s methods of ideal types, through the definition of three types of farmers: 1)
traditional, 2) modernized and 3) semi modernized, constituted from economic, technological-
productive and sociocultural indicators. The research field has been realized by the
application of semi-structured surveys and semi-structured interviews. The results suggests
that, in the process of reterritorialization, the rationalities are determinated by different ways
of (re) insertion of farmers in new territories and it makes changes that follow the evolution of
productive processes, technological and marketing, although its changes also strengthen
expressive of traditionally in the way they produced and the social rural life. The modernized
farmers have improved its life’s condition and have increased its patrimony, as well as the
traditional farmers have kept unchanged its social economical conditions and have became
excluded from the modernization of the capitalist process. The semi modernized farmers,
even though adhering to some modernized technologies; they have found difficulties to
reterritorialization in the rural field, decreasing the work capacity, inducing the third services
and the reducing the number of activities or the incoming sources. It also has been observed
that the reterritorialization of compulsory migrated farmers reproduced the social inequalities,
resulting in differential citizenship that is expressed in communitarian living and in the
relationship of reciprocity established in the new territory.
Key-Words: reterritorialization, rationalities of rural resettlements, familiar farmers,
citizenship
LISTA DE SIGLAS
AD: Antes da Desterritorialização
AR: Após Reterritorialização
CIMI-SUL: Conselho Indigenista Missionário do Sul
CRAB: Comissão Regional de Atingidos por Barragens
DTC: Diretoria de Terras e Colonização
FEE: Fundação de Economia e Estatística
FUNAI: Fundação Nacional do Índio
GRAC: Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo
IBGE: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
ICUPF: Índice de Campesinidade da Unidade Produtiva Familiar
IMUPF: Índice de Modernidade da Unidade Produtiva Familiar
MAB: Movimento dos Atingidos por Barragens
Movimento dos Agricultores Sem Terra (MASTER)
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
MI: Movimento Indígena
MDA: Ministério do Desenvolvimento Agrário
MQ: Movimento Quilombola
PCB: Partido Comunista Brasileiro
PGDR: Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural
PMA: Programa Mais Alimento
PRONAF: Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
PTB: Partido Trabalhista Brasileiro
RS: Rio Grande do Sul
TIS: Terra Indígena de Serrinha
UFRGS: Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UP: Unidade Padrão
UPF: Unidade de Produção Familiar
UTH: Unidades de Trabalho Homem
UVM: Unidade de Valor Máximo
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 – Etapas para a escolha da população-alvo e definição da amostra da pesquisa .......30
Quadro 1 - Tipologia de agricultores reterritorializados ..........................................................32
Figura 2 – Localização dos universos empíricos da pesquisa ..................................................35
Quadro 2 - Modalidades de representações, segundo Jovchelovitch. ......................................71
Figura 3 – Formatos sociais rurais brasileiros dos anos 1960, segundo Otávio Velho. ...........89
Figura 4 Territorialização da agricultura familiar-colonial em áreas de matas do Rio Grande
do Sul nos séculos XIX e XX...................................................................................................95
Figura 5 Fronteiras de conflitos por território no norte-noroeste do Rio Grande do Sul em
diferentes momentos.................................................................................................................96
Quadro 3 - Origens, etnias e períodos de intrusão dos chefes das UPF estudados ou de seus
ascendentes .............................................................................................................................119
Quadro 4 - Indicadores e variáveis do Índice de Campesinidade...........................................128
Quadro 5 - Indicadores e variáveis do Índice de Modernidade..............................................130
Figura 5 – Imagens da reterritorialização de agricultores tradicionais...................................148
Figura 6 Imagens da reterritorialização dos modernizados pelo fortalecimento do grupo
familiar ...................................................................................................................................153
Gráfico 1 – Percentual de famílias por número de fontes de receitas agropecuárias AD ......156
Gráfico 2 – Percentual de famílias por número de fontes de receitas agropecuárias AR.......157
Figura 7 Imagens da reterritorialização com priorização da pecuária leiteira e da produção
de grãos...................................................................................................................................158
Gráfico 3 Variação do percentual de famílias por número de fontes de receitas
agropecuárias, considerando os três tipos de agricultores......................................................159
Figura 8 Imagens da reterritorialização dos modernizados: Agricultura de escala, tecnologia
e dependência de financiamentos. ..........................................................................................164
Figura 9 Imagens da reterritorialização pelo fortalecimento da comunidade no
reassentamento, com ênfase na religiosidade.........................................................................170
Figura 10 – Reterritorialização via melhorias técnicas do setor leiteiro. ...............................176
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Aumento no número de estabelecimentos agropecuários em dois municípios do
Médio Alto Uruguai gaúcho ao longo da década de 1940 .....................................................113
Tabela 2 - Variação da produção agrícola, considerando os três produtos, nos municípios de
Sarandi e Iraí na década de 1940............................................................................................114
Tabela 3 - Demarcações e expropriações de terras indígenas no Rio Grande do Sul - 1910-
1968 ........................................................................................................................................115
Tabela 4 - Aumento do número de estabelecimentos agropecuários e da área ocupada na
Grande Erechim ao longo da década de 1940 ........................................................................123
Tabela 5 - Índices de campesinidade por indicador ...............................................................132
Tabela 6 - Número médio de fontes de receita dos agricultores pesquisados ........................133
Tabela 7 - Produção média por UPF dos principais produtos da agropecuária comercial e sua
variação...................................................................................................................................134
Tabela 8 - Número de agricultores que realizam trocas de dias de serviços com vizinhos, de
acordo com suas respostas......................................................................................................136
Tabela 9 - Índice de modernidade por indicador....................................................................137
Tabela 10 - Índices de Campesinidade e de Modernidade, segundo a tipologia de
desreterritorializado................................................................................................................140
Tabela 11 - Número médio de UTHs/UPF, de acordo com os diferentes tipos de agricultores
................................................................................................................................................151
Tabela 12 - Número médio de fontes de receitas agropecuárias/UPF, de acordo com cada tipo
................................................................................................................................................156
Tabela 13 - Área média dos estabelecimentos para cada tipo de desreterritorializado ..........162
Tabela 14 - Variação dos índices de dependência financeira, de acordo com os diferentes tipos
................................................................................................................................................164
Tabela 15 - Percentual de famílias que venderam seus produtos a comerciantes locais no
último ano agrícola AD, por percentual de vendas, segundo os diferentes tipos...................173
Tabela 16 - Percentual de famílias que venderam seus produtos a comerciantes locais no ano
agrícola 2008/2009, por percentual de vendas, conforme a tipologia adotada.......................174
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................
12
1 TEORIAS EXPLICATIVAS DA TERRITORIALIZAÇÃO.....................
40
1.1
TERRITÓRIO,
TERRITORIALIZAÇÃO
E
CIDADANIA...............................................40
1.1.1 Territorialidade e cidadania.............................................................................................50
1.2
TEORIA
DA
RACIONALIDADE .....................................................................................60
1.2.1 A racionalidade em Weber ..............................................................................................61
1.2.1.1 Ações sociais ................................................................................................................61
1.2.1.2 Relações sociais............................................................................................................64
1.3
AS
REPRESENTAÇÕES
SOCIAIS:
DE
DURKHEIM
A
MOSCOVICI..........................65
2 A TERRITORIALIZAÇÃO DE AGRICULTORES FAMILIARES
NAS SOCIEDADES MODERNAS ..................................................................
73
2.1
O
CAMPONÊS
E
O
CAPITALISMO ................................................................................73
2.2.
TERRA,
TRABALHO
E
FAMÍLIA
CATEGORIAS
ESTRUTURANTES
DE
UM
MODO
DE
VIVER
CAMPONÊS ............................................................................................81
2.3.
RECIPROCIDADE
CAMPONESA
EXPRESSA
NA
COMUNIDADE
DE
PERTENCIMENTO.................................................................................................................83
2.4
MUDANÇAS
NOS
FORMATOS
SOCIAIS
E
PRODUTIVOS
RURAIS
CONTEMPORÂNEOS:
O
PARADIGMA
DA
MODERNIZAÇÃO
CAPITALISTA............85
2.4.1 O debate político e teórico-conceitual sobre a territorialização do “campesinato
brasileiro” dos anos de 1960-1970 ...........................................................................................87
3 AS DES-RE-TERRITORIALIZAÇÕES DOS RURAIS NO NORTE DO
RS: DO FINAL DO SÉCULO XIX AO FINAL DO SÉCULO XX..............
92
3.1
O
AVANÇO
DA
“FRONTEIRA
DA
CIVILIZAÇÃO”
NO
BRASIL................................92
3.2
O
AVANÇO
DA
FRONTEIRA
ECONÔMICA
NO
NORTE-NOROESTE
DO
RIO
GRANDE
DO
SUL...................................................................................................................94
3.3
COLONOS,
INDÍGENAS
E
CABOCLOS
E
A
TERRITORIALIDADE
NOS
LIMITES
DA
FRONTEIRA
ECONÔMICA ............................................................................................97
3.3.1 Indígenas e caboclos e seus “territórios provisórios”....................................................100
3.3.2 A racionalidade territorializadora do colono de descendência europeia do Rio Grande
do Sul......................................................................................................................................107
3.3.2.1 A capela e a comunidade............................................................................................107
3.3.2.2 O sistema produtivo....................................................................................................109
3.4
A
DESTERRITORIALIZAÇÃO
DE
COLONOS
PELA
LÓGICA
DO
CAPITALISMO
................................................................................................................................................112
3.4.1 A “crise da terra camponesa” e as invasões de terras indígenas ...................................112
3.5
TRAJETÓRIAS
DOS
INTRUSOS
EM
SERRINHA .......................................................118
3.5.1 A (des)territorialização dos colonos da Grande Erechim..............................................120
4 A CAMPESINIDADE E A MODERNIDADE NAS ESTRATÉGIAS DE
RETERRITORIALIZAÇÃO DOS DESALOJADOS DE SERRINHA.....
125
4.1
PROPOSTA
METODOLÓGICA
PARA
O
CÁLCULO
DO
ICUPF
E
DO
IMUPF.........126
4.1.1 Indicadores da campesinidade.......................................................................................126
4.1.2 Indicadores da modernidade capitalista.........................................................................129
4.1.3 Metodologia de cálculo do Índice de Campesinidade e de Modernidade.....................131
4.2
MUDANÇAS
NOS
ÍNDICES
GERAIS
DE
CAMPESINIDADE
E
MODERNIDADE
DOS
RETERRITORIALIZADOS .........................................................................................132
4.2.1 Índices gerais de campesinidade....................................................................................132
4.2.2 Índices gerais de modernidade ......................................................................................137
5 MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA VIDA DOS
DESRETERRITORIALIZADOS, SEGUNDO A TIPOLOGIA DE
AGRICULTORES ...........................................................................................
140
5.1
PRUDÊNCIA,
AVERSÃO
AO
RISCO
E
RESISTÊNCIA:
CASOS
EMBLEMÁTICOS
DE
DESRETERRITORIALIZADOS
TRADICIONAIS .......................................................141
5.1.1 As representações sobre as condições para produzir e a decisão de remigrar...............142
5.1.2 Dificuldades de adaptação às novas bases produtivas e sociais ....................................146
5.2
FORTALECIMENTO
DO
GRUPO
FAMILIAR
E
CAPITALIZAÇÃO:
O
AGRICULTOR
FAMILIAR
MODERNIZADO
OU
PROFISSIONALIZADO ..............................................150
5.2.1 A força da união da família ...........................................................................................151
5.2.2 Diversificação das atividades produtivas ......................................................................155
5.2.3 Capitalização e modernização nas reterritorializações..................................................161
5.3
TERCEIRIZAÇÃO
DE
SERVIÇOS
COM
MÁQUINAS
E
A
DESESTRUTURAÇÃO
DO
GRUPO
FAMILIAR ..............................................................................................................165
5.3.1 Reassentados e indenizados: racionalidades e trajetórias diferenciadas .......................167
5.3.2 “Forasteiros” versus enraizados.....................................................................................168
5.3.3 Do campo para a cidade e o retorno ao campo..............................................................171
5.4
RELAÇÕES
MERCANTIS..............................................................................................172
6 RETERRITORIALIZAÇÕES DE AGRICULTORES MIGRANTES
COMPULSÓRIOS: RACIONALIDADES, REPRESENTAÇÕES E
CIDADANIA.....................................................................................................
178
6.1
RACIONALIDADES
(RE)TERRITORIALIZADORAS................................................179
6.2
REPRODUÇÃO
E
AUTOEXPLORAÇÃO
DA
MÃO
DE
OBRA
FAMILIAR
ENQUANTO
ESTRATÉGIAS
DE
RETERRITORIALIZAÇÃO.........................................185
6.3
A
DIVERSIFICAÇÃO
E
A
ESPECIALIZAÇÃO
AGROPECUÁRIAS
COMO
ESTRATÉGIAS
PRODUTIVAS
FAVORÁVEIS
À
RETERRITORIALIZAÇÃO ..............190
6.4
RECIPROCIDADE
E
CIDADANIA................................................................................193
CONCLUSÃO ..................................................................................................
201
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...........................................................
205
APÊNDICE.......................................................................................................
214
12
INTRODUÇÃO
1
A desterritorialização compulsória de populações rurais não é um fenômeno novo no
Rio Grande do Sul. A migração forçada tem se repetido no decurso da própria história da
ocupação espacial, constituindo-se em um problema social desde recuados tempos. A disputa
geopolítica pelas terras do Brasil Meridional, entre as coroas de Portugal e da Espanha no
Período Colonial, além de promover o massacre de milhares de indígenas guaranis, contribuiu
para a desterritorialização de outros tantos. O estabelecimento de estâncias constituiu-se como
estratégia da Coroa Luso-Brasileira para a fixação de limites, sobretudo, na fronteira oeste do
Rio Grande do Sul, promovendo a privatização de grandes glebas de campos e matas e
induzindo à desterritorialização compulsória de populações nativas. No começo da era
republicana, projetos geoeconômicos de povoamento e colonização das áreas de matas
consolidam a fronteira interétnica interna e promovem novas desterritorializações de
populações nativas e de posseiros (antigos tropeiros, mestiços indígenas ou caboclos e negros)
(GOLIN, 2006).
No caso do norte e noroeste do Rio Grande do Sul, a ocupação oficial e colonização
intensificaram-se desde a consolidação do projeto modernista-modernizador do Estado, posto
em execução a partir da República Brasileira, na virada do século XIX para o XX.
Inicialmente, o deslocamento de populações indígenas e a consequente destruição de suas
bases (sociais, culturais, simbólicas) territoriais de reprodução deu-se pela ideia
geoestratégica e/ou geoeconômica do Estado de ocupar os chamados “vazios demográficos”
através da ocupação por colonos de origem europeia. Neste primeiro momento, vastos
territórios indígenas foram reduzidos a pequenos “espaços de confinamento”, tais como as
reservas indígenas. Em um segundo momento, muitas reservas foram confiscadas para fins de
assentamento de agricultores sem-terra, ocasionando nova desterritorialização de indígenas.
Ressalta-se que a ocupação por colonos de descendência europeia promoveu, também,
a desterritorialização de milhares de caboclos
2
, pequenos posseiros, pobres, sem recursos para
1
Nesta tese, são adotadas as regras do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, vigente desde janeiro de 2009;
entretanto, é mantida a grafia original em citações diretas, em respeito ao ano de publicação/edição das obras.
2
controvérsias no debate acadêmico quanto ao uso do cognome caboclo ou o caboclo enquanto categoria
social. Martini, em sua análise sobre a história do Rio Grande do Sul da época imperial, apresenta uma descrição
sobre o caboclo que se aproxima da ideia desenvolvida ao longo desta tese. Segundo essa historiadora, caboclo
denominou, ao longo do tempo, aquele trabalhador livre que viveu da natureza, da terra pública, e nela circulava,
até 1850, em posse legal. [...] foi aquele que fez cultivo sazonal, extração vegetal, caça, pesca, comércio e
trabalho eventual em derrubada de mato, roça, cuidando de rebanho nos momentos de grande serviço; [...] eram
os mestiços em geral; eram aqueles que não eram vistos por serem andejos; eram aqueles que se escondiam para
13
a legitimação de suas posses, exigência da Lei de Terras de 1850 para permanecerem
territorializados (CARINI, 2005). Grande parte destes caboclos originou-se nos campos
sulinos, onde seus antepassados exerceram sua territorialidade por meio da caça de gado
selvagem ou “extraviado” para a alimentação, vestuário ou comércio com os portugueses e
espanhóis. É possível deduzir que a privatização dos campos, pelo sistema sesmarial, ao
reduzir-lhes o território, tenha-os forçado a migrar na direção dos campos e matas do norte do
Rio Grande do Sul em busca de “terras livres”.
A partir do último quartel do século XX, em um contexto de conflitos por terras com
expressão histórica de mais de meio século, milhares de agricultores familiares do norte do
Rio Grande do Sul são forçados a abandonar suas terras e migrar, em função de três eventos:
1) a construção de barragens; 2) a retomada de terras indígenas (reservas) pelos índios,
ocupadas por colonos durante a expansão da colonização; e 3) a demarcação de territórios
destinados às comunidades remanescentes de quilombos.
No que concerne às barragens, que se considerar que, a bacia hidrográfica do Rio
Uruguai, no seu alto e médio curso, por apresentar um relevo acidentado, com grandes vales,
condição que contribui para a diminuição dos custos para a construção das hidrelétricas, foi
eleita, no âmbito do Rio Grande do Sul, como prioritária para o aproveitamento de seu
potencial energético. Porém, ao longo desses vales, não obstante as condições topográficas
desfavoráveis para a agricultura intensiva, encontram-se áreas rurais, tanto no Rio Grande do
Sul quanto em Santa Catarina, intensamente ocupadas por pequenos produtores, com
propriedades de até 50 hectares, por isso, a construção de hidrelétricas tem produzido elevado
impacto social, além de ambiental, o que tem contribuído para a organização de movimentos,
como é o caso do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB)
3
.
Ao longo da década de 1970, centenas de famílias de agricultores foram atingidas
pelas barragens de Passo Real, no Rio Jacuí, e de Passo Fundo, no Rio Passo Fundo. No final
fugir” (2006, p. 155). Por sua vez, Gehlen sugere que parte dos caboclos dos campos nativos gaúchos do sul do
Brasil se originou nas fazendas de gado, entre a segunda metade do século XVIII e o final do século XIX, com o
deslocamento de indígenas subjugados, principalmente guaranis das missões, e que, em contato com outras
pessoas que passaram a dividir o mesmo espaço, se miscigenaram biológica e culturalmente. (GEHLEN, 1998).
Nesta tese, usa-se a expressão caboclo para designar o camponês mestiço do norte e noroeste do Rio Grande do
Sul, que vivia de pequenas lavouras e do extrativismo da erva-mate, ao longo dos séculos XIX e XX e, em
muitos casos, na condição de agregado ou peão nas fazendas de gado das áreas de campo.
3
O MAB foi criado em 1988 e tinha por objetivo garantir os direitos dos atingidos por barragens e defender a
diversidade social, cultural e biológica das respectivas regiões. Uma das vertentes do MAB foi a Comissão
Regional de Atingidos por Barragens (CRAB), criada em 1979, na região do Alto Uruguai, no Rio Grande do
Sul (Seminotti, 2008). Vê-se que a mobilização dos atingidos inicia no Alto Uruguai, no Rio Grande do Sul, bem
antes do movimento se extender em escala nacional.
14
dos anos 1970, estudos divulgados pela Eletrosul previam a construção de 22 barragens na
Bacia do Rio Uruguai, sendo que dentre as obras prioritárias a serem iniciadas ainda no início
da década de 1980 estavam as barragens de Machadinho (RS) e Itá (SC) (SEMINOTTI,
2008). Segundo Moraes (1994), havia, no começo dos anos de 1990, uma previsão de que as
barragens projetadas na Bacia do Rio Uruguai iriam ameaçar as bases de reprodução de
40.000 famílias rurais. Conforme Paim e Ortiz (2006), somente as barragens de Machadinho e
Itá, em operação desde 2000 e 2001, respectivamente, desalojaram mais de 5000 famílias, em
sua maioria agricultores familiares. Por sua vez, Seminotti (2008), baseado em estudos feitos
pelas Centrais Elétricas do Sul do Brasil S.A., salientou que, em seu conjunto, as cinco
hidrelétricas construídas ou em fase de construção do Rio Uruguai, a saber: Machadinho,
Itá, Campos Novos, Barra Grande e Foz do Chapecó, atingiram 34.053 hectares de terra e
desalojaram 21.648 pessoas.
Em relação às desterritorializações (migrações) compulsórias de agricultores devido à
questão indígena, alguns eventos notabilizaram-se por suas repercussões sociais imediatas. No
ano de 1978, cerca de mil famílias de agricultores que haviam ocupado a reserva indígena de
Nonoai durante os anos de 1960, na luta por um território, foram expulsas pelos índios, em
uma ação da comunidade indígena caingangue daquela reserva que entrou para a história dos
movimentos sociais agrários (MARCON, 1997; TEDESCO & CARINI, 2007). Este evento
notabilizou-se por sua repercussão sociológica imediata, pois os desalojados acabaram
promovendo os primeiros acampamentos e invasões de propriedades do período militar e
foram o germe do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). (GEHLEN, 1983;
MARCON, 1997). A partir de meados dos anos de 1990, a redemarcação de terras indígenas,
proposta pela Constituição de 1988, novamente determina a desterritorialização de centenas
de famílias de agricultores no Norte do Rio Grande do Sul. A redemarcação das reservas de
Serrinha, Ventarra, Votouro, Monte Caseiros e Nonoai, determinou o desalojamento de 1.764
famílias de agricultores familiares. (MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, 1998).
ainda que se considerar as desapropriações de agricultores objetivando o
assentamento de remanescentes das comunidades dos quilombos, embora no norte do Rio
Grande do Sul a questão quilombola se apresente com menor expressividade em relação do
que a questão indígena. A exemplo dos direitos dos povos indígenas, a Constituição Brasileira
de 1988 assegurou direitos às comunidades quilombolas remanescentes. Por meio do artigo nº
68 do Ato das Disposições Transitórias, é preconizado o direito das comunidades quilombolas
de obterem terras que tenham sido tradicionalmente ocupadas por seus ancestrais. Em 2001, o
Governo do Estado do Rio Grande do Sul tratou de implementar o Decreto Federal nº
15
3.912, de 10 de setembro de 2001, buscando regularizar a questão no Estado, determinando a
execução do Projeto de Estudo, Reconhecimento e Demarcação de seis áreas de terra de
comunidades quilombolas remanescentes. As áreas a serem estudadas foram: a) Morro Alto,
no município de Maquiné; b) São Miguel, no município de Restinga Seca; c) Rincão dos
Martimianos, também em Restinga Seca; d) Casca, na cidade de Mostardas; e) Arvinha, em
Sertão e Coxilha e f) Mormaça, no município de Sertão (SALLES & KUJAWA, 2010).
Essa dinâmica espacial de desterritorialização-reterritorialização contemporânea deve
ser compreendida no contexto da modernidade ocidental capitalista. A hegemonia da
racionalidade instrumental na modernidade sobrepôs o objetivo ao subjetivo. Os
particularismos passam a dar lugar aos universalismos. Como denunciou Touraine (2002, p.
216), “a imagem da sociedade moderna é de uma sociedade sem atores”. A separação entre
sujeitos e objetos, imposta pela racionalidade cnico-instrumental criou os espaços úteis ao
capital. Assim, os espaços ocupados por populações tradicionais, segundo a racionalidade
positivista, são considerados vazios demográficos. Nestes vazios, conta o que pode (e
deve) ser produzido e reproduzido, segundo a razão técnica. As terras indígenas, por exemplo,
por muito tempo foram consideradas terras incultas, quando eram negados os direitos
originários sobre os territórios tradicionalmente ocupados por índios; assim como a
territorialização de hidrelétricas, que induzem à desterritorialização de populações rurais
(agricultores, indígenas, ribeirinhos, pescadores), e ocorre sempre sob o argumento “do mal
necessário”.
No que diz respeito à reforma agrária, setores conservadores da sociedade brasileira
rejeitam as desapropriações sob o argumento da “terra produtiva”. A terra deve ser produtiva,
pois o receituário modernista não aceita a alegação de que a terra possa, também, cumprir
função social, ao se enquadrar no critério de territorialização humana (terra de morada), e não
apenas naquele da territorialização do capital (terra de lucro).
No caso das barragens, o argumento do “mal necessário” tem se robustecido nas
últimas décadas, ancorado no discurso fundamentado na concepção dedesenvolvimento
sustentável”. Com a difusão da ideia da supressão gradativa das fontes de energia de origem
fóssil e da defesa das chamadas energias limpas e/ou renováveis, esse discurso, a partir do
final dos anos de 1980, encontra eco na mídia e nas forças políticas. A nível de Rio Grande do
Sul, o discurso favorável às hidrelétricas ganhou corpo, pois os políticos, em particular, e a
opinião pública, em geral, viam na construção de hidrelétricas a possibilidade de obtenção de
16
vantagens econômicas, como o desenvolvimento do turismo e a obtenção de royalties para os
seus municípios
4
.
Porém, como ficou evidenciado acima, deve-se salientar que, particularmente no
Brasil, a dinâmica espacial de desterritorialização-reterritorialização tem se apresentado de
várias maneiras, às vezes de forma contraditória. A construção de barragens, seja para geração
de energia elétrica ou para projetos técnico-econômicos de irrigação, ao “destruírem as bases
materiais de existência dos trabalhadores rurais atingidos” (MORAES, 1994, p. 108),
promove a desterritorialização humana em favor da territorialização do capital. Isso se
acentua quando estas atingem áreas rurais de minifúndios. O Estado aqui se coloca como
guardião do capital, através dos grandes projetos de desenvolvimento, como foi o caso da
Barragem Binacional de Itaipu, por exemplo. Entretanto, muitas vezes, o Estado tem se
mostrado confuso em suas políticas de ocupação territorial, como no caso das políticas de
colonização no Rio Grande do Sul, onde, em um primeiro momento, colaborou para a
territorialização de agricultores em terras indígenas, e, em um segundo momento, buscou
reverter o erro, promovendo a reterritorialização indígena, mas em consequência houve a
desterritorialização de agricultores. A própria questão das terras quilombolas tem servido para
desencadear conflitos entre colonos e afrodescendentes, como é o caso da disputa da área da
Mormaça, no município de Sertão, Rio Grande do Sul, referido por Salles & Kujawa (2010).
As migrações compulsórias criam rupturas nas relações sociais, culturais e econômicas
das comunidades atingidas (CARVALHO & MEDEIROS, 2009), por isso, muitas vezes,
ocorre resistência por parte das populações forçadas a migrar. Um dos casos emblemáticos de
resistência à migração compulsória é o próprio Movimento dos Atingidos por Barragens
(MAB). Embora possa ser caracterizado, também, como um movimento de cunho ideológico,
abrigando outras demandas que não apenas a luta de resistência (luta pela permanência) ou
reivindicações (indenizações, reassentamentos), estas últimas constituem o carro-chefe das
ações efetivas. Esse cenário sucita algumas inquietações/questões, especificamente no que diz
respeito às migrações compulsórias: O que acontece com um agricultor forçado a migrar?
Quais são suas estratégias de reterritorialização? Por que ele adota tais estratégias?
que se considerar que neste começo do século XXI, em que se discute o papel do
rural no contexto do mundo (pós)moderno, a partir de um debate acadêmico que privilegia o
tema “desenvolvimento”, estudos sobre migrações compulsórias de populações rurais, em
4
As empresas de eletricidade pagam aos estados e municípios que m áreas alagadas, proporcionalmente à área
alagada de cada um, compensação financeira pelo uso da água.
17
uma perspectiva multidisciplinar, praticamente inexistem, sobretudo, em relação às mudanças
e permanências no âmbito de cada unidade de produção familiar (UPF)
5
desreterritorializada e
no âmbito das estratégias de reprodução social das famílias desalojadas, levadas a migrar
compulsoriamente e a buscar novos espaços de reterritorialização rural.
Nesta tese, discute-se a reterritorialização de agricultores enquanto condição para o
exercício da cidadania. Isso implica reconhecer não apenas o direito do agricultor migrante
compulsório em receber ou adquir outra propriedade rural, que tenha, no nimo, as mesmas
condições naturais para produzir que a terra de origem, mas, também, em reconstituir suas
redes de relações sociais e/ou de reciprocidades, desfeitas pela desterritorialização. Assim, o
agricultor forçado a migrar é concebido como alguém capaz de fazer escolhas, ao reconstruir
sua trajetória de vida, de acordo com suas condições materiais e guiado por sua racionalidade.
Estudar as mudanças ocorridas na estrutura produtiva e nas relações sociais mantidas por esse
sujeito/indivíduo, a partir das suas representações sociais, permite entender as verdadeiras
consequências de ações desterritorializadoras, oferecendo subsídios para se discutir políticas
voltadas para projetos de desreterritorialização.
Os estudos focados na problemática das relocações de desalojados rurais encontrados
pelo autor até o momento, notadamente os que se referem aos desalojamentos devido à
construção de barragens, em geral, limitam o debate a questões operacionais e logísticas, aos
efeitos sociais, às ações de atores mediadores e aos direitos dos atingidos
6
. Particularmente
em relação à atuação e/ou ao papel do MAB, enquanto movimento social rural originado a
partir dos eventos desterritorializadores na Bacia do Rio Uruguai, nos Estados do Rio Grande
do Sul e Santa Catarina, já foram publicados diversos estudos. Nessa perspectiva, Viana
(2003) discute a evolução das tratativas e o processo de negociação e reparação dos prejuízos
trazidos pela Barragem de Itá, sem, no entanto, adentrar na discussão sobre as estratégias dos
próprios atores atingidos no enfrentamento do problema. Por sua vez, Moraes (1994) discute
o Movimento dos Atingidos pelas Barragens do Rio Uruguai, a partir de uma análise da ação
político-educativa dos mediadores, inserindo as discussões no contexto político dos anos de
1980, momento histórico em que se deu o processo de reorganização da sociedade civil
brasileira, com a abertura política, em 1985, culminando com a Constituição, 1988. Tal como
foi focado por Viana, no estudo de Moraes, o agricultor atingido aparece muito mais como o
5
Considera-se Unidade de Produção Familiar, nesta tese, um estabelecimento ou propriedade agrícola explorada
pelo agricultor(a) e sua família, que residem na mesma.
6
É possível encontrar inúmeros trabalhos acadêmicos que tratam das barragens, sob vários enfoques:
econômico, ambiental, social. No entanto, são discussões que se limitam às vantagens-desvantagens, priorizando
regiões e determinadas populações locais.
18
ator que sofre uma ação externa, como alguém que está ao alcance dos formuladores de
políticas públicas e/ou mediadores, inserido em um grupo de indivíduos que pensa e age
coletivamente. Nas iniciativas ou estratégias dos atingidos, as ações individuais, induzidas
pelas suas representações sociais, não são levadas em consideração para efeito de análise.
Ao analisar as conquistas e desafios do MAB, na Bacia do Rio Uruguai, Rocha (2010)
discute a questão das barragens a partir dos campos político, judicial e ambiental, ressaltando
que existe no Brasil uma disputa entre o projeto neoliberal (representado pelo Estado
Brasileiro e pelas grandes empresas de capital privado) e o projeto democrático-participativo
(representado pelo MAB). Assim, estão em confronto duas realidades distintas, a das
empresas privadas ou estatais de eletricidade e a dos pequenos proprietários rurais
desalojados. As primeiras apresentam o argumento da necessidade das obras por estas
“atenderem aos anseios da sociedade em seu conjunto”. os últimos, carentes de recursos
materiais e de poder político e, portanto, em situação desvantajosa, sem condições de manter
por largo tempo uma disputa judicial, são induzidos a aceitar as condições oferecidas pelas
empresas na busca pela reterritorialização (ROCHA, 2010).
Referindo-se ao processo de reterritorialização dos agricultores desalojados por
barragens na Bacia do Rio Uruguai, diante da “inevitabilidade do remanejamento
populacional”, o mesmo autor apresenta uma proposta, consoante os preceitos sociais,
ambientais, políticos e econômicos previstos no Projeto Político do MAB. Referindo-se,
especificamente, aos reassentamentos, sugere:
A título de especulação, este projeto poderia se chamar Pequeno Reassentamento
Agroecológico Suburbano (PRAS); em linhas gerais, constaria de um número
reduzido de lotes, de acordo com a livre adesão dos atingidos, dentro de áreas
disponíveis e aprovadas por eles e em locais de fácil acesso aos centros urbanos, de
forma a explorar o crescente mercado dos produtos agroecológicos (ROCHA, 2010,
p. 202).
Pela proposta, percebe-se que o agricultor é colocado como alguém ao alcance de
ações externas à propriedade rural ou como alguém que age coletivamente. Assim, não são
consideradas as diversidades individuais em termos de racionalidades, como foi postulado
acima. A proposta apresentada pelo autor sugere inovações no âmbito tecnológico e
mercadológico, pressupondo que o agricultor estivesse disposto a aderir e a inovar. Não é
feita nenhuma referência àqueles que não estão dispostos a se arriscar em inovações.
A discussão sobre a temática das desreterritorializações de famílias rurais induz,
necessariamente, a uma outra discussão sobre o que é considerado rural atualmente (ou sobre
19
a territorialidade rural). A configuração social e econômica e o papel do rural têm sofrido
profundas e constantes transformações na contemporaniedade, tanto nos países ditos
desenvolvidos quanto no chamado Terceiro Mundo. Desse modo, tornou-se difícil definir
conceitualmente e empiricamente o que realmente pode ser considerado como próprio do
rural. Ademais, a aproximação do “mundo ruralao “mundo urbano”, seja pela difusão de
produtos e costumes urbanos no meio rural (ante a redução das distâncias resultante dos
avanços dos meios de comunicação e transporte), seja pela transformação dos agricultores em
pluriativos, via adesão às atividades urbanas concomitantemente às atividades rurais, tem
fomentado o debate sobre a viabilização de projetos alternativos de trabalho e renda para as
populações rurais, atentando-se ainda para a multifuncionalidade do próprio rural.
A concepção de espaço rural, enquanto território que se contrapõe ao espaço urbano, a
partir de uma perspectiva ou visão clássica, atribui à ruralidade algumas características
especiais, tais como: isolamento, baixa densidade populacional, atraso material e cultural da
população ou maior apego à tradição.
Recentemente, a partir dos novos paradigmas surgidos no Brasil com o declínio do
modelo produtivista de agricultura, o debate sobre o conceito de ruralidade e/ou sobre o papel
do rural ganhou fôlego, postulando-se a existência de uma nova ruralidade. Autores como
Wanderlei (2000) admitem que essa nova ruralidade conta com novas categorias sociais, as
quais assumiram papéis para além de meros produtores de alimentos e matérias-primas.
Segundo a autora, o novo espaço rural hoje conta com os benefícios do avanço da
modernidade, que significa a superação do arcaico em favor do moderno, ou remete ao fato de
que se pode levar o conforto da vida nas cidades para o campo, tornando-a uma extensão da
vida urbana. Nessa perspectiva de mudança de paradigmas, o espaço rural passou a ser
valorizado tanto pela importância atribuída ao patrimônio natural, quanto ao cultural das
localidades.
Entretanto, muitas das conceituações e postulações que se fazem hoje em termos de
mudanças relacionadas ao rural, não passam de meras representações que se fazem a cerca do
rural. Assim, termos como camponês, comunidade e modernização foram substituídos por
agricultor familiar, localidade e multifuncionalidade. Essas representações sociais do rural
têm a ver com mudanças ocorridas de fato nesse meio, mas, também, carregam desejos de
mudanças, como a ideia de rural enquanto espaço de preservação ambiental.
De qualquer forma, deve-se reconhecer a existência de inúmeras realidades sociais
rurais, não somente na comparação entre as ruralidades de diferentes países, como dentro de
um mesmo país, estado, região ou município. Além disso, o debate sobre a questão da
20
multifuncionalidade da agricultura contemporânea, como foi exposto acima, sugere a
existência de múltiplos focos ou prismas de análises que remetem para variados campos do
conhecimento, reclamando por estudos multidisciplinares.
Feita essa ressalva de natureza teórico-conceitual sobre o “mundo rural”, adentra-se na
discussão sobre a permanência do agricultor no meio rural. Do ponto de vista da análise do
desenvolvimento social rural, crescem em importância nas últimas décadas, não apenas os
estudos sobre a agricultura familiar, sua capacidade de resistência-sobrevivência frente à
competitividade dos mercados e sua performance multifuncional, como também sobre a
própria questão das desigualdades sociais nesse contexto, independentemente das
características do estabelecimento familiar.
Mesmo sem aprofundar a discussão sobre o conceito “desenvolvimento rural”, de
natureza polissêmica, o que não é foco nesta tese, há que se considerar a existência de
inúmeras realidades rurais no Rio Grande do Sul, não apenas em termos espaciais – dinâmicas
regionais e/ou diversidade de estilos de agricultura familiar (CONTERATO, 2008) –, mas,
também, no que tange às desigualdades entre atores sociais. Em outras palavras, reforça-se
aqui a ideia de que, para além das diferenças agrícolas regionais, a inserção do rural na gica
do produtivismo, da eficiência e competitividade – independentemente do estilo de agricultura
praticado, se centrado em fatores endógenos ou exógenos criou as condições para acentuar
ou acelerar o processo de exclusão de parte dos atores sociais do campo. Como sugerido por
Gehlen (2004), é relevante considerar o papel de certas políticas públicas como colaboradoras
nesse processo:
As políticas de tipo participativas e dirigidas para segmentos específicos (como é o
caso do Pronaf), embora apontem para mudanças, tendem a fortalecer os que
apresentam racionalidade moderna e centrada na ética do trabalho e da
competitividade, apropriando-se das melhores chances. Não havendo igualdade de
chances nas oportunidades que se oferecem, verifica-se que as políticas públicas
convencionais (tipo crédito agrícola, por exemplo, ou estímulo à formação de
cooperativas) não superam a discriminação e a desigualdade entre uns e outros,
como caboclos, índios e quilombos, por exemplo (GHELEN, 2004, p. 95-96)
A profissionalização sugerida pelo discurso modernista ou modernizador, que tem a
competitividade como paradigma central, não leva em consideração as diferentes
racionalidades entre os rurais. Como nos propõe o autor supracitado, atores como caboclos,
índios e povos quilombolas (considerados povos tradicionais), ainda que se mantenham
atrelados aos mercados, são portadores de racionalidades centradas em outros valores éticos
sobre a reprodução socioeconômica, relações sociais e meio ambiente. Salienta-se que,
21
mesmo entre descendentes de colonos europeus é possível encontrar agricultores ainda
vivendo de “forma tradicional” ou não inseridos no contexto da profissionalização
modernista. O discurso modernizador sustenta que, para ser moderno, que se renunciar aos
valores e saberes tradicionais e se apropriar de outros que levam à perda do controle sobre o
processo de produção em sua totalidade
(
GHELEN, 2004).
Levanta-se aqui essa discussão, pois conforme constatado em um estudo anterior
(Carini, 2005), no conjunto de desalojados ou desterritorializados rurais encontram-se
famílias de agricultores considerados tradicionais, que viviam em condições materiais
consideradas precárias no local de origem ou inadequadas, segundo o receituário produtivista.
Radicados em pequenas glebas, caracterizadas por terrenos de difícil mecanização,
praticavam uma agricultura baseada fortemente em uma racionalidade que apenas satisfazia às
necessidades básicas da família e o excedente era comercializado. A disciplina metódica e/ou
a regularidade no trabalho, exigências da racionalidade capitalista-modernista-competitiva,
estavam ausentes ou parcialmente presentes na maioria das propriedades. A preocupação
nesse caso foi ver como esses atores conseguiram se reterritorializar após os desalojamentos,
ocorridos a partir do final dos anos de 1990, considerando-se que estavam impregnados por
uma racionalidade não moderna ou pouco moderna e a inserção em ambientes que clamam ou
exigem a adoção de pacotes tecnológicos, diante de um desenvolvimento rural (ou agrícola)
de caráter exógeno.
A desreterritorialização dos agricultores familiares, tema desta tese, deve ser entendida
enquanto uma mudança no tempo e no espaço. Em relação ao tempo, é importante levar em
conta a evolução histórica dos sentidos ou das funções atribuídas à agricultura familiar e que
acabam por (re)definir o próprio papel dos agricultores em cada momento histórico. Essas
mudanças no tempo interferem na esfera da mediação, definindo políticas públicas e agendas
reivindicativas, quase sempre preocupadas mais com o agrícola do que com o rural-familiar,
isto é, políticas e agendas atreladas a estratégias dos agentes situados a montante e a jusante
do setor agrícola (forças do mercado), os quais desde o início da “Revolução Verde” no
Brasil, no final dos anos de 1960 e início dos 70, vêm subordinado a agricultura à indústria e
ao capital financeiro ou o campo à cidade. No que concerne ao espaço, deve ser reconhecido
que o território vincula o agricultor familiar impregnado de campesinidade
7
ao rural. Em
7
Nesta tese, utilizam-se os termos campesinidade e modernidade a partir de um enfoque multidimensional. A
campesinidade é referenciada enquanto expressão de uma forma de viver que tende a preservar valores, saberes e
representações sociais que remetem à agricultura familiar tradicional dos colonos de descendência europeia do
Rio Grande do Sul. Por sua vez, a modernidade é entendida como uma forma de ultrapassar a tradicionalidade na
agricultura e colocar-se na vanguarda dos avanços técnico-produtivos. Ressalta-se que esses conceitos foram
22
outras palavras e a título de exemplificação, deve-se considerar que um colono de origem
europeia fora de sua comunidade
8
é como um “peixe fora d’água”, isto é, para o agricultor-
colono “enraizado”, aquele que escolheu a terra para viver e não apenas produzir, a
comunidade de pertencimento é considerada o prolongamento da unidade produtiva,
cumprindo papel territorializador decisivo.
Por outro lado, existe a questão da terra como patrimônio que mantém o status. Ser
proprietário de terra significa fazer-se agricultor ou colono. Nas entrevistas, desalojados-
reassentados manifestam essa percepção, quando falam com orgulho sobre a condição de
proprietários novamente, manifestando certo desconforto ou constrangimento com a
experiência de sem terra vivida logo após o desalojamento de suas terras. Estar desalojado
representa incluir-se na categoria de sem-terra, algo deprimente para alguém que era
proprietário. É possível que essa mentalidade remonte ao campesinato europeu medieval, em
que o camponês era arrendatário ou não proprietário, espoliado pelo senhor (MAESTRI,
2001; PLOEG, 2008). Mendras (citado por WANDERLEY, 2001, p. 30) reconhece que “toda
a história agrária pode ser analisada como uma luta dos camponeses pela posse total da terra,
libertando-se dos direitos senhoriais e das servidões coletivas”. Por sua vez, Roche, referindo-
se especialmente à colonização alemã no Rio Grande do Sul do século XIX, assevera que,
apesar de alguns colonos abandonarem suas terras no começo da colonização e migrarem para
as cidades, face ao desânimo diante da floresta a desbravar e à insignificância do valor
comercial das primeiras colheitas, “no conjunto, o fato de ser proprietário da terra, que
assegurava aos colonos a independência econômica e social, deu a sua classe uma estrutura e
uma mentalidade especiais” (ROCHE, 1969, p. 571).
Num outro estudo sobre a questão que envolve a ocupação irregular de terras
indígenas por colonos, concluiu-se que os processos de desalojamentos de agricultores no Rio
Grande do Sul em que o Estado é o protagonista das ações de despejo têm sido avaliados
apenas sob o ponto de vista econômico-produtivo. Quando se desaloja, avaliam-se os
possíveis prejuízos materiais dos desalojados em termos da retomada da capacidade de
elaborados unicamente com o propósito de estabelecer alguns parâmetros para comparações dos casos
pesquisados, sem grande rigor científico. Esse assunto será detalhado no quarto capítulo.
8
A comunidade aqui é entendida enquanto espaço de pertencimento, onde se estabelece um ambiente de
confiança, típica de culturas pré-modernas, nos termos propostos por Giddens (1991). A comunidade colonial,
também chamada “linha”, congrega elementos materiais e simbólicos que ajudam a solidificar laços de
amizades, reciprocidades, entreajudas que contribuem para a permanência no meio rural. Os três principais
elementos de uma comunidade colonial são a capela, o pavilhão social e a escola. que se ressaltar o fato de
que, nos últimos anos, face ao reduzido número de alunos, em muitas comunidades rurais do RS, escolas foram
fechadas. Isso tem sido visto por muitos desalojados-reassentados como um estímulo ao êxodo rural.
23
produção de cada unidade de produção. O Estado, atentando para a necessidade de se livrar do
problema, partindo do senso comum, oferece em geral duas opções aos desalojados: a
indenização pela terra paga individualmente ou o reassentamento coletivo. Tanto em um caso,
quanto em outro, considera-se o fato de que o desalojado possa vir a se reintegrar ao rural,
seja por meio do reassentamento direto ou pela compra de terra com o dinheiro das
indenizações, reproduzindo o status quo anterior ao desalojamento. Não se discute nesses
casos o processo de redefinição da identidade dos agricultores após sua desterritorialização e a
própria autorrealização profissional (reafirmação da cidadania), considerando suas
racionalidades, isto é, não existe uma preocupação em se definir políticas diferenciadas de
indenização e reassentamento, a partir das racionalidades dos próprios agricultores. Em geral,
os desalojados buscam a reterritorialização a partir do que lhes é oferecido, tendo que decidir
em um curto espaço de tempo se aceitam ou não tais condições. Os valores das indenizações
pagas são estabelecidos através de critérios exclusivamente técnico-produtivos. Isso induz a
subvalorizações das indenizações no caso de terras pouco propícias às práticas agrícolas
intensivas, fato que ocorre com as terras de agricultores pobres. Assim, em geral, os recursos
obtidos com as indenizações são insuficientes para a aquisição de áreas de terra com as
mesmas dimensões das indenizadas. No caso dos reassentamentos, em geral são formados às
pressas, em uma corrida contra o tempo. A adesão a um grupo de reassentados ocorre muitas
vezes motivado pelo temor do agricultor de ser preterido pelas lideranças que o representam
junto às esferas político-institucionais e obrigado a permanecer à espera de uma solução por
vários anos, impedido de plantar (CARINI, 2005).
É necessário considerar que as identidades de um agricultor familiar são forjadas no
contexto de seu cotidiano de trabalho, tendo forte relação com suas origens etnoculturais.
Embora ocorram mudanças nas identidades, provocadas pelo avanço da modernização,
existem permanências que podem ser reforçadas em determinadas circunstâncias. No debate
sobre desreterritorializações de agricultores, o enfoque sobre identidades torna-se relevante ou
mesmo indispensável, pois permite compreender as escolhas ou decisões dos agricultores ao
serem desterritorializados, as quais, muitas vezes, à primeira vista, podem se apresentar como
irracionais.
Conforme será abordado no terceiro capítulo desta tese, historicamente, a agricultura
familiar no norte do Rio Grande do Sul foi representada por duas formas sociais, com
racionalidades territorializadoras distintas. Uma delas, de matriz de origem indígena, resultou
no campesinato caboclo, com sua lógica territorializadora voltada mais para a subsistência do
que para o mercado; mostrou-se sempre pouco propensa à sedentarização, devido ao modo de
24
produzir baseado no sistema de derrubadas-queimadas seguidas de pousios, prática agrícola
complementada pelo extrativismo. A outra matriz, de origem europeia, apresentou desde o
início uma vinculação maior com a terra, tanto por suas relações mercantis, quanto por razões
culturais (religiosidade, redes de parentesco).
Uma prática territorializadora comum nas propriedades camponesas e/ou coloniais do
norte gaúcho é o sistema agrícola baseado na integração agricultura-pecuária ou agricultura-
pequena-criação visando ao mercado. Embora tenha sido uma prática estruturada inicialmente
de forma a garantir a subsistência da família camponesa em um contexto de mercado pré-
capitalista, no Rio Grande do Sul, desde as colônias antigas, ela se estrutura em um contexto
de mercado local-regional e se converte na mola propulsora da acumulação econômica dos
colonos, tendo propiciado que os mesmos conseguissem ampliar seus empreendimentos, com
a aquisição de mais terras para si e para a colocação dos filhos, ainda que, geralmente, à custa
de muito sacrifício e privações. No norte do Rio Grande do Sul, esta prática vigorou por mais
de quatro cadas e consolidou um savoir faire tipicamente colonial. Tedesco (2001), em sua
análise sobre racionalidade e contratualização na agricultura familiar, tomando como base
empírica o contexto sociorrural da Encosta Superior do Nordeste Gaúcho, reforça esta idéia
ao afirmar “que a produção de aves e suínos para o colono (dessa região gaúcha) é um
prolongamento da agricultura; é uma estratégia da unidade familiar que promove a
aglutinação da força de trabalho e objetiva retorno econômico” (TEDESCO, 2001, p. 125).
Portanto, várias práticas agrícolas, algumas típicas da colônia de origem europeia e
outras herdadas da tradição cabocla e indígena, acompanharam as trajetórias históricas das
comunidades rurais do norte gaúcho por décadas, incrustaram-se no cotidiano das colônias
mistas e permanecem até hoje como emblemas ou símbolos culturais, resistindo aos novos
apelos da ciência agrícola, em um contexto de hegemonia do modelo tecnicista-modernista, e
do mercado fortemente atrelado à agroindustrialização.
Diante desse contexto geral de discussões teóricas e de análises empíricas, julgou-se
oportuno dedicar um estudo sobre desterritorializados rurais em processo de
reterritorialização. Se a modernização do sistema produtivo e as novas relações com o
mercado se apresentam como exigências dos novos tempos no meio rural, sendo indicadoras
do potencial para a viabilização do agricultor em sua atividade, resta saber até que ponto a
desterritorialização compulsória pode influenciar negativamente ou positivamente a
reprodução social desse agricultor, a partir de suas condições econômicas e socioculturais.
De antemão ressalta-se que este é um estudo que busca privilegiar o ator
desreterritorializado ou a família desterritorializada, enquanto unidade social, e não o
25
território em si, enquanto base produtiva. O que é central nesta tese é o debate sobre as
estratégias dos desterritorializados visando à reterritorialização, a partir de suas condições
socioculturais e guiados por suas racionalidades, ficando o debate a respeito de outras
abordagens (políticas públicas, desenvolvimento territorial rural, desenvolvimento regional),
relegado a um segundo plano. Essas discussões, igualmente importantes, exigiriam um
esforço de análise muito grande e desnecessário para o que se propõe nesta tese.
O tema de pesquisa escolhido é uma investigação sobre as estratégias das diferentes
famílias no sentido de buscar sua reinserção no espaço rural, após sua desterritorialização
compulsória, mediante as condições que lhe são oferecidas reassentamentos e
indenizações. Busca-se analisar até que ponto aspectos ligados à tradição camponesa
(campesinidade): trabalho familiar, reciprocidades; e à modernidade capitalista: tecnologias,
racionalidade do cálculo, relações com mercados avançados colaboram para ou dificultam na
reterritorialização de agricultores desterritorializados. Destarte, aspectos ligados à (re)
preservação ou não de valores econômicos definidores de identidades socioprofissionais dos
reterritorializados (realocados) recebem a mesma atenção que os relacionados às
sociabilidades e/ou às identidades socioculturais
9
.
Assim, o objetivo geral que norteia a tese é o de analisar as estratégias de
reterritorialização dos agricultores familiares migrantes compulsórios, desalojados da Terra
Indígena de Serrinha, no norte do Rio Grande do Sul, nas perspectivas da busca e ampliação
da cidadania, a partir das performances socioeconômicas e de suas representações sociais.
Os objetivos específicos que orientam a tese são:
1. Construir indicadores do grau de campesinidade e de modernidade das unidades de
produção familiar pesquisadas, considerando variáveis tanto socioculturais -
determinantes da campesinidade, quanto econômicas e tecnológicas determinantes
9
Os conceitos de identidade socioprofissional e identidade sociocultural são desenvolvidos por Gehlen (2009) e
outros que o referenciam, no que concerne à vida privada ou coletiva dos indivíduos. O conceito de identidade
sociocultural é utilizado por Gehlen para designar modos de viver e pensar de pessoas e/ou grupos, em que se
manifestam aspectos culturais da vida privada e coletiva, que remetem a diferentes formas sociais e/ou a
diferentes grupos sociais ou étnicos. Nas palavras do próprio autor, “a identidade sociocultural remete-nos à
condição de existência privada, referenciada na relação com o meio (intra), com o chamado local, que possui
abrangência e conteúdos não padronizados; por isso precisa ser definido em cada situação, salvo quando se
refere a conceitos consagrados, como comunidade, município, estado, nação, etc. Privado no sentido de
referir-se à determinada totalidade cultural, aquela à qual os atores socais tem pertencimento” (GEHLEN, 2009,
p. 32). Schultz (2006), por sua vez, referindo-se especificamente ao ator social rural, define identidade
socioprofissional como sendo uma representação social do ator, entendendo que se trata de uma construção feita
a partir dos discursos e das percepções dos agricultores sobre sua atividade profissional. (SCHULTZ, 2006).
26
da modernidade, visando a estabelecer parâmetros objetivos para classificação das
mesmas.
2. Identificar as mudanças e permanências ocorridas em cada Unidade de Produção
Familiar (UPF), quanto à organização produtiva e divisão do trabalho no âmbito
familiar.
3. Analisar as relações de reciprocidade estabelecidas no que concerne à comunidade de
pertencimento, na transição da situação original para a atual.
4. Analisar as representações sociais dos agricultores reterritorializados expressivas de
seu grau de cidadania.
Esse debate sobre as estratégias de agricultores desterritorializados na busca pela
reterritorialização, independentemente do recorte empírico escolhido, remete ao entendimento
de que a dinâmica reterritorializadora não obedece a um padrão ou formato único. As
estratégias são variadas e os desterritorializados apresentam-se como desafiadores das
políticas públicas voltadas à problemática da desterritorialização compulsória. Atentando-se
para essas considerações e objetivos, foram formuladas três hipóteses:
1. As diferentes racionalidades nos processos de reterritorialização resultam de diferentes
formas de (re)inserção dos agricultores no meio rural, acompanham a evolução dos
processos produtivos e mercadológicos, porém, reforçam permanências expressivas da
tradicionalidade.
2. No processo de reterritorialização, os agricultores moderno-produtivistas se
profissionalizam, melhoram suas condições de vida e aumentam seu patrimônio; os
tradicionais mantêm suas condições econômico-sociais e permanecem excluídos do
processo de modernização capitalista e os semimodernizados ou parcialmente
modernizados encontram dificuldades, devido à redução da força de trabalho e de
atividades agrícolas.
3. Nas reterritorializações de agricultores migrantes compulsórios, reproduzem-se as
desigualdades sociais, o que gera diferenciações de cidadanias, que se expressam nas
representações sociais, na convivência comunitária e nas relações de reciprocidade
estabelecidas no “novo território”.
Procedimentos Metodológicos
27
Antes de avançar nos detalhamentos sobre a metodologia utilizada nesta tese, vale a
pena recorrer a algumas recomendações de Weber (2006) sobre a metodologia nas ciências
sociais ou “ciências da cultura”, como ele as chamava.
É possível reter de Weber a ideia de que os fenômenos da vida humana possuem um
caráter de transitoriedade porque renascem a cada instante, assumindo novas configurações.
Destarte, ainda que possam ocorrer permanências ou preservações conceituais no decurso da
história, a realidade está sempre assumindo formas novas, desafiando o pesquisador a buscar
respostas para novas perguntas.
O fluxo do devir incomensurável flui incessantemente ao encontro da eternidade. Os
problemas culturais que fazem mover a humanidade renascem a cada instante e sob
um aspecto diferente, e permanece variável o âmbito daquilo que, no fluxo
eternamente infinito do individual, adquire para nós importância e significação,
convertendo-se em individualidade histórica. Mudam também as relações
intelectuais sob as quais o estudados e cientificamente compreendidos. Por
conseguinte, os pontos de partida das ciências da cultura continuarão a ser variáveis
no imenso futuro, enquanto uma espécie de imobilidade chinesa da vida espititual
não desacostumar a humanidade de fazer perguntas à sempre inesgotável vida
(WEBER, 2006, p. 63-64).
O autor reforça na citação a necessidade de se praticar uma ciência da realidade,
considerando-se o momento histórico, em que apenas uma parcela finita do universo infinito
de eventos da vida social deve interessar ao pesquisador.
Portanto, a base dos fundamentos do pensamento weberiano repousa na sua convicção
sobre o caráter mutável e individualista das manifestações da vida humana. Assim, ele nega a
existência de leis universais que expliquem os fenômenos sociais. Para ele, os fatores sociais
devem ser analisados como fenômenos culturais "historicamente significativos", pois "a
realidade empírica é cultura a nossos olhos porque e tanto que nós a elevamos a ideias de
valor" (WEBER, 2005, p. 92). O autor alerta, também, que:
Temos de admitir que ‘cosmovisões’ nunca podem ser o resultado de um avanço do
conhecimento empírico, e que, portanto, os ideais supremos que nos movem com a
máxima força possível existem em todas as épocas na forma de uma luta com outros
ideais que são, para outras pessoas, tão sagrados como o são para nós os nossos
(WEBER, 1992, p. 113).
A epistemologia weberiana, portanto, condena a ciência com visão teleológica,
centrada em uma determinada crença ou visão metafísica, que remete à ideia de mundo do
“progresso” ou da “felicidade” eternos. Dessa forma, sua posição era a de que ao cientista
competia procurar entender os fatos de seu tempo sociologia compreensiva –, despido de
28
qualquer roupagem religiosa ou ideológica. Assim, para Weber, o importante é o real
concreto, não o idealizado, como queria Platão.
A objetividade nas ciências sociais parte da subjetividade do cientista. Isso significa
que a ciência simplesmente é aquilo que os homens de determinada sociedade, em
determinada época, entenderam ser importante pesquisar. Por conseguinte, a força que
impulsiona o pesquisador para determinada realidade empírica advém de seus valores que
poderão não corresponder aos valores de outros. O significativo para ser pesquisado pode ser
algo particular que se tornou significativo para o autor, de acordo com suas ideias de valor ou
significação cultural, nos termos propostos por Weber. Assim, o autor alerta para o fato de
que o real concreto, não o real desejado, deve interessar ao pesquisador, na medida em que:
“uma ciência empírica não tem como ensinar a ninguém sobre o que deve, somente sobre o
que pode e eventualmente sobre o que quer” (WEBER, 2006, p. 17). Em outras palavras,
não se pode esquecer que, mesmo guiado por valores culturais, o pesquisador deve emitir
juízos de fato e não juízos de valor.
Um outro aspecto relativo à busca pela objetividade do conhecimento nas ciências
sociais, ressaltado pelo autor, é o de que os fenômenos sociais não possuem caráter
objetivamente intrínseco. Isso significa que é necessária a imputação causal a esses
fenômenos e, em seguida, a pesquisa para que se verifique se as hipóteses se confirmam. Isso
não significa dizer que o pesquisador prescinda do conhecimento sobre regularidades de
ocorrências ou do conhecimento nomológico, nos termos de Weber. A segurança da
imputação causal será tanto maior quanto mais seguro e amplo for o conhecimento geral do
pesquisador. Porém, o autor adverte que “para as ciências exatas da natureza as leis são tanto
mais importantes e valiosas quanto mais geral é sua validade. Para o conhecimento das
condições concretas dos fenômenos históricos as leis mais gerais são freqüentemente as
menos valiosas, por serem as mais vazias de conteúdo” (WEBER, 2006, p. 56).
Devido à impossibilidade de se chegar a conclusões hipotéticas sobre fenômenos
sociais ou culturais simplesmente a partir de conceitos genéricos ou totalizadores, Weber
sugere a criação do recurso do tipo ideal. Trata-se de recurso usado no intuito de se
compreender uma parcela finita da realidade infinita dos fenômenos sociais ou culturais. O
tipo ideal não se apresenta como hipótese, mas é o caminho para a formulação desta. Atribui-
se ao tipo ideal especificidades dos fenômenos a serem investigados que conduzem à
formulação de hipóteses. Segundo o autor, o tipo ideal permite a formação de um quadro
homogêneo de pensamento. E acrescenta: “torna-se impossível encontrar empiricamente na
29
realidade esse quadro, na sua pureza conceitual, pois trata-se de uma utopia” (WEBER, 2006,
p. 73).
Outro alerta interessante é o de que o tipo ideal não pode ser entendido como
significando “melhor” ou “exemplar” ou “aquilo que deve ser”. O tipo ideal se apresenta
enquanto tentativa de apreender os indivíduos históricos ou seus diversos elementos em
conceitos que contenham traços culturais que reputamos significativos. Esses traços são
representações do pesquisador e cumprem papel heurístico. O tipo ideal não tem finalidade
explicativa, apenas auxilia na análise e oferece um padrão de medida para a comparação de
fenômenos.
Por fim, ressalta-se que o conceito ou sistema de conceitos entendido como tipo ideal
permite uma leitura de um contexto de significação cultural específica ou particularizada,
fugindo das conceptualizações genéricas.
Atentando para esses pressupostos weberianos, para esta tese, decidiu-se pela
formatação de uma tipologia, a partir de uma caracterização multidimensional das unidades
familiares, que facilitasse a elaboração das hipóteses, segundo critérios estabelecidos a partir
dos objetivos da tese, com base nos levantamentos a campo.
Na escolha do universo de abrangência da pesquisa de campo, levou-se em
consideração as peculiaridades agrícolas da mesorregião (norte) noroeste-rio-grandense, tais
como: trabalho familiar; estrutura fundiária de minifúndios (as propriedades rurais raramente
ultrapassam 20 hectares); colonização por descendente de imigrantes europeus que preservam
traços culturais de seus antepassados (ethos de colono); agricultura centrada na produção de
commodities, porém com forte presença de aspectos que remetem à tradicionalidade
camponesa (mão-de-obra braçal; fraca insumização e produção para autossubsistência).
Em um primeiro momento, criou-se uma expectativa em relação ao universo de
abrangência do empírico a ser pesquisado, pois se julgou ser possível e interessante realizar
uma pesquisa envolvendo dois recortes geográficos: a área da Terra Indígena de Serrinha
(TIS) e a área da Barragem de Itá, ambas situadas nos chamados Médio e Alto Uruguai do
Rio Grande do Sul. Em um segundo momento, a partir de 15 entrevistas realizadas, oito com
agricultores desalojados da TIS e sete com agricultores da Barragem de Itá, constatou-se que
havia semelhanças entre os casos das duas áreas. Julgou-se, por conseguinte, ser
desinteressante incluir os dois recortes para a definição da amostra. Assim, optou-se por
apenas um recorte geográfico, considerado mais apropriado, consoante os objetivos da tese e
as condições materiais e humanas para o estudo.
30
Considerando-se os fatores limitadores acima elencados, decidiu-se pela escolha da
TIS
10
como recorte geográfico a partir do qual seria definida a amostra para a pesquisa. Trata-
se de área territorial que abrange os municípios de Constantina, Engenho Velho, Ronda Alta e
Três Palmeiras, situados na região do chamado Médio Uruguai (norte) do Rio Grande do Sul,
onde aproximadamente 1200 famílias de agricultores foram desalojadas para que as terras
fossem devolvidas aos índios.
Definido o universo de abrangência da pesquisa, realizou-se o primeiro trabalho de
campo ou estudo exploratório, que ofereceu subsídios para se definir a amostra (corpus).
11
Na
definição da amostra para a pesquisa, considerou-se o lugar de origem dos pesquisados ou
lugar em que viviam antes da desterritorialização e não o lugar de destino ou de
reterritorialização.
A figura a seguir mostra a sequência das etapas percorridas até a definição da amostra.
Fonte: Elaborada pelo autor
1Figura 1 – Etapas para a escolha da população-alvo e definição da amostra da pesquisa
Através das entrevistas e dos questionários, realizados com o (a) responsável pelo
domicílio, buscou-se ouvir opiniões e obter informações indicativas de representações e
10
A TIS ocupa uma área de 11.950 hectares. Foi demarcada em 1911 pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI),
juntamente com outras reservas indígenas distribuídas na região de matas do norte do Rio Grande do Sul, em
uma tentativa do Estado Brasileiro de garantir aos índios sua territorialização, ameaçada então pela colonização
que se iniciara entre fins do século XIX e começo do século XX. Durante os anos de 1950 a área foi invadida por
centenas de colonos, que acabaram recebendo do Estado do Rio Grande do Sul, no começo dos anos de 1960, os
títulos de posse definitiva. A nova Constituição Brasileira de 1988 criou dispositivo jurídico, permitindo às
comunidades indígenas a recuperação das terras tradicionalmente ocupadas. Assim, no final dos anos de 1990,
houve a retomada da TIS pelos índios e o consequente desalojamento de cerca de 1200 famílias (agricultores,
pequenos comerciantes, funcionários públicos). Ver Carini (2005).
11
De antemão, ressalta-se que este recorte geográfico foi limitado, conforme salientado, pelas condições
materiais e humanas do pesquisador, devido à falta de financiamento (bolsa) e à necessidade de trabalhar (não
houve dispensa do trabalho), enquanto realizava a pesquisa.
31
racionalidades dos desreterritorializados, considerando-se os seguintes indicadores e
variáveis:
a) Econômico: fontes de renda, sistema de produção e mercado.
b) Tecnológico-produtivo: mecanização, força de trabalho, uso de pacotes tecnológicos.
c) Sociocultural: família, reciprocidades, cosmovisões.
A elaboração do esquema tipológico de inspiração weberiana, como referido,
representado pelo quadro 1, a seguir, foi idealizado após algumas leituras e se tornou possível
a partir de levantamentos preliminares a campo ou incursões exploratórias iniciais, através de
entrevistas com agricultores, aplicação de alguns questionários e observação direta do autor,
visando à elaboração do projeto de pesquisa e qualificação da tese.
De acordo com suas características ou racionalidades, os agricultores foram
classificados em três tipos, conforme explicitará o quadro 1.
O primeiro tipo reúne agricultores mais voltados para o que se poderia chamar de
“agricultura tosca”, isto é, tipo de agricultura altamente dependente da natureza, em que
pouco uso de tecnologias e forte ênfase na produção para a autossubsistência. Este tipo de
agricultura tem forte relação com o campesinato caboclo, como se verá no terceiro capítulo.
O segundo tipo reúne os agricultores modernizados, aqueles que foram considerados
pelos fazedores de políticas públicas de um passado recente como os que deveriam servir de
exemplo a todos os agricultores familiares.
O terceiro tipo agrupa agricultores tradicionais que buscam se aproximar da condição
de capitalistas modernos, embora sem disporem dos capitais necessários.
A tipologia, representada no quadro 1, foi concebida, como foi frisado, com o intuito
de servir como recurso para a formulação das hipóteses e de nortear o trabalho de campo
posterior. O quadro mostra os três tipos, com seus respectivos indicadores e variaáveis.
32
2Quadro 1 - Tipologia de agricultores reterritorializados
TIPOS
INDICADORES
VARIÁVEIS
TIPO 1
Agricultor
tradicional
TIPO 2
Agricultor
modernizado
TIPO 3
Agricultor
semimodernizado
Sistema de
produção
Ênfase na
agropecuária de
subsistência e
produção comercial
em pequena escala e
pouco diversificada.
Produção comercial
de commodities em
escala, e
relativamente
diversificada.
Produção comercial
em escala, porém,
pouco diversificada.
Predomínio do
cultivo de soja.
Origens da
renda familiar
Equilíbrio entre
receita
agropecuária,
receita
previdenciária e/ou
de políticas
assistenciais (bolsa
família).
Predomínio da
receita agropecuária
sobre outras fontes.
Predomínio da
receita agropecuária,
em alguns casos;,
equilíbrio entre
receita agropecuária
e assistência social,
na maioria dos
casos.
ECONÔMICO
Mercado
Venda do excedente
a mercados
próximos: comércio
local,
atravessadores ou
intermediários e
venda direta ao
consumidor.
Produção para
mercados distantes
(cooperativas e
agroindústrias),
prioritariamente.
Produção para
mercados distantes
(cooperativas e
agroindústrias),
prioritariamente.
TECNOLÓGICO-
PRODUTIVO
Tecnologias
Ênfase na força
braçal e tração
animal e uso
esporádico de
máquinas e
equipamentos
contratados de
terceiros; baixa
utilização de
insumos.
Uso predominante e
às vezes exclusivo
de máquinas,
implementos e/ou
equipamentos
próprios e insumos
modernos.
Uso predominante
de mecanização,
mediante a
terceirização de
serviços realizados
com máquinas e
equipamentos na
lavoura, uso
esporádico (mínimo)
de força braçal e
animal.
Força de
trabalho
Exclusivamente
familiar; baixo nº de
UTHs.
Exclusivamente
familiar; alto
número de UTHs.
Baixo nº de UTHs;
arrendamento
eventual.
SOCIAL E/OU
SOCIOCULTURAL
Reciprocidade
Rede de relações
sociais e
institucionais
precária; tendência
ao isolamento.
Rede de relações
sociais (sobretudo,
com a parentela) e
institucionais ampla
e sólida.
Rede de relações
sociais fraca;
enfraquecimento do
grupo familiar.
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Para a realização dos levantamentos a campo, adotaram-se como técnicas de pesquisa
as entrevistas semiestruturadas e o survey de questionário.
O recurso da entrevista qualitativa semiestruturada, ao fornecer dados ao pesquisador
para a compreensão das relações entre os atores sociais e sobre sua situação e percepções no
tocante aos contextos em que vivem e aos eventos da vida cotidiana, permite a compreensão
33
de suas crenças, atitudes, valores e motivações (GASKELL, 2007). Como se trata de uma
pesquisa em que as representações dos pesquisados, sobre assuntos julgados como
importantes, são as que mais contam, o recurso da entrevista individual e em profundidade
tornou-se essencial.
A entrevista qualitativa semiestruturada foi a principal técnica de pesquisa utilizada.
Esta técnica permite que o entrevistador faça perguntas focalizadas, específicas, mas também
deixe o entrevistado responder em seus próprios termos, como sugerem Alves-Mazzotti &
Gewandsznajder (1998). Os dados qualitativos consistem, em geral, na descrição de
percepções, pensamentos, emoções, comportamentos particulares, por isso são muito úteis
para compreender os “motivos subjacentes, os significados e as razões internas do
comportamento humano” (SAMPIERRI; COLLADO; LUCIO, 2006). Outro tipo de
entrevista qualitativa realizada foi a “história de vida”. As histórias de vida constituíram-se
em ferramentas importantes, considerando o que se propunha na pesquisa.
Em relação ao método de pesquisa survey via questionário, salienta-se que ele foi
utilizado pensando-se na obtenção de dados ou informações sobre características, ações e
opiniões dos atores, como forma de complementação das informações obtidas com as
entrevistas, a partir do recurso da tipologia. Segundo Freitas et al., a survey é apropriada como
método de pesquisa quando se deseja responder a questões do tipo: O quê? Por quê? Como?
Quanto?, e o objeto de interesse ocorre no presente ou no passado recente (FREITAS et al.,
2000, p. 105-106).
Desse modo, o questionário contou com 60 perguntas, abertas e fechadas. Ressalta-se
que o mesmo foi refeito várias vezes, pois ao longo do trabalho de campo, sobretudo, na
primeira investigação, realizada no final de 2008 e início de 2009, o pesquisador, a partir dos
dados coletados nos primeiros questionários, foi construindo interpretações que acabaram
gerando novas questões, também foi percebendo as limitações das questões quanto ao seu
poder de recolher dados considerados essenciais, consoante as hipóteses formuladas.
Considerando-se os objetivos desta tese, decidiu-se por definir uma amostra não
probabilística. Salienta-se que, ao contrário da amostra probabilística, na amostra não
probabilística, nem todos os elementos da população têm a mesma chance de serem
escolhidos (FREITAS et al., 2000). Para se definir quem deveria fazer parte da amostra,
levou-se em consideração que, das cerca de 1200 famílias desalojadas, muitas residiam em
áreas urbanas (sedes de distritos) e se ocupavam de atividades não diretamente ligadas à
agricultura. Outras, mesmo dedicando-se à agricultura, eram absenteístas. Essas famílias
foram excluídas desde o primeiro momento, por não possuírem o perfil que interessava na
34
pesquisa. Estimou-se, então, com base em dados da Secretaria da Agricultura do Rio Grande
do Sul, que o número de agricultores efetivamente radicados no interior da área e dedicados à
agricultura perfazia um total aproximado de 700 famílias. A partir dessas informações,
estabeleceu-se em 70 (10%), o número aproximado de famílias a serem investigadas, entre
reassentados e indenizados.
Após a decisão sobre o número de participantes com os quais se iria trabalhar,
considerando-se o caráter qualitativo do enfoque, não se buscou a representatividade da
população a ser estudada, por meio de seleção aleatória, para definir quem deveria participar
da pesquisa. Como sugerido por Sampieri, Collado e Lucio, no enfoque qualitativo, “a
amostra é uma unidade de análise ou um grupo de pessoas, contextos, eventos, fatos,
comunidades, etc. de análise, sobre o(a) qual deverão ser coletados dados, sem que
necessariamente seja representativo(a) do universo ou da população que se estuda”
(SAMPIERI, COLLADO, LUCIO, 2006). Assim, optou-se pela amostra não probabilística
dos casos típicos (typical cases). Nesse tipo de amostra, a escolha dos participantes é feita por
se considerar que eles representam situação típica (HENRY apud FREITAS et al., 2000). Para
facilitar o trabalho de campo, foram coletadas, inicialmente, informações sobre o perfil dos
participantes, em sindicatos de trabalhadores rurais, prefeituras e Emater. Após iniciado esse
trabalho, a seleção foi sendo facilitada pelas informações dos primeiros participantes.
O momento derradeiro do trabalho de campo aconteceu no segundo semestre de 2009,
quando foram aplicados 60 questionários e realizadas 52 entrevistas. O número de
questionários e de entrevistas foi definido seguindo-se o preceito de que “a construção do
corpus é um processo interativo, onde camadas adicionais de pessoas ou textos são
adicionados à análise, até que se chegue a uma saturação e dados posteriores não trazem
novas observações” (GASKEL & BAUER, 2007). Ressalta-se que os entrevistados foram
sendo escolhidos, tendo-se o cuidado de que apresentassem características conforme a
tipologia estabelecida e de que fossem contemplados nesse universo tanto indenizados, quanto
reassentados. Assim, os 60 agricultores selecionados foram os que se julgou terem perfis que
se enquadrariam na tipologia estabelecida, entre indenizados e reassentados. Destes, oito
foram excluídos da listagem de participantes, por se julgar que não se incluíam em nenhum
dos três tipos. Dessa forma, trabalhou-se com uma amostra de 52 participantes. Desse total,
sete agricultores foram classificados como tradicionais, sendo que todos haviam sido
indenizados; 19 foram classificados como modernizados, sendo 16 reassentados e três
indenizados e, por fim, 26 foram classificados como semimodernizados, sendo 17
reassentados e nove indenizados.
35
No mapa a seguir, visualiza-se o recorte geográfico onde foi determinada a amostra da
pesquisa
.
Em escala maior, está destacada a área onde ocorreu a desterritorialização
(localização da TIS). Em escala menor, estão os municípios onde vivem os reterritorializados
(reterritorializados reassentados e reterritorializados indenizados).
3
Figura 2 – Localização dos universos empíricos da pesquisa
FONTE: Mapa elaborado pelo autor, a partir da base cartográfica digital do RS da FEPAM (Disponível:
www.fepam.rs.gov.br).
A mesorregião geográfica definida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) como noroeste rio-grandense, onde se situa o universo da pesquisa, apresenta uma
paisagem rural de agricultura predominantemente familiar, em que ocorreu ao longo do século
XX um intenso processo de fragmentação fundiária ou minifundização que avançou inclusive
36
sobre áreas de terrenos declivosos, impróprios para a prática da agricultura intensiva e/ou
mecanização
.
Ademais, desde o final dos anos de 1970, a agricultura tradicional
(camponesa/colonial), fortemente centrada na naturalização dos processos produtivos, sob o
apelo do agronegócio, foi impactada pela lógica racional da artificialização das formas de
produzir. Esta artificialização passou a exigir grandes somas de capital e outra racionalidade
produtiva. O resultado foi um intenso processo de empobrecimento geral dos municípios,
sobretudo os mais dependentes de rendas oriundas do setor rural, acarretando um contínuo
esvaziamento demográfico (CARINI, 2005; CONTERATO, 2008). Entretanto, importa
ressaltar o fato de que as unidades produtivas familiares que sobreviveram, não obstante a
modernização parcial do sistema produtivo, mantiveram algumas de suas características
tradicionais.
Para a realização da pesquisa que constitui esta tese, foram escolhidos agricultores que
no território de origem, na TIS, apresentassem entre si, certas semelhanças, quais sejam: todos
fossem proprietários (não fossem agregados, arrendatários ou peões considerados como
‘sem-terras’ e incluídos em programas estatais de assentamento)
12
; todos fizessem uso de mão
de obra exclusivamente familiar; que as propriedades agrícolas tivessem no máximo 50
hectares
13
; que as propriedades agrícolas estivessem localizadas em terrenos não
mecanizáveis ou pouco mecanizáveis
14
. A preocupação central foi a de se estabelecer
parâmetros de análise em que não houvesse interferência de fatores externos às propriedades.
Justificativa ou perspectivas de contribuição
A temática foco desta pesquisa apresenta-se bastante atual no contexto dos debates
sobre o rural, tanto em âmbito nacional, no geral, quanto no que concerne ao Rio Grande de
do Sul, em particular. Em um momento em que as discussões sobre o mundo rural voltam-se
12
Tendo em vista a instabilidade da territorialização desses agricultores, isto é, o fato de estarem pouco
enraizados, a comparação entre a situação anterior e a posterior ao desalojamento ficaria comprometida,
prejudicando, por conseguinte, a análise sobre aspectos relacionados à comunidade, reciprocidade, considerados
importantes nesta tese.
13
Propriedades no interior da TIS com mais de 50 hectares pertenciam, em geral, a agricultores absenteístas, tipo
de atores que não interessa para o que se propõe na tese.
14
Ressalta-se que o território da TIS apresenta uma geografia que permitiu ao longo dos anos o surgimento de
duas formas de ocupação das terras: a) Os terrenos situados na parte norte, nordeste e noroeste são bastante
acidentados, com solos pedregosos e rasos, de difícil mecanização. Nestes estavam territorializados agricultores
considerados “fracos” (usando uma expressão dos próprios agricultores); b) Os terrenos situados a sudeste, sul e
sudoeste são, em geral, planos e mecanizáveis. Neles encontravam-se os agricultores de mais posses (os
“fortes”), inclusive vários granjeiros absenteístas.
37
para seus novos papéis, contemplando vários enfoques (desenvolvimento rural,
sustentabilidade ambiental, agroecoturismo, pluriatividades), a proposta de se discutir o rural
a partir das estratégias, iniciativas e/ou representações dos próprios agricultores permite
visualizar e pensar o campo a partir do próprio campo. Assim, o estudo apresenta-se oportuno,
tanto sob o aspecto acadêmico, quanto o sociopolítico-econômico e/ou no que remete às
políticas públicas.
No tocante à sua importância acadêmica, acredita-se que a discussão apresentada ao
longo nesta tese encontra eco nos debates contemporâneos relativos às transformações do
rural, seus novos formatos, funções, atores e tendências, assim como seus novos (?)
problemas. A partir do final do século XX, publicações relacionadas ao rural têm
contemplado um repertório variado de temas: industrialização da agricultura,
desenvolvimento rural, estilos de agricultura familiar, agricultura camponesa versus
agricultura empresarial, diversidades rurais, pluriatividades, desenvolvimento rural endógeno
versus exógeno; extrapolando a fronteira teórica das abordagens da economia neoclássica
sobre o rural, preocupadas mais com o desenvolvimento agrícola, pela via da modernização.
Tanto autores estrangeiros (Ellis, 1988, 2000; Marsden, 2003; Ploeg, 2008; Sabourin, 2009),
quanto brasileiros (Abramovay, 1992; Silva, 1998, 2003; Schneider, 1999; Maluf, 2003;
Kageyama, 2008), além de outros, têm se dedicado à problematização dessas temáticas,
produzindo um volume razoável de publicações.
O acervo bibliográfico investigado pelo autor, no entanto, não apresentou estudos
abrangentes ou consistentes sobre migrações compulsórias de populações rurais ou sobre
estratégias de reprodução de unidades familiares ou camponesas ocorridas em comunidades
rurais desenraizadas por quaisquer processos; no caso específico do Brasil contemporâneo,
leia-se: comunidades atingidas por barragens, comunidades desalojadas de áreas indígenas ou
desalojadas pelo movimento quilombola ou por outros motivos.
A maioria dos estudos realizados no Rio Grande do Sul relacionados ao mundo rural
divide as atenções entre um debate sobre o novo papel do rural no desenvolvimento social e
preservação cultural, diante de um contexto de profundas mudanças em nível macro, e a
questão do desenvolvimento rural sustentável. São approaches sobre reprodução social do
agricultor familiar, racionalidades produtivas da agricultura familiar, integração aos
mercados, pluriatividades, agricultura produtivista-mercantilista convencional ou de escala
versus agricultura orgânica; temáticas frequentemente discutidas por cientistas sociais em
âmbito
mundial, observando que, no Rio Grande do Sul, ganham formatos específicos ao
38
serem tratadas concomitantemente a questões locais-regionais, como é o caso da discussão em
torno das desigualdades regionais e da própria questão dos agricultores ditos sem-terra.
De acordo com comentários anteriores, desalojamentos de agricultores familiares têm
sido muito frequentes nas últimas décadas, aumentando sobremaneira os conflitos agrários,
em razão da ampliação do número de demandantes por terra, com o surgimento de vários
contingentes de “novos sem”. Além dos atingidos por barragens, um número expressivo de
famílias de agricultores foi desalojado de áreas indígenas e de terras quilombolas. Assim,
entende-se que uma demanda por estudos que tenham como foco os desalojados. Esta
demanda, no entanto, vai além do estudo focado nas estratégias de lutas reivindicativas pela
terra ou por direitos, empreendidas pelos vários atores, formando o que se convencionou
chamar de movimentos sociais agrários. Sobre estes existem várias produções (GEHLEN,
1983; GOHN, 2004; MARCON, 1997; MORAES, 1994; SOUZA, 1999; TEDESCO;
CARINI, 2007; WARREN, 2005). O que se está propondo aqui é um estudo que contemple o
agricultor em processo de reterritorialização. Isto é, estudo que tem como enfoque o agricultor
em processo de reinserção no mundo rural ou de redefinição de sua identidade
socioprofissional e sociocultural, de suas racionalidades e representações sociais.
Quanto ao aspecto das políticas públicas, a pesquisa deverá ter importância para as
ações de governo voltadas aos desalojados rurais. O conhecimento do problema permitirá um
melhor planejamento e a tomada de decisões que resultem na redução de prejuízos
econômicos, emocionais, sociais, causados pelos desalojamentos de agricultores em quaisquer
circunstâncias, por revelar possíveis demandas econômico-sociais entre os desalojados, que
tenham resultado do descaso das autoridades ou poderes constituídos.
Vale considerar o fato de que são inúmeras as situações vivenciadas ao longo da
história, inclusive recentemente, resultantes de problemas ocasionados por decisões tomadas
por governantes ao sabor de interesses do momento, sem preocupação em resolver em
definitivo os problemas sociais ligados ao campo, mormente a questão fundiária e a pobreza.
Os próprios desalojamentos de agricultores de áreas indígenas são resultado de políticas
públicas mal pensadas ou mesmo da inexistência destas. Assim, acredita-se que este estudo
deverá transformar-se em um instrumento que permitirá direcionar ações, a fim de reduzir as
possibilidades de erros nas tomadas de decisão para o encaminhamento de soluções por parte
das esferas governamentais.
Por outro lado, neste estudo, analisar-se-á a eficácia de políticas públicas destinadas a
reassentamentos rurais formados a partir de desalojamentos, ensejando propostas de políticas
de reforma agrária, de créditos para investimento e custeio em assentamentos ou
39
reassentamentos, de estímulo ao desenvolvimento rural endógeno, de incitação ao
desenvolvimento rural respeitador do meio ambiente, em um país em que o Estado
historicamente tem proposto políticas homogeneizadoras de incentivo à agricultura, inseridas
em uma proposta de desenvolvimento agrícola que busca preservar o latifúndio como
paradigma para o desenvolvimento econômico, e que demonstra desrespeito ao meio
ambiente e aos povos tradicionais. Ademais, deverá contribuir para dimensionar a capacidade
de reação e readaptação do empreendimento agrícola familiar diante de situações de
agravamento das condições para a sua reprodução.
40
1 TEORIAS EXPLICATIVAS DA TERRITORIALIZAÇÃO
Encontrar teorias que explicassem as evidências empíricas e, no limite, a problemática
levantada, foi o primeiro grande desafio nesta tese. Havia a necessidade de ultrapassar o nível
empírico e encontrar instrumentos teóricos que estivessem afinados com o objeto. Após várias
injunções teórico-metodológicas e conceituais, procurando descartar as que se julgou serem
insuficientes para explicar a realidade empírica, concluiu-se que as teorias da racionalidade de
Weber (1991; 2009), e das representações sociais de Serge Moscovici (2007), aliadas à teoria
multidisciplinar (ainda que marcadamente geográfica) de território seriam as mais adequadas
para a análise das estratégias de reterritorialização de agricultores familiares que se pretendia
estudar, pois remetem a discussões sobre ões e percepções dos atores que buscam
reterritorializar-se no meio rural, no processo de reconstrução desse tecido social, em um
momento histórico em que o sistema capitalista coloca cada dia mais barreiras à sobrevivência
dos empreendimentos agrícolas familiares de herança camponesa. Parte-se aqui do
pressuposto de que, para se compreender as estratégias de (re)territorialização de agricultores
familiares, é necessário que sejam entendidas suas ações sociais individuais e que se tenha
ciência de suas representações sociais, uma vez que estas corroboram para o entendimento das
ações e relações sociais que se estabelecem em diferentes instâncias.
Assim, neste capítulo, inicialmente, discutem-se os enfoques teóricos acerca dos
conceitos de território e territorialidade, caros à geografia, mas que ultimamente vêm
assumindo caráter multidisciplinar, e as discussões têm ultrapassado a fronteira da geografia,
adentrando a sociologia, filosofia e antropologia, sem mencionar outros campos do
conhecimento.
No segundo tópico, discute-se a teoria weberiana da racionalidade, a partir do enfoque
de sua sociologia compreensiva. No terceiro tópico, adentra-se na teoria das representações
sociais, abordagem recente no campo da psicologia social e que apresenta Serge Moscovici
(2007) como principal expoente, analisando-se, também, algumas abordagens feitas por
autores contemporâneos que aprofundaram seus estudos a partir dos postulados
moscovicianos.
1.1 TERRITÓRIO, TERRITORIALIZAÇÃO E CIDADANIA
41
As mudanças de paradigmas no final do século XX revitalizaram no meio acadêmico
as discussões teóricas acerca do conceito de território. Tema quase exclusivo da geografia até
então, ganhou espaço nas mais diversas esferas das ciências sociais, a partir do discurso da
desterritorialização ou do desaparecimento dos territórios, promovido pelo processo de
globalização econômica. Como referiu Haesbaert, as ciências sociais redescobriram o
território para falar de seu desaparecimento. Segundo esse autor, durante muito tempo, os
filósofos e cientistas sociais, com raras exceções, negligenciaram o espaço em suas análises e
somente a crise ‘pós-moderna’ contemporânea teria novamente alertado para a importância do
indicador espacial da sociedade (HAESBAERT, 2004; 2007).
Raffestin (1993) aborda a noção de território a partir do conceito de poder. No entanto,
o autor refuta a ideia de que se deva considerar somente o poder do Estado – o poder marcado
por uma maiúscula –, aquele dos aparelhos complexos que encerram o território, controlam a
população e dominam os recursos. Admite que existe um poder, nome comum, que se
esconde atrás do Poder, nome próprio, por isso é difícil liquidá-lo. Esse poder em minúscula
que se esconde nos interstícios do poder em maiúscula, segundo o autor, está em todo o lugar
e nem sempre é perceptível à primeira vista. A visão de poder desse autor aproxima-o de
Foucault que, por sua vez, não se preocupa em definir precisamente o poder, mas procura
destacar aspectos imanentes de sua natureza. Para Foucault (2003), qualquer relação é um
lugar de poder. Assim como Raffestin (1993), Foucault (2003) ressalta a existência de
instâncias de poder diferentes e para além do poder do Estado.
O homem, apropriando-se e transformando o meio natural pela inovação técnica e
econômica e transformando o meio social pela inovação social e cultural, através do trabalho,
necessita do saber. Por essa razão “todo ponto de exercício do poder é ao mesmo tempo um
lugar de formação de saber” (RAFFESTIN, 1993, p. 56). Assim, o autor reconhece que
trabalho, poder e saber constituem uma tríade inseparável, porém, diz que a relação de poder é
intencional e não subjetiva. Dessa forma, a energia e a informação, necessárias no trabalho,
constituem no sistema capitalista uma dicotomia. Neste caso, o trabalho pode ser,
simplesmente, destruído, pois é possível a apropriação de uma ou de outra, privando o homem
de sua capacidade primitiva de transformação. A separação entre energia e informação reduz
a possibilidade de autorrealização do homem pelo trabalho, tornando-o vulnerável e sujeito à
exclusão social.
Em sua crítica ao trabalho alienado imposto pelas relações de poder, Raffestin (1993,
p. 57) salienta:
42
Pode-se afirmar que, por esse mecanismo, os homens perderam sua capacidade
original de transformação, que passou para as organizações. A distinção drástica
entre trabalho manual e trabalho intelectual não é nada mais que a expressão mais
visível, mais corrente. A destruição da unidade-trabalho se realizou pela alienação,
isto é, pelo fato de que os produtos do trabalho se tornam output cristalizados, de
que se apropria uma organização específica que projeta seus trunfos estruturais para
obter a equivalência forçada. Realizar a equivalência do não-equivalente é apropriar-
se do trabalho sob múltiplas formas.
O território é considerado pelo autor apenas o substrato onde se dão as relações de
poder, por isso, a definição de estratégias de territorialização, desterritorialização ou
reterritorialização da o de obra, para o autor, não parte da vontade própria dos atores em
mobilidade. O fluxo se dá pela vontade do grande capital. É o que se depreende pela citação:
Há portanto um processo de desterritorialização da mão-de-obra, que viria do fato de
que as multinacionais raciocinam, para a sua estratégia, num espaço concreto
caracterizado por um conjunto de propriedades e dados a serem preservados [...]
Pode-se certamente pretender que as empresas que manipulam a informação e a
energia têm, sem nenhuma dúvida, um efeito considerável sobre os fluxos de
população (RAFFESTIN, 1993, p. 93).
A territorialização abstrata do capital, leia-se multinacional ou transnacional, destoa da
territorialização concreta da população. O autor entende que, enquanto uma população tem
um territorialização concreta e estável, com nculos com todo um meio simbólico, o capital
transnacional tem uma territorialidade abstrata e instável. Trata-se de uma relação
dissimétrica para a população que, em troca de um salário, deve aceitar romper com o seu
meio de enraizamento (RAFFESTIN, 1993).
Tanto o Estado quanto uma empresa têm estratégias para facilitar ou restringir a
mobilidade da população. Entretanto, o Estado tem menos capacidade persuasiva devido ao
seu discurso geral, vago ou despersonalizado. Uma empresa, apresentando uma informação
mais personalizada, como, por exemplo, informando valores salariais de um dado emprego,
tem maior probabilidade de desencadear um processo de mobilidade ou de não mobilidade.
Se o território é uma produção que envolve relações que se inscrevem no campo do
poder, nos termos propostos por Raffestin, ele pode ser apropriado a partir da produção de
uma representação. Assim, qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação
revela a imagem desejada de um território.
A produção do território se nas relações que se estabelecem entre os atores,
formando o chamado “sistema territorial”. Segundo Raffestin, do Estado ao indivíduo,
passando pelas empresas, em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados,
somos todos atores sintagmáticos que “produzem” (grifos do autor) o território. [...] essa
43
produção de território se inscreve perfeitamente no campo do poder de nossa problemática
relacional” (RAFFESTIN, 1993, p. 152-153)
O sistema territorial produzido pelos atores é composto por tessituras, nós e redes. A
tessitura, enquanto base ou substrato do território, tanto pode expressar o funcionamento no
nível ótimo de um conjunto de atividades para uma população, tornando-se, portanto, algo
desejado por um grupo, quanto pode expressar o controle da população. Nos limites das
tessituras ou malhas, encontram-se os nós ou pontos que se ligam a outros, de modo a
constituir redes. Os nós ou pontos acham-se distribuídos hierarquicamente de acordo com o
poder dos diferentes atores por eles simbolizados. Por isso “toda a rede é uma imagem do
poder ou, mais exatamente, do poder do ou dos atores dominantes” (RAFFESTIN, 1993, p.
156-157).
Nas relações de poder estabelecidas nos territórios, sejam existenciais ou produtivistas,
define-se a territorialidade. De acordo com o mesmo autor, a ideia de territorialidade tem sua
origem nas ciências naturais que se preocupam em explicar a conduta de um ser vivo para
tomar posse de um território e defendê-lo contra os membros de sua própria espécie. Ele
reconhece que esse debate naturalista se tornou menos polêmico ou mais consensual do que o
da territorialidade humana. A discussão sobre territorialidade humana é mais complexa pelo
número de variáveis determinantes de uma situação socioespacial. Para o autor, um dos
elementos constituidores ou determinantes da territorialidade humana é a identidade espacial.
Além disso, diz que a análise da territorialidade é possível pela apreensão das relações
reais recolocadas no seu contexto sócio-histórico e espaço-temporal.
O peso ou a força das relações sociais determinadoras de uma territorialidade,
estabelecidas por um grupo social, nas várias esferas ou ambientes: trabalho, família, política,
define uma identidade espacial. A territorialidade de um colono de descendência europeia é
constituída pelo conjunto daquilo que ele vive cotidianamente: relações com o trabalho, com
o não trabalho, com o religioso, com a família, com a vizinhança. A territorialidade constitui-
se, portanto de uma totalidade de relações biossociais em interação.
A ideia de apreensão e ocupação do espaço como pressuposto para a produção do
território está também em Santos (2007), quando este autor afirma que:
O território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os
poderes, todas as forças... [...] o território tem que ser entendido como o território
usado, não o território em si. [...] O território é o fundamento do trabalho; o lugar da
44
resistência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida (SANTOS, 2007,
p. 13-14)
15
.
Para Correa (1996), o conceito de território, a partir da noção de apropriação, tem
duplo indicador. De um lado, a apropriação associa-se à ideia de controle de fato, efetivo, por
vezes legitimado, exercido por instituições ou grupos, sobre um dado segmento do espaço.
Neste caso, o conceito vincula-se à geografia política ou geopolítica; por outro lado, a
apropriação pode assumir um indicador afetivo. Para o autor, portanto, o território é entendido
como o espaço revestido dos indicadores político/a e afetivo ou ambos (CORREA, 1996).
Haesbaert (2004) destaca a multidisciplinaridade conceitual de território. Segundo o
autor, enquanto a geografia enfatiza a materialidade do território, em seus múltiplos
indicadores (devendo necessariamente incluir a interação sociedade-natureza), a ciência
política enfatiza sua construção a partir de relações de poder; a economia percebe-o como um
fator locacional ou como uma das bases da produção; a antropologia destaca seu indicador
simbólico; a sociologia enfoca-o a partir de sua intervenção nas relações sociais, e a
psicologia, finalmente, incorpora-o no debate sobre a construção da subjetividade ou da
identidade pessoal, ampliando-o até a escala do indivíduo. Ele afirma ainda que, embora
reconheça a importância da conceituação de território a partir de quatro dimensões: a política,
a cultural, a econômica e a natural, a definição de território irá depender, sobretudo, da
posição filosófica adotada pelo pesquisador.
Pode-se dizer que,
de qualquer forma, o território define-se antes de tudo com referência às relações
sociais (ou culturais, em sentido amplo) e ao contexto histórico em que está inserido.
[...] Fica evidente a necessidade de uma visão de território a partir da concepção de
espaço como um híbrido entre sociedade e natureza, entre política, economia e
cultura, e entre materialidade e idealidade, numa complexa interação tempo-espaço.
[...] o território pode ser concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de
poder, do poder mais material das relações econômico-políticas ao poder mais
simbólico das relações de ordem mais estritamente cultural (HAESBAERT, 2004, p.
78).
O conceito de território, numa perspectiva teórica clássica, não pode, portanto, ser
separado da ideia de apropriação do espaço, seja qual for o indicador dessa apropriação:
privado, coletivo, material, simbólico, político, econômico.
Nicolas (1996) enfatiza que a cada apropriação do espaço, uma nova lógica adquire
conteúdo. Transforma-se o espaço ao se transformar a sociedade, com as atribuições de uma
15
Itálicos do autor.
45
temporalidade particular que é a que vive a sociedade num dado momento. “Apropriar-se de
um espaço é reconstruir sua lógica temporal” (NICOLAS, 1996, p. 85).
O autor considera a existência de três formas básicas de apropriação do espaço:
a) espaço-tempo circular, apropriação tradicional ou dos povos primitivos;
b) espaço-tempo linear, numa forma básica e progressista ou do capitalismo-fordista e
c) espaço-tempo da simultaneidade – forma recente ou “pós-moderna”.
O espaço-tempo circular seria o das sociedades tradicionais, quando as transformações
resultam da sobreposição de tempos. Em outras palavras, o novo não ofusca totalmente o
velho ou o anterior, ou seja, é um modelo no qual a permanência e a repetição se constroem a
partir da apropriação imutável (transformação muito lenta do espaço).
O espaço-tempo linear seria o da modernidade, do relógio, da história. Ele permite o
recriar, procurando apagar a temporalidade anterior. É próprio do capitalismo fordista. É
concebido dentro de uma visão desenvolvimentista. Busca-se aqui a recriação do espaço e não
a adaptação de novas formas ao velho. Para tanto, o recurso do suporte tecnológico é
fundamental. Impera, nesse caso, a lógica fordista da dominação do espaço e expansão sobre
o tempo, do que resultou a internacionalização.
O espaço-tempo da simultaneidade resulta da nova concepção de espaço-tempo,
trazida pelos avanços tecnológicos, mudando a gica fordista. É a simultaneidade no espaço
que cria as condições para a mundialização.
Haesbaert (2004) distingue três grandes indicadores sociais a partir dos quais a
desterritorialização é tratada, mesmo que não se adote um critério de rigidez estruturalista em
sua separação, são eles: os indicadores econômico, político e simbólico ou cultural.
A análise conceitual de território, a partir da geografia crítica de Santos (1994), refuta
a ideia de território enquanto espaço pré-concebido, sugerindo que ele compreende ao mesmo
tempo forma e conteúdo. Como forma, o território é o espaço concreto, físico; como
conteúdo, é o espaço objetivamente apropriado pelo homem, usado, construído, enfim, o
território é o espaço habitado.
Schneider (2004) discute o conceito de território na perspectiva do desenvolvimento
rural, atribuindo, portanto, a adequação de seu uso a finalidades normativas e práticas, isto é,
para além do campo acadêmico. Ademais, o autor destaca que a emergência da abordagem
territorial está ligada ao esgotamento ou desgaste teórico e prático da abordagem regional.
Para este autor, o novo cenário vislumbrado no Brasil, a partir da globalização, sobretudo no
pós 1990, criou o território como nova unidade de referência para a atuação do Estado e a
regulação das políticas públicas, em substituição à região. E acrescenta:
46
Neste cenário, ganham destaque iniciativas como a descentralização das políticas
públicas; a valorização da participação dos atores da sociedade civil, especialmente
ONGs e os próprios beneficiários; a redefinição do papel das instituições; e cresce a
importância das esferas infranacionais do poder público, notadamente as prefeituras
locais e os atores da sociedade civil (SCHNEIDER, 2004, p. 102).
Território nessa perspectiva é entendido como o espaço que pode induzir ao
desenvolvimento a partir de processos endógenos, independentes ou pouco dependentes de
fatores externos: “não determinismo de qualquer ordem ou evolução predeterminada, pois
a viabilização dos atores e dos territórios dependerá do modo particular e específico de cada
tipo de interação, das decisões e racionalidades” (SCHNEIDER, 2004, p. 105).
O autor lembra que o uso conceitual de território pela geografia tem atendido antes de
tudo às finalidades heurísticas e analíticas, porém isso não impede que seja utilizado para fins
políticos e práticos. Todavia, alerta que: “cabe aos usuários explicitar em que sentido
recorrem ao território, se conceitual ou normativo ou ambos ao mesmo tempo”
(SCHNEIDER, 2004, p. 107).
Em torno do debate sobre desenvolvimento rural, Kageyama (2008) se alia a outros
autores das ciências sociais, focalizando, também, o rural em uma perspectiva territorial,
salientando que “a essência da noção de rural é territorial ou espacial, não podendo ser
identificada com setor de atividade nem com mercado enquanto lócus de transações mercantis
específicas” (KAGEYAMA, 2008, p. 29). Na perspectiva da autora, a centralidade da
discussão sobre o conceito de território rural impõe percebê-lo enquanto espaço de vida e não
apenas de produção.
Discutindo a construção social de territórios frente à globalização hegemônica, Flores
(2003) admite que contemporaneamente diversos territórios vêm se desenvolvendo, tanto na
Europa quanto no Brasil, como mérito de políticas públicas. O território é abordado pelo autor
sob o prisma do desenvolvimento local-regional, em que as relações de troca no mercado de
produtos, que apresentam expressões culturais típicas, se abrem como perspectivas
interessantes de consumidores de diferentes regiões. Ao se referir a essas peculiaridades
locais-regionais ou expressões culturais típicas de certas localidades, o autor salienta que
existe uma relação entre território e identidade coletiva. Para além da visão meramente
econômica, o conceito de identidade coletiva remete à ideia de grupo de pertencimento
cultural.
Portanto, o território corresponderia a um espaço geográfico marcado por expressões
econômicas típicas e por uma identidade coletiva que se constrói e reconstrói constantemente
47
nas relações sociais que se estabelecem. Assim, o conceito de identidade passa a ser
determinante no processo de construção de territórios.
A ideia de identidade coletiva como demarcadora de limites territoriais transparece na
obra de Flores, quando o autor afirma que:
O território passa a representar os limites físicos compreendidos por uma
determinada identidade, cujas fronteiras foram construídas socialmente. Por isso
mesmo, a formação dos territórios é um processo de construção, identificada com os
limites construídos pelas coletividades envolvidas, onde a identidade é uma
manifestação relacional. A partir da forma de relação entre os grupos ou
comunidades, é que se pode compreender o fenômeno identitário. No caso dos
territórios, se agrega à identidade construída, o componente espaço geográfico.
(FLORES, 2003, p. 90).
O autor ainda ressalta a importância da construção social de territórios como
delimitadores de identidades coletivas com bases geográficas, enquanto estratégia de
fortalecimento do multiculturalismo como contraponto à globalização hegemônica, com o
propósito de apoiar a construção de uma cidadania planetária. Para a efetivação dessa
proposta, ele evoca a necessidade de políticas públicas baseadas nas mobilizações
comunitárias e na intensa participação democrática. Assevera que iniciativas no sentido da
construção social de territórios já se fazem sentir no Brasil, seja partindo da sociedade civil ou
de organizações do Estado ou paraestatais. Porém, reconhece a falta de tradição democrática
do Brasil, o que poderá ser um fator limitador.
Fazendo coro com a maioria dos teóricos que abordam o assunto, Balanza (2001)
sugere que o território deve ser entendido como uma realidade multidimensional. Múltiplas
visões se imbricam e por vezes se contradizem, conjugando veis estáticos e dinâmicos,
graus de rigidez e de flexibilidade conceitual, funcionalidades e institucionalidades. Quando
se trata de conceituar o território ou a apropriação territorial em geral, deve-se ter em conta
que se está fazendo referência a múltiplas realidades, em diferentes níveis e significações. O
território concebido num nível estático e abstrato pode ser encontrado no âmbito do Estado
Nacional, em suas várias instâncias de poder institucional (no caso brasileiro, Federal,
Estadual e Municipal). Neste caso, ele se torna o substrato da institucionalidade no cenário
político-administrativo. Por outro lado, que se considerar, também, o território concebido
em um nível dinâmico e flexível, a partir de múltiplas visões ou racionalidades. É o caso da
visão do indígena sobre território, baseada na ideia de territorialidade étnica ou de
pertencimento e não fundada no indicador funcional-desenvolvimentista (BALANZA, 2001).
48
Referindo-se à realidade socioétnica rural de seu país, a Bolívia, o autor sugere que o
Estado deve:
Modificar su lectura de la territorialidad con la perspectiva de una territorialidad
múltiple, produto de formaciones históricas diversas y heterogéneas, com cierto
grado de imaginación y flexibilidad de acuerdo a las realidades locales. De similar
manera una política de desarrollo rural debe ser lo suficientemente flexible y
autónoma para definir prioridades diferenciadas e intersectoriales como
consecuencia de las diferentes lógicas territoriales (BALANZA, 2001, p. 06-07).
Percebe-se que o pensamento do autor flui para o entendimento de que as políticas
públicas voltadas ao desenvolvimento territorial rural devem ser direcionadas ao atendimento
de necessidades múltiplas, em face das realidades locais múltiplas, tal como se pretende
mostrar nesta tese. Reconhecer a multiplicidade de formatos sociais rurais é reconhecer ou
levar em consideração os diferentes processos históricos de formação do habitante rural e de
suas comunidades.
Como visto até aqui, a maioria dos autores que têm se ocupado em discutir a heurística
sobre território reconhecem sua multidisciplinaridade conceitual e o concebem como sendo
um lugar, seja espaço de exercício do poder (físico, econômico ou simbólico), seja espaço
normativo, de pertencimento (em um indicador cultural) ou de vida.
Sob o ponto de vista exclusivamente da geografia clássica, o território é entendido
enquanto espaço demarcado ou delimitado, com suas fronteiras definidas por contratos ou
acordos, onde se exerce a soberania. Por isso, essa geografia menospreza ou pouca
importância dá às dinâmicas desreterritorializadoras como foco de análise. Em outras palavras
e como exemplo, a vida do nômade nunca despertou muito o interesse da geografia clássica.
Partindo de uma discussão filosófica sobre território e destoando da concepção geográfica
clássica, Deleuze e Guattari deixam muito clara a percepção de território enquanto espaço de
pertencimento imaginado ou pensado: “se for preciso tomarei meu território em meu próprio
corpo” (1997, p. 128). Estar territorializado para esses autores é fazer parte de uma
comunidade constituída por um conjunto de agenciamentos e por redes específicas de relações
sociais. Isso sugere que o processo de desterritorialização e reterritorialização faz parte do
cotidiano das pessoas. Estar territorializado é sentir-se incluído em um espaço de
agenciamentos, é manter-se junto de elementos heterogêneos. Sob esta ótica, o território é
entendido como aespacial.
Os autores discutem a territorialização a partir da ideia de agenciamento. O desejo é o
que move ou faz as pessoas tomarem decisões. Assim, o desejo cria territórios, pois ele cria
49
uma série de agenciamentos - agenciamento comporta componentes heterogêneos, tanto de
ordem biológica, quanto social, maquínica, imaginária (HAESBAERT & BRUCE, 2002).
Os autores discutem o território a partir da territorialidade dos animais. Em relação aos
animais, podemos perceber a importância de atividades que consistem em formar territórios (o
canto do pássaro que atrai a fêmea é um delimitador de território) ou em abandoná-los ou
mesmo em refazê-los (a casa do joão de barro, abandonada por algum motivo). Ao contrário
destes animais, que vivem em um território específico, o homem não tem um mundo, mas
vive a vida de todo o mundo.
O coneito de território com o qual se trabalha nesta tese remete a idéia de ambiente de
um grupo, constituído por padrões de interações, onde ele assegura uma certa estabilidade e
localização. Assim, uma diferenciação entre a percepção do índio e do colono a cerca da
territorialização, embora o primeiro possa estar integrado no mesmo contexto sociocultural
do último. Deleuze e Guattari (1997) estabelecem uma diferenciação entre as sociedades
capitalistas e as sociedades pré-capitalistas. Enquanto as sociedades capitalistas modernas
possuem uma segmentaridade dura, uma máquina despótica que disciplinariza e
desterritorializa os corpos, as pré-capitalistas, apresentando mais flexibilidades, criam outras
relações com a terra, constituindo uma dinâmica de interdependências e complementaridades.
Nessa perspectiva, é possível apreender que a definição de território induz a um debate a
propósito de seu sentido, isto é, se diz respeito apenas a uma base espaço-físico-material sobre
a qual a sociedade se reproduz ou é um fruto exclusivo de relações sociais ou de poder. Nesse
aspecto podem ser encontradas divergências, como ressaltou Haesbaert (2007), desde aqueles
que concedem à materialidade um papel acessório ou quase nulo diante das relações sociais
até aqueles que colocam este substrato físico como mediador fundamental ou até determinante
dessas relações sociais.
De qualquer forma, a importância de se considerar o sentido relacional do território
nesta tese está no fato de que nela se considera e se valoriza a historicidade do território. Ele
não pode ser entendido apenas pelo que apresenta visivelmente aos olhos e pelo papel que
desempenha na atualidade, mas também pelo que esconde e representou no passado.
As relações sociais que marcaram determinada coletividade humana localizada no
passado, centrada na razão do uso, evoluindo para as relações que passaram a marcar as
coletividades contemporâneas, centradas na razão da troca e governadas pela ideologia do
lucro ou pela lógica do dinheiro e da competitividade, hegemônica na atualidade, como
denunciou Santos (2007), mostram que é no território que se definem e se redefinem as
50
identidades dos indivíduos, assim como suas possibilidades de inclusão ou de exclusão, de
afirmação ou de negação da cidadania. Essa particularidade será explorada no tópico a seguir.
1.1.1 Territorialidade e cidadania
A territorialização, nos termos propostos nesta tese, pressupõe a conquista de um
espaço que permita a realização pessoal ou a conquista de condições necessárias para tal.
Entende-se, pois, que o território é, por si só, o substrato da realização da cidadania. O
cidadão territorializado sente-se satisfeito a partir da garantia de que as condições objetivas
para a sua reprodução social não lhes são negadas. Isto posto, sabe-se que a condição de
cidadão reclama por direitos sociais. Um dos direitos sociais fundamentais é o de o cidadão
poder viver em um determinado espaço onde possa se sentir territorializado. Considerando-se
aqui a territorialidade como o sentimento de pertencimento e de compartilhamento de
determinado espaço, neste tópico, discute-se a territorialidade enquanto condição para a
efetivação da para a cidadania. Inicia-se com algumas considerações sobre o tema cidadania.
A cidadania, entendida dentro do marco conceitual clássico, pressupõe a conquista de
direitos assegurados pelo Estado de direito. Defendendo a ideia de cidadão cosmopolita,
Bobbio (1992) assevera que os direitos dos homens são históricos, pois surgem
gradativamente a partir de lutas que buscam superar velhos poderes. À medida que a
sociedade evolui, com os progressos técnicos e científicos, aumenta a capacidade do homem
de dominar a natureza e os outros homens. Disso resultam novas ameaças e novos remédios.
As ameaças são enfrentadas através de demandas de limitações de poder. Os remédios são
providenciados através da exigência de que o mesmo poder intervenha de modo protetor.
Assim,
O desenvolvimento dos direitos do homem passou por três fases: num primeiro
momento, afirmaram-se os direitos de liberdade, isto é, todos aqueles direitos que
tendem a limitar o poder do Estado e a reservar para o indivíduo, ou para os grupos
particulares, uma esfera de liberdade em relação ao Estado; num segundo momento,
foram propugnados os direitos políticos, os quais concebendo a liberdade não
apenas negativamente, como não impedimento, mas positivamente, como autonomia
tiveram como conseqüência a participação cada vez mais ampla, generalizada e
frequente dos membros de uma comunidade no poder político (ou liberdade no
Estado); finalmente, foram proclamados os direitos sociais, que expressam o
amadurecimento de novas exigências podemos mesmo dizer de novos valores ,
como os do bem-estar e da igualdade... (BOBBIO, 1992, p. 32-33).
51
Amparado na filosofia da história, Bobbio ressalta o ideal kantiano que apregoa a
evolução do homem rumo a um telos. Nesse particular, ele reforça a teoria kantiana que
postula ser a liberdade um direito natural, ou seja, transmitido ao homem pela natureza e não
por uma autoridade constituída. Assim, a busca por liberdade como autonomia traduz-se no
primeiro direito de qualquer cidadão.
Embora reconheça a ambiguidade da história humana para quem se põe o problema de
atribuir-lhe um “sentido”, na qual o bem e o mal se misturam, se contrapõem, se confundem,
o autor assevera que a parte obscura da história do homem é bem mais ampla do que a parte
clara. Porém reconhece que uma face clara tem aparecido de tempos em tempos, ainda que
por breve duração. Assim, saúda conquistas alcançadas contemporaneamente pela
humanidade, como a supressão da escravidão, o surgimento de movimentos ecológicos, o
interesse de partidos e governos pela afirmação, reconhecimento e proteção dos direitos do
homem (BOBBIO, 1992).
Relativamente às condutas humanas, o autor lembra que o mundo moral surgiu como
remédio ao mal que o homem pode causar ao outro. Encontrando-se num mundo hostil, tanto
em face da natureza quanto em relação a seus semelhantes, o homem buscou superar as
dificuldades, pelo aprimoramento de seus recursos para enfrentamento ou defesa. Assim, os
mandamentos e as proibições constituíram os marcos reguladores de condutas contempladas
em leis, tanto religiosas quanto políticas e civis. “Isso quer dizer que a figura deôntica
originária é o dever, não o direito” (BOBBIO, 1992, p. 56).
Os preceitos morais eram considerados originariamente mais do ângulo da sociedade
do que do indivíduo. O preceito “não matar”, por exemplo, não tinha tanto “a função de
proteger o membro individual do grupo, mas de impedir uma das razões fundamentais do
próprio grupo. Para que ocorresse a passagem do código dos deveres para o código dos
direitos, era necessário inverter a moeda: o problema da moral devia ser considerado não mais
do ponto de vista apenas da sociedade, mas também daquele do indivíduo” (BOBBIO, 1992,
p. 57-58). Segundo o autor, foi no Ocidente, a partir da secularização da ética cristã pela via
do jusnaturalismo que surgiu a doutrina filosófica que fez do indivíduo, e não mais da
sociedade, o ponto de partida para a construção da doutrina da moral e do direito.
Para o mesmo autor, a consolidação da cidadania ocorre com a emergência do Estado
de direito. A passagem do ponto de vista do príncipe para o ponto de vista do cidadão inverte
a lógica da relação Estado-cidadão e da relação direito-dever. “No Estado absoluto, os
indivíduos possuem, em relação ao soberano, direitos privados. No Estado de direito, o
52
indivíduo tem, em face do Estado, não direitos privados, mas também direitos públicos. O
Estado de direito é o Estado dos cidadãos” (BOBBIO, 1992, p. 61).
Nas suas considerações conclusivas, Bobbio atém-se ao plano real contemporâneo de
suas reflexões para dizer que se considera, por um lado, otimista em relação a certas
conquistas da sociedade mundial, algumas contempladas em documentos de organismos
internacionais (Declaração dos Direitos da Criança 1959; Declaração sobre a Eliminação da
Discriminação à Mulher – 1967; Declaração dos Direitos do Deficiente Mental – 1971),
postulando que houve avanços nos direitos dos cidadãos. Por outro lado, diz-se pessimista,
pois, não obstante as promessas de proteção dos direitos do homem, há um contraste entre “as
declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a miséria das
realizações. [...] De boas intenções, o inferno está cheio” (BOBBIO, 1992, p. 63-64).
A afirmação da cidadania no Brasil tem a ver com a evolução das conquistas
democráticas, cuja origem se encontra nas transformações político-ideológicas e culturais
ocorridas na sociedade civil brasileira nos anos de 1970-80. Esse avanço é creditado aos
movimentos sociais, deflagrados nesse período da história do Brasil e levados a termo graças
a uma mudança nas concepções da esquerda brasileira em relação ao seu papel na sociedade
brasileira, passando a apoior tais movimentos.
De acordo com Dagnino (2000), até o começo dos anos de 1970, o marco teórico-
conceitual das abordagens feitas pela esquerda latino-americana na análise das relações entre
cultura e política baseavam-se nas premissas básicas derivadas do marxismo clássico. Por
essas premissas, a primazia do conceito de ideologia contemplava um certo determinismo
econômico, que retirava da cultura qualquer possibilidade de dinâmica própria. A cultura era
considerada “uma mera expressão epifenomenal de uma essência econômica” (DAGNINO,
2000, p. 68). Segundo o mesmo autor, a mudança no pensamento da esquerda latino-
americana no final de 1970 e anos de 1980 ocorre sob a influência da obra de Gramsci, cuja
teoria sugere a substituição da estratégia revolucionária pela estratégia da subversão cultural
da sociedade, como forma de chegar ao poder.
A inserção dos preceitos gramscianos no receituário da esquerda brasileira influenciou
os movimentos sociais, tal como sublinha Dagnino: “Não é difícil visualizar como os
conceitos gramscianos de hegemonia, sociedade civil, intelectuais orgânicos, vontade coletiva
e reforma moral e intelectual proporcionaram meios adequados para a construção intelectual e
a ação política no novo cenário” (2000, p. 69). A luta pela democracia, portanto, ganhou
corpo, subsidiada por um novo quadro teórico da esquerda, tornando possível a construção da
hegemonia pela sociedade civil. Por sua vez, “a hegemonia, enquanto processo de articulação
53
dos diferentes interesses necessários para construir uma vontade coletiva e alcançar um
consentimento ativo, é ela mesma um processo de constituição de sujeitos” (DAGNINO,
2000, p. 69-73).
Os movimentos sociais, diante deste novo quadro teórico e político da sociedade
brasileira, tornam-se forças capazes de produzir ou induzir a hegemonias. Sua capacidade de
produzir novas visões de uma sociedade democrática, na medida em que eles identificam a
ordem social existente como limitadora e excludente com relação a seus valores e interesses,
levam a sociedade a propugnar por mudanças culturais consideradas essenciais no processo de
democratização. Como exemplos, podem ser citados o movimento feminista, de
homossexuais e de negros.
Os movimentos sociais acabam por oferecer uma visão ampliada da noção de
democracia e de direitos, a partir da apropriação da noção de cidadania. O alcance da
supressão de carências e de necessidades, a obtenção de novos olhares, a luta pelo direito à
igualdade e à diferença, “encontrou claro apoio na noção redefinida de cidadania
(DAGNINO, 2000, p. 83).
A partir dos anos de 1990, o uso do termo “cidadania” pela sociedade brasileira
generalizou-se. Subjacente aos discursos e às práticas dos movimentos sociais e de alguns
partidos políticos, a expressão cidadania aparece de forma recorrente nas campanhas de
solidariedade, veiculadas pela grande mídia, voltadas para a mobilização da classe média,
inclusive em setores do empresariado progressista. Dessa forma, o termo cidadania se
generalizou, com sentidos e intenções obviamente diferentes.
Ao se enfatizar a noção de cidadania como uma estratégia política de conquista de
direitos, ressalta-se seu caráter de construção histórica, expressando interesses e práticas que,
a priori, não são definidas por uma essência universal dada. Nesse sentido, observa-se que a
noção de cidadania se define e redefine de acordo com “a dinâmica dos conflitos reais e da
luta política vivida por uma sociedade em particular em um momento histórico dado”
(DAGNINO, 2000, p. 86).
Em sua reflexão sobre as transformações dos discursos e práticas ocorridas na
esquerda latino-americana nos anos de 1970-80, Dagnino destaca o surgimento do que
convencionou chamar de “nova cidadania”, como um avanço político e cultural na sociedade
brasileira. Ao contrário das concepções de cidadania que se vinculam às estratégias das
classes dominantes e do Estado, pelas quais os chamados excluídos obtêm a conquista gradual
de direitos de forma paternalista, a nova cidadania reclama por sujeitos sociais ativos. Essa
nova cidadania se expressa no despertar dos cidadãos em relação a seus direitos e se consolida
54
nas lutas por seu reconhecimento. Mas, a nova cidadania não propugna apenas a conquista
formal e legal de um conjunto de direitos, mas, também, a ampliação de seu alcance:
A nova cidadania é um projeto para uma nova sociabilidade: não somente a
incorporação no sistema político em sentido estrito, mas um formato mais igualitário
de relações sociais em todos os níveis, inclusive novas regras para viver em
sociedade (negociação de conflitos, um novo sentido de ordem pública e de
responsabilidade pública, um novo contrato social, etc.). [...] Esse tipo de projeto
questiona não somente o autoritarismo social como modo básico de ordenamento
social no Brasil, como também os discursos neoliberais mais recentes, que
estabelecem o interesse privado como medida de tudo, negando a alteridade e,
portanto, obstruindo as possibilidades de uma dimensão ética da vida social
(DAGNINO, 2000, p. 88-89).
Empiricamente, em um estudo sobre democracia e cidadania, a autora concluiu que o
autoritarismo social como modo cultural dominante nas relações sociais constituía-se em uma
das questões centrais em torno das quais se organizava a luta dos movimentos sociais pela
cidadania no Brasil dos anos de 1990. A falta de respeito em relação a..., a discriminação
social e o preconceito.... eram então fatores limitadores da cidadania, segundo a percepção
dos entrevistados, escolhidos dentre participantes de vários movimentos sociais e sindicatos
de trabalhadores. (DAGNINO, 2000, 89-95).
A territorialidade, como pressuposto para o exercício da cidadania, supõe que o
território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido, no seio
do qual um sujeito se sente em casa. Seguindo o pensamento filosófico deleuze-guattariano, o
território de um cidadão pode conter inúmeros outros territórios. No caso específico de um
agricultor familiar que preserva aspectos de tradicionalidade ou campesinidade, poder-se-ia
dizer que ele vive um contínuo processo de desreterritorialização. Habita o território da casa,
com seus agenciamentos familiares específicos; o território do vizinho; o território da capela
comunitária, espaço de encontro, mas também de desencontros territoriais; o território da
escola, do clube social, etc. A condição de territorializado é, portanto, a do sentir-se
territorializado. Não é necessariamente a do estar confinado num espaço definido por limites
geográficos e de poder, por isso a discussão sobre territorialização, desterritorialização e
reterritorialização deve abarcar também a temática da cidadania.
Para Santos (2007), no sistema capitalista, o território é o campo onde se trava a luta
entre o capital, que busca territorializar-se sempre e cada vez mais em condições mais
favoráveis para sua reprodução, e o trabalhador, que busca a afirmação de sua cidadania. Ele
defende que a questão da cidadania deve estar aliada à cultura e ao território. Diz que “o
55
modelo cívico forma-se, entre outros, de dois componentes essenciais: a cultura e o território”
(SANTOS, 2007, p. 17).
Em relação ao conceito de cidadania, Santos postula que ele se forma a partir da
cultura de cada povo: “a cidadania, sem dúvida se aprende. É assim que ela se torna um
estado de espírito, enraizado na cultura. [...] A cidadania pode começar por definições
abstratas, cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve ser reclamada” (2007,
p. 20). Não há como definir, a priori, princípios determinantes de cidadania, pois as ideias de
bom/ruim, certo/errado, normal/anormal são carregadas de subjetividade. Entretanto, o autor
elege a busca pela liberdade como fator de aproximação das diferentes culturas, pois: “Os
homens, pela sua própria essência, buscam a liberdade. Não a procuram com a mesma
determinação porque o seu grau de entendimento do mundo não é o mesmo. As sociedades,
pela sua própria história, são mais ou menos abertas às conquistas do homem” (SANTOS,
2007, p. 20).
Santos (2007) reconhece ainda que a cidadania foi conquistada por meio de um
intenso processo de lutas travadas em diversos países. Ademais, postula que as formas de
cidadania teriam evoulído com a modernidade. Da condição de membro da sociedade
nacional no século XVII, o homem conquistou o direito de associação no século XIX, até que
fossem consolidados os direitos sociais em pleno século XX. Entretanto, a cidadania não se
consolidou em todos os países de forma igualitária. Além de ter sido atrofiada pelo
neoliberalismo, tornou-se uma farsa no Terceiro Mundo e particularmente no Brasil.
Em relação ao caso brasileiro, o autor diz que houve um processo histórico de
elaboração do “não cidadão” pela combinação de várias causas, ao mesmo tempo
revolucionárias e dissolventes, por isso diz que se trata de um caso bastante singular:
Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos
como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização
galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento
econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a
degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos
direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda
que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se
despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei
superior, porque é o instrumento da busca da ascensão social (SANTOS, 2007, p.
25).
Relativamente às migrações ditas “espontâneas” ou “autônomas” (ou não
compulsórias), nos termos propostos por Raffestin, entende-se que elas devam ser encaradas
56
do ponto de vista humano, na medida em que elas se dão pela ausência de direito a um
entorno permanente.
Cada vez mais, no Brasil, as pessoas mudam de lugar ao longo da existência; o
número dos que vivem fora do lugar onde nasceram aumenta de ano para ano, de um
recenseamento a outro. Condenar os indivíduos à imobilidade seria igualmente
injusto. Mas as migrações brasileiras, vistas pelo ângulo da sua causa, são
verdadeiras migrações forçadas, provocadas pelo fato de que o jogo do mercado não
encontra qualquer contrapeso nos direitos dos cidadãos. São, freqüentemente,
também migrações ligadas ao consumo e à inacessibilidade a bens e serviços
essenciais (SANTOS, 2007, p. 60).
Para Santos (2007), a exclusão do direito de acesso aos bens e serviços essenciais, para
este autor, representa o fator de mobilidade das pessoas. No caso dos agricultores migrantes, o
autor elege o latifúndio e a mentalidade capitalista arraigada nas pessoas, como fatores que
freiam o processo de reforma agrária. Dessa forma, para o autor, a migração de agricultores
ou a mobilidade autônoma resulta da exclusão do acesso à terra e às tecnologias. A
territorialidade rural, no contexto da modernização capitalista brasileira, considerando a
realidade fundiária e a existência de milhares de camponeses sem-terra, depende de uma
política de reforma agrária que atenda às pressões de um significativo segmento social
brasileiro pelo direito de trabalhar.
Em sua crítica à sociedade de massa contemporânea, o mesmo autor proclama a busca
pela desalienação como pressuposto para o alcance da cidadania, elegendo como fundamental
o fortalecimento das relações entre os homens e um distanciamento entre sujeito e objeto. Diz
que “a alienação, como fábrica de enganos, se robustece e se alastra, num mundo em que os
homens pouco se comunicam pela emotividade e se deixam mover como instrumentos”
(SANTOS, 2007, p. 70). Acrescenta ainda que a individualidade, sufocada pela busca do êxito
a qualquer preço, impede a busca de valores porém, postula que a individualidade não morre,
apenas adormece. O acordar da individualidade leva o sujeito a recusar-se a reproduzir
comportamentos considerados a priori como ‘corretos’, que são impostos pela sociedade de
massa, tal como o autor esclarece:
Fábrica de preconceitos, essa natureza inferior que mutila a consciência do homem e
cria a submissão aos mecanismos de manipulação, o cotidiano é também o lugar da
descoberta. o homem se recusa a reproduzir como certos os comportamentos da
sociedade de massa. A conformidade com as regras de um jogo em que a própria
sobrevivência biológica deixa de ser conformismo. Os instintos segundos, inspirados
pela sua existência no mundo, que ele agora enxerga mais claramente, tomam o
lugar dos instintos primeiros, ditados pelo imediatismo e a fragmentação que
provoca (SANTOS, 2007, p. 71-72).
57
Como já referido neste capítulo, a territorialidade humana está ligada a uma identidade
espacial. Assim sendo, o espaço pode tornar-se lugar de alienação ou de negação da cidadania
para aqueles que, forçados a migrar, instalam-se em territórios estranhos, desprovidos de
condições materiais e simbólicas capazes de operar a inserção cultural e econômica dos
migrantes. Santos é categórico ao afirmar que “quando o homem se defronta com um espaço
que não ajudou a criar, cuja história desconhece, cuja a memória lhe é estranha, esse lugar é a
sede de uma vigorosa alienação” (2007, p. 81). O autor entende que existem correlações tanto
entre cidadania e cultura quanto entre cultura e territorialidade:
Assim como cidadania e cultura formam um par integrado de significações, assim
também cultura e territorialidade são, de certo modo, sinônimos. [...] Incluindo o
processo produtivo e as práticas sociais, a cultura é o que nos a consciência de
pertencer a um grupo, do qual é o cimento. É por isso que as migrações agridem o
indivíduo, roubando-lhe parte do ser, obrigando-o a uma nova e dura adaptação em
seu novo lugar. Desterritorialização é freqüentemente uma outra palavra para
significar alienação, estranhamento, que são, também, desculturização (SANTOS,
2007, p. 81-82).
Entretanto, a migração pode conter o germe da mudança. O autor reconhece que o
novo meio pode despertar para uma adaptação com uma mudança na territorialidade e cultura:
O novo meio ambiente opera como uma espécie de detonador. Sua relação com o
novo morador se manifesta dialeticamente como territorialidade nova e cultura nova,
que interferem reciprocamente, mudando-se paralelamente territorialidade e cultura
e mudando o homem. Quando essa síntese é percebida, o processo de alienação vai
cedendo ao processo de integração e de entendimento, e o indivíduo recupera a parte
do seu ser que parecia perdida (SANTOS, 2007, p. 83).
O novo espaço pode tornar-se o lugar da cidadania quando o “novo homem” for capaz
de construir sua nova territorialidade. A citação, a seguir, é emblemática e expressa bem o
significado do processo de reconstituição-reconstrução da territorialidade de um migrante:
Para mim, a terra natal não é exatamente o lugar onde nossos mortos estão
enterrados; é o lugar onde temos as nossas raízes, onde possuímos nossa casa,
falamos nossa linguagem, pulsamos os nossos sentimentos mesmo quando ficamos
em silêncio. É o lugar onde sempre somos reconhecidos. É o que todos desejamos,
no fundo do nosso coração: sermos reconhecidos e bem recebidos sem nenhuma
pergunta (LENZ apud SANTOS, 2007, p. 83).
Se a migração pode significar alienação ou cidadania incompleta, em situações em que
o migrante é forçado a migrar porque não tem outras escolhas, o contrário também deve ser
dito, isto é, a não migração das pessoas em certas circunstâncias pode significar sua
condenação ao empobrecimento dia a dia ou a viver em contextos socioculturais hostis.
58
Santos explicita bem o que se está querendo dizer quando afirma que “se uma cidade... cria
condições para o empobrecimento da sua população, a esse empobrecimento escapam
unicamente os que forem capazes de mobilidade social ou de mobilidade geográfica”
(SANTOS, 2007, p. 111). Em outras palavras, o autor aponta que não se deve considerar a
pobreza apenas sob a ótica espacista, mas também sob a ótica da acessibilidade e das
condições individuais.
Na mesma direção do pensamento de Santos, Haesbaert (2004) ressalta que a
mobilidade espacial pode ser uma estratégia de superação da pobreza, por permitir a
“reterritorialização cidadã”, no contexto da sociedade contemporânea:
É importante lembrar que o simples fato de o pobre desterritorializado ter a opção da
mobilidade, ou, em outras palavras, de migrar, pode lhe garantir uma espécie de
capital espacial frente àquele que permanece lá onde foi desterritorializado, tamanho
o valor dado pela sociedade contemporânea ao movimento, à fluidez, à idéia ou
perspectiva de mudança e, mais do que isto, à possibilidade de acessar e/ou de
acionar/recriar diferentes territórios (HAESBAERT, 2004, p. 251).
A territorialidade do “homem-cidadão” se efetiva na contemporaneidade de forma
cada vez mais imbricada com sua situação social e em fusão com a geográfica. Efetivamente,
o homem, enquanto produtor e consumidor, depende de instâncias detentoras de poder de
decisão e administração, de fontes de informação e de acessibilidades capazes de oferecer-
lhes as condições materiais para a sua reprodução social. A carência de tais condições o
impedem de ter acesso a melhores mercados e a trabalhos melhor remunerados.
Nesse sentido, Gehlen discorre acerca do tema cidadania, incluindo-o no debate sobre
território e identidade. Sua tese se aproxima daquela de Santos, pois afirma que a cidadania se
“referencia na sociedade histórica a qual cada um pertence e na totalidade nacional, segundo
normas por esta estabelecida” (2006, p. 266). Após destacar a evolução da cidadania em
vários contextos sociais mundiais e em vários momentos históricos, desde a Antiguidade
Clássica (Grécia e Roma) até a Europa Moderna ou burguesa, passando pela Europa Medieval
e Feudal, o autor discorre sobre a evolução dos contextos e dos contratos sob os quais se
afirmavam a identidade e a cidadania. De acordo com ele, a cidadania se afirma como um
direito público, porém sob contrato negociado em que o trabalho e o compromisso político
entram como moeda de troca, ou seja, em troca da liberdade no território, do acesso ao saber
universal e aos bens comuns.
As postulações dos autores referidos neste tópico induzem a se pensar que existe uma
correlação entre cidadania, cultura e território. De acordo com os preceitos da modernidade
59
ocidental, o trabalho remunerado dignamente territorializa o cidadão ao possibilitar-lhe a
aquisição dos bens materiais de que necessita.
Segundo Gehlen (2006), se o trabalho na antiguidade era atributo do não cidadão, por
sua penosidade e desprestígio social, o avanço da modernização ocidental e a Revolução
Industrial atribuíram ao trabalho a centralidade ética e econômica do ser humano, impondo à
gestão do trabalho sua subordinação ao tempo. Ademais, “a ascensão da burguesia politizou e
positivou o conceito de igualdade e de trabalho” (GEHLEN, 2006, p. 267).
O autor reforça a relação entre cidadania e identidade ao se referir ao contexto social
criado pela globalização. A identidade que se oferece como possibilidade de dar um sentido
ao cotidiano, reivindicada por alguns movimentos sociais, aquela que valoriza a cultura local,
passa a ser enviesada por outras identidades, induzindo a aceitação das diferenças frente à
globalização.
A afirmação da cidadania dá-se quando a territorialização não se torna excludente, isto
é, uma territorialização parcial, em que faltam aos que buscam territorializar-se, além das
condições para sua reprodução social, o reconhecimento de seu papel e de suas identidades
por parte da sociedade global. Referindo-se especificamente à territorialização de agricultores
familiares no atual contexto da modernidade, o autor afirma que,
É a partir das lutas sociais de resistência, de reivindicações ou de produção de
políticas específicas para o desenvolvimento rural que a auto-estima dos
agricultores, sobretudo os familiares, se afirma. O agricultor familiar se
territorializa e passa a recusar ser identificado por termos com os quais não se
identifica, tais como: camponês, colono ou trabalhador rural. Em alguns lugares
recriou o sentido original do termo colono por razões mercadológicas,
especialmente turísticas. Em outros, como na região cerealeira, os “antigos”
colonos recusam este termo e o substituem por familiar, empresário agrícola, ou
pela identificação profissional: fumicultor, sojicultor, avicultor, etc. (GEHLEN,
2006, p. 277).
Porém, que se ressaltar que a territorialização de um agricultor, enquanto condição
para a definição identitária pela afirmação de sua autoestima, leia-se cidadania, sugere a
necessidade de um espaço que permita o reestabelecimento de condições de reprodução não
apenas do agricultor enquanto um ente inserido nos circuitos de mercantilização, como
normalmente é pensado pelos fazedores de políticas públicas de desenvolvimento e por alguns
estudiosos do desenvolvimento rural, mas também de seu ethos. Dito de outra forma, acredita-
se que a territorialização de um agricultor familiar envolve o estabelecimento de redes de
relações sociais – parentais e de vizinhança que acompanham, mas que por vezes ultrapassam,
60
a instância do econômico. Assim, a perda destes referenciais pode induzir ao abandono do
rural, ainda que as condições materiais mínimas para a reprodução social sejam mantidas.
1.2 TEORIA DA RACIONALIDADE
A etimologia da palavra racionalidade encontra no latim sua raiz, na palavra ratione,
razão, que significa raciocínio. A origem da racionalidade situa-se no horizonte histórico, na
evolução do pensamento filosófico antigo, que proporcionou o rompimento entre mito e
razão, a partir de questionamentos e reflexões sobre os fenômenos naturais. Essa nova
concepção de conhecimento tem sua matriz nos filósofos sofistas da antiguidade clássica
tendo Protágoras (487-420 a.C.) como um dos principais expoentes que fazem uma crítica à
mitologia tradicional e centram no homem e nas suas necessidades o foco de suas
preocupações. Na mesma época, o filósofo Sócrates, através da sua maiêutica
16
, induzia as
pessoas à busca da verdade pela investigação e descoberta do próprio homem. Assim, tornou-
se famosa a frase: “Conhece-te a ti mesmo”. A partir de Sócrates, o pensamento filosófico
dominante até o século XVII se pauta na busca pela separação entre conhecimento falso e
verdadeiro (SOUZA, et al., 2003).
Nos séculos XVII e XVIII, o Iluminismo surge como movimento que busca
substituir o pensamento religioso-teocêntrico, até então hegemônico, pelo pensamento
racional. A libertação do homem guiado pelas crenças e sua emancipação pela razão
compunha o ideário dos filósofos iluministas. Como sugeriu Bloom, “o que distingue a
filosofia do Iluminismo da que a precede é a sua intenção de estender a todos os homens o
que havia sido propriedade de apenas alguns, a saber, uma existência conduzida em
conformidade com a razão” (BLOOM apud TOURAINE, 2002, p. 19).
A racionalidade concebida enquanto meio de libertação do homem, postulada pelos
primeiros pensadores iluministas, no entanto, volta seu foco para a ciência e a técnica, e a
razão libertadora torna-se instrumental, isto é, passa a estar a serviço de fins imediatos, sob a
égide do cálculo. Adentra-se assim na modernidade racionalista.
No começo do século XX, Weber, centralizando seu foco de análise no capitalismo
e na moderna sociedade de massa, produz uma importante teoria sobre a racionalidade, a
partir da ideia de ação social e relação social, estabelecendo uma dicotomia entre
16
Método da dialética que tentava, através de perguntas, induzir as pessoas a buscarem a verdade.
61
racionalidade voltada para o cálculo ou instrumental e racionalidade voltada ao valor ou
substantiva. No próximo tópico, são tecidas algumas considerações sobre a teoria da
racionalidade weberiana.
1.2.1 A racionalidade em Weber
Como referido, a base do pensamento weberiano repousa em sua convicção sobre o
caráter mutável e individualista das manifestações da vida humana. Assim, ele nega a
existência de leis universais que expliquem os fenômenos sociais. Para ele, os fatores sociais
devem ser analisados como fenômenos culturais "historicamente significativos", pois "a
realidade empírica é cultura a nossos olhos porque e tanto que nós a elevamos a idéias de
valor" (WEBER, 2005, p. 92). Weber, portanto, parte da visão de homem histórico, capaz de
agir racionalmente e estando inserido em um mundo no qual seu destino depende de uma
multiplicidade de fatores causais e não em um fator único, como sugeria Marx (WEBER,
1971, p. 64). Como indica Carvalho (2004, p. 51), “o que para Marx é determinação
econômica, para Weber é interesse, isto é, o fato de o homem atribuir um sentido à vida, de
ser racional”.
1.2.1.1 Ações sociais
A partir da sociologia compreensiva, reafirmando seu caráter individualista, Weber
busca compreender a “ação social” enquanto carregada de sentido. A ação social orienta-se
pelo comportamento de outros, seja este passado, presente ou esperado como futuro
(WEBER, 1991; 2009). Os outros podem ser indivíduos ou multiplicidade indeterminada de
pessoas. Nesse caso, o pensador sugere que o comportamento individual é orientado pelas
ações dos outros, sejam econômicas, religiosas ou outras. O campo científico, para o autor,
deve, pois, dar conta ou interessar-se apenas com o indicador dos fenômenos sociais que
possam traduzir-se em ações. Por esse viés, ele destaca a multiplicidade de fenômenos sociais
nas relações dos homens, o que sugere a impossibilidade do estabelecimento de axiomas que
possam explicar de forma homogênea e universal o comportamento humano.
Weber (2009, p. 45-46) estabelece quatro tipos de ão social (sem pretender uma
segmentação rígida):
62
a. Ações de modo racional referentes a fins: têm fundamentalmente características
racionais. São escolhas tomadas, segundo seus fins, após terem sido examinadas as
consequências previsíveis, os custos e os benefícios. A compreensão se pelas
evidências, de modo que o grau máximo de evidência se situaria neste tipo de
ação. São ações desenvolvidas/efetivadas, em relação a expectativas de outras
pessoas, utilizadas como “condições” ou “meios” para se alcançar fins próprios,
ponderados e perseguidos racionalmente como o sucesso. São também ações
motivadas por expectativas quanto ao comportamento de objetos do mundo
exterior. Trata-se de um tipo de ação racional considerado ideal e mais apropriado.
b. Ações de modo racional referentes a valores são ações movidas ou suscitadas
pelos valores dos sujeitos, sem que se leve em consideração as consequências; tais
como: crença em valores éticos, estéticos e religiosos.
c. Ações afetivas: respondem a sentimentos, sem referência ao racional, movidas por
afetos ou estados emocionais atuais: “age de maneira afetiva quem satisfaz sua
necessidade atual de vingança, de gozo, de entrega, de felicidade contemplativa ou
de descarga de afetos (seja de maneira bruta ou sublimada). (WEBER, 1991, p.
15).
d. Ações tradicionais: são aquelas que se realizam segundo valores adquiridos da
sociedade, equivalem aos ritos, às normas de comportamento social (baseiam-se no
hábito; estão na fronteira do que pode ser considerado como ação).
Não uma relação direta entre os tipos de ação social e os tipos de racionalidades
propostos por Weber. Para o autor, enquanto as ações sociais em relação a fins e as ações em
relação a valores são consideradas racionais, as afetivas e as tradicionais seriam irracionais.
Ademais, o autor ressalta que se tratam de tipos puramente conceituais, construídos
para fins de análise sociológica e que, portanto não se encontram na realidade de forma pura;
em geral, os quatro tipos de ação misturam-se ou manifestam-se de maneira aproximada nas
relações humanas. Isso significa que sua observância depende da interpretação do
comportamento das pessoas e do estabelecimento de um parâmetro de comportamento
“ideal”. Assim, para Weber, o comportamento será considerado racional quanto mais se
aproximar do ideal típico racional em relação a fins, e será concebido como irracional quanto
mais se distanciar deste tipo.
Quanto às ações sociais racionais que mais interessam nesta pesquisa, ressalta-se que
Weber vincula a racionalidade formal à ação social racional em relação a fins, e a
63
racionalidade substantiva ou material à ação social racional em relação a valores. Weber deixa
isso explícito ao fazer referência à gestão econômica:
Chamamos racionalidade formal de uma gestão econômica o grau de cálculo
tecnicamente possível e que ela realmente aplica. Ao contrário, chamamos
racionalidade material o grau em que o abastecimento de bens de determinados
grupos de pessoas (como quer que se definam), mediante uma ação social
economicamente orientada, ocorra conforme determinados postulados valorativos
(qualquer que seja sua natureza) que constituem o ponto de referência pelo qual este
abastecimento é, foi ou poderia ser julgado (WEBER, 1991, p. 52).
A noção de regularidade comportamental é central no entendimento de racionalidade
em Weber, isto é, para que um comportamento seja considerado racional em relação a fins,
espera-se que seja guiado por uma racionalidade regular. Em outras palavras, para explicar
processos irracionais é preciso antes interpretar como seria o comportamento "no caso limite
ideal típico racional com relação a fins e racionalidade regular".
Na análise crítica que faz da teoria da racionalidade em Weber, na obra com o
sugestivo título Max Weber: Entre a paixão e a razão, Saint-Pierre (1991) afirma que a teoria
da ação social weberiana é tipológica e desenvolvida em termos de probabilidade. Ele sugere
que Weber, ao conceber a separação entre ações racionais e irracionais, admite que as
racionais em relação a fins sejam típicas ideais. Ao fazê-lo, estabeleceu uma escala de
probabilidades de resultados. Dito de outra forma, para que se possa chegar a uma explicação
causal correta, é necessário que se conheça de antemão tanto o ambiente externo, quanto o
motivo que leva um sujeito à ação. O autor sugere ainda que: “Assim apresentados, os modos
de ação social constituem um jogo de tipos ideais de ão dos quais os cientistas sociais
poderiam se aproveitar para o conhecimento e ordenamento do fluxo caótico dos
acontecimentos” (SAINT-PIERRE, 1991, p. 107-117).
Weber estabeleceu uma hierarquia classificatória dos fenômenos da vida cotidiana,
separando os fenômenos econômicos dos não econômicos. Sinteticamente, poder-se-ia
caracterizá-los da seguinte forma:
a. Fenômenos econômicos: estão diretamente ligados à vida econômica;
b. Fenômenos economicamente relevantes: não estão ligados diretamente à vida
econômica, mas podem se tornar relevantes no sentido econômico ou em
determinadas circunstâncias adquirir um significado econômico. É o caso de
acontecimentos da vida religiosa.
c. Fenômenos não econômicos (segundo o sentido que lhes são atribuídos são
aqueles cujos efeitos econômicos pouco ou nenhum interesse oferecem.
64
Todavia, Weber reconhece que o âmbito das relações econômicas é fluido, não
podendo ser delimitado com rigor.
1.2.1.2 Relações sociais
Weber (1991, p. 17) a sociedade como uma enorme e numerosa trama de relações
sociais. Ele aponta que a relação social consiste exclusivamente na probabilidade de haver no
passado, no presente ou no futuro e de forma indicável ações reciprocamente referidas quanto
ao sentido; sustenta que “uma relação social pode ter caráter transitório ou permanente, isto é,
que exista a probabilidade de repetição”.
De acordo com o autor, podem ser sintetizadas algumas características das relações
sociais:
Revestem-se de pluralidade.
Sempre tratam de um sentido empírico entre as partes.
Nelas, a noção de reciprocidade pode ser entendida de forma diferente entre os
atuantes.
A duração pode ser permanente ou por tempo definido.
A durabilidade é diretamente proporcional à racionalidade.
Seus fins podem variar com o tempo.
O sentido ‘de relação’ pode ser pactuado entre as partes.
Segundo o autor, as ações sociais revestidas de sentido o agir em sociedade ou em
comunidade – se orientam por expectativas dos atores, alimentadas em regulamentações.
Entretanto, o agir real dos indivíduos pode ser orientado, de maneira objetiva e provida de
sentido, segundo diversos regulamentos que, de acordo com os hábitos de pensamento
predominantes em cada caso, se ‘contradizem’ de maneira provida de sentido, mesmo que
sejam ‘válidos’ ‘paralelamente’ e ‘empiricamente’ (WEBER, 1992).
Percebe-se que, para Weber, como sugere Cohn (2003), não importa a vivência dos
sujeitos, mas sua experiência, assim como, não interessam suas ações de per si, mas o
estabelecimento de nexos causais entre as várias ações do mesmo agente (típico) ou entre as
ações de vários sujeitos diversos, em um mesmo contexto. Destarte, o sujeito weberiano é
capaz de criar sua racionalidade como valor e orientar suas ações em consonância com ela,
pressupondo certa autonomia para tal.
65
Weber estabelece uma diferenciação ou dicotomia, a partir da noção de ação social,
entre uma relação social “associativa” e “comunitária”. Em uma relação social associativa, a
ação social repousa num ajuste ou união de interesses, racionalmente motivados (com
referência a valores ou fins), a partir de um ordenamento estatuído, contando com um
dirigente e eventualmente um pessoal administrativo. Por outro lado, uma relação social
denomina-se ‘comunitária’, quando e na medida em que a atitude na ação social repousa nos
sentimentos subjetivos dos participantes (afetivos, emocionais-sentimentais ou tradicionais)
ao mesmo grupo. Uma comunidade familiar seria aquilo que expressa de forma mais
convincente este tipo. Entretanto, ressalta-se que a grande maioria das relações sociais tem
caráter em parte comunitário e em parte associativo. Lembra o autor que “toda a relação
social, mesmo a teleológico-racional, prosaicamente criada e intentada (a clientela por
exemplo) pode produzir valores afectivos que vão além do fim simplesmente
querido”.(WEBER, 2009, p. 67).
Cabe, por fim, salientar ou reafirmar que a sociologia compreensiva weberiana
promove o encontro do homem com seus valores. Os valores e padrões, no entanto, são
constantemente redefinidos na intersubjetividade. Ou, parafraseando Rodrigues (1996, p. 06),
“o ator weberiano por certo se depara com regras, normas de conduta, padrões estabelecidos.
Ocorre, porém, que no universo da sociologia compreensiva as regras, normas e padrões são
referenciais intersubjetivos, parâmetros para diferentes ‘modos de agir’(grifos do autor) e, ao
mesmo tempo, produto de interações intersubjetivas”.
1.3 AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: DE DURKHEIM A MOSCOVICI
A compreensão dos fenômenos ou fatos cotidianos que envolvem indivíduos e grupos
sociais remete à necessidade de análise das representações sociais desses indivíduos e/ou
coletividade. No alto de seu holismo metodológico, Durkheim sugere que as representações
traduzem a maneira como o grupo se pensa nas suas relações com os objetos que o afetam.
Ainda, segundo ele, as representações coletivas, por terem características de fato social, assim
como as instituições e estruturas, são exteriores ao indivíduo e exercem coerção sobre as
consciências individuais (DURKHEIM apud GOMES et al., 2002).
Por sua vez Weber, a partir de seu individualismo metodológico, observa que, “tanto
para a sociologia no sentido atual quanto para a história, o objeto de conhecimento é o
66
complexo de significados subjetivo da ação” (WEBER apud BERGER e LUCKMANN,
1987, p. 33).
A dicotomia estabelecida entre a teoria durkheimiana, apontando as instituições ou
estruturas exteriores ao indivíduo como modeladoras de suas ações e a teoria weberiana,
apontando o indivíduo, através de suas ações sociais, como modelador da sociedade, reduz o
debate em torno da discussão sobre quem influencia quem. A teoria das representações sociais
parece ter surgido como uma tentativa de consenso entre a teoria do individualismo e a do
coletivismo.
Farr (2008, p. 34-35) refere que a pré-história das representações sociais pode ser
encontrada em Durkhein, que fez uma separação entre o estudo das representações individuais
(domínio da psicologia) e o estudo das representações coletivas (domínio da sociologia).
Entretanto, o conceito de representação social e todo um fértil terreno de debates em
psicologia social em torno da teoria das representações sociais surgem com Serge Moscovici,
no começo dos anos de 1960, com a publicação de sua pesquisa sobre a Representação social
da psicanálise. (FARR, 2008; JOVCHELOVITCH, 2008; LANE, 2004; SPINK, 2004). Ao
criticar a teoria durkheimiana, Moscovici propôs que a teoria das representações sociais fosse
classificada como campo sociológico e não psicológico da psicologia social (FARR, 2008).
Moscovici (2007) deu uma valiosa contribuição à psicologia social ao fazer uma
profunda análise crítica dos pensamentos dos autores clássicos, tanto do campo da sociologia
(Durkheim e Lévy-Bruhl) quanto da psicologia (Piaget, Vygotsky e Freud) relativamente à
teoria do conhecimento (formação das representações). Ressalta-se que o autor foi fortemente
influenciado por esses pensadores. A centralidade da tese de Moscovici consiste num esforço
no sentido de descortinar a teoria evolucionista de Durkheim e Piaget, ao afirmar que não
existe uma progressão linear no pensamento de um indivíduo ou grupo, mas a coexistência de
diferentes sistemas cognitivos, que ele denominou de “polifasia cognitiva”, considerando que
“diferentes tipos de saber, possuindo diferentes racionalidades, vivem lado a lado no mesmo
individuo ou coletivo” (MOSCOVICI apud JOVCHELOVITCH, 2008, p.125). Neste ponto,
Moscovici afasta-se um pouco de Durkheim e aproxima-se de Weber, ao admitir que as
formas de pensamento não emergem apenas a partir das experiências coletivas de um grupo,
solidificadas através das ideações, emoções, rituais ou costumes de forma homogênea, mas
podem emergir do próprio indivíduo e/ou de minorias ativas, portanto da diferenciação e da
interação. Assim, ele abandona a ideia de representações “coletivas” e adota a de
representações “sociais”.
67
A maior parte das vezes, as duas palavras são usadas como sinônimas. Eu prefiro,
contudo, usar apenas “social”, por que ele se refere a uma noção clara, aquela da
sociedade, a uma idéia de diferenciação, de redes de pessoas e suas interações. No
século dezenove, a palavra “coletivo” (grifo do autor) era muito comum, sugerindo a
imagem de um amontoado de pessoas, um agregado de indivíduos formando um
todo (MOSCOVICI, 2007, p. 348)
Fica explícita pela citação a ideia do autor de elaboração das representações pela
interação entre indivíduos, que promove a criação e recriação de consensos ou do senso
comum. Entretanto, esse senso comum pode variar de acordo com os indivíduos ou grupos
sociais, promovendo o surgimento de diferentes causalidades sociais ou explicações causais
(“diferentes porquês”). Ele faz uma aproximação empírica ao citar como exemplo a questão
do desemprego, que afeta a maioria das famílias hoje, alertando para a dicotomia
representacional entre a classe dominante e a dominada, o que ele classifica como causalidade
social de “direita” versus de “esquerda”. De acordo com o autor, para a classe dominante, o
indivíduo é o responsável por tudo o que lhe acontece. Para a classe dominada, as dificuldades
se devem sempre às circunstâncias que a sociedade cria para o indivíduo. Cada um de nós
acaba aderindo a uma dessas correntes ou causalidades sociais (MOSCOVICI, 2007).
A elaboração de explicações causais pelos indivíduos, enquanto seres pensantes,
remete à ideia de adesão do indivíduo ao grupo apenas de forma parcial. Entretanto, é no
grupo que se origina o “alimento para o pensamento” dos indivíduos, alimento este extraído
dos acontecimentos, da ciência e da ideologia (MOSCOVICI, 2007).
Pelo que precede, observa-se que as representações sociais podem derivar do campo
científico, denominado por ele de “universo reificado”. No entanto, enquanto a finalidade da
ciência é estabelecer um mapa das forças, dos objetos e acontecimentos que são
independentes dos nossos desejos, aos quais devemos reagir de modo imparcial e submisso, a
finalidade das representações é restaurar a consciência coletiva, dando-lhe forma e explicando
os objetos e acontecimentos de tal forma que eles se tornem acessíveis a qualquer um e
coincidam com nossos interesses imediatos (MOSCOVICI, 2007).
Em seus estudos sobre o papel dos meios de comunicação de massa no
estabelecimento do senso comum, em que este foi elevado à função de uma ideologia
dominante, Moscovici (2007) estabeleceu um quadro evolutivo na formação dessa ideologia,
em que reconhece três fases sequenciais: a) a fase “científica” de sua elaboração, a partir de
uma teoria/uma disciplina científica como a economia, biologia, etc.; b) a fase
“representativa”, em que ela se difunde em uma sociedade; suas imagens, conceitos e
68
vocabulário são difundidos e adaptados; c) a fase “ideológica”, em que a representação é
apropriada por um partido, uma escola de pensamento ou um órgão do Estado.
Parece ficar claro, portanto, que, ao criar o conceito de representação social,
Moscovici estava preocupado em discutir o conhecimento consensual. De fato, ele mesmo
estabelece uma fronteira entre dois mundos: o mundo reificado (da ciência) e o mundo
consensual (do senso comum). Enquanto a ciência produz conhecimento para nós
compreendermos o “universo reificado”, as representações sociais dizem respeito ao
“universo consensual”. Em outros termos, o autor diz que a finalidade de todas as
representações é tornar familiar algo não familiar.
A idéia de familiar e não familiar fica explicitada ao afirmar: “Sustento, pois, que as
representações sociais têm como finalidade primeira e fundamental tornar a comunicação,
dentro de um grupo, relativamente não-problemática e reduzir o vago através de certo grau de
consenso entre seus membros”. (MOSCOVICI, 2007, p. 208).
Para tornar familiar o não familiar, as representações sociais dependem de dois
processos: a “ancoragem” e a “objetivação”. O autor define “ancoragem” como: “Um
processo que transforma algo estranho e perturbador, que nos intriga, em nosso sistema
particular de categorias e o compara com um paradigma de uma categoria que nós pensamos
ser apropriada” (MOSCOVICI, 2007, p. 60-61). Ancorar significa portanto encontrar uma
explicação plausível ao aparentemente inexplicável ou estranho. Ou, parafraseando Guareschi
(2008, p. 213): “O barco está à deriva, pronto a deslizar, impulsionado por essa correnteza
‘motivadora e mobilizadora’ da não familiaridade. É preciso encontrar agora faróis que o
orientem e margens seguras que o ancorem, nos jordões da existência”.
A objetivação, segundo Moscovici, é a materialização do abstrato ou a transformação
da “palavra que substitui a coisa na coisa que substitui a palavra” (2007, p. 71). A objetivação
é uma forma de dar confiabilidade a uma representação. É o meio através do qual uma
representação social traz para um nível quase material a produção simbólica de uma
comunidade (JOVCHELOVITCH, 2008).
Também no campo da psicologia social, tornaram-se de grande valia estudos
empreendidos por psicólogos sociais, discípulos ou críticos de Moscovici. Jovchelovitch
(2008) discorre sobre as representações sociais e suas relações com a comunidade e a cultura,
num enfoque intitulado “os contextos do saber”. Trata-se de uma abordagem a partir de uma
triagem aos clássicos da sociologia, psicologia, psicologia social e psicologia da educação. De
Durkheim e Weber a Lévy-Bruhl e de Freud e Piaget a Paulo Freire, a autora realiza um
esforço hercúleo no sentido de desmistificar a ideia da existência do “homem racional puro”.
69
no início de sua obra, ela faz o seguinte alerta: “Se a psicologia nos ensinou alguma coisa,
é que o sujeito plenamente racional não existe” (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 32). Ela critica
a teoria totalizante ou totalizadora de Descartes sobre o conhecimento representacional
baseado na separação entre sujeito e mundo. Para Descartes, o homem é aquele que olha o
mundo como se este lhe fosse alheio ou exterior. Assim, a teoria cartesiana desconsidera a
possibilidade da convivência harmônica entre diferentes conhecimentos, ao admitir que existe
apenas um tipo de conhecimento verdadeiro ou válido: aquele que não tem pátria ou, como
sugere Nagel, citado por Jovchelovitch, “aquele baseado em uma visão desde lugar nenhum”
(2008, p. 52). A partir desse conhecimento, tido como verdadeiro, real ou oficial, os demais
saberes – dos mitos, das crenças, do senso comum – seriam relegados à condição inferior.
A construção-solidificação de representações dos atores dá-se no processo histórico,
através da soma de experiências culturais da vida cotidiana (JOVCHELOVITCH, 2008).
Nessas experiências, os atores constituem uma teia de representações simbólicas que ajudam
na construção de utopias e na leitura do mundo. Na relação do Eu com o Outro, constrói-se o
mundo simbólico coletivo, efetivado na interssubjetividade. Diz-se então que o espaço do Eu
perpassa o espaço do Outro e cria um terceiro espaço potencial, o espaço da representação
simbólica. Este espaço surge dentro de um contexto que é emocional, social e cultural
(JOVCHELOVITCH, 2008, p. 68-70).
Na abordagem que realiza sobre “representações sociais e a diversidade do saber”,
Jovchelovitch retoma a discussão sobre a existência de uma dicotomia entre os conceitos
durkheimianos de representações coletivas e de representações sociais. Na concepção
durkheimiana, representações coletivas referem-se às crenças, sentimentos e idéias habituais,
dadas e homogeneamente compartilhadas de uma comunidade. Elas existiriam na sociedade,
independentemente da consciência individual contrariando, como foi dito no início deste
tópico, a teoria weberiana da “consciência individual” – e estariam sustentadas pela moral que
guia a ação de todos os membros de uma comunidade:
Quando Durkheim discutiu as características das representações coletivas ele as
concebeu como externas e coercitivas em relação a indivíduos, bem como estáveis
ao longo do tempo. As representações coletivas, ele argumentou, possuem uma
existência objetiva e autônoma, pois são produzidas e reproduzidas pela ação
coletiva (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 97-98).
A concepção durkheimiana de representações coletivas foi forjada na ideia de
classificação social do conhecimento, dentro de uma perspectiva evolucionista: do estágio
primitivo para o científico. O estágio primitivo do conhecimento seria aquele em que se
70
encontram as sociedades primitivas, unidas por laços sociais e emocionais que solidificam
formas específicas de pensar ou conceber o mundo.
Essa teoria evolucionista que defendia a existência de apenas um tipo de racionalidade
foi desafiada por pensadores contemporâneos a Durkheim, dentre eles Lévy-Bruhl. Este
pensador ousou, em um momento histórico de grande difusão do pensamento racional
ocidental, desafiar os postulados da racionalidade única e desvinculada do emocional,
corpóreo e social e defendeu o enredamento do pensamento com a vida psíquica, inserindo a
ideia da participação de mundos diferentes em um mesmo grupo humano como forma de
entender pensamento de uma coletividade. Assim, a ideia de participação permite concluir a
respeito da heterogeneidade do pensamento humano, sob o ponto de vista de uma cultura e de
um indivíduo (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 99-106).
Referindo-se às contribuições de Lévy-Bruhl em relação a evolução do pensamento
psicossocial, Jovchelovitch (2008, p. 104) postula que
Ele nos removeu de uma lógica que opõe “nós” (sociedade dita moderna) e “eles”
(povos primitivos), para uma gica que busca entender a diversidade do
pensamento tanto na “nossa cultura como na cultura “deles” e, a partir daí,
descobrir não apenas o que é diferente entre nós e eles, mas, também, o que é
semelhante. (grifos da autora).
Distanciando-se, em certa medida, da concepção durkheimiana, Piaget, ao formular
sua psicologia social da criança, aproxima-se de Lévy-Bruhl ao admitir a heterogeneidade das
estruturas do pensamento e ao afirmar que as representações constituem um processo em
constante construção ou, parafraseando Jovchelovitch, “o conhecimento representacional do
mundo implica um processo pelo qual toda a criança deve reinventar o mundo que a precede”
(2008, p.107). No entanto, Piaget se aproxima de Durkheim em sua definição evolucionista de
lógica, ao comparar as sociedades tradicionais às crianças na primeira infância. Para ele, em
ambos os casos, o egocentrismo e a coerção social do pensamento obstruem a conquista do
final lógico do desenvolvimento (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 106-111).
Discorrendo sobre os contextos em que se processa o saber, Jovchelovitch indica a
existência de cinco indicadores da representação: “o quem”, “o como”, “o porquê”, “o quê” e
“o para quê”. O “quem” do saber diz respeito à identidade, indicador psicossocial central dos
contextos do saber. Para a autora, “as representações aglutinam a identidade, a cultura e a
história de um grupo de pessoas” (2008, p.175). O “como” das representações refere-se aos
modos de ação e comunicação da representação: “os processos representacionais são uma
conquista da comunicação” (2008, p. 177). O “porquê” da representação diz respeito à
71
posição do sujeito frente ao objeto-mundo. Este indicador remete à velha discussão sobre a
dicotomia razão-emoção ou razão-paixão. Por sua vez, o “quê” da representação diz respeito à
construção do objeto. Finalmente, o “para quêda representação exerce a importante função
de tornar o não familiar, familiar. É a indicador que explica ou justifica uma representação, se
ideológica ou não (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 172-194). As representações coletivas e
representações sociais o didaticamente analisadas pela autora, ao serem colocadas lado a
lado como duas modalidades de representações dicotômicas e tratadas por ela como tipos
ideais. Em ambas as modalidades de representação, entrecruzam-se três aspectos
representacionais, formando o que ela denominou de arquitetura tríplice dos processos
representacionais: o “objetivo” esfera pública de uma comunidade e a estrutura cognitiva, o
“intersubjetivo” – interação e comunicação Eu Outro, e o “subjetivo” – indicador emocional
e pessoal. Os principais pontos discordantes entre as modalidades podem ser observados na
síntese apresentada no quadro a seguir.
4Quadro 2 - Modalidades de representações, segundo Jovchelovitch.
Representações coletivas Representações sociais
Esfera pública tradicional Esfera pública “destradicionalizada”
Coerção social Cooperação social
Relação hierárquica Relação não hierárquica
Homogeneidade Heterogeneidade
Fonte: Adaptado de JOVCHELOVITCH, 2008, p. 203
A maioria dos campos representacionais contém, entretanto, características de ambas
as modalidades. Segundo a autora, o mito, a crença e a ideologia desempenham funções
homogeneizadoras da identidade, da comunidade e da memória social, que têm tendência à
constância ou à preservação. Por sua vez, o senso comum e a ciência, na condição de campos
abertos, tornam-se acessíveis à mudança e à inovação (JOVCHELOVITCH, 2008).
Em sua problematização acerca da representação, a autora evoca novamente a
necessidade de se considerar a multiplicidade de saberes (o que ela denomina “os saberes no
plural”) e o fato de que eles podem coexistir pacificamente na vida social. Ademais, estando
os saberes ligados ao Eu, à emoção e à cultura, tendem a se perpetuar, isto não significando
que sejam infalíveis:
Todos os saberes envolvem representação e todos são falíveis em determinados
momentos. A ciência sempre encontrou dificuldades para aliviar as tristezas do
coração e a crença sozinha o ajuda na promoção de estratégias de saúde pública.
Mas seria bobagem negar a contribuição que cada um destes tipos de saber pode
trazer a ambos os problemas (JOVCHELOVITCH, 2008, p. 211).
72
Para se evitar formas preconceituosas de validação de saberes na pesquisa sobre
desalojados, que se ter em mente essas múltiplas realidades em termos representacionais.
No encontro do Eu com o Outro, é necessário levar a sério as palavras do Outro. Não se trata
de dizer se o que o outro pensa é a verdade ou o saber correto. Antes é necessário levar em
consideração as ontologias dos entrevistados e o processo histórico de criação e recriação de
suas formas simbólicas. Os saberes devem ser entendidos como o resultado da interação Eu-
Outro, ambos inseridos em seu grupo de pertencimento. Faz-se relevante estabelecer uma
relação dialógica, parafraseando Jovchelovitch (2008), no encontro de saberes Eu-Outro.
73
2 A TERRITORIALIZAÇÃO DE AGRICULTORES FAMILIARES
NAS SOCIEDADES MODERNAS
O debate acadêmico sobre o campesinato ou sobre a “racionalidade camponesa” nas
sociedades modernas rendeu inúmeras publicações sem produzir consensos. Neste capítulo,
pretende-se discutir a lógica da racionalidade territorializadora camponesa, procurando-se
destacar e comentar algumas estratégias que asseguram a reprodução social do camponês,
transformado ou não em agricultor modernizado ou profissionalizado. Inicialmente, neste
capítulo, faz-se uma breve incursão a propósito da produção teórica relativa ao campesinato, a
partir de autores clássicos, como Chayanov e Weber, para, posteriormente tecer algumas
considerações sobre a lógica da reprodução social da agricultura familiar, sobretudo no Brasil,
a partir de estudos de alguns autores contemporâneos.
2.1 O CAMPONÊS E O CAPITALISMO
A discussão sobre a territorialização camponesa no contexto das sociedades modernas
trás de volta a antiga pergunta: É possível o “pequeno empreendimento agrícola”
17
familiar
não sucumbir diante de um contexto prescrito pela modernidade, sobretudo, capitalista?
Inúmeras teorizações tentaram dar conta da heurística sobre o campesinato. Tanto de parte
dos pensadores marxistas, quanto dos burgueses, o extermínio do camponês foi anunciado
várias vezes. Amim & Vergopoulos (1986, p. 135) expressam de forma muito clara essa
constatação, ao afirmarem que:
A produção camponesa é considerada por todas as ortodoxias, tanto marxistas como
burguesas, como uma anomalia residual em vias de liquidação... [...] Os “marxistas”
e “burgueses” do século XX estão de acordo em chamar a atenção do público para o
caráter antieconômico da pequena produção camponesa, como uma forma decadente
que prejudica o pleno desenvolvimento do capitalismo em geral.
No entanto, contrariando, em certo sentido, as profecias apocalípticas das
“ortodoxias”, o agricultor familiar atravessou séculos e está, buscando, através de
17
Nos debates relacionados ao mundo rural brasileiro, as palavras “pequeno e grande” aparecem com muita
frequência nos discursos políticos e/ou no discurso do senso comum, sem que se defina com alguma precisão os
seus significados no terreno teórico. Por isso, o uso de tais expressões, na linguagem científica, não é
recomendado ou é veementemente desaconselhado, por não permitir a possibilidade de mensuração. Nesta tese,
usa-se a expressão “pequeno empreendimento familiar”, a fim de identificar estabelecimentos agrícolas
familiares com indicadores de até 1 módulo fiscal, correspondendo à maioria das propriedades agrícolas
familiares do Rio Grande do Sul.
74
estratégias variadas, sua territorialização rural, mesmo num contexto capitalista adverso. Isto
induz a pensar que existem componentes, para além das forças do mercado, que explicam a
permanência do agricultor familiar no meio rural, ainda que estejam esgotadas,
aparentemente, as possibilidades para sua reprodução social.
Os primeiros grandes debates em torno da viabilidade e/ou da preservação do
campesinato
18
no contexto da modernidade vão acontecer na Europa, na época da Revolução
Russa, no primeiro quartel do século XX. Lênin será um dos primeiros a tecer considerações
importantes acerca da sobrevivência do camponês. A análise de Lênin em torno do
campesinato tem eminentemente cunho político. Ele esforçava-se para mostrar que os
camponeses não passavam de deserdados e famintos, que o crescimento de pequenas
propriedades era ilusório e que essas propriedades estariam prestes a serem engolidas pelo
empreendimento capitalista (ABRAMOVAY, 1998). Estabeleceu-se, portanto, uma convicção
na corrente marxista, baseada no viés econômico ou economicista: o campesinato passou a ser
considerado inviável dentro de uma conjuntura capitalista. O camponês ou ascenderia
socialmente à classe burguesa ou se proletarisaria (AMIM; VERGOPOULOS,1986).
Outros autores, fundamentados na realidade existente no mundo rural dos países da
Europa do início do século XX, notadamente da Rússia e da Alemanha, deram ênfase em suas
18
No Brasil, de modo geral, tanto nos meios acadêmicos quanto nos círculos oficiais ou governamentais, a ideia
da existência de um campesinato foi negada por muito tempo (SABOURIN, 2009). Quando admitida, o
campesinato foi associado à ideia de tradicional, o que remete à pobreza, atraso, isolamento e, por conseguinte, à
subserviência do agricultor à ganância de latifundiários e à usura de comerciantes e/ou atravessadores locais. A
produção do camponês destinar-se-ia basicamente à subsistência, ocorrendo a comercialização de apenas parte
da produção, o excedente. Portanto, numa concepção modernista, o mundo do camponês sempre foi
estigmatizado como sendo o lugar da vida social e do ambiente cultural que representa o arcaico e que, numa
perspectiva teleológica neopositivista, deveria desaparecer para dar lugar ao “progresso”. Numa perspectiva
economicista, nos anos de 1960, autores da corrente neomarxista discutiam o conceito de camponês colocado em
contraposição ao de proletário rural. Para estes, a penetração do capitalismo no campo brasileiro estaria levando
à proletarização rural. Assim, a maioria dos trabalhadores rurais brasileiros seriam proletários rurais e não
camponeses (VELHO, 2009). Por outro lado, desde os anos de 1980 existe uma corrente político-ideológica,
atrelada aos movimentos sociais agrários, sobretudo, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST)
e ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), que utiliza o termo campesinato como categoria política,
sem que seja apresentado por essas organizações um modelo científico de economia camponesa, como reconhece
Sabourin (2009). Por fim, que se ressaltar o fato de que, nos últimos tempos, tem se fortalecido no meio
acadêmico o debate sobre o assunto, envolvendo, sobretudo, os campos da sociologia e da antropologia, para os
quais o camponês incorporaria um ethos que se relaciona com o mundo do trabalho, da vida social, da família e
com a terra (TEDESCO, 1999; WORTMANN, 1990). No entanto, deve-se admitir que ainda controvérsias
entre os cientistas sociais contemporâneos sobre se seria o camponês um tipo ideal que se aplicaria à realidade
rural contemporânea brasileira e sobre uma suposta dicotomia camponês versus agricultor familiar moderno.
Para alguns teóricos, na agricultura familiar, diferentemente do campezinato, o agricultor se insere no contexto
do mercado e do capital, necessitando para tanto passar por um processo de profissionalização (ABRAMOVAY,
1998). Porém, alguns autores consideram que, no contexto da agricultora familiar contemporânea, existe uma
multiplicidade de tipos ou estilos, identificáveis empiricamente (PLOEG,1994; SCHNEIDER, 1999). Sem a
pretensão de polemizar a esse respeito, nesta tese, trabalha-se com a ideia da existência de uma “condição
camponesa” na agricultura familiar que inexiste na agricultura empresarial. Essa condição se expressa,
sobretudo, no trabalho familiar, na dupla finalidade da produção (mercado e produção para autosubsistência),
nos vínculos comunitários e na reciprocidade. Denominou-se essa condição de “campesinidade”.
75
teses à ideia da inviabilidade do empreendimento familiar no contexto modernista, seja pela
miséria do camponês, seja pela incompatibilidade entre progresso técnico e produção familiar.
Por sua vez, os formuladores da utopia marxista tentaram destruir a territorialidade
camponesa no intuito de inserir a luta de classes no campo.
As análises e/ou teorias marxistas centravam-se no fator econômico e representavam
uma antítese à ideia de sobrevivência da agricultura familiar ou camponesa. Assumindo uma
postura um tanto diferente em relação ao campesinato, Alexander Chayanov destacou-se na
Rússia como o principal expoente dentre os economistas agrícolas e engenheiros agrônomos
na tentativa de contribuir para que os camponeses melhor gerissem seus recursos,
possibilitando sua preservação social (ABRAMOVAY, 1998).
Em sua teoria, Chayanov considerava o campesinato russo um setor dotado de unidade
e identidade, que possuía substância social para fundamentação de um projeto social que
deveria ser respeitado. Defendia, portanto, as iniciativas que buscassem sua preservação
social. Para ele, o campesinato não era uma forma social, ocasional, transitória, fadada ao
desaparecimento, mas um sistema econômico com leis próprias de reprodução e
desenvolvimento econômico. (ABRAMOVAY, 1998).
Enquanto Lênin e Kautsky se preocupavam com a politização dos camponeses,
objetivando prepará-los ou “domesticá-los” para a coletivização forçada, Chayanov
preocupava-se com questões de natureza prática, agronômica, que viessem a melhorar suas
condições de vida. Para Chayanov, o processo de transformação para o socialismo deveria
partir da organização de cooperativas semiautônomas e não da coletivização forçada imposta
pelo Estado Soviético (capitalismo de Estado). Antes da destruição do campesinato, fosse
pelo avanço da racionalização capitalista, fosse pela coletivização forçada das propriedades
rurais, Chayanov via a possibilidade de sua sobrevivência, a partir da inserção no mundo da
racionalidade técnica, com a organização de cooperativas de produção familiar. A ideia era
induzir à concentração vertical “de las unidades econômicas campesinas”, considerando a
coletivização cooperativa como o único caminho à planificação estatal (CHAYANOV, 1974,
p. 317).
A territorialização camponesa, segundo o mesmo autor, dependeria de uma lógica
própria. Analisando o contexto rural da Rússia de seu tempo, ele elegeu a produção para o
autoconsumo como variável determinante da reprodução social camponesa. Sua tese
fundamenta-se no pressuposto de que o aumento do número de consumidores numa unidade
familiar determinaria o volume da atividade econômica da família, obviamente mantendo-se
estáveis todos os demais fatores. O aumento da produção a partir dessa pré-condição de
76
escassez de alimentos, induzindo a uma autoexploração do camponês, não significaria,
portanto, melhora no bem-estar familiar. Isso só seria possível se houvesse aumento da
produção anual devido à melhoria das condições de produção. O autor busca explicar a
possibilidade de sobrevivência do campesinato alicerçado na teoria do balanço trabalho-
consumo
19
no sentido de apreender a racionalidade camponesa que difere da racionalidade
capitalista, como postulou Almeida (2003).
O equilíbrio familiar insere-se como central na teoria chayanoviana, em sua explicação
sobre a organização da unidade econômica camponesa, possível tanto num sistema capitalista
quanto em outros sistemas:
Por lo tanto, si queremos tener um simple cocepto organizativo de la unidad de
explotación doméstica campesina independiente del sistema econômico em el cual
está insertada, inevitavelmente deberemos basar la comprensión de su esencia
organizativa em el trabajo familiar (CHAYANOV, 1974, p. 34).
Vê-se que, para o autor, os elementos “trabalho” e “família” são essenciais e
constituintes da racionalidade territorializadora camponesa: “La fuerza de trabajo de la unidad
de explotación doméstica está totalmente determinada por la disponibilidad de miembros
capacitados em la família” (CHAYANOV, 1974, p. 47). Acresce a estes, ainda, os elementos
“terra” e “capital”, dando especial ênfase à inter-relação terra, capital e força de trabalho.
Obviamente, isso não indica autonomia da unidade familiar, enquanto unidade dependente
apenas da produção agrícola. O autor reconhece as dificuldades conjunturais como
determinantes para a adoção de estratégias ou racionalidades adaptativas. Assim, em situação
de crise agrícola, admite a possibilidade de o camponês recorrer a atividades não agrícolas
(artesanais e comerciais), ainda que existisse disponibilidade de terra para o trabalho.
Como foi exposto até aqui, para Chayanov, o aumento ou a diminuição do esforço de
trabalho numa unidade econômica camponesa está intimamente relacionado à diminuição ou
aumento do consumo: “la energia desarrollada por um trabajador em uma unidad doméstica
de explotación agrária es estimulada por las necesidades de consumo de la família y, al
19
Ressalta-se que a teoria do balanço trabalho-consumo, também denominada teoria da diferenciação
demográfica, foi formulada a partir da gica do Mir russo, uma comunidade aldeã existente na Rússia pré-
revolucionária, onde existia um controle no estoque de terras para evitar especulações. Era “um mundo formado
pelo czar (controlador do Mir), os Kulaks, os pequenos camponeses e a grande assembléia (SKHOD) que fazia a
repartição/redistribuição das terras a cada oito anos de acordo com as necessidades da família (ALMEIDA, 2003,
p. 69). Obviamente, para análise da realidade da agricultura familiar brasileira esta teoria restaria incompleta,
diante do contexto de livre mercado de terras. No entanto, para esta análise, interessa o foco dado por Chayanov
à integração/inter-relação terra-trabalho-família-consumo numa unidade econômica camponesa.
77
aumentar éstas, sube forzosamente la tasa de autoexplotación del trabajo campesino”
(CHAYANOV, 1974, p. 84). Em condições adversas, devido à falta de terras ou de baixos
ganhos (preços baixos e/ou baixos salários), aumenta a autoexploração da força de trabalho
para a obtenção da satisfação das necessidades da família.
Assim, a partir dessa lógica territorializadora camponesa, Chayanov indica como
condição para um desenvolvimento cada vez maior das atividades agrícolas o aumento da
força de trabalho da família camponesa, independentemente da disponibilidade de capital:
“En este caso vemos claramente que el capital no es un determinante artitmético del volumen
de la actividad sino sólo una de las condiciones en las cuales lo determina la
família”(CHAYANOV, 1974, p. 104).
A proletarização camponesa, sobretudo entre os camponeses mais pobres, era uma
possibilidade prevista por Chayanov na Rússia de seu tempo. Entretanto, isso não era visto
por ele como sinal de um processo irreversível de desterritorialização camponesa, pela via do
êxodo rural, senão, pelo contrário, como estratégia de reprodução social camponesa ou de
territorialização pela via da pluriatividade. Para manter-se no meio rural, reproduzindo-se
social e economicamente, o camponês recorria às atividades não agrícolas, notadamente ao
comércio e ao artesanato. A adesão a atividades extralavoura artesanais e comerciais
representava uma estratégia de busca do equilíbrio econômico, em face das necessidades da
família. Por outro lado, como abordado, o autor não via a diminuição do capital numa família
campesina como fator determinante de desterritorialização, uma vez que “el aumento de la
fuerza de trabajo de la família campesina se traduce em el desarrollo cada vez mayor de la
actividad agrícola con el mismo monto de capital, compensando su falta de capital com la
intensidad de su fuerza de trabajo”. (CHAYANOV, 1974, p. 104). A lógica territorializadora
camponesa, segundo este autor, está, portanto, na sua capacidade de autoexploração e
adaptação às adversidades.
De acordo com o que foi exposto até aqui, percebe-se que na análise de Chayanov
alguns fatores são considerados determinantes para a reprodução social camponesa, dentre os
quais destacam-se a família, a força de trabalho, a terra e o capital. Ele os explicita de forma
inconfundível, estabelecendo correlações e/ou dependências entre eles. Porém, o autor deixa
claro que a versatilidade é uma característica intrínseca da racionalidade camponesa, pois a
família camponesa busca sempre, dentre as oportunidades de remuneração da força de
trabalho, aquelas que lhes proporcionem melhores ganhos, ainda que seja necessário deixar
“sin utilizar la tierra y los médios de producción de que dispone si otras formas de trabajo le
proporcionan condiciones más ventajosas” (CHAYANOV, 1974, p. 120). Portanto, o autor
78
reitera como uma estratégia de superação de crises em unidades camponesas russas do início
do século XX a adesão a pluriatividades, seja para solucionar a falta de terra ou para enfrentar
a baixa remuneração do trabalho agrícola.
Enquanto Chayanov debruçava-se sobre a realidade rural russa do começo do século
XX, teorizando sobre o campesinato russo, quase na mesma época, Weber discutia a
influência do capitalismo na sociedade rural da Alemanha, buscando na história da agricultura
europeia, sobretudo, no período da passagem do feudalismo para o capitalismo, as bases de
sua teorização. Nesta análise, o autor faz comparações entre diferentes realidades rurais: a
comunidade rural alemã é confrontada com a inglesa e, particularmente, com a dos Estados
Unidos. Internamente, Weber compara a realidade rural do leste da Alemanha com a do oeste
e sul.
Embora não tenha produzido uma teoria específica sobre o campesinato, como fez
Chayanov, Weber faz considerações sobre o comportamento (racionalidades) do camponês
alemão de seu tempo na luta para manter-se territorializado, mesmo diante do avanço do
modernismo, sobretudo, do capitalismo.
Preocupado sempre com as evidências empíricas ou com a construção de evidências
da realidade, os “tipos ideais”, com finalidades analíticas, Weber infere sobre os tipos de
atores do cenário rural europeu e norte-americano do início do culo XX, na tentativa de
compreender os diferentes efeitos do capitalismo na agricultura no velho e no novo mundo
(WEBER, 1971).
É interessante frisar que, para Weber, o capitalismo promovera na Europa o
surgimento de formas sociais específicas, diferentemente da América. Enquanto nesta última
a disponibilidade de terras para compra ou colonização e a existência de um mercado que foi
predecessor do agricultor fizeram surgir “um empresário e produtor notável para o mercado”,
[na primeira], “o poder da tradição predominava na agricultura, criando e mantendo tipos
‘tradicionais’ de população rural, tais como o ‘antigo camponês’” (WEBER, 1971, p. 415).
Quem era o camponês europeu tradicional weberiano? Estaria ele fadado ao
desaparecimento ou tendendo a ser desterritorializado, diante da força avassaladora da
racionalidade mercantil? Na verdade, Weber, analisando, particularmente, a realidade rural da
Alemanha do começo do século XX, construiu dois “tipos ideais” de camponeses:
1) o camponês do tipo antigo ou tradicional, que herdara a terra e produzia
principalmente para atender às suas próprias necessidades, estando fadado à exploração do
senhor e/ou à autoexploração, uma vez que afastado do mercado urbano e
79
2) o camponês dotado de uma certa margem de educação econômica, que recebera
influência educativa das comunidades urbanas e que estava apto a vender produtos rurais nos
mercados mais próximos possíveis. Este poderia ser considerado o protótipo do agricultor
familiar moderno contemporâneo.
O camponês europeu weberiano tradicional ou “do tipo antigo” era um homem
condenado por sua própria história. Encontrado no leste da Alemanha, o descendente de
camponeses servos na Europa Feudal foi condenado a continuar submisso ao senhor de terras,
mesmo após findo o regime jurídico que permitia a apropriação das terras camponesas pelos
senhores ou foi forçado a tornar-se um migrante. Isso ocorreu, segundo Weber, porque no
leste, mesmo com a formalização do ocaso do Antigo Regime, através de um corpo jurídico
específico, na prática, o poder dos senhores de terras continuou hegemônico. Ocorre que, na
passagem do feudalismo para o capitalismo, no começo dos tempos modernos, os senhores de
terras transformaram-se em senhores cultivadores de suas terras, apropriando-se de parte das
terras dos camponeses (os enclaves). Assim, grande mero de camponeses que,
originalmente, tinham bons títulos de propriedade da terra, desapareceram, tornaram-se servos
dos novos senhores (agricultores) ou tornaram-se assalariados rurais destes. O capitalismo
agrário do leste, portanto, segundo o autor, não possibilitou a libertação do camponês de sua
condição social de servo e nem permitiu ou facilitou sua territorialização. Os que não
aceitaram essas condições acabaram se tornando emigrantes, buscando territorializar-se além-
fronteiras, seja na parte ocidental da Europa ou no além-mar, nos confins da América.
Contrariamente ao que aconteceu com o camponês do leste, o do oeste e sul da
Alemanha ascendeu socialmente e economicamente, fugindo da condição de camponês
tradicional e passando à de “pequeno agricultor”, adaptado às exigências do mercado local,
fortemente influenciado pelo crescimento industrial e urbano. As explicações dadas pelo autor
para a sobrevivência e metamorfose do camponês do oeste e sul e sua ascensão à condição
social de agricultor familiar moderno assentam-se nas condições históricas e naturais de um
comércio local intensivo, mais favoráveis do que no leste. Nessas duas regiões, os
camponeses não foram afastados de suas terras pelos senhores e transformados em sua força
de trabalho, mas transformados em contribuintes. As formas de relações sociais de
subordinação mantidas entre camponeses e senhores, dentre outras razões, portanto,
justificariam a dicotomia entre oeste e sul em relação ao leste (WEBER, 1971).
Tecendo considerações sobre a racionalidade capitalista voltada à agricultura, ainda
tendo como base geográfica a Alemanha, Weber levantava a possibilidade de ocorrer a
territorialização do pequeno camponês em ambientes próximos aos grandes centros
80
industriais. Entretanto, ressaltava a necessidade de adaptação às novas exigências do contexto
socioeconômico. A mudança do camponês tradicional para o agricultor moderno dar-se-ia,
segundo ele, num “período de transição pacífico”, pois:
Em certos pontos de produção agrícola, o pequeno camponês, se souber como
libertar-se das cadeias de tradição, pode adaptar-se às novas condições de
administração. O aumento constante do arrendamento, nas vizinhanças das cidades,
a elevação do preço da carne, laticíneos, verduras, bem como o cuidado intensivo do
gado novo, possível ao pequeno agricultor que trabalha por conta própria, e as
despesas maiores com a contratação de homens esses fatores habitualmente
constituem oportunidades muito favoráveis para o pequeno agricultor que trabalha
sem auxiliares contratados pximo dos centros industriais abastados. Isso ocorreu
sempre que o processo de produção se desenvolveu na direção de uma crescente
intensidade do trabalho, e não do capital (WEBER, 1971, p. 417-418).
Vê-se que, assim como proposto por Chayanov, para Weber, a disposição do
camponês para a autoexploração é uma das razões para a sua territorialização. Observa-se,
portanto, que a gica da racionalidade camponesa voltada para a valorização do e propensão
para o trabalho é um dos mais importantes pontos a se considerar em uma discussão sobre a
territorialização de agricultores familiares, no contexto da modernidade.
Ao lado do fator trabalho, Weber também expressa a importância do fator terra como
altamente significativo para a territorialização de um agricultor familiar, o que fica explícito
na explicação dada por ele sobre a viabilização do agricultor na França e no sudoeste da
Alemanha:
O antigo camponês é, assim, transformado num trabalhador que é dono de seus
próprios meios de produção, como podemos ver na França e no Sudoeste da
Alemanha. Mantém sua independência devido à intensidade e alta qualidade de seu
trabalho, que é aumentado pelo seu interesse privado nele e sua adaptabilidade às
exigências do mercado local. Esses fatores lhe dão uma superioridade econômica
que continua, mesmo quando a agricultura em grande escala poderia predominar
tecnicamente (WEBER, 1971, p. 418).
A racionalidade formal ou do cálculo financeiro aparece na citação acima como
condição para que o agricultor familiar possa enfrentar a concorrência da “agricultura em
grande escala”. Na esteira do capitalismo industrial, segundo o autor, isso seria possível no o
Deleuze e Guattari
este da Alemanha, mas não no leste, onde imperava o capitalismo agrário,
sob a hegemonia do junker prussiano, um aristocrata que vivia de rendas. Destarte, Weber
entendia que:
Quando não existem as condições de superioridade econômica específica da
pequena agricultura, por ser a importância qualitativa do trabalho feito pelo próprio
81
dono substituída pela importância do capital, o velho camponês luta pela sua
existência como um assalariado do capital (WEBER, 1971, p. 418).
Tal fato ocorreria porque, segundo ele, devido à valorização da terra, o camponês não
poderia permanecer na condição de camponês nem tornar-se um dono de terras capitalista
(WEBER, 1971, p. 419). Destarte, para o autor, a desterritorialização camponesa seria
inevitável, diante da impossibilidade do acesso à terra pelo camponês, em contextos de
agricultura dependente fundamentalmente de capital, onde houvesse ausência de mercado
capaz de absorver produtos diferenciados ou tipicamente camponeses, isto é, altamente
dependentes de trabalho intenso e qualificado. Esta teoria condiz com o que está sendo
proposto contemporaneamente para a agricultura familiar, ao recomendar-se que o agricultor
familiar deve dedicar-se à produção de produtos diferenciados e abandonar aqueles produtos
que requerem escala de produção.
2.2. TERRA, TRABALHO E FAMÍLIA CATEGORIAS ESTRUTURANTES
DE UM MODO DE VIVER CAMPONÊS
Discute-se neste tópico os fatores condicionantes da territorialização camponesa, por
se entender que eles foram e continuam sendo determinantes para a permanência ou
reinserção de um agricultor no meio rural. O modo de vida camponês, predecessor daquele do
agricultor familiar moderno, foi moldado e solidificado a partir das categorias estruturantes
terra, trabalho, família e comunidade de pertencimento.
Como tratado antes, tanto Chayanov quanto Weber, em suas abordagens sobre as
condições facilitadoras da territorialização camponesa, elegem os elementos “terra”,
“trabalho” e “família” como categorias territorializadoras.
Um elemento que sempre esteve diretamente relacionado ao enraizamento ou à
territorialização, no contexto da organização agrícola de base camponesa, é o trabalho. O que
não raro caracterizou o empreendimento agrícola de base familiar foi a possibilidade de
ocupação de todos os membros da família (ou pelo menos da maioria) em tarefas ligadas à
unidade produtiva agrícola.
Como sugere Wolf, a família desempenha multifunções e “retém a condição de
organização multipropósitos” (2003, p. 100). No caso da família camponesa, às suas
características de autoexploração, adaptabilidade às variações das condições de vida e
82
multifuncionalidade, acrescenta-se ainda a de sua capacidade ou propensão à cooperação
comunitária.
Bourdieu, adentrando na discussão sobre o que chamou de “espíritos de estado” e
sobre a gênese e estrutura do campo burocrático”, diz que a família, tal como aprendemos a
aceitá-la, é uma criação ou construção simbólica, carregada de normatividade, funcionalidade
e moralidade. Por isso ele a considera “o lugar da reprodução social”, uma vez que:
De fato, a família tem um papel determinante na manutenção da ordem social, na
reprodução, não apenas biológica, mas social, isto é, na reprodução da estrutura do
espaço social e das relações sociais. Ela é um dos lugares por excelência de
acumulação de capital sob seus diferentes tipos e de sua transmissão entre as
gerações: ela resguarda sua unidade pela transmissão e para a transmissão, para
poder transmitir e porque ela pode transmitir. Ela é o ‘sujeito’ principal das
estratégias de reprodução (BOURDIEU, 2007, p. 131).
A concepção de família camponesa parece carregar de forma ainda mais consistente
esses atributos. A categoria família no âmbito do campesinato compõe, juntamente com as
categorias terra e trabalho, a tríade definidora de uma certa ordem moral, a campesinidade,
nos termos propostos por Woortman (1990). Segundo a autora, estas categorias são
reconhecidas como fundamentais para a explicação do campesinato, enquanto ordem moral,
diferentemente do empreendimento que se justifica por objetivos meramente mercantilistas.
Tedesco (1999), por sua vez, analisando especificamente a gica da reprodução social de
famílias de colonos no Rio Grande do Sul, diz que as categorias terra, trabalho e família
determinam a consolidação do ethos de colono. O autor aproxima sua noção de ethos à ideia
de campesinidade, fazendo o seguinte esclarecimento:
Ao tematizarmos o ethos, então, temos presente as noções de incorporação de
sistemas que caracterizam formas de vida, estilos de ação, disposições (morais,
estéticas e culturais), quadros de referência e condutas; todas elas em
dinamismo/confronto com processos sociais e visões de mundo (TEDESCO, 1999,
p. 20).
Em outras palavras, as categorias terra, trabalho e família estão intimamente
imbricadas na cultura camponesa, porque são constituidoras de uma totalidade. Na vida
camponesa, não se pensa a terra, sem se pensar a família e o trabalho. A esta tríade poder-se-
ia acrescentar a “comunidade de pertencimento ou de enraizamento” como o prolongamento
da família. Efetivamente a comunidade de pertencimento, centralizada no espaço religioso (a
capela) e no recreativo (o pavilhão de festas, com cancha de bochas) pode ser considerada
como um espaço emblemático da tradição das colônias de descendentes de europeus no Sul
83
do Brasil, cuja funcionalidade persiste no atual momento, conforme será mostrado ao longo
desta tese.
A categoria comunidade circundante, como prolongamento da família, espaço da
socialização, da entreajuda ou reciprocidade, da expressão da religiosidade, e das contradições
(sacro/profano, moral/imoral), como apontou Tedesco (1999), tem sido historicamente um
espaço típico das comunidades das colônias no Rio Grande do Sul. O principal elemento
articulador da comunidade da colônia de descendência europeia foi a capela (CARINI, 2005).
Segundo Maestri (2001), as capelas coloniais, típicas das primeiras colônias italianas
instaladas na Serra do nordeste do Rio Grande do Sul eram centros culturais, políticos e
religiosos das linhas, picadas e travessões. Além da capela, o núcleo comunitário contava com
o pavilhão para festas e outros eventos da comunidade, anexo ao qual existia a cancha de
bocha.
A comunidade rural teve, portanto, para a colônia uma força integradora, como local
da manifestação da dádiva, da amizade desinteressada, do apreço pelo outro, da socialização.
A comunidade rural da colônia, edificada nas linhas, picadas, travessões dos assentamentos de
colonos do Sul do Brasil, constituía um mundo relativamente fechado, onde se desenvolviam
relações sociais entre semelhantes, onde a reprodução social intergeracional era assegurada
pela proximidade étnica e parental (WOORTMANN, 1995). Obviamente, essa centralidade e
harmonia derivavam da forma como funcionavam as estruturas definidoras de cada unidade
familiar: o casamento entre indivíduos de uma mesma comunidade ou comunidades próximas;
a sucessão e a herança como garantidoras da reprodução social da família; a inacessibilidade
ao ensino superior dos filhos de agricultores, a distância em relação ao mundo urbano, etc.
2.3. RECIPROCIDADE CAMPONESA EXPRESSA NA COMUNIDADE DE
PERTENCIMENTO
A reciprocidade constituiu-se historicamente em um dos principais pontos de
sustentação da territorialização dos colonos, expressa na comunidade de pertencimento.
Segundo Sabourin (2009), a reciprocidade camponesa nasce e se fortalece na comunidade
rural. Diz que a palavra “comunidade”, além de se referir à territorialidade-proximidade,
carrega as noções de parentesco, espiritualidade (religiosa) e compartilhamento de recursos.
Destarte, a comunidade camponesa brasileira assenta-se nos princípios de parentesco,
localidade, sentimento de pertencimento e reciprocidade.
84
Analisando as “condições estruturantes” da reciprocidade no âmbito das comunidades
camponesas do Nordeste do Brasil e valendo-se do referencial teórico sobre reciprocidade
proposto por Temple, Sabourin (2009) destaca que a ajuda mútua entre camponeses
corresponde a três tipos de estruturas elementares de reciprocidade: a reciprocidade binária, o
compartilhamento do trabalho e a reciprocidade em forma de estrela. A primeira baseia-se na
aliança ou relação regular entre duas famílias, geralmente entre vizinhos e compadres,
resultando em uma reciprocidade que pode ser simétrica ou assimétrica. No segundo caso,
ocorre a mobilização de todas as famílias de uma comunidade para a realização de um
trabalho em benefício de um agricultor (é o típico caso do mutirão brasileiro). Por fim, na
reciprocidade em forma de estrela, ocorre a mobilização de todas as famílias da comunidade
para assumir responsabilidades específicas em benefício da comunidade em geral, como é o
caso da construção de um salão comunitário, uma capela, um açude comum, etc.
Segundo o mesmo autor, no âmbito de uma comunidade camponesa, as relações de
reciprocidade se dão em contraposição às relações meramente mercantis. Enquanto nas
primeiras, fatores como a amizade e a religiosidade induzem ao compartilhamento e à ajuda
mútua, nas últimas, fatores como a monetarização e a mercantilização induzem à
competitividade e ao individualismo. Por isso, ele sugere o uso dos conceitos troca e
reciprocidade em vez de mercantil e não mercantil, pois entende que se trata de uma
dicotomia conceitual ou de dois princípios econômicos de natureza diferente, que têm entre si
uma relação dialética. O autor apresenta essa dualidade nos modos de regulação existentes nas
relações sociais camponesas, como dois tipos ideais, sendo que:
As regras de reciprocidade envolvem as relações de parentesco, aliança, ajuda
mútua, dádiva, dote e herança. As regras da troca são aplicadas ao comércio, no
marco do mercado capitalista e a certas prestações de trabalho ou serviço que
passam a ser contabilizadas (SABOURIN, 2009, p. 209).
É possível, no entanto, que possam ocorrer enganos na avaliação de relações de
reciprocidade de uma comunidade camponesa, quando estas são mobilizadas em favor da
produção de valores de troca e não são percebidos ou são parcialmente percebidos valores
como a solidariedade e o compartilhamento.
O autor lembra ainda que:
A ajuda mútua e o compartilhamento dos saberes e da práxis constroem relações
sociais e econômicas de reciprocidade que, por sua vez, produzem valores humanos
éticos: respeito, amizade, confiança e principalmente responsabilidade e equidade.
Participar da reprodução de tais valores sela alianças interindividuais e coletivas que
85
contribuem para a parceria institucional. [...] As prestações de ajuda mútua, do
compartilhamento do trabalho e do manejo coletivo de recursos comuns partilhados
dão alguns exemplos de práticas econômicas gratuitas, baseadas no princípio da
reciprocidade, que são essenciais para o desenvolvimento da produção agrícola. Mas
como vimos, são também fundamentais para se manter a coesão da organização
social em torno de valores humanos afetivos e éticos comuns. (SABOURIN, 2009,
p. 217-260).
Dessa forma, o autor reafirma sua tese de que existe incompatibilidade ou
impossibilidade de coexistência harmoniosa entre o princípio da troca e o princípio da
reciprocidade. Para ele, “a reciprocidade não se mistura à troca, e vice-versa. No melhor dos
casos elas convivem; e, muitas vezes, uma domina a outra” (SABOURIN, 2009, p. 268).
2.4 MUDANÇAS NOS FORMATOS SOCIAIS E PRODUTIVOS RURAIS
CONTEMPORÂNEOS: O PARADIGMA DA MODERNIZAÇÃO
CAPITALISTA
O século XX, sobretudo a segunda metade, trouxe profundas mudanças ao meio rural,
não apenas nos países ditos centrais, mas, também, nos países do chamado Terceiro Mundo.
A penetração da racionalidade instrumental-mercantilista nos campos e a aproximação do
homem rural com o mundo urbano, através do progresso das ciências das comunicações e dos
transportes, promoveram a desterritorialização de milhões de camponeses em todo o mundo.
Entretanto, indaga-se: Está o camponês irremediavelmente morto?
Fazendo coro com a teoria marxista leninista-kauskiana, a morte do campesinato
frente ao avanço do capitalismo no campo foi anunciada por Mendras (1978, p. 13):
A autarcia econômica, demográfica, social e cultural torna-se incompatível com o
desenvolvimento de nossa sociedade. O camponês transforma-se em produtor
agrícola que é, ao mesmo tempo, “empreiteiro” e “trabalhador”, proprietário de seus
meios de produção, mas que não utiliza ou em pequena escala mão-de-obra
assalariada. O aldeão torna-se consumidor, da mesma forma que os citadinos, que
chega mesmo a comprar seu pão, renúncia suprema para o camponês tradicional. A
civilização urbana penetra na aldeia, a cultura chamada de “massa” oblitera a cultura
camponesa. O fim dos camponeses,[...], marca o término de um tipo de sociedade
milenar cujo arranjo estrutural e cujos modos de transformação são aqui analisados.
Discutindo o indicador simbólico da dominação econômica, Bourdieu (2000) admite
os limites da reprodução social do campesinato francês ao referi-la como “reprodução
proibida”. Nos termos propostos pelo autor, a aproximação cada vez maior da família do
camponês ao mundo citadino induz aos casamentos fora do mundo campesino. Para rejeitar
ou perder o gosto pelo campo, o camponês tem que entrar no jogo de conversão coletiva da
86
visão de mundo. Se ele permanecesse fechado em torno de seus valores e crenças, não
perceberia a cidade como um bom lugar para se viver. Entretanto, este rompimento é cada vez
mais facilitado, sendo as mulheres, principalmente e as filhas mais moças, as mais receptivas
às mudanças no habitus. Segundo esse autor, romper-se-ia, assim, a fronteira do mundo
camponês. A “autarquia psicológica” que mantinha o mundo familiar fechado acaba, e a
tendência é o próprio esfacelamento da secular estrutura familiar camponesa.
Os grandes herdeiros condenados ao celibato são as vítimas da concorrência que
passou a dominar um mercado matrimonial a então protegido pelos vínculos e
pelos controles, não raro mal tolerados, da tradição. Ao determinar uma
desvalorização brutal de todos os produtos do modo camponês de produção e
reprodução, de tudo o que as famílias camponesas m para oferecer, quer seja a
terra e a vida no campo, quer seja o próprio ser do camponês, sua linguagem, sua
roupa, suas maneiras, sua postura e até seu ‘físico’, a unificação do mercado
neutraliza os mecanismos sociais que lhe garantiam, nos limites de um mercado
restrito, um monopólio de fato, capaz de lhe fornecer todas as mulheres necessárias à
reprodução social do grupo, e somente estas (BOURDIEU, 2000, p. 107).
Uma importante contribuição para uma discussão teórica sobre as tipologias de grupos
agrários existentes hoje no contexto capitalista é apresentada por Ploeg (2008). Sobre a
caracterização dos grupos agrários contemporâneos, ele sustenta que o campesinato de fato
desapareceu, porém admite que ainda persiste a “condição camponesa” nesses grupos, uma
vez que considera existirem diferentes graus de campesinidade que variam no tempo e no
espaço. A “condição camponesa” pode ser encontrada tanto no rural dos países centrais
quanto dos periféricos e pode ser entendida, nos seguintes termos:
A condição camponesa representa um fluxo através do tempo. Ela é, pelo menos
potencialmente, um processo dinâmico que pode se desenvolver em direções
diferentes, com ritmos diferentes e através de mecanismos distintos, dependendo da
condição social em que estiver imersa. [...] Sendo essencialmente um processo,
torna-se possível, do ponto de vista analítico, discutir a condição camponesa em
termos de “descampesinização” e “recampesinização” (PLOEG, 2008, p. 52) [Grifos
do autor].
Cada vez mais, perpassada pela lógica do capital ou pelo interesse econômico e
próxima da influência do modernismo vindo do mundo urbano, a comunidade tipicamente
camponesa estaria se enfraquecendo, também, no Brasil. No contexto do Rio Grande do Sul, a
agricultura familiar, predominantemente originada da colonização europeia, inseriu-se na
lógica do capital e/ou do mercado desde sua origem no século XIX. Porém, foi a partir de fins
dos anos de 1960, com o advento da chamada “Revolução Verde”, que o empreendimento
agrícola familiar assumiu formas produtivas e sociais, enquadradas no receituário da
87
modernização capitalista, não obstante permaneçam formas que se identificam com a
tradicionalidade.
2.4.1 O debate político e teórico-conceitual sobre a territorialização do “campesinato
brasileiro” dos anos de 1960-70
Como referido, as discussões teóricas acerca da existência e das características do
campesinato brasileiro ganharam fôlego nos anos de 1960 e de 1970, resultando em várias
produções bibliográficas, de autores de campos disciplinares diversos (sociologia, geografia,
história, antropologia). O debate relacionado ao mundo rural centrava-se tanto em discussões
de natureza política, sobretudo, sob o enfoque neomarxista da luta de classes, destacando o
papel histórico do campesinato na sociedade brasileira, quanto em discussões de natureza
teórico-conceitual na tentativa de explicar suas particularidades no conjunto da sociedade
rural brasileira da época. Autores como Alberto Passos Guimarães, Caio Prado Junior, Maria
Isaura Pereira de Queiroz e Otávio Guilherme Velho deixaram importantes contribuições para
análises posteriores, particularmente para o campo da sociologia rural.
Fazendo referência a uma suposta dicotomia histórica existente no Brasil rural entre
uma economia fechada, autônoma, representada pelos “sitiantes”, formadora de comunidades
denominadas “bairros”
20
e uma economia de mercado ou “economia da sociedade global”,
representada pelos latifundiários, Queiroz (2009) previa já nos idos dos anos de 1960 a
metamorfose da primeira, que passaria para a economia de mercado, desde que fosem criadas
as condições para esses sitiantes. No limite, ela entendia que deveria ser dado a eles o direito
de acesso a dois recursos: instrução e financiamento. Entretanto, a autora reconhecia que, pelo
fato de não ter desenvolvimento mental suficiente”, o sitiante não conseguia aumentar o
rendimento do trabalho que lhe permitisse incorporar-se à produção de mercado. Assim,
enquanto existissem terras devolutas no Brasil e enquanto não se instruíssem os sitiantes, a
“economia rural fechada” tenderia a reproduzir-se nos sertões brasileiros, tornando
apreensivos os desenvolvimentistas da época (QUEIROZ, 2009). Observa-se que a tese da
autora se ancora exclusivamente no fator econômico e dentro do contexto da emergente
20
A expressão “bairro” como designativo de uma comunidade rural é utilizada por Cândido que a define como:
“unidade por excelência da sociabilidade caipira”. O autor sugere ainda que “aquém dele não vida social
estável, e sim o fenômeno ocasional do morador isolado, que tende a superar este estágio, ou cair em anomia;
além dele, agrupamentos complexos, relações mais seguidas com o mundo exterior, características de uma
sociabilidade mais rica” (CÂNDIDO, 2009, p. 199).
88
modernidade capitalista brasileira que se fazia sentir no campo brasileiro da época. A
territorialização do camponês de Queiroz, identificado como sitiante, portanto, dependeria de
sua metamorfose em agricultor moderno, caso contrário a degradação econômica e social
seria uma tendência no interior dos estados brasileiros. No trecho a seguir, a autora traça um
quadro sinistro no horizonte do rural brasileiro contemporâneo, com reflexos também no
mundo urbano em expansão:
O que sucede no estado de São Paulo aponta um triste caminho ao sitiante, o
caminho da ruína sem remédio. O desenvolvimento econômico excessivamente
rápido de certas regiões do país tem igual resultado, por atrair um mero muito
elevado de braços que desertam as lides agrícolas dos “bairros” atrás da miragem de
salários elevados e de enriquecimento fácil; os que permanecem, insuficientes para
ganhar a vida das famílias, sofrerão também abaixamento de seus níveis de vida,
sem falar na falta de gêneros para vilarejos e povoados, nos quais parte da população
depende também das pequenas roças dos sitiantes circunvizinhos. Nas cidades, o
acúmulo de uma mão-de-obra mal preparada para a vida urbana tende a ser
excelente meio de cultura para a formação de vagabundos e degenerados.
Desequilibrada a vida do campo, para a grande parte da população, poder-se-á
manter o ritmo do desenvolvimento econômico geral? (QUEIROZ, 2009, p. 66).
O campesinato brasileiro é colocado como uma forma social residual em vias de
extinção, esmagado pelo avanço industrial. A vida nos “bairros” bucólicos, com suas rotinas,
com seus círculos de trocas restritos, com suas racionalidades produtivas tenderia a ser
drasticamente impactada, com o despovoamento gradativo promovido pelo êxodo constante.
A racionalidade modernista, fundada no capital financeiro e intelectual, para a autora, poderia
resolver esse problema, por inserir o sitiante na economia de mercado. No limite, esta é a base
do fundamento teórico da corrente acadêmica modernista para explicar a metamorfose do
camponês em agricultor familiar, isto é, a identidade de agricultor familiar foi construída a
partir de uma concepção economicista que a coloca em oposição à do camponês tradicional. A
representação social de agricultor familiar aqui se aproxima da ideia de agricultor moderno
postulada por Weber ao se referir ao camponês alemão ocidental do século XIX. Em ambos
os casos, a modernidade é colocada como um caminho definido exclusivamente pelo mercado
global. Ademais, a autora expressa uma preocupação que era recorrente no meio acadêmico e
político da época, qual seja, a da luta incansável pela superação do atraso econômico e/ou
subdesenvolvimento, ideia postulada, sobretudo, pela corrente dos cepalinos
21
.
21
Economistas e outros cientistas sociais, membros da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina),
órgão da ONU, criado no final da década de 1940 para discutir a questão do subdesenvolvimento da América
Latina e propor medidas para superá-lo. Ver: FONSECA, P. C. D. As origens e as vertentes formadoras do
pensamento cepalino. Disponível em: http://www.ufrgs.br/decon/publionline/textosprofessores/fonseca.
89
Na mesma linha economicista de Queiroz e a partir do enfoque neomarxista da luta de
classes, Velho (2009), considerando a aplicabilidade do conceito de camponês à análise do
meio rural brasileiro, estabelece uma dicotomia entre “campesinidade” e “proletarização”.
Levando em consideração a disponibilidade de terra e de mão de obra, enquanto fatores
determinantes na configuração dos formatos sociais rurais brasileiros dos anos de 1960, o
autor sugere que a condição de camponês e a de proletário seriam dois casos limite no Brasil,
determinados ora pela abundância de terra e escassez de mão de obra, ora pela escassez de
terra e abundância de mão de obra. Mas o autor adverte que entre esses casos limite,
configuram-se inúmeras situações que só o trabalho de campo poderia elucidar.
Trata-se, porém, de uma questão empírica a ser investigada: a de verificar como
situar as diversas ocorrências concretas que se apresentam em nosso meio rural.
Desde já, fica consignado que certamente não se trata de tarefa fácil, dada a
variedade de manifestações locais de agrupamentos e classes (VELHO, 2009, p. 91).
Portanto, as condições determinantes da territorialização camponesa seriam, segundo
Velho, a abundância de terras e a escassez de mão de obra, somadas à fraca integração aos
mercados, de acordo com o esquema reproduzido a seguir. Essas condições eram encontradas
nas frentes de expansão existentes no Brasil, sobretudo, nas regiões de fronteira agrícola da
época: norte e nordeste.
5Figura 3 – Formatos sociais rurais brasileiros dos anos de 1960, segundo Otávio
Velho.
FONTE: VELHO, O. G. A. C. O conceito de camponês e sua aplicação à análise do meio rural brasileiro
(1969). IN: WELCH, C. A. et al. Camponeses brasileiros: Leituras e interpretações clássicas. V.1. São
Paulo: Editora UNESP; Brasília, DF: Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural, 2009, p. 94.
A partir da tese do autor, fica bastante explícita a ideia da inviabilidade da
continuidade da territorialização camponesa, à medida que vai se esgotando o estoque de
90
terras ou mediante o incremento demográfico. Isso fatalmente poderia acontecer com a “crise
da terra camponesa”, após o esgotamento das frentes de expansão em terras devolutas
22
.
Veja-se que, para Velho, a capitalização e a profissionalização do camponês das
frentes de expansão não são possibilidades consideradas ou determinantes para a configuração
de novos formatos sociais rurais no Brasil, diferentemente do que sugere Queiroz. Isto é, para
Velho, o esgotamento gradativo do estoque de terras nas frentes de expansão, devido ao
avanço da privatização capitalista redundaria na desterritorialização do camponês e na sua
proletarização.
Também na perspectiva neomarxista da luta de classes, admitindo a existência de um
Brasil feudal anterior ao Brasil capitalista, Alberto Passos Guimarães (2009) sugere que a
territorialização da classe camponesa, representada segundo ele por trabalhadores rurais
miseráveis, constantemente subjugados pela classe dominante, sempre existiu no Brasil, pois:
Jamais, ao longo de toda a história da sociedade brasileira, esteve ausente, por um
instante sequer, o inconciliável antagonismo entre a classe dos latifundiários e a
classe camponesa, tal como igualmente sucedeu em qualquer tempo e em
qualquer outra parte do mundo (PASSOS GUIMARÃES, 2009, p. 48).
Segundo o autor, a “classe camponesa”, que vivia nas brechas deixadas pelo latifúndio
(espaços entre as sesmarias), nas sesmarias abandonadas ou não totalmente cultivadas e nas
terras devolutas, constituiu-se como contraponto ao latifúndio sesmarial e compunha-se de
milhões de trabalhadores de variadas etnias (negros e mulatos forros ou fugidos da
escravidão, índios destribalizados, mestiços de todas as matizes e categorias e brancos de
origem portuguesa). Segundo Passos Guimarães (2009, p. 51), “intrusos e posseiros foram os
precursores da pequena propriedade camponesa”, o autor salienta que devido a esse
atrevimento e bravura na busca por uma nesga de chão para o seu sustento, muitos
camponeses pagaram com a vida.
De acordo com esse autor, portanto, a territorialização camponesa no Brasil esteve
historicamente limitada pela resistência latifundiária, constituindo-se em uma luta entre as
populações pobres do campo contra os todo-poderosos senhores da terra, situação que se
alteraria no sul, a partir do século XIX, com a chegada dos imigrantes europeus.
Pelo que precede, buscou-se neste capítulo trazer à tona alguns elementos teóricos
clássicas e contemporâneas, que pudessem contribuir para o entendimento dos processos
contemporâneos de territorialização-desterritorialização-reterritorialização de populações
22
No segundo Capítulo desta tese serão apresentadas algumas considerações sobre as frentes de expansão.
91
rurais, particularmente, no caso brasileiro. Postula-se aqui que teorias como a da racionalidade
em Weber e das representações sociais permitem estabelecer nexos explicativos sobre
tomadas de decisão por parte das populações rurais quanto às mobilidades espaciais
migrações campo-campo ou migrações campo-cidade diante das condições que lhes são
oferecidas, nos diferentes cenários históricos e contextos geográficos.
No próximo capítulo, busca-se resgatar aspectos históricos do processo de
desreterritorialização de populações rurais do norte do Rio Grande do Sul, atendo-se a uma
temporalidade fixa que abarca o final do século XIX até o final do século XX, período em que
se consolidou a apropriação oficial das chamadas terras de matas na região, estabelecendo-se
a última fronteira agrícola no Estado sulino.
92
3 AS DESRETERRITORIALIZAÇÕES DOS RURAIS DO NORTE DO
RS: DO FINAL DO SÉCULO XIX AO FINAL DO SÉCULO XX
A história das populações rurais do norte do Rio Grande do Sul deve ser reconhecida
como uma história pontilhada por lutas por território. A partir do final do século XIX, a
última fronteira agrícola do Rio Grande do Sul região ainda coberta por florestas (mata
atlântica e de araucárias) preservadas se torna ponto de encontro entre três segmentos
sociais: o indígena, o caboclo (pequeno posseiro) e o colono de descendência europeia.
Essa história, no entanto, não está ainda suficientemente analisada pela historiografia
contemporânea. Esta tese não tem a pretensão de aprofundar este assunto que foge, em parte,
ao seu objetivo geral. No entanto, pretende-se neste capítulo pontuar alguns eventos com o
intuito de entender melhor tanto o contexto das lutas por território em si, quanto as estratégias
de seus protagonistas.
3.1 O AVANÇO DA “FRONTEIRA DA CIVILIZAÇÃO” NO BRASIL
A história da expansão ou da ocupação demográfica e econômica do espaço
geográfico brasileiro ao longo de 500 anos foi marcada por desencontros, conflitos,
destruições e mortes. Como sugere Martins (2009, p. 132): “A história contemporânea da
fronteira, no Brasil, é a história das lutas étnicas e sociais”. A luta pela conquista de territórios
ou para não perdê-los, num contexto geográfico de milhões de quilômetros quadrados de
terras férteis, tem colocado frente a frente, em diferentes momentos da história nacional e em
regiões diversas, grupos étnicos e sociais distintos, constituindo uma fronteira onde um
desencontro de temporalidades históricas (MARTINS, 2009). Esse desencontro na fronteira
dá-se porque de um lado se colocam os ditos civilizados e de outro os índios ou porque de um
lado está o latifundiário e/ou o agricultor capitalista e de outro o camponês pobre (caboclo
posseiro).
Ao reconhecer a fronteira como um lugar de alteridade, onde o conflito impede a fusão
dos tempos e a história da diversidade e da pluralidade não é reconhecida, Martins analisa o
fenômeno da ocupação territorial do espaço brasileiro induzida pela lógica do mercado e suas
consequências sobre as populações tradicionais, a partir de um referencial teórico do campo
da antropologia, da geografia e da história. Assim, ele tece considerações sobre as
conceituações inerentes à condição de fronteira. Sublinha que uma corrente dos geógrafos dos
93
anos de 1940 definiu como zona pioneira ou frente pioneira a linha de contato entre o
moderno e o arcaico ou a linha limite entre moderno e “vazio demográfico”. Por sua vez, a
corrente antropológica dos anos de 1950, preocupada com os impactos causados pela
expansão da população branca sobre as populações indígenas, ao inserir no contexto da
expansão também as populações pobres (rotineiras, não indígenas) como garimpeiros,
vaqueiros, posseiros, etc., definiu essas frentes de deslocamento de populações civilizadas e
de atividades econômicas como frentes de expansão.
Apoiado em estudos de autores que estabelecem uma diferenciação entre fronteira
demográfica e fronteira econômica, Martins (2009, p. 138) remete a discussão sobre X para o
terreno da historiografia, ao sugerir que:
É possível, assim, fazer uma primeira datação histórica: adiante da fronteira
demográfica, da fronteira da “civilização”, estão as populações indígenas, sobre
cujos territórios avança a frente de expansão. Entre a fronteira demográfica e a
fronteira econômica está a frente de expansão, isto é, a frente da população não
incluída na fronteira econômica. Atrás da linha da fronteira econômica está a frente
pioneira, dominada não pelos agentes da civilização, mas, nela, pelos agentes da
modernização, sobretudo econômica, agentes da economia capitalista (mais do que
simplesmente agentes da economia de mercado), da mentalidade inovadora, urbana
e empreendedora. Digo que se trata de uma primeira datação histórica porque cada
uma dessas faixas está ocupada por populações que ou estão no limite da história,
como é o caso das populações indígenas, ou estão inseridas diversamente na
história, como é o caso dos não-índios, sejam eles camponeses peões ou empresários
[Grifos do autor].
As duas fronteiras remetem a dois diferentes contextos da ocupação territorial: o da
frente de expansão e o da frente pioneira. Porém, o autor adverte que a distinção entre tais
frentes é um instrumento útil apenas quando as duas concepções são trabalhadas na sua
unidade, quando é destacada a temporalidade própria da situação de cada grupo social da
fronteira, não como diversidade social de categorias sociais, mas também como
diversidade em relação aos modos e tempos de sua participação na história. Complementa
dizendo que o tempo do camponês inserido numa economia de excedentes é um, enquanto o
tempo do agricultor moderno é outro, assim como o do grande empresário rural, do índio, etc.
O autor reconhece ainda que no Brasil, para os membros da sociedade de fronteira,
esta aparece frequentemente como o limite do humano. Ela é o limite da humanidade. Para
além dela está o não humano, o natural, o animal. Em sua reflexão, o autor se atém,
sobretudo, no avanço da fronteira pelo norte do Brasil, na segunda metade do século XX.
Reconhece-se, no entanto, que esta situação deu-se, também, no norte-noroeste do Rio Grande
do Sul, entre o final do século XIX e começo do século XX.
94
3.2 O AVANÇO DA FRONTEIRA ECONÔMICA NO NORTE-NOROESTE
DO RIO GRANDE DO SUL
Os primeiros povoamentos formados mediante iniciativas de conquistadores europeus
no Rio Grande do Sul aconteceram através das missões jesuíticas espanholas, na fronteira
oeste, a partir da primeira metade do século XVI. Mais tarde, dada a disputa territorial entre as
coroas de Espanha e Portugal pela banda oriental da Bacia do Rio Uruguai, o incentivo à
ocupação oficial deu-se pela distribuição de sesmarias a militares, dando origem às estâncias
militares, ao longo dos séculos XVIII e XIX. Esse movimento ou deslocamento de
populações brancas sobre territórios tribais ocorre de forma não sistemática e atinge as áreas
de campos do Planalto Médio, do sul e do sudoeste do Estado. Concomitantemente, caboclos
e tropeiros se embrenham nas matas do norte e noroeste do Rio Grande do Sul, fenômeno
desencadeado pelos ciclos do bandeirantismo e do tropeirismo de muares. Neste momento,
surge uma primeira situação de fronteira, nos termos propostos por Martins (2009).
Com a independência do Brasil, em uma busca pela consolidação do Estado-Nação, à
continuação da estratégia geopolítica iniciada no Estado colonial de definir as fronteiras
internacionais com os países da região do Prata, somava-se o desejo do Estado Provincial em
introduzir uma outra matriz econômica para o Rio Grande do Sul, ao lado da pecuária. Foram
então instaladas as primeiras colônias de imigrantes europeus no Estado, com a introdução de
famílias alemãs nos vales dos rios dos Sinos, Caí e Taquari a partir de 1824. A colonização a
partir de imigrantes europeus prosseguiu ao longo da segunda metade do século XIX, com a
formação de colônias de imigrantes italianos, na encosta inferior e superior da Serra do
Nordeste. Estes primeiros núcleos coloniais de alemães e italianos mesclados por núcleos
étnicos minoritários, como o de poloneses formaram o que Roche (1969) denominou de
“colônias velhas”.
A partir do final do século XIX, inicia a ocupação das áreas de matas do norte-
noroeste, processo que se consolida em meados do século XX. São principalmente colônias
multiétnicas que se originam dos fluxos migratórios internos, oriundos das colônias velhas.
Porém, formam-se também várias colônias etnicamente homogêneas, sobretudo, constituídas
por colonos de origem alemã, que resultam de um duplo movimento: tanto das migrações
internas, quanto de migrações internacionais.
95
6Figura 4 – Territorialização da agricultura familiar-colonial em áreas de matas do Rio
Grande do Sul nos séculos XIX e XX
O período compreendido entre o final do século XIX e o início do século XX marca,
portanto, a configuração de uma segunda situação de fronteira no norte e noroeste do Rio
Grande do Sul. Novamente o Estado se coloca como estrategista e agente da civilização,
porém agora atentando mais para objetivos econômicos do que geopolíticos. Fazia parte da
ideologia positivista, castilhista-borgista
23
, a ideia da colonização a partir da matriz étnica
europeia, como estratégia para modernização e consolidação de mercados.
Com o objetivo de sintetizar os acontecimentos desencadeadores de conflitos na luta
por territórios e os atores envolvidos nessas disputas, situando-os na linha do tempo histórico,
com fulcro na tese de Martins, elaborou-se o esquema a seguir (Figura 05), sem ter a
pretensão de fazer simplificações ou reducionismos. A ideia é mostrar como, em diferentes
23
Na análise da história política do Rio Grande do Sul, a ideologia castilhista-borgista é referida para designar o
pensamento político representado pelo Partido Republicano Rio-grandense (PRR), que predominou no Estado
entre 1893 a 1930, período marcado pelo autoritarismo de dois governos: Julio de Castilhos e Borges de
Medeiros, respectivamente.
96
momentos, diferentes atores constituíram a sociedade de fronteira, como propôs Martins
(2009, p. 141).
7
Figura 5 – Fronteiras de conflitos por território no norte-noroeste do Rio Grande do Sul em
diferentes momentos
FONTE: Adaptado de Carini (2005, p. 180) e baseado na teoria de Martins (2009, p. 132-167).
A fronteira que se estabelece no primeiro momento, esse em que se coloca pela
primeira vez o “civilizado” à frente do “selvagem”, não tem o poder de impacto degradante e
desterritorializante quanto à fronteira do segundo momento. O deficitário acervo tecnológico
e a fraca inserção nos mercados dos atores colocados do lado da “civilização” – como no caso
dos caboclos-ervateiros, sobre os quais se discorre na sequência deste capítulo –, em um
contexto econômico de prevalência de relações pré-capitalistas de produção, permite certa
permeabilidade na fronteira demográfica ou certa fluidez nas relações entre os dois lados. No
entanto, inúmeros registros documentais denunciam a existência de uma situação de conflito
permanente, sobretudo, entre índios caingangues e tropeiros na região do Planalto Médio e
Alto Uruguai, desde pelo menos meados do século XIX, tendo sido registrados ataques
constantes de índios a grupos transeuntes e revides dos últimos, através da contratação de
bugreiros, situação que ensejou a criação dos primeiros aldeamentos indígenas e as tentativas
de catequese (CARINI, 2005). A primeira desterritorialização da comunidade indígena
caingangue se inicia, portanto, naquele momento histórico em que tem inicio a ocupação das
97
terras ditas devolutas. Assim, Estado, por meio das políticas de aldeamento, prepara o terreno
para o avanço da segunda fronteira, a fronteira econômica.
A segunda fronteira desponta quando o índio estava “amansado” e confinado nas
reservas. No entanto, por mais trágico que tenha sido o ato de subtração despótica de seus
territórios, reduzidos a pequenas áreas de confinamento, os indígenas se vêem diante de nova
ameaça desterritorializadora. Agora o lado do “civilizado”, se apresenta com armas e
argumentos muito mais poderosos. A frente de expansão desrespeita normatizações que
haviam permitido a preservação dos espaços mínimos de confinamento dos índios e se impõe
também sobre territórios caboclos, de forma que uma mudança nas partes. O “lado de lá”
da fronteira passa a não contar apenas com indígenas, mas agrega, também, outros grupos
pobres, considerados atrasados pelas forças civilizadoras. Este assunto será focado no
próximo tópico.
3.3 COLONOS, INDÍGENAS E CABOCLOS E A TERRITORIALIDADE
NOS LIMITES DA FRONTEIRA ECONÔMICA
Não esperança de a agricultura corresponder à riqueza produtiva sem o
melhoramento das vias de comunicação, abrindo-se boas estradas de rodagem,
estabelecendo-se pontes nos arroios e, sobretudo, depois disso, colonizar-se a região
ubérrima [fértil] do vale do rio Uruguai em sua margem esquerda acima da freguesia
de Nossa Senhora da Luz de Nonoai [Nonoai] e margem direita do rio Passo Fundo,
tributário daquele.
A idéia de colonizar o alto Uruguai, traduzida em fato, mudará a face das coisas.
As mãos calosas do colono inteligente, revolvendo a face da terra banhada pelas
águas do magestoso rio, desvendarão tesouros que não são mistérios para
ninguém.
(RELATÓRIOS DA CÂMARA MUNICIPAL DE PASSO FUNDO, REMETIDOS
À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA PROVÍNCIA, 1880-1881. IN: OLIVEIRA,
1990, p. 157)
As citações acima indicam a visão dos políticos positivistas passofundenses do final
do século XIX e apontam para as metas das políticas públicas locais para o setor agrícola:
colonização via inserção de colonos de descendência europeia, que ocupariam os espaços dos
caboclos e dos indígenas. Sim, não havia espaços nem para índios, nem para caboclos neste
projeto.
Relativamente à ideia de desterritorialização do indígena, outro relatório da mesma
câmara municipal, apresentado à Assembleia Legislativa em 1874, não deixa dúvidas sobre a
visão preconceituosa das autoridades municipais da época em relação aos indígenas e sobre o
desejo de transformar os territórios indígenas em territórios para colonos:
98
Uma colônia agrícola em Nonoai será um celeiro do Rio Grande, e mais do que isso,
será também o instrumento civilizador das hordas indígenas, que vivem submersas
nas trevas, amando a vadição, tendo por únicos prazeres a crápula (libertinagem) e a
pilhagem (saque). [...] A agricultura que é o trabalho e a riqueza, tem em si o gérmen
da civilização (RELATÓRIO DA CÂMARA MUNICIPAL DE PASSO FUNDO,
REMETIDO À ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DA PROVÍNCIA, 1874. IN:
OLIVEIRA, 1990, p. 123-124).
Ressalta-se que, no processo de colonização do norte-noroeste rio-grandense,
prevaleceram dois meios de apropriação da terra: através da colonização pública e da
colonização privada. Em ambos os casos a distribuição de lotes seguiu o padrão agrário
colonial, com a constituição de colônias traçadas a partir de linhas ou travessões, cuja área
média de cada lote era de 25 hectares . Isso reproduzia, mais ou menos, o padrão fundiário e o
estilo de ocupação do espaço colonial das “colônias velhas”. Desconsiderou-se, portanto, a
racionalidade de caboclos e indígenas, não acostumados a espaços restritos de ocupação
intensiva para a sua territorialização.
Com a “corrida para o norte” ou salto para o planalto, o mercado de terras na região se
torna um importante fator de acumulação capitalista. Várias companhias colonizadoras se
dispuseram a fazer investimentos no mercado imobiliário de terras, geralmente associando o
negócio imobiliário a outros tipos de negócios, mormente o da exploração da madeira.
Vale destacar que essas colônias multiétnicas se originaram após 1850, ou seja, depois
da promulgação da Lei de terras 601. Essa lei passa a impedir o acesso à terra por meio da
posse, como ocorria anteriormente, proibindo as aquisições de terras públicas por outra forma
que não o da compra. Este é um expediente que determina o início da desterritorialização do
pequeno posseiro caboclo, percebido pelo senso comum e por alguns autores como um tipo
humano não acostumado “aos alambrados” ou mais acostumado a um sistema de vida errante,
sem muito apego a uma comunidade específica ou sem a tradição do “aldeiamento”, conforme
referiu Maestri (2005).
A legitimação ou titulação das posses via medição e extração de títulos, concedidos
por órgãos governamentais, favorecia os poderosos (latifúndio) e se tornava algo praticamente
impossível para as populações pobres, excluídas ou apenas parcialmente incluídas nos
mercados (ARDENGHI, 2003; GORONDER, 2005; MARCON, 1997). Isso contribui
significativamente para um processo de desterritorialização compulsória contínua dos
camponeses caboclos, que agora passam a enfrentar cada vez mais barreiras para sua fixação
ou sedentarização. Se por um lado o caboclo do Rio Grande do Sul, a exemplo do indígena
(sobretudo o caingangue), tinha tendência ao nomadismo, herança de uma tradição agrícola
99
familiar não aldeã, nos termos propostos por Maestri (2005), por outro, ele foi forçado a
migrar constantemente. Como observou Martins (2009, p. 150), em sua análise sobre os
efeitos do avanço da fronteira econômica em âmbito nacional:
Quando não integrados no mercado de trabalho, os camponeses eram e são expulsos
de suas terras e empurrados para ‘fora’ da fronteira econômica, ou para ‘dentro’
como assalariados sazonais. Se encontram terras livres mais adiante, continuam a
tendência migratória, mesmo que para pontos mais distantes
Assim, acentua-se no norte do Rio Grande do Sul, a exemplo de outros rincões do
Brasil, o processo de desreterritorialização cabocla. À medida que o latifúndio e a fronteira
agrícola definida pela ocupação de colonos de origem europeia iam avançando, as
comunidades caboclas abandonaram suas terras, sob a forma de posses, por novas terras,
enquanto existiam (MAESTRI, 2005). A perda do território pretérito redundava na abertura
ou aquisição de novo território (sítio), porém em condições de uso mais precárias (terras de
pouco valor, terrenos dobrados e pedregosos, solos de escassa fertilidade natural). Logo, a
fronteira econômica “batia às portas do rancho”, induzindo a uma nova retirada, com nova
fixação logo adiante. Isso, como foi dito, enquanto houve terras e interesse em nelas se
reterritorializar. Na maioria dos casos, o destino final foi a migração para outros estados, no
limiar da fronteira agrícola ou na periferia das cidades da região Norte do Estado e da grande
Porto Alegre.
Por outro lado, as grandes posses, pertencentes a luso-brasileiros capitalizados, em
geral estancieiros ou sesmeiros (GORONDER, 2005) ou tropeiros paulistas radicados na
região Norte do RS depois da abertura do Caminho de Palmas”
24
, geralmente eram
facilmente legalizadas. Muitas acabam sendo posteriormente vendidas a empresas
colonizadoras privadas que as fragmentam em lotes e vendem aos colonos de origem
europeia
25
.
Algumas posses legitimadas foram adquiridas por capitalistas que as fragmentavam e
vendiam a era assegurada pela proximidade étnica e parental (WOORTMANN, 1995).
Obviamente, essa centralidade e harmonia derivavam da forma como funcionavam as
24
O Caminho de Palmas é considerado pela historiografia regional como o último caminho das tropas, por onde
passavam os muares que eram vendidos no mercado de Sorocaba, São Paulo. Iniciava em Cruz Alta - RS,
cortava as matas do Médio Uruguai, nos municípios de Santo Antônio da Palmeira (hoje Palmeira das Missões) e
Nonoai, passava pelo Oeste Catarinense, Centro-Oeste do Paraná, e, seguindo pelo Planalto Meridional, ia a
Sorocaba-SP (MARCON, 1994).
25
Como foi o caso da Colônia Xingu (atual município de Novo Xingu), que se originou de uma posse
pertencente a uma cidadã de nome Rita Maria do Espírito Santo (CARINI, 2005; FENNER et al., 1997).
100
estruturas definidoras de colonos oriundos das chamadas “terras velhas”. Porém, muitas vezes
os grandes posseiros e as colonizadoras avançavam sobre pequenas posses e tios
pertencentes a caboclos pobres, pequenos agricultores-coletores, que não dispunham de
recursos financeiros e/ou influência política para a legitimação. (MAESTRI, 2005;
RÜCKERT, 1999; VENCATO, 1994). Vencato (1994, p. 171) é taxativo ao afirmar que, em
Sarandi, a Colonizadora Gomes e Silva & Cia, ligada ao governo borgista por interesses
político-econômicos, promovera a desterritorialização de inúmeros posseiros extrativistas que
“mantinham, ciosamente, a defesa das matas, uma vez que delas se serviam para obter
alimentos necessários à subsistência”. Segundo o mesmo autor, essa situação teria sido
determinante para o ingresso dos caboclos da costa do Rio da Várzea nas hostes
revolucionárias maragatas, na luta contra as forças governamentais borgistas na revolução de
1923, enquanto os colonos de descendência europeia aderiam às forças do Governo
26
.
Vê-se que, nos idos de 1920, se visualiza um cenário de agravamento dos conflitos
sociais na fronteira econômica dessa região do RS, prenunciando a primeira “crise da terra”
no Estado sulista, crise esta que se agrava a partir dos anos de 1940, com o esgotamento da
colonização em terras devolutas ou fim da fronteira agrícola e invasão das terras indígenas por
caboclos sitiantes e colonos de descendência europeia, na luta pela territorialização.
3.3.1 Indígenas e caboclos e seus “territórios provisórios”
A história regional do Rio Grande do Sul conta com uma razoável quantidade de
publicações resultantes de estudos sobre as transformações territoriais ocorridas no Estado, ao
longo de dois séculos, sobre lutas na definição de fronteiras, com destaque para as discussões
sobre questões de limites com países da região do Prata, em que, em geral, se sobressaem
textos apologéticos, enaltecendo as virtudes, a bravura e a coragem do tipo humano
cognominado de “gaúcho”. No caso do norte e noroeste, no entanto, como foi dito no começo
deste capítulo, o debate é recente. Ele centra-se nos formatos sociais rurais que se
constituíram nesses contextos, sobretudo, ao longo do século XX, seus atores e mediadores e
seus conflitos. Conforme se salientou, os principais atores neste palco, índios, caboclos e
colonos, estabeleceram entre si relações nem sempre amistosas. Tanto indígenas quanto
26
Ressalte-se que na Revolução de 1923 o Rio Grande do Sul estava dividido entre dois grupos políticos. Os
partidários de Borges de Medeiros (borgistas ou ximangos), representantes das forças oficiais do Governo,
combateram os partidários do líder político Joaquim Francisco de Assis Brasil (assisistas ou maragatos), as
forças revolucionárias.
101
caboclos foram vítimas do processo de ocupação/colonização, uma vez que o projeto
colonizador promoveu a destruição da base material e simbólica territorializadora de seus
territórios. Trata-se do choque entre diferentes racionalidades, moldadas através de diferentes
temporalidades, as quais determinam diferentes formas de relação com o meio natural e de
territorialização.
Em relação à territorialização de indígenas e de caboclos do Brasil, alguns registros
documentais e estudos destacam a tendência ao nomadismo desses grupos sociais, motivado
pela forma de vida mais dependente da natureza do que da agropecuária. Ao discutir o
processo de formação do campesinato brasileiro, Maestri (2005) assevera que, ao contrário do
que aconteceu com a América Andina e Central, o território brasileiro jamais conheceu
comunidades indígenas que dominassem formas de produção agrícola avançadas ou
comunidades aldeãs. Segundo esse autor, a horticultura tupi-guarani não incorporava trabalho
pretérito à terra, não produzia excedentes para a formação de estoques em celeiros para
provisões futuras e não conhecia culturas de ciclo longo (MAESTRI, 2005).
A tendência ao nomadismo dos caingangues do norte do Rio Grande do Sul
determinaria o caráter provisório dos primeiros aldeamentos formados em meados do século
XIX no norte da Província. que se ressaltar que os aldeamentos, a exemplo das reservas
demarcadas no início do século XX, foram territórios instituídos despoticamente pelo
Governo Provincial ou Estadual para atender a interesses estratégicos de ocupação-
colonização, nos limites das fronteiras (demográfica e econômica), como já foi inferido.
Marcon (1994) afirma que, em 1850, o Governo Provincial pretendia formar um único
aldeamento no Rio Grande do Sul, na região de Nonoai, reunindo indígenas de Guarita,
Cacique Doble e Nonoai. Porém houve resistência da comunidade indígena, sendo que, no
trajeto de Cacique Doble para Nonoai, o grupo de Doble teria sido surpreendido por um grupo
inimigo entre Pontão e Nonoai, e este confronto resultou em várias mortes. Afirma ainda que
“os dados sobre o número de índios aldeados, a partir de 1846, oscilam violentamente de ano
para ano. Onde parecia haver um aldeamento sólido, no ano seguinte os índios dispersavam-se
e retornavam para as matas e somente retornavam aos aldeamentos e por algum tempo em
caso de falta de alimentos ou de roupas” (MARCON, 1994, p. 128-130).
Vê-se que o avanço da frente de expansão na fronteira demográfica do norte e noroeste
rio-grandense provocou a reação indígena. Além da migração compulsória, promoveu a
destruição das bases físico-geográficas e ontológicas territorializadoras dos indígenas. Como
disse Martins, além de colocar o indígena diante de uma humanidade diferente, a dos
102
civilizados, o avanço da frente de expansão repercute tanto nos rearranjos espaciais de seus
territórios, quanto nas relações intertribais (MARTINS, 2009).
É inegável a forte vinculação entre território e natureza quando se trata de sociedades
indígenas, as quais, economicamente, dependem muito das condições físicas de seu entorno
para viver, onde efetuam caçadas, pescadas e coletas. Porém, que se considerar também o
valor simbólico do espaço natural terra, mata, rios, animais para as comunidade
tradicionais na construção de suas identidades. Assim, a destruição dos limites territoriais
intertribais pode determinar o confronto entre tribos inimigas. Nessa perspectiva, pode-se
afirmar que uma comunidade tribal como a caingangue do século XIX concebia seu território
como área controlada para usufruto de seus recursos, sobretudo, os naturais. Entretanto, além
desse indicador, o espaço por ela apropriado servia também como referencial idealista na
criação e recriação de mitos e símbolos. Aceitar o aldeamento, portanto, significava renunciar
ao território pretérito e ao próprio modo de viver e pensar e, por vezes, pôr-se ao alcance do
inimigo.
Destarte, a comunidade indígena caingangue do século XIX não concebia seu
território como um espaço apropriado, privatizado e fragmentado, de acordo com a percepção
da sociedade moderna, mas como um espaço de pertencimento e de apropriação simbólico-
religiosa coletiva. Em face disso, a territorialização imposta pelo Estado pela via dos
aldeamentos ou das reservas acabou se constituindo numa ação desterritorializadora. A
fixação em áreas com limites estritos impediu o indígena de atender ao seu instinto
territorializante nato.
Em relação à forma cabocla de territorialização existente no norte-noroeste rio-
grandense no século XIX e princípio do século XX, deve-se considerar sua base material de
reprodução social. O caráter pouco sedentário do camponês caboclo referido por Maestri
(2005) e Martini (2006) teria relação direta com as condições naturais da região, caracterizada
por paisagens que alternavam campos e matas, onde os ervais dispersos exigiam longas
caminhadas e abundavam as terras de matas favorecendo os pousios após algumas colheitas,
numa época de fraca densidade demográfica (ZARTH, 2002). Segundo Zarth, isso também
justifica a racionalidade do caboclo de então, em relação aos rudimentares sistemas agrícolas
adotados. Entretanto, o mesmo autor reconhece que a condição de vida errante do caboclo
existiu nos limites da fronteira econômica, onde e quando fora forçado a migrar
compulsoriamente devido à apropriação das matas pelos colonizadores. Porém, em muitos
casos, quando conseguiram se estabelecer próximo a extensos ervais, os caboclos tenderam à
sedentarização. Essa tese é corroborada por Martins (2009, p. 150) quando afirma que:
103
Embora tendencialmente migrem em família e até em grupo, uma rede familiar
mais extensa e viva que constitui a referência nesse movimento. Em cada etapa do
deslocamento, os membros da família, os compadres, os antigos vizinhos já
chegados, acolhem os que vêm depois e serão acolhidos mais adiante pelos que se
foram antes.
Conforme se pode concluir pela citação, existia uma lógica territorializadora nos
movimentos migratórios dos camponeses caboclos na fronteira econômica. A teia de relações
de parentesco e compadrio existente para além da família era mantida após a emigração,
facilitando a reterritorialização. Entretanto, havia um componente ou elemento
territorializador que fora historicamente decisivo na fixação do colono, enquanto fator
aglutinador ou de coesão social camponesa, como se verá no próximo tópico, que estava
ausente no cotidiano do caboclo. Este elemento era a capela. O indicador simbólico capela,
como índice de manifestação religiosa e local de encontros ou infraestrutura de organização
social (BONETI, 1998), não existiu no mundo camponês caboclo do norte e noroeste do Rio
Grande do Sul. Desse modo, a reterritorialização tornou-se sempre provisória, ou seja, não
existindo vínculos profundos, nem com a terra nem com a comunidade de pertencimento, o
caboclo estaria sempre propenso a migrar.
Para o caso específico da região de interesse nesta tese, Zarth (1998, p. 63) elenca
algumas estratégias territorializadoras caboclas para além do extrativismo da erva-mate, ao
afirmar que:
Nas áreas onde não havia produção de mate, a possibilidade de reunir recursos
econômicos para adquirir bens de consumo no mercado passava pela venda de
trabalho esporádico para estancieiros, para as companhias de colonização ou para o
Estado, na construção de obras ou em serviços de polícia. Na condição de agregados
ou posseiros, os lavradores mantinham relações com as estâncias e com os centros
de comércio, por meio dos produtos da floresta ou de suas roças ervas medicinais,
aves, pequenos animais, alimentos e tudo mais que pudessem vender ou trocar.
Vê-se que, para o autor, o caboclo do norte e noroeste gaúcho, ao estar vinculado a
alguns mercados, aos estancieiros na condição de agregado, ao Estado ou às companhias
colonizadoras, mantinha certa estabilidade territorial, razão pela qual não deveria ser
considerado como um nômade. Para este autor, os deslocamentos ou migrações ocorriam
quando os imigrantes europeus ou imigrantes oriundos das colônias velhas “fechavam as
possibilidades dos nacionais de se reproduzirem como camponeses independentes nas zonas
florestais” (ZARTH, 1998, p. 65).
104
Ao discutir a territorialização dos caboclos do sudoeste do Paraná, Boneti faz coro
com a tese de Zarth, ao afirmar que, antes da chegada dos migrantes de descendência europeia
catarinenses e gaúchos ao Sudoeste do Paraná, havia naquela região uma estrutura
social e econômica sedimentada pelos caboclos (BONETI, 1998). Porém, o mesmo autor
admite que os caboclos do sudoeste do Paraná praticavam um tipo de produção expansiva,
sem preocupação com a estruturação de propriedades, em face do caráter provisório de
utilização da terra (BONETI, 1998, p. 99). A territorialização provisória é ressaltada ainda na
obra deste autor quando ao afirmar que: “o caboclo gostava muito de cavalos, talvez por
sentir-se nômade [...] Como os caboclos não possuíam uma infra-estrutura produtiva
definitiva na propriedade rural, eles não dispunham de uma estrutura física de sua organização
social” (BONETI, 1998, p. 95).
Gehlen, referindo-se ao processo de exclusão social a que foi submetido o caboclo,
também evoca sua tendência ao nomadismo ao afirmar: “o caboclo, na sua trajetória de
nômade/pioneiro, enfrentou-se com os índios, com os fazendeiros e com os colonos, porém,
nunca conseguiu transformar suas possessões em propriedades” (GEHLEN, 1998, p. 130).
A racionalidade territorializadora cabocla no Médio Uruguai, região norte e noroeste
do Rio Grande do Sul, consistiu-se em uma busca constante por matas para derrubar. Como
informa Taglietti (2008, p. 78), “derrubar, queimar, plantar, colher e abandonar, depois os
‘tigueros’(grifos do autor) para não carpir”, era a rotina do caboclo sertanejo, registrada pelos
funcionários da Diretoria de Terras de Frederico Westphalen em seus relatórios durante as
medições e legitimações de terras no começo do século XX.
Sobre o caboclo ervateiro, destaca-se o trecho a seguir que parece expressar bem sua
racionalidade territorializadora:
Analistas descreveram o ervateiro como um trabalhador inconstante, sendo corrente
a seu respeito de que preferia penar alguns meses no mato, comendo e dormindo
mal, atacado por insetos, do que se entregar à rotina, na vila ou em qualquer centro,
em trabalhos menos penosos, mas mais metódicos como sucede nas colônias
agrícolas (LINHARES apud MARTINI, 2006, p. 180)
Na década de 1870, o explorador alemão Maximiliano Beschoren, em viagem ao Alto
Uruguai do Rio Grande do Sul, registrou a rotina de vida dos moradores da região de Nonoai.
Admirava-se com o pouco apego às coisas materiais, como se pode concluir pela citação:
“Mesmo que se cultivem os demais produtos como feijão, milho, mandioca, tabaco, etc,
encontrando sempre um bom mercado, ninguém planta mais do que é preciso para o consumo.
As pessoas querem apenas viver, pensam somente no hoje” (BESCHOREN, 1989, p. 51). Na
105
passagem por Campo Novo, na direção noroeste do Estado, o autor reconhece a situação dos
caboclos ao afirmar que “pelas casas e demais instalações conclui-se que a população é bem
pobre” (1989, p. 62). Mas, reconhece também que a ideia de ‘pobre’ é apenas uma questão de
ponto de vista de um europeu, ao afirmar: “Porém viajando-se por essas terras logo perde-se a
mania alemã de julgar a fortuna das pessoas pela aparência e conforto como vivem”
(BESCHOREN, 1989, p. 62).
A precariedade das casas, a falta de ênfase em cultivos de ciclo longo são indicadores
de que a forma cabocla original de territorialização no norte e noroeste do Rio Grande do Sul
apresentava um caráter de pouca estabilidade. Maestri (2005) sustenta que nas terras caboclas,
assim como nas indígenas, pela inexistência de lidas comunidades familiares e aldeãs e
pelas frágeis ligações orgânicas com a terra ocupada, a desterritorialização de caboclos e
índios foi facilitada em favor, sobretudo, do avanço do latifúndio via apossamento ou compra
fraudulenta.
No entanto, Zarth (2002) tem chamado atenção para o fato de que os caboclos ou
“camponeses nacionais” do sul do Brasil, notadamente os do norte do Rio Grande do Sul, não
estavam isolados nem totalmente fora dos mercados, haja vista que a produção de erva-mate
destinava-se à exportação para os países do Prata. Ademais, os “camponeses nacionais”
formavam um contingente populacional que viabilizava peões para o trabalho nas estâncias e
para o de desmatamento inicial nas colônias oficiais e particulares (ZARTH, 2002).
Enfim, o debate acadêmico-historiográfico sobre a questão da (des)territorialização
indígena e cabocla no norte do Rio Grande do Sul nos séculos XIX e XX ainda não acabou,
porém permite visualizar pontos de confluência teórica entre as diversas correntes. O principal
ponto a reter é o de que a desterritorialização desses grupos sociais deu-se inicialmente, como
foi salientado, pela destruição de suas bases materiais e simbólicas territorializadoras: o
mato e a erva-mate nativa. No entanto, mais do que isso, as desterritorializações desses
sujeitos foram consolidadas por políticas públicas de colonização que contemplaram o colono
de descendência europeia, induzidas pela ideia de suplantação da racionalidade dos povos
tradicionais pela racionalidade moderna produtivista.
Na condição de sujeito principal das frentes de expansão do norte e noroeste do Rio
Grande do Sul, oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná, o caboclo experimentou desde
meados do culo XIX até meados do século XX um constante movimento de
desterritorialização-reterritorialização-desterritorialização. Essa lógica se explica, de um lado,
pelas condições econômicas, e de outro, pela própria racionalidade cabocla, que se expressa
por um certo desapego ao privado. A perda da terra deu-se pela impossibilidade de
106
legitimação, devido aos custos dos serviços cartoriais, pela pressão do latifúndio e das
companhias colonizadoras, além de outros agravantes. Porém ocorreu também por meio da
venda expontânea das terras aos colonos de origem europeia, em geral, mediante troca por
animais, utensílios ou ferramentas, isto é, sem o envolvimento de valores em moeda, como
referido por Boneti (1998). Reconhecer essas questões é renunciar ao reducionismo simplista
que explica a desterritorialização cabocla apenas pela pressão externa.
A venda da terra pelo caboclo era induzida por suas necessidades imediatas. A terra
apossada por ele tinha um valor de troca. Possuindo uma infraestrutura produtiva precária, o
valor da mesma era estabelecido de acordo com sua área apropriada passível de utilização,
sobretudo. A racionalidade terriorializadora cabocla ligava-se, pois, às necessidades mais
imediatas desses sujeitos, sendo a terra para eles o espaço e lugar de vida necessário para a
reprodução social familiar (GEHLEN, 1998). o existia trabalho pretérito a ser recuperado
ou ressarcido e não havendo apego ao capital ou à acumulação, o caboclo tendia a migrar ante
qualquer ameaça ou oferta. Após a perda ou a venda da terra, deslocava-se na direção das
terras devolutas. Encontrando a mata ainda não privatizada, buscava constituir nova base
territorial, reproduzindo-se socialmente, conforme sua racionalidade e condições materiais.
Os limites para a territorialização cabocla, consoante sua racionalidade
territorializadora, foram estabelecidos pela colonização oficial. Os indicadores dos lotes rurais
impostos pela Diretoria de Terras e Colonização (DTC) não eram compatíveis com as formas
tradicionais de exploração da terra, ameaçando a continuidade do sistema extensivo de
produção (BONETI, 1998). A forma intensiva de exploração da terra induziu à quebra de
tradições, alterando substancialmente as relações do “lavrador nacional” com a natureza.
A necessidade de áreas mais amplas para os cultivos e para as criações (porcos)
obrigou o camponês-caboclo a fazer derrubadas mais frequentes, devido à precariedade do
acervo cnico e dentro de um sistema extensivo de exploração da terra (com derrubadas,
queimadas e pousios). Ademais, a fragmentação da terra em pequenos lotes privados ou
individualizados alterou antigos sistemas de produção, como o sistema de faxinal
27
. Esta e
outras alterações no âmbito da produção e das relações sociais do mundo caboclo do Rio
Grande do Sul, como sugere Gehlen (1998), serviram para redefinir sua identidade
socioprofissional e sociocultural e, em geral, produziram exclusão e pobreza.
27
Sistema de produção que integra extrativismo, pecuária e agricultura (GEHLEN, 1998), em que uma
comunidade camponesa possui uma área de terra de mata para uso coletivo. As propriedades em geral ficam
dispostas em círculo e a área de uso coletivo (mata) encontra-se nos fundos. Este sistema vigora em algumas
regiões do Brasil, e é preservado graças a políticas públicas específicas.
107
Gehlen sustenta que, para se adaptar à nova lógica imposta pela modernização
capitalista que balizou a implantação da agricultura familiar no sul do Brasil, desde meados
do século XIX, bem antes da “Revolução Verde” dos anos de 1960-70, o caboclo deveria
primeiro incorporar a ética do trabalho no seu modus vivendi (reconversão valorativa do
trabalho). Além disso, deveria sujeitar-se à lógica da tecnificação, que impõe o tempo como
controle e a produtividade como objetivo. Referindo-se à mudança na forma de viver e de
pensar do caboclo que a lógica de modernização acarretou, o autor avalia:
É possível, portanto, imaginar o impacto que gera na estrutura de vida e de
representação cabocla a modernização, entendida, em primeiro lugar, como
imposição da centralidade ética do trabalho e, em segundo lugar, como a
implantação de relações capitalistas e de métodos e técnicas de trabalho que buscam
aumentar a produtividade do tempo de trabalho. É uma dupla conversão ou reversão
do modus vivendi da cultura cabocla (GEHLEN, 1998, p. 133-134).
Ao contrário do caboclo, o colono, em geral, conseguiu se adequar melhor às
exigências da agricultura familiar sob o referencial moderno. Porém, é necessário enfatizar
que a territorialização de colonos no Rio Grande do Sul não deveu-se somente à sua
vinculação com os mercados. Ela também envolveu elementos culturais e simbólicos, típicos
das sociedades camponesas europeias. Esse assunto será tratado no próximo tópico.
3.3.2 A racionalidade territorializadora do colono de descendência europeia no Rio
Grande do Sul
Conforme já referido, a colônia de descendência europeia foi introduzida no Rio
Grande do Sul enquanto estratégia geopolítica e de desenvolvimento econômico. O colono
europeu seria o outro desejado. Aquele que se punha ao lado dos vencedores, disposto a
contribuir com sua racionalidade ocidental-cristã para “o ato civilizatório”. Assim, uma nova
lógica territorializadora se instaura. À gica territorializadora indígena e cabocla, mais
baseada no nomadismo do que no sedentarismo, como propuseram Maestri (2005) e Gehlen
(1998), opunha-se a gica da colônia, fundamentada na constituição de sólidas comunidades
rurais nas linhas e travessões próximos aos mercados.
3.3.2.1 A capela e a comunidade
108
um elemento territorializador não econômico que se constitui em um diferencial
importante na comparação entre o camponês caboclo e o colono de origem europeia. Trata-se
da comunidade de pertencimento. Maestri (2005, p. 222), na discussão que faz sobre a matriz
social do campesinato brasileiro, recorda que “a comunidade aldeã camponesa desempenhou
sempre um papel essencial na superação tendencial do isolamento das unidades produtivas” e
que nessa comunidade, onde a tradição se manifesta mais fortemente, os agricultores têm
resistido às classes exploradoras.
Para o colono do Rio Grande do Sul, a capela constituiu-se historicamente, tanto nas
colônias velhas quanto nas novas, na célula embrionária que deu origem e sustentação à
comunidade de pertencimento.
Desde o primeiro momento, logo que se instalou na colônia, o colono tratou de
construir sua capela, que passou a constituir-se no elemento essencial de aglutinação e coesão
social e cultural. Por exemplo: erigida estrategicamente em locais que facilitassem o acesso
dos moradores dos travessões, cada capela da Colônia de Caxias era consagrada a um
padroeiro e construída segundo padrões arquitetônicos do norte italiano, exigências dos
próprios colonos (AZEVEDO, 1975). A comunidade constituía-se de colonos
ligados/vinculados à capela.
Segundo Maestri (2005), devido ao isolamento dos colonos ao longo das linhas e
travessões, a comunidade colonial do Rio Grande do Sul não se constituiu numa aglomeração
de casas, com o formato das vilas ou aldeias rurais européias. Mesmo assim, a partir da
edificação da capela, enquanto local de culto, se delineia o espaço comunitário, o qual acaba
assumindo um papel social importante, como aglutinante da vizinhança, rompendo muitas
vezes os contornos territoriais estabelecidos pelos laços de família e pela teia extensa das
parentelas. Portanto, a comunidade, enquanto núcleo urbano da colônia, ganha um formato
social a partir da capela e se fortalece com a agregação de outros elementos do “equipamento
social básico”: salão paroquial, escola, comércio e algumas casas - não necessariamente de
famílias dedicadas à lavoura (AZEVEDO, 1975).
A comunidade colonial passa a se constituir desde a instalação das colônias em lugar
de pertencimento, onde se estabelecem e se fortalecem relações de solidariedade-
reciprocidade. Azevedo, referindo-se aos pioneiros da colonização italiana no Rio Grande do
Sul, comenta o grau de consciência comunitária dos colonos, assim se expressando:
A consciência de comunidade manifesta-se na solidariedade em determinados
momentos e em certo orgulho de pertencer à mesma. A rivalidade e a emulação são
expressões desse sentimento. Numa delas, cantava-se em dias de festa: Quá in San
109
Giacomo/ son tutti insieme./ Come noi altri/ non güe ne altri/ E se e ne ancora/
Chi vignè fora (Aqui em San Giacomo/ Somos todos unidos./ Como nós/ Não
outros/ E se ainda houver/ Que saltem fora) (AZEVEDO, 1975, p. 185). [grifos do
autor].
Nas comunidades coloniais do Rio Grande do Sul proliferaram e institucionalizaram-
se certos elementos simbólicos trazidos da Europa, que pouca ou nenhuma presença tinham
nas comunidades caboclas. Um dos elementos simbólicos fundamentais foi a religião. A
religião adentra no cotidiano do colono e passa a compor o ou a interferir no dia a dia das
famílias. Estabelece-se uma relação do colono sul-rio-grandense com o mundo do sagrado,
como em tantas outras culturas camponesas. Porém, como destacou Azevedo (1975), o
colono, ao mesmo tempo em que estabeleceu uma relação com o sagrado, procurou
subordinar as forças sagradas e dobrá-las à sua vontade, de acordo com seus interesses, sejam
relacionados aos ciclos produtivos agrários, sejam relacionados à saúde da família, aos preços
dos produtos, à segurança individual e da família. A religião se torna um componente valioso
de territorialização para os colonos, portanto, para além da função social, enquanto elemento
simbólico ligado ao ciclo produtivo agrário e ao da vida da família do agricultor-colono.
A força da religião faz com que a Sociedade da Capela possua um poder de articulação
e coesão social superior ao de qualquer outro elemento da comunidade de agricultores-
colonos. A reciprocidade simétrica, por exemplo, manifestada pela comunidade em um
momento de infortúnio ocorrido em alguma família, quando todos ajudam na construção da
casa, na limpeza ou na colheita da lavoura da família impossibilitada de trabalhar, tem na
religião uma âncora disciplinadora. Esse é, portanto, um aspecto diferenciador na comparação
entre a territorialização dos agricultores-colonos e a territorialização dos caboclos. Enquanto
para os primeiros a capela cumpre papel de elemento de coesão social e de superação do
isolamento, para os últimos, embora tenham aderido a certos rituais religiosos, a construção
desses locais de culto era dispensada, como observa Boneti (1998).
3.3.2.2 O sistema produtivo
O padrão de exploração da propriedade rural do colono, desde os primórdios da
colonização, além de atentar para o atendimento das necessidades de subsistência imediata,
sempre buscou contemplar a produção de produtos para o mercado. Ainda que em graus
variados, os colonos estiveram conectados aos mercados desde o começo da colonização, logo
que foi superada a fase de isolamento territorial por falta de vias de acesso. Ao contrário de
110
uma agricultura quase exclusivamente de subsistência, em que se comercializa apenas e
esporadicamente algum produto, como na tradição cabocla, nas colônias de descendentes
europeus, a produção comercial andava junto com a produção de subsistência ou muitas vezes
à frente dessa, quando o colono, por exemplo, privava-se ou reduzia o consumo familiar para
permitir sobras para a mercantilização.
Como postula Maestri, a necessidade de recursos para o pagamento da terra, dos
impostos, da dívida colonial determinava a orientação mercantil forçada, “contrabalançando
tendências ao acaboclamento” (MAESTRI, 2005, p. 265).
Sobre a produção comercial da Colônia Alemã do Vale do Rio dos Sinos, Roche
(1969, p. 251) afirma que “o fumo foi cultivado pelos colonos desde a chegada destes e muito
além de suas próprias necessidades. Em 1832, se instalavam pequenas fábricas de charutos
em São Leopoldo e Porto Alegre.”.
A produção comercial, visando a resultados econômicos e fiscais, é o objetivo
primordial da colonização para as autoridades governamentais do Rio Grande do Sul, que na
segunda metade do século XIX intensificam esforços para atrair imigrantes. Para tanto, por
volta de 1865, elas preocupavam-se com a abertura de estradas e melhorias das que já
existiam e com a dotação de infraestruturas para a prosperidade das colônias (AZEVEDO,
1975, p. 201).
O imediato fortalecimento das relações mercantis nas colônias, tão logo elas foram
implantadas, determinou que os colonos buscassem estratégias de territorialização efetivas.
Assim, as unidades produtivas coloniais buscaram a intensificação dos cultivos; a adoção de
técnicas de cultivo visando o aumento da produção, como a adubação e a rotação de culturas;
os cultivos diversificados (culturas de ciclo curto e longo) e o investimento em benfeitorias:
paiol, cantina, chiqueiro, galinheiro, potreiro, parreiral e outras.
A busca pela mercantilização também determinava a adoção de estratégias de
territorialização próximo aos núcleos urbanos, como indica o historiador Maestri (2005, p.
265):
Ao contrário das comunidades caboclas, as comunidades coloniais esforçavam-se
para se localizarem o mais próximo possível das aglomerações urbanas e
melhorarem seus meios de acesso a elas, devido à importância crescente das trocas
mercantis. Para esses produtores coloniais, não havia dúvidas que ocupar a última e
mais distante colônia era definitivamente “o fim da picada” [Grifos do autor].
O processo de “acaboclamento” do colono de descendência europeia ocorreu, segundo
o autor, sempre e no lugar onde não foi garantida a ligação entre a gleba colonial e o mercado,
111
onde o colono limitou-se à produção para alimentar sua família. A integração do colono à
economia de mercado seria, pois, o ingrediente diferenciador essencial na comparação com o
caboclo. No entanto, deve ser ressaltado o fato de que os colonos aderiram à tradição cabocla
ou tenderam ao “acaboclamento”, usando uma expressão do autor, também, por outras razões.
Uma das práticas cotidianas do colônia gaúcha, relacionada ao sistema produtivo agrícola, foi
a da derrubada-queimada-plantio.
Por longo tempo, a cnica da derrubada-queimada-plantio aproximou índios e
caboclos dos colonos de origem europeia. Reconhecendo a origem indígena da técnica da
agricultura itinerante da derrubada-queimada, Roche (1969, p. 288) afirma que ela ajuda a
explicar a vocação pioneira dos teuto-brasileiros:
Admitindo que se justificasse a adoção da queimada na origem da colonização,
quando se tratava de desbravar a floresta virgem, o que surpreende é a conservação
dessa técnica mais de cento e vinte e cinco anos, e sua extensão a todas as zonas
cultivadas por todas as gerações de teuto-brasileiros; é a impermeabilidade dos
grupos rurais aos novos processos de cultura que os imigrantes posteriores
conheceram na Alemanha em fins do século XIX e princípios do século XX. Parece-
nos que a vocação pioneira dos colonos pode explicá-lo.
A exemplo da colônia alemã, estudada por Roche, outras colônias como a italiana e
a polonesa – também aderem à prática da derrubada-queimada como forma de implementação
dos cultivos na fronteira econômica, não sendo a “vocação pioneira” exclusividade da etnia
alemã.
Em relação ao uso da derrubada-queimada como prática corriqueira de cultivos nos
primitivos núcleos coloniais italianos, Azevedo (1975) admite que essa prática foi adotada
pelos colonos italianos, tornando-se um componente de aculturação introjetado no seu
cotidiano, graças ao trabalho dos diretores de terra, engenheiros medidores de lotes e
agrônomos, os quais estavam encarregados de dirigir a implantação das colônias, orientando
os agricultores na escolha das terras para os plantios, no preparo do terreno e na escolha de
plantas para cultivar, desconhecidas dos colonos.
É necessário frisar que essa racionalidade indígeno-cabocla da derrubada-queimada
acabou se tornando corriqueira nas práticas agrícolas de colonos europeus, mesmo após o
advento da modernização tecnológica e expansão dos adubos químicos. Por mais de duas
décadas desde os anos de 1960, além das queimadas de capoeiras, foi prática costumeira a
queimada dos restos de culturas sobretudo do trigo e da soja em todo o norte gaúcho.
Mesmo na atualidade, a queimada pode ser observada em propriedades familiares tradicionais
de qualquer origem.
112
Portanto, é fundamental reconhecer as diferenciações em termos de racionalidades
territorializadoras entre os camponeses-caboclos e os colonos, porém, o processo de
aculturação, intermediado ou não, determinou uma aproximação cultural entre os dois grupos
capaz de definir estratégias de territorialização comuns. Isso ocorreu, tanto nas colônias
velhas, no Vale do Rio dos Sinos e na serra gaúcha, quanto no norte e noroeste do Rio Grande
do Sul.
Se a territorialização camponesa-cabocla e de agricultores-colonos foi determinada por
estratégias que têm a ver com aspectos culturais diferenciados, tendo colocado, ao longo do
século XIX e começo do século XX esses dois grupos em lados opostos, a desterritorialização
do final do século XX colocou-os do mesmo lado. Essa questão será melhor detalhada na
subseção a seguir.
3.4 A DESTERRITORIALIZAÇÃO DE COLONOS PELA LÓGICA DO
CAPITALISMO
O início da territorialização de colonos de descendência europeia no norte e noroeste
do Rio Grande do Sul deu-se na última década do século XIX e se firmou entre 1920 e 1940,
graças ao avanço da fronteira econômica. Após esse período de consolidação da agricultura
colonial de descendência europeia, acentua-se a fragmentação fundiária e inicia-se a diáspora
de sul-rio-grandenses rumo à fronteira econômica em outros estados sulinos. No âmbito
regional, a “crise da terra camponesa” empurra milhares de famílias empobrecidas para terras
indígenas e faz emergir as primeiras reações de agricultores sem-terra contra o latifúndio. Este
será o foco desta subseção.
3.4.1 A “crise da terra camponesa” e as invasões de terras indígenas
A expansão da ocupação das terras de matas do norte do Rio Grande do Sul promoveu
ao longo de 30 anos um surto demográfico espetacular. De 1920 até 1950, milhares de
famílias de colonos fincaram raízes mata adentro, incorporando rapidamente terras novas ao
contexto da colonização induzida pelo Estado. Os dados demográficos obtidos a partir dos
censos do IBGE demonstram os indicadores desse crescimento populacional. A título de
exemplificação e como base, tomaram-se as populações dos municípios de Sarandi e Iraí,
microrregião onde está inserida a área de pesquisa desta tese, a partir de 1940. O IBGE
113
apurou no censo demográfico de 1940 a existência de uma população total de 54.161
habitantes, distribuída nos dois municípios citados. O primeiro contava com 39.195
habitantes, enquanto o segundo alcançava 14.966. Dez anos depois, no censo de 1950, a
população total aumentou para 93.604 habitantes, um incremento de 139%. Individualmente,
porém, considerando a população de Iraí, que de 14.966 passou para 37.959 habitantes,
percebe-se que o incremento foi de 154%, tendo sido maior em algumas áreas e menor em
outras (Fundação de Economia e Estatística – FEE/RS, 1981)
28
.
O aumento do número de estabelecimentos agropecuários e da produção agrícola da
área ao longo da década de 1940, conforme é mostrado nas tabelas a seguir, permite apontar
que, embora a fronteira econômica já tivesse ultrapassado os limites territoriais do Rio Grande
do Sul e avançado para o oeste de Santa Catarina e sudoeste do Paraná, nos anos de 1940
houve uma grande expansão-intensificação da agricultura colonial na região, expressa pelo
aumento do número de estabelecimentos e da produção de alguns produtos, típicos deste tipo
de agricultura, como o feijão e o milho.
Tabela 1 - Aumento do número de estabelecimentos agropecuários em dois municípios do
Médio Alto Uruguai gaúcho ao longo da década de 1940
Município 1940 1950
Irai 1.232 5.221
Sarandi 3.203 6.833
FONTE: CARINI, 2008, p. 119
Na Tabela 1, percebe-se que o aumento expressivo do número de estabelecimentos
agropecuários não foi acompanhado pelo aumento da área ocupada. Em 10 anos, enquanto o
incremento médio no número estabelecimentos foi de 172%, o aumento médio da área
ocupada foi de apenas 66%. Isso mostra que houve um acentuado processo de minifundização
na região, fruto das partilhas por herança, e a intensificação da ocupação de terras menos
valorizadas. Um outro fator da intensificação da ocupação territorial foi o início da ocupação
de terras indígenas, mormente a de Serrinha, ainda que, naquele momento, sem a anuência do
Estado do Rio Grande do Sul (CARINI, 2005 e 2008).
28
Não foram encontrados dados censitários anteriores a 1940 para a região em estudo.
114
O aumento na produção agrícola, conforme mostra a Tabela 2, é, também, um
indicativo da intensificação da ocupação da terra na região de abrangência dos municípios de
Iraí e Sarandi. Reflete, pois, não somente o aumento da área trabalhada e seu melhor
aproveitamento, possivelmente devido ao abandono de certas práticas do campesinato
caboclo, como a derrubada-queima-plantio, seguida do pousio, e ao uso de adubações.
Tabela 2 - Variação da produção agrícola, considerando os três principais produtos da
agricultura familiar dos anos 1940, em dois municípios.
PRODUÇÃO (Em toneladas)/ANO
Feijão Trigo Milho
MUNICÍPIOS
1939 1949 1939 1949 1939 1949
IRAÍ 823 4844 566 4583 11782 21341
SARANDI 805 5185 2686 12785 21282 39621
FONTE: CARINI, 2008, p. 120
Ao longo dos anos de 1940 o estoque de terras públicas e devolutas do Rio Grande do
Sul se esgota, enquanto a demanda por terra aumenta incessantemente. Uma dessas demandas
é fruto da chegada dos migrantes, vindos das chamadas “terras velhas”
29
, além daquela gerada
em face da numerosa prole dos camponeses. Tomando-se por base o número de pessoas
vivendo no meio rural e o de estabelecimentos agropecuários existentes em 1950, é possível
observar que, no caso particular de Sarandi e Iraí, em média, cada estabelecimento
agropecuário contava com sete pessoas. Subtraindo-se o casal, deduz-se que cada família
tinha em média cinco filhos (FEE-RS, 1981).
A principal opção dos camponeses empobrecidos para se manterem territorializados
foi a invasão das reservas indígenas. Assim, desencadeia-se a partir do final dos anos 1940 e,
sobretudo, ao longo dos anos de 1950 um intenso processo de intrusão nas reservas indígenas.
A maior parte dos primeiros intrusos nas reservas são caboclos. Desterritorializados pela
fronteira de colonização camponesa colonial nas áreas de matas das terras públicas e
“devolutas”, eles são forçados a adentrar nas reservas, na busca por matas para derrubar, na
luta pela reterritorialização. Em seguida, vieram os camponeses-colonos, que adquiriam os
sítios abertos na mata pelos caboclos, em geral por preços irrisórios, conforme entrevistas
com antigos moradores da TIS (CARINI, 2005).
Como está explicitado na Tabela 3, a seguir, das 11 reservas caingangues e guaranis,
demarcadas entre 1910 e 1918, localizadas na metade norte do Rio Grande do Sul, em apenas
três não houve expropriações: Carreteiro, Guarita e Ligeiro; sendo que duas foram extintas:
29
Primeiras áreas de colonização por europeus no Rio Grande do Sul.
115
Serrinha e Ventarra. As outras tiveram suas áreas subtraídas por diversos atos governamentais
em diferentes momentos.
Tabela 3 - Demarcações e expropriações de terras indígenas no Rio Grande do Sul 1910-1968
Reservas
Ano da
demarcação
Área
original
(ha)
Área
Expropriada
(ha)
Período da
Expropriação
Cacique Doble 1910 5.676,33
1250,05
30
1940-60
Carreteiro 1911 600,72 - -
Caseiros 1911 1.003,74
1.003,74 1927 e 1933
Guarita 1917 23.407 - -
Inhacorá 1911 5.859 4.799
Ligeiro 1911 4.552 - -
Nonoai 1911 34.908 22.427 1949 e 1962
SERRINHA 1911 11.950 11.950 1949 e 1963
Ventarra 1911 753,25 753,25 1962 a 1968
Votouro (caingangue) 1918 3.100 1.660 1962
Votouro (guarani) 1918 741 461 1962
TOTAL - 92.551,04
44.303,04 -
FONTE: Governo do Estado do Rio Grande do SulRelatório e conclusões do Grupo de Trabalho
criado pelo Decreto 37.118/96 para analisar questões indígenas no Rio Grande do Sul. In:
BRASIL. MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, PROCURADORIA DA REPÚBLICA NO RIO
GRANDE DO SUL.
Procedimento Administrativo nº 005/97: Área Indígena de
Serrinha. Passo Fundo/RS, 17 set. 1998.
A crise na terra camponesa, intensificada nos anos de 1950, é ressaltada por Ruckert
(2003) que elege como principal fator de seu agravamento na região do Planalto Médio e Alto
Uruguai do Rio Grande do Sul o avanço do capital comercial e da agricultura capitalista. Esse
fator, aliado ao fracionamento das pequenas propriedades camponesas, determina a
desterritorialização do colono em favor da territorialização do capitalista arrendatário que se
transforma (metamorfoseia) e passa a ser capitalista proprietário.
O autor afirma que o que realmente ocorreu na região do antigo município de Passo
Fundo, que abarca terras do Planalto Médio e do Médio e Alto Uruguai, entre 1940 e 1950,
foi um “fracionamento progressivo do estabelecimento num espaço que tende a se restringir e
se adensar” (RÜCKERT, 2003, p. 135). No mesmo período que se dava esse fracionamento,
como destacado acima, ocorriam contínuas emigrações de “excedentes camponeses” desta
30
O relatório do Governo do Estado do Rio Grande do Sul de 29 de abril de 1997 apresenta a seguinte conclusão
acerca da reserva de Cacique Doble: a) Área original demarcada pelo Estado 5.676,33 ha; b) Área registrada pela
Diretoria de Terras e Colonização, entre 1936 e 1940, 5.450 ha; c) Área registrada pela Fundação Nacional do
Índio (FUNAI), 4.508 ha; d) Área definida por decreto federal, em 27/03/91, 4.426, 3 ha. Subtraindo-se da área
original a área atual, obtém-se o valor de 1.250,05 ha, que deve ser considerado terra expropriada e colonizada.
116
região gaúcha para o oeste catarinense e sudoeste paranaense. Isso indicaria que o
fracionamento de pequenas propriedades estaria levando, naquele momento, a um
estrangulamento estrutural e de que a estrutura agrária no Estado não teria mudanças que
pudessem alterar o rumo das relações entre os homens e a terra” (RÜCKERT, 2003, p. 142).
O maior dilema do mundo camponês do Norte e Noroeste do Rio Grande do Sul a
partir da virada dos anos 50 para os 60 foi sua reprodução social. A combinação de dois
fatores tornara a agricultura colonial, nos moldes da tradição herdada dos antigos núcleos de
colonização europeia, praticamente inviável:
a) O tamanho diminuto dos lotes coloniais, resultado de partilhas por herança
pretéritas, impossibilitava a realização de novas partilhas dificultando assim o acesso à terra
para a maioria dos agricultores empobrecidos e/ou de seus filhos, forçando-os a migrar, a
tornar-se agregados ou peões de agricultores mais capitalizados;
b) A penetração do capitalismo na agricultura alterava gradativamente a relação do
agricultor com a terra, deixando-o cada vez mais dependente do capital e de um conjunto de
fatores produtivos cada vez mais complexos, incluindo as tecnologias mecanização e uso de
insumos químicos – que redundaram na necessidade de aumentar a quantidade de terra
agricultável e de reduzir a de braços. Ambos os fatores contribuíram para formar um ambiente
social propício a enfrentamentos e conflitos (TEDESCO; CARINI, 2007).
Deve ser salientado que meio século antes da crise da terra do norte gaúcho, o dilema
da falta de terra já era uma realidade nos antigos núcleos de colonização europeia no nordeste
gaúcho. O esgotamento das terras disponíveis para a ocupação/colonização no nordeste do
Rio Grande do Sul, região de assentamentos de colonos imigrantes, ocorreu em face da
impossibilidade de retalhamento da unidade produtiva familiar diante das tradicionais
partilhas por herança. Esse fator, aliado à falta de uma política agrária que contemplasse a
democratização do acesso à terra via Reforma Agrária e certa preferência histórica do colono
de descendência europeia por terras de matas, seguindo o raciocínio de Bernardes (1997),
determinou o avanço da colonização em direção às últimas áreas florestadas do Estado.
Assunto sobre o qual já se discorreu.
no começo dos anos de 1960, estabelecem-se alguns fronts de conflito por território
envolvendo camponeses sem-terra, denunciando, claramente, que a “crise da terra
camponesa” no norte do Rio Grande do Sul continuava sem solução. No interior das reservas
indígenas, notadamente na de Nonoai, toma formato o front dos posseiros com os índios. Fora
delas, o front dos primeiros agricultores sem-terra com os latifundiários. Naquele momento,
alguns eventos contribuem para o acirramento das tensões sociais em torno da questão da
117
terra na região em apreço: 1) ocorre uma significativa redução do fluxo migratório para oeste
de Santa Catarina e sudoeste do Paraná (GEHLEN, 1983), regiões que até então eram
consideradas válvulas de escape de possíveis pressões por terra, enquanto áreas de absorção
de “excedentes camponeses” produzidos em terras gaúchas; 2) surge a crise do trigo gerada
pelas importações desenfreadas e a custo baixo; 3) a precariedade do acervo técnico dos
camponeses colocava-os em situação de ligeira desvantagem em relação aos agricultores
capitalistas modernizados, sobretudo, em face das exigências modernizantes em torno da
cultura da soja; 4) a região tornara-se terra de passagem de migrantes que buscavam
territorializar-se nos estados de Santa Catarina e Paraná, fator que promovia intercâmbios,
contatos, organizações em torno da questão fundiária; 5) a oferta de trabalho urbano
permanecia reduzida (TEDESCO; CARINI, 2007).
Nesse contexto de crise da terra camponesa, ganha força a ideia da ocupação ou
colonização das reservas indígenas e florestais do Rio Grande do Sul, consideradas por quase
todas as correntes políticas locais da época (inclusive por certos segmentos que se diziam de
esquerda) como sendo “terras improdutivas” ou mal aproveitadas para fins econômicos e, por
isso, passíveis de serem utilizadas para fins de reforma agrária. Por outro lado, movimentos
sociais pela terra e por transformações sociais se multiplicavam país afora, alguns
influenciados pelas Ligas Camponesas surgidas ao longo dos anos de 1950, e davam o tom
dos discursos políticos, esboçando-se as primeiras iniciativas de organizações, reações e
lutas pela posse da terra e pela supressão das desigualdades sociais no campo.
Na região em análise, surgem algumas estratégias ou ações práticas no sentido de
buscar a (re)territorialização camponesa. De fato, entre 1960 e 1963, consolidou-se a
ocupação da Terra Indígena de Serrinha por colonos e camponeses caboclos e intensificou-se
a invasão da terra indígena de Nonoai. No mesmo período, o Movimento dos Agricultores
Sem Terra (MASTER)
31
promove a primeira invasão de terras na região, a partir da
organização do Acampamento de Capão da Cascavel, na Fazenda Sarandi, no município do
mesmo nome (TEDESCO; CARINI, 2007).
31
O MASTER foi um movimento organizado e liderado por políticos do Rio Grande do Sul ligados ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e ao Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Consolidou-se em 1960 por ocasião de
uma tentativa de retomada de uma área de 1.800 ha no interior do município de Encruzilhada do Sul que 50
anos estava em poder de 300 famílias de posseiros. Depois disso, organizou diversas ações de ocupação, sendo a
de Capão da Cascavel, na Fazenda Sarandi, a mais importante por sua repercussão política. Teve maior
visibilidade entre 1960 e 1963 e foi extinto com o Golpe Militar de 1964 (ECKERT, 1984; GEHLEN, 1983;
TEDESCO e CARINI, 2007).
118
A territorialização de agricultores sem-terra nas terras indígenas forçava a
desterritorialização indígena. Em 1967, um grupo de jesuítas realizou um levantamento
socioeconômico e cultural em três toldos do Rio Grande do Sul e constatou que no toldo de
Nonoai encontravam-se mais de 500 famílias de intrusos (CONSELHO INDIGENISTA
MISSIONÁRIO DO SUL CIMI-SUL, 1978). Em meados de 1969, a situação tinha se
agravado a tal ponto que, após visita pastoral realizada ao toldo, o padre da Paróquia de
Frederico Westphalen fez o seguinte desabafo ao bispo diocesano da mesma cidade: “Os
índios vêm fugindo de sua área pressionados pelos invasores. Para se ver a extensão destas
invasões dos últimos meses, basta dizer que num dia entraram em torno de 60 famílias, e
que os 1000 e poucos índios de três anos só restam ainda uns 700 na área, tendo os
restantes fugido” (SCHWADE
apud CIMI-SUL, 1978, p. 21).
que se registrar o fato de que as intrusões nas terras indígenas do norte gaúcho não
eram promovidas apenas por agricultores sem-terra. Capitalistas arrendatários e madeireiros
também faziam investidas sobre os territórios indígenas, quase sempre, sob as ‘vistas grossas’
das autoridades ou órgãos tutelares dos índios. Aqui que se considerar, no entanto, o
caráter diferencial das intrusões. Enquanto a invasão das reservas por madeireiros e
arrendatários capitalistas objetivava o lucro (ou a territorialização do capital), as investidas
dos agricultores sem-terra representavam estratégias de territorialização das famílias, de luta
pelo reconhecimento do direito de ter uma nesga de chão para sua reprodução social.
A abertura de pequenos tios, com roçados de milho, feijão, abóboras, etc., destinava-
se principalmente à subsistência da família do agricultor, geralmente formada por uma prole
numerosa. Diferentemente deste, o madeireiro e o arrendatário eram absenteístas e viam na
terra e na mata uma oportunidade a mais de lucro, por isso geralmente os conflitos davam-se
entre o indígena e o posseiro pobre, em face do maior tempo de contato entre ambos, com a
permanência constante do colono sitiante no interior da reserva, disputando o mesmo
território: espaço agrícola, espaço comunitário, floresta, rios, caça, fontes de água, etc.
3.5 TRAJETÓRIAS DOS INTRUSOS EM SERRINHA
Como foi referido, a TIS, com 11.950 ha, foi demarcada em 1911 e intrusada ao
longo dos anos de 1950 e finalmente, colonizada no começo dos anos de 1960. No final dos
anos de 1990, ela foi retomada pelos indígenas, produzindo o desalojamento dos agricultores.
Esses agricultores desalojados constituem a base empírica desta tese. Nesta última subseção,
119
deste terceiro capítulo, busca-se analisar as trajetórias históricas das famílias dos agricultores
pesquisados, no intuito de conhecer suas origens socioétnicas.
O quadro 03 mostra a origem das famílias intrusadas. Das 52 famílias estudadas, 39
(75%) informaram que elas ou seus ascendentes (pais ou avós) haviam entrado na TIS durante
a década de 1950 e começo de 1960, sendo por isso consideradas intrusas ou descendentes de
intrusos, pois naquela época ainda havia índios na TIS e não havia se consumado oficialmente
a extinção da mesma pelo Governo do Rio Grande do Sul, o que ocorreu em meados da
década de 1960. As 13 famílias restantes entraram na área nos anos de 1970 e de 1980,
adquirindo de boa propriedades de antigos invasores, legitimadas ou escrituradas, por
isso não são consideradas aqui intrusas.
8Quadro 3 - Origens, etnias e períodos de intrusão dos chefes das UPF estudados ou de seus
ascendentes
Município ou
microrregião de origem
do(a) chefe do domicílio
ou de seus ascendentes
Etnias informadas
Nº de informantes
Períodos de
intrusão/Nº
informantes
Grande Sarandi (1)
Italiana
Cabocla
Alemã
14
Década de
1950/09
Década de
1960/05
Grande Erechim (2) Italiana
Cabocla
Polonesa
Ucraniana
Espanhola
19
Década de
1950/18
Década de
1960/01
Soledade Italiana
Alemã
03 Década de
1950/03
Palmeira das Missões Italiana 01 Década de
1960/01
Victor Greff Cabocla 01 Década de
1950/01
Marau Cabocla 01 Década de
1950/01
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
1 Corresponde ao território do Município de Sarandi originalmente. Atualmente, compreende o território de 18
municípios do Médio Uruguai. O município de Sarandi originou-se da Colônia Sarandi, fundada em 1918.
2 Território do antigo município de Erechim, cuja colonização teve início em 1902, com implantação de várias
colônias multiétnicas na região. Originariamente, o município de Erechim denominava-se José Bonifácio. Em 1940,
além da sede municipal, constituíam o território de José Bonifácio os seguintes distritos: Barro, Carlos Gomes,
Cotegipe, Marcelino Ramos, Paulo Bento, Princesa Isabel, Quatro Irmãos, Rio Novo, São Valentin, Severiano de
Almeida e Viadutos. A maioria das sedes distritais originara-se de
colônias (GOVERNO DO RIO GRANDE DO
SUL – FEE, 1981, p. 139).
120
Percebe-se que a maioria das famílias provem de duas regiões tributárias: a “Grande
Sarandi”, cujas colônias foram formadas a partir de 1918, região onde se insere a TIS, e a
“Grande Erechim”, onde a colonização iniciou a partir de 1902. Embora sejam regiões cuja
colonização deu-se quase na mesma época, existem diferenças que remetem às suas origens
coloniais. O primeiro aspecto diz respeito à questão étnica. Enquanto na região de Sarandi
predomina um substrato étnico mais homogêneo, com a preponderância de descendentes de
italianos, na grande Erechim, encontra-se uma população mais heterogênea em termos
étnicos, ainda que o grupo de origem italiana seja também majoritário. O segundo aspecto diz
respeito às origens territoriais dos agricultores. Na região de Erechim, muitos colonos vieram
diretamente da Europa, enquanto na região de Sarandi, quase todos provieram de migrações
internas, das colônias velhas, pertencentes à segunda ou terceira geração de estrangeiros.
Algumas considerações serão feitas a seguir sobre a colonização da Grande Erechim,
haja vista que mais de um terço dos agricultores desterritorializados da TIS pesquisados,
conforme explicitado no quadro 3, migraram dessa região na década de 1950, alojando-se
nessa terra indígena.
3.5.1 A (des)territorialização dos colonos da Grande Erechim
Sobre a colonização da Grande Erechim, vários autores têm realizado pesquisas
específicas sobre as diversas colônias, trabalhos estes que redundaram em publicações que
dão ênfase a temáticas variadas (GRITTI, 1997, 2008; WENCZENOVICZ, 2002; WOLFF,
2005, 2008).
Wolff (2008) discute o papel da ferrovia que cruzava pelo norte Gaúcho, ligando o Rio
Grande do Sul a São Paulo, para a formação da Colônia Barro atual município de Gaurama,
enfocando a complexidade sociocultural resultante da presença da ferrovia e de uma mescla
de componentes étnicos. Wenczenovicz (2002) se atém aos aspectos econômicos, políticos e
sociais da imigração polonesa para o Rio Grande do Sul em geral e para a colônia Treze de
Maio (atual cidade de Áurea) em particular. Por sua vez, Gritti (1997 e 2008), discute a
colonização judaica e polonesa na região da Grande Erechim, destacando alguns aspectos
diferenciadores entre ambas e a questão das dificuldades enfrentadas pelos imigrantes
poloneses para sua territorialização em solo sul-rio-grandense.
Como é possível reter pelas abordagens das autoras, a colonização da Grande Erechim
contou com a presença de uma multifacetada gama de grupos étnicos. Seguindo os trilhos da
121
ferrovia São Paulo-Rio Grande, aportam na Colônia Barro (atual Gaurama) em maior número
italianos, alemães, poloneses e, em menor número, russos, ucranianos, lituanos, prussianos,
espanhóis, holandeses, portugueses e austríacos (WOLFF, 2008). Além desses grupos, Gritti
(2008) destaca a presença de judeus em solo do norte gaúcho, mais precisamente na Colônia
Agrícola de Quatro Irmãos, introduzidos por uma empresa colonizadora entre 1904 e 1930. A
mesma autora ressalta que, nos registros de entrada de imigrantes na região polarizada por
Erechim, correspondentes aos anos de 1911 a 1914, encontram-se imigrantes de
nacionalidades alemã, austríaca, polaca, russa, italiana, portuguesa, sueca, holandesa e de dois
japoneses (GRITTI, 2008).
A construção do último trecho da ferrovia São Paulo Rio Grande do Sul, no começo
do século XX, cortando a região de matas do norte do Estado a partir de Passo Fundo em
direção ao Rio Uruguai, apresentava-se como uma importante estratégia do Estado Positivista
no sentido de integrar e desenvolver a região coberta por matas. A construção da ferrovia,
facilitaria a colonização, possibilitando alcançar o mais inóspito recanto mata adentro.
Wenczenovicz (2002) lembra que a demarcação de terras em Erechim foi iniciada em 1904
graças ao estudo do traçado por onde deveria passar a ferrovia e que esta foi a espinha dorsal
do planejamento da colônia Erechim. Wolff aponta que a ferrovia “no Rio Grande do Sul,
conectando-se com Porto Alegre, através de Santa Maria, inseriu o norte do estado na rota
obrigatória do comércio, fator determinante na propulsão do processo de ocupação e
colonização bem como dos negócios ao longo do curso da ferrovia” (2008, p. 14).
O campesinato que se forma na Grande Erechim a partir da chegada desses grupos
étnicos apresenta características diferenciadas em relação ao das colônias velhas.
Diferentemente dessas, em que as comunidades foram formadas por núcleos coloniais
etnicamente e socioculturalmente homogêneos, nas colônias da Grande Erechim,
configuraram-se formatos socioétnicos heterogêneos. Em primeiro lugar, obviamente, que
se considerar o contexto histórico diferenciado em que se deu a colonização e as origens
diversificadas dos colonizadores. Além de migrantes-camponeses oriundos das terras velhas,
imigrantes europeus de variadas nacionalidades e profissões aportavam na região. Em relação
às profissões ou ocupações dos colonos, Wolff (2008, p. 21) informa que “boa parte dos
alemães que chegaram à colônia Barro era oriunda de pequenas cidades da Alemanha, onde
trabalhavam nas minas de carvão ou na metalurgia; muitos eram ferramenteiros, o que lhes
facilitou a improvisação de suas próprias ferramentas, quando, forçosamente, adaptaram-se
aos serviços na agricultura”.
122
Assim, os primeiros núcleos coloniais da Grande Erechim apresentam em sua gênese
características de certa pluriatividade. Às atividades agropecuárias visando à produção para a
subsistência e comercialização de excedentes, acrescentavam-se a mercantilização da
madeira, a fabricação e comercialização da banha, os moinhos coloniais e a produção de
ferramentas e outros artigos artesanais. Ressalta-se que o comércio foi dinamizado pela
abertura da ferrovia.
No entanto, a situação socioeconômica dos agricultores em geral desde os primórdios
da colonização denunciava a precariedade das condições de sua territorialização. Dentre os
grupos estrangeiros aportados na região da Grande Erechim, os poloneses são referidos pelas
autoras, citadas nesta subseção, como sendo os que chegaram e se territorializaram em solo
gaúcho em piores condições. Sobre o assunto, duas autoras fazem coro ao ressaltar o fato de
que após abandonarem seu país de origem por absoluta falta de condições para sua
reprodução social, os imigrantes poloneses não receberam em solo brasileiro a atenção
merecida, sendo jogados à própria sorte em terras de pouco valor para a agricultura e
insuficientes para abrigar todos. Além do mais, foram discriminados e estigmatizados pelas
autoridades governamentais do Rio Grande do Sul que os consideravam inferiores em
comparação com outros grupos, como italianos e alemães, por exemplo. (WENCZENOVICZ,
2002; GRITTI, 2008). O racismo acabou atingindo também esse grupo que acabou sendo
estigmatizado e menosprezado, produzindo-se um senso comum na opinião pública em geral
que passou a colocá-lo num patamar de igualdade em relação ao caboclo, ao índio e ao negro
(WOLFF, 2008).
A exemplo da Grande Sarandi, o processo de fracionamento das terras dos colonos é
percebido também na Grande Erechim no decorrer da década de 1940, denunciando o início
da “crise da terra camponesa”. Como foi sugerido, este foi um momento particularmente
importante sob o ponto de vista das transformações territoriais no meio rural do norte gaúcho.
No Planalto Médio e em grande parte do Médio e Alto Uruguai ocorre a emergência dos
capitalistas da agricultura. São comerciantes, industrialistas, profissionais liberais e
funcionários públicos que se tornam proprietários fundiários (PEBAYLE apud RÜCKERT,
2003). Ressalta-se que boa parte desses capitalistas eram filhos de colonos capitalizados.
No contexto da agricultura colonial, no entanto, enquanto alguns ascendiam
socialmente capitalizando-se e tornando-se proprietários de glebas maiores e lançando-se à
triticultura, outros tendiam à desterritorialização rural, tornando-se assalariados rurais,
agregados ou sem-terra. Isto é, tornavam-se desterritorializados reais ou virtuais nos seus
próprios territórios. Em um primeiro momento, apesar do excessivo parcelamento fundiário,
123
resultante das partilhas por herança, o colono demonstrou sua capacidade de resistência à
desterritorialização, quando buscou se ajustar ou se adaptar à lógica do capitalismo em
emergência. O colono (sobretudo o camponês-caboclo) tentou recriar seu território a partir das
condições impostas pelo capital comercial e industrial. Rückert (2003, p. 48) sugere que essa
foi uma das contradições do modo capitalista de produção na região do planalto, isto é, “a
reconstrução do território camponês”.
Voltando ao caso da Grande Erechim, percebe-se pela Tabela 4, a seguir, que também
nessa microrregião ocorreu um intenso processo de minifundização ao longo da década de
1940.
Tabela 4 - Aumento do número de estabelecimentos agropecuários e da área ocupada na
Grande Erechim ao longo da década de 1940
1940 1950
de estabelecimentos
agropecuários
7.598 13.080
Área ocupada (ha) 248.925 343.794
FONTE: Governo do RS – FEE, 1981.
Embora de uma forma menos intensa do que no caso da região da Grande Sarandi, a
fragmentação territorial ou minifundização ocorreu também na Grande Erechim. O aumento
de 72% no número de estabelecimentos agropecuários, inferior ao aumento da área ocupada
que foi de 38%, sinaliza que as propriedades coloniais, que eram pequenas, foram
fragmentadas e reduzidas ainda mais. Além disso, deve-se ressaltar a precariedade das
condições das terras dessa região para cultivos anuais. Tratando das condições materiais de
reprodução social encontradas na colônia polonesa de Erechim, Wenczenovicz (2002)
apresenta dados interessantes sobre as condições das terras onde foram assentados milhares de
poloneses pobres. Os dados foram extraídos de documentos encontrados na Prefeitura
Municipal de Erechim e são emblemáticos para uma análise sociológica sobre a situação dos
colonos poloneses da Grande Erechim no começo do século XX. A maior parte dos lotes
registrados são classificados como lotes de terra ruim e muito ruim, terra de segunda e terceira
classe. Os melhores são registrados como lotes de terra regular. Em vários registros aparecem
também ressalvas do tipo: terra com muita pedra e colono pobre.
124
A fragmentação excessiva e as condições da terra forçavam as famílias pobres a
migrarem em busca de outras terras, em novas fronteiras. As palavras de um entrevistado de
origem polonesa dão o indicador do drama:
O meu pai entrou na reserva indígena em abril de 1957. Meus dois irmãos mais
novos, que eram piás na época, vieram um ano antes pra garantir a posse [...] vieram
muitas pessoas da região de Erechim, viu. Porque um ia avisando o outro, sabe.
Achavam que era muito futuro entrar nesta reserva, pra garantir uma terra, porque a
terra era escassa em Erechim. (João, Linha Pipiri Três Palmeiras, entrevistado
pelo autor em 07 de janeiro de 2010).
Procurou-se neste capítulo fazer uma retrospectiva histórica sobre o processo de
desreterritorialização ocorrido no Rio Grande do Sul, particularmente, nas regiões norte e
noroeste, ao longo dos séculos XIX e XX. O propósito foi mostrar como, em momentos
distintos na linha do tempo histórico, diferentes fatores induziram a desterritorialização de
famílias rurais pobres. Algumas vezes forçadas a migrar compulsoriamente, em face dos
projetos governamentais, em outras induzidas a migrar pela falta de condições para sua
reprodução social, esses movimentos sempre promoveram situações de tensão e conflitos nas
linhas de fronteira. As reterritorializaçoes em condições diferenciadas entre os diversos
grupos além de apontar para o quadro de graves desigualdades sociais rurais, denunciam
racionalidades territorializadoras variadas. A partir do próximo capítulo, adentra-se na análise
especificamente dos desterritorializados da TIS, apresentando-se, inicialmente, algumas
ferramentas metodológicas para facilitar a análise dos dados e das falas dos atores
entrevistados no decorrer do trabalho de campo.
125
4 A CAMPESINIDADE E A MODERNIDADE NAS ESTRATÉGIAS DE
RETERRITORIALIZAÇÃO DOS DESALOJADOS DE SERRINHA
Conforme foi discutido no segundo capítulo, os desreterritorializados de Serrinha
constituem uma gama de experiências individuais, que resultaram de trajetórias diferenciadas
e situações sociais variadas. Neste capítulo, objetiva-se apresentar as principais características
das famílias pesquisadas e as mudanças ocorridas nas UPFs, tanto em termos econômicos
quanto socioculturais, na passagem do velho para o novo território. Busca-se compreender as
racionalidades dos reterritorializados a partir de indicadores ou parâmetros econômicos,
sociais e culturais, encontrados nas diferentes unidades de produção familiar pesquisadas.
Dois aspectos foram considerados centrais para a análise das racionalidades e
representações sociais indutoras das estratégias de reterritorialização dos agricultores
pesquisados: a campesinidade e a modernidade capitalista. Como foi referido na introdução
desta tese, ambos são concebidos como essenciais para a permanência de uma família de
pequenos agricultores no meio rural e decisivos para sua reprodução social, ainda que num
contexto dominado pela agricultura de escala.
De posse dos dados obtidos no trabalho de campo, decidiu-se inicialmente desenvolver
uma proposta metodológica que permitisse dimensionar o grau de variabilidade da
racionalidade camponesa e da racionalidade moderna capitalista, através da construção de
dois índices: a) o Índice de Campesinidade da Unidade Produtiva Familiar (ICUPF) e b) o
Índice de Modernidade da Unidade Produtiva Familiar (IMUPF). Enquanto o índice de
campesinidade expressa uma proximidade ou distanciamento com as formas sociais rurais
típicas das colônias de descendência europeia, referenciando modos de trabalhar e viver que
foram decisivos para a reprodução social do colono imigrante e das gerações vindouras, o
índice de modernidade aponta para o grau de inserção ou de integração-subordinação das
UPFs aos acervos tecnológicos e aos mercados modernos. Entende-se que essa metodologia
permite dar mais consistência objetiva às informações coletadas no trabalho de campo,
possibilitando fazer comparações, quantificações, diferenciações e projeções. Essa proposta
metodológica foi inspirada em trabalhos realizados por vários autores (CONTERATO, 2008;
KAGEYAMA, 2008; TOLEDO, 2002), embora se reconheça que esses estudos tiveram outro
foco de análise.
126
4.1 PROPOSTA METODOLÓGICA PARA O CÁLCULO DO ICUPF E DO
IMUPF
Para o cálculo do ICUPF e do IMUPF, procurou-se estabelecer alguns indicadores e
para cada um deles, algumas variáveis, de acordo com o que se considerou determinante,
tanto para a condição expressiva do grau de campesinidade ou condição camponesa (PLOEG,
2008), quanto para a condição de agricultor capitalista modernizado, segundo os fundamentos
teóricos considerados (CONTERATO, 2008; GEHLEN, 2004; GRAZIANO DA SILVA,
2003; PLOEG, 2008; SABOURIN, 2009; SCHNEIDER, 1999; TEDESCO, 1999;
WANDERLEI, 2001). Obviamente, outros indicadores e variáveis poderiam ser levantados.
Porém, para o que foi proposto neste estudo, foram considerados suficientes aqueles aqui
elencados. Como sugere Conterato (2008), a definição das variáveis por parte do pesquisador
se dá a partir de suas convicções teóricas.
Ressalta-se que neste estudo não foram usados dados estatísticos extraídos de fontes
secundárias (tais como o IBGE, FEE-RS e outras), dados relativos ao contexto social rural
regional ou que expressam o desenvolvimento territorial rural, estilos de agricultura ou outros
enfoques consagrados. Julgou-se esse procedimento dispensável, na medida em que neste
estudo não é central o debate sobre desenvolvimento territorial, seja ele rural ou geral, mas as
estratégias de reterritorialização dos atores, individualmente e/ou coletivamente.
A metodologia para o lculo do ICUPF e do IMUPF, baseada na obra de Conterato
(2008), contempla a definição de diferentes indicadores e dentro de cada indicador diferentes
variáveis. Cada variável resulta em dois índices, referentes a dois momentos: antes da
desterritorialização e após a reterritorialização. Finalmente, os diversos índices das variáveis
constituirão o índice do indicador e o índice geral de cada família pesquisada.
4.1.1 Indicadores da campesinidade
Para o cálculo do índice de campesinidade de cada uma das 52 unidades familiares
pesquisadas, foram definidos cinco indicadores: 1) diversificação do sistema econômico; 2)
trabalho e família; 3) produção para o autoconsumo; 4) reciprocidade; 5) crenças camponesas
(cosmovisões), e um total de 13 variáveis. No indicador diversificação do sistema econômico,
consideraram-se as variáveis que indicassem o número de fontes de renda, tanto as globais,
que apontam para a possibilidade de pluriatividade, quanto as específicas da agropecuária,
que sinalizam o grau de diversificação agropecuária da unidade. No indicador trabalho e
127
família, buscou-se observar o grau de variabilidade do número de trabalhadores na família,
através do cálculo das Unidades de Trabalho Homem (UTH)
32
e seu envolvimento com as
atividades agrícolas, através da observação: área de terra da propriedade/UTH. O indicador
produção para o autoconsumo sinaliza para uma das principais características da agricultura
camponesa que é a produção para a subsistência. A análise da diversificação da produção para
autoconsumo permite que se observe o maior ou menor envolvimento da família com sua
segurança alimentar e autonomia, o que, historicamente, tem caracterizado o sistema de
produção camponês. O indicador reciprocidade aponta para a rede de relações sociais
existentes antes da desterritorialização, isto é, na comunidade de origem, e na nova
comunidade, estabelecidas nos círculos de vizinhança e parentesco. Por fim, julgou-se
importante inserir para efeito de cálculo do índice de campesinidade das famílias pesquisadas
o indicador crenças camponesas, contemplando duas variáveis: crença em benzeduras e na
influência da Lua nas atividades agrícolas ou agropecuárias. Essas são algumas crenças que,
segundo a literatura pesquisada, sobretudo no campo da antropologia, fazem parte do
imaginário de pessoas que vivem no campo, desde recuados tempos.
No quadro 4, busca-se mostrar de forma sintética as variáveis em cada indicador e sua
importância na definição do índice por indicador e do índice geral.
32
O cálculo das UTHs da Unidade de Produção Familiar baseou-se na metodologia proposta por LIMA et al.
(2005), com adaptações do autor. Assim, considerou-se uma unidade de trabalho homem a força de trabalho de
um homem adulto da família em 300 jornadas anuais, computando-se apenas as pessoas da família (excluindo-
se, portanto, o trabalho de pessoas contratadas, pois essa prática não foi declarada por nenhuma das famílias
entrevistadas). Partindo-se das informações colhidas através do questionário, estabeleceu-se que:
A) 1 UTH = Cada pessoa (ambos os sexos) de 14 a 64 anos que trabalha em tempo integral na UPF (inclusive
em trabalho doméstico).
B) 0,7 UTH = Cada pessoa com mais de 14 anos que trabalha na UPF e estuda e/ou cada pessoa que trabalha na
propriedade em tempo parcial.
C) 0,5 UTH = Cada pessoa com mais de 64 anos que se ocupa de alguma atividade na UPF.
128
9Quadro 4 - Indicadores e variáveis do Índice de Campesinidade
INDI-
CADOR
ES
VARIÁVEIS
Valor
Mínimo
Valor
Máximo
Número de fontes de receita globais da UPF (+) 0 *
Número de fontes de receita agropecuárias e
agroindustriais da UPF (+)
0 *
Diversificação
do sistema
econômico
Índice médio do indicador
- -
Nº de UTHf da UP (+) 0 *
Terra (ha)/UTHf (-)
0 *
Trabalho e
família
Índice médio do indicador
- -
Nº de produtos da horticultura e “pequena lavoura”
(p/subsistência) (+) – Produtos considerados: feijão,
arroz, batatinha, batata doce e mandioca.
0 5
Nº de produtos da pecuária de subsistência (+) –
Produtos considerados: galinhas, ovos, leite, suínos.
0 4
Nº produtos da agroindústria familiar de subsistência (+)
– Produtos considerados: queijo, banha, salame, açúcar
mascavo e geleias (ou schmier).
0 5
Produção para o
autoconsumo
Índice médio do indicador
- -
Costuma trocar serviços com vizinhos (+):
Nunca= 0
Esporadicamente = 0,75
Sempre = 1
0 1
Costuma trocar carnes com vizinhos (+):
Nunca = 0
Esporadicamente = 0,75
Sempre = 1
0 1
Participações de membros da família na comunidade
local – Participações consideradas: Igreja, bocha,
futebol, clube de mães, grupos de família.
0 5
Relações sociais na Comunidade -
Reciprocidade
Índice médio do indicador
- -
Existem pessoas da família que acreditam em
benzeduras:
Ninguém = 0; Algum = 0,75; Todos = 1
0 1
Costuma observar as fases da lua para práticas agrícolas
ou agropecuárias:
Nunca = 0; Às vezes = 0,75; Sempre = 1
0 1
Crenças
camponesas
Índice médio do indicador
- -
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
LEGENDA:
* Valor máximo encontrado
129
4.1.2 Indicadores da modernidade capitalista
Para a definição do índice de modernidade capitalista das famílias pesquisadas, foram
considerados quatro indicadores: 1) uso da terra; 2) acervo tecnológico; 3) dependência
financeira e 4) escolaridade.
Em relação ao uso da terra, novamente foi considerada a variável da relação
terra/UTH, como no caso do cálculo do índice de campesinidade, porém, aqui a preocupação
foi averiguar a capacidade de exploração de uma área agrícola por UTH em cada unidade
familiar, o que mostra o grau de tecnificação-mecanização de cada exploração. Ainda neste
indicador, a variável percentual de terra cultivada aponta para o grau de intensificação do uso
da terra, característica, também, de explorações tipicamente modernas.
O indicador acervo tecnológico abarca um rol maior de variáveis, permitindo
averiguar o grau de mecanização, insumização e automatização da UPF. Considera-se aqui
tanto a utilização ou não de acervo tecnológico, quanto a produtividade obtida na lavoura de
grãos e na produção leiteira, consideradas as atividades comerciais de maior importância
econômica das UPFs.
Em relação à dependência financeira, considera-se ser esta uma das principais
características da agricultura moderna-capitalista, altamente demandadora de investimentos,
tanto para a produção (custeios), quanto para a infraestrutura da propriedade (investimentos).
Um atrelamento mais ou menos intenso do agricultor ao sistema financeiro indica sua adesão
maior ou menor aos pacotes tecnológicos e maior ou menor uso da racionalidade instrumental
produtivista.
Por fim, quanto ao indicador escolaridade, deve-se salientar que ele passou a ser
considerado imprescindível a partir do avanço da modernização, que lança a cada dia novos
desafios ao agricultor, tanto no que tange à questão da produção, quanto à gestão da UP.
O quadro 5 mostra a disposição de cada indicador, com suas respectivas variáveis.
130
10Quadro 5 - Indicadores e variáveis do Índice de Modernidade
INDICA-
DORES
VARIÁVEIS
Valor
Minimo
Valor
Máximo
Relação terra (nº há)/UTH (+) 0 *
Percentual de lavoura mecanizada (+) 0 100
Percentual de terra cultivada (+) 0 100
1- USO DA
TERRA
Índice médio verificado neste indicador
-
-
Mecanização da lavoura (+):
- Não utiliza = 0
- Utiliza em menos de 50% da Prop.= 0,5
- Utiliza em mais de 50% e menos de 100% = 0,7
- Utiliza em 100% da prop. = 1
0 1
Uso de insumos (+) – Tipos de insumos
considerados: sementes selecionadas, adubos
químicos (NPK), Adub.quím. (ureia), herbicidas,
inseticidas, fungicidas.
0 6
Relação número de vacas/UTH (+) 0 *
Litros de leite/vaca/dia (+) 0 *
Relação sacos de grãos/UTH (+) 0 *
2- ACERVO TECNOLÓGICO
Índice médio verificado neste indicador
- -
Utilização de empréstimos (+)
a) Não utiliza = 0
b) Só para custeio = 0,5
c) Só para investimentos = 0,75
d) Para custeio e investimentos = 1
0 1
3-DEPENDÊN-
CIA
FINANCEIRA
Índice verificado neste indicador
- -
Número médio de anos de estudo das pessoas
com 25 anos ou mais que vivem na UPF (+).
- Analfabeto = 0
- Primário incompleto = 3
- Primário completo = 4
- Fundamental incompleto = 5
- Fundamental completo = 8
- Médio incompleto = 9
- Médio Completo = 11
- Superior incompleto = 13
- Superior completo = 15
0
11**
4- ESCOLARIDADE
Índice médio verificado neste indicador
- -
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
LEGENDA:
* Valor máximo encontrado.
** Número de anos de estudo considerado ideal segundo o IBGE (KAGEYAMA, 2008).
131
Definidos os indicadores e variáveis, passa-se à construção dos índices. Salienta-se
que em alguns indicadores os índices já foram definidos ou determinados, a partir de uma
escala de valores que resultou da escolha do autor com base no rol de respostas obtidas nos
questionários. Este é o caso, por exemplo, do indicador três, em que apareceram quatro tipos
de situações. Ademais, a variável deve vir acompanhada do tipo de relação que tem positiva
ou negativa –, dependendo de sua importância para a campesinidade ou modernidade. Há uma
relação positiva se o aumento da variável contribui para reforçar as características de
campesinidade ou de modernidade. Ao contrário, uma relação negativa se o aumento da
variável representar um distanciamento do padrão típico. Por isso, cada variável deve
apresentar o sinal (+ ou -) que lhe foi atribuído (CONTERATO, 2008). Na definição do índice
de campesinidade apenas uma variável apresenta relação negativa (quadro 1), enquanto na
definição do índice de modernidade nenhuma variável tem relação negativa.
4.1.3 Metodologia de cálculo do Índice de Campesinidade e de Modernidade
Para o cálculo dos índices de campesinidade e de modernidade, utilizaram-se as
fórmulas, conforme segue:
- se a relação da variável for favorável à racionalidade camponesa ou à modernidade,
então:
mM
mx
I
=
- se a relação da variável for desfavorável à racionalidade camponesa ou à modernidade,
então:
mM
xM
I
=
I = Índice de campesinidade racionalidade camponesa ou de modernidade da UPF
calculado, referente a cada variável
x = Valor observado de cada variável
m = Valor mínimo considerado
M = Valor máximo considerado
132
4.2 MUDANÇAS NOS ÍNDICES GERAIS DE CAMPESINIDADE E
MODERNIDADE DOS RETERRITORIALIZADOS
Apresentou-se nos tópicos anteriores uma ntese sobre uma metodologia construída
com o propósito de se obter o perfil das famílias desalojadas pesquisadas, sob os pontos de
vista econômico, social e cultural. A partir deste momento, passa-se à demonstração dos
índices de campesinidade e modernidade, de acordo com os diferentes indicadores, com o
propósito de, juntamente com a análise das entrevistas, encontrar nexos explicativos
relativamente às estratégias de reterritorialização empregadas pelos sujeitos da pesquisa.
Deve-se ressaltar de antemão que houve uma redução geral nos índices de campesinidade da
maioria das famílias pesquisadas, na comparação entre a situação existente Antes da
Desterritorialização (AD) com a encontrada Após Reterritorialização (AR). Inversamente,
houve aumento nos índices de modernidade, sinalizando uma tendência para a adesão dos
entrevistados à agricultura de escala e/ou à profissionalização.
4.2.1 Índices gerais de campesinidade
A Tabela 5, a seguir, mostra os índices de campesinidade, de acordo com cada um dos
cinco indicadores. Percebe-se que certa desarmonia entre os indicadores, pois os dois
primeiros, apresentando índices significativamente mais baixos, destoam dos demais, os quais
revelam índices mais elevados e mais harmônicos entre si.
Tabela 5 - Índices de Campesinidade por indicador
INDICADORES
AD
(1999-2002)
AR
(2009)
Diversificação do sistema econômico
0,490 0,477
Trabalho e família
0,622
0,549
Produção para o autoconsumo
0,913 0,831
Reciprocidade
0,902
0,708
Crenças camponesas
0,824 0,806
Média aritmética 0,749 0,715
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
133
Relativamente aos dois indicadores que apresentaram índices gerais significativamente
mais baixos que os demais, algumas considerações devem ser feitas aqui, ainda que este
assunto volte a ser enfocado e de forma mais detida ao longo do próximo capítulo. Em relação
à diversificação do sistema econômico, os dados confirmam duas características da
agricultura familiar do norte-noroeste do Rio Grande do Sul, discutidas ou analisadas em
vários trabalhos, como o de Conterato (2008), quais sejam: a tradição da monoatividade e a
pouca diversificação da produção agropecuária. O que se acrescenta nesta pesquisa é que isso
está tendendo ao agravamento. Obviamente, considerando os índices no cômputo geral ou no
conjunto do grupo pesquisado, parece ter havido pouca variação em 10 anos, que
compreendem o período pesquisado (fins dos anos de 1990 a fins dos anos 2000). Entretanto,
avaliando-se de forma individualizada, percebem-se diferenças gritantes entre as unidades
pesquisadas, consoante as tipologias de desreterritorializados, das quais se tratará no quarto
capítulo.
Na Tabela 6, na sequência, demonstra-se a evolução das fontes de renda das famílias
pesquisadas, considerando-se todo o conjunto. Entretanto, o número de alternativas de renda
agropecuária teve expressiva redução, como será mostrado adiante.
Tabela 6 - Número médio de fontes de receita dos agricultores pesquisados
FONTES
AD
(1999 – 2002)
AR
(Ano agrícola
2008/2009)
Fontes globais (menos
aposentadorias)/ Família
1,4
1,6
Aposentadorias/Família
0,5
0,9
Nº Total de fontes/Família 1,9 2,5
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
As unidades ou famílias tinham em média, com base no último ano agrícola antes do
desalojamento, um número menor de fontes de receitas globais e passaram a contar com uma
média maior de fontes no ano agrícola 2008/2009, conforme Tabela 6. Esse aumento parece
expressar uma condição favorável à reprodução social dessas famílias. No entanto, ele o
representa uma tendência à pluriatividade, condição considerada positiva para a agricultura
familiar contemporânea, consoante a estudos de vários autores (PLOEG, 2008; SCHNEIDER,
1999), uma vez que o acréscimo das fontes de renda se devem aos trabalhos esporádicos ou
sazonais como as prestações de serviços, trabalhos como diaristas e outros que
134
representam muito mais estratégias de luta pela sobrevivência do que garantias de ganhos
efetivos e melhoria das condições de existência. Observa-se também o aumento considerável
na média de aposentadorias por família, refletindo o envelhecimento da população rural
pesquisada.
O mais importante a reter aqui é que no cômputo geral das atividades agropecuárias o
número de opções de renda reduziu-se, com uma forte preferência por alguns produtos,
sobretudo, soja e leite. Antes da desterritorialização, cada unidade familiar produzia uma
média de 3,9 produtos agropecuários comercializáveis. Essa média caiu para 3,1, após a
reterritorialização. A migração compulsória colocou o agricultor frente a uma situação em que
teve de fazer escolhas em termos produtivos. Nessas escolhas, pesou o fator mercado e a
rentabilidade, assim como o fator mão de obra. O abandono de algumas atividades como a
suinocultura e a produção de feijão, por exemplo, altamente demandadoras de mão de obra,
foi determinado tanto pela falta de mercado e incentivos em termos de preços, quanto pela
diminuição no número médio UTHs por famílias.
O principal produto da agricultura comercial a sofrer forte redução na área plantada foi
o feijão, que antes era cultivado por 27 famílias (52% das famílias entrevistadas) e passou a
sê-lo em 11 famílias (21% das famílias entrevistadas). A Tabela 7 explicita a variação na
produção média por UPF dos quatro principais produtos da agropecuária comercial: soja,
milho, trigo, feijão e leite. Salienta-se mais uma vez que variações entre as UPFs
pesquisadas por tipologia as quais serão analisadas no próximo capítulo.
Tabela 7 - Produção média por UPF dos principais produtos da agropecuária comercial e sua
variação
Produtos
AD
Último ano agrícola
AR
Ano agrícola
2008/2009
Variação percentual
Soja (scs/ano) 235 554 + 135%
Milho (scs/ano) 210 229 + 9%
Trigo (scs/ano) 129 124 - 3,9%
Feijão (scs/ano) 19 11 - 42%
Leite (lts/mês) 1223 2820 + 131%
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
Em relação à pecuária comercial, o suíno aparecia como uma fonte de renda em cerca
de 30% das propriedades, antes da desterritorialização. Apenas 1 dos 52 entrevistados
declarou estar produzindo suínos, com vistas à comercialização, em 2009, porém em pequena
escala.
135
O indicador trabalho e família também apresentou índices significativamente baixos,
tanto no primeiro momento quanto no segundo, com sensível queda, após reterritorialização
(Vide Tabela 5). A variável que mais influenciou para a queda do índice neste indicador foi a
variável UTH. Uma análise mais aprofundada em relação a esse e outros indicadores será feita
no próximo capítulo, porém de antemão sublinha-se que houve grande variação nesse quesito
entre as famílias. Enquanto em algumas houve forte diminuição na força de trabalho, em
outras houve significativo aumento.
Quanto à produção para o autoconsumo, houve queda na produção em geral,
principalmente de produtos da agricultura e da agroindústria. Os produtos que deixaram de ser
produzidos na maioria das UPFs foram, por ordem: arroz, batatinha, açúcar mascavo e
geleias.
Em relação ao indicador reciprocidade, conforme exposto no quadro 1, foram
considerados três costumes, mencionados reiteradas vezes pelos entrevistados, como variáveis
importantes: 1) trocas de carnes entre vizinhos; 2) troca de dias de serviços e 3) participação
de membros da família em trabalhos na comunidade local, a partir do envolvimento destes em
diferentes grupos sociais. O que mais contribuiu para a redução do índice deste indicador foi a
redução das trocas de serviços e de participações comunitárias. Destaca-se aqui, por sua
significância cultural e importância histórica para a reprodução social do campesinato
brasileiro, a questão das trocas de serviços entre vizinhos, muito comum nas comunidades
rurais do Brasil, tanto do “Brasil caboclo ou caipira” (CANDIDO, 2009) quanto das
comunidades de colonos europeus do Rio Grande do Sul, cuja expressão maior é o conhecido
“mutirão” ou “puxirão”
33
. Como estratégia de coesão social no Brasil rural tradicional, o
mutirão inseriu-se no cotidiano das comunidades camponesas como uma manifestação do
princípio da troca-dádiva do dar-receber-retribuir, nos termos propostos por Mauss (2008).
Brandão (2009), numa de suas reflexões sobre o trabalho voluntário no Brasil rural
tradicional, destaca o trabalho-festa ou o trabalho-ritual como expressões do princípio de
generosidade, gratuidade e de solidariedade, presentes no campesinato brasileiro, porém,
lamenta que isso esteja se perdendo pelo enviesamento de regras e valores de um mundo
regido pelos interesses utilitários do mercado de dinheiro, de bens e de trabalhos.
A troca de dias de serviço acontecia na maioria das famílias entrevistadas antes da
desterritorialização. Diante da pergunta: costuma trocar serviços com vizinhos? O
33
O termo puxirão era utilizado por colonos de origem italiana do Rio Grande do Sul para se referir a mutirão.
De acordo com o dicionário Aurélio, outra variação de mutirão é muxirão (CARINI, 2005, p.211)
136
entrevistado podia optar por uma dentre três respostas: nunca (não costuma); esporadicamente
(eventualmente, não rotineiramente) e sempre (rotineiramente). A Tabela 8, a seguir,
especifica o resultado por opção.
Tabela 8 - Número de agricultores que realizam trocas de dias de serviços com vizinhos, de
acordo com suas respostas
AD
AR
Respostas
Nº de Famílias
% Nº de famílias %
Sempre
(rotineiramente)
40 77 25 48
Esporadicamente 11 21 12 23
Nunca 01 02 15 29
Total 52 100 52 100
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Observa-se uma substancial variação entre os dois momentos, sobretudo em relação
aos que declararam nunca participarem de trocas de serviços. Antes da desterritorialização, de
alguma forma, praticamente todas as famílias apelavam para as entreajudas como estratégia
de viabilização de tarefas, sobretudo, as demandadoras de intensa mão de obra em espaço
curto de tempo. Várias foram as explicações para essa mudança: alteração na rotina dos
trabalhos, com abandono de algumas atividades bastante demandantes de mão de obra, como
no caso do cultivo do feijão; separação da comunidade de pertencimento, com a inserção dos
agricultores em territórios de estranhos ou de pessoas com costumes diferentes; terceirização
de serviços; arrendamento de parte das terras, reduzindo a necessidade de mais mão de obra
em momentos de “aperto”; falta de relação de confiança entre vizinhos (com argumentos do
tipo: “eles não te dão muita atenção” ou “porque não se sabe se a gente é ajudado depois, né”.
No entanto, ressalta-se que, embora no cômputo geral dos entrevistados tenha se observado
forte diminuição desse costume, na direção do abandono, indicando uma redução do indicador
reciprocidade, uma análise individualizada permite perceber que alguns agricultores
preservaram essa característica ou declararam que após a reterritorialização passaram a
realizar as trocas com mais frequência, sobretudo, em função do modo como foi reorganizada
a comunidade a partir de reassentamentos bem planejados. Salienta-se que foram exatamente
esses os casos em que se constataram maiores progressos na situação econômica geral das
famílias e também maior satisfação pessoal dos entrevistados. Isso será mais bem esclarecido
no próximo capítulo.
137
4.2.2 Índices gerais de modernidade
Conforme proposto por Silva, existe uma diferenciação na “pequena” produção que
apresenta tendências de trajetórias opostas: uma parte dos pequenos produtores tenderia a
ascender à condição de empresas familiares, via tecnificação e capitalização, e uma outra
andaria em sentido oposto, entrando em franco processo de proletarização. Entre dois
extremos para cima a agricultura empresarial e para baixo a proletarização a “pequena
produção” no Brasil assume uma extensa gama de formas, ora pendendo para uma ora para
outra condição social (SILVA, 2003).
Na presente tese, defende-se que houve uma tendência geral à modernização das
unidades familiares, após as migrações compulsórias, incluindo aquelas guiadas pela
racionalidade camponesa tradicional, sobre as quais se tratará, a seguir. Na Tabela 10, são
apresentados os índices dos quatro indicadores considerados nesta tese para efeito de cálculo
do índice geral de modernidade capitalista da UPF.
Tabela 9 - Índice de modernidade por indicador
INDICADORES
AD
(1999-2002)
AR
(2008/2009)
Uso da terra
0,542
0,620
Acervo tecnológico
0,309
0,468
Dependência financeira
0,542
0,706
Escolaridade
0,317 0,380
Média Aritmética Geral 0,428 0,544
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Percebe-se um aumento geral nos índices em todos os indicadores, comparando-se os
dois períodos, sinalizando para uma leve tendência à modernização capitalista (conservadora)
das UPFs pesquisadas. No entanto, em dois indicadores, acervo tecnológico e escolaridade,
mesmo tendo havido aumento dos índices após a reterritorialização, os índices apurados são
significativamente mais baixos do que os dos demais indicadores. Em relação ao acervo
tecnológico, constatou-se baixa produtividade do trabalho na média geral das UPFs
pesquisadas, considerando-se a Unidade Padrão (UP) ou a Unidade de Valor Máximo (UVM),
apesar de ter havido expressivo aumento nas variáveis mecanização e insumização. Isso é
138
explicado pela média de produção baixa por UTH, encontrada nas UPFs de agricultores
tradicionais, o que acabou rebaixando a média geral.
Em relação ao indicador escolaridade, a pesquisa confirmou o que o IBGE, através dos
censos, vem apurando: a população que vive no meio rural brasileiro, em geral, possui baixa
escolaridade. Nota-se que houve pequeno aumento no índice de escolaridade do primeiro para
o segundo momento. Porém, muito aquém do que se poderia esperar para um período que
varia entre 7 e 10 anos, refletindo o contínuo êxodo de jovens para as cidades. A média geral
de escolaridade de cada domicílio pesquisado foi de 3,64 anos de estudo antes da
desterritorialização
34
e 4,35 anos de estudo em 2009. Essa média é ligeiramente inferior a do
Rio Grande do Sul em 2005 que foi de 4,51 anos, ficando um pouco superior à média
brasileira para o meio rural que foi de 3,35, no mesmo ano, porém muito longe do ideal dos
11 anos de estudo ou mesmo da média brasileira para a população em geral que foi de 6,1 em
2002, segundo Kageyama (2008).
Os indicadores “uso da terra” e “dependência financeira” apresentaram índices
significativamente superiores aos demais. Em relação ao primeiro indicador, há que se
ressaltar a intensificação do uso da terra, com aproveitamento maior e melhor da propriedade
pela adesão a tecnologias modernas, como a mecanização, com aumento da produção e
produtividade. A intensificação dos cultivos se explica pelas melhores condições topográficas
e melhor qualidade dos solos das terras de reterritorialização. Em relação ao segundo,
observou-se um aumento na adesão dos agricultores pesquisados aos empréstimos, tanto para
custeio, quanto, principalmente, para investimentos. Isso reflete uma maior oferta de recursos
para a agricultura familiar nos últimos dez anos, sobretudo, graças a alguns programas do
Governo Federal, através do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), como o
Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) e suas várias linhas
de crédito, tais como o Pronaf Mais Alimento ou o Programa Mais Alimento (PMA). A maior
parte dos empréstimos de investimento foram canalizados para o setor leiteiro, notadamente
para a compra de matrizes (melhoramento genético), ordenhadeiras e resfriadores a granel.
Em segundo lugar, aparece a compra de máquinas e implementos, sobretudo, tratores,
plantadeiras e pulverizadores. Uma parcela menor, mas não menos importante, destinou-se à
construção de moradias e galpões (principalmente no caso dos reassentados).
Como foi referido acima, a melhora no acervo técnico e a maior adesão dos
agricultores a financiamentos se devem às mudanças nas políticas públicas ocorridas nos
34
Último ano anterior ao desalojamento.
139
últimos anos para o setor agropecuário, mormente as políticas em âmbito federal,
disponibilizando mais recursos financeiros e mais facilidade de acesso aos mesmos.
Entretanto, se devem também a fatores inerentes ao processo de relocação das UPFs. A
inserção dos migrantes em contextos geográficos altamente exigentes em termos técnico-
produtivos e dominados por mercados seletivos contribuiu para torná-los mais dependentes do
capital e menos autônomos. Isso será mais bem explicitado no próximo capítulo.
140
5 MUDANÇAS E PERMANÊNCIAS NA VIDA DOS
DESRETERRITORIALIZADOS, SEGUNDO A TIPOLOGIA DE
AGRICULTORES
Conforme foi exposto na introdução desta tese, a análise dos dados coletados,
transformados ou não em índices, somada às falas dos atores entrevistados e às observações
do pesquisador ao longo de mais de um ano de pesquisa de campo, permitiram fazer
aproximações e separações entre os pesquisados. Dessa forma, optou-se pela construção de
uma tipologia para análise das racionalidades dos agricultores pesquisados, postulando-se a
existência de três tipos de reterritorializados:
a) agricultores tradicionais, b) agricultores
modernizados e c) agricultores semimodernizados. Reitere-se que a classificação não
obedeceu a critérios rígidos e teve a finalidade exclusiva de testar as hipóteses.
Na Tabela 10, a variação dos índices, segundo a tipologia, pode ser observada, a partir
da média aritmética dos índices calculados, de acordo com os diferentes indicadores de
campesinidade e/ou de modernidade dos pesquisados dentro de seus respectivos grupos.
Tabela 10 - Índices de Campesinidade e de Modernidade segundo a tipologia de
desreterritorializado
ICUPF IMUPF
TIPOS
AD
(1999-2002)
2009
AR
(1999-2002).
2009
TIPO 1 – Tradicionais
0,768
0,694
0,261
0,334
TIPO 2 – Modernizados
0,720
0,589
0,439
0,718
TIPO 3 - Semimodernizados
0,715
0,544
0,350
0,575
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Ao serem analisados os índices expostos na Tabela 10, é possível reter algumas
mudanças ocorridas nas famílias dos desreterritorializados, comparando-se a situação das
UPFs antes do desalojamento e após a reterritorialização.
Em relação à campesinidade, observa-se que houve uma sensível queda dos índices
nos três tipos, ainda que em proporções diferenciadas entre si. Percebe-se que na sua origem
todos apresentavam índices relativamente altos, refletindo condições sociais rurais que se
aproximam de uma agricultura de tradição colonial. Houve uma sensível mudança no modo
de viver, produzir e nas relações de reciprocidade dos pesquisados, refletindo uma forte
tendência ao abandono de certas práticas e/ou comportamentos considerados aqui como
141
tradicionais, obviamente, em menor grau nos modernizados. Entretanto, observa-se que o tipo
2, representando o agricultor modernizado, portanto com maior índice de modernização
capitalista, não foi o que teve maior queda no ICUPF. Isso sinaliza para o que se está
defendendo nesta tese, ou seja, que o apelo à modernidade não significa, necessariamente, o
abandono total da tradição, quando se trata da agricultura familiar.
Em relação às mudanças nos IMUPFs, reafirma-se o que foi exposto em tópicos
anteriores, isto é, todos os desreterritorializados tenderam, ainda que em proporções
diferentes, à modernização, indicando transformações nas formas organizativas e produtivas
das UPF. Contudo, a maior mudança ocorreu com o grupo dos modernizados (tipologia 2), os
quais apresentavam em suas propriedades de origem índices médios superiores aos demais.
O domínio de certas tecnologias e o fato de possuírem algumas máquinas e equipamentos
quando do desalojamento justificam sua tendência à modernização, sem no entanto, como foi
demonstrado, perder totalmente suas características que expressam um comportamento
tradicional. Pretende-se deixar mais explícito esse aspecto nos próximos tópicos.
5.1 PRUDÊNCIA, AVERSÃO AO RISCO E RESISTÊNCIA: CASOS
EMBLEMÁTICOS DE DESRETERRITORIALIZADOS TRADICIONAIS
Os sete agricultores enquadrados na tipologia ‘tradicionais’ apresentam trajetórias de
vida semelhantes. Todos são descendentes de migrantes pobres que saíram da região do
antigo município de Erechim, no Alto Uruguai do Rio Grande do Sul, nos anos de 1950 e
adentraram na reserva indígena de Serrinha, na luta pela territorialização, no contexto do
início da “crise da terra camponesa”, no Rio Grande do Sul, conforme abordado no terceiro
capítulo desta tese. Acostumados a uma rotina de trabalho e de vida tipicamente tradicionais,
e a um sistema de produção baseado quase exclusivamente em fatores naturais (solo com boa
fertilidade natural), mais apegados à comunidade local, foram os mais prejudicados pelo
desalojamento. Suas relações sociais estabelecidas no âmbito da comunidade de
pertencimento foram rompidas bruscamente pelos desalojamentos e não puderam ser
restabelecidas totalmente nas novas comunidades. Suas rotinas de trabalho, consoante suas
racionalidades produtivas, em alguns casos, foram alteradas forçosamente pela necessidade de
migrar. Ademais, em alguns casos, houve descompasso entre as indenizações das benfeitorias
(casas, galpões, cercados) sob a responsabilidade da FUNAI – e as indenizações pela terra –
sob a responsabilidade do Governo do RS induzindo-os a uma situação de crise. Crise
142
financeira (endividamento), crise emocional. Não obstante essas adversidades, esses
agricultores decidiram continuar no meio rural, reproduzindo seu modo de viver tradicional,
procurando reterritorializar-se em ambientes naturais e sociais que lhes fossem familiares,
porém sob precárias condições para sua reprodução.
Alguns casos emblemáticos são apresentados a seguir, com o fito de analisar as
racionalidades e as representações desses desreterritorializados.
Uma das características que mais identifica os agricultores classificados como
tradicionais é a prudência. Por meio das declarações dos entrevistados, é possível reter as
razões que os levaram a fazer certas escolhas no momento do desalojamento. Apenas um dos
sete agricultores aceitou ir para um reassentamento, mesmo assim, depois de alguns anos,
decidiu abandonar a propriedade e a condição de reassentado e voltar para a região de origem,
onde os demais haviam se estabelecido. A seguir, a trajetória de Adelino, que não se
adaptou à nova terra e decidiu voltar para suas origens, de Jorge e de outros agricultores, que
preferiram não ir para os reassentamentos, temendo não conseguirem se adaptar, por ficarem
longe dos recursos e dos seus. Além disso, destacam-se as representações dos agricultores
desse grupo em relação às suas condições de vida após a reterritorialização.
5.1.1 As representações sobre as condições para produzir e a decisão de remigrar
Em janeiro de 2009, o pesquisador esteve no reassentamento Conquista das Missões,
no município de Catuípe, entrevistando o reassentado Adelino, 55 anos; sua esposa, 42 anos e
o filho único de 20 anos. O filho parou de estudar e pretende continuar na lavoura. Portanto,
existe potencialmente a possibilidade da sucessão na família, ainda que sob condições
financeiras difíceis.
Adelino foi desalojado de sua propriedade de 6 hectares, situada na Terra Indígena
Serrinha, interior do município de Engenho Velho. Sua propriedade, a exemplo da maioria
das situadas na parte da TIS pertencente aos municípios de Constantina, Três Palmeiras e
Engenho Velho, apresenta terrenos declivosos e pedregosos
35
. No reassentamento, recebeu 15
hectares de terra 100% mecanizáveis. Porém, na entrevista realizada no começo de 2009,
insistia que não estava se adaptando à nova propriedade. Apesar de dispor de mais terra e
35
Saliente-se que as melhores terras para a prática da agricultura intensiva e mecanizada, por conseguinte de
maior valor comercial, encontram-se na parte sul e sudeste da TIS, território pertencente ao município de Ronda
Alta.
143
propícia à mecanização, ele disse que a vida de sua família piorou depois que saiu da
Serrinha, onde a terra era “mais forte”. Disse que na nova propriedade foi obrigado a lidar
com bancos e a se endividar, algo que nunca ocorrera antes.
Porque eu tinha pouca terra, mas não devia nada pra ninguém. O que eu tinha era
meu. Aqui o que eu tenho devo tudo pros bancos. Então piorou, né. Porque se o
senhor tem pouco, mas é seu, é melhor do que ter bastante e não ser. [...] eu
produzia pouco e sobrava, porque não tinha despesa, né. Aqui, eu planto mais,
produzo mais, mas não sobra nada. Porque tem que comprá tudo (Adelino,
reassentamento Conquista das Missões, Catuípe, entrevistado pelo autor em
10/01/2009).
Na propriedade de Serrinha, Adelino produzia comercialmente feijão (uma média de
15 a 20 sacos por ano), soja (100 a 150 sacos/ano) e criava suínos. O milho era destinado aos
animais, principalmente porcos. A produção de leite era destinada ao consumo da família, seja
in natura
ou transformado em queijo. Além desses produtos, “tinha as miudezas”, isto é,
vários produtos da agropecuária de subsistência ou da “pequena agropecuária”. No
reassentamento, Adelino passou a produzir comercialmente leite, soja e milho, sendo o milho
destinado quase exclusivamente à alimentação das vacas. Tinha, em janeiro de 2009, um
plantel médio de 5 a 6 vacas, que produziam em torno de 1000 litros de leite por mês.
Produzia ainda uma média de 250 sacos de soja por ano, porém, dizia que “pro pequeno,
produzir soja não dá lucro”, devido às altas despesas com insumos e o pagamento de trabalhos
terceirizados de máquinas e equipamentos (pagamentos para semear, aplicar venenos e
colher).
Adelino, em sua fala, deixava transparecer seu inconformismo pela dificuldade de
fazer a terra do reassentamento produzir naturalmente como a de Serrinha, sem a necessidade
dos artificialismos tecnológicos modernos. Assim, dizia que a produção tornara-se cara e que
muitos produtos tradicionais da culinária da colônia, como o feijão e a banha, passaram a ser
comprados:
Galinhas tenho algumas no terreiro. Eu tinha 3 porcos aqui, morreram todos, não sei
o que é que deu. pelo menos sempre tive pra comer. Depois que viemos pra
tivemos que comprar até o feijão e a banha. Lá o porco dava pouca despesa. O milho
dava bem e a única despesa com o milho era com a semente e o serviço. dava
bem o milho, o feijão, a mandioca, a abóbra. Aqui o milho bem, mas tem que
investi. Se não investi, não colhe. A abóbra aqui eu nunca pude colher. uns
bichinhos, come tudo. As vez num dia bonita, no outro termina. O feijão, nem
planto mais, porque não dá (Adelino, entrevista supracitada).
144
A naturalização do processo de produção de frutíferas também era referida como uma
das vantagens das terras da região de Serrinha em relação as do reassentamento. Sobre o
assunto, o entrevistado diz que:
No caso das frutas, tem que ter muito tratamento. E o lugar aqui também não serve
pra fruta. Plantei tudo que foi fruta quando vim morar aqui: ameixa, pêra, caqui,
pêssego, laranja, bergamota..., sobrou um de caqui. O resto morreu tudo.
onde eu morava, não tinha maçã porque dava uma doença na fruta. O resto tinha
de tudo e produzia bem (Adelino).
No que diz respeito ao cálculo comparativo de custos ou à relação custo-benefício
entre uma morada e outra, Adelino assim se expressou:
era meio sofrido, tudo a braço, terra dobrada e tal, mas o que se fazia sobrava
tudo, tudo era dinheiro, porque se contava a semente e o serviço. É que o serviço
a gente não pode contá; porque tem que trabaiá, né. Aqui se tu fizer 10 mil, gasta os
10 mil... você entrá 10.000, mas logo gasta os 10.000; no fim não sobra nenhum
‘pila’. Lá, se você produzia e vendia um porco, sobrava ele inteiro. Porque o trato
era na base do milho, abobra, mandioca, batatas. Cansei de ir pra roça e encher uma
carroça de abobras. Aqui onde é que vai conseguir isso? Não colhi 10 abobras desde
que vim pra cá (Adelino).
A falta de integração à nova comunidade do reassentamento pôde também ser
constatada. Ao ser indagado sobre o assunto, disse que participava muito pouco. “Aqui é
muito diferente. a gente participava mais”. Passou a contar uma longa história sobre a
participação de sua família na antiga comunidade, relatando que seu pai fora um dos
fundadores da comunidade de Linha Polita, na Serrinha; que construiu a primeira igreja e
lutou para a construção da primeira escola, mais de 40 anos atrás. E que ele, Adelino, foi
presidente do esporte por aproximadamente 16 anos. A esposa acrescenta que (na Serrinha)
ela participava das missas, do terço
36
, dos encontros de família; “porque os vizinhos tavam
perto; aqui não se tem condições nem de ir numa missa, a capela e a maioria dos vizinhos
estão longe” e queixa-se: “nós não temos carro, nem moto e ir a pé, é longe” (Ivanir
reassentamento Conquista das Missões, Catuípe, entrevistada pelo autor em 10/01/2009).
Além disso, os entrevistados declararam que podem contar com a cooperação dos colegas
reassentados, pois não podem confiar nos fazendeiros. Em relação aos fazendeiros, Adelino
disse que são os principais responsáveis pela contaminação das águas e destruição dos
pomares, devido à aplicação do herbicida 2,4 D, nas lavouras situadas próximas à sua
propriedade, geralmente, através de pulverizações por aviação.
36
Tipo de reza que faz parte do ritual católico.
145
Diante das dificuldades financeiras e inviabilidade de “tocar a lavoura de soja por
conta”, o entrevistado declarou que naquela safra de 2008/2009 tivera de vender os bois e
arrendar parte da terra para um plantador de soja. “Agora lido com o leite”. A maior parte
do trato das vacas é de pastagens de inverno e verão. Os trabalhos da lavoura de milho,
conforme informado, são viabilizados pelo pagamento de prestadores de serviços de
máquinas (vizinhos capitalizados).
Sobre o futuro da família, Adelino dizia ser incerto. Dizia que o filho, que estudou
até a série, deverá continuar na propriedade, na esperança de que um dia as coisas
melhorem para a agricultura. Porém, disse que se pudesse venderia sua propriedade e
compraria uma próxima do lugar onde nasceu e viveu por mais de 40 anos. Mas fazia questão
de frisar que essas terras teriam que ter as mesmas características das terras da Serrinha. Por
enquanto, disse, “não posso, porque nem sei se esta terra me pertence. Se na Serrinha, que a
terra tinha escritura, imposto tudo pago, tiraram de nós, o que dizer dessa que ainda não temo
escritura”. Disse que seguidamente sonha que está voltando para a antiga propriedade na
Serrinha: “Se pudesse voltar prá antiga morada, voltaria hoje ainda. Carregava meus trapo e ía
na mesma hora”.
Efetivamente, Adelino realizou seu sonho de voltar à região da Terra Indígena de
Serrinha. Em 12 de outubro de 2009, 10 meses após a primeira entrevista no reassentamento,
o pesquisador o encontrou em sua nova morada, no interior do município de Três Palmeiras, a
cerca de 8 km da velha morada no interior da Terra Indígena de Serrinha. De volta às suas
raízes, vivendo numa propriedade de 9 hectares, com terreno semelhante à propriedade de
Serrinha, o entrevistado se mostrava feliz. Indagado sobre sua nova morada, disse: “Aqui eu
contente. Não é o mesmo lugar onde eu tava, na Serrinha, mas fica na mesma região, né.
Esta é a região onde eu sei lutá. Porque aquela região onde eu tava (no reassentamento) é uma
região boa, mas pra quem tem bastante dinheiro, que investe bastante e sabe lutá com isso”.
Na nova morada, em outubro de 2009, Adelino projetava seu futuro optando por
algumas atividades agrícolas tradicionais ou praticadas antes da saída da Terra Indígena de
Serrinha, predominantemente. A produção prioritária de produtos para o autoconsumo e de
alguns para o mercado foi retomada:
plantei um pouco de milho; feijão ainda não plantei porque choveu muito. Mas
preparei a terra, no que o tempo me deixar, vou prantá. Como eu tava dizendo, na
roça a gente tem que plantar de tudo, especialmente pra comer, né. E o que é que
eu tirava pra comer? uma mandioquinha e um pouco de milho, o mais tinha que
comprá tudo (Adelino, Linha Pinheiro, Três Palmeiras, entrevistado pelo autor em
12/10/2009 – Entrevista 2).
146
Além da retomada dos produtos tradicionais, a volta dos cultivos sem insumos ou com
a utilização de poucos insumos químicos foi anunciada pelo entrevistado como uma
“vantagem que favorece o pobre”. Indagado sobre o uso de adubos químicos disse: “Aqui não
precisa; a terra pra ver”. Alegando que a terra é “forte”, informou que utiliza ureia.
Repetiu o que dissera na primeira entrevista, quando estava no reassentamento, que a
utilização de insumos químicos encarece a lavoura e inviabiliza a permanência do agricultor
pobre no meio rural e que, por isso, o podre precisa permanecer na “terra forte”. Além disso,
prosseguia com a produção leiteira parcialmente modernizada.
5.1.2 Dificuldades de adaptação às novas bases produtivas e sociais
Outro caso emblemático de desreterritorializado tradicional é o do agricultor Jorge, 53
anos. A exemplo de Adelino, também reside hoje no interior do Município de Três Palmeiras,
com sua família de 7 pessoas. Além dele, moram na mesma casa a esposa e uma filha
portadora de necessidades especiais. Numa pequena casa ao lado vivem o filho casado, a nora
e dois netos. Porém, todos trabalham na mesma terra e usufruem da mesma produção.
Entretanto, o filho esteve desligado da família várias vezes e pretende sair novamente para
a cidade, se conseguir emprego. Portanto, a reprodução social da família não está garantida,
pois não certeza sobre a existência de um sucessor. Além da receita com a lavoura, a
família vive com a renda de uma aposentadoria e do Bolsa-Família.
Na Terra Indígena de Serrinha sua propriedade tinha 22 hectares. Apesar de ter uma
área expressiva, considerando a média dos lotes rurais da parte com terrenos mais acidentados
da TIS, disse que plantava apenas uns 20% da área. O restante era considerada imprópria para
cultivos intensivos. Quando a indenização foi efetuada pelo Estado, foi feita a partilha entre 7
herdeiros, ele e outros 6 que já haviam partido para a cidade. Com a indenização da parte que
lhe coubera como herdeiro, Jorge adquiriu a nova propriedade de 6 hectares, próxima à divisa
com a Terra Indígena de Serrinha, distante aproximadamente 6 quilômetros da antiga morada.
Ao ser indagado sobre sua preferência por uma propriedade tão próxima ao lugar de
origem, argumentou que não quis se aventurar num reassentamento: “Aqui to perto dos
recursos e da minha gente”. Por isso disse estar satisfeito com a nova morada. Porém,
reconhece que a propriedade não tem o espaço suficiente para que ele possa trabalhar da
forma como estava acostumado na antiga morada. As representações sociais do entrevistado
se aproximam do que se tem encontrado na literatura sobre o pensamento do camponês
147
caboclo, conforme foi abordado no terceiro capítulo. Um aspecto interessante da
“racionalidade cabocla” pôde ser observado no entrevistado em relação às criações de
animais, quando defendeu a forma extensiva de criação. Sobre o assunto, reconheceu ser o
local impróprio para criações, disse que lá ele estava mais longe dos vizinhos: “O que eu mais
reneguei aqui é o espaço apertado; a gente não tem espaço pra podê criá uma criação, um
porco sorto. Sorta e vai na roça do vizinho”. A esposa complementa, indicando para o
pesquisador: “o senhor vê, ali é terra do vizinho; lá é área indígena, então não dá, né”. Para
amenizar o problema do espaço físico, Jorge disse que conseguira uma autorização de um
agricultor absenteísta, proprietário de uma propriedade próxima, para soltar o gado e os
porcos numa lavoura em pousio. Porém, reconhecia que se tratava de uma solução
emergencial, “enquanto o dono não pranta”.
Em relação à racionalidade produtiva, o entrevistado reforça a tese do agricultor
Adelino de que “todo o agricultor pobre precisa de terra ‘forte’”. Salienta: “hoje em dia, caro
como o adubo, não dá, né. Temos esta terra boa que quase não carece de adubo, mesmo
assim não tá fácil, imagina se tivesse que usar adubo e calcário!”.
As representações sociais de terra produtiva do entrevistado assemelham-se às de
Adelino e remetem à ideia de terra com fertilidade natural. Indagado sobre o que considera
terra favorável para a agricultura, Jorge disse: “A terra pra mim tem que ser terra preta, assim,
terra forte que não dependa de adubo. Se for terra fraca viu, né. Pro pobre não serve”
(Jorge, Linha São Roberto, Três Palmeiras, entrevistado pelo autor em 06/11/09).
Os agricultores tradicionais apresentaram argumentos semelhantes para justificar a
decisão de não ir para um reassentamento. Além da comunidade, dos conhecidos, dos amigos,
o fator terra teve um forte apelo. As representações de terra possuem sua âncora na falta de
recursos para o uso de tecnologias. Para eles, o trabalho braçal, ainda que sendo “judiado”,
encontra resposta numa terra “própria”. Embora reconheçam que existe a possibilidade de
ganhos com o uso de tecnologias avançadas, conformam-se com a situação em que se
encontram e dizem que a disposição para o trabalho e o sacrifício traz como recompensa a
possibilidade de se ter mais lucro: “Porque quem em cima de um trator, claro que tem
resultado melhor. Mas aquele que não tá, se ficar de braços cruzados, fica sem nada, né. Então
o que sai destas lavouras é quase tudo lucro” (João, Linha Pipiri, Três Palmeiras, entrevistado
pelo autor em 07/01/2010).
As imagens da figura 5, a seguir, mostram alguns aspectos da reterritorialização dos
agricultores tradicionais, relativamente às condições da terra, às moradias e ao trabalho.
148
11
Figura 5 – Imagens da reterritorialização de agricultores tradicionais
FONTE: Arquivo pessoal do autor.
A falta de opções para melhorar as condições de trabalho e de renda em muitos casos
foi agravada pela necessidade de sair do território de origem com urgência, como se deduz
pelas falas dos entrevistados.
Nóis tinha que saí de uma hora pra outra. eu tinha comprado uma outra morada
aqui perto. Comprei aquela pelo Banco Terra. Uma parte eu pagaria pelo Banco
Terra, outra parte eu pagaria com o dinheirinho que ia receber da minha terrinha e
das casas (da Serrinha). Mas, levei 5 anos pra receber das casas (indenização da
FUNAI) e a minha terrinha ahoje lá. Não recebi ainda. fazer o quê, tive que
pegar uma parte desta área aqui e assumir o compromisso com o Banco Terra. O
senhor vê, vai aonde com todos estes anos que a gente tem? Se quebra o resto que se
tem. Uns anos pra eu indo pra trás. Então consegui comprar este lugarzinho
aqui, mas pra ter onde morar (Celso, Linha Progresso, Três Palmeiras,
entrevistado pelo autor em 12/10/2009).
Outro entrevistado também apresenta argumentação semelhante para justificar a
precariedade das condições de sua propriedade:
Porque tava demorando demais pra sair a terra, no fim a gente tava meio sozinho,
fiquei sozinho três meses. garrei e botei a terra à venda. Saí, procurei em tudo o
que foi lugar, aqui que encontrei este pedacinho. Foi o que dava pra eu pagar. No
149
fim, quase que não consegui pagar, porque demorou 3 anos e meio pra vim o
dinheiro do governo. E aí, sabe, a gente não entende muito das coisas, a gente não
sabe e nem escrever, achava que o juro era por ano e era por mês. Deus me livre!
O juro a 1 e meio por cento, quando vi tava em cima. Porque eu tinha dado o
dinheiro da Funai (indenização pelas benfeitorias) no negócio. Daí o Estado
prometia que ia pagar, mas não pagava. No fim tive que devolver um pedaço de terra
que tinha comprado, devolvi 2.800 m
2
, e ainda tive que emendar no dinheiro, tive
que mais do que o valor que tinha comprado. Emendei mais R$ 4.000,00 pra
podê ficá com este pedacinho aqui (João, Linha Nova, Três Palmeiras, entrevistado
pelo autor em 06/11/2009)
37
.
A escassez de terra, aliada à precariedade das condições do solo para produzir (solo
erodido, pedregoso e acidentado) limitam a produção à subsistência dessas famílias e à venda
de alguns excedentes. É o caso da produção de milho, transformado na própria propriedade,
reproduzindo uma prática de tradição colonial: “este ano vendi uns saquinhos, a maior parte
tenho que segurá pros terneros, vacas, galinhas, pros porquinhos...; de vez em quando vendo
uns bichinhos desses” (Celso).
A precariedade das condições de vida e as novas exigências no que se refere às
condições produtivas tecnologias, relações com mercados, relações com instituições
financeiras, condições climáticas, condições do solo colocam obstáculos à permanência dos
agricultores tradicionais na agricultura. As manifestações de inconformismo com a situação
foram expressas nas entrevistas de quase todos os sujeitos desse grupo. É interessante reter
aqui as representações dos agricultores em relação às causas determinantes dessa situação.
Praticamente todos eles, ao se referirem às suas condições produtivas, sugerem que essas
condições e o seu agravamento se devem às migrações compulsórias.
era melhor, se vivia uma vida tranquila. Não se gastava como se gasta hoje.
Porque hoje fazer dinheiro [...] acabou. Essa lavoura que o senhor aí, eu devo
tudo pro banco. Se chover, eu pago, se não chover, não pago. Coisa séria viu. A
ureia, o senhor sabe, o ano passado paguemo 90, 100 pila. O adubo também. Agora
diminuiu, mas o produto não vale mais nada. Então vai viver do quê? Eu tenho 4
hectare de máquina aqui, arrendando todos os anos, porque não consigo plantar,
não tem como (Zenir, Linha Pipiri, Três Palmeiras, entrevistado pelo autor em
06/11/2009).
A fala expressa um sentimento de inconformismo pela necessidade de altos
investimentos na atividade, aliada à baixa valorização dos produtos produzidos. Em geral, a
despeito das condições para produzir, a maioria dos pesquisados desse grupo reconhece que
37
O entrevistado queixou-se que recebeu do Governo do Estado menos pela indenização da terra do que o valor
estimado no levantamento fundiário. Disse que o levantamento foi feito por um governo, que a classificou na
categoria B, mas que o pagamento foi feito pelo governo seguinte como terra da categoria C. Ressalte-se que as
terras foram classificadas em 3 categorias (A, B e C), consoante suas características naturais (possibilidade de
mecanização, declive do terreno, existência de pedras ou outros entraves ao cultivo, localização, acesso à vias
públicas, etc.).
150
não como continuar produzindo no modo tradicional: “Porque a custa de arado de boi
hoje não se faz mais nada” (Zenir). Porém, considera inviável a aplicação de recursos em
tecnologias e a obtenção de financiamentos. Assim, voltando-se para suas origens, encontram
no tempo passado e no outro lugar, condições de vida e de trabalho mais favoráveis: era
melhor [...] Não se gastava como se gasta hoje...” (Zenir).
Uma outra característica dos agricultores desse grupo é o apego ao lugar de
pertencimento. Dentre todos os pesquisados, foram os mais impactados pela
desterritorialização e que apresentaram maiores dificuldades de adaptação. A fala do
entrevistado, a seguir, é carregada de sentimentos de apego ao lugar, medos do desconhecido
e dúvidas sobre o futuro:
Pra saí de quase fiquei louco. Perdi a cabeça. O vizinho que me vendeu a terra,
que mora logo ali é testemunha. Eu tive que entregar os negócios pra ela (esposa) e
pro filho, porque perdi a memória. Porque de uma hora pra outra fiquei na rua;
pensei, pra onde é que eu vou agora? Pra debaixo de um barraco? Daí pra sair longe,
nem pensar. A gente se criou aqui, aqui é o lugar da gente, não tem sair daqui.
não nasci aqui. Vim de São Valentin com 6 anos, numa família que tinha 14 filhos,
mas vivo aqui [refere-se à região da TIS] até hoje (Zenir).
A migração compulsória desse agricultor tradicional, como ficou explícito pela fala
acima, impactou-o emocionalmente, sobretudo, por trazer incertezas em relação ao futuro da
família. O compromisso com o destino da família diante da possibilidade “de ficar na rua”
após o desalojamento, denota a obrigação moral de um chefe de família que é muito forte em
se tratando de um agricultor tradicional. A necessidade de “entregar os negócios” para a
esposa ou para um filho, ainda não elevado à condição de sucessor, representa uma situação
limite, que só encontra motivos para se efetivar em casos extremos.
5.2 FORTALECIMENTO DO GRUPO FAMILIAR E CAPITALIZAÇÃO: O
AGRICULTOR FAMILIAR MODERNIZADO OU PROFISSIONALIZADO
O grupo de agricultores desreterritorializados do TIPO 2 Agricultores modernizados
ou profissionalizados –, a exemplo do TIPO 3, apresenta uma multiplicidade maior de
subtipos do que o grupo do TIPO 1. Dessa forma, a tarefa de buscar pontos comuns entre as
famílias de pesquisados desses tipos não foi fácil. Mesmo assim, os entrevistados foram
agrupados e constituem uma interessante base para uma análise ou teorização. Das 19 famílias
desse grupo, 16 foram reassentadas (84%) e 3 foram indenizadas (16%).
151
Conforme está explicitado no quadro 1 (na introdução), o agricultor profissionalizado
apresenta certas características que o colocam em posição de vantagem econômica, frente aos
agricultores dos demais tipos. Algumas destas características serão analisadas a seguir,
procurando-se ilustrar com alguns estudos de caso específicos.
5.2.1 A força da união da família
A Tabela 11 mostra a variação no número de UTHs/UPF nos três tipos, para efeito de
comparação. Percebe-se que apenas o grupo do TIPO 2 apresentou aumento no mero de
UTHs após reterritorialização.
Em 13 das 19 famílias desse grupo o casamento de pelo menos
um filho e a permanência dos recém-casados na “família-tronco” asseguraram as condições
para a expansão de atividades como a produção leiteira, exigente em mão de obra,
concomitantemente a outras atividades, ampliando o leque de possibilidades de ganho via
diversificação.
Tabela 11 - Número médio de UTHs/UPF de acordo com os diferentes tipos de agricultores
Número médio de UTHs/UPF
TIPOS
AD AR
TIPO 1 – Tradicionais 3,5 3,11
TIPO 2 – Modernizados 3,91 4,16
TIPO 3 – Semimodernizados 3,42 3,01
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Em 6 das 13 famílias com sucessores casados, moram, na mesma casa, mais de um
casal de recém-casados. Caso emblemático foi o da família de Cestílio, 66 anos, reassentado
no reassentamento São Sebastião, no município de Coronel Bicaco. Nesta UPF, permanecem
unidas à “família-tronco” três famílias de filhos recém-casados, formando uma espécie de clã
de treze pessoas. Cada família vive em sua própria casa, porém o trabalho é em geral feito
coletivamente. As casas foram construídas, estrategicamente, todas enfileiradas, junto à casa
paterna. Cada família tem sua horta separada, porém, alguns produtos da “pequena lavoura”
para autoconsumo, tais como: feijão, mandioca, batata-doce e amendoim, são produzidos em
conjunto. O mesmo ocorrendo com a pecuária de autoconsumo. Quanto à produção comercial,
tudo é produzido em conjunto. Após o pagamento das despesas de produção e/ou
financiamentos, se houver sobra, esta é dividida em partes iguais entre as quatro casas,
incluindo o casal de idosos. As aposentadorias do casal de idosos ficam com os próprios
aposentados, isto é, não entram no caixa geral. Segundo informou o entrevistado, o dinheiro
152
das aposentadorias é usado para custear despesas com a compra de medicamentos, eventuais
despesas hospitalares e outras despesas do casal. Disse que o dinheiro das duas aposentadorias
é suficiente para cobrir quase todas as despesas do casal, inclusive o combustível do
“carrinho” e que, por essa razão, não precisa retirar o dinheiro do caixa, referente à parte que
lhe toca no rateio do lucro com a produção agrícola.
Entrevistado pelo pesquisador em novembro de 2009, Cestílio explica como tem sido
o dia a dia do “clã”, a rotina de trabalho da família, desde o tempo da Terra Indígena de
Serrinha até aquele momento. A seguir, trechos da conversa com o entrevistado:
Nós trabalhemo tudo junto. Viemos de , onde cada um tinha o seu pedacinho de
terra. Cada um plantava o seu cantinho. que a terra era toda minha. Tinha 30
hectares de terra. Daí viemos aqui e resolvemos trabalhar todos junto. Fizemos 4
partes da produção e decidimos não dividir mais a terra. Plantamos todos juntos e
dividimos em quatro partes. as despesas da casa, cada um tem a dele, cada um na
casa dele. O resto, todas as despesas de máquinas, implementos, tudo é dividido em
4 partes. Quebrou uma máquina, um trator, é dividido em 4 partes. Tudo igual.
Depois eu quero te mostrar um pouco da realidade. Porque acho que são poucas as
famílias assim. Se compremo um pedaço de terra, é dividido em 4 partes. Tem um
dos filhos, o Eusébio, o segundo, que faz o caixa de toda a família. Tudo vai para
um caixa, desde horas de trator, horas de máquina que se faz pra fora, vai tudo pro
caixa único, inclusive as despesas com combustível e manutenção das máquinas,
tudo vai pra um caixa (Cestílio, reassentamento São Sebastião, entrevistado pelo
autor em 27/11/09).
Como se percebe, o entrevistado demonstra orgulho e confiança. No final da
entrevista, fez questão de mostrar o patrimônio e a organização da família. Mostrou os
galpões, máquinas, implementos, as quatro hortas construídas em anexo às casas, onde cada
família cultiva as verduras e outras hortaliças que não entram no rol da produção coletiva. Fez
questão também de apresentar ao pesquisador as três noras, que se encontravam trabalhando
no galpão, em torno de uma mesa, limpando feijões para depois serem divididos em quatro
partes (conforme imagens da Figura 6).
Segundo o entrevistado, a forma de organização social e econômica da UPF e a união
permitiram ganhos econômicos e aumento do patrimônio ao longo de sete anos, desde a
desterritorialização, comparando com a situação anterior ao desalojamento. Porém, a
preocupação de Cestílio, na condição de responsável-chefe da UPF, era assegurar harmonia e
entendimento ao grupo. Disse que está constantemente reunindo a família e passando
conselhos: “Eu sempre peço, aqui a mãe que pode dizê também, que é pra gente se tolerá.
Que não é pra discuti. Quebrou alguma coisa, quebrou. Compra outra, né. Então nóis temo
trabalhando assim”.
153
12
Figura 6 – Imagens da reterritorialização dos modernizados pelo fortalecimento do grupo
familiar
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
O envolvimento do grupo familiar no trabalho coletivo, com a divisão familiar do
trabalho, assegura o compromisso de cada um para a obtenção de um resultado que será
compartilhado. Mesmo aquele trabalho considerado “menos nobre”, sob o ponto de vista da
racionalidade formal do cálculo financeiro, é visto como importante pelo grupo. Na família de
Antônio, 64 anos, também morador do reassentamento São Sebastião, a divisão de tarefas e o
comprometimento individual nas atividades da UPF normatizam a vida e o trabalho nessa
unidade familiar. O responsável-chefe da UPF, ao ser questionado sobre o dia a dia da família
declara que:
Aqui todo mundo pega na enxada. O senhor pode ver os calos nas minhas mãos. Eu,
no caso, pego no cabo da enxada e do arado. Porque aqui sou eu que vou lavrar (de
boi), não deixo o filho. O filho vai com o trator. Que nem hoje, elas (nora e esposa)
tiraram o leite, eu tratei os bichos, fui buscar pasto pras vacas. Porque eu não gosto
de tirar leite. Eu prefiro, então, acha o pasto pras vacas. Porque o Adir [filho] toma
conta do serviço com as máquinas (Antonio, reassentamento São Sebastião,
entrevistado pelo autor em 27/11/09).
154
Como se percebe pela fala do entrevistado, a UPF modernizou-se, porém preserva
fortes traços de campesinidade. Em primeiro lugar, o envolvimento das pessoas da família e a
valorização do trabalho, seja qual for, fortalece o grupo. O trabalho é considerado uma
obrigação moral pelo entrevistado, que se orgulha de ter calos nas mãos, apesar da UPF poder
contar com tecnologias que podem dispensar a força braçal. O indivíduo é valorizado não pelo
que ele(a) sabe fazer, mas pelo que efetivamente faz. Não há trabalho mais ou menos
importante. O que importa é o grupo. Os calos nas mãos são mostrados com orgulho porque
sinalizam a condição de agricultor comprometido com a sua obrigação de provedor do
sustento. Não se percebe que haja discriminação em relação às tarefas a serem realizadas no
dia a dia. Tirar leite (com ordenhadeira mecânica), por exemplo, é o serviço da esposa e
noras, porém informa que desde jovem sempre ajudou a tirar leite, embora esta seja uma
atividade de que não gosta e “como agora ficou mais fácil, por causa da ordenhadeira, né,
então fica pra elas” (Antonio). Por isso, prefere realizar outras tarefas, mesmo que sejam mais
difíceis.
Em relação aos futuros herdeiros ou sucessores da UPF, Antonio informou que “o neto
mais velho disse que pretende ficar na lavoura”. A mãe do menino, no entanto, intervém,
acrescentando: “é, ele me disse que não vai mais estudar, que vai ficar na roça. Mas, vai
estudar, sim; porque hoje tem que estudar”. Aqui uma outra representação social de trabalho
na lavoura. Essa percepção de trabalho como atividade de “gente sem estudo” foi manifestada
por vários outros entrevistados pertencentes a este e aos outros grupos. Houve um desabafo da
jovem mulher que lamentava informar que ela, aos 31 anos, havia estudado somente até a
série do ensino fundamental. Por essa razão, insistia em dizer que o jovem, com apenas 13
anos, não deveria parar de estudar para se dedicar à lavoura. Este é um tema ao qual será
dedicado mais tempo de análise ainda neste capítulo.
Outro exemplo de fortalecimento do grupo familiar que pode ser citado é o da família
de Guilherme, desalojado que adquiriu duas propriedades no interior do município de São
José das Missões, onde vive com a esposa e três filhos, todos solteiros. A propriedade-sede
tem 32,5 hectares e foi adquirida com recursos recebidos das indenizações da propriedade
antiga e com a venda de parte do plantel de vacas que tinha quando saiu da Serrinha. O
entrevistado informou que teve que se desfazer de parte das vacas, pois na indenização sua
terra fora subvalorizada, recebeu do Estado apenas R$ 5.000,00 por hectare de indenização,
enquanto teve de desembolsar R$ 10.000,00 por hectare, na compra da nova propriedade.
Uma outra propriedade, com 20 hectares, foi aquirida via financiamento pelo Banco da Terra,
155
em nome do filho mais velho. Embora ainda não esteja previsto nenhum casamento, a
permanência de pelo menos o filho mais velho na casa paterna é desejada por todos; tanto os
pais quanto os filhos fazem planos para manter a família unida. Decidido a continuar na
lavoura, o filho mais velho, que tem terra em seu nome, fala sobre a possibilidade dos
irmãos permanecerem na lavoura também:
Penso que isso mais tarde vai ser discutido na família. Pra ver, né. Porque são 3
irmãos, tem que ver se os outros vão estudar e sair ou se vão continuar aqui também.
Também tem a questão da privacidade do pai. No caso ele desde que casou com a
mãe sempre vem sofrendo pra conseguir as coisas. Sempre se endividando pra
conseguir ter um pedaço de terra. Então, estaria na hora dele começar a ter um
descanso, né. poderiam viver um pouco, né. E os filhos ir tocando a propriedade.
Mas, acho que isso mais pra frente vai ser visto. Sempre visando o melhor pro grupo
(Franciel, Linha Cristo Rei, São José das Missões, entrevistado pelo autor em
03/08/2009).
O pensamento no grupo, a ideia de fortalecer o grupo enquanto estratégia de
resistência sinaliza para a possibilidade de reprodução social desta UPF. O estudo do jovem
rural sempre representou a possibilidade do abandono do campo. Entretanto, o pai visualiza
uma possibilidade de conciliação do estudo com o trabalho no meio rural.
O mais novo vai concluir o ensino médio e vai fazer vestibular. O meu sonho
sempre foi ter um filho agrônomo. Vamos ver se o governo ajudar e se ele for bem
nas provas, né. Eu falei pra ele. Mas, ele disse que não quer sair muito longe. Daí
eu disse, não, de repente você pode trabalhar familiarmente. Pode dar assistência ou
trabalhar pra fora e continuar vinculado com a família. Porque hoje em dia pra
pensar em muitas coisas (alternativas) (Guilherme, Linha Cristo Rei, São José das
Missões, entrevistado pelo autor em 03/08/2009).
Via fortalecimento do grupo familiar, pela retenção dos filhos à casa paterna, criam-se
condições para a diversificação das atividades agrícolas, garantindo a ocupação dos membros
da família em diferentes momentos ao longo do ano agrícola. Entretanto, a produção em
escala, em face da modernização, tende a induzir o agricultor à monoculturização. Os
agricultores modernizados, por disporem de maquinários e de mais recursos financeiros,
tendem a reduzir menos suas atividades, na comparação com os demais tipos. Isso será mais
bem explicitado no tópico a seguir.
5.2.2 Diversificação das atividades produtivas
156
Entre as famílias de agricultores pesquisadas, o grau de diversificação das atividades
produtivas agropecuárias e agroindustriais, estas últimas considerando-se apenas as destinadas
ao autoconsumo, varia muito de uma para outra. No entanto, no cômputo geral observou-se
uma tendência geral para a diminuição no número de atividades após a reterritorialização,
tanto em relação à produção para comercialização (fontes de receitas agropecuárias ou
provenientes de atividades realizadas na unidade de produção), quanto para o autoconsumo.
Uma comparação entre os tipos de agricultores, no entanto, sinaliza para diferenciações
individuais com uma ligeira vantagem para os agricultores modernizados. A Tabela 12 e os
gráficos 1, 2 e 3, a seguir, ilustram o que se está afirmando.
Tabela 12 - Número médio de fontes de receitas agropecuárias/UPF de acordo com cada tipo
Fontes de receitas agropecuárias/UPF
TIPOLOGIA
AD AR
TIPO 1 – Tradicionais 3,4 3,1
TIPO 2 – Modernizados 4,4 3,5
TIPO 3 – Semimodernizados 4 2,8
FONTE: Dados compilados pelo autor
Os gráficos 1 e 2, a seguir, explicitam a variação do percentual médio de famílias por
número de fontes de receita agropecuárias (produtos comerciais), antes da desterritorialização
e após a reterritorialização, considerando o total de famílias pesquisadas. Percebe-se que após
a reterritorialização houve uma maior diferenciação entre as famílias, denunciando alterações
no formato organizacional e produtivo das UPFs, com tendência para a monoculturização.
4 fontes;
21%
3 fontes;
32%
5 ou +
fontes; 47%
13Gráfico 1 – Percentual de famílias por número de fontes de receitas agropecuárias AD
157
4 fontes;
26%
3 fontes;
37%
2 fontes;
11%
1 fonte; 5%
5 ou +
fontes; 21%
14Gráfico 2 – Percentual de famílias por número de fontes de receitas agropecuárias AR
Efetivamente, o gráfico 1 mostra claramente que antes da desterritorialização a
diversificação produtiva constituía-se em estratégia das famílias, uma vez que quase a metade
delas tinha cinco ou mais fontes de receita oriundas da produção agropecuária, característica
que se coaduna com a tradição das colônias de origem europeia do Rio Grande do Sul.
Ademais, nenhuma família tinha menos de três fontes.
o gráfico 2 mostra uma maior variação, pois o percentual de famílias que tinham
cinco ou mais fontes caiu para menos da metade, surgindo famílias com duas e até com
apenas uma fonte de renda agropecuária. Isso sinaliza para uma tendência à especialização
desses agricultores ou para uma redução das alternativas de renda.
Não obstante a redução no número de atividades agrícolas ou agropecuárias no
cômputo geral das UPFs pesquisadas, em algumas famílias o número de produtos, seja para
comercialização (conforme está explicitado na Tabela 13), seja para autoconsumo, manteve-
se estável ou até aumentou. Obviamente, no caso da produção comercial, na maioria das
famílias, existem um ou dois produtos de maior expressão, sendo os demais relegados a uma
condição secundária. É o caso da produção leiteira e de soja, conforme mostrado na figura 7.
158
15Figura 7 – Imagens da reterritorialização com prioridade para a pecuária leiteira e produção
de grãos.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
O gráfico 3 contém uma síntese das transformações verificadas nas famílias no que se
refere ao número de fontes de receitas agropecuárias, na comparação com a situação
encontrada antes da desterritorialização (AD) e após a reterritorialização (AR), considerando-
se a tipologia. Nota-se uma ligeira superioridade percentual de famílias com 4 e 5 ou mais
fontes de receitas no tipo 2 em relação aos tipos 1 e 3.
159
16
Gráfico 3 – Variação do percentual de famílias por número de fontes de receitas
agropecuárias, considerando os três tipos de agricultores
Fonte: Pesquisa de campo, 2009.
Em relação à produção para autoconsumo, no levantamento feito através do
questionário, foram considerados 14 produtos, tidos como típicos ou tradicionais da lavoura,
pecuária e agroindústria familiar das colônias do norte-noroeste do Rio Grande do Sul,
conforme informações obtidas com os entrevistados. Dos 5 produtos da lavoura de
subsistência: feijão (este cultivado, também, para fins comerciais por parte de algumas
famílias), arroz, mandioca, batatinha e batata-doce, dois deixaram de ser produzidos após
reterritorialização em mais de 90% das famílias: o arroz e a batatinha. No caso do arroz, a
alegação foi a de que não tinham mais onde descascá-lo
38
. No caso da batatinha, o argumento
foi o de que a terra da nova propriedade não tinha a fertilidade natural e as características
físicas (“terra de pedregulho”) ideais, segundo os entrevistados, para uma boa produtividade.
Em relação aos produtos da pecuária de subsistência: galinhas, ovos, leite e suínos,
não houve redução no número de produtos, mas nas quantidades produzidas. A maior parte
das famílias informou que estava criando menos galinhas, consequentemente, produzia menos
ovos. Também haviam reduzido o plantel de porcos. A explicação sobre a redução dessas
criações foi a de que haviam diminuído o consumo de muitos desses produtos e que lhes
faltava tempo para se dedicar às lides com esses animais. O maior envolvimento dos homens
com os trabalhos com máquinas e das mulheres na lida com a atividade leiteira, foram
argumentos para justificar a falta de tempo.
38
Na região da terra indígena de Serrinha, sobretudo na época imediatamente anterior ao desalojamento, fins dos
anos de 1990, ainda existiam vários moinhos coloniais para a fabricação de farinha de milho e, em anexo, os
descascadores de arroz. Com a modernização, foram desaparecendo.
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
70%
80%
A. D. A. R. A. D. A. R. A.D. A.R.
TIPO 1 TIPO 2 TIPO 3
a3 fontes
4 fontes
5 ou + fontes
160
Em relação aos produtos da agroindústria artesanal, mais difundida entre os
agricultores de descendência europeia do que entre os agricultores caboclos, a produção de
queijo foi mantida em mais de 90% das famílias, ainda que tenha aumentado a venda de leite.
Nesse quesito da agroindústria artesanal de subsistência, houve redução na produção de
geleias e, principalmente, de açúcar mascavo. A produção de geleias foi reduzida,
acompanhando a redução na produção de açúcar mascavo e de frutas, matérias-primas
utilizadas para o seu fabrico. Isso ocorreu principalmente entre as famílias dos
reassentamentos. A alegação foi a de que, no caso do açúcar mascavo, as condições de solo e
clima não permitiam produzir uma cana adequada para se obter “um açúcar que presta”. No
caso das frutas, a explicação era a de que o uso do veneno 2-4-D
39
pelos granjeiros, com
pulverizações por aviação, afetava os pomares, provocando queda das flores e frutas pequenas
ou até a morte do pomar.
A produção leiteira e a sojicultura aparecem como as atividades agrícolas comerciais
preferidas. O milho é cultivado em parte para fins de produção de silagem e em parte para a
produção de grãos. Em menor escala aparece o trigo e a pipoca, esta cultivada em 3 das 19
propriedades do grupo, todas integradas a uma agroindústria de um município da região da
serra do nordeste do Rio Grande do Sul. Esses são os produtos no âmbito da produção em
escala.
No entanto, em algumas propriedades foi possível encontrar atividades voltadas para
mercados específicos, economia de escopo. O caso mais emblemático é o da família de
Antonio, supramencionada. A família produz para fins comerciais oito tipos de produtos,
sendo 4 para o comércio em grande escala (
commodities
): soja, milho, trigo e leite e 4 para
comércio local: feijão, mandioca, pipoca e suínos, parte da produção se destina ao Programa
Fome Zero e parte a pequenos comerciantes, atravessadores e/ou consumidores locais. O
entrevistado disse que a venda dos porcos se esporadicamente; a maior parte é destinada a
um pequeno abatedouro de uma cidade próxima ou ele mesmo abate e vende a carne para
compradores locais. Disse que neste caso “fica meio difícil, né, porque hoje em dia a
fiscalização tá em cima”.
Um dos entraves da produção diversificada, segundo as pessoas da família
entrevistada, é a falta de mão de obra. Essa carência é explicada pelo fato de que além dos
trabalhos na produção, existe aquele para o beneficiamento e, em alguns casos, para a entrega
dos produtos. A nora e a esposa de Antonio queixavam-se de que dava muito serviço preparar
39
Herbicida ou dessecante usado para matar certos tipos de inços resistentes ao Glifosato.
161
os pacotes dos alimentos do Programa Fome Zero: “tem que ficar um dia inteiro preparando,
fazendo os pacotes; porque tem que ser tudo em porções: três e cinco kg de feijão, três de
pipoca, cinco de mandioca”.
5.2.3 Capitalização e modernização nas reterritorializações
Ploeg (2008), na discussão que faz sobre a territorialização camponesa no contexto da
modernidade capitalista, em obra que trata das diferentes estratégias de luta por autonomia do
campesinato contemporâneo frente ao poder do que chama “impérios alimentares”, ele aponta
para algumas possíveis alternativas para os componeses em um iminente processo de
“recampesinização”. A reconstituição do campesinato, na direção da mudança de estratégia
visando a sua reprodução social, dá-se de forma não repetitiva. Isto é, a reconstituição do
campesinato tende a promover formas variadas de (re)territorialização camponesa, que são
superadas continuamente incorporando novas demandas e redefinindo novas estratégias.
Portanto, a reconstituição “se desenvolve de forma dinâmica e heterogênea; seu roteiro está,
de certa forma, constantemente sendo reescrito de acordo com as dificuldades e desafios que
surgem ao longo do caminho” (PLOEG, 2008, p. 296).
Os desafios e as oportunidades que se apresentaram aos agricultores
desterritorializados de Serrinha na busca pela reterritorialização levou-os a se valerem de
certas estratégias que se mostraram mais eficientes. Como uma importante oportunidade,
destaca-se a possibilidade de aumento no tamanho da propriedade. Efetivamente, a maioria
desses agricultores desreterritorializados teve aumentada a área de suas propriedades. As 52
famílias pesquisadas tinham propriedades com área média de 13,6 hectares/UPF antes da
desterritorialização, passando para 19,8 ha na nova. Como já foi dito na introdução desta tese,
os primeiros reassentados
40
foram beneficiados por políticas públicas do Governo do Estado
da época, tendo sido contemplados com lotes rurais maiores em comparação aos últimos
reassentados e aos que decidiram adquirir lotes por conta própria, com recursos obtidos com
as indenizações pagas pelo Estado e Funai e em alguns casos com recursos do Banco da
Terra.
Ressalta-se também que melhorou a qualidade da terra e a localização dos lotes das
famílias reassentadas. Com mais terra e mais favorável à mecanização, o agricultor que
40
Reassentados entre 2000 e 2002.
162
possuía alguma máquina e alguns implementos na antiga morada pôde se estruturar melhor,
aderindo ainda mais aos pacotes tecnológicos modernos. Este foi o caso do grupo dos
modernizados. No entanto, é importante que se esclareça, isso aconteceu com as famílias
desse grupo em maior escala e com os semimodernizados, em menor escala. Situação
contrária verificou-se com os agricultores tradicionais.
A Tabela 13 mostra a variação no tamanho médio das propriedades agrícolas dos
agricultores pesquisados segundo a tipologia. Observa-se que os agricultores do Tipo 2 que já
possuíam propriedades com áreas médias significativamente maiores continuaram tendo após
a reterritorialização, aumentando a diferença em relação aos demais ou distanciando-se em
termos fundiários, principalmente em relação aos tradicionais (Tipo 1). Essa foi, segundo os
próprios entrevistados, uma das razões da melhoria e ampliação do acervo tecnológico desses
agricultores.
Tabela 13 - Área média dos estabelecimentos em cada tipo de desreterritorializados
Área média dos estabelecimentos (ha)
TIPOLOGIA
Antes da desterritorialização
Após reterritorialização
TIPO 1 – Tradicionais 10,3 8,1
TIPO 2 – Modernizados 19,7 34,3
TIPO 3 – Semimodernizados 10,8 17,1
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
É importante frisar que a maioria dos agricultores modernizados não melhorou seu
acervo tecnológico individualmente. A estratégia que mais deu certo, segundo relato dos
próprios agricultores, foi a formação de grupos para a compra de máquinas, implementos e/ou
equipamentos modernos. Essa estratégia foi adotada em vários reassentamentos formados por
grupos oriundos da mesma comunidade, a maioria parentes em primeiro e/ou segundo grau.
Esse foi o caso do reassentamento Cristo Rei, no município de Chiapeta, noroeste do Estado.
Nesse reassentamento, formaram-se diversos grupos de sócios, em vários momentos,
objetivando facilitar a compra de máquinas e/ou equipamentos novos. De acordo com o tipo e
valor do bem adquirido, o grupo é maior ou menor. Além disso, o rateio do pagamento do
patrimônio e, posteriormente, do custo de manutenção do bem, em geral, não é feito de forma
equitativa. Cada sócio tem certa quantidade de cotas, de acordo com o mero de hectares de
sua propriedade. Conforme relatado por um dos associados:
Essa forma de sociedade surgiu no início do reassentamento. É por hectare.
Conforme a quantidade de terra, ficava com uma certa porcentagem de parte nas
163
máquinas. Depois, nos consertos das peças, quando estragasse, também. Foi assim
na compra. Quem tinha mais terra pagou uma porcentagem mais alta (Irineu,
reassentamento Cristo Rei, Chiapeta, entrevistado pelo autor em 09/10/2009).
O grupo de sócios é composto em sua maioria por parentes irmãos, cunhados e
primos, preferencialmente. No caso do grupo de Irineu, apenas um dos integrantes não é
parente. Segundo o entrevistado, é por isso que deu certo até o momento, porque quando
precisa decidir, vai pela maioria dos sócios, né. O que a maioria dos sócios decidir, tá
decidido”. Em relação a ordem dos plantios ou colheitas e possíveis desentendimentos entre
sócios por causa disso, ele diz: “Já planeja antes; combina, né, um planta antes outro, depois.
Que nem o caso do milho, começa num lugar e vai indo até o último”. Porém reconhece que
“um dia pode não dar mais certo”. Entretanto, entende ser esta a única saída para o “pequeno”
[...] “Imagina ter um trator sozinho ou uma plantadeira, com pouca terra, não tem como
sustentá essas máquinas, porque as máquinas m um custo altíssimo, além do custo pra
compra, tem a manutenção” (Irineu, entrevista supracitada).
Dependendo do tipo de patrimônio adquirido, o número de sócios, bem como a
quantidade de cotas por sócio aumenta ou diminui:
Em seis, temos o trator e a plantadeira de sete linhas que é por hectare. Daí temos
também a ensiladeira,que essa todos têm a mesma porcentagem, independente da
quantia de terra. Nessa condição tem também o pulverizador e o esparramador de
ureia. Temos também a ceifa (colheitadeira) que é por hectare, que essa tem mais
sócios. Tem 12 sócios (Irineu).
Um outro entrevistado do mesmo grupo de Irineu aponta como principal vantagem de
se ter maquinários e equipamentos em conjunto a racionalização do uso desses bens: “a gente
tem o maquinário de acordo com a quantia de terra que a gente tem, não sobra máquina, não
se tem que fazê horas de trator pra fora pra não deixá ele parado” (Leocir, reassentamento
Cristo Rei, entrevistado em 09/10/2009).
O apelo aos financiamentos bancários tem sido outra estratégia usada pela maioria das
famílias pesquisadas, refletindo-se num considerável aumento nos índices do indicador
dependência financeira, revelando, por conseguinte, maior adesão dessas UPFs à
modernização tecnológica. Entretanto, aqui novamente verificam-se disparidades gritantes no
que tange ao uso de recursos bancários entre os três tipos, como se percebe na Tabela 14.
164
Tabela 14 - Variação dos índices de dependência financeira de acordo com os diferentes tipos
Tipologia AD AR
TIPO 1 – Tradicionais 0,357 0,357
TIPO 2 – Modernizados 0,711 0,974
TIPO 3 – Semimodernizados 0,558 0,788
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Novamente percebem-se disparidades, sobretudo, na relação entre modernizados e
tradicionais. Os elevados índices de adesão aos financiamentos dos primeiros é reflexo,
sobretudo, dos contínuos investimentos na compra de máquinas, implementos e equipamentos
e do custeio das lavouras, a cada ano mais exigentes em insumos químicos, especialmente
defensivos para controle de pragas e doenças. Programas governamentais de apoio à
renovação da frota de maquinários, como o PMA-Pronaf do Governo Federal, por exemplo,
também têm contribuído para o aumento no volume de financiamentos.
17
Figura 8 – Imagens da reterritorialização dos modernizados: Agricultura de escala,
tecnologia e dependência de financiamentos
FONTE: Arquivo pessoal do autor
165
Como foi referido, a maioria dos agricultores desalojados-modernizados foi
reassentada em reassentamentos coletivos. Isso permitiu a reconstituição de grupos de
parentelas – irmãos, tios, sobrinhos, genros existentes antes da desterritorialização e até a
formação de novos grupos no reassentamento. Como consequência positiva, essa estratégia
facilitou o reforçou a reciprocidade.
5.3 TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS COM MÁQUINAS E A
DESESTRUTURAÇÃO DO GRUPO FAMILIAR
O grupo de agricultores desreterritorializados do tipo semimodernizados abarca
exatamente 50% dos pesquisados. Das 26 famílias enquadradas neste grupo, 17 (65%) foram
para reassentamentos e 9 (35%) foram indenizadas e com a indenização adquiriram
propriedades nos municípios da própria região de origem. A exemplo dos agricultores
tradicionais, estas 9 famílias indenizadas preferiram não se aventurar em reassentamentos,
demonstrando uma certa prudência ou aversão ao risco.
Além de ser o mais numeroso o grupo dos semimodernizados é, também, o mais
heterogêneo e, por isso, o mais complexo para se analisar. A organização social e produtiva
dessas UPFs ora se aproxima das unidades de produção do Tipo 1, ora do Tipo 2, isto é,
alguns desses agricultores apresentam desempenhos e/ou comportamentos que se aproximam
dos modernizados, outros apresentam características típicas dos tradicionais. Três
características, no entanto, são peculiares desse grupo: a) os agricultores passaram a utilizar
mecanização em praticamente 100% de suas lavouras, após a reterritorialização, mas não
possuem máquinas (ou nunca possuíram), dependendo, por conseguinte, da terceirização dos
trabalhos (plantios, tratos culturais e colheitas); b) a média de pessoas por família diminuiu
após a reterritorialização na maioria das famílias, resultando num decréscimo também no
número de UTHs/UPF muitos filhos ou pessoas idosas que antes faziam parte da força de
trabalho acabaram migrando para as cidades, por ocasião dos desalojamentos, devido à
demora para o pagamento das indenizações ou para a efetivação dos reassentamentos ou ainda
porque não se adaptaram às novas moradas; c) o número médio de atividades ou fontes de
receita agropecuárias por família diminuiu mais neste grupo, na comparação com os demais.
Comparando a Tabela 11 (UTHs/UPF) com a Tabela 12 (Fontes de receitas
agropecuárias/UPF), percebe-se que houve queda tanto no UTHs por UPF quanto no número
166
de atividades agropecuárias comerciais, apesar do aumento no tamanho médio das
propriedades (vide Tabela 13) neste grupo de agricultores. Isso induz a se pensar que houve
perda no grau de campesinidade dessas famílias que estão apelando para estratégias de
reprodução social que não contemplam duas das principais características da agricultura
camponesa ou colonial: o trabalho familiar e a diversificação.
Mesmo com a diminuição no número de UTHs/UPF, na maioria das famílias existe
ociosidade de mão de obra. Isso se explica pelo reduzido número de ocupações agropecuárias
e pela terceirização da maior parte dos trabalhos. Com isso, em algumas famílias, os filhos e
às vezes o próprio responsável pelo domicílio saem para trabalhar como diaristas ou como
mensalistas em estabelecimentos agrícolas próximos ou acabam migrando para a cidade. Em
geral, isso determina a diminuição do vínculo destes com a UPF, que acabam perdendo o
“gosto pela terra”, parafraseando um dos entrevistados. Um agricultor entrevistado, morador
do reassentamento 19 de Abril, no município de Santo Augusto, informa que pretendia se
dedicar à produção leiteira, porém argumentava:
Não vou deixá de plantar soja e milho (pra grão), nem pensar. Porque se fosse pra
produzir mais leite, dteria que ter mais gente na casa. nós dois e já com 50
anos, não é fácil. É que o rapaz não vai ficar, ele saiu, né. Ontem mesmo ele veio
buscar a mudança. Foi trabalhar numa granja de porco. Por que nóis ficá aqui em 3,
por enquanto não adianta. Não tem serviço. Porque a lavoura a gente paga pra fazê.
[...] Hoje eu mais administro (Celso, reassentamento 19 de Abril, Santo Augusto,
entrevistado em 27/07/09).
Percebe-se que houve uma mudança nas relações de trabalho dessa UPF. A lógica da
funcionalidade do empreendimento familiar tradicional, assentada no tripé terra-trabalho-
família e na diversificação, se desfez após a desterritorialização. Na sua origem, ele era um
agricultor tradicional, vivendo em 8 hectares de terra, usando exclusivamente trabalho
familiar, braçal e de tração animal. Hoje, possuindo uma propriedade um pouco maior (12,5
ha) e com excelentes condições para a mecanização, se dedica ao cultivo de soja e milho, em
que atua apenas como administrador.
Enquanto alguns entrevistados demonstraram certo conformismo com a nova
situação/condição de agricultores terceirizadores, outros lamentaram não poderem dispor de
recursos para a aquisição de máquinas e mais terra para viabilizarem a mecanização:
O Tinei queria a roça. O sonho dele é a roça. Ele adora trabalhar na roça com
maquinário. O Tinei, se nós tivesse máquinas, meu Deus do céu. Quando nóis tava
ali em cima [primeiros dois anos, quando estavam todos na sede da fazenda,
trabalhando em conjunto] ele vivia mexendo com motores [...] era a paixão dele, e
167
ele tava entendendo bastante. Ele já colhia com ceifa, plantava... (Cristina,
Reassentamento 19 de Abril, Santo Augusto; entrevistada pelo autor em 27/07/09).
É, por ele ficaria sempre em cima de uma ceifa ou trator; que aqui, dois homens
com 12 hectare de terra não dá. Na verdade, teria que ter pelo menos mais um lote.
(Nelso, Reassentamento 19 de Abril, Santo Augusto; entrevistado pelo autor em
27/07/09).
Nas falas dos entrevistados, são exaltadas as habilidades do filho, que havia migrado
para a cidade, e sua disposição para trabalhar com máquinas, enquanto o pai reconhece a
inviabilidade da permanência de “mais um homem” para viver em apenas 12 hectares de terra.
O desejo do pai, no entanto, era manter os filhos por perto, alegando que, se pudesse,
“seguraria os filhos aqui na agricultura pra ficá mais tranquilo, porque daí se sabe que não
estão usando drogas”.
A ideia da transformação da lógica de reprodução do empreendimento é expressada
nas duas falas. Trata-se de uma UPF que tinha na sua origem características que se
aproximavam do campesinato tradicional ou caboclo: exclusividade do trabalho familiar,
fraca vinculação com mercados, baixa insumização e trabalho predominantemente braçal.
Essa lógica de reprodução é transformada radicalmente com o reassentamento. A inserção no
mercado de
commodities
, as condições geográficas e o novo contexto socioeconômico global
exigem uma racionalidade nova, que clama por capitais (financeiros, técnicos, culturais)
ausentes na família. Por isso, a situação se complica e a reprodução social está ameaçada,
embora permaneça o sonho do filho de “subir nas máquinas”.
5.3.1 Reassentados e indenizados: racionalidades e trajetórias diferenciadas
A despeito das características comuns a todos os agricultores semimodernizados
citadas acima, é possível observar diferenças entre reassentados e indenizados. A principal
característica diferenciadora é o estado de espírito ou de ânimo dos agricultores, manifestado
nas entrevistas. Os reassentados se mostraram muito mais confiantes em relação ao futuro,
planejando inclusive a volta dos filhos que algum tempo haviam partido para a cidade. A
fala do reassentado ilustra um pouco o que se está sugerindo:
Se is conseguisse mais algum pedaço, pra eles ficá junto comigo. Porque o rapaz
mais velho já tava em São Paulo e veio de volta. Foi, trabalhou um tempo e voltou.
Não adianta, eu tenho esses dois piás, a gente condições pra um estudo bom
não tem, trabaiá de empregado, sem estudo, também dá pouco. Então eu disse:
venham aqui, que depois vamos dar um jeito. Vamos comprar mais um pedacinho
de terra, vamos lidá com umas vacas, quem sabe vamo boum chiqueiro, se nóis
168
consegui mais uma terra. Botá um chiqueirão grande, né. Então, vai indo. Com vaca,
estufa, chiqueiro, lavoura [...] um pouco com uma coisa um pouco com outra,
funciona, né. Tu não vai ficar rico, mas pra vi tu faz,
.
Porque fiz este
financiamento, em nome do piá, pra esta estufa. Agora vamo tentá com esse Banco
da Terra. Queria ver se conseguisse comprar mais um pedacinho pra ele. Pra por o
chiqueiro como te disse e mais umas vacas. Por exemplo, ao em vez de 10 vacas,
como eu tenho, botar umas 25. Daí, enquanto cuida de uma coisa, vai cuidando de
outra, né. Enquanto isso, os pequeno podem crescê (Ademir, Reassentamento Cristo
Rei, entrevistado pelo autor em 09/09/2009).
Nota-se que uma preocupação desse entrevistado em diversificar a produção, “pra
dar serviço pros piá”, reforçando a campesinidade via diversificação, enquanto estratégia de
sobrevivência ou de capitalização. A fala “enquanto isso, os pequeno podem crescê” revela o
sonho na viabilização da unidade de produção, através do fortalecimento do grupo familiar,
via diversificação. Isso destoa do discurso daqueles que rejeitam a ideia da diversificação, sob
a alegação da falta de mão de obra. Isto é, enquanto uns rejeitam a ideia da diversificação,
alegando essa carência, outros buscam a diversificação como estratégia para reter a força de
trabalho.
Contrariamente ao caso do reassentado citado, a maioria dos indenizados, inseridos em
contextos rurais da região de origem, mostrava-se insatisfeita por alguma razão, seja em
relação às políticas públicas para a agricultura, seja com os vizinhos (comunidade), com o
tempo (“que uma hora faz seca, outra hora enchente”) ou por outros motivos. Indagados se
gostariam que seus filhos continuassem no meio rural, em geral, eram enfáticos, conforme a
fala deste entrevistado:
Ah, não. Hoje a agricultura está inviável. Hoje não fácil. O que a gente tem pra
vender não vale mais nada. Produto, quando a gente não tem, daí vale, quando tem,
não vale nada, às vezes nem querem. Os filhos que vão pra cidade vão encontrar um
trabalho que mais do que aqui na lavoura; eles se puderem buscar uma vida
melhor, acho que é melhor eles irem atrás do melhor. (Luis Carlos, Linha Pipiri,
Três Palmeiras, entrevistado pelo autor em 06/11/09).
Os reassentamentos, levados a efeito a partir da organização dos próprios desalojados,
apresentaram-se como formas mais apropriadas de reterritorialização. Como disse um
entrevistado, recomeçar a vida junto daqueles que você conhece, em quem pode confiar, é
bem melhor do que no meio de estranhos” (Moacir, entrevista citada). Na próxima
subseção, algumas considerações sobre esse assunto.
5.3.2 “Forasteiros” versus enraizados
169
Um dos motivos de insatisfação dos indenizados em relação ao lugar de
reterritorialização diz respeito à falta de adaptação à “nova comunidade de enraizamento”.
Aqui se deve ressaltar que, enquanto na maioria dos reassentamentos houve transplantação de
uma antiga comunidade para o novo local, com a preservação das antigas redes sociais de
reciprocidade, no caso dos indenizados, ocorreu o contrário. Houve o esfacelamento das
comunidades de origem, com o rompimento de redes de relações sociais e de parentesco que
contribuíam para a coesão social. Vários indenizados entrevistados manifestaram
descontentamento, sobretudo, em relação aos costumes dos novos vizinhos. As falas de dois
entrevistados indicam a dimensão do problema:
Aqui os vizinhos passam até seis meses sem se visitar. Bom, pra te dizer a verdade,
sabe com quem a gente se ajuda aqui? Com o meu amigo que veio de lá. Com o
Roncai, de cima, que o senhor deve ter entrevistado também. Porque eu ajudo ele
a plantar milho, fui lá esses dias com a minha plantadeirinha a boi; ele vem aqui, me
ajuda na carneação. Se troquemo carne. Mas, com ele. os outros vizinhos aqui
são diferentes. Então mudou completamente o ritmo aqui, viu. O pessoal aqui é
diferente. Já eu e ele toquemo no mesmo ritmo de lá. Aqui se você encontrar alguém
na estrada, ele ra no máximo dois minutos e já se manda. Lá, o nosso costume era
quando a gente se encontrava, tocasse de ficar até meia hora sentado num barranco
de estrada, a gente ficava proseando (Moacir, Linha Maraschim, Engenho Velho,
entrevistado pelo autor em 26/12/09).
Mudou a vizinhança, né. Cada um na sua casa. Lá costumavam se visitar mais. Lá se
costumava trocar serviços, aqui não tem. Trocava serviços porque se fazia a mão, na
safra, cortar soja. Na carneança de um porco ou de uma criação [...] embaixo a
gente tinha a turma da bola, se jogava todos os sábados, domingos. Aqui nunca mais
joguei depois que vim de lá. Então muda, o cara estranha. Lá nós tinha o nosso time,
mesmo que meio de idade. Então se divertia, jogava aqui e ali. Porque eu não sou de
bodega. Aqui o pessoal gosta de bodega (Olímpio, Linha Maraschim, Engenho
Velho, entrevistado pelo autor em 26/12/09).
As falas dos dois entrevistados expressam muito e trazem implícita a ideia da perda da
campesinidade. Deve-se considerar que ambos têm suas origens fortemente marcadas por
relações sociais e modos de vida que remetem ao
ethos
de colono. Apresentando um alto
índice de campesinidade antes da desterritorialização, houve forte queda posteriormente. O
ICUPF de Moacir passou de 0,786 antes da desterritorialização para 0,541 depois. Por sua
vez, o ICUPF de Olímpio teve uma queda ainda mais acentuada, passando de 0,782 antes para
0,455 depois. São mudanças bem mais expressivas do que a média geral dos pesquisados em
que a variação foi de 0,734 antes para 0,609 depois. O indicador reciprocidade foi o que teve
maior decréscimo.
A reciprocidade teria origem na dialética da diva do dar e receber proposta por
Mauss. Segundo este autor, “recusar-se a dar, negligenciar o convite, como recusar receber,
equivale declarar a guerra; é recusar a aliança e a comunhão” (Mauss, 2008, p. 71). A
170
manutenção dos valores humanos éticos sobrepostos ou colocados acima do puro interesse
econômico egoísta constitui a base das estruturas de reciprocidade simétrica, nos termos
propostos por Sabourin (2009). Os excertos das entrevistas citados acima expressam o
descontentamento com a mudança para o novo contexto social rural, onde passaram a viver
após a reterritorialização. Em outro trecho, um dos entrevistados denuncia o interesse
econômico egoísta de um de seus novos vizinhos: “Passou um cara um dia desses com a ceifa
e não quis colher minha soja. Disse: é, mas você não veio falar antes pra mim, agora não
posso. não acontecia isso, o vizinho que tinha máquina colhia de todos os da linha. Então
mudou completamente, né” (Olímpio).
Diante da situação desconfortável em que se encontram, boa parte dos indenizados
entrevistados, enquadrados como semimodernizados, demonstrou interesse em vender suas
propriedades e ir para a cidade ou adquirir uma outra propriedade rural próxima a algum
parente ou antigo vizinho.
Diferentemente dos indenizados, os reassentados mostram-se, em geral, orgulhosos de
sua comunidade. Falam sobre o “recomeço” como uma importante etapa de suas vidas. As
imagens da figura 9 expressam simbolicamente os diferentes momentos da (re)construção da
comunidade, com ênfase na religiosidade.
18Figura 9 – Imagens da Reterritorialização pelo fortalecimento da comunidade no
reassentamento, com ênfase na religiosidade.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
171
5.3.3 Do campo para a cidade e o retorno ao campo
Se alguns dos agricultores reterritorializados pensam em vender suas propriedades e ir
para as cidades, por não se adaptarem ao novo contexto social rural, como foi explicitado
acima, outros, depois de migrarem para a cidade, decidiram voltar para o meio rural. Isso
aconteceu com 5 dos 26 entrevistados.
De acordo com as entrevistas realizadas, a decisão de migrar para a cidade estava
ligada a fatores variados: a) demora do Governo do Estado do RS na efetivação dos
levantamentos fundiários, indenizações e/ou reassentamentos; b) necessidade de buscar
trabalho, em face das dificuldades econômicas provocadas por secas; c) dificuldades de
convivência com os indígenas, forçando a saída imediatamente após as indenizações das
benfeitorias pela Funai, porém antes que tivesse sido resolvida a questão da terra com o
Estado; d) atrativos da cidade, propalados por parentes já radicados nelas, durante visitas.
Embora tenham migrado para a cidade por razões diferenciadas, os agricultores
apresentaram justificativas semelhantes a respeito da decisão de retornar ao campo. É possível
reter algumas representações sobre a vida e o trabalho no campo e na cidade, um espaço se
contrapondo ao outro, pelas falas dos entrevistados a seguir.
Porque eu me criei na agricultura. Gosto da agricultura. Quando saí, fui pra cidade,
mas, me parece que não é o meu lugar. Então resolvi voltar. Eu fui pra cidade
porque nóis tinha que saí de da Serrinha. Então, enquanto a gente não arranjasse
terra, fui pra cidade. Porque a gente não tinha pra onde ir, não tinha mais a terra pra
plantar. Então acabei indo pra cidade. Mas, sempre com a ideia de que, no momento
que nós conseguisse a terra, eu voltaria pra agricultura. A minha ideia sempre foi
essa. [...] eu me sinto mais livre, mais solto, aqui no interior. Mais à vontade. na
cidade, parece que tudo está mais fechado. Sei lá, essa questão do horário [...] até
porque o meu horário era bem sofrido, na verdade sobrava pouco tempo pra ficar
com a família. Saía logo de meio-dia e voltava três, quatro da madrugada. Daí
dormia até quase meio-dia e tinha que ir pro trabalho de novo. Isso de segunda a
sábado, sobrava só o domingo pra descansar. [...] aqui eu consigo ficar mais à
vontade [...] sabe, criado no interior, né. É isso, acho que é a questão da liberdade,
mais liberdade no interior (Dolcimar, Reassentamento 19 de Abril, município de
Santo Augusto; entrevistado pelo autor em 11/06/2009)
41
.
Eu me criei na agricultura, né. Eu não sei lidar com nada na cidade. Não tenho
profissão nenhuma, a não ser agricultor. Daí, a cidade pra mim não me serve. Então
por isso nós ficamos esperando até o Governo arrumar terra pra nóis. Então, quando
o governo arrumou esta terra aqui, eles me ligaram, disseram, olha, tem terra em
Chiapeta, quer morar com nós? Daí eu vim olhar a terra aqui, disse, não, eu vou pra
lá. Daí viemo embora (JoMilton, Reassentamento Novo Horizonte, município de
Chiapeta, entrevistado pelo autor em 04 de dezembro de 2009)
42
.
41
Após sair da TIS, este agricultor viveu 3 anos em Passo Fundo.
42
Após sair da TIS, o entrevistado viveu 4 anos em Porto Alegre.
172
Porque eu me criei na lavoura e é o que eu sei fazer e gosto de fazer. Lá no
frigorífico, como eu não tinha estudo, o pior serviço tocava pra mim. Era pendurar
frangos, de noite. Tinha que pendurar 18 cargas de frango por noite, em 4 pessoas.
Chegava no fim da noite eu tava quase morto, de tanto trabalhar. Além disso, a firma
tava meio falindo, me deixaram dois anos sem férias. Então tava ficando doente,
me deu uma depressão, nem sabia direito o que era. Cada vez que ia fazer uma
refeição, formava uma bola assim aqui, não conseguia engolir. Então fui nos
médicos. Me levaram pra Caxias, Porto Alegre, fizeram todo o tipo de exame e não
acharam nada. Daí o médico me disse, deve ter alguma coisa que tu não contente,
por que você não tem nada. [...] daí decidi voltá pra lavoura. [...]
Terra representa o
que eu sei fazer
.
A única coisa que sei fazer é trabalhar na terra (Valmir, Linha
Morais, município de Sagrada Família, entrevistado pelo autor em 03/07/2009)
43
.
Percebe-se que uma sintonia nas falas dos entrevistados quanto às razões que os
fizeram voltar ao meio rural após estarem radicados no meio urbano. As representações
sociais do campo como o lugar que oferece certas vantagens, como a garantia de trabalho para
aquele que “não tem uma profissão, a não ser agricultor”, aliam-se à ideia de agricultor como
aquele que tem liberdade. Em que pese o argumento recorrente de muitos agricultores de que
a lavoura é um lugar que exige esforço físico excessivo, raramente recompensado com retorno
financeiro (CARNEIRO, 2003), as entrevistas permitem perceber o inconformismo dos
entrevistados em face do trabalho penoso enfrentado por eles na cidade.
Porém, a permanência no campo ou o retorno a ele daqueles que foram para a cidade
não parece ser algo garantido. Boa parte dos entrevistados do grupo de agricultores
semimodernizados manifestou o desejo de migrar para a cidade após obter a aposentadoria.
5.4 RELAÇÕES MERCANTIS
A migração compulsória, além de promover mudanças na vida dos agricultores, como
as descritas, também provocou substanciais alterações nas relações mercantis após
reterritorialização. Uma das características da agricultura colonial do Rio Grande do Sul na
sua origem era a articulação ou a dependência do colono ao comerciante local. A classe dos
comerciantes da linha, em geral colonos que se transformavam em capitalistas, teria sido,
segundo Roche (1969), a única classe rural a enriquecer nas velhas colônias alemãs, lançando
as bases para a penetração das sementes do capitalismo nas colônias. Nas colônias novas do
norte gaúcho e, particularmente, naquela estabelecida no interior da Terra Indígena de
Serrinha, o comerciante das linhas ou pequenos povoados continuou hegemônico nas relações
mercantis dos agricultores familiares até os anos de 1980. Aos poucos, e com o avanço da
43
Após sair da TIS, o entrevistado viveu 4 anos em Garibaldi, trabalhando num frigorífico de aves.
173
agricultura de grande escala, esses comerciantes foram perdendo espaço para as grandes
cooperativas e empresas integradoras (CARINI, 2005).
Não se tem o propósito de discutir nesta tese a história do sistema cooperativo no Rio
Grande do Sul, porém deve-se salientar que ele passou a ter um papel determinante na
consolidação da Revolução Verde, sobretudo, a partir dos anos de 1970. Assim, de
dependente-subordinado ao “pequeno capital”, o agricultor passou a ser dependente-
subordinado ao grande capital. No norte-noroeste do Rio Grande do Sul, o sistema
cooperativo cresceu de forma magistral, como uma estratégia do Estado capitalista dentro de
um projeto modernizante (Tedesco et al., 2005). O sistema cooperativo passa a ser um
instrumento de modernização agrícola e de aumento da produção/produtividade (CARINI,
2005).
A partir dos anos de 1980, na maioria dos municípios de agricultura de tradição
colonial do Rio Grande do Sul, os comerciantes, que antes tinham suas bases nas linhas,
picadas e travessões das colônias e, portanto, estavam próximos dos colonos, transferem suas
casas comerciais para as sedes dos municípios. Porém, continuam mantendo, ainda que em
um volume cada vez menor, relações de comércio com os colonos. Assim, boa parte dos
entrevistados disse que até final dos anos de 1990 (início da saída dos agricultores da Terra
Indígena de Serrinha) ainda vendia quase a totalidade de suas colheitas a comerciantes
locais
44
. A Tabela 15 ilustra o volume de comércio realizado com comerciantes locais pelos
agricultores pesquisados, no último ano agrícola antes das desterritorializações.
Tabela 15 - Percentual de famílias que venderam seus produtos a comerciantes locais no
último ano agrícola AD, por percentual de vendas, de acordo com os diferentes tipos
Volume das vendas Tradicionais
(%)
Modernizados
(%)
Semimodernizados
(%)
Não venderam 0 31,6 30,8
Venderam até 50% da
produção
0 47,4 26,9
Venderam de 51 a 70%
da produção
14,3 0 7,7
Venderam de 71 a 100%
da produção
85,7 21 34,6
TOTAL 100 100 100
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
44
Entende-se aqui por comerciantes locais aqueles estabelecidos no meio rural, nos povoados, linhas ou sedes de
distritos e que no caso das colônias de descendentes de europeus do Rio Grande do Sul, tanto nas chamadas
Colônias Velhas quanto nas Novas, desempenharam papel exponencial para a inserção dos colonos nos
mercados.
174
Percebe-se que, nas condições de mercantilização AD, todos os agricultores
dependiam do comércio local, ainda que em percentuais diferenciados consoante a
racionalidade. Obviamente, os agricultores tradicionais, por suas peculiaridades, eram bem
mais dependentes.
Após a reterritorialização, ocorreu um intenso processo de mudança nas relações
mercantis desses agricultores, com o fortalecimento do monopólio do comércio exercido pelas
grandes cooperativas, que passam a se beneficiar do trabalho e a exercer grande influência nas
decisões dos agricultores, como ocorrera no passado com os comerciantes das linhas, porém
nesse momento de forma bastante sofisticada. Assim, de um sistema de comércio em que
prevaleciam as relações pessoais ou subjetivas, amistosas, entre agricultor e comerciante,
passou-se para um sistema de relações contratuais, altamente burocratizadas e objetivas entre
agricultor e cooperativa ou agricultor e empresa integradora.
Os dados mostrados na Tabela 16, abaixo, mostram uma situação de mudanças nas
relações mercantis dos agricultores, sobretudo, dos modernizados e semimodernizados,
denunciando o forte atrelamento dos mesmos aos grandes mercados da economia de escala.
Tabela 16 - Percentual de famílias que venderam seus produtos a comerciantes locais no ano
agrícola 2008/2009, por percentual de vendas, de acordo com os diferentes tipos
Volume das vendas Tradicionais
(%)
Modernizados
(%)
Semimodernizados
(%)
Não venderam 0 79 81
Até 50% da produção 57,1 21 15
De 51 a 70% da produção
0 0 0
De 71 a 100% da
produção
42,9 0 4
TOTAL 100 100 100
FONTE: Pesquisa de campo, 2009.
Obviamente, o principal mercado comprador e vendedor passou a ser a cooperativa,
que se transforma no agente negociador e, por conseguinte, controlador da vida econômica do
agricultor. Agora o nível dos negócios não se restringe aos produtos coloniais e às
mercadorias (“secos e molhados”) consideradas de primeira necessidade, comprados e
vendidos em relações subjetivas (“olho no olho”, como disse um dos entrevistados) como
ocorria no tempo do comércio local, mas passa a existir uma complexa rede de relações
comerciais de caráter impessoal, com a subjugação do agricultor ao capital comercial,
agroindustrial e financeiro, através do sistema cooperativo. Além da comercialização de
produtos agrícolas e insumos, as relações entre cooperativas e agricultores envolvem,
175
também, a assistência técnica, a difusão de novas tecnologias, inclusive a assistência social.
Não é objetivo tratar em profundidade desse assunto, porém, é importante que seja lembrado,
pois teve papel decisivo no processo de reterritorialização de muitas famílias.
Referindo-se às relações mercantis no âmbito da agricultura familiar, Silva (2003)
afirma que a dependência-subordinação do pequeno agricultor ao grande capital, através de
sua rearticulação com agroindústrias e cooperativas, deixa-o com muito pouco espaço para
manobras. Tanto as indústrias quanto as cooperativas, ao firmarem contratos de compra e
venda, determinam as condições em que devem ocorrer as parcerias, estabelecendo critérios
rígidos quanto ao que deve ser produzido, qualidade, periodicidade, compra de insumos e
fidelidade na entrega do produto. O autor assevera ainda que, não obstante a aparência de um
caráter de produção mercantil independente, o capital socializa o processo de produção
camponesa, impondo o controle sobre o próprio processo de trabalho, salientando que não
interessa ao grande capital, representado pelas empresas ou grandes cooperativas, a
desativação das unidades camponesas devido à perda das propriedades, por isso estabelecem
mecanismos de compensação.
Os agricultores menos vinculados aos circuitos mercantis do agronegócio
notadamente os tradicionais e alguns semimodernizados queixaram-se da falta de
oportunidades para a comercialização de produtos que não se enquadram na economia de
escala, as “miudezas”. Um entrevistado declarou: “com exceção da soja, leite e milho,
difícil de vender alguma coisa”(Osvaldo, Linha Lajeado Bonito, Engenho Velho, entrevistado
pelo autor em 17/10/09). Segundo o agricultor, ‘antes’ da saída da TIS era fácil vender uma
galinha, uma dúzia de ovos, dois, três sacos de feijão, porém tornou-se muito difícil. Osvaldo,
comparando sua condição de reterritorializado com a situação na “outra morada”, revela:
O trabalho era o mesmo. que se tinha mais renda. Se produzia uma galinha
tinha pra quem vender. Aqui às vezes tem algum produto, tem uma galinha pra
vender, não querem; carneia um porco, tem um salame, uma banha, oferece, diz não,
eu não quero; oferece uma carne de uma criação que se desconta”, é a mesma
coisa. Essa que é a grande diferença. Lá se vendia de tudo: amendoim, feijão,
batatas, aipim, galinhas, ovos, o que tivesse (Osvaldo, Linha Lajeado Bonito,
Engenho Velho, entrevistado pelo autor em 17/10/09).
A vinculação dos agricultores ao grande capital forçou-os a aderir aos pacotes
tecnológicos modernos, na busca de maior eficiência, com aumento da produção e da
produtividade e com a melhoria da qualidade dos produtos. O setor produtivo que mais
avançou em termos de eficiência, após a reterritorialização, foi o leiteiro com ganhos de
produção/produtividade, tanto pelo melhoramento genético, quanto pelas melhorias no
176
manejo e alimentação. As imagens da figura 9 dão uma ideia do nível de tecnificação do
setor.
19Figura 10 – Reterritorialização via melhorias técnicas no setor leiteiro.
Fonte: Arquivo pessoal do autor.
No entanto, em relação aos reais ganhos financeiros resultantes dessas melhorias
operadas pelas condições técnicas, as opiniões dos entrevistados se dividem. Os tradicionais e
os parcialmente modernizados, em geral, reclamam que o aumento da produção-produtividade
não cobre os custos das tecnologias devido aos baixos preços pagos pelas empresas ou
cooperativas:
Pensa só, tem que vender um quilo e meio de leite, pra comprar um quilo de
ração. Porque tem que dar a ração na medida, porque senão não certo”. (Neusa, Linha
Pipiri, Três Palmeiras, entrevistada pelo autor em 06/11/09). Outra agricultora entrevistada
compara a produção mais dependente da natureza de antes com a produção dependente da
agroindústria de hoje:
177
A gente quase não tinha gasto com as vacas antes. Hoje produzem mais, mas
também se gasta mais. Então, eu digo que quase na mesma coisa. Eu tirava
menos leite, mas não gastava dinheiro em ração; dava o trato [alimentação] que
tirava da lavoura. Hoje, é quase na ração, toda comprada. (Jandira,
reassentamento da Cascata, Sarandi, entrevistada pelo autor em 19/09/09).
A fala de outra entrevistada, esta pertencente ao grupo dos modernizados, é indicativa
de uma outra racionalidade. Falando sobre a recente integração de sua UPF a uma empresa
transnacional do setor do leite, disse que havia conseguido ganhos financeiros pela melhor
qualidade do produto.
No começo, a gente entregava sem orientação nenhuma. Do mesmo jeito que
entregava pra outras empresas. Daí veio o primeiro resultado e deu um pouco
alterado na bactéria ACC. Então veio um p [técnico] que é o responsável pela
região e disse: é assim e assim. Nós lavava as teteiras da ordenhadeira com água
quente, mudamos o detergente. Porque nós usava dois tipos de detergente, um de
manhã e outro de noite. Daí ele disse: use todo o dia o mesmo e passe três vezes
por semana aquele que você usa de noite. Foi feito assim e já mudou. Depois que ele
deu esta orientação, só duas amostras que deu um pouco alta; inclusive o rapaz falou
que era pra gente reclamar, porque eles descontam, né. (Jane, reassentamento São
Sebastião, entrevistada pelo autor em 27/11/09).
A entrevistada expôs, também, sua opinião sobre os segredos para ter sucesso na
pecuária leiteira:
Mas pra saber certinho quanto vai receber tem que calcular a quantia de gordura, as
proteínas, as células somáticas o ACC, que é uma bactéria. Daí tudo tem o seu valor
aí. Depois ainda tem o adicional de mercado e o adicional de cotas, que eles dizem.
[...] Nós é oito meses que estamos entregando pra esta empresa. A hoje nunca
ganhamos menos do que os outros [demais produtores de leite do
reassentamento, não integrados], sempre uns centavinhos a mais. Esse mês, por
exemplo, eles receberam R$ 0,56 e nós R$ 0,59. Isso limpo né, porque bruto o nosso
deu R$ 0,61 e o deles R$ 0,57 (Jane).
Pela fala da entrevistada, observa-se que há um embate entre uma racionalidade
técnico-produtivista, cuja lógica é a escala e a qualidade, alicerçada no conhecimento, na
técnica e no poder de barganha e outra tradicional-conservadora, alicerçada na naturalização
do processo produtivo. A primeira induz à crença na autonomia ou independência do
agricultor; enquanto a segunda reclama por atenção das políticas públicas garantidoras de
preços e de mercados. Ploeg (2006), sumarizando resultados de uma pesquisa realizada na
Holanda, faz uma comparação entre as abordagens camponesa e empresarial na produção
leiteira desse país, concluindo que os resultados apontam a vantagem da ‘abordagem’
componesa, de custo baixo, em relação à empresarial, de alta tecnologia, na medida em que a
primeira conjuga as possibilidades de maior emprego produtivo e valor agregado.
178
6 RETERRITORIALIZAÇÕES DE AGRICULTORES MIGRANTES
COMPULSÓRIOS: racionalidades, representações e cidadania
Neste último capítulo, busca-se discutir os aspectos mais significativos expressos nos
dados compilados e nas entrevistas, apresentados ao longo do quarto e do quinto capítulos,
tendo-se em conta o enfoque teórico adotado no corpo desta tese: racionalidades e
representações sociais definidoras de estratégias de reterritorialização dos agricultores
migrantes compulsórios desalojados da Terra Indígena de Serrinha e expressivas de sua
cidadania.
A análise feita no capítulo quarto possibilita compreender as singularidades, as
semelhanças e as diferenças entre os atores pesquisados, permitindo inclusive a construção de
tipologias. Porém, por si só, elas são insuficientes para explicar as tendências dos fenômenos
desencadeadores de processos de reterritorialização, o que se torna possível, entretanto, por
meio da aproximação das teorias, da análise de dados e das declarações, as quais expressam
continuidades/permanências que, no limite, apontam para racionalidades definidoras das
estratégias de reterritorialização dos pesquisados.
Assim, neste capítulo, apresentam-se explicações sobre o que efetivamente é
determinante na definição das estratégias de reterritorialização dos agricultores familiares
desterritorializados, considerando as hipóteses levantadas. Julga-se que a análise dessas
estratégias possibilite compreender o que leva um agricultor a fazer escolhas com o fito de
reterritorializar-se no espaço rural, após ter sido desalojado de sua propriedade neste início de
século XXI, e quais políticas públicas podem de fato contribuir ou dificultar o processo de
reterritorialização.
O capítulo apresenta-se dividido em quatro subseções. Na primeira, busca-se explicar
as racionalidades (re)territorializadoras dos agricultores desalojados, cujas ações se situam
entre a tradição – consideradas irracionalidades por Weber – e a racionalidade instrumental ou
do cálculo financeiro, exigência da modernidade. Na segunda, discute-se o fortalecimento do
grupo familiar, pela retenção de braços na unidade produtiva e a autoexploração da mão de
obra familiar na UPF, enquanto estratégias de resistência à desativação. Na terceira subseção,
apresenta-se a diversificação produtiva agropecuária, aliada à especialização de parte da
produção, como estratégias econômicas de reterritorialização. Na quarta e última subseção,
discute-se o papel da comunidade de pertencimento, enquanto
locus
de redefinição e
reafirmação da identidade sociocultural dos agricultores, como condição para assegurar sua
reterritorialização.
179
6.1 RACIONALIDADES (RE)TERRITORIALIZADORAS
Os estudos de caso considerados, classificados segundo a tipologia construída,
apresentam-se como terrenos férteis para análises e confrontações teóricas, a partir das teorias
que constituem as ferramentas de análise desta tese.
As estratégias de reterritorialização adotadas pelas UPFs pesquisadas, identificadas e
caracterizadas a partir das entrevistas, conforme tipologia de agricultores definida nesta tese,
revelam diferentes racionalidades nas suas tomadas de decisão. Ainda que fatores externos
tenham influenciado positiva ou negativamente as escolhas dos agricultores, elas foram
adotadas consoante condições materiais; convicções sobre as possibilidades de ganhos e
perdas; relações interpessoais de amizade e entreajuda; e inclusive segundo as percepções
(indicador cultural).
Em sua reterritorialização, os agricultores guiados pela racionalidade moderna-
produtivista, dispondo de capitais (econômico e social) tendem a expandir suas atividades, por
se adequarem às novas exigências tecnológicas e de mercado; por responderem positivamente
aos estímulos externos, beneficiando-se das políticas públicas destinadas às famílias
desalojadas, reforçando ou rearticulando o grupo familiar. Dessa forma, ficam propensos à
acumulação, na medida em que respondem com mais eficácia aos apelos da modernização e
às demandas do mercado. Eles melhoram suas condições de vida e aumentam seu patrimônio.
Por sua vez, os agricultores tradicionais, pouco influenciados por estímulos externos
(financiamentos, oferta de terras propícias para utilização de tecnologias modernas), buscam
reterritorializar-se lançando mão de estratégias conservadoras de reprodução, sem se
submeterem a riscos. Em geral, tendem a reproduzir sua situação de excluídos
economicamente, enfraquecendo o grupo familiar, limitando suas ações à busca de territórios
que lhes sejam familiares, porque relutam a se distanciar de suas referências, tanto em termos
socioeconômicos quanto socioculturais.
Como se tem insistido ao longo desta tese, as estratégias de reterritorialização dos
atores pesquisados ligam-se às suas racionalidades e estas oscilam, indo de um extremo ao
outro, entre um patamar que representa a agricultura tradicional, com baixo nível tecnológico
e fraca inserção nos mercados, e outro que se identifica com o moderno
agronegócio
ou
agricultura familiar moderna, mediante utilização de tecnologias avançadas, forte inserção nos
mercados de escala e atrelamento ao sistema financeiro. Entre esses extremos encontra-se
180
uma faixa com uma gama variada de situações, que oscilam entre o moderno agronegócio e a
agricultura tradicional e que, nesta tese, se convencionou chamar de “agricultura parcialmente
modernizada”.
Conforme enunciado, os agricultores semimodernizados, embora se valendo de
algumas tecnologias modernas em suas atividades agropecuárias, apresentam produtividades
mais baixas do que a média dos modernizados; dependem da terceirização dos trabalhos com
máquinas e equipamentos, o que encarece os custos de produção; em geral, mostram
atividades, embora pouco diversificadas, com bom nível de tecnificação. Entretanto, a
modernização do setor produtivo da UPF não se constitui em fator único garantidor de
reterritorialização. A pesquisa demonstrou que a modernidade capitalista não exclui a
campesinidade
.
As UPFs que revelaram os mais altos índices de modernidade não foram
aquelas com os menores índices de campesinidade. Ademais, o fator econômico não é
suficiente para determinar o grau de satisfação do agricultor na sua busca por um espaço de
reterritorialização. Assim, esta tese mostrou que não basta dar terra ao agricultor desalojado
para que se sinta (re)territorializado. Portanto, estar reterritorializado é diferente de sentir-se
reterritorializado.
Ainda que alterem suas formas ocupacionais, aderindo parcialmente a algumas
técnicas ditas modernas, passando de uma agricultura familiar com atividades mais
diversificadas para uma agricultura centrada apenas na produção de certos produtos,
notadamente as
commodities
mais valorizadas devido ao mercado externo, os agricultores,
quanto mais tradicionais, mais se identificam com formas de agir e pensar
herdadas de seus
antepassados e reproduzidas arduamente no contexto rural dominado pela gica da
modernidade capitalista. A capacidade de suportar uma rotina de trabalho altamente
desgastante e insalubre, aderindo apenas minimamente aos recursos do acervo técnico
disponível hoje à agricultura, justifica a decisão de permanência desses agricultores
tradicionais em ambientes considerados impróprios para a agricultura guiada pela
racionalidade da maximização das taxas de lucro. A questão que se apresenta é: seria essa
uma decisão irracional? Weber (1991), em sua análise sobre o ótimo de rendimento calculável
no trabalho, reconhece que a inclinação ao trabalho de caráter tradicional é típica na
agricultura e indústria doméstica.
A racionalidade (re)territorializadora de agricultores tradicionais, fortemente ancorada
na tradição do campesinato caboclo, não obstante os avanços do mundo atual nos campos dos
conhecimentos científicos, das comunicações e das informações, exigindo novas posturas e
competências dos agricultores, prima por estratégias que remetem a contextos sociais rurais
181
pretéritos. Ao se deparar com ambientes que requerem a racionalidade produtiva moderna,
que se pauta no cálculo financeiro e se baseia em altos investimentos, esses agricultores
tendem a abandonar suas terras e a buscar novos ambientes que sejam propícios à sua
territorialização, ainda que provisoriamente. Assim, a estratégia governamental da
reterritorialização via reassentamento, tanto contribui para a reprodução social de certas
famílias, plenamente inseridas no agronegócio, quanto pode resultar em fracasso,
apressando a desativação, no caso daqueles agricultores apegados à tradição. Os agricultores
tradicionais, quando desterritorializados, procuram se reterritorializar em espaços rurais que
lhes sejam familiares. Forçá-los ou induzi-los a aderir aos reassentamentos pode significar
uma nova desterritorialização, uma vez que são forçados a viver em territórios com outros
agenciamentos e com bases materiais de reprodução social distintas das de seu habitat.
Relativamente à gestão econômica, Weber (1991, p. 67) entendia que:
Tanto o cálculo em espécie quanto em dinheiro são técnicas racionais. Mas, de
modo algum, estes dois abrangem a totalidade de gestão econômica existente. É que,
além deles, a ação economicamente orientada de fato, mas alheia ao cálculo.
Pode estar orientada pela tradição ou condicionada por fatores afetivos.
Conforme foi sugerido no terceiro capítulo, historicamente, as três principais formas
sociais constituidoras da matriz do campesinato do norte e noroeste gaúcho foram a
comunitária indígena, a familiar cabocla e a familiar colonial de herança europeia. A partir
dessa matriz, produziu-se uma dualidade e desencadeou-se todo um debate, ancorado no
paradigma do desenvolvimento econômico e do progresso, que negou a importância do
indígena e do caboclo para o desenvolvimento rural (diga-se agrícola). Sob esse prisma, a
territorialização do indígena e do caboclo não seriam relevantes.
Assim, as ações do Estado Moderno voltadas para o desenvolvimento econômico, via
políticas de colonização, promoveram a territorialização do agricultor colono e a
desterritorialização dos indígenas e caboclos. O Movimento Indígena (MI), desencadeado nos
anos de 1970, atendeu, ainda que em parte, aos anseios dos indígenas. Porém, o caboclo, por
não ter uma identidade étnica tão nítida, ainda não teve uma política de inclusão específica
45
.
Entretanto, a pesquisa comprovou que a identidade étnica não é suficiente na definição de
uma estratégia reterritorializadora. Agricultores descendentes de europeus, submetidos a
45
Existem no Brasil políticas públicas de inclusão para negros e índios consideradas grandes avanços em termos
de conquistas sociais dessas comunidades nos últimos anos. Não existe uma política específica para caboclos, até
porque o conceito de caboclo é polissêmico e induz a várias interpretações.
182
situações de privação, definem suas estratégias de (re)territorialização rural, a partir de
representações sociais que valorizam o ambiente natural, sobretudo, a terra. Isso os aproxima
da racionalidade tradicional historicamente definida como cabocla. Trata-se de uma condição
de acaboclamento, nos termos propostos por Maestri, o acaba por definir diferenciações de
cidadanias.
Como foi suposto na primeira hipótese, as diferentes racionalidades nos processos de
reterritorialização resultam das diferentes formas de inserção dos agricultores no meio rural,
acompanham a evolução dos processos produtivos, porém reforçam permanências expressivas
da tradicionalidade. Portanto, as escolhas dos agricultores guiados pela racionalidade
tradicional não podem ser consideradas irracionais. Nas decisões de plantar sem adubo, usar
queimadas para facilitar a limpeza do terreno, submeter-se a jornadas de trabalho braçal
estafantes entra o cálculo. Não é o mesmo cálculo do agricultor moderno, mas é também uma
ação que remete a um fim, nos termos propostos por Weber. O fim almejado é a produção
agropecuária, a partir das condições fundiárias, técnicas e financeiras que lhes foram
impostas. Aqui se observa que é dada maior ênfase aos valores humanos do que aos valores
materiais. A valorização do trabalho, como meio de prover as necessidades da família, para se
ter o suficiente, como obrigação moral de um chefe de família se contrapõe à racionalidade da
maximização das taxas de lucro, em que o trabalho se torna secundário.
Um caso semelhante é apresentado por Mooney (1988), em estudo que ele discute os
limites da racionalidade formal de Weber na agricultura. Ao apresentar quatro estudos de caso
de agricultores de Wisconsin (EUA), onde se observam diferentes racionalidades, ele discute
os limites da racionalidade do cálculo financeiro na agricultura, colocando o ideal de trabalho
(
craftship)
como o contraponto à racionalidade formal. Na tipologia de
farmer
que encarna
este ideal, a maximização de lucro na agricultura não é um fim em si mesmo, mas um meio
para este fim. A calculabilidade monetária entra no processo de produção desse tipo de
agricultor, mas se subordina à totalidade do cultivo da terra como meio de vida. Assim, o
autor adverte para o fato de que a obsessão pela busca incessante da maximização das taxas
de lucro na agricultura torna-se, na verdade, uma irracionalidade, pois a meta é sempre usar
dinheiro para se obter mais dinheiro e não obter dinheiro para satisfazer às necessidades do
agricultor.
Diferentemente dos agricultores ditos tradicionais, os agricultores inseridos no
sistema de agricultura tecnificada, com seus negócios atrelados ao sistema financeiro e ao
mercado agrícola de escala, antes do desalojamento, encontram no reassentamento a
possibilidade de expansão de suas propriedades. Ressalta-se que existem diferenças no que
183
diz respeito às formas de conceber a questão do uso da terra, nas distintas racionalidades, ou
seja, por um lado, a terra concebida como agricultável por sua fertilidade natural e, por outro,
por ser mecanizável. O entendimento de que uma terra é boa por ser mecanizável e propícia
para o desenvolvimento da agricultura de escala transmite a ideia de intervenção na natureza
como algo natural e a de subvalorização do trabalho familiar. Além disso, o uso de
tecnologias, que alteram a capacidade natural para produzir, é considerado de fundamental
importância. A ideia de terra boa ser aquela que tem boa fertilidade natural (a terra gorda,
segundo alguns agricultores) sinaliza uma maior valorização do trabalho em detrimento do
uso de tecnologias modernas. A valorização do trabalho acima da técnica reforça a
importância do grupo familiar na produção. Assim, a permanência dos filhos na casa paterna é
desejada. Porém, esta condição acaba não se tornando possível pela falta de perspectivas de se
obter uma produção rentável, no caso dos agricultores tradicionais ou por falta de ocupações
agrícolas, no caso dos agricultores semimodernizados, os quais terceirizam a maior parte dos
trabalhos na produção de
commodities
.
As representações sociais de terra dos agricultores tradicionais remetem à percepção
de sua inclusão em um contexto de agricultura tradicional. A ideia de terra favorável ou
desfavorável, boa ou ruim para a agricultura que os agricultores têm indica uma visão de terra
como fonte inesgotável de nutrientes, capaz de fazer a planta produzir sem interferência de
meios artificiais. Isso encontra eco tanto nas concepções de terra do camponês caboclo,
quanto do antigo colono-imigrante assentado em terras de matas do Rio Grande do Sul, como
foi referido no segundo capítulo. A terra tida como “fraca” e “seca” do reassentamento solo
argiloso e profundo, com pouca matéria orgânica contrastaria com aquela “forte” de uma
região de matas do Alto Uruguai, que ainda mantém razoável fertilidade natural e alguma
cobertura florestal. Uma razão de ordem cultural seria, portanto, a âncora dessa representação
social de terra cultivável (Moscovici, 2007).
Bernardes (1997), ao se referir à separação rígida entre duas formas econômicas
encontradas no Rio Grande do Sul desde o século XIX com a chegada dos imigrantes
europeus a pecuária extensiva observada nas áreas de campos e a agricultura colonial típica
das áreas de matas –, diz que a opção dos colonos imigrantes europeus do passado pelas terras
de matas é explicada como uma questão de persistência da tradição cultural”. Em certo
sentido, a ocupação das terras de matas foi uma imposição do estancieiro no início, ante a
ameaça que o imigrante representava à sua soberania sobre os campos. Porém, a opção pelas
matas acabou sendo bem aceita pelo imigrante mais tarde (Bernardes, 1997). Essa persistência
em ficar radicado numa terra dobrada e pedregosa parece constituir a lógica da reprodução
184
dessas famílias de agricultores considerados aqui tradicionais. Expressam-se, portanto,
valores simbólicos ligados à terra, para além dos valores materiais e da racionalidade técnica
operacional.
Nessa perspectiva, sugere-se que as políticas públicas de reassentamento ou relocação
de desterritorializados, o mesmo poder-se-ia dizer em relação às políticas de assentamento de
sem terra, devem prever estratégias governamentais diversas diante de realidades complexas e
diversificadas. Deve-se pensar na busca de soluções que respeitem, valorizem e resgatem
experiências de vida distintas, resguardando as identidades e valorizando-as, como sugere
Gehlen (1998).
No contexto das reterritorializações, os agricultores guiados pela racionalidade do
cálculo financeiro são favorecidos pelas políticas públicas de relocação, notadamente pelos
reassentamentos. Juntamente com a política de reassentamento
stricto sensu,
outras medidas
governamentais de incentivo à fixação do homem no campo e à produção agropecuária, ou
seja, políticas complementares tais como financiamentos para investimentos e custeios com
juros subsidiados e prazos mais longos favorecem àqueles que têm experiências ou trânsito
facilitado nos canais institucionais, isto é, os possuidores de fichas cadastrais “limpas” junto
aos bancos e bons saldos em suas contas bancárias. Ao contrário destes, para os agricultores
considerados aqui tradicionais, a reterritorialização, quando implica a necessidade de adesão a
estratégias produtivas que exigem recursos financeiros que eles não têm ou com os quais não
sabem lidar ou com racionalidades favoráveis à competitividade, se torna em geral uma
aventura, marcada por fracassos que, não raro, levam ao abandono do rural.
Postula-se aqui, portanto, que aquele agricultor familiar inserido na lógica do mercado
moderno, onde a racionalidade do cálculo financeiro e a adesão aos pacotes tecnológicos se
fazem imprescindíveis, pode ser beneficiado por uma situação de desterritorialização
compulsória, podendo aumentar seu patrimônio após a reterritorialização, como sugere a
segunda hipótese desta tese. Ele, ao mesmo tempo que busca adaptar-se às novas condições
econômicas (produtivas e de mercado) do território em que está inserido, aproveita-se da
situação aparentemente desfavorável, racionalizando investimentos e replanejando sua
propriedade, aproveitando-se dos incentivos governamentais colocados a seu dispor,
adquirindo máquinas, equipamentos e mais terra.
Ademais, o agricultor desalojado moderno, ao ser reassentado, pode ascender à
condição de líder de um grupo de reassentados, capitalizando para si benefícios econômicos,
tais como a prestação de serviços com máquinas ou mesmo arrendamento de parte das terras
dos agricultores de menos posses.
185
Como foi explicitado no quinto capítulo, estratégias diferenciadas, resultantes de
diferentes racionalidades, induzem a processos de reterritorialização distintos. Os agricultores
modernizados e semimodernizados, mais dotados de capitais (econômicos, sociais) e mais
guiados pela racionalidade do cálculo financeiro, optaram por reassentamentos em terras
favoráveis à expansão da lavoura para produção em escala (agronegócio). Os tradicionais
optaram por terras desfavoráveis à mecanização e, até certo ponto, impróprias para a
agricultura, porém situadas próximo ao lugar de origem e com custo mais baixo. Em ambos
os casos encontraram-se agricultores que declararam sentirem-se reterritorializados por razões
diferentes. Todos esses agricultores, entretanto, fizeram questão de afirmar a importância de
aspectos ligados à campesinidade como fundamentais para o enraizamento, tais como: a
preservação da unidade familiar, as relações de parentesco, a vizinhança, leia-se a
reciprocidade.
Conforme se pôde observar, a modernização da unidade de produção familiar, por si
só, não é condição suficiente para a reinserção ou permanência de agricultores no meio rural.
Ressalta-se que pelo menos três aspectos relacionados à campesinidade, discutidos ao longo
desta tese, são fundamentais enquanto estratégias de resistência e/ou adaptação à lógica do
capitalismo agroindustrial contemporâneo: a reprodução do trabalho familiar, a diversificação
da produção (ainda que acompanhada da especialização parcial) tanto comercial quanto para
autoconsumo e a reciprocidade desenvolvida no âmbito da comunidade de pertencimento
(esta envolve a preservação e fortalecimento de redes de parentesco). Esse assunto será
abordado nas próximas subseções.
6.2 REPRODUÇÃO E AUTOEXPLORAÇÃO DA MÃO DE OBRA FAMILIAR
ENQUANTO ESTRATÉGIAS DE RETERRITORIALIZAÇÃO
Conforme foi enfatizado no segundo capítulo, Ploeg (2008) discute a
(re)territorialização camponesa a partir de uma visão neomarxista que admite a existência de
uma via de mão dupla no rural contemporâneo, considerando-se os processos sociais de
transformação do rural no atual momento do capitalismo global. Segundo esse autor, dois
movimentos podem desembocar na formatação de cenários rurais diferenciados: a
descampesinização e a recampesinização. A descampesinização, responsável pelo
esvaziamento demográfico dos campos, é resultante sobretudo dos impactos perversos
provocados pela ação do que se convencionou chamar de “impérios alimentares”. Em sentido
186
oposto, pode ocorrer a recampesinização, responsável pela preservação ou restabelecimento
do tecido social rural. Nesse sentido, o autor alerta que:
Na recampesinização a gramática camponesa é mais articulada, e de forma mais
coerente e abrangente, enquanto se materializa na prática, em realidades
socioeconômicas mais fortes, mais convincentes e mais auto-sustentadas. A
descampesinização diz respeito à tendência oposta: a um enfraquecimento, erosão ou
até desaparecimento de práticas camponesas e da racionalidade associada a elas.
Tanto a descampesinização como a recampesinização podem ser introduzidas a
partir do exterior ou emergir do interior (PLOEG, 2008, p. 52).
Desse modo, a tese apresentada pelo autor reafirma a importância da campesinidade
no processo de (re)territorialização de agricultores familiares, neste início do século XXI.
Segundo ele, os fatores desencadeadores daqueles dois processos podem se originar tanto no
exterior quanto no interior dos estabelecimentos.
Toda a estratégia de produção voltada para a redução da força de trabalho significa
uma regressão no modo camponês de fazer agricultura. Essa estratégia, perseguida nos modos
capitalista e empresarial de fazer agricultura, não condiz com a lógica da racionalidade
camponesa, sendo que seus reflexos são nocivos à reprodução social de uma UPF (PLOEG,
2008).
O casamento do filho(a) do agricultor assegura a continuidade da UPF, pela
possibilidade de garantir a reprodução social da família e a continuidade da identificação da
família com a terra. Por isso o casamento envolve interesses entre as partes (WOORTMANN,
1995). Postula-se aqui, com base no que ficou evidenciado na pesquisa de campo desta tese,
que os casamentos de filhos dos agricultores e a permanência dos casados unidos ao grupo
familiar (família-tronco) garantem a reterritorialização dos desterritorializados em condições
favoráveis à reprodução social, na medida em que permitem a organização coletiva do
trabalho internamente à família-tronco e, em alguns casos, externamente, extrapolando os
limites da célula-familiar e envolvendo várias outras famílias de parentes em segundo grau.
Para alguns teóricos do campo da antropologia, esta organização coletiva interna é o que
sustenta a permanência ou sobrevivência do campesinato. Tepicht (
apud
WORTMANN,
1995) sustenta que o esfacelamento do coletivismo interno, que segundo o autor pode ser
acentuado pela modernização tecnológica, é um forte indicador do declínio da economia
camponesa.
Expressa-se aqui uma realidade constatada empiricamente, no trabalho de campo para
esta tese. De acordo com o que foi abordado nos capítulos quarto e quinto, as famílias
reterritorializadas que se mostraram mais satisfeitas em seus territórios foram também aquelas
187
que tiveram aumento no número de UTHs, comparando-se a situação vivenciada nos últimos
anos antes da desterritorialização com o ano agrícola de referência pós-reterritorialização
(2008/2009).
A volta dos filhos que haviam partido para a cidade em busca de emprego, o esforço
para manter os filhos casados junto à casa-tronco, como foi explicitado no quinto capítulo,
refletem a preocupação com a manutenção e ampliação da força de trabalho. Todavia, é
preciso considerar os efeitos negativos das técnicas agrícolas modernas e da divisão do
patrimônio familiar por herança devido a casamentos, como estratégias ameaçadoras da
integridade do núcleo familiar, podendo contribuir para a saída de pessoas por falta de
ocupação. Vários entrevistados demonstraram essa preocupação. Para o enfrentamento desse
problema, vários pesquisadores contemporâneos vêm sugerindo que existe a necessidade dos
empreendimentos familiares apelarem para estratégias como a pluriatividade e a
diversificação das atividades agropecuárias. A diversificação da produção, a disponibilização
de algum membro da família para o assalariamento, o recurso ao estudo como capital cultural,
a adoção de determinadas atividades intensivas em termos de trabalho e de espaço podem
constituir-se em estratégias para o enfrentamento do problema da fragmentação do
patrimônio.
O estudo e um bom emprego urbano evitam a divisão do patrimônio familiar entre os
co-herdeiros, tornando-se uma nova forma de herança, um investimento alternativo à
agricultura. Por isso, na hora de decidir pela terra ou pela relocação na terra, um agricultor
desterritorializado busca redimensionar o potencial de mão de obra disponível na família,
inclusive para decidir se vai continuar no campo ou não. Se a área do reassentamento ou a que
foi adquirida com indenizações for insuficiente diante do número de filhos que desejam
continuar na lavoura, geralmente o agricultor apela para o expediente da compra de outras
glebas, via financiamentos
46
. Porém, a falta de terras disponíveis para compra nas vizinhanças
poderá comprometer a continuidade ou a reprodução social da família reterritorializada, por
forçar a saída de filhos, seja para outras áreas rurais distantes ou, no limite, para os centros
urbanos. Aliás, esse é um aspecto interessante a ser observado nas situações de
desterritorialização: uma família rural desterritorializada, considerando a mão de obra
disponível, tanto pode ser reterritorializada no meio rural, com vantagens, pela manutenção
46
O apelo aos empréstimos do Banco da Terra, uma forma de acesso à terra bastante difundida na região, foi
sugerida por alguns entrevistados e se constituiu em estratégia de outros. Porém alguns deles reclamaram das
barreiras burocráticas para se obter recurso e reconheceram as dificuldades que um agricultor pobre teria para
saldar sua dívida com o Banco.
188
dos membros (sobretudo filhos homens) na unidade-tronco, como pode ser prejudicada na sua
reterritorialização pela impossibilidade de reter mão de obra.
Uma estratégia interessante de viabilização econômica das UPFs modernizadas é a
aglutinação dos lotes pertencentes a várias pessoas de uma mesma família-tronco,
aproximando famílias que antes da desterritorialização estavam separadas numa única
propriedade. Essa se constitui numa estratégia contrária à fragmentação do patrimônio e à
fragilização do grupo familiar
47
. Ao invés da individualização dos lotes, ocorre a união, com a
preservação da família-tronco. Trata-se de uma estratégia interessante de recampesinização.
Isso contribui, indiscutivelmente, para o fortalecimento do trabalho familiar, evitando a
dispersão da família, com a saída dos filhos para a cidade, como acontece
contemporaneamente no meio rural. Com a aglutinação dos lotes, as famílias viabilizam o uso
de tecnologias modernas nas atividades agrícolas, passando a ter maior capacidade de
endividamento e maior poder de barganha nas relações mercantis.
A união das famílias pela via da aglutinação dos lotes, expediente largamente usado
entre UPFs modernizadas, porém não encontrado entre famílias de agricultores tradicionais
e/ou semimodernizados, favorece internamente as relações sociais de reciprocidade, pela
manutenção e fortalecimento dos laços de parentesco, de sorte que, conforme proposto por
Woortmann (1995), a reprodução social da família e do patrimônio dependem, também, das
relações de parentesco e não apenas dos fatores de produção ou das condições materiais para
produzir. As parcerias para a compra de máquinas e implementos, as trocas de dias de serviço,
por exemplo, são facilitadas nesse grupo pela confiança recíproca que se estabelece entre as
famílias.
Vale sublinhar o fato de que o isolamento das famílias rurais no campo é fator
facilitador do abandono deste, sobretudo, quando se trata de comunidades sólidas
(principalmente étnicas), onde os agricultores preservam fortes redes de relações sociais com
vizinhos, ainda que não sejam parentes. Como disse um dos entrevistados, “quando não se
tem com quem conversar, com quem tomar um chimarrão, com quem desabafar [...] fica
difícil, viu”. Nesse caso, as pessoas idosas sofrem mais, por terem uma capacidade de
resiliência menor do que os jovens. Além disso, os jovens ficam mais tempo envolvidos com
47
Os primeiros reassentamentos foram formados entre os anos de 1999 a 2002, no início da desocupação da TIS,
por força de uma política do Governo do Estado do Rio Grande do Sul da época, que aliava o Programa de
reassentamentos de desalojados de áreas indígenas com um Programa de Reforma Agrária, coordenado pelo
Gabinete de Reforma Agrária e Cooperativismo (GRAC). Na época muitas famílias foram contempladas com
mais terra do que possuíam no interior da TIS. Isso facilitou a aglutinação de lotes e o fortalecimento de algumas
UPFs.
189
trabalhos e, em geral, viajam mais, por isso, é comum ocorrer a separação parcial da família
no momento da desterritorialização, quando muitos idosos migram para a cidade, na direção
de parentes já migrados, aumentando a possibilidade da remigração do restante da família.
Nas famílias mais identificadas com a racionalidade tradicional (com índices de
campesinidade mais elevados), devido a falta de capital e recursos técnicos e, face a
racionalidade não produtivista-mercantilista, a permanência de filhos na UPF nem sempre é
reclamada. Ocorre que, diferentemente do camponês russo, nos termos propostos por
Chayanov (1974), o agricultor familiar tradicional enfocado nesta tese, além de contar com os
resultados de seu trabalho para sua sobrevivência, pode também contar com recursos oriundos
de políticas assistenciais ou compensatórias (aposentadorias, Bolsa Família). Como não
condições para a expansão do negócio, via compra de mais terra, esse agricultor se dispõe a
trabalhar uma porção de terra, de acordo com a força de trabalho de sua família. Se faltarem
braços ou sobrar terra, apela para o arrendamento de parte da terra a terceiros. Se sobrarem,
em geral esses braços são dispensados da UPF e tornam-se mão de obra disponível para ser
contratada por capitalistas rurais ou potencialmente propensa para migrar para os centros
urbanos.
Mesmo dispondo de algumas tecnologias para o desenvolvimento de uma agricultura
moderna, a pesquisa mostrou que alguns agricultores apelam para estratégias que remetem a
formas tradicionais de fazer agricultura para manterem-se territorializados. O trabalho braçal
em substituição ao uso de máquinas; o uso da enxada para as capinas na lavoura de soja, em
que pese a existência de dessecantes, usados, sobretudo, nas variedades transgênicas; a
adubação com estercos em vez dos adubos químicos constituem-se em estratégias de
resistência e luta pela permanência em atividades como a sojicultura, que reclamam cada vez
mais por capital, espaço físico e profissionalismo. No entanto, acredita-se que apenas o
agricultor impregnado por uma racionalidade camponesa, que se sujeita ao sofrimento e/ou à
autoexploração, resistindo à ideia de migrar em busca de conforto nas cidades, está disposto a
suplantar tais dificuldades. Ademais, acontece nas unidades familiares que dispõem de
força de trabalho e que, em face das tecnologias disponíveis, permanecem durante grande
parte do tempo ociosos. Portanto, neste caso, a estratégia do apelo ao trabalho braçal familiar
tem dupla função: reduzir custos de produção e manter ocupada a mão de obra, evitando-se as
saídas para as cidades.
190
6.3 A DIVERSIFICAÇÃO E A ESPECIALIZAÇÃO AGROPECUÁRIAS
COMO ESTRATÉGIAS PRODUTIVAS FAVORÁVEIS À
RETERRITORIALIZAÇÃO
Uma das principais características da agricultura colonial ou agricultura das colônias
de descendentes europeus no Rio Grande do Sul sempre foi a policultura. A produção com
dupla finalidade, consumo e mercado, sempre fez da diversificação mais do que uma
orientação de natureza econômica, com fins lucrativos-especulativos: foi concebida também
como estratégia de produção voltada à subsistência. O advento da agricultura moderna, com o
surgimento das especializações produtivas, exigidas pelas indústrias ou agroindústrias
situadas a montante e a jusante do setor agrícola, como insistentemente vem sugerindo
Graziano da Silva (2003), criou um cenário de crise na agricultura colonial tradicional, que
luta para se adaptar.
Além da pluriatividade, a diversificação da produção agropecuária e a integração
lavoura-pecuária são apontadas por especialistas como importantes estratégias de
territorialização de agricultores familiares. No que diz respeito à integração lavoura-pecuária,
deve-se admitir que, historicamente, esta tem sido uma das principais características da
agricultura colonial, desde as chamadas colônias velhas. Vanderlei (2001, p. 24) considera a
policultura-pecuária “uma sábia combinação entre diferentes técnicas” que tenderam ao
equilíbrio numa relação específica entre um grande número de atividades agrícolas e de
criação animal.
Tendo por base o rural europeu, Ploeg (2008) elaborou um esquema teórico no qual
mostra o que convencionou chamar de “a coreografia da recampesinização”. As unidades
produtivas estariam passando por um processo de transição, tendendo para seis movimentos
ou estratégias de recampesinização. Segundo este autor estaria sendo gestada uma mudança
de paradigma no contexto da agricultura familiar. Poder-se-ia ajuizar que esses movimentos
tendem ao aumento da autonomia das unidades produtivas, à reconstituição da base de
recursos dessas unidades, ao aumento do valor agregado, ao estabelecimento de novas
relações entre produtores com a sociedade e natureza, além de outras mudanças dentro do
processo de recampesinização. Essa “coreografia da recampesinização” estaria ocorrendo
através 1) da diversificação, processamento na unidade e circuitos curtos; 2) da agricultura de
baixo custo; 3) da refundamentação da agricultura na natureza; 4) da pluriatividade; 5) de
novas formas de cooperação local e 6) do melhoramento da eficiência da conversão de
insumos em produtos (PLOEG, 2008).
191
Conforme foi apontado no quarto capítulo, a maioria das UPFs pesquisadas diminuiu o
número de atividades produtivas agropecuárias após a reterritorialização. Cabe indagar se essa
realidade tenderia a levar essas UPFs à desterritorialização-descampesinização, denunciando a
existência de uma territorialização em condições precárias. Em grande medida sim.
Efetivamente, as UPFs com maior redução no número de atividades são também aquelas em
que os entrevistados manifestaram maior desinteresse pela agricultura, mostrando-se mais
descontentes com sua situação e reclamando de quase tudo. Entretanto, existe uma tendência
crescente das UPFs em conciliar a diversificação com a especialização em alguns produtos,
como no caso da soja e do leite. Dessa forma, não obstante a adesão à diversificação, alguns
produtos recebem uma atenção muito maior do que outros, tanto na produção quanto na
armazenagem e/ou beneficiamento, induzindo à profissionalização parcial das famílias.
Confirma-se, portanto, o que foi postulado na primeira hipótese desta tese: as rupturas ou
permanências quanto às formas produtivas
ocorrem em face das diferentes formas de
reinserção dos agricultores no meio rural e acompanham a evolução histórica dos processos
produtivos e mercadológicos. Contemporaneamente, a diversificação da produção
agropecuária (inclusive para autoconsumo), aliada à especialização centrada em alguns
poucos produtos (ou às vezes num único) para fins mercantis, exercem papel decisivo para a
(re)territorialização de agricultores familiares em regiões dominadas pelo agronegócio,
porque atendem ao mesmo tempo ao clamor do mercado moderno em expansão e à exigência
das UPFs de gerar trabalho para reter os filhos na casa paterna.
Confirmando o que foi constatado em outros estudos, esta pesquisa demonstrou que,
além do expediente da diversificação da produção, com a agregação de valores aos produtos
da economia de escopo e a pluriatividade ou obtenção de rendas extralavoura, resta um
caminho para manter territorializado um agricultor familiar dentro de uma base social
tipicamente familiar, neste início do século XXI, reduzindo-se o risco da desativação-
desterritorialização ou descampesinização: o aumento da área agrícola e a especialização na
produção de
commodities
agrícolas, porém sem dispensar a mão de obra familiar, com vista à
redução de custos de produção.
A estratégia do aumento da área agrícola sem abrir mão da mão-de-obra familiar induz
de uma forma ou de outra à diversificação. O agricultor, aderindo à economia típica da
agricultura camponesa ou colonial, mantém a divisão do trabalho no âmbito familiar pela
diversificação das atividades. Com mais atividades, mantém os filhos na casa-tronco pela
necessidade de mão de obra, mediante a possibilidade de ocupação em atividades variadas. A
192
manutenção de braços na UPF se justifica pela necessidade de mão de obra diante da
exigência de aumento da escala de produção com redução de custos.
Mas, é possível tornar uma agricultura diversificada estando ela atrelada aos circuitos
mercantis agroindustriais que valorizam apenas alguns poucos produtos (
commodities
) e a
produção em escala? Efetivamente, esta pesquisa demonstrou que a redução no número de
atividades agropecuárias nas UPFs mais modernizadas, após a reterritorialização, veio
acompanhada da especialização em algumas atividades específicas, notadamente na produção
leiteira e na sojicultura. A busca pela eficiência e profissionalização tem sido a tônica das
famílias que aderem constantemente aos pacotes tecnológicos mais modernos, buscando
sempre atualizar-se e reestruturar-se no sentido de adequar suas bases materiais de produção
às novas exigências do mercado, em constante evolução. No entanto, verificou-se que as
mesmas famílias modernizadas, não obstante sua adesão à especialização e preferências em
termos de atividades mais rentáveis, mostraram-se propensas à diversificação, com a
produção de uma variada gama de produtos, comercializados localmente. Isso sugere que, é
possível encontrar numa mesma unidade familiar economias de escala e de escopo, uma não
excluindo a outra. Em outras palavras, a tão propalada dicotomia economia de escala
versus
economia de escopo esmaece quando a base de estudo sai do vel macro e se fixa no vel
micro.
O esforço na busca da reterritorialização e da reprodução social induz as famílias mais
dotadas de capitais e com maior disponibilidade de mão de obra à diversificação da produção
comercial. A integração lavoura-pecuária, no entanto, dá-se de forma parcial. Em geral,
ocorre apenas graças ao setor leiteiro, que demanda silagens de milho e sorgo e pastagens
artificiais. Como praticamente não existem outras criações comerciais, além da pecuária
leiteira, a produção de milho que excede àquela necessária para a silagem é comercializada no
mercado de grãos. Sugere-se aqui, portanto, que a diversificação produtiva nas UPFs vem
sofrendo mudanças que se situam no tempo e no espaço. O tradicional casamento da
policultura agrícola com a pecuária diversificada, típico da agricultura colonial, foi substituído
pelo casamento entre monocultura agrícola e monocultura pecuária, típico da empresa
capitalista.
A especialização produtiva, exigência de um mercado em constante mutação, exige do
agricultor familiar mudanças de estratégias que podem ser impactantes na estrutura ou na
organização produtiva da UPF. Para um agricultor que passa pela experiência da
desterritorialização, esse processo pode ser ainda mais impactante por colocá-lo
repentinamente numa situação de mudança. O impacto depende do grau de inserção nos
193
mercados em que ele se encontra antes de ser desterritorializado e a forma como ocorre a
relocação. Os agricultores mais dotados de capitais e mais preocupados com o futuro de seus
negócios, em geral são também os que têm maior poder de pressão junto às autoridades
governamentais, conseguindo se reterritorializar num curto espaço de tempo e podendo
escolher seus novos territórios. Outras famílias, com menos capitais, dependem da boa
vontade dos governantes e, muitas vezes, permanecem vários anos à espera de um
reassentamento ou indenização, sem se envolver com atividades agrícolas. Quando voltam às
atividades agrícolas, encontram um cenário tecnológico e de mercado pouco conhecidos.
Assim, a especialização produtiva pode ficar comprometida. Ademais, o agricultor que fica
vários anos sem plantar se descapitaliza, perde parte da mão de obra, em face da migração dos
filhos que é facilitada, ficando à mercê das políticas públicas compensatórias
48
.
A passagem da economia da diversificação, nos moldes da tradição camponesa-
colonial, para a economia da diversificação com tendência à especialização, nos moldes da
agricultura familiar moderna, enseja mudanças no sistema produtivo familiar. Em primeiro
lugar, ocorre a desvinculação da lavoura das criações. Em segundo lugar, a diversificação
requer a necessidade de observância de novas racionalidades produtivas. É o caso da
produção para o Programa Fome Zero, cujos produtos devem atender a certas exigências
(padronização, beneficiamento, higiene) ou o de certos produtos não comercializados nos
mercados de
commodities
, como o feijão, agora não mais destinado à venda aos comerciantes
locais das linhas ou travessões nas colônias, mas a empresas atacadistas, altamente exigentes
em termos de qualidade do produto. Fora do seu contexto original, o agricultor
reterritorializado é, muitas vezes, levado a pensar que essas novas exigências se devem à
mudança territorial (mudança no espaço), quando, na verdade, se explicam muito mais às
mudanças no tempo.
6.4 RECIPROCIDADE E CIDADANIA
A reterritorialização de agricultores familiares depende das condições para a
viabilização econômica do empreendimento familiar, por isso a observância das condições
geográficas, geológicas, mercadológicas é importante. No entanto, isso não é tudo. A
48
Encontrou-se na pesquisa de campo casos de famílias de desterritorializados que permaneceram até 5 anos fora
do setor rural. Quando voltaram, depararam-se com problemas como: falta de conhecimento do mercado e de
linhas de crédito, além da ausência de capital próprio para investir.
194
permanência de um reterritorializado no meio rural é possível se for observado o que
realmente une o agricultor ao seu território. A pesquisa mostrou que olhar o
desterritorializado apenas sob o prisma da economia pode ser arriscado.
A campesinidade, entendida como um
ethos
de colono, nos termos sugeridos por
Tedesco (1999), promove a reterritorialização de um agricultor desterritorializado porque
tende a recompor seus agenciamentos coletivos, nos termos propostos por Deleuze e Guattari,
e contribui para o exercício da cidadania. O
locus
onde as condições se mostram mais
favoráveis à recomposição dos agenciamentos coletivos, capazes de reafirmar a identidade
sociocultural de um agricultor desterritorializado é a comunidade de pertencimento, porque
ela é o local de encontro dos indivíduos que buscam reafirmar seu
ethos.
Como referiu
Giddens, a comunidade local, típica das culturas pré-modernas, fornecendo um meio familiar,
contribui para a solidificação de um ambiente de confiança. Segundo o mesmo autor, “o meio
local é o lugar de feixes de relações sociais entrelaçadas, cuja pequena extensão espacial
garante sua solidez no tempo” (GIDDENS, 1991, p..104-105).
Como foi apresentado no segundo capítulo, para um colono, a comunidade de
pertencimento, onde se formam sólidas redes de reciprocidades, representa um fator
territorializante ou territorializador. Em geral, a comunidade de pertencimento se origina e se
consolida pelos laços de vizinhança e parentesco. Assim, ela é determinada não apenas pela
localização geográfica dos agricultores, mas, principalmente, pelos vínculos ou laços de
amizade e confiança que os une. A comunidade para o agricultor familiar enraizado ou
territorializado, nos termos propostos nesta tese, é o substrato necessário para a estabilidade
ou fixidez. Sem esse substrato, a fixidez e a territorialidade ficam sob ameaça. Obviamente, o
mesmo não se pode dizer do agricultor capitalista que concebe a terra apenas como meio de
produção. Para esse agricultor, cujas relações de confiança baseiam-se em sistemas abstratos,
desencaixados, distantes, o que realmente conta é saber como é a terra fisicamente e não quem
mora nela.
Como foi referido no segundo capítulo, a palavra comunidade quando relacionada à
vida no meio rural de tradição camponesa, tem uma conotação que vai além da
territorialidade-proximidade. Ela é expressão tanto da religiosidade, quanto da reciprocidade e
solidariedade. Quando um agricultor decide optar por uma determinada comunidade para
morar em vez de outra, após ser desterritorializado, não o faz apenas pensando nos mercados.
A lógica que justifica a escolha desse agricultor se relaciona à autorrealização e à busca da
preservação de valores emancipatórios na direção da continuidade da solidariedade, do bem-
estar coletivo, da manutenção de valores éticos, do respeito às individualidades, do
195
comprometimento. Os entrevistados que se mostraram queixosos por não terem mais vizinhos
como antes, com quem podiam conversar, “parar e sentar-se na beira da estrada, mesmo em
dias de serviços, pra trocar ideias” (Moacir, entrevista citada), ou podiam efetuar trocas de
carnes, certamente não buscaram a terra de reterritorialização apenas com o fito de produzir
para o mercado e obter lucros. Observa-se que para eles, o vizinho não é visto apenas como o
outrem sobre o qual se exerce uma influência planejada, visando a obter vantagens ou a
atingir pontos fracos. O outrem é visto por eles como alguém com quem podem estabelecer
acordos e consensos racionais, cujas ações são mediadas pela comunicação livre, objetivando
a coordenação de atividades comuns, sob a égide da responsabilidade e satisfação sociais.
Nessa perspectiva, postula-se que existe um hiato entre o estar reterritorializado e o
sentir-se reterritorializado. Restituir a terra ao agricultor que a perdeu não significa,
necessariamente, promover a reterritorialização. um significado específico de terra para o
agricultor reterritorializado a partir de sua racionalidade e condição socioeconômica e
cultural. O agricultor que se sente reterritorializado não vê seu território apenas como lugar de
morada provisória e/ou lugar para enriquecer. Ele se sente um enraizado. No caso dos
agricultores tradicionais ou mesmo os modernizados que apresentam altos índices de
campesinidade, a terra não se traduz apenas como o espaço da produção, mas também como o
lugar de intensas relações de vizinhança, parentesco, amizade, reciprocidade. Por outro lado, o
estar reterritorializado sugere uma condição provisória, em que o
locus
onde se desenvolvem
as relações sociais de âmbito afetivo-tradicional pouco interessa. Aqui é possível visualizar
uma dicotomia entre duas racionalidades: a instrumental e a substantiva, nos termos propostos
por Weber.
Obviamente, a importância da comunidade depende dos valores etnoculturais
definidores da identidade sociocultural dos agricultores. Sendo a religiosidade um dos valores
determinantes da conduta comunitária, sobretudo, dos colonos de descendência europeia,
observou-se que a capela cumpre papel territorializador fundamental. De fato, nos
reassentamentos elas são edificadas logo que se instalam as primeiras famílias e recebem o
nome do padroeiro da antiga capela. A capela edificada “em meio aos tocos de soja”, isto é,
construída às pressas logo após a chegada dos agricultores desalojados ao reassentamento,
como primeiro equipamento do grupo, revela a importância da religião enquanto elemento
territorializante. Assim, se pode dizer que este é um outro elemento típico das culturas pré-
modernas, as quais têm nas cosmologias religiosas, enquanto modos de crença e práticas
rituais que fornecem uma interpretação providencial da vida humana e da natureza, um
ambiente de confiança (Giddens, 1991). Os fiéis, seguidores de uma mesma doutrina,
196
compartilham o mesmo território. O território da igreja ou da capela de tal padroeiro ou de tal
credo. Já aqueles agricultores que não pertencem ao mesmo credo religioso tornam-se pessoas
desterritorializadas em termos religiosos. No âmbito do reassentamento, dir-se-ia que elas
estariam apenas parcialmente territorializadas.
Um indicador da importância territorializante da religião é o próprio nome da
comunidade. Nas comunidades de forte herança colonial, sobretudo as de origem italiana, o
nome da comunidade é o mesmo do(a) santo(a) padroeiro(a). A transferência do(a)
padroeiro(a) da velha para a nova comunidade traz simbolicamente a ideia de continuidade do
grupo de pertencimento e da reprodução das relações de reciprocidade.
A preservação de uma comunidade ou a reprodução de comunidades existentes antes
da desterritorialização em novas bases territoriais é fundamental para a preservação das redes
de parentesco e vizinhança, mantendo coesos grupos rurais formados por redes de parentelas,
assegurando a continuidade das redes de reciprocidade simétrica. Nesse caso, o
reassentamento coletivo, quando formado por grupos de agricultores saídos de uma mesma
comunidade rural e que se reúnem espontaneamente, é o expediente mais indicado. Assim,
antigos grupos reunidos em associações são preservados. No plano prático, isso representa
encurtar caminhos para a organização dos agricultores em grupos ou associações, objetivando
ações coletivas territorializadoras, tais como a compra e o uso coletivo de máquinas e
equipamentos agrícolas, por exemplo. Porém, para além desse indicador utilitarista, a
manutenção da coesão do grupo de parentelas impede a destruição de agenciamentos
coletivos comuns promotores de reciprocidades.
Entretanto, é relevante ressaltar que, diante das individualidades e interesses privados,
muitas vezes criam-se nas comunidades de reassentados relações de reciprocidade
assimétricas. No processo de desreterritorialização, devido às oportunidades que se abrem
para a ascensão ao poder de lideranças locais e para a intervenção externa de mediadores, tais
como sindicatos, partidos políticos e ONGs, criam-se paternalismos que podem simplesmente
romper as estruturas seculares de reciprocidade camponesa.
Na análise que faz sobre formas de organização e atuação de associações camponesas,
no âmbito das ações coletivas, Sabourin enfatiza a administração da interface entre aquilo que
chama de mundo doméstico (a família e a comunidade) e a sociedade externa: o mercado, a
administração e a cidade, alertando que na maioria das vezes essa interface dá-se através do
que chama de “passarelas ou pontes” que assumem papéis de mediadores. Esses mediadores
tanto podem ser líderes comunitários locais, quanto instituições externas, tais como igrejas,
ONGs, serviços públicos ou partidos políticos. A mediação, embora contribua para o acesso
197
aos recursos e/ou para o desenvolvimento de projetos de interesse da comunidade local, pode
gerar o fortalecimento de formas paternalistas ou clientelistas de relação com autoridades
políticas. Destarte, como resume Sabourin, “as organizações profissionais vieram se sobrepor
às estruturas de reciprocidade camponesa ou substituí-las, o que torna mais complexa a
adaptação constante de novas formas de coordenação da ação coletiva(SABOURIN, 2009,
p. 97).
As migrações compulsórias podem contribuir para a desarticulação de antigos grupos
comunitários, separando parentes ou vizinhos, induzindo-os à dispersão e, não raro, ao
abandono do rural. Com raras exceções, a saída dos agricultores de junto dos seus promove a
perda de referências, altera costumes, leva ao encontro com estranhos, trazendo incertezas e
desconfianças. Esse desencontro ou dispersão pode ocorrer tanto nos casos de indenizações,
quanto em reassentamentos mal planejados. Tal como disse um reassentado que antes de ser
desalojado pertencia a uma comunidade diferente da dos demais reassentados, falando sobre
sua nova comunidade: “as pessoas eram melhor do que as daqui [...] tem uns daqui que são
meio racistas; [...] tem um grupinho da bocha que querem ta sempre na cancha” (José Milton,
Reassentamento Novo Horizonte, entrevistado pelo autor em 04/12/2009). Assim, a
desesperança é a tônica do dia a dia desses “reterritorializados”. Eles não planejam o futuro,
porque sonham em partir para uma nova aventura. Eles se consideram desterritorializados,
pois não têm sua comunidade de enraizamento. Eles se sentem desterritorializados, ainda que
estejam radicados em um determinado espaço geográfico. Assim, postula-se que toda a
proposta de reassentamento que não atentar para importância da preservação da comunidade,
pode resultar em fracasso.
A comunidade rural desempenha um papel importante na vida de um agricultor como
definidora de uma identidade. Ao contrário do anonimato dos centros urbanos, sobretudo das
médias e grandes cidades, o espaço rural permite a visibilidade. Assim, ao invés de ser apenas
mais um num centro urbano, o agricultor muitas vezes prefere ser aquele que tem nome,
endereço e profissão em sua comunidade. Ademais, o sentimento de pertencimento à
comunidade, concretizado na extensa rede de relações pessoais baseada na solidariedade e em
estreitos vínculos de interconhecimento, reforça a sensação de segurança e tranqüilidade, em
contraste com a insegurança na cidade (CARNEIRO, 2003).
A desterritorialização compulsória pode induzir o agricultor a migrar para a cidade,
mesmo que essa não seja uma decisão livre do desterritorializado. Em geral isso ocorre
quando o agricultor é forçado a sair de seu território sem que lhe sejam oferecidas as
198
condições para sua imediata reterritorialização
49
. No entanto, esse agricultor, quando forçado
a migrar para a cidade, tende a voltar para o meio rural. O retorno ao meio rural tem a ver
com a própria identidade socioprofissional de agricultor, forjada na luta do dia a dia, no saber
fazer das lides da roça. Apesar do esforço físico e sofrimento do agricultor, quase nunca
recompensados, a preferência pelo campo sinaliza para a afirmação de sua “identidade de
colono” ou identidade socioprofissional, nos termos propostos por Gehlen (2009). Mesmo que
o trabalho na cidade seja menos sofrido, a realização pessoal do agricultor que retorna ao
campo é justificada porque ele reencontra na terra a identidade que perdera quando mudara-se
para a cidade. Além disso, a propriedade da terra lhe assegura o
status
de homem livre, que
não depende de patrão, que não precisa se sujeitar às ordens de outrem, que tem o controle do
tempo em suas mãos.
Mais uma vez, aqui se poderia remeter ao debate proposto por Deleuze e Guattari
(1997) em torno da desterritorialização e reterritorialização. Como foi enfocado no primeiro
capítulo, o Estado e as sociedades capitalistas se constituem pelo processo de
desterritorialização. Ao definir despoticamente instâncias territoriais, eles promovem a
desterritorialização daqueles que vivem guiados por outros agenciamentos coletivos e/ou
desejos que não sejam os do capital (dir-se-ia, aqueles que não têm suas vidas guiadas
exclusivamente pela racionalidade do capital).
A saída do agricultor do campo para a cidade é, em geral, sentenciada por
circunstâncias variadas que são limitadoras da cidadania porque induzem ao desenraizamento:
dificuldades financeiras, questões familiares, envelhecimento da força de trabalho, políticas
agrícolas malsucedidas, avanço do latifúndio. A desterritorialização do agricultor que migra
para a cidade implicaria, em tese, sua reterritorialização na cidade. Porém, esta
reterritorialização impõe um movimento contínuo de desreterritorialização, pois a cidade
apresenta uma multiplicidade de territórios, com uma gama variada de agenciamentos
coletivos estranhos ao agricultor. A falta de qualificação profissional faz com que este
agricultor busque trabalho em qualquer atividade que se apresente como possibilidade de
garantia de um mínimo para viver. Na perspectiva deleuze-guattariana, cada um desses locais
49
No caso dos desalojados de áreas indígenas do Rio Grande do Sul, isso tem ocorrido com frequência devido à
existência de duas instâncias de poder estatal, que não têm atuado em sintonia, decidindo sobre seu destino: O
Governo do RS e a FUNAI. Por parte do Governo do RS, a falta de recursos (e por vezes de vontade política dos
governantes) tem provocado atrasos no pagamento de indenizações das propriedades e/ou no encaminhamento
dos reassentamentos daquelas famílias já indenizadas pela FUNAI. Ressalta-se que ao Governo do RS compete o
encaminhamento de reparações pelas terras, enquanto à FUNAI compete as indenizações pelas benfeitorias
(casas, galpões, cercas, árvores frutíferas, açudes).
199
de trabalho se apresenta como um território diferente. No caso dos agricultores pesquisados,
as fábricas, com suas rotinas, com seus corpos próprios, seus agenciamentos coletivos,
desterritorializaram os agricultores que ainda preservavam forte ligação (profissional,
sentimental, cultural) com a terra de origem.
Muitos grupos sociais podem estar “desterritorializados” sem deslocamento físico,
sem níveis de mobilidade espacial pronunciados, bastando para isto que vivenciem
uma precarização das suas condições básicas de vida e/ou a negação de sua
expressão simbólico-cultutal. [...] Assim como mobilidade não significa,
compulsoriamente, desterritorialização, imobilidade ou relativa estabilidade também
não significa, obrigatoriamente, territorialização (HAESBAERT, 2004, p. 251-252)
[grifos do autor].
Portanto, o retorno ao meio rural do agricultor que migrou para a cidade após sua
desterritorialização compulsória é indicador de que tanto a identidade socioprofissional
quanto a identidade sociocultural são definidoras de estratégias de (re)territorialização. Essas
identidades, quando forjadas no contexto de uma comunidade rural onde se preservam ou se
reproduzem relações de trabalho ou formas de produção e modos de vida pretéritos
constituem o que se convencionou chamar de campesinidade
.
Para o agricultor migrante compulsório, identificado com o estigma da campesinidade,
a cidade se mostra imprópria para o exercício da cidadania, por isso se traduz em espaço da
desterritorialização. A falta de preparo profissional para almejar trabalho que seja rentável
para suprir suas necessidades básicas e para atender aos apelos do consumismo, transforma-o
num excluído. Não condições para a mobilidade nesse espaço. Nem vertical, na direção da
ascensão social, nem horizontal, na direção do deslocamento em busca de melhores espaços
que assegurem sua reprodução social.
Portanto, conseguir um pedaço de terra para morar e uma casa, seja numa área rural ou
na cidade, não significa obter as condições para a (re)territorialização. Como refere Santos
(2007), a partir da ideologia do consumo, o direito à moradia se confunde com o direito de ser
proprietário. Porém ser dono de um terreno ou casa, assim como ser dono de uma propriedade
rural, não assegura o direito de se ter uma moradia estável.
Sintetizando o que foi exposto neste capítulo, sustenta-se que as estratégias de
reterritorialização de agricultores familiares em ambientes dominados pela agricultura de
escala tendem à reforçar a modernidade e enfraquecer certos aspectos da campesinidade. No
entanto, a modernidade não exclui totalmente a campesinidade. Em relação à modernização
do sistema produtivo, a policultura (típica das colônias de descendentes de europeus) tende a
ceder espaço para a monocultura em algumas propriedades, porém a diversificação produtiva
200
ao lado da especialização se oferece como alternativa interessante. Ademais, dois aspectos
relacionados à campesinidade desempenham papel decisivo para a reinserção e/ou
permanência de agricultores nas atividades rurais, enquanto estratégias de resistência e/ou
adaptação à gica do capitalismo agroindustrial contemporâneo: a) ênfase no trabalho
familiar (Chayanov, 1974) ou “intensificação continuada baseada na quantidade e qualidade
do trabalho” (Ploeg, 2008, p. 134), expressa pelo elevado número de UTHs (Unidades de
Trabalho Homem); b) reciprocidade, desenvolvida no âmbito da comunidade local, onde se
estabelecem sólidas redes de parentesco e de vizinhanças (Sabourim, 2008; Wortmann,
1995).
Com base no que precede, postula-se que a desterritorialização compulsória de
agricultores familiares os induz a tomar decisões com o objetivo de buscar sua
reterritorialização. Isso implica fazer escolhas. As escolhas nem sempre são as melhores, pois
em muitos casos, o desterritorializado, em face da urgência em desocupar sua propriedade, é
forçado a aceitar o que lhe é oferecido pelo Estado, seja em termos de indenizações ou de
reassentamentos, ou a buscar por conta própria sua reterritorialização ainda que provisória.
Assim, no processo de desreterritorialização, ocorrem perdas significativas na vida desses
agricultores. Perdas financeiras, mas também perdas de referências e modos de agenciamentos
coletivos. A reterritorialização, quando não planejada, leva o reterritorializado a se
arrepender, tornando-o novamente desterritorializado. Por outro lado, a desterritorialização
pode se tornar uma oportunidade para a capitalização. Isso é inerente às diferentes
racionalidades existentes entre desterritorializados. Não se pode pensar uma política de
reterritorialização única para todos indistintamente, tampouco pensar que apenas o fator
econômico deva ser levado em conta nessas políticas públicas, pois, apesar dos apelos da
modernização capitalista, a agricultura familiar contemporânea está impregnada de tradição
camponesa ou campesinidade.
201
CONCLUSÃO
Nesta tese, buscou-se pesquisar as estratégias usadas por agricultores desalojados de
seus territórios em sua luta pela reterritorialização. Esta reterritorialização é entendida
enquanto processo de reestruturação da base material de reprodução social das UPFs e de
rearticulação das redes de relações sociais, econômicas e culturais dos migrantes
compulsórios. Para a compreensão de tais estratégias, buscou-se identificar as transformações
ocorridas nas UPFs após sua reterritorialização e analisar as percepções dos agricultores em
relação a aspectos considerados determinantes para sua reprodução social ou permanência no
meio rural em condições de dignidade.
A partir de uma base empírica escolhida no norte do Rio Grande do Sul, região de
predominância da agricultura de base familiar, pretendia-se confrontar até que ponto a
“modernidade racionalista” ou do cálculo financeiro do capitalismo contemporâneo, sob a
ótica weberiana, poderia influenciar positivamente ou negativamente no processo de
reterritorialização dos agricultores desalojados. Até então, pelo fato de os agricultores estarem
acostumados a formas de produzir concebidas como arcaicas (trabalho braçal, fraca
insumização, fraca inserção nos circuitos mercantis), acreditava-se que a desterritorialização
ou tenderia a forçar os agricultores a abandonarem a atividade rural ou poderia se constituir
em uma oportunidade para a modernização produtiva e ascensão.
O deslocamento de agricultores familiares de seus territórios, compulsoriamente, aqui
entendido como processo de desterritorialização, leva a pensar sobre as estratégias que lhes
asseguram a reterritorialização, em bases geográficas, econômicas e socioculturais que
permitam condições para a permanência no meio rural. Deve-se reconhecer que, no senso
comum, a primeira hipótese a ser levantada em uma situação de desterritorialização
compulsória é a de que em eventos de tal natureza potencializam-se fatores limitadores da
reprodução social, tais como o desestímulo do migrante compulsório em prosseguir nas
atividades rurais e descapitalização pela interrupção das atividades agrícolas, o que
geralmente acontece na transição entre a saída de um território e a relocação em outro. A
desativação ou o abandono do rural seria o expediente mais recorrente nesses casos.
O que se provou nesta tese foi que não basta se pensar a reterritorialização apenas pelo
viés do econômico. O legado de uma família rural desterritorializada não se limita à terra,
enquanto meio de produção, a formas produtivas, às relações com os mercados. Ele abarca,
também, indicadores que se inserem no horizonte da subjetividade, envolvendo a família
nuclear, a família extensiva ou o grupo da parentela, a vizinhança, amigos, estendendo-se,
202
portanto, na instância da comunidade local. A recomposição das condições que permitam ao
desterritorializado sua realização pessoal ou a reafirmação do exercício pleno da cidadania
não se restringe aos fatores de produção.
As estratégias adaptativas adotadas pelos desreterritorializados, conforme postulado na
primeira hipótese, envolvem rupturas em relação ao passado, porém envolvem também
permanências. Isso sugere que a modernidade, sempre desejada pelos fazedores de políticas
públicas, não suprime a tradição. Ao transpor as fronteiras da propriedade rural
compulsoriamente abandonada, o agricultor familiar reelabora seu projeto de vida, com um
no futuro e outro no passado.
Com a migração forçada, ocorre um rompimento das relações culturais, sociais e
econômicas pretéritas e os apelos da modernidade em ascensão se colocam como premissas
para o recomeço. Assim, o fator econômico, sob a égide da racionalidade instrumental coloca-
se como determinante. Esta pesquisa revelou, porém, que a busca por uma nova
territorialidade se assenta em premissas que demandam o restabelecimento de conexões
pessoais, como a reestruturação de redes de parentesco. Para além das conexões impessoais,
típicas da modernidade racionalista, o migrante necessita restabelecer redes estabilizadoras de
relações amigáveis que resistem através do espaço-tempo, como sugeriu Giddens.
As migrações compulsórias de agricultores familiares resultam em ganhos e perdas.
Elas tanto podem levar à recomposição-reconstituição de formas sociais rurais em novos
territórios, com ganhos para os migrantes, quanto podem levar as famílias rurais a reduzirem
suas chances de reprodução social. A ruptura com o lugar, com o espaço familiar, pode
potencializar iniciativas no sentido da busca da melhoria das condições de vida dos
agricultores migrantes. Ao serem forçados a sair de suas terras em direção a um novo
território, os agricultores podem ser estimulados a colocarem em prática antigos projetos
deixados de lado, no “velho território” por falta de opções. Poder-se-ia citar como casos
emblemáticos os agricultores que sonhavam com a compra de máquinas e equipamentos
novos e vêem essa possibilidade ser concretizada pelo reassentamento em terras propícias
para mecanização e pela oportunidade de financiamentos colocados à sua disposição. Casos
semelhantes aos dos agricultores que sonhavam construir suas casas novas, sonhos que foram
protelados por falta de um estímulo externo e finalmente realizados com financiamentos para
as relocações.
A reterritorialização de um agricultor familiar deslocado compulsoriamente de seu
território depende, além dos recursos técnico-financeiros, da adoção de estratégias de
adaptação (racionalidades adaptativas) aos contextos geoeconômicos encontrados nos novos
203
territórios, evitando-se dessa forma a dispersão do grupo familiar. A família deslocada
(desalojada) compulsoriamente, muitas vezes descapitalizada devido às indenizações de
benfeitorias subvalorizadas ou à demora na relocação, necessita suportes, através de políticas
públicas específicas, que atendam às suas necessidades e de acordo com suas racionalidades.
Os projetos de reassentamentos devem levar em conta os contextos geoeconômicos onde são
implementados e ser seletivos na escolha dos postulantes à terra de reterritorialização-
recampesinização.
A reterritorialização de agricultores desprovidos de capitais (financeiros, culturais) e
de tecnologias situação revelada neste estudo em ambientes dominados pela lógica do
agronegócio, que exige fortes investimentos em terras e tecnologias (tecnologias caras),
contemplando a especialização e a monoculturização, fica ameaçada, pois as unidades
produtivas não conseguem reter a mão de obra do grupo familiar que é a própria essência da
agricultura familiar ou do campesinato. Por sua vez, a perda de braços pela migração de
filhos(as) desestimula o envolvimento da família com outras atividades agropecuárias que não
aquelas pouco demandadoras de mão de obra. Essa condição acaba se tornando um círculo
vicioso: terceirização de serviços/redução de braços/redução de atividades.
Portanto, a pesquisa reforçou a tese consagrada de que a perda de mão de obra
quando se trata de agricultura familiar representa a
descampesinização
, pois mesmo que a
UPF sobreviva, enquanto base material para a produção, fatalmente terá que alterar
radicalmente sua dinâmica territorializadora da agricultura familiar, baseada, além do trabalho
familiar (divisão familiar do trabalho), na sucessão por herança, nas relações sociais de
reciprocidade com a parentela. Porém também mostrou que a adoção de tecnologias
modernas, mesmo as poupadoras de mão de obra, não significa necessariamente a redução do
número de braços numa família. Ela poderá, ao contrário, induzir ao aumento da mão de obra
pela rearticulação ou reagrupamento das famílias e pela retenção na casa paterna de filhos
migrantes potenciais.
Salienta-se, por fim, que o processo de desreterritorialização de agricultores familiares
pode provocar, por um lado, à reconstrução da identidade socioprofissional e, por outro, à
reafirmação da identidade sociocultural. Ambas foram percebidas nas declarações dos
pesquisados, de modo que são concebidas como representações sociais dos agricultores.
A reconstrução da identidade socioprofissional dá-se em função dos avanços nos
processos produtivos e nos mercados que criam novas possibilidades através do tempo-
espaço. A ideia de agricultor modernizado em oposição ao tradicional, resulta da valorização
da técnica moderna, com a ressignificação do trabalho. A modernização agrícola, no entanto,
204
além de ser demandadora de capital exige racionalidade cnica ou disposição do agricultor
para fazer investimentos inovadores.
A identidade sociocultural, na medida em que é forjada nas relações dos indivíduos no
grupo etnocultural, inserido na comunidade local, tende a ser preservada ou reafirmada, desde
que sejam preservadas as redes socioculturais, com a reestruturação de comunidades de
parentes e vizinhos a partir da reterritorialização.
205
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214
APÊNDICE
QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA DE CAMPO COM
AGRICULTORES RETERRITORIALIZADOS
I. PERGUNTAS REFERENTES À IDENTIFICAÇÃO DA UNIDADE
FAMILIAR, À FAMÍLIA E AO TRABALHO
1.1. Nome do entrevistado ____________________________________________________
1.1.1 Endereço:_____________________________________________________________
1.2 Forma de reterritorialização:
( ) reassentamento ( ) compra de propriedade ( ) realocação
1.3. Identificação das pessoas da família e da força de trabalho no âmbito familiar:
Nome Relação com
o(a) chefe do
domicílio
(A)
Idade Tipo de
trabalho
(B)
Estado
Civil
(C)
Escolaridade
(D)
AD
AR
() considerar tempo integral de trabalho igual a 300 dias/ano
(••) Considerar, também, o número de anos de estudo.
(A)
1- Resp/chefe
2- Cônjuge
3- Filho
4- Filha
5- Genro
6- Nora
7- Netos
8- Avô
9- Avó
10- Irmão
11- Irmã
(B)
1 Trabalha tempo integral na UP()
2 Trabalha tempo parcial na UP
3 Trabalha na propriedade e estuda
4 Trabalha tempo integral fora da UP ()
5 Somente estuda
6 Criança menor de 8 anos
7 Idoso maior de 65 anos
8 Não trabalha - deficiente ou inválido
9 Trab. doméstico – tempo integral
10 Trab. doméstico – tempo parcial
11 Desempregado
(C)
1 casado
2 solteiro
3 viúvo
4 separado
5 outros
(D) (
)
1 analfabeto
2 apenas lê e escreve
3 primário completo
4 primário incompleto
5 5ª a 8ª série completo
6 5ª a 8ª série incompleto
7 2º grau completo
8 2º grau incompleto
9 nível técnico
10 superior completo
11 superior incompleto
12 sem idade escolar
215
II. PERGUNTAS SOBRE A TRAJETÓRIA DO(A) RETERRITORIALIZADO(A):
2.1. Origem étnica da família:
A) Responsável-chefe: ( ) italiana ( ) alemã ( ) polonesa ( ) cabocla ( ) mestiça ( )
outra, qual?_______________
B) Cônjuge: ( ) italiana ( ) alemã ( ) polonesa ( ) cabocla ( ) mestiça ( ) outra,
qual?_____________________
2.2. Quem entrou na terra indígena?
( ) o próprio ( ) o pai ( ) o avô ( ) o bisavô
2.3. Em que ano ocorreu a invasão da terra indígena?_____________________________
2.4. Qual a procedência (de onde vinha) a família que entrou na terra indígena? _______
2.5. Como se deu a ocupação da terra na terra indígena (esta pergunta se destina ao
desalojado cuja família foi pioneira na ocupação da terra indígena)?_________________
2.6. Em que ano saiu da terra indígena?_________________________________________
2.7. Em que ano foi morar nesta propriedade?____________________________________
III. PERGUNTAS SOBRE O ORÇAMENTO DA UNIDADE
ECONÔMICA FAMILIAR E A PRODUÇÃO PARA SUBSISTÊNCIA
3.1. Fontes de receita:
Último ano AD AR (2009)
a) atividade agropecuária ( )
b) agroindústria ( )
c) aposentadorias ( )
d) auxílio doença ( )
e) prestação de serviços ( )
f) trabalho como diarista ( )
g) outras
Quais__________________________
a) atividade agropecuária ( )
b) agroindústria ( )
c) aposentadorias ( )
d) auxílio doença ( )
e) prestação de serviços ( )
f) trabalho como diarista ( )
g) outras Quais_____________________
3.1.1. Produção comercial, agropecuária e agroindustrial: Quais desses produtos eram
(são) produzidos na propriedade visando ao comércio?
Último ano agrícola AD Produção AR (ano de 2009)
a) soja ( ) i) suínos ( )
b) milho ( ) j) caprinos ( )
c) feijão ( ) l) bovinos ( )
d) trigo ( ) m) aves ( )
e) fumo ( ) n) queijo ( )
f) leite ( ) o) salame ( )
g) frutas ( ) p) vinho ( )
h) verduras ( )
Outros,
quais:______________________________
a) soja ( ) i) suínos ( )
b) milho ( ) j) caprinos ( )
c) feijão ( ) l) bovinos ( )
d) trigo ( ) m) aves ( )
e) fumo ( ) n) queijo ( )
f) leite ( ) o) salame ( )
g) frutas ( ) p) vinho ( )
h) verduras ( )
Outros,
quais: ___________________________
216
3.1.2 Produção agropecuária e agroindustrial para subsistência: Quais desses produtos
eram (são) produzidos na propriedade?
AD (com base no último ano agrícola AD) AR(com base no ano agrícola 2008/2009)
a) feijão ( ) a) galinhas ( )
b) arroz ( ) b) ovos ( )
c) batatinha ( ) c) leite ( )
d) batata doce ( ) d) açúcar mascavo ( )
e) cebola ( ) e) conservas ( )
f) mandioca ( ) f) queijo ( )
g) amendoim ( ) g) salame ( )
h) alho ( ) h) banha ( )
i) alface ( ) i) vinho ( )
j) cenoura ( )
l) beterraba ( )
m) repolho ( )
n) couve-flor ( )
Outros,
quais:________________________________
a) feijão ( ) a) galinhas ( )
b) arroz ( ) b) ovos ( )
c) batatinha ( ) c) leite ( )
d) batata doce ( ) d) açúcar mascavo ( )
e) cebola ( ) e) conservas ( )
f) mandioca ( ) f) queijo ( )
g) amendoim ( ) g) salame ( )
h) alho ( ) h) banha ( )
i) alface ( ) i) vinho ( )
j) cenoura ( )
l) beterraba ( )
m) repolho ( )
n) couve-flor ( )
Outros,
quais:________________________________
IV. PERGUNTAS SOBRE A CARACTERIZAÇÃO DA PROPRIEDADE
4.1. Características fundiárias e origens das propriedades:
4.1.1 Áreas:
AD:_______ha;
AR:_______ha.
4.1.2 Origens das propriedades
AD:
( ) herança ( ) compra de terceiros ( ) obtida do Estado (titulação)
AR:
( ) compra ( ) reassentamento ( ) realocação
4.1.3 Características do terreno:
Propriedade AD:
_____% plano; ____% declivoso;
_____% cultivável; ____% impróprio para a agricultura ou destinado à reserva legal.
Propriedade AR:
_____% plano; ____% declivoso;
_____% cultivável; ____% impróprio para a agricultura ou destinado à reserva legal.
4.2. Forma de exploração do imóvel visando ao mercado:
AD:
pela própria família_____%; finalidade:__________________________________________;
arrendamento:_____%; finalidade:_______________________________________________.
AR:
pela própria família____%; finalidade:___________________________________________;
arrendamento___%; finalidade:_________________________________________________.
217
V. PERGUNTAS SOBRE A PRODUÇÃO/ PRODUTIVIDADE
5.1. Produção/produtividade dos 4 principais produtos da lavoura comercial, por ordem
de importância
Último ano agrícola AD AR – Ano agrícola 2008/2009
Produto 1:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 1:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 2:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 2:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 3:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 3:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 4:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
Produto 4:______________________;
Total (Sacos ou Kg):______________;
Scs ou kg/há:______________
5.2. Produção/produtividade de leite:
AR:
Número de lit./mês:__________;
Número médio de vacas do plantel:______;
Produção média – lit./vaca/dia:__________.
AR:
Número de lit./mês__________;
Número médio de vacas do plantel:______;
Produção média _____lit./vaca/dia.
VI. PERGUNTAS SOBRE À TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS, USO DE
TECNOLOGIAS E ASSISTÊNCIA TÉCNICA
6.1 Contratação de prestadores de serviços:
AD: ( ) Sim ( ) Não;
Serviços:
( ) plantios
( ) colheitas
( ) tratos culturais
( ) outros, quais:____________________________.
AR: ( ) Sim ( ) Não;
Serviços:
( ) plantios
( ) colheitas
218
( ) tratos culturais
( ) outros, quais:____________________________.
6.2. Grau de mecanização da lavoura:
AD:
______% de terra cultivada em que era utilizada força braçal e/ou tração animal;
______% de terra cultivada em que era utilizada mecanização;
AR:
______% de terra cultivada em que é utilizada força braçal e/ou tração animal;
______% de terra cultivada em que é utilizada mecanização;
6.2.1 Sobre a posse de máquinas e implementos:
AD AR
tratores ( ) Sim; ( ) Não;
automotrizes ( ) Sim; ( ) Não;
ensiladeira ( ) Sim; ( ) Não;
enfardadeiras ( ) Sim; ( ) Não;
ordenhadeira ( ) Sim; ( ) Não;
grade ( ) Sim; ( ) Não;
pulverizador ( ) Sim; ( ) Não;
plantadeira ( ) Sim; ( ) Não;
arado ( ) Sim; ( ) Não;
subsolador ( ) Sim; ( ) Não;
outros, quais:______________________
tratores ( ) Sim; ( ) Não;
automotrizes ( ) Sim; ( ) Não;
ensiladeira ( ) Sim; ( ) Não;
enfardadeiras ( ) Sim; ( ) Não;
ordenhadeira ( ) Sim; ( ) Não;
grade ( ) Sim; ( ) Não;
pulverizador ( ) Sim; ( ) Não;
plantadeira ( ) Sim; ( ) Não;
arado ( ) Sim; ( ) Não;
subsolador ( ) Sim; ( ) Não;
outros, quais:______________________
6.3. Uso de insumos:
AD:
( ) sementes selecionadas
( ) adubos químicos NPK
( ) herbicidas
( ) inseticidas
( ) fungicidas
AR:
( ) sementes selecionadas
( ) adubos químicos NPK
( ) herbicidas
( ) inseticidas
( ) fungicida
6.4. Assistência técnica:
AD: ( ) não recebia; ( ) recebia
Se recebia, numerar por ordem crescente de importância:
( ) Prefeitura
( ) Emater
219
( ) Cooperativas
( ) Empresas integradoras ou vendedoras de insumos
( ) outros
AR: ( ) não recebe; ( ) recebe
Se recebe, numerar por ordem crescente:
( ) Prefeitura
( ) Emater
( ) Cooperativas
( ) Empresas integradoras ou vendedoras de insumos
( ) outros
VII. PERGUNTAS SOBRE A MERCANTILIZAÇÃO E SOBRE FINANCIAMENTOS
7.1. Destino da produção:
AD
Comerciante local % de vendas:......................................
Cooperativa % de vendas:....................................................
Empresas integradores % de vendas.....................................................
Venda direta ao consumidor % de vendas:....................................................
AR
Comerciante local % de vendas:......................................
Cooperativa % de vendas:....................................................
Empresas integradores % de vendas.....................................................
Venda direta ao consumidor % de vendas:....................................................
7.2. Linhas de crédito utilizadas
AD
Só custeio ( ) Sim; ( ) Não Fenalidade:
Só investimentos ( ) Sim; ( ) Não Finalidade:
Custeio e investimentos ( ) Sim; ( ) Não Finalidade:
AR
Só custeio ( ) Sim; ( ) Não Fenalidade:
Só investimentos ( ) Sim; ( ) Não Finalidade:
Custeio e Investimentos ( ) Sim; ( ) Não Finalidade:
:
VIII. PERGUNTAS SOBRE A PARTICIPAÇÃO SOCIAL E POLÍTICA DA FAMÍLIA
220
8.1 Em quais entidades, associações e/ou movimentos sociais participava ou participa:
AD
Associações de agricultores ( ) Sim ( ) Não
Sindicato de trabalhadores rurais ( ) Sim ( ) Não
Movimentos Sociais Agrários ( ) Sim ( ) Não
Partido político (com filiação) ( ) Sim ( ) Não
AR
Associações de agricultores ( ) Sim ( ) Não
Sindicato de trabalhadores rurais ( ) Sim ( ) Não
Movimentos Sociais Agrários ( ) Sim ( ) Não
Partido político (com filiação) ( ) Sim ( ) Não
IX. PERGUNTAS SOBRE AS REPRESENTAÇÕES SOCIAIS E ASPECTOS DA
CAMPESINIDADE
9.1 Por que você decidiu continuar na agricultura após o desalojamento?
9.2 Que tipo de atividades agrícolas você considera mais rentáveis? Por quê?
9.3 Em relação à situação anterior ao desalojamento, o(a) senhor(a) considera que sua
vida:
( ) melhorou
( ) melhorou muito
( ) piorou
( ) piorou muito
( ) ficou igual
9.4 O(a) senhor(a) considera que essa melhora ou piora se deve ao quê? (numerar por
ordem decrescente)
( ) ao tamanho da propriedade
( ) às condições da terra
( ) à comunidade
( ) às políticas públicas
( ) às mudanças na matriz produtiva
( ) à localização da propriedade
9.5 O(a) senhor(a) gostaria que seus filhos seguissem na agricultura?
( ) sim ( ) não ( ) não sabe
9.6 Qual seu plano para o futuro?
( ) continuar na agricultura mesmo que haja piora, fazendo o mesmo que está fazendo;
( ) buscar emprego fora da agricultura e continuar com a terra;
( ) desistir da lavoura, vender a terra e ir para a cidade;
( ) diversificar a produção e/ou mudar a matriz produtiva.
REPRESENTAÇÕES DE TERRA, TRABALHO, FAMÍLIA E COMUNIDADE
221
9.7 Quando eu falo a palavra TERRA, o que vem à sua cabeça?
9.8 Quando eu falo em TRABALHO?
9.9 E a FAMÍLIA, o que representa para você?
9.10 Que importância o (a) senhor (a) dá à comunidade local?
RECIPROCIDADE CAMPONESA E CRENÇAS
9.11 Costumava (costuma) trocar dias de serviços com vizinhos?
AD:
( ) não ( ) às vezes ( ) sim, rotineiramente
AR
( ) não ( ) às vezes ( ) sim, rotineiramente
9.12 Costumava (costuma) trocar carnes com vizinhos
AD:
( ) não ( ) às vezes ( ) rotineiramente
AR:
( ) não ( ) às vezes ( ) rotineiramente
9.13 Existiam (existem) pessoas da família que acreditavam (acreditam) em
benzeduras?
AD:
( ) ninguém ( ) algum ( ) todos
AR:
( ) ninguém ( ) algum ( ) todos
9.14 Observava (observa) as fases da lua para práticas agrícolas ou agropecuárias?
AD:
( ) não ( ) às vezes ( ) sempre
AR:
( ) não ( ) às vezes ( ) sempre
9.15 Frequantava ou participava (frequanta ou participa) de quais destes eventos ou
espaços?
AD:
( ) igreja
( ) bocha
( ) futebol
( ) clube de mães
( ) grupos de família
( ) grupos de terceira idade
AR:
( ) igreja
( ) bocha
( ) futebol
( ) clube de mães
( ) grupos de família
( ) grupos de terceira idade
222
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